outras controvérsias decorrentes da relação de trabalho

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outras controvérsias decorrentes da relação de trabalho
COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO: A EXPRESSÃO “OUTRAS
CONTROVÉRSIAS DECORRENTES DA RELAÇÃO DE TRABALHO” E OS EFEITOS
DE SUA INTERPRETAÇÃO AMPLIATIVA
FERNANDA PINHEIRO BROD
Doutoranda em direito pela PUC/RS
Mestre em direito pela UNISC
Professora de direito e processo do trabalho do centro universitário UNIVATES
Advogada
SUMÁRIO: Introdução; 1 A competência atribuída à Justiça do Trabalho nas Constituições
brasileiras; 2 A ampliação da competência da Justiça do Trabalho ocasionada pela Emenda
Constitucional 45/2004; 3 A EXPRESSÃO “OUTRAS CONTROVÉRSIAS DECORRENTES DA
RELAÇÃO DE TRABALHO” E AS INTERPRETAÇÕES POSSÍVEIS; 4 UMA MUDANÇA DE
PARADIGMA A PARTIR DA ADOÇÃO DA EXPRESSÃO “RELAÇÃO DE TRABALHO” NA
REDAÇÃO DO ARTIGO 114 DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL; CONCLUSÃO;
REFERÊNCIAS.
RESUMO: O presente trabalho pretende discutir a competência material da Justiça do Trabalho,
com ênfase no disposto no inciso IX do artigo 114 da Constituição Federal, dispositivo que, após as
alterações ocasionadas pela Emenda Constitucional 45, de 31/12/2004, inclui no rol de matérias
atribuídas à Justiça do Trabalho “outras controvérsias decorrentes da relação de trabalho, na forma
da lei.” O objetivo deste trabalho é, pois, analisar o alcance de referida expressão, bem como o
sentido que lhe tem sido impingido pela doutrina e jurisprudência. Para tanto, parte-se de uma breve
digressão histórica, analisando-se a evolução da Justiça do Trabalho no tocante à organização de sua
competência, analisam-se as principais alterações havidas através da mencionada Emenda
Constitucional e suas consequências para o processo do trabalho para, por fim, apontar não apenas
um mais vários sentidos possíveis para a expressão contida no inciso IX do artigo 114 da
Constituição da República e suas consequências no plano processual e procedimental.
PALAVRAS-CHAVE: Processo do trabalho. Justiça do Trabalho. Competência. Emenda
Constitucional 45. Relação de trabalho.
ABSTRACT: The present paper intend to discuss the material competence of the Labor Justice,
with emphasis on the provisions of section IX of article 114 of the Brazilian Federal Constitution,
which after the changes caused by the 45th Constitutional Amendment, of December 31 2004,
includes in the list of subjects assigned to the Labour Court "other controversies caused by the labor
relations, according to the law." The aim of this paper is to analyze the reach of that expression, as
well as the meaning that it has been enforced by the doctrine and jurisprudence.To this end, it
begins with a brief historical digression, analyzing the evolution of the Labor Justice, in the
meaning of the organization of its competence, and the main changes caused by the referred
Constitutional Amendment and its consequences to the Labor Process to, in the end, indicate not
only one, but many possible meanings to the expression contained in the section IX of article 114 of
the Republic Constitution and its consequences to the processual and procedimental plans.
KEYWORDS: Labor Process. Labor Justice. Competence. 45th Constitutional Amendment. Labor
relations.
INTRODUÇÃO
Nascida como órgão ainda não integrante do Poder Judiciário, mas ao qual se pretendia
atribuir questões nitidamente jurisdicionais, voltada à conciliação dos conflitos entre empregados e
empregadores, à Justiça do Trabalho não compete nos dias atuais resolver apenas questões próprias
da relação de emprego. Conflitos oriundos da relação de trabalho, sejam eles conflitos sindicais,
conflitos envolvendo o exercício do direito de greve, execução de alguns tributos federais, além de
defesas contra atos administrativos específicos da Auditoria Fiscal da União constituem atualmente
matérias de competência da Justiça do Trabalho, especialmente após as alterações havidas por força
da Emenda Constitucional 45/2004.
A análise do tema objeto de estudo a partir de uma perspectiva histórica se mostra essencial
para a compreensão do alcance que se pode atribuir a determinadas expressões atualmente contidas
no texto constitucional. Especificamente, dentre as diversas alterações havidas através da Emenda
Constitucional 45, um dos aspectos que tem causado mais discussão na doutrina e jurisprudência,
diz respeito ao contido no inciso IX do artigo 114 da Constituição Federal de 1988. Ao prever que a
competência da Justiça do Trabalho se estende a outras controvérsias decorrentes da relação de
trabalho, na forma da lei, o legislador constituinte deixa claro que a competência da Justiça do
Trabalho não mais se restringe aos litígios envolvendo empregados e empregadores, mas que há
clara intenção em ampliar este espectro. Os limites desta ampliação, contudo, ainda causam
discussão, pois relação de trabalho é conceito amplo, que abrange diversas situações jurídicas: o
trabalho autônomo, voluntário, cooperado, do estágio, dentre outros. Estão todos eles abrangidos
pelo contido no mencionado inciso? E quanto a outras demandas surgidas em virtude da relação de
trabalho, situações fáticas que não puderam ser previstas especificamente pelo legislador
constituinte, dada a multiplicidade de possibilidades da vida do trabalho? O mencionado dispositivo
é auto-aplicável ou há que se aguardar a regulamentação na esfera infraconstitucional? Ainda
permanecem dúvidas e diversos são os posicionamentos, seja doutrinários, seja jurisprudenciais.
Competência “é a outorga legal que os órgãos do Poder Judiciário possuem para julgar
determinadas lides que são levadas ao seu conhecimento.”1 É a legitimidade que o órgão
jurisdicional possui para atuar no caso concreto.2 Não se confunde com jurisdição, que é o poderdever atribuído a todos os juízes para pacificar as lides, aplicando o direito mediante o
pronunciamento de decisões judiciais. Segundo Chiovenda,3 a competência dos órgãos
jurisdicionais pode ser classificada sob um critério objetivo, segundo a natureza da causa (ratione
materiae), segundo a qualidade das partes (ratione personae) e segundo o valor da causa (ratione
valoris); sob um critério territorial e sob um critério funcional. Para os limites do presente trabalho
interessa especialmente a competência ratione materiae e a competência ratione personae, por
serem os critérios utilizados pelo legislador constituinte para definir o âmbito de atuação da Justiça
do Trabalho no Brasil. Trata-se de questão de política judiciária, cuja opção acaba por ser norteada a
partir de interesses econômico-sociais.4 Mas apenas estes? Ao se referir à divisão de competências
entre a Justiça Comum e as especializadas, lembra Perin que:
não pode haver critérios aleatórios, guiado por caprichos, por disputas de espaços, e de
matérias, geralmente surgidos quando as ambições institucionais e pessoais não são
devidamente relativizadas, para que sejam adequadas aos princípios da proporcionalidade,
da razoabilidade, da economicidade, da impessoalidade, da supremacia do interesse
público, da moralidade, da eficiência, da legitimidade, dentre outros (...)5
Até a publicação da Emenda Constitucional 45, a competência material da Justiça do
Trabalho no Brasil se dava essencialmente em razão da qualidade das partes (ratione persoane) uma
vez que o artigo 114 da Constituição Federal, em sua redação original fazia referência expressa a
“trabalhadores e empregadores”. Com a nova redação do artigo 114 da Constituição Federal, o
critério de distribuição de competência não se fixa unicamente em razão da qualidade dos sujeitos
envolvidos na lide, mas também em virtude da natureza das matérias discutidas. Ampliou-se
significativamente o âmbito de atuação da Justiça do Trabalho, o que certamente não ocorreu por
mero capricho do legislador, mas considerando especialmente as características do processo do
trabalho, na tentativa de imprimir às demais matérias e sujeitos as mesmas características e regras
procedimentais (oralidade, irrecorribilidade das decisões interlocutórias, execução de ofício,
1 ZANGRANDO, Carlos Henrique da Silva. Processo do Trabalho: moderna teoria geral do direito processual. Rio
de Janeiro: Forense Universitária, 2007, p. 276.
2 RUIZ, Ivan Aparecido. Primeiras impressões acerca da competência prevista no art. 114 da CF/88, de acordo com a
reforma constitucional. In WAMBIER, Teresa Arruda Alvim ...(et al.) (Coord.). Reforma do Judiciário: primeiros
ensaios críticos sobre a EC 45/2004. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2005.
3 CHIOVENDA, Giuseppe. Instituições de direito processual civil. Campinas: Bookseller, 1998.
4 GIGLIO, Wagner D. Direito processual do trabalho. 16. ed. São Paulo, Saraiva, 2007.
5 PERIN, Jair José. Considerações críticas a respeito da divisão de competências entre a Justiça Comum e as
especializadas. Revista de informação legislativa. Brasília a. 44 n. 175 jul./set. 2007, p. 215.
exigência de depósito recursal) já características do processo do trabalho.6
Assim, a análise das matérias atualmente atribuídas à competência da Justiça do Trabalho
não pode prescindir de uma breve retomada sob o ponto de vista histórico, até mesmo com o intuito
de que se perceba a vontade política imanente às alterações havidas na legislação pátria nesse
sentido, neste ou em anteriores momentos, aspecto que será abordado a seguir.
1
A
COMPETÊNCIA ATRIBUÍDA
À
JUSTIÇA
DO
TRABALHO
NAS
CONSTITUIÇÕES BRASILEIRAS
Lembra Campos Batalha que, nos primórdios do processo do trabalho, “o poder de dizer o
direito acerca das relações de trabalho, então amalgamadas nas leis civis e comerciais, competiu à
magistratura ordinária. Não só os juízes comuns dirimiam as controvérsias, como também o rito
processual era fixado pelas leis ordinárias do processo.”7 Em 1922 surgem em São Paulo os
tribunais rurais, compostos de juiz de direito e de dois outros membros (um designado pelo locador
da propriedade rural, outro pelo locatário da mesma – numa primeira tentativa de composição
paritária8), para apreciar lides decorrentes dos contratos de locação de serviços agrícolas.
Em 25 de novembro 1932, através do Decreto 22.132, surgem as Juntas de Conciliação e
Julgamento, para dirimir conflitos individuais e, mediante o Decreto 21.396, de 12 de maio de 1932,
são instituídas as Comissões Mistas de Conciliação, para dirimir os conflitos coletivos. Embora a
incipiência do surgimento da Justiça do Trabalho, lembra Batalha que o funcionamento destes
órgãos era “precaríssimo”. “As Juntas eram órgãos amputados; faltava-lhes o poder de executar
suas próprias decisões e estas eram passíveis de anulação na fase executória que se processava
perante a magistratura comum.”9 Tais órgãos pertenciam ao Poder Executivo, não tendo autonomia
administrativa ou jurisdicional, pois eram anexos ao Ministério do Trabalho, Comércio e Indústria.
Ainda assim, somente os empregados sindicalizados tinham acesso às Juntas ou Comissões
6 Conforme ALMEIDA, “Por força da ampliação da competência da Justiça do Trabalho, o processo do trabalho, se
antes da Emenda Constitucional n. 45/2004 era instrumento de realização concreta do Direito do Trabalho, agora
passa a ser, também, instrumento de realização concreta das normas materiais disciplinadoras das relações de
trabalho humano.” ALMEIDA, Cléber Lúcio de. Direito processual do trabalho. Belo Horizonte: Del Rey, 2006,
p. 158.
7 BATALHA, Wilson de Souza Campos. Tratado de direito judiciário do trabalho. São Paulo: LTr, 1995, p. 260.
8 Inspirada, segundo a doutrina, na Carta del Lavoro de 1927, de Mussolini, adotando-se o regime corporativista.
9 Op. Cit., p. 261-262.
Mistas.10
A Constituição de 1934 foi o primeiro texto fundamental para a criação da Justiça do
Trabalho no Brasil,11 assentando o critério da paridade de representação das categorias profissionais
e econômicas,12 estabelecendo que, “para dirimir questões entre empregados e empregadores, fica
instituída a Justiça do Trabalho”. Entretanto, deixava claro que não lhe era aplicável o disposto no
capítulo que trata do Poder Judiciário (art. 122).13
A Constituição Federal de 1937, também fazia menção à Justiça do Trabalho, “para dirimir
conflitos oriundos das relações entre empregados e empregadores, reguladas na legislação social”,
embora ainda não a incluísse dentre os órgãos do Poder Judiciário, o que só veio a ocorrer através
da Constituição de 1946, quando a Justiça do Trabalho passou a fazer parte do Poder Judiciário da
União. Referida norma, estabelecida a partir de princípios democráticos, dispunha que era
competência da Justiça do Trabalho “conciliar e julgar dissídios individuais e coletivos entre
empregados e empregadores e as demais controvérsias oriundas das relações de trabalho regidas por
legislação especial.”
A Constituição de 1967 praticamente repetia as disposições da Constituição anterior, o
mesmo ocorrendo em relação à Emenda Constitucional 1/69. Ambas as normas determinavam que
as questões envolvendo acidentes de trabalho eram de competência da Justiça dos Estados.
A redação original do artigo 114 da Constituição de 1988, como se viu, determinava que a
competência da Justiça do Trabalho era para “conciliar e julgar os dissídios individuais e coletivos
entre trabalhadores e empregadores, abrangidos os entes de direito público externo e da
administração pública direta e indireta dos Municípios, do Distrito Federal, dos Estados e da União,
e, na forma da lei, outras controvérsias decorrentes da relação de trabalho, bem como os litígios
10 MARTINS, Sergio Pinto. Direito processual do trabalho: doutrina e prática forense, modelos de petições, recursos,
sentenças e outros. São Paulo: Atlas, 2011.
11 BATALHA (Op. Cit., p. 274) lembra que “referida Constituição não oferecia qualquer aspecto de totalitarismo, não
sofrendo as influências alienígenas da década de 30 e caracterizando-se como social-democrática à feição da
República de Weimar.” Tal observação vem contrapor o posicionamento de parte da doutrina, que afirma que a
criação da Justiça do Trabalho teve inspiração fascista, em uma época de autoritarismo e sob a vigência da
Constituição de 1937 (Carta do Estado Novo). A respeito, ver ROMITA, Arion Sayão. Direito do trabalho: temas
em aberto. São Paulo: LTr, 1998, autor que vê a Justiça do Trabalho como “produto do Estado Novo” (pp. 611-631).
12 A chamada representação classista na Justiça do Trabalho, que restou extinta com a Emenda Constitucional 24/99,
alteração esta que fulminou os artigos 665 a 667 da CLT, bem assim todas as demais disposições
que diziam
respeito à nomeação e investidura dos respectivos representantes e seus suplentes.
13 Lembra Wilson Campos Batalha que, com clara influência da Constituição de Weimar, foi sob a vigência da
Constituição de 1934 que o Ministro do Trabalho Agamenon Magalhães submeteu à apreciação do Presidente da
República anteprojeto de organização da Justiça do Trabalho, elaborado sob sua orientação e com a colaboração do
eminente jurista Oliveira Viana.
que tenham origem no cumprimento de suas próprias sentenças, inclusive coletivas” (grifo nosso).
Esta redação, segundo Martins:
tratava da competência da Justiça do Trabalho em razão das pessoas. Agora, na redação
determinada pela Emenda Constitucional nº 45, nos incisos I e seguintes da Lei Maior há
um arrolamento de matérias: relação de trabalho, exercício do direito de greve, habeas
corpus, habeas data, mandado de segurança, execução da contribuição previdenciária, etc.
A relação de trabalho era um critério secundário, dependendo da previsão da lei para
estabelecer a competência da Justiça do Trabalho. Agora, com a Emenda Constitucional nº
45, passou a ser o critério principal.14
Antes da Emenda Constitucional ora estudada, contudo, é preciso lembrar que a Justiça do
Trabalho passou por um período que a nosso ver constituiu uma certa “tentativa de desprestígio”,
através da inserção de medidas alternativas de resolução de conflitos, como as Comissões de
Conciliação Prévia e a própria previsão de arbitragem no âmbito coletivo. Tais mecanismos, no
nosso sentir, indicam uma clara tentativa de esvaziamento da Justiça do Trabalho, mormente se
considerarmos que sua inclusão no direito pátrio ocorre durante a década de 90, período durante o
qual também foram adotados mecanismos de flexibilização das condições de trabalho no âmbito
material, como a adoção do banco de horas e o contrato especial por tempo determinado.15 Esse
movimento parece ocorrer em sentido contrário nos tempos atuais, quando se verifica uma
valorização desta Justiça Especializada, através da ampliação de sua competência mediante a
inserção de um rol de matérias antes não discutidas na Justiça do Trabalho e reconhecimento da
efetividade dos procedimentos nela adotados.
É justamente em torno deste arrolamento de matérias, em especial no que diz respeito à
relação de trabalho, que se concentram as principais críticas e discussões no tocante ao assunto ora
abordado. O rol de matérias que passou a ser atribuição da Justiça do Trabalho é relativamente
extenso, se comparado com a redação anterior do dispositivo, de modo que tentaremos abordá-lo,
ainda que de forma sucinta, no item a seguir.
14 MARTINS, Sérgio Pinto. Op. Cit., p. 92.
15 Lembra o Ministro Maurício Godinho Delgado que “No
Brasil – onde sequer se havia construído qualquer
projeto de Democracia Social, com suas conquistas e garantias em benefício das grandes maiorias
populacionais –, a reunião, na década de 1990, do velho padrão cultural excludente aqui hegemônico,
com as novas vertentes intelectuais justificadoras do descompromisso social, tudo conduziu a um
movimento irreprimível de fustigação e desprestígio do Direito do Trabalho.” DELGADO, Maurício
Godinho. As duas faces da nova competência da Justiça do Trabalho. In Revista do TST. Brasília, Vol. 71, n. 2,
maio/ago 2005, p. 110.
2 INOVAÇÕES DE MATÉRIAS APÓS A EMENDA CONSTITUCIONAL 45/2004
A Emenda Constitucional 45, também chamada emenda da “reforma do Poder Judiciário”
trouxe, dentre outros aspectos que não serão detalhados no presente trabalho,16 significativa
alteração na competência da Justiça do Trabalho. Em primeiro lugar, a nova redação dada ao artigo
114 da Constituição Federal,17 não faz mais referência a que a Justiça do Trabalho vá conciliar os
litígios postos a sua apreciação, mas sim processá-los e julgá-los. Isto não significa que não se possa
estimular a conciliação no processo trabalhista, até mesmo porque há lei ordinária regulando a
respeito (artigos 846 e 850 da CLT), mas esclarece que a conciliação já não é mais um dever
constitucional dos Juízes do Trabalho (até porque, como lembra Martins, “a determinação do
dispositivo é correta no ponto em que, ao fazer menção aos incisos, não seria possível conciliar
questão relativa a mandado de segurança que compreende ato de autoridade pública.”)18
A Emenda Constitucional 45 inseriu, ainda, outras alterações na competência da Justiça do
Trabalho, as quais não serão detalhadas pormenorizadamente no presente trabalho, por excederem
os limites da pesquisa, mas cuja menção não se pode excusar. São elas: a competência da Justiça do
Trabalho para julgar ações que envolvam o exercício de greve (artigo 114, II);19 as ações sobre
16 Dentre as significativas mudanças, podemos citar: introdução do princípio da razoável duração do processo; adoção
do critério de proporcionalidade do número de juízes em relação à população e à demanda judicial; distribuição
imediata dos processos; atividade ininterrupta do Judiciário; extinção dos Tribunais de Alçada; ampliação da
competência da Justiça do Trabalho; competência do STJ para homologação da sentença estrangeira e para
concessão de exequatur às cartas rogatórias; inovações no recurso extraordinário, introdução da súmula vinculante e
criação do Conselho Nacional de Justiça e Conselho Nacional do Ministério Público.
17
Art. 114. Compete à Justiça do Trabalho processar e julgar:
I as ações oriundas da relação de trabalho, abrangidos os entes de direito público externo e da administração
pública direta e indireta da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios;
II as ações que envolvam exercício do direito de greve;
III as ações sobre representação sindical, entre sindicatos, entre sindicatos e trabalhadores, e entre sindicatos e
empregadores;
IV os mandados de segurança, habeas corpus e habeas data , quando o ato questionado envolver matéria sujeita
à sua jurisdição;
V os conflitos de competência entre órgãos com jurisdição trabalhista, ressalvado o disposto no art. 102, I, o;
VI as ações de indenização por dano moral ou patrimonial, decorrentes da relação de trabalho;
VII as ações relativas às penalidades administrativas impostas aos empregadores pelos órgãos de fiscalização
das relações de trabalho;
VIII a execução, de ofício, das contribuições sociais previstas no art. 195, I, a , e II, e seus acréscimos legais,
decorrentes das sentenças que proferir;
IX outras controvérsias decorrentes da relação de trabalho, na forma da lei.
18 MARTINS, Sérgio Pinto. Op. Cit., p. 93.
19 Conforme SIILVA NETO, compreende-se a extensão: “antes da EC 45/2004, muitas decisões da Justiça Comum
impuseram severa restrição ao exercício do direito de greve pelos trabalhadores por meio da tutela jurisdicional de
interditos proibitórios propostos por empresas; agora, com a nova redação, todas as repercussões de color trabalhista
e civil serão analisadas pela Justiça do Trabalho, particularmente no tocante às últimas no que se refere às
reparações pelo exercício abusivo do direito que tenha causado dano ao patrimônio material e imaterial da empresa.”
representação sindical, entre sindicatos, entre sindicato e trabalhadores e entre sindicatos e
empregadores;20 os mandados de segurança, habeas corpus e habeas data, quando o ato
questionado envolver matéria sujeita a sua jurisdição; conflitos de competência entre órgãos com
jurisdição trabalhista;21 ações de indenização por dano moral ou patrimonial decorrentes da relação
de trabalho;22 penalidades administrativas impostas aos empregadores pelos órgãos de fiscalização
das relações de trabalho; execução, de ofício, das contribuições sociais previstas no art. 195, I a e II,
decorrentes das sentenças que proferir.23
Dentre o rol de alterações acima brevemente enunciadas, uma das mais contundentes e que
mais discussões tem gerado refere-se à menção às “ações oriundas da relação de trabalho” referida
no inciso I do artigo 114, à medida em que, até então, o dispositivo constitucional se referia às lides
entre trabalhadores e empregadores, em uma clara referência à relação de emprego, com traços
típicos de subordinação, não eventualidade, pessoalidade e salário (artigo 3º da CLT). Apenas
excepcionalmente, mediante regulação por lei ordinária, cabia à Justiça do Trabalho conciliar e
julgar lides oriundas de outras relações de trabalho (como ocorria com o trabalhador avulso, o
empreiteiro que é operário ou artífice, previstos nos artigos 643 e 652 da CLT). Ao se referir às
SILVA NETO, Manoel Jorge e. Constituição e processo do trabalho. São Paulo: LTr, 2007, p. 110.
20 Estaria, assim, superado o entendimento contido na Súmula 222 do STJ, segundo o qual “Compete à Justiça Comum
processar e julgar as ações relativas à contribuição sindical prevista no Art. 578 da CLT.” Segundo João Oreste
Dalazen, o inciso III do artigo 114 poderia ser explicitado nos seguintes conflitos: a) intersindicais de
representatividade; b) dissídio declaratório de vínculo jurídico-sindical; c) dissídio para anulação de eleição sindical;
d) dissídio para anulação de assembleia sindical; e) dissídio sindical sobre contribuições. DALAZEN, João Oreste. A
reforma do Judiciário e os novos marcos da competência material da Justiça do Trabalho no Brasil. In PINHEIRO,
Augusto Campana. Competência da Justiça do Trabalho: aspectos materiais e processuais. São Paulo: LTR, 2005,
p. 164-170.
21 A redação do inciso fala em órgãos com jurisdição trabalhista e não de jurisdição trabalhista, o que esclarece dúvida
que existia quanto à competência para julgar conflitos de competência entre Juiz do Trabalho e Juiz de Direito
investido de jurisdição trabalhista. Assim mesmo que o juiz de direito não seja órgão de jurisdição trabalhista, o fato
de estar com jurisdição naquela situação faz com que a Justiça do Trabalho venha a dirimir o conflito. A situação,
todavia, é diferente no caso de juiz de direito que age nessa qualidade e juiz do trabalho, hipótese em que o conflito
de competência deve ser dirimido pelo STJ (artigo 105, I, d da Constituição Federal).
22 Trata-se de inclusão de grande relevância e lógica já que, embora se trate de indenização decorrente de
responsabilidade civil, prevista no Código Civil, a questão é oriunda da relação de trabalho. Ressalte-se que
controvérsia recentemente existente quanto à competência para julgar ação de indenização proposta pelos herdeiros
do empregado falecido em virtude de acidente de trabalho restou pacificada através dos julgamentos dos precedentes
RE-ED 482797, RE-ED 541755 e RE-AgR 507159 pelo STF, dos quais resultou o cancelamento da Súmula 366 do
STJ, a qual estabelecia “Compete à Justiça estadual processar e julgar ação indenizatória proposta por viúva e filhos
de empregado falecido em acidente de trabalho.” Permanece controversa a discussão acerca da competência para
julgar conflito oriundo da fase pré ou pós contratual, aspecto que abordaremos mais adiante.
23 Frise-se que parte da doutrina, inclusive, evoca a inconstitucionalidade da emenda nesse sentido, por afetar, ainda
que de forma oblíqua, a separação dos poderes. Conforme Silva Neto, “encontra-se nos domínios da vedação a
impossibilidade de modificar-se o rol de competências das funções estatais executiva, legislativa e judiciária.”
SILVA NETO, Manoel Jorge. Op. Cit., p. 113. “A função do juiz é julgar e não cobrar contribuições no próprio
processo, como um exator.” MARTINS, Sérgio Pinto. Op. Cit., p. 114. Contudo, resta claro que o objetivo político
inerente a esta alteração constitucional foi justamente aumentar as arrecadações previdenciárias na própria fonte de
pagamento, que é o processo trabalhista.
ações oriundas da relação de trabalho, no dizer de José Augusto Rodrigues Pinto “a EC n. 45/04
abrangeu, sem dúvida, todas as pessoas físicas prestadoras de atividade pessoal, subordinada ou
não, voltada para a produção de bens e a prestação de serviços. Tal abrangência aglutinou na
competência da Justiça do Trabalho relações jurídicas de direito material comum e trabalhista.”
Embora a posição do mencionado professor seja, a nosso ver, a mais lógica e coerente com o
processo histórico e político que circundou a evolução da Justiça do Trabalho desde seu surgimento
no país, este entendimento não é, contudo, unanimidade.
Esclareça-se desde logo que restou suspensa por decisão liminar do Supremo Tribunal
Federal em ADI proposta pela Associação dos Juízes Federais (ADI 3.395-6/DF, j. Rel. Min. Cezar
Peluso, DJU 10-11-2006) toda e qualquer interpretação dada ao inciso I do artigo 114 da
Constituição que inclua na competência da Justiça do Trabalho a análise de questões de
funcionários públicos estatutários ou de caráter jurídico-administrativo. Trata-se da primeira
exceção praticamente consolidada pela jurisprudência pátria à ampliação da competência da Justiça
do Trabalho para todas as espécies de relação de trabalho. “Se há vínculo estatutário não há
empregador nem empregado, mas relação entre servidor público e a administração pública.”24
Questionamos: não se trata de relação de trabalho? A Justiça do Trabalho não teve sua competência
ampliada também para apreciar as lides decorrentes das relações de trabalho? Este não é, contudo, o
entendimento do pretório excelso, que na decisão liminar acima mencionada adotou posicionamento
idêntico ao já adotado na decisão da ADI 4921/600,25 quando foi declarada a inconstitucionalidade
das alíneas d e e do art. 240 da Lei 8.112, que tratava da competência da Justiça do Trabalho para
julgar dissídios individuais e coletivos por parte dos funcionários públicos.
Este entendimento tem sido, inclusive, aplicado a contratações irregulares por parte da
administração pública (as chamadas contratações sem concurso público), quando o trabalhador não
é nem estatutário, nem celetista. Para estas situações, relevante a crítica feita pelo Ministro
Maurício Godinho Delgado em sua conferência realizada no segundo seminário nacional da
Anamatra:
O que me parece inaceitável nesse contexto é o alargamento desmesurado desta primeira
exceção, de modo que passe a abranger também as relações irregulares estabelecidas pelas
entidades estatais. Aqui, sim, a competência é trabalhista, já que o regime celetista é o
24 MARTINS, Sérgio Pinto. Op. Cit., p. 97.
25 (STF – Pleno, ADI 00004921/600, j. 12-11-1992, Rel. Min. Carlos Mário Velloso, DJU I, 12-3-93, p. 3.557)
gênero de contratação do labor de pessoas físicas no país: se o próprio Estado não cumpre a
ordem jurídica e não realiza a contratação nos moldes estatutários específicos, passa a se
equiparar ao contratante particular, submetendo-se às regras trabalhistas correntes.26
A referência à relação de emprego aparece em dois momentos da redação do artigo 114 da
Constituição Federal: nos incisos I e IX. A esse respeito, chega-se a afirmar, conforme palavras de
Sérgio Pintos Martins que “os incisos I e IX do artigo 114 da Constituição são contraditórios. Se a
Justiça do Trabalho é competente para analisar questões relativas a relações de trabalho, não há
necessidade de lei para estabelecer a competência para outras controvérsias decorrentes da relação
de trabalho (artigo 114, IX da Constituição).”27 Prossegue mencionado jurista:
O fato de o inciso I do art. 114 da Constituição ter feito referência a relação de trabalho e o
inciso IX do mesmo artigo mencionar outras controvérsias decorrentes da relação de
trabalho, na forma da lei, é sinal que a disposição do inciso I não é tão ampla assim e ter de
ser interpretada conjuntamente com seus incisos. Se toda a relação de trabalho está inserida
no inciso I não há sentido para a existência do inciso IX.28
Reside aí a controvérsia. Com base na expressão “na forma da lei” contida no inciso IX do
artigo 114 da Constituição, parte da doutrina e dos próprios tribunais entende que a análise de
questões compreendendo trabalhador autônomo, representante comercial autônomo (Lei 4.886/65),
empresários, estagiários, trabalhadores eventuais, trabalhador voluntário e os respectivos tomadores
de serviços, assim como as ações entre parceiros, meeiros, arrendantes e arrendatários, questões de
empreitada, dentre outras, somente serão de competência da Justiça do Trabalho quando houver lei
ordinária federal tratando do tema. “Enquanto isso, a competência será da Justiça Estadual.”29
Entretanto, a situação mostra-se bastante controversa nos tribunais. A expressão “outras
controvérsias decorrentes da relação de trabalho” contida no inciso IX do artigo 114 da Constituição
tem gerado interpretações diversas, nas diferentes situações, seja naquelas já mencionadas acima
(trabalho autônomo, contrato de estágio, trabalho voluntário, contrato de empreitada), seja em
outras, como nas relações estabelecidas entre os profissionais liberais e seus clientes. Nos propomos
26 DELGADO, Maurício Godinho. Relações de trabalho: competência e direito material. In CHAVES, Luciano
Athayde (et. al.) (Org.). Ampliação da competência da Justiça do Trabalho: 5 anos depois. Textos do 2º
Seminário Nacional. São Paulo: LTR, 2010, p. 58.
27 MARTINS, Sérgio Pinto. Op. Cit., p. 105.
28 Idem, p. 106.
29 Ibidem, p. 107. As exceções, segundo este posicionamento, atualmente estariam previstas na lei, tais como o inciso
III da alínea a do artigo 652 da CLT, que versa sobre o empreiteiro, operário ou artífice; o art. 19 da Lei 6.019/74
que trata das controvérsias entre empresas de trabalho temporário e seus trabalhadores; o artigo 643 e seu parágrafo
3º da CLT, que estabelecem a competência da Justiça do Trabalho para julgar questões entre trabalhadores avulsos,
portuários e os operadores portuários ou órgão gestor de mão de obra decorrentes da relação de trabalho.
a uma breve análise dos principais argumentos levantados por aqueles que entendem que a Emenda
Constitucional 45 atraiu para a Justiça do Trabalho a competência de todas estas situações, eis que
ligadas umbilicalmente às relações de trabalho, assim como os argumentos daqueles que defendem
a necessidade de lei específica para cada uma destas situações.
3 A EXPRESSÃO “OUTRAS CONTROVÉRSIAS DECORRENTES DA RELAÇÃO
DE TRABALHO” E AS INTERPRETAÇÕES POSSÍVEIS
É incontroverso que a expressão “relação de trabalho” é mais ampla que a relação de
emprego que se denotava da redação original do artigo 114 da Constituição Federal. A respeito,
cabe lembrar as palavras de Carmen Camino, ao destacar os traços singulares da relação de
emprego:
Entre as peculiaridades do direito do trabalho, uma certamente contribuiu para a
caracterização da sua autonomia: o fato de estar voltado, exclusivamente, para um tipo de
relação de trabalho peculiar, incompatível com as demais espécies. Essa incompatibilidade
fez com que não se encontrassem, no direito comum, normas capazes de discipliná-la e as
novas normas editadas pelo Estado, sob intensa pressão social, paulatinamente,
demandassem necessidade de estudo à luz de princípios específicos, ensejando-se doutrina
homogênea.30
Esta foi, de fato, uma diferença fundamental entre o direito do trabalho e outros subsistemas
da ciência jurídica. Foi em torno dessa competência quase que exclusiva dos conflitos oriundos da
relação de emprego, que o direito do trabalho desenvolveu uma principiologia própria, bem como
procedimentos específicos para a tutela dos direitos que lhe cabiam. Ocorre que o cenário já não é
mais este. Há, inclusive, estudiosos que veem na ampliação da competência da Justiça do Trabalho
um aspecto negativo ou enfraquecedor da proteção à relação de emprego, como se a tutela de outras
formas de trabalho viesse a prejudicar a tutela da relação de trabalho subordinado (de emprego).
Nesse sentido, se posiciona o Ministro Maurício Godinho Delgado, aduzindo haver uma face
negativa do novo artigo 114 da Constituição Federal, através daquilo que denomina “incorporação
da cultura de desprestígio da Justiça do Trabalho.” Segundo ele:
O inciso I do novo art. 114, ao retirar o foco competencial da Justiça do Trabalho
da relação entre trabalhadores e empregadores (embora esta, obviamente, ali
30 CAMINO, Carmen. Direito individual do trabalho. 4. ed. Porto Alegre: Síntese, 2003, p. 185.
continue incrustada) para a noção genérica e imprecisa de relação de trabalho,
incorpora, quase que explicitamente, o estratagema oficial dos anos 90, do fim do
emprego e do envelhecimento do Direito do Trabalho. A emenda soa como se o
trabalho e o emprego estivessem realmente em extinção, tudo como senha para a
derruição do mais sofisticado sistema de garantias e proteções para o indivíduo
que labora na dinâmica socioeconômica capitalista, que é o Direito do Trabalho.
(…) O novo inciso constitucional expressa ainda certo preconceito contra as dezenas de
milhões de trabalhadores que laboram com os elementos da relação de emprego (ainda que
não formalmente reconhecidos, todos eles, como empregados): É como se a Emenda nº
45/04 considerasse injustificável o direcionamento de tamanhos recursos públicos para um
segmento do Judiciário basicamente voltado às lides de tais empregados, usualmente das
camadas menos favorecidas da população. Nesta linha algo preconceituosa (muito própria à
ideologia de descompromisso social dos anos 90, registre-se), seria necessário
otimizar a
atuação da Justiça do Trabalho, direcionando-a também a grupos sociais
integrados de modo distinto ao mercado econômico, sem traços de subordinação
aos respectivos tomadores de serviços (profissionais liberais e outros agentes
autônomos, por exemplo).31
Também Silva Neto, ao analisar o alcance da relação de trabalho referida pela Emenda 45,
entende que “se converterá em ignominioso atentado contra a proteção ao trabalho humano (a ela
fixada precipuamente) concluir que o conceito em questão abrange toda e qualquer relação de
trabalho”. O autor entende que, com isto, a Justiça do Trabalho sofrerá de “insidioso retardo no
julgamento dos verdadeiros dissídios responsáveis pela sua criação, que são aqueles referentes a
empregado e empregador.”32
Respeitados os entendimentos no sentido acima exposto, e sem intentar encerrar a discussão
ou realizar exercício de futurologia, nos parece que a ampliação de competência da Justiça do
Trabalho, advinda com a Emenda Constitucional 45/2004 vem justamente em sentido oposto ao do
desprestígio que na década anterior tentou esvaziar seu conteúdo.33 A efetividade da prestação
jurisdicional trabalhista, aliada à eficiência no recolhimento de contribuições fiscais e
previdenciárias decorrentes das ações trabalhistas, certamente motivou (politicamente) a ampliação
de competência, no intuito de estender para outros trabalhadores, a mesma forma de tratamento
jurisdicional, o mesmo procedimentalismo e a mesma efetividade. Nesse sentido, relevante o
31 DELGADO, Maurício Godinho. As duas faces da nova competência da Justiça do Trabalho. In Revista do TST.
Brasília, Vol. 71, n. 2, maio/ago 2005, p. 110.
32 SILVA NETO, Manoel Jorge. Op. Cit., p. 108.
33 Lembra Raimundo Dantas que “nos idos de 1994 era proclamado seu fim, quando apresentado o projeto de emenda
constitucional junto ao Congresso Nacional e, de fato, parecia que este seria o tom, em especial quando se deu a
promulgação da EC n. 24, de 09.12.1999.” In WAMBIER, Teresa Arruda Alvim ...(et al.) (Coord.). Reforma do
Judiciário: primeiros ensaios críticos sobre a EC 45/2004. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2005, p. 616.
registro de Giglio:
Se não houve designação expressa do procedimento a ser aplicado aos novos litígios, parece
implícito na reforma constitucional que o intuito foi o de aplicar o processo trabalhista a
quem dele não usufruía, em virtude dos benefícios decorrentes de sua gratuidade,
simplificação, celeridade, caráter protecionista, etc.34 35
Sob esta ótica, nos parece que a alteração constitucional justamente prestigia a Justiça do
Trabalho e o próprio processo do trabalho, como subsistema próprio de resolução de conflitos.
Outros trabalhadores, que outrora tinham de resolver seus conflitos na justiça comum, agora podem
discuti-los e buscar a tutela de seus direitos sob a égide de um procedimento voltado à proteção do
trabalhador e de uma lógica de valorização do trabalho humano.36 Nas palavras de Chaves, “a
competência foi atribuída agora à Justiça do Trabalho justamente por sua vocação para o exame das
causas envolvendo o mundo do trabalho, considerando que este está muito modificado,
complexificado, precarizado, terceirizado, informalizado.”37
Inserem-se nessa nova competência, a nosso ver, discussões promovidas por “todas as
pessoas físicas prestadoras de atividade pessoal, subordinada ou não, voltada para a produção de
bens e a prestação de serviços”,38 inclusive no que diz respeito à ao trabalho prestado pelos
profissionais liberais, aspecto especialmente polêmico, diante da previsão na Lei 8.078/1990 que,
em seu art. 3º, caput e § 2º, dispõe que “Fornecedor é toda pessoa física [...] que desenvolve
atividades de [...] prestação de serviços” e “Serviço é qualquer atividade fornecida no mercado de
consumo, mediante remuneração [...] salvo as decorrentes das relações de caráter trabalhista”. Por
34 GIGLIO, Wagner D. Op. Cit., p. 52.
35 Destaca-se que em 16 de fevereiro de 2005 o Tribunal Superior do Trabalho publicou a Instrução Normativa n. 27,
que ordenou a aplicação do rito ordinário ou sumaríssimo, salvo àqueles processos de rito especial, às ações de
competência da Justiça do Trabalho. A constitucionalidade de referida norma é questionável, por estar o TST
legislando em matéria de direito processual (art. 22, I CF/88), mas indica que referido tribunal igualmente entendeu
pela aplicação dos dispositivos celetistas, independentemente da matéria a ser discutida na Justiça do Trabalho
(salvo ritos especiais).
36 Compartilhamos do mesmo posicionamento de Jorge Luiz Souto Maior, no sentido de que um dos efeitos dessa
ampliação de competência será “a preservação do interesse público no reconhecimento da relação de emprego em
relações de trabalho em que apenas se busca mascarar a exploração do capital sobre o trabalho. Esta nova Justiça,
certamente, não se deixará impressionar pelas aparências enganosas dos ditos "novos paradigmas" do processo
produtivo, pois sua vocação protecionista verá antes de tudo a necessidade da proteção do ser humano e não as
"exigências do mercado". Ao cabo, declarará fraudulentas, reconhecendo a existência da relação de emprego (para a
aplicação do modelo jurídico protetor do trabalho na sua potencialidade máxima e não parcialmente como se
anuncia no que tange às relações parassubordinadas) nas hipóteses de mascaramento da exploração, tais como:
cooperativas de trabalho; trabalhadores travestidos de pessoas jurídicas...” MAIOR, Jorge Luiz Souto. Em defesa
da ampliação da competência da Justiça do Trabalho. Jus Navigandi, Teresina, ano 10, n. 746, 20 jul. 2005.
Disponível em: <http://jus.uol.com.br/revista/texto/7033>. Acesso em: 18 jun. 2011.
37 CHAVES, Luciano Athayde. A recente reforma no processo comum e seus reflexos no direito judiciário do
trabalho. 3. ed. rev. e ampl. São Paulo: LTr, 2007, p. 377.
38 PINTO, José Augusto Rodrigues. Op. Cit., p. 189.
haver lei especial e diante de tais determinações, os tribunais atualmente entendem serem de
competência da Justiça estadual as lides havidas entre profissionais liberais e seus clientes. Afastase, assim, o reconhecimento de que se trata de uma relação de trabalho, para vislumbrar tal relação
tão somente sob a ótica do consumo.39 Embora a questão já se encontre sumulada, entendemos que
ela afasta o objetivo central da reforma constitucional ora discutida e que o trabalho do profissional
liberal reveste-se de uma polimorfia que somente no caso concreto poderá indicar se estamos diante
de uma relação de trabalho ou de consumo.40
A nosso ver, é possível, a partir dos argumentos defendidos até então, arrolar vários
contratos típicos cuja celebração e execução pode gerar litígios afetos à competência da Justiça do
Trabalho, como: estágio, no que envolver a relação entre estudante e parte concedente (Lei
6.494/1977); cessão de veículo rodoviário em regime de colaboração (Lei 6.094/1974); empreitada
(CC, art. 610), independentemente da restrição prevista no art. 652, III, da CLT, no sentido de que o
empreiteiro seja operário ou artífice; depósito (CC, art. 627); mandato (CC, art. 653); comissão
mercantil (CC, art. 693); agência e distribuição (CC, art. 710); corretagem (CC, art. 722); transporte
(CC, art. 730); parceria rural (Lei 4.504/1964); corretagem de seguros (Lei 4.594/1964);
representação comercial autônoma (Lei 4.886/1965); e despachos aduaneiros (Decreto-lei
4.014/1942).41
Além disso, questões decorrentes da relação de trabalho, mesmo que esta não venha a se
perfectibilizar (questões da fase pré-contratual) ou mesmo havidas após a extinção da relação de
trabalho (pós-contratual), no nosso entender também são, pós Emenda Constitucional 45, de
competência da Justiça do Trabalho.42
Discute-se se a Justiça do Trabalho é competente para examinar hipótese relativa a
complementação de aposentadoria do empregado, decorrente de plano de previdência privada
39 Tal entendimento resta, por ora, sedimentado na Súmula 363 do STJ: “Compete à Justiça estadual processar e julgar
a ação de cobrança ajuizada por profissional liberal contra cliente.”
40 Ainda assim, conforme José Augusto Rodrigues Pinto, “ainda que o profissional liberal ofereça ao público a
prestação autônoma de serviço pessoal (...), a prestação que individualmente contratar com cada cliente que o
procure será de trabalho e não de consumo”. Op. Cit. p. 191
41 FIOREZE, Ricardo. Nova competência da Justiça do Trabalho. Texto digital disponível em
http://www.femargs.com.br/www/modules.php?name=News&file=article&sid=65#_ftnref6. Acesso em 19 jun 2011.
42 Conforme FIOREZE (Op. Cit.): “É mais fácil, ademais, sustentar que a competência destinada à Justiça do Trabalho
inclui as fases pré e pós contratual. Até então, tratando-se de relação de emprego, a obtenção de consenso sobre a
competência da Justiça do Trabalho quanto a questões surgidas nas fases pré e pós contratual era dificultada
justamente em razão de os sujeitos da relação processual ainda não terem detido ou já não mais deterem, quando da
ocorrência do fato que fundamenta o pedido, a condição de trabalhador e empregador.”
instituído pelo empregador. Entendemos que sim, pois se trata de obrigação decorrente da existência
de contrato de trabalho mantido entre o trabalhador e o empregador. Embora o artigo 68 da Lei
Complementar nº 109/2001 estabeleça que “as contribuições do empregador, os benefícios e as
condições contratuais previstos nos estatutos, regulamentos e planos de benefícios das entidades de
previdência complementar não integram o contrato de trabalho dos participantes, assim como, à
exceção dos benefícios concedidos, não integram a remuneração dos participantes”, trata-se de
regra de direito material e não de distribuição de competência. O TST, inclusive, tem entendido pela
competência da Justiça do Trabalho, reconhecendo a relação direta entre o benefício e a relação de
emprego.43 O STF já decidiu em sentidos opostos em dois recursos extraordinários com repercussão
geral reconhecida.44 O fato de ser necessário conhecimento das normas próprias da previdência
complementar pelo julgador, também não nos parece argumento suficiente para afastar a
competência trabalhista. Conforme Lora:
Nada obsta – antes recomenda – que o juiz do trabalho, familiarizado que está com as
peculiaridades próprias do Direito do Trabalho e suas implicações no contrato de trabalho,
também venha a examinar eventuais litígios decorrentes de vinculação a entidade de
previdência fechada, patrocinada pelo empregador, e a qual o empregado somente se filiou,
ainda que de forma facultativa, em razão de precedente vínculo de emprego com a
patrocinadora.45
Enfim, nos parece que, seja porque o contrato de previdência complementar decorre do
próprio contrato de trabalho, seja porque é afeto à relação de trabalho, nos parece salutar que a
questão seja, tal como defendido pela autora acima citada, e competência da Justiça do Trabalho.
Posicionamentos contrários entendem que a competência das justiças especializadas deve ser
interpretada de forma restritiva, como forma de não sobrecarregá-la e preservar seu núcleo que, no
43 "COMPETÊNCIA MATERIAL. JUSTIÇA DO TRABALHO. COMPLEMENTAÇÃO DE APOSENTADORIA.
ENTIDADE DE PREVIDÊNCIA PRIVADA. ARTIGO 114 DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. 1. Para efeito de
determinação da competência material da Justiça do Trabalho para apreciar e julgar pedido de complementação de
aposentadoria, a jurisprudência dominante do TST considera relevante a origem da norma garantidora do benefício,
máxime quando transferida a responsabilidade pela complementação dos proventos a entidade fechada de
previdência privada. Emerge a competência material da Justiça do Trabalho em se tratando de benefício criado pelo
empregador e, portanto, em que a fonte da obrigação é o contrato de emprego. 2. Segue-se que se o TRT de origem
cinge-se a consignar que o benefício, conquanto pago por entidade de previdência privada, decorre da relação de
emprego, não se divisa vulneração ao art. 114 da CF/88. 3. Embargos não conhecidos." (TST-E-RR-768.413/2001,
Rel. Min. João Oreste Dalazen)
44 No RE 586453 a relatora, Ministra Ellen Gracie, em seu voto, entendeu que a competência é da Justiça Comum,
tendo em vista a inexistência de relação trabalhista entre o beneficiária e a entidade fechada de previdência. Já no
RE 583050, o relator, Ministro Cezar Peluso, em seu voto ressaltou que o Supremo Tribunal Federal tem assentado
que compete à Justiça do Trabalho apreciar pedido de complementação de aposentadoria no âmbito da previdência
privada nas hipóteses em que a instância ordinária reconhecer, à luz da prova, que a relação jurídica decorre do
contrato de trabalho.,
45 LORA, Ilse Marcelina Bernardi. A competência da Justiça do Trabalho para ações à previdência complementar
fechada. In Revista Síntese Trabalhista. São Paulo, v. 22, n. 261, março 2001, pp. 45-49.
caso da Justiça do Trabalho, seria a relação de trabalho em sentido estrito.46
Embora válido, referido argumento não reflete o conteúdo da reforma constitucional havida
através da Emenda 45 a qual, a nosso sentir, expressa uma mudança de paradigma na própria
valorização do trabalho, o que não pode passar em brancas nuvens pelos vários auditórios na qual a
mesma repercutirá.
4 UMA MUDANÇA DE PARADIGMA A PARTIR DA ADOÇÃO DA EXPRESSÃO
“RELAÇÃO DE TRABALHO” NA REDAÇÃO DO ARTIGO 114 DA CONSTITUIÇÃO
FEDERAL
Nos parece clara a existência de um movimento pendular rumo à valorização da Justiça do
Trabalho, após longo período de tentativa de mantê-la no ostracismo e até mesmo desvalorização. A
ampliação de sua competência material, ao invés de buscar sua derrocada pelo excesso de matérias
a ela atinentes, parece apontar para caminho diverso: o da valorização do trabalho. Isto se dá porque
a inclusão da expressão “relação de trabalho” nos incisos I e IX do artigo 114 vem no sentido de
valorizar, com o princípio protetivo que sempre revestiu a relação de emprego, também as demais
formas de trabalho. O juiz do trabalho, habituado com as questões próprias do trabalhador, com a
natureza do crédito por ele pleiteado e com os próprios entremeios do mundo do trabalho, tem
diante de si não apenas conflitos oriundos das relações de trabalho subordinado, mas também
aquelas nas quais há aquilo que se pode chamar de parassubordinação, expressão que qualifica uma
série de outras situações hoje existentes.
É inegável que o mundo do trabalho, atualmente, não se restringe às relação havidas entre
empregado e empregador, tal como preconizado na Constituição de 1946 e mantido até a EC
45/2004.47 O mundo do trabalho também mudou. ““Flexibilidade” é o slogan do dia, e quando
46 Conforme Perin: “as justiças especializadas, pelo princípio da interpretação restritiva, devem somente exercer aquilo
que é fundamental à preservação dos valores que as sustentam, sob pena de terem estruturas funcionais dispendiosas
e obsoletas por sua irracionalidade. Significa dizer que aquilo que puder ficar sob o manto da competência da justiça
comum deve ser mantido, pois facilita a adequação das estruturas institucionais e funcionais internas, bem como a
formação de um sistema jurídico- interpretativo mais harmônico e homogêneo, e, assim, possibilitar o atendimento,
de forma mais efetiva, de todos os princípios e regras constitucionais que devem nortear o atuar de qualquer
atividade do Estado, seja legislativa, administrativa ou judicial.” PERIN, Jair José. Op. Cit., p. 216.
47
Baumann se refere à “modernidade pesada” como “o tempo de compromisso entre capital e trabalho,
fortificado pela mutualidade de sua dependência. Os trabalhadores dependiam de empregos para terem o sustento; o
capital dependia de empregá-los para sua reprodução e crescimento.” BAUMANN, Zygmunt. A sociedade
aplicado ao mercado de trabalho significa fim do emprego “como o conhecemos”, trabalhar com
contratos de curto prazo, contratos precários ou sem contratos, cargos sem estabilidade e com
cláusula de “até novo aviso””.48
Atualmente, não é incomum verificar-se a existência de trabalhadores que, embora dotados
de maior proatividade, não podem ainda se denominar autônomos. Têm, portanto, um resquício de
subordinação, uma parassubordinação, através da qual muitas vezes são dotados de uma (aparente)
maior flexibilidade na realização do trabalho, mais ainda assim respondem a um contratante que
usufruiu de sua força de trabalho e faz dela um elemento do sistema econômico enquanto isso lhe
for interessante. Lembra Sennet que “o sistema de poder que se esconde nas modernas formas de
flexibilidade consiste em três elementos: reinvenção descontínua das instituições; especialização
flexível de produção; e concentração de poder sem centralização.”49
Que o digam os trabalhadores sob o regime de teletrabalho, que realizam suas atividades nas
próprias residências mas que não deixam de prestar contas e buscar orientações de quem lhes toma
o trabalho, permanecendo no mais das vezes mais conectados com seu contratante do que os
trabalhadores que necessitam manter sua presença na sede física da empresa para a prestação de
trabalho; os representantes comerciais que buscam o alcance de metas que lhes foram estabelecidas
para manter vigente o contrato firmado, embora possam buscar alcançá-las da forma que lhes
parecer mais adequada e tantos outros trabalhadores contratados sob natureza jurídica diversa da
relação de emprego e que executam seu trabalho sob novos modelos, os quais não significam,
necessariamente, menor incidência de poder por parte do contratante/tomador dos serviços.50
É também para estes trabalhadores que serve agora a Justiça do Trabalho. Àqueles que, em
virtude das circunstâncias sociais, econômicas ou mesmo de contingência próprias da época
atualmente vivida, seguem vivendo do próprio trabalho, independentemente do nome que se dê a
esta relação. Os conflitos deverão ser solucionados não apenas com base nas regras próprias da
individualizada: vidas contadas e histórias vividas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008, p. 33.
48 Idem, p. 35.
49 SENNETT, Richard. A corrosão do caráter: consequências pessoais do trabalho no novo capitalismo. Rio de
Janeiro: Record, 2007, p. 54.
50 Segundo Sennet: “A sobrecarga administrativa de pequenos grupos de trabalho com muitas tarefas diversas é uma
característica frequente da reorganização empresarial (…) Fazer tais experiências com dezenas ou centenas de
milhares de empregados exige imensos poderes de comando. À economia da desigualdade, a nova ordem acrescenta
assim novas formas de poder desigual, arbitrário, dentro da organização.” O autor cita como o exemplo a produção
de computadores pessoais de marcas famosas, na qual a grande empresa, detentora da marca, tem em seu poder uma
gama de empresas dependentes e passa as quedas no ciclo dos negócios ou fracassos dos produtos para os parceiros
mais fracos. “As ilhas de trabalho ficam ao largo de um continente de poder.” Op. Cit., p. 64.
CLT, mas o Juiz do Trabalho, ciente dos aspectos próprios desse cenário, certamente terá condições
de melhor examinar sob quais circunstâncias ocorrem tais conflitos.
Esse parece ter sido o intuito social e político da alteração na redação do artigo 114 da
Constituição Federal. Ainda assim, como se viu, não são poucas e nem isoladas as vozes que
insistem que o sentido da expressão “outras controvérsias decorrentes da relação de trabalho”
necessita de uma regulamentação infraconstitucional, limitando as matérias próprias da Justiça do
Trabalho tão somente àquelas já regulamentadas antes da reforma constitucional. Qual o sentido da
mesma, então? Esta postura se revela em vários dos posicionamentos elencados linhas acima, em
entendimentos como o da exclusão da competência da Justiça do Trabalho para julgar questões de
profissionais liberais (por serem considerados fornecedores de uma relação de consumo), exclusão
dos servidores públicos estatutários, questões pré e pós-contratuais, conflitos sindicais de servidores
públicos, alguns com manifestação expressa dos tribunais superiores nesse sentido, outras ainda por
serem definidas. Contudo, entendemos que tal interpretação restritiva analisa a questão tão somente
sob uma ótica infraconstitucional, olvidando o sentido pretendido pela Constituição Federal,
inclusive no que respeita à própria valorização do trabalho, alçado a princípio fundamental (artigos
1º, IV e 193, CF/88).
É preciso vislumbrar as mudanças constitucionais havidas com “vontade de Constituição”
(Wille zur Verfassung),51 ou seja, com a clara convicção de que tais alterações não advieram do
nada, mas foram impulsionadas pela realidade histórica, política e econômica e pelo próprio modelo
de Estado fundamentado na Constituição. O Brasil claramente se constitui em um Estado Social e
Democrático de Direito52 e em torno desta escolha (que não é meramente optativa, mas se constitui
uma opção repleta de conteúdo valorativo) é que deve ser feita a aplicação do direito e a
interpretação constitucional. E a interpretação tem significado decisivo para a consolidação e a
preservação da força normativa da Constituição:
A interpretação constitucional está submetida ao princípio da ótima concretização da norma
(Gebot optimaler Verwirklichung der Norm). Evidentemente, esse princípio não pode ser
aplicado com base nos meios fornecidos pela subsunção lógica e pela construção
conceitual. Se o direito e, sobretudo, a Constituição, têm sua eficácia condicionada pelos
fatos concretos da vida, não se afigura possível que a interpretação faça deles tábula rasa.
Ela há de contemplar estas condicionantes, correlacionando-as com as proposições
51 HESSE, Konrad. A força normativa da Constituição. Trad. Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: Sérgio Antônio
Fabris, 1991.
52 SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais: uma teoria geral dos direitos fundamentais na
perspectiva constitucional. 10. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009.
normativas da Constituição. A interpretação adequada é aquela que consegue concretizar, de
forma excelente, o sentido (Sinn) da proposição normativa dentro das condições reais
dominantes numa determinada situação.53
E quais são as condições reais dominantes para uma melhor interpretação do sentido da
expressão “outras controvérsias decorrentes das relações de trabalho”? Nos parece que a retomada
histórica realizada acima explica, em parte, que condições são estas. Junto a elas é imprescindível
invocar o princípio fundamental dos valores sociais do trabalho (topográfica – e certamente não
aleatoriamente - inseridos antes da livre iniciativa no artigo 1º, IV da Constituição) e o primado do
trabalho, fundamento da ordem social (artigo 193 da Constituição). Nos parece inegável que a
interpretação mais adequada com vistas ao modelo de Estado pretendido pela Constituição não é,
definitivamente a mais restritiva. Uma interpretação ampliativa da expressão relação de trabalho
resultará em um constante processo de legitimação da própria Constituição e, ao fim e ao cabo, na
própria valorização do trabalho.
CONCLUSÕES
Conforme foi visto, a organização de competência da Justiça do Trabalho no Brasil, desde
sua criação, centrou-se especialmente nas relações entre empregado e empregador, no que diz
respeito aos conflitos individuais de trabalho. Todas as constituições federais, até 1988, outorgaramlhe esta competência, a qual era focada essencialmente em razão das pessoas envolvidas no conflito.
A Constituição Federal de 1988 manteve, de início tal opção. No interregno de tantas alterações
constitucionais, o que se percebeu foi, com o passar dos anos, uma clara tentativa política de
esvaziamento e desprestígio da Justiça do Trabalho, como se fosse uma forma secundária de
resolução de conflitos, no que foi acompanhada por uma série de medidas tendentes a flexibilizar e
esvaziar o próprio direito do trabalho.
A Emenda Constitucional 45/2004, por seu turno, parece apontar para sentido inverso.
Através de referida reforma, buscou-se qualificar a prestação jurisdicional não só no que diz
respeito à Justiça do Trabalho (embora as maiores críticas à Emenda se refiram, no mais das vezes,
à nova redação dada ao artigo 114 da Constituição), mas atribuir ao Poder Judiciário o dever de uma
53 HESSE, Konrad. Op. Cit., p. 22.
prestação jurisdicional em tempo razoável e dotada de efetividade. Ampliou a competência material
da Justiça do Trabalho, ao atribuir-lhe um rol de matérias afetas não só à relação de emprego, mas
agora também à relação de trabalho. A competência agora não se estabelece unicamente com base
em um critério pessoal, mas sim em razão da matéria.
A expressão “relação de trabalho” referida na redação atual do artigo 114, em seus incisos I
e IX é certamente muito mais ampla do que a relação de emprego cuja interpretação se extraía da
redação anterior do mesmo dispositivo. Comporta inúmeras interpretações e, justamente por isto,
trata-se de aspecto que tem ocasionado amplos debates em torno do tema. A nosso ver, a inserção de
tal expressão no mencionado dispositivo não foi aleatória, mas se mostra impregnada de conteúdo
valorativo, o qual deriva diretamente da opção constitucional feita por um Estado Social e
Democrático de Direito. Se esse Estado pretende valorizar o trabalho (e se trabalho, atualmente, não
se restringe aos moldes empregado-empregador, mas se reveste de multifacetadas formas, muitas
delas dotadas de tanta ou mais subordinação que a relação de emprego), é preciso que os conflitos
surgidos no âmbito destas relações tenham um locus apropriado para sua discussão e resolução. E
esse locus, ao que parece, já escolhido pelo legislador constitucional derivado, é a Justiça do
Trabalho.
Disto deriva o fato de que não apenas os trabalhadores contratados sob os moldes da CLT
gozarão de uma prestação jurisdicional plena e ciente de sua condição, mas também os demais,
inseridos nas várias acepções do atual mundo do trabalho. Com isto, defende-se uma interpretação
ampliativa da expressão “relações de trabalho” contida nos incisos I e IX do artigo 114 da
Constituição Federal, não se vislumbrando a necessidade de regulação infraconstitucional para que
se possa dotar de efetividade mencionados dispositivos. É certo que os tribunais superiores já se
manifestaram em relação a algumas das possíveis interpretações e, em duas situações específicas (a
do trabalhador estatutário e a do profissional liberal) adotaram um sentido mais restrito ao conceito
de relação de trabalho, o qual a nosso ver parece caminhar em sentido oposto ao pretendido pela
reforma constitucional.
Tal interpretação ampliativa se dá, essencialmente, calcada na realização da própria vontade
constitucional, dos princípios fundamentais inseridos na própria Constituição, sendo, por derradeiro,
a própria concretização do Estado Democrático de Direito em uma de suas facetas mais belas, a da
realização do trabalho com dignidade como forma de realização e reconhecimento do próprio
trabalhador.
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