A “economia solidária”: uma crítica marxista
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A “economia solidária”: uma crítica marxista
CONSELHO EDITORIAL Ainhoa Larrañaga Elorza (Espanha) Aldacy Rachid Coutinho (Brasil) Boaventura de Sousa Santos (Portugal) Carlos Frederico Marés de Souza Filho (Brasil) Celso Luiz Ludwig (Brasil) Claus Magmo Germer (Brasil) Gonçalo Dias Guimarães (Brasil) Jacques Chonchol Chait (Chile) José Antônio Peres Gediel (Brasil) Jose Cademartori Invernizzi (Chile) José Juliano de Carvalho Filho (Brasil) Liana Frota Carleial (Brasil) Márcio Pochmann (Brasil) Paul Israel Singer (Brasil) Plínio de Arruda Sampaio (Brasil) Rui Namorado (Portugal) José Antônio Peres Gediel (Organizador) © Faculdade de Direito, Programa de Pós-Graduação em Direito – UFPR 2007 EQUIPE TÉCNICA Eduardo Faria Silva (Doutorando - UFPR) Felipe Drehmer (Acadêmico - UFPR) Giovana Bonilha Milano (Acadêmica - UFPR) Prof. Dr. José Antônio Peres Gediel (Organizador) Estudos de direito cooperativo e cidadania / Organizador José Antônio Peres Gediel. – Curitiba : Programa de Pós-Graduação em Direito da UFPR, n. 1 (2007). 244 p. 1. Direito Cooperativo. 2. Cidadania. 3. Cooperativismo. I. Programa de Pós-Graduação em Direito da UFPR. II. Universidade Federal do Paraná. CDU 334:331(81) COORDENAÇÃO EDITORIAL Antônia Schwinden CAPA Glauce Midori Nakamura EDITORAÇÃO ELETRÔNICA Ivonete Chula dos Santos 4 APRESENTAÇÃO José Antônio Peres Gediel* É com grande satisfação que apresentamos este segundo volume do “Direito Cooperativo e Cidadania” produzida graças ao apoio material do FINEP e intelectual de pesquisadores da UFPR e de outras universidades nacionais e estrangeiras. Os temas deste volume são variados e profundos, como variada e complexa é a discussão sobre o lugar do cooperativismo e de suas vertentes atuais, nas sociedades contemporâneas. Por essas razões, é sempre necessário articular a história do cooperativismo com suas potencialidades, bem como permitir o diálogo de seus críticos mais contundentes com os teóricos da sua permanente reconstrução. O direito também comparece para apontar formas de organização autogestionárias e cooperativas que promovem reconhecimento desses espaços coletivos de trabalho e produção, pelo Estado de Direito, e facilitam sua inserção nas políticas públicas de diminuição da pobreza e da marginalização. A diversidade de experiências e propostas emerge do conjunto dos textos e possibilitam diversas leituras, interpretações e usos. O nosso propósito com esta publicação é o debate e a pesquisa nas universidades e em outros espaços da sociedade brasileira. * Doutor em Direito das Relações Sociais pelo Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal do Paraná, professor de Direito Civil da mesma Universidade e coordenador do Núcleo de Direito Cooperativo e Cidadania. 5 6 SUMÁRIO APRESENTAÇÃO ................................................................... 5 José Antônio Peres Gediel COOPERATIVISMO – HISTÓRIA E HORIZONTES ..................... 9 Rui Namorado LEGISLACIÓN Y COOPERATIVISMO: EXPERIENCIA COOPERATIVA DE MONDRAGÓN ...................... 37 Ainhoa Larrañaga A ‘ECONOMIA SOLIDÁRIA’: UMA CRÍTICA MARXISTA ............ 51 Claus Germer A LEGITIMIDADE DA ECONOMIA SOLIDÁRIA: OS EIXOS PRINCIPIOLÓGICOS DOS GRUPOS POPULARES PARA A LEGALIDADE NO ESTADO DEMOCRATICO DE DIREITO BRASILEIRO – PRINCÍPIOS DA ECONOMIA SOLIDÁRIA ............. 75 Eloíza Mara da Silva, Fernanda de Oliveira Santos CONFIGURAÇÕES CONTEMPORÂNEAS DO COOPERATIVISMO BRASILEIRO .......................................................................... 89 Daniele Regina Pontes A EVOLUÇÃO RECENTE DA QUESTÃO AGRÁRIA E OS LIMITES DAS POLÍTICAS PÚBLICAS DO GOVERNO LULA PARA O MEIO RURAL ........................................................... 113 Pedro Ivan Christoffoli UM PANORAMA DO COOPERATIVISMO NO MOVIMENTO DOS TRABALHADORES RURAIS SEM TERRA E O CASO DA COOPROSERP .................................................................. 155 Adilson Korchak, José Augusto Guterres PARECER: PROJETO DE LEI N.º 7.009/06 ............................... 187 Núcleo de Direito Cooperativo e Cidadania do Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal do Paraná – NDCC/UFPR PARECER: TRANSFERÊNCIA DE COTA PARTE DE COOPERATIVA ... 205 Eduardo Faria Silva, José Antônio Peres Gediel 7 RESENHA ............................................................................. 211 Felipe Drehmer, Ricardo Prestes Pazello INDICAÇÃO DE LEITURAS ....................................................... 233 PÓS-GRADUAÇÃO EM DIREITO COOPERATIVO E CIDADANIA – UFPR MESTRES .............................................................................. 237 MESTRANDOS ....................................................................... 240 8 COOPERATIVISMO – HISTÓRIA E HORIZONTES* Rui Namorado** RESUMO: Este texto reflete sobre o futuro esperado para o cooperativismo, considerando o seu código genético, bem como os aspectos marcantes de sua trajetória histórica. Como realidades socialmente significativas, as práticas cooperativas firmaram-se nas primeiras décadas do século XIX, assumindo particular relevância na Inglaterra, França, Alemanha, Itália, Bélgica, em especial nos dois primeiros países. Entendido o cooperativismo como uma síntese e uma tensão entre pragmatismo e utopia, entre a utilidade imediata e a alternativa prospectiva, a idéia de um horizonte cooperativo implica uma permanente abertura aos desafios concretos de cada sociedade e uma ambição utópica sustentada quanto ao futuro. RESUMEN: Este texto reflexiona sobre el futuro esperado para el cooperativismo, considerando su código genético, bien como los aspectos marcantes de su trayectoria histórica. Con realidades sociales significativas, las prácticas cooperativas ocurren en las primeras décadas del siglo XIX, asumiendo particular relevancia en Inglaterra, Francia, Alemania, Italia, Bélgica, en especial en los dos primeros países. Entendido el cooperativismo cómo una síntesis y una tensión entre pragmatismo y utopía, entre la utilidad inmediata y la alternativa prospectiva, la idea de un horizonte cooperativo implica una permanente abertura a los desafíos concretos de cada sociedad y una ambición utópica sustentable cuanto al futuro. PALAVRAS-CHAVE: cooperativismo; trajetória histórica; horizonte cooperativo. PALABRAS-CLAVE: cooperativismo; trayectoria histórica. * Este texto teve por base uma conferência proferida, em 29 de Agosto de 2006, em Curitiba, no 1º Seminário de Direito Cooperativo, Políticas Públicas e Cidadania, realizado na Universidade Federal do Paraná. ** Doutor em Economia (1994), na área do Direito Econômico, pela Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra. Professor Auxiliar da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra; coordenador do Centro de Estudos Cooperativos da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra. Dentre suas recentes publicações, citam-se: “La sociedad cooperativa europea. Problemas y perspectivas”, in Rafael Chaves, Gemma Fajardo y Rui Namorado (coordinadores), Integración Empresarial Cooperativa, Valencia, CIRIEC-ESPAÑA, 2003; “A Sociedade Cooperativa Europeia – problemas e perspectivas”, Coimbra, Oficina do CES n.º 189, 2003; “Cooperativismo e Economia Social – valorização de um espaço problemático (a propósito do II Colóquio Ibérico de Cooperativismo e Economia Social)”, Cooperativas e Desenvolvimento, n.º 24, Lisboa, 2003; Horizonte Cooperativo – político e projecto”, Coimbra, Almedina, 2001. 9 ESTUDOS DE DIREITO COOPERATIVO E CIDADANIA 1 INTRODUÇÃO 1.1. A distorção mediática, espelho da ideologia dominante, tende a reduzir o cooperativismo a uma difusa sombra de si próprio, sugerindo-o como um resíduo utópico de uma época passada. Um simples olhar para os dados estatísticos fornecidos pela Aliança Cooperativa Internacional permitirá, no entanto, mostrar como essa imagem mediática nos afasta da realidade. De facto, um movimento social que envolve hoje, em todo mundo, mais de setecentos milhões de cooperadores1 não pode ser confinado à marginalidade. É preciso, por isso, fazer regressar o cooperativismo ao seu lugar, dando-lhe uma importância que realmente o reflicta. Vou usar neste texto a palavra cooperativismo como se ela significasse o mesmo que a expressão fenómeno cooperativo, embora seja possível reconhecer facilmente algumas diferenças. A primeira tem, na verdade, desde logo, uma conotação doutrinária e normativa mais nítida, reflectindo talvez melhor a ideia de movimento e de dinâmica. A segunda parece ter uma vocação descritiva mais acentuada. Mas a fungibilidade entre ambas, quanto ao essencial, não me parece que possa ser posta em causa. 1.2. Na história do cooperativismo vou valorizar particularmente a sua génese, as suas raízes estruturantes, procurando nos segmentos iniciais da sua trajectória histórica os aspectos mais sintomáticos da sua evolução. Quanto à procura do que há de mais esperançoso nos horizontes que se oferecem como possíveis à evolução do 1 A consulta dos dados estatísticos fornecidos pela Aliança Cooperativa Internacional (ACI), por meio do seu site ou das suas publicações oficiais, permitirá confirmar facilmente esses números. 10 COOPERATIVISMO – HISTÓRIAS E HORIZONTES fenómeno cooperativo, darei o devido relevo à ambição utópica inscrita na cooperatividade. Uma ambição utópica feita de uma natural intimidade com o futuro e que não se deixa confinar ao tipo de sociedade actualmente dominante. Numa palavra, vou tentar compreender que futuro espera o cooperativismo, dando toda a importância ao seu código genético, bem como aos aspectos mais marcantes da sua trajectória histórica até ao que podemos considerar a sua maturidade. Mas não vou esquecer que verdadeiramente não há um futuro de esperança para colher sem esforço, nem um horizonte de pesadelo de que se não possa escapar. Entre os futuros possíveis, acontecerá aquele que formos capazes de construir, aquele de que o movimento cooperativo for capaz, em sinergia com o esforço e a inteligência dos cooperativistas e dos cidadãos. 1.3. Nesta introdução pode ser útil incluir como ponto prévio, uma breve memória dos aspectos mais relevantes do fenómeno cooperativo na actualidade. 1.3.1. Ele corresponde a uma vasta rede de organizações empresariais, da mais variada dimensão, com incidência em todos os sectores da actividade económica, envolvendo, como já se disse, mais se 700 milhões de cooperadores, distribuídos por todos os continentes. 1.3.2. Está repartido por mais de uma dezena de ramos cooperativos, entre os quais podem ser destacados: o do consumo, o de crédito, o agrícola, o da habitação, o da comercialização, o da produção operária, o da cultura e o da educação. 1.3.3. Assume, como identidade distintiva universalmente reconhecida, um conjunto de princípios, um leque de valores e uma noção. 1.3.4. A sua energia propulsora advém de uma das principais forças congregadoras das sociedades humanas – a 11 ESTUDOS DE DIREITO COOPERATIVO E CIDADANIA cooperação. Ou seja, estamos perante uma congregação de práticas sociais centrada na cooperação. 1.3.5. O fenómeno cooperativo emergiu historicamente como parcela do movimento operário, tendo-se diferenciado no seu interior sem deixar de ser um dos seus pilares, o que o ligou umbilicalmente ao capitalismo. 1.3.6. Tem uma relação complexa com o capitalismo, pois pode rever-se nele, quer como uma compensação do que no capitalismo seja mais insuportavelmente predatório, quer como um foco de resistência à lógica dominante, quer como um verdadeiro alfobre de alternatividade. 1.3.7. A sua diferenciação, autonomizando-o, consumou e robusteceu a natureza empresarial das actividades por ele implicadas. 1.3.8. É um fenómeno social multifacetado ou, se quisermos, pode encarar-se: ou como um movimento social; ou como um sector de propriedade dos meios de produção. 1.3.9. Por último, para o compreender em toda a sua dinâmica, o fenómeno cooperativo pode ser visto como parcela que se integra simultaneamente em várias constelações. Essas constelações, tendo em comum o fenómeno cooperativo, instituem-no como um campo de forças onde se conjugam impulsos diversos. Impulsos de cooperação, pela natureza cooperativa das práticas sociais em jogo; impulsos próprios do movimento operário, por estarmos perante um dos seus pilares; impulsos pela inserção na economia social, por estarmos perante entidades que, claramente, a integram. 1.4. Como segundo ponto prévio, vamos propor uma noção de cooperativa que esgote toda a sua amplitude, valorizando o facto de estarmos perante uma entidade que: • é uma síntese de associação e de empresa; • baseia-se na cooperação e na entreajuda dos seus membros; 12 COOPERATIVISMO – HISTÓRIAS E HORIZONTES • assume como determinantes a democracia interna e a participação; • não tem fins lucrativos; • procura responder a necessidades e aspirações, quer económicas, quer sociais, quer culturais; • é autónoma e independente, em face de quaisquer focos de poder que se lhe queiram impor de fora; • tem capital e composições variáveis; • é dotada de personalidade jurídica. 2 A COOPERAÇÃO, COMO RAIZ DO FENÓMENO COOPERATIVO 2.1. Destacar a raiz do fenómeno cooperativo está longe de ser um simples ornamento conceptual, destinado a dar cor a uma narrativa histórica. De facto, só assim poderemos compreender a sua lógica mais funda. Só assim poderemos valorizar adequadamente o seu princípio activo. Só assim poderemos ancorar devidamente a sua especificidade incontornável. Mas, fundamentalmente, só assim tornaremos evidente que as práticas cooperativas não são uma prótese doutrinária recente, introduzida circunstancialmente na história pela imaginação de uns poucos e pela força das circunstâncias, destinada a regressar rapidamente ao território perdido das memórias. De facto, na raiz do fenómeno cooperativo está a cooperação,2 esse tecido conjuntivo das acções colectivas, desde sempre presente nas sociedades humanas. Como é sabido, houve um tempo em que as sociedades humanas sobreviviam na medida em que os seus membros 2 Veja-se, no mesmo sentido, PINHO, 1962: 65 e ss.; e também 2004. 116 e ss. 13 ESTUDOS DE DIREITO COOPERATIVO E CIDADANIA cooperassem entre si. A cooperação era então uma verdadeira condição de sobrevivência. Era a época de uma cooperação livre entre iguais, como expressão directa de uma necessidade colectiva de sobrevivência e progresso, que assim se revelava como um elemento nuclear do tecido social. Vieram depois as sociedades de exploração, hierarquicamente diferenciadas, em que a colaboração produtiva, necessária à sobrevivência da sociedade, se projectava também como factor de enriquecimento de uma parte das sociedades à custa da outra. A cooperação é agora funcional, decorrendo em termos socialmente construídos, marcados pela distribuição desigual do sobreproduto social, bem como por uma hierarquia imposta que exprime e cristaliza essa desigualdade, juridicamente legitimada e politicamente protegida. Mas a cooperação livre, conquanto subalternizada, não desapareceu por completo. Permaneceu latente, manifestando-se ao longo dos séculos através dos mais diversos rostos e nos mais dispersos lugares. Foram, de facto, muitos, os fenómenos sociais localmente enraizados, que subsistiram como experiências residuais e como expressões de uma energia cooperativa latente, ao longo da história. Recordem-se as diversas formas de organização comunitária da actividade agrícola, as múltiplas uniões profissionais radicadas na solidariedade, os inúmeros fenómenos associativos, tantas vezes religiosamente marcados.3 A título de exemplos, podemos recordar algumas dessas entidades, tais como: as unidades colectivas agrícolas da Babilónia; as associações artesanais do antigo Egipto, da Grécia antiga e de Roma; as sociedades de crédito na antiga China; as “guildes” medievais; o socorro mútuo comunal islandês, 3 Para um panorama sugestivo dessa problemática, pode consultar-se a antologia organizada por Ugo BELLOCCHI, Il Pensiero Cooperativo dalla Bibia alla Fine dell’ Ottocento. 14 COOPERATIVISMO – HISTÓRIAS E HORIZONTES anterior ao ano mil; o “mir” russo; a “ zadruga” da região balcânica; as “fruitières” do Jura; os celeiros colectivos japoneses; os “ejidos” mexicanos.4 É como se a cooperação livre tivesse sobrevivido ao longo da história como uma energia latente, enquanto as sociedades se estruturavam, com base nos grandes vectores da colaboração forçada, da hierarquia e do conflito. Como iremos ver, o movimento cooperativo moderno rompeu com esse estado de latência do fenómeno cooperativo, mas não conseguiu ainda arrancá-lo de uma subalternidade que o coloca perante a pressão permanente da lógica e dos valores dominantes. 3 A EMERGÊNCIA DO MOVIMENTO COOPERATIVA MODERNO 3.1. DIFERENCIAÇÃO DAS PRÁTICAS COOPERATIVAS A emergência do movimento cooperativo moderno traduziu-se na diferenciação das práticas cooperativas, através de organizações específicas. Pode dizer-se que, como realidade socialmente significativa, se afirmou nas primeiras décadas do século XIX, assumindo particular relevância num pequeno conjunto de países europeus – Inglaterra, França, Alemanha, Itália, Bélgica – com destaque para os dois primeiros. A cooperação instituiu-se como eixo deste novo conjunto de organizações que intervieram na actividade económica, gerando um tipo particular de empresa. Estruturadas com base na cooperação entre os seus membros, deram-lhe centralidade como o elemento que decisivamente as impulsionou. Mutualizaram uma parte dos interesses dos seus membros, pelo modo como aprenderam a prossegui-los. 4 Para aprofundar essa temática, podem ver-se: VERDIER (1974:3 e ss.), MLADENATZ (1969:11 e ss.) e A.e B. DRIMER (1975:198 e ss.). 15 ESTUDOS DE DIREITO COOPERATIVO E CIDADANIA Mas esta mutualização do prosseguimento de interesses comuns não se manifestou como dinâmica isolada. Pelo contrário, emergiu no quadro do movimento operário como um dos seus elementos constitutivos. Afirmou-se como um dos aspectos diferenciados da nebulosa associativa, através da qual o movimento operário de início se materializou. De facto, a forma associativa começou por incorporar todas as manifestações do activismo operário, para posteriormente amadurecer, diversificando-se em entidades claramente distintas entre si. Foi assim que surgiram o que alguns designaram como os “três pilares do movimento operário”5: partidos políticos operários, sindicatos e cooperativas.6 A centralidade destes três pilares não impediu o associativismo de continuar como um espaço aberto, onde cabiam todas as actividades culturais, sociais e económicas, que não tivessem gerado tipos específicos de organizações. Nalguns casos, ocorreu o que se pode considerar ter sido uma diversificação interna do associativismo, como aconteceu, por exemplo, com as associações mutualistas, com as associações de instrução, com as associações recreativas, com as associações culturais; por vezes, circunscritas a um destes tipos de actividades, por vezes, assumindo várias, mas sempre sem darem origem a um tipo de organização diferente da associação. 3.2. A EXPERIÊNCIA DE ROCHDALE Ponto fulcral da plena autonomização do fenómeno cooperativo e consequente emergência de uma identidade 5 Veja-se DESROCHE (1976:89 e ss.), que salienta o papel de JAURÉS na difusão desta perspectiva. 6 Para uma clarificação do sentido da intervenção do movimento operário nesses três planos, pode ver-se Edwin MORLEY-FLETCHER, 1986: XXXIII e ss. 16 COOPERATIVISMO – HISTÓRIAS E HORIZONTES cooperativa específica, tal como hoje a conhecemos, foi a fundação, em Rochdale, pequena cidade inglesa dos arredores de Manchester, da Cooperativa dos Pioneiros de Rochdale.7 Se tomarmos como referência a Inglaterra, verificamos que algumas cooperativas surgiram, ainda no século XVIII e que muitas nasceram e morreram nas primeiras décadas do século XIX.8 Assim, quando, em 1844, um grupo de operários tecelões de Rochdale se reuniu para constituir a Cooperativa dos Pioneiros de Rochdale, tinha atrás de si um longo período de dinamismo social que, no campo cooperativo, se manifestou através de uma impetuosa natalidade e de uma não menos forte mortalidade cooperativa.9 Foi dessa experiência, mas também do modo como os pioneiros sentiam as sequelas do capitalismo emergente, da necessidade de lhes resistirem, da ambição irreprimível de sonharem para além dele, que resultaram as regras que identificam a sua invenção cooperativa. Não foi, portanto, a imaginação privilegiada de um pequeno grupo que gerou, como artefacto de génio, um conjunto pragmático de regras que viria a revelar-se fecundo e futurante. Sem retirar mérito à reflexão dos pioneiros, ela alimentou-se de um abundante leque de experiências, a partir de um ponto de vista bem determinado, o ponto de vista dos operários de Rochdale, um ponto de vista inserido no movimento operário. O êxito da Cooperativa dos Pioneiros de Rochdale validou a experiência e consagrou os princípios e as regras assumidos, 7 The Rochdale Society of Equitable Pioneers foi fundada em 1844. Para se saber um pouco mais sobre ela, pode consultar-se a História dos Pioneiros de Rochdale de G.J. HOLYOAKE; e ainda BEDARIDA (1972:321 e ss.), THORNES (1988:27 e ss.) e HORNSBY (1988:61 e ss.). 8 Veja-se VERDIER, 1974:7. 9 Para enquadramento dessa problemática, pode ver-se BEDARIDA, 1972:257 e ss. 17 ESTUDOS DE DIREITO COOPERATIVO E CIDADANIA instituindo um paradigma cooperativo hoje, mais de 160 anos depois, dominante à escala mundial. E isso só foi possível, porque esse paradigma se revelou suficientemente flexível e aberto, para incorporar ajustamentos, alterações e novidades; mas também suficientemente consistente, para se renovar sem se descaracterizar. De facto, os princípios cooperativos oriundos de Rochdale, viriam a ser meio século depois, em 1895, o eixo identificador da cooperatividade, que, na fundação da Aliança Cooperativa Internacional (ACI),10 permitiu fixar em concreto o âmbito da nova organização. E seria a ACI que assumiria a tarefa de manter viva a força e a eficácia desses princípios, textualizando-os especifica e formalmente pela primeira vez em 1936, reformulando-os em 1966 e dando-lhes, no quadro de uma identidade cooperativa integralmente explicitada, o perfil actual em 1995, quando celebrou o seu primeiro centenário.11 3.3. AS COOPERATIVAS E AS INTERNACIONAIS Este início do trajecto do movimento cooperativo ocorreu no âmbito da implantação do capitalismo como sistema dominante, constituindo um dos aspectos do desabrochar do movimento operário como resistência ao seu predomínio e às suas mais agressivas pulsões predatórias. As dinâmicas nacionais deste movimento, presentes nos principais países europeus, foram gerando as condições necessárias para a sua internacionalização. Assim, em 1864 foi criada a Associação Internacional dos Trabalhadores, que 10 Para se saber mais sobre a vida dessa organização, até 1970, pode ver-se, entre outros, WATKINS, 1971:passim. 11 Para um estudo mais aprofundado da identidade cooperativa, podem ver-se: MACPHERSON (1996: passim) e NAMORADO (1995:passim) e (2005:9 e ss.). 18 COOPERATIVISMO – HISTÓRIAS E HORIZONTES viria a ficar conhecida por 1ª Internacional, na qual foi clara a proeminência dos franceses e dos ingleses, bem como a influência ideológica de MARX. Na 1ª Internacional, o fenómeno cooperativo corresponde a um espaço sócio-organizativo demarcado, mas está longe de ser o seu elemento propulsor. Nela se defrontam os seguidores de MARX, os seguidores de PROUDHON e os anarquistas.12 A agudização das lutas sociais acentua a hegemonia dos primeiros. Não ocupando as cooperativas o centro das clivagens entre as correntes referidas, não deixavam contudo de ser encaradas em termos diferentes, por cada uma delas. Sem as rejeitarem como elementos coadjuvantes, os marxistas não deixavam de lhes apontar limitações. Mas nas resoluções do Congresso de Genebra, realizado em 1866, pode ler-se: “reconhecemos o movimento cooperativo como uma das forças transformadoras da sociedade actual, baseada no antagonismo de classes”.13 A agudização do combate político e das lutas sindicais, que teriam pouco depois uma expressão extrema e dramática na Comuna de Paris (1870), secundarizaram indirectamente as cooperativas, em virtude da natural proeminência dos combates frontais nas situações de conflito agudo. Entretanto, a 1ª Internacional entra em crise e acaba por desaparecer em 1876, na Conferência de Filadélfia.14 Foi preciso que passassem mais de doze anos, para que o movimento operário readquirisse uma expressão política internacionalmente organizada. De facto, a 2ª Internacional foi fundada em Paris, apenas em 1889. 12 Cf. KRIEGEL,1972:616 e ss. 13 Cf. MARX,1973:21-22. 14 Cf. KRIEGEL,1968:30 e ss. 19 ESTUDOS DE DIREITO COOPERATIVO E CIDADANIA Enquanto a primeira foi, no essencial, uma organização de associações de diversos tipos, fundamentalmente encaradas em pé de igualdade, a segunda assume-se, predominantemente, como uma internacional de partidos políticos. De uma certa paridade simbólica entre os vários tipos de estruturas do movimento operário, passou-se para uma clara supremacia dos partidos políticos.15 O partido político passa, portanto, a ser a forma dominante do combate operário. Dominante, mas não exclusiva. JAURÉS recorreria à sugestiva metáfora dos três pilares, para tornar ostensivo o carácter multifacetado do movimento operário. E para o socialista francês os pilares eram precisamente: os partidos políticos operários, os sindicatos e as cooperativas.16 Mas não era pacífica esta visão abrangente do movimento operário. Muitos se deixaram absorver pela actualidade urgente da luta política, pelo imediatismo dos combates sindicais, menosprezando a energia transformadora das cooperativas, menos ostensiva e, por isso, claramente, menos evidente.17 Esta secundarização das cooperativas encorajou a atitude simétrica que se manifestou dentro do movimento cooperativo. Alguns sectores foram pugnando com intensidade crescente pela completa independência das cooperativas, perante as outras componentes do movimento operário, em especial e naturalmente, em face da componente dominante, os partidos políticos. A esta dialéctica perversa da repulsão que estimula a vontade de independência, que por sua vez encoraja a repulsão, somou-se, como expressão vizinha do mesmo problema, a 15 Cf. KRIEGEL,1974:564. 16 Vejam-se a propósito da teoria dos três pilares: DESROCHE (1976:89) e HENRY (1987:227). 17 Cf. DESROCHE, 1976:87. 20 COOPERATIVISMO – HISTÓRIAS E HORIZONTES contraposição entre o cooperativismo e o socialismo. Na verdade, sendo os partidos políticos operários, na sua quase totalidade, organizações que tinham como objectivo o socialismo; e sendo as cooperativas a expressão nuclear do cooperativismo – era natural que assim acontecesse. 3.4. O CASO DA FRANÇA Em França, o movimento operário foi particularmente fustigado pelas pulsões fragmentárias acima referidas, por vezes, aliás assinaladas por episódios explícitos que fizeram data.18 De facto, em 1879, no Congresso Operário de Marselha consuma-se a ruptura com o cooperativismo. E desde então seria absolutamente nítida a diferenciação, mesmo organizativa, de duas grandes correntes cooperativas: de um lado, os socialistas, do outro, os autonomistas.19 Em 1885, viria a ser criada a União Cooperativa das Sociedades Francesas de Consumo, sob a égide doutrinária de Charles GIDE, cristão social, destacado economista e grande paladino da República Cooperativa. Em 1895, constituir-se-ia a Bolsa Socialista das Sociedades Cooperativas, ligada ao movimento socialista, que viria a aderir á Aliança Cooperativa Internacional, em 1902.20 Nos dois campos, foram-se afirmando posições favoráveis à reunificação. Do lado socialista, revelaram-se como protagonistas particularmente destacados desta corrente de opinião, Jean Jaurés21 e Marcel Mauss.22 Do lado oposto, Charles Gide foi 18 Cf. HENRY, 1987:147. 19 Cf. REBÉRIOUX, 1974:148 e ss. 20 Veja-se MAUSS, 1977:187 e ss. 21 Cf. HENRY, 1987:198. 22 Cf. MAUSS, 1977:187 e ss. 21 ESTUDOS DE DIREITO COOPERATIVO E CIDADANIA particularmente tenaz a pugnar pela reunificação.23 Em 1912, o Congresso de Tours foi o da reunificação. Como então afirmou um dos dirigentes mais destacados, Eugène Fournière: “Todos os socialistas devem ser cooperadores, não para servirem o seu partido, mas para realizarem todo o socialismo que a cooperação contém”.24 3.5. AINDA A INGLATERRA Voltemos, entretanto, à Inglaterra para dar relevo a mais dois ou três tópicos. Em primeiro lugar, merece destaque a emergência da proposta de uma Comunidade Cooperativa (Cooperative Commonwealth). Surgiu impregnada por uma alternatividade contraposta ao capitalismo. Baseava-se em três vectores estruturantes: difundir os princípios e ideais cooperativos; organizar o trabalho cooperativo em todos os sectores; promover a educação.25 Em segundo lugar, não pode deixar de se assinalar a realização do Congresso Cooperativo de Newport (1908), cujo principal objectivo foi o de instituir a representação cooperativa na Câmara dos Comuns. A proposta acabou por ser recusada, mas o debate havido deixou importantes sementes para o futuro. Em terceiro lugar, há que recordar a fundação do Partido Cooperativo, em 1919, o qual viria a estabelecer um acordo com o Partido Trabalhista, em 1927, com base no qual tem tido desde então deputados seus, eleitos para a Câmara dos Comuns, sob a égide do Partido Trabalhista.26 23 Veja-se GIDE, 1974:100-101. 24 Cf. FOURNIÈRE, 1910:77. 25 Veja-se HORNSBY, 1988:77. 26 Cf. COSTA,1956:56 e ss. e ainda HORNSBY, 1988:77 e ss. 22 COOPERATIVISMO – HISTÓRIAS E HORIZONTES Ilustram bem a atmosfera ideológica, que envolvia então o cooperativismo britânico, as afirmações do destacado dirigente cooperativo, J.Tweddell, quando disse: “a cooperação, o sindicalismo e o socialismo são três movimentos sociais guiados por um mesmo ideal de melhoria da sociedade”, já que “enquanto o objectivo perseguido pelo sindicalismo é o de combater o capitalismo, o da cooperação é o de o substituir”, sublinhando que havia, cada vez mais, quem olhasse “de facto o socialismo como a cooperação triunfante, o Estado socializado como coroamento do edifício cooperativo”.27 3.6. O CASO DA BÉLGICA Quanto à Bélgica, importa chamar a atenção para a centralidade do Partido Operário Belga como constelação de organizações, no âmbito da qual a componente cooperativa começou por ser a mais forte, até que, nos anos vinte do século passado, a proeminência se deslocou para a componente sindical.28 Daí resultaram dois tipos de consequências. Em primeiro lugar, a estruturação do movimento cooperativo viria a obedecer a eixos politico-ideológicos. Ao lado da cooperação socialista, radicada no Partido Operário Belga, emergiu um movimento cooperativo de raiz católica. Em segundo lugar, não se colocou como problema prático o risco de uma instrumentalização das cooperativas por focos de poder exterior, embora integrados no movimento operário, uma vez que pela sua força eram elas que podiam aspirar a uma posição hegemónica, e não o contrário.29 27 Cf. TWEDDELL,1909:19. 28 Vejam-se DROZ, 1972:541; REBÉRIOX, 1974:322; PUISSANT, 1988:323. 29 Cf. PUISSANT, 1988:315. 23 ESTUDOS DE DIREITO COOPERATIVO E CIDADANIA 3.7. O CASO DA ITÁLIA No caso italiano, há que salientar o facto de o movimento cooperativo se ter estruturado a partir de eixos políticoideológicos ainda mais marcados.30 A componente socialista teve a sua expressão mais relevante na Lega Nazionalle delle Cooperative, que foi uma das organizações fundadoras da Aliança Cooperativa Internacional.31 A inserção das cooperativas no movimento operário foi bem ilustrada pelo facto de as cooperativas poderem aderir enquanto colectivos, quer ao Partido Operário Italiano (1885), quer ao Partido Socialista Italiano (1892).32 Também no fim do século XIX, surgiu como movimento autónomo o cooperativismo católico,33 ainda hoje predominantemente expresso na Confecooperative. 3.8. O CASO DA ALEMANHA Para concluir este brevíssimo percurso, através dos principais lugares de origem do movimento cooperativo moderno, é importante falar da Alemanha. Com um forte movimento sindical, com o partido socialista que hegemonizou a 2ª Internacional, o Partido Social-democrata Alemão (SPD), a componente cooperativa foi claramente a menos relevante da constelação operária.34 30 Surgiram assim quatro organizações cooperativas de âmbito nacional: Lega Nazionalle delle Cooperative e Mutue, a AGCI (Associação geral das cooperativas italianas), a Confecooperative (Confederação das Cooperativas Italianas) e a UNCI (União nacional das Cooperativas Italianas). 31 Veja-se BRIGANTI,1988:200 e ss. 32 Cf. TREZZI, 1982:166; ZANGERI, 1987:166. 33 Cf. GUICHONET, 1974:269; ANCARANI, 1984:35. 34 Veja-se DROZ, 1972:408. 24 COOPERATIVISMO – HISTÓRIAS E HORIZONTES Em contrapartida, fora do movimento operário, o cooperativismo agrário e camponês teve na Alemanha uma especial pujança. Tendencialmente mais imediatista, procurou prosseguir os interesses económicos dos respectivos membros, conformando-se implicitamente com a perenidade do capitalismo. Nele se destacaram, como figuras tutelares e pioneiras, mas de tendências diferentes, Schulze-Delitzch e Raiffeisen.35 O primeiro, de orientação liberal, centrou-se particularmente na cooperação de crédito, envolvendo artesãos e pequenos comerciantes. O segundo, conservador de inspiração cristã, apostou especialmente na intervenção nos meios rurais, também com destaque para a cooperação de crédito.36 3.9. CONCLUSÃO 3.9.1. Com esta selecção de relances sobre o trajecto inicial do movimento cooperativo, procurou tornar-se nítida a pertença do movimento cooperativo ao movimento operário, evidenciar-se como nele se enraizaram as experiências cooperativas. Procurou mostrar-se como se entrelaçaram tensões e problemas, como se teceu a autonomia da cooperatividade sem a separar das suas raízes; ou seja, de como a autonomia das cooperativas não suscitou a sua exclusão da constelação que foi o movimento operário. 3.9.2. Neste contexto, vale a pena recordar o simbólico ano de 1910, que merece uma particular referência por nele terem decorrido dois importantes congressos internacionais, cujas decisões têm a ver com o que estivemos a tratar. Em Copenhague, decorreu o Congresso da 2ª Internacional, onde foi reconhecida a autonomia do movimento cooperativo 35 Cf. EISENBERG, 1986:148 e ss. 36 Vejam-se ainda: DRIMER (1975:245) e DOWE (1988:27). 25 ESTUDOS DE DIREITO COOPERATIVO E CIDADANIA e a conveniência da unidade das forças cooperativas dentro de cada país. Em Hamburgo, decorreu o Congresso da Aliança Cooperativa Internacional, que saudou expressamente a resolução do Congresso Socialista, assumindo a oposição entre o ideal cooperativo e o capitalismo.37 3.9.3. De tudo o que se acaba de dizer, resulta que a pertença do movimento cooperativo ao movimento operário, no sentido de ter tido nele a sua génese, de ter o seu código genético por ele marcado, conduziu o cooperativismo a uma conexão íntima com o socialismo. A importância, quer dessa génese, quer dessa conexão, não devem fazer esquecer que houve e há experiências cooperativas socialmente muito distantes do movimento operário e alheadas da luta pelo socialismo, mas que, no entanto, não renegaram a matriz cooperativa consubstanciada nos princípios de Rochdale. A inserção das cooperativas no movimento operário e a sua conexão com o socialismo estão longe de implicar uma harmonia permanente e de conduzir a uma relação linear entre elas e os outros tipos de organização oriundos desse movimento. A matriz “rochdaleana” da identidade cooperativa reflecte bem essa génese, não chocando com a conexão mencionada. 4 CONTRIBUTOS PARA A PROCURA DE UM HORIZONTE COOPERATIVO 4.1. INTRODUÇÃO 4.1.1. O primeiro contributo que pode ser dado na busca desse horizonte é o de nos interrogarmos sobre o sentido 37 Vejam-se: HENRY (1987:270) e WATKINS (1971:93). 26 COOPERATIVISMO – HISTÓRIAS E HORIZONTES que pode ter procurar atingir um horizonte cooperativo, ou seja, procurar pensar o cooperativismo, valorizando o conceito de horizonte.38 Olhar para o futuro das cooperativas, para o futuro do movimento cooperativo, encarando-o como um horizonte de renovação e de esperança, significa que se subalterniza a noção de projecto cooperativo, por se considerar que é demasiado fechada e redutora, e até excessivamente homogeneizante. Nesse sentido, pode dizer-se que o conceito de projecto tem uma vocação menos pluralista e de menor abertura do que o de horizonte, estando mais sujeito a um excesso de voluntarismo, que sucumba à facilidade de se esquecer do real. Mas esse olhar significa também que o capitalismo não é o fim da história, pelo que há muito se vem gerando dentro de si próprio um pós-capitalismo. E significa ainda que o fenómeno cooperativo se inscreve no futuro como uma probabilidade ou, pelo menos, como uma forte possibilidade, vocacionado para qualificar, apressar e até antecipar esse futuro. 4.1.2. Se o cooperativismo realizar o essencial das suas potencialidades históricas, incorporar-se-á decerto no póscapitalismo, como uma das suas partes integrantes. Em que termos e em que medida, é o que poderemos imaginar, a partir da realidade presente, do trajecto histórico que nos trouxe até aqui e da ambição utópica a que não queremos renunciar. Deve salientar-se que as potencialidades futurantes do movimento cooperativo são naturalmente condicionadas pelo seu código genético, pelo que não podem ser o resultado de uma imaginação aleatória. Por isso, compreender-lhe a génese 38 Em 2001, saiu um livro de minha autoria, cujo título foi, precisamente: Horizonte Cooperativo – política e projecto. Aí, nas páginas 5 e ss., pode encontrar-se uma síntese dessa perspectiva. 27 ESTUDOS DE DIREITO COOPERATIVO E CIDADANIA e o sentido histórico, tal como se procurou fazer, é um elemento decisivo para a qualificação da perspectiva futurante de um horizonte cooperativo. Neste sentido, pode afirmar-se que é a importância da imaginação cooperativa que valoriza o seu código genético, o qual, reciprocamente, acaba por ser uma das mais relevantes condições da eficácia dessa imaginação. 4.1.3. Para se situar e compreender a razão de ser da ideia actual de um horizonte cooperativo, vale a pena recordar três aspectos da história do século passado. O fenómeno cooperativo foi instrumentalizado e secundarizado, no quadro do modelo soviético. A social-democracia e o socialismo democrático europeus desconsideraram, na prática, a componente cooperativa. O papel das cooperativas no processo de descolonização e do desenvolvimento pós-colonial foi exíguo. É certo que não se gerou, em nenhum dos três casos, uma atitude anti-cooperativa, ostensiva e generalizada, tendo até, pelo contrário, existido uma atmosfera de razoável simpatia. Mas, na prática, foi recusado ao movimento cooperativo qualquer papel estruturante e estratégico. É certo que emergiu na doutrina cooperativa o conceito de sector cooperativo como elemento necessário a uma economia mista.39 Mas, sem menorizar a sua importância, até como elemento mediador na emergência do conceito de horizonte cooperativo, não se está perante algo de relevo comparável ao dos três tópicos acabados de referir. 4.2. SENTIDO DE UM HORIZONTE COOPERATIVO 4.2.1. Para compreender melhor o sentido de um horizonte cooperativo, deve valorizar-se o que há de específico 39 Veja-se FAUQUET, 1979:passim. 28 COOPERATIVISMO – HISTÓRIAS E HORIZONTES nas cooperativas. Anima-as um princípio activo que não é o lucro, sendo por isso movidas por uma lógica própria. Representam, em si mesmas, um enriquecimento cultural, quer dos cooperadores enquanto indivíduos, quer delas próprias enquanto experiências organizativas de um tipo particular. De facto, a cooperatividade, embora valha pelos resultados a que conduz, ou pelas externalidades solidárias que suscite, vale também como experiência vivida, como reflexo e elemento de propulsão endógena da mudança. Liga-a uma sinergia natural às dinâmicas de natureza solidária. Qualifica a solidariedade, afastando-a do assistencialismo. 4.2.2. Por isso, na actual fase da globalização capitalista, as cooperativas vivem para um horizonte de resistência, estando vocacionadas para uma globalização contra-hegemónica, solidária, não predatória, emancipatória.40 A esta luz, é central a relação entre cooperativismo e capitalismo. Pode dizer-se que o cooperativismo não poderá dar todos os seus frutos, não poderá impregnar a sociedade plenamente com a sua lógica, na vigência do sistema capitalista. Nessa medida, o pleno desabrochar do cooperativismo implica um pós-capitalismo. Por outras palavras, para se alcançar plenamente um horizonte cooperativo é necessário ter-se chegado a um pós-capitalismo.41 Naturalmente, não é esta uma posição pacífica no quadro da doutrina cooperativa. Opõe-se-lhe a ideia de que o verdadeiro sentido do cooperativismo é o de ser uma componente interna 40 Uma excelente ajuda para uma plena compreensão e enquadramento da problemática da globalização, pode encontrar-se em Boaventura de Sousa SANTOS, Os processos de globalização (p. 31-106), 1º Capítulo do livro Globalização – fatalidade ou utopia?, (2001) por si organizado, que é o primeiro volume da série A Sociedade Portuguesa perante os Desafios da Globalização. 41 Valorizando um outro ângulo de abordagem desta problemática, veja-se PINHO, 1966:passim. 29 ESTUDOS DE DIREITO COOPERATIVO E CIDADANIA do próprio capitalismo, um factor de equilíbrio, pela função compensatória que desempenha. A sua génese, a sua lógica e a sua energia alternativa tornam esta hipótese pouco sustentável, se for encarada como hipótese exclusiva. No entanto, nada impede que se veja no cooperativismo um elemento de compensação imediata de algumas das consequências mais penalizadoras do capitalismo e simultaneamente um alfobre de um futuro diferente. Aliás, a cooperatividade é, em grande medida, uma combinação subtil entre pragmatismo imediato e ambição utópica. Neste sentido, o cooperativismo é uma síntese e uma tensão entre pragmatismo e utopia, entre a utilidade imediata e a alternatividade prospectiva. Ao propô-lo como horizonte póscapitalista, está a valorizar-se esta última vertente, tal como ao sustentar-se a sua inserção completa no capitalismo se está a valorizar a sua vertente pragmática e imediatista (ou, talvez, a tentar reduzi-lo ao imediatismo, para o separar do futuro). 4.2.3. Também não parece convincente olhar para o horizonte cooperativo como alternativa global ao capitalismo, que disputa ao socialismo o preenchimento completo do póscapitalismo. Toda a sua história o afasta desta hipótese, já que as vias que poderiam conduzir até aqui deixaram há muito de ter quem as percorresse.42 Mais sentido parece ter, encará-lo como um dos aspectos e um dos vectores de um horizonte socialista,43 principalmente se assumirmos a procura deste último como um processo complexo de permanente democratização da sociedade, distante da exclusividade do protagonismo do Estado como seu 42 A propósito da conexão entre socialismo e cooperativismo, pode ver-se SÉRGIO, 1947 e 1948: passim; e ainda NAMORADO, 2001:7 e ss. 43 Em 28 de janeiro de 1992, foi publicado no Jornal de Letras (Lisboa), um texto meu, cujo título foi: Horizonte Socialista – valores, princípios, estratégia. 30 COOPERATIVISMO – HISTÓRIAS E HORIZONTES propulsor. Ou seja, se virmos no trajecto para um horizonte socialista um processo de transformação endógena da sociedade em que as práticas cooperativas assumem a dupla face de procura do futuro e de uma das suas vivências antecipadas. Se o vivermos como um processo de permanente irradiação da igualdade, bem como da criatividade dos indivíduos e das organizações; como um processo de permanente humanização da sociedade, como o culminar de uma ecologia política. 4.2.4. Se o horizonte socialista for o rosto historicamente afirmado do pós-capitalismo, do qual nos separa um processo de amadurecimento democrático prolongado, isso implica necessariamente o recurso ao reformismo como método de transformação social. Ora, o cooperativismo harmoniza-se bem com o reformismo. O movimento cooperativo é um elemento aproveitável por qualquer estratégia reformista, por implicar uma lenta sedimentação de realizações sociais e económicas. E assim se encontra mais um elemento de convergência entre o cooperativismo e o socialismo, reforçando-se a ideia de que o horizonte cooperativo é um elemento insubstituível de um horizonte socialista.44 4.2.5. Num balanço final podemos pois afirmar que, se o caminho para este horizonte não é apenas uma tarefa do Estado, é natural que um protagonismo particular seja assumido pelas entidades e pelas práticas que, não sendo públicas, traduzem uma resistência à lógica capitalista dominante. Se esse caminho for percorrido com base numa estratégia reformista, a componente cooperativa insere-se nesse tipo de estratégia com naturalidade. 44 Como exemplo de uma perspectiva diferente quanto à relação entre cooperativismo e socialismo, pode ver-se LAVERGNE, 1971:passim. 31 ESTUDOS DE DIREITO COOPERATIVO E CIDADANIA Se o horizonte socialista implica uma democracia nos próprios processos produtivos, no próprio protagonismo empresarial, então as cooperativas são um exemplo prático desse tipo de funcionamento democrático. Se esse horizonte reflecte também uma economia social amadurecida e uma economia solidária em expansão, as cooperativas integram esses conjuntos e participam nessas dinâmicas. Assim, conceber o horizonte cooperativo como aspecto do horizonte socialista, inscreve-se adequadamente no desenvolvimento histórico, não contraria as lógicas em jogo, nem embaraça as dinâmicas em causa. 5 CONCLUSÃO Procurei apresentar uma perspectiva a partir da qual se pode valorizar o horizonte cooperativo como meta histórica e como referência estratégica, ciente de que estive longe de esgotar os temas abordados e de que podem ter escapado tópicos relevantes. Nesta circunstância, espero ter conseguido, pelo menos, agitar ideias e aventar hipóteses que valha a pena explorar. Entretanto, como conclusão de tudo o que disse, julgo útil salientar que a ideia de um horizonte cooperativo implica uma permanente abertura aos desafios concretos de cada sociedade e uma ambição utópica sustentada quanto ao futuro. Mas esta ousada ambição só ficará protegida de pulsões e impulsos dissipatórios, se funcionar em completa consonância com a identidade cooperativa, consubstanciada nos valores e princípios assumidos pela Aliança Cooperativa Internacional. 32 COOPERATIVISMO – HISTÓRIAS E HORIZONTES BIBLIOGRAFIA ANCARANI, Giovanni (1984), “Le Istituzioni Cooperative nella Storia della Società Italiana”, in La Cooperazione per un Progetto della Società Italiana, Milão, Franco Angeli. BEDARIDA, François (1972), “Le socialisme anglais de 1848 à 1875”, in Histoire Générale du Socialisme, (T.1), Paris, PUF. BEDARIDA, François (1972), «Le socialisme en Angleterre jusqu’en 1848", in Histoire Générale du Socialisme (T.1), Paris, PUF. BELLOCCHI, Ugo (org.)(1986), Il Pensiero Cooperativo dalla Bibia alla Fine dell’ Ottocento, (Vols.I, II 3 III), Regio Emilia, Tencostampa. 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Después, expondrá los aspectos más relevantes de la legislación cooperativa basca, destacando que el dicho instrumento legal ofrece elementos que han hecho más fácil crear una red fuerte de cooperativas que, sin herir la autonomía de cada una, ha sabido aunar fuerzas y aprovechar las potencialidades de cada emprendimiento, aunque ha creado un tipo de cooperativismo com aspectos criticables en ciertos aspectos. PALAVRAS-CHAVE: cooperativa; Movimento PALABRAS-CLAVE: cooperativa; Movimiento Cooperativo de Mondragón. Cooperativo de Mondragón. * Investigadora de Lanki, Mondragón Unibertsitatea. 37 ESTUDOS DE DIREITO COOPERATIVO E CIDADANIA ‘No hemos de seguir pensando que los trabajadores han de ser siempre ciudadanos de segunda categoría, (…) sino que hay que darles acceso a la propiedad de los bienes económicos, de los capaces de reproducirse, al objeto de que disfruten de los resultados de su propia austeridad y sacrificio’. Don Jose Maria Arizmendiarreta (DJMA) INTRODUCCIÓN La presentación de hoy tiene como objetivo exponer brevemente cual ha sido el origen de la Experiencia Cooperativa de Mondragón (ECM) y principalmente, me detendré en los retos actuales del movimiento cooperativo. Por otro lado expondré cuales son los elementos más destacables de la legislación cooperativa vasca; ley que viene a dar respuesta, entre otras, a las necesidades del grupo Mondragón Corporación Cooperativa (MCC). La ley 4/93 de Cooperativas de Euskadi (modificada por la le 1/2000 de modificación de la Ley de Cooperativas de Euskadi) se puede considerar la mejor ley de cooperativas de todo el estado español. Pienso, que es una ley que está a caballo entre las legislaciones cooperativas tradicionales (latinoamericanas principalmente) y el Estatuto de la Sociedad Cooperativas Europea. Para finalizar esta breve introducción, me gustaría recalcar, que la ley ha ofrecido instrumentos a la ECM, para poder desarrollar mejor su proyecto empresarial; el grupo cooperativo encuentra en la LCE elementos que han hecho más fácil crear una red fuerte de cooperativas , que manteniendo su autonomía han sabido aunar fuerzas y aprovechar las potencialidades de cada cooperativa. Por otro lado, se ha creado un tipo de 38 LEGISLACIÓN Y COOPERATIVISMO: EXPERIENCIA COOPERATIVA DE MONDRAGÓN cooperativa que aunque tiene aspectos criticables, puede facilitar la creación de cooperativas fuera del País Vasco. Los diferentes tipos de socios que contempla la ley también han ayudado al cooperativismo vasco, ya que han posibilitado la participación de otros protagonistas en el proyecto. 1 HISTORIA Y RETOS ACTUALES DE LA ECM Actualmente Mondragón Corporación Cooperativa (MCC) es el primer grupo industrial en la Comunidad Autónoma Vasca (CAV), tanto por sus ventas como por el número de trabajadores, y el séptimo en el Estado español, en base a la variable de la cifra de ventas, así como una de las realidades cooperativas más importantes y estudiadas en el ámbito internacional. Se trata de una realidad socio-económica configurada por más de 150 empresas que desarrollan actividades muy diversas. La corporación agrupa una cooperativa de crédito, una mutua de previsión social, un grupo de empresas industriales y de distribución con negocios de diversa naturaleza, así como otras entidades dedicadas a la formación e investigación. Por otra parte, la mayor parte de las sociedades que la integran son cooperativas, pero también existen otro tipo de sociedades como pueden ser fundaciones, sociedades anónimas o sociedades limitadas. El alma mater de la Experiencia Cooperativa de Mondragón fue Don Jose Maria Arizmendiarreta (1915-1976). Sus últimos años después de una larga e interesante trayectoria de vida, los pasó en Mondragón, compaginando las labores parroquiales y sociales con la colaboración en iniciativas empresariales. Su pensamiento bebió de diferentes movimientos y corrientes como pueden ser la religión, la filosofía, la sociología, la economía o la política. 39 ESTUDOS DE DIREITO COOPERATIVO E CIDADANIA Cuando Don Jose María llega a Mondragón, la localidad sufría las consecuencias de una guerra civil en la que la situación describía un panorama desolador: muertos, exiliados, heridos y mutilados, hambre… Don José María no se limitó a criticar y denunciar, sino que hizo propuestas y las puso en marcha (prueba de ello es la Experiencia Cooperativa de Mondragón); fue pensador y actor al mismo tiempo. Los conceptos clave del pensamiento de DJMA, los podríamos enumerar de la siguiente manera: • Persona y comunidad. • Auto-emancipación, auto-organización y autogestión. • Equilibrio entre la racionalidad tecno-económica y la racionalidad ético-social. Su estrategia era la de transformar la conciencia y, a partir de ahí, transformar las estructuras, a través de la formación, el trabajo, la solidaridad, la cooperación y la participación. Todos ellos conceptos interrelacionados e interdependientes. La primera cooperativa del movimiento, fue la escuela profesional que se inauguró en octubre de 1943, y más tarde vendría la primera cooperativa industrial ULGOR (hoy en día Fagor Electrodomésticos). Entre los años 1955 a 1963 se crearon seis cooperativas industriales Ulgor, Funcor, Arrasate, Lana, Urssa y Vicon; una entidad financiera, Caja Laboral Popular / Lankide Aurrezki Kutxa y una entidad de cobertura social, Lagun Aro. Posteriormente vinieron años de gran creación y promoción cooperativa, para luego tener que pasar años de fuerte crisis económica. RETOS A FUTURO Vamos a señalar los cambios acaecidos desde los orígenes de la experiencia y las consecuencias que han tenido en la identidad cooperativa del grupo. 40 LEGISLACIÓN Y COOPERATIVISMO: EXPERIENCIA COOPERATIVA DE MONDRAGÓN En los primeros años del cooperativismo de Mondragón, podemos decir que en el contexto político reinante, la experiencia era un islote democrático; hoy en día, al contrario es un espacio más. El fortalecimiento de lo público ha conllevado, un estado del bienestar que cubre nuestras necesidades, en aquel entonces, eran necesarias las redes de autoayuda. Por otro lado, de un contexto de autarquía hemos pasado a una situación en la que la globalización nos impone retos a veces difíciles de gestionar. En relación a darle respuesta a las necesidades que existían, era muy eficaz el sistema cooperativo (estaba todo por hacer: responsabilidad social, participación de los trabajadores…); hoy resulta más difícil de justificar (las necesidades están cubiertas). Hemos pasado de una cultura de fuerte militancia ideológica, ha una sociedad donde reina el individualismo. En cuanto a los cambios ocurridos en las tendencias estructurales, podemos citar las siguientes: debilitamiento de la pedagogía cooperativa, debilitamiento de los asideros ideológicos, fortalecimiento de la lógica económico-empresarial y de la tecnocracia, y además debemos señalar que se está dando una indiferenciación con el resto del mundo empresarial. Procesos concretos identificados como retos en las cooperativas son: apertura del abanico salarial, ralentización de la promoción cooperativa, el aumento de los trabajadores eventuales y no socios, el proceso de internacionalización y el enfriamiento democrático. Para finalizar quisiera volver a repetir que en general, vivimos un proceso de indiferenciación entre la empresa capitalista y la cooperativa. Las empresas de capital están impulsando políticas participativas en la gestión y en la propiedad: le están dando una gran importancia al tema de la responsabilidad social. Si a eso le sumamos los retos de las cooperativas que acabamos de citar, vemos que cada vez es 41 ESTUDOS DE DIREITO COOPERATIVO E CIDADANIA más urgente una reflexión a cerca de lo que somos, lo que no somos, a donde vamos… A modo de conclusión podemos decir que las asignaturas pendientes de la ECM, son las siguientes: • Crecer económicamente pero aplicando criterios democráticos; en la era de la globalización es cada vez mayor la brecha que separa economía y la política-democracia • Crecer aplicando criterios sociales; es decir, teniendo en cuenta el bienestar de los cooperativistas, el respeto a su vida privada y al tiempo libre, la no explotación de los trabajadores asalariados… 2 ELEMENTOS DESTACABLES DE LA LEY 4/1993, COOPERATIVAS DE EUSKADI Antes de nada me gustaría señalar que la LCE ha sido un referente claro para otras legislaciones cooperativas del estado español. La ley satisface básicamente el en ocasiones difícil equilibrio entre mantener la identidad cooperativa y abordar los retos empresariales con una cobertura legal sin la cual hubieran tenido dificultades de encaje y desarrollo para el desempeño de su actividad de forma eficiente. La ley objeto de análisis fue modificada por la Ley 1/2000, de 29 de junio, de modificación de la ley de cooperativas. Está última, entre otras modificaciones introdujo la figura de socio de duración determinada, que más tarde analizaremos. La competencia en materia cooperativa corresponde a la Comunidad Autónoma del País Vasco. La competencia legislativa, nos ha ofrecido la oportunidad de hacer una ley que responde de manera óptima a las necesidades del grupo cooperativo de Mondragón. Puede haber quién diga que es 42 LEGISLACIÓN Y COOPERATIVISMO: EXPERIENCIA COOPERATIVA DE MONDRAGÓN una ley que ha querido contentar a MCC, dejando al margen, necesidades de cooperativas pequeñas (agrícolas) u otras cooperativas que no pertenecen al grupo. Junto a la capacidad de legislar contamos con un Registro de Cooperativas situado en el Departamento de Trabajo y Seguridad Social del Gobierno Vasco. El hecho de que el órgano rector (protectorado) se encuentre en el País Vasco, ha posibilitado que la relación y el funcionamiento sean más fluidas y cercanas. E incluso, un tema que consideramos de gran importancia, ha hecho que las relaciones tanto verbales como escritas se hayan podido materializar en euskera (lengua vasca). Por todo lo anteriormente expuesto, pensamos que en la historia de la legislación cooperativa vasca ha sido y es de vital importancia el haber tenido la competencia en materia cooperativa en la CAV. En la elaboración de la ley, la influencia del grupo cooperativo de Mondragón ha sido cuantitativa y cualitativamente muy importante. La ley ha venido dando respuesta a los retos que se le planteaban al grupo y esa ha sido la manera en la ley ha madurado. Sería interesante analizar, cual es la vía que últimamente esta tomando la LCE, e incluso valorar cuales están siendo las aportaciones que desde MCC, se le están haciendo al Estatuto de Sociedades Cooperativas Europeas. Cuestiones ambas que considero de vital importancia, a la hora de mantener el antes citado equilibrio entre la identidad cooperativa y los retos empresariales que plantean. En las páginas que siguen a continuación, voy a destacar los puntos de la ley, que creo interesantes. Y dejaremos para más adelante, el estudio de otros aspectos que no se han tratado pero que son de vital importancia a la hora de ofrecer instrumentos legales, con el objetivo de vitalizar el cooperativismo. 43 ESTUDOS DE DIREITO COOPERATIVO E CIDADANIA REQUISITOS PARA LA CONSTITUCIÓN DE COOPERATIVAS Si observamos la evolución de la ley en cuanto a los requisitos necesarios para la constitución de la cooperativa, debemos constatar que las iniciativas últimas han venido encaminadas a flexibilizar y sobre todo, a facilitar la constitución de cooperativas. La Ley 1/2000 ha introducido entre otras dos modificaciones muy importantes en cuanto a la constitución. Ha reducido el número mínimo de socios de cinco a tres; este requisito venía siendo durante años un inconveniente que dificultaba la constitución de la cooperativa, puesto que se daban casos en los que no se conseguía reunir el mínimo de cinco y no prosperaba el intento de creación de la cooperativa. En el caso de las cooperativas de segundo grado, se exige, que entre los socios fundadores dos sean cooperativa. Como consecuencia de esta reducción, vino otra relativa al capital social mínimo, que pasó de seis mil euros a tres mil. Estas dos modificaciones han hecho que sea mucho más fácil la creación de las cooperativas en la CAV. Las demás modificaciones introducidas por la ley, en las que no nos vamos a extender también han venido ha facilitar el camino de las cooperativas, tanto al inicio de la andadura como en su posterior funcionamiento. SOCIOS En el grupo cooperativo de Mondragón nos encontramos con cooperativas que cuentan con diferentes clases de socios, y cada uno de estos socios colabora en el proyecto de manera diferente, siendo la aportación de cada uno de ellos imprescindible para el éxito de cada una de las cooperativas. El socio que aporta su trabajo es el ‘socio de trabajo’. Es la aportación de su trabajo la condición que le hace ser partícipe 44 LEGISLACIÓN Y COOPERATIVISMO: EXPERIENCIA COOPERATIVA DE MONDRAGÓN de la empresa, y es en la mayoría de los casos quien mayor peso y responsabilidad adquiere. Dice la ley: ‘en las cooperativas de primer grado que no sean de trabajo asociado, y en las de segundo o ulterior grado, los Estatutos podrán prever los requisitos por los cuales los trabajadores podrán adquirir la cualidad de socios de trabajo, consistiendo su actividad en la prestación de su trabajo personal en la cooperativa’. Existe en la ley un limite relacionado con el número máximo de trabajadores asalariados que puede haber en una cooperativa. Este límite ha sido modificado con la introducción de la figura del socio de duración determinada. Debemos señalar que a veces las cooperativas tienen serias dificultades para respetar el límite impuesto por la ley. En cuanto al la cobertura social de los socios de trabajo, debemos decir que la ley ofrece la posibilidad de que los socios de trabajo estén o en el Régimen General de la Seguridad Social o en el Régimen Especial de Autónomos. La opción tanto por un tipo de cobertura o por el otro, la debe de hacer toda la empresa, es decir no son opciones individuales. Pero en la gran mayoría de las cooperativas del grupo, además de estas opciones existe la cobertura de Lagun Aro (entidad de previsión social), aunque en la actualidad este atravesando un periodo de transición un tanto especial. El ‘socio usuario’ es quien utiliza los servicios o bien consume los productos que ofrece la cooperativa. La participación del usuario es importante en la medida en la que suele ser el mejor cliente de la empresa, por lo que interesa tenerle en los órganos de decisión de la cooperativa. Esta clase de socio adquiere verdadero protagonismo en las cooperativas de enseñanza. En la actualidad existen cooperativas 45 ESTUDOS DE DIREITO COOPERATIVO E CIDADANIA de enseñanza que bien pueden ser ‘de trabajo asociado, ‘de consumo’ o ‘integrales’, y en este tipo de centros el papel de los usuarios (padres o alumnos), es primordial. Incluso se dan casos en el que el peso del centro lo llevan ellos. Aunque con menor nivel de compromiso está la figura del ‘socio colaborador’. En este caso hablamos de aquellas personas, públicas o privadas, que, sin poder realizar plenamente el objeto social cooperativo, pueden colaborar en la consecución del mismo. El conjunto de estos socios, salvo que sean sociedades cooperativas, no podrá ser titular de más de un tercio de los votos, ni en la Asamblea General ni en el Consejo Rector. A veces puede resultar interesante la figura del colaborador cuando la cooperativa no es muy fuerte pero hay instituciones cercanas que interesa que colaboren. Existe además la figura del ‘socio inactivo’. Cuando alguien por cualquier causa justificada, y con la antigüedad mínima que los estatutos establezcan, dejen de utilizar los servicios prestados por ó a la cooperativa, podrán ser autorizados para mantener su condición de socios. A parte de los casos de jubilación suele ocurrir cuando alguien con un vínculo afectivo con la cooperativa suele querer mantener su condición de socio. Por último, cabe hablar de la última tipología introducida por la Ley 1/2000, es decir del ‘socio de duración determinada’. La Ley 1/2000 da la siguiente redacción al artículo 4, que habla de esta figura: ‘La pertenencia del socio a la cooperativa tendrá carácter indefinido. No obstante, si lo prevén los Estatutos y se acuerda en el momento de la admisión, podrán establecerse vínculos sociales de duración determinada. Los derechos y obligaciones propios de tales vínculos serán equivalentes a los de los demás socios y serán regulados en los Estatutos (….) 46 LEGISLACIÓN Y COOPERATIVISMO: EXPERIENCIA COOPERATIVA DE MONDRAGÓN Esta nueva clase de socio fue aplaudida por el movimiento cooperativo, en cuanto que ofrecía la posibilidad de hacer socio a un trabajador por cuneta ajena, pero con carácter temporal. Por lo que ofrecía la oportunidad, de una vez transcurrido un período como máximo de cinco años, romper el vínculo societario. Fue criticado a su vez por autoridades administrativas, alegando que con esta figura lo único que se conseguía era alargar la temporalidad de los trabajadores. Además, una vez transcurrido el período estipulado en los estatutos de cada cooperativa, no hacía falta alegar ninguna causa para rescindir el vínculo societario con la cooperativa. La situación del socio temporal era bastante precaria, en el sentido que en el período transcurrido en la cooperativa no se había cotizado para poder obtener la prestación de desempleo. Por lo que una vez fuera de la cooperativa no tenía posibilidades de cobrar el paro. Para concluir con el comentario de esta figura, podemos decir que la valoración que hacemos a día de hoy es distinta según la utilización que se haya hecho de los socios de duración determinada. Ha habido cooperativas que han hecho un buen uso de la figura y la han utilizado como verdadero período de prueba. Pero también es verdad, que ha habido quien ha abusando de la temporalidad que ofrecía la figura. TIPOS DE COOPERATIVAS En cuanto a las diferentes tipos de cooperativas, señalar que son muchas las clases de cooperativas que existen en Euskadi pero únicamente nos detendremos en el análisis de la ‘cooperativa mixta’, por ser una de las grandes singularidades que ofrece la ley. El artículo 136 de la LCE dice así: 1. ‘Son cooperaivas mixtas aquellas en las que existen socios minoritarios cuyo derecho de voto en la Asamblea General se podrá determinar, de modo exclusivo o preferente, en función 47 ESTUDOS DE DIREITO COOPERATIVO E CIDADANIA el capital aportado, que estará representado por medio de títulos ó anotaciones en cuenta, sometidos a la legislación reguladora del mercado de valores’. 2. En estas cooperativas el derecho de voto en la Asamblea General respetará la siguiente distribución: a. Al menos el cincuenta y uno por ciento de los votos se atribuirá, en la proporción que definan los Estatutos, a socios cooperadores. b. Una cuota máxima, a determinar estatutariamente, del cuarenta y nueve por ciento de los votos se distribuirá en partes sociales con voto, que, si los Estatutos lo prevén, podrán ser libremente negociables en el mercado. 3. En el caso de las partes sociales con voto, tanto los derechos y obligaciones de sus titulares como el régimen de las aportaciones se regularán por los Estatutos y, supletoriamente por lo dispuesto en la legislación de sociedades anónimas para las acciones. Si nos remitimos a lo dispuesto en el artículo de la LCE, vemos que la cooperativa mixta posee una parte cooperativa, que siempre tiene que ser mayoritaria, junto a otra parte, que según dice el artículo, se regula en base a la legislación de sociedades anónimas. La cooperativa mixta ha venido a cubrir la necesidad que las cooperativas tenían para inyectar capital en la empresa. Aunque el recorrido de esta figura es breve todavía, podemos valorar como aspecto positivo la posibilidad que ofrece para mantener el poder de decisión en manos de la parte inversora. En los casos en los que una cooperativa crea una empresa con un alto esfuerzo económico es normal, que en los primeros años de andadura no se quiera perder el poder de decisión en la empresa. Por lo tanto, suele interesar mantener una mayoría en manos de quien ha realizado la inversión. Esta figura ha posibilitado que aunque en un futuro pase la cooperativa a 48 LEGISLACIÓN Y COOPERATIVISMO: EXPERIENCIA COOPERATIVA DE MONDRAGÓN manos del trabajador, los primeros años, manteniendo la forma de cooperativa (sin tener que adquirir una forma societaria de capitales), quede la capacidad de decisión mayoritaria en manos de la cooperativa matriz. Desde mi punto de vista aún reconociendo que es una forma híbrida de cooperativa, puede facilitar la creación de cooperativas. Habría que valorar que aunque parte de la empresa se rige por medio de la legislación capitalista siempre impera la parte cooperativa, y puede ser una buena opción para crear cooperativas en las empresas filiales de MCC, que siempre encuentran impedimentos en las legislaciones extranjeras. Han quedado muchos puntos de la ley por analizar. Temas pendientes cara a futuro podrían ser: el régimen económico y fiscal, todo lo relativo a la relación de trabajo de los socios, los órganos sociales de la cooperativa, la regulación de la ley en cuanto a grupos cooperativos, empresas participadas,… Para acabar y en cuanto al régimen fiscal de cooperativas se refiere, cabe decir que existe un régimen privilegiado para las cooperativas, en cuanto entidades sin ánimo de lucro. Incluso hace cinco años se regulo una nueva figura, la cooperativa de ‘utilidad pública’ para la que el régimen viene a ser el mismo que para las fundaciones, es decir el régimen fiscal que mejor protege las figuras no capitalistas, y entidades sin ánimo de lucro. 49 50 A ‘ECONOMIA SOLIDÁRIA’: UMA CRÍTICA MARXISTA Claus Germer* RESUMO: Este artigo constitui uma crítica às concepções de economia solidária de Paul Singer, concentrando-se em dois aspectos, considerados essenciais, tanto do ponto de vista teórico quanto histórico: o primeiro diz respeito à concepção fantasiosa da história das lutas dos trabalhadores pelo socialismo como uma história do desenvolvimento de uma economia solidária; o segundo está voltado ao confronto da concepção da cooperativa de produção como forma típica do modo de produção solidário com as concepções dos autores clássicos do marxismo sobre o papel do cooperativismo. RESUMEN: Este artículo constituye una crítica a las concepciones de economía solidaria de Paul Singer, concentrándose en dos aspectos, considerados esenciales, tanto del punto de vista teórico cuanto histórico: el primero dice respecto a la concepción fantasiosa de la historia de las luchas de los trabajadores por el socialismo como una historia del desarrollo de una economía solidaria; el segundo se vuelve al confronto de la concepción de la cooperativa de producción como forma típica del modo de producción solidario con las concepciones de los autores clásicos del marxismo acerca del papel del cooperativismo. PALAVRAS-CHAVE: economia solidária; marxismo; papel do cooperativismo. PALABRAS-CLAVE: economía solidaria; marxismo; papel del cooperativismo. * Professor do Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Econômico da UFPR – Universidade Federal do Paraná. Curitiba (PR), Brasil. 51 ESTUDOS DE DIREITO COOPERATIVO E CIDADANIA INTRODUÇÃO A crise mundial iniciada nos anos 1970 e a inflexão neoliberal que se seguiu, a partir do início da década seguinte, produziram taxas elevadas e persistentes de desemprego e índices crescentes de pobreza na maioria dos países capitalistas desenvolvidos, mas principalmente nos países da periferia. No campo dos movimentos sociais, com o refluxo momentâneo dos projetos socialistas a partir da desagregação da União Soviética, difundiram-se propostas de reforma social com base na solidariedade mútua e no associativismo dos pobres, configurando um certo retorno às concepções limitadas da fase inicial das lutas operárias surgidas nas primeiras décadas do século 19. Ao mesmo tempo, partidos de diversos matizes de centro-esquerda cresceram eleitoralmente como oposição aos governos neoliberais, mas, ao serem eleitos como reação popular aos problemas sociais causados pelo neoliberalismo, demonstraram não possuir projetos alternativos concretos e procuraram encobrir esta deficiência com a instituição de políticas emergenciais de atendimento a desempregados e pequenos produtores autônomos e informais. Essas políticas emergenciais oficiais somaram-se e (ou) fundiram-se, em alguma medida, com as iniciativas associativas espontâneas surgidas no movimento social, constituindo uma corrente heterogênea de propostas e iniciativas concretas sob o título genérico de ‘economia solidária’. No interior desta corrente surgem tentativas de teorizar a ‘economia solidária’ não apenas como um conjunto de iniciativas emergenciais destinadas a amenizar os efeitos de problemas sociais, mas como embriões de uma forma de organização social alternativa ao capitalismo, ignorando a crítica marxista. No Brasil as iniciativas capituláveis como integrantes da ‘economia solidária’ têm se expandido significativamente, tanto na forma de iniciativas sociais espontâneas como de 52 A ‘ECONOMIA SOLIDÁRIA’: UMA CRÍTICA MARXISTA políticas oficiais. Entre os autores que se destacam como intérpretes deste heterogêneo campo, Paul Singer diferencia-se pela tentativa de teorizar a economia solidária com base em alguns elementos da teoria social marxista, concebendo-a como uma forma social alternativa ao capitalismo sob o título especificamente marxista de novo ‘modo de produção’. Este artigo constitui uma crítica às concepções de Singer, concentrando-se em dois aspectos, considerados essenciais, tanto do ponto de vista teórico quanto histórico: em primeiro lugar, à concepção fantasiosa da história das lutas dos trabalhadores pelo socialismo como uma história do desenvolvimento da economia solidária; em segundo, confrontase a concepção da cooperativa de produção como forma típica do ‘modo de produção solidário’, com as concepções dos autores clássicos do marxismo sobre o papel do cooperativismo. É preciso alertar para o fato de que os escritos de Singer sobre a ‘economia solidária’ possuem características que tornam difícil a crítica. Por um lado, o autor não se esforça em precisar os fundamentos teóricos das suas teses e propostas e dos conceitos que utiliza. O autor faz uso de conceitos marxistas sem se ater ao seu sentido original e sem chamar a atenção do leitor para o sentido alterado que lhes dá. Por outro lado, Singer muda de opinião sobre pontos específicos do tema, de um escrito a outro, sem aparentemente preocupar-se em evitar afirmações contraditórias e, quando incorre nelas, não adverte para a mudança de opinião nem explica os seus motivos. O ASPECTO HISTÓRICO Singer parece empenhado em reescrever a história das lutas dos trabalhadores pelo socialismo, nos últimos 200 anos, como se ela constituísse uma história do desenvolvimento 53 ESTUDOS DE DIREITO COOPERATIVO E CIDADANIA progressivo da ‘economia solidária’, em especial da cooperativa de produção, sua forma típica, segundo o autor.1 O elemento histórico verdadeiro desta versão é que as lutas anticapitalistas dos trabalhadores tiveram início há quase 200 anos, isto é, nas primeiras décadas do século 19. Mas não é verdade que a formação das cooperativas tenha sido a forma de luta única ou predominante, ou que a luta pela formação de cooperativas de produção tenha constituído o eixo central das lutas do proletariado contra o capitalismo a partir desta época até os dias de hoje. A fim de dar destaque ao equívoco histórico no qual Singer incorre, é necessário expor, mesmo que sumariamente, as grandes fases que podem ser identificadas na história da luta do proletariado mundial contra o capitalismo. A primeira fase estende-se aproximadamente do início do século 19 até 1848. Abstraindo a resistência espontânea milenar dos explorados de todos os tempos contra os seus opressores, as lutas dos trabalhadores contra o caráter especificamente capitalista da exploração sofrida iniciaram-se na primeira metade do século 19. Como todo início, tiveram uma base estreita e imediatista. Os trabalhadores ainda não haviam tomado consciência da sua identidade como classe social distinta das demais e de cujas condições objetivas de existência emergia um projeto próprio de sociedade, oposto ao capitalismo. Neste início os trabalhadores não se dedicaram apenas a formar cooperativas. Entre os fatos detacados do período a história registra a sua reação instintiva destruindo 1 SINGER, Paul. “Economia solidária: um modo de produção e distribuição”. In: SINGER, Paul e SOUZA, André Ricardo. A economia solidária no Brasil: a autogestão como resposta ao desemprego. São Paulo: Contexto, 2003, p.13. “A ‘economia solidária’ é o projeto que, em inúmeros países há dois séculos, trabalhadores vêm ensaiando na prática e pensadores socialistas vêm estudando, sistematizando e propagando” (Ibidem, p. 14). A história real contradiz claramente esta fantasiosa opinião. 54 A ‘ECONOMIA SOLIDÁRIA’: UMA CRÍTICA MARXISTA máquinas, que consideravam culpadas pelo infortúnio do desemprego, e as primeiras tentativas de formação de sindicatos. O fenômeno cooperativista, nesse período, apresenta-se sob duas formas. Por um lado, era o subproduto das lutas práticas dos trabalhadores, que ocupavam fábricas falidas e tentavam convertê-las em cooperativas, como reação defensiva diante do desemprego causado pelas crises industriais, enquanto, por outro lado, constituía a base de utopias sociais elaboradas por intelectuais brilhantes (como Fourier e Saint-Simon) e mesmo por industriais de prestígio (caso de Owen). Essa primeira fase da luta pelo socialismo é a fase do socialismo utópico, expressão com a qual Marx e Engels caracterizaram as propostas de reforma social então surgidas e que expressavam as aspirações pessoais de indivíduos bem intencionados, ao invés de constituírem expressões teóricas das tendências de mudança surgidas espontaneamente no desenvolvimento real da sociedade. Singer, parecendo querer antecipar-se à crítica baseada nessa caracterização de Marx e Engels, afirma que ‘a economia solidária não é a criação intelectual de alguém...’, mas é, ao contrário, ‘uma criação em processo contínuo de trabalhadores em luta contra o capitalismo’.2 Segundo Singer, esse período constituiria a “fase inicial” da história da ‘economia solidária’, que denomina “cooperativismo revolucionário”,3 que “já se arvorava como modo de produção alternativo ao capitalismo”.4 Singer parece não distinguir as iniciativas práticas dos trabalhadores das 2 Idem, p. 13. 3 SINGER, Paul. Introdução à economia solidária. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2002, p.35. 4 Idem, p. 33. 55 ESTUDOS DE DIREITO COOPERATIVO E CIDADANIA propostas teóricas de intelectuais preocupados com o agravamento da questão social. Esta opinião causa estranheza, uma vez que o cooperativismo desse período foi antes utópico do que revolucionário, como o demonstram as concepções dos seus mais destacados pregadores na época, Fourier e Owen. 5 Seria um equívoco deduzir o suposto caráter revolucionário dessas cooperativas do fato de uma parte delas ser constituída em fábricas ocupadas pelos trabalhadores. Apesar de importantes, esses processos consistiam antes em reações defensivas dos trabalhadores em situações críticas do que em desdobramentos de projetos conscientes de socialização de meios de produção. Nessa primeira fase, com efeito, a luta contra o capitalismo era concebida como uma luta travada no campo estritamente econômico, o que se pode atribuir, por um lado, ao desconhecimento, por parte dos trabalhadores, da conexão entre a esfera econômica e a da ideologia, da política, da cultura e, no ápice do estrutura social, do poder social concentrado no Estado e monopolizado pela classe proprietária dos meios de produção. Por outro lado, isto pode ser atribuído, em certa medida, à separação ainda existente entre as lutas práticas dos trabalhadores e as elaborações de caráter utópico, por parte de intelectuais.6 A segunda fase, que se inicia em 1848, caracteriza-se pelo fato de que o proletariado intervém no processo social como classe consciente da sua própria identidade social e política. Nessa fase o proletariado, como classe, supera as limitações iniciais, graças à fusão das lutas práticas dos 5 MACKENZIE, N. Breve historia del socialismo. Barcelona: Editorial Labor, 1969, p.26-7, 32-35. 6 A relevância desse aspecto da questão foi desenvolvida por Lênin em Vladimir Ilitch Lênin. Que fazer? In: LÊNIN, Vladimir Ilitch. Obras Escolhidas, vol. 1. São Paulo: Alfa-Omega, 1980. 56 A ‘ECONOMIA SOLIDÁRIA’: UMA CRÍTICA MARXISTA trabalhadores com as lutas teóricas de intelectuais socialistas, dando origem ao socialismo moderno, baseado na ciência da história e na estrutura e movimento reais da sociedade. Sobre essa nova base as manifestações dos trabalhadores puderam ultrapassar os limites estreitos das reivindicações econômicas imediatas. Passou o proletariado, passo a passo, a ocupar espaço próprio na arena propriamente política de luta pela redefinição do caráter e dos destinos da sociedade como um todo. O proletariado fez sua primeira aparição na cena histórica, como classe independente, nas revoluções burguesas de 1848.7 É significativo observar que, a partir desse momento, alterou-se o papel desempenhado no processo da luta de classes pelos projetos de emancipação dos trabalhadores, elaborados no início do século e restritos ao âmbito da produção, ignorando o papel determinante do poder social da classe proprietária concentrado no Estado. As propostas utópicas, baseadas no cooperativismo como eixo central converteram-se, a partir de então, objetivamente, em obstáculos ao avanço da luta pelo socialismo, uma vez que desviavam os esforços dos trabalhadores da esfera significativa da luta pelo poder de Estado, fator decisivo para a transformação social real. A importância desse aspecto da questão evidencia-se no fato de que a classe proprietária e o Estado, que na fase anterior se opuseram violentamente às propostas cooperativistas dos socialistas utópicos, mudaram de posição ao perceber o seu caráter limitado em relação à nova dimensão adquirida pela luta de classes na fase socialista, e passaram a adotar algumas propostas cooperativistas da fase anterior.8 Abriu-se então 7 MARX, Karl. As lutas de classes na França de 1848 a 1850. In: MARX, Karl e ENGELS, Friedrich. Obras Escolhidas, vol. 1. São Paulo: Alfa-Omega, s/d. 8 “Quando Robert Owen, logo depois do primeiro decênio deste século, não só defendeu teoricamente a necessidade de uma limitação da jornada de 57 ESTUDOS DE DIREITO COOPERATIVO E CIDADANIA uma fase de disputa, no interior da classe trabalhadora, entre o caminho das lutas meramente econômicas, concentradas no cooperativismo e autolimitadas pela ampla superioridade competitiva do grande capital, e as lutas na esfera superior da ideologia, da cultura e da política, visando à conquista do poder de Estado. O primeiro caminho, representado pelo anarquismo (Proudhon, Bakunin e Kropotkin), pelo oportunismo lassalliano caudatário do Estado, e finalmente pelo reformismo no campo marxista (Bernstein e Kautsky), foi contundentemente criticado por Marx e Engels, e por Rosa Luxemburgo e Lênin, que cunhou o termo ‘economicismo’ para caracterizar a corrente marxista russa do final do século 19, que postulava que os trabalhadores deveriam limitar-se às lutas econômicas, deixando as lutas políticas aos profissionais.9 A inauguração da fase moderna de luta pelo socialismo, a partir de 1848, deu origem a mais de um século de conquistas políticas dos trabalhadores, em nível mundial, a partir do primeiro episódio significativo, que foi a Comuna de Paris, em 1871, primeira experiência histórica de governo dos trabalhadores. Seguiu-se a expressiva expansão eleitoral dos partidos social-democratas europeus, com destaque para o alemão, no fim do século 19 até a Primeira Guerra Mundial, trabalho, mas também introduziu realmente a jornada de 10 horas em sua fábrica em New-Lanarck, isso foi ridicularizado como utopia comunista, assim como sua ‘união de trabalho produtivo com a educação das crianças’, como também as empresas cooperativas dos trabalhadores, fundadas por ele. Hoje em dia [década de 1860 – CMG], a primeira utopia é lei fabril, a segunda figura como frase oficial em todas as Factory Acts [Leis Fabris – CMG] e a terceira [as cooperativas de trabalhadores – CMG] já serve até como camuflagem para farsas reacionárias” (MARX, Karl. O Capital. v. I, t. 1. São Paulo: Abril Cultural, 1983, p. 236, nota de rodapé 191, confrontado com Karl Marx. Das Kapital, Band I. Frankfurt/M: Ullstein Materialien, 1981, p. 263-4, itálicos acrescentados). 9 LÊNIN, Vladimir Ilitch. Que fazer? In: LÊNIN, Vladimir Ilitch. Obras Escolhidas, vol. 1. São Paulo: Editora Alfa-Omega, 1980. 58 A ‘ECONOMIA SOLIDÁRIA’: UMA CRÍTICA MARXISTA incluindo-se nesse período a revolução russa de 1905. O fim da Primeira Guerra Mundial, com as revoluções russa, alemã e húngara e a vitória da revolução russa, marcou o início da terceira fase histórica do socialismo moderno, a fase da sua realização prática, concebendo-se o socialismo, nuclearmente, como conquista do poder de Estado pelo proletariado, no plano político, e no plano econômico como abolição da propriedade privada dos meios de produção e instituição da propriedade social, e como substituição do mercado pelo planejamento integrado da produção e da distribuição. Além disso, o socialismo ultrapassou as fronteiras nacionais e converteu-se em um movimento mundial que incendiou as esperanças dos explorados em todo o mundo e revelou as possibilidades de libertação real do explorados contidas no projeto do socialismo moderno resultante da fusão das lutas téoricas e práticas dos trabalhadores a partir da segunda metade do século 19. Em contraste com isso o cooperativismo, núcleo estratégico do projeto de ‘economia solidária’, segundo Singer, a despeito da sua relevância como sintoma do nascimento do embrião da nova sociedade, em nenhum momento foi capaz de catalisar um processo significativo de mudança social dirigido pela classe trabalhadora. Ao contrário de representar a continuidade de um processo crescente de lutas dos trabalhadores (‘é uma criação em processo contínuo de trabalhadores em luta contra o capitalismo’), a tentativa de restabelecer o cooperativismo como centro da luta dos trabalhadores pelo socialismo, nos dias de hoje, constitui um retrocesso às limitadas ações anticapitalistas dos trabalhadores na sua infância como classe social.10 Acima de tudo induz a classe trabalhadora a lutar por 10 Singer reconhece este caráter da sua proposta, mas obviamente a encara como vantagem: “A economia solidária [deve-se supor que o autor se refere ao cooperativismo – CMG] foi concebida pelos ‘utópicos’ como uma 59 ESTUDOS DE DIREITO COOPERATIVO E CIDADANIA soluções fantasiosas, conduzindo-a a uma forma de luta que uma longa e trágica história revelou ineficaz.11 O surto de propostas utópicas nos moldes da ‘economia solidária’, assim como a proliferação de seitas salvacionistas, reflete o momento de crise e desesperança pelo qual passa a classe trabalhadora mundial atualmente, e nesse sentido repete o ocorrido em todos os períodos de crise prolongada do capitalismo, caracterizados por grande desemprego e desespero dos trabalhadores, cuja capacidade de resistência nestes momentos é significativamente diminuída, proporcionando terreno fértil para a difusão de soluções milagrosas e oportunistas. O momento atual é ainda mais dramático devido à inferioridade momentânea do socialismo revolucionário, decorrente do fim da primeira fase histórica das lutas do proletariado pelo socialismo, iniciada em 1848 e concluída dramaticamente com a derrota, por fatores internos e externos, do socialismo soviético. nova sociedade que unisse a forma industrial de produção com a organização comunitária da vida social. (...) Trata-se duma concepção de socialismo que dominou a infância e a adolescência do movimento operário europeu e que nunca desapareceu inteiramente, mas foi ofuscada pela perspectiva da ‘tomada do poder’ seja pelo voto, após a conquista do sufrágio universal, seja pela força, após a longa série de revoluções armadas vitoriosas, inaugurada pelo Outubro soviético” (SINGER, Paul, 2002, p. 115-6). A vitória das revoluções socialistas parece não comover o autor. 11 É a seguinte a avaliação de Lenin sobre o papel das cooperativas na luta pelo socialismo: “Por que eram fantasiosos os planos dos antigos cooperativistas, desde Robert Owen? Porque eles sonhavam em converter pacificamente a sociedade contemporânea em socialismo sem levar em consideração problemas tão fundamentais como a luta de classes, a conquista do poder político pela classe trabalhadora, a abolição das leis da classe exploradora. É por este motivo que temos razão ao encarar como inteiramente fantasioso este socialismo ‘cooperativista’, e como romântico e mesmo banal o sonho de transformar inimigos de classe em colaboradores de classe e a guerra de classes em paz de classes... por intermédio da mera organização da população em sociedades cooperativas” (LÊNIN, Vladimir Ilitch, 1923. On cooperation. Lenin Collected Works, Volume 33, s/d., p. 467-75. http://www.marxists.org/archive/ lenin/works/1923/jan/06.htm, extraído em 20/4/05, tradução livre). 60 A ‘ECONOMIA SOLIDÁRIA’: UMA CRÍTICA MARXISTA A difusão da ‘economia solidária’ pode ser interpretada como um sintoma do recesso momentâneo da consciência de classe do proletariado, cujo espaço é ocupado pela propagação de ideologias pequeno-burguesas, apoiadas nos mecanismos de difusão do sistema dominante. Não se pode descartar a hipótese de que a adoção de iniciativas de ‘economia solidária’ como política oficial, em diversos países e inclusive por organismos internacionais, corresponda ao interesse de neutralizar o ímpeto revolucionário revelado pelo proletariado mundial durante mais de um século a partir de 1848. A adoção da ‘economia solidária’, em lugar da disputa pelo poder de Estado, como estratégia de transição para o socialismo, consistiria no abandono do terreno em que as condições de luta são relativamente mais favoráveis aos trabalhadores, por um terreno no qual são amplamente desfavoráveis. Os trabalhadores deixariam de concentrar a sua ação na ampla arena da política, em que, como classe social, avultam numericamente em relação à diminuta expressão da classe capitalista,12 restrita a menos de 5% da população em todos os países capitalistas significativos,13 para atuar em estreita faixa na arena da luta econômica, em que os trabalhadores seriam em primeiro lugar pulverizados em pequenos grupos, nas cooperativas, tanto regionalmente quanto em termos de segmentos de mercados, e em segundo lugar seriam lançados 12 “A única força social dos trabalhadores é o seu número. Mas a força do número é quebrada pela desunião. A desunião dos trabalhadores é gerada e perpetuada pela sua inevitável concorrência entre eles mesmos” (MARX, Karl. 1866. Instruktionen für die Delegierten des Provisorischen Zentralrats zu den einzelnen Fragen [Instruções aos delegados do Conselho Geral Provisório da Associação Internacional dos Trabalhadores]. In: MARX, Karl e ENGELS, Friedrich. Werke, Band 16. Dietz Verlag: Berlin, 1975, p.190-199. (http://www.mlwerke.de/me/ me16/me16_190.htm, extraído em 21/5/05, tradução livre). 13 LABINI, Paolo Sylos. Ensaio sobre as Classes Sociais. Rio de Janeiro: Zahar, 1983. 61 ESTUDOS DE DIREITO COOPERATIVO E CIDADANIA a um terreno – o da concorrência econômica –, em que se encontram em esmagadora inferioridade em relação à classe capitalista, pois neste terreno o que conta não é a expressão demográfica ou populacional, mas a escala e a qualidade do capital e dos meios de produção, ao lado dos vínculos tecnológicos e financeiros, monopolizados pela classe capitalista. Na medida que o socialismo é um projeto do proletariado como classe e em oposição ao capitalismo como projeto da classe capitalista, o socialismo só pode ser concebido como um sistema não-capitalista. Com efeito, na formulação marxista o socialismo baseia-se na propriedade social, ou coletiva, ou comum dos meios de produção, como o oposto da propriedade privada, e no planejamento integrado da economia como o oposto do mercado. Na medida que a concepção de ‘economia solidária’, formulada por Singer, se opõe explicitamente a estes dois pilares do socialismo,14 deve-se forçosamente concluir que a ‘economia solidária’ não é um projeto socialista e não reflete, portanto, os interesses do proletariado como classe. A COOPERATIVA DE PRODUÇÃO E O MARXISMO Como já exposto, Singer afirma que a “cooperativa de produção” é a “unidade típica da economia solidária”15 e que a luta pelo cooperativismo constituiu a linha de continuidade histórica das “lutas anticapitalistas” dos trabalhadores desde então. À parte o infundado desta última afirmação, como se procurou demonstrar na primeira seção deste artigo, Singer não forneceu qualquer definição da “cooperativa de produção”, apesar de constituir o centro da sua concepção de ‘economia 14 SINGER, 2003, p. 18; 2002, p. 111. 15 SINGER, 2003, p. 13; 2002, p. 9; 90. 62 A ‘ECONOMIA SOLIDÁRIA’: UMA CRÍTICA MARXISTA solidária’, nem do conceito mais amplo de “cooperativismo” e do seu desenvolvimento histórico. Levando em conta o que se pode considerar o conjunto das vagas idéias que compõem a sua concepção de ‘economia solidária’, é-se induzido a concluir que esta omissão conceitual não é casual, mas impõe-se como condição para conferir um mínimo de plausibilidade àquela concepção. A fim de colocar isto em evidência, é preciso revisitar, embora sumariamente, o processo histórico de desenvolvimento do cooperativismo, por um lado, e a sua subdivisão em segmentos diferenciados, por outro. O cooperativismo surgiu desde cedo no capitalismo mas, como é habitual, desenvolveu-se, ao longo do tempo, das formas simples iniciais à forma de um setor complexo e heterogêneo atualmente, e isso ocorreu sob o impacto da luta de classes.16 O cooperativismo formou-se a partir de duas diferentes origens: por um lado, a partir da formação de associações de pequenos capitalistas, que evoluíram para a forma de cooperativas empresariais. Estas nunca foram organizadas na esfera da produção, mas apenas para a realização de operações complementares à produção, principalmente na comercialização e no processamento final de algumas matériasprimas, principalmente agrícolas. A motivação da formação dessas cooperativas é puramente comercial, com o objetivo de reduzir custos individuais nas operações complementares realizadas em grande escala. A segunda origem do cooperativismo foi a reação de trabalhadores assalariados, principalmente operários industriais, à piora contínua das suas condições de vida, em contextos de conflito político explícito com a classe capitalista, o que conferiu 16 O cooperativismo tem também um papel importante nos países que, após a Revolução Socialista Russa, iniciaram a construção do socialismo. Este aspecto do tema não será, porém, abordado neste artigo. 63 ESTUDOS DE DIREITO COOPERATIVO E CIDADANIA a essas cooperativas nítido caráter militante. Também neste caso há duas variantes que diferem qualitativamente. Por um lado, as cooperativas de consumo, nas quais a cooperação não se dá na produção, e os associados, na sua maioria, beneficiam-se da cooperativa apenas como consumidores. Quando bem-sucedidas, estas cooperativas expandiram-se, em diversos casos, a ponto de adquirir empresas capitalistas convencionais fornecedoras dos principais meios de consumo, sem no entanto convertê-las em cooperativas. A segunda variante de cooperativas formadas por trabalhadores assalariados são as fábricas-cooperativas, nas quais os cooperados são os próprios trabalhadores da empresa. As fábricas-cooperativas surgiram a partir do início do século 19, geralmente resultantes da tomada, pelos trabalhadores, do controle de fábricas falidas em períodos de crise industrial. As fábricas-cooperativas, como cooperativas de produção, distinguem-se radicalmente, no que diz respeito ao seu significado histórico, de outras cooperativas, também de produção, mas que reúnem pequenos produtores autônomos em decadência, de que são exemplos as cooperativas de artesãos. A diferença fundamental é que as primeiras ilustram um processo de tomada, pelos trabalhadores, de unidades de produção tecnicamente avançadas, que constituem o resultado do desenvolvimento capitalista e o ponto de partida do socialismo, ao passo que as últimas nada mais são do que esquemas paliativos destinados a prolongar a agonia dos seus infelizes integrantes. É impossível dissertar sobre o papel histórico do cooperativismo de produção sem levar em consideração esta distinção essencial. As fábricas-cooperativas foram o tipo de cooperativa que menos se desenvolveu, pela razão óbvia de que nela os próprios trabalhadores assumem o controle pleno da empresa e da produção, no estágio mais avançado da produção 64 A ‘ECONOMIA SOLIDÁRIA’: UMA CRÍTICA MARXISTA capitalista, o que torna evidente e público que os capitalistas não são indispensáveis para a realização da produção, e explica a hostilidade que sempre mereceu na sociedade burguesa. Foi este tipo de cooperativa que mereceu a atenção dos autores clássicos do marxismo. Isto permite compreender o motivo pelo qual a cooperativa-símbolo do chamado ‘movimento cooperativista’ moderno, exaltado por Singer, não seja a fábrica-cooperativa mas a cooperativa de consumo ou de comercialização. Esta introdução é necessária a fim de localizar com precisão a interpretação dos autores clássicos do marxismo sobre a natureza do cooperativismo. A omissão das distinções expostas é uma deficiência grave da abordagem de Singer, mas é o que lhe permite falar em cooperativismo de modo genérico e renunciar a qualquer tratamento teórico do fenômeno cooperativista, colocando em pé de igualdade cooperativas de diferentes tipos e juntando a elas os pequenos produtores autônomos e pequenos capitalistas falidos, ao lado de iniciativas meramente assistenciais destinados a trabalhadores desempregados.17 Com isso perde-se completamente o sentido histórico do fenômeno. O fato de que considera a cooperativa de produção a forma típica da ‘economia solidária’ não corrige esta deficiência, uma vez que não a define e lhe falta todo fundamento teórico. Marx e Engels interessaram-se pelo fenômeno cooperativista na medida que representava a emergência de elementos de uma nova estrutura social em gestação, apoiando-se coerentemente na sua interpretação teórica do capitalismo como modo de produção em processo histórico de desenvolvimento na direção da sua superação. Por essa razão 17 SINGER, Paul. Globalização e desemprego: diagnóstico e alternativas. São Paulo: Contexto, 1998, p. 122-5; 131-9. 65 ESTUDOS DE DIREITO COOPERATIVO E CIDADANIA o seu interesse concentrou-se nas fábricas-cooperativas, e apenas secundariamente nas cooperativas de consumo.18 O que Marx considerou a característica mais relevante das fábricascooperativas foi o fato de que elas demonstraram, pela primeira vez, que os próprios trabalhadores podiam assumir o controle da produção, e isto não com base nas formas de produção em pequena escala e tecnicamente ultrapassadas, mas nos padrões mais avançados de escala e técnica, como se pode observar na passagem seguinte: as “fábricas-cooperativas (...) demonstraram que a produção em grande escala e em consonância com o avanço da ciência moderna [itálicos acrescentados – CMG] pode ser realizada sem a existência de uma classe de patrões (masters) que utiliza o trabalho de uma classe de ‘mãos’ (hands) [mãos, operários – NT]; [demonstraram também – CMG] que, para produzir frutos, os meios do trabalho não precisam ser monopolizados como meio de dominação e de exploração contra o próprio operário; e que (...) o trabalho assalariado é apenas uma forma social transitória e inferior, destinada a desaparecer diante do trabalho associado (...).19 18 Marx afirma que “Falamos do movimento cooperativista, especificamente das fábricas-cooperativas” (MARC, Karl, 1864a. Inauguraladresse der Internationalen Arbeiter-Assoziation [Manifesto de lançamento da Associação Internacional dos Trabalhadores]. In: MARX, Karl e ENGELS Friedrich. Werke, Band 16. Dietz Verlag: Berlin, 1975, p. 5-13. (http://www.mlwerke.de/me/ me16/me16_005.htm, extraído em 5/2/05, tradução livre), acrescentando posteriormente: “recomendamos aos trabalhadores dedicarem-se de preferência a associações produtivas do que a associações de consumo. Estas últimas afetam apenas a superfície do sistema econômico atual, as primeiras o atacam nos seus fundamentos” (MARX, 1866). 19 MARX, 1864a, (confrontado com Karl Marx (1864b). Manifesto de lançamento da Associação Internacional dos Trabalhadores. In: MARX e ENGELS, s/d, p. 319). Em escrito posterior Marx pronunciou-se de modo idêntico: “Reconhecemos o movimento cooperativista como uma das forças motrizes para a transformação da presente sociedade, que repousa sobre contradições de classe. O seu grande mérito reside em mostrar, na prática, que o sistema 66 A ‘ECONOMIA SOLIDÁRIA’: UMA CRÍTICA MARXISTA Mas essa avaliação positiva não levou Marx a ignorar o quadro global em que as fábricas-cooperativas estão imersas, caracterizado pela subjugação dos trabalhadores aos capitalistas, como classes sociais, e as contradições que disto resultam e os seus efeitos tanto interna quanto externamente. Ao contrário de Singer, não as erige em representantes imediatos de um novo modo de produção, uma vez que não concebe este como um corpo estranho que se expande gradualmente ao lado do modo de produção dominante, como parece ocorrer na confusa exposição de Singer. O novo modo de produção se manifesta na própria estrutura do modo de produção vigente, na forma de mudanças qualitativas em aspectos essenciais deste, transfigurando-o crescentemente, até o momento da ruptura. Não há dois corpos sociais lado a lado, mas um mesmo corpo social em processo de transfiguração, que não é mais inteiramente o antigo mas ainda não é o novo. Como todo modo de produção novo nasce no interior do antigo, a fase de transição entre o capitalismo e o socialismo deve necessariamente caracterizar-se pelo surgimento de formas contraditórias, das quais as fábricas-cooperativas são exemplos.20 A concepção de Marx sobre o cooperativismo vigente de subjugação do trabalho ao capital, despótico e causador de miséria, pode ser substituído pelo sistema republicano e enriquecedor da associação de produtores livres e iguais” (MARX, 1866, itálicos no original). Deve-se notar que por ‘movimento cooperativista’ Marx entende o movimento das fábricascooperativas, conforme citação de nota de rodapé anterior. 20 “As próprias fábricas-cooperativas dos trabalhadores são, no interior da antiga forma, a primeira ruptura da antiga forma, embora naturalmente por toda parte, em sua organização real reproduzam e tenham que reproduzir todos os defeitos do sistema existente” (MARX, Karl. Das Kapital, Band III. Frankfurt/ M: Ullstein Materialien, 1980, p. 419, confrontado com Karl Marx. O Capital, v. III, t. 1. São Paulo: Abril Cultural, 1984 p. 334). Isto significa que as cooperativas, embora representem um rompimento com a ‘antiga forma’ dominante, não constituem ainda uma ‘nova forma’, mas apenas uma forma híbrida ou contraditória, aspecto inteiramente ignorado na análise de Singer. 67 ESTUDOS DE DIREITO COOPERATIVO E CIDADANIA como forma contraditória, no entanto, aplica-se plenamente apenas às fábricas-cooperativas, pois é nelas que os trabalhadores assumem o controle das forças produtivas desenvolvidas pelo capital como pressupostos de um novo modo de produção.21 Assim, para Marx, apesar do caráter coletivo da propriedade dos meios de produção, nas fábricas-cooperativas, implicar que “(...) a antítese entre capital e trabalho dentro das mesmas está abolida”, isto ocorre sob uma forma capitalista, portanto contraditória, isto é, “inicialmente apenas na forma em que os trabalhadores, como associação, sejam seus próprios capitalistas, isto é, apliquem os meios de produção para valorizar seu próprio trabalho”.22 Por outro lado, Marx também não ignorou as reações externas ao surgimento das fábricas-cooperativas: “(...) a experiência do período decorrido entre 1848 e 1864 provou acima de qualquer dúvida que, por melhor que seja em princípio, e por mais útil que seja na prática, o trabalho cooperativo, se mantido, dentro do estreito círculo dos esforços casuais de operários isolados, jamais conseguirá deter o desenvolvimento em progressão geométrica do monopólio, libertar as massas, ou sequer aliviar de maneira perceptível o peso de sua miséria. É talvez por essa mesma razão que 21 Corallo assinala que “a cooperativa aparece, no texto de Marx, como uma forma essencialmente contraditória”, prisioneira da lógica do capital, por um lado, mas abolindo internamente a relação de exploração da força de trabalho, por outro (CORALLO, Jean-François. Coopérative. In: LABICA, Georges et BENSUSSAN, Gérard. Dictionnaire critique du marxisme. Paris: Quadrigne / PUF, 1999, p. 244-5). O autor amplia o horizonte da análise ao notar que o caráter contraditório da cooperativa mantém-se no socialismo, mas em sentido inverso: “a cooperativa não seria mais elemento de socialismo em um ambiente capitalista, mas elemento de capitalismo em um ambiente socialista”. Enfoque semelhante encontra-se na análise de Lênin (LÊNIN, 1923). 22 MARX, 1984, p. 334. 68 A ‘ECONOMIA SOLIDÁRIA’: UMA CRÍTICA MARXISTA aristocratas bem intencionados, porta-vozes filantrópicos da burguesia e até economistas penetrantes passaram de repente a elogiar ad nauseam o mesmo sistema cooperativista de trabalho que tinham tentado em vão cortar no nascedouro, cognominando-o de utopia de sonhadores, ou denunciando-o como sacrilégio e socialistas. (...) Conquistar o poder político tornou-se, portanto, a tarefa principal da classe operária”.23 Por outro lado, as fábricas-cooperativas não podem ser analisadas isoladamente, mas como um elemento de uma totalidade, de modo que os mudanças que se manifestam nelas refletem mudanças no modo de produção e não apenas nelas. Nesse sentido, Marx coloca as cooperativas em pé de igualdade com as sociedades anônimas como formas contraditórias, sintomas de uma nova realidade emergindo no interior do capitalismo.24 O que as identifica é que em ambas a gestão da produção separa-se da propriedade privada dos meios de produção: as fábricas-cooperativas e as sociedades anônimas são administradas por gerentes indicados por proprietários coletivos e não individuais, mas ambas permanecem prisioneiras da lógica do capital, como capitalistas coletivos que são. Isto significa que a expropriação da classe capitalista, traço essencial do socialismo, inicia-se de modo espontâneo no interior do capitalismo, ao invés de representar uma aberração que ameaça a continuidade normal da produção, convertendo-se ao contrário em condição desta continuidade. Esta passagem ilustra à perfeição a concepção da mudança social, por Marx, como um fenômeno que emerge 23 MARX, 1864b, p. 319-20. Singer opina em sentido contrário (SINGER, 2002, p. 93; 112). 24 “As empresas capitalistas por ações tanto quanto as fábricascooperativas devem ser consideradas formas de transição do modo de produção capitalista ao modo associado, só que, num caso, a antítese é abolida negativamente, e no outro, positivamente” (MARX, 1984, p. 335). 69 ESTUDOS DE DIREITO COOPERATIVO E CIDADANIA espontaneamente, e das leis jurídicas como expressões dessas mudanças e não como suas causas.25 No presente caso, Marx indica que a conversão da propriedade privada em propriedade coletiva é gerada pelo desenvolvimento do próprio capitalismo e não pela vontade arbitrária da classe trabalhadora. Com efeito, segundo Marx, o socialismo caracteriza-se pela abolição da propriedade privada não devido à sua preferência subjetiva pela propriedade social, mas porque o próprio desenvolvimento do capitalismo promove, gradualmente, a expropriação de toda propriedade privada, que finalmente subsiste apenas como suporte jurídico ultrapassado de uma classe privilegiada e destituída de função social objetiva. Numa primeira fase a expansão do capital implica a expropriação dos produtores diretos e a expansão absoluta do trabalho assalariado na sociedade; na fase seguinte a difusão da sociedade anônima implica a expropriação dos capitalistas individuais e a instituição da propriedade coletiva dos meios de produção, embora restrita à classe capitalista. Isto significa que aos poucos a propriedade privada individual dos meios de produção desaparece, substituída pela propriedade coletiva da classe capitalista. Nesta altura, a propriedade privada individual sobrevive apenas, ironicamente, entre pequenos produtores decadentes, como ruínas de uma era socialmente ultrapassada. E é sobre estas ruínas que Singer pretende que esteja sendo erigido um novo e mais avançado modo de produção. No entanto, na medida que a forma jurídica capitalista da propriedade subordina de modo determinante todas as formas divergentes dela, as formas coletivas só podem desenvolver 25 As fábricas-cooperativas “mostram como, em certo nível de desenvolvimento das forças produtivas materiais e das suas correspondentes formas sociais de produção, de um modo de produção desenvolve-se e irrompe de maneira natural um novo modo de produção” (Idem, p. 335). 70 A ‘ECONOMIA SOLIDÁRIA’: UMA CRÍTICA MARXISTA as suas potencialidades depois que a forma privada individual tenha sido abolida, o que só pode ocorrer, no entanto, no contexto de uma mudança social global do modo de produção. O cerne do modo de produção reside no caráter de classe do poder de Estado, cujo componente essencial é a forma jurídica da propriedade. A defesa e garantia desta é a função central do Estado nas sociedades divididas em classes. Como se expôs acima, a forma jurídica da propriedade apenas expressa, na esfera jurídica, as relações de produção objetivamente geradas pela configuração geral das forças produtivas. Como estas, porém, se desenvolvem gradualmente, geram ao desenvolverse novas formas de apropriação, que aos poucos entram em conflito com a forma jurídica vigente da apropriação, de modo que a vigência desta passa a funcionar como obstáculo ao desenvolvimento das novas relações de produção e conseqüentemente das forças produtivas que lhe dão origem. O domínio da propriedade privada como forma jurídica geral da propriedade no capitalismo exerce precisamente este efeito de bloqueio sobre as novas formas que, no interior do capitalismo, são sintomas das mudanças mais profundas em curso. Conseqüentemente, para que estas se materializem, é necessário que a forma jurídica vigente da propriedade privada seja abolida, mas como ela é assegurada pelos instrumentos de força social concentrados no Estado, é a natureza do poder de Estado que é decisivo e necessita ser alterado como pre-condição da instituição do novo modo de produção. Marx manifesta isso claramente, sem por isso menosprezar o papel representado pelas fábricas-cooperativas como sintomas da emergência de novas realidades na base da estrutura social: “Mas o sistema cooperativista, limitado às formas elementares [no original zwerghaften: nanicas – CMG] que os escravos assalariados podem desenvolver através dos seus esforços privados, jamais transformará a sociedade capitalista. Para 71 ESTUDOS DE DIREITO COOPERATIVO E CIDADANIA converter a produção social em um sistema abrangente e harmonioso de trabalho livre e cooperativo, são necessárias mudanças sociais gerais, mudanças nas condições gerais da sociedade, que só poderão ser realizadas através da transferência do poder organizado da sociedade, isto é, do poder de Estado, das mãos dos capitalistas e proprietários de terras aos próprios produtores”.26 CONCLUSÕES As principais conclusões que este artigo permite enunciar são as seguintes: 1) A ‘economia solidária’ não é, ao contrário da pretensão de Singer, uma “criação em processo contínuo de trabalhadores em luta contra o capitalismo”. Em seus textos sobre o tema, o autor foi incapaz de identificar o processo real de desenvolvimento das lutas dos trabalhadores contra o capitalismo, a partir das incipientes formas iniciais até a sua forma mais desenvolvida do socialismo moderno. O que os trabalhadores em luta contra o capitalismo criaram, em quase duzentos anos de uma história riquíssima, foi em primeiro lugar o conceito rigoroso do socialismo como objetivo, cuja essência é a abolição da propriedade privada dos meios de produção e a instituição da propriedade coletiva, e, em segundo lugar, a necessidade da conquista do poder de Estado como precondição essencial. E não somente criaram os conceitos, como os levaram à prática, a partir da vitória da Revolução de 1917, em diversos países do mundo, demonstrando a viabilidade histórica da conquista do poder de Estado pelos trabalhadores e a instituição da propriedade social dos meios de produção. 26 MARX, 1866. 72 A ‘ECONOMIA SOLIDÁRIA’: UMA CRÍTICA MARXISTA 2) A cooperativa de produção, tida por Singer como protótipo da ‘economia solidária’, embora tenha surgido, ao lado da sociedade anônima, como sintoma de uma nova realidade emergente no interior do capitalismo, é incapaz, como a própria sociedade anônima, de constituir uma via de superação do capitalismo. Os clássicos do marxismo elaboraram uma análise detalhada e precisa do significado, das possibilidades e dos limites destas cooperativas no capitalismo, com a qual a abordagem de Singer conflita em todos os aspectos. 73 74 A LEGITIMIDADE DA ECONOMIA SOLIDÁRIA: OS EIXOS PRINCIPIOLÓGICOS DOS GRUPOS POPULARES PARA A LEGALIDADE NO ESTADO DEMOCRATICO DE DIREITO BRASILEIRO – PRINCÍPIOS DA ECONOMIA SOLIDÁRIA Eloíza Mara da Silva* Fernanda de Oliveira Santos** RESUMO: Este artigo pretende estudar as implicações das bases principiológicas da Economia Solidária (Ecosol) ante a legalidade, a qual estão submetidos os empreendimentos autogestionários e solidários debtro do Estado Democrático de Direito Brasileiro. Com isso, visamos sobrelevar as imbricações entre legalidade e legitimidade, ou seja, o intercruzamento entre Direito e Economia Solidária. Para tanto, ressaltaremos a relevância dos padrões normativos: os princípios jurídicos, assim como dos eixos centrais do ideário da Ecosol: os princípios ideológicos. Destacaremos, também, a legitimidade dos movimentos populares envolvidos na Ecosol para que os mesmos despontem como agentes legítimos à participação dos momentos do Direito, tanto legislativo quanto jurisdicional. RESUMEN: Este artículo pretende estudiar las implicaciones de los fundamentos de la Economía Solidaria (Ecosol) ante la legalidad, la cual están sometidos los emprendimientos autogestionarios y solidarios dentro del Estado Democrático de Derecho brasileño. Con esto, visamos destacar las imbricaciones entre legalidad y legitimidad, o sea, el entrecruzamiento de Derecho y Economía Solidaria. Para tanto, resaltaremos la relevancia de los padrones normativos: los principios jurídicos, así como de los ejes centrales del ideario de la Ecosol: los principios ideológicos. Destacaremos también la legitimidad de los movimientos populares envueltos en la Ecosol para que los mismos despunten como agentes legítimos a la participación de los movimientos de Derecho, tanto legislativo cuanto jurisdiccional. PALAVRAS-CHAVE: Legitimidade; Legalidade e princípios da Economia Solidária. PALABRAS-CLAVE: Legitimidad; Legalidad y principios de Economía Solidaria. * Bolsista formadora da Intecoop/UFJF. e-mail: [email protected] ** Coordenação de Assuntos Jurídicos Intecoop/UFJF. e-mail: [email protected] 75 ESTUDOS DE DIREITO COOPERATIVO E CIDADANIA 1 ABORDAGEM PRELIMINAR A temática da Economia Solidária (Ecosol) encontra terreno inóspito quando tratada pela Dogmática Jurídica, uma vez que, se a razão da constituição desse movimento é, do ponto de vista da inclusão social, encarada como fonte alternativa de geração de trabalho e renda; por isso, urge que o ordenamento jurídico e, principalmente, os órgãos legislativos dêem à Ecosol disciplina adequada.1 Acreditamos que as bases ideológicas e principiológicas da caminhada do movimento da Economia Solidária, como força legitimadora em prol da sociedade, têm como condução o vértice da legalidade responsável, dentro do ordenamento jurídico posto, pela justa condução desse instrumento no Estado Democrático de Direito Brasileiro. Colocamos, então, à tona a viabilidade e a efetividade dos princípios da Ecosol ante o Direito, seja na esfera legislativa, seja na jurisdicional. Nesse diapasão, focalizaremos no presente artigo o binômio: Direito e Economia Solidária sob a análise dos princípios norteadores desta e da legalidade e jurisdicionalização daquele, sobretudo, apontando o filtro da legalidade pelo qual os movimentos sociais passam frente aos padrões normativos vigentes. Nosso horizonte teórico escolhido para o presente estudo é o pensador alemão Jürgen Habermas, em especial seu estudo sobre direito e moral, texto em oposição a Max Weber, por meio da seguinte pergunta: ¿Como es posible la legimitadad a través de la legalidad?.2 Segundo essa ótica, 1 Ressaltamos a máxima da igualdade enunciada por Alexy, qual seja, “tratar igualmente o que é igual e desigualmente o que é desigual” não da forma de uma exigência dirigida a uma forma lógica das normas, mas, como exigência relacionada com o seu conteúdo, ou seja, não no sentido de uma igualdade simplesmente formal, mas, de fato, uma igualdade material.” Cfr. In. Teoria de los derechos fundamentales. p.387 2 In: Facticidade y Validez: complementos y estudos previos. 76 A LEGITIMIDADE DA ECONOMIA SOLIDÁRIA: OS EIXOS PRINCIPIOLÓGICOS DOS GRUPOS POPULARES PARA A LEGALIDADE NO ESTADO DEMOCRATICO DE DIREITO BRASILEIRO – PRINCÍPIOS DA ECONOMIA SOLIDÁRIA será proposta e estudada a posição dos princípios da Ecosol em conexão os princípios jurídicos, desse modo, legitimando, portanto, as reivindicações por uma justiça social na atuação dos empreendimentos autogestionários. 2 O FILTRO DA LEGALIDADE: É EFICAZ A ORDEM NORMATIVA PARA OS EMPREENDIMENTOS SOLIDÁRIOS? O avanço do movimento da Economia Solidária torna-se uma realidade indiscutível dentro das relações sociais hodiernas, seja pela latente necessidade de novas relações de trabalho, pela possibilidade alternativa de geração de trabalho e renda, pela dinâmica cultural posta e principalmente pela necessidade de defesa dos grupos sociais e pelo interesse econômico que os informa. Nesse diapasão, impõem-se ao estudioso do Direito algumas reflexões no que concerne ao fenômeno associativo e às formas ou tipos socialmente desenhados perante o comando legal vigente que, possivelmente, regra essas formas associativas. A política de Economia Solidária, projeto de desenvolvimento integral que visa à sustentabilidade, à justiça econômica, social, cultural e ambiental e à democracia participativa,3 surge como alternativa de equacionar, no que tange ao trabalho, a precarização das relações de trabalho e combater o desemprego, que, nas palavras de Singer,4 este é “apenas a manifestação mais visível de uma transformação profunda da conjuntura do emprego.” Assim, sinalizamos que a Economia Solidária, em meados da década de 1990, surge em um contexto de crescente desemprego e precarização das relações de trabalho. Como fonte 3 In: http://www.mte.gov.br/Empregador/Economia Solidária 4 In: Em defesa dos direitos dos trabalhadores. Site idem. 77 ESTUDOS DE DIREITO COOPERATIVO E CIDADANIA alternativa de equacionar esse fenômeno, surge a possibilidade de geração de renda e trabalhado pelo cooperativismo, malgrado ser a Lei das Cooperativas5 datada de 1971, cenário totalmente diverso da década quando surge a movimento da Ecosol. Há, nesse sentido, um hiato e uma flagrante descontextualização, em face do caráter temporal, entre o texto normativo do cooperativismo e a luta travada pelo movimento de Ecosol. Indaga-se, a legalidade que regra a Política Nacional do Cooperativismo tem tratado adequadamente as chamadas cooperativas populares, legitimadas pelo movimento de Economia Solidária? Eis o entrave: esses grupos não se amoldam aos dispositivos legais vigentes, tal como a Lei Nacional do Cooperatismo. Tem-se, assim, o fenômeno do cooperativismo popular6 a forma associativa mais razoável para as instituições sociais, desenhadas para atender aos interesses da Economia Solidária. Ocorre que os princípios da Ecosol e, sobretudo, os interesses desses grupos populares não se limita aos ditames da Lei n.º 5.764/71,7 instituidora do Estatuto das Sociedades Cooperativas, ainda que alguns de seus dispositivos se assemelhem na prática aos delineadores dos empreendimentos de economia solidária, como, por exemplo, a autogestão. Ressaltamos, ainda, que mesmo com o advento do Código Civil, instituído pela Lei n.º 10.406 de 10 de janeiro de 2002, tão situação não foi equacionada, nem dirimida. 5 Lei n.º 5.764 de 16 de dezembro de 1971. Define a Política Nacional de Cooperativismo, institui o regime jurídico das sociedades cooperativas e dá outras providências. 6 Não podemos deixar de mencionar outras formas jurídicas presentes nos empreendimentos da Ecosol, como, por exemplo, as associações; embora o modelo de cooperativas represente a organização para o trabalho preponderante no movimento. 7 In: Facticidade y Validez: complementos y estudos prévios, p. 536. 78 A LEGITIMIDADE DA ECONOMIA SOLIDÁRIA: OS EIXOS PRINCIPIOLÓGICOS DOS GRUPOS POPULARES PARA A LEGALIDADE NO ESTADO DEMOCRATICO DE DIREITO BRASILEIRO – PRINCÍPIOS DA ECONOMIA SOLIDÁRIA Numa visão racionalista e formal, Max Weber assinala que o Direito pode ser visto com aquilo que o legislador político estabelece como direito conforme procedimento institucionalizado. Ocorre que o filtro da legalidade, através do qual os empreendimentos de economia solidária passam, deve ser eficaz de tal forma que a força legitimadora dos anseios desta fonte alternativa de relações de trabalho vá ao encontro da legalidade, a qual estão invariavelmente submetidos. De fato, surge o ponto para verificação e questionamento: Os preceitos normativos instituídos pelo legislador ordinário têm dado disciplina adequada a esses empreendimentos? Tal com enuncia Habermas,8 a função regulativa de uma sociedade torna-se cada vez mais complexa, vez que a necessidade de um aparato estatal ativo que concomitantemente regula e controla cresce a cada dia. Ocorre que para as chamadas cooperativas populares o Estatuto Nacional das Cooperativas – Lei n.º 5.764/71 representa um entrave na estruturação e no funcionamento destes grupos. Inclusive, podemos afirmar que para os empreendimentos de economia solidária torna-se urgente uma alternativa eficaz de arsenal legislativo atento às reais necessidades desse movimento. Devemos buscar uma igualdade de tratamento material e não meramente formal. Na perspectiva de Robert Alexy,9 a máxima da igualdade não significa nem que o legislador tenha que colocar todos na mesma posição jurídica, nem que se tenha em mente que todos possuem as mesmas propriedades naturais e se encontram na mesma posição, constituindo, assim, a vertente da igualdade de resultados. Nas palavras de Kelsen10 8 In: HABERMAS, p. 536. 9 In: Teoria de los derechos fundamentales p. 385. 10 Apud MELLO. Conteúdo Jurídico do Princípio da Igualdade. p.11. 79 ESTUDOS DE DIREITO COOPERATIVO E CIDADANIA o tema se reveste da mesma maneira quando em suas considerações diz: “que a igualdade dos sujeitos na ordenação jurídica, garantida pela Constituição, não significa que estes devam ser tratados de maneira idêntica nas normas e em particular nas leis expedidas com base na Constituição.” Numa reinterpretação dessas assertivas, à luz do filtro legal pelo qual submetem-se os empreendimentos solidários, pode-se afirmar que por meio das leis públicas, abstratas e gerais, deve-se assegurar, por exemplo, os direitos sociais instituídos na Magna Carta aos trabalhadores inseridos nesses empreendimentos. Esse filtro da legalidade para os grupos da Ecosol passa por um obstáculo criado pela incapacidade do formalismo jurídico perante a riqueza dos casos concretos, tal como as propostas da Economia Solidária, em especial do Cooperativismo Popular. Na verdade, quando invocada para dirimir essas novas demandas sociais do cooperativismo popular, a legislação em vigor mostra-se insuficiente, por não comportar as demandas e por sua ineficiência em acompanhar a diversidade de novas demandas sociais e, sobretudo, indicar soluções diferenciadas. Os entraves do filtro da legalidade não só ocorrem na Lei de Cooperativas, percebe-se, principalmente pela vivência dos trabalhos com grupos do cooperativismo popular, a mesma situação quando se discute a participação das cooperativas nos processos de licitação dos órgãos públicos, Lei n.º 8666/ 1993 e até mesmo na força inoperante das recentes leis de fomento à Economia Solidária, como no Estado de Minas Gerais. De fato, a dificuldade quando da concretização do Direito é patente. É um desafio selecionar, mediante as normas jurídicas vigentes, a melhor decisão diante de casos complexos. O que não se pode compreender no Estado Democrático de Direito são pronunciamentos jurisdicionais que não destaquem, sob o 80 A LEGITIMIDADE DA ECONOMIA SOLIDÁRIA: OS EIXOS PRINCIPIOLÓGICOS DOS GRUPOS POPULARES PARA A LEGALIDADE NO ESTADO DEMOCRATICO DE DIREITO BRASILEIRO – PRINCÍPIOS DA ECONOMIA SOLIDÁRIA prisma da relevância social e da justiça social, os enunciados das vertentes principiológicas da Ecosol: a Cooperação, a Autogestão, a Atuação econômica e Solidariedade. 3 COMO É POSSÍVEL A LEGITIMIDADE DOS PRINCÍPIOS DA ECOSOL MEDIANTE A LEGALIDADE? O movimento de Economia Solidária busca em suas bases ideológicas o discurso propulsor de suas lutas na sociedade brasileira. Discurso que notadamente se consubstancia nos princípios norteadores dessa caminhada em busca de vida digna para os trabalhadores subempregados e desempregados, que tanto desejam a geração de trabalho e renda via sua emancipação das relações laborais clássicas de subordinação da mão de obra trabalhadora. Hoje é dado lugar de destaque aos princípios jurídicos na concretização (interpretação/aplicação) do Direito, devido à exigência de padrões normativos que atendam à complexidade e à celeridade das relações sociais, que a cada dia ingressam com maior freqüência no aparelho Judiciário; fenômeno esse entendido como judicialização,11 que hoje tanto observamos nos conflitos políticos, nas demandas por justiça social, nas cobranças de prestações positivas pela Administração Pública, todas levadas ao Poder Judiciário para serem dirimidas. 11 Esse fenômeno pode ser definido como: “Todo um conjunto de práticas e de novos direitos, além de um continente de personagens e temas até recentemente pouco divisável pelos sistemas jurídicos (...) os novos objetos sobre os quais se debruça o Poder Judiciário, levando a que as sociedades contemporâneas se vejam, cada vez mais, enredadas na semântica da justiça. (...) É da agenda igualitária e da sua interpelação por grupos e indivíduos em suas demandas por direitos, por regulação de comportamentos e reconhecimento de identidades, mesmo que um plano exclusivamente simbólico, que tem derivado o processo de judicialização das relações sociais.” Cfr. In: A judicialização da política e das relações sociais no Brasil. pp. 149-150. 81 ESTUDOS DE DIREITO COOPERATIVO E CIDADANIA Esse lugar de destaque pode ser constatado nas palavras do pensador alemão Jürgen Habermas, quando ele diz12: “Hay que tener presente que los discursos jurídicos, cualquiera sea su modo de vinculación al derecho vigente, no pueden moverse en u universo cerrado de reglas jurídicas unívocamente fijadas. Esto es algo que se sigue de la propia estructuración del derecho moderno en reglas y principios” (grifo nosso) Essa estruturação da qual ele fala está presente na obra do jusfilósofo Ronald Dworkin. Crítico implacável e rigoroso das escolas positivistas e utilitaristas, Dworkin – baseando-se na filosofia de Rawls e nos princípios do liberalismo individualista – é um dos principais expoentes críticos do positivismo e do utilitarismo, em sua teoria geral do Direito, ele constrói sua argumentação antitética em embasamentos morais e filosóficos. Dworkin é o principal expoente da filosofia jurídica anglo-saxônica; ele, em sua Teoria do Direito traz uma substancial discussão sobre a posição dos princípios, rebatendo ferrenhamente as versões positivistas de John Austin e H. L. A. Hart, porque, ambas são insuficientes para decisão de casos difíceis, elas diante das complexidades desses sucumbem em razão da “textura aberta” do padrão regra que ambos adotam em suas teorias; desse modo o momento de aplicação/ interpretação do Direito se traduziria como um exercício de poder discricionário do juiz, sem o crivo da racionalidade jurídica indispensável ao Estado Democrático de Direito. Essa debilidade reside no encapsulamento do universo jurídico em um único padrão normativo: o de regras; devido a isso, Dworkin se lança à construção teórica de outros padrões possíveis: os de princípio e os de política, por exemplo. Para 12 In: Facticidad y Validez: complentos y estudios previos, p. 545. 82 A LEGITIMIDADE DA ECONOMIA SOLIDÁRIA: OS EIXOS PRINCIPIOLÓGICOS DOS GRUPOS POPULARES PARA A LEGALIDADE NO ESTADO DEMOCRATICO DE DIREITO BRASILEIRO – PRINCÍPIOS DA ECONOMIA SOLIDÁRIA ele a distinção entre princípios e regras é uma distinção lógica. Ambos são conjuntos de normas (standards) que apontam para decisões particulares sobre obrigações jurídicas numa particular circunstância, mas se diferenciam no caráter da direção que apontam. As regras são aplicáveis na forma do tudo-ounada, ou seja, são disjuntivas, aplicam-se ou não se aplicam ao caso. Por sua vez, os princípios, embora sejam também proposições como as regras, não indicam uma conseqüência legal que automaticamente se segue quando as condições dadas se realizam. Um princípio apresenta uma razão que aponta para uma direção, porém, não exige uma decisão específica naquele mesmo sentido (apontado); importante frisar que sua não aplicação ou aplicação abrandada não o invalida, isto é, não o exclui do ordenamento jurídico. Isso por que ele tem uma dimensão de peso (dimension of weight) ou importância; desse modo, se duas regras estão em conflito, uma não poderá ser válida; já os princípios, será aplicado aquele que tiver maior peso ou importância naquela circunstância. Diante disso, podemos imaginar que a relevância dos princípios jurídicos para Direito assemelha-se à dos princípios ideológicos da Ecosol. Entretanto, não podemos incorrer numa concepção luhmaniana de sistemas cerrados e autônomos, devemos superar o paradigma13 da teoria dos sistemas, cujo 13 Jürgen Habermas critica o sistema jurídico autopoiético luhmaniano e seu auto-encerramento, segundo ele: “ El derecho, que acaba reduciéndose a un sistema autopoiético, queda despojado, desde eses punto de vista sociológico distanciador y extrañante, de todas sus connotaciones normativas y, en última instancia, de las connotaciones referidas a la autoorganización de una comunidad jurídica. Bajo la descripción de sistema autopoiético, el derecho, narcisísticamente marginalizado, sólo puede reaccionar a sus propios problemas, que a lo sumo podrán venir ocasionados desde fuera. De ahí que no pueda ni percibir ni elaborar problemas que afectan al conjunto del sistema social.” Cfr. In: Facticidad y Validez, p.115. 83 ESTUDOS DE DIREITO COOPERATIVO E CIDADANIA grande expoente na sociologia do Direito foi Niklas Luhmann, e perseguir o intercruzamento entre o Universo Jurídico e o Movimento de Economia Solidária. Essa intersecção deve incluir uma agenda igualitária na qual a sociedade possa materializar suas reivindicações, sua urgência por justiça social. Contudo, não podemos sublimar, de uma hora para outra, nosso déficit de cidadania, acreditar que nossa Constituição efetivará por si só seu perfil de Carta Magna Cidadã. De acordo com Vianna14: “Na sociedade brasileira, um caso de capitalismo retardatário e de democracia política incipiente, a presença expansiva do direito e de suas instituições, mais do que indicativa de um ambiente social marcado pela desregulação e pela anomalia, é a expressão do avanço da agenda igualitária em um contexto que tradicionalmente, não conheceu as instituições da liberdade. Neste sentido, o direito não é “substitutivo” da Republica, dos partidos, do associativismo – ele apenas ocupa um vazio, pondo – se no lugar deles, e não necessariamente como solução permanente. Décadas de autoritarismo desorganizaram a vida social, desestimularam a participação, valorizando o individualismo selvagem, refratário à cidadania e à idéia de bem-comum.” A construção de uma plataforma política para Ecosol tem como pressuposto o ingresso dos movimentos populares na Esfera Pública Democrática Brasileira, de modo que a reivindicação dessa agenda igualitária contribua, seja o passo fundamental, para seu ingresso como pessoas deliberativas capazes de influenciar os momentos15 de produção do Direito: legislativo e jurisdicional. O movimento16 de Economia Solidária desponta 14 In: A judicialização da política e das relações sociais no Brasil, p. 150. 15 In: Eficácia e inalinabilidad, p. 971. 16 Acreditamos que o Movimento da Ecosol deve aperfeiçoar-se nos mecanismos Jurídicos e desse modo despontar como agente hábil à luta pelos 84 A LEGITIMIDADE DA ECONOMIA SOLIDÁRIA: OS EIXOS PRINCIPIOLÓGICOS DOS GRUPOS POPULARES PARA A LEGALIDADE NO ESTADO DEMOCRATICO DE DIREITO BRASILEIRO – PRINCÍPIOS DA ECONOMIA SOLIDÁRIA como pessoa deliberativa que tem exigido sua normatividade emergente, a positivação de seus direitos, sobretudo aqueles guarnecidos em seus princípios basilares. É central nessa agenda que se resolva o descompasso entre o direito oficialmente estatuído e o formalmente vigente, que se reconheça essa normatividade emergida das relações sociais que envolvem os trabalhadores dos empreendimentos autogestionários. Esses trabalhadores são atores sociais legítimos àqueles momentos porque conhecem os fatos da experiência direta e cotidiana da Ecosol; por outro lado, os funcionários do Estado apenas têm acesso a papéis e processos, na rotina da burocracia estatal, que ainda se alimenta da relação de tipo paternal ou assistencialista entre as classes dirigentes e o povo, subjulgando ao papel passivo, de cliente das prestações estatais. O pensador alemão Jürgen Habermas, em seu texto “¿Como es posible la legimitadad a través de la legalidad?”, questiona Max Weber, em especial sua concepção positivista do direito como dominação legal, a fim de demonstrar que a legitimidade do Direito extravasa os contornos e as qualidades formais do mesmo, porque ela está umbilicalmente atrelada à Moral, algo que não se coaduna com a concepção weberiana. Weber não contemplava a legitimidade da legalidade em um sentido prático moral, porque entendia que o núcleo moral do Direito formal burguês se apresentava sob a roupagem de orientações valorativas alijadas dessa dominação burocrática racional. Esse tipo de dominação, sob os moldes da teoria weberiana, estava fechada para as exigências materiais dos destinatários das normas, isto é, os postulados éticos de justiça seus direitos. Nesse sentido, faz-se importante o comentário de Unger: “a esquerda deveria reinterpretar em vez de abandonar a linguagem dos direitos”, Cfr. In: Política, p.20. 85 ESTUDOS DE DIREITO COOPERATIVO E CIDADANIA e dignidade humana estavam excluídos do formalismo do Direito. O paradigma17 do Estado Social se contrapõe a esse modelo liberal burguês das leis abstratas e gerais, na medida em que atribui ao Poder Legislativo a responsabilidade de intervir de modo transformador na sociedade mediante as redistribuições de matérias compensatórias. A proposta habermasiana é de superação da cisão entre Moral e Direito, a legitimidade da legalidade não se explica recorrendo à racionalidade autônoma do Sistema Jurídico, delineada por Max Weber, ao contrário ela advém do intercruzamento entre eles. Afinal, as características formais do Direito só oferecem razões legitimadoras, argumentos da ordem de um discurso prático, à luz de princípios de conteúdo moral. Nesse sentido podemos dizer que os princípios da Ecosol não apenas servem de discurso legitimador dos movimentos populares que os arregimenta, eles podem servir também de razões legitimadoras, como eixos morais dos marcos normativos referentes à Economia Solidária. 5 PONTUAÇÕES FINAIS O destaque da Economia Solidária no cenário nacional pode ser observado, por exemplo: nas Políticas Públicas para o Trabalhador Brasileiro agora institucionalizadas, com contornos estatais, na criação da SENAES – Secretaria Nacional de Economia Solidária; nas discussões e nos debates sobre os rumos dos empreendimentos autogestionários dentro dos fóruns brasileiro e estaduais de Ecosol têm articulado e organizado os grupos populares envolvidos nessa realidade; nas Universidades Públicas, por meio das ITCPs (Incubadoras 17 Cfr. In: Facticidad y Validez, pp.469-532. 86 A LEGITIMIDADE DA ECONOMIA SOLIDÁRIA: OS EIXOS PRINCIPIOLÓGICOS DOS GRUPOS POPULARES PARA A LEGALIDADE NO ESTADO DEMOCRATICO DE DIREITO BRASILEIRO – PRINCÍPIOS DA ECONOMIA SOLIDÁRIA Tecnológicas de Cooperativas Populares), que tem incubado esses grupos populares a fim de cumprir seu compromisso de levar à sociedade suas atividades de extensão comprometidas com o êxito da Ecosol, como marco alternativo e diferenciado à geração de trabalho e renda. Diante dessa visibilidade, o Direito em seus momentos tanto legislativo quanto jurisdicional, não pode se esquivar dessa nova realidade tão diferente das relações patronais clássicas, com que seus operadores estão acostumados a lidar. Do mesmo modo, os atores sociais comprometidos com a Ecosol devem assumir sua posição como pessoas deliberativas legítimas à esfera publica argumentativa donde nascerão os norteadores jurídicos e políticos compromissados com o seu cotidiano autogestionário e solidário. 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Cooperada da AMBIENS SOCIEDADE COOPERATIVA. Professora do Curso de Direito da UNIBRASIL. 89 ESTUDOS DE DIREITO COOPERATIVO E CIDADANIA 1 COOPERATIVISMOS A história das cooperativas tem início na história da ação de agentes conscientes da necessidade de transformação da organização e das relações produtivas. A formação inicial de organizações coletivistas de trabalho1 buscava construir condições necessárias à emancipação dos trabalhadores submetidos à exploração imposta pelo sistema de produção capitalista. Inseridas em um universo hostil à sua implementação, considerada a perspectiva de sua concepção emancipatória original, foi descolada de um projeto político específico e transformada em um instrumento de organização produtiva e em um modelo societário que poderia abarcar uma série de intenções. Desde o enfrentamento e a contraposição ao modelo vigente caracterizado pela exploração da classe trabalhadora, passando pela pacífica convivência reformista de uma suposta melhoria das condições suportadas pelos trabalhadores, as cooperativas, como instrumento, passaram a se constituir em mais uma forma de manutenção do capital monopolista, expropriador dos trabalhadores, com o gravame de esconder e legitimar sua existência e ação pela utilização da denominação “cooperativa”, em legislações, como é o caso de sua conformação no ordenamento jurídico brasileiro. Por fim, reforçando a sua inserção no universo do capital, chegou a se transformar também em mais uma forma de terceirização, em muitos casos chegando a ser utilizada como forma de lesar trabalhadores. Longe de afirmar-se como expressão máxima do socialismo ou do capitalismo, mas, difundida em vários países inclusive no Brasil, as cooperativas historicamente foram e 1 A expressão “organização coletivista de trabalho“ foi utilizada por José Ricardo de Faria que a conceituou como “associação produtiva autogerida pelos seus trabalhadores”. (FARIA, 2003, p.22) 90 CONFIGURAÇÕES CONTEMPORÂNEAS DO COOPERATIVISMO BRASILEIRO continuam sendo alvo de políticas governamentais específicas. O que significa dizer que, mesmo não se configurando como categoria central das relações materiais de produção, é parte integrante da contraditória rede de inter-relações econômicas e sociais estabelecidas na sociedade da mercadoria, ora fortalecendo e reproduzindo as condições existentes, ora contribuindo para a produção de uma nova forma de sociabilidade. O que se pretende demonstrar neste texto é o conjunto de aspectos que permitem estabelecer as diferenças entre as formas de cooperativas, a partir da identificação da finalidade e da natureza orgânica dessas organizações, considerado o contexto em que se inserem. 2 TIPOLOGIA DAS COOPERATIVAS A definição sobre a finalidade das cooperativas está relacionada ao objeto principal que é desenvolvido por essas organizações, o que significa dizer, a sua atividade fim. A natureza orgânica é definida a partir do conteúdo das cooperativas, da essência dessas organizações. Nesse sentido, são observados: (i) o projeto político; (ii) processo e organização do trabalho e, (iii) das relações de trabalho. A forma, assim como a natureza orgânica, e a finalidade dessas cooperativas se apresenta intimamente relacionada aos projetos políticos que as constituem. Dessa forma, a tipologia permite reconhecer também os elementos que sustentam essas propostas de ação política. 2.1 COOPERATIVAS: FINALIDADE De acordo com a finalidade, as cooperativas podem ser identificadas e divididas da seguinte forma: (i) cooperativas de produção de bens e (ou) serviços; (ii) cooperativas de consumo e (iii) cooperativas de crédito. 91 ESTUDOS DE DIREITO COOPERATIVO E CIDADANIA A cooperativa de produção é uma associação de pessoas que tem como finalidade a produção coletiva de bens ou serviços e o retorno dos resultados de tal produção apropriado pelos próprios trabalhadores. O trabalho realizado nessas cooperativas pode ser resultado de um trabalho que foi inicialmente realizado individualmente por cada cooperado e que é transformado, em um segundo momento, coletivamente no âmbito da cooperativa, ou todo o processo de produção pode ser coletivizado, na forma de cooperativa. Na organização desse processo de trabalho, os trabalhadores, utilizando meios de trabalho, operam a transformação de coisas (corpóreas ou incorpóreas), que resultam em produtos que contêm trabalho. O produto do trabalho pode ser materializado na forma de bem ou de serviço, tendo em vista que sob o capital, o que está se produzindo é uma mercadoria, que, como define Marx, (2002) “é, antes de mais nada, um objeto externo, uma coisa que, por suas propriedades, satisfaz necessidades humanas, seja qual for a natureza, a origem delas, provenham do estômago ou da fantasia.” (MARX, 2002, p. 57) As cooperativas de produção2 de bens e (ou) serviços podem se apresentar, ainda, sob três formas: (i) cooperativas de produção e/ou serviços; (ii) cooperativas mistas e (iii) cooperativas integrais. As cooperativas de produção de bens e (ou) serviços apresentam como finalidade apenas a venda dos produtos, resultado da produção de seus trabalhadores, e, por esse motivo, podem ser consideradas cooperativas simples. 2 Paul Singer entende que “a cooperativa de produção é a modalidade básica da economia solidária”. (SINGER, 2002, p. 84) 92 CONFIGURAÇÕES CONTEMPORÂNEAS DO COOPERATIVISMO BRASILEIRO As cooperativas mistas apresentam como finalidade preponderante a venda de produtos, que podem ser fruto da produção dos trabalhadores cooperados e de outros trabalhadores que convivem com os cooperados em uma relação de assalariamento, sendo que tais cooperativas agregam também às suas atividades compras em comum beneficiando seus cooperados na aquisição de bens ou serviços. Essas cooperativas são bastante expressivas no Brasil e se apresentam, principalmente, no ramo das cooperativas agropecuárias. São consideradas cooperativas integrais aquelas que se apresentam como uma organização social comunitária, em que a comunidade se organiza em cooperativa para produzir em conjunto, prioritariamente, os produtos para seu próprio consumo, comercializando o excedente. As cooperativas integrais não se constituem em mero instrumento de coletivização do trabalho, mas ampliam o pressuposto da coletivização para uma série de bens que acaba por constituir um patrimônio geral da comunidade. No Brasil, existem alguns exemplos de cooperativas integrais vinculadas ao Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra – MST. Em pesquisa realizada por J.R.V.de Faria (2003), a Cooperativa de Produção Agropecuária União do Oeste Limitada – Cooperunião, criada em 1990, demonstra a finalidade de sua constituição a partir da sua trajetória o grupo ligado ao MST tinha uma proposta de produção coletiva (...). Em 1992, foi formada a primeira equipe de trabalho unificada que atuava na apicultura. Ocorre em 1994, a filiação das famílias do grupo de vinte e cinco à Cooperunião e a coletivização das máquinas e da produção de grãos. Em 1995, todo o processo de trabalho foi unificado e a terra foi concedida para uso da cooperativa e os bens passaram para a propriedade coletiva. (FARIA, 2003, p. 127-128) 93 ESTUDOS DE DIREITO COOPERATIVO E CIDADANIA Além das cooperativas de produção que agregam o consumo dos cooperados, aparecem as cooperativas que são constituídas exclusivamente com a finalidade de ser uma “associação dos consumidores para melhorar sua condição de compra de bens e serviços”. (FARIA, 2003, p. 26-27) As compras são feitas em comum de artigos de consumo para seus cooperantes. (...) Durante muitas décadas esse ramo ficou muito limitado a funcionários de empresa, operando a prazo, com desconto na folha de pagamento. No período altamente inflacionário essas cooperativas perderam mercado para as grandes redes de supermercado e atualmente estão se rearticulando como cooperativas abertas a qualquer consumidor. (FIGUEIREDO, 2000, p. 52) Ainda, quanto à finalidade, é possível verificar que há mais um tipo específico de cooperativa – as cooperativas de crédito. Essas apresentam como finalidade proporcionar, pela mutualidade, assistência financeira aos seus cooperados. O funcionamento dessas cooperativas ocorre mediante autorização e fiscalização do Banco Central do Brasil, por serem equiparadas às demais instituições financeiras. A lei lhes proíbe que adotem o nome banco. No entanto, guardam alguns pontos em comum com essas instituições financeiras. (FIGUEIREDO, 2000, p. 52-53) Cabe ressaltar que algumas cooperativas agropecuárias agregam, à produção e ao consumo, suas próprias cooperativas de crédito. Há uma tendência recente de abertura de cooperativas de crédito, na perspectiva da Economia Solidária, essas cooperativas vêm sendo denominadas cooperativas de crédito solidárias ou cooperativas de crédito comunitárias. De acordo com Paul Singer (2002), para que essas cooperativas sejam solidárias, é necessário “que os trabalhadores que as operam profissionalmente sejam sócios delas”. (SINGER, 2002, p. 85) 94 CONFIGURAÇÕES CONTEMPORÂNEAS DO COOPERATIVISMO BRASILEIRO 3 COOPERATIVA: NATUREZA ORGÂNICA A análise relativa à natureza orgânica das cooperativas está centrada na observação de três aspectos, quais sejam: (i) o projeto político; (ii) processo e organização do trabalho e (iii) as relações de trabalho. De acordo com J.H. de Faria (2004), considera-se processo de trabalho o conjunto das operações realizadas pelos sujeitos trabalhadores, individual ou coletivamente, de forma organizada, com a finalidade de produção de mercadorias. Chama-se organização do trabalho a forma pela qual o processo de trabalho encontra-se estruturado. Chamam-se relações de trabalho as interações objetivas e subjetivas que os sujeitos estabelecem entre si durante o processo de trabalho. (FARIA, 2004, p. 26) A partir do estabelecimento desses critérios de análise, relativamente à natureza orgânica das cooperativas, foram observadas três formas: (i) cooperativas sob o comando dos produtores diretos; (ii) cooperativas sob o comando do capital e (iii) cooperativas sob o comando do trabalho precarizado, dividindo-se esta última em: cooperativas de trabalho precarizado e cooperativas de trabalho precarizado “ad hoc” (fraudulentas). 3.1 COOPERATIVAS SOB O COMANDO DOS PRODUTORES DIRETOS Esse tipo específico de cooperativa tem como origem os projetos idealizados pelos socialistas utópicos. Nessa conformação específica, trabalhadores se associam com o intuito de produzir bens ou serviços, formando, dessa forma, cooperativas de trabalhadores associados. A organização e as relações de trabalho nessas cooperativas apresentam três aspectos relevantes à sua conformação: “(i) gestão democrática; (ii) controle do processo de produção 95 ESTUDOS DE DIREITO COOPERATIVO E CIDADANIA pelos trabalhadores e (iii) distribuição do resultado proporcional ao trabalho realizado”. De acordo com J.R.V.de Faria (2003), os elementos dispostos anteriormente não caracterizam essas cooperativas, no caso de serem observados individualmente. Apenas a observação do conjunto desses elementos caracteriza essa forma de cooperativa. (FARIA, 2003, p. 40) Apesar de as cooperativas, no Brasil, serem a única forma jurídica que comporta as especificidades mencionadas, alguns autores reconhecem na prática, distorções jurídicas, em que empresas de feição tipicamente capitalista observam tais preceitos, como é o caso das empresas controladas por trabalhadores.3 Pode-se considerar que a cooperativa assume essa configuração quando é “democraticamente gerida pelo conjunto dos trabalhadores, que exercem o controle efetivo sobre o processo de produção e distribuem o resultado proporcionalmente ao trabalho realizado.” (FARIA, 2003, p. 41) Os detentores do controle sobre o processo de produção, neste caso, são os próprios trabalhadores, sendo que este controle se exerce sobre a concepção do produto, seja este bem ou serviço, e compreende todas as fases de execução até a realização do seu valor, na forma de produto. Consideram-se, neste aspecto, a apropriação de todos os elementos necessários ao processo de trabalho que, como define Marx (2002), “desempenham papéis diferentes na formação do valor dos produtos”. (MARX, 2002, p. 235) Considera-se a “distribuição do resultado proporcional ao trabalho realizado quando o valor produzido e realizado é distribuído na proporção do tempo e da natureza do trabalho social dos agentes de produção.” (FARIA, 2003, p. 119) 3 Empresas capitalistas que entram em processo falimentar e os trabalhadores assumem a gestão e a produção da empresa. São denominadas empresas autogestionárias. 96 CONFIGURAÇÕES CONTEMPORÂNEAS DO COOPERATIVISMO BRASILEIRO Quanto à gestão, pode-se entender que “uma organização é democrática quando cada um dos seus associados participa e é responsável pelas ações desta gestão, com condições de acesso e domínio da informação gerencial em todos os seus níveis”. (FARIA, 2003, p. 120) Para Singer (2002), as cooperativas de trabalho coletivo são as verdadeiras cooperativas de trabalho, pois o trabalho é realizado coletivamente pelos cooperados dentro do espaço da cooperativa, ou seja, a execução da atividade é realizada pelos cooperados na própria cooperativa e o produto do trabalho é dos cooperados. (SINGER, 2002, p. 84) Os cooperados têm autonomia sobre a forma de execução do trabalho e sobre o seu resultado e são coletivamente proprietários e possuidores dos meios de produção. Mas, ainda dentro dessa categoria, pode haver duas formas de realização do trabalho, a primeira que já foi mencionada, em que os trabalhadores realizam suas atividades em conjunto, na própria sede da cooperativa, e a segunda em que os trabalhadores necessariamente realizam a maior parte das atividades individualmente, o que não modifica a caracterização dos cooperados como produtores diretos, mas muitas vezes esses cooperados são confundidos com trabalhadores autônomos. Isso ocorre, por exemplo, em cooperativas de transporte em que o cooperado realiza a maior parte de suas atividades fora da sede da cooperativa. J.R.V. de Faria (2003) demonstra no Quadro 1 a seguir, os princípios da autogestão nas unidades produtivas que são equiparadas nesse trabalho às cooperativas sob o comando dos produtores diretos. 97 ESTUDOS DE DIREITO COOPERATIVO E CIDADANIA QUADRO 1 – PRINCÍPIOS DA AUTOGESTÃO NAS UNIDADES PRODUTIVAS E SEUS ELEMENTOS CONSTITUTIVOS. PRINCÍPIOS Gestão democrática Controle do processo de produção*** ELEMENTOS CONSTITUTIVOS Grau de participação, Questões nas Participação na quais participa e Nível organizacional gestão em que ocorre a participação.* (Planejamento, Reprodução da configuração Decisão e Controle) organizacional** Grau de responsabilidade Responsabilidade na gestão Questões sobre as quais é responsável (Planejamento, Nível organizacional sobre o qual é Decisão e Controle) responsável Grau de acesso Acesso Nível organizacional da informação Informação Grau de domínio Domínio Nível organizacional da informação Relações de propriedade econômica: controle sobre o que é produzido, inclusive sobre a capacidade de dispor dos produtos. Propriedade real: Agentes da produção: relações técnicas e Relações de trabalho manual e sociais de produção posse: controle trabalho mental sobre como é Meios de produção: produzido meios de trabalho e objetos de trabalho Propriedade legal: cotas de participação no patrimônio Tempo de trabalho Natureza do trabalho social Distribuição do resultado proporcional ao Participação no aumento do patrimônio trabalho realizado * BERNSTEIN, Paul. Necessary elements for effective worker participation in decisionmaking. In: LINDENFELD, F. e ROTHSCHILD-WITH, J. (Org.). Workplace democracy and social change. Boston: Porter Sargent, 1982. p.51-81. ** Cf. SOUSA SANTOS, Boaventura de. Democratizar a democracia: os caminhos da democracia participativa. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002. A democracia é contextual, pois depende da configuração social. A reprodução desta configuração no processo de tomada de decisão, implica na correta identificação dos atores sociais e de suas relações. *** Cf. definição de FARIA, Jose Henrique de. Comissões de fábrica: poder e trabalho nas unidades produtivas. Curitiba: Criar, 1987. FONTE: FARIA (2003, p. 121) 98 CONFIGURAÇÕES CONTEMPORÂNEAS DO COOPERATIVISMO BRASILEIRO 3.2 COOPERATIVAS SOB O COMANDO DO CAPITAL Apesar da contradição relativa ao próprio conceito de cooperativa, uma parte das cooperativas brasileiras de produção assumiu forma análoga à das empresas capitalistas tradicionais. Significa dizer que o processo, a organização e as relações de trabalho nessas cooperativas são tipicamente capitalistas. J.H. de Faria (2004) define essas três situações no capitalismo da seguinte forma: O processo de trabalho é tipicamente capitalista quando a finalidade da produção é a geração e apropriação de valor excedente (trabalho não pago) pelo capital, que o aliena do trabalhador. A organização capitalista de trabalho refere-se à forma como o capital estrutura o processo de trabalho, através da divisão técnica e social, do estabelecimento de uma hierarquia gerencial e de um sistema disciplinar específico. As relações de trabalho sob o comando do capital referem-se aos contratos, ao assalariamento, às relações sindicais e às interações entre as estratégias gerenciais e as atividades objetivas e subjetivas que os sujeitos trabalhadores estabelecem no processo de trabalho. (FARIA, 2004, p. 26) A incorporação desses preceitos pelas cooperativas empresariais é bastante clara, aparecendo inclusive nos discursos de seus dirigentes. Relativamente à incorporação de técnicas de administração nas cooperativas, Rodrigues, em 1998, já se manifestava quanto às regras que deveriam nortear as cooperativas. Existe um aspecto fundamental na boa administração nos dias de hoje – a habilidade em tomar decisões rapidamente. Certamente essa é uma área sensível para as cooperativas, dadas as características do processo democrático de decisão. (...) Há, entretanto, uma forma de promover um rápido processo decisório de forma que seja compatível com a democracia. Em vez de votar em pessoas nas eleições cooperativas, 99 ESTUDOS DE DIREITO COOPERATIVO E CIDADANIA deveríamos votar em programas. Em vez de votar em pessoas porque são honestas, sérias e competentes, deveríamos votar em pessoas que tenham uma clara idéia do que necessitam realizar. Eleito de forma democrática, o líder pode tomar as decisões sem sentir a necessidade de consultar os membros que lhe concederam o mandato. Essa abordagem enfatiza a liderança cooperativa. (...) O novo papel do líder é convencer os associados a seguir determinado caminho, e, então, como um bumerangue, auxiliá-los no alcance de suas metas. (...) O líder legítimo da cooperativa deve estar preparado para realizar mudanças, além de ter outras qualidades. Por que mudar? Mudar para se livrar de funcionários, cooperados, líderes e cooperativas ruins. Considerando o ambiente competitivo, não temos condições de manter elementos negativos que destroem a imagem das cooperativas. Nós temos de ser como Jesus, que expulsou os vendilhões do Templo. (RODRIGUES, 2002, p.2-3) Nesse discurso, Rodrigues (2002) apresenta o cooperativismo clássico brasileiro, direcionado a acatar todas as regras necessárias à acumulação tipicamente capitalista, incluindo o processo, a organização e as relações de trabalho específicas desse sistema. Nesse sentido, é possível observar as seguintes características nas cooperativas de essência empresarial tipicamente capitalista: (i) o trabalhador exerce suas atividades sob o controle do capitalista, que é o proprietário de seu trabalho pelo tempo contratado. Assim, o trabalho é realizado sob a vigilância do capitalista; (ii) o produto do processo do trabalho não pertence ao produtor direto, ao trabalhador, mas ao capitalista. O capitalista, ao comprar a força de trabalho, incorpora o próprio trabalho aos elementos que constituem o produto, e o resultado do trabalho, o produto, portanto, é propriedade do contratante da força de trabalho. A força de trabalho é 100 CONFIGURAÇÕES CONTEMPORÂNEAS DO COOPERATIVISMO BRASILEIRO consumida como mercadoria que o capitalista comprou quando este a coloca em movimento, acrescentando-lhe os meios de produção. (FARIA, 2004, p. 27) O processo de trabalho considerado em sua forma capitalista é absolutamente reproduzido nos empreendimentos aqui definidos como “cooperativas sob o comando do capital”, tendo em vista que cumpre as duas condições essenciais a sua conformação. Os produtores diretos dessas cooperativas são trabalhadores assalariados. Os cooperados compram a força de trabalho desses trabalhadores, que exercem suas atividades sob o controle direto ou indireto dos cooperados, sob as condições estabelecidas na venda da força de trabalho (jornada de trabalho, metas e demais formas possíveis e atuais de consumo da força de trabalho e da produção de mais-valia). A definição sobre qual finalidade deve orientar a produção dos trabalhadores é dada pelos cooperados. Os meios de produção utilizados pelos trabalhadores são de propriedade dos cooperados. O produto, resultado do dispêndio da força de trabalho do produtor direto, pertence aos cooperados. E, por fim, a força de trabalho dos produtores diretos é consumida como mercadoria, quando colocada em movimento, utilizando os meios de produção dispostos à concretização das atividades previamente definidas, por quem as comprou – os cooperados. Nessas cooperativas, os cooperados formam o grupo de proprietários dos meios de produção e do resultado do trabalho – produto –, da atividade executada por trabalhadores assalariados. Portanto, assumem as mesmas condições e características do capitalista de um empreendimento tradicionalmente orientado pelo comando do capital. Não há relevância, sob esse aspecto, na conformação do quadro relativo ao capitalista. Significa dizer que, o que diferencia essas “cooperativas” das empresas capitalistas 101 ESTUDOS DE DIREITO COOPERATIVO E CIDADANIA tradicionais é a relação que existe entre os cooperados e a cooperativa. Relativamente à legislação vigente, essa organização é considerada como cooperativa, porque cumpre os requisitos legais estabelecidos na legislação. Inclusive, porque a legislação cooperativista prevê a contratação de trabalhadores assalariados, para a realização das atividades meio e das atividades fim. A organização do trabalho nessas cooperativas é similar ao das empresas capitalistas tradicionais, em que existem empregadores e empregados. Nesse caso, especificamente, os empregadores se apresentam sob a figura de um grupo de cooperados. Como é o caso, por exemplo, das cooperativas agropecuárias ou de cooperativas de produção de serviços ou das cooperativas médicas em que as atividades meio são, em regra, realizadas por trabalhadores assalariados. Tais cooperativas podem ser denominadas também como cooperativas empresariais. Essas cooperativas apresentam as seguintes características: (i) grande parte dos produtores diretos são trabalhadores assalariados; (ii) os cooperados são responsáveis pela gestão, ou a gestão é realizada por técnicos contratados; (iii) a distribuição da renda e das sobras por cooperado é proporcional ao “movimento ou a expressão econômica” realizada por cada cooperado, ao contrário das cooperativas de produção sob o comando dos produtores diretos. Tais características podem ser observadas nos exemplos a seguir tratados: Cooperativa Coamo – Administração Com 3,7 mil funcionários e 17,5 mil agricultores associados, a Coamo baseia sua administração no tripé cooperados-diretoriafuncionários. A perfeita integração entre eles tornou a Coamo uma das maiores cooperativas agrícolas da América Latina. 102 CONFIGURAÇÕES CONTEMPORÂNEAS DO COOPERATIVISMO BRASILEIRO Duas vezes por ano, a diretoria se reúne com os cooperados no campo para debater os problemas da sociedade e as tendências de mercado que afetam ou podem afetar o setor. (COOPERATIVA COAMO, 2004) Cooperativa Cocamar – Responsabilidade Social A Cocamar sabe que a cidadania corporativa é a base para a continuidade de seu crescimento e desenvolvimento. Por isso, mantém a atenção voltada para seus colaboradores e comunidade em geral, investindo ainda na conservação do meio ambiente em favor das gerações futuras. A atuação social é investimento para a Cocamar, atividade organizada e voltada para a busca de resultados. A criação de um Instituto de Responsabilidade Social e outro de Difusão Tecnológica, destinados à operacionalização de programas nos municípios de sua área de atuação, confirmam esta tendência. Para o desenvolvimento dessas atividades foi criado internamente um departamento – COCAMAR SOCIAL – que coordena os programas desenvolvidos. A criança, o adolescente e a comunidade, através das entidades assistenciais, são os principais públicos a quem se destinam à maioria dos programas em consonância com o bem estar da comunidade interna, colaboradores e associados. (COOPERATIVA COCAMAR, 2004) Como é de notar, essas cooperativas reproduzem os modelos vigentes de empresas capitalistas tradicionais, inclusive na forma de se expressar, como, por exemplo, denominando trabalhadores empregados como colaboradores. Além desse fato, a questão referente à gestão democrática está adstrita aos cooperados, sendo que se restringe em determinadas situações a uma democracia meramente representativa. O controle do processo de produção e da gestão está concentrada nas mãos dos cooperados-empregadores e o resultado é distribuído aos cooperados, proporcionalmente às trocas econômicas realizadas. 103 ESTUDOS DE DIREITO COOPERATIVO E CIDADANIA 3.3 COOPERATIVAS SOB O COMANDO DO TRABALHO PRECARIZADO Devido à utilização indiscriminada da expressão cooperativa de trabalho, para designar cooperativas absolutamente diversas, ou seja, desde cooperativas de produção de bens ou de serviços, ou cooperativas de trabalhadores que vendem força de trabalho, ou mão-de-obra ou até cooperativas fraudulentas, é necessário conceituar aqui o sentido dado a essa expressão. A denominação cooperativa de trabalho diz respeitos às cooperativas em que o trabalho fim é realizado pelos próprios cooperados, independentemente da natureza do produto do trabalho, seja ele um bem ou um serviço. O conceito aqui utilizado, para designar o termo – cooperativa de trabalho precarizado – é referente à cooperativa formada por trabalhadores auto-organizados, que, privados da propriedade dos meios de produção, vendem a força de trabalho por meio da cooperativa. Dessa forma, a cooperativa de trabalho constitui-se, em regra, como forma de precarização do trabalho. Mas não se configura como cooperativa fraudulenta, pois a cooperativa não está submetida ao capitalista, mas aos trabalhadores, coletivamente em relação à sua gestão e, individualmente, durante o período de execução de seus trabalhos. Nessas cooperativas, também denominadas cooperativas de mão-de-obra, o resultado do trabalho pertence sempre ao contratante da cooperativa. As cooperativas aqui designadas como cooperativas de trabalho precarizado ad hoc (fraudulentas), são aquelas que foram constituídas formal ou informalmente pelo capitalista, e que se encontram subordinadas a este. Assim, a constituição dessas cooperativas apresenta como objetivo única e exclusivamente a precarização do trabalho. 104 CONFIGURAÇÕES CONTEMPORÂNEAS DO COOPERATIVISMO BRASILEIRO Paul Singer (2004) utiliza a denominação, “cooperativas de trabalho” para as cooperativas que estão sob o comando do trabalho precarizado, em suas duas formas. O autor explica a origem dessas cooperativas. “A cooperativa de trabalho surgiu como forma conveniente de substituição de trabalho assalariado regular por trabalho contratado autônomo. (...), quando se trata de mudar o status legal dum grande grupo de trabalhadores, a contratação coletiva sob a forma cooperativa deve ser mais conveniente”. Ainda, explicando a origem dessas cooperativas, argumenta: empresas criam cooperativas de trabalho, com seus estatutos e demais apanágios legais, as registram devidamente e depois mandam seus empregados se tornarem membros delas, sob pena de ficar sem trabalho. Os empregados são demitidos, muitas vezes de forma regular, e continuam a trabalhar como antes, ganhando o mesmo salário direto, mas sem o usufruto dos demais direitos trabalhistas. Estas são as falsas cooperativas também conhecidas como cooperfraudes e outros epítetos. São cooperativas apenas no nome, arapucas especialmente criadas para espoliar os trabalhadores forçados a se inscrever nelas. (SINGER, 2004) Relativamente à outra forma de apresentação das cooperativas, designadas pelo autor também como cooperativas de trabalho: A outra origem das cooperativas de trabalho resultado de iniciativas de trabalhadores marginalizados, sem chance de obter emprego regular ou ainda em perigo de perder o trabalho que têm. Este é, por exemplo, o caso dos trabalhadores de empresas em crise, que se organizam em cooperativas ora para tentar recuperar a sua ex-empregadora (comprando-a com seus créditos trabalhistas e eventualmente com financiamento) ora para disputar o mercado de serviços terceirizados, tendo como arma sua proficiência profissional. 105 ESTUDOS DE DIREITO COOPERATIVO E CIDADANIA Formam também cooperativas de trabalho trabalhadoras e trabalhadores muito pobres, que sobrevivem vendendo seus serviços individualmente e tentam obter melhores condições de ganho unindo-se em cooperativas de trabalho. Estas cooperativas são obviamente verdadeiras, frutos da livre vontade dos que nelas se associam que não espoliam ninguém e são criadas como armas na luta contra a pobreza. (SINGER, 2004) As cooperativas de trabalho agregam cooperados que exercem atividades similares à dos empregados em empresas capitalistas. O trabalho é realizado fora do ambiente da cooperativa, normalmente no local definido pelo contratante. A diferença essencial entre essas cooperativas e as cooperativas de produção de bens e serviços é que, no primeiro caso, a cooperativa vende o resultado do trabalho do conjunto de cooperados, ou seja, vende o produto do trabalho, a mercadoria, que pode se apresentar na forma de bem ou serviço, enquanto no segundo caso, a cooperativa não vende o resultado do trabalho dos cooperados, mas faz a intermediação, a venda da própria força de trabalho de cada cooperado ao capitalista. Assim, as cooperativas de trabalho ou de mão-de-obra operam na lógica definida pela CLT, que trata do trabalho assalariado. Três elementos configuram o trabalho assalariado, de acordo com a legislação brasileira: (i) subordinação; (ii) pessoalidade; (iii) não eventualidade no trabalho fornecido. Verificadas essas condições, a relação de trabalho que se estabelece é a de emprego. Tendo em vista que as cooperativas de trabalho cumprem os requisitos definidores do conceito de trabalho assalariado, mas que por serem cooperativas, os contratantes estão teoricamente dispensados do pagamento obrigatório dos direitos trabalhistas assegurados na CLT, há nesse sentido à precarização do trabalho. 106 CONFIGURAÇÕES CONTEMPORÂNEAS DO COOPERATIVISMO BRASILEIRO É importante salientar que existe uma diferença fundamental entre as cooperativas de trabalho e as cooperativas fraudulentas. No primeiro caso, existe de fato a organização de trabalhadores, sendo que estes se auto-agenciam vendendo a sua força de trabalho, mas existe, mesmo em grau muito pequeno, certa autonomia referente às decisões quanto à cooperativa. Relativamente ao processo e à organização do trabalho, não há qualquer diferença na atividade realizada pelo cooperado ou na atividade realizada pelo empregado. Mas, quanto às relações de trabalho, entre capitalista e trabalhador há uma sutil diferença. O vínculo de subordinação estabelecido não é o mesmo, apesar de ser muito próximo, inclusive porque, nesse caso, não se trata da relação entre capitalista e trabalhador individual, mas entre capitalista e trabalhadores organizados em um coletivo. Isso poderia significar certo avanço para os trabalhadores, no caso de estes receberem, no mínimo, o valor equivalente ao pago pelo capitalista ao trabalhador assalariado, considerados todos os direitos assegurados a este último. Assim, os trabalhadores estariam menos submetidos às definições dos capitalistas e teriam mais condições para se organizar. O que vem ocorrendo é que, na maioria dos casos, os trabalhadores estão sendo prejudicados com a desvalorização do seu trabalho, pela negação do recolhimento referente aos encargos sociais. O que significa dizer que os capitalistas estão retendo uma parte maior do valor referente ao resultado do trabalho desse trabalhador, aumentando o grau de exploração sobre a força de trabalho. Essa questão é preocupante, tendo em vista que os trabalhadores estão sendo cada vez mais pressionados pelas práticas de precarização do trabalho, não só das cooperativas de trabalho, mas das inúmeras formas de subcontratação, terceirização e informalidade. E, em uma disputa extremamente 107 ESTUDOS DE DIREITO COOPERATIVO E CIDADANIA desigual, as condições de reivindicação de valorização do trabalho estão edificadas em bases muito frágeis. A defesa dos direitos sociais dos trabalhadores, como direitos humanos, que vêm sendo defendida por Paul Singer (2004) é constitucional, a questão está em como se efetivar tais direitos. Afinal, o reconhecimento dos direitos humanos, em geral, não tem sido acompanhado pela sua efetiva proteção. Por fim, considera-se que as especificidades referentes às cooperativas brasileiras, quanto à finalidade e à natureza orgânica, podem ser traduzidas no quadro a seguir: QUADRO 2 – TIPOLOGIA DAS COOPERATIVAS. Finalidade Natureza Orgânica Produção Bens Serviços Consumo Crédito Cooperativa de Produtores Associados* Cooperativa Empresarial** Cooperativa de Trabalho Precarizado Cooperativa de Trabalho Cooperativa de Trabalho Precarizado "ad hoc" * Podem ser mistas ou integrais as cooperativas de produção de bens e serviços que de acordo com a definição relativa à natureza orgânica, são cooperativas de produtores associados, ou seja, aquelas que se constituem sob o comando dos produtores diretos. ** Podem ser mistas as cooperativas de produção de bens ou serviços que seguindo os critérios relativos à natureza orgânica são cooperativas empresariais, pois se constituem sob o comando do capital. 4 DESMITIFICAÇÃO DO “SISTEMA ÚNICO” A compreensão sobre as relações que se estabelecem, hoje, na sociedade, parte da observação daquilo que foi historicamente construído, das transformações ocorridas, das práticas sociais e das condições materiais que a humanidade vem produzindo. Como afirma Castel, “o presente não é só o contemporâneo. É também um efeito da herança, e a memória de tal herança nos é necessária para compreender e agir hoje.” (CASTEL, 2001, p.23) 108 CONFIGURAÇÕES CONTEMPORÂNEAS DO COOPERATIVISMO BRASILEIRO Esse texto apresentou como objetivo a criação de uma tipologia das cooperativas brasileiras, partindo do reconhecimento da sua essência social, econômica e política, e das diferentes perspectivas que vêm orientando a aplicação generalizada dessa denominação a organizações que apresentam princípios e objetivos diferenciados, e, em alguns casos, até antagônicos em relação aos objetivos originais da criação de cooperativas. O intuito de trabalhar na formulação de marcos conceituais e de uma tipologia das cooperativas decorreu especialmente da observação relativa à manifesta impropriedade de institutos jurídicos, na abordagem concreta da realidade vivenciada por essa pluralidade de organizações, que foram designadas como cooperativas, desconsiderando-se a natureza que apresentam. Assim, um dos pontos centrais do tratamento jurídico das cooperativas passa pelo reconhecimento da diversidade relativa à finalidade e à essência dessas organizações. A retomada atual do conceito “cooperativa” é relevante, tendo em vista que estes empreendimentos pautam debates bastante importantes no país, por conta de vários fatores concorrentes, sendo que entre eles aparecem com mais evidência três fatores: (i) a flexibilização de direitos e a precarização nas condições do trabalho, que se refletiram, entre outras situações, na constituição de um grande número de cooperativas, denominadas, como visto anteriormente, cooperativas de trabalho, em que os trabalhadores estão submetidos a uma drástica redução de seus direitos, comprometendo, em conjunto com as demais formas de precarização do trabalho, os direitos sociais assegurados em intensas disputas políticas anteriores, o que denota um retrocesso tanto do ponto de vista do direito como das condições socioeconômicas da classe trabalhadora brasileira; (ii) no plano político, as cooperativas foram retomadas como um projeto econômico de desenvolvimento do Estado, e apesar das diferentes formas de cooperativas e, das condições 109 ESTUDOS DE DIREITO COOPERATIVO E CIDADANIA materiais e objetivas que estas apresentam do ponto de vista da realização do desenvolvimento de seus projetos políticos, procurou-se consolidar um espaço desigual, mas aberto à discussão, propostas e reivindicações destas organizações, e, por fim, (iii) a legislação cooperativista está sendo rediscutida, pois, o conteúdo da Lei n.º 5764 de 1971 está defasado em relação às determinações expressas na Constituição Federal de 1988 e, ainda, o tratamento destinado às cooperativas no Novo Código Civil, abriu espaço para a discussão de modificações centrais no antigo sistema, o que tem suscitado vários questionamentos sobre o tema. Nesse sentido, a busca por estabelecer diferenças relevantes em relação a tais organizações, observadas as suas peculiaridades e inserção em um sistema maior, apresenta como objetivo primordial a desconstrução da “unidade” no cooperativismo brasileiro que explicita a apropriação hegemônica dessa categoria de análise por um determinado grupo social. Há, portanto, uma expressiva tentativa de eliminar ou sufocar manifestações diferentes que se encaixam na mesma categoria, de acordo inclusive, com o conteúdo definido pela legislação brasileira. A produção científica e literária que vem discorrendo sobre o cooperativismo brasileiro tem, em geral, apresentado suas teses com base nessa aparente realidade, ou seja, há uma produção razoável de textos que partem de um pressuposto formal. Assim, o pressuposto do texto apresentado aqui pretendeu romper com a superficialidade que reside na manutenção de uma lógica-discursiva que nega as diferenças essenciais que residem na identidade, principalmente, das organizações que mantiveram o sentido original do termo, deturpado e reapropriado no contexto brasileiro com um sentido que serve, em regra, aos interesses de uma elite econômica de feição tradicionalmente capitalista. 110 CONFIGURAÇÕES CONTEMPORÂNEAS DO COOPERATIVISMO BRASILEIRO Com a análise apresentada, é possível perceber que existem projetos políticos em disputa e que as cooperativas são um dos instrumentos de manutenção de uma ordem vigente ou da transformação desta mesma ordem e esta opção está diretamente relacionada à finalidade proposta pela cooperativa considerada em conjunto com a natureza orgânica nela apresentada. A recuperação da expressão cooperativa está relacionada a uma concepção emancipatória e transformadora da realidade, e esta transformação somente tem lugar nas cooperativas de produção em que os próprios trabalhadores comandam o processo de produção e se apropriam do resultado do seu trabalho. REFERÊNCIAS ALIANÇA COOPERATIVA INTERNACIONAL. http://www.ica.coop/ica/pt, 25/05/2004 BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília: OAB, 2003. BRASIL. Lei n.º 5764, de 16 de dezembro de 1971. Define a Política Nacional de Cooperativismo, institui o regime jurídico das sociedades cooperativas e dá outras providências. Diário Oficial da União, 1971. CASTEL, Robert. As metamorfoses da questão social: uma crônica do salário. 3.ed. Petrópolis: Vozes, 2001. 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Petrópolis: Vozes, 1999. 112 A EVOLUÇÃO RECENTE DA QUESTÃO AGRÁRIA E OS LIMITES DAS POLÍTICAS PÚBLICAS DO GOVERNO LULA PARA O MEIO RURAL* Pedro Ivan Christoffoli** RESUMO: O estudo analisa as políticas do governo Lula para o meio rural e procura desvendar, por detrás das intenções e dos discursos, as estratégias colocadas em cena. Busca demonstrar que se gestou no governo uma aliança que abandona a construção histórica representada pelo Partido dos Trabalhadores como ferramenta de luta e organização social dos trabalhadores e de sua histórica aliança e priorização dos excluídos do campo. Os dados indicam a migração de um governo de corte classista, comprometido com as bandeiras reivindicatórias históricas dos trabalhadores, para um governo de corte populista, ancorado na construção de um bloco conservador em que se configura uma aliança da parcela hegemônica do PT e do sindicalismo com o grande capital. PALAVRAS-CHAVE: políticas públicas; questão agrária; Governo Lula. RESUMEN: El estudio analiza las políticas del gobierno Lula para el medio rural y procura desvendar, por detrás de las intenciones y de los discursos, las estrategias colocadas en escena. Busca demostrar que se gestó en el gobierno una alianza que abandona la construcción histórica representada por el Partido de los Trabajadores como herramienta de lucha y organización social de los trabajadores y de su histórica alianza y priorización de los excluidos del campo. Los dados indican la migración de un gobierno de corte clasista, comprometido con las banderas reivindicatorias históricas de los trabajadores, para un gobierno de corte populista, fundado en la construcción de un bloco conservador en que se figura una alianza de parcela hegemónica del PT y del sindicalismo con el grande capital. PALABRAS-CLAVE: políticas públicas; cuestión agraria; Gobierno Lula. * O presente artigo foi redigido no ano de 2005 porquanto alguns dados podem apresentar defasagem. ** Doutorando em Desenvolvimento Sustentável (UnB); membro da equipe técnica da Confederação das Cooperativas de Reforma Agrária do Brasil – CONCRAB. 113 ESTUDOS DE DIREITO COOPERATIVO E CIDADANIA INTRODUÇÃO O processo recente de luta pela reforma agrária no Brasil resultou em mais de meio milhão de famílias assentadas ao longo dos últimos 10 anos. Tal processo se dá como resultado da ação de inúmeros atores: o Estado, as igrejas e, principalmente, pela pressão dos movimentos sociais de trabalhadores rurais, como o MST, os Sindicatos de Trabalhadores Rurais, a CONTAG e outros. Como resultado das lutas e da fermentação social, o povo brasileiro vem construindo, desde o fim da ditadura, experiências organizativas nos campos social, econômico e ambiental, e na democratização do poder local, que muito contribuíram para a vitória eleitoral do projeto democrático popular capitaneado por Lula. A luta pela construção de um novo modelo de agricultura e de sociedade, enraizados na realidade concreta brasileira, em que se dá o embate de classes sociais e se manifestam os modelos antagônicos, tem no agronegócio e no modelo alternativo baseado na agricultura camponesa as suas duas principais vertentes. O agronegócio organizado em grandes unidades produtivas altamente intensivas em capital,1 geradoras de produtos para exportação, calcado num modelo tecnológico 1 O modelo capitalista se viabiliza não somente por meio das grandes unidades, mas também a partir de pequenas unidades produtivas em termos de tamanho, mas intensivas em termos de emprego de capitais, via a incorporação de insumos, maquinários, recursos genéticos, visando obtenção de elevada produtividade, na produção organizada em função do mercado, principalmente de exportação. Nessa categorização, muitas unidades produtivas de tamanho pequeno, que se utilizam de elevados investimentos em capital e ou empregam trabalho assalariado e produção modernizada, se encaixam no modelo do agronegócio, ainda que ideologicamente, alguma parcela desse segmento possa ser agrupada junto aos setores de “trabalhadores para o capital”, especialmente os muitos agricultores integrados à indústria do fumo, da seda, aos frigoríficos de aves e suínos etc. 114 EVOLUÇÃO RECENTE DA QUESTÃO AGRÁRIA E OS LIMITES DAS POLÍTICAS PÚBLICAS DO GOVERNO LULA PARA O MEIO RURAL com processos cada vez mais artificializados (uso de variedades geneticamente manipuladas, de insumos dependentes de energia não-renovável, contaminantes dos recursos hídricos e destruidores dos solos e das florestas). E a agricultura camponesa, que se gesta nas barracas de lona preta das ocupações de terra, nos assentamentos, nas comunidades quilombolas, que se alia aos conhecimentos indígenas ancestrais, aos pólos remanescentes da agricultura familiar e das comunidades tradicionais, enfim, que luta para sobreviver ao avanço do modelo dominante, numa luta de guerrilha tecnológica, de resistências culturais, de greves de fome paradigmáticas, contra a opressão da “falta de alternativas”. A atuação do Estado brasileiro historicamente tem sido a de fomentar o desenvolvimento capitalista no campo, criando as bases para sua instalação e consolidação, desde os anos 1950-60. A efervescência social dos movimentos sindical e popular levou a um questionamento desse modelo e à eleição de Lula como parte de um projeto popular, de democratização do Estado, e de reconstrução da nação brasileira em outros moldes. Passados três anos do governo Lula, começam a surgir dados que permitem ir construindo elementos de análise sobre as estratégias adotadas, as alianças priorizadas e os resultados alcançados pelo governo, e sua vinculação com a estrutura de classes e os projetos em disputa no meio rural brasileiro. O presente estudo analisa o governo Lula em suas políticas para o meio rural e procura desvendar, por detrás das intenções e dos discursos, os arranjos e as estratégias colocadas em cena. Busca-se demonstrar que se gestou no governo uma aliança que coloca por terra a construção histórica representada pela construção do Partido dos Trabalhadores como ferramenta de luta e organização social dos trabalhadores, e de sua histórica aliança e priorização dos excluídos do campo. O que se constata 115 ESTUDOS DE DIREITO COOPERATIVO E CIDADANIA é que a política conduzida ao longo dos últimos anos representou uma “virada de mesa” contra os interesses populares, supostamente vitoriosos nas últimas eleições presidenciais. Os dados delineiam a migração de um governo de corte classista, comprometido com as bandeiras reivindicatórias históricas dos trabalhadores, para um governo de corte populista, ancorado na construção de um bloco conservador, em que se configura uma aliança da parcela hegemônica do PT e do sindicalismo, com o grande capital. Tal aliança inesperada, incompreendida e pouco clara para a maioria dos militantes sociais, aparece travestida por um discurso da busca de confiança e governabilidade para o mandato de um novo “pai dos pobres”, numa reedição de um getulismo sem as políticas nacionalistas e sem inclusão social, num populismo caricato, onde a mão mais fraca afaga os pobres enquanto a mancheia atende aos interesses do grande capital. Nessa “virada de mesa” histórica depois da derrota eleitoral de 2002, a burguesia financeira e em particular a agrária não só conseguem manter sua dominação histórica como também ampliam o leque de políticas disponíveis que, na agricultura, possibilitaram a ampliação do território sob seu controle, o maior acesso aos fundos públicos de financiamento e a retomada da hegemonia sobre o conjunto da sociedade, em termos de representação ideológica do modelo agrícola. O CAMPO BRASILEIRO E AS POLÍTICAS PÚBLICAS PARA A AGRICULTURA NOS ANOS 1990 Os governos Collor e FHC aplicaram, desde a década de 1990, políticas neoliberais que contribuíram para desmontar as instituições e políticas voltadas aos pequenos agricultores, e que exerciam, desde a etapa final do regime militar, um papel de estímulo e apoio a uma parcela desse segmento. Durante o 116 EVOLUÇÃO RECENTE DA QUESTÃO AGRÁRIA E OS LIMITES DAS POLÍTICAS PÚBLICAS DO GOVERNO LULA PARA O MEIO RURAL governo Collor iniciou-se um processo drástico de redução das barreiras à importação de produtos agrícolas. A idéia era expor a economia brasileira à competição internacional de forma a fortalecê-la no longo prazo. Essa receita fazia parte de um conjunto de políticas neoliberais propostas pelo que ficou conhecido como o Consenso de Washington. O resultado foi um aumento nas importações de alimentos e matérias-primas, que passaram a representar fator essencial de controle da inflação, levando à depressão dos preços agrícolas (a “âncora verde” do Plano Real). Com o aumento de competição derivada das importações, dezenas de milhares de pequenos produtores se viram inviabilizados, produções como a de algodão decresceram,2 e mesmo nos produtos em que houve aumento do consumo, derivado da estabilização da economia, a maior fatia desse mercado em crescimento foi abocanhada por produtos importados. 2 Mais tarde ocorre o ressurgimento da cultura do algodão, mas já não mais em pequenas unidades familiares, localizadas na região sul-sudeste do país, como era comum até meados dos anos 90, e sim baseada em grandes unidades de produção na região centro-oeste do país. 117 ESTUDOS DE DIREITO COOPERATIVO E CIDADANIA A figura anterior demonstra o efeito da abertura comercial sobre a importação de produtos agrícolas, particularmente os originários do Mercosul, onde o crescimento das importações de produtos agrícolas in natura e industrializados foi da ordem de 150% em termos de valor. Esse crescimento,3 no período inicial do Plano Real, deriva em grande medida da política de estabilização econômica e da valorização cambial da moeda brasileira adotadas pelo governo FHC (BRANDÃO, REZENDE E MARQUES, 2005; MELO, 2005). Em 1999, fruto do abandono da política do câmbio fixo em relação ao dólar, as importações recuam, mantendo, porém, um patamar superior ao período anterior ao plano real. Em paralelo à abertura de importações, dá-se o desmantelamento das políticas de Estado para a agricultura, com base na tese neoliberal de que o mercado deveria dar conta da regulação econômica. Nesse período foram extintos ou literalmente desmantelados diversos organismos e políticas públicas direcionadas à agricultura: a) o serviço brasileiro de extensão rural (SIBRATER/ Embrater) foi desmontado, restando apenas algumas unidades enfraquecidas nos estados agrícolas mais ricos. Esse sistema havia servido para abrir caminho à implantação do modelo produtivo da revolução verde (de interesse das transnacionais produtoras de sementes, máquinas e insumos) e de unidades 3 “A partir de outubro de 1994, os preços agrícolas iniciam uma trajetória de queda que se estendeu por quase um ano. [...] Em 1994, foram importadas 3 milhões de toneladas de grãos, das quais um terço de arroz, 1,5 milhão de milho e 300 mil toneladas de feijão preto e em cores. Note-se que essas importações ocorreram não obstante a existência de volumosos estoques públicos [...]. Isso, aliás, foi uma característica de todo o período 1992/94, deixando clara a inconsistência entre a política agrícola adotada e a economia aberta...”. (RESENDE, 2000, p. 23) 118 EVOLUÇÃO RECENTE DA QUESTÃO AGRÁRIA E OS LIMITES DAS POLÍTICAS PÚBLICAS DO GOVERNO LULA PARA O MEIO RURAL agroindustriais em regime de integração (suínos, aves, fumo, leite, bicho da seda etc.). Com esse modelo já estruturado e com a montagem de um sistema privado de assistência técnica (na verdade um sistema de imposição de pacotes tecnológicos e de venda de insumos), não havia mais necessidade do sistema público de ATER para atender aos interesses do grande capital. Assim procedeu-se a seu desmonte; b) O Estado se retirou da política de garantia de preços e das compras de produção, em vista de formação de estoques. As políticas de apoio à sustentação de preços agrícolas, de abastecimento urbano, e de armazenagem, foram desmobilizadas, praticamente anulando a capacidade de estocagem pública no país (via desmonte e privatização da rede da CONAB); c) A política de garantia de preços mínimos, coerente com o exposto anteriormente, foi gradualmente desarticulada e os preços alinhados aos mercados internacionais, reduzindo-se a margem de manobra para políticas agrícolas autônomas por parte do governo brasileiro.4 d) A pesquisa agropecuária, estruturada em torno do sistema Embrapa, foi um apoio fundamental para a implantação da moderna agricultura de grande escala, contribuindo para a consolidação das bases tecnológicas do agronegócio.5 Desde o início dos anos 90, passa 4 Adotou-se a política de alinhamento aos preços internacionais de commodities. Com isso o Brasil passa de exportador a importador líquido de diversos produtos agrícolas, muitos dos quais adquiridos a preços subsidiados dos países de origem, (caracterizando dumping). 5 De fato, foi por ex. a Embrapa quem viabilizou tecnologicamente o plantio de soja na região norte e nordeste do país, atividade produtiva grandemente responsável, junto com a pecuária extensiva, pela devastação florestal da Amazônia e dos Cerrados. 119 ESTUDOS DE DIREITO COOPERATIVO E CIDADANIA por processo gradativo de aproximação com o capital privado, como a Monsanto, inicialmente por meio de contratos lesivos envolvendo transferência de recursos genéticos e tecnologia. Em paralelo, mediante a redução orçamentária e direcionamento da empresa para geração de caixa via contratos privados. De outro lado, limitando ações para desenvolvimento de tecnologias agroecológicas, voltadas ao segmento dos pequenos agricultores e às comunidades rurais tradicionais. e) A política fundiária promoveu uma reforma às avessas, com a apropriação de 20 milhões de hectares de terras públicas por latifundiários nas regiões de fronteira agrícola. A herança deixada pelo ciclo neoliberal de FHC e Collor, revela os paradoxos e as contradições do meio rural brasileiro: o desmonte das políticas públicas; a concentração de terras e riquezas, com uma produção recorde de produtos agrícolas para exportação; miséria e fome nos campos, e êxodo rural rumos às favelas e à marginalidade. AS POLÍTICAS PÚBLICAS PARA O MEIO RURAL NO PERÍODO LULA O governo Lula adota diversas iniciativas de recomposição de políticas públicas voltadas para a população mais pobre do meio rural. Algumas dessas políticas estão em grande medida consolidadas, como o Pronaf e os programas de renda mínima, enquanto outras se encontram em fases iniciais de implantação. Suas ações podem ser enquadradas em três situações: a) a recuperação de políticas públicas tradicionais que haviam sido desmanteladas pelos governos anteriores; b) a ampliação de instrumentos já existentes (dando a eles uma característica diferenciada); c) as políticas inovadoras de promoção da cidadania no meio rural. 120 EVOLUÇÃO RECENTE DA QUESTÃO AGRÁRIA E OS LIMITES DAS POLÍTICAS PÚBLICAS DO GOVERNO LULA PARA O MEIO RURAL Dentre as políticas públicas tradicionais que foram recuperadas estão: a) Crédito rural – Pronaf – ampliação da base beneficiada e do montante de recursos repassados; b) programa de ATER – Assistência Técnica e Extensão Rural. Abrangência para atendimento direto e indireto a 1,6 milhão de agricultores; c) a política de assentamentos; d) a política de armazenagem e formação de estoques reguladores, com base na compra de produtos da agricultura familiar. Quanto às políticas públicas ampliadas, temos: a) o PAA – Programa de Aquisição de Alimentos – que aplicou R$ 200 milhões e beneficiou 100 mil produtores em 2005, além de desenvolver mecanismos inovadores de compra direta da agricultura familiar vinculados a programas de segurança alimentar; b) Seguro Agrícola – Inovou introduzindo mecanismos de garantia de renda aos agricultores familiares; c) o programa Luz para Todos. Em relação às políticas públicas de promoção da cidadania tivemos: a) a criação do Programa Fome Zero, centrado na Bolsa família, com mais de 7 milhões de famílias beneficiadas;6 b) os programas de Educação de Jovens e Adultos (EJA), Alfabetização, e Pronera (57 mil educandos beneficiados em 2004); c) o reconhecimento de direitos e a demarcação de terras indígenas e quilombolas; e) a campanha de documentação de mulheres agricultoras; e f) o Programa de Erradicação do Trabalho Infantil – PETI, com cerca de 1 milhão de crianças atendidas. Os números dos diversos programas são positivos, especialmente quando comparados ao descaso dos governos anteriores, demonstrando um redirecionamento de políticas 6 O Bolsa Família, havia atingido até março de 2005 quase 60% (6,5 milhões), do total de 11,2 milhões de famílias pobres no país (estimadas com base na PNAD/2001, do IBGE), com 3,4 bilhões de reais investidos em 2003, e 4,8 bi em 2004. Desse montante uma parcela significativa das famílias localiza-se no meio rural. 121 ESTUDOS DE DIREITO COOPERATIVO E CIDADANIA públicas para o meio rural. No entanto, essas ações continuam sendo concebidas como políticas periféricas e compensatórias. Ou seja, ainda que as políticas públicas acima analisadas contribuam para atenuar a crise social no meio rural, não trazem reversão estrutural à miséria e à fome. Elas impactam sobre as condições de vida das pessoas, de uma forma pontual e provisória. Não conseguem beneficiar em especial os segmentos mais pobres do campesinato, de forma permanente, permitindo sua ascensão a um patamar superior de reprodução das condições de vida. Isso somente seria possível mediante a implementação de medidas estruturais, como a reforma agrária. A questão central, portanto, é se as políticas estruturantes têm sido aplicadas e se são adequadas e suficientes para promover uma inflexão no modelo de desenvolvimento no meio rural brasileiro. Caso contrário, políticas pontuais e compensatórias terão apenas efeito conjuntural, desaparecendo com o final dos programas. É com essa preocupação que iremos centrar a análise mais detalhada sobre dois programas de governo, o crédito rural e a reforma agrária, pela sua abrangência, potencial de impacto e relevância política. O FINANCIAMENTO RECENTE DA AGRICULTURA NO BRASIL E O FORTALECIMENTO DO AGRONEGÓCIO O número de pequenos agricultores no Brasil situa-se em torno de 4 milhões de famílias, com uma área total ocupada de 107 milhões de hectares, e 14 milhões de pessoas ocupadas, ou 86,6% de toda população economicamente ativa (PEA) no meio rural e cerca de 18% do total da PEA brasileira. No entanto, historicamente, a maior parcela dos recursos públicos para financiamento das atividades agrícolas tem sido 122 EVOLUÇÃO RECENTE DA QUESTÃO AGRÁRIA E OS LIMITES DAS POLÍTICAS PÚBLICAS DO GOVERNO LULA PARA O MEIO RURAL destinada aos grandes proprietários. Esse padrão não se alterou no governo Lula, como será demonstrado na sequência. A tabela indica que o acesso aos recursos para financiamento, aspecto essencial para viabilização da produção agropecuária, se dá de forma desproporcional, tendo os grandes fazendeiros o acesso a um montante elevado dos recursos disponíveis (73,8% do total), em proporções muito acima do valor produzido (61%) ou dos empregos gerados no meio rural (25,3%). Dados sobre o financiamento da agricultura nos primeiros anos do governo Lula indicam que essa tendência se manteve. Houve aumento significativo dos recursos e da cobertura direcionados à agricultura familiar, contudo em proporção insuficiente para reverter a tendência histórica. Para confirmarmos essa hipótese, será preciso analisar a dinâmica de financiamento do Pronaf. O FINANCIAMENTO DA AGRICULTURA FAMILIAR De acordo com dados do MDA, o financiamento à agricultura familiar mais do que dobrou nos três primeiros anos do governo Lula. 123 ESTUDOS DE DIREITO COOPERATIVO E CIDADANIA Ocorreu um forte aumento no volume de crédito destinado à agricultura familiar. O montante de recursos financiados mais do que triplicou, junto com o número de agricultores beneficiados pelo crédito, tendo havido aumento na cobertura do Pronaf em relação ao conjunto de agricultores familiares: 124 EVOLUÇÃO RECENTE DA QUESTÃO AGRÁRIA E OS LIMITES DAS POLÍTICAS PÚBLICAS DO GOVERNO LULA PARA O MEIO RURAL O número de contratos de custeio do Pronaf saltou de 677 mil em 2002 para 1,02 milhão em 2004. Os contratos de investimento subiram de 275 mil em 2002 para 551 mil em 2004. O número de famílias que nunca havia tido acesso a crédito do Pronaf e o obtiveram pela primeira vez foi entre 600 a 700 mil (MDS, 2005; MDA, 2005c). O número de contratos apresentou crescimento em todas as regiões do país, em especial no Nordeste, subindo de 953 mil em 2002 para 1,570 milhão em 2004. Além disso, o aumento do valor bruto disponível para o Pronaf durante o governo Lula foi de 200%. Contudo, o peso do Pronaf sobre o total do crédito rural do Brasil representa apenas 15% do valor total do crédito disponibilizado. Ou seja, ainda que a evolução dos contratos seja positiva, os dados demonstram as limitações estruturais da estrutura fundiária e das relações de poder no agro nacional. Isso pode ser constatado tanto em termos de cobertura total de agricultores familiares beneficiados como em termos do montante de recursos destinados e seu peso relativo sobre o total disponibilizado para o segmento agrícola. Apenas 38% do total de pequenos agricultores brasileiros conseguiu ter acesso ao crédito.7 Além disso, cerca da metade dos recursos foi aplicada na Região Sul do país (45,7% dos recursos e 37,2% dos beneficiários, somando 584.594 7 Partindo-se do número de 4,139 milhão de estabelecimentos familiares no Brasil, e considerando-se que cada agricultor familiar tenha feito apenas um único contrato (há um percentual significativo que realizou mais de um contrato no ano – p.ex. fez um contrato para financiar a safra de inverno e outro para a safra de verão; ou um contrato para custeio e outro para investimento), no ano-safra atual teríamos uma cobertura máxima de 38% dos agricultores familiares brasileiros (1,57 milhões de contratos). (FONTE: dados do MDA, 2005b; SPAROVEK, 2003; e elaboração do autor). O percentual identificado pelo Censo Agropecuário em 1996 foi de cerca de 4% de cobertura (sem repetição) de acesso ao crédito às unidades menores que 200ha (OLIVEIRA, 2004). 125 ESTUDOS DE DIREITO COOPERATIVO E CIDADANIA contratos), o que mostra uma concentração regional na destinação do Pronaf. Os dados das demais regiões também mostram a cobertura insuficiente e viesada, desse que acabou sendo o principal instrumento do governo Lula para a agricultura: • região Nordeste: 18,5% dos recursos e 36,9% dos contratos; • região Sudeste: 17,4% dos recursos aplicados e 14,6% dos contratos; • região Norte: 12,1% dos recursos, • região Centro-Oeste: ficou com a menor participação – 6,4% dos recursos e 3,5% dos contratos. Em resumo, as políticas adotadas são insuficientes para enfrentar a situação de pobreza e miséria no meio rural brasileiro. Mesmo com o aumento no volume de recursos direcionados à agricultura familiar, a maioria dos pequenos agricultores foi excluída do acesso ao crédito, ficando à margem do dinamismo recente na agricultura brasileira. Pelo menos 62%, ou dois em cada três pequenos agricultores ficou à margem do processo de financiamento oficial para a agricultura e, portanto, das possibilidades de melhorar de patamar produtivo. A análise desses dados reforça a tese que a política do governo Lula para o meio rural é insuficiente para o enfrentamento da pobreza e miséria. Em sendo assim, programas de corte compensatório, como o bolsa família têm de ser acionadas, tendo em vista a inadequação das medidas creditícias, e principalmente, pela não realização das políticas estruturantes, como a reforma agrária. 126 EVOLUÇÃO RECENTE DA QUESTÃO AGRÁRIA E OS LIMITES DAS POLÍTICAS PÚBLICAS DO GOVERNO LULA PARA O MEIO RURAL O AGRONEGÓCIO COMO PRIORIDADE Se os assentamentos e a agricultura camponesa tiveram prioridade restrita no governo Lula, o mesmo não se pode dizer dos grandes proprietários. O segmento representado pelos grandes estabelecimentos constitui a base social e produtiva principal do agronegócio.8 Responde pela maior parcela da área plantada e crescentemente pelo principal volume de produção agropecuária no país, ainda que gere poucos empregos. 8 O conceito estabelecido inicialmente por GOLDBERG foi, no Brasil, reconfigurado e apropriado politicamente por setores ligados ao latifúndio e grandes empresas capitalistas, que o utilizam para barganhar conquistas no Estado brasileiro. Consideram toda produção agropecuária e agroindustrial como compreendida pelo agronegócio, mascarando as diferenças socioeconômicas e interesses diferenciados existentes entre os diversos segmentos sociais no meio rural. Alguns pesquisadores (OLIVEIRA, 2004; GUILHOTO, cit. em MDA, 2005a) e os movimentos sociais do campo, procuram, restabelecer conceitualmente essa diferenciação, de forma que os interesses e resultados da Agricultura Familiar, dos assentados e das comunidades tradicionais, sejam considerados à parte da agricultura patronal. Portanto, utilizamos aqui o conceito de agronegócio com o sentido de agrupamento de interesses políticos e econômicos ligados aos latifundiários e ao grande capital financeiro e agroindustrial. É representado politicamente pela agricultura patronal, tendo à sua frente organizações como OCB, CNA, SRB, UDR, Bancada Ruralista no Congresso Nacional etc. 127 ESTUDOS DE DIREITO COOPERATIVO E CIDADANIA Os dados apresentados utilizam como ponto de corte as áreas acima de 200 hectares, para caracterizar as unidades de tipo patronal, ainda que esse valor referencial encubra, especialmente nas regiões sul, sudeste e nordeste, unidades menores que poderiam ser classificadas como unidades produtivas de tipo capitalista e, portanto, dentro da base produtiva do agronegócio. Durante o governo Lula, o financiamento para esse setor – grandes proprietários de terras e agronegócio – experimentou forte expansão. Apesar de envolver uma pequena parcela dos produtores do meio rural, o volume de recursos disponibilizado salta de R$ 22 bi para R$ 44,1 bilhões. O agronegócio respondeu imediatamente, com aumentos de produção e de exportações. Esses recursos, em grande medida, foram direcionados diretamente a grandes grupos empresariais, organizados nacionalmente e que articulam as principais cadeias produtivas existentes na agricultura brasileira. São os eixos dinâmicos de acumulação e expansão capitalista na agricultura. Como exemplo da concentração de recursos em alguns desses grupos, seguem dados referente às empresas financiadas pelo Banco do Brasil, principal agente financeiro para a agricultura no país. 128 EVOLUÇÃO RECENTE DA QUESTÃO AGRÁRIA E OS LIMITES DAS POLÍTICAS PÚBLICAS DO GOVERNO LULA PARA O MEIO RURAL Os dados, ainda que parciais, demonstram a diferente priorização do crédito concedido pelo governo federal aos dois segmentos da agricultura. O Pronaf, num universo de 1,7 milhões de contratos, recebeu valor de 5,8 bilhões de reais, pouco a mais que o financiamento dado a 12 grandes empresas do agronegócio. Se adicionarmos, nesse mesmo período, o programa Moderfrota, do BNDES, em que foram financiados outros R$ 5,1 bilhões para renovação da frota de tratores e colheitadeiras, teremos a dimensão do problema. Com esses recursos, em 2004 foram adquiridos 97,8 mil tratores e 26,2 mil colheitadeiras.9 Esse movimento traz impactos no aumento na produtividade do trabalho na agricultura, especialmente no setor capitalista, já que máquinas novas e mais modernas 9 O que representa um percentual de renovação de 12% em relação ao total de 800 mil tratores existentes em 1996 (último dado disponível) e 20,85% das 125.607 máquinas colheitadeiras existentes no mesmo período. 129 ESTUDOS DE DIREITO COOPERATIVO E CIDADANIA resultam em ganhos de produtividade. O endividamento resultante também faz com que esses agricultores se vejam impelidos a produzir nas próximas safras, ainda que deteriorem os preços dos produtos agrícolas.10 Portanto, o aumento da disponibilidade de recursos do crédito rural aos grandes fazendeiros foi de mais de 100%. O reflexo do crescimento dos recursos disponibilizados pelo governo, mais os preços favoráveis no mercado internacional, resultaram no crescimento da produção agropecuária, o que é demonstrado pela expansão da produtividade e das áreas cultivadas com lavouras, pastagens e culturas permanentes. Centenas de milhares de hectares de áreas marginais ao processo produtivo passaram a ser incorporadas, principalmente para a produção de soja. A área plantada de soja teve uma explosão no triênio 2001-2004, com expansão média anual de 13,8%. Essa expansão foi quatro vezes superior à média registrada nos 10 anos anteriores. (BRANDÃO, REZENDE e MARQUES, 2005). Enquanto no período de 1990 a 2001, a área plantada com soja cresceu apenas nas regiões CentroOeste e Norte/Nordeste, no período recente, cresce em todas as regiões do Brasil. O principal fator explicativo para essa expansão é a elevação dos preços do produto no mercado internacional, combinado com a alteração da política cambial no início do segundo mandato de FHC. O modelo produtivo da segunda revolução genéticomecânica (combinando a biotecnologia – transgênicos – e a incorporação de máquinas mais produtivas e sofisticadas tecnologicamente, agricultura de precisão etc.) se expande 10 Esse fenômeno, já identificado por BRANDÃO, RESENDE e MARQUES (2005), resulta do fato que as dívidas rurais muitas vezes são feitas com base em produto físico como equivalente financeiro, e também porque, para pagar as dívidas financeiras, é necessário produzir excedentes comercializáveis. 130 EVOLUÇÃO RECENTE DA QUESTÃO AGRÁRIA E OS LIMITES DAS POLÍTICAS PÚBLICAS DO GOVERNO LULA PARA O MEIO RURAL por todo o país, incorporando desde áreas “internas11” aos latifúndios no Sul, Sudeste e Centro-Oeste, chegando até áreas “externas” de cerrado nordestino e da ante-sala da floresta amazônica. A produção agrícola cresce de forma significativa, levando o Brasil a consolidar-se como um dos maiores produtores e exportadores de produtos agrícolas do mundo. Isso trouxe impactos na balança de pagamentos do país e na geração de divisas. O Brasil exportava em 1964, ano do golpe militar, um total de US$ 1,43 bilhões. Em 1984 exportava US$ 27 bilhões e em 1989 chegou a US$ 34,3 bilhões. Em 2003 as exportações chegaram a US$ 73 bi, dos quais 41,9% com produtos agrícolas e 8,1 bilhões apenas com produtos do complexo soja. Nesse mesmo ano o saldo comercial da balança agrícola respondeu por um superávit de US$ 24,8 bilhões, respondendo também por 37% dos empregos do país. No período de maio/04 a abril/05 o superávit na balança de pagamentos do agronegócio somou US$ 35,62 bilhões com as vendas externas superando os 40 bilhões de dólares – recorde histórico anual (OLIVEIRA, 2004; SAFATLE e PARDINI, 2004; MAPA, 2005). Parece ter sido essa constatação que levou o governo Lula a priorizar a aliança com o agronegócio. Analisando as condições de geração de excedentes exportáveis capazes de assegurar o pagamento das dívidas interna e externa, o governo 11 Referimo-nos à existência de uma fronteira agrícola “interna” aos latifúndios improdutivos, no sentido de que eram áreas até então não incorporadas ao processo produtivo, sendo mantidas como reserva especulativa, à espera de valorização das terras para negócio. Contudo, parte desse avanço “interno” também se deu pelo deslocamento e substituição de outros cultivos. Com a valorização da soja e outras commodities, ocorre uma incorporação de áreas internas aos latifúndios ao processo produtivo, inserindo-as no mercado agropecuário. A soja viabilizou, portanto, a extração de renda da terra mesmo em áreas marginais em que, nos últimos 15-20 anos isso era inviável. 131 ESTUDOS DE DIREITO COOPERATIVO E CIDADANIA decide assegurar a expansão da capacidade produtiva desse segmento, em vista das condições favoráveis do mercado internacional de commodities. Isso explicaria o porquê da cúpula governista ter secundarizado teses históricas do partido e jogado a questão da transformação das estruturas fundiárias para fora da “agenda real” de governo. Também explica a aliança com o segmento capitalizado dos produtores familiares, priorizando políticas de crédito rural, ao invés de mudanças estruturais, que beneficiariam o proletariado e o semiproletariado rural. Em sendo assim, qualquer ação que pudesse representar perturbação da ordem política e social exigidas pelo capital, seriam prontamente censuradas e combatidas, ainda que não com a mesma truculência dos governos anteriores. Contudo, há um outro ângulo de abordagem sobre a realidade agrária. Conforme o prof. Ariovaldo Oliveira (2004), há uma mitificação em torno da dinamicidade do agronegócio, visando proteger a ineficácia das grandes unidades produtivas, acima de 2.000 hectares. Procura-se ocultar as diferenças existentes no meio rural, de forma a incorporar no conceito operacional de agronegócio, indicadores referentes a segmentos da agricultura familiar. Pelos cálculos do professor, a produção familiar e das médias unidades é a principal contribuinte em termos de volume e valor de produção dos principais produtos alimentares e também da maioria dos produtos de exportação em nosso país. Dados oficiais reforçam essa tese. 132 EVOLUÇÃO RECENTE DA QUESTÃO AGRÁRIA E OS LIMITES DAS POLÍTICAS PÚBLICAS DO GOVERNO LULA PARA O MEIO RURAL A agricultura em unidades pequenas e médias representa, portanto, uma parcela significativa da produção brasileira, mas é contabilizada como se fosse produção do agronegócio, cuja aliança política central se dá com o grande latifúndio em subordinação financeira às transnacionais do setor. Com isso, um segmento de trabalhadores rurais altamente produtivo e que ocupa cerca de 1/3 das terras agrícolas do país é utilizado como massa de manobra para interesses dos grandes fazendeiros e do capital agroindustrial. Esse segmento que poderia objetivamente se aliar aos pequenos agricultores e sem-terra, em vista de reformas estruturais na agricultura, fica refém de um discurso ideológico que distorce suas demandas de políticas públicas. Além de exercer a hegemonia ideológica sobre o conjunto da sociedade, a expansão física e econômica do agronegócio resulta – uma vez se esgotando a fronteira agrícola e dada a irreprodutibilidade da terra – em diminuição da área apropriada pela agricultura familiar-camponesa, e por outros segmentos populares, como os povos e comunidades tradicionais (indígenas, seringueiros, quilombolas etc.). Esse aspecto revela outra frente em que a atuação do governo federal tem sido débil e leniente em relação aos impactos negativos do agronegócio. O crescimento do latifúndio vem se dando principalmente via apropriação de terras públicas, como o aumento de desmatamentos e da produção agrícola nas regiões de fronteira (norte do MT, cerrados e floresta amazônica). A expansão acelerada da fronteira agrícola nessas regiões vem provocando deslocamento de populações tradicionais, desmatamentos e queimadas, bem como aumento dos conflitos pela posse da terra, com a apropriação irregular de terras pelo latifúndio.12 12 Um efeito dessa expansão tem sido o incremento dos casos de violência (assassinato de trabalhadores rurais, agentes religiosos e funcionários públicos) 133 ESTUDOS DE DIREITO COOPERATIVO E CIDADANIA Desde 1988 foram devastados cerca de 313 mil quilômetros quadrados, numa taxa média de 18,5 mil Km² ou 1,85 milhões de hectares/ano (MMA, 2005). No último ano, houve redução no ritmo de desmatamento, o que pode ter ocorrido tanto por aumento da eficiência dos instrumentos legais de coerção como principalmente pelo efeito da redução dos preços de produtos agrícolas, como é o caso da soja, o que teria reduzido a reserva financeira e a pressão pela ocupação de terras já abertas e “amansadas” anteriormente.13 Os estados onde mais ocorrem desmatamentos são os de fronteira agrícola. Mato Grosso é o estado onde mais se desmata no país, seguido pelo Pará, Rondônia e Amazonas (MMA, 2005). Nas regiões de expansão de fronteira, onde a presença do Estado é reduzida e desorganizada, sintomaticamente também é onde se observa abertamente, sem disfarces, a face destruidora e opressora do agronegócio: a grilagem de terras públicas; a devastação ambiental; o aumento nos conflitos pela posse e uso da terra (mais de 800 assassinatos na luta pela terra apenas no Estado do Pará); o desrespeito aos direitos trabalhistas e de cidadania; e a ocorrência de forma sistemática e funcional de trabalho escravo14 (CACCIAMATI e AZEVEDO, 2002; MTE, 2001; e FERREIRA, 2005). e corrupção de agentes estatais (cartórios, funcionários do Ibama e do Incra etc.) em vista de obter favorecimentos ilegais e regularizar situações ilegítimas, obtidas através da força e ao arrepio das leis. 13 Exemplo dessa situação é a redução nos preços e a paralisação dos negócios de terras ocorrido no início de 2006 no Estado do Mato Grosso. Os preços do hectare de terra sofreram queda média de 45% do valor (em alguns casos houve quedas de R$ 8,75 mil para R$ 2,5 mil por hectare). (Fonte: 24 horas News, 2006) 14 Quanto ao trabalho escravo, verifica-se uma relação de simbiose entre a expansão da fronteira agrícola, o fortalecimento do agronegócio e a recriação de práticas antigas e hediondas de exploração dos trabalhadores. FERREIRA (2005), citando dados do MTE, informa que de 1995 até julho de 134 EVOLUÇÃO RECENTE DA QUESTÃO AGRÁRIA E OS LIMITES DAS POLÍTICAS PÚBLICAS DO GOVERNO LULA PARA O MEIO RURAL AÇÕES ESTRUTURAIS PARA REVERSÃO DA POBREZA NO CAMPO – RITMO E FINANCIAMENTO DA REFORMA AGRÁRIA Talvez o aspecto mais emblemático do impasse de rumo político, vivido pelo governo Lula, seja a reforma agrária. O Brasil é considerado um dos países mais desiguais do planeta. No meio rural, 2% dos proprietários de terra detêm cerca de 50% das terras, enquanto mais de 4 milhões de famílias camponesas sobrevivem em condições precárias, passando necessidades, fome e miséria. Essa extrema desigualdade levou ao surgimento de diversos movimentos sociais que lutam pela terra e pela reforma agrária. Dessa luta, ao longo dos últimos 25 anos, foram desapropriados cerca de 7.000 latifúndios, convertidos em assentamentos de reforma agrária, reunindo mais de 830 mil famílias assentadas, ou cerca de 20% do total de estabelecimentos da agricultura familiar no Brasil. Eles já representam, portanto, uma parcela expressiva e crescente da população brasileira no meio rural (IPEA, 2003, p.95). O público beneficiário potencial para a reforma agrária situa-se em torno de 4 milhões de famílias rurais.15 O público diretamente mobilizado pela reforma pode ser dimensionado 2004, foram libertados 11.969 trabalhadores rurais em situação análoga ao trabalho escravo, em quase 700 autuações de fazendeiros. Quase a metade desse número (5.224) ocorreu no Estado do Pará, seguido por Mato Grosso (2.345) e Bahia (1.139). Como pode ser visto, o fenômeno de escravização de trabalhadores não é isolado e muito menos está sob controle. 15 Essa estimativa desconsidera uma parcela da população localizada nas periferias urbanas, expulsas do campo nas décadas precedentes, e que aceitariam uma oportunidade para viver do trabalho na terra. Existem estudos indicando esse interesse no retorno de famílias urbanizadas para o meio rural. O próprio movimento social vem organizando, nos últimos anos, um número crescente de famílias desempregadas e moradores de periferia nas lutas pela terra, ainda que este percentual represente uma ampla minoria (menos de 20% das famílias acampadas). Para alguns desses estudos ver PIRES, 2003; e MORAES SILVA, 2005; 135 ESTUDOS DE DIREITO COOPERATIVO E CIDADANIA pelas famílias organizadas em ocupações de terra (oficialmente em torno de 200 mil famílias), considerando-se as que se encontram nos acampamentos e ocupações de terras espalhados pelo país. Historicamente, os assentamentos rurais foram constituídos sem assegurar o apoio adequado à instalação das famílias (moradia, energia elétrica, estradas, p.ex.), sem cumprir com os requisitos legais ambientais exigidos (resultando num passivo de mais de 4 mil assentamentos sem licenciamento ambiental) e sem se preocupar em viabilizar as condições produtivas. Conforme levantamento coordenado por Sparovek (2003) em 4340 assentamentos em todo o país, configura-se um descaso dos sucessivos governos com relação à implantação de infraestruturas adequadas para as famílias assentadas. Em relação à qualidade de vida, os fatores mais precários foram: a) acesso ao atendimento de saúde em caso de emergências; b) acesso à água de boa qualidade; c) acesso ao ensino médio; d) a falta de tratamento do esgoto doméstico. Além disso, constatou-se que: 25% das famílias com filhos em idade escolar não tinham acesso às escolas; apenas 67% dos lotes tinham acesso à energia elétrica (na Região Norte apenas 27% dos assentamentos); o transporte público das áreas dos projetos até a sede dos municípios é precário, na maioria dos casos. Esse descaso se explica, do ponto de vista político, pela falta de prioridade do enfrentamento da miséria do meio rural, mas também pela estratégia de destruição das organizações dos trabalhadores rurais, pois diversos governos, e em especial o governo FHC, buscaram a criminalização dos movimentos sociais e das suas organizações econômicas, combinando ações de perseguição legal-judicial e de inviabilização econômica. Procurou-se estruturar políticas que tirassem dos movimentos sociais a condição de mediação e a legitimidade 136 EVOLUÇÃO RECENTE DA QUESTÃO AGRÁRIA E OS LIMITES DAS POLÍTICAS PÚBLICAS DO GOVERNO LULA PARA O MEIO RURAL da representatividade da base sem-terra16: Inscrição para a reforma agrária via correios, programas de reforma agrária de mercado, privatização dos serviços de ATER; privatização dos trabalhos prévios à instalação dos PAs (elaboração dos planos de desenvolvimento dos assentamentos – PDAs, demarcação, e topografia); discriminação contra o assentamento de famílias ligadas ao MST; criminalização das ações de ocupação de terras; inviabilização de vistoria de latifúndios ocupados pelos trabalhadores; impedimento ao assentamento de lideranças das ocupações de latifúndios etc. AÇÕES DO GOVERNO LULA EM RELAÇÃO AO ASSENTAMENTO DE TRABALHADORES RURAIS Ainda que o governo Lula tenha freado os ataques diretos às organizações de trabalhadores por parte dos organismos de repressão do governo federal, isso não impediu que a ação de Estado seguisse na rota de criminalização e destruição dos movimentos sociais (CPMI da terra, Judiciário conivente com o latifúndio, militarização da questão agrária via as Polícias Militares estaduais, infiltração de espiões nos movimento sociais etc.). Além disso, na questão que se constitui no eixo central de qualquer política de enfrentamento da questão agrária, visando à desconcentração do poder e da propriedade via desapropriação de latifúndios, o governo Lula marcou passo. Herdando uma legislação anti-reforma agrária à qual não quis enfrentar, e um aparato institucional sucateado17 e desqualificado 16 Para esse fim buscou inclusive estratégias de cooptação de intelectuais e militantes da questão agrária, alguns dos quais gentilmente e sem grandes problemas de consciência, adotaram posturas ativas de agrado ao poder. 17 No início de 2004 o Incra contava com 5.300 servidores, contra demanda estimada de 10 mil. Em Março de 2006, apenas 471 novos servidores haviam sido contratados, sendo que outros 1.300 estavam com o concurso em andamento. 137 ESTUDOS DE DIREITO COOPERATIVO E CIDADANIA por décadas de desmonte, e insistindo em uma política de aliança com os setores modernizados da agropecuária, o governo Lula se mostrou incapaz de fazer frente aos desafios colocados pela luta de classes no campo brasileiro. Ainda mais grave, o governo federal, para responder às críticas de inação no campo da reforma agrária, adota procedimentos semelhantes aos desacreditados métodos utilizados no governo FHC. De acordo com dados oficiais, nos três primeiros anos do governo foram assentadas 235.055 famílias. Diversos estudiosos da questão agrária, além dos movimentos sociais, se manifestaram com preocupação e descrédito perante os indícios de falta de consistência conceitual e estatística quanto ao número de famílias assentadas, divulgados pelo governo, especialmente referentes ao ano de 2005. Vários pesquisadores afirmam que o governo Lula recria, num novo sentido, a fórmula da colonização adotada pelo regime militar e mantida pelo governo FHC. Isso se dá pela concentração de famílias assentadas em terras públicas (69.182 em 2005) principalmente localizadas na Região Norte do país (região préamazônica). Outra parcela significativa das famílias contabilizadas como novos assentamentos (31.373 famílias) são de beneficiários alocados em projetos de assentamento criados anteriormente a 2005, ou seja, estão sendo computadas famílias que repõem lotes abandonados em projetos antigos, como se fossem novos assentamentos (BRASIL DE FATO, 2005). 138 EVOLUÇÃO RECENTE DA QUESTÃO AGRÁRIA E OS LIMITES DAS POLÍTICAS PÚBLICAS DO GOVERNO LULA PARA O MEIO RURAL O fato é que ao não enfrentar a questão das desapropriações de terras já em mãos do latifúndio, as medidas do governo não promovem desconcentração fundiária, não reduzem o poder do latifúndio, e portanto, restringem o processo de democratização da propriedade da terra em nosso país e os impactos daí derivados para a própria democracia brasileira. Ainda que se desconsiderasse toda essa contestação em relação aos números divulgados, o ritmo da reforma seguiria preocupante. Nessa velocidade, o Brasil terá de conviver por décadas ainda com lutas sociais e com a pobreza e miséria no meio rural. Aparentemente, o governo Lula aderiu à estratégia recuada, de esperar que as famílias sem-terra sejam gradativamente expulsas rumo às cidades, enfraquecendo a pressão pela reforma. AS CONDIÇÕES E FINANCIAMENTO DOS ASSENTAMENTOS Além do não-cumprimento das metas de assentamentos, o esvaziamento da questão agrária no governo Lula pode ser visto no tema crédito. Com o número de famílias assentadas crescendo nos últimos anos, ainda que em ritmo lento, criou-se uma situação paradoxal: o valor financiado foi reduzido. Os recursos direcionados para assentados da reforma agrária sofreram redução nos três primeiros anos do governo Lula. Os contratos de financiamento para os assentados (grupos A e A-C do Pronaf) foram reduzidos entre 2002 e 2004, passando de 55.610 para 54.825 contratos. Os valores absolutos e relativos também sofreram redução: em termos absolutos, o crédito para os assentados reduziu-se de 592,8 milhões para 499,3 milhões de reais. Os dados referentes a 2005, ainda que incompletos, indicam a continuidade dessa 139 ESTUDOS DE DIREITO COOPERATIVO E CIDADANIA tendência, com a redução no número total de contratos e no volume de recursos contratados.18 Em termos relativos essa queda no repasse de recursos para os assentamentos foi ainda maior: de uma participação relativa de cerca de 18% dos recursos para o total da Agricultura Familiar em 2002, o crédito para os assentamentos minguou para menos de 9% em 2004. Essa queda é mais significativa se lembrarmos que, hoje, os assentados representam cerca de 20% do total de agricultores familiares e que nos anos iniciais de assentamento se requer um volume maior de recursos para a instalação de atividades produtivas nos lotes. Como entender esses movimentos? Eles ocorrem por uma simples razão: o governo Lula, ao não priorizar a política de Reforma Agrária, contribuiu para manter os assentamentos à margem das políticas de inclusão creditícia e agravou alguns problemas já existentes. Esses dados indicam uma escolha estratégica equivocada no enquadramento dos assentamentos na lógica do Pronaf, desconsiderando a condição especial de um processo de reforma agrária e a reivindicação histórica do MST, que defende a criação de um programa específico de crédito para a reforma agrária, em vista das especificidades desse segmento social. Com a redução dos recursos alocados e a não-resolução das dívidas anteriores, cresce a inadimplência e, portanto, a exclusão dos agricultores assentados a novos créditos. Essa situação foi gerada por um conjunto de fatores: 18 Informações não oficiais do INCRA indicam que o volume de recursos repassados aos assentamentos nesse ano se reduza à faixa dos R$ 300 milhões, e que o número de parceleiros aptos a receber crédito, mas que não conseguiram acessá-lo é da ordem de 114 mil famílias. 140 EVOLUÇÃO RECENTE DA QUESTÃO AGRÁRIA E OS LIMITES DAS POLÍTICAS PÚBLICAS DO GOVERNO LULA PARA O MEIO RURAL I. transferência de deficiências estruturais dos assentamentos para o crédito de custeio/investimento (em muitos assentamentos o recurso destinado para investimento produtivo teve que ser direcionado para construção de moradias, implantação de energia elétrica etc.); II. sucessivas perdas de colheitas, sem cobertura de seguros; III. atraso na liberação dos recursos (perdendo prazos de plantio e reduzindo as colheitas, p.ex.); IV. qualidade e cobertura inadequadas da Assistência Técnica (baixa qualidade dos projetos de desenvolvimento e do assessoramento sócio-técnico); V. inexistência de políticas de apoio à comercialização e garantia de preços mínimos; VI. inviabilidade produtiva estrutural de alguns lotes ou até mesmo de assentamentos inteiros. O resultado é a elevação gradativa do percentual de agricultores inadimplentes, inviabilizados de acessar o crédito. Apesar de um discurso favorável à reforma agrária, o governo Lula, na prática, implementou medidas que restringiram19 o acesso dos agricultores assentados ao crédito individual. Tampouco se procurou viabilizar a criação de mecanismos de estímulo à cooperação nos assentamentos, conforme demandas apresentadas pelos movimentos sociais. Denota-se, portanto, um quadro de insensibilidade do governo, aparentemente mais fortemente localizado no Ministério da Fazenda e em setores do MDA, em retomar o 19 Essa política restritiva foi justificada inúmeras vezes, por argumentos depreciativos à capacidade produtivo-gerencial e à boa fé dos agricultores assentados e suas lideranças, em discursos que seriam bem recebidos em qualquer círculo de extrema direita ou de latifundiários, o que, ao menos, sinaliza uma oportunidade de trabalho para certos quadros do atual governo, numa eventual derrota eleitoral em 2006. 141 ESTUDOS DE DIREITO COOPERATIVO E CIDADANIA processo de institucionalização de políticas públicas que promovam a reforma agrária, a recuperação dos assentamentos antigos e a estruturação em novas bases de um novo modelo de assentamentos. IMPACTO SOBRE O MODELO PRODUTIVO E ORGANIZATIVO NOS ASSENTAMENTOS DE REFORMA AGRÁRIA A reforma agrária não avançou, conforme visto, seja em termos quantitativos, seja qualitativos. A promessa do governo Lula de que os assentamentos seriam feitos com qualidade, em níveis nunca vistos anteriormente em nosso país, foi esquecida e relegada a eventuais discursos ou a programas pontuais. Um dos aspectos centrais que potencializam a qualidade da reforma agrária diz respeito ao formato organizativo adotado pelas famílias na organização da produção, uma vez que esse aspecto contribui para o desenvolvimento social, bem como para a distribuição mais eqüitativa dos resultados econômicos. Os assentamentos somente podem ter perspectiva de sustentabilidade com a constituição de sólidas organizações cooperativas e associativas. A política pública de RA deve, portanto, incluir entre suas ações prioritárias o estímulo à estruturação e ao fortalecimento de entidades associativas autônomas pelos trabalhadores assentados. Com a “reforma agrária de qualidade” andando a passos lentos, combinada a dificuldades legais e financeiras nas cooperativas existentes, e com políticas tímidas de organização social nos assentamentos novos, conformou-se um quadro de desestímulo à constituição de cooperativas ou outras formas associativas nas áreas reformadas. As dívidas das cooperativas antigas, desde o desmonte do programa de crédito especial para os assentados (Procera), a redução no repasse de recursos aos assentamentos e com a 142 EVOLUÇÃO RECENTE DA QUESTÃO AGRÁRIA E OS LIMITES DAS POLÍTICAS PÚBLICAS DO GOVERNO LULA PARA O MEIO RURAL lenta recuperação da cobertura e qualidade dos serviços de assistência técnica, bloquearam o surgimento de novas iniciativas de cooperação nos assentamentos. Eventuais iniciativas implantadas no período têm respondido mais à inércia de demandas espontâneas dos trabalhadores do que a uma política ofensiva dos movimentos sociais (MST em particular) ou do estímulo propiciado por eventuais políticas públicas. Dados da Confederação das Cooperativas de Reforma Agrária – CONCRAB, e dos diversos levantamentos realizados em trabalhos de pesquisa nos assentamentos, indicam que menos de 10% das famílias assentadas se vinculam a organizações econômicas associativas cooperativadas, ficando, portanto, à mercê de atravessadores, ou até mesmo isoladas dos mercados locais-regionais. Sparovek (2003:106) analisou a organização e articulação social nos assentamentos ainda no período do governo FHC. Identificou que as organizações associativas se concentram em atividades reivindicatórias voltadas a serviços e benefícios sociais (educação, saúde, estradas...). “A organização visando obter benefícios coletivos para a produção foi bem menor do que aquela observada para aspectos reivindicatórios. Parcerias visando conseguir benefícios para a comercialização e (ou) produção agrícola foram registrados em 9% dos PA’s e as parcerias ligadas a benefícios sociais ocorreram em 57% dos casos”. Schmidt et. alii. (1998) haviam encontrado dados semelhantes, em censo realizado anteriormente, em nível nacional, identificando que 52,85% dos assentados participavam de associações e 7,65% de cooperativas (índice que sobe a 30% na Região Sul). Pesquisa de Leite et allii. (2004), realizada em aglomerados regionais congregando 181 assentamentos, num total de 15.000 famílias, mostra que 20% delas adotaram sistemas mistos de produção nos lotes (parte individual e parte em cooperação), ao passo que 78% adotaram o sistema 143 ESTUDOS DE DIREITO COOPERATIVO E CIDADANIA individual-familiar. A pesquisa também identificou a presença de associações em 78% dos PAs e as cooperativas em 13%. Os dados são consistentes em mostrar que o associativismo nos assentamentos tem característica mais voltada à representação política, ainda que em certa parcela assuma condição mista, que mescla a representação com a realização de atividades econômicas. Esses dados mostram que as políticas referentes à reforma agrária em nosso país têm abordado marginalmente a organização das famílias assentadas, e contribui para explicar resultados modestos em termos de mudança socioeconômica. ANÁLISE Uma questão colocada pelo presente trabalho diz respeito ao entendimento sobre qual a lógica subjacente às políticas públicas e às alianças adotadas pelo governo Lula. Como um governo de extração popular, ancorado nas lutas históricas da classe trabalhadora brasileira e signatário de um compromisso com a reforma agrária, pode ter iniciativas tão tímidas e contraditórias em relação à questão da terra e dos assentamentos? Isso seria derivado de dificuldades que obrigaram o governo a rearranjos táticos? Ou decorre de opção estratégica? O período recente de luta pela terra mostra uma evolução importante no número de famílias acampadas. Houve lutas e pressões populares, mas os dados mostram que o governo não reagiu (ao menos não no sentido de avançar a reforma agrária). Isso confirma uma percepção existente no movimento social de que só o crescimento da luta social trará mudanças na correlação de forças na sociedade e, portanto, na realização da reforma agrária e na melhoria das condições de vida do povo. A falta de compromisso do governo Lula em relação à reforma agrária se materializa: 144 EVOLUÇÃO RECENTE DA QUESTÃO AGRÁRIA E OS LIMITES DAS POLÍTICAS PÚBLICAS DO GOVERNO LULA PARA O MEIO RURAL • no baixo número de famílias assentadas por processos de desapropriação ao longo dos três anos; • na redução dos recursos creditícios para os assentamentos; • na não-reversão do sucateamento do INCRA; • nos atrasos na liberação de recursos e na insuficiência orçamentária (contingenciamento; escassez de recursos para cumprimento das metas); • na não-constituição de um programa específico de crédito para a reforma agrária; • na resistência à inclusão das famílias acampadas no programa bolsa família;20 • na solicitação por quadros do governo para que o movimento reduzisse as ocupações de latifúndios; • no questionamento à pressão e às críticas públicas à lentidão do processo etc.; • no não-enfrentamento às restrições políticas à luta social pela RA, como a questão da MP das “invasões” • na não-revisão dos índices de produtividade (para fins de desapropriação). A reforma agrária não se viabiliza sem a constituição de áreas reformadas (territórios onde se redistribuam terras do latifúndio, e que concentrem massivamente os assentamentos e as ações de políticas públicas), sem apoio em infra-estruturas sociais e produtivas básicas, sem crédito suficiente e adequado (o que implica criar um programa especial para os assentamentos), na ausência de serviços públicos essenciais 20 Ou melhor, na falta de vontade política em adaptar esse programa às condições dos acampamentos, o que em certo sentido indica um nãoreconhecimento da cidadania dessas famílias, mas também parece sugerir uma intencionalidade em desestimular a organização e luta pela terra; 145 ESTUDOS DE DIREITO COOPERATIVO E CIDADANIA (ATER, comercialização, seguro, saúde, educação etc.) e sem o fomento e fortalecimento às organizações associativas. Essas são condições básicas para propiciar o ganho potencial representado por políticas redistributivas. Houve, no governo atual, a secundarização das políticas estruturantes, da perspectiva de mudança social, em detrimento de políticas pontuais compensatórias, para atenuar um possível sentimento de revolta popular. Fez-se uma opção por ir congelando e neutralizando as pressões do movimento social nos diversos campos enquanto, no palácio, os arranjos e acordos foram feitos com os inimigos históricos da classe trabalhadora camponesa. Apesar de o governo afirmar que a reforma agrária seria focada na qualidade – contrapondo-se ao abandono das famílias assentadas pelo governo FHC –, na prática isso não alterou a dinâmica dos novos assentamentos e muito menos dos antigos. Faltou ousadia para implementar ações inovadoras.21 Esses fatos não ocorreram de forma isolada, tendo havido inúmeras concessões aos interesses do grande capital (agronegócio), em paralelo às ações retardatórias das conquistas sociais. Isso caracteriza uma opção de não-enfrentamento estrutural da situação de miséria e pobreza rural. Um recuo político ante a correlação de forças da luta de classes na agricultura. Optou-se por não enfrentar o latifúndio atrasado, os grileiros, os capitalistas agrários que descumprem legislação trabalhista, ambiental etc. Deu-se prioridade política ao agronegócio (via crédito, aprovação de leis como a dos transgênicos, e de 21 O movimento de trabalhadores rurais apresentou demandas para que se recompusesse, p. ex., o crédito especial para famílias assentadas nos programas de reforma agrária. Um programa nesses moldes foi extinto ainda no governo FHC como parte de sua estratégia para desmontar os assentamentos como base social e econômica para o MST. A lógica adotada foi destruir o movimento social, ainda que para isso fosse necessário inviabilizar os assentamentos. 146 EVOLUÇÃO RECENTE DA QUESTÃO AGRÁRIA E OS LIMITES DAS POLÍTICAS PÚBLICAS DO GOVERNO LULA PARA O MEIO RURAL biossegurança, na renegociação e subsídio à rolagem de dívidas, na regulamentação do programa do biodiesel que favorece as iniciativas empresariais etc.). Com isso o governo Lula não consegue, p.ex., enfrentar a expansão predatória do capital na fronteira agrícola via grilagem de imensas áreas, numa dinâmica de reforço à concentração de terras, de degradação ambiental e desrespeito aos direitos sociais dos trabalhadores (assassinatos de trabalhadores, trabalho escravo, descumprimento da legislação trabalhista no meio rural etc.). Em relação ao segmento empobrecido do campesinato, optou-se pela expansão de programas de crédito como o Pronaf, que são insuficientes em termos de cobertura e volume de recursos, bem como não são adequados para enfrentar questões e distorções estruturais na propriedade da terra. Pequenos agricultores, sem-terra ou com pouca terra, na maioria das vezes situados abaixo da linha de pobreza e com produção insuficiente para sua subsistência, não melhoram de situação apenas com acesso ao Pronaf, ainda mais nos seus moldes atuais. O Pronaf é adequado ao segmento mais capitalizado de pequenos agricultores (não mais do que 1/3 do total), que têm relações regulares com o mercado, têm acesso a terras melhores ou mais bem localizadas, que conseguem produzir excedentes comercializáveis com regularidade. Ora, essa não é a realidade da maioria da população rural hoje. Para esses segmentos empobrecidos há dois tipos de políticas clássicas combinadas: reforma agrária massiva e crédito fortemente subsidiado, de forma a permitir a elevação dessas unidades produtivas a um patamar mínimo de produtividade do trabalho, de forma a gerar excedentes comercializáveis, gerando processos sustentáveis ao longo do tempo. Isso implica a discussão adicional de três elementos: a existência de assistência técnica (com remuneração e condições de trabalho 147 ESTUDOS DE DIREITO COOPERATIVO E CIDADANIA estáveis e minimamente atrativas); a adoção de tecnologias agroecológicas; e o estímulo à organização associativa desses agricultores, de forma a gerar sinergias e fomentar iniciativas autônomas de organização do processo produtivo. Contudo, quase nada disso foi implementado. Ou seja, o governo buscou aplicar uma estratégia de convivência pacífica entre os dois modelos agrícolas, o do agronegócio e da pequena agricultura (na linha “paz e amor” com a classe dominante, adotada ainda na campanha eleitoral). Essa tese, para ser admitida, teria que desconsiderar que a produção agrícola se desenvolve via controle da terra (controle direto, pela propriedade, ou indireto, pelo arrendamento), como principal fator de produção, como locus onde se materializa o processo produtivo e onde se enraízam as relações socioculturais. Portanto, no mundo real, com o crescimento do agronegócio, necessariamente levou à redução do espaço político e geográfico da Agricultura Familiar e da Reforma Agrária. Que a esperança de transformações no campo brasileiro iria se defrontar com as estruturas patrimonialistas e ditatoriais de poder que sempre se mantiveram intactas na história de nosso país (HOLLANDA, 2003) já era conhecido por qualquer militante social. Contudo, a novidade parece consistir no estabelecimento de uma aliança do governo Lula com esse setor atrasado do latifúndio e com os segmentos dinâmicos do capital agrário, que se transmutaram em uma versão modernizada e mais palatável, que agora disputa o imaginário da nação como se fosse um projeto portador de futuro para a nação: o agronegócio. Os dados apresentados demonstram que as opções de políticas agrícola e agrária adotadas pelo governo Lula trouxeram benefícios marginais (ainda que positivos) aos segmentos mais pobres da população contrabalançados por um forte apoio à expansão produtiva do agronegócio. Ao apoiar o lado “positivo” 148 EVOLUÇÃO RECENTE DA QUESTÃO AGRÁRIA E OS LIMITES DAS POLÍTICAS PÚBLICAS DO GOVERNO LULA PARA O MEIO RURAL do agronegócio, Lula desconsidera seus estreitos vínculos políticos e institucionais com estruturas seculares de opressão e destruição. Desconsidera as duas faces da moeda com a qual negocia. Suas políticas contribuíram para o fortalecimento e expansão desse modelo produtivo insustentável, num cenário em que os movimentos sociais e o movimento da cidadania vêm questionar o conjunto de políticas macroeconômicas e setoriais que o governo Lula implementa. Na visão de um amplo leque de movimentos sociais e ambientais, o que está em jogo é a consolidação de um modelo destruidor do meio ambiente e que promove a desagregação social das comunidades tradicionais e dos pequenos agricultores, acelera a concentração de terras e riqueza, promovendo a expulsão da população pobre para as favelas urbanas, contribuindo ainda mais para agravar o quadro de violência e terror enfrentado pela população das grandes cidades brasileiras. É possível identificar uma trajetória paulatina de abandono de um projeto classista de governo, rumando cada vez mais para um projeto neopopulista, sustentado na figura carismática de Lula (um novo “pai dos pobres”?) ancorado por uma política econômica que não rompe com o neoliberalismo e que assegura lucros extraordinários ao setor financeiro e às transnacionais. CONCLUSÃO O presente estudo procurou abordar a evolução recente da questão agrária no Brasil, focalizando as alianças e ações desencadeadas pelo governo Lula, buscando contribuir para identificar o eixo e o rumo dessas políticas. Identificou-se uma coerência entre um discurso político rebaixado no campo da luta de classes (“Lulinha Paz e Amor”), privilegiando opções de estabelecimento de alianças com segmentos da burguesia 149 ESTUDOS DE DIREITO COOPERATIVO E CIDADANIA agrária, com vistas a assegurar a convivência “pacífica” entre o capital e trabalho no campo e a governabilidade institucional. Essa aliança tem resultado em ganhos importantes para o agronegócio, tanto no ambiente macroeconômico como nos espaços institucionais (controle de dois ministérios importantes e regulamentação de várias leis conforme aos interesses do capital agrário), além de, num primeiro momento, frear a radicalização dos movimentos sociais e congelar as iniciativas de reforma na estrutura agrária. Até o início de 2006 essa aliança obteve resultados satisfatórios, mas indica demonstrar seu esgotamento, na medida em que fica claro para um segmento social cada vez mais amplo que as políticas compensatórias são limitadas e buscam apenas e tão-somente frear o descontentamento social com a falta de mudanças estruturais reais. Outros aspectos a se considerar são as alterações no cenário macroeconômico (supervalorização do câmbio, queda nos preços agrícolas internacionais, contradição entre as políticas de interesse do capital financeiro internacional e as do agronegócio etc.) que vêm complicar a conformação do embrião desse bloco histórico conservador. A postura dos movimentos sociais também pode interferir nesse equilíbrio delicado, ao aumentar a pressão e radicalização, conforme visualizado nas recentes mobilizações do MST e da Via Campesina que recolocam na ordem do dia o cumprimento das promessas feitas pelo governo Lula e questionam o modelo agrícola adotado no país. Mantido o cenário atual fica claro que as políticas governamentais seguirão com medidas pontuais de caráter compensatório, sem impacto relevante na quantidade e qualidade dos assentamentos, sem enfrentar o domínio oligárquico e patrimonialista do latifúndio atrasado, e colocando mais impulso na expansão do agronegócio exportador, concentrador de terra, de renda e promotor da destruição ambiental. 150 EVOLUÇÃO RECENTE DA QUESTÃO AGRÁRIA E OS LIMITES DAS POLÍTICAS PÚBLICAS DO GOVERNO LULA PARA O MEIO RURAL Esse segundo cenário irá resultar nos próximos anos em mais exclusão social, com aumento do êxodo rural e da criminalidade e miséria nas periferias urbanas. Uma situação que só não se configurará em fortes explosões sociais, caso as políticas assistencialistas compensatórias forem mantidas e ampliadas a patamares nunca vistos em nosso país, junto com aumento das ações repressivas em larga escala. Cabe agora às forças populares avançar na construção de opções estratégicas de reascenso para esse cenário tão complexo, construindo alternativas reais que possam ser colocadas em campo na disputa contra-hegemônica na sociedade. A história nos chama à responsabilidade. Atenderemos? REFERÊNCIAS 1. AGÊNCIA BRASIL. Soja empurra pecuária para área de florestas. In: Jornal Tribuna do Interior. Campo Mourão, 22/03/2005. 2. AGROANALISYS, n.7, v.25. São Paulo: Fundação Getulio Vargas, julho 2005. 3. BRANDÃO, Antonio S. P., REZENDE, Gervásio e MARQUES, Roberta W. Crescimento agrícola no período 1999-2004, explosão da área plantada com soja e meio ambiente no Brasil. Texto para discussão num. 1062. Rio de Janeiro: IPEA, janeiro de 2005. 4. BRASIL. Governo Federal. 30 meses. Prestação de contas do governo federal 2005. Disponível em: <http://www.brasil.gov.br/ prestandocontas/relatorio_30_completa.pdf>. Acesso em: 15 out. 2005. 5. _______. http://www.brasil.gov.br/ind_econ.htm. 2005b. 6. 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São Paulo: Páginas e Letras, 2003. 153 154 U M P A N O R A M A D O COOPERATIVISMO NO MOVIMENTO DOS TRABALHADORES RURAIS SEM TERRA E O CASO DA COOPROSERP Adilson Korchak* José Augusto Guterres** RESUMO: Este texto faz uma breve análise das vicissitudes da aplicação do cooperativismo dentro do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra-MST em nível nacional, para, na seqüência, focalizar um projeto cooperativista específico, que é Cooperativa de Produção e Serviços de Pitanga Ltda.- COOPROSERP, localizado no Assentamento Novo Paraíso, em Boaventura de São Roque-PR. PALAVRAS-CHAVE: Cooperativa de produção; MST; COOPROSERP. RESUMEN: Este texto hace una breve análisis de las vicisitudes de la aplicación del cooperativismo en el Movimiento de los Trabajadores Rurales Sin Tierra – MST – en el nivel nacional, para, en la secuencia, enfocar un proyecto cooperativista específico, que es la Cooperativa de Producción y Servicios de Pitanga Ltda. – COOPROSERP, ubicada en el Asentamiento Novo Paraíso, en Boaventura de São Roque-PR. PALABRAS-CLAVE: Cooperativa de producción; MST; COOPROSERP. * Acadêmico de Direito da UFPR e membro do Núcleo de Direito Cooperativo e Cidadania. ** Advogado, membro da Rede Nacional de Advogados e Advogadas Populares – RENAP, mestrando em Direito pela UFPR. 155 ESTUDOS DE DIREITO COOPERATIVO E CIDADANIA INTRODUÇÃO A fim de fortificar os laços entre teoria e prática, que devem imprescindivelmente uni-las se enxergamos no cotidiano a necessidade e no horizonte a possibilidade de câmbios estruturais na sociedade em prol de mais igualdade, dignidade e justiça, o trabalho que se apresenta faz uma breve análise das vicissitudes da aplicação do cooperativismo dentro do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra – MST em nível nacional, e posteriormente centra foco num projeto cooperativista específico, que é o da Cooperativa de Produção e Serviços de Pitanga Ltda. – COOPROSERP, localizado no Assentamento Novo Paraíso, em Boaventura de São Roque-PR. Com isso, não há a intenção de tomá-lo como modelo, nem de apresentá-lo como generalização dos demais projetos de cooperação do Movimento; ao contrário, há o reconhecimento de que se trata de um fenômeno bastante particular, num universo em que grassam experiências plurais em que se abre um enorme leque quanto às formas de funcionamento, e em que, não obstante, o insucesso infelizmente não é raridade. Daí a importância de, em certo momento, ultrapassar a análise em macroescala da história e das tendências do cooperativismo no MST, a partir do aprofundamento em realidades específicas, destacando as causas do êxito deste ou daquele projeto, sem, contudo, omitir-se perante erros e contradições que mereçam uma crítica radical. Esta é a contribuição teórica possível e somente a partir dela se dará a concreta superação e fortalecimento de um sistema alternativo à acumulação e exploração capitalistas. 1 O MST E O COOPERATIVISMO Antes de tudo, é mister elucidar a visão aqui adotada com relação ao Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra – 156 UM PANORAMA DO COOPERATIVISMO NO MOVIMENTO DOS TRABALHADORES RURAIS SEM TERRA E O CASO DA COOPROSERP MST, tendo por assentada a completa impossibilidade de uma investigação científica “neutra”, “imparcial”. De outra banda, claro está que não se pode academicamente lançar-se numa cega e acrítica exaltação de determinado projeto político, donde se conclui pela necessidade de manter um elevado grau de objetividade. O que se quer ressaltar, enfim, é a necessidade de coerência e honestidade ao deixar transparecer sem melindres o posicionamento político que perpassa este trabalho, engajado que é a um projeto de transformação social contra a exploração humana, sem esconder-se sob uma falsa capa de cientificismo.1 Neste sentido, demonstrando que a adesão e a construção teórica a respeito de um projeto político popular não se dá aleatoriamente e de forma inconseqüente, cabe aludir que diante de tamanha concentração de terras e marginalização social durante seus quinhentos e poucos anos, a luta pela terra no Brasil só poderia ter exatamente a sua idade.2 Contudo, é da segunda metade do século passado para cá que os movimentos camponeses vêm se articulando de forma mais organizada e com mais clareza de seus objetivos, sendo que o central é a reforma agrária.3 1 Paulo Freire apresenta uma passagem interessante sobre a pretensão de neutralidade do homem frente a sua realidade: “(...) A neutralidade frente ao mundo, frente ao histórico, frente aos valores, reflete apenas o medo que se tem de revelar o compromisso. Este medo quase sempre resulta de um ‘compromisso’ contra os homens, contra sua humanização, por parte dos que se dizem neutros. Estão ‘comprometidos’ consigo mesmos, com seus interesses ou com os interesses dos grupos aos quais pertencem. E como este não é um compromisso verdadeiro, assumem a neutralidade impossível”. (FREIRE, Paulo. Educação e mudança. p. 19.) 2 Para iniciar o estudo sobre essa temática, vale conferir: MORISSAWA, Mitsue. A luta pela terra e o MST. 2.ed. São Paulo: Expressão Popular, 2006. E para um estudo mais detido sobre a histórica exclusão do direito à terra no Brasil: STEDILLE, João Pedro. (Org.). A questão agrária no Brasil. v.5. São Paulo: Expressão Popular, 2005. 3 Sobre o amadurecimento da luta camponesa no Brasil: MOURA, Clóvis. Sociologia política da guerra camponesa de Canudos: da destruição do Belo Monte ao aparecimento do MST. São Paulo: Expressão Popular, 2000. 157 ESTUDOS DE DIREITO COOPERATIVO E CIDADANIA Precede o estudo do histórico e dos rumos do cooperativismo no MST a sua contextualização e a elucidação de sua legitimidade. Em suma, trata-se de um movimento social que visa pressionar o Estado a implementar as políticas públicas que ele mesmo se propõe. Com efeito, a Constituição Federal prevê que é livre a associação de pessoas para fins pacíficos, sendo o MST, portanto, um movimento legítimo de denúncia da desigualdade social e de reivindicação de direitos fundamentais já positivados na Constituição Federal, como a igualdade e a dignidade. Entre as políticas públicas reivindicadas, como dito, figura a reforma agrária, mas se podem elencar também as que se referem ao meio ambiente equilibrado, à soberania alimentar, às relações equânimes entre os gêneros, e outros tantos, sempre com vistas à dignidade humana. Prova da legalidade e da legitimidade do MST são os constantes diálogos mantidos entre este movimento e o Poder Público, em todas as suas esferas e em todo o território nacional, sendo pacífico este entendimento inclusive no Poder Judiciário.4 Já quanto à origem e formação das cooperativas de trabalhadores rurais, cabe aludir que, assim como a luta pela terra, elas são fruto da extrema desigualdade social historicamente vigente no Brasil, cujos sucessivos governos, ao não cumprirem o seu papel de erradicar a pobreza no país, deixam apenas duas opções a seu povo: viver na marginalidade ou se organizar para reivindicar e promover seus direitos. A formação de cooperativas por trabalhadores rurais inicialmente excluídos do direito à terra transparece a tomada da segunda opção por 4 Neste sentido, é emblemática a seguinte decisão, entre outras tantas exaradas Brasil afora: “Movimento Popular visando a implantar a reforma agrária não caracteriza crime contra o Patrimônio. Configura direito coletivo, expressão da cidadania, visando a implantar programa constante da Constituição da República. A pressão popular é própria do Estado Democrático de Direito” (STJ. HC n.º 5.574/SP. Rel. Min. William Patterson) (grifamos). 158 UM PANORAMA DO COOPERATIVISMO NO MOVIMENTO DOS TRABALHADORES RURAIS SEM TERRA E O CASO DA COOPROSERP seus integrantes, inseridos então numa nova fase de sua luta, que é a de se sustentar a partir da terra conquistada. Assim, no início da década de 1990 se começa a construir dentro do MST o “Sistema Cooperativista dos Assentados – SCA” (explicado com mais detalhes adiante), no intuito de se avançar com a cooperação agrícola. Defendia-se que as Cooperativas de Produção Agropecuária – CPAs, um dos tipos principais de cooperativas dentro do Movimento, seriam uma etapa superior da organização coletiva da terra, do trabalho e do capital. 1.1 AS PRIMEIRAS COOPERATIVAS E A NOVA LINHA DE COMBATE Após os primeiros anos de sua fundação, no início dos anos 1980, logo se percebeu no MST que não somente a conquista da terra deveria ser alcançada mediante a cooperação, mas também haveria de superar-se a cultura individualista do camponês no momento da produção, uma vez que esta se constitui na única saída possível para a classe explorada, para que sua luta não seja em vão. Em outras palavras, percebeu-se que seria insuficiente a simples obtenção de lotes individuais para os integrantes do MST, uma vez que assim não possuem condições de concorrer no mercado em igualdade de condições com os demais produtores. Daí é que surge no V Encontro Nacional o lema “Ocupar, Resistir, Produzir”, fazendo alusão às primeiras cooperativas ligadas ao MST que estavam nascendo, sobretudo no ramo de cooperação Agropecuária (CPAs).5 Estas, 5 “As CPAs foram implantadas como experiência de cooperação no MST a partir de 1989, e despontam como uma forma superior de organização da produção. Na verdade, uma CPA não se diferencia muito de um grupo coletivo ou de uma associação coletiva na sua essência, e muito menos na sua constituição. O que difere é a personalidade jurídica porque ao ser registrada como uma empresa cooperativista será regida pela legislação cooperativista brasileira”. (CERIOLI, Paulo; MARTINS, Adalberto. Caderno de cooperação n.º 5: sistema cooperativista dos assentados. p. 70.) 159 ESTUDOS DE DIREITO COOPERATIVO E CIDADANIA entretanto, por uma série de razões, principalmente por demandarem grandes estruturas numa fase em que ainda não se tinha a experiência necessária para lidar com elas, em poucos anos entraram numa fase de graves crises:6 No mesmo ano de 1993, começou o período da Crise. Uns passaram a acreditar que o SCA tinha sido um equívoco; outros afirmam que é uma crise de crescimento. As CPAs passam por profundas rupturas, dividem-se. O desafio é para onde e como avançar. Assim constatou-se um dos grandes limites: a administração. Como resposta é criado o Curso Técnico em Administração de Cooperativas (TAC). Em junho de 1993 inicia-se a primeira turma. Em meados de 1990, então, começou-se a apontar como caminho para sair das primeiras crises do cooperativismo no MST a criação das Cooperativas de Prestação de Serviços – CPS’s e Cooperativas de Prestações de Serviços Regionais – CPSR’s,7 que foram impulsionadas pela liberação de recursos federais para estruturação dos Assentamentos e Cooperativas da Reforma Agrária, em especial o “Teto II”, que, por sua vez, 6 Para um estudo mais detalhado sobre os debates e surgimento das cooperativas no MST, assim como as contínuas necessidades de reformulação de sua estrutura e articulação, com descrição dos principais eventos e documentos sobre o tema, verificar: CERIOLI, P.; MARTINS, A. Obra citada. p.28-34. 7 “(...) a Cooperativa de Prestação de Serviços (CPS) dedica-se basicamente à comercialização (organizar o processo de compra e venda de insumos, da produção e de bens de consumo para os associados), da assistência técnica, do serviço de máquinas, da formação política e da capacitação técnica, da organização da produção (definição da estratégia de desenvolvimento da região, definição de linhas de produção), da implantação de unidades de processamento (...) para beneficiar a produção dos assentados”. As CPSR’s, por sua vez, têm a mesma competência, porém envolvem vários assentamentos, em vários municípios (...). (CERIOLI, P.; MARTINS, A. Obra citada. p.67.) Outra principal forma de cooperativa de assentados da reforma agrária é a Cooperativa de Produção e Prestação de Serviços – CPPS. 160 UM PANORAMA DO COOPERATIVISMO NO MOVIMENTO DOS TRABALHADORES RURAIS SEM TERRA E O CASO DA COOPROSERP foi uma conquista dos movimentos populares do campo para que os assentados da reforma agrária, junto com a terra, recebessem também algum subsídio inicial. Isso coincidiu, naquele momento, com um alargamento da discussão que ocorria dentro do Movimento, a respeito da necessidade do cooperativismo como instrumental de seu projeto político de Reforma Agrária e construção de um novo tipo de sociedade. Veja-se, por exemplo, que: Em dezembro de 1994 aconteceu o Seminário Nacional sobre “A perspectiva da cooperação no MST”, baseado nos textos preparatórios “A crise nas CPAs e coletivos”. No mesmo mês sai o texto “Perspectivas da Cooperação no MST”. O SCA avançou no entendimento das seguintes questões: a) O que massifica a cooperação nos assentamentos são as formas não produtivas (prestação de serviços). b) As CPAs continuam sendo a forma superior de organização e estratégicas para o MST e portanto devem ser constituídas em condições muito bem definidas. Apesar disto elas não massificam a cooperação. c) O que determina a possibilidade não é mais o tamanho do lote (terra) e sim a sua localização, modelo tecnológico, volume de capital e mercado. Enfim, o que orienta e organiza a cooperação é o capital e não a terra. d) A introdução de agroindústrias nos assentamentos é estratégico para o desenvolvimento econômico dos assentamentos e de todo o interior do país, envolvendo a juventude e agregando valor à mercadoria produzida. e) Não haverá desenvolvimento autônomo nos assentamentos sem a presença do Estado, e neste caso, de um Estado controlado e dirigido pela classe trabalhadora. O Estado desempenhará um papel indutor da cooperação, via crédito, assistência técnica e pesquisa. f) Está descartada a possibilidade da “acumulação primitiva” de capital nos assentamentos, determinando aos assentamentos 161 ESTUDOS DE DIREITO COOPERATIVO E CIDADANIA a necessidade de disputar através da luta política a mais valia social.8 Investiu-se, assim, um considerável montante de recursos e energia dos militantes na criação e no desenvolvimento desse tipo de cooperativas (CPSs). Por meio delas, intentava-se massificar a cooperação dentro do Movimento, em busca de uma superação dos limites de envolvimento das famílias assentadas tanto na produção coletiva quanto na comercialização. Posteriormente, viu-se que o alcance de tais objetivos é ainda muito mais complexo, e essas primeiras cooperativas também vieram a mostrar várias deficiências e limitações. De qualquer maneira, não se pode negar que houve muitos avanços com as cooperativas regionais. Foi sensível a melhora nas estruturas dos assentamentos, o que permitiu um reforço nas ações do Movimento, consistindo, portanto, num passo importante e, via de conseqüência, num grande susto para a elite agrária brasileira, vez que o número de ocupações de latifúndios deu um grande salto, espalhando-se por todos os cantos do país. A resposta imediata implicou a sofisticação da luta pela terra, visto que, além de os conflitos no campo se acirrarem, foi a partir daí que as forças políticas contrárias à reforma agrária passaram a estudar o MST com mais diligência, montando estratégias e táticas mais organizadas na tentativa de frear seu crescimento e avanço. É nesse período que se inicia uma campanha difamatória às iniciativas de organização de pessoas jurídicas aliadas ao MST, como associações e cooperativas. Nem por isso, contudo, o Movimento deixou de fortalecer-se a cada ocupação realizada, mobilização, encontro, aliança com outros movimentos sociais e, 8 CERIOLI, P.; MARTINS, A. Obra citada. p. 33-34. 162 UM PANORAMA DO COOPERATIVISMO NO MOVIMENTO DOS TRABALHADORES RURAIS SEM TERRA E O CASO DA COOPROSERP principalmente, qualificação de seu quadro de militantes. Era bastante visível na prática, enfim, a relação dialética da luta de classes, em que cada pólo respondia imediatamente à investida do outro. Como, aliás, continua ocorrendo. Na linha de atacar as pessoas jurídicas do Movimento, visando minar sua sustentabilidade, delinearam-se duas formas principais, quais sejam, o uso intensivo dos meios de comunicação hegemônicos na tentativa de denegrir ou desgastar a imagem de dirigentes e do próprio MST, bem como a utilização de subterfúgios jurídicos visando obstar transferências de recursos públicos aos assentamentos e entidades jurídicas. Cumpre mencionar que ambas se perpetuam como práticas comuns, sem perspectiva de cessar, uma vez que tanto o campo midiático como o jurídico, da institucionalidade, da burocracia, são exatamente onde melhor transitam os inimigos da reforma agrária. No caso da mídia, porque é notória a absoluta falta de democratização de seus veículos, que, não obstante se tratem de concessões públicas, são claramente utilizados em prol de interesses privados e estão concentrados nas mãos de poucas famílias ou grupos empresariais brasileiros, altamente influentes no cenário político do país, com o agravante de possuírem estreitíssimas relações com o capital internacional. No caso da legalidade, porque o maior papel do Direito no Estado Moderno é garantir o funcionamento e a fluidez do sistema econômico fundado na propriedade privada e “livre” circulação de mercadorias,9 de modo que quem mantém seus privilégios 9 Não se pretende com tal afirmação uma defesa de um modelo determinista de estruturação social em que o Direito se mostra tão somente como resultado da base econômica. Pelo contrário, dentro mesmo do pensamento marxista, na esteira de István Mészáros, por exemplo, reconhece-se que “os vários fatores legais não são unilateralmente determinados pela base material, mas agem também como determinantes poderosos no sistema global de interações complexas”. Desconstruir, contudo, a “ilusão jurídica” é tarefa de 163 ESTUDOS DE DIREITO COOPERATIVO E CIDADANIA graças ao lucro gerado dentro deste sistema dispõe, por óbvio, do instrumental político-jurídico para fazer o embate dentro dele. Como se vê, portanto, trata-se de uma luta em que definitivamente não há equivalência de armas. Com o paulatino corte dos recursos inicialmente aportados, sentiu-se, logo em seguida, uma diminuição da força do Movimento, que naquele momento não dispunha ainda de uma capacidade técnica e organizativa capaz de dar conta dos problemas que se foram apresentando. Com efeito, pairava entre os dirigentes, principalmente os do setor de produção, um certo comodismo, uma sensação de que aquelas conquistas de investimentos públicos tinham vindo para ficar. Hoje se pode arriscar a dizer que, até certo ponto, houve ingenuidade, ou subestimação das forças da elite agrária brasileira. De qualquer modo, o fato é que a conquista política de projetos, contratos e convênios com o poder público não foi acompanhada de uma adequada estruturação do setor de produção e formação de um quadro técnico-militante suficientemente apto a suprir as necessidades que iam se acumulando. Recordando que em nível federal essa época (governo de Fernando Henrique Cardoso) foi também marcada pela política governamental de repressão policial e militar aos movimentos sociais, com claro aval dos meios de comunicação, o MST foi alvo de um desgaste político bastante grande, de modo que se tornava ainda mais nebulosa a saída para a crise financeira que se instalava. Assim, de modo geral, muitas caráter urgente: “A rejeição marxiana da ‘ilusão jurídica, segundo a qual ‘a lei se baseia na vontade, e, de fato, na vontade divorciada de sua base real – na vontade livre’, atende ao objetivo de identificar a natureza real do sistema jurídico, precisamente no sentido de compreender e, em última análise, controlar as determinações reais que emergem do próprio sistema jurídico e afetam as atividades de todos os indivíduos”. (MÉSZÁROS, István. Filosofia, ideologia e ciência social. p. 208-209.) 164 UM PANORAMA DO COOPERATIVISMO NO MOVIMENTO DOS TRABALHADORES RURAIS SEM TERRA E O CASO DA COOPROSERP cooperativas acabaram fechando ou se desfazendo de parte de suas estruturas para que pudessem liquidar dívidas, diminuindo sensivelmente sua atuação. Um outro problema que se instalou nesta fase de crescimento das CPSs e CPRSs, é que não raramente passou a haver uma confusão entre cooperativas regionais e Secretarias do MST: várias estruturas de cooperativas estavam também a serviço do trabalho de base, implicando uma sobreposição às atividades do próprio Movimento. Isso gerou problemas para as instâncias de coordenação e direção do MST, na medida em que cada região, a partir das estruturas das cooperativas, vinha passando a atuar de forma desvinculada do todo da organização, indo, portanto, de encontro ao princípio de Unidade que vigora no Movimento, que é um dos principais motivos de sua força. Tal problema se mostrava decorrente do raciocínio de que quanto mais recursos cada região individualmente conseguisse captar, mais crescimento e desenvolvimento haveria de suas estruturas, o que deveria refletir, conseqüentemente, no avanço dos objetivos do MST. Ocorre, porém, que isso definitivamente não contempla seus objetivos, na medida em que sem a indispensável unidade e direcionamento político das cooperativas, que só o movimento social é capaz de proporcionar, acaba-se por simplesmente reproduzir em cada assentamento a lógica mercantil do sistema agrícola hegemônico, historicamente excludente e alicerçado na “revolução verde”,10 totalmente contrário, portanto, à matriz agroecológica e camponesa difundida pelo MST. 11 10 Trata-se da implementação de novas técnicas estrangeiras na agricultura a partir dos anos 1950, em grande parte adaptações de tecnologias de guerra (exemplos: agroquímicos e tratores, oriundos, respectivamente, de armas químicas, como o Napalm, desenvolvido pela empresa Monsanto, e 165 ESTUDOS DE DIREITO COOPERATIVO E CIDADANIA 1.2 EM BUSCA DO APERFEIÇOAMENTO DO SISTEMA COOPERATIVISTA DOS ASSENTADOS Visando à solução para médio e longo prazo dos problemas de capacitação de militantes para trabalhar com o SCA, foram sendo abertas turmas específicas para eles em especialidades pertinentes às necessidades da realidade: tanques de guerra); tal implementação, que em sua quase totalidade se mantém, tinha por base o latifúndio e a monocultura, de modo a manter a estrutura fundiária do país, visando a produção em larga escala de comodities para exportação. Efeitos imediatos foram o êxodo rural e os conseqüentes problemas sociais das grandes metrópoles, a lastimável perda de saberes culturais de camponeses e povos tradicionais, assim como a absoluta dependência dos “pacotes tecnológicos” de grandes corporações internacionais, cujo controle sobre a alimentação e saúde da população mundial é cada vez maior. San Martin observa que não é à toa que o auge da “revolução verde” no Brasil coincide com a ditadura militar, e com profunda indignação constata a respeito das migrações que então se intensificaram como nunca: “É a mesma imagem estampada no desespero do garoto com malária nos confins de Rondônia, do bóia-fria desgraçado nas quebradas do Paraná, do pedreiro ex-sitiante no coração de São Paulo, ou do que seja: é a imagem e o resultado disso que o conluio das elites, que a demência tecnocrática chamou um dia de ‘modernização’ da agricultura brasileira”. (SAN MARTIN, Paulo. Agricultura suicida: um retrato do modelo brasileiro. p. 12.) 11 A proposta é o desenvolvimento da agricultura familiar com ênfase na aplicação de técnicas agroecológicas, de modo a possibilitar a subsistência e a permanência das famílias no campo, assim como o menor impacto ambiental possível – na medida em que o uso de agrotóxicos é incrivelmente diminuído, senão extirpado, e a manutenção da biodiversidade se constitui numa peçachave, tanto quanto a autonomia frente às empresas de insumos agrícolas e a solidariedade entre os camponeses. Desta forma as famílias fixam-se na área rural e produzem alimentos em primeiro lugar para si próprias, ou seja, não passam a integrar as fileiras de miseráveis que superlotam as grandes cidades brasileiras; o excedente, produzido de modo ecologicamente correto e inegavelmente mais saudável do que os produtos convencionais, é comercializado a preços justos para a população local, por canais de economia solidária. Muito embora isso não gere vultuosas rendas às famílias e ao poder público, este modelo consegue resolver uma série de problemas sociais e ambientais que afligem praticamente todo o mundo contemporâneo, os quais sem uma reforma estrutural se configuram em problemas absolutamente insolúveis. Para aprofundamento deste assunto: SHIVA, Vandana. Biopirataria: a pilhagem da natureza e do conhecimento. Petrópolis: Vozes, 2001. GUTERRES, Ivani. Agroecologia militante: contribuições de Enio Guterres. São Paulo: Expressão Popular, 2006. 166 UM PANORAMA DO COOPERATIVISMO NO MOVIMENTO DOS TRABALHADORES RURAIS SEM TERRA E O CASO DA COOPROSERP (...) em janeiro de 1995 é fundado o Instituto Técnico de Capacitação e Pesquisa da Reforma Agrária, ITERRA, em Veranópolis, RS, e nele a Escola Josué de Castro. A sua finalidade era assumir o curso TAC e o Magistério em vista de formar militantes e técnicos para o MST e também para a capacitação da mão-de-obra na área de agroindústria. Em 1996, o SCA inicia o debate sobre a massificação da cooperação no crédito. Definiu-se por acompanhar a Cooperativa de Crédito já constituída em Cantagalo, PR (CREDITAR). São feitas discussões em Sarandí, RS, para a constituição de uma segunda (CRENHOR).12 E, a fim de resolver os problemas internos de desmobilização, bem como articular uma defesa aos ataques proferidos pela elite agrária, a partir de muito estudo e debate, começou a ser construída no MST uma nova forma de organicidade, da qual não cabe a este breve trabalho se ocupar, mas que a ele cumpre pelo menos registrar seu caráter eminentemente democrático-participativo, em que as decisões são encaminhadas sempre de forma coletiva e sem hierarquizações, contemplando as discussões feitas desde a base dos acampamentos e assentamentos, assim como garantindo a equanimidade das relações entre os gêneros.13 Na esteira dessa nova organicidade do MST, que vinha sendo debatida havia bastante tempo, cuja implantação foi definida como linha política no IV Congresso Nacional do MST, em 2000, e que constantemente vem sendo rediscutida, convém focalizar o modo como vem sendo trabalhado o cooperativismo em suas instâncias. No II Seminário Nacional sobre as perspectivas da Cooperação no MST, em 1997, houve, então, o 12 CERIOLI, P.; MARTINS, A. Obra citada. p. 34. 13 Sobre a atual organicidade do MST: BOGO, Ademar (Org.). Método de trabalho e organização popular. São Paulo: ANCA, 2005. 167 ESTUDOS DE DIREITO COOPERATIVO E CIDADANIA redimensionamento do SCA, a partir de reflexões acerca de seu papel dentro do Movimento. Dessarte, o que até determinado período se denominava “Setor de Produção”, passou a ser o “Sistema Cooperativista dos Assentados”, com uma mudança que vai muito além de uma nova roupagem, atribuindo-lhe objetivos táticos e estratégicos bem definidos, e com a clareza de ser um instrumento do Movimento, sem se confundir com ele e respeitando seus princípios. Demais disso, assim como cada uma das cooperativas ligadas ao Movimento, foi imbuído do dúplice caráter de ser um “elemento Político” e, ao mesmo tempo, uma “Empresa Econômica”, vez que deve, por um lado, atuar na conscientização e politização da base, mobilizando-a e articulando-a para as lutas políticas e econômicas, e, por outro, visar a organização da produção, o crescimento econômico, o desenvolvimento, e a melhoria da qualidade de vida dos assentados. “Enfim, as cooperativas devem colocar à disposição da luta a sua infraestrutura, recursos e pessoal para a mobilização e luta política em vista da reforma agrária e da transformação da sociedade. E, ao mesmo tempo, não se descuidar dos aspectos produtivos, administrativos e gerenciais em vista de uma boa eficiência econômica”.14 Portanto, contribuindo para a construção e implementação da estratégia do MST, o SCA é o setor responsável por: “estimular e massificar a Cooperação Agrícola dentro dos Assentamentos, em suas várias formas, integrando neste processo os assentados individuais”; assim como pela “organização de base dos assentados, pela organização da produção, da tecnologia, da transformação ou agroindústria, pela boa aplicação do crédito rural, pela comercialização e, 14 CERIOLI, P.; MARTINS, A. Obra citada. p. 12. 168 UM PANORAMA DO COOPERATIVISMO NO MOVIMENTO DOS TRABALHADORES RURAIS SEM TERRA E O CASO DA COOPROSERP também, pela mobilização social dos assentados frente à política agrícola do governo, à política econômica, e pelas condições básicas dos assentamentos”.15 Vale frisar que tais objetivos são decorrentes de uma visão muito particular do cooperativismo pelo MST, desde um ponto de vista contra-hegemônico, como se vê a seguir: Os assentados devem buscar uma cooperação que traga desenvolvimento econômico e social, desenvolvendo valores humanistas e socialistas. A cooperação que buscamos deve estar vinculada a um projeto estratégico, que vise a mudança da sociedade. Para isto deve organizar os trabalhadores, preparar e liberar quadros, ser massiva, de luta e de resistência ao capitalismo. Para nós a cooperação não é vista apenas pelos objetivos sóciopolíticos, organizativos e econômicos que ela proporciona. Ela é, para nós, uma ferramenta de luta, na medida em que ela contribui com a organização dos assentados em núcleos de base, a liberação de militantes, a liberação de pessoas para a luta econômica e, principalmente, para a luta política.16 Por seu caráter popular e contra-hegemônico, vê-se que o MST afirma seu cooperativismo como sendo de oposição diante da política econômica neoliberal e, via de conseqüência, do cooperativismo tradicional. Quanto à primeira, porque tem consciência da impossibilidade de uma Reforma Agrária efetiva dentro do atual modelo econômico: “É inconcebível o resgate da dignidade dos sem-terra e do povo trabalhador dentro da sociedade capitalista, pois ela sobrevive da exclusão do povo trabalhador, para concentrar o capital (terra e renda) nas mãos de alguns”.17 E quanto cooperativismo tradicional, porque 15 CERIOLI, P; MARTINS, A. Idem. p. 9. 16 CERIOLI, P.; MARTINS, A. Idem. p. 22. 17 CERIOLI, P.; MARTINS, A. Idem. p. 11. 169 ESTUDOS DE DIREITO COOPERATIVO E CIDADANIA inserido na mesma lógica mercantil e totalizante das grandes empresas do agronegócio, buscando suprimir as iniciativas autônomas de trabalhadores rurais, seja mediante sua cooptação, seja sua destruição. O cooperativismo tradicional está vinculado, nos estados, às OCEs e, no país, à Organização das Cooperativas do Brasil (OCB), que se propõe a ser a única representante de todas as cooperativas. Somos oposição a este modelo. O cooperativismo que nos propomos a construir defende a autonomia de organização e representação. O desafio é construir o próprio modelo do MST: que abarque as diferenças regionais, que aponte um modelo tecnológico alternativo. Reconhecemos a Confederação das Cooperativas de Reforma Agrária do Brasil Ltda. (CONCRAB) como a representante de todos os segmentos de cooperativas e demais unidades de produção em áreas de Reforma Agrária.18 Finalmente, é interessante observar como o Sistema Cooperativista dos Assentados se posiciona ante a tarefa histórica que lhe é proposta pelo MST, sistematizando, diante disso, seus objetivos sociopolíticos da seguinte maneira: a) Ser uma forma de resistência ao capitalismo: não ter a ilusão de que organizando economicamente os assentamentos conseguiremos nos libertar da exploração capitalista, por isto devemos continuar lutando. b) Vincular-se a um projeto estratégico de mudança da sociedade, e, portanto, de luta. c) Transformar a luta econômica em luta política e ideológica. d) Provar que a reforma agrária é viável, não só do ponto de vista da justiça social, mas também do ponto de vista do desenvolvimento econômico. 18 CERIOLI, P.; MARTINS, A. Ibidem. 170 UM PANORAMA DO COOPERATIVISMO NO MOVIMENTO DOS TRABALHADORES RURAIS SEM TERRA E O CASO DA COOPROSERP e) Servir de exemplo, de propaganda e de alianças na sociedade para que se unam na luta pela reforma agrária. f) Aumentar o poder de barganha e pressão dos assentados diante do Governo. g) Acumular forças para a transformação da sociedade. h) Criar melhores condições de vida para as famílias assentadas: habitação, luz elétrica, saúde, educação, cultura, e sempre ir melhorando. i) Formar e capacitar quadros políticos e técnicos para o MST e para o conjunto da luta dos trabalhadores. j) Contribuir para a construção do Homem Novo e da Mulher Nova. Pessoas responsáveis, politizados, culturalmente desenvolvidos, solidários e fraternos uns com os outros.19 Alimentando, portanto, a esperança de que a transformação é possível, visto que demonstra isso em seu dia-dia, e qualificando o quadro de militantes do MST, não apenas em nível técnico, mas também ético e moral, possibilitando-lhes o que Gramsci chamaria de “catarse”, ou seja, a sublimação dos interesses econômicos imediatos do camponês para seu engajamento na realização concreta de uma utopia coletiva, o SCA se mostra como uma ferramenta cada vez mais imprescindível não apenas na modificação das instâncias objetivas da realidade, como o trabalho e o consumo, mas também na vivência de novos valores pelos assentados e associados, travando uma importantíssima disputa, então, onde o capitalismo finca raízes das mais poderosas, vale dizer, na subjetividade humana. Salientando as ressalvas tecidas na Introdução, o ponto seguinte visa trazer à lume uma entre tantas experiências que ocorreram no contexto esboçado até aqui. Reconhecendo uma 19 CERIOLI, P.; MARTINS, A. Idem. p. 13. 171 ESTUDOS DE DIREITO COOPERATIVO E CIDADANIA vez mais que se trata de um caso bastante particular, sem necessária semelhança com outros Brasil afora, é preciso, contudo, anunciar que a escolha não foi feita de forma totalmente casual, na medida em que se está falando da primeira CPA do país, cuja história foi acompanhada de perto – por estar presente desde os primeiros acampamentos, da infância até os dias de hoje – pelo primeiro autor anunciado no cabeçalho deste texto. 2 O ASSENTAMENTO NOVO PARAÍSO E A COOPROSERP 2.1 HISTÓRICO DO ASSENTAMENTO O MST do Paraná, com a intenção de organizar a produção de forma coletiva nos assentamentos de Reforma Agrária, passou a forjar, em 1989, a possibilidade de realização das primeiras experiências de organização de Cooperativas de Produção Agropecuária – CPAs. Assim, naquele ano surgiu o primeiro laboratório experimental no Assentamento Santo Rei em Nova Cantu, o que consistia basicamente num curso cujo objetivo era oferecer treinamento sobre agricultura aos participantes, visando especialmente à organização da produção de forma coletiva, na tentativa de conhecer e difundir as vantagens obtidas na produção, no trabalho e na vida social das famílias que estivessem organizadas em uma CPA. Integrando esse laboratório estavam várias lideranças de acampamentos, os quais tinham a incumbência de levar até suas bases a proposta da formação de CPAs. Fruto desse primeiro laboratório, então, a Cooperativa de Produção e Serviços de Pitanga Ltda. (COOPROSERP) foi fundada em 24 de agosto de 1989, originalmente formada por dois grupos: o primeiro, de 27 famílias acampadas na Fazenda Pinheiro, no município de Inácio Martins-PR; o segundo, 172 UM PANORAMA DO COOPERATIVISMO NO MOVIMENTO DOS TRABALHADORES RURAIS SEM TERRA E O CASO DA COOPROSERP de 15 famílias acampadas na Fazenda Cavaco II, no município de Cantagalo-PR. Cabe mencionar, porém, que além do laboratório, outros fatores também contribuíram para que os grupos mencionados se lançassem com dedicação na proposta estudada e vivenciada no laboratório. Isso porque as áreas que as famílias ocupavam, segundo o INCRA, provavelmente seriam insuficientes para assentar todas as famílias acampadas, fomentando ainda mais a necessidade de cooperação, visto que lotes individuais não poderiam ser disponibilizados em tamanho suficiente a cada uma delas. Além disso, pouco antes da organização do laboratório, o MST do Paraná já havia definido uma área a ser ocupada pelas famílias que optassem por organizar uma CPA, onde se pretendia criar o primeiro modelo de cooperativas para todo o país. As terras deste futuro assentamento eram devolutas e de domínio do Estado, contudo vinham sendo literalmente saqueadas sob a batuta do então deputado federal Otto Cunha, que, por ter uma propriedade de 96 hectares no meio daquela área, outorgava-se o direito de explorar o potencial madeireiro dos 976 hectares circundantes. Na época havia grandes dúvidas dentro do Movimento acerca da viabilidade de destinação dessas terras para Reforma Agrária. Não obstante, como se vê no item seguinte, a luta por elas valeu a pena. Os pioneiros da região contam que se tratava de uma área de muita riqueza natural, em que se encontrava uma grande diversidade de árvores, como o pinheiro araucária, a imbúia, o angico, entre outras. Prova disso é a existência de uma cerraria naquela área, que infelizmente contribuiu para que o solo se tornasse fraco e desprotegido. A intenção, no fim das contas, era construir um assentamento que servisse de experiência e modelo para o MST; a proposta da coletivização já tinha um certo avanço, 173 ESTUDOS DE DIREITO COOPERATIVO E CIDADANIA sendo que o grupo vindo da Fazenda Cavaco II já desenvolvia o trabalho de lavoura coletiva há dois anos, o que reforçava a idéia de construir passo a passo o “assentamento dos sonhos”, juntando as forças das famílias. 2.2 UM POUCO MAIS SOBRE A OCUPAÇÃO E IMPLANTAÇÃO DO ASSENTAMENTO Apesar das dúvidas iniciais, decidiu-se pela necessidade de ocupação daquele (ex) latifúndio conhecido como Fazenda Cunha, que ocorreu no dia 19 de agosto de 1989,20 com a vinda das famílias Sem Terra da Fazenda Pinheiro, município de Inácio Martins, e, dois meses depois, das famílias acampadas na Fazenda Cavaco II, município de Cantagalo. A criação do assentamento, porém, como se esperava, não foi tão simples. Seu processo de legalização, que foi realizado de uma forma bastante peculiar, sem passar para o domínio do INCRA, começou a caminhar somente a partir de 1992, de modo que até então as famílias passaram por intensas dificuldades, dado que não havia liberação de qualquer recurso para o acampamento. Além disso, eram freqüentes as ameaças de despejo, as condições de moradia nos barracos eram péssimas, e como se isso tudo não bastasse, o acampamento enfrentava uma séria escassez de alimentos. A partir de 1992, com a perspectiva de legalização do assentamento, alguns benefícios foram conseguidos para os acampados, por meio de projetos específicos, como o que foi elaborado e assinado pela Igreja Católica local, para empréstimo visando à compra de nove vacas leiteiras, com a finalidade de 20 A Cooproserp, portanto, foi fundada apenas cinco dias depois, conforme registra sua primeira Ata. 174 UM PANORAMA DO COOPERATIVISMO NO MOVIMENTO DOS TRABALHADORES RURAIS SEM TERRA E O CASO DA COOPROSERP obter leite como fonte de alimento para consumo. Nesse mesmo período, apesar das dificuldades, a discussão sobre a cooperativa vinha avançando: decidiu-se pela organização do sistema de moradia em agrovila, mesmo enquanto só havia barracos de lona; foi construído um refeitório comunitário e uma ciranda infantil, para educação das crianças e para liberação das mulheres para que participassem das atividades da cooperativa. Com isso, a CPA ia aos poucos tomando forma, inclusive mediante a divisão de setores de trabalho, entre os quais: de lavoura, pecuária, serviços, lazer etc. A partir daí, também se estabeleceu entre as famílias acampadas uma jornada de trabalho de oito horas diárias, com planejamento e distribuição das tarefas todos os dias de manhã, menos domingo, após a “formatura”.21 Com a legalização da área, portanto, a Cooproserp teve um avanço em suas atividades. Quando isso ocorreu, porém, devido à enorme gama de dificuldades relatadas, uma série de descontentamentos de famílias já haviam aflorado, culminando na desistência por parte de algumas do projeto de produção coletiva, visto que nos primeiros momentos as atividades prioritárias eram a correção do solo e limpeza da área para o plantio das primeiras safras. Cabe mencionar que o ano de 1990 foi um dos mais críticos, pelo baixo resultado da colheita da primeira safra coletiva, unida à rigidez das normas estabelecidas pelo acampamento. Conflitos internos se agravaram, e um grupo de 18 famílias resolveu se afastar da agrovila, instalando-se numa outra parte da área subdividida, e passando a trabalhar de forma individualizada. 21 Trata-se de uma forma de exteriorizar e vivenciar a simbologia do MST, consistindo, comumente, no hasteamento da Bandeira do Movimento e na execução de seu hino. 175 ESTUDOS DE DIREITO COOPERATIVO E CIDADANIA 2.3 ORGANICIDADE DO ASSENTAMENTO APÓS A LEGALIZAÇÃO E NOVOS DESAFIOS Durante o processo de legalização da área, em 1992, que ao final foi conseguida mediante um acordo proposto pelo MST ao governo do Estado, com participação do Instituto Ambiental do Paraná – IAP, este defendia que o assentamento deveria ser totalmente coletivo, devido às próprias condições da área, pois a análise feita é que seria praticamente impossível sobreviver de forma individualizada numa terra totalmente desgastada e explorada, cujo potencial de produção estava muito aquém das demais propriedades da região. O grupo que inicialmente havia deixado a proposta coletiva decidiu mais tarde que formaria também um grupo de trabalho coletivo, mas não em conjunto com a Cooproserp; a solução encontrada foi de fazer uma divisão no assentamento, restando dois grupos coletivos. Fundou-se, assim, ainda no ano de 1992, por iniciativa desse segundo grupo, a Associação dos Trabalhadores Organizados na Agricultura – Astroagri, de modo que o uso da terra passou a ser totalmente coletivo, ficando dividido da seguinte forma: a parte pertencente para a Astroagri, proporcionalmente a 11 famílias; e a parte da Cooproserp, proporcional a 31 famílias. Em suma, o assentamento ficou com duas agrovilas.22 Ao invés de estabilizar definitivamente a situação do assentamento, tais medidas implicaram ainda algumas mudanças. A postura política e ideológica de algumas famílias a respeito da cooperação se alterou diante da realidade que então se apresentava. Umas, que haviam deixado a agrovila, reintegraram-se à Cooproserp; outras perceberam que não se adaptariam ao trabalho coletivo, ao que a única solução foi a 22 No final de 2006, porém, os assentados da Astroagri resolveram passar a produzir individualmente. 176 UM PANORAMA DO COOPERATIVISMO NO MOVIMENTO DOS TRABALHADORES RURAIS SEM TERRA E O CASO DA COOPROSERP transferência delas para outros acampamentos, continuando sua luta por um “pedaço de chão”. É desse período a elaboração do Estatuto e do Regimento Interno da Cooperativa. Além disso, a partir de setembro de 1992, iniciou-se na Cooproserp, a pedido dos assentados em conjunto com a direção do MST, o curso de “Formação e Integração à Produção – FIP”, integrado por ambos os grupos do Assentamento Novo Paraíso. O objetivo do FIP era qualificar os assentados para o cooperativismo, mediante a formação de uma consciência organizativa e empresarial (sem descuido dos aspectos políticos) para que se pudesse prosseguir com maior clareza e eficiência no trabalho coletivo. Percebeu-se animação e estímulo frente ao projeto que vinha se concretizando após tantos problemas. No ano de 1993, todavia, a Cooperativa se deparou com mais um problema relacionado ao descontentamento das famílias com o modo de produção do qual estavam fazendo parte. Ela estava contanto, então, com apenas 15 famílias associadas, sendo que nove tinham interesse em sair do projeto. A solução encontrada pela Cooproserp e pela direção do MST foi a de elaborar um mapeamento de famílias de outros assentamentos que topassem a proposta coletiva, para que trocassem seus lotes. De um assentamento em Nova Cantu vieram, então, 11 famílias para morar no assentamento e se integrar à Cooperativa. Com esse reagrupamento, foi preciso uma nova mudança na estrutura física do assentamento: inicialmente a agrovila era formada por lotes de 2 hectares; com a reestruturação, cada um passou a medir 12x30m²; e os associados passaram a produção doméstica de pequenos animais ao patrimônio da cooperativa. Como mencionado, a legalização do assentamento propiciou muitas conquistas. Pode-se citar a instalação de luz elétrica, a compra de equipamentos elétricos, como uma ordenhadeira mecânica, e, entre outras, a construção de uma Escola de 1ª à 177 ESTUDOS DE DIREITO COOPERATIVO E CIDADANIA 4ª série (que antes já existia, porém com uma “estrutura” de chão batido e lona preta), viabilizando o estudo não só das crianças do assentamento, mas também de crianças da vizinhança. Ainda no ano de 1993, o INCRA e o IAP (órgão do Estado que ficou responsável pelo assentamento) realizaram um “Projeto de Desenvolvimento Agropecuário”, com a contribuição de um técnico agrícola associado à Cooperativa. Sua implantação começou em 1994, e partiu de um diagnóstico que identificava as linhas produtivas a serem implantadas ou melhoradas. Demais disso, com um estudo das viabilidades de absorção e comercialização da produção do assentamento, foram criadas pequenas unidades de agroindústrias, como um abatedouro e uma unidade de malharia. Com isso, a área passou a ser melhor aproveitada, “otimizada” no dizer de alguns, aumentando algumas lavouras, diminuindo ou suprimindo outras. Cresceu o plantio de milho, soja e erva-mate; introduziram-se atividades como fruticultura, piscicultura, ovinocultura, apicultura; houve intensificação da bovinocultura leiteira e suinocultura. E, intentando o aprimoramento técnico para o funcionamento destas atividades, passaram a ser aplicadas técnicas de conservação de solos, manejo, adubação, melhoramento dos plantéis, além da atividade de reflorestamento. Os primeiros recursos recebidos do governo por meio do Projeto de Desenvolvimento Agropecuário foram destinados para algumas construções e melhoramento de estruturas, como estábulo, cercas, malharia, entre outros. E pelo Programa de Crédito Especial da Reforma Agrária – Procera,23 financiou-se a 23 O Procera foi organizado a partir de 1986, fruto de uma das reivindicações dos assentados do MST ao governo Sarney. Os recursos tinham como base o Finsocial, Programa do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social – BNDES, sendo que posteriormente passou a ser gerenciado pelo Banco do Brasil e Banco do Nordeste. Hoje encontra-se substituído pelo PRONAF. 178 UM PANORAMA DO COOPERATIVISMO NO MOVIMENTO DOS TRABALHADORES RURAIS SEM TERRA E O CASO DA COOPROSERP compra de calcário, horas-máquina para melhoramento e conservação de solos, implementos, maquinário, material para construção de silos, matrizes leiteiras e suínas, entre outras. Cada atividade se realizava conforme a disponibilidade de mão-de-obra na Cooperativa, níveis de necessidade de cada setor de trabalho, além dos recursos financeiros. A estrutura organizativa da cooperativa passa então a ser organizada basicamente a partir dos diferentes setores, que são ao mesmo tempo núcleos de trabalho e de discussão (de planejamento, avaliação e de assuntos gerais). Quinzenalmente, ocorrem as Assembléias Gerais da Cooperativa, que aprecia as discussões que chegam à sua pauta, encaminhando o assunto, se necessário, para votação. ORGANOGRAMA DA COOPROSERP A partir do momento em que o trabalho passa a ser organizado dessa maneira, começa a ganhar mais visibilidade e resgata a confiança dos assentados em relação à Cooperativa; sem dúvida, também, a confiança dos agricultores vizinhos e do comércio local. Ainda tratando das linhas gerais da história do Assentamento Novo Paraíso e da Cooproserp, é interessante notar a contingência da validade de determinadas medidas, como, por exemplo, a implementação do refeitório coletivo 179 ESTUDOS DE DIREITO COOPERATIVO E CIDADANIA criado em 1992. Com a melhoria da qualidade de vida no assentamento, foram surgindo polêmicas sobre isso, girando em torno do preço das refeições, da qualidade etc., pelo que se resolveu, em 1996, desmontá-lo. As atividades da formatura (explicada anteriormente), também foram suprimidas na mesma época, possivelmente pela atenuação do rigor do trabalho. Esta, porém, foi retomada em 2001, de forma mais simplificada, somente com a conferência dos setores e com a distribuição das tarefas do dia conforme o planejamento quinzenal e aprovado pela Assembléia. Há que se enfrentar ainda muitos problemas, decorrentes ora da situação da área, ora das decisões que vão sendo tomadas. Por exemplo, pode virar motivo de insatisfação a prioridade dada a determinado investimento em maquinário em detrimento da remuneração dos associados; enquanto isso, por outro lado, há que se pesar que, por não ser pertencente ao INCRA, uma série de créditos destinados à Reforma Agrária não podem chegar ao Assentamento. Um caso como esse leva obrigatoriamente os cooperados a debaterem e buscarem uma solução, aperfeiçoando, assim, os mecanismos de participação daquele microcosmo. Nem todos possuem amadurecimento político suficiente para perceber o significado do que estão realizando por meio de atos corriqueiros como esse, o de uma assembléia para decidir o destino de determinada verba; pode ser também que muitos não se sintam aptos a gerir coletivamente seus próprios destinos, preferindo a salvaguarda de alguém a determinar que ações exatamente devem ser tomadas. A todo momento situações como estas se apresentam e devem ser encaradas, tornando ainda mais premente a necessidade de respeitar-se os princípios do cooperativismo, tais como a livre adesão, administração democrática, autonomia e independência, entre outros, balizando assim a conduta do corpo coletivo. 180 UM PANORAMA DO COOPERATIVISMO NO MOVIMENTO DOS TRABALHADORES RURAIS SEM TERRA E O CASO DA COOPROSERP A estrutura do Assentamento e da Cooperativa está muito melhor que outrora, e isso é inegável. Contudo, é necessário reconhecer a necessidade de avanços maiores, tendo claro o papel da COOPROSERP como instrumento de luta por uma Reforma Agrária ampla e espaço de prática de um novo tipo societário. Neste sentido é que deve vir à tona o questionamento sobre medidas a serem tomadas tendo como horizonte a “utopia possível” do MST. Nesta incessante busca, nos últimos dois anos está sendo tentada, dentro do Assentamento, a transição da agricultura convencional para a orgânica e a agroecológica. Por enquanto ainda não é possível a produção para comercialização com total autonomia perante os pacotes tecnológicos oferecidos pelo “mercado”. Não obstante, definiu-se como tarefa de primeira importância que os produtos voltados ao consumo dos assentados sejam produzidos sem agrotóxicos, o que já se realiza plenamente. Trata-se de um pequeno mas importante passo rumo à superação do problemático modelo de agricultura atualmente hegemônico. Há que se registrar, ainda, a constante rotatividade de famílias associadas à Cooperativa. Com o tempo viu-se que isso seria uma constante, considerando as características do povo camponês, os aspectos culturais eminentemente individualistas da contemporaneidade, assim como a imprescindibilidade de um forte senso de disciplina e organização exigido de cada associado por um projeto coletivista. Para lidar com isso, desenvolveu-se um sistema próprio para aceitação de novos associados. Cada pretendente firma sua intenção de tornar-se um cooperado numa ata de associação provisória, que valerá pelo período de um ano; depois de subscritos, os novos membros integram-se normalmente à rotina do trabalho coletivo, e, vencido o prazo, procede-se a uma votação secreta entre os associados, a fim de decidir definitivamente sobre a aceitação dos pretendentes. 181 ESTUDOS DE DIREITO COOPERATIVO E CIDADANIA Apesar da rotatividade constante, as famílias remanescentes têm sempre mantido firme a convicção de que se deve alimentar continuamente a chama da cooperação no Assentamento Novo Paraíso. CONSIDERAÇÕES FINAIS (OU NOVAS PERSPECTIVAS DA COOPERAÇÃO NO MST) À guisa de conclusão, no lugar de retomar os pontos visitados por este artigo, parece mais conveniente buscar imprimir nele a dinamicidade característica da luta popular atual encabeçada pelo que se convencionou chamar de “movimentos sociais”. Por isso, ainda que de forma muito superficial, lançam-se algumas idéias acerca do que deve ser incorporado pelo cooperativismo contra-hegemônico e de oposição praticado no MST. Um dos mais importantes feitos políticos para a efetivação do projeto popular para o Brasil será, certamente, a transformação dos espaços conquistados pelo MST em exemplos vivos de superação da sociedade de exploração capitalista. Mais que isso, cumpre que cada espaço conquistado pelos movimentos populares, do campo ou da cidade, tenha por princípio de sua organização a sobrevivência material e moral independente da estrutura hegemônica, constituindo-se num espaço de resistência que seja convidativo a todos os injustiçados. Desponta como conclusão a de que a cooperação agrícola entre trabalhadores rurais pode se constituir em instrumento de construção de uma verdadeira democracia, de trabalho digno e libertador, de valores igualitários e solidários, no campo brasileiro, ainda que ilhados num mar de injustiça social. É tarefa tática dos lutadores e lutadoras do povo a edificação de pontes que interliguem essas ilhas e possibilitem a entrada de todas as vítimas da predatória “economia de mercado”. 182 UM PANORAMA DO COOPERATIVISMO NO MOVIMENTO DOS TRABALHADORES RURAIS SEM TERRA E O CASO DA COOPROSERP Com vistas nisso, merecem destaque algumas propostas que vêm sendo discutidas no SCA. Primeiramente, cabe aludir que neste setor, como no Movimento de uma forma ampla, tem-se a clareza de que devem ser buscadas não somente nos assentamentos, mas também nos acampamentos, as mais diferentes maneiras de cooperação, para que aos poucos ela se torne tão espontânea quanto a união verificada durante as reivindicações e mobilizações para conquista e garantia de direitos. Nesse sentido, urge que os acampamentos sejam organizados de modo a depender o mínimo possível de ajudas externas. Seguramente, após a conquista da terra os (então) assentados terão a límpida certeza de que o trabalho cooperado é muito mais vantajoso do que o individual, sobretudo como instrumental de uma luta maior. Nessa esteira, Ademar Bogo constata que o que leva os assentados a cooperarem entre si são dois elementos, quais sejam, a necessidade e a perspectiva de desenvolvimento econômico.24 Uma das principais questões, portanto, é a de utilizar tais elementos como geradores de conscientização política na massa, demonstrando que o trabalho cooperado é estratégico não somente para superação das necessidades mais imediatas e desenvolvimento econômico, mas também para supressão do modelo totalizante imposto globalmente, que por essência é excludente. Visando à massificação da cooperação no MST, desde os acampamentos até os assentamentos, então, Bogo sugere as seguintes medidas práticas: 1.º) Diminuir o tamanho do lote individual, fazendo com que uma parte correspondente a um módulo regional fique sendo uma área comunitária do assentamento; 2.º) Selecionar desde o início quem não aceita 24 BOGO, Ademar. Perspectivas da Cooperação no MST. p.15. 183 ESTUDOS DE DIREITO COOPERATIVO E CIDADANIA a proposta do trabalho coletivo e realizar a distribuição dos lotes individuais de acordo com a situação e localização das áreas. Escolher a parte mais estratégica da área para o coletivo; 3.º) Deverá haver entre o assentamento e o Movimento, em conjunto com o INCRA, uma espécie de contrato de exploração da área. Por exemplo, se o assentado individual não cultivar o lote em pelo menos cerca de 70%, este ficará disponível para a parte comunitária do assentamento; 4.º) As formas de cooperação não deverão iniciar com um número muito grande de famílias. E de fato esse é um tema que merece a atenção dos militantes e estudiosos do cooperativismo. Estão se elaborando medidas concretas a serem aplicadas com o fito de aprofundar experiências que têm origem já há quase dois séculos. Com efeito, além de reacender a utopia cooperativista, o debate sobre o novo modelo de assentamentos busca a solução de graves problemas históricos da política de Reforma Agrária brasileira, cunhando novas formas na estátua burguesa da relação sujeitopropriedade. O que se vive atualmente com isso, em suma, é a reivindicação do reconhecimento por parte da sociedade e do Estado de modos diferenciados de lidar com a terra, para muito além de seu simples tratamento como mercadoria. A aproximação das moradias e uma nova forma de divisão da área, a organização dos centros comunitários, o planejamento direcionado à cooperação sobre os investimentos e infraestruturas, poderão fazer com haja o início de uma nova, plural e massificada experiência de cooperação no campo. É possível, assim, que a organização da produção, da industrialização e da comercialização de forma coletiva sejam efetivamente a base de sustentação econômica dos cooperados e do MST, assim como um grande pilar de seu projeto político. 184 UM PANORAMA DO COOPERATIVISMO NO MOVIMENTO DOS TRABALHADORES RURAIS SEM TERRA E O CASO DA COOPROSERP REFERÊNCIAS BOGO, Ademar. Perspectivas da Cooperação no MST. Bahia: 1994. BOGO, Ademar. (Org.). Método de trabalho e organização popular. São Paulo: ANCA, 2005. CERIOLOI, Paulo; MARTINS, Adalberto. Caderno de cooperação n.º 5: sistema cooperativista dos assentados. 2.ed. São Paulo: CONCRAB, 1998. CHIAVON, Francisco Dal. A evolução da concepção de cooperação agrícola do MST: 1989 a 1999 (Caderno da Cooperação Agrícola, 08). São Paulo: Concrab, 1999. GUTERRES, Ivani. Agroecologia militante: contribuições de Enio Guterres. São Paulo: Expressão Popular, 2006. MÉSZÁROS, István. Filosofia, ideologia e ciência social. São Paulo: Ensaio, 1993. 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A questão agrária no Brasil. v.5. São Paulo: Expressão Popular, 2005. 185 186 PARECER CONTRIBUIÇÕES AO DEBATE DO PROJETO DE LEI N.º 7.009/06 (COOPERATIVISMO DO TRABALHO – DEP. MEDEIROS) Prezados: Diante da possibilidade de votação do Projeto de Lei n.º 7.009/06 e de outros Projetos versando sobre cooperativas de trabalho, ainda, neste final de ano de 2006, o Núcleo de Direito Cooperativo e Cidadania do Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal do Paraná-UFPR, realizou avaliação dos Projetos e relatório síntese da reunião do dia 12 de dezembro de 2006, na sede da Organização das Cooperativas do Estado de São Paulo. Dessa reunião participaram as seguintes entidades: OCB, OCERJ, OCESP (ramo das cooperativas de trabalho); UNISOL/CUT; MTE/ SENAES; CONCRAB; ITCP/USP; ANTEAG; NDCC/UFPR. As contribuições abaixo se destinam a identificar o perfil e as eventuais conseqüências do Projeto de Lei em pauta, para o Cooperativismo Popular. Inicialmente, cumpre destacar que o Projeto de Lei n.º 7.009/06 visa abranger cooperativas de trabalho (produção e serviço) de dois tipos: a) as que terceirizam o trabalho; b) as que não estão voltadas à terceirização. As cooperativas de trabalho filiadas à OCB, que serão reguladas pela Lei, na sua maioria, inserem-se no processo de terceirização do trabalho e o artigo. 9º do Projeto menciona que os serviços poderão ser prestados no estabelecimento do contratante, tomador do serviço. 187 ESTUDOS DE DIREITO COOPERATIVO E CIDADANIA Ao incluir as cooperativas terceirizadoras de trabalho, o Projeto estabelece um patamar de direitos sociais trabalhistas que fica abaixo daquele exigido pela CLT e pela legislação de trabalho terceirizado (eventual ou temporário). Daí ser vantajoso para os tomadores e cooperativas prestadores de serviço terceirizado a assunção de algumas obrigações sociais, nos moldes propostos pelo Projeto. Além disso, as cooperativas rurais e urbanas, de serviço e produção, que têm trabalho não tercerizado foram tratados pelo Projeto como se tivessem trabalho terceirizado. Por isso foi necessário propor que tais cooperativas constassem de exceções à aplicação do artigo 7º do projeto como é caso da CONCRAB e outras cooperativas, para as quais esse patamar mínimo seria inaceitável, porque não existe nelas terceirização, nem apropriação de trabalho pelo capital, eis que há cooperação, autonomia coletiva, repartição dos ganhos. Assim, decorre dessa diferenciação não realizada no Projeto, a necessária exceção das cooperativas de reforma agrária, de “produção artesanal”, catadores material reciclável, seringueiros, garimpeiros, e cooperativas de outras comunidades e grupos genericamente denominadas de “comunidades tradicionais”. Essas exceções permitem, sim, a sobrevivência imediata e temporária dessas cooperativas excepcionadas, mas a aceitação do Projeto significa, em uma perspectiva mais ampla, aceitar sem discussão de fundo a terceirização de mão de obra retribuída em padrões inferiores. As cooperativas que terceirizam o trabalho tornam-se lícitas ou “legais”. A eventual aprovação do Projeto de Lei promoveria, em médio prazo, o progressivo afastamento das cooperativas excepcionadas do “cooperativismo oficial”. As exceções seriam tratadas, logo a seguir, como cooperativas economicamente frágeis, “de cunho social”, sendo destinatárias de políticas públicas dirigidas à inclusão social e próximas do terceiro setor, como preconiza o documento entregue ao final da reunião 188 PARECER pela OCB, propondo a simplificação da forma societária e cooperativa. Algumas conseqüências, em médio prazo, seriam a nosso ver: a) a manutenção da hegemonia do discurso cooperativista e do controle das verbas pela OCB, a qual aglutinaria as grandes cooperativas agrícolas empresariais; as cooperativas de terceização de mão-de-obra (incluídas no Projeto), as cooperativas de produção industrial (UNISOL/CUT); b) outro bloco, fora da pauta cooperativista e sem acesso aos Recursos do SESCOOP e do PRONACOOP, seria lançando para o campo das políticas inclusivas e de recursos do MDS e seria constituído pelas exceções. É claro que nesse possível panorama a CONCRAB, por exemplo, teria um perfil diferenciado, embora se encontre no rol das exceções. O Projeto não contempla a possibilidade real de agrupar as exceções de forma menos casuística, embora várias propostas tivessem apontado para o critério de aglutinação das exceções pelo valor da retirada dos cooperados. Do mesmo modo, não se discutiu, profundamente, a questão das cooperativas de técnicas ou profissionais liberais, de assistência técnica (COTRARA, AMBIENS etc.), sendo que para estas cooperativas seria importante precisar o sentido da expressão “categoria profissional”, contida no inciso I, do artigo 7º, do Projeto. Esta discussão foi barrada, inúmeras vezes, pela coordenação da reunião. Também não houve espaço para discutir expressões e termos essenciais para a definição política e jurídica do perfil do Projeto, tais como “compensação de horas” (artigo 7º, inciso II), ou será “banco de horas”? ou termo “eventuais” do artigo 7º, § 1º, do Projeto. Mais grave foi a indefinição quanto ao § 4º do artigo 7º, que se refere ao pagamento “in natura”, aspecto que foi questionado, mas acabou por não figurar no quadro final de sugestões organizado pela coordenação da reunião. Do mesmo modo, não houve espaço para discutir a obrigatoriedade de 189 ESTUDOS DE DIREITO COOPERATIVO E CIDADANIA registro das cooperativas na Junta Comercial, questão que foi considerada superada pela OCB, uma vez que essa organização considera natural o registro nas Juntas Comercial de todas as sociedades de cunho empresarial. Outras questões importantes não foram tratadas, porque a pauta era apenas para discutir as exceções ao inciso I, do artigo 7º, do Projeto de Lei. Entre os pontos em aberto que poderão ter reflexos importantes no futuro das cooperativas de trabalho estão: a) mecanismos societários de manutenção da autogestão cooperativista, tais como a periodicidade e o quorumdas assembléias; b) a possibilidade, ou não, de pessoas jurídicas participarem de cooperativas de trabalhadores. Este tema não foi tratado, porque a OCB considera pertinente sua regulação pela Lei Geral do Cooperativismo e pelo Projeto de Lei n.º 171, do Senador Osmar Dias -PDT/PR. Contudo, o Projeto de Lei em exame, ao tratar das cooperativas de trabalho, deveria contemplar um dispositivo que impedisse as pessoas jurídicas de serem sócias dessa espécie de cooperativas. De extrema relevância foi a discussão a respeito da ausência de critérios, no Projeto de Lei, para definir a composição do comitê gestor do PRONACOOP. Após discussão acalorada sobre o tema as sugestões não foram contempladas no relatório final. Trata-se, enfim, de se aprovar de um Projeto sem se saber quem irá gerir os recursos do PRONACOOP, quais as forças políticas e sociais estariam representando as cooperativas populares neste coletivo e qual a relação de equilíbrio entre essas forças (OCB e o Governo Federal), tendo em vista o desequilíbrio que se faz presente no SESCOOP, por exemplo. Estas são as observações possíveis, diante da urgência, da complexidade do processo legislativo e da carência de detalhes de negociações que não são de domínio público. Núcleo de Direito Cooperativo e Cidadania do Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal do Paraná – NDCC/UFPR 190 PARECER ANEXO PROJETO DE LEI Dispõe sobre a organização e o funcionamento das cooperativas de trabalho, institui o Programa Nacional de Fomento às Cooperativas de Trabalho – PRONACOOP e dá outras providências. O CONGRESSO NACIONAL decreta: CAPÍTULO I DAS COOPERATIVAS DE TRABALHO Art. 1.º A cooperativa de trabalho é regulada por esta Lei e, subsidiariamente, pelas Leis n.º 5.764, de 16 de dezembro de 1971, e n.º 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Art. 2.º Cooperativa de trabalho é a sociedade constituída por trabalhadores, visando o exercício profissional em comum, para executar, com autonomia, atividades similares ou conexas, em regime de autogestão democrática, sem ingerência de terceiros, com a finalidade de melhorar as condições econômica e de trabalho de seus associados. Parágrafo único. A autonomia de que trata o caput deve ser exercida de forma coletiva e coordenada, mediante a fixação, em assembléia geral efetivamente representativa e democrática, das regras de funcionamento da cooperativa e da forma de execução dos trabalhos, nos termos desta Lei. Art. 3.º A cooperativa de trabalho rege-se pelos seguintes princípios: 191 ESTUDOS DE DIREITO COOPERATIVO E CIDADANIA I – preservação dos direitos sociais, do valor social do trabalho e da livre iniciativa; II – não-precarização do trabalho; III – autonomia e independência; IV – autogestão e controle democráticos; V – respeito às decisões de assembléia, observado o disposto nesta Lei; VI – capacitação permanente do associado, mediante a educação continuada e orientada a alcançar sua qualificação técnico-profissional; VII – participação na gestão em todos os níveis de decisão, de acordo com o previsto em lei e no estatuto social; e VIII – busca do desenvolvimento sustentável para as comunidades em que estão inseridas. Art. 4.º A cooperativa de trabalho pode ser: I – de produção, quando seus associados contribuem com trabalho para a produção em comum de bens e detêm os meios de produção a qualquer título; e II – de serviço, quando constituída por trabalhadores autônomos para viabilizar a prestação de serviço acabado a terceiros, desvinculado dos objetivos e atividades finalísticas do contratante. Parágrafo único. Considera-se serviço acabado aquele que, previsto em contrato, é executado sem a presença dos requisitos da relação de emprego. Art. 5.º A cooperativa de trabalho não pode ser utilizada para intermediação de mão-de-obra subordinada. Art. 6.º A cooperativa de trabalho é constituída por, no mínimo, cinco associados, observado o disposto nesta Lei. Art. 7.º A cooperativa de trabalho deve garantir aos filiados retiradas proporcionais às horas trabalhadas, não inferiores ao piso da categoria profissional. 192 PARECER Art. 8.º A cooperativa de trabalho deve observar as normas de saúde e segurança do trabalho previstas na Consolidação das Leis do Trabalho. Art. 9.º O contratante da cooperativa de serviço responde solidariamente pelo cumprimento das normas de segurança e saúde do trabalho, quando os serviços forem prestados no seu estabelecimento. Art. 10. Para assegurar os direitos dos associados, a cooperativa constituirá fundos específicos, com base na receita apurada. CAPÍTULO II DO FUNCIONAMENTO DAS COOPERATIVAS DE TRABALHO Art. 11. O estatuto social da cooperativa de trabalho deve identificar o seu objeto. Parágrafo único. É obrigatório o uso da expressão “Cooperativa de Trabalho” na razão social da cooperativa. Art. 12. Sem prejuízo da assembléia geral ordinária anual, é obrigatória a realização de assembléias gerais, em periodicidade não superior a noventa dias, nas quais serão debatidos as contas da cooperativa, o resultado financeiro e econômico, a gestão, a disciplina e a organização do trabalho. § 1.º O destino das sobras líquidas será decidido em assembléia. § 2.º Os associados devem participar das assembléias gerais, cabendo aos ausentes justificar eventual falta, sob pena de sanção prevista no estatuto social. § 3.º As decisões das assembléias gerais serão consideradas válidas quando contarem com a aprovação da maioria absoluta dos associados. § 4.º A validade da ata de assembléia geral depende da subscrição de, pelo menos, trinta por cento dos associados presentes à assembléia, dispensado o registro. 193 ESTUDOS DE DIREITO COOPERATIVO E CIDADANIA § 5.º Comprovada fraude ou vício nas decisões da assembléia geral, serão elas nulas de pleno direito, aplicando-se, conforme o caso, a legislação civil, penal e trabalhista. Art. 13. A notificação dos associados para participação da assembléia geral será pessoal e ocorrerá com antecedência mínima de dez dias de sua realização. § 1.º Na impossibilidade de notificação pessoal, a notificação dar-se-á por via postal, respeitada a antecedência prevista no caput. § 2.º Na impossibilidade de realização das notificações pessoal e postal, os associados serão notificados mediante edital afixado na sede e em outros locais previstos nos estatutos ou publicado em jornal de circulação na região da sede da cooperativa, respeitada a antecedência prevista no caput. Art. 14. É vedado à cooperativa de trabalho distribuir verbas de qualquer espécie entre os associados, exceto a retirada devida em razão do exercício de sua atividade profissional ou retribuição por conta de reembolso de despesas comprovadamente realizadas em proveito da cooperativa. Parágrafo único. O descumprimento da disposição do caput deste artigo seráconsiderado falta grave cometida pelo beneficiário e por quem autorizou o pagamento, sendo devida a devolução dos valores à cooperativa, com juros, atualização monetária e multa de trinta por cento aplicada sobre o montante do que foi pago indevidamente, sem prejuízo de outras sanções, previstas no estatuto social e na Lei. Art. 15. A cooperativa de trabalho pode fixar, em assembléia, diferentes faixas de retirada. § 1.º Considera-se também retirada o adiantamento das sobras líquidas, baseado em estimativa previamente aprovada em assembléia geral. § 2.º No caso de fixação de faixas de retirada, a diferença entre as de maior e menor valores não poderá exceder seis vezes. 194 PARECER Art. 16. A utilização do capital integralizado deverá observar o disposto no estatuto social e nas decisões das assembléias gerais. Art. 17. O conselho de administração será composto por, no mínimo, três associados, eleitos pela assembléia geral, para um prazo de gestão não superior a quatro anos, sendo obrigatória a renovação de, no mínimo, um terço do colegiado. Art. 18. A cooperativa de trabalho constituída por até quinze associados pode estabelecer para o conselho de administração composição distinta da prevista nesta Lei, dispensada da constituição de conselho fiscal, de acordo com o disposto no art. 56 da Lei n.º 5.764, de 1971. CAPÍTULO III DA FISCALIZAÇÃO E DAS PENALIDADES Art. 19. A utilização de cooperativa de trabalho para fraudar a legislação trabalhista acarretará a dissolução judicial da sociedade, sem prejuízo das sanções penais, civis e administrativas cabíveis. Parágrafo único. São legitimados para propor a ação de que trata o caput qualquerassociado e o Ministério Público do Trabalho. Art. 20. A verificação da existência dos requisitos da relação de emprego, previstos nos arts. 2.º e 3.º da Consolidação das Leis do Trabalho, implicará o reconhecimento do vínculo de emprego entre: I – o trabalhador e o tomador de serviços na cooperativa de serviço; e II – o trabalhador e a cooperativa na cooperativa de produção. Parágrafo único. A cooperativa de serviço responde solidariamente com o tomador de serviços pelas obrigações trabalhistas. 195 ESTUDOS DE DIREITO COOPERATIVO E CIDADANIA Art. 21. Cabe ao Ministério do Trabalho e Emprego, no âmbito de sua competência, a fiscalização do cumprimento do disposto nesta Lei. § 1.º A cooperativa de trabalho que intermediar mão-deobra subordinada e os tomadores de seus serviços estarão sujeitos à multa de R$ 1.113,00 (mil cento e treze reais) por trabalhador prejudicado, dobrada na reincidência, a ser revertida em favor do Fundo de Amparo ao Trabalhador – FAT. § 2.º As penalidades serão aplicadas pela autoridade competente do Ministério do Trabalho e Emprego, de acordo com o estabelecido no Título VII da Consolidação das Leis do Trabalho. Art. 22. As irregularidades constatadas pela fiscalização trabalhista e previdenciária, sem prejuízo da autuação, serão comunicadas ao Ministério Público do Trabalho, ao Ministério Público Federal ou ao Ministério Público dos Estados e do Distrito Federal e Territórios. CAPÍTULO IV DO PROGRAMA NACIONAL DE FOMENTO ÀS COOPERATIVAS DE TRABALHO – PRONACOOP Art. 23. Fica instituído, no âmbito do Ministério do Trabalho e Emprego, o Programa Nacional de Fomento às Cooperativas de Trabalho – PRONACOOP, com a finalidade de promover o desenvolvimento e a melhoria do desempenho econômico da cooperativa de trabalho. Parágrafo único. O PRONACOOP será constituído pelas seguintes ações: I – apoio à elaboração de diagnóstico e plano de desenvolvimento institucional para as cooperativas de trabalho dele participantes; II – apoio à realização de acompanhamento técnico, por entidade especializada, para fortalecimento financeiro e de gestão, bem como qualificação dos recursos humanos; 196 PARECER III – viabilização de linhas de crédito; e IV – outras que venham a ser definidas por seu Comitê Gestor no cumprimento da finalidade estabelecida no caput. Art. 24. Fica criado o Comitê Gestor do PRONACOOP, com as seguintesatribuições: I – acompanhar a implementação das ações previstas nesta Lei; II – propor as diretrizes nacionais para o PRONACOOP; III – propor normas operacionais para o PRONACOOP, inclusive os critérios de inscrição; e IV – receber, analisar e elaborar proposições direcionadas ao Conselho Deliberativo do Fundo de Amparo ao Trabalhador – CODEFAT. Parágrafo único. A composição, organização e funcionamento do Comitê Gestor serão estabelecidos em regulamento. Art. 25. O Ministério do Trabalho e Emprego poderá celebrar convênios, acordos, ajustes e outros instrumentos que objetivem a cooperação técnico-científica com órgãos do setor público e entidades privadas sem fins lucrativos, no âmbito do PRONACOOP. Art. 26. As despesas decorrentes da implementação do PRONACOOP correrão à conta das dotações orçamentárias consignadas anualmente ao Ministério do Trabalho e Emprego. Art. 27. Os recursos destinados às linhas de crédito do PRONACOOP serão provenientes do FAT. Parágrafo único. O CODEFAT apreciará o orçamento anual do PRONACOOP e disciplinará as condições de repasse de recursos, de financiamento ao tomador final e de habilitação das instituições que deverão assegurar a sua operacionalização. Art. 28. Fica permitida a realização de operações de crédito a empreendimentos inscritos no âmbito do PRONACOOP sem a exigência de garantias reais, que podem ser substituídas por outras alternativas a serem definidas pelas instituições 197 ESTUDOS DE DIREITO COOPERATIVO E CIDADANIA financeiras operadoras, observadas as condições estabelecidas em regulamento. Parágrafo único. São autorizadas a operar o PRONACOOP as instituiçõesfinanceiras oficiais de que trata a Lei n.º 8.019, de 11 de abril de 1990. CAPÍTULO V DAS DISPOSIÇÕES FINAIS Art. 29. A cooperativa de trabalho constituída antes da vigência desta Lei tem prazo de doze meses para adequar os seus estatutos às disposições nela previstas. Art. 30. A cooperativa de trabalho tem até trinta e seis meses, a contar da publicação desta Lei ou de sua constituição, para assegurar aos associados a garantia prevista no art. 7.º. Art. 31. Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação. Art. 32. Fica revogado o parágrafo único do art. 442 da Consolidação das Leis do Trabalho, aprovada pelo Decreto-Lei n.º 5.452, de 1.º de maio de 1943. Brasília, EM N.º 13/MTE Brasília, 3 DE MAIO DE 2006 Excelentíssimo Senhor Presidente da República, Submeto à elevada consideração de Vossa Excelência o anexo anteprojeto de lei que dispõe sobre a organização e o funcionamento das Cooperativas de Trabalho, institui o Programa Nacional de Fomento às Cooperativas de Trabalho – PRONACOOP e dá outras providências. 198 PARECER 2. O cooperativismo é um fenômeno social e econômico cujas raízes históricas datam de meados do século XIX e tem como lema a solidariedade econômica e social pelo trabalho em comum. Surge, historicamente, como alternativa ao emprego, caracterizada pela coletivização da propriedade dos bens de produção, autogestão coletiva e repartição coletiva dos resultados da produção. 3. A Constituição da República Federativa do Brasil determina, no § 2.º do artigo 174, que a lei apóie e estimule o cooperativismo e outras formas de associativismo, ficando claro que as cooperativas revelam-se como um instrumento de desenvolvimento local e regional que permite o estabelecimento de formas democráticas no espaço da produção e, por isso, devem ser aprendidas como um valioso recurso no processo de construção da cidadania. 4. Desde a publicação da Lei n.º 8.949/94, porém, sérias ameaças ao cooperativismo e aos direitos trabalhistas materializaram-se por meio da criação de cooperativas que, no processo de terceirização largamente instalado nas empresas brasileiras, vêm substituindo postos formais de emprego e inserindo trabalhadores subordinados no mercado de trabalho, tolhendo-lhes, todavia, o acesso aos direitos sociais. É a mercancia da mão-de-obra que não cria oportunidades novas, mas, ao contrário, torna precários os postos de emprego, de forma nunca vista em nosso país. 5. A par da necessidade de se regulamentar adequadamente o fenômeno de terceirização nas empresas, faz-se, premente, o regramento do cooperativismo de trabalho que, como se sabe, está na própria raiz das virtudes e dos problemas acima apontados. 6. A presente proposta visa a coibir as fraudes, vedando, terminantemente, a intermediação de mão-de-obra sob o subterfúgio das cooperativas de trabalho. Esta prática abusiva 199 ESTUDOS DE DIREITO COOPERATIVO E CIDADANIA vem se revelando como meio degradante de prestação de trabalho, uma vez que o trabalhador presta serviços em condições próprias de emprego, privado dos direitos reconhecidos pela Constituição Federal e pela legislação trabalhista. 7. Estas cooperativas de intermediação de mão-de-obra apresentam mera aparência de cooperativas, uma vez, não obstante formalizem-se como tal, obedecendo aos requisitos legais para tanto, substancialmente não o são, pois o trabalhador “cooperado” que presta serviços pessoais e subordinados a terceiros, nada mais é, senão empregado. Sua força de trabalho transfere lucro aos tomadores, o que é compatível com o vínculo de emprego, mas não com o cooperativismo. Tratase, portanto, de emprego precário, porque não protegido pelos direitos sociais que lhe seriam inerentes. 8. A Organização Internacional do Trabalho, em conferência realizada em julho de 2002, em Genebra, editou o texto da Recomendação 193, cujo tema é o cooperativismo. O item 8.1, b daquela Recomendação, assim estabelece: “8.1) As políticas nacionais deveriam nomeadamente: (...) b) velar para que não se possam criar ou utilizar cooperativas para iludir a legislação do trabalho nem para estabelecer relações de trabalho dissimuladas, e lutar contra as pseudo-cooperativas, que violam os direitos dos trabalhadores, velando para que a legislação do Trabalho seja aplicada em todas empresas.” 9. Esse item reflete a aspiração da comunidade internacional no sentido de repudiar a alienação do trabalho humano, desprotegida dos direitos universais historicamente consagradas, e a utilização dos ideais cooperativistas como um pretexto para aviltamento deste mesmo trabalho humano. 200 PARECER 10. Entretanto, as cooperativas de trabalho são uma realidade incontestável, nos dias de hoje. Atuando de maneira correta e dentro da lei, podem revelar importante alternativa para geração de trabalho e renda às pessoas. 11. A presente medida legal parte do pressuposto, amadurecido nos estudos teóricos do cooperativismo, de que as formas de associação cooperativista de trabalho dividem-se em duas vertentes, quais sejam a cooperativa de produção e a cooperativa de serviço. A primeira caracteriza-se por um processo em que os trabalhadores detêm os bens de produção e, sob a forma de autogestão, oferecem ao mercado produtos acabados. A segunda notabiliza-se pela cooperação de trabalhadores para potencializar a sua capacidade de captação de clientes e qualificação profissional, com intuito de oferecer ao mercado serviço acabado e livre de ingerência de terceiros. 12. A proposta de lei ora apresentada tem a finalidade de criar as condições jurídicas para proporcionar o adequado funcionamento destas sociedades, de maneira a melhorar a condição econômica e as condições gerais de trabalho de seus sócios. 13. Para tanto, faz-se necessário reconhecer efetividade dos modernos princípios que devem fundamentar e orientar o funcionamento destas cooperativas. Neste sentido, a proposta destaca aqueles considerados essenciais, cuja rigorosa observância é condição para a existência de autênticas cooperativas de trabalho. 14. O ordenamento jurídico, conforme previsto na Constituição Federal, em seu Artigo 5º, XVIII, prevê que “a criação de associações e, na forma da lei, a de cooperativas independem de autorização, sendo vedada a interferência estatal em seu funcionamento”. O papel da lei, portanto, deverá ser o de estabelecer os contornos para o correto funcionamento das 201 ESTUDOS DE DIREITO COOPERATIVO E CIDADANIA cooperativas, dispondo sobre as regras a serem adotadas para se assegurar a aplicação dos princípios cooperativos. 15. A proposta de lei especial ressalva a preexistência das leis gerais que versam sobre o tema, prevendo expressamente a aplicação subsidiária da Lei Geral do Cooperativismo – Lei n.º 5.764/71 e do Código Civil – Lei n.º 10.406/2002. 16. Cuida-se também da fixação do conceito jurídico de cooperativa de trabalho, de onde se evidencia que os trabalhadores deverão executar suas tarefas sem a ingerência de terceiros, com autonomia, exercida de forma coletiva e coordenada, ou seja, mediante a fixação, em assembléia geral efetivamente representativa e democrática, das regras de funcionamento da cooperativa e da forma de execução dos trabalhos. 17. A assembléia geral assume proeminência nunca antes experimentada. Se a cooperativa afigura-se como a união de esforços entre seus membros, deve-se evidenciar, na prática, a affectio societatis. Isto significa que o funcionamento, de fato, deva se dar como sociedade, exigindo-se, portanto, a real participação de seus integrantes nos destinos do empreendimento. Assim, a lei procura, de todas as maneiras e formas, prestigiar a assembléia como sendo o grande momento de reunião dos sócios para decidirem sobre seus interesses. As assembléias gerais deverão ser efetivamente democráticas e representativas; fixar as regras de funcionamento, a forma de execução dos trabalhos e até uma garantia de uma retirada mensal não inferior aos rendimentos auferidos por trabalhadores da categoria profissional vinculada ao serviço prestado; realiza-se em periodicidade não superior a noventa dias; contar com a real participação dos sócios, cujo comparecimento será obrigatório; e suas decisões, para serem válidas, deverão obter a aprovação da maioria absoluta de seus integrantes. Além disto, a exigência de convocação dos sócios por notificação pessoal garante o caráter democrático e participativo das decisões assembleares. 202 PARECER As atas devem ser assinadas por, no mínimo 30% (trinta por cento) dos sócios e não há mais a necessidade de seu registro no órgão competente. 18. Neste sentido, e com o objetivo de combater a precarização do trabalho neste ambiente, determina-se que as cooperativas de trabalho assegurem um conteúdo mínimo de direitos aos seus cooperados, que serão custeados por fundos específicos da própria cooperativa, formados a partir da receita apurada. Reconhecendo o desafio econômico que a garantia de tais direitos representará para algumas cooperativas, a lei concede um prazo de até trinta e seis meses para que elas assegurarem aos seus sócios a retirada mínima. 19. É preciso ainda promover o desenvolvimento e a melhoria do desempenho econômico das cooperativas de trabalho, a fim de garantir aos seus membros condições dignas de trabalho e de remuneração. Para tanto, o projeto de lei institui o PRONACOOP Programa Nacional de Fomento às Cooperativas de Trabalho. Caberá ao PRONACOOP propiciar instrumentos e ações de estímulo às cooperativas de trabalho, permitindo-lhes melhorar continuamente o seu desempenho econômico, mediante acompanhamento técnico, qualificação de recursos humanos e oferta de linhas de crédito diferenciadas. 20. A lei vedará, ainda, a distribuição, entre sócios, de taxas, comissões ou verbas de qualquer espécie, exceto a retribuição devida em razão do exercício de sua atividade como sócio, ou por conta de reembolso de despesas comprovadamente realizadas em proveito da cooperativa. Visa tal dispositivo a coibir fraudes e assegurar aplicação do princípio da participação econômica dos membros de forma equânime, sem distorções. 21. Propõe-se reduzir o número mínimo de sócios para cinco, como incentivo à formação das pequenas cooperativas. 203 ESTUDOS DE DIREITO COOPERATIVO E CIDADANIA 22. Distingue-se de maneira especial o tratamento que passa a adotar para os pagamentos periódicos realizados aos sócios das cooperativas. Observando seus resultados financeiros e econômicos, poderão estas fixar diferentes faixas de retiradas, com base em critérios a serem estabelecidos em assembléia. As retiradas consistem na retribuição devida aos integrantes da sociedade, de acordo com as tais faixas. E, visando impedir as distorções, determinará que, em havendo tais faixas, a diferença entre as de maior e menor valores não poderá exceder a seis vezes. 23. A lei prevê, ainda, hipótese de ilícito administrativo pertinente à utilização fraudulenta da cooperativa, no escopo de coibir a utilização destas como formas nefastas de precarização do trabalho e de burlar à legislação trabalhista. Neste mesmo contexto, determina-se a possibilidade de dissolução judicial da cooperativa utilizada como fraude à legislação trabalhista. 24. Enfim, o presente anteprojeto de lei tem como objetivo a criação de um ambiente jurídico que possibilite o desenvolvimento do verdadeiro cooperativismo de trabalho por intermédio da existência de instrumentos jurídicos que afastem a utilização desta forma de organização dos trabalhadores como mecanismo de precarização da legislação laboral. Ao mesmo tempo, busca-se garantir que o Estado impulsione por múltiplas ações o crescimento dessas organizações de economia solidária. Estas são, Senhor Presidente, as razões que justificam o encaminhamento do presente anteprojeto de lei, que ora submeto à consideração de Vossa Excelência, solicitando, ante o exposto, o seu encaminhamento ao Congresso Nacional. Respeitosamente, Assinado eletronicamente por: Luiz Marinho 204 PARECER Universidade Federal do Paraná – UFPR Programa de Pós-graduação em Direito Núcleo de Direito Cooperativo e Cidadania Ementa: Sociedade cooperativa. Quotaspartes do capital. Intransferibilidade a terceiros. Artigo 1.094, inciso IV, do Código Civil, e artigo 4º, inciso IV, da Lei n.º 5764/71. A Secretaria Nacional de Economia Solidária – SENAES e o Ministério das Minas e Energia – MME consultam a respeito da legalidade da Proposta de Reformulação do Estatuto da COOPERATIVA DE MINERAÇÃO DOS GARIMPEIROS DE SERRA PELADA – COOMIGASP, vertida nos seguintes termos: Art. 19. A quota-parte de cada cooperado é direito seu devidamente escriturado no livro de matricula da COOMIGASP, podendo o cooperado livremente vender, dispor ou doar no todo ou em parte suas quotas. Parágrafo único – a transferência de quotas-partes será escriturada em formulário próprio, mediante termo que conterá a assinatura do cedente, sendo emitido certificado de quotas, assinado pelo presidente e secretário legalmente investidos nas suas funções. A questão merece a análise da legalidade e dos conceitos jurídicos presentes na Proposta da Reforma Estatutária, sem perder de vista o caráter sistemático da interpretação. Assim sendo, em primeiro lugar, cabe citar a legislação que rege as formas societárias em geral, Código Civil Brasileiro, que em seu artigo 1.094, inciso IV, dispõe: 205 ESTUDOS DE DIREITO COOPERATIVO E CIDADANIA Art. 1.094. São características das sociedades cooperativas: [...] IV – Intransferibilidade das quotas a terceiros estranhos à sociedade, ainda que por herança. Tal regra da legislação geral encontra correspondência com o disposto no artigo 4º, inciso IV, da Lei Especial, n.º 5.764/71, que institui o regime jurídico das sociedades cooperativas, verbis: Art. 4º. As cooperativas são sociedades de pessoas, com forma e natureza jurídica próprias, de natureza civil, não sujeitas à falência, constituídas para prestar serviços aos associados, distinguindo-se das demais sociedades pelas seguintes características: [...] IV – inacessibilidade das quotas-partes do capital a terceiros estranhos à sociedade.” (sem grifos no original) Como se vê, tanto o Código Civil em seu artigo n.º 1.094, inciso IV, quanto à Lei n.º 5.764/71, em seu artigo 4º, inciso IV, proíbem, terminantemente, a seção das quotaspartes do capital a terceiros estranhos à sociedade cooperativa, tendo o Código Civil acrescentado que a transferências dessas quotas não é permitida sequer por sucessão hereditária. O professor da UFPR, Alfredo de Assis Gonçalves Neto (Noções de Direito Societário. São Paulo: Juarez de Oliveira LTDA, 2002, p. 128), comentando as características específicas dessa espécie societária, a partir do conteúdo do artigo 1.094 do Código Civil de 2002, aponta como uma das particularidades das cooperativas: “a impossibilidade de transferência das quotas-partes do capital a terceiros estranhos à sociedade, que nela só podem ingressar se atuarem no ramo e mediante a subscrição de novas quotas-partes.” (sem grifos no original). 206 PARECER Dentre as razões para tais disposições legais, proibindo toda e qualquer forma de transferências de quotas, onerosa ou gratuita, entre pessoas vivas ou em virtude da morte (por sucessão hereditária), está a natureza pessoal das sociedades cooperativas, em que cada sócio tem direito a um voto, independente do número de quotas que detenha no capital da sociedade e cujo benefício econômico (retirada) depende não do capital representado pelas quotas, mas do volume das operações efetuadas pelo sócio, em virtude de sua atividade societária, na cooperativa, tudo como dispõem os artigos 4º, incisos VII e 25, § 3º, de referida Lei n.º 5.764/71. Decorre também da natureza pessoal da sociedade e da valorização da atividade societária a indivisibilidade dos fundos de reservas entre os sócios, como prevê o inciso VIII do mesmo artigo 4º da Lei. Assim, o caráter pessoal do direito dos sócios sobre suas quotas não resulta no poder de livre disposição desse bem móvel, mas ao contrário, em uma limitação do exercício de um dos elementos que constituem o conteúdo do direito de propriedade, ou seja, o poder de disposição. Nesta perspectiva, alegar-se que as quotas podem ser livremente dispostas pelos sócios, para terceiros, é contrariar a lei geral e especial, desconhecendo a natureza das sociedades cooperativas, buscando sua transformação, ao arrepio da lei, em sociedades de capital. A partir disso, a compra e venda de quotas, além de ilegal e de não surtir efeitos jurídicos, conforme já assinalado, não tem o condão de inserir o seu adquirente na sociedade cooperativa, como equivocadamente sugere o texto do parágrafo único do artigo 19 da Proposta de Reforma Estatutária, onde se lê: Parágrafo Único – a transferência de quotas parte será escriturada em formulário próprio, mediante termo que conterá 207 ESTUDOS DE DIREITO COOPERATIVO E CIDADANIA a assinatura do cedente, sendo emitido certificado de quotas, assinado pelo presidente e secretário legalmente investido nas suas funções. Nesse tipo de sociedade, o “princípio da porta aberta” não pode ser lido como a liberdade de ingresso, por meio da aquisição do capital da empresa, mas sim por um processo de aceitação no corpo societário, que exige a adesão aos fins previstos no estatuto, requerendo, ainda, a análise desse ingresso pela Assembléia Geral. Em outras palavras, é a disposição de participar da atividade cooperativa e não a disposição de adquirir quotas-partes em uma sociedade desse tipo que permite o ingresso de alguém, na qualidade de sócio. Waldírio Bulgarelli (As Sociedades Cooperativas e sua Disciplina Jurídica. Rio de Janeiro: Renovar, 1998, p. 55) realiza a seguinte observação sobre a questão, ora em exame: Compreende-se que nas sociedades cooperativas as quotas sejam intransferíveis a terceiros, pois que diferentemente das sociedades capitalistas, as sociedades cooperativas são sociedades de pessoas, e suas ações não podem se transferir simplesmente pela tradição. O sistema cooperativo neste ponto é totalmente diverso; não há emissão de ações e seu eventual resgate. [...] Tem-se permitido, apenas, nesse sentido, a transferência de associado para associado, com a autorização da Assembléia Geral. (sem grifos no original) Sobre tal questão Walmor Franke (Direito das Sociedades Cooperativas. São Paulo: Saraiva. 1973, p.14), ao tratar da sociedade cooperativa, adverte: É, pois, essencial ao próprio conceito de cooperativa que as pessoas, que se associam, exerçam, simultaneamente, em relação a ela, o papel de sócio e usuário ou cliente. É o que, em Direito Cooperativo, se exprime pelo nome de princípio de 208 PARECER dupla qualidade, cuja realização prática importa, em regra, a abolição da vantagem patrimonial chamada lucro que, não existisse a cooperativa, seria auferida pelo intermediário. No mesmo sentido, é a opinião do jurista especializado em Direito Cooperativo, Vergílio Frederico Perius (Cooperativismo e Lei. São Leopoldo: Unisinos, 2001, p.71), ao analisar a qualidade de sócio e da função das quotas-partes, nas sociedades cooperativas: c – a natureza jurídica das quotas-partes, por serem intransferíveis e inseparáveis dos associados e não serem herdadas corresponde um vínculo jurídico de ordem pessoal, não patrimonial, que se estabelece entre as cooperativas e os associados. Mesmo havendo transferência das quotas-partes com o necessário consentimento (Art. 26), não ocorre a transferência da qualidade de associados para outro associado. Com a morte do associado também não ocorre transferência de capital aos herdeiros do de cujus, visto que a morte de pessoa física excluí a qualidade associativa dessa pessoa (Art. 35, inciso II) desse modo a qualidade nominativa das quotas-partes tira o caráter especulativo do capital.” (sem grifos no original) CONCLUSÃO Diante do contido no artigo 1.094, inciso IV, do Código Civil Brasileiro, e no artigo 4º, inciso IV, da Lei n.º 5.764/71, e nas demais disposições da referida Lei Especial, que dão caráter diferenciado às sociedades cooperativas, e, ainda, conforme se retira da interpretação sistemática realizada com base nas obras acima citadas, conclui-se pela absoluta ilegalidade dos termos da proposta da reforma estatutária da COOPERATIVA DE MINERAÇÃO DOS GARIMPEIROS DE SERRA PELADA – COOMIGASP, trazida à apreciação do Núcleo de Direito Cooperativo e Cidadania, do Programa de Pós-graduação em 209 ESTUDOS DE DIREITO COOPERATIVO E CIDADANIA Direito da Universidade Federal do Paraná – UFPR, pela Secretaria Nacional de Economia Solidária – SENAES e o Ministério de Minas e Energia – MME. SMJ, é o Parecer. Eduardo Faria Silva – OAB/RS 50.629 Membro Pesquisador do Núcleo de Direito Cooperativo e Cidadania da UFPR Prof. Dr. José Antônio Peres Gediel – OAB/PR 21.317 Coord. do Núcleo de Direito Cooperativo e Cidadania da UFPR 210 RESENHA ECONOMIA POPULAR E CULTURA DO TRABALHO: PEDAGOGIA(S) DA PRODUÇÃO ASSOCIADA – LIA TIRIBA (IJUÍ-RS: EDITORA UNIJUÍ, 2001) Felipe Drehmer Ricardo Prestes Pazello O livro ora sob análise é o da professora da Faculdade de Educação da Universidade Federal Fluminense (UFF/RJ), Lia Tiriba, intitulado Economia Popular e Cultura do Trabalho: pedagogia(s) da produção associada. Tendo Tiriba atuado como educadora e assessora pedagógica no Sindicato dos Metalúrgicos do Rio de Janeiro e dedicado boa parte de sua carreira à empreita pesquisadora, o estudo resenhado é fruto da vivência de sua autora e de seu comprometimento na tentativa de compreender a relação entre a questão do trabalho, tão em voga nos dias de hoje, e seu impacto no setor econômico, notadamente o conhecido por economia popular, ainda que se possa chamá-lo de economia solidária ou mesmo social. Tal relação é mediada por sua peculiar forma pedagógica, intrínseca que é a pedagogia ao agir humano, em especial o laboral. A obra está dividida em cinco grandes partes, nas quais a autora desenvolve sua compreensão tanto do mundo do trabalho como da prática pedagógica que acompanha o trabalhador em sua labuta. Dando ênfase à produção associada, * Acadêmico de Direito da UFPR e membro do Núcleo de Direito Cooperativo e Cidadania. ** Acadêmico de Direito da UFPR e membro do Núcleo de Direito Cooperativo e Cidadania. 211 ESTUDOS DE DIREITO COOPERATIVO E CIDADANIA com o trabalho entendido nos moldes coletivos, Lia Tiriba procurará percorrer o Desenvolvimento (des)humano e crise do trabalho, delineando a base sobre a qual se assenta a produção no sistema capitalista, claro ponto em que se vê que o lucro é sobejo e que as relações de trabalho mais e mais se precarizam; intentará discorrer também sobre a Economia popular: sua reedição pelo trabalho e pelo capital, procurando debater desde o conceito do que seja o “popular” até chegar a um entendimento da expressão “economia popular”, seus integrantes e dinâmicas; a seguir, prosseguirá sua análise focando a Escola e outras escolas de produção de uma nova cultura do trabalho, momento no qual se problematizará o processo educativo na esfera laboral, visualizando-se a gestão do trabalho e do conhecimento inserida numa nova cultura de produção cuja primazia está na associatividade; também buscará compreender A “pedagogia da fábrica” na versão dos trabalhadores, buscando contrapor as entrevistas e os resultados dos trabalhos empíricos à carga teórica anteriormente fundamentada, almejando entender a densa rede de relações estabelecidas entre os atores da economia popular associada no interior do espaço de produção, sua relação com a comunidade local, com os grupos de economia solidária e com as mais variadas instituições que se propõem a interagir nesse âmbito; e, finalmente, proporá um desfecho, abordando tema assaz relevante, qual seja, Pedagogia(s) da produção associada: para onde caminha a economia popular?, em que evidenciará que as contradições do meio no qual se inserem os projetos associativos de cunho popular não podem nos dar a certeza de que ali está o novo germe da transformação social, embora não desdenhe as potencialidades dos empreendimentos como uma espaço pedagógico, pois constará empiricamente a existência de transformações da relação dos trabalhadores tanto no que diz respeito à suas necessidades materiais quanto às imateriais. 212 RESENHA Se pudéssemos encontrar um ponto de partida para compreender o trabalho de Lia Tiriba, não nos constrangeríamos em dizer que é ele o trabalho. O trabalho, aqui, exerce papel central no desenrolar teórico, bem como nos seus devidos prismas, no discorrer empírico que a obra aporta. Não poderia ser diferente. Quando nos encontramos diante de um redemoinho de discursos, os quais, ainda que aparentemente os mais diversos, nada mais que consubstanciam o fim da sociedade industrial, a partir do que o trabalho seria mera escatologia do agir social, faz-se imprescindível a assunção de uma posição nesse embate. E a posição de Lia Tiriba é clara: o trabalho é, sim, fulcro da sociedade atual. Talvez não o seja para os alématlânticos olhos de homens que cada vez menos entram em contato com a dura realidade de todo um mundo, senão esquecido, tornado invisível, em sua miséria e em sua subordinação. Efeito do sistema capitalista, é o que se costumou chamar de terceiro mundo o protagonista dessa peça, em que sói ser qualificado como coadjuvante: o trabalho. Ainda que não seja esse o objeto de análise do texto, quiçá se possa observar em suas entrelinhas a obnubilação imposta por um discurso de hegemonia irradiado do centro do mundo. Não é à toa, por exemplo, que a autora faz questão de apresentar uma série de dados estatísticos, os quais enrubesceriam qualquer ser vivo, principalmente os que se dizem racionais. Mais de 800 milhões de famintos, 80% da população mundial vivendo nos países ditos subdesenvolvidos, 1,3 bilhão de pessoas abaixo da linha da miséria e 1,2 bilhão de pessoas sem água potável: uma metralhadora de números que nos dá a dimensão de quão nefasta se nos afiguram as condições de vida no planeta Terra. No entanto, a suposta racionalidade, tão propalada no seio da modernidade, vigora em um mundo que necessita da miséria para avançar e que faz da liberdade um projeto individualista. Tem vez, nesse contexto, o conjunto de técnicas que é sustentáculo do modo de produção 213 ESTUDOS DE DIREITO COOPERATIVO E CIDADANIA e o aparato ideológico que serve de receptáculo para o prosperar dos ideais de liberdade de mercado, para o indivíduo, em detrimento da esfera coletiva que opera na sociedade. Malsinada e oprimida, egoísta e ambiciosa, anda a cabeça abstrata do homem ideal no irreal mundo da sociedade do ócio e do intelecto. Assim, o público só é visualizado no mercado, o político nas esferas burocráticas, e a pobreza como que inerente ao homem. Entrementes, o fim das utopias, o fim da história, ensejaria a crise da sociedade do trabalho. É inegável, e este é o entendimento da autora, que o trabalho vem encontrando características diferenciadas conforme a história vai acontecendo, mas “se de um lado, o trabalho muda seu desenho, sua geografia, de outro, a contradição entre o capital e o trabalho se mantém como fonte de desigualdades” (p.79). A crise do trabalho, aliada ao fatalismo dos discursos hegemônicos, astutos que são, daria cabimento à necessidade inescapável da precarização do trabalho, de sua terceirização e de sua desregulamentação, enfim, só achando meios cada vez menos seguros ao trabalhador é que se conseguiria garantir-lhes a subsistência. Contradição inultrapassável, desde logo se verifica. A era que dissemina a tecnologia e o desenvolvimento econômico tem de viver com as causas e efeitos da globalização que imprescinde da flexibilização do trabalho: o trabalho entra em crise, porque assim o determina a complexidade atual do capitalismo e não porque o trabalho em si perdeu seu sentido. Muito pelo contrário, o trabalhador ainda existe, ou melhor, resiste, tenta sobreviver, a duras penas. Não é para menos, portanto, que a autora causticamente evidencie, em seu pensamento, analogias do tempo escravizado e da exploração mais generalizada. As várias pobrezas humanas são postas em sua nudez mais crua, ainda que de passagem: individual, social e ambientalmente. O produtivismo e o desenvolvimentismo são incompatíveis com um futuro sadio de nossa sociedade. Só o reequilíbrio homem-natureza – junto 214 RESENHA ao Sul-Norte e ao pobres-ricos – poderá permitir alguma perspectiva de emancipação humana. Com verve marxista, Tiriba assenta que “a nova base técnica não terminou com a alienação do trabalho” (p.74). A tecnologia, entoada como progresso humano pelas vozes beatas do sistema, nada mais é que privilégio de um nicho da sociedade mundial, justamente aquele que faz da exclusão social seu contraponto mais evidente. E tanto assim é que o chamado tempo livre, para os trabalhadores do Sul do mundo, nada mais se apresenta que desemprego à flor da pele. Propugnando uma renovação metodológica, ainda que sem perder de vista a centralidade do trabalho, a autora tenta percebê-lo nas esferas pública e privada, conforme a historicidade, própria da atividade humana, assim o consagra. Busca, então, um valor de uso para o trabalho, medido pelo seu tempo livre, não como submissão ao capital, mas como vida, superando as fetichizações muito peculiares do mundo do trabalho, como a da tecnologia, do mercado, do capital e, claro, a do proletário. É desse conjunto de idéias que vai se descortinando a viabilidade, mesmo que erigida sob o crivo da crítica, do trabalho por conta própria, em especial o que assim o é coletivamente. Passando-se, pois, à tarefa de desanuviar o entendimento do que seja uma tal possibilidade de trabalho, Lia Tiriba nos remeterá a outra pilastra de seu livro, qual seja, a economia popular. Antes, porém, de delinear suas configurações práticas, irá ela se dedicar a uma sua visualização teórica, a fim de dirimir dificuldades que desde logo se lhe apresentam. Ao procurar discutir a questão econômica, Lia Tiriba se depara com uma interessante problemática, qual a seja, a do que quer dizer o “popular”. Mostrando que várias são as denotações para o termo, esquadrinha-se nele o melhor signo para este nicho da economia. A opção por uma tal discussão preliminar nos leva a pensar, com a autora, que há superabundância de análises críticas acerca da pobreza, fazendo-se mister a compreensão, a mais acurada possível, do que seja a economia popular. 215 ESTUDOS DE DIREITO COOPERATIVO E CIDADANIA Com freqüência, o termo “popular” vem sendo igualado à idéia de setor informal da economia. Ainda que possa haver coincidência entre ambos os casos, não há identidade absoluta entre os conceitos. A dicotomia formal-informal não suporta a faticidade – que é nova, ressalte-se – própria da economia popular em suas dimensões para além da análise de formalidade. As instâncias jurídicas, exigidas pela burocracia estatal capitalista, não são suficientes para explicar tal setor econômico. Não dando conta de sua conceituação, o binômio formal-informal é entendido como um fenômeno interdependente, ou seja, o formal e o informal se apresentam como que numa complementaridade, a partir do que a mera inserção da discussão do popular verifica-se inócua. Ainda nessa temática, a economia popular serve como rótulo de diversos matizes de atuação social. Para extrair alguma precisão da expressão “economia popular”, utiliza-se a autora de três marcos teóricos: O. Nuñez, J. L. Coraggio e Razeto. Para Nuñez, a economia popular engloba o que é alternativo ao sistema capitalista, aportando-se em uma estratégia participativa e autogestionária como projeto revolucionário. Para Coraggio, a economia popular seria um dos subsistemas econômicos (mais o empresarial e o público), distinguindo-se pela multiplicidade de identidade e por sua organização doméstica que não necessariamente é solidária. Por fim, para Razeto – o autor seguido –, haveria de se visualizar a tipologia da economia popular: a) soluções assistenciais; b) atividades ilegais; c) atividades individuais informais; d) microempreendimentos; e) organizações econômicas populares (OEP’s). Esta última seria uma intersecção entre o popular e o solidário, com seus característicos próprios. Parece claro que a escolha deste marco teórico tem por fito a operacionalidade que a idéia de organizações econômicas populares (OEPs) sugere. Diferencia-se, pois, de algo que vem sendo preponderantemente 216 RESENHA equiparado com a economia popular, que é a questão da economia informal criminal. É bom lembrar, igualmente, que os setores populares também reproduzem a lógica de dominação, por ser este o sistema em que se inserem. A despeito de, porém, o “popular” também estar suscetível aos fenômenos de globalização e massificação, é preferível ao termo “sociedade civil”, muito utilizado, que reduz e homogeneíza a complexidade social hodierna. Por isso se torna interessante distinguir os atores dos agentes da economia popular. Estes últimos seriam, justamente, aqueles que atuariam de fora, podendo-se enxergá-los como os apoiadores dos grupos populares. Integram estes, por sua vez, as classes-que-vivem-do-trabalho, independentemente de sua legalização. Por isso as demais relações sociais, e não só a economia, são tão pertinentes à discussão. Aparentemente, a questão vernácula parece improfícua no que pertine ao debate das dimensões sociais da economia popular. No entanto, desde esse ponto de vista, pode-se lobrigar a importância dos movimentos sociais como os novos atores deste processo, matéria que a ciência política e a filosofia latinoamericanas vêm tratando com grande zelo. Diferentemente dos agentes da economia solidária, com seus vários interesses alocados na idéia ou não da emancipação humana, bem como suas respectivas estratégias, os “movimentos sociais que vêm optando pela ênfase no caminho ‘de baixo para cima’” (p.158), são o caminho possível para uma aposta na autogestão, pensando-se globalmente, ainda que com atuação local. Constatados problemas fundamentais na sociedade – baixos salários, desemprego, pobreza –, visualiza-se que as soluções apresentadas pelos agentes externos são de múltipla ideologia. Tais agentes configuram ONGs, partidos, sindicatos, igrejas. A complexidade da economia popular reside no fato de que plúrimos são tanto seus objetivos quanto seus interesses. E, assim, questiona-se: os agentes, de fato, contribuem? 217 ESTUDOS DE DIREITO COOPERATIVO E CIDADANIA É preciso notar o que significa, para governos e empresários, a economia popular. Quando se está inserido no contexto da reestruturação produtiva não se pode negar que o cooperativismo pode servir como ágil mecanismo do capitalismo. É certo que há fomentos governamentais para surgimento de microempresas, cooperativas e associações, mas o Estado o faz com o claro enfoque empresarial, desnaturando a natureza alternativa de tal ferramenta. Dessa forma, duas são as vias pelas quais se pode caracterizar os empreendimentos populares: a autônoma e a imposta pela globalização. Desde logo, pode-se perceber certa esterilidade de determinados empreendimentos populares, já que não se trata de crise do sistema de apropriação pelo capital, mas sim sua readequação. Caracteriza-se, ainda, que os agentes, em muito, atuam desfavoravelmente, como se denota no assistencialismo e clientelismo de partidos políticos, ONGs e igrejas, o que não invalida suas ações emancipatórias, demonstrando seu papel contraditório. Propõe Tiriba que os movimentos populares, em sua construção contemporânea, absorvam a necessidade de redefinição de seus rumos, buscando não só as reivindicações sociais, mas também a transformação econômica, como um todo, um conjunto de lutas sociais. Tendo, pois, como dado “a presença real da economia popular nos países latinoamericanos”, não há porque deixar de constatar que, “seja pela apropriação dos meios de produção, ou pela criação de novas formas geradoras de trabalho e renda, muitos trabalhadores compreendem não ser mais possível manter o isolamento de suas experiências, sendo necessário articulá-las mediante projetos comuns capazes de dar consistência à economia popular, transformando-a na economia política dos trabalhadores” (p. 162). Uma tal economia política, no que pertine aos trabalhadores, não pode, entretanto, prescindir da dimensão educativa que lhe é própria. Isto devido ao fato de que o 218 RESENHA capitalismo parte de uma contradição fundamental: o caráter social da produção e o individual da apropriação dos bens; em última análise, a dicotomia entre trabalho alienado e propriedade privada. Sendo este o espectro com o qual o proletário se depara, torna-se a luta em outras frentes, que não só a econômica, inarredável, a qual só poderá ser otimizada pela questão educacional, ainda que ela não seja o apanágio para os problemas originados pelo capital. Por isso, não só se deve lutar pela propriedade coletiva dos meios de produção, mas também por uma sociedade democrática, participativa e autogestionária, com apropriação dos fundamentos científico-tecnológicos. Tendo em vista que a produção associada sempre sofrerá com os limites impostos pelo capitalismo e considerando que a educação do trabalhador sempre se dará sob a ótica do mercado e não da emancipação, enquanto estiver atrelada ao Estado, que na perspectiva da autora assume a característica de ser um Estado de classe, é preciso notar que o processo educativo, na opção pelo trabalho associado, deverá assumir o papel de interlocução inextrincável entre teoria e prática. A partir de um resgate do pensamento gramsciano, Tiriba conceberá a estrutura de ensino-aprendizagem sob o viés da práxis operária, em que o intelectual orgânico terá de sair da própria classe trabalhadora, desmistificando a divisão inultrapassável entre trabalhos manual e intelectual. Por toda relação hegemônica albergar uma relação pedagógica, a elaboração crítica da consciência só se dará com a unidade entre teoria e prática. Assim sendo, invoca-se a experiência dos operários de Turim, com seus conselhos de fábrica, pois lá os trabalhadores teriam atuado como gestores políticos do processo produtivo, minorando a relação de alienação do trabalhador para com o produto de seu trabalho. Nesse viés, o trabalho cooperado é afirmado como contraponto necessário do trabalho assalariado e a educação que lhe deve acompanhar é a da formação técnico-política, sem embargo de 219 ESTUDOS DE DIREITO COOPERATIVO E CIDADANIA compreensão dos limites que são inerentes ao regime de produção e reprodução capitalista. O processo educativo que permeia a transformação das relações cotidianas se refere, portanto, às práticas de trabalho associado, aos processos de produção e socialização do conhecimento e às capacidades solidárias e dialógicas dos atores envolvidos. Uma relação dialética entre realidade objetiva e realidade subjetiva se apresenta imprescindível para a construção de uma práxis libertadora, pautada na superação da relação oprimido-opressor. Além disso, a “educação como prática da liberdade” se diferencia das “práticas de liberdade” por estas se vincularem a uma libertação individual. Aquela, ao contrário, nega a concepção de homem abstrato e transcendente baseando sua reflexão, de forma crítica, no plano material concreto. Assim, é fundamental às OEPs conceber o processo de trabalho como um espaço pedagógico e de potencial tomada de consciência dos trabalhadores associados. Centrar a transformação na práxis produtiva como princípio educativo significa entender que as perguntas que confrontam condições objetivas com anseios subjetivos ocorrem no cotidiano da produção, não a partir de cartilhas ou cursos programáticos. Além disso, somase outra consideração: as dúvidas que surgem numa organização popular associada não devem ser sanadas focando apenas o campo técnico. Elas carecem de ser relacionadas com o campo político de forma a buscar extrapolar os limites instrumentais da racionalidade produtiva, ou, como escreve Tiriba, “a educação dos trabalhadores precisa ser compreendida como processo permanente e como resultado provisório de ação/reflexão/ação” (p.220). Para que o trabalhador consiga constituir-se como um “intelectual de novo tipo”, diz a autora, precisa estar inserido num meio em que consiga partir de um saber prático almejando 220 RESENHA desenvolver os demais saberes e práticas sociais que extrapolam suas funções técnicas, ou seja, “mais além da educação para o trabalho ou educação no trabalho, o desafio está em buscar a unidade entre práxis produtiva e práxis educativa” (p.227). Nesse desafio, os educadores têm uma função presencial, não necessariamente como trabalhadores associados, mas como aqueles que, ao acompanhar os problemas cotidianos de uma associação, podem contribuir sobremaneira na resolução de conflitos internos e nas soluções construídas coletivamente, que fortaleçam tanto a viabilidade econômica do empreendimento quanto a fundamentação teórica e cultural do grupo. Temos, então, a proposta de uma formação completa do ser humano concebendo a cultura do trabalho como um sistema determinado que se inter-relaciona com outras esferas sociais e enfrenta relações de dominação que ultrapassam a relação capital-trabalho. Como desde a introdução nos precavera Tiriba, inicia ela a contraposição entre a teoria até aqui exposta e aquilo que no trabalho de campo pôde constatar. Remetendo a trechos de entrevistas feitas com trabalhadores e apoiadores dos empreendimentos populares associados, a autora nos apresenta a um universo de “(...) 61 organizações econômicas populares – OEPs ali localizadas [todas na região metropolitana do Rio de Janeiro]: sua distribuição geográfica, número de trabalhadores, setores e tipos de atividades que desenvolvem, personalidade jurídica e seus vínculos com alguns parceiros que estimulam a constituição de redes de solidariedade. A seguir, nos aproximamos do cotidiano de cinco destas estratégias coletivas de geração de trabalho e renda” (p.243). Privilegiando os empreendimentos localizados nos cinturões de pobreza ou que, embora situados em bairros nobres, apresentassem baixos níveis de renda e escolaridade, Lia Tiriba 221 ESTUDOS DE DIREITO COOPERATIVO E CIDADANIA dividiu a análise em quatro eixos: a) Educação, organização e gestão do trabalho; b) Relações de mercado; c) Redes de ação coletiva; e d) motivações/expectativas dos trabalhadores. Na cidade do Rio de Janeiro, existem cerca de 2.500.000 pessoas (segundo a FAFERJ1) que vivem em favelas. Dos morros do Rio de Janeiro descem todos os dias “uma legião de homens e mulheres e crianças na busca de trabalho” (p.247) para conseguir comer ou satisfazer outras necessidades básicas, num contexto em que não há diferenciação entre desemprego, subemprego ou subtrabalho. É, pois, no suposto território democrático e igualitário de uma grande cidade que se fundem riqueza e pobreza, que se dá o estudo ora resenhado. No que diz respeito aos objetivos dos empreendimentos, Tiriba diferenciou-os em dois grandes grupos: geração de renda e desenvolvimento comunitário. O primeiro se remete a grupos que buscam satisfazer suas necessidades materiais de sobrevivência e o segundo diz respeito à satisfação das necessidades materiais, das necessidades imateriais e à rede de atividades de cunho cultural que ele desenvolve com a comunidade que o rodeia. A viabilidade do empreendimento, questão primordial em qualquer OEP, está ligada às parcerias estabelecidas com instituições que “vêm apoiando e estimulando as iniciativas de geração de trabalho e renda, tentando articulá-las política e economicamente” (p.254). Nesse sentido, evidencia-se que os empreendimentos pertencentes aos setores populares se propõem a orientar-se pela lógica da reprodução da vida, não de reprodução do capital. Obviamente, deve-se levar em conta que as atividades dos setores populares não pertencem aos setores estratégicos da economia e da utilização de alta 1 Federação das Associações das Favelas do estado de Rio de Janeiro. 222 RESENHA tecnologia. Assim, é imprescindível a articulação com a comunidade local e com as redes de ação coletiva, na busca de fomentar a solidariedade e o incremento da economia popular, o que pressupõe, em última instância, a comercialização das mercadorias a partir do seu valor de uso, não do seu valor de troca. A procedência das ações coletivas escolhidas também é apresentada. Elas trilharam diversos caminhos, originando-se do movimento sindical, de associações de moradores, de pastorais de trabalhadores, e com ou sem um apoio prévio de movimentos populares. Apesar de essas dessemelhanças, é característico das organizações econômicas populares não disporem de nenhum capital inicial. Sinteticamente, a autora classifica duas formas de iniciação de uma empresa popular associada. Com o intuito de arrecadar fundos para a compra de matéria-prima e maquinário, os trabalhadores fazem festas e sorteios na comunidade. O empreendimento nasce, portanto, “de baixo”. A outra forma de investimento é denominada “de fora” e caracteriza-se pela intervenção de alguma instituição que fomenta o empreendimento. Segue, então, a questão da propriedade dos meios de produção nos empreendimentos estudados. Verificam-se, sucintamente, quatro formas diversas: a) propriedade coletiva não estabelecida juridicamente não havendo individualização do capital envolvido; b) propriedade individual administrada coletivamente, embora o patrimônio e o lucro permaneçam vinculados aos investimentos pessoais; c) propriedade externa em que os meios de produção pertencem a uma entidade apoiadora, apesar de serem geridos pelos trabalhadores de forma relativamente autônoma; d) propriedade coletiva combinada com a propriedade externa de uma instituição de apoio, na qual os meios de produção são devolvidos à instituição de fomento quando findam as atividades do grupo. 223 ESTUDOS DE DIREITO COOPERATIVO E CIDADANIA A divisão dos frutos do trabalho, questão de suma importância para verificação das peculiaridades dos empreendimentos populares associativos, se dá, por sua vez, de duas formas: a) são estabelecidos níveis diferenciados de remuneração; b) o lucro é dividido todo mês de forma igual, independentemente da função que cada trabalhador exerce no processo de produção. É importante salientar que pensar a distribuição dos lucros a partir da função exercida pode aumentar a desigualdade entre os trabalhadores, pois o saber que alguns detêm pode muito bem se transformar numa forma de poder no interior do espaço de produção. Estabelecido o empreendimento, prescreve-nos Tiriba a necessidade de refletir sobre o significado do trabalho associado, para que os trabalhadores, a partir de seu cotidiano, desenvolvam novas formas de relações sociais. Nesse âmbito, homens e mulheres dos setores populares aprendem que a cooperação é muito mais benéfica que a ação individual. Inclusive, conta-nos Tiriba, que a satisfeita afirmação de “não ter patrão” (p.277) é bastante comum. Destarte, a nova cultura do trabalho convive ainda com contradições, pois “não ter patrão” não pode significar desobrigação para com o grupo, o que a autora, fundamentada em Gramsci, aponta quando explicita que “uma disciplina voluntária e autônoma exige do trabalhador uma sólida disciplina” (p.279). Tal consciência individual vincula-se ao processo de aprendizado coletivo e faz-se imprescindível no seio da organização interna da produção. No que diz respeito a esse tema – a capacidade autogestionária dos empreendimentos estudados – a autora enumera três diferentes classificações, sendo a primeira, e mais limitada, a mais corriqueira. Esta se refere à viabilidade do empreendimento apenas, a segunda leva em conta que o processo autogestionário deve buscar desenvolver de forma integral a capacidade dos trabalhadores e a terceira, além das necessidades materiais e imateriais dos 224 RESENHA integrantes do empreendimento, fundamenta o aprendizado da autogestão como pressuposto de uma sociedade autônoma gerida por trabalhadores. Quanto às metas dos empreendimentos, a autora classifica-as como possibilidade de sobrevivência, de subsistência e de desenvolvimento sendo a lógica da análise pautada no lucro dos grupos estudados. Não obstante, as metas ligam-se diretamente à motivação dos trabalhadores, sendo as categorias também expostas de forma tríplice e intimamente relacionadas com a classificação há pouco assinalada: a) satisfação imediata das necessidades básicas dos trabalhadores, colocando-se o empreendimento como uma alternativa ao desemprego; b) além de alternativa de sobrevivência, o associativismo cria novas formas de convivência no interior do grupo que diferem da lógica do sistema capitalista; c) o associativismo extrapola as necessidades materiais e imateriais do grupo e os trabalhadores chegam a desenvolver projetos de mercados solidários não apenas junto à comunidade local, mas também a redes populares de comércio. O que e para quem produzir também fazem parte da análise. A começar pela questão da legalidade do empreendimento, afirma Tiriba ser esse um dos fatores que limitam e condicionam as possibilidades das OEPs no mercado, embora não seja possível estabelecer uma relação direta entre formalidade e mercado formal e informalidade e mercado informal. A autora constatou que os trabalhadores almejam a formalidade, pois sabem que a informalidade limita âmbito de atuação. A legalidade não é vista, portanto, como forma de controle político e tributário, mas como algo constitutivo da relação simbólica existente entre o trabalhador e seu trabalho. Não é, contudo, o fator legalidade o único com o qual os empreendimentos populares devem lidar no que tange à comercialização. Nesse sentido, as redes associativas aparecem 225 ESTUDOS DE DIREITO COOPERATIVO E CIDADANIA como um ponto positivo a ser desenvolvido que, em muitos casos, é jogado ao descaso. Em outros, redes solidárias se projetam de modo a fomentar os empreendimentos nas suas singularidades e a proteger o mercado solidário como um todo. Para além dos setores populares, há ainda a rede de relações estabelecidas entre os empreendimentos com o Estado, as instituições apoiadoras e os empresários. Quanto aos últimos, pôde-se observar: a) relação meramente comercial, burocrática ou reivindicatória com os governos municipais; b) além da comercialização, estabelece-se com os empresários uma relação de doação de sobra de matéria-prima e de outros instrumentos de trabalho úteis ao grupo. No que diz respeito ao Estado, a luta é por crédito ou a resolução de problemas jurídicos ou legislativos ou tributários. Quanto à inserção das ONGs, adentrando num tema atualmente deveras polêmico, não se pode negar seu papel crucial junto às OEPs, embora seja discutível até que ponto sua contribuição é crítica ou assistencialista/alienante. Há, por conseguinte, uma infinidade múltipla de parceiros e instituições que, de uma forma ou de outra, se relacionam com os empreendimentos populares associativos. Sem adentrar nesse emaranhado de intenções e projetos político-pedagógicos, conclui Tiriba que as organizações de grupos populares associativos que extrapolam seu local de produção e estabelecem parcerias, tanto no plano de sua educação quanto na venda de produtos e prestação de serviços, conseguem maior grau de estabilidade econômica e de organização interna. Tendo isso em vista, Tiriba passa a analisar, então, as relações que os grupos estudados mantêm com a comunidade local, a partir de critérios relacionados com a definição dos produtos e serviços oferecidos. Constata ela que nenhum dos grupos produz bens supérfluos, embora sejam diversos os vínculos estabelecidos para manter a unidade produtiva, desde 226 RESENHA atividades que buscam atender às demandas do mercado em geral até aquelas que privilegiam a comunidade local (que pode ou não ser popular). Além destas, há também aquelas situadas em áreas populares que buscam oferecer produtos à satisfação da própria localidade ou outras comunidades também populares. Nota a autora a dificuldade de os empreendimentos populares conseguirem cativar clientes dentro das próprias comunidades. Uma das causas apontadas é a influência dos meios de comunicação que acaba gerando nos sujeitos certa vergonha e repulsa aos bens produzidos pelas OEPs, como efeito da repulsa que sentem pelas próprias condições. Nesse sentido, o enfrentamento dessa realidade pode ter como objetivo imediato levar o consumidor local a consumir produtos locais, não obstante tal relação de compra e venda também faça parte de um projeto estratégico de educação popular, conscientização e luta contra-hegemônica. Além disso, dada a pouca capacidade do empreendimento em competir mercado afora, ficam suas mercadorias geralmente restritas à população de baixa renda, a qual não detém, por sua vez, a capacidade monetária suficiente para manter o êxito do empreendimento, o que termina, ao menos em curto prazo, num circulo vicioso do ponto de vista econômico, porém criativo sob o foco pedagógico. No que diz respeito aos preços cobrados, os critérios estabelecidos são tão variados quanto a definição do mercado no qual se deve centrar a produção, não havendo necessariamente uma busca pelo preço justo, embora tal nível de conscientização seja também encontrado. A qualidade dos produtos oferecidos não deixa de ser objeto tratado na obra. A busca pela qualidade na produção e prestação de serviços é potencializada pela pedagogia da fábrica: como os próprios trabalhadores gerenciam e produzem, a correção de falhas é mais rápida. Outro fator que também influencia nas relações com o mercado é proximidade entre o 227 ESTUDOS DE DIREITO COOPERATIVO E CIDADANIA local de produção e a moradia do trabalhador, por ser possível estreitar vínculos entre produtor-consumidor para além das relações de compra e venda. Ante a complexa rede de relações que permearam o estudo até aqui apresentado, e buscando não perder o fio condutor da pesquisa, qual seja, de compreender as potencialidades do mundo da produção popular associada a partir do processo pedagógico que nele existe, Tiriba sintetiza os fatores a serem considerados na análise: “o tipo de tecnologia que utilizam, como se relacionam com a maquinaria, como se relacionam com os companheiros de trabalho e com os moradores da comunidade sem deixar de considerar que os canais de participação e a forma mesma como está estruturada a divisão do trabalho interferem nos processos de socialização e produção do conhecimento” (p.317). Focando a relação entre os companheiros, a autora diferencia alguns graus de socialização do trabalho encontrados na pesquisa de campo para, a partir daí, definir algumas melhorias educacionais descobertas no interior dos grupos populares associados, tendo em vista que a formação de intelectuais orgânicos se dá na luta cotidiana com objetivo de resolver, horizontal e coletivamente, problemas que se apresentam. Nesse sentido, uma dificuldade é encontrada na formação do trabalhador polivalente, pois, embora seja interessante que todo o grupo detenha todo o conhecimento do processo de produção, o que muitas vezes ocorre é que a especialização técnica é adotada com vistas ao crescimento do empreendimento. Isso posto, de imediato pode-se notar a semelhança com racionalidade taylorista-fordista de produção, cuja lógica é investir nas habilidades individuais e especialização do trabalhador, em nome do crescimento da produção. Ciente disso, a autora deixa claro que, ante o problema objetivo de aumentar a produção, o processo 228 RESENHA educacional no mundo do trabalho não pode ser abandonado. Assim, afirma que as propostas mínimas encontradas nas OEPs estudadas são que todos os trabalhadores compreendam, mesmo que de forma limitada, todo o processo de trabalho em sua complexidade. Tentando relacionar sempre a questão técnica da produção ao desenvolvimento político dos trabalhadores envolvidos, Tiriba diferencia grupos em que existe democracia representativa e grupos que trabalham sobre a égide da democracia participativa. Tal diferenciação diz respeito à interferência do conjunto de trabalhadores nas mais variadas etapas do processo de produção, se ela se dá por meio de um diálogo constante, inclusive informalmente, ou se a socialização do conhecimento ocorre nos espaços formais de assembléias e comissões. Almejando entender os entraves à fluência de um processo democrático, propõe a autora que o problema da falta de democracia no interior do empreendimento está ligado, entre outros, à quantidade de trabalhadores, pelas dificuldades de uma participação efetiva de todos quando o grupo é demasiado grande. Além disso, são poucos os membros do grupo que se qualificam como “especialistas políticos”, o que torna limitado o número de trabalhadores dispostos a exercer funções político-ideológicas. Aproximando-se do fim do trabalho, Tiriba nos expõe uma espécie de desabafo que leva em conta o vazio teórico que se apresenta neste momento histórico em que as utopias parecem estar nos seus derradeiros dias, além da incapacidade dos conceitos abstratos anteriormente estabelecidos darem conta de compreender a complexa trama social que hodiernamente se apresenta. Pesem-se ainda os poucos estudos que tratam da economia popular, principalmente aqueles voltados à economia solidária, além do escasso material teórico que foque as contradições e transformações subjetivas vividas pelos 229 ESTUDOS DE DIREITO COOPERATIVO E CIDADANIA trabalhadores que se lançam numa empreitada cujo mote é produzir de forma associada para viver dignamente. De forma bastante ponderada, a autora não propõe conclusões enfáticas, mas não deixa de firmar posições quanto “aos aspectos contraditórios da(s) pedagogia(s) da produção associada, entre os quais a armadilha do ‘homem econômico’, os limites da solidariedade e os impasses da relação trabalhoeducação”. (p.338). Sintetiza ainda alguns pressupostos a serem empreendidos na formação de trabalhadores que cedo foram expulsos da escola e agora não encontram espaço nem para vender sua força de trabalho no mercado. Por fim, comenta sobre as “potencialidades da economia popular, bem como sobre a problemática do trabalho no limiar do novo século” (p.338). Primeira conclusão: não há uma, mas várias pedagogias de produção associada que se fundam em diferentes projetos econômico e políticos. A partir dessa constatação, a autora propõe dois diferentes grupos com distintos interesses que agem junto aos empreendimentos populares. O primeiro se vincula a uma lógica assistencialista que busca inserir mais trabalhadores nos mercados de trabalho e consumo atrelando o desenvolvimento dos setores populares à concepção socialdemocrata de cidadania e a legalidade econômica. Por outro lado, há agentes que se propõem a pensar as necessidades imediatas de sobrevivência dos setores populares sem deixar de vislumbrar formas mais estáveis de sobrevivência e práticas que fomentem novas relações de convivência dentro do espaço de produção e, quiçá, fora dele. No que tange aos agentes que buscam reordenação completa do sistema de produção e reprodução social, Tiriba pondera duas frentes de combate: avançar, por meio da luta de posição, no espaço estatal sem desmerecer a mudança pedagógica no interior da própria sociedade civil. 230 RESENHA Não deixa, entretanto, de ser temerário, no atual momento histórico, afirmar que os grupos de produção associada carregam em si as sementes de um processo contra-hegemônico ou mesmo que seus valores e objetivos são antagônicos aos de uma sociedade de classes. Nesse sentido, a viabilidade econômica do empreendimento é determinante para que os trabalhadores não desistam da empresa e de todos os vínculos com ela criados e voltem a tentar galgar um posto no mercado de trabalho subordinado. Entre esses vínculos, a forma de propriedade não é fator determinante na construção coletiva dos trabalhadores, diferentemente da posse coletiva dos meios de produção que se configura como “um indicativo do tipo de relação que os trabalhadores estabelecem entre si, com os parceiros, com a comunidade local e com a sociedade” (p.350). Sem romantizar as relações estabelecidas pelas OEPs, Tiriba pontua haver graus de solidariedade vários, principalmente no processo de trabalho e da divisão dos lucros do empreendimento. Mesmo que esses fatores se mostrem como indicadores de uma economia popular de solidariedade, as novas relações sociais podem ficar restritas ao local de produção, até porque, como já dito, não há necessariamente dialogicidade entre o empreendimento e a comunidade que o cerca. Da mesma forma, as redes solidárias que formam o famigerado “mercado solidário” não podem resumir-se ao ato da comercialização, caso se tenha em mente desenvolver todas as potencialidades das OEPs. Colocado o problema da solidariedade, Tiriba leva em conta as condições miseráveis de subsistência que permeiam o tecido social e a “universalização” tanto da lógica individualista quanto das pretensões de consumo para concluir que “não se pode falar de uma ‘solidariedade de classe’, mas de uma ‘solidariedade humana’, no sentido (...) da preservação da própria vida” (p.354). Não obstante, é interessante verificar empiricamente as potencialidades pedagógicas dos 231 ESTUDOS DE DIREITO COOPERATIVO E CIDADANIA empreendimentos populares associados no sentido de mostrarem avanços em relação à concepção de trabalhador como mero apêndice da máquina. Sem enaltecer gratuitamente a cultura do trabalho nas OEPs, suas possibilidades podem estar no seio de uma nova sociedade que viria a substituir o atual modelo de produção e reprodução social. Há que se pensar, tomada esta vereda, os diferentes graus de conscientização encontrados entre os grupos estudados e verificar em que patamar eles estariam se partíssemos, por exemplo, dos momentos de conscientização gramscianos: a) momento econômico corporativo, b) momento de consciência política e c) momento de construção de um projeto contra-hegemônico. Os principais problemas encontrados ao longo do estudo não se referem, entretanto, às novas formas de produção nem de relações sociais desenvolvidas pelos trabalhadores, mas se remetem à fragilidade dos empreendimentos associativos populares tanto no aspecto econômico (o qual envolve fundamentalmente aquisição de tecnologia e de capital de giro) quanto no político. Nesse sentido, a disputa dos fundos públicos e políticas públicas sérias continuam sendo de primordial importância para o desenvolvimento das OEPs. Em que pese, por fim, o fato de as OEPs não ocuparem nem os setores de alta tecnologia nem os estratégicos da economia global, de não conseguirem sair do véu da escuridão que os encobre perante o Estado e o restante da sociedade com poder suficiente para articularem a economia popular como um projeto político para a nação, a economia popular associada se mostra como um espaço no qual se pode avançar na questão da cultura do trabalho por se colocar como um “amplo processo práxico-produtivo” (p. 374). 232 I N D I C A Ç ÃO D E L E I T U R A S ARAÚJO, Silvia Maria Pereira de. Eles: a cooperativa; um estudo sobre a ideologia da participação. Curitiba: Projeto, 1982. BECHO, Renato Lopes. Elementos de Direito Cooperativo (de acordo com o novo Código Civil). São Paulo: Dialética, 2002. BECHO, Renato Lopes. Tributação das Cooperativas. São Paulo: Dialética, 1999. BECHO, Renato Lopes. Problemas atuais do Direito. São Paulo: Dialética, 2002. BITTENCOURT, Gilson Alceu. 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cidadania; princípio constitucional; movimento social ORIENTADOR: Prof. Dr. Alvacir Alfredo Nicz DEFESA: Ano: 30.9.2003 SANTOS, Jairo Augusto dos O método do discurso: ensaio sobre a emancipação humana ASSUNTO: Discurso; comunicação; emancipação humana ORIENTADOR: Prof. Dr. Celso Luiz Ludwig DEFESA: Ano: 6.11.2003 E-MAIL: [email protected] AUTOR: TÍTULO: MESTRANDOS MESTRANDO: André Viana da Cruz ORIENTADOR: Prof. José Antônio Peres Gediel PROJETO DE DISSERTAÇÃO: A Proteção dos bens arqueológicos: da ação cooperativa à forma jurídica E-MAIL: [email protected] MESTRANDO: Claudia Afanio ORIENTADOR: Prof. José Antônio Peres Gediel PROJETO DE DISSERTAÇÃO: As Cooperativas de Trabalho no Brasil e a sua Regulação Jurídica E-MAIL: [email protected] MESTRANDO: Edson Galdino Vilela de Souza ORIENTADOR: Prof. Abili Lázaro Castro de Lima PROJETO DE DISSERTAÇÃO: Cooperativismo de Crédito, no Brasil: cidadania e riqueza; potencialidades e entraves E-MAIL: [email protected] 240 PÓS-GRADUAÇÃO EM DIREITO COOPERATIVO E CIDADANIA - UFPR MESTRANDO : Eduardo Faria Silva ORIENTADOR: Prof. José Antônio Peres Gediel PROJETO DE DISSERTAÇÃO: Direito à Liberdade de Associação: por uma compreensão constitucional E-MAIL: [email protected] MESTRANDO: Fábio Moura de Vicente ORIENTADOR: Prof.ª Liana Maria da Frota Carleial PROJETO DE DISSERTAÇÃO: O Regime Tributário dos Diversos Atos Praticados pelas Cooperativas E-MAIL: [email protected] MESTRANDO: João Marcelo Borelli Machado ORIENTADOR: Prof. José Antônio Peres Gediel PROJETO DE DISSERTAÇÃO: Cooperativas Populares Camponesas E-MAIL: [email protected] MESTRANDO: Luciana Souza de Araujo ORIENTADOR: Prof. Cesar Antonio Serbena PROJETO DE DISSERTAÇÃO: A Construção da Identidade Cooperativa E-MAIL: [email protected] MESTRANDO: Marcelo Oliveira dos Santos ORIENTADOR: Prof. Romeu Felipe Bacellar Filho PROJETO DE DISSERTAÇÃO: Participação das cooperativas de trabalho nas licitações públicas E-MAIL: [email protected] MESTRANDO: Marcial Carlos Ribeiro Junior ORIENTADOR: Prof. Abili Lázaro Castro de Lima PROJETO DE DISSERTAÇÃO: As Implicações Legais do Setor de Saúde Suplementar Brasileira sobre a Legislação Cooperativista: Participação das Pessoas Jurídicas Cooperadas Patrocinadoras de Saúde como Solução para o Financiamento e Autogestão de Sistemas Cooperativistas de Saúde 241 ESTUDOS DE DIREITO COOPERATIVO E CIDADANIA MESTRANDO: Marcos Rafael G. 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E-MAIL: [email protected] MESTRANDO: Wilton Borges dos Santos ORIENTADOR: Prof. Celso Luiz Ludwig PROJETO DE DISSERTAÇÃO: O Cooperativismo Solidário e AutoSujeição dos Sujeitos – Um Caminho para a Efetivação dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais E-MAIL: [email protected] 242 243 Este livro foi composto em Univers e impresso em papel Pólen Soft Natural 70g/m2. Capa em papel Cartão Supremo 250g/m2. Tiragem:1.000 exemplares.