Untitled - Editora Fonzie

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Untitled - Editora Fonzie
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Copyright © 2016 CLAYTON DE LA VIE
TÍTULO
SERES DO ALÉM
CAPA E DIAGRAMAÇÃO
CLAYTON DE LA VIE
REVISÃO
AMANDA P. MARROCOS
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
______________________________________________
De La Vie, Clayton, 1994
Seres do Além/ Clayton De La Vie – 2ª edição –
Editora Fonzie - Caieiras, 2016.
ISBN: 978-1-51-465002-8
CDD: B869.3
______________________________________________
Índices para catalogação sistemática
1. Ficção brasileira. 2. Literatura brasileira – Ficção
de fantasia
I. Título.
[2016]
Todos os direitos desta edição reservados à
EDITORA FONZIE
Rua Joaquim Manoel de Macedo, 58
Jardim Vitória
Caieiras/SP
www.editorafonzie.com.br
“Dedicado à minha amiga, bibliotecária
e amante dos animais, Marli Palandi. Pelo apoio e carinho”.
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SUMÁRIO
Prólogo 11
Capítulo I. O Sonho 15
Capítulo II. Os Irmãos Richard 21
Capítulo III. O Castelo 45
Capítulo IV. A Tarefa 71
Capítulo V. Morrigan, a Deusa 103
Capítulo VI. O Duelo dos Bruxos 119
Capítulo VII. O Grito da Pantera 133
Capítulo VIII. A Lendária Fênix Vermelha 147
Capítulo IX. Recomeço 157
Capítulo X. Quando os caminhos se cruzam 167
Capítulo XI. O Tesouro Perdido 183
Capítulo XII. O que as estrelas dizem? 197
Capítulo XIII. A Dama Branca 215
Capítulo XIV. A Princesa de Gelo 231
Capítulo XV. A Guerra está vindo 239
Capítulo XVI. O Novo Mundo 261
Capítulo XVII. Lembranças de Christine 323
Capítulo XVIII. Tão Só 333
Capítulo XIX. O Segredo dos Dez Guardiões
337 Capítulo XX. Senhora Morte 349
Capítulo XXI. Eu sou o Rei 363
Capítulo XXII. O Anão 369
Capítulo XXIII. Nas-Hÿmsil 381
Capítulo XXIV. O Herdeiro 395
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PRÓLOGO
— Ele é muito novo para ser conselheiro real — sussurrou
lorde Ariän para o lorde Verrier, enquanto Nesmério passava
pelos corredores do castelo Blastwov.
O lorde Gahorn Ariän almejava essa posição por mais de
quinze verões, e Nesmério mal tinha se tornado homem. "Era
um garoto", ressaltava ele. Na verdade, Nesmério era muito mais
do que um garoto: Teve a infelicidade de viver lançado à própria
sorte. Sua mãe, Edna, o tinha abandonado na casa de lorde Ferrër quando tinha apenas três anos de idade, e esse o maltratava
muito.
Aos dez anos, o menino fugiu e se refugiou em uma comunidade pobre no sul do reino. Lá, trabalhou como ferreiro e lavador de pratos de uma taberna imunda. Quando o garoto completou as suas onze primaveras, conheceu Sarah, uma serva da
casa real que acabara de perder o emprego por ser mais “apropriado” abrir mão dos antigos costumes e adotar gente nova
como serviçal. Nessa época, os criados eram devidamente instruídos porque os lordes e reis sempre buscavam conforto em
palavras magníloquas.
Sarah era nova, não tinha mais do que quarenta invernos,
e fora letrada pelo lorde Gerard de Lutharäh, o mesmo que tinha lhe deposto do seu cargo como ama. Quis o destino, ou
algo maior, que Sarah fosse morar na mesma comunidade que
Nesmério.
O garoto era muito atento, os seus olhos viajavam por
mundos de fantasia, e ele sempre vigiava os novos visitantes.
Quando notou a mulher de longos cabelos claros descendo da
diligência e pondo os seus delicados sapatos vermelhos no solo
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imundo, ele propôs a ajudá-la com as suas bagagens, e logo foi
acometido pela simpatia de Sarah, que o ajudou em sua educação. Nesmério estudava horas a fio enquanto não estava trabalhando. História, ciências, política e línguas, Sarah ensinava.
Agora, ele tinha dezoito anos e havia um mês que fora incumbido de ser conselheiro do rei Astolfo Bugaró. Os lordes que os
desdenhavam não conheciam a sua origem e nem o que ele tinha feito para conseguir tal posição...
— Dizem que ele tem pacto com o demônio — observou
lorde Verrier — As vozes sussurram por entre as paredes que a
morte o acompanha.
— E que tal se fizermos o garoto se encontrar de vez com
ela? — perguntou lorde Ariän, desembainhando a sua espada e
deixando um sorriso tomar o canto esquerdo dos seus lábios.
— Acha mesmo que será necessário? — questionou lorde
Verrier. — Em breve, o garoto será desmascarado. Dê um
tempo para o rei Astolfo, lorde Ariän. Você sabe como é o seu
temperamento. Se fizermos algo contra essa criança, poderíamos acabar com nossas cabeças espetadas em estacas. Não se
lembra daqueles lordes sulistas?
— Claro que lembro, lorde Verrier. Tivemos certa porcentagem de culpa naquele episódio — riu o lorde Ariän. — Mas
quanto mais tempo se passa, mais esse Nesmério contamina a
mente do rei. Ele não confia em mim...
— E quem seria louco a ponto de confiar em você? —
perguntou lorde Verrier, ao mesmo tempo em que ria descaradamente. — Todos ao leste e oeste do reino conhecem a sua
reputação. E da sua espada também, a Degoladora.
— Tem razão, lorde Verrier. Apenas aqueles que desconhecem os princípios da sabedoria e da insanidade me colocariam algum crédito de confiança — debochou lorde Ariän.
Os lordes começaram a seguir Nesmério, que se distraía
admirando os entalhos do castelo. Os pilares da construção
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eram de um marfim esplendoroso, e dezenas de animais estavam cravados em sua estrutura. O jovem andava vagarosamente e parava de vez em quando para olhar para o céu que
deixava as sombras o envolverem ternamente ao passo em que
anoitecia.
A lua crescente bailava acima das nuvens quando, finalmente, Nesmério atingiu o jardim do castelo. Era um lugar grandioso; um labirinto gigantesco estava bem no centro de um terreno extenso que era recoberto por um manto de grama verdelimão. A entrada do lugar era formada por duas estátuas de reis
que sustentavam os pilares baixos segurando as suas espadas
longas no ar. Enquanto Nesmério sentava próximo a uma lagoa
cristalina, lorde Ariän espreitava por detrás dos pilares e foi se
aproximando aos poucos. Quando Nesmério estava repousando com a cabeça voltada para o céu, o lorde pôs uma espada
longa, cujo aço era mais frio que o próprio inverno, em sua garganta.
— Não esperava que viria atrás de mim hoje, milorde —
observou Nesmério, deixando escapar um sorriso maroto.
Lorde Verrier estava longe, apenas observando a cena
— Não deveria fazer movimentos bruscos quando uma espada está grudada em seu pescoço, garoto — alertou o lorde.
— Então por que não o rasga? — sugeriu Nesmério, pressionando o pescoço contra a arma, na medida em que se levantava.
O lorde pressionou a espada com força contra a garganta
do garoto, mas notou que o sangue não estava saindo. Lorde
Ariän tirou a arma do pescoço de Nesmério e passou o seu dedo
pela lâmina, que o cortou imediatamente.
— Sabe o que dizem sobre mim, não sabe, milorde? —
questionou Nesmério, segurando a espada com a mão direita.
— Conhece os demônios?
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— Não tente me fazer de tolo — revoltou-se lorde Ariän,
dando passos para trás e tropeçando sobre os seus pés. — Demônios não existem!
— Ah, existem! — esclareceu o garoto, com um brilho intenso tomando os seus olhos. — Mas não tenho pacto com eles.
Eu sou um demônio!
Lorde Verrier se pôs a correr quando ouviu tais palavras,
no entanto as suas roupas pesadas impediam que ele corresse
bastante. Sua armadura branca emitia sons secos, ainda mais
quando o nobre esbarrava nas pilastras dispostas em agrupamentos circulares pelo salão que acabara de invadir exaurido.
Nesmério suspendeu o lorde Ariän e o deixou pendurado em
uma das espadas das estátuas reais.
— Não saia daqui — alertou ele, pondo-se a correr em seguida.
Nesmério podia sentir o cheiro forte que lorde Verrier exalava e não foi difícil encontrá-lo. Ele estava tremendo, escondido debaixo de uma mesa longa, que Nesmério destruiu ao
lançá-la contra a parede.
— Poupe-me, lorde Nesmério. És um homem bom e um
cavalheiro — implorou o lorde Verrier, enquanto as lágrimas
riscavam o seu rosto bronzeado.
— Me perdoe, milorde — pediu Nesmério, levantando o
homem e empurrando-o contra a parede. — Mas não sou
lorde... e nunca fui bom.
Nesmério desembainhou a espada que levava na cintura e
cravou no peito do homem. Lorde Verrier ainda deu um leve
sorriso antes de fechar os olhos por completo. Nesmério voltou
para o jardim, mas o lorde Ariän não estava mais pendurado na
espada da estátua. O garoto viu o seu vulto adentrando no labirinto e soltou uma risada macabra; ele sabia que o homem jamais encontraria a saída daquele emaranhado de relva e cimento...
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O Sonho
A casa do alto da colina um dia pertenceu a uma nobre família do século XVIII. Agora restavam apenas ruínas daquilo
que um dia foi um casarão. O caminho serpeante que levava até
ela era íngreme e enlameado. A tempestade lá fora prometia desabar a casa a qualquer momento. A névoa das altas montanhas
fustigava as paredes, e um vento ameaçador sacudia as janelas
deterioradas e imundas. A luz de um lampião era a única forma
de energia. Por muitos anos, a casa deixara de ser habitada, mas
agora a família Moura estava lá. A família Moura era herdeira da
casa que o tempo deixou em péssimo estado. O imóvel possuía
dez cômodos, porém, no estado em que se encontrava, não valia
a pena tentar consertá-lo. As paredes, ainda de madeira, estavam
cada vez mais gastas e com aspecto imundo, cobertas por teias
de aranha. À medida que se andava, as tábuas soltas do assoalho
rangiam sombriamente. Vânia Moura herdou a casa do seu avô,
Diógenes, e resolveu morar ali com as suas filhas: Marta e Diana.
O seu marido, Denis, morrera em um acidente de carro;
era quase seis da tarde quando, voltando de um passeio com a
sua filha mais nova, Diana, perdeu o controle do carro e rumou
ribanceira abaixo. Trabalhou durante anos como prefeito e, assim que foi eleito governador, faleceu. Sua família perdera tudo
devido a dívidas de jogo. E a sua esposa fora obrigada pelas
circunstâncias a mudar-se para o casarão, ao qual não sentia simpatia devido ao estado lastimável em que se encontrava.
Vânia nunca gostou muito de Diana, e passou a gostar menos ainda quando Denis falecera; ela estava ao lado do pai
quando ele morrera, mas misteriosamente não sofrera nenhum
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arranhão. Suas ações levavam à Vânia assombro. Em meados
de novembro de 1962, a família fora participar de um passeio
raro num parque turístico. O chuvisco molhava os rostos, e o
vento gélido secava a garganta ao ser respirado. Dava ao ambiente um aspecto de anormalidade devido à alta quantidade de
névoa que rodeava o parque. Diana sumiu durante horas e voltou somente quando anoiteceu, rodeada de animais. Seus cabelos louros estavam sujos de terra; e as suas vestes esfarrapadas,
cobertas por lodo...
— Mãe, eu posso — balbuciou a garota.
— Não, não pode — vociferou a mãe, agarrando-a pelo
braço esquerdo. — Você não me repita isso, menina...
— Mas, mãe...
— Diana, você não pode falar com os animais.... Você não
é maluca — disse ela, alterando a voz.
— Eles me ouvem... Gostam de mim.... Você não deveria
chorar, mãe — observou Diana, passando o dorso da mão no
rosto de Vânia lavado em lágrimas. — Eu sou especial...
— Não, você não é! E pare de falar essas bobagens, senão...
— Senão o quê, mãe?! — esbravejou Diana, se desvencilhando da forte mão de Vânia. — Vou parar no hospício como
a vovó? Ela era especial também, não é? Mas vocês a prenderam... você e o vovô...
— Você não é igual à sua avó! Ela era doida, fazia coisas...
— Como o quê, falar com os animais?! — revoltou-se a
garota. — Eu herdei dela, mãe. E não há nada que a senhora
possa fazer. Eu sou esp...
Sua voz é interrompida quando o tapa de Vânia lhe atinge
a bochecha direita fazendo-a cair com os olhos lacrimejantes e
a bochecha doendo. Os olhos castanhos da menina, que outrora
estavam repletos pela inocência que a idade lhe trazia, agora estavam manchados com uma água cristalina que insistia em banhar o seu rosto.
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— Você não entende, menina. Essas pessoas vão te matar... você não pode ficar dizendo bobagens por aí. Vamos embora, agora! — E puxando Diana pelo braço, com Marta logo
atrás, chegaram à casa da colina. — Marta, vá para o seu quarto,
agora! — Ordenou à filha mais velha, que ainda resmungava
desde que saíram do parque. Bateu a porta do quarto com violência assim que entrou e continuava resmungando quando
adormeceu. — Diana... A partir de hoje você está proibida de
sair de casa. Você vai ficar aqui até que aprenda a não dizer bobagens por aí...
— Mas, mãe, você não pode...
— Posso e vou. Agora você vai subir... sem chorar! —
Acrescentou vendo os olhos lacrimejantes da filha. — Esquece
tudo, você não vai sair nem para ir à escola, o que a Marta aprender, ela te ensina. Agora, suba! Vamos, menina, suba!
Durante nove anos se seguiu essa rotina, e Diana ficava
cada vez mais bela com o passar do tempo. Uma noite fria,
como muitas outras que se seguiram ao decorrer desse período,
chegara. A antiga construção estava ainda mais velha e feia, e as
paredes rangiam melancolicamente como se pudessem sentir a
angústia de viver naquela família e quisessem soltar um grito
plangente. Diana pegara o seu casaco preto quando se dirigia
para a porta. Sua mãe, Vânia, apareceu subitamente fungando
em seu pescoço.
— Eu não te proibi de sair de casa, Diana? — perguntou
a mulher, cruzando os braços.
— Quer saber o que eu acho disso tudo, mãe? Eu vou sair
por aquela porta... e nada vai me impedir — disse Diana, com
indiferença.
— Todo esse tempo não adiantou nada, não foi, menina
insolente? — inquiriu a mãe, com cara de repugnância.
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— Adiantou, sim. Você me deu a oportunidade de me fortalecer, e eu te agradeço por isso. Mas agora preciso ir... vou
embora para nunca mais voltar.
— Você não percebe o bem que te fiz, livrando-a da população, não foi?
— O que você me livrou foi da liberdade, e não foi para o
meu bem. Eu servia para trabalhos pesados, era a sua escrava!
Você sempre me detestou e não fez questão de esconder isso.
— Você matou o seu pai. Você e esses seus poderes...
— Eu não o matei, você sabe disso. Apenas — a palavra
insistia em querer descer rasgando sua garganta, não queria sair
com facilidade, mas precisava ser dita — sobrevivi...
Vânia avançou sobre Diana e arrancou um punhado de cabelos louros. Com a mão estendida em direção à sua mãe, Diana
ordenou...
— Senta! — A sua voz soava como a de um demônio enfurecido antes de ser exorcizado.
Vânia foi empurrada para trás por uma mão invisível e caiu
sentada em uma cadeira de madeira que foi até ela. Seu corpo
não se mexia, sentia-se presa dentro de um cubículo invisível e
olhava assustada para Diana, que estava com um sorriso sombrio em seu rosto. Seus olhos castanhos faiscavam uma fúria
demoníaca...
— Ora, ora, mamãe. Você não consegue mais dominar a sua
filhinha? — um brilho intenso fumegava em seu olhar, incutindo-se pelas pupilas e dissipando-se pelas extremidades. —
Viu o que a sua prisão me fez? Sou um monstro agora, como a
senhora costumava dizer. Isto é por todos esses anos que a senhora me obrigou a fazer o que não queria...
Vânia sentiu a mão invisível bater em suas bochechas fortemente, fazendo com que pendesse a cabeça para o lado direito. Com o sangue escorrendo em seu rosto, e sem forças para
abrir a boca, vira a sua filha sair pela porta de madeira com uma
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expressão mais sombria e aterrorizante no rosto. Um corvo
pousou no ombro da jovem quando saiu de casa...
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Os irmãos Richard
Passava da meia-noite quando começou a chover. A escuridão dominava todo o ambiente. Um som agudo ecoava por
toda a região. Ouve-se uma respiração ofegante e, em seguida,
um grito. Era Christine acordando.
A escuridão era tamanha que ela não enxergava nada à sua
frente. De repente um clarão, mais cristalino do que as águas do
Notyalc1, pôde ser observado ofuscando os seus olhos. Ela ficara
observando a luz e percebera uma cadeira com um homem de
boa aparência sentado sobre ela. O estranho ser trajava um
terno de linho, tinha os cabelos negros na altura dos ombros,
rosto marcante em formato triangular e trazia um bastão feito
de ossos na mão esquerda.
— Tudo bem, Christine? — perguntou-lhe.
Christine era alta, um metro e oitenta de altura. Seus cabelos louros balançavam conforme o vento batia, e pequenas mechas vermelhas podiam ser observadas. Aparentemente assustada, os seus olhos verdes brilhavam como esmeraldas lapidadas. As suas vestes de repouso apresentavam a elegância e a
classe de mulheres da alta sociedade: era uma espécie de camisola pomposa em tons de vermelho e cinza. Do seu pulso pendia um bracelete de ouro, onde, belíssimo, um rosto feminino
se apresentava esculpido. Para muitos, Christine poderia ser a
(N.A.) Notyalc é um rio que corta o leste de Adacse e passa por Leviar até desaguar em Nova
Limiar, no sul do Mundo Mágico. O rio chama a atenção por suas águas cristalinas e puras
que, embora estejam em contato com as imundícies de Geena, sempre são belas.
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deusa Afrodite, possuía uma beleza raríssima e uma voz radiante
que chegava aos ouvidos do estranho como uma melodia:
— Quem é você? — indagou ela, espantada. — De onde
me conhece?
— Desculpe a minha indelicadeza — pediu ele, se pondo
em pé. — Sou Gabriel, filho de Urhän, o Senhor das terras de
Ervil2 e soberano sobre os cavaleiros alados da primeira classe.
Sou um ser mágico. Um mago, para ser mais exato... e toda a
família Richard também.
— Quer dizer que eu sou uma bruxa? É isso? — questionou a mulher, mais espantada ainda.
— Você e os seus irmãos, mestre Christine — respondeu.
— A mãe de vocês, Diana, era a bruxa mais poderosa que já se
ouviu falar. Um bruxo chamado Félix queria que ela se aliasse a
ele, mas ela se recusou. Quando estava grávida do David, Félix
aproveitou a sua fragilidade e a matou cruelmente. Por sorte, a
bruxa conseguiu auxílio para salvar a vida do recém-nascido.
Agora, Félix está de volta, depois de dezoito anos. Não sabemos
como, mas ele sequestrou Hórus, a Lendária Fênix Vermelha. Preciso da ajuda de vocês para resgatá-la. Dê-me a sua mão, lhe
mostrarei o que lhe foi ocultado por décadas. — Nesse momento, Gabriel esticou a sua mão direita em direção à mulher.
Havia um anel com uma enorme pedra azul em formato retangular em seu dedo indicador. Christine hesitou um pouco, mas
deu a mão para o estranho. Nesse instante, as suas entranhas
gelaram e o estômago revirou como se tivesse comido algo
estragado. A moça se viu inesperadamente solitária em uma
região montanhosa. A noite obscura dominava o ambiente, e a
lua era a única fonte de luz.
(N. A.) Ervil é uma pequena cidade situada acima do Bosque de Pedra. Ela é banhada pelo
Mar Nailel e rodeada pela Floresta D’Ave Branca, que abrange parte do território de Otar. Há
muitas teorias quanto a origem da cidade, entretanto não há provas convincentes para tais.
Atualmente, ela é dominada pelo Senhor Urhän, membro da Suprema Corte e que governa a
cidade com mãos de ferro.
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A luz pálida e bruxuleante da lua em forma de foice deixava o
ambiente impróprio para qualquer atividade. Sua luminescência
era lançada em raios circulares que se infiltravam pelas rachaduras das montanhas.
O silêncio chegava a ser assustador, sendo abalado apenas
por zunidos de pequenos insetos. Christine ouvira passos correndo aceleradamente em sua direção, e em meio à escuridão
surgira uma mulher extremamente pálida, trajando um longo
vestido de cetim branco com pequenas linhas douradas. Ela passara por Christine aparentemente muito cansada e assustada.
Para a surpresa da jovem, a mulher estava grávida e, ao que parecia, faltavam poucas semanas para o nascimento. Christine
aproximou-se da mulher, agora encostada em um paredão de
rocha cinza...
— Olá... — Mas a mulher não respondera e continuara
imóvel.
Christine percebeu, então, que havia ultrapassado os limites da realidade e estava em um sonho ou em uma espécie de
transe mental. Uma voz masculina ecoou pela região causando
alvoroço entre os pequenos animais, que passaram a correr apavorados.
— Diana... Cadê você, Diana? Então tenta mesmo proteger o herdeiro do trono Richard? Não resista, Diana. — Um ar
mórbido dominava a voz.
A jovem que observava tudo com atenção encostou o seu
bracelete próximo ao rosto da mulher que descansava encostada
na parede e pôde perceber que aquela era mesmo a sua mãe. Seu
bracelete havia sido dado por Marta, tia materna, e nele estava
esculpido o rosto de Diana. Christine sempre o usava desde que
a sua mãe faleceu quando tinha apenas dez anos de idade, e não
compreendia o que agora estava acontecendo. “O que significa
isso? Por que alguém tentaria contra a vida da minha mãe?”, eram questões que fervilharam em sua mente, mas ela não podia fazer
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nada. Não sabia o que poderia ser feito. Cambaleou dois passos
para trás, caiu sentada em uma rocha escura e levou as mãos ao
rosto. As lágrimas começaram a se infiltrar por seus olhos claros.
Um homem trajando longas vestes de pele se aproximava
aos poucos, enquanto Christine tentava, em meio a soluços,
alertar a sua mãe do perigo iminente: “Reaja, mãe, ele vai te matar.
Fuja, mãe”. Era inútil esse apelo, Christine percebeu segundos
depois. Diana continuava imóvel, recostada pela enorme parede, apenas esperando pela aproximação do homem.
Quando o homem se aproximou, Christine notou que era
magro e que o seu rosto estava preenchido por uma longa barba
negra que se arrastava até a barriga e era lançada ao vento.
Diana se ergueu levemente descoordenada.
— Você não vai acabar com o reinado Richard, Félix. Lutei
muito para chegar até aqui, e se você pensa que a gravidez me
impedirá de lutar... está enganado.
— Quer dizer que Vossa Majestade está disposta a me enfrentar? — perguntou o bruxo, com um largo sorriso desdenhoso tomando os seus lábios funéreos. — Adoro desafios.
Acho que vai ser divertido. — Sorriu.
Com algum esforço, Diana projetou em torno de si um
campo de energia que expelia raios que eram lançados a quilômetros de distância. Christine, assustada, assistia a cena escondida atrás de uma gigantesca rocha; os seus enormes olhos verdes não deixavam passar nada, e a preocupação era nítida em
sua expressão facial. Félix tirou das suas vestes uma foice dourada que produzia um raio de luz verde. A luz diabólica e maligna atingiu o campo de energia, que sofreu pequenas rachaduras. Na segunda tentativa, apesar de Diana estar fazendo esforço
para consertá-lo, o campo sofreu outra fissura; desta vez mais
profunda. Na terceira tentativa, o campo se rompeu, e Diana
tentava em vão materializar um novo. Em passos lentos, Félix
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se aproximou da bruxa e a alguns metros de distância lançou a
foice...
Uma voz ao longe despertou Christine.
Christine acordou. O ar lhe faltou por alguns instantes, e
ela ficara olhando para o vazio na sua frente. Seus cabelos loiros
caíam sobre os olhos enquanto ela tentava fechar a boca semiaberta de espanto. Terá sido apenas um sonho? Será mesmo que
aquilo era real? As dúvidas não param de aparecer na sua cabeça.
O ocorrido perturba a sua mente, e ela mal consegue se controlar diante de tal situação. A ideia de ser uma bruxa mexe com o
seu interior. A magia terá sido verdadeira? O que fazer se tudo
dito por Gabriel for verdade? Recuar... ou tentar deter o assassino da sua mãe?
Christine ficou em estado de choque, paralisada. Minutos
depois, ela se levantou da cama, foi até o seu closet e mudou as
suas peças de roupa; colocou um vestido preto na altura dos
joelhos que caía em decote V e calçou uma sandália gladiadora
na mesma cor. Seus lábios estavam bem desenhados com um
batom vermelho; e os seus olhos, levemente contornado por
uma sombra preta. A mulher se dirigiu até a sala de estar, sentara
em um sofá branco quadrado e ficara parada, com os braços em
cima das pernas e as mãos coladas ao queixo. Diante dela só
havia a imagem de um quadro; uma pintura que retratava a imagem de uma mãe acolhendo o filho em seus braços, enquanto o
vilarejo atrás ardia em chamas.
Logo, irrompeu pela sala um jovem, David, o seu irmão
mais novo, que lhe contou exatamente o que vira em um sonho.
Christine percebeu que não fora a única a ter a visita do misterioso Gabriel. Algo ainda não estava certo. David estava assustado e não parava de se perguntar qual era o motivo dessa situação.
Diferente da sua irmã, o jovem possuía os olhos castanhos
cor de mel e parecia um adolescente rebelde, com calças jeans
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largas na cor azul e camiseta preta. Era um garoto magricela, de
nariz bem fino e queixo quadrado. Alguns fios de barba formavam um raso cavanhaque. A sua estatura era baixa, pouco mais
de um metro e sessenta de altura. Na sua cabeça estava uma
exuberante juba ruiva que caía lisa até as orelhas; cabelos da
mesma cor que os do seu pai, Bruno. Seu olhar exprimia frustração e desespero. Ao contrário da sua irmã, que demonstrava
imponência, David tinha o aspecto fraco e não lembrava nada
um guerreiro. Morava a duas quadras da casa de Christine, e
viera correndo assim que o raiar do Sol apresentou-se com um
leve toque róseo no ar.
Nicolas, o irmão do meio, com vinte e dois anos de idade,
chegara pouco mais tarde na casa de Christine. Sua aparência
consistia em ombros largos, barriga definida por diversos gomos abdominais e pernas malhadas. Ele usava uma calça jeans
preta, camiseta azul em gola redonda, e os seus olhos também
eram verdes; uma coloração mais escura do que os de Christine.
Tinha pouco mais de um metro e oitenta de altura e possuía
cabelos negros e lisos. Tinha em seu olhar um ar de arrogância
e jeito esnobe de garotos da classe média. Nicolas tivera o
mesmo sonho estranho. Christine ficara mais preocupada ainda,
mas conseguira se controlar quando percebera que o juízo ainda
não lhe faltara por completo.
— Então não foi um sonho, foi real — observou ela, pensativa.
— Precisamos descobrir o motivo desse sonho — disse
David, determinado.
— Apareça, Gabriel! — exclamou Nicolas.
Uma chama verde surgiu no centro da sala decorada com
objetos e vasos da antiguidade. As labaredas se alastraram ao
redor dos irmãos Richard e, embora não estivessem queimando,
a ardência ainda podia ser sentida. Um vento forte fez com que
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o lume virasse um redemoinho esverdeado, que girou descontroladamente até desaparecer por completo. Gabriel apareceu
diante de todos, sacudindo as vestes de pele de raposa...
— Alguém me chamou?
— Precisamos saber a razão do sonho que tivemos...
— O que vocês viram não foi apenas um sonho, mestre
Christine — interrompeu ele. — Aquela era a última lembrança
de Diana. Foi naquela noite que a mãe de vocês foi brutalmente
assassinada por Félix — explicou o bruxo. — Precisamos detêlo antes que tenha mais um ataque de loucura, por isso eu vim
atrás de vocês, os últimos Richard.
— Tudo bem, então... queremos resgatar Hórus! — Havia
um tom de autoridade na voz do David.
Gabriel olhou para o garoto de um jeito sutil, e um sorriso
malicioso se formou no canto direito dos seus lábios finos. Na
sequência, começou a flutuar, os seus olhos passaram do preto
para o roxo. O dia ficou escuro lá fora, ventos tempestuosos
invadiram a sala pelas frestas das janelas abertas, raios começaram a cortar o céu, e uma espécie de porta apareceu irrompendo
pelas pilastras de gesso e causando um grande estrondo. Havia
diversos entalhos na estrutura de madeira que tinha surgido. Ao
redor da maçaneta, fadas foram esculpidas em círculos e pareciam bailar pelo remate metálico. Na moldura se via a figura de
seis duendes sentados ao pé de uma jabuticabeira cujas raízes se
levantavam do solo e iam de encontro a um rio bem desenhado
na travessa horizontal inferior da porta.
O chão estremeceu, e Christine cambaleou para a direita,
mas continuou em pé, imponente. O quarteto atravessou a colossal porta, que se fechou com um baque surdo. Todos, menos
Gabriel, sentiram uma dor de cabeça espantosa, os seus estômagos começaram a revirar, e a dor ficou cada vez mais intensa
conforme os segundos caíam; todos naquela hora desejaram que
a dor passasse... que dormissem... que morressem...
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A vida passou diante dos olhos de Christine, e ela pôde
rever o passado. Viu como foi o seu primeiro aniversário depois
que se mudara para a casa da tia Valéria, irmã do seu pai, Bruno,
após a morte da sua mãe, Diana. Convidara todos os colegas
do quinto ano, e poucos haviam aparecido. Muitos alunos consideravam-na esquisita e assustadora, e como se fosse ontem se
lembrou do choro que lhe ocorreu no final da tarde.
Era 22 de agosto, do ano de 1994. Christine acabara de
completar onze anos de idade, e há um ano a sua mãe havia
falecido. Comprara um lindo vestido de seda na cor roxa para
usar na celebração, e o seu cabelo levava um penteado que lembrava os das garotas na formatura. Lindos sapatos pretos enfeitavam os seus pés. Chateou-se pela quantidade de colegas que
vieram homenageá-la. Por que era tão difícil ser querida entre
os alunos? Sarah Mattos, uma aluna do sexto ano, havia entrado
em sua festa sem ser convidada e, após as duas discutirem, a
menina fez com que a aniversariante caísse em cima do bolo e
ainda lhe derrubou uma jarra de suco de laranja. Christine, apavorada e aos prantos, correu para o seu quarto depois que os
alunos riram e se divertiram às suas custas.
No dia seguinte ao episódio, para a infelicidade da garota,
Sarah a esperava no final do corredor do pátio escolar, depois
de a aula ter acabado.
— Por que você fez aquilo, Sarah? Já não basta me humilhar aqui na escola, agora quer me humilhar em casa também?
— Como você é patética, Christine. Não passa de uma menininha assustada que não sabe se defender — respondeu Sarah
cuspindo no chão, ao pé de Christine. — Você e todas da sua
estirpe me enojam.
— Olhe para você, garota. Se acha a coisa mais importante
do mundo, não é? Acha que as estrelas brilham em sua honra,
mas não passa de um verme asqueroso que tenta demonstrar
superioridade humilhando os outros.
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— Criou coragem, hein, princesa? Não precisa mais da mamãezinha para te defender como nos anos anteriores?
— Não fale da minha mãe, sua víbora peçonhenta, senão
— ameaçou Christine, o indicador direito apontado para a garota ruiva diante de si.
— Senão o quê, boneca? Vai me bater? — desafiou.
A têmpora de Christine se alterou de tal modo que Sarah
poderia jurar que a cabeça da colega fosse explodir, e ela avança
para cima da menina. Suas mãos se ergueram em direção aos
cabelos ruivos de Sarah, se prenderam firmemente nos fios
avermelhados e os puxaram com fúria. Sarah faz o mesmo.
Christine desprendeu uma das mãos, fechou o punho e atingiu
um soco sobre a barriga da adversária, que deixou escapar um
filete grosso de saliva ao sentir o impacto do golpe. Após as
duas rolarem sobre a grama alta, Sarah bateu fortemente a cabeça em uma pedra no chão. Os segundos se arrastaram, e a
garota continuou paralisada no tapete esverdeado.
— Ei, Sarah, acorda! — falou Christine, chutando levemente os ombros da menina. Os olhos de Sarah permaneceram
fechados.
Christine se agachou sobre os joelhos e forçou a abertura
das pálpebras da garota; estático permanecia o olhar. Estava
morta. O sangue espesso começava a formar um círculo torto
sob a sua cabeça, e da sua boca semicerrada o líquido começava
a jorrar como uma fonte. Christine, apavorada e novamente em
prantos – não por ter ferido a garota, mas sim por medo de ser
descoberta -, arrastou o corpo, que tinha quase o dobro do seu
peso, até uma ribanceira que havia atrás da escola e o deixou
rolar até se perder no mar que vinha logo abaixo.
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*
Os pais de Sarah foram até a escola na esperança de terem notícias da filha, mas não encontraram nada. Até então, a instituição não possuía câmeras. Não havia vestígio do desaparecimento da aluna; Christine limpara o sangue que formava uma
trilha até o corpo. Depois do ocorrido, foram instaladas diversas
câmeras nos corredores e nas salas de aula, mas ninguém se importa, é sempre assim, não é mesmo? Aos poucos, as lembranças vão ficando para trás, e Christine volta a ter o seu estômago
atordoado pela viagem que parece não ter fim.
Nicolas estava novamente no ano de 2008. Dois meses antes completara dezoito anos e tirara a habilitação. Comprara o
carro dos seus sonhos: Um Audi R8, na cor preta, último modelo. Uma verdadeira máquina automobilística. As gotículas de
chuva começaram a escorrer por entre as nuvens, e um raio cortou o céu ainda iluminado quando o jovem tirava o carro da
garagem. Era uma tarde de novembro, e Nicolas chegou à casa
da sua namorada, Clarice, já anoitecendo.
Quando finalmente estacionou em frente à casa dela, a
chuva estava mais forte. Ambos foram assistir à peça trágica de
William Shakespeare, Rei Lear. Não era um programa corriqueiro, portanto a ocasião se tornara especial. Na volta para a
casa, um gato branco cruzou o caminho do carro, fazendo com
que Nicolas desviasse o caminho. Porém, o carro derrapou, e o
jovem perdeu totalmente o controle do automóvel; talvez porque tirara a habilitação havia pouco tempo ou talvez porque o
carro tinha um sistema diferente do que estava habituado. O
Audi colidiu em uma árvore e capotou no barranco que surgia
por entre as curvas da estrada.
Nicolas observava a expressão de dor e pânico no rosto de
Clarice, mas as pálpebras pesaram, e ele foi derrubado pelo
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sono. Acordou somente três dias mais tarde com a cabeça latejando e com ataduras que recobriam os diversos ferimentos
pelo corpo. Sua cabeça parecia que ia explodir de tamanha dor
que estava sentindo. Estava demasiado enfraquecido para se levantar ou mover algum membro. Uma enfermeira informou,
assim que o rapaz pediu notícias, que Clarice não resistiu aos
ferimentos e faleceu. Seu mundo desabou, a cabeça girou e os
olhos lacrimejaram. Queria ter morrido com a sua amada. Sentira raiva do gato e de si mesmo por ter desviado. Queria que
fosse um sonho, mas não era.
O rapaz foi à casa dos sogros assim que teve alta, e o seu
sogro o julgava com ar de repugnância, dizendo que fora sua
culpa. Saiu da casa dos sogros com a cabeça fervilhando de raiva
e medo simultaneamente. Não foi minha culpa, repetia para si
mesmo, mas a ideia de ser o culpado não saía da sua cabeça.
Estava debilitado demais para tomar uma atitude e ficou parado,
sentado em frente ao seu apartamento, refletindo a situação.
Um clarão apareceu em sua frente, e as lembranças, assim
como as de Christine, sumiram da sua mente. Nicolas voltou à
sua viagem interminável.
David nunca fora um garoto popular na escola e jamais se
empenhava nos esportes, mas aos quinze anos surpreendera a
escola ao demonstrar a sua verdadeira vocação no Handebol,
esporte que até então nunca demonstrara interesse e ânimo ao
jogar. Marcara vinte e cinco gols para o seu time, e a torcida
vibrava quando estava sob a posse da bola. Um grupo de alunos
mais experientes no time sucumbiu à inveja e armou uma emboscada para pegá-lo na saída das aulas. Por sorte, alguns policiais faziam ronda próximo à região, e os alunos desistiram do
plano maléfico. As lembranças foram aos poucos se tornando
um borrão em sua mente, e David cedeu a um sono leve, que
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acabou pouco depois, pois começava uma incessante dor de cabeça.
A dor latejante cessara junto com as lembranças.
*
Os irmãos Richard olharam ao redor esperando algo realmente
surpreendente, porém não havia nada de anormal, de místico
tampouco; era uma cidade comum, com gente comum. As pessoas andavam com tanta pressa que nem ao menos repararam
que quatro pessoas acabaram de surgir em meio a uma névoa
gelada, próximas à estação ferroviária.
Caieiras se situava na região da Grande São Paulo. Nada de
místico fora avistado pelos irmãos que olhavam rápida e desesperadamente ao redor tentando encontrar o motivo daquela visita inesperada. Apesar de Gabriel, obviamente, saber aonde estava indo, não era acostumado aos meios comuns; ficara deslumbrado com um trem vermelho e cinza que passara a poucos
metros de distância.
— O que é isso, Gabriel? — perguntou David, parando
próximo a um hospital, depois de andar cerca de dez minutos.
— É Caieiras! Vai dizer que não conhe...
— Eu sei que é Caieiras. Quero saber o porquê de estarmos
aqui.
— Ah, sim! Precisamos atravessar o portal.
— E onde está? — inquiriu Nicolas, correndo os olhos ao
redor. — Não estou vendo nada...
— É claro que você não está vendo, mestre Nicolas. Ele
está lá no topo! — Tratou de responder Gabriel, apontando na
direção de uma montanha esverdeada pelas árvores no horizonte.
— No Cristo? Você está brincando, não é?
Gabriel ignorou o comentário da bruxa e continuou a andar, parando alguns metros à frente. Enquanto os irmãos se en-
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treolhavam incrédulos, Gabriel puxou um punhal do bolso interno do seu sobretudo de peles e cortou o próprio pulso em
um golpe rápido e preciso. Em seguida, tirou um cálice de prata
crepitado de rubis extremamente redondos e de um brilho ofuscante e pingou quatro gotas de sangue em um líquido esverdeado que havia nele.
O líquido ficou espesso e acinzentado quando começou a
borbulhar. Um cheiro fétido misturou-se ao ar. O vento gélido
e penetrante de fevereiro invadiu as narinas deixando-os nauseados. Gabriel flutuou a seis palmos do chão, com os braços e
pernas afastadas, abrindo a boca rapidamente sem pronunciar
palavra alguma.
O sangramento em seu braço direito cessou, e o corte cicatrizou como se jamais tivesse existido. E Gabriel pousou naturalmente à medida que os irmãos fecham as suas bocas entreabertas de espanto. Um estalo forte, seguido por um grito agourento e agonizante, cortava a redondeza, e quatro vassouras ladeadas de um fogo roxo apareceram em fila, ao lado da calçada.
Pareciam estar vivas. Rapidamente ficaram esticadas, prontas
para serem montadas. As labaredas rodeavam as vassouras e se
movimentavam ao redor do grupo formando um véu espesso.
— Podem montar. — O bruxo esbanjava um sorriso triunfante. — Só não caiam...
— E as pessoas?
— Ora, mestre David, você não acha que se pudéssemos
ser vistos as pessoas já não teriam se manifestado? — indagou
Gabriel, montando em sua vassoura. — Estamos invisíveis!
Os irmãos olharam por cima do ombro e notaram que as
pessoas pareciam não estar reparando neles, mas, provavelmente, sentiram o odor fétido invadindo as suas narinas; segundos antes de montarem as suas vassouras, algumas pessoas taparam o nariz com as mãos. Os irmãos deram um forte impulso.
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A brisa suave passava veloz pelos cabelos, enquanto as casas
iam ficando para trás, ao passo em que tomavam altura.
— Legal, não é mesmo? — Os cabelos de Gabriel esvoaçavam ao toque do vento como se a natureza quisesse acolhêlos em um abraço terno.
— Oh, bastante! — Tanta coisa se passava pela mente do
rapaz naquele instante, que essa foi a resposta que Nicolas se
limitou a dar.
As vassouras produziam um ruído parecido com o das motos e soltavam fumaças coloridas que formavam um imenso
manto por onde passavam. Sem precisar conduzi-las, se dirigiram para o destino final. Os irmãos faziam acrobacias no ar.
Nunca imaginaram que algo assim poderia ser tão divertido e
prazeroso; afinal, nunca haviam voado em vassouras antes. As
nuvens acinzentadas demonstravam que iria chover dentro de
minutos.
Chegaram até a estátua com a chuva fina batendo em seus
rostos. A vista era espetacular. Quase toda a cidade podia ser
observada, e inclinando um pouco o corpo via-se uma enorme
floresta de pinheiros que se estendia por incontáveis metros. O
Cristo, como era conhecido um monumento que retratava a
imagem de Jesus, mantinha os braços abertos, e a construção
estava um pouco desgastada devido à ferocidade do tempo. Gabriel parou perto de uma estrutura arredondada logo atrás da
estátua; tinha seis degraus, que o bruxo subiu sem perda de
tempo.
No centro da construção, ao lado de uma pequena placa,
Gabriel tocou. Onde foi tocado apareceu um buraco que foi se
alargando como se alguém sugasse pelo interior. Uma escada de
pedra que se movia para baixo em agrupamentos circulares foi
revelada. Os quatro desceram, enquanto o portal se fechava
com um baque estrondoso atrás do grupo. Quando parecia que
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a caminhada não iria mais acabar, Gabriel alcançou uma porta
de carvalho com a maçaneta em forma de raio.
A porta fora aberta, e eles entraram em uma câmara totalmente escura com pequenos lampejos azuis ao longe. Caminharam durante mais algum tempo...
— Bem-vindos a San Martin3 — anunciou Gabriel, abrindo
mais uma porta e deixando à mostra uma cidade com seres mágicos fazendo compras.
— Nossa! — admirou-se Nicolas.
Os irmãos viravam a cabeça para todos os lados enquanto
caminhavam pela estrada de paralelepípedo tentando ver tudo
sem deixar passar nada. As pessoas enchiam a rua que se estendia por sobre as pedras brancas bem calçadas e se perdia na
imensidão. Um homem gorducho com bigodes e sobrancelhas
grossas passou por eles correndo atrás de um coelho roxo de
três pernas gritando freneticamente: “não fuja, seu ladrão miserável...”. Enquanto corria, os pesados botões da sua camisa amarela ameaçavam saltar e quebrar os vasos requintados da loja
vizinha.
Vários garotos, aparentando ter no máximo dez anos, espremiam os narizes contra a vitrine da loja de motos voadoras.
A loja “Vis a vis” vendia vestes femininas, e a “Mar & Ondas”,
masculinas.
Havia lojas que vendiam utensílios domésticos e pedras
preciosas. Uma pequena loja cor de rosa tinha no telhado um
grande outdoor que exibia uma tesoura cortando longos fios de
cabelos caramelo. Ao lado, a placa continha o nome “Navalha
de Ouro”. Os irmãos Richard deram uma olhada pela vitrine e
contemplaram tesouras e secadores executando o serviço sem
(N. A.) San Martin é a mais importante cidade de todo o Mundo Mágico. Conta-se que fora
construída por um pescador que abandonou Misdoc após ter sido acusado de estupro por
uma mercadora. Nela foram construídas grandes e importantes organizações que comandam
os Mundos. Entretanto, Geena ainda é a mais popular, pois abriga criatura das trevas.
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esforço manual. Provavelmente estão enfeitiçados, pensaram. Enquanto andavam pela rua cada vez mais estreita devido ao acúmulo de pessoas, crianças eufóricas esbarravam nos novos visitantes.
Um enorme prédio, todo construído por mármore negro e
fios de ouro branco, erguia-se imponente, ao extremo do lado
direito da rua, acima das lojinhas. Sobre a terra estava um grande
letreiro antigo, daqueles que lembravam os bares de faroeste,
onde se lia: Confederação Internacional de Feitiço & Magia 4. Paradas
diante da enorme porta de ouro polido, usando uma manta negra que parecia ter vida própria, estavam duas mulheres altas
com o capuz cobrindo-lhe o rosto.
— São Curbras5 — explicou Gabriel, ao notar os semblantes curiosos dos irmãos. — Seres que.... Não posso nem dizer
os poderes dessas criaturas demoníacas. Vocês não iriam se sentir bem, não agora, mas logo vocês saberão do que elas são capazes. Elas guardam o prédio; caso haja algum problema, elas
resolverão.
As Curbras mantinham as cabeças baixas, e por debaixo do
capuz caíam pequenos fios de cabelo no tom de vermelho sangue. Elas os cumprimentaram com uma leve reverência e um
aceno de cabeça ao passarem pelo portão. O saguão de entrada
era, em uma só palavra, esplêndido. Uma fonte de água doce
encontrava-se no meio do salão ladeada de centauros e duendes
como estátuas. As paredes, construídas de pedras, possuíam,
apesar de já gastas, um ar de extrema importância. O chão fora
(N. A.) A Confederação Internacional de Feitiço & Magia foi construída em 953 por Saturan,
um jovem guerreiro que fora eleito por seus feitos como Rei Supremo. A Confederação cria as
leis somente para as cidades, mas os reinos não podem criar decretos que interfiram na vida
das pessoas que não pertencem aos seus domínios. Atualmente ela é formada por um Conselho de Bruxos que cria leis de acordo com a necessidade do povo e tem a ajuda da C.I.A. para
tal.
5 (N. A.) As Curbras foram criadas por Nesmério, Mestre de todos os Elementos e Criaturas,
nos tempos primórdios do Mundo Mágico, para conterem a vontade sanguinária dos Tubarús.
São bestas que se alimentam da alegria e juventude de outros seres.
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pavimentado com enormes pedras brancas e pretas que davam
o aspecto de elegância e sofisticação. Ao longo do corredor, ao
que pareceu do tamanho de um campo de futebol, havia portas
e mais portas fechadas.
— Podem olhar a cidade — disse-lhes Gabriel — Tenho
assuntos a tratar com o Conselho.
— O quê...?
— Assuntos da C.I.A., mestre David, logo vocês saberão
— advertiu-o, e virando as costas se dirigiu para terceira porta
à esquerda.
— E agora? — Confuso, Nicolas sutilmente coçava os fios
escuros dos seus cabelos.
— Você ouviu o homem, Nicolas...
— Vamos conhecer a cidade! — exclamou Christine, com
um tom de voz empolgado, dirigindo-se à porta de saída.
Caminhando pela estrada de paralelepípedo que quase arrancou o dedão do seu pé direito ao batê-lo em uma pedra solta,
Nicolas não parou um segundo de questionar:
— Sou eu, ou isto aqui é muito surreal?
— Com certeza, se não estivéssemos aqui, eu não acreditaria — concordou David.
— Mas será que somos bruxos mesmo? Não foi engano
do Gabriel? E se foi... O que será que vai acontecer?
— Nossa mãe era, não era, Nicolas? E se Gabriel falou que
somos, então somos.... Eles devem ter um detector de magia ou
coisa assim. O que podemos fazer, por enquanto, é esperar —
comentou Christine.
A discussão a esse respeito durou apenas mais alguns minutos enquanto andavam pela cidade. Os irmãos seguiram até
uma pequena loja de doces, com um enorme letreiro brilhante
no lado esquerdo onde se lia: “Doces & Travessuras”. O interior
da loja era exageradamente grande; ao contrário do exterior, que
dava a impressão de ser uma pequena cabana.
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À frente dos irmãos, estendia-se um compartilhamento
comprido e largo cujos fundos se perdiam na escuridão formada
pelas centenas de casacos dos bruxos que estavam ali. Nas paredes, havia prateleiras que iam do teto ao chão, abarrotadas de
doces de todos os tamanhos. A loja estava enfeitada com enormes faixas amarelas e vermelhas, e nas prateleiras estavam doces
exóticos que os irmãos não conheciam. O grupo se separou, e
foi cada qual para um lado a fim de explorar a loja. A movimentação, apesar de ser enorme, não impedia que as pessoas explorassem o local. Christine apanhou em uma das prateleiras um
doce em forma de sapo com pequenas pintas amarelas. O doce,
que tinha aroma de abacaxi, pareceu tão gostoso que Christine
o levou à boca...
— Eu não faria isso se fosse você. — Alertou uma voz
masculina atrás dela, antes que mordesse o doce.
Christine virou-se e contemplou por alguns segundos um
homem louro e de olhos pretos que sorria graciosamente para
ela. Ele trajava um sobretudo e botas marrons, camisa branca e
calça em tons de verde e com detalhes em prata
— Por que não? — indagou, por fim. — Quem é você?
— Desculpe-me — sem graça, ele deslizava a mão delicadamente pela nuca — Sou Eric, filho de Thuin, senhor ao norte
de Criolé.... Você, ao que não me engano, é Christine Richard,
filha de Diana, correto?
— Sou, sim — concordou, analisando discretamente o
corpo do rapaz.
— Então, mestre Christine, eu não comeria um Engasgador
se fosse você.
— Engasgador?!
— Não pude deixar de perceber que não reparou direito
no nome da loja: Doces & Travessuras — sorria simpaticamente.
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— Os donos adoram pregar peças em seus clientes. O Engasgador é realmente muito bom, mas não existe ninguém que consiga comê-lo sem necessitar de uma ajuda depois...
— Tudo bem — proferiu lentamente Christine, devolvendo o doce à prateleira. — Obrigada. Não iria querer perder
essa viagem.
— Pelo visto você ainda está conhecendo o Mun-do Mágico. Se quiser, eu te acompanho pela...
— Não, não precisa — interrompeu-o. — Estou bem
acompanhada, obrigada.
— Seja como for — disse Eric, beijando-lhe a mão direita
—, estou ao seu dispor. — E, se retirando, desapareceu na multidão que enchia a loja.
Depois de algumas horas, pouco após o crepúsculo, os irmãos saíram por San Martin à procura de algum hotel onde pudessem passar a noite. A brisa noturna de fevereiro lhes dava
uma sensação prazerosa, enquanto a lua erguia-se magnífica sobre as montanhas. Por sorte, pouco antes das nove badaladas
do relógio da igreja que se via na direção leste da cidade, o trio
encontrou uma pousada, “O Dólmen da Noite”, onde conseguiram três quartos para pernoitarem. Eram todos pequenos, revestido por marfim, inclusive o teto, de onde se sobressaía um
lustre branco com duas velas acesas. Como estavam exaustos,
os irmãos aceitaram de bom grado. Às nove e meia da noite,
uma das criadas, uma mulher pequena, de olhos prateados e cabelos roxos trançados pela cintura, viera avisar-lhes que o jantar
estava servido.
Na sala de jantar, um aposento circular de três cômodos,
estendia-se uma enorme mesa de madeira com quase quarenta
banquinhos tripés ao redor. Os hóspedes, aos poucos, foram se
acomodando da maneira que lhes convinha. Entre bruxas, duendes e faunos, estava um centauro que mal tocara na comida.
Ficara a refeição toda a olhar para a janela aberta na sua frente.
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A refeição era composta de carne de cervo, batatas, arroz,
lagosta, batatas, ervilhas, macarrão e mais uma porção de aperitivos pouco conhecidos pelos humanos. De sobremesa tinha
vários quitutes desconhecidos pelos irmãos Richard. Eles tiveram o prazer de tomar a tradicional San Martin, uma bebida típica da região, feita à base de uva e com uma grossa camada de
mel por cima. Se você não for um ser mágico, provavelmente
nunca experimentou uma bebida tão saborosa; não era composta por álcool, e o sabor era leve como o aroma de rosas.
Terminada a refeição, a dona da pousada, uma bruxa gorda com
cara de leitão, levantou-se e pôs as suas enormes mãos sobre a
mesa ao mesmo tempo em que falava:
— Cavalheiros e ladies, temos três ilustres hóspedes esta
noite. — E virando uma das mãos gordas para os irmãos: — Os
irmãos Richard, que aqui se encontram, gostariam de conhecêlos...
O fauno, que foi o primeiro a se apresentar, chamava-se
Plebeu e disse ter vindo de um reino distante que fora devastado
pela terrível ninfa do mar, Calipso. Jamais se sentira confortável
nessa cidade, mas também nunca tinha gostado do seu antigo
lar. Portanto, não fazia diferença estar em San Martin ou outra
parte do Mundo. Plebeu contou-lhes também que era ferreiro
e já fabricara muitas espadas e escudos para os reis e cavaleiros
dos reinos de Algária6 e de Megaiv7.
(N. A.) Algária é o reino mais conhecido de todo o Mundo Mágico. Esse reino é governado
pelo rei Miquelin, homem de nobres conceitos que conquistou o trono após uma batalha contra Ogros das Montanhas Z. Ricardo II, filho de Ricardo, o Navegador, fora o primeiro rei de
Algária que, por sua vez, foi o primeiro reino constituído após a luta de Bruxos e Curbras no
início da criação. Algária tem a sorte de ser banhada pelo Grande Rio Kooflér, que deságua no
Bosque de Pedra.
7 (N. A.) Megaiv é o reino constituído por Edmundo quando seu irmão Rodolfo fez um acordo
com as Curbras que ele não aprovou. Após a morte de Ricardo II, rei de Algária, Rodolfo fora
proclamado rei por ser o mais forte dos trigêmeos. A parteira não lembrava a ordem do nascimento das crianças e eles tiveram que se enfrentar em um duelo de espadas, Rodolfo venceu
e foi proclamado rei de Algária. Quando ele fez um acordo com as criaturas Curbras, Edmundo e Carlos deixaram o reino e constituíram cada qual o seu próprio domínio. Megaiv é
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Um duende magro e de boa aparência disse ser chamado
de Íbis e que vivia em San Martin desde pequeno, embora sua
família fosse de Olho Solitário8. Ele era baixo, mas de expressões
marcantes. Seu rosto era quadrado e levava um cavanhaque raso
sobre o queixo. Usava uma enorme cartola branca que era recoberta por linhas cinza. Seus trajes eram de um fino tecido. Uma
camisa dourada caía pelos seus ombros em agrupamentos triangulares, e uma calça justa preta estava bem colocada sobre as
suas pernas secas, enquanto uma capa roxa desabava pelas suas
costas.
Duas bruxas gêmeas apresentaram-se como as irmãs Nicarágua e disseram ter um irmão, foragido da polícia, de nome
Narciso. Densa e Alice eram os seus nomes. As feiticeiras eram
baixas e tinham os rostos triangulares marcados por uma expressão severa. Seus olhos eram de um verde intenso, e as bocas
eram delicadas; provocantes ao passo em que as mordiscavam
olhando para Nicolas, que desconsertado desviou o olhar diversas vezes. Os cabelos eram curtos e negros, e as suas vestes eram
compostas por cinco tons de cinza que se ajustavam formando
diversas camadas em um vestido longo.
Vários outros se apresentaram, mas creio não valer a pena
descrever tantos nomes e histórias. Todas as criaturas haviam
se exposto, exceto o centauro que continuava a olhar pela janela.
— E você, Belgo? — perguntou a bruxa, dona da pousada,
enquanto fixava os seus enormes olhos castanhos sobre o híbrido. Seus dedos deslizavam pelos cachos negros do seu cabelo
que escorriam pelos ombros. — Não vai se apresentar?
um reino de grande alegria, onde todo ano é comemorado o Festival da Uva, em homenagem
ao deus da fertilidade, Tugaa.
8 (N. A.) Olho Solitário é uma cidade pequena que se situa entre Algária e as Montanhas Z.
Não se tem notícia de um grande feito nessas terras, e ninguém sabe sobre sua origem. Contase que a cidade já fora um grande reino e que, após ser devastada por uma guerra inimaginável, ficou esquecida no norte do Mundo.
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Belgo, que não tirara os olhos da janela um só instante, era
alto e possuía um cabelo encaracolado que chegava aos ombros.
O tronco e a cabeça eram de humano, e a parte inferior era de
equino. Na altura da cintura havia uma espada embainhada num
cinto prateado. O seu rosto era austero, mas a sua voz era serena.
— Por quê, senhora Mantovani? — indagou, ainda a olhar
para o céu.
— Porque eles são os últimos Richard...
— As estrelas dizem que com eles virão tormentas e que a
bonança chegará apenas para um — informou Belgo, calmamente, sem tirar os olhos do céu cada vez mais iluminado por
pontinhos cintilantes.
— E o que mais elas dizem? — precipitou-se Christine sobre o centauro, com um sorriso no rosto.
— Que a Grande Guerra, prevista pelo Oráculo, começará
em poucos meses e você será o estopim. — Nesse momento,
um olhar severo daquele híbrido recaiu sobre a bruxa.
— Não diga bobagens, Belgo — interveio a senhora Mantovani. — Ele sempre foi assim: pessimista — disse ela, com
um sorriso desajeitado. — Bom, já que todos se conhecem, melhor irmos deitar-nos, não?
Cerca de seis muitos mais tarde, todos tinham se retirado
da sala circular, e somente Belgo continuou a contemplar o céu
estrelado através da janela. Os irmãos foram para os seus aposentos, enquanto alguns seres ainda conversavam quase em sussurro. Todos, exaustos, caíram em suas camas e adormeceram
imediatamente.
O Sol já ia alto quando finalmente acordaram. Tomaram
banho, mas tiveram de se contentar com as mesmas roupas do
dia anterior, afinal não tinham levado bagagens, e foram tomar
café.
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Um enorme desjejum estava posto sobre a mesa. Alguns já
haviam se alimentado, e muitos tinham partido durante a madrugada; era comum nessa época do ano o povo de Misdoc, um
dos três reinos do Mundo Mágico, sair dos seus domínios e peregrinar pelas cidades vizinhas. Pouco após os irmãos tomarem
o desjejum, viera Gabriel, entrando pela porta da pousada. O
homem usava um medalhão redondo entalhado pela imagem de
um cervo dourado sobre um colete de prata que os Richard não
tinham reparado até então.
— Partiremos imediatamente. Lá fora, nos espera uma carruagem, e o cocheiro não é um dos mais pacientes — informou.
Pagaram uma boa quantia para a pousada - na verdade,
quem pagou fora Gabriel; Christine insistiu em dar algumas
notas do Real, mas a senhora Mantovani esclareceu que por
aquelas bandas esse tipo de dinheiro não tinha valor, e o bruxo
pagou com algumas moedas de ouro - e foram para a
carruagem, que estava esplêndida, recoberta por escamas laranjas, parada próxima a’O Dólmen.
Os cavalos, cristalinos como o mais lapidado diamante, ao
serem chicoteados pelo cocheiro, mostraram uma ótima disposição; saíram em disparada pelas ruas de San Martin até chegarem a um portão em forma de arco: a saída da cidade. Fiquei
impressionada, pois em meus trezentos e cinquenta e dois anos
nunca, nem em sonho, vi cavalos correrem de tal maneira. A
carruagem, incrivelmente, não sacolejava e seguia a viagem
calma com as ondas do mar Nailel, na costa da cidade.
Algumas horas depois, quando a conversa entre os passageiros estava quase se extinguindo, chegaram às regiões montanhosas. No topo de uma colina ziguezagueante erguia-se um
castelo escuro, porém esplêndido. A carruagem subia a montanha, enquanto o castelo ficava mais admirável e mais elegante.
Pararam, finalmente, próximos a uma grande muralha tenebrosa
e rústica que circundava a construção magnífica.
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O Castelo
Ao redor da muralha cinzenta, erguiam-se, magnificentes,
dezenas de estátuas de pedras, rodeadas por linhas de prata. Os
monumentos tinham o aspecto de reis; vestiam longos mantos
vermelhos que caíam pelas costas e se uniam à parede da muralha, as pernas e peitorais estavam cobertos por armaduras escamosas num tom azul escuro, e os pés eram calçados por uma
bota prateada.
Na cabeça não usavam elmos, mas deslizava elegantemente uma coroa dourada. Suas frontes eram enfeitadas por
uma enorme pedra vermelha. E os seus olhos eram serenos, observando as colinas que faziam curva no horizonte. As estátuas
mantinham os braços cruzados, mas em cada mão levavam uma
adaga pequena. Os irmãos eram minúsculos diante da grandiosidade da construção e contemplaram todas as esculturas apenas
erguendo as cabeças. Eles eram como insetos insignificantes
que passavam aos pés dos grandes reis.
A divisória estava repleta de cavaleiros alados, munidos de
armas que se destacavam pela tecnologia; possuíam raios neutralizantes e desintegradores, cujo designer era um emaranhado de
peças metálicas. Os soldados caminhavam por cima da muralha;
eles eram responsáveis pela guarnição do local.
O general do exército alado, Ahrän, caminhava em direção
aos novos visitantes quando os irmãos chegaram a um portão
colossal que impedia a passagem. A porta era de um azul penetrante, e dezenas de linhas pretas foram entalhadas aleatoriamente pela sua base. Christine pôde observar um sobretudo
preto com um símbolo no lado esquerdo do peito, mas o nome
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nele escrito não foi observado. Debaixo do casaco, o homem
trajava um terno tweed, onde se escondiam as asas.
— Suponho que sejam os irmãos Richard — falou ele, com
um sorriso no rosto e com a mão estendida para Nicolas, que
vinha na frente.
— Como sabe quem somos?
— Ora, mestre Nicolas, a chegada de vocês já era esperada.
Agora entrem e conheçam melhor a C.I.A! — Nesse momento,
o bruxo acenou para cinco soldados, que puxaram fortemente
uma alavanca do alto da muralha. O portão começou a erguerse ruidosamente, abrindo-se para um campo extremamente
verde. — Pena eu não poder ir com vocês, preciso zelar pela
proteção do castelo — lamentou Ahrän, se retirando com a sua
arma em punho e voltando para o seu posto, onde dois senhores de expressão abatida fecharam a porta após o seu regresso.
Ao passarem pela enorme muralha, puderam observar melhor o terreno, apesar de a noite já ter caído sobre eles. Um vasto
campo verde estendia-se ao redor do castelo que se erguia imponente e maravilhosamente lustroso refletido pelo brilho amarelado da lua-cheia. O gramado verde-oliva se desdobrava como
um enorme tapete. A alguns metros da entrada do castelo havia
uma lagoa, de onde lampejos bruxuleantes eram observados.
Sua água escura e espessa, ainda mais depois do crepúsculo, a
deixava sombria. Ainda com o brilho da lua sobre a construção
cada vez mais esplêndida, uma cauda escamosa emergiu da lagoa, voltando segundos depois para o extremo desconhecido.
Aconteceu tão rápido que Christine se perguntava se a sua visão
não a estava enganando.
Grandes árvores escuras erguiam-se melancólicas atrás do
castelo. Somente pequenos ruídos podiam ser ouvidos decorrente à extensão do castelo, que ocupava facilmente algumas
centenas de milhares de campos de futebol. O balançar dos ga-
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lhos, mesmo que visto a quilômetros, mantinha o aspecto obscuro, o que causara arrepios em Christine, que desviara o olhar
e examinava o vasto céu estrelado.
— Esse é o general Ahrän, filho de Merin — informou
Gabriel enquanto caminhavam pelo gramado. — Ele foi encarregado de comandar o exército alado para nos defender de perigos inesperados.
— Ele mencionou um nome — David tentava puxar a palavra da sua mente. — Ah... C.I.A.! Isso, C.I.A.! O que vem a
ser?
— A C.I.A. é a Central de Investigação a Assombrações...
“Nos séculos finais da Idade Média, contrastando com a fase
anterior de relativa prosperidade, a Europa fora contaminada pela
Peste Negra. A doença é causada por uma bactéria que é transmitida
ao ser humano por meio de pulgas contaminadas que se alojam nos
ratos. Devido às más condições de higiene da época, os ratos infestaram as casas, onde as pulgas picavam seres humanos e animais.
Para a religião da época, as doenças eram vistas como castigos
divinos. Acreditava-se, por exemplo, que a lepra fosse um castigo que
Deus impunha ao pecador. A aparência era uma evidência dos seus
pecados. A população, enfraquecida pela fome, ajudou a propagar a
doença. Diante do avanço da peste, as pessoas procuravam se isolar e
evitavam a entrada de estranhos nas cidades, especialmente oriundos
das zonas mais afetadas.
Muitas criaturas sanguinárias, como vampiros e lobisomens,
começaram a chegar ao continente atraídas pelas mortes e sofrimento
dos sobreviventes. Alguns seres criaram uma organização secreta, à
qual deram o nome de V.E.L., que tinha como objetivo exterminar a
raça humana e dominar o planeta; porém, um bruxo de puro sangue,
um dos primeiros da sua espécie, Muralha, vira nessa situação uma
forma de exercer a soberania impondo normas sobre a associação.
Mesmo sendo superior à organização, Muralha não fora bem recebido
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devido à sua maneira de ver o mundo. Com a ajuda de antigos companheiros, Muralha criou a C.I.A. cujo objetivo é proteger o equilíbrio
entre o Mundo Mágico e o Mortal, embora esse objetivo só tenha sido
adquirido algumas centenas de anos depois. Foi somente em abril de
1789 que a C.I.A. se estabeleceu no Brasil.
A V.E.L. caiu em desgraça após atacar a fortaleza da C.I.A., protegida por Ogros das Montanhas Cascudas que massacraram vários
dos seus integrantes. Os que restaram se refugiaram em montanhas
da África e Ásia. Em 1849, um jovem bruxo chegara à C.I.A. apresentando grande conhecimento e sabedoria. Félix demonstrara muito
talento para o preparo de poções e feitiços, e se tornara um dos principais integrantes da C.I.A., apesar da pouca idade.
Em 19059, uma batalha abalou a estrutura do equilíbrio. A mais
sangrenta batalha entre humanos e seres mágicos fora travada depois
que os integrantes da V.E.L., até então desaparecidos, ludibriaram o
Governo do Estado dizendo que a C.I.A. era uma organização cujos
fundamentos eram ditatoriais e procurava o extermínio das raças julgadas inferiores. Com a ajuda do Exército Brasileiro, a V.E.L. procurava fazer com que a C.I.A. fosse vista pela população como uma
forma de governo desleal que buscava a queda do Estado. Na esperança de reverter a situação, a C.I.A. procurou a V.E.L., porém, ao
encontrar os integrantes, a organização fora surpreendida pelo Exército, que, munido com armas futuristas, disparava contra os seres
mágicos, inclusive contra os integrantes da V.E.L. Sem opção, a
C.I.A. fora obrigada a matar diversos oficiais.
Félix se tornara paranoico desde então e não parava de ver as
forças armadas onde quer que fosse. O bruxo fugiu e se refugiou no
interior de Criolé, além das tocas dos Ogros, onde deixou a sua paranoia e constituiu família. Anos depois, sofrera a desgraça de perder a
9
(N. A.) 1905: Ano humano. No Mundo Mágico era o ano XV, da Era Grahä
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família assassinada por um membro da C.I.A.; ele havia descoberto
semanas mais tarde.
Com o ódio estampado em seu rosto, Félix voltara à C.I.A. em
busca de vingança. Um jovem com movimentos vigorosos.... As veias
do seu rosto saltavam como se estivessem entrando em colapso. Sem
prever os movimentos, matava quem tentasse impedi-lo.
Os seus olhos encontraram, enfim, o responsável por tanta
amargura, aparentemente hipnotizado, olhando para as montanhas
que faziam curva através da janela. As lágrimas em seus olhos não
puderam lhe turvar a vista. Félix escutava os choros, os gritos, os
lamentos de dor e os bramidos. Ouvia-o soluçando: “Não foi um pecado, era necessário, não foi...” Sua voz foi interrompida quando a
garganta foi cortada; ele tentou continuar gritando, num sussurro.
Guardas do castelo apareceram para conter o ocorrido, mas acabaram sofrendo o mesmo destino. Com um feitiço de invocação, Félix
formou uma imensa bola energética, que aos poucos deixou o castelo
em ruínas. Com a C.I.A. totalmente destruída, Muralha e o Conselho
foram obrigados a fazer com que os humanos nunca soubessem da
existência dos Três Mundos. Desde então, humanos e seres mágicos
não se encontram, e vivemos em uma dimensão paralela. Dimensão
que existe há muito tempo e que apenas a C.I.A e pouquíssimos seres
não queriam fazer parte.
Pensávamos que Félix havia morrido quando ocorreu a queda da
C.I.A. Há dezoito anos descobrimos que estávamos enganados, pois
em um surto psicótico assassinou Diana, a mãe de vocês”.
— Quer dizer então que esse bruxo sequestrou uma fênix,
que dizem ser lendária. Qual é o motivo desse ato? E por que
ele matou a nossa mãe? O que Hórus tem de especial?
— Bem, mestre Nicolas, nós ainda não sabemos o motivo
de Félix ter sequestrado Hórus, mas a Fênix se tornou lendária
porque em meio à batalha de 1905 abrigou o espírito de um dos
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anciãos da V.E.L. e, embora não saibamos se o espírito ainda
vive, Félix deve tê-la raptado por esse motivo. E seja lá o que
ele pretende, precisamos detê-lo — explicou Gabriel.
— Agora tudo faz sentido — analisou Christine. — Felix
pretende libertar o espírito do ancião para restabelecer a V.E.L.
— Pode ser. Mas, enquanto não descobrimos, vamos entrando...
O bruxo abriu uma porta de madeira ornamentada com
jades e esmeraldas. A estrutura era velha e fraca, no entanto as
pedras chamavam a atenção. O interior parecia claro e quente.
O salão era comprido e largo, fora construído com mármore
branco decorado com enormes rubis cintilantes. Grande quantidade de ouro enfeitava as cortinas que cobriam as abissais janelas douradas. Pilares poderosos sustentavam o teto alto e abobadado. Em alguns pontos, a luz do luar infiltrava-se pelas janelas circulares em raios bruxuleantes. O chão era pavimentado
com pedras escuras e de diferentes tonalidades; a impressão que
os irmãos tiveram foi que galhos e mais galhos se entrelaçavam
sob os seus pés. Viram nesse momento que os pilares eram ricamente entalhados com ouro, prata e pedras preciosas.
Uma estampa pendia da parede leste; estava escurecida pelas sombras, contudo, conforme as luzes eram acesas, devido à
alta hora da noite, hora em que as trevas triunfam, os irmãos
puderam ver um jovem sobre um cavalo negro como o breu e
mais escuro que os corvos. Em sua mão esquerda, levava um
cajado longo e tortuoso que emanava uma luz pálida. Seus cabelos ruivos caíam em tranças sobre os seus ombros. Em sua
mão direita, oculto pelo negro animal, levava um escudo verde:
era perceptível porque um pequeno pedaço aparecia acima do
lombo do cavalo. Estava indo rumo ao norte, onde ciclopes,
monstros gigantescos de apenas um olho, corriam ao seu encontro.
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— Esse é Miquéias, filho de Miquelin, príncipe da longínqua terra de Algária, a oeste do Grande Rio Kooflér — esclareceu
Gabriel.
Ao longo do salão, vasos e jarros egípcios enfeitavam-no
dando um aspecto aristocrático. No final da grande sala havia
um pedestal com um trono feito de madeira e ornamentado
com ouro e gigantesca quantidade de jade. À frente do trono
encontrava-se um buraco, uma espécie de abismo cavernoso,
que deu a sensação ao David de estar sendo observado ao passar
por ele.
— Este é o Lunar. Ele é capaz de observar o que acontece
nos arredores do castelo e dentro dele, porém não foi capaz de
observar a entrada de Félix na fortaleza. Quando alguém está
em perigo, o alarme é soado... Bom, agora vamos andando. Vocês precisam saber como a C.I.A. funciona.
Gabriel os conduziu por uma longa escadaria sinuosa até
uma pequena porta. A porta não passava de um metro e meio
de altura e possuía a fechadura em formato de crânio. Gabriel a
abriu, e todos a transpuseram...
— Bem-vindos ao Kräshnovil! — disse, abrindo os braços
para os visitantes poderem contemplar o salão. — É aqui que
aprisionamos todos os seres detentores de magia os que se rebelaram contra o Mundo Mágico e o Mortal...
O Kräshnovil era quase tão grande quanto o primeiro salão, e o material utilizado em sua construção fora o mesmo. Ao
longo dele, sobre prateleiras que desciam do teto em espiral até
encontrarem o piso, vários vidros cobertos por um material
verde estavam expostos com pequenas criaturas em seu interior.
Cada criatura utilizava um medalhão feito de madeira, com uma
cobra ornamentada em jade no centro. Elas tinham o rosto corroído pelo tempo; as suas expressões de dor e lamento davam
pena, entretanto os irmãos demonstraram total indiferença ao
notarem os rostos carcomidos.
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— O que são esses medalhões, e por que todas essas criaturas parecem cansadas? — questionou David, sem rodeios.
— O Kräshnovil funciona como uma prisão para todas as
criaturas que tentam derrubar o equilíbrio entre os Mundos.
Esse medalhão foi fabricado pelos astecas pouco depois da chegada dos europeus à América.
“Os astecas desenvolveram um refinado artesanato em cerâmica, pedras e metais. Os artesãos trabalhavam tanto nas residências
como em templos, e também em oficinas instaladas em palácios do
imperador e dos altos funcionários do Estado. O artesanato era riquíssimo. Os astecas tingiam tecidos feitos de algodão para a confecção de roupas e produziam mosaicos de plumas muito apreciados.
Quando os europeus chegaram à América, a população indígena
fora contaminada com diversas doenças, mas isso se deve ao fato de
que criaturas mágicas que habitavam a Europa viajaram escondidas
nos navios. Os astecas procuravam um meio de se defender dessas
criaturas sanguinárias que chegaram devastando a população. Com a
ajuda do deus dos ourives, Xipe Totec, eles encontraram uma árvore
a qual julgavam sagrada; ela fora localizada no Calmecac, uma espécie de templo dirigido por sacerdotes.
A árvore possuía um tronco extenso e, dele, os astecas preparavam os medalhões. Os artefatos eram fabricados usando ouro, prata,
e muitas vezes, pedras semipreciosas, como jade e turquesa. Os astecas acreditavam que os medalhões neutralizavam os poderes e drenavam as forças de quem o estivesse usando. Ao longo desse período,
conseguiram dominar muitos seres mágicos e, como eram politeístas,
construíam diversos templos. Às vezes eram templos grandiosos em
forma de pirâmide. Neles, realizavam cultos religiosos e sacrifícios
humanos. Geralmente, as vítimas oferecidas eram prisioneiros de
guerra, escravos e até mesmo as criaturas mágicas neutralizadas”.
— Mas a árvore era mesmo sagrada?
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— Talvez sim, talvez não, mestre Nicolas — disse Gabriel,
distante. — Não sei se vocês repararam, mas a maioria dos seres
mágicos é considerada lenda em seu Mundo. Enquanto houver
mentes que acreditam no poder dessas criaturas, elas continuarão a existir. Os astecas acreditavam que a árvore era sagrada, e
ela se tornou sagrada. Os prisioneiros do Kräshnovil nunca deram sinal de resistência ao usarem o medalhão. Talvez a maior
força existente seja a crença. Vamos continuar. Neste salão estão aprisionadas cerca de novecentas criaturas, mas uma em especial chamaria a atenção de vocês. Não que ela seja uma prisioneira, mas é muito atrativa. — O bruxou deixou um sorriso
ladino tomar seus lábios.
Gabriel os conduziu até o final do salão, onde, em meio a
um emaranhado de flores e relva, uma senhora com aspecto indígena estava sentada ao lado de uma pétala de rosa vermelha
caída ao chão. O tempo fora devastador com a mulher, que
apresentava um rosto cansado e exaustivo. Possuía alguns poucos fios de cabelo nas extremidades da cabeça e o restante estava calvo, onde pequenos insetos rodeavam atraídos pelo mau
cheiro. Seus olhos negros e grandes apresentavam um ar sofrido
de uma vida com grandes emoções. Trajava um longo vestido
azul celeste com margaridas amarelas estampando uma parte ou
outra. Não emitia som, apenas observava os novos visitantes
que se aproximavam.
— Esta é a Esperança — informou Gabriel.
— Esperança? — perguntou Nicolas, com cara de desdém.
— A última que morre?
— Isso mesmo, mestre Nicolas. Mas, ao contrário do que
muitos pensam, a Esperança não é a última que morre. Quando
todos os mundos não acreditam mais na salvação, a Esperança
morre, e então surge o caos — explanou Gabriel, sendo interrompido por Nicolas.
— A Esperança é uma anciã?
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— Ela vaga por entre os Mundos há milênios... Muito antes de o planeta Terra existir — salientou Gabriel — Você não
esperava que fosse uma jovem ninfa, esperava?
— Bom, não, mas... ah, esquece!
Gabriel deixou de lado a Esperança, e prosseguiu pelo salão, parando em frente a um dos vidros.
— Aqui está um lobisomem — informou, apontando para
o vidro que escolhera. No interior estava uma miniatura de um
lobo cinza. Os jovens puderam observar dois olhos redondos
que cintilavam uma luz amarela. — Seu nome é Denver. Ele
fazia parte do clã Pele-de-Lobo, mas se rebelou contra os seus
companheiros e quase os matou. Por fim, conseguimos capturálo, mas com certa dificuldade, pois...
— Os lobisomens se movem com uma velocidade surpreendente, e isso dificulta o seu aprisionamento — interrompeu
Christine.
No mesmo instante, Gabriel deixou o seu olhar se perder
no rosto da mulher por longos segundos.
— Muito bem, mestre Christine. Você sabe a diferença entre um lobisomem e um vampiro?
— A diferença é que os lobisomens agem por impulso, estão programados para atacar. Já os vampiros sabem usar a sua
inteligência e recuam quando veem que estão em desvantagem.
Por isso, os vampiros conseguem derrotar facilmente os lobisomens. Apesar da velocidade, os lobisomens não conseguem se
defender e acabam morrendo. Se bem que a velocidade dos
vampiros é realmente surpreendente, mas não se compara a de
um lobisomem — foi a resposta da bruxa.
— Você está certa, Christine. Estou impressionado. —
Essa foi a forma que o bruxo encontrou para parabenizar a jovem.
Continuando a observar o salão, Christine viu uma criatura
estranha: era Medusa. Sua pele tinha um aspecto esverdeado e
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meio escamoso. Da sua cabeça pendiam serpentes mal acomodadas em sua coroa, e o seu corpo era coberto por um tipo de
armadura que se unia à sua carne em forma de crostas imponentes. Seus olhos eram de um azul alucinante que pareciam
banhados pelo mar. Uma voz suave ecoava como se viesse de
muito longe na cabeça de Christine: “Tire-me daqui, estou morrendo... todos estão... você também irá morrer. É uma armadilha, fuja...”.
Christine pegou o vidro e jogou-o contra a parede. Por um
breve período, o vidro continuou intacto, mas, logo após um
vento gelado soprar por entre as prateleiras, o vidro começou a
romper-se. O invólucro e o medalhão se quebraram, e Medusa
se soltou.
Uma Curbra surgiu como um demônio de uma névoa gelada. Suas mãos ossudas apareceram embaixo do longo manto,
e aos poucos se revelou uma caveira sacando uma longa espada
de prata. Um brilho pálido emanava da arma em sua mão. Seus
olhos vermelhos faiscavam uma fúria sombria e odiosa.
Medusa precipitou-se contra a porta, mas a Curbra se materializou em sua frente. As cobras saíram da cabeça de Medusa
e atacaram a criatura que estava impedindo a sua fuga, mas a
caveira as vaporiza apenas olhando-as nos olhos. Nesse instante, surgiram mais serpentes da cabeça de Medusa e formaram
uma armadura ao redor do corpo da bestial mulher.
A Curbra agarrou-lhe o pescoço, suspendendo-a no ar,
mas as cobras escaparam por entre os seus dedos. A Medusa
não estava mais no local. Ela era uma das cobras e tinha se jogado por uma pequena abertura na janela. As minúsculas serpentes que ficaram iam esvaecendo aos poucos, ao mesmo
tempo em que a sombra esguia de Medusa desaparecia no deserto que vinha logo atrás dos galhos arrepiantes que os irmãos
Richard notaram ao passarem pela muralha. Como um lobo selvagem, a Curbra se precipitou sobre Christine, apontando os
seus dedos ossudos:
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— Culpada — disse, com uma voz rouca.
— Deixe-a em paz, mensageira do Inferno! — interveio
Gabriel.
Com uma risada estridente, a Curbra desapareceu num rodopio.
— O que você fez, Christine?! — alterou-se Nicolas, sacudindo-a pelos ombros.
Christine continuava no transe; não importava o quanto
Nicolas a meneasse, ela não acordava. Gabriel tocou a sua dela,
e um feixe de luz azul incutiu-se por suas unhas e adentrou a
carne da bruxa fazendo-a voltar ao normal instantaneamente. A
mulher ergueu o seu corpo como se recuperasse o fôlego perdido.
— O que aconteceu? — perguntou, acordando.
— Medusa te hipnotizou e conseguiu fugir.
— Eu ouvi uma voz suave... e depois disso não lembro
mais nada — contou Christine, ainda confusa. Sua mão direita
repousava-se sobre a testa, tentado, em vão, buscar um fio de
raciocínio que fosse.
— Não importa mais. Medusa não será um problema, por
enquanto. Vamos continuar vendo o salão — interrompeu Gabriel.
Logo, ele pegou mais um dos vidros de uma das prateleiras
do Salão. No objeto estava um ser de duas cabeças de leão. Seu
corpo era repleto por escamas de Dragão, e das suas costas saíam enormes asas de morcego. A Esperança seguia os visitantes,
sempre os observando de longe. Andava devagar e curvada; parava, às vezes, para tomar fôlego e escondia-se entre as colunas.
— Alguém sabe que ser é esse? — indaga Gabriel.
— É uma Quimera, um monstro mitológico que amedrontava diversos povos da Antiguidade — respondeu David. — A
sua existência foi esquecida quando o Dragão começou a ser
venerado.
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— Exato! — exclamou Gabriel, admirado com tanto conhecimento. Provavelmente ele não sabia que esse tipo de informação as crianças humanas colhiam logo nos primeiros anos
do Ensino Fundamental. — Vocês têm três meses para aprenderem o necessário, não podemos perder tempo. Félix está tramando alguma coisa, e não queremos descobrir o que é. Ah!
Antes que eu esqueça, a mãe de vocês deixou um presente antes
de morrer para eu entregar para vocês, venham comigo.
Gabriel abriu uma passagem secreta, que foi tomando
forma de um porão todo empoeirado, pegou um livro enorme
de capa negra, coberto por teias de aranha, e leu um feitiço:
— Nilrem ed emon me arudamra atse mabecer sodireuq sohlif
10
suem …
Nesse exato momento, Christine, David e Nicolas começaram a flutuar sobre uma nuvem de poeira, os seus olhos ficaram amarelos e, de repente, todos caíram desmaiados.
— O que aconteceu com a gente? — questionou Nicolas,
acordando minutos depois, desorientado.
— Diana, a mãe de vocês, me pediu para invocar esse feitiço macadâmico. Ele proporciona uma armadura de ferro dentro
do corpo e, além disso, uma velocidade inacreditável e força extraordinária — esclareceu Gabriel.
— Então agora temos poder suficiente para vencer Félix?
— perguntou David. Os seus olhos brilhavam, triunfantes.
— Ainda não. Jamais subestime os poderes de um veterano como ele... Ele é muito mais poderoso do que você imagina. Precisará de muito mais do que apenas uma armadura de
ferro e super velocidade para vencer um mago dessa categoria
(N. A.) Feitiço antigo que proporciona uma armadura de ferro que se mistura ao sangue
deixando-o fortificado. Ele só pode ser lido na língua macadâmica, que já está quase extinta
devido ao contato com o Mundo Mortal. A tradução do feitiço seria: Meus filhos queridos,
recebam essa armadura em nome de Merlin.
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— respondeu o bruxo. — Antes que eu me esqueça, Muralha e
o Conselho os aguardam.
Saindo do Kräshnovil, foram conduzidos por um longo
corredor de rocha cinza até uma grande porta de ferro, onde
todos entraram. Os irmãos Richard se viram em um imenso salão, com um extenso tampo de mesa de vidro flutuante, com
cerca de noventa bruxos e seres mágicos sentados ao seu redor.
Havia magos com casacos negros, e outros que usavam cores
mais vivas como o azul e o vermelho. Também estavam algumas bruxas usando pomposos vestidos de seda, e outras pareciam estar embrulhadas em trapos marrons que se uniam à pele.
Alguns anões esbanjavam as suas armaduras brancas; e os duendes, os seus machados de ferro.
Em uma cadeira mais ampla, no extremo da sala, sentavase um homem magro com longos cabelos pretos que chegavam
até a cintura. Possuía um aspecto oriental, entretanto os seus
olhos eram de um azul claro cintilante. Trajava longas vestes de
seda marrom, com aspecto envelhecido. Era Muralha. Sua voz
ecoou pelo salão ao se levantar.
— Senhoras e senhores, apresento-vos os irmãos Richard:
David, Nicolas e Christine, primeiros do seu nome e filhos de
Diana, a Soberana. — Com um gesto, chamou-os para perto de
si.
Enquanto caminhavam em direção a Muralha, alguns seres
presentes cochichavam indignados: “O que eles fazem aqui...?”,
“que absurdo!”, “que lástima... onde vamos parar? ”
Quando chegaram ao lado de Muralha, puderam perceber
que o bruxo tinha uma cicatriz no pescoço, provavelmente causada por queimadura.
— Suponho todos aqui presentes saibam qual é o motivo
desta reunião. Félix sequestrou Hórus, e nós precisamos resgatá-la. Muitos questionam o motivo pelo qual os irmãos Ri-
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chard foram convocados. O que eu temi durante séculos, senhores, está se concretizando. A profecia será cumprida, e precisamos de todo o apoio possível. Eles podem ser jovens ainda,
mas com certeza têm muita capacidade de nos ajudar nessa tarefa. Uma nova Era será fundada, temo não conseguirmos evitála. Antes de os irmãos Richard serem membros oficiais da
C.I.A., preparamos, o Conselho e eu, uma tarefa que deverá ser
executada. Os irmãos Richard aqui presentes — disse ele, indicando com a mão os irmãos que estavam ao seu lado — deverão
passar pelos obstáculos do Bosque de Pedra e recuperarem a
Ampulheta Dourada — continuou, agora olhando para uma
ampulheta de ouro adornada por colossais ametistas que pareciam hipnotizar com um tom de violeta profundo. — Daqui a
três meses, a tarefa deverá ser realizada para testar a capacidade
dos participantes. Serão feitos diversos treinamentos até que
aprendam alguns feitiços. Gostaria que todos vocês comparecessem para a avaliação. Depois de executada a tarefa, reuniremos um grupo de seres para resgatarmos Hórus. — E virandose para os irmãos Richard: — Vocês podem se retirar. Gabriel,
mostre-lhes os seus aposentos!
Com um gesto, Muralha trouxe para si uma taça de vinho,
que levantou e efetuou um brinde. Ao som de aplausos, os irmãos, juntamente com Gabriel, se retiraram do salão. A reunião
ainda continuou quando os quatro se dirigiram para uma escada
circular que levava a outro salão cheio de portas...
— O seu aposento, mestre Christine — anunciou ele, com
uma reverência, mostrando-lhe uma porta coberta de veludo.
Virou para os rapazes: — Mestres, vocês se estabelecerão aqui
— nesse momento, ele mostrava para os irmãos a porta à frente
da de Christine.
Mortos de cansaço, todos caíram duros em suas camas e
adormeceram. Ao se ouvir a quinta badalada da torre do relógio,
todos acordaram, subitamente. Lá fora, o céu estava coberto
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por um manto espesso de nuvens cinzentas, e o dia nem sequer
tinha chegado a romper. Uma luz crepuscular e inquietante pairava sobre todas as coisas, o ar estava totalmente imóvel, pesado
e opressivo.
David e Nicolas se dirigiram ao quarto de Christine assim
que despertaram. Era uma sensação de insegurança que dominava a todos. O castelo parecia ameaçador e tenebroso, e a apreensão era evidente no semblante dos irmãos; passos silenciosos
eram ouvidos à distância, alguém se aproximava. A maçaneta da
porta se mexia.
Os nervos estavam alterados, e todos ficaram à espera de
quem se anunciava. Parecia não haver outra escolha a não ser
lutar. Alguém se aproximava rapidamente, a respiração dos irmãos acelerava como se fosse acontecer um infarto. Eles ouviram um pigarreio, mas não viram ninguém. Seus olhos paralisados contemplavam a imagem de um rosto pálido que foi refletido pela luz de um lampião velho que estava no fundo do
quarto e viram algo em comum. Era Gabriel.
Os irmãos já se sentiam perturbados quando o bruxo apareceu, pensavam que fosse alguém que poderia lhes causar mal.
— Vamos começar o treinamento.
Em cada quarto havia um enorme guarda-roupa, o que
proporcionou aos irmãos grande alegria, pois finalmente iriam
mandar as roupas que estavam usando para o espaço. O engraçado é que as roupas se repetiam como se fossem um uniforme.
Para Christine, tinha vestidos e mais vestidos preto e vermelho,
e sobre o peito esquerdo um pequeno círculo cortado em três
partes com as iniciais da Central. Para os rapazes, ficaram sobretudos pretos, calças e camisas pretas e brancas. O círculo,
como um emblema, também se encontrava em seus peitos.
Depois de se arrumarem, os irmãos seguiram pela longa
escadaria; na noite anterior não haviam notado que era tão
grande. Passaram por diversos salões, uns mais elegantes que
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outros, mas todos incríveis. Chegaram, por fim, em um salão
enorme, cercado por pilastras e mais pilastras que se erguiam
até o teto abobadado e formavam arcos grandiosos sobre as
suas cabeças. O piso era de azulejo preto e branco como um
enorme tabuleiro de xadrez. Grandes armaduras cinza e douradas enfeitavam-no. Os irmãos, fascinados, olhavam tudo boquiabertos.
— O que eu quero que vocês façam é muito simples: vocês
precisam capturar o blackbird.
Gabriel se dirigiu até uma das pilastras e retirou do seu interior uma pequena gaiola de prata. Um pássaro minúsculo se
agitou, agarrando as grades da gaiola e sacudindo-as com fúria.
Era diferente dos pássaros conhecidos pelos irmãos; totalmente
preto, tinha orelhas pontudas e, no lugar do bico, um longo nariz curvo. Gabriel o retirou da gaiola, e o pássaro esperneou em
sua mão. Logo estava livre no ar, soltando guinchos estridentes.
— Podem começar.
Os irmãos tentavam agarrar o pequeno pássaro que gritava
e voava descoordenadamente. Suas piruetas no ar complicavam
ainda mais a situação, e os bruxos ficavam cada vez mais irritados. Durante um longo período, os Richard tentaram pegá-lo a
qualquer custo, mas, cansados e desanimados, optaram por desistir. Foram socos ao ar, chutes e gritos, tudo em vão.
Com um largo sorriso no rosto, o blackbird subiu ao teto
e descansou assoviando uma canção antiga. Gabriel, que observou o fracasso sentado, levantou-se e se dirigiu aos irmãos.
— Vou ensiná-los a capturar um blackbird. — Ficou parado durante alguns segundos, e a sua voz soou como um trovão cortando o silêncio: — Invokus Sombrus!
Uma enorme sombra esgueirou-se através das paredes
brancas. Gabriel, ao passo em que a sombra ganhava a sua
forma, foi encolhendo e se mesclando ao piso. Naquele momento, a sombra era Gabriel. A mancha negra esticou as suas
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longas mãos sobre a parede e, misturando-se com a escuridão
projetada pelos objetos, alcançou o pássaro em seu refúgio.
Quando finalmente o animal se esperneava preso, Gabriel surgiu do chão, e a sombra voltou para o seu lugar de origem.
— Esse é o feitiço mais adequado para capturar um blackbird, pois ele não pode escapar da escuridão. Gostaria que vocês
aprendessem esse feitiço, pois muitos são os problemas que nos
cercam. Por isso, trouxe para vocês estes livros — disse, deixando à mostra uma enorme pilha de livros. — Neles, vocês
encontrarão muitos feitiços, inclusive o Invokus.
Todos saíram da sala em silêncio, como se as trevas cobrissem os seus pensamentos. Viraram a primeira curva à esquerda
e se dirigiram para a sala de jantar. O café da manhã estava posto
quando finalmente chegaram. No centro da sala estava uma gigantesca mesa de marfim repleta de uvas, pães, massas, pudins
e guloseimas de todos os tipos. As cadeiras erguiam-se imponentes; eram altas e bem polidas e tinham detalhes que desciam
em linhas cinza tortuosas pelas extremidades.
Muitos bruxos e seres mágicos já haviam tomado os seus
lugares; somente Muralha não desceria para o desjejum, que
fora servido no costume dos duendes: primeiro as frutas secas,
depois as frescas e, enfim, na ordem em que cada qual desejasse.
O desjejum fora muito animado. Dançarinas bailavam, enquanto todos se saboreavam com as guloseimas. Muitas músicas
foram cantadas e tocadas em liras e harpas. No final, todos se
retiraram, e o silêncio reinou sobre o enorme aposento. Os irmãos seguiram pelos corredores do castelo.
Passaram por tantos aposentos que nem se lembram quais.
Subindo uma enorme escadaria de mármore, se depararam com
um gigantesco tapete negro exposto ao longo de uma parede.
Grandes labaredas douradas erguiam-se ao longo de sua composição. Perto de duas labaredas, encontravam-se dois rubis extremamente lustrosos. Logo acima de uma longa chama havia
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um círculo cortado em três partes, como os dos uniformes. Essa
era a insígnia da C.I.A.
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Continuaram a andar pelos corredores, até que se dirigiram
para os seus aposentos. Christine ficara deslumbrada com o seu
quarto; na noite anterior estava tão exausta que não havia reparado que a alcova era um aposento oval, com uma enorme cama
de madeira africana e que tinha vista para as colinas ao longe e
para a floresta logo abaixo. Uma lareira estava posta próxima a
uma das janelas, e um enorme relógio de pêndulo deslizava graciosamente da parede acima.
David e Nicolas não repararam que os seus quartos eram a
cópia exata do de Christine, a não ser pela vista; as janelas viravam para uma longa cachoeira no centro da floresta, que vista
de longe parecia apenas um fio de saliva reluzente.
Durante os meses que se seguiram, os irmãos Richard leram diversos livros de feitiços e contaram com a ajuda de integrantes experientes da C.I.A. para aprenderem alguns feitiços de
invocação e materialização de objetos. Quase nunca viam Muralha, que aparecia somente em algumas refeições e em reuniões
convocadas às pressas. A atitude do David melhorou muito nos
meses em que esteve sob o teto do Castelo Phantom; agora estava mais confiante e possuía em sua expressão ousadia e determinação. Faltavam alguns dias para a execução da tarefa, e o trio
tentava revisar o que fora aprendido. Era noite de maio, uma
névoa fina flagelava as janelas da sala onde se encontravam.
— O que será que nos aguarda? — Nicolas era o mais ansioso dentre eles.
— Com certeza deve ser algo perigoso — respondeu David, ainda com bastante receio, desejando não acreditar nas próprias palavras. — Muralha mencionou obstáculos, devem ter
criaturas por lá...
— Talvez, mas precisamos aprender mais, ainda não é o
suficiente.
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— Amanhã iremos nos encontrar novamente com Gabriel
— lembrou David. — Ele irá nos ensinar novas magias...
— Precisamos passar por todos os obstáculos. Vocês não
veem como falam da nossa mãe? Era considerada rainha, precisamos manter o reinado! — finalizou Nicolas, determinado.
Quando a discussão a esse respeito fora finalizada, Nicolas
e David foram para os seus quartos. Christine puxou uma poltrona antiga para perto de uma das janelas da sala mal iluminada
por um candeeiro. A névoa dominava o deserto adiante, e o ar
estava sombrio. A bruxa mergulhou em seus pensamentos.
Tentava descobrir como fora parar naquele lugar e processava as suas lembranças. Sua cabeça inclinou-se sobre a janela,
os seus cabelos louros caíram sobre o rosto, até que deixou se
envolver completamente pelo sono. A sala mal iluminada ficou
em sua cabeça como um reflexo, uma lembrança quase esquecida.
A moça se via em um jardim repleto de flores e relva. Estava feliz. Uma linda cachoeira cintilante se mostrava diante de
si. Suas águas não tinham movimento, apenas ficavam imobilizadas deixando refletir as poucas pedras coloridas que jaziam
em seu interior. Sua cabeça pendeu sobre a água, e Christine
caiu. A correnteza rapidamente se intensificou, tornou-se forte
demais, e Christine tentou em vão se salvar; as suas mãos ergueram-se ao ar em busca de apoio, de um auxílio que fosse, mas
acabou sendo tragada pelas águas. O suor escorreu pelo seu
rosto e, num súbito, ela acordou.
A bruxa ficara paralisada. Seu coração batia descompassado. O relógio de pêndulo marcava vinte minutos para o meiodia. Christine não havia notado que o sonho fora tão extenso.
Desceu para a sala de jantar e tomou um café reforçado antes
de ir procurar os seus irmãos. David e Nicolas já estavam prontos quando Christine os encontrou. Os três se dirigiram para
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um aposento no alto da torre leste do castelo. O caminho fora
demorado devido às altas escadas que tiveram de enfrentar.
A sala, um recinto de mais ou menos quinze metros de
comprimento, estava vazia, a não ser pelos móveis antigos e
aristocráticos que a enfeitavam: um armário assustadoramente
grande que parecia ser tirado diretamente do século XVI, uns
três vasos de porcelana, uma mesa de marfim e um sofá tão antigo como o armário. Tudo disposto aleatoriamente pelo lugar;
apesar da sofisticação aparente, era notória a falta de zelo que
os seres mágicos tinham com aquele aposento em especial.
Gabriel ainda não tinha chegado, e os irmãos se acomodaram no sofá que estava colocado próximo ao armário anoso.
Cerca de meia hora depois, ouvia-se o som de asas batendo; os
irmãos se precipitaram contra a janela e ao horizonte viram uma
grande sombra negra voando sobre o céu iluminado. De cara,
eles perceberam que se tratava de Gabriel. Suas asas eram negras
como o abismo da noite e batiam levemente ao vento.
— Vamos começar! — exclamou ele, pairando sobre a sacada de uma das janelas. — Ah... minhas asas — começou,
vendo a expressão de surpresa no rosto dos Richard. — Eu
também era um guardião alado, mas isso não vem ao caso. Bom,
para começarmos, vocês precisam saber levitar...
— Como vamos fazer isso?
— Calma, mestre David, eu ensino. Primeiro, vocês precisam pensar em algo agradável, depois repetir o feitiço: Levitus
Humanus. E pronto! Com muita prática, vocês acabarão executando feitiços sem pronunciá-los — explicou. — Agora, Christine, tente você...
Houve um silêncio monstruoso por alguns segundos. A
mente de Christine vagou por cenários antes nunca visto e a
levou para a beira de um riacho cuja água ruidosa e cristalina
batia firmemente contra algumas rochas que impediam a passagem. De alguma forma, a bruxa tinha uma ligação especial com
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esse elemento da natureza, mas talvez nunca saibamos o motivo.
— Levitus Humanus! — exclamou ela, cortando os seus
pensamentos como se um jato de água dissipasse um fogo quentinho que havia se instalado em seu âmago.
O corpo da bruxa flutuou sobre a cabeça de todos, ao
mesmo tempo em que uma chama azul circundava o seu corpo.
Seus louros cabelos estavam esvoaçantes, e os seus olhos permaneciam cerrados.
— Abra os olhos, Christine!
Uma expressão de espanto e alegria invadiu o seu rosto ao
abrir os seus belos olhos verdes. Ela fez piruetas e cambalhotas
no ar, se divertindo. Era muito mais agradável do que voar de
vassoura ou andar de carrinho de rolimã, atividade que ela praticou bastante na juventude.
— Pode descer agora, Christine.
— Como eu faço, Gabriel? — questionou ela, fitando o
bruxo olhando para baixo.
— Basta dizer: Sutivel!
— O que significa? — inquiriu Nicolas, curioso.
— Sutivel é Levitus pronunciado ao contrário, ou seja, tem
o efeito oposto — esclareceu.
— Sutivel! — gritou Christine, que foi descendo aos poucos.
Todos executaram o feitiço muito bem; David fora depois
de Christine e, logo após, fora Nicolas, que fazendo graça se
jogou pela janela. A chama que circundou o corpo do David era
de um dourado com detalhes em preto, e a que rodeou Nicolas
era de um vermelho escuro.
— A tarefa deverá ser efetuada amanhã às doze horas. Vocês deverão comparecer no horário marcado para o início.
Quero muito que consigam, trouxe estes livros para a execução
de feitiços e preparo de poções — disse Gabriel, entregando ao
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David um amontoado conjunto de livros antigos e empoeirados.
Depois de um aceno breve, o bruxo bateu as asas e desapareceu no vasto céu já escurecido pelas sombras negras da
noite. Os irmãos saíram da sala, desceram aceleradamente as escadas e voltaram para o aposento de Christine. David jogou um
livro sobre a cama, e ele se abriu ao meio.
Uma luz vermelha emergiu por entre as folhas, e um vento
ruidoso mudou todas as páginas de posição, ao mesmo tempo
em que as letras começaram a sair e flutuar pelo salão. Um rapaz
gordo, de rosto azulado e de cabelos encaracolados na altura
dos ombros, apareceu sentado de pernas cruzadas sobre uma
cama feita de colchões amontoados lendo o livro do qual saíra.
Estava agasalhado em um monte de cobertores amarelados, todos rasgados.
— Os livros são impressionantes, não é mesmo? — Sua
voz era grave. — Parece que são apenas letras impressas em
folhas de papel, mas sempre acontece alguma coisa dentro deles. Há vida. Há histórias e combates. — Deu uma breve pausa,
fechando o livro, e olhou para os irmãos, que o observavam
com espanto. — Eu sou Thûrion. Não tenho nenhum título ou
pais nobres, então não se incomodem em manter a formalidade
comigo, mestres Richard. Poderia eu contar dezenas de aventuras de livros que li ou que já vivi; no entanto, essa não é a ocasião. Os livros que vocês têm nas mãos são apenas um elo entre
nossos seres. Vocês irão lê-los, e assim que se aperfeiçoarem em
feitiços meus mantos irão se desfazer em pedaços.
— Ótimo — excitada, Christine pegou um exemplar. —
Vamos começar!
O rapaz fechou os olhos azuis e abaixou a cabeça entre os
seus joelhos.
Nicolas também pegou um dos livros e começou a lê-lo.
Vinte minutos mais tarde, o bruxo olhou para o garoto, que
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continuava com a cabeça baixa, mas não viu nenhuma mudança
em seus agasalhos, mesmo que o jovem já tivesse lido mais de
quinze feitiços inteiros. Os irmãos estudaram os opúsculos até
o cair da noite, quando resolveram descansar. Eles deixaram o
sono derrubá-los por completo, caindo por cima dos seus livros.
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A Tarefa
O dia amanheceu claro, com poucas nuvens a cobrir o Sol. Os
primeiros raios eram amenos. Os animais começavam a se agitar, e o Bosque de Pedra permanecia escuro e sombrio.
Eram onze horas quando num ímpeto os irmãos Richard
acordaram jogando o corpo para frente com uma expressão de
espanto no rosto. Thûrion não estava mais no local, mas os bruxos viram que havia pedaços de pano espalhados por todo o
ambiente. Às onze e meia da manhã, o trio se encontrou em
frente ao bosque, nos fundos do castelo. Um vento tempestuoso assobiava nos cimos das antiguíssimas e gigantescas árvores; os troncos, grossos como torre, estalavam e gemiam.
A aparência sombria reinava sobre a região matosa. Os animais se agitavam em seu interior com guinchos e sons alarmantes, ao passo em que se escondiam em suas tocas e ninhos.
— Fascinante, não é mesmo? — Perguntou uma voz aparecendo ao lado dos irmãos. O rosto magro de Muralha continuava a olhar para o bosque quando os irmãos o contemplaram.
— O bosque, não é mesmo fascinante? — Inquiriu, apontando
para o bosque à frente.
— Ah, sim! Realmente fascinante — respondeu Christine.
— Como o senhor...
— Não... não importa. Vocês estão preparados? O Conselho chegará dentro de seis, cinco, quatro, três, dois... — As árvores balançaram violentamente os seus galhos, e dezenas de
bruxos trajando longas capas pretas apareceram ao redor dos
irmãos. — Ah, sim! O Conselho! Um segundo adiantado, como
sempre... Caro Malin — disse ele, se dirigindo a um senhor de
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rosto robusto e nariz arredondado. Possuía uma expressão de
ansiedade e de muita alegria.
— Vejo que está tudo nos conformes, Muralha. Não consigo esconder a minha ansiedade em relação a este evento. Espero que os filhos de Diana estejam preparados.
— Não tenha dúvida quanto a isso, mestre Malin. Eles tiveram um excelente treinamento e demonstraram muita perspicácia ao executá-lo — informou Muralha, com um largo sorriso
no rosto. Parecia até que havia dado o xeque-mate. — Bom,
senhoras e senhores, sem mais demora, iremos começar a tarefa.
— Com um tom mais sério na voz, Muralha dirigiu a palavra
aos Richard: — Caso vocês estejam correndo um sério perigo,
chamem o nome de qualquer um aqui presente, e iremos ajudálos.
— Mas como...
— Não pergunte, apenas faça como eu disse, mestre Nicolas. — Muralha segurava afavelmente os ombros do rapaz. —
Assim que vocês entrarem no Bosque de Pedra, só poderão sair
quando a tarefa for concluída. Podem ir.
Ao entrarem no bosque, Gabriel se reuniu ao Conselho.
Estivera executando outras tarefas e não conseguira chegar antes. Deu um aceno e, retribuindo, os irmãos viraram as costas e
adentraram na floresta.
Estavam tão afastados de todos que quando David olhou
para trás não conseguiu distinguir as figuras de preto ao longe.
As raízes retorcidas escorriam pela estrada de barro.
O trio andava por uma estradinha cercada de árvores sombrias e tenebrosas. O Sol, apesar de estar quente o bastante, não
produzia luz alguma sobre a região. A folhagem densa das árvores impedia que a luminosidade adentrasse em seus territórios. Mais à frente, encontraram uma clareira, onde o Sol produzia os seus raios com facilidade. Os caminhos que se seguiam
a partir dali eram cada vez mais nebulosos e escuros.
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Tomaram uma pequena trilha no lado direito da floresta.
O caminho sinuoso era dominado pela névoa. O silêncio imperava; de vez em quando, era abalado por pequenos ruídos e o
farfalhar das árvores. Em certo ponto, a oeste, a trilha acabou e
não havia mais estradas na floresta, apenas caminhos estreitos,
enlameados e cobertos por folhas secas.
Ouviu-se o barulho de asas batendo, e um vulto passou na
frente de todos. Uma risada escandalosa ecoava por toda a floresta, ao passo em que os irmãos corriam os olhos ao redor do
ambiente.
— O que será isso? — perguntou Nicolas.
— Alguém está querendo brincar com a gente — sorriu
David.
Uma mulher de cabelos fumegantes e alta apareceu por trás
do David. Muito bela. O seu rosto parecia ter sido esculpido
por anjos; a sua voz era melódica:
— Olá, pessoal — sorria graciosamente. — Meu nome é
La-här, sou filha de Düh, primeira de meu nome e senhora das
pequenas bestas.
— O que é você? — perguntou Nicolas, desconfiado.
— Eu? Sou uma Quimera, e serei o seu primeiro desafio
— disse ela, segurando a pele que cobria o seu pescoço. A mulher pressionou a sua tez com força e foi arrancando os pedaços,
jogando a carne pelo chão. No momento em que removia a
pele, diversos pelos dourados cobriram a área, e a moça se transformou aos poucos em um leão alado de duas cabeças. Seu
corpo era revestido por escamas negras de Dragão, e as suas
asas eram de um azul penetrante.
De repente, o céu ficou escuro, raios avermelhados caíram
no horizonte, e a Quimera desapareceu soltando um rugido estrondoso pelo ar.
— Ela desistiu?! — espantou-se Nicolas.
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Um grito desesperado tomou toda a floresta, e David sacou um punhal que levava no bolso interno do seu sobretudo.
Um rosto pálido e gelado refletiu-se na lâmina do objeto, e David percebeu que era a Quimera se aproximando. Como um
vulto, o monstro os atacou, derrubando-os no chão em seguida.
Ao caírem, ferimentos foram causados devido às pedras que
formavam uma espécie de manto no solo do bosque. No segundo ataque, David percebeu a ação da estranha criatura e,
quando ela se aproximou, agilmente virou o seu corpo e conseguiu feri-la com o punhal.
Por um instante pareceu que tudo havia acabado, entretanto, quando menos se esperava, o ser mitológico levantou
rindo e zombando da tentativa frustrada que David havia feito.
— Acharam mesmo que um punhal de prata seria páreo
para mim? — O seu riso demorado era insano e intimidador.
— Pelo visto, vocês têm muito o que aprender. Não insista, a
sua derrota já estava marcada no destino. Que decepção, os filhos de Diana, a bruxa mais poderosa dos Três Mundos, fracassam no primeiro desafio que encontram pela frente.
— Não seja tola, filha de Düh. Não cante vitória antes da
vitória — pronunciou Christine, de cima de uma árvore, acima
da cabeça da Quimera. — Nosso destino é a gente quem faz,
ainda não foi escrito — finalizou, pulando em cima do monstro.
— Mas como? COMO, MALDITA?! — bradou a Quimera, presa embaixo da bruxa, ao passo em que debatia ferozmente. — Você estava na minha frente.
— Invoco aquilo que outrora desconhecia. Faça brilhar a Quimera
como brilha o dia. Chamarius! — exclamou Christine. Uma flama
verde infiltrou-se por entre os pelos dourados de La-här e a consumiu, enquanto a besta rosnava insanamente. O corpo da Quimera estava se desfazendo em pó quando ela deu a sua última
risada.
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— Uma já foi — notou David, assim que o fogo se apagou
por completo.
— Mas temos que ficar preparados — Christine olhava
para todos os lados, temendo que houvesse outro monstro por
perto. — O desafio apenas começou. Vamos seguir bosque
adentro.
Um corvo que observava a cena e presenciou toda a batalha, saiu voando. Quando chegou a um determinado ponto do
bosque, perto de uma cachoeira que jorrava sangue, pousou nos
dedos de um homem magro que usava um capuz e se refugiou
em seu ombro direito. Seus olhos eram de um vermelho radiante; e as suas orelhas, pontudas. Ele sorriu para a ave e lambeu
a mão esquerda após observar uma pequena ferida.
— O jogo começou. A peça chave já está em movimento.
Agora temos que ir para a segunda etapa. O Mestre ficará muito
feliz com a nossa ação, Allekin — informou o estranho ser ao
corvo.
*
Nesse exato momento, Christine sentiu fortes dores no peito e
começou a cair, levando os braços de encontro à barriga como
se fosse proteger-se do frio. Seus olhos verdes assumiram a colocação opaca da noite, o preto se evidenciou sobre as suas pupilas, e uma voz grossa falou por sua boca.
— Não se preocupem, o jogo apenas começou. Vocês fazem parte do maior plano já existente desde o primórdio dos
Mundos. Haja o que houver, não morram. O Mestre ficaria desapontado, e vocês teriam de servi-lo a vida inteira.
— Como vamos servi-lo se estivermos mortos? — questionou Nicolas, incrédulo.
— Tolo mortal, você não está mais no mundo dos homens.
Aqui tudo é possível para o Mestre — falou a voz pela última
vez, enquanto Christine era libertada da possessão mental.
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— Agora é oficial! Temos que sobreviver!
— É muito maior que isso, David — Christine pronunciou lentamente. — Temos que aprender a bloquear os nossos
pensamentos também. Não quero mais nenhum lunático fuçando na minha cabeça.
Ao terminar a frase, um uivo forte ecoou por todo o bosque. O apavorante ganido foi ouvido por todo o ambiente,
atra-vessou a muralha do castelo e chegou até a região de Otar.
Os animais terrestres saíram correndo, e os pássaros voaram
des-freados como se as suas vidas dependessem da fuga.
— Deve ser algum lobisomem. — David pareceu convicto
ao fazer tal observação.
— Não podemos fracassar. Os desafios deste bosque vêm
conforme o grau de dificuldade, e parece que o lobisomem é
mais forte do que a Quimera.
As folhas caídas das árvores ecoavam um som seco como
se estivessem sendo pisadas. Era sinal de que alguém ou algo
estava vindo. Um vulto passou rapidamente na frente de todos.
Os três viram apenas a sombra e não conseguiram enxergar nenhum rosto. Eles tinham a sensação de que não era apenas
uma pessoa. Em uma piscada de olhos, Christine sentiu uma
mor-dida no pescoço. O atrito dos dentes em seu pescoço fez
com que ela soltasse um grito agourento de tormento e dor.
Os vul-tos pararam instantaneamente, e os irmão puderam
observar duas criaturas. Um vampiro11 que se escondia atrás de
um capuz para não ser identificado e um lobisomem que se
mantinha meio curvado sobre as patas.
Christine recebeu a mordida do vampiro, que, em instantes, começou a arder. De repente, os seus olhos ficaram vermelhos, intensos e penetrantes, os seus dentes caninos ficaram levemente alterados, e a raiva irradiou dos seus olhos. Um
sorriso
11(N.
A) Ao contrário dos mitos, os vampiros não temem a luz solar. No Mundo Mágico, o Sol
não produz luz que possa fazer-lhes mal; a magia os reveste como uma crosta protetora.
76
torto surgiu no canto da sua boca, e ela riu. O riso que surgiu
por sua garganta era demoníaco e sombrio, como se vindo do
mais profundo abismo.
— Do que você está rindo, bruxa psicótica? Acaba de ser
mordida e logo passará para o nosso lado — revoltou-se o lobisomem. Sua voz era impactante.
— É disso que estou rindo. Agora sou como vocês e, até a
mordida fazer efeito, eu estou forte o suficiente para vencê-los.
Afinal, sou uma vampira agora. — O riso insistia em querer dominá-la. Sua voz era sombria, cruel e ameaçadora.
Christine avançou sobre eles com uma velocidade inacreditável; nem mesmo a armadura de Diana lhe proporcionara
isto. A bruxa subiu em uma árvore, agarrando-se às saliências
do tronco; atingiu os ramos mais baixos. Subiu para os seguintes
e continuou subindo até não ver mais o solo. Continuou a subir;
o tronco ficava cada vez mais fino; e as ramificações, mais numerosas, de modo que ficou mais fácil prosseguir. Quando finalmente chegou ao alto da copa, olhou para os lados e viu que
as copas das árvores mais próximas eram verdes, mas a folhagem das árvores mais afastadas era de um tom alaranjado. O
vampiro surgiu por entre as folhas e atacou a bruxa dando-lhe
diversas unhadas em questão de segundos. Ela pôs a mão na
frente do rosto e quase caiu do ramo onde estava empoleirada.
Em seguida, se precipitou contra o vampiro, jogando o seu
corpo ao ar e aparecendo pelas costas da criatura. Nesse momento, desferiu um chute poderoso, que fez com que a criatura
fosse lançada a alguns metros de distância. Algumas copas de
árvores se desfizeram com a pressão do impacto. O vampiro
segurou-se firme em um galho, arrancou-o da árvore e o arremessou contra Christine.
Na medida em que a bruxa desviava do ataque, virando o
seu rosto para o lado esquerdo, o vampiro veio pela frente, segurou-a pelo pescoço e atirou-a contra o solo.
77
— É só isso o que tem, príncipe das trevas?! — bradou ela,
levantando-se e sacudindo a poeira do seu vestido. Christine pulou novamente na árvore, segurando-se nos poros e valas, e se
voltou contra o vampiro, que ria descaradamente.
O Bosque de Pedra estava vivenciando uma fantasia; era
palco de uma batalha incrível, e ninguém vencia, até que David
percebeu um movimento atrás dele e virou-se pulando sobre a
criatura.
— Ogof Luza! — clamou ele.
David aprendeu esse feitiço com o mestre Drûin, nos primeiros meses do seu treinamento, e, em segundos, o lobisomem
rolou pelo chão, se jogando violentamente contra as árvores e
o solo, queimando em um fogo azul. As chamas se alastraram
pelo corpo da vil criatura e vaporizou rapidamente cada pelo da
camada grossa que revestia a sua carcaça.
Ainda havia sobrado o vampiro que travava a luta com
Christine. Quando a terrível besta percebeu que o lobisomem
havia morrido, fugiu. Christine resolveu segui-lo, mas caiu da
árvore em que estava. A mordida já estava fazendo efeito; a
bruxa se contorcia no chão enlameado. A jovem sentiu uma dor
alucinante, ao mesmo tempo em que gritava desesperadamente.
Se alguém não fizesse nada, eles perderiam a bruxa, que passaria
para o lado das trevas.
— Prision!! — gritou Nicolas.
A pressão do ar ficou tensa e pesada, as folhas secas se
levantaram do chão bruscamente, e Christine foi suspensa no ar
por uma mão invisível, que a revestiu em uma camada de vento
como uma espécie de bolha flutuante inquebrável.
O cheiro de sangue já dominava o olfato dela. Um aroma
tão agradável e peculiar que Christine não podia resistir. Se batia
na bolha, mas a bolha não se rompia. As suas mãos desferiam
golpes contra a parede invisível diante de si, tentando escapar
daquela maldita prisão, mas nada conseguiu fazer. Sua audição
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ficou centenas de vezes mais apurada, e ela podia ouvir a água
jorrando na cachoeira do outro lado da floresta. Com uma capacidade incrível, via até as formigas a mais de duzentos metros
de distância.
— Gabriel, apareça! — bradou Nicolas, tentando manter a
bolha inquebrável, que começava a formar pequenas rachaduras. — Precisamos da sua ajuda.
Gabriel apareceu vindo do céu, voando acima das copas
das árvores, as suas asas pareciam ser mais esplêndidas do que
outrora. Se não fosse a coloração negra das penas, os humanos
diriam que ele era um anjo do Senhor, uma criatura divina que
viera salvar-lhes da perdição.
— Do que vocês precisam?
— Christine foi mordida por um vampiro, e agora está ficando obcecada por sangue.
— Vampiros não estavam no teste. Terá sido a Irmandade?
— murmurou, meio pensativo e apavorado. — Tirem-na da bolha e segurem-na bem.
Os irmãos soltaram Christine e a seguraram pelos braços.
A bruxa se debateu ferozmente, no entanto ainda não tinha forças o suficiente – a transformação, além de ser um processo dolorido, é um processo lento quando tenta levar alguém para a
escuridão. Gabriel tirou do bolso interno do seu sobretudo uma
pequena bolsa marrom e pegou do seu interior um frasco dourado. Desse frasco, o bruxo sugou um líquido azul e o levou até
a boca de Christine. Após ingerir a bebida, a bruxa caiu em um
sono profundo. Gabriel analisou a marca da mordida, para ver
se foi a Irmandade, e teve uma péssima constatação.
— Pelos Céus, ele está de volta?! Não foi a Irmandade
quem a mordeu. — Andava em círculos. Era evidente a sua preocupação.
— Como você sabe que não foi a Irmandade? O que é a
Irmandade? Quem está de volta? — indagou David, desesperado.
79
— A Irmandade é um clã de vampiros que durante séculos
torturou os humanos e hoje só mata pessoas que merecem morrer, se é que há pessoas que mereçam morrer. Pensei que ela
tivesse voltado à antiga prática, mas percebo que não. A mordida dos vampiros da Irmandade deixa apenas dois furos, e essa
não. Essa tem cinco furos. Isso significa que o pior vampiro de
todos os tempos voltou: Vlad Tepes. Ele era o líder da Irmandade nos séculos de tortura aos humanos, e, depois da sua
morte, Emily assumiu a liderança. Agora, suponho que ele
queira reivindicar o seu antigo posto.
— Vlad Tepes, o príncipe de não sei onde? É isso?
— Isso mesmo, mestre Nicolas. Em seu reinado no
mundo dos humanos, ele durou apenas dez anos. Mas, no
Mundo Mágico, a tortura se estendeu por séculos e séculos. Se
prepare, pois está prestes a acontecer o pior, somente o pior.
Não espere um final feliz, pois creio que não se realizará —
alertou Gabriel. — Precisamos de toda a ajuda necessária, vamos trazer Christine para o nosso lado novamente.
Gabriel começou a flutuar, e um manto negro se misturou
à escuridão do bosque. Christine também flutuou. Do peito de
Gabriel saiu uma sombra transparente, que invade a boca e as
narinas de Christine. O bruxo gritava de dor, ao mesmo tempo
em que os seus olhos brilhavam. Uma chama opaca surgiu através das suas pupilas e se expandiu em uma explosão por meio
do seu olhar.
*
Um estrondo foi ouvido à distância quando Christine e Gabriel
caíram, e os magos que estavam na frente do bosque já sabiam
o que está por vir. Muralha convocou às pressas uma reunião, e
todos saíram voando, literalmente, para o castelo.
— Acredito que já saibam o motivo de estarmos aqui, senhores — falou ele para todos. — Depois de séculos, Vlad Te-
80
pes está de volta. E vocês sabem o que ele quer... Sangue! Todavia, não é só isso, ele estava realmente morto. Aparentemente,
uma alma superior está usando-o como marionete. O que essa
pessoa quer? Vingança. Talvez não tenhamos dúvidas de quem
está por trás dessa ressurreição: Félix. Ele pretende se vingar de
todos pelo fracasso que teve quando o derrotamos pela última
vez. Contudo, desta vez, acho que ele tem algo maior em mente.
Vlad Tepes não é apenas um vampiro qualquer. Dele se originou todas as lendas sobre vampiros existentes, e ele não costuma fracassar quando lhe é entregue uma missão. Ainda mais
uma missão deste porte. A mordida de Christine foi apenas o
começo do plano. Seja lá qual ele for, precisamos impedi-lo.
— A fortaleza do castelo estará mais protegida do que
nunca — garantiu Ahrän, o general das tropas armadas. — Todos os cavaleiros alados estão armados e bem preparados para
tudo o que há de vir.
— Preparem-se, a Guerra está vindo — alertou Muralha a
todos ali presente. — E algo me diz que nossa aventura vai começar no Mundo Mortal, já que dos Três Mundos ele é o mais
inerme.
*
No mesmo instante, no Bosque de Pedra, Gabriel e Christine
voltaram à realidade. Os olhos de Christine continuavam vermelho; e os seus dentes, mais pontudos. Era, ainda, um vampira.
— Gabriel, você não a trouxe de volta? — indagou Nicolas, após observar as novas características da sua irmã.
— Trouxe. O vampirismo nunca vai sair do seu corpo, mas
ela já voltou para o lado da C.I.A. Agora a sua sede por sangue
foi saciada — explicou. — Precisamos avisar a todos que Vlad
está de volta. Uma guerra está prestes a acontecer. Isso é mais
importante do que a tarefa de vocês. Vamos, precisamos sair
daqui!
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Saíram em disparada pelos caminhos tortuosos do Bosque
a fim de chegarem ao castelo. Quando chegaram, foram direto
para a sala de reuniões. Gabriel abriu uma porta de madeira
pura, e todos a atravessam.
— Senhor Muralha, o Mundo Mágico está uma loucura.
Vlad Tepes voltou do Mundo dos Mortos, e uma guerra está
prestes a acontecer — explicou ele enquanto caminhava em direção ao bruxo que sentava-se em uma cadeira de prata no alto
de uma plataforma supina.
— Já estamos sabendo de tudo Gabriel, inclusive que você
precisou usar o Feitiço Proibido12 para ajudar a mestre Christine.
— Mas, senhor, ela é uma forte aliada e...
— Eu sei. Mesmo assim, você deveria ter avisado ao Conselho antes. Uma atitude dessas merece ser punida.
— Senhor, desculpe interrompê-lo — interveio Christine.
— Porém, acredito não estar entendendo. Se Gabriel não fizesse alguma coisa, eu poderia estar longe. Quem sabe até do
lado daquele desgraçado do Vlad Tepes. Se o senhor continuar
com isso de puni-lo por absolutamente nada, vou ser obrigada
a deixar a C.I.A. e voltar à minha vida comum de sempre.
— Seu sacrifício seria em vão, mestre Christine. Não tem
como um aprendiz sair do Mundo Mágico sem permissão superior. Você não tem poder suficiente para isso — desdenhou Muralha.
— Aí é que você se engana — falou Christine, segurando
uma gargalhada. — Agora, com os meus novos poderes, posso
muito mais do que o senhor imagina. Nós, vampiros, aprendemos as coisas muito rapidamente, e eu já aprendi a sair deste
(N. A.) O Feitiço Proibido drena as forças mágicas de qualquer ser que esteja usando-o.
Geralmente é usado para saciar a sede por sangue, mas pode ter complicações depois de algum tempo. Foi proibido em 1765, quando uma garota foi absorvida pelo próprio feitiço, que
neutralizou seus poderes e se fundiu ao seu corpo transformando-a em uma estátua.
12
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Mundo. — Nesse momento, puxou os seus irmãos pelos braços, colocou a mão no pescoço e o arranhou fazendo um
enorme corte torto. A bruxa passou o dedo esquerdo na ferida
que provocara e formou uma seta apontando para cima no ar.
Em seguida, falou algumas palavras quase inaudíveis, como um
código secreto.
O som de centenas de cascos de cavalos encheu o ambiente, ao mesmo tempo em que uma forte luminescência se incutia pelo teto. A estrutura do castelo balançava levemente
como folhas ao vento. E uma fenda invadiu a estrutura do castelo pelas paredes. Parecia que alguém estava puxando um gigantesco balão para dentro. A fenda era escura; no entanto, uma
luz fraca provinha do seu interior. O som de cascos se intensificou no momento em que surgiu um cocheiro trazendo uma
carruagem roxa e redonda por entre o buraco que apareceu.
O homem era alto, trajava um manto escuro que escorreu
pela sala quando se levantou da carruagem. Christine deu a mão
direita para o homem, e ele a ajudou a subir por uma escada
pequena que deslizava graciosamente pela diligência. David e
Nicolas fizeram o mesmo, e, após estarem acomodado na carruagem, o cocheiro chicoteou os cavalos transparentes e desapareceu, fechando a fenda atrás de si.
*
Em casa, Christine refletia sobre tudo o que lhe ocorrera nos
últimos meses, lembrava-se da visita estranha do mais estranho
ainda Gabriel, e a sua memória trazia à tona as suas lembranças
das muitas aulas práticas e teorias que tivera para a execução de
feitiços. A ideia de voltar a ser normal tomava conta da sua cabeça, e a bruxa já não aceitava mais isso. As aventuras, embora
conturbadas, já faziam parte do seu interior. Ela sabia que ali as
coisas seriam bem diferentes. Poucos meses foram o suficiente
para que Christine se adaptasse a um mundo totalmente incomum do mundo em que viveu vinte e oito anos. Apesar de ter
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que se acostumar com a ideia de se adaptar novamente ao
mundo dos mortais, Christine sempre encarou os fatos de
frente, não ia desistir até que as coisas fossem feitas do jeito que
ela queria. Afinal, ela era a Princesa da Magia.
Um pouco de sofrimento para aqueles que não estavam de
acordo com ela, seria o ideal para que “encontrassem uma solução plausível”, como dizia para si mesma, e foi por isso que resolveu deixar o Mundo Mágico. Assim, quando estivessem em
apuros, voltariam a chamá-la.
Enquanto Christine se perdia em pensamentos, Muralha
ordenava a alguns cavaleiros que conduzissem Gabriel para o
calabouço que ficava no subsolo do castelo. Subitamente, um
bater de asas indicou a presença de um dos cavaleiros alados
irrompendo pelo salão. Todas as cabeças se viraram para ele
quando pousou ao lado de Muralha.
— A Irmandade invadiu o castelo — avisou, abafando a
voz com uma das mãos. — Não conseguimos detê-la. Nossos
soldados foram nocauteados!
O alvoroço foi total. O barulho de cadeiras se movendo,
ao som de gritos e gemidos apavorados, deixava um rastro de
destruição; os papéis voavam freneticamente e alguns bruxos
tentavam cobrir o pescoço.
— SILÊNCIO! — bradou Muralha. As pessoas pararam
de correr bruscamente; alguns bruxos e bruxas até colidiram. —
Não há nada perigoso. Mantenham a calma!
— Adorável! Muito adorável! — Puderam escutar uma voz
feminina, delicada e harmoniosa adentrando o salão. O som de
saltos batendo contra as pedras que compunham o chão se fizeram constantes, enquanto palmas batidas levemente tomavam
o recinto.
Todos as pessoas viraram a cabeça para contemplá-la; a
mulher era de uma beleza impecável. Seu lindo rosto era bem
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maquiado com batom vermelho escuro. Seus olhos eram vermelhos, profundos e determinados, e as roupas, exageradamente bem arrumadas em tons de vermelho e cinza, eram cobertas por um manto negro. Nos lados esquerdo e direto da
moça, vinham dois homens extremamente iguais. Eles trajavam
calças e camisas escuras, e o mesmo manto negro os cobria. Os
vampiros tinham os cabelos prateados na altura dos ombros.
Todos eram de uma palidez assustadora. As pessoas observaram os seus dentes pontiagudos, de uma brancura sem igual,
porque eles sorriam triunfantes.
— Depois de todo esse tempo, é essa minha recepção,
Muralha? — perguntou a mulher, ao passo em que avançava
para o centro do salão.
— Queira desculpar-me pela má recepção. Não acontecerá
no...
— Certamente — interrompeu. — Você sabe por que estamos aqui, não sabe? Ele voltou. Você prometeu que a profecia
não seria cumprida, não foi, Muralha? — vociferou a mulher,
levantando o cabelo branco como os seus dentes e deixando à
mostra uma queimadura em forma de “M” na testa.
— Todo dia acordo com a certeza de que tenho uma promessa a cumprir, Emily — começou Muralha. — Vlad foi ressuscitado. Está do lado de Félix agora.
— O Oráculo — soluçou Emily. — O Oráculo previu que
a Grande Guerra viria e que os vampiros seriam os primeiros a
trair a comunidade. Com o retorno de Vlad, pensei seriamente
se você estaria tentando cumprir a promessa. Se você fracassar,
Muralha, a sua princesinha — a mulher ocultava um sorriso macabro — também trairá. Ela não pode resistir à maldição. Ninguém pode. Ele a mordeu, não foi? Ela é tão vampira como bruxa
agora. A comunidade diz que cada dia que passa Félix se fortalece, enquanto a Central... Bom, a Central não está fazendo nada
para impedi-lo! — A raiva irradiou dos seus olhos vermelhos, e
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a sua mão direita bateu com força na mesa que flutuava pelo
salão fazendo com que se rachasse ao meio. — Quem está do
lado dele? Medusa, Hamurábi, quem garante que as Curbras não
ficarão do lado deles também? Li no “Cubo” que Medusa conseguiu fugir do Kräshnovil. Como isso foi acontecer? Para que
servem aquelas malditas Curbras?!
— Emily — interrompeu Muralha —, quando digo que
vou fazer algo, eu faço. E a respeito da Medusa, ela fugiu, sim.
Todavia, acho que não ficaria do lado deles depois do que
houve, não é mesmo? Sobre Hamurábi, nada sabemos. Mas se
Félix foi capaz de ressuscitar Vlad, provavelmente terá poder
para despertar a múmia da sua tumba também. Apesar disso,
não é conveniente uma criatura tão poderosa como você, Emily,
ler o Cubo Mágico depois das mentiras que ele publicou, não
acha? Já estamos reunindo uma equipe de buscas para...
— Precisa ser mais rápido, Muralha! — exclamou ela, passando a mão esquerda pelo pescoço. — O Terceiro Olho, é assim que chamam a maldição, não é? A existência dos Três Mundos depende do fracasso de Félix...
— Se for mesmo Félix o mentor dessa operação.
— O que o senhor tem em mente? — indagou um bruxo
magro que assistia a reunião.
— Estou muito velho, Berior, e apenas dez dias me restam
de vida — respondeu Muralha. — O poder de Félix é realmente
impressionante, mas creio que exista uma mente superior
usando-o como fantoche para nos enganar. Mesmo se Félix descobrisse o Segredo dos Dez Guardiões, não creio que teria tanto
poder. Conheci, ao longo dos meus anos, apenas um ser que
possuía poder ilimitado: Nesmério, o criador de todas as criaturas
mágicas. O Mestre, como era chamado, deu vida aos seres má-
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gicos através dos seus escritos intitulados de Pergaminhos da Maldição13. Assim como os seres humanos são consequência de
Adão e Eva, somos consequência das criaturas do Mestre. Havia
apenas dois Mundos: O Mundo Mortal e o Mundo da Morte.
Nesmério era um mortal...
— Se ele era mortal, como possuía poderes ilimitados? —
questionou uma bruxa de casaco marrom, que estava no final
do salão.
— Ele era um mortal — tornou a repetir. — O Mestre
conseguiu os seus poderes através da crença. Ele fazia com que
as pessoas acreditassem que ele tinha os poderes que dizia ter e,
quando as pessoas passaram a venerá-lo, os poderes foram surgindo realmente, até que as pessoas o fizeram imortal. Mas o
que o torna imortal é que ele não tem ponto fraco. Ele realmente
nunca morre. Sempre que parece que ele se foi, ele ressurge
como a mais perfeita fênix. Poucos, além de mim, conheceramno, não porque ele morreu, mas sim porque ele desapareceu. As
gerações deixaram de se interessar por sua origem; e Nesmério
nunca mais foi visto. Sumiu por volta de 789, e talvez tenha
regressado nesta Era.
Houve um repentino silêncio. Durante longos minutos
ninguém se manifestou. Muralha levantou-se:
— Estamos em uma reunião, Emily, talvez você e os seus
súditos queiram se juntar a nós...
— Meus amigos, Muralha. Meus amigos — corrigiu Emily.
— Não, infelizmente não podemos ficar. Receio não aguentarmos muito à maldição. Só espero que vocês façam algo. Não
queremos lutar por uma causa que não é nossa.
(N. A.) Apoiado na crença humana, Nesmério adquiriu poderes inimagináveis. A submissão
do povo humano não era suficiente e ele buscava mais poderes, então criou os Pergaminhos
da Maldição e deu origem aos seres mágicos.
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Virando as costas, Emily e os vampiros se retiraram batendo a porta ao sair. Após a retirada da Irmandade, o murmúrio dos seres mágicos ecoou pelo salão e cessou somente
quando Muralha resolveu dar o basta.
— Tire Gabriel do calabouço e traga-o até a mim! — ordenou ele a um dos guardas.
Quando o bruxo chegou até o grande mestre, se prostrou
em sinal de reverência e logo foi encarregado de uma missão.
— Traga-nos os irmãos Richard! — ordenou Sayrwën, o
assistente de Muralha. — Haja o que houver, convença-os de
ficarem do nosso lado, eles agora são aliados muito preciosos.
O que Christine conseguiu fazer foi algo inacreditável, precisamos dela. Os outros dois não são muito importantes. A mulher
tem um domínio admirável sobre a magia, e isso a torna muito
valiosa. Ter opinião própria sobre algo que mal conhece precisa
ser valorizado. Traga-a até nós, e saberemos recompensá-lo.
*
Novamente, pela segunda vez em apenas alguns meses, Gabriel
saiu do Mundo Mágico e se deparou em um mundo totalmente
diferente do que ele estava acostumado; naquele momento, tinha uma outra questão para encarar: como chegar até Christine,
sabendo que ela não queria voltar mais para o Mundo Mágico?
“Segredos terão de ser revelados”, pensou ele.
Ele se materializou na casa de Christine, que ficou inconformada quando o bruxo tentou convencê-la a retornar para a
Central.
— Agora eles querem que eu volte, mesmo depois de não
terem feito o que pedi? — revoltou-se a bruxa. — Me admira
você vir aqui, mesmo depois de eles terem te posto preso.
— Vocês precisam voltar.
— Por quê? Não perdemos nada lá.
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— Perderam, sim. — Ele suspirou fundo, olhou para a jovem que o observava curiosa e continuou: — A mãe de vocês
ainda está lá.
— Nossa mãe morreu há dezoito anos, Gabriel — indignou-se a mulher, levantando-se do sofá.
“Como ousa vir à minha casa e mentir descaradamente sobre algo tão
sério?”, repetia mentalmente a bruxa.
— Na verdade, mestre Christine, ela continua viva, controlada por Félix. E é bem provável que ele esteja usando os
poderes dela para fazer as ressurreições.
— Isso não é possível. Eu tinha dez anos quando ela faleceu. Eu vi o corpo dela morto. Eu a enterrei! — Berrou Christine. Nesse instante, a garota socou a pilastra mais próxima, que
ruiu instantaneamente.
— O fato de descrerem da verdade não a torna uma mentira. Diana não faleceu, ela continua viva. Eu não tive outra opção a não ser revelar o segredo que somente o Conselho sabia.
Se eu não contasse, vocês nunca mais nos ajudariam. A Irmandade nos pediu ajuda, e isso é sinal de que as coisas estão piores
do que imaginamos. Venham conosco e talvez, somente talvez,
consigam libertar Diana.
— Quer dizer então que a nossa vida inteira foi apenas uma
mentira inventada pelo Mundo Mágico? — vociferou Christine,
enquanto a unha do seu dedo indicador insistia em perfurar a
camisa de Gabriel ao ser firmemente pressionada.
— Basicamente, sim. Mas foi para o bem de todos. Vocês
precisavam conhecer os dois Mundos para conseguirem encarar
ambas as realidades. — Levou a mão esquerda à testa e suspirou. — Se você acha que não é capaz de agir quando o seu
Mundo está correndo perigo, você não se parece em nada com
a sua mãe. Se quiser ficar neste mundinho onde nada de mais
acontece, fique. Mas ele não será assim para sempre. Adeus,
Christine.... Se acomode aqui com a sua fraqueza, que eu preciso
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fazer alguma coisa em relação a tudo isso. — E deu um aceno
breve enquanto virava as costas.
— Espere! — pediu Christine, segurando o seu braço. —
Vou provar a todos que estão errados sobre mim, não sou apenas uma garota mimada. Quero, e vou fazer a diferença. Vou
me tornar uma lenda viva e serei respeitada.
Os dois partiram para a casa do Nicolas e David, e ambos
decidiram regressar ao Mundo Mágico também. Não houve
muita relutância, não depois dos olhares fumegantes que Christine lançou sobre eles.
Uma batalha impressionante já havia começado quando,
finalmente, atingiram o castelo da C.I.A. Os Pele-de-Lobo14 estavam tentando invadir o castelo da Central, sem sucesso. Eles
estavam totalmente hipnotizados e não sabiam o que faziam.
Os cavaleiros alados deixaram de lado as suas armas futuristas e passaram a usar flechas, que zuniam por toda a parte.
Os bruxos voavam pela estrutura da muralha, ao passo em que
os lobisomens tentavam escalá-la. Sete Curbras pairavam sobre
a muralha esperando que alguém atrevesse atacá-las, ou que caísse para que pudessem aprisioná-lo. Um por um, os lobisomens
foram derrubados. As Curbras iam até os seus corpos caídos e
desapareciam com eles, levando-os para o Kräshnovil ou para
Geena. Quando a luta se extinguiu, e sobrou apenas um lobisomem em pé, os cavaleiros deixaram os seus arcos de lado e o
levaram a interrogatório. O lobo ainda estava sob controle
hipnótico e não sabia onde estava e o que estava fazendo.
— O que Félix está planejando para os Dois Mundos? —
interrogou o general das tropas armadas, com cara de poucos
amigos. — Quais são as suas intenções?
(N. A.) Assim como os vampiros criaram a Irmandade, os lobisomens criaram os Pele-deLobo, uma organização pacífica que luta para acabar com a má impressão que os primeiros
lobisomens deixaram ao ser tornarem maus.
14
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— Vocês não têm ideia do que está por vir! — exclamou
ele, em meio a grunhidos. — O Mundo está prestes a presenciar
a mais incrível guerra de todos os tempos. E não terá final feliz.
— O que Félix quer? — perguntou o general levantando
uma das suas flechas e colocando-a no arco.
— Vamos! Mate-me! Você não terá respostas deste jeito
— gritou o lobisomem. — Ora, ora, o grande general Ahrän
não consegue resolver as coisas com civilida...
Antes que pudesse completar a frase, uma sombra invadiu
as paredes do castelo, e uma enorme garra perfurou o corpo do
lobisomem, desaparecendo com ele em seguida.
— Uma execução. — Um sorriso torto surgiu pelos lábios
do general Ahrän ao proferir tais palavras.
Muito longe dali, em um pântano cercado por lodo em todas as partes, um homem magro com longos cabelos prateados
estava sentado em um trono feito com restos de corpos humanos. Seus olhos eram dominados por uma coloração opaca e
amarelada, e as suas roupas pesadas faziam barulho quando andava. Esse era Félix, e uma reunião também estava acontecendo
em seu covil.
— A Central está nos vigiando, precisamos despistá-la —
avisou, com a sua voz rouca e contundente. — Hoje, uma tropa
de lobisomens tentou invadir a fortaleza, mas precisei executar
um dos nossos aliados para que não contasse o plano do Mestre.
Ele ficará feliz em saber que tudo está saindo conforme o combinado. A partir de agora, teremos uma aliada especial: Medusa,
a Rainha da Morte.
De uma das cortinas imundas, posicionada sobre as paredes que ocupavam toda a estrutura do lado esquerdo do recinto,
surgiu Medusa. Sua armadura fazia um ruído oco ao passo em
que a mulher caminhava. As cobras horripilantes continuavam
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pendendo da sua coroa, e dos seus olhos claros uma chama vermelha surgia como se viesse das profundezas do Inferno.
— E então? — questionou ela, com a mão esquerda na
cintura e a direita esmagando uma parede desgastada pelo
tempo. — Vamos ficar parados aqui ou vamos mostrar para os
Mundos do que somos capazes? A C.I.A. tem novos aliados, os
herdeiros do trono mágico. Rá, aquelas crianças estúpidas. Nós
podemos vencê-los. O Mestre nos incumbiu de formarmos um
exército e atacarmos o mundo dos humanos. Não sobrará nenhuma daquelas pragas malditas!
Ao som de palmas calorosas, Medusa se retirou do ambiente. A reunião foi finalizada horas depois, quando a noite estendeu os seus braços negros, e os monstros foram em busca
de novos aliados.
Em um complexo laboratório do Mundo Mortal, uma experiência estava prestes a começar. Uma luz forte tomava conta
do lugar. Apenas uma pessoa se atrevia a enfrentar os raios da
claridade ofuscante. Ele trajava uma armadura negra, entalhada
por escamas de Dragão no peitoral. Do seu ombro caía em
forma de V um manto vermelho, e em sua cabeça usava um
elmo sombrio. Com um sorriso no rosto, via a sua experiência
ganhar vida.
— Finalmente! Meu plano está se concretizando!
— Mestre! — Chamou um dos seus subalternos, irrompendo pela porta de ferro. — Ligação do Mundo Mágico...
— Mestre — começou Félix, aparecendo como uma projeção astral por entre as paredes imundas banhadas em sangue
—, o seu plano está funcionando. A queda dos Mundos está
próxima, e agora temos Medusa do nosso lado.
— Excelente — extasiou-se o Mestre. — Seu esforço será
recompensado, Félix.
92
Voltando à experiência, o Mestre sabia que tudo estava no
seu devido lugar. Uma criatura começava a andar sobre a terra
novamente. Seu nome era Hamurábi, um faraó que viveu durante sessenta anos, e em trinta de reinado fora considerado por
todos um demônio, um verdadeiro mensageiro das trevas.
Pouco antes de morrer, Hamurábi conheceu Felícia, uma
feiticeira muito poderosa, pela qual se apaixonou perdidamente.
Ele queria viver eternamente, e Felícia podia fazer com que isso
acontecesse. Mas para ser imortal é preciso estar morto, então
Felícia o amaldiçoou fazendo com que ele se tornasse uma múmia.
Seu poder era inacreditável, a feiticeira não conseguia mais
dominá-lo. O mundo iria pagar pelo seu erro. A matança começou pelo reino, e o odor de sangue se elevava dos becos imundos. Hamurábi estava vivendo uma fantasia. No fundo da sua
mente ouvia comandos que só ele compreendia. Felícia sabia
que não poderia derrotá-lo. Aliás, ele já estava morto, mas a feiticeira conseguiu adormecê-lo.
Naquele momento, ele voltou... como todas as pragas. E,
pior ainda, estava sob o comando de uma mente superior a todas as outras... a do Mestre.
— Uma confluência de eventos o tornou útil a mim, Hamurábi. E eu, a você. Mas nem mesmo alguém como você deveria testar a minha paciência. Não haverá mais avisos. Uma
nova Era está chegando. Uma Era que eu previ. Agora, olhe —
pediu o Mestre, virando o rosto do mumificado para o seu —,
para que eu possa entender. Eu ainda vejo os demônios, Hamurábi. E você?
— Demônios?!
— Ah, você se interessou. Como eu pensei — sorriu o
Mestre. Uma luz opaca tomou os seus olhos por debaixo do
elmo. — Você acha que foi atormentado, Hamurábi? Acha que
as suas habilidades foram manipuladas por outros? Acha que foi
93
temido? Você não sabe o que é ser temido. Você teme os demônios. Eu também temi... quando eles tinham forma. O sangue e
o suor daqueles que você matou faz com que você fique arrependido. Isso não é bondade, é tolice. Você é um soldado, foi
criado para matar. E, se não estiver do meu lado, está contra
mim. E ninguém consegue me deter!
— O nosso destino é feito de escolhas — falou Hamurábi,
tomando forma humana. — Meus demônios não mais me atormentam, e eu sempre estarei do lado do mais forte!
— Bem-vindo ao grupo, Hamurábi — saudou o Mestre,
apertando a sua mão. — Preparem-se! — gritou ele a todos os
presentes no laboratório. — Tragam Lurian! O plano está prestes a ser concluído.
Assim que os subalternos ouviram a ordem do Mestre, levaram até a sua presença uma caixa adornada por pedras semipreciosas e em cuja tampa estava gravada a imagem de uma cobra de duas cabeças chamada Lurian. O bruxo ordenou que
abrissem a caixa.
Um gás ácido saiu do artefato e matou todos os humanos
presentes no local. Do seu interior saiu uma mulher trajando
um longo vestido branco e com um colar preto adornando-lhe
o pescoço. Era Diana. Sua aparência não foi corrompida pelo
tempo, e a bruxa continuava jovem. Seus olhos castanhos começaram a brilhar e, com o comando do Mestre, ela retornou
ao Mundo Mágico.
*
Uma dor aguda incomodou Christine, parecia que a sua barriga
estava sendo trespassada por centenas de facas. E, sequentemente, uma voz em sua cabeça soou familiar.
— Christine — disse a voz. — Preciso da sua ajuda. Consegui fugir das garras de Félix, mas estou fraca demais para prosseguir. Preciso que você e os seus irmãos venham me buscar.
Eu descobri todo o plano do maldito, e agora ele pretende me
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matar. Preciso de vocês. Venham logo. Não sei quanto tempo
mais vou supor... — A voz desaparece, interrompida.
— Gabriel! — gritou Christine, enquanto corria pelos corredores cinzentos do castelo. — A minha mãe precisa de ajuda.
Ela escapou das garras de Félix, mas não consegue chegar aqui
sozinha. Precisamos trazê-la de volta.
— É perigoso demais. Pode ser uma armadilha. Nem sabemos onde encontrá-la.
— Não importa. A minha mãe precisa de ajuda. Com você,
ou não, eu preciso ajudá-la. Fiquei dezoito anos sem vê-la, e
agora não vou deixá-la na mão. Vocês vêm, meninos? — perguntou ela para Nicolas e David.
— Eu vou. Você vem, David?
— Se Gabriel disse que pode ser uma armadilha, eu não
vou me arriscar a salvar uma pessoa que eu nem cheguei a conhecer. Nós nem sabemos se a voz que Christine ouviu era a
dela mesmo. Pode ser apenas uma pessoa se passando pela mamãe. Não sou tolo para sair por aí em um mundo totalmente
desconhecido — respondeu David. — Se vocês querem bancar
os heróis, vão em frente. Mas não contem comigo nessa.
— Vamos nessa, Nicolas! — chamou Christine. — Se eles
não querem ir, menos mal. Melhor ajuda quem não atrapalha.
— Vamos! A nossa mãe deve estar esperando por nós —
respondeu Nicolas, que olhava torto para o seu irmão mais
novo.
Antes de saírem do castelo, Christine e Nicolas pegaram
dois excelentes alazões para acompanhá-los, optarem pelo óbvio: vasculhar as regiões mais próximas. Sendo assim, se embrenharam pelas Montanhas Z, que vinham logo atrás do Bosque de
Pedra. Após uma longa caminhada sob o Sol escaldante na região montanhosa, os irmãos chegaram ao deserto, onde o Sol
ardia ainda com mais fervor. A longa caminhada, mesmo a cavalo, não permitiu que os irmãos continuassem por muito
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tempo; o Sol estava ficando insuportável, mesmo quando já se
dirigia para o oeste.
Seguiram pela encosta de uma longa montanha, que ao ficar para trás se formava em vala sobre a região deserta. Cansados, ambos pararam em um determinado local, quase no meio
do deserto, e acabaram adormecendo. A areia ondulava em movimentos vagarosos, os engolindo aos poucos.
Quando acordaram, os seus olhos tiveram que se acostumar à escuridão assombrosa que se fazia presente; no entanto,
assim que recobraram a consciência, puderam notar uma cidade
tecnológica ganhando forma. A tecnologia estava cem anos
mais avançada do que a do Mundo Mortal. Altos arranha-céus
erguiam-se majestosos por sobre as ruas cinzentas feitas de aço.
Os transportes eram movidos à turbina e todos voavam. Robôs
falantes eram vistos em toda a parte, tudo era incrível. Os moradores curiosos se aproximaram deles, que haviam caído no
telhado de um edifício feito de vidro que se chamava Cátrios Palace. Os habitantes nunca tinham visto seres tão estranhos. Não
eram cinza e não possuíam antenas.
O líder da cidade se aproximava. Transportado por uma
mochila a jato, ele pousou rápido. Aparentemente mais esperto
do que os demais habitantes, estendeu a mão:
— Sejam bem-vindos a Cátrios! — falou, enquanto ajudava os irmãos a se levantarem.
— Cátrios? Quem são vocês? Por que eles parecem estar
assustados? — perguntou Nicolas, apontando para os moradores.
— Desculpem os meus servos! Eles nunca viram seres
como os jovens mestres antes. Meu nome é Átila. Sou o fundador de Cátrios.
— Prazer, eu sou Christine Richard, e este é o meu irmão,
Nicolas — se apresentou a bruxa. — De onde vocês vieram?
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— Somos de um planeta do Sistema Órix chamado Feejter.
Quando o homem era mais primitivo, fomos obrigados a vir à
Terra devido a uma invasão em nosso planeta. Pensávamos que
aqui era mais seguro. Apenas ilusão. Quando os venusianos descobriram a nossa localização, houve um verdadeiro massacre.
Sobraram apenas alguns da minha espécie. Com muito esforço,
conseguimos restabelecer nossa raça nesta cidade que fundamos
aqui no submundo. Demos o nome Cátrios em homenagem ao
meu filho, morto na invasão. Nunca nenhum ser conseguiu penetrar a nossa fortaleza e, como vocês invadiram o nosso território, os venusianos já devem saber a nossa localização. Acreditamos que eles estejam sob o domínio da deusa da guerra, Morrigan. O importante é que somos muito mais avançados em tecnologia do que eles e, desta vez, não seremos derrotados. Cátrios pode ser isolada de tudo, mas não seremos vencidos facilmente. Para que possa entender melhor nossa origem vou começar desde o início:
“O planeta Feejter não possuía gravidade. Durante diversas
Eras, os feejterianos lutaram por uma solução para o problema decorrente da gravidade. Entre as saídas que a evolução encontrou estava
uma enorme massa muscular, o que impedia que os corpos flutuassem. A locomoção era feita por meio de saltos, e os tentáculos, como
os dos polvos, funcionavam como mola propulsora. A enorme quantidade de olhos ao redor do corpo garantia que nós, feejterianos, tivéssemos uma visão global do ambiente.
Quando chegamos ao planeta Terra, tivemos de nos adaptar novamente; a enorme massa muscular impedia que nos locomovêssemos, mesmo aos saltos. Tivemos então de usar da metamorfose, transformação que conseguimos com muito esforço. Nosso sistema havia
se modificado bastante; não possuíamos mais tentáculos, e toda a
massa corpórea havia se transformado em escamas lisas e escorregadias. Havia ainda um problema: os olhos. A iluminação do planeta
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Feejter era muito escassa, ao contrário do planeta Terra. Então resolvemos nos refugiar no subsolo. Apesar da baixa luminosidade, alguns
feejterianos não se adaptaram e pereceram. Diante da falta de progenitoras, os machos do planeta Feejter começaram a se relacionar com
as formas de vida Críquets.
As Críquets eram organismos pequenos, mas de características
muito parecidas com as dos humanos; possuíam cabeça, tronco e
membros. Os novos seres formados a partir de tal união tiveram as
características humanas, mas conservavam a pigmentação cinza, os
olhos, apenas dois, e as antenas das Críquets. Assim surgiram os catrianos, originários de Cátrios. Eu, Átila, apesar de ter vindo para o
planeta Terra na minha forma antiga, consegui me adaptar e me
transformar num ser quase humano”.
— Quem é Morrigan? — perguntou Nicolas.
— Não sabemos nada além das antigas canções — respondeu Átila. Então cantou baixinho uma canção feejteriana, dos
tempos em que o planeta Feejter era próspero e triunfava como
uma enorme estrela sobre o Universo.
Morrigan, a deusa do mal
Do seu trono ressurge
Para nos deixar de baixo astral
Causando medo como o leão que ruge.
Sua magia alucinante
Deixa cego aquele que vê.
Não importa se simples ou elegante,
Em seu fogo vai queimando sem deter.
Cada passo é um declive da humanidade
Seu veneno maldito
Detém até mesmo a Irmandade.
Quem diria um cabrito?
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O vermelho dos seus olhos
Paralisa até Medusa.
Nem Apolo nem Bórios,
Não há quem a seduza.
A Morte se anuncia,
Quando Morrigan libera das chamas, o ardor.
Sua maldade é doentia,
E a lua, perfeita, sucumbe ao terror.
Após cantar essa parte da canção, Átila entrou em um profundo
silêncio.
— Senhor Átila! — exclamou Christine, cortando o silêncio. — O que os venusianos querem, afinal?
— Eles querem a Pedra Negra. Pensam que ela é capaz de
proporcionar a imortalidade. Sendo imortais, seriam capazes de
dominar todo o Universo. Entrariam em batalhas e venceriam,
pois não poderiam morrer. É isso que eles pretendem. Mas
deixe isso para lá, por enquanto. Vocês são meus hospedes.
Aproveitem a cidade.
Átila caminhou com os irmãos pelas ruas estreitas, com
amontoados de pessoas os vigiando curiosamente, até chegarem
a um imenso palácio de gelo. Por fora, o aspecto era de um castelo tradicional, mas por dentro a tecnologia dominava. Antes
de entrarem, depois da muralha de gelo, todos passaram por um
imenso portão de aço travado por uma tecnologia extraordinária. Dos quadros até os móveis da cozinha tudo era feito da mais
avançada ciência. O salão principal era um amontoado de computadores que tinham vida própria, e muitos robôs circulavam
pelo palácio. O chão fora feito com um material sintético derivado do que eles chamam de Chipty, um material nano tecnológico criado por cientistas feejterianos. A parede, feita de titânio,
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parecia ser indestrutível. Tudo era espetacular e magnífico aos
olhos dos irmãos, que estavam se fascinando.
Era quase meio-dia quando tinham atingido o castelo. Átila
os conduziu ao longo de um corredor repleto de quadros dos
seus antepassados até chegarem a um salão oval ladeado de estátuas imponentes. No final da sala havia um pedestal onde, poderoso, erguia-se uma escultura do deus Bórios; um homem
moreno, de rosto austero e longos cabelos castanhos. Estava
sentado em um trono, e o seu manto vermelho escorria pelas
costas até chegar ao chão. Da sua mão esquerda erguia-se um
cetro que parecia duas cobras entrelaçadas.
Havia na sala uma mesa de aço, circundada por enormes
cadeiras polidas. Mais à frente havia duas cadeiras, onde, em
uma delas, estava uma mulher de rosto belo e cabelos dourados
na altura dos ombros. Trajava um longo vestido roxo cortado
por uma fita branca na altura da cintura. Seu olhar era penetrante; e a sua expressão, majestosa.
— Esta é a minha esposa, Marília — apresentou Átila. —
Querida, estes são os mestres Nicolas e Christine Richard.
— Desculpe-me, mas creio não ser dotado de ensinamento
adequado para me comportar perante à realeza — falou Nicolas, meio desajeitado, fitando os penetrantes olhos da mulher.
— É um prazer recebê-los, mestres Richard — pronunciou Marília, com uma voz doce e suave, embora contundente.
Ela sorriu ao ouvir as palavras do rapaz. — Já ouvi falar muito
da sua mãe, Diana. Grande Mulher. Fiquei extremamente entristecida quando soube de sua partida.
— Foi muito doloroso para nós — proferiu Christine. —
No entanto, descobrimos há pouco tempo que ela continua
viva.
— Fico feliz por vocês — sorriu Marília. — Espero que
consigam reencontrá-la. Logo será servido o almoço, sentem-se
e contem-me a sua história.
100
Os irmãos se sentaram, e logo depois os robôs do castelo
serviram o almoço. No almoço, os catrianos gostavam de comer
frutos do mar, o que outrora fora muito difícil, pois no subsolo
não havia rios ou mares. Porém, ao longo do tempo, conseguiram mudar o curso do Grande Rio Kooflér, que passa ao leste
de Algária, e fazer com que surgisse o rio Megiro, de onde retiram
os peixes e os crustáceos. A refeição que os irmãos degustaram
consistia em peixes e lagostas assadas, seguido por arroz e vinho
branco. De sobregosto, como os catrianos chamavam a sobremesa, havia gelatina à base de morango sintético coberta por
frutas secas.
Enquanto comiam, os irmãos, Átila e Marília, trocavam as
suas histórias. Os irmãos não tiveram muitas aventuras naquela
tarde, até que o crepúsculo começou a cair sobre a cidade. Nicolas ficara se perguntando como o dia e a noite penetravam o
solo e adentravam Cátrios, mas nunca teve essa resposta.
Quando o manto escuro da noite se estendeu sobre o céu
da cidade, todos se dirigiram aos seus aposentos, exceto Christine, que ficou na sacada do seu quarto observando a cidade.
Até as estrelas pareciam ser diferentes do ângulo em que ela estava. O cheiro forte de sangue subiu até as suas narinas. Sentiu
que havia um coração levemente alterado próximo a ela e,
quando se virou, não viu ninguém. Continuou a olhar pela sacada e viu, por um instante, uma mulher correndo lá embaixo.
Não parecia ser habitante da cidade. Não era cinza e também
não possuía antenas.
Christine pulou da sacada e correu atrás da mulher que está
desesperada. Quando se aproximou, contemplou um rosto familiar. Era a sua mãe, Diana. Estava abatida e suava excessivamente. Suas vestes estavam sujas e amassadas.
— Não deixe ele me pegar! — murmurou Diana, agarrando a parte negra do vestido de Christine.
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— Ele quem? — perguntou Christine, olhando ao redor.
— Não vejo ninguém. Se acalme, mãe. Sou eu, Christine. Não
se preocupe — tentou acalmá-la, a abraçando ternamente.
Diana não conseguiu falar mais nada e desmaiou.
102
Morrigan, a deusa
A lua em forma de foice já ia alto quando Christine adentrou
o castelo de Átila com Diana desacordada em seus braços. A
aparência jovial da sua mãe deu-lhe arrepios repentinos. Diana
não envelhecera, conseguira uma juventude mais prolongada;
tinha a aparência de trinta e seis anos, e a sua beleza, apesar da
simplicidade dos seus trajes, era admirável. Era a segunda forma
de Christine, embora os seus olhos fossem castanhos; e a altura,
um pouco mais baixa.
Christine a levou ao encontro de Átila e, após explicar minuciosamente a história toda, chamou Nicolas. Ele tinha apenas
quatro anos quando Diana sumira, mas a reconheceu no instante em que a viu.
Depois de longas horas, quando o amanhecer já se aproximava, A Rainha dos Feiticeiros acordou mansamente. Castanhos olhos se encheram de emoção ao encontrar os olhos vermelhos de Christine. Seu instinto de mãe, ou a sua intuição, reconheceu a filha que não via havia dezoito anos. Sua alegria fora
tanta que Diana envolveu Christine em um caloroso abraço.
Uma lágrima rolou dos seus olhos emocionados. Percebeu Nicolas logo após e o reconheceu imediatamente.
Diana ficara feliz por ver como os seus filhos se desenvolveram ao longo de tamanho tempo em que estivera ausente. Finalmente falou com uma voz agradável e angelical:
— Onde está David?
— Não veio — foi a resposta de Christine. — Infelizmente
não quis nos acompanhar nessa jornada.
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Um brilho intenso e faiscante tomou conta dos olhos de
Diana e, por um momento, uma fúria demoníaca apossou-se do
seu rosto, mas apenas Christine percebera.
— O que a afligiu durante esses longos anos, mãe? Que
mal a sombra negra de Félix lhe acometeu?
— Depois de um café bem reforçado contarei tudo. Estou
demasiada fraca para falar dos meus tormentos e desventuras.
Aliás, onde estou? — inquiriu, após observar as paredes do castelo.
— Em Cátrios, Majestade! — informou Átila. — A cidade
dos feejterianos.
— Cátrios?! — exclamou Diana, eufórica. — Sim, Cátrios!
Já ouvi falar de vocês. Mas gostaria de conhecer a sua história.
— Com o maior prazer, Majestade — se prostrou Átila em
uma reverência. — Vamos para o aposento de jantar, e lá lhe
contarei tudo sobre nós. E a senhora, se desejar, poderá contarnos a sua história também.
Seguiram por muitos corredores até atingirem o aposento
oval. Depois de um delicioso café da manhã, composto por
pães, geleia e muitas guloseimas desconhecidas pelos irmãos, todos se sentaram em volta de Diana para ouvir sobre as suas
aventuras desde que fora raptada.
— Nunca gostei de regiões montanhosas, ainda mais para
passeios, mas algo me atraiu para as Montanhas Cascudas15, região
atualmente dominada pelos Ogros. Não consigo expressar em
palavras o que me atraiu de tal forma — contou ela. — Parecia
algum encantamento, ou algo parecido. Fui para as Montanhas
quase que imediatamente. Eu ainda estava grávida do meu filho
mais novo, David. E isso me impediu de cavalgar durante muito
tempo, porém não me materializei no local de destino, pois as
(N. A.) As Montanhas Cascudas se situam entre Criolé e Megaiv e ficou conhecida por ser
habitada por Ogros selvagens que impedem a passagem das pessoas, quando querem atravessar suas fronteiras.
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células se enfraquecem e fazem com que envelheçamos mais
rapidamente...
“Estava próxima à fronteira das Montanhas Cascudas quando
pensei em descer do cavalo. Mas, antes que eu pudesse descer, fui surpreendida por três Ogros, cada qual com três ou quatro metros de
altura, que surgiram das sombras. Estiveram ocultos pelas poucas
árvores que haviam naquela região desolada.
Os monstros me atingiram antes que eu conseguisse me defender. Geralmente, os prisioneiros dos Ogros são devorados no local,
mas eu não fui. Eles me levaram sobre os seus ombros imundos até
uma caverna, após subir longas encostas de colinas. O interior era
sombrio e tenebroso. Havia restos de homens, animais e de outras criaturas espalhados pelo chão cinzento. Apenas uma vela, no gargalo
de uma garrafa de vinho, dava-nos luz. Uma luz opaca, mas que foi
de bom grado naquela caverna horripilante. A caverna era bem maior
do pensei a princípio, e havia saídas pelos quatro lados. Enquanto os
Ogros discutiam em uma língua não compreendida, eu me esgueirei
pela saída da esquerda. Foi meio difícil, pois estava com as mãos amarradas de tal forma que mal conseguia me movimentar. Por sorte, os
Ogros não notaram minha falta por longos minutos e, quando as terríveis criaturas se deram conta, eu já havia escapado das suas garras.
O guincho de um deles fora ouvido por mim à distância, quando eu
já havia ultrapassado os seus domínios.
Continuei andando sorrateiramente sob o chão imundo, até que
uma voz me alertou do perigo. Esse era Félix, que de algum jeito me
encontrou escondida sob uma pilha de escombros. Sem que ele percebesse, eu enviei um chamado para a Central. Antes que ele colocasse
as suas garras imundas sobre mim, corri alucinadamente até chegar
a uma pequena floresta repleta de muros rochosos entre as Montanhas Cascudas e Criolé. Foi ali que ele me alcançou. Eu já havia me
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soltado das amarras, mas estava cansada demais para lutar. Mesmo
assim, me esforcei ao máximo porque ele queria eliminar o meu filho.
Tanto me esforcei que sofri um parto espontâneo. Por sorte, alguns membros da Central, que receberam o meu chamado, chegaram
a tempo de salvar a vida do David. Assim que os membros o viram,
Félix desapareceu me levando consigo. Acordei somente há três meses
e estava usando esse colar, chamado de Pandor, um colar maldito de
Adacse16”.
— Se ele lhe faz mal, por que não o tira? — perguntou
Nicolas, após alguns minutos de silêncio.
— Não é tão simples assim, meu filho. Essa é a única certeza de que estou viva.
— Poderia ser mais clara, mãe?
— Christine, minha filha, você não conhece os mistérios
dessa vida de magia — disse Diana, com sincero pesar no coração. — Pandor ressuscita os mortos. Portanto, se tirá-lo, eu
morrerei.
Christine se jogou ao colo de Diana, com os olhos lacrimejando, e a abraçou com força.
— Oh, mãe, por que esse mal se abateu sobre nós?! —
chorava ela. Nicolas nunca vira a sua irmã mais velha se descontrolar de tal maneira e ficara olhando a cena abismado.
— Nada é por acaso, minha querida. O que aconteceu tinha que acontecer — consolou Diana, passando a mão sobre a
cabeça da filha.
Enquanto o silêncio reinava sobre o aposento, um homem
gorducho e de barba longa adentrou no salão, estava desesperado.
(N. A.) Adacse é a cidade a oeste do Mundo Mágico e é mais conhecida por ser banhada
pelo rio Notyalc, que corta suas fronteiras. Entretanto, houve uma época em que os habitantes
de Adacse tinham que se preocupar com ataques constantes de ciclopes e duendes malignos,
o que foi neutralizado com o passar dos anos.
16
106
— Eles chegaram! — exclamou, ofegante. — Os venusianos tomaram a parte leste de Cátrios.
Nesse instante, todos ouviram um ruído estrondoso, como
se um gigante andasse próximo a eles. Se precipitaram contra
janela mais próxima, e a imagem vista fora chocante.
Imagine uma mulher extremamente alta, com um longo cabelo preto como a noite e um olhar penetrante. Agora imagine
essa mulher pisoteando centenas de pessoas e casas, enquanto
seres minúsculos atiram para todo lado destruindo vidas e construções magníficas. Manchando com sangue os salões que outrora escreviam leis. Fora isso que Átila, Marília, Diana, Christine, Nicolas e o gorducho de barba longa viram.
A mulher era Morrigan, a deusa da guerra e do caos; usava
uma armadura negra, com a imagem de um leão cinza adornando-lhe o peitoral, e as suas botas eram de um preto bem
cintilante. Ela possuía uma força descomunal e um grito de
guerra tão poderoso como o trovão. Ao passo em que avançava,
centenas de mortes foram causadas. O exército catriano não era
páreo para a sua ira. Ela seguia para o palácio de Átila, sem que
ninguém a impedisse.
— Precisamos detê-la! — observou Diana.
— Tem razão, Majestade — concordou Átila. E dirigindose a Malaquias, o gorducho de barbas longas, ordenou-lhe que
colocasse o exército a postos.
Com a ordem, o subalterno correu desesperadamente pelos corredores do palácio, convocando todos que estavam em
seus aposentos. Minutos depois, lá estavam Diana, Átila, Marília, Christine e Nicolas em frente a uma multidão de catrianos
munidos de armas e escudos como proteção. Átila, que marchava à frente do exército até a porta de saída, dera para Diana
e os irmãos algumas armas, que foram recusadas.
Ao sair pelos enormes portões do castelo o exército catriano correu em direção aos invasores, que estavam agora na
107
parte sul de Cátrios, enquanto Átila, Diana, Christine e Nicolas
foram para a direção oposta, ao encontro de Morrigan. Marília
se refugiara no palácio por ordens de Átila; não que ela fosse
submissa ao marido, e sim porque não estava preparada para
batalhas.
O exército defendia a cidade como podia, enquanto as balas do seu armamento faziam os invasores caírem aos seus pés,
mortos. Porém, o exército venusiano era muito grande: não
importava quantos morriam, sempre havia mais. Por fim, os catrianos foram tombando. Um a um, todos caíram trespassados
por espadas.
Morrigan estava quebrando uma catedral quando finalmente os defensores chegaram:
— Volte para as trevas, demônio! — exclamou Átila. A
terrível deusa os olhou com desdém antes de soltar uma gargalhada fria e cortante, que ecoou pela cidade como um vento
forte.
— Ora, ora, pequeno homenzinho! És tu soberano sobre
mim? Por acaso não seria eu a deusa da guerra?!
— Deixe de conversa fiada, megera! E ouça-me: sou Átila,
e Cátrios é minha. Vá embora antes que...
— Antes que — desafiou Morrigan, o fitando com os seus
olhos penetrantes e balançando o cabelo.
Átila não respondeu, apenas atirou no pé da deusa, que o
agarrou entre os dedos. Diana escalou o corpo da deusa como
se fosse uma montanha e, enquanto Átila gritava de dor por ter
os seus ossos esmagados, lançou um feitiço que decepou a mão
da gigantesca criatura. Átila continuava preso, até que Christine
e Nicolas o libertaram da pesada mão, que ainda o esmagava.
Ao perder a sua mão, Morrigan deu uma gargalhada seca,
que ressoou na alma das pessoas. Diana, que estava quase no
ombro da divindade, foi pega, lançada ao ar e, antes que pudesse
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invocar qualquer feitiço, arremessada violentamente contra o
chão.
Nicolas usou imediatamente o Levitus e, ao se aproximar
dos olhos de Morrigan, invocou uma luz extremamente forte,
que a deixou cega por alguns minutos.
Quando sua mão se regenerou e a visão voltou ao normal,
Morrigan não encontrou mais os agressores, que haviam se refugiado no palácio de gelo com Marília. Eles eram os únicos
sobreviventes:
— Vamos fugir, não podemos detê-la! Ela é uma deusa —
sugeriu Nicolas.
— Vão vocês. Não irei abandonar Cátrios.
— Nem eu, querido. Nem eu — reforçou Marília, abraçando o marido.
Antes que mais alguém se manifestasse, a mão de Morrigan
adentrou o castelo pelo teto e esmagou o casal, que continuava
abraçado quando teve os seus corpos espremidos contra o chão.
Enquanto a enorme mão tateava o aposento e derrubava as paredes, mãe e filhos corriam pelos corredores e ultrapassavam a
saída de emergência da construção. Eles estavam em uma espécie de bosque, longe das garras morriganas.
— Ei! — exclamou Diana, de repente. — Eu vim por aqui!
Logo à frente tem uma passagem para o mundo de cima.
— Vamos até lá! — animou-se Nicolas.
Enquanto Diana e os seus filhos tentavam voltar à superfície, Morrigan encontrava um amuleto pequeno, preto, adornado por linhas douradas.
— A Pedra Negra! — admirou-se Morrigan, com um sorriso no rosto enquanto segurava o amuleto na altura dos olhos.
— Finalmente a Pedra é minha...
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Uma luz, a princípio fraca, tomou o céu catriano, e se revelou um rosto cadavérico, de olhos fundos, com dentes afiados. Era uma horrenda visão. Por longos minutos, a deusa ficou
com os olhos arregalados, apenas observando a imagem que se
apresentava diante das suas pupilas negras.
— Dê-me a Pedra, deusa da guerra! — ordenou ele, esticando uma ossuda e enorme mão.
— Melquir?! — indagou a deusa, surpresa. Mas logo depois
retomou a verdadeira atitude. — Ora, ora, o que o deus das
Curbras, soberano sobre todas as criaturas pestilentas, iria querer com uma pedra inútil como esta?
— Não se atreva a me desobedecer, bruxa psicótica, a Pedra Negra me pertence e quero-a de volta.
— Eu destruí Cátrios, a Pedra agora é minha...
— Se atreve a enfrentar a cólera de Melquir, Senhor de
Geena?!
Antes que Morrigan enunciasse qualquer palavra, a mão de
Melquir a agarrou pela cintura, um brilho dourado tomou o céu
novamente e, em uma névoa gelada, ambos desapareceram.
*
Diana conduzia os filhos pelo bosque, que se adensava cada vez
mais. Os galhos saíam das suas árvores como enormes mãos
tateando à procura de algo. As raízes se levantavam do solo imitando monstros gigantescos e deslizavam as suas saliências sobre a terra enlameada. Os grandes corredores do bosque já estavam envoltos pelo crepúsculo, avançando nas sombras e névoa. Uma caverna escura se abria entre as árvores cinzentas e
ameaçadoras.
— Foi por aqui que eu vim — informou Diana, parando
em frente à caverna.
Um vento gélido soprou vindo da caverna, e um arrepio
percorreu o corpo de Christine e Nicolas. No entanto, corajo-
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samente, os irmãos adentraram o território cavernoso. As paredes imundas se encontravam em estado lastimável, numa mescla de sujeira e obscuridade. As teias de aranhas cobriam cada
centímetro do lugar, e uma enorme escuridão o ocultava.
O som. Aquele grito de dor e tormento que gela a alma das
pessoas. Christine, Diana e Nicolas se abraçaram ao ouvi-lo. À
medida que mãe e filhos andavam, o som se alterava de tal
forma que os três começaram a correr desesperadamente pelos
corredores destruídos.
A saída. Ah, como se sentiram aliviados! Eles correram depressa para a luz que viram no final do abismo cavernoso, mas,
antes mesmo que pudessem alcançá-la, uma gigantesca garra
surgiu vindo das sombras e envolveu Christine e Nicolas em um
apertado esmagamento. Diana fora a única que havia escapado
das garras da vil criatura. Ela havia executado o plano. O seu
objetivo tinha sido cumprido. Os herdeiros do trono Richard
tombaram perante o grande Dragão Nas-Hä.
Enquanto Diana caminhava rumo a um emaranhado de
relva e flores, algo fez com que voltasse. Pandor já não fazia
efeito contra a sua vontade. Estava livre do efeito do colar maligno.
Diana correu para a caverna novamente, contudo, antes
que alcançasse o refúgio do monstro, um terrível Dragão preto
surgiu trazendo consigo em uma das garras os dois Richard desacordados. Sua enorme cauda balançava violentamente contra
o ar, e as suas garras tentavam alcançar Diana no solo. Suas escamas eram de um preto sem igual e pareciam reluzir como uma
gigantesca armadura.
O Dragão levantava a cabeça bruscamente ao ar e lançava
rajadas de fogo; não um fogo qualquer, eram chamas douradas,
que caíam nas plantas e as dissolvia como se fossem ácido. Ele
111
se apoiava sobre as patas dianteiras, esmagando diversas árvores, virava a cabeça contra a bruxa e lançava outra rajada de
fogo.
Diana se defendeu criando um escudo por sobre o corpo,
um escudo tão negro como o corpo do Dragão. Ela se aproximou da pata direita dianteira da besta e usou novamente o feitiço de extração, arrancando a garra da temível criatura. A queda
da garra fez com que Nicolas e Christine acordassem. Suas cabeças estavam fervilhando, e uma névoa ainda cobria os seus
pensamentos. O enorme monstro cuspia fogo contra Diana, enquanto ela falava numa língua estranha, quase num sussurro.
Em torno do alvo corpo da Majestade, um campo energético se mostrava magnífico.
— Corram! — gritou Diana para os filhos. — Ele é forte
demais para ser contido! Agora! Vão!
Os irmãos não esperaram mais nenhuma ordem e correram. Estavam desnorteados e não tiveram resistência alguma
sobre a ordem da sua mãe. Ao subirem uma gigantesca colina,
olharam para trás e viram a bruxa contendo todos os ataques da
criatura animalesca, mas a sua vitalidade fora tomando outra atitude, e ela tombou de joelhos perante o grande Nas-Hä. Suas
garras negras arrancaram Pandor do pescoço da Rainha dos Feiticeiros, e em uma luz fosca e desconexa Diana sumira. Christine tentou voltar, mas fora impedida por Nicolas, que a agarrou
pela cintura a fez subir a colina com ele.
O grito da besta fora sumindo conforme os irmãos escalavam a montanha. Por fim, chegaram ao deserto árido novamente. A noite havia caído sobre eles, e maus pensamentos se
afloravam em suas mentes perturbadas. Entretanto, Christine e
Nicolas se puseram a correr novamente até chegarem a entrada
do Castelo Phantom, chamando por Muralha.
Ahrän informou-lhes que Muralha não estava e os levou
até o seu assistente, Sayrwën, um homem baixo e de aspecto
112
robusto, com uma cabeça calva, altura mediana e olhar penetrante. Ele usava um casaco preto sobre uma camisa branca e
botas em tons de marrom escuro com detalhes em vermelho.
— O que os traz aqui, Senhores Richard? — perguntou
ele, com a sua voz grave.
— Encontramos a nossa mãe — respondeu Nicolas. —
Ela estava em Cátrios...
— Cátrios?! — interrompeu Sayrwën. — A cidade mitológica dos feejterianos?
— Sim. Conhecemos o seu fundador, Átila, e...
— Ora, mestre Christine, achou mesmo que eu iria acreditar numa tolice dessas? — inquiriu ele, com cara de desdém.
— Não é tolice alguma, senhor Sayrwën. Encontramos,
sim, sob o deserto, Cátrios. E a nossa mãe estava lá. E depois
fomos surpreendidos por Morrigan — respondeu Christine. —
E ainda um Dragão de nome Nas-Hä.
Nicolas olhou para Christine e se perguntou como ela sabia
o nome do Dragão que os atacou.
— Cátrios, Morrigan, o grande Dragão Nas-Hä — contava
Sayrwën nos dedos, levantando-se da cadeira onde estava. —
Vocês não têm nada mais frutífero do que ressuscitar velhas
lendas, crianças? Sabem de uma coisa, Richard, eu nunca aprovei a ideia de Muralha trazê-los para a Central. Mas, como vocês
já sabem, eu nunca tive poder algum sobre as decisões dele.
— Não estamos inventando coisa alguma — vociferou Nicolas. — E o nosso único devaneio foi aceitar que Ahrän nos
trouxesse até a sua medíocre presença.
— Como se atreve, insolente?!
— E tem mais — retrucou Nicolas. — Muralha nunca devia tê-lo aceitado como assistente, pois você é incapaz de ver as
coisas a um metro de distância. O seu enleio o deixa cego para
as coisas que realmente importam...
113
Em um súbito, Sayrwën atirou contra o rosto do Nicolas
um castiçal com três velas acesas, mas o rapaz desviou rapidamente.
— O que se passa por aqui? — questionou a voz de Muralha, irrompendo pelo enorme salão.
— Que bom que está aqui, Muralha — disse Sayrwën. —
Essas crianças enlouqueceram. Vieram aqui para me contar sobre as suas loucuras e me atacaram.
— Ele está mentindo! — esbravejou Christine. — Viemos
contar-lhe que encontramos a nossa mãe, e ele nos atingiu falando que havíamos enlouquecido.
— Isso mesmo, senhor Muralha — reforçou Nicolas. —
Encontramos a nossa mãe em Cátrios e...
— Cátrios?! — interrompeu Muralha. — A cidade perdida
dos feejterianos? Interessante. Continue, mestre Nicolas.
— Christine recebeu um chamado de nossa mãe, e fomos
imediatamente à sua procura — contou o jovem. — Enquanto
dormíamos sob o Sol escaldante do deserto, chegamos a Cátrios, onde conhecemos o seu fundador, Átila...
Nicolas informou sobre tudo para Muralha, sem ocultar
qualquer detalhe. Por fim, o bruxo disse:
— Muito obrigado por sua revelação, mas creio não ser de
extrema importância nesse momento. Hoje é o penúltimo dia
da minha vida. E ainda tenho uma última missão a cumprir antes de partir. Se preparem, pois em breve o Mundo será abalado
por terríveis acontecimentos. Olhem para mim — ele segurou
firmemente os irmãos pelos ombros —, vocês são as últimas
esperanças para os Mundos. Precisam se esforçar ao máximo
para enfrentar os perigos iminentes.
Muralha abraçou os dois irmãos e desapareceu logo depois.
Os irmãos, abalados, se dirigiram para a sala de jantar, onde comeram e recuperaram as suas forças.
114
Na manhã seguinte, Christine e Nicolas contaram toda a
sua aventura para David e Gabriel, que tentaram consolá-los. A
grande surpresa veio logo após o almoço, quando um grupo de
centauros, oito no mínimo, saiu correndo pelo castelo gritando
que um desastre havia acontecido no Salão Principal.
Quando Gabriel e os irmãos Richard haviam chegado ao
local, um grupo enorme de criaturas circundava algo encostado
na parede próxima à estampa com a imagem de Miquéias, filho
de Miquelin, príncipe da terra de Algária. Os irmãos e Gabriel
levaram um enorme susto ao perceberem que Muralha jazia
com um tronco atravessado em seu ombro esquerdo. Gabriel
se aproximou do bruxo e percebeu que o seu olho direito mexiase com dificuldade. O bruxo iria curá-lo, mas Muralha o impediu. Sua voz fraca ordenou:
— Não impeça que eu vá, Gabriel!
— Mas, senhor — tentou argumentar, segurando-o em
seus braços.
— Vlad está morto. A maldição não será cumprida. — As
palavras saíam com dificuldade, em meio a sussurros, enquanto
o sangue insistia em escorrer por sua boca.
— Mas como?
— Lu... Lunar — respondeu Muralha, fechando os seus
olhos lentamente ao passo em que apontava para o altar.
— Senhor... senhor!
— Acabou, Gabriel. Ele se foi — Christine não conseguiu
dizer mais nada, ela sabia o quanto Muralha era importante para
ele. Gabriel já tinha lhe contado sobre a vida em Ervil e como
o bruxo, que naquele instante estava caído morto, o acolhera
como um filho.
— Lunar... — murmurou Gabriel, colocando o corpo de
Muralha no chão. — A resposta está no Lunar!
O bruxo, então, se precipitou para o abismo cavernoso,
que estava a alguns passos de distância.
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— Mostre-me o assassino de Muralha — pediu, ao alcançá-lo.
O abismo começou a se romper, alargando-se pelo solo do
salão. Uma imagem desconexa foi tomando a forma de um homem baixo, de olhos vermelhos, que usava um manto negro e
cuja fronte era adornada por uma pedra azul. Um sorriso macabro, digno do rosto de Malvolio, tomava os seus lábios finos.
— Vlad Tepes! Mostre-nos como aconteceu.
Uma sombra cobria o rosto de Vlad e, aos poucos, se revelou Muralha andando sorrateiramente pelo Bosque de Pedra.
Seu sobretudo marrom esvoaçava ao vento, enquanto ele seguia
viagem. Parou perto de uma enorme árvore e escondeu algo em
seu interior. Quando terminou de esconder o objeto, todos tiveram a impressão de vê-lo sorrindo.
Muralha continuou caminhando pelo solo sujo da pequena
floresta até chegar próximo a uma cachoeira de água escura e
espessa como sangue. Não demorou muito para que de uma
pequena cabana, oculta por negras árvores e arbustos, surgisse
Vlad Tepes com uma expressão que mesclava satisfação e surpresa. Seu capuz caía sobre a sua fronte, e as suas vestes escuras
escorriam pelo seu corpo deixando apenas o peito desnudo.
— Finalmente este dia chegou — disse, em uma voz arrastada. — Pensei que não viveria para vê-lo morrer...
— Infelizmente você não me verá morrer, pois já estará
morto.
Os olhos vermelhos de Vlad emanavam uma fúria excitante e ameaçadora quando ele avançou contra Muralha. Apesar
da velocidade do ataque, Muralha se esquivou, acertando um
chute na barriga do vampiro. O chute não fora comum, o que
fez com que Vlad fosse arremessado contra uma das árvores.
Ele caiu, mas logo se levantou. O riso! Aquele riso demoníaco.
Até as criaturas do bosque começaram a correr ao ouvi-lo. A
boca de Vlad se abriu em cinco partes, deixando à mostra cinco
116
caninos extremamente afiados. Era uma cena surreal e horrenda.
Com uma velocidade perturbadora, Vlad conseguiu acertar
em Muralha um golpe que o fez ficar paralisado, numa posição
totalmente desfavorável, onde só podia conter os ataques vindos pela frente.
Vlad foi até a árvore mais próxima, com tronco extenso e
espinhoso, e a arrancou do solo, lançando-a contra o rosto do
bruxo no mesmo segundo. Muralha olhou a árvore penetrantemente e fez com que paralisasse no ar, a poucos centímetros do
seu ombro esquerdo. Vlad se posicionou rapidamente perto do
seu pescoço e preparou-se para mordê-lo, entretanto o bruxo
liberou a árvore, que, livre, atravessou o seu ombro e perfurou
o rosto do vampiro fazendo-o morrer instantaneamente. O
corpo do vampiro começou a arder em chamas e se lançou ao
vento, ao passo em que se transformava em cinzas. Muralha
conseguiu executar um último feitiço, se materializando no salão principal do castelo, onde todos o encontraram.
117
118
O duelo dos Bruxos
Malin, ministro do Conselho, acabava de chegar ao castelo quando Gabriel e os irmãos tinham visto a batalha de Vlad
e Muralha. Ele parecia estar com uma aparência melhorada
desde que os irmãos o viram perto do Bosque de Pedra. Estava
com o rosto mais sereno, e até pareceu ocultar um sorriso.
— Vim assim que me contaram — informou ele, se dirigindo ao Gabriel. — Já sabem o que aconteceu?
— Sim. Vlad Tepes e ele se enfrentaram hoje de manhã.
Ambos estão mortos.
— Precisamos providenciar o cerimonial — avisou Malin,
de maneira rude.
Aquela tarde foi cinzenta e sem vida, enquanto alguns bruxos preparavam a cerimônia. À noite, o uivo dos coiotes era
constante, como se eles estivessem cantando uma música para
o finado. O dia seguinte ficara ainda mais depressivo quando as
faixas negras começaram a decorar o castelo. Eram quase onze
horas quando o gramado se encheu de bruxos, centauros, duendes e três fadas que não se rebelaram contra os bruxos. O Sol
projetava os seus raios com dificuldade. Muitas cadeiras brancas
estavam próximas à lagoa. O ataúde de Muralha ficara exposto
em cima de uma enorme mesa de madeira circundada de narcisos, flores que Muralha admirou em vida. Uma faixa dourada
cobria a madeira.
Assim que todos os seres se acomodaram em seus lugares,
Malin se apresentou em frente ao caixão e pôs-se a falar:
— Embora a morte seja certa para todas as criaturas, não
tem como não nos emocionarmos quando ela atinge alguém
muito próximo. O homem fraco a teme, o desgraçado chama-a, o valente
119
a procura, mas só o sensato a espera 17. Muralha pensava da mesma
forma e não se preocupou em morrer. Talvez ele soubesse que
encontraria a paz em outra vida. Muitos enigmas circundam a
morte, o Terceiro Mundo ainda é incompreensível, mas sabemos que o esforço e toda a obra de Muralha não serão esquecidos, tampouco negligenciados pelas gerações futuras. O silêncio
é o melhor remédio quando não temos mais palavras para descrever tamanha honra. — Ao som de palmas calorosas, ele se
retirou e deu lugar ao Gabriel. Ele trajava um sobretudo negro
com fios dourados sobre o colarinho e peitoral.
— Eu sempre considerei Muralha como um pai, desde que
ele me encontrou perdido em Ervil. Neste momento de tristeza,
eu não consigo enunciar as palavras para descrever o bruxo que
ele fora, tampouco para falar dos nossos momentos de alegria.
Contudo, como estou aqui para completar o desfecho desta cerimônia, serei breve. — Nesse momento, uma lágrima cristalina
bailou sobre o seu rosto, o bruxo tirou do bolso um pote de
perfume e, após descobrir o rosto de Muralha, pingou três gotas
de um líquido dourado sobre a sua fronte.
O ataúde começou a se mexer descontroladamente quando
as gotas atingiram a testa do cadáver, e uma pequena explosão
foi causada. A faixa que cobria o caixão se mesclou ao corpo de
Muralha como se fosse a sua pele, e os narcisos formaram a sua
expressão facial. Muralha se tornou um ser dourado que saiu
andando pelo gramado, atravessou as filas de cadeiras e entrou
na lagoa, onde foi sugado, desaparecendo por completo.
— Está feito — Christine ouviu Gabriel sussurrar, antes
de sair sorrateiramente pelo lado oposto da lagoa.
17
120
(N. A.) Citação de Benjamin Franklin.
Os dias estavam passando rapidamente. Já era o vigésimo
sexto dia de maio, e o ambiente no castelo ainda estava carregado de melancolia. A C.I.A. permanecia sem líder, e muitos
nomes foram citados para o “cargo”. Porém, Gabriel e o Conselho impediram que qualquer pessoa assumisse, pois apenas o
antigo líder deveria dizer quem assumiria depois dele. Mas Muralha estava morto, e ninguém tinha ideia do que se deveria fazer.
Junho se iniciou sem que ninguém tivesse uma ideia eficaz
para a resolução do problema. No segundo dia, fora convocada
uma reunião com o Conselho, alguns integrantes da C.I.A. e diversos nobres das cidades e reinos. O Salão de Reuniões era
muito pequeno para acomodar tantas pessoas, pois só tinha lugar para noventa pessoas. Tal motivo obrigou Gabriel a chamar
as gêmeas Nicarágua, que os irmãos Richard conheceram n’O
Dólmen da Noite. Alice e Densa levaram para o salão uma
enorme leoa, da qual tiraram a sua pele e efetuaram um pequeno
ritual jogando o sangue pelo chão e acomodando os pedaços de
carne entre as colunas enquanto falavam Irouenês18, a língua das
fadas.
O Salão começou a tremer e foi se alargando para os lados.
O cenário que se assumiu foi um gigantesco espaço circular
como uma arena, cujo centro era equipado com um pequeno
palanque, onde Malin se acomodou. Os demais seres, assim
como Christine, David e Nicolas, ficaram nos lugares acima.
— Estamos aqui hoje, pois queremos descobrir quem será
o novo líder da Central — avisou Malin, cessando a balbúrdia
(N. A.) Irouenês é a segunda língua mais antiga do Mundo Mágico e fora constituída pelas
fadas. O alfabeto é bem limitado, então, a não ser que você seja uma fada, não conseguirá uma
definição clara.
18
121
entre as pessoas. — Segundo a lei, o novo líder deveria ser escolhido pelo antecessor, porém Muralha jaz no Lago Negro. Estão aqui os mais sábios do Mundo para que alguém encontre
uma solução.
As conversas dispersas começaram imediatamente, e todas
as opiniões expostas apresentaram algum erro. O dia estava
quase se extinguindo quando Gabriel adentrou o salão. Seu sapato ecoava um barulho oco, principalmente quando todos pararam de falar para vê-lo chegar.
— Creio ter encontrado a solução para os nossos problemas, senhor Malin — informou, tirando do seu casaco um livro
marrom, com um leão adornando-lhe a capa. Após abrir o livro
ao meio, tornou a falar: — Dias antes de Muralha morrer, disseme que tinha sob o seu poder um objeto muitíssimo poderoso
que traz o morto à vida por alguns minutos.
— Mas onde está esse tal objeto? — perguntou um homem
magro, trajado de cetim, que estava na primeira fila de cadeiras.
Seu nome era Äsborg, o filho mais novo de Atörh, senhor de
Nova Limiar.
— É aí que está o problema. Muralha não me disse onde o
guardava.
— Mas com certeza ele deve ter deixado alguma pista, Gabriel — insistiu Malin. — Pense um pouco.
— Ele apenas me disse que sempre o carregava consigo.
— Nesse momento, o seu rosto tomou outra forma, como se
tivesse sido atingindo por uma pancada. — Como não percebi
isso antes? — falou ele, deixando um sorriso torto tomar os seus
lábios finos.
Gabriel invocou o feitiço de materialização, e todos apareceram no Bosque de Pedra. O ambiente continuava com aspecto fatídico, e as folhas caídas retiniam um som seco ao serem
pisadas por tantas criaturas. Gabriel andava à frente de todos,
122
se esgueirando pelos corredores sombrios de árvores. Parou somente depois de avistar a árvore onde vira Muralha se aproximar. Era um Salgueiro enorme, com folhas a caírem em arco.
— O que fazemos aqui, Gabriel? — indagou uma fada de
cabelos ruivos que caíam em movimentos circulares por seus
ombros.
— Logo você saberá.
Gabriel circundou a árvore, batendo com o punho cerrado
sobre as pequenas saliências, e do seu interior tirou um objeto
prata e redondo adornado por pérolas azuis. Após analisá-lo,
Gabriel tirou a rolha que o fechava. Um líquido vermelho escorreu pelo objeto formando um “S”, e o bruxo o despejou no
Salgueiro.
O farfalhar das árvores se alterou, e na casca do Salgueiro
a imagem de Muralha se apresentara. A expressão era constituída por poros, e uma vala formava a boca. Quando o grande
líder terminou de olhar os visitantes, um sorriso enviesado tomou conta dos seus lábios enternecidos:
— Sabia que você conseguiria decifrar o meu enigma, Gabriel — sua voz estava mais rouca e arrastada. — Agora, escutem! Não tenho muito tempo e por isso direi o que vocês deverão fazer. Para que o novo líder da C.I.A. seja eleito, o Conselho
precisará elaborar o torneio conhecido como “O Duelo dos
Bruxos”. Os integrantes do torneio já foram eleitos. Escolhi
duas cidades das quatro partes do Mundo. Oeste: Alice de
Adacse e Oliver de Otar. Sul: Sayrwën de San Martin e Vulkânia
de Si. Leste: Christine de Blästeroh e Claudeane de Criolé. E
Norte: Sorte de Algária e Alagneb de Macadâmia.
Após dizer todos os nomes, Muralha fechou os olhos, e a
sua figura desapareceu no tronco do Salgueiro. As pessoas começaram a se entreolhar assustadas, e as vozes tomarem o bosque.
123
— Que sorte a sua, mestre Christine — parabenizou
Densa, uma das gêmeas Nicarágua, dando leves batidas nas costas de Christine. — Irá participar do torneio e poderá se tornar
a líder da Central, assim como a minha irmã, Alice.
— Não entendi, senhora Nicarágua. Afinal, Muralha não
mencionou o meu nome.
— E quem você acha que é a Christine de Blästeroh? —
perguntou Gabriel, que estava ouvindo a conversa.
— Sou eu?! — espantou-se a bruxa.
— Certamente, pois foi lá que você nasceu. E sinta-se honrada! Muralha escolheu os melhores da dimensão.
Gabriel parou novamente em frente ao Salgueiro e chamou
a atenção de todos fazendo um barulho esquisito arranhando o
casco da árvore.
— Bom, agora que descobrimos o que deveremos fazer,
está na hora de o Conselho dizer quando será o torneio.
Malin, que havia se tornado chefe do Conselho, saiu do
meio da multidão e se colocou ao lado de Gabriel. Ele pigarreou.
— O torneio será realizado daqui a dois meses na Central
— informou. — Os participantes serão notificados ainda hoje
para que possam se aperfeiçoar em seus feitiços e poções. —
Após completar a frase, se retirou, e todos tomaram caminhos
opostos.
Os irmãos Richard foram direto para o castelo, onde jantaram. Quase não conversaram, apenas ficaram se entreolhando.
— Você irá participar dessa estupidez, Christine? — inquiriu David. — Não queremos perder você também.
— Não se preocupe comigo, David. Vocês não vão me
perder tão cedo. O futuro ainda me reserva algumas surpresas.
— Eu acho que você não deve se arriscar tanto, irmã —
advertiu Nicolas. — Eu ouvi o que Gabriel disse. Essas criaturas
124
são as mais poderosas da dimensão, e talvez você não consiga
detê-las.
— Ora, Nicolas, não fique temeroso por mim. Eu ficarei
bem — consolou Christine, sem convicção nas próprias palavras.
O mês de junho se extinguiu como um sonho. Era como
se ele não estivesse ali. Julho se iniciou cinzento, também não
demorou muito para passar. Chegou agosto, o mês do duelo, e
a ansiedade em relação ao evento tomava as ruas das cidades.
As pessoas não falavam de outra coisa, e o Cubo Mágico, ao longo
desses dois meses, publicara muitos artigos sobre o torneio.
Christine se preparara exaustivamente para o duelo, e o castelo
parecia outro. O jardim estava como uma arena gigantesca; havia cadeiras expostas em um formato circular e uma espécie de
ringue que ficava no centro. O ringue fora marcado com uma
linha vermelha, de onde os participantes não poderiam passar.
Na manhã do dia seis, as pessoas começaram a encher o
jardim. Christine estava próxima ao ringue, e Sayrwën estava ao
seu lado. Os outros participantes ainda não haviam chegado.
Malin, Gabriel e um grupo de bruxos grisalhos estavam em um
palanque próximo à arena.
Era quase meio-dia quando o lugar se encheu por completo. Uma gota de suor escorria pelo rosto branco de Christine,
e ela começava a se perguntar se aquilo era realmente uma boa
ideia.
Os demais participantes chegaram todos ao mesmo tempo:
Sorte, o único escolhido de um reino, era um duende baixo e de
cabelos negros. Alice estava mais magra e tinha o rosto austero.
Oliver era um centauro alto, forte e com expressão de poucos
amigos. Claudeane era morena e alta, e o seu cabelo preto formava uma trança que se enrolava na cintura. Vulkânia era ruiva;
dos seus olhos emanava um ódio temeroso, que fez com que
125
Christine desviasse o olhar por alguns instantes. Alagneb era
uma moça jovem e parecia ser muito calma. Tinha o olhar inocente e adentrou o jardim de cabeça baixa. Seu cabelo azul caía
pelo rosto, e os seus lábios eram de um rosado delicado.
Malin levantou, juntamente com Gabriel, que segurava
um invólucro marrom. Após as pessoas pararem de
conversar, se dirigiu aos participantes.
— Aqui está o nome dos participantes do duelo. Cada
um lutará na sequência em que a sorte permitir.
Christine, que foi a primeira a escolher, ficou com o número três; e Sorte, com o seis. Alice ficou com o número sete;
e Oliver, com o dois. Alagneb ficara com o número quatro; e
Vulkânia, com o oito. Claudeane ficara com o número um; e
Sayrwën, com o cinco. Portanto, a ordem dos combates já estava lançada:
Claudeane x Oliver | Christine x Alagneb
Sayrwën x Sorte | Alice x Vulkânia.
Antes que o torneio começasse, Malin se dirigiu às pessoas,
com uma voz extremante alta:
— As regras do duelo são as seguintes: Primeira: aquele
que ultrapassar a marca vermelha será eliminado. Segunda: o
feitiço Levitus Humanus está proibido. E terceira: o duelo poderá ser até a morte no último confronto. Agora, podemos começar. Que toquem as trombetas!
O barulho estrondoso de dezenas de trombetas dava início
ao duelo entre Claudeane e Oliver. As pessoas pararam de conversar e prestaram atenção à luta. Oliver entrou no ringue empunhando o seu arco, enquanto Claudeane levava consigo apenas um amuleto no pescoço.
Os dois se cumprimentaram com um aceno de cabeça, e
Gabriel lançou ao ar a Ampulheta Dourada, que dava início ao
conflito. Oliver aproveitou a oportunidade e atirou uma flecha
em Claudeane, que desviou graciosamente.
126
— Não será assim que você vencerá a Ninfa do Tempo,
bravo guerreiro — falou ela, numa voz doce.
— Eu não cairei em seus encantos, ninfa! — A entonação
da voz de Oliver era extremamente rude.
Claudeane lançou um beijo ao ar e, enquanto o centauro
olhava a boca que havia se formado, o beijo foi se aproximando
e se abriu em um buraco horrendo, que o engoliu e o cuspiu
para fora do ringue.
— Temos a primeira vencedora — anunciou Gabriel, erguendo a mão da ninfa. — Claudeane, a Ninfa do Tempo!
Parecia que a população não havia gostado muito da vitória
da ninfa, porque apenas alguns comemoraram alegremente. O
próximo duelo era entre Christine e Alagneb. E, ao som das
trombetas, ambas entraram no ringue simultaneamente.
Quando a Ampulheta foi lançada ao ar, o enorme vestido
de Alagneb virou uma massa gasosa e, assim como ela, o ar o
encobriu. Christine ficou paralisada, um tanto apavorada com a
situação quando, de repente, sentiu um arrepio percorrer pelo
seu corpo. Quando percebeu, Alagneb estava em suas costas.
Seu rosto mostrava um aspecto assombroso. A máscara da boa
moça caiu, e ela se revelava com feição doentia. Seus dentes
eram amarelos, e a sua cabeça estava calva. Sugava o sangue da
bruxa-vampira de tal modo que Christine começava a perder os
sentidos. No entanto, Christine estava decidida a não perder
esse duelo, tinha se preparado demais para se deixar vencer no
primeiro desafio. Jogou, portanto, os seus braços para trás, de
um modo gelatinoso – graças a um feitiço de modo Geleius -, e
agarrou a cabeça da garota. Com a força proporcionada pelo
vampirismo, arremessou Alagneb para fora.
A segunda vencedora se anunciava.
— A vencedora da segunda luta é Christine de Blästeroh!
— anunciou Gabriel, erguendo os gelatinosos braços da bruxa.
127
Os próximos duelistas eram Sayrwën e Sorte. Quando ambos entraram na arena, o murmúrio das pessoas foi total. Não
pelo fato de Sayrwën ser um integrante experiente da C.I.A.,
mas por todos reconhecerem que Sorte era um duende instruído de muitos truques e mistérios.
Após a Ampulheta ser arremessada ao ar novamente, Sorte
ostentou o feitio de um ruivo alto, com longas tranças circundando o seu corpo e com um martelo prateado em sua mão
esquerda. Parecia o poderoso Thor erguendo seu martelo
quando um relâmpago cruzou o céu cristalino. O golpe desferido por Sorte acertou o ombro direito de Sayrwën, que caiu
com o rosto virado para o solo. Embora um filete de sangue
teimasse em escorrer pelo corpo do bruxo, ele se levantou com
uma fúria avassaladora e correu ao encontro do duende. Seus
membros estavam enrijecidos por encanto, e o baque desferido
no duende fez com que ele pairasse no ar por alguns instantes.
O duende desceu e assumiu a forma de um guerreiro medieval.
Estava vestido por uma armadura dourada e em sua mão direita
empunhava uma espada prateada. Sayrwën invocou uma espada
também, a sua lâmina era vermelha.
Ambos se olharam penetrantemente, e os gritos da plateia
eram delirantes. Porém, naquele momento, nada mais havia
além dos dois. Seus olhares se encontravam, as suas mãos pairavam próximas às suas espadas, esperando um momento de
distração para que um deles pudesse desferir o primeiro golpe.
Contudo, Sorte não gostava de esperar. Essa espera sem fim o
feria mais do que a afiada lâmina da espada do seu oponente.
Sem pensar duas vezes, puxou a sua espada ao mesmo tempo
em que seu adversário também o fizera; as lâminas se encontraram ferozmente em uma batalha surreal, enquanto faíscas coloridas saíam das armas. Os dois jogaram os seus corpos para trás
em sinal de recuo, e Sayrwën se transformou em um gigante.
128
A pequena estatura do bruxo tomou a forma de uma colossal criatura feita de relva e flores. O ente tinha dois chifres
que faziam curva por entre o céu. Um terceiro olho adornavalhe a testa, e todos eram de um preto alucinante. Sayrwën era
uma besta gigantesca. O Castelo Phantom ficou minúsculo diante dos seus pés, e ele mal conseguia ver as pessoas no ringue.
Sorte desferiu um golpe em uma das suas unhas, então Sayrwën
aproveitou e o agarrou como um inseto, lançando-o para fora.
O duende voou sobre as nuvens e se perdeu no ar. O bruxo
tinha vencido esse duelo.
Quando Gabriel disse novamente as mesmas palavras para
o público, anunciando a vitória do bruxo, Vulkânia entrou radiante na arena, mas não houve luta, pois Alice, a sua adversária,
desistiu do duelo. Todavia, Vulk, como era conhecida, não ficou
satisfeita, já que havia se preparado muito para o torneio. Ela
jurou para si mesma que o próximo adversário não iria conter a
fúria da Ninfa do Fogo.
Gabriel levou para os participantes novamente a caixa, e
Claudeane, que fora a primeira, pegou o número três; Christine,
o número dois. Sayrwën pegou o número quatro; e Vulk, o um.
A nova sequência estava lançada:
Vulkânia x Christine | Claudeane x Sayrwën
Os vencedores desses duelos iriam competir entre si, e o
vencedor final seria o líder da C.I.A. A torcida já estava ansiosa
para ver o resultado, e a tarde estava se extinguindo rapidamente; faltavam alguns minutos para o crepúsculo.
Depois de Gabriel ter anunciado ao público as novas lutas,
Christine e Vulk entraram na arena. A Ampulheta Dourada foi
lançada novamente ao ar, e um arrepio repentino percorreu o
corpo de Christine. Os olhos azuis de Vulk queimavam de ódio,
e a sua boca contorcia-se violentamente como num colapso. Os
seus cabelos vermelhos esvoaçavam-se levemente.
129
Quem atacou primeiro foi Christine, que usou o Invokus
Sombrus. Seu corpo estava sob o solo, e a sua sombra atacou a
ninfa com uma sequência de chutes rápidos.
Vulk foi ao chão, mas levantou-se rapidamente. Suas unhas
pretas mudaram de cor, e a púrpura se apresentava sobre elas.
A Ninfa não revidou, apenas sentou-se e do seu vestido branco
tirou uma pequena flauta de madeira. Ao pô-la na boca, uma
música fúnebre entoou no ar. Como se a sombra de Christine
estivesse sob encanto, explodiu. Christine, que ainda estava soterrada, começou a perder o fôlego e foi obrigada a sair da terra.
A música da ninfa chegou aos seus ouvidos como um sussurro melodioso, encantador e fascinante. Sua mente não exercia mais nenhum controle sobre o seu corpo, e a bruxa andava
visando ultrapassar a marca. A alguns passos, algo a fez parar:
Vulk havia parado de tocar a flauta.
— Não quero vencê-la desse modo, Christine. Posso te
chamar de Christine, não posso, filha de Diana? — questionou
Vulk, pela primeira vez. Sua voz era ao mesmo tempo firme e
suave. — Eu só queria neutralizar o Invokus.
Christine, que não tinha gostado de ser marionete, avançou
sobre Vulk com uma velocidade inacreditável, mas a Ninfa se
esquivou do golpe segurando as mãos da bruxa.
— Você tem muito potencial, garota — sussurrou em seu
ouvido esquerdo. — Mas ainda precisa se esforçar mais. — Virando-se para a plateia disse que a luta acabou; ela desistiu.
É impressionante como os grandes espetáculos têm finais
inesperados. Esse fora o pensamento das pessoas que assistiam
o evento, pois, após a declaração de Vulk, o murmúrio foi total.
As pessoas só pararam de tagarelar quando Claudeane e Sayrwën subiram na arena.
130
Assim que a Ampulheta rodou no ar, Claudeane começou
a flutuar. Estava com as pernas cruzadas, e os seus cabelos negros se esvoaçavam. Logo, ela voltou ao chão, para mais uma
surpresa:
— Estou fora! — avisou, de maneira meiga.
Enquanto as pessoas arregalavam os olhos, e Claudeane as
olhava com um largo sorriso, ela paralisou o tempo. Somente
ambos os duelistas podiam se mover. Ane, como era chamada
por muitos, se aproximou de Sayrwën, que mais parecia uma
criança assustada tirada dos braços da mãe, e lhe entregou um
punhal de bronze. Uma típica adaga de Criolé, com a ponta arredondada e com o busto de um grande leão adornando sua
estrutura.
— Mate a vadia! — ordenou ela, ao ouvido do bruxo, acariciando o rosto dele com as suas enormes unhas. E, estalando
os dedos, a vida voltou às pessoas que, inconformadas, discutiam entre si.
131
132
O Grito da Pantera
Enquanto Claudeane andava em direção à saída, muitos, inconformados com a sua desistência, a vaiavam a todo vapor. Alguns a humilhavam com ofensas espantosas, e ela apenas
sorria, olhando-os com indiferença. Quando Gabriel anunciou
o próximo duelo, Christine e Sayrwën entraram triunfantes na
arena. Sayrwën sorria desdenhosamente, enquanto Christine
olhava para os lados observando a plateia que os assistia.
O ritual da Ampulheta Dourada se iniciou novamente; Gabriel a lançou ao ar, e os competidores foram para os extremos
da arena, distanciando-se um do outro.
Sayrwën parecia um gato selvagem quando atacou Christine com fúria espantosa. Seus olhos estavam alterados de tal
forma que pareciam saltar do rosto a qualquer momento. O
triste foi vê-lo cair com a face no solo ao ser acertado por Christine, que viu os seus movimentos e, desviando-se em um movimento habilidoso, desferiu em seu adversário um chute poderoso.
O bruxo levantou a sua cabeça com a boca lavada em sangue. Seus dentes amarelos estavam cobertos por um vermelho
vivo, e Christine mantinha-se calma, apenas observando-o com
um sorriso de desdém. Ela viu a enorme boca, com dentes avermelhados, se abrindo em um macabro sorriso. Sayrwën parecia
confiante e, após limpar um filete de sangue que teimava em
escorrer pelo seu rosto, correu ao encontro de Christine, desferindo em seu abdômen uma joelhada, fazendo-a cair curvada.
A bruxa-vampira levantou-se rapidamente e agarrou o pescoço do bruxo, soltando-o apenas quando o ar estava lhe faltando. Inconformado, Sayrwën lançou diversos feitiços em
133
Christine não errando um único golpe. Enquanto os golpes desferidos por Sayrwën acertavam Christine violentamente, uma
nuvem de fumaça se formou ao redor do alvo corpo da bruxa,
e a coloração dos seus olhos se alteraram para o marrom. Uma
risada sombria tomou os seus lábios, enquanto o seu corpo mudava de forma. Enormes garras com unhas negras aparecem tomando os braços de Christine, o seu corpo se curvou em uma
posição estranha, de vez em quando fazendo-a lançar o pescoço
para trás em movimentos bruscos, enquanto a sua pigmentação
ia se alterando drasticamente. Mais uma vez, ela jogou a sua cabeça para trás e deixou um rosnado profundo e cortante ser liberado da sua garganta.
— Animália?! — espantou-se Gabriel, que assistia a luta.
— Mas isso é impossível.
A figura de Christine não existia mais, uma pantera negra
era a nova Princesa da Magia. O animal pulava sobre a arena em
uma velocidade surpreendente. A criatura avançou rapidamente
para Sayrwën e o acertou com a sua enorme pata, fazendo-o cair
novamente com o rosto no solo. O aspecto de Sayrwën estava
horrendo quando a pantera o observou com os seus olhos negros; diversos dentes do bruxo estavam quebrados e muito sangue tomava o seu rosto. Ele tentou enunciar algumas palavras,
mas elas não saíam. A voz de Christine também não saiu, foi
um som rouco que declarou:
— Eu venci!
Em um último esforço, Sayrwën retirou do seu casaco o
punhal que Claudeane havia lhe dado, mas Christine percebeu
o seu movimento e virou uma das enormes patas sobre o pescoço do bruxo, arrancando-lhe a cabeça. Enquanto o sangue
teimava em saltar por suas veias, os olhos de Sayrwën mantinham-se estáticos, como duas pérolas negras.
Estava morto.
Foi a primeira vítima do grito da pantera.
134
A plateia não sabia se comemorava ou não; muitos aplaudiam, enquanto outros apenas olhavam o evento. Gabriel subiu
na arena novamente e, após anunciar a vitória de Christine, socorreu Sayrwën, sumindo com o seu corpo. A cerimônia de celebração não fora muito agradável, pois muitos ainda estavam de
luto por Sayrwën, mas finalmente a C.I.A. teria um novo mentor.
Christine não fez muita coisa nos dias que se seguiram. Estava chegando o seu aniversário, faria vinte e nove anos e estava
preparando um baile de máscaras. Já convidara todos, sem exceção, e muitos confirmaram presença. Apenas um dia a separava do evento, e a ansiedade já não a deixava em paz. Parecia
que as horas não passavam, e a bruxa quase não se deliciou com
o incrível jantar da noite do dia vinte e um.
O dia vinte e dois se anunciou perfeito, com um Sol exuberante e com o cantar dos pássaros no Bosque de Pedra.
Aquele era o dia mais feliz de Christine desde que iniciou o ano.
Os preparativos para a festa haviam terminado no dia anterior;
os corredores da magnífica construção estavam enfeitados com
longas faixas vermelhas e douradas, vasos exóticos adornavam
as mesas de vidro, e um enorme lustre bailava sobre as cabeças
das pessoas. Quando o relógio tocou a sexta badalada, uma melodiosa canção infiltrou-se pelos corredores, e os convidados
começaram a chegar. Os vestidos das damas eram esplêndidos,
e as suas máscaras, fabulosas. Os cavalheiros chegaram com ar
de imponência, trajando os seus ternos e casacos, com máscaras
inteiras cobrindo-lhes o rosto.
A máscara do Nicolas era azul e se fixava perfeitamente em
seu rosto, de modo que ele nem precisava segurá-la. David,
ainda meio tímido, estava com uma máscara vermelha que cobria apenas seus olhos e que combinava com a camisa sob o
terno cinza que estava trajando.
135
Os pares se formavam, enquanto a música tocava no salão
principal. Os convidados bailavam ao som de valsa, mas Christine ainda não estava presente. Foi somente na terceira música
que todas as cabeças se viraram para a escada, de onde Christine
descia graciosa, trajada elegantemente com um vestido vermelho que chegava aos seus pés. Esses estavam alinhados com uma
sandália prata que se enrolava nas pernas. A máscara negra que
cobria o seu rosto era de um vivo intenso que se sobressaía sobre as outras. O vermelho dos seus olhos brilhava maliciosamente. Enquanto ela descia, todos observavam sair dos seus lábios rubros um sorriso encantador, mas logo os convidados voltaram a dançar. Apenas um homem de máscara preta não tinha
par e se adiantou até a aniversariante.
— Posso ter a honra dessa dança? — perguntou, curvando-se perante Christine e estendendo-lhe a sua mão coberta
por uma luva branca.
— Claro, gentil senhor.
Os dois se dirigiram para a pista de dança e novamente
Christine foi o centro das atenções. Os dois bailavam em uma
sincronia tão harmoniosa, que todos pararam a dança para observar o casal. Parecia que ambos ensaiaram ocultamente durante dias, pois dançavam como se as suas vidas se devessem a
isso.
— Que tal irmos para outro lugar? — questionou ele, ao
ouvido de Christine.
— A companhia não está agradável? — inquiriu ela, já imaginando qual seria a resposta. “Eu sou Christine Richard, não há
melhor companhia”, pensava.
— Não poderia estar em companhia melhor — respondeu
ele, com um sorriso. — Mas eu não gosto muito de ser observado, e me parece que somos o centro das atenções por aqui.
— Você está certo.
136
Christine e o homem misterioso agradeceram com um
aceno de cabeça e saíram pelo castelo, indo para a mais alta
torre. Os dois conversaram durante longos minutos sobre muitas coisas. Suas ideias pareciam se completar, e o homem, tomando a atitude, beijou Christine e a envolveu em um abraço
terno. Os dois ali, naquela sala silenciosa, observados apenas
pelas sombras, se deixaram levar pela paixão.
Quando o dia se anunciou com um Sol ameno e o homem
acordou, Christine já não estava mais ao seu lado, apenas a sua
máscara estava aos seus pés. A do homem, entretanto, insistia
em ficar nos seus olhos, mas ele a removeu, revelando ser Eric,
o homem que Christine encontrou na loja Doces & Travessuras.
Parecia não gostar da ideia de não ter Christine consigo. Ele a
queria agora mais que nunca, porém parecia que a bruxa não
queria que ninguém soubesse do seu caso amoroso.
*
Enquanto Eric descia as escadas da torre silenciosa, se esgueirando pelos cantos do castelo, Christine adentrava a sede da
Confederação Internacional de Feitiço & Magia. Seus olhos vermelhos
faiscavam maliciosamente enquanto passava pelas Curbras.
Após passar pelas estranhas criaturas, Christine se dirigiu para a
quarta sala no final do corredor; tinha uma porta de ferro, que
se abriu em um triângulo quando a bruxa se aproximou.
Malin estava sentado em uma poltrona antiga, próximo a
uma enorme janela de vidro:
— A que devo a honra da visita, mestre Christine? — inquiriu o bruxo, erguendo-se do seu assento.
— Quero uma lista com todos os nomes de criminosos
que foram inocentados ou que estão foragidos — respondeu
ela, de forma contundente.
— Poderia saber o motivo da sua decisão?
— Irei interrogá-los para descobrir a localização de Félix.
— Foi a resposta seca que Christine se limitou a dar.
137
Antes que a bruxa enunciasse mais alguma palavra, Malin
se dirigiu a uma garota elegantemente trajada com um vestido
roxo e de olhar cativo e balbuciou algumas palavras em seu ouvido esquerdo.
A garota começou a percorrer os corredores do prédio, batendo o seu salto alto nas pedras que calçavam o chão, tocando
as paredes com as unhas. Logo, estava de volta à sala com algumas folhas amareladas nas mãos.
— Aqui está — disse ela, de maneira doce e gentil.
— Obrigado, Ada. — A garota retirou-se da sala após Malin pegar os documentos das suas mãos e fechou a porta, deixando Christine e o bruxo a sós. — Aqui estão os piores criminosos do Mundo Mágico; inocentados e foragidos — informou
ele, estendendo as folhas para Christine.
Christine olhou atentamente as folhas, observando todos
os nomes escritos. Parou por um momento e com um sorriso
discreto analisou uma das folhas. A impressão que transmitiu
foi a de parecer estar muito interessada na folha que continha
um rosto infantil.
— Leona, não? — murmurou. — Inocentada de assassinato em massa por falta de provas! Oito anos de idade. Interessante, realmente espantoso e interessante...
— Setenta pessoas — informou Malin, distante. — Setenta
pessoas foram assassinadas misteriosamente. Leona foi encontrada próxima ao local, mas não achamos nenhuma ligação dela
com o crime.
— Mas como é possível? — perguntou Christine, de forma
severa. — Ela é só uma garota, não é?!
— Ela esconde algum segredo. Contudo, segundo a nossa
Constituição, não pode ser mantida em cárcere por ser criança.
E, além disso, não temos prova alguma que a ligue ao crime.
— Em que estado os mortos foram encontrados?
138
— Os corpos já estavam decompostos, mas com certa peculiaridade: foram devorados vivos.
— E a garota? Como foi encontrada?
— Estava sob o corpo de uma senhora magra e alta, mas
tinha o olhar petrificado, mantinha um sorriso fixo em seu
rosto.
— Entendo. — Christine analisava tudo com calma, passando a mão sobre o queixo. — Precisamos encontrá-la! Quero
que você mande alguém com notificações para todos estes criminosos — ordenou ela, entregando as folhas para Malin. —
Eles terão de vir aqui para um interrogatório.
— Mas por que isso agora, mestre Christine? — assustouse Malin. — O que você pretende?
— Confesso que achei que você fosse mais esperto, senhor
Malin. Deve ter sido a minha inocência em relação a este Mundo
— desdenhou ela. — Se esses são os piores criminosos do
Mundo Mágico, há a possibilidade de algum deles ter certo envolvimento com Félix, não acha?
— Entendo, mas acho que essa decisão não deveria partir
apenas de você, mestre Christine. É para isso que serve o Conselho!
— Acho que você ainda não compreendeu a gravidade do
problema, senhor Malin. — O sorriso da bruxa aumentava enquanto ela encostava o bruxo na parede. — Algumas coisas vão
mudar muito por aqui de agora em diante. O Conselho seria
inútil a partir de hoje. Precisamos de decisões rápidas. Mande
um mensageiro encontrar todos esses criminosos e entregarlhes a seguinte notificação. — Christine devolveu-lhe os documentos e algumas folhas brancas com instruções no seu interior.
— Entendido. Vamos agir agora mesmo — obedeceu Malin, fazendo reverência.
139
Christine apenas ficou em silêncio, observando. Depois
puxou uma das cadeiras e sentou-se graciosamente.
Um menino franzino, com um enorme chapéu verde na
cabeça, com um lenço laranja no pescoço e com um pequeno
tapa-olho no seu olho direito adentrou a sala de forma delicada,
com certa nobreza em seu olhar e modos.
— Eis-me aqui, senhor Malin. — A sua voz era doce e
mansa.
— Excelente. Mestre Christine, este é nosso mensageiro,
Kouta.
— Encantado — cumprimentou Kouta, beijando o dorso
da mão de Christine.
— Digo o mesmo — sorriu a bruxa. — É muito raro encontrar pessoas como você hoje em dia.
— Não faço mais que o meu dever, senhorita — salientou
ele, sem jeito.
— Já que estamos devidamente apresentados, aqui estão as
suas tarefas, Kouta — interrompeu Malin, entregando ao garoto
os documentos.
— Com sua licença. — Tão logo terminou de falar, o garoto desapareceu em meio a uma nuvem esverdeada de fumaça.
Enquanto Christine perambulava pelos corredores do prédio, Kouta andava em meio a ruínas de uma rua deserta em Criolé. Caminhou durante uns dois minutos até atingir uma casa
parcialmente destruída; a porta de entrada mantinha-se intacta,
como se tivesse sido feita recentemente, as janelas estavam com
vidros quebrados, o jardim que havia há muito tempo em frente
à construção não tinha mais vida. O garoto se aproximou da
entrada e, antes mesmo de atingi-la, um olho negro surgiu pela
fresta da porta.
— O que faz aqui? — perguntou uma voz rouca. — Vá
embora, criatura infernal!
140
— Procuro pela senhora Briäna Bulgarel, inocentada de
três assassinatos por falta de provas. — O seu olhar era penetrante, e a sua postura era de um pequeno rei. — Tenho uma
notificação da Central para ela.
— Você mesmo disse que ela foi inocentada — alterou-se
a voz. — O que a Central ainda quer com ela?
— Todas as instruções estão na notificação — respondeu
o menino. — Não precisa se esconder... eu posso ver o seu
rosto, mestre Briäna — disse ele, tirando o tapa-olho e deixando
à mostra um olho roxo com um pentagrama preto gravado no
centro da íris. — Como pode ver, sou um Portador19, você não
pode se esconder atrás de uma porta, mesmo que ela seja de
titânio.
A porta foi se abrindo lentamente, enquanto uma senhora
saía com uma lamparina em sua mão esquerda. O olho esquerdo
da mulher era de um preto azulado, e o direito era de um cinza
sombrio. Kouta tirou do seu casaco um pergaminho pequeno e
o fez flutuar. A senhora estendeu a sua mão esquerda para apanhá-lo, e o garoto desapareceu.
Não foi surpresa nenhuma para ela ao ver o que estava escrito:
“Prezada Sra. Briäna Bulgarel,
De acordo com a Lei Quinze da Constituição da Magia de 1783,
Vossa Senhoria está convocada a comparecer no dia vinte e sete de
agosto de XIV, Era Floures (27/08/XIV) na Confederação Internacional de Feitiço & Magia às doze horas para prestar esclarecimentos
de fatos recém-descobertos pelo Ministro Malin Bugarofh.
Atenciosamente,
(N. A.) Os Portadores são a representação dos quatro elementos. Kouta representa a terra e
é considerado como o Demônio das Rochas. Cada Portador leva no estômago uma espada
demoníaca, que conseguem ainda na infância, após derrotarem um elfo ou um Dragão em
combate.
19
141
Christine Victória Richard
(Diretora da Central de Investigação a Assombrações (C.I.A.) ”
Kouta percorria o Mundo Mágico entregando a mesma notificação para os criminosos, mas apenas cinco pessoas, além da
Briäna, foram encontradas. Os outros foragidos ou inocentados
não foram encontrados nos endereços que o Conselho havia
guardado, e Kouta não conseguia sentir a presença de quem
quer que fosse. Quando a tarde chegou, Kouta já estava na Confederação. Christine ainda não tinha saído de lá, esperou o garoto voltar.
— Apenas seis pessoas foram encontradas em seus respectivos endereços — informou Kouta, abaixando a cabeça para
Malin.
— Isso significa que os outros estão com Félix, não é
mesmo, Malin? — entusiasmou-se Christine, com um largo sorriso. Antes que o bruxo enunciasse qualquer palavra, ela prosseguiu: — Solte as Eolípilas!
— Mas como você sabe da existência delas? — espantouse Malin. — Você não deveria...
— Kouta, me entregue os pergaminhos que sobraram —
pediu Christine, ignorando o bruxo. — Agora você só precisa
fazê-las procurar por esses nomes, Malin. — No instante seguinte, os pergaminhos estavam nas mãos do bruxo.
— Venha comigo! — chamou Malin, saindo da sala. Kouta
continuou parado, mas Christine o arrastou consigo.
Eles seguiram por um longo corredor até chegar a uma extensa escadaria triangular que parecia deslizar por entre uma nuvem de poeira. O ambiente era úmido e escuro, sendo iluminado por lamparinas dispostas ao longo das paredes em tons de
cinza. Malin os guiava para baixo, e a caminhada parou quando
a figura de um enorme portão apareceu diante deles. O portão
142
era tão grande que Christine e Kouta se perguntavam como ele
cabia num espaço tão pequeno. Em um emaranhado de sombras podia ser observada a figura de um leão esculpida no centro
da estrutura metálica.
Quando Malin tocou a estrutura, um rugido ameaçador
pôde ser ouvido quebrando o silêncio. O portão rangeu tristemente ao ser aberto e, após algum tempo, olhos amarelos surgiram na escuridão do aposento. Malin segurou uma das lamparinas e apontou para o interior do recinto. Continuava escuro,
mas Christine e Kouta viram cinco enormes cães brancos, de
duas cabeças, com olhos estrondosamente redondos e amarelados. Das suas cabeças saíam vapores; e das suas bocas, uma saliva espessa e vermelha.
— Fascinante! — gritou Christine, batendo palmas empolgadas. — Então essas são as Eolípilas. Esplêndido! Vamos, Malin, mande-as procurar os foragidos.
Malin jogou os pergaminhos para as bestas e, após cheirarem, elas desapareceram da mesma forma que Kouta havia desaparecido quando foi atrás dos criminosos.
— Agora é só esperar para ver se tem algum resultado —
falou Malin.
A noite, que já havia caído, foi tomada pelos rugidos assustadores das bestas. Elas farejavam tudo, sem que ninguém percebesse a sua presença. Só os grunhidos revelavam que algo estava acontecendo ao redor do Mundo. Não demorou muito
para os monstros estarem de volta, sem resultado.
— Como pensei! — Um brilho verde se mostrava radiante
pelos olhos de Christine — Eles não estão no Mundo Mágico.
— O que você quer dizer? — perguntou Malin intrigado.
— Todos sabem que as Eolípilas só encontram o que está
no mesmo mundo que elas. Portanto, se elas não encontraram,
eles não estão mais aqui — respondeu a bruxa.
*
143
Os quatro dias que se seguiram desde então foram tranquilos.
Christine comparecia às refeições, juntamente com Nicolas e
David. O dia vinte e sete estava nublado, algumas nuvens negras
cobriam todo o céu, Christine e os seus irmãos apareceram cedo
na Confederação. Às onze horas, Malin arrumou uma pequena
sala para Christine fazer os interrogatórios; tinha uma mesa com
bule rosa e uma cadeira gigantesca, onde Christine se sentaria.
Logo à frente tinha uma cadeira um pouco mais baixa, para o
interrogado. Onze e meia chegara um homem baixo, de meia
idade e que tinha alguns ferimentos em sua testa. Seus olhos
castanhos demonstravam simultaneamente tristeza e vitalidade
jovial. Seu nome era Álvaro, fora inocentado de um assassinato
em massa que ocorrera sete anos antes, em Ranigiro, uma cidade
grande próxima a Criolé, mas que quase ninguém se lembra.
Três jovens de beleza física extraordinária chegaram pouco
depois. Eram acusadas de roubo, mas foram libertadas por falta
de provas. Seus nomes eram: Gäsparin, Aria e Geórgia. Essa
última vinha de uma longa linhagem da família Blackout, nobres
da região de Si.
Christine não vira ninguém chegar, pois estava na sala
aguardando o horário. Kouta ficava preocupado porque já estava quase na hora e Leona ainda não havia chegado.
— Faltam alguns segundos ainda, Kouta — tranquilizou
Malin.
De fato, quando o ponteiro tocou o doze, uma linda menina loira apareceu diante deles. Ela estava com longas tranças
em volta do corpo formando um enorme S. Suas vestes eram
finas como a sua pele delicada. Seus olhos azuis esbanjavam graciosidade e alegria. Apenas Briäna não tinha comparecido. Semanas mais tarde, Kouta descobriu que ela tinha morrido naquela mesma tarde, vítima de um ataque de insetos. Christine
abriu a porta e pediu para que Álvaro entrasse primeiro. Ele o
fez sem reclamar.
144
— Sente-se! — indicou-lhe Christine a cadeira. E despejando um pouco de chá em uma taça, ofereceu-lhe: — Beba. —
A sua voz era macia. Após o homem terminar de beber, ela começou com as perguntas. — Você conhece um bruxo de nome
Félix?
— Afirmativo.
— Você já esteve com ele em alguma missão?
— Só o conheço por nome, fotos e reportagens que li no
Cubo.
— Foi você quem causou os assassinatos em Ranigiro há
sete anos? — perguntou Christine, com as mãos no queixo.
— Negativo. Na época, eu estava viajando para Leviar.
— Compreendo... pode se retirar.
Em seguida, entrou Gäsparin. Christine, após oferecer-lhe
chá, fez o mesmo questionamento e não obteve resultado algum. E da mesma forma foi com Aria e Geórgia. Quando Leona entrou, Christine não lhe ofereceu chá e foi logo às perguntas.
— Não vai me oferecer chá? — inquiriu Leona, de maneira
graciosa.
— Ah, sim — murmurou Christine, meio atrapalhada,
pondo chá em uma taça.
Após Leona engolir um grande gole, ela fala:
— Sabe, mestre Christine, eu acho que alguém te avisou
que o meu metabolismo é imune à Poção da Verdade e, por esta
razão, você não quis me oferecer uma taça dela. Mas não se preocupe, não vim até aqui para ocultar a verdade. Pode fazer as
suas perguntas.
— Você conhece um bruxo chamado Félix? — questionou
Christine, com um brilho estranho nos seus olhos vermelhos.
— Sim, e já estive com ele diversas vezes. — Deu um gole
no chá.
— Você mantém algum contato com ele?
145
— Não, mas eu sei onde ele está e também com quem está.
Aliás, eu sei que tem um traidor na própria C.I.A. trabalhando
para ele...
— Quem é o espião? — Christine se precipitou contra a
menina.
— Você sabe! — Um enorme sorriso estampava o seu
rosto pequeno e delicado. — Ah, e antes de qualquer coisa, Félix está em Geena, com a Medusa. Foi graças a ele que você se
tornou vampira.
Após uma enorme pausa, Christine soltou uma gargalhada,
que fez com que Leona arregalasse os olhos.
— Entendi. Você só está me confundindo. Não existe traidor na C.I.A., e vou ser obrigada a prendê-la no Kräshnovil por
estar ocultando informações.
— Está se esquecendo de um pequeno detalhe, mestre
Christine — disse Leona, ao olhar profundamente nos olhos da
bruxa. — De acordo com a Constituição da Magia, ninguém
pode manter em cárcere uma criança.
— Para ser sincera, eu não esqueci, apenas o ignorei. As
coisas vão começar a mudar por aqui. Vou prendê-la por um
bem maior. — Christine atacou a menina, erguendo as suas
mãos na direção dela. O ambiente se encheu de abelhas, que
circundaram o corpo de Leona e desapareceram com a menina
pelas frestas das janelas.
146
A Lendária Fênix Vermelha
Christine saiu da sala com um largo sorriso dominando
os seus lábios vermelhos.
— Sabemos onde Félix se esconde — avisou ela. — Ele
está em Geena e tem o apoio da Medusa.
— E onde está Leona? — quis saber Nicolas.
— Ela fugiu pela janela numa nuvem de abelhas — respondeu a bruxa, gesticulando sobre a cabeça. — Mas isso também não importa agora. Sabemos onde Félix está, e vamos completar a nossa missão: resgatar Hórus!
Christine, Malin, Nicolas, David e Kouta saíram do prédio
da Confederação e se dirigiram para o castelo da C.I.A. Chegando lá, chamaram Gabriel para acompanhá-los na jornada.
Ele aceitou o convite de bom grado e invocou as vassouras novamente para que pudessem chegar com mais rapidez. Sobrevoaram o Bosque de Pedra, que ficava atrás da construção, e se
dirigiram rumo a Otar, uma cidade que ficara esquecida após um
grande golpe de Estado.
Geena se aproximava junto com a noite. O crepúsculo já
havia caído, e as primeiras estrelas começavam a brilhar no céu
ainda claro.
Gabriel foi o primeiro a descer da vassoura, quando passaram perto de um riacho. Afirmava que não havia mais necessidade de voar depois de alcançar os domínios da cidade. Eles
andaram por muitas ruas mal iluminadas até chegar a uma pequena taverna, onde pararam para pedir informações e beber
hidromel.
Quando a noite atingiu o seu apogeu, enormes rugidos tomaram o ambiente, uma névoa estranha cobriu as ruas, e não
147
havia mais ninguém em parte alguma. Todos estavam apreensivos, pois não sabiam por onde começar, já que a cidade era uma
das maiores de todo o Mundo Mágico.
Depois de uma pequena discussão, resolveram esperar
pelo amanhecer e procurar em todas as cavernas da região. David teve a estranha sensação de estar sendo observado enquanto
dormia e, além disso, teve a impressão que alguém o chamava,
mas não falou sobre isso a ninguém. Quando o dia raiou, a atmosfera mudou completamente. Toda a névoa e obscuridade
da noite haviam se esvaído.
As ruas ficaram mais agradáveis para uma boa caminhada,
todavia ninguém reparou porque todos ansiavam em encontrar
e resgatar Hórus de uma vez. Christine já acordou com um sorriso, como se tivesse descoberto algo durante a noite, embora
não fosse isso. Apenas acordou com uma sensação boa.
Kouta, que havia acordado mais cedo, voltou com uma sacola de peixes frescos que tinha pescado e os assou para que
pudessem comer antes de partir. Após a refeição, que estava deliciosa, partiram em direção a uma floresta. Tinham a sensação
que Félix não se esconderia em lugares públicos.
Apesar de Geena ser considerada a Cidade dos Horrores,
o ambiente que a envolvia durante o dia era muito ameno, e a
floresta que eles entraram era mais afetuosa do que o Bosque de
Pedra.
Em meio a caminhos tortuosos, cheios de trilhas malfeitas,
seguiram e atingiram uma caverna em forma de serpente que
estava oculta atrás de centenas de pinheiros. Eles hesitaram em
entrar, mas, uma vez que estavam dentro, examinaram-na minuciosamente. O formato da caverna os enganou profundamente. Não havia a menor possibilidade de Medusa estar em
seu interior.
As horas foram passando rapidamente e, quando o relógio
atingiu quatorze horas, eles chegaram a uma espécie de templo,
148
no alto de uma montanha, do outro lado da floresta. A entrada
do templo era constituída por um portão dourado que tinha em
seus extremos duas estátuas imensas; dois reis que olhavam em
direção ao mar enquanto empunhavam as suas espadas formando um enorme V sobre o portão.
Um homem alto, de aspecto esquelético e com longos cabelos grisalhos estava parado em frente à estrutura, com Medusa ao seu lado. A estranha criatura tinha um sorriso amarelo
e estático em seu rosto, deixando-o com aparência psicótica.
— Estava esperando por vocês — informou ele, numa voz
rouca. — Se vocês procuram por respostas, eu vou dar-lhes as
respostas, mas sob uma condição: se vocês me capturarem! —
Depois de enunciar tais palavras, uma sombra envolveu os corpos de Félix e Medusa e se esvaiu no ar.
— Excelente! — gargalhou Christine. — Agora é só um
jogo de pique-esconde.
Ela foi andando em direção ao portão, no entanto, antes
que pudesse atingi-lo, uma Curbra se materializou em sua
frente, quase lhe atingindo com a sua foice. Por sorte, a bruxa
foi mais ágil jogando-se para trás em um movimento habilidoso,
dando uma volta completa pelo corpo da criatura e parando
próximo a ela.
— Parece que não será tão fácil assim, mestre Christine —
observou Kouta. — Deixe-a comigo. Ela não será um problema.
— Mas — David tentou questionar.
— Não se preocupe com Kouta, mestre David — pediu
Malin. — Ele é mais forte do que aparenta.
Nesse momento, o garoto tirou o tapa-olho e arrancou
com uma só mão a sua camisa, deixando à mostra um corpo
totalmente definido e com algumas cicatrizes de cortes profundos em seu tórax.
149
— Vocês ainda estão aqui? — perguntou ele, com um sorriso amável no rosto. — Não podemos perder tempo! Passem
logo!
Eles não esperaram mais e atravessaram o portão. A Curbra atacou o garoto com uma fúria demoníaca. Sua foice foi
rumo ao coração de Kouta, mas ele a parou com uma mão. Seu
rosto deixou de ser sereno, o seu semblante fitou o monstro e
em seus olhos irradiava uma raiva notória.
— Agora é a minha vez! — disse ele, ao mesmo tempo em
que segurava a foice e lançava a Curbra contra a parede.
Antes mesmo que ela pudesse acertar a parede, Kouta correu com uma incrível velocidade em sua direção e a acertou com
um chute, fazendo-a voar.
Enquanto a Curbra não parava de subir, o garoto pôs a
mão direita em sua boca e retirou do seu estômago uma espada
de quase dois metros de extensão. Da lâmina do artefato saía
um olho verde que girava em todas as direções. O menino fincou a espada no chão e, nesse instante, um filete de sangue escorreu por entre a lâmina, pingou nas suas vestes e se incorporou ao seu corpo. Suas roupas assumiram o tom de um vermelho intenso e, ao invés de um chapéu, sua cabeça fora revestida
por um capuz que se unia ao restante da roupa.
— Blasteröhf20 — sussurrou a Curbra, ao olhar para baixo.
— Todos que viram esta espada morreram — riu insanamente o garoto. — Você não será a exceção!
Kouta olhou para o alto, saltou sobre o portão e, tomando
impulso, foi de encontro à Curbra que não parava de subir. Debaixo do capuz negro da criatura, os seus olhos se arregalaram
quando o garoto estava cravando-lhe a espada no coração. O
(N. A.) Blasteröhf é o nome da espada demoníaca de Kouta. Ele a conseguiu aos cinco anos
de idade, quando sua mãe, Guilhër, o levou até a Floresta D’Ave Branca, nos territórios de
Otar, e o obrigou a lutar contra Asborg, o elfo dourado. Depois da derrota do elfo, a espada
surgiu de suas entranhas e foi até Kouta.
20
150
corpo do ente se contorceu de uma maneira estranha, e os seus
ossos despencaram no chão.
Kouta desceu, engoliu novamente a espada e saiu correndo
para alcançar os seus companheiros. Enquanto o garoto corria
pelos corredores do templo, os outros encontram um gigante,
que Malin decidiu enfrentar, enquanto Christine, David, Nicolas
e Gabriel seguiam o percurso.
Ao mesmo tempo em que o gigante observava os outros
atravessarem a sua fronteira, Malin o atingiu com um punho de
fogo, fazendo-o cair sobre os joelhos. Como uma fera indomável, o colossal homem se levantou e atacou o bruxo com a sua
clava, entretanto Malin foi mais ágil e desviou. Antes que o gigante pudesse investir outro golpe, o bruxo transformou o seu
braço em uma foice dourada, pulou sobre o ombro do gigante
e decepou a sua cabeça. O sangue escuro do monstro inundou
o salão onde eles estavam, e por um momento Malin viu os seus
olhos piscarem até fecharem-se por completo. Kouta o alcançou no momento em que ele saía correndo ao encontro dos demais.
Ao mesmo tempo em que Malin e Kouta corriam sem
rumo, esperando encontrar os irmãos Richard e Gabriel, esse
último decidiu enfrentar um lobisomem que havia aparecido
como desafio em uma das salas do templo. Gabriel não usou
magia, só atacou a criatura com a sua força, que demonstrou ser
de grande destruição. O lobisomem se contorceu no chão
quando o golpe desferido por Gabriel acertou a sua barriga, mas
isso não foi suficiente para pará-lo, pois, segundos depois, a criatura levantou e, como um cão raivoso, atacou o bruxo, que
parou o ataque agarrando-lhe o pescoço. O lobisomem desferiu
um chute no abdômen do bruxo, que por um momento abaixou
a guarda e deixou a criatura lhe desferir um golpe nas costas.
Nesse momento, o bruxo percebeu que seria necessária a
magia e invocou um Dragão de ferro, que sem demora atacou
151
o lobisomem acertando-o na cabeça. Enquanto a besta estava
inconsciente, o Dragão a engoliu e desapareceu no ar.
No mesmo instante, os irmãos Richard atingiram uma sala
circular repleta de espelhos. Em todos os espelhos estavam refletidas as imagens de Félix e Medusa.
— Ora, ora, confesso que nunca imaginei que vocês chegariam até aqui. Afinal, o que vocês querem? É totalmente bárbaro perseguir alguém sem um motivo.
— Não se faça de tolo, Félix! — gritou David. — Nós viemos atrás de Hórus, e não tente nos impedir. Nós vamos levála conosco.
— Creio que isso será um problema — proferiu Medusa,
em uma gargalhada descarada.
— Me deixe contar uma história para vocês, crianças — ria
Félix. — Hórus nunca existiu. Não existiu um sequestro de uma
ave sagrada.
— Como assim? — indagou Nicolas, inconformado. —
Apareça!
Não houve resposta por algum tempo, até que um dos espelhos se abriu em dois, e Félix saiu do seu interior com Medusa
apoiada em seu ombro. O bruxo tinha um sorriso fixo no rosto,
e os seus lábios mantinham um vermelho intenso.
— É isso mesmo, criança — ressaltou ele. — Eu sou Hórus, a Lendária Fênix Vermelha!
Enquanto uma cortina de névoa cobria o aposento, Félix
se contorcia. Aos poucos, o seu aspecto foi mudando de forma.
Seus braços viraram longas asas vermelhas com umas penas
douradas no interior; o seu corpo mudou para algo indefinido,
como se não houvesse vértebra. Uma enorme cauda cheia de
penas vermelhas e douradas começou a encher o salão. Era uma
criatura de proporções gigantescas, quase não cabendo no recinto. Assim, a transmutação estava completa. O corpo magro
de Félix havia sumido para a grandiosidade de Hórus. Seu corpo
152
era de um vermelho impactante que fazia os olhos arderem. Sua
figura imponente olhava para todos os lados, até que os seus
olhos brancos se fixaram nos irmãos, que ainda o olhavam assustados.
— Acabou o jogo, crianças! — falou a ave, em uma voz
grave, agarrando Christine pela cintura. — Eu sou Hórus! Há
muito tempo fui contaminado com uma doença chamada Acnadum. Tal doença faz com que o indivíduo possa se transmutar
como bem desejar, não usando a Animália. Durante muito
tempo observei a Central estando em formas diferentes, até que
por fim me transmutei para essa forma: fênix, um ser divino,
adorado por muitas culturas antigas. Mas eu já coletei todas as
informações que precisava e, por último, me transformei em um
rato e saí da C.I.A. sem ser notado.
— Mas e o Lunar? — indagou David, indignado. — Como
pôde ser enganado de maneira tão grosseira?
— Foi um tolo em acreditar que aquele buraco estúpido
observava tudo! — debochou Medusa.
A Fênix arremessou Christine no chão e se transmutou novamente em Félix.
— Mas ainda há muita coisa que vocês não sabem... —
Enquanto terminava de falar, o bruxo virou bruscamente a cabeça na direção de Medusa, que olhou fundo em seus olhos
transformando-o em uma estátua de pedra.
— Você não sabe quanto tempo esperei por este dia, maldito — orgulhava-se ela, olhando a estátua e rindo desesperadamente. — Quando buscamos nossos desejos somos capazes de
cometer atrocidades, sem nos importarmos com os outros. Mas,
assim como você, eu também não meço esforços para alcançar
os meus objetivos. Depois de tudo o que você me fez, achou
mesmo que fora perdoado? Negativo, meu querido!
153
David, que não aguentava mais tanto falatório, atacou Medusa agarrando-a pelo pescoço. Antes que o bruxo pudesse fazer algo contra a terrível criatura, as cobras que estavam em sua
cabeça o atacaram acertando-o com mordidas ferozes pelo
rosto.
Mesmo com a armadura de ferro que cobria o seu corpo,
as cobras conseguiram penetrar a carne do garoto. Ele se contorceu de dor, ao passo em que o veneno adentrava em sua pele.
Nicolas conseguiu atacá-la da mesma forma que o irmão mais
novo e fixou uma barra de ferro em seus olhos para que Medusa
não pudesse transformar mais ninguém em pedra.
Mesmo com os seus olhos lacrados, Medusa fez com que
as suas cobras fossem a sua visão. Elas se enrolaram em torno
do seu corpo formando uma camada rústica de pele. Christine
lançou um feitiço de fogo para detê-la, mas não surtiu efeito
algum. Então, a bruxa começou a derrubar os pilares que sustentavam o salão para que o monstro ficasse preso.
Na sequência, Christine levantou David sobre os ombros
e o carregou para fora, sendo seguida por Nicolas. Enquanto o
templo desmoronava, os irmãos alcançaram Gabriel, Malin e
Kouta e correram com eles. Christine ainda pôde ouvir Medusa
gritando:
— Anjo ou demônio, qual deles você é?
Eles não se importaram e continuaram correndo pelas ruínas do templo. Quando estavam perto da saída, David caiu do
ombro da sua irmã, e uma enorme rocha, que despencava do
teto, o atingiu na cabeça. Ele, vítima de um veneno poderoso,
já estava com uma aparência nada saudável; a pigmentação da
sua pele era de um verde claro, e, naquele momento, da sua cabeça esguichava muito sangue. O bruxo nem teve tempo de dizer adeus, e outra pedra o atingiu nos ombros. Kouta não deixou os irmãos chorarem por muito tempo e os arrastou para
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fora, ao mesmo tempo em que Gabriel e Malin tiravam o corpo
do David dos escombros.
Nessa hora, com Nicolas e Christine deixando as lágrimas
rolarem, os bruxos conseguiram ouvir uma música fúnebre, que
invadia as suas mentes como em um sonho. A aventura estava
apenas começando e, embora todos lamentassem a morte do
pequeno bruxo, o Mestre, do Mundo Mortal, ria desesperadamente, glorificando-se.
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