O BEIJO Mandamento: beijar a mão do Pai às 7 da manhã, antes do
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O BEIJO Mandamento: beijar a mão do Pai às 7 da manhã, antes do
O BEIJO Que é isso? Nô sangra na alma, Mandamento: beijar a mão do Pai a boca dói que dói às 7 da manhã, antes do café é lá dentro, na alma. O dia, a noite, e pedir a bênção a fuga para onde? Foge Nô e tornar a pedir no breu do não-saber, sem rumo, foge na hora de dormir. de si mesmo, consigo, Mandamento: beijar e não tem saída a mão divino-humana a não ser voltar, que empunha a rédea universal voltar sem chamado, e determina o futuro. para junto da mão Se não beijar, o dia que espera seu beijo não há de ser o dia prometido, na mais pura exigência a festa multimaginada, de terroramor. mas a queda — tibum — no precipício Olha o caso de Nô. de jacarés e crimes 7 da manhã. que espreita, goela escancarada. Antes do café. Olha o caso de Nô. Cresce demais, vira estudante de altas letras, no Rio de outras normas. Volta, não beija o Pai na mão. A mão procura a boca, dá-lhe um tapa, maneira dura de beijar Figurativa Adélia Prado O pai cavando o chão mostrou pra nós, com o olho da enxada, o bicho bobo, a cobra de duas cabeças. Saía dele o cheiro de óleo e graxa, o filho que não beija a mão sequiosa cheiro-suor de oficina, o brabo cheiro bom. de carinho, gravado Nós tínhamos comido a janta quente nas tábuas da lei mineira de família. de pimenta e fumaça, angu e mostarda. Pisando a terra que ele desbarrancava aos socavões, catava tanajuras voando baixo, As tanajuras no sol, a beira da linha, na poeira de ouro das cinco horas. o verde do capim espirrando entre os tijolos A mãe falou pra mim: "Vai na sua avó buscar polvilho, vou fritar é uns biscoitos pra nós". A voz dela era sem acidez. "Arreda, arreda", o pai falava com amor. da beirada da casa descascada, a menina embaraçada com a opressão da alegria, o coração doendo, como se triste fosse. Este módulo se desenvolverá em torno do tema "Entre o medo e o amor" e terão como objeto de análise os poemas “O Beijo” e “Figurativa”. Objetiva-se explicar a complexa relação familiar que existiu no Brasil no século XIX e início do século XX e como a formação familiar influencia na formação do pensamento humano e, muitas vezes, direciona até mesmo suas ações. A família representa um grupo social primário que influencia e é influenciado por outras pessoas e instituições. É um grupo de pessoas, ou um número de grupos domésticos ligados por descendência (demonstrada ou estipulada) a partir de um ancestral comum, matrimônio. Nesse sentido, o termo confundese com clã. Dentro de uma família existe sempre algum grau de parentesco. Membros de uma família costumam compartilhar do mesmo sobrenome, herdado dos ascendentes diretos. A família é unida por múltiplos laços capazes de manter os membros moralmente, materialmente e reciprocamente durante uma vida e durante as gerações. (MINUCHIN, 1990. p. 25). A formação da família do século XX no Brasil foi fortemente marcada pela estrutura da família patriarcal, família essa que imperou no Brasil desde a chegada dos primeiros portugueses no século XVI até os meados do século XIX, sendo que então uma nova família começa a formar-se, influenciada pelo desenvolvimento econômico de alguns centros urbanos. 3.2 Entre o amor e o medo análise dos poemas “O Beijo” e “Figurativa” A rigidez com que o patriarca se impunha sobre as pessoas que estavam sob sua tutela criou hábitos e costumes que ficaram fortemente impregnados no seio da família patriarcal. É sob esse prisma que será analisado o poema “O Beijo”, de Drummond, no qual o pai é visto como a autoridade máxima dentro da família, e é em relação a essa autoridade, rememorada pela memória de infância do eu-lírico drummondiano, e traduzida através desse poema, que se vai compreender o temor que os filhos nutriam pelo patriarca. Em contraposição ao poema “O Beijo”, será analisado o poema “Figurativa”, de Adélia Prado, poema no qual o eu-lírico se atém a uma relação familiar diferente daquela presente no eu-poético de “O Beijo”, devido à relação de amor existente na família expressa pelo eu-lírico de “Figurativa”, de forma a demonstrar a aproximação entre pais e filhos e não o distanciamento, como no poema “O Beijo”, de Carlos Drummond de Andrade. O poema “O Beijo”, de Drummond, retrata o costume, que ainda estava fortemente arraigado nas famílias brasileiras do início do século XX, de se tomar a bênção paterna, ato exteriorizado através da ação de beijar a mão do pai e da mãe e de pedir a bênção. Esse gesto demonstrava toda a submissão do filho em relação ao pai e, em menor grau, à mãe, deixando claro o poder que eles –principalmente o pai –exerciam sobre o filho. O jovem então, educado segundo as normas rígidas da família patriarcal, conhece o primeiro mandamento inscrito nas tábuas da lei da família mineira: “Mandamento: beijar / a mão divino-humana / que empunha a rédea universal / e determina o futuro. / Se não beijar, o dia / não há de ser o dia prometido, / a festa multimaginada, / mas a queda –tibum –no precipício / de jacarés e crimes / que espreita, goela escancarada...” (p. 509). Esse era o destino, segundo a crença, dos filhos que ousassem não beijar a mão dos pais –escorpiões, serpentes, jacarés –a empurrá-los no precipício. Pedir a bênção paterna era ritual a ser feito também antes de ir para a cama, à noite. Esse beijo era demonstração de amor, de respeito, uma espécie de “terror/amor”, que, ao mesmo tempo, lembrava ao filho a distância a ser mantida entre ele e o patriarca. Quando esse beijo não acontecia, como no caso de Nô –um exemplo a não ser seguido –no poema “O Beijo”, seu pai, sem nenhuma demonstração de pena, dá um tapa na boca de Nô, como um beijo às avessas, isto é, a punição face à falta de respeito e falta de reverência, conforme os versos: “Olha o caso do Nô / cresce demais, vira estudante/ de altas letras, no Rio e de outras normas./ Volta, não beija o pai/ na mão. A mão procura /a boca, dá-lhe um tapa,/ maneira dura de beijar”, (p. 509). Nô, ao sair para estudar em um centro maior, tem um novo comportamento, que parece ao pai uma afronta à sua autoridade, porque: O domínio do pai sobre o filho menor –e mesmo maior –fora, no Brasil patriarcal, aos seus limites ortodoxos: ao direito de matar. O patriarca tornara-se absoluto na administração da justiça de família, repetindo alguns pais, à sombra dos cajueiros de engenho, os gestos mais duros do patriarcalismo clássico: matar e mandar matar, não só os negros como os meninos e as moças brancas, seus filhos. (FREYRE, 2000, p. 99). Enquanto o eu-lírico de Drummond retrata a mágoa de Nô, devido aos costumes severos, oriundos de uma sociedade já decadente, o eu-lírico de Adélia Prado, no poema “Figurativa”, descreve um relacionamento familiar mais moderno, mais aberto, divertido. Essa forma natural de aproximação entre pais e filhos pode ser percebida já nos três primeiros versos, quando o eu-lírico adeliano escreve “... O pai cavando o chão mostrou pra nós /com o olho da enxada, o bicho bobo/ a cobra de duas cabeças”, seguindo ainda, no verso quatro, “Saía dele o cheiro de óleo e graxa...” (p. 136). A partir dos versos supracitados se evidencia a harmonia natural entre os membros da família – com destaque para a ternura do pai –que, naquele final de tarde, entre o anoitecer e o jantar, que faz das ações mais corriqueiras, como o cavar a terra –pelo pai –seja um momento de encantamento que se tornará perene na memória da menina, como uma espécie de epifania –no sentido de revelação – de que os laços afetivos entre pais e filhos não precisam ser demonstrados com rasgados gestos de amor, ou de demonstração de subserviência, como no poema “O beijo”, mas que subjazem às ações mais corriqueiras, que se convertem em uma memória perene: fonte de amor e de harmonia a ser rememorada com ternura ao longo da vida. Também a mãe, tocada por aquele momento de interação, tão corriqueiro quanto o verdadeiro amor familiar, manda a filha à casa da avó buscar polvilho para fritar uns biscoitos, através dos quais ela manifestará a ternura da qual, assim como o pai, está tomada e que permeia toda a família. Ou seja, aqueles momentos serão tão singelos, após um jantar com sua simplicidade –angu, mostarda e a comida apimentada –converte-se em uma autêntica comunhão que se manifesta na ternura do pai e da mãe e que fica gravada de forma indelével na memória do eu-lírico, conforme demonstram os últimos versos do poema: “... a menina embaraçada/ com a opressão da alegria, o coração doendo, / como se fosse triste" (p. 136). Em “Figurativa”, as relações estão sendo vividas sob um novo prisma, ainda respeitoso, porém há o ar da liberdade e da afetividade demonstrada sem medo. Há que se destacar que o poema de Drummond remete à agonia da família patriarcal, ainda muito presa aos valores do passado, mas já combalida pelos novos valores urbanos que já se abeiram das casas patriarcais. Esses novos valores, à revelia do patriarca, ao longo do final do século XIX e primeiras décadas do século XX, mudarão em definitivo as relações entre pais, filhos e a sociedade em geral e, nessa nova ordem, a figura do patriarca, com seu poder efetivo, declinará categoricamente. No poema de Adélia Prado, a família é pobre, mas há, ainda, uma relação muito respeitosa dos filhos e as manifestações de amor são veladas, entretanto, a ternura está de tal forma mesclada às ações mais cotidianas que chega a ser dolorido para a menina a constatação de tamanha consciência do amor.