O conceito de modo de produção

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O conceito de modo de produção
1 O conceito de modo de produção 1 Cesar Mangolin de Barros Introdução O presente texto tem por objetivo auxiliar aos que se iniciam no estudo do pensamento marxista na compreensão específica do conceito de modo de produção. Para tanto, está dividido em duas partes principais. A primeira trata do conceito de modo de produção propriamente dito e a segunda é o comentário de alguns trechos selecionados do prefácio a “Crítica da Economia Política”, de Karl Marx (1859). Na primeira parte se tratou dos principais elementos teóricos do conceito de modo de produção e também do de formação social; os comentários da segunda parte têm por função acrescentar alguns aspectos e exemplos que parecem importantes para essa introdução. Procurou­se indicar obras de referência para que um estudo mais aprofundado possa ser iniciado. Visto que o marxismo é alvo de intensa campanha ideológica por parte dos órgãos burgueses de comunicação e no meio científico e também porque existem correntes variadas dentro do próprio marxismo, ou mesmo determinadas apropriações equivocadas da obra teórica de Marx por pensadores de correntes diversas, são necessárias algumas palavras antes de entrar no tema, objeto desse trabalho. 1 Este texto foi escrito exclusivamente como material de apoio e introdutório aos participantes do Módulo Marxismo, do Curso Livre de Humanidades – UMESP.
2 A ciência da história, ou o materialismo histórico, novo campo científico aberto por Marx, tem alguns conceitos fundamentais. Dentre eles figuram os de modo de produção, o de formação social e de transição de um modo de produção a outro. Todos se interligam e, ao mesmo tempo, internos a cada um deles, há uma série de outros conceitos fundamentais. O conceito de modo de produção é um dos mais importantes do pensamento marxista. Conhecê­lo significa compreender parte essencial da obra teórica de Marx e Engels. Quando tratamos do conceito de modo de produção temos que abordar, necessariamente, o papel das estruturas, a determinação em última instância do econômico e a estrutura dominante, as relações de produção e forças produtivas, além da transição de um modo de produção a outro, embora esse último possa ser separado. Também é interessante ressaltar desde o início que o conceito de modo de produção, bem como o materialismo histórico, é resultado de uma trajetória intelectual e militante de Marx e Engels, que passaram por outras influências teóricas antes de desenvolver sua própria e original teoria, portanto, estão presentes e se desenvolvem a partir de um determinado momento do pensamento de ambos, particularmente a partir de 1845. Esse ano marca a passagem de dois jovens pensadores e militantes alemães para a construção de uma obra original. Portanto, nos escritos anteriores a 1845 não estão presentes esses conceitos fundamentais, o que é o mesmo que dizer que o materialismo histórico ainda aí não existia. Isso é fundamental para a compreensão da obra de Marx e Engels: algumas correntes do marxismo buscam encontrar nas obras anteriores ao desenvolvimento do materialismo histórico seus fundamentos, ou mesmo fazem uma leitura dessas obras anteriores à luz da obra de maturidade dos nossos pensadores, chegando a conclusões equivocadas ou incorporando determinados conceitos estranhos ao próprio materialismo histórico, conceitos esses abandonados e até mesmo criticados nas obras posteriores.
3 Embora teimosamente negado por alguns, o próprio Marx refere­se ao corte epistemológico 2 que marca o abandono dos referenciais teóricos anteriores no momento do nascimento e desenvolvimento do materialismo histórico. Essas influências não vinham apenas do pensamento de Hegel, mas também de Fichte, Kant e Feuerbach. As fases pelas quais passaram o desenvolvimento intelectual e a produção teórica de Marx e Engels 3 são marcadas por dois aspectos principais: um mais óbvio e ligado a idade dos nossos pensadores; outro histórico e com forte ligação com a prática militante. Pegando o exemplo de Marx: em 1845, quando ocorre o que se chamou aqui de corte epistemológico, ele tinha apenas 27 anos! Um jovem que já havia passado e produzido obras de profundidade em outras correntes do pensamento filosófico e que, ainda que tão jovem, chegava a um nível de maturidade intelectual que lhe permitiu o desenvolvimento de uma nova e fecunda teoria. É absurdo procurar nesse jovem uma única e mesma teoria. Como todo e qualquer mortal que se aventura nesse campo, é razoável que ele tenha permanecido durante algum tempo sob a influência de outras correntes até que sua própria reflexão teórica, à luz de sua prática política e do processo histórico, lhe permitiu o descortinar de um novo campo. Isso nos remete ao segundo aspecto mencionado: foi ligando o processo real à reflexão teórica que Marx galgou esse caminho. Inicialmente (1840­42) voltado a uma compreensão do Estado bastante diferente do período posterior e por um humanismo racionalista­liberal, ele vai advogar que era necessária a crítica aberta ao Estado para que esse 2 Ver o texto indicado: “Prefácio para a Crítica da Economia Política”, de 1859. Ver: ALTHUSSER, Louis. Sobre o Jovem Marx. In: ALTHUSSER, Louis. Análise crítica da teoria marxista (Pour Marx). Rio de janeiro: Zahar, 1967. p.39­74 ALTHUSSER, Louis. Marxismo e humanismo. In: ALTHUSSER, Louis. Análise crítica da teoria marxista (Pour Marx). Rio de janeiro: Zahar, 1967. p.194­220.
3 4 cumprisse seu papel de condutor do humano à sua essência, que era a liberdade e a razão 4 , daí sua insistência inicial na liberdade de imprensa. Logo depois (1842­45), percebendo que o Estado prussiano não caminhava no sentido de cumprir sua suposta missão, percebe que o Estado, por si, não pode fazer isso e, então, Marx recorre à necessidade da organização política e da revolução como forma de “restituir ao homem a sua natureza alienada na forma fantástica do dinheiro, do poder e dos deuses.” 5 Nessa fase, ainda calcada na suposta essência do homem, que funda a história e a política, “A história é a alienação e a produção da razão na desrazão, do homem verdadeiro no homem alienado. Nos produtos alienados do seu trabalho (mercadorias, Estado, religião), o homem, sem sabê­lo, realiza essência do homem. Essa perda do homem, que produz a história e o homem, supõe antes uma essência preexistente definida. Ao final da história, esse homem, transformado em objetividade inumana, não terá mais do que tomar, como sujeito, a sua própria essência alienada na propriedade, na religião e no Estado, para vir a ser o homem total, o homem verdadeiro. (...) A revolução não será mias somente política (reforma liberal racional do Estado), mas ‘humana’ (‘comunista’)” 6 Por fim, (1845 em diante) Marx rompe “com a teoria que funda a história e a política em uma essência do homem” 7 , compreende qual o papel real do Estado, seu caráter de classe, que as relações sociais de produção e a estrutura econômica ocupam um papel fundamental na configuração de uma formação social e vão surgindo assim os novos conceitos de modo de produção, de luta de classes, de revolução etc. Nessa nova fase, na qual se desenvolve o materialismo histórico, os homens não são tratados mais como indivíduos alienados ou uma classe alienada, 4 Cf. ALTHUSSER, Louis. Marxismo e humanismo. In: ALTHUSSER, Louis. Análise crítica da teoria marxista (Pour Marx). Rio de janeiro: Zahar, 1967. p197. 5 Idem. Ibidem. p.199 6 Idem. Ibidem. p.199 7 Idem. Ibidem. p.200
5 que bastaria tomar consciência de classe para que emancipe não somente a si própria, mas por uma predestinação da história, a humanidade inteira. Na introdução a primeira edição de “O Capital”, de 1867, o próprio Marx expressa como percebe os homens ou os indivíduos e, portanto, o rompimento com a fase anterior: “aqui só se trata de pessoas à medida que são personificações de categorias econômicas, portadoras de determinadas relações de classe e interesses. Menos do que qualquer outro, o meu ponto de vista, que enfoca o desenvolvimento da formação econômica da sociedade como um processo histórico­natural, pode tomar o indivíduo responsável por relações das quais ele é, socialmente, uma criatura, por mais que ele queira colocar­se subjetivamente acima delas.” 8 Foi a própria necessidade de pensar a prática e as relações sociais da época que lançou Marx na sua magnífica construção teórica. Compreender isso é dar um gigantesco passo na compreensão do marxismo, que não é só uma teoria da sociedade, mas uma ciência da história, ligada à prática política e, conseqüentemente, à luta de classes. Ninguém pode, mesmo os que procuram, por razões diversas, desqualificar Marx, negar sua grandiosa obra e a influência profunda que exerce pelo mundo afora seu pensamento nos últimos 160 anos. 1 – O conceito de modo de produção Marx diz que mais importante do que o que produz a humanidade num certo momento é como a humanidade se organiza para executar essa produção. Em outras palavras, para se compreender o conceito de modo de produção é preciso considerar esse aspecto central: as relações específicas 8 MARX, Karl. O Capital. 3ed. São Paulo: Nova Cultural, 1988. p.19.
6 que são postas em movimento pelos humanos numa dada sociedade, com a intenção de produzir e reproduzir sua vida material. Essas relações sociais de produção correspondem a um determinado estágio de desenvolvimento das forças produtivas e, ao mesmo tempo, determinam seu próprio desenvolvimento. Essas relações sociais de produção também estão ligadas a outras estruturas, que derivam dela e mantêm entre si interações recíprocas nos períodos de reprodução. A reprodução é possibilitada, por sua vez, exatamente por essa interação das estruturas, ainda que a econômica exerça sempre a determinação em última instância. Isso quer dizer que as relações sociais de produção sempre ocorrem debaixo de uma estrutura jurídico­política (forma de Estado, sistema jurídico, conjunto de leis, aparelho repressivo) que tem por papel legitimar e garantir a reprodução do modo de produção, ou seja, dar possibilidade constante das condições necessárias para sua continuidade, inclusive frustrando a organização política das classes antagônicas. Também a estrutura ideológica tem o papel de gerar representações das próprias práticas e da inserção dos grupos e dos indivíduos nessas práticas, no sentido de tornar essas relações viáveis aos olhos das classes, permitindo assim a coesão social, a resignação e a possibilidade de a classe dominante exercer plenamente sua dominância. Pode­se dizer, portanto, que um modo de produção é um “todo complexo com dominante” 9 . O que isso quer dizer? Quer dizer que um modo de produção é determinado pela existência de estruturas, pelo menos três: a econômica, a jurídico­política e a ideológica, sendo que a estrutura econômica é sempre determinante em última instância. “(...) a estrutura com determinação do todo comanda a própria constituição ­ a natureza – das estruturas regionais, atribuindo­ lhes o lugar respectivo e distribuindo­lhes funções: por 9 Cf. POULANTZAS, Nicos. Poder político e classes sociais. Porto: Portucalense, 1971. p.08.
7 conseguinte, as relações que constituem cada nível nunca são simples, mas antes sobredeterminadas pelas relações dos outros níveis” 10 Isso quer dizer que, ainda que sempre determinante em última instância, a estrutura econômica, dependendo do modo de produção, atribui a uma das outras estruturas o papel dominante, ou seja, as duas outras estruturas, ou a estrutura econômica mesma, tem um papel dominante no sentido de cumprir uma tarefa especial para a reprodução das relações sociais de produção específicas de um modo de produção especifico. “a determinação, em última instância, da estrutura do todo pelo econômico não significa que o econômico aí detenha sempre o papel dominante. Se é verdade que a unidade, representada pela estrutura com dominante, implica que todo modo de produção possui um nível ou uma instância dominante, de fato o econômico só é determinante na medida em que atribui a esta ou aquela instância o papel dominante” 11 A definição de um modo de produção depende, portanto, da análise da articulação especifica das estruturas, sempre considerando a determinação em última instância pela estrutura econômica. Portanto, pode­se dizer que a caracterização de um modo de produção depende do reconhecimento de como as relações sociais de produção são reproduzidas, ou seja, quais as determinações da permanência contínua da reprodução do modo de produção, o que nos leva, necessariamente, a ter que desvendar: quais são as características essenciais dessas relações sociais de produção; como estão distribuídos os meios de produção (propriedade dos meios de produção); como se dá a apropriação do que é produzido; como estão dispostos os humanos nessas relações sociais de produção (as classes sociais); a forma de Estado e de todo o aparelho jurídico­político derivado dessas relações e essenciais para a reprodução, bem como as representações ideológicas que permitem até certo ponto a coesão social. 10 11 Idem. Ibidem. p. 08­09. Idem. Ibidem. p.09
8 Na análise da história pode­se perceber a existência de diversos modos de produção. Essa teoria, apenas esboçada, do modo de produção é somente uma teoria geral, que não existe em estado puro concretamente, daí a necessidade de acrescentar outro conceito: o de formação social. 2 – Modo de produção e formação social. Foi dito acima que a teoria até aqui esboçada do modo de produção é apenas uma teoria geral, válida para todos os modos de produção, assim como também existem teorias particulares, ou seja, a teoria geral serve de referência para a construção de teorias especificas de vários modos de produção que já existiram (por ex.: comunidade primitiva, escravismo, feudalismo, capitalismo etc), assim como possibilita a construção, apenas teórica, de modos de produção inexistentes concretamente (por ex., o modo de produção comunista). “O modo de produção constitui um objeto abstrato­formal que, no sentido rigoroso do termo, não existe na realidade. Os modos de produção capitalista, feudal, escravagista, constituem igualmente objetos abstrato­formais, visto também não possuírem essa existência. De fato, existe apenas uma formação social historicamente determinada, isto é, um todo social – no sentido mais vasto – num dado momento de sua existência histórica” 12 12 Idem. Ibidem. p.09
9 Isso é possível a partir da determinação de elementos comuns a todos os modos de produção. “Podemos, pois, finalmente traçar o quadro dos elementos de qualquer modo de produção, invariantes da análise das formas: 1. Trabalhador; 2. Meios de produção; ­ 1. Objeto de trabalho; ­ 2. Meio de trabalho; 3. Não­trabalhador; A. ­ relação de propriedade; B ­ relação de apropriação real ou material “ 13 Se as teorias dos modos de produção se constituem em objetos abstrato­formais, as formações sociais são objetos reais­concretos, originais sempre porque são singulares. 14 Isso quer dizer que numa formação social específica sempre há mais de um modo de produção num mesmo momento, que coexistem, embora também aí exista um que exerça o papel dominante. Por isso foi dito acima que os modos de produção não ocorrem na forma pura. Lênin, no início do século XX, percebia a existência de vários modos de produção na Rússia. Poulantzas indica que a Alemanha na época de Bismarck possuía o modo de produção capitalista, feudal e patriarcal. Pegando o exemplo do Brasil atual, podemos encontrar outros modos de produção que não somente o capitalista: escravista, relações não­capitalistas no campo, que podem caracterizar um modo de produção específico; comunidade primitiva (em alguns poucos povos que insistimos em chamar de “índios”). Duas observações são necessárias aqui: primeiro, é claro que o modo de produção predominante no Brasil é o modo de produção capitalista. Isso não quer dizer que seja o único, mas que os demais acabam por ser 13 BALIBAR, Etienne. Os conceitos fundamentais do materialismo histórico. In: ALTHUSSER, Louis; BALIBAR, Etienne; ESTABLET, Roger. Para ler o capital. Vol.02. Rio de janeiro: Zahar, 1980. p.170. 14 POULANTZAS, op. cit.. p.09
10 determinados pela forma como a determinação em última instância pelo econômico se exerce dentro do modo de produção predominante, no caso, o capitalista. Significa, então, que os demais são determinados pelo modo de produção predominante e tendem a desaparecer (pelas metamorfoses provocadas pelo modo de produção predominante) ou permanecer, no caso de cumprirem um papel importante na reprodução do modo de produção predominante, levando­se em consideração suas características específicas dentro da formação social concreta (ex.: ver as diversas vias de desenvolvimento do capitalismo). A segunda observação é que, ainda que tratando de formações sociais concretas, a identificação dos vários modos de produção continua a ser uma operação teórica, ou seja, nunca é demais lembrar que essa classificação auxilia a elaboração teórica e serve para fins de análise de uma formação social qualquer, mas que esses modos de produção representam, na realidade, uma única e mesma coisa: uma formação social concreta e sempre singular. 3 – Comentários sobre os trechos extraídos 15 do texto indicado. 16 O prefácio à obra “Crítica da Economia política”, de Karl Marx, foi escrito em 1859. Numa tentativa de síntese, Marx expõe ali seu caminho ao materialismo histórico e procura identificar seus principais aspectos. 15 Os trechos do texto selecionados estão nos slides da aula. O texto indicado referido aqui é o “Prefácio para a Crítica da Economia Política”, de Karl Marx. Uma cópia do texto pode ser obtida em: http://cesarmangolin.files.wordpress.com/2010/02/marx­prefacio­critica­da­economia­ politica1.pdf e também em: http://cursohumanidades.files.wordpress.com/2010/02/curso­ marxismo­aula­o­conceito­de­modo­de­producao­texto­indicado­marx­prefacio­critica­da­ economia­politica.pdf 16 Os trechos comentados aqui estão nos slides da aula e podem ser obtidos em: http://cursohumanidades.files.wordpress.com/2010/02/curso­marxismo­aula­o­conceito­de­ modo­de­producao­prof­cesar­mangolin.ppt
11 Leituras mais apressadas geraram desvios economicistas ao tratar a metáfora do edifício (base ou estrutura – econômica ­ e superestrutura – jurídico­política e ideológica) como a simples e mecânica determinação da superestrutura pela base. Tais leituras permitiram a ênfase ou a centralidade do processo revolucionário e da transição de um modo de produção a outro no desenvolvimento das forças produtivas. A transição passaria a ser, portanto, um processo em que o desenvolvimento das forças produtivas, que chega num determinado momento a uma contradição com as relações de produção (que passam a obstaculizar esse desenvolvimento), força a superação dessas relações de produção e transforma a base econômica que, na seqüência, transforma ou gera uma nova superestrutura. Essa concepção teve e continua a ter interferências graves na tática das organizações revolucionárias. Diversos autores já combateram o desvio economicista (esse e o que deriva das concepções idealistas, geralmente sustentadas pelas obras de juventude de Marx). Não há espaço aqui para uma discussão maior sobre as teorias da transição de um modo de produção a outro, bem como para o correto tratamento das forças produtivas e das relações sociais de produção.. Remetemos, portanto, o leitor ao texto citado de Balibar 17 para, a partir dele, e de suas indicações, aprofundar o tema. Dito isto, são reproduzidos abaixo os trechos extraídos do texto indicado como leitura complementar com seus respectivos e sintéticos comentários. 17 BALIBAR, Etienne. Os conceitos fundamentais do materialismo histórico. In: ALTHUSSER, Louis; BALIBAR, Etienne; ESTABLET, Roger. Para ler o capital. Vol.02. Rio de janeiro: Zahar, 1980. p.170. Uma cópia desse texto pode ser obtida em: http://cesarmangolin.files.wordpress.com/2010/02/balibar­sobre­os­conceitos­fundamentais­do­ materialismo­historico.pdf
12 3.1. Comentários. ü “ na produção social da sua vida, os homens contraem determinadas relações necessárias e independentes da sua vontade, relações de produção que correspondem a uma determinada fase de desenvolvimento das suas forças produtivas materiais” . A necessidade da produção e reprodução da vida material, ou seja, a conquista dos gêneros necessários para a manutenção da própria vida (alimento, agasalho, proteção contra as intempéries etc.) faz com que os humanos estabeleçam relações entre si. Elas são independentes de sua vontade porque eles nascem em um determinado momento e numa determinada formação social, na qual essas relações já estão constituídas, não sendo, portanto, objeto de sua escolha. As relações estabelecidas de antemão, portanto, tornam­se as relações de todos, que são distribuídos em determinados lugares sociais específicos (as classes sociais). São as relações sociais predominantes que determinam as classes sociais e, por conseguinte, a inserção dos indivíduos nessas relações de acordo com seu pertencimento de classe, ou seja, ocupando um lugar e desempenhando um papel específico no processo produtivo. Essas relações de produção têm ligação com o desenvolvimento das forças produtivas (conhecimento técnico, meios de produção de uma forma geral, além do próprio humano). Ao mesmo tempo em que as forças produtivas delimitam as possibilidades das relações de produção, elas têm certo ritmo de desenvolvimento relacionado às necessidades e características próprias dessas relações de produção, ou seja, pode ocorrer, como, por exemplo, no modo de produção capitalista, que as forças produtivas se desenvolvam rapidamente (o que corresponde a necessidades específicas da própria reprodução desse modo de produção e também gera contradições)
13 ü “ O conjunto dessas relações de produção forma a estrutura econômica da sociedade, a base real sobre a qual se levanta a superestrutura jurídica e política e à qual correspondem determinadas formas de consciência social.” A estrutura econômica é determinada, portanto, pelas relações sociais de produção e por um determinado estágio do desenvolvimento das forças produtivas, além de um determinado ritmo de desenvolvimento dessas últimas. O que Marx chama aqui de superestrutura são as estruturas jurídico­política e ideológica que mencionamos mais acima. É preferível, para não correr o risco do desvio economicista, como tratamos no início desse ponto, abandonar a metáfora da base ou estrutura e superestrutura e referir­se a elas apenas como estruturas, ainda que sempre lembrando a determinação em última instância da estrutura econômica. Feito isso, o trecho apenas quer dizer que determinadas relações sociais de produção (que determinam a divisão do trabalho, propriedade dos meios de produção e apropriação real do que é produzido, formas de exploração do trabalho, divisão de classes etc.) possuem também formas de Estado específicas, um conjunto de leis e um aparelho jurídico­político, dotado também de forças coercitivas (forças armadas, sistema penal etc.), voltados para garantir as condições da produção e, portanto, também as condições de reprodução do modo de produção. Os modos de produção possuem formas diversificadas do direito, organização diversa do Estado, que atendem aos requisitos básicos da reprodução e de sua legitimação. Há a interferência da estrutura jurídico­política também na estrutura econômica, o que explica porque se insiste aqui que ela não é somente uma derivação mecânica desta última. Da mesma forma, ocorre a geração de determinadas representações da própria inserção dos indivíduos nas relações sociais de produção. Representações que se configuram como deturpações da própria realidade, num efeito que acaba por velar as formas de exploração do trabalho e de exercício do poder de uma classe sobre outras. Essas representações têm,
14 portanto, a capacidade de omitir as verdadeiras relações sociais de produção e, produtos que são dessas mesmas relações, interferem nas demais estruturas, fornecendo elementos para sua legitimação e aceitação por parte de todos os envolvidos nessas relações. Tais representações são expressas através das leis, mas também podem­se encontrá­las na produção científica, nas expressões artísticas diversas, enfim, elas acabam por se configurar na própria cultura de um tempo e de uma formação social. A ideologia é, portanto, produto das próprias relações sociais de produção e auxilia a classe dominante em sua dominação na medida em que fornece representações que legitimam essa mesma ordem. A ideologia não é, portanto, um mero discurso embusteiro, enganador, formulado pelas elites a fim de enganar o povo e manter a exploração. Ela é inconsciente para todas as classes e aí reside seu poder. Como exemplo, no modo de produção capitalista, através do pensamento liberal, do pensamento positivista e outras bases teóricas que fundamentam e legitimam teoricamente a ordem burguesa, o tema das classes sociais ao menos aparece. Na raiz disso está a percepção de que são as relações mercantis 18 que regulam todas as relações, tornando a todos os indivíduos livres, formalmente iguais, proprietários privados de mercadorias que, nessas condições, se encontram no “mercado” ora para vender sua mercadoria (no caso dos trabalhadores, sua força de trabalho em troca de salário), ora como compradores (dos gêneros necessários para sua subsistência e reprodução). 18 Para ler um estudo breve sobre o papel das relações mercantis na base das ideologias próprias do modo de produção capitalista ver: BARROS, Cesar Mangolin de. Ideologia e mercado nos quatro primeiros capítulos de “ O Capital” . Há uma versão digital em: http://cesarmangolin.files.wordpress.com/2010/02/mangolin­ideologia­e­mercado­nos­quatro­ primeiros­captulos­de­o­capital­2009.pdf Sobre a ideologia ver também: ALTHUSSER, Louis. Aparelhos ideológicos de Estado. Versão digital: http://cesarmangolin.files.wordpress.com/2010/02/luis_althusser_ideologia_e_os_aparatos_do_ estado1.pdf Ver também o capítulo sobre a ideologia na obra citada de Nicos Poulantzas e os quatro primeiros capítulos de “O Capital”, de Marx.
15 ü “ Ao chegar a uma determinada fase de desenvolvimento, as forças produtivas materiais da sociedade se chocam com as relações de produção existentes” “ E se abre, assim, uma época de revolução social” . Novamente aqui o esforço de síntese de Marx oferece o risco do economicismo. Esse é um tema bastante polêmico e resta apenas indicar algumas possibilidades de saída da armadilha do puro e simples desenvolvimento das forças produtivas. Como dito mais acima, as forças produtivas (contando aí o próprio humano) se desenvolvem num ritmo mais ou menos associado às necessidades da reprodução do próprio modo de produção. Ocorre que a reprodução de um modo de produção, assim como o desenvolvimento das forças produtivas não são também lineares, obedecendo a uma definição positivista de desenvolvimento (associado a progresso e evolução), no sentido sempre do pior para o melhor. Tanto a reprodução como o desenvolvimento das forças produtivas geram contradições internas ao modo de produção. Podemos citar como atuais, ainda utilizando o modo de produção capitalista como exemplo, o uso predatório dos recursos naturais, a colocação de um número sempre crescente da população fora de condições mínimas de subsistência, a acentuação da exploração dos trabalhadores, a divisão entre países do centro e da periferia do sistema, crises econômicas etc. Essas contradições colocam na ordem do dia a necessidade da passagem a outro modo de produção, via processo revolucionário, que passa necessariamente, como primeira fase, pela tomada do poder político pelos trabalhadores. Isso pressupõe a organização dos trabalhadores e sua luta econômica, mas também sua expressão na luta política. Segundo Lênin, uma crise revolucionária é marcada pela conjunção de fatores objetivos e subjetivos. Marcam esse momento uma cisão no bloco no
16 poder entre as classes e frações de classe dominantes; uma crise que piora as condições de vida dos trabalhadores; a ação política autônoma dos trabalhadores. Tais elementos constituem um momento de crise revolucionária, que é quando nenhuma das classes pode prosseguir nas mesmas condições sem mudanças mais ou menos radicais. Isso não indica ainda que a revolução seja fatalmente vitoriosa, mas apenas que, havendo a ação política autônoma dos trabalhadores e caso estes consigam alcançar organização e força suficiente, a tomada do poder político é possível e um processo de transição pode se abrir. Tampouco a tomada do poder político representa a vitória da revolução. Esse período, no qual se procura transformar as relações sociais de produção, é iniciado sobre a base material do modo de produção capitalista que é lentamente transformado, mantendo ainda não somente a burguesia, que acaba de sofrer uma derrota política séria, mas também as ideologias próprias do modo de produção capitalista em atividade, até que a transformação das relações sociais de produção produza novas representações e, conseqüentemente, uma nova forma de compreensão do próprio humano, de sua vida e sua inserção das relações sociais de produção transformadas. Isso significa que a transição exige um período longo de transformação permanente, sempre com o risco da restauração da velha ordem ou de novas formas do capitalismo, como o capitalismo de Estado. Como dizia Mao Tse Tung, a transição é marcada pelo acirramento da luta de classes. ü “ Ao mudar a base econômica, revoluciona­se, mais ou menos rapidamente, toda a imensa superestrutura erigida sobre ela” . Há aqui uma inversão, responsável por interpretações que distorcem o pensamento marxista. Primeiro é necessário insistir que o marxismo é anti­evolucionista. Isso quer dizer, no que se refere aos modos de produção, duas coisas: primeiro,
17 que apenas critérios internos da organização que se julga resultado de um aprimoramento da sociedade humana podem servir como critério comparativo entre esta e outra do passado, na qual se vai buscar o que está ausente nesta e presente na primeira. Por isso o positivismo tem que insistir tanto na questão da técnica e da ciência para justificar sua compreensão de que a sociedade industrial é o nível mais elevado do desenvolvimento das sociedades humanas. Segundo, os modos de produção não seguem uma escala sucessória em todos os cantos do mundo e igual para todos os povos. Os modos de produção são possibilidades históricas apenas e nada pode ser utilizado para se sustentar que ao modo de produção capitalista sucederá, necessariamente, a transição socialista e o modo de produção comunista. Estes últimos aparecem como possibilidades históricas, que dependem de fatores objetivos e subjetivos (a ação política dos trabalhadores) para se concretizarem. Não se pode esquecer que, nesse momento, também é uma possibilidade histórica a autodestruição humana (por conta da crise ambiental provocada pela reprodução do capitalismo e também pelas poderosas armas desenvolvidas pelas potências capitalistas para salvaguardar e garantir seus interesses de qualquer ameaça, ou seja, os interesses do capital). Portanto, o socialismo e o comunismo são possibilidades abertas e não um destino histórico determinado pelo desenvolvimento lógico do modo de produção capitalista e seu esgotamento (seja por causa do desenvolvimento das forças produtivas, seja por causa da interpretação um tanto quanto messiânica do proletariado que, ao tomar consciência de classe, emancipa não somente a si mesmo como classe, mas a toda sociedade humana. Isso parece fazer acreditar que o proletariado tem uma função redentora, um papel histórico a ser cumprido, assim como o filho de Deus o tinha ao tornar­se homem: salvar a humanidade do pecado e da distância com seu Deus, nesse caso; salvar a humanidade da alienação, no outro. Em ambos, a promessa da sociedade perfeita e da felicidade infinita: o Reino dos Céus ou o comunismo!) Tendo ficado isso mais ou menos elucidado, ainda que de forma rápida, se retoma o trecho citado para insistir que há ali uma inversão. As experiências
18 revolucionárias, tanto as burguesas (ver os casos da Inglaterra, EUA e França, também o desenvolvimento do capitalismo no Brasil, por exemplo) quanto as proletárias ao longo do século XX, demonstram que ocorre, antes, uma defasagem entre as estruturas do modo de produção até então vigente. Essa defasagem se dá entre a estrutura jurídico­política e a econômica e é marcada pela tomada do poder político e pela transformação da estrutura jurídico­ política antes da transformação na estrutura econômica. Não há indício do surgimento das relações de produção próprias da sociedade comunista dentro dos marcos do modo de produção capitalista. O que pode haver é a contradição, ou seja, a possibilidade objetiva de se chegar àquela, mas a continuidade das contradições desse último. É, de qualquer forma, somente após a tomada do poder político que se inicia a transformação da estrutura econômica. Somente os que confundem a expansão comercial e as contradições que gera dentro da ordem feudal com o modo de produção capitalista já estruturado (produto, portanto, da revolução industrial) é que podem tentar procurar o surgimento do capitalismo já dentro da ordem feudal. Alguns autores tentam demonstrar que a existência de cooperativas de produção poderia ser a evidência de que surgem relações que já apontam para a nova sociedade dentro da ordem capitalista. Tanto a revolução inglesa, do século XVII, quanto a revolução francesa, do fim do século XVII, ainda a guerra de secessão da segunda metade do século XIX, nos EUA e o movimento que põe fim à escravidão e marca o advento da República no Brasil, no fim do século XIX, são eventos que marcam a constituição de um novo tipo de Estado (o Estado burguês), que cria as condições para que o capitalismo propriamente dito se desenvolva. Em alguns casos, como no inglês mesmo, primeiro país capitalista, esse novo Estado abre caminho para que a possibilidade histórica que era o capitalismo se desenvolvesse e se concretizasse, sendo seguido por outros tantos países depois, abarcando quase que todo o planeta na atualidade.
19 Considerações finais Pôde ser visto que o conceito de modo de produção assume importância central para a compreensão do materialismo histórico. Os vários modos de produção existentes e os possíveis historicamente possuem, como dito, teorias especificas, que procuram demonstrar como se dão as relações sociais de produção dentro deles, como exerce a determinação em última instância o econômico e qual estrutura assume o papel dominante. Vale estudá­los para entender a cada um, embora o modo de produção capitalista e suas especificidades seja mais importante, pelo menos pelo fato de vivermos em uma formação social capitalista e em um mundo capitalista. Também a possibilidade histórica da transição ao modo de produção comunista é algo central e extremamente atual nos debates dentro do marxismo e também fora dele. Esse texto, portanto, que teve apenas a intenção de servir de introdução e suporte para a aula do curso, pode servir também para o início do aprofundamento do tema. A bibliografia indicada e utilizada aqui pode ser um bom começo para esses estudos.

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