O MÉTODO SOFÍSTICO E O ENSINO DA FILOSOFIA 1 Introdução

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O MÉTODO SOFÍSTICO E O ENSINO DA FILOSOFIA 1 Introdução
ÁGORA – Revista Eletrônica
ISSN 1809 4589
Página 79 - 91
O MÉTODO SOFÍSTICO E O ENSINO DA FILOSOFIA
Jasson da Silva Martins∗
Resumo
O ensino da filosofia sempre esteve vinculado ao desenvolvimento pleno de cada indivíduo. Esse ideário, ao longo da
história, foi sendo aperfeiçoado, mas nunca suprimido. Neste texto pretendo apresentar o ideário que movia a formação do
indivíduo nos poemas homéricos, através do herói-modelo, centrada na externalização da virtude guerreira como a verdadeira
virtude (arete). Em seguida, a partir de alguns diálogos de Platão, apresentarei o traço moralizante que esse ideário recebeu na
formação do cidadão dentro das Cidades-Estados, onde a formação da virtude deveria ser externalizada no vigor e na beleza
(kalokagathia). Por fim, apresentarei uma crítica ao ideário platônico, realizada pelos sofistas Górgias e Protágoras. A crítica dos
sofistas se justifica e está muito próxima ao ideário filosófico de hoje, à medida que faz uma crítica ao modelo da formação baseada
nos heróis (poemas homéricos) ou baseada no filósofo ideal (Platão).
Palavras-chave: Ensino. Método. Paideia. Virtude. Filosofia
Abstract: The teaching of philosophy has always been linked to the full development of each individual. This notion is, throughout
history, has been perfected, but never deleted. In this paper I intend to present the ideas that moved the formation of the individual in
the Homeric poems, through the hero model, focused on outsourcing of warrior virtue, as the true virtue (arete). Then, from some of
Plato's dialogues, I will present the trace moralizing ideals that received the training of citizens within the city-states, where the
training should be outsourced because of the vigor and beauty (kalokagathia). Finally, I present a critique of Platonic ideals held by
the Sophists Gorgias and Protagoras. The criticism of the sophists is justified and is very close to the philosophical ideas of today, as
he makes a criticism of the model training based on the heroes (Homeric poems) or based on the ideal philosopher (Platão).
Keywords: Teaching. Method. Paideia. Virtue. Philosophy
1 Introdução
Comumente, considera-se que a educação na Grécia Antiga divide-se em dois períodos históricos: o
primeiro, o período antigo, compreende a educação homérica (e abrange a educação espartana e ateniense),
o segundo, o novo período, refere-se à educação no século de Péricles (e corresponde ao período áureo da
cultura grega). Este último período é marcado, principalmente, pelo discurso e presença dos Sofistas, tendo
como apogeu os chamados filósofos/educadores (Sócrates, Platão e Aristóteles). Depois, segue-se o período
helenístico, cujas marcas são a expansão do pensamento ocidental e, sobremaneira, a conquista da Grécia
pelos macedônios e, em seguida, pelos romanos.
∗
Doutorando, Bolsista CAPES/PROSUP, em Filosofia pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS). E-mail:
[email protected]. Esse texto foi apresentado no IX Simpósio Sulbrasileiro sobre o ensino de Filosofia: “A filosofia e seu
ensino: desafios emergentes”, realizado no IPA-Porto Alegre entre os dias 19-21 de maio de 2010.
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Os textos, opiniões, dados, análises e interpretações, bem como citações, plágios e incorreções, são de responsabilidades legais, morais e econômicas ou outras
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Com a conquista do Império Romano, Atenas perde a sua posição de centro cultural do mundo em
favor de Alexandria. Mesmo assim, a Grécia triunfou no seio de toda a cultua ocidental, a ponto de podermos
afirmar que somos herdeiros dos gregos e fiéis depositários do seu legado cultural, em três traços formadores
essenciais: a filosofia grega, o direito romano e a religião cristã. A educação grega, sobretudo, a educação
ateniense no seu apogeu, universalizada pelos romanos, patenteia ainda hoje as suas influências tanto no
modo como concebemos o que seja educação, como nos ideais educativos almejados1.
Em matéria de educação, os gregos não só definem o modelo a ser seguido como indicam a
pedagogia a que deve ser seguida para todo o ocidente. Somos, então, forçosamente levados a concluir que
uma genealogia das ideias filosófico-pedagógicas, com sentido e significado para a nossa realidade educativa
atual, começa na Grécia, pois foi lá que o problema da educação como um todo foi pela primeira vez
apresentado. Qual é, afinal de contas, esse ideário educativo dos gregos? Na atualidade, podemos nos
considerar herdeiros desse ideário educacional, forjado na Grécia? O que significa assumir essa herança
metodológica e filosófica na atualidade?
2 Da paidéia à arete: o ideal educativo na Grécia
A preocupação com o ensino, de modo geral, foi dominante na Atenas do século V a.C. Dois fatores
são determinantes e evidentes: primeiro, o aparecimento dos Sofistas que se apresentam com novas
propostas e soluções educativas, com um novo plano de estudos e com novos mestres e com novos
métodos; segundo, a presença de Sócrates que se diz impelido a realizar uma única missão, uma “missão
divina”, que ele entende como “missão educativa”, que o conduz a questionar o ensino e o aprendizado do
seu tempo. A justificativa da missão socrática está intimamente ligada ao modelo de ensino até então vigente.
Ante o modelo de educação descrito nos poemas homéricos, no que diz respeito à aquisição da virtude
(arete), Sócrates é taxativo: “Qual é a razão de degenerarem muitos filhos de pais excelentes?” (PLATÃO,
Protágoras 326e). Minha contribuição parte do pressuposto que é possível – até mesmo necessário – ler as
obras A república e As leis como tentativas de resposta de Platão a este questionamento socrático. Na
mesma perspectiva, é possível ler a Ética a Nicômanos e também a Política, de Aristóteles, como tentativa de
solucionar esse impasse na formação do cidadão, habitante da polis.
1
A Paideia e a Filosofia são, talvez, entre todas, as maiores e mais originais criações culturais do gênio e do espírito grego. A isso
não é alheia, a sua eterna presença e a sua tenaz influência, ao longo da história, até aos nossos dias. Não é supérfluo fazer notar
aqui que a esta reflexão é a partir de um ponto de vista ocidental. Não é possível, no entanto, hoje em dia, descurar a importância
história de princípios outros que não a filosofia grega, para determinados povos (hindus e chineses, sobretudo).
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Mas essas tentativas de solução não representam algo restrito ao campo da filosofia. Na literatura
grega desta época, nas suas diferentes expressões - na poesia, na tragédia ou na comédia -, a razão última
centrava-se na educação do indivíduo ou do grupo social. Pensem, por exemplo, nas Odes, de Píndaro; o
Prometeu Acorrentado ou na Orestia, de Ésquilo; na Antígona, no Édipo Rei e na Electra, de Sófocles; na
Medéia e em Orestes, de Eurípedes; em As nuvens e As rãs, de Aristófanes. Todas essas obras foram
construídas sob o pano de fundo da educação - quer seja dos sofistas, quer seja dos poetas e tragediógrafos
-, confrontando os modelos de educação, bem como a sua finalidade.
No período clássico, o fio condutor, que guia a história das ideias na Grécia, não é mais a paidéia2,
mas este conceito, com o advento da democracia, foi absorvido e sobrevive no conceito de arete. A arete
exprime o genuíno ideário do processo educativo da Grécia, no período clássico, no que diz respeito à
formação individual do cidadão. Nesse sentido, a palavra paidéia, em sua densidade semântica, é quase
intraduzível ao nosso idioma. As discussões sobre o processo educativo na Grécia desse período, envolve
esses dois conceitos – paidéia e arete – , chegando a quase sinonímia3. Em sua defesa, ao descrever o
exercício da sua missão divina diante do tribunal, Sócrates, aproxima esses dois conceito:
Outra coisa não faço senão perambular pela cidade para persuadir a todos, moços e velhos, a não
vos preocupardes com o corpo nem com riquezas, mas pordes o maior empenho no
aperfeiçoamento da alma, insistindo em que a virtude não é dada pelo dinheiro, mas o inverso: da
virtude é que provém a riqueza e os bens humanos em universal, assim públicos como particulares.
Se tais ensinamentos eu corrompo a mocidade, é que são, realmente, prejudiciais. Estará falando à
toa quem afirmar que eu ensino coisa diferente (PLATÃO, Apologia de Sócrates, 2001, 30a-b).
Quase a totalidade dos diálogos de Platão, tem como temática central a procura de uma definição de
arete. Por vezes, esse tema da arete, enquanto a virtude superior, aparece travestido em outras
manifestações, tais como, a procura da essência da coragem, a essência da sabedoria, a essência do amor,
a essência do belo, a essência da justiça, etc. Essas características, que hoje em dia podemos chamar de
valores, faziam parte da essência do homem virtuoso (Cf. PLATÃO, Ménon, 71). O tema da virtude, enquanto
arete, é o tema central da educação do filósofo-rei, pois educar é, em última análise, tornar o homem melhor,
aperfeiçoá-lo. Essa concepção de educação como ensino da virtude é visível também em Aristóteles, descrita
2
Cabe aqui um esclarecimento. Não utilizaremos a palavra paidéia como ideia diretriz do processo histórico da evolução da
educação. A razão é muito simples. Esta palavra, com o sentido que utilizamos hoje, sinônimo de cultura, humanismo, formação,
configuração, só aparece no século V. (Cf. JAEGER, 1995, 25). Anterior a esse período, o uso da palavra paidéia, como se
encontra no texto, Os sete contra Tebas de Ésquilo, designava apenas a “criação dos meninos”. Em função do espaço, remeto?? o
leitor ao esclarecedor capítulo “A pederastia como fator pedagógico” do livro do prof. Reinholdo Aloysio Ullman (Cf. ULLMANN,
2005, p. 103-108).
3 No Ménon, os sofistas reclamam dos professores de arete política e da sua paidéia que consistia em ensinar a techné politiké,
ensino esse que permitiria o domínio da arete política: “E esses sofistas, que são os únicos a apresentarem-se como professores de
virtude (arete) - crês que de fato o sejam?” (PLATÃO, Ménon, 104).
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na sua filosofia prática (Ética a Nicômacos), na qual ele procura demonstrar que a felicidade não é outra coisa
senão tornar-se aquilo que se é, ou seja, a suprema felicidade do homem consiste em tornar-se aquilo que o
homem é na sua essência: animal racional, animal possuidor de logos.
3 A educação sofística nos poemas homéricos
Toda essa idéia de educação para a virtude, para tornar o homem virtuoso, melhor, feliz, aparece
formulada muito antes do período clássico da filosofia. Os poemas, certamente, mais famosos e conhecidos
de todo o ocidente, chamados poemas homéricos4 - a Ilíada e a Odisséia - descrevem o ideário educativo
grego em seus primórdios. Em ambos os poemas, embora o modo de conceber não seja semelhante, o ideal
de homem é definido pela arete. Na Ilíada, Agamêmnon, Ájax, Pátrocles, Diomedes, Menelau, Nestor, Ulisses
- do lado dos Aqueus e Páris, Príamo, Hécuba e Andrómaca - da parte dos troianos, juntamente com Helena,
representam todas as qualidades do homem ideal, prefigurado no herói-modelo Aquiles. Aquiles encarna o
herói-modelo, pois é nobre, valente e corajoso. É o melhor, entre os melhores. Ele é o legítimo aristói
(melhor), entre os seus semelhantes, aquele que, investido da arete que lhe é natural, exterioriza e
transborda toda essa herança nas suas ações.
Ordenar-se, tornar-se virtuoso, conquistar um bem, possuir uma excelência, transformar-se em
alguém dotado de virtude, de virtuosismo, de arete, na compreensão arcaica (Cf. SNELL, 2001, p. 168), seria,
de certa maneira, trazer à vida pessoal, trazer também à cidade essas virtudes, esse virtuosismo. Várias
serão as formas do homem se ordenar, ganhar excelência, virtude e virtuosismo, conquistar um bem. Por
isso, para o homem antigo, a interrogação sobre o que é o bem é a questão central e está ligada a arete. No
modelo de vida, baseado na arete, expresso nas epopéias homéricas, é possível verificar que a ética, a
excelência, está identificada à situação natural e espontânea de determinadas pessoas, que são aquelas que
se autodenominam melhores, são os aristoi os melhores, os excelentes, os bem nascidos. Exemplo desse
excelência é expresso por Homero, na Ilíada, nas palavras de Odisseu, quando este se encontra sozinho e
cercado pelo exército troiano:
Fica só Odisseu, ínclita-lança. Mais nenhum Aqueu com ele, todos aterrados. Fremente, fala então
ao seu mega-ardoroso-coração: “Sofro - ai de mim! -, fujo, temeroso, da turba, e será um grande
4
Não pretendo entrar aqui nas minudências sobre a autoria desses dois poemas. A questão da autoria da Ilíada e da Odisséia, vem
se arrastando a muito tempo na crítica especializada. A questão é saber se, através do estilo, é possível saber se a autoria é de um
único autor ou se são vários autores com o mesmo estilo. Para maiores detalhes, remete o leitor ao belo texto introdutório sobre
essa temática: SCHÜLER. Donaldo. A construção da Ilíada. Porto Alegre: L&PM, 2004. Para o meu propósito aqui esses detalhes
não são relevantes.
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mal; pior se me prendem sozinho. Aos outros Dânaos, o Croníade pôs em fuga. Pensar nisso, por
que, coração? Só vis largam a luta. Valentes resistem, feridos ou ferindo”. Tudo isso remoía em sua
mente e eu seu ânimo, quando os Troianos, portadores-de-escudos, em levas acorrem e o cercam,
[....]. (Ilíada, XI, 401-414).
Essas pessoas, exemplificadas, aqui, na figura de Odisseu, são melhores porque possuem um bem
que lhes foi outorgado, que lhes foi transmitido pela estirpe ou pelo sangue. São os descendentes das
grandes famílias, ou até mesmo descendentes de deuses. Esse é um modelo de virtude, obviamente,
aristocrático, que permite ao bem nascido, ao de sangue nobre, ser considerado de fato e de direito como
alguém dotado de excelência, sem precisar provar isso, mas, apenas, manifestar isso. Odisseu não precisa
conquistar o bem, um estilo nobre e melhor de ser. Ele precisa, simplesmente, dar vazão a essa nobreza que
lhe é inerente e inata.
A exemplo de Odisseu, Aquiles é o protótipo do perfeito cavaleiro da época homérica arcaica: cortês,
cavalheiresco, de boas maneiras, fino e polido no trato social. Mas se é em Aquiles que melhor se realiza este
ideal, é evidente que não se chega lá espontaneamente, antes se pressupõe uma educação apropriada. É
sobre essa educação que Homero nos fala no canto IX, quando põe na boca de Fénix, o velho preceptor e
educador de Aquiles, um resumo sucinto de toda a educação de Aquiles, enquanto modelo/exemplo de uma
educação nobre:
Peleu, domador-de-concéis, quando, há tempo, da Ftia te mandou a Agamêmnon, enviou-me
contigo; eras muito jovem, inexperiente ainda da guerra crua e dos debates da ágora, onde os
nobres formam-se. Por isso me mandou, para que te fizesse na oratória eminente, eficiente nas
obras (HOMERO, Canto IX, 737-445).
Esses versos, definem bem a arete da dos poema homéricos e consagra o ideal educativo presente
no período da composição dessa obra, ou seja, período imediatamente anterior ao nascimento da filosofia. No
entanto, essa educação, como é possível depreender da sua descrição, é uma educação aristocrática. Ser
um aristoi, como superlativo, significava ser, dentre todos, o mais valente, o mais conceituado. Essa posição
levava os indivíduos a moldarem o seu comportamento, requeria que cada um dentre eles se comportasse
como o primeiro, conforme o próprio significado do verbo aristein5. Contudo, esta arete procurada, descrita
5
A palavra aristeia, oriunda da família etimológica de aristeuei, com o passar do tempo, passou a designar a descrição dos
combates valorosos entre dois guerreiros. Na Ilíada, essa descrição era feita como prêmio ao vencedor frente ao seu feroz
adversário. O substantivo neutro aristeion é o subtítulo de alguns cânticos da Ilíada. O tradutor Haroldo de Campos empregou uma
palavra que reproduz o mesmo sentido. Em vez de dizer a aristeia de Diomedes (canto V) ele preferiu dizer A gesta de Diomedes.
Na mesma linha, a gesta de Agamêmnon (canto XI), a gesta de Menelau (canto XVII), a gesta de Pátroclo, também chamada
Patrocleia, (canto XVI). Se Homero era o bardo primitivo do povo grego, cada povo (pensava-se) tinha direito ao seu próprio
Homero. [...] Essa busca de uma poesia das origens se estendeu por toda Europa. Assim, Richard Wagner mesclou uma canção de
gesta do século XIII, a Canção dos Nibelungos, com outros poemas de origem escandinava para escrever e por em música O anel
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nos poemas homéricos, ainda não é entendida como virtude, como vai ser no período clássico, mas
simplesmente como excelência, como superioridade. Arete designa um atributo próprio da nobreza, um
conjunto de qualidades físicas, espirituais e morais tais como: a bravura, a coragem, a força e a destreza do
guerreiro, a eloquência e a persuasão, e, acima de tudo, a heroicidade, entendida como a fusão da força com
o sentido moral.
Este ideal de homem, o homem de ação - cujo modelo exemplar é Aquiles - e o homem de sabedoria,
protagonizado por Ulisses, perdurarão na Grécia, mesmo durante a época clássica. A realização dos grandes
festivais e dos Jogos Pan-helénicos são bem a prova disso6. Nesses festivais e, sobretudo, nos jogos, a
combatividade e a competitividade constituíam o espírito do concurso onde o prêmio, para o vencedor, não
tinha valor pecuniário, pois era uma coroa confeccionada a partir das folhas de árvores simbólicas para os
diversos Deuses em honra dos quais os Jogos eram celebrados. O que estava em jogo (e era heroicamente
defendido) era honra e a glória, a superioridade e a heroicidade, frente aos membros da sua cidade e frente
às demais cidades. Um vencedor dos jogos Pan-helênico, em Atenas, era recebido com festa e em sua honra
entoavam-se cânticos, compostos por grandes artistas. A cidade costumava pagar todas as despesas com
alimentação servidas no Pritaneu.
A Arete, descrita na Odisseia, é um pouco diferente, pois aí é narrado o regresso de Ulisses a casa,
após a guerra de Tróia. A arete prefigurada em Ulisses é uma arete que transcende a arete apresentada na
Ilíada. Ulisses, enquanto herói-modelo, junta à força, a coragem, a bravura e eloquência, a astúcia, a manha,
o engenho e a inteligência. É essa arete mais refinada e complexa que permite a Ulisses vencer as peripécias
do caminho de volta, narrada nos vários percalços que ele enfrentou durante o regresso à Ítaca. Não por
acaso, no poema, o seu epíteto mais comum é o herói polymaketos (de mil artifícios, mil combates). Assim
como na Ilíada, também na Odisséia, essas qualidades são incutidas e desenvolvidas através do processo de
formação individual.
É mister notar aqui que a primeira parte da Odisséia (cantos I a IV), pode ser considerada o primeiro
manual de pedagogia como se conhece hoje. É nessa parte inicial da Odisséia, que o autor narra todo o
dos Nibelungos, ressuscitando assim o espírito de Homero e o da tragédia grega para fazer com eles uma epopéia das origens
germânicas. (VIDAL-NAQUET, 2002, p.123)
6 Faço uma distinção aqui entre os grandes festivais e os jogos. Os festivais (as Panateneias e as Grandes Dionísias), apesar de
serem competições festivas e comemorativas, incluíam várias provas atléticas e recitação dos Poemas Homéricos. Os Jogos Panhelénicos (os Olímpicos, os mais importantes e prestigiados dos Jogos, realizados a cada quatro anos, em Olímpia perto da cidadeestado de Elis, em homenagem a Zeus; os jogos Píticos realizados a cada quatro anos, perto de Delfos, em homenagem a Apolo;
os jogos Nemeus realizados a cada dois anos, perto de Neméia, também em homenagem a Zeus; e os jogos Ístmicos realizados a
cada dois anos, perto de Corinto, em homenagem a Poseidon) como o próprio nome diz, eram composto essencialmente de
competições. Para mais detalhes, remeto ao excelente livro de SHEID, John; SVENBRO, Jesper. Le métier de Zeus (2003). Uma
edição em português deste livro está sendo preparada pela Editora CMC (Porto Alegre, 2010).
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processo educacional de Telêmaco, filho de Ulisses. Essa parte está voltada à descrição da educação de
jovem, ministrada pela deusa Atena, disfarçada de Mentes ou Mentor, amigo e hóspede de seu pai, que o
poema descreve logo no canto I. Graças a essa educação, Telêmaco pode ser transformado, pode adquirir
uma arete digna e a altura do seu destino de herói: de jovem dócil e passivo do começo do poema, torna-se o
príncipe consciente dos seus deveres, o companheiro de luta, o filho valente e ousado que ajudará o pai, na
sua vingança, a enfrentar os pretendentes de Penélope.
Em ambas as narrativas, tanto na Ilíada quanto na Odisséia, a educação proposta traz junto a si dois
princípios básicos: 1. a educação adequada é aquela que corresponde ao perfil do educando; 2. a educação
fundada no exemplo vivo ou, melhor, no exemplo mítico. Em outras palavras, uma educação calcada em um
paradigma. O herói-modelo é instituído e descrito como exemplo a ser seguido. Imitar os heróis, nessas duas
descrições homéricas, é ter a capacidade de despertar, através da emulação, para atos e feitos heróicos,
plenos de arete heróica.
Homero é, entre todos os poetas gregos, considerado o maior educador da Grécia. De fato, a tradição
homérica e o ideal educativo que nela se propõe são transmitidos oralmente, de geração em geração, pelos
aedos e rapsodos. Note-se, essas narrativas não estão misturadas à sofistica e não são narrativas técnicas
que possuem a função de ensinar uma arte. Talvez, por isso, Homero goze de tamanho reconhecimento
pelos seus préstimos à formação do ocidente que levou Werner Jaerger a afirmar: “Nele [Homero], pela
primeira vez, o espírito pan-helênico atingiu a unidade da consciência nacional e imprimiu o seu selo sobre
toda a cultura grega posterior (JAEGER, 1995, p. 84).
Como se sabe, os gregos nunca chegaram a formar uma unidade política, em termos geográficos. A
separação política e a organização em cidades-estados poderia ser um empecilho para a união espiritual dos
gregos. No entanto, sempre houve uma unidade lingüística. A língua grega sempre foi o texto/tecido que
permitiu unir as diversas cidades-estados. Além da língua, outros elementos presidem essa união: os jogos
pan-helênicos, os grandes santuários religiosos e, sobretudo, a mesma cultura. Esse espírito, designado aqui
de pan-helênico, que aparece claramente definido no Panegírio de Isócrates “[...] emprega o nome de helenos
não mais à raça, mas à cultura, e de preferência chama helenos não às pessoas que participam de nossa
educação, mas às da mesma origem que nós” (ISÓCRATES, 1956, 50). Como é possível depreender, para
além de Homero, inegavelmente o mais influente, os feitos dos heróis e do povo grego são cantados e
recitados por inúmeros poetas.
Brevemente, não posso deixar de mencionar e destacar a obra de Hesíodo. O autor da Teogonia e
dos Trabalhos e dias, introduz outra concepção de arete. Hesíodo dá um passo além dos poemas homéricos,
aproximando o herói-modelo do homem comum: homem que trabalha e labuta a terra. Hesíodo re-significa a
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dimensão do trabalho, para em seguida, utilizá-lo como modelo para aquisição dos demais bens, inclusive da
mais nobre arete, que é a honra. Quando ele afirma, no verso 311: “O trabalho, desonra nenhuma, o ócio
desonra é!” (HESÍODO, 2008, p. 43), está fazendo um resgate da dimensão do trabalho e, junto com ele, um
elogio da justiça7, enquanto valor fundamental que constitui o tema principal do seu poema e um dos núcleos
centrais do seu mundo moral. É através da prática da justiça, que o homem se distingue dos animais e
ambos, trabalho e justiça, conduzem à arete, ou seja, ao mérito e à glória do homem sob a terra.
4 A educação moralista de Platão
Se é incontestável que os poetas foram os primeiros educadores do mundo grego, esse título
honorífico de pioneirismo na educação grega, não é devido apenas ao aspecto cronológico, mas também ao
fato de que a influência desse modelo de educação perdurou muito além do seu tempo. A influência de
Homero no processo formativo dos gregos é tamanha que, saber de cor os seus poemas, era sinônimo de
homem cultivado. Testemunha isso, várias fontes da antiguidade, embora a duas mais importantes seja o
testemunho de Platão e de Xenofonte, exemplos máxime, dado que ambos são visceralmente contra este tipo
de educação e a deploram. Até a época clássica, foram mantidos essa forma de educação tradicional e o
ideal educativo legados de Homero.
No entanto, esse ideário educativo, voltado para constante busca da arete sofreu uma grande
transformação no período de transição entre o período arcaico e o período clássico. Na Grécia clássica, não
bastava cobrir-se de honra e glória, como nos tempos homéricos, mas o objetivo foi ampliado e, agora, a
busca pela excelência atingia tanto a dimensão do físico (corpo) quanto à dimensão moral (alma). Esse ideal
encontra-se resumido na expressão Kalokagathia. Através da busca da Kalokagathia, ocorre a fusão entre
beleza e bondade, como atributos que o homem deveria procurar e deveria realizar. Esse ideal de harmonia,
expresso na arte, servia de modelo e inspiração para homem. O ideal de vida passou a ser governado pelo
lema “viver feliz e belamente”, aquilo para o qual os gregos cunharam a palavra eurritmia. Assim, o homem
grego passa a ser formado dentro do princípio da autarquia: através do crescente domínio de si, através da
libertação dos seus instintos, e do controle dos desejos e das paixões. O ideário do herói-modelo, expressão
7 Justiça é, agora, concebida como a lei dos homens. Nos poemas homéricos, Thémis era o termo utilizado para designar justiça.
Thémis diz respeito à justiça divina, a justiça definida e distribuída pelos Deuses ou pelo Destino (Moira). Hesíodo, diferente de
Homero, faz um elogia da justiça estabelecida e distribuída equitativamente pelos homens. Nesse sentido, Hesíodo ultrapassa
Homero e está mais próximo do conceito filosófico de justiça, ou seja, justiça compreendida enquanto Dyké. Esse é o termo que
designa a justiça que é devida a cada um, e é a justiça que funda a eunomia (a boa ordem), a ordem estabelecida pela própria
justiça, e a isonomia (a igualdade de direitos entre todos os cidadãos). Esse conceito de justiça está mais próximo da justiça
discutido, por exemplo, nos primeiros livros da República, por Platão.
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máxima da vazão dos instintos, é substituído pelo princípio da autarquia, conduzindo-o ao domínio dos seus
instintos através do condicionamento destes aos ditames da razão. Eis uma descrição sucinta e admirável
dessa autarquia, nas palavras de Platão, precedendo em vários séculos os moralistas cristãos:
Cálicles: Que queres dizer com isso? [comandar a si mesmo]
Sócrates: Digo que cada um deve comandar a si mesmo. Ou não haverá necessidade de ninguém
comandar-se a si mesmo, mas apenas aos outros?
Cálicles: Que entendes por comandar a si mesmo?
Sócrates: Não se trata de nada abstruso; a esse respeito penso como todo mundo: ser temperante e
dono de si mesmo, e dominar em si os prazeres e apetites (PLATÃO, Górgias, 491d-e).
É lógico que um moralista da estatura de Platão - capaz de conceber tal definição de autarquia -, é
hábil quando se trata de oferecer uma receita para que cada um possa realizar esse ideal. Estou certo que
essa interpretação só pode ser entendida dentro da concepção de democracia/estado, concebida por Platão e
com o surgimento e aperfeiçoamento da sofística como técnica. Para alcançar tal ideal, Platão propõe aos
indivíduos diversas atividades, tais como: a ginástica (para desenvolver o corpo), a música, a leitura e o canto
(para o bom desenvolvimento do espírito). Tal programa educativo visava a desenvolver no homem uma
qualidade muito desejada e procurada: a temperança (sofrosune), que implica um perfeito domínio de si,
aliando sabedoria e ação consciente, fundadas na sabedoria. No Protágoras, Platão faz um esboço geral da
educação que as crianças deveriam receber do estado:
Desde que ela compreende o que se lhe diz, a mãe, a ama, o preceptor e o próprio pai conjugam
esforços para que o menino se desenvolvo da melhor maneira possível; toda palavra e toda ato lhes
enseja oportunidade para ensinar-lhe o que é justo ou o que é injusto, o que é honesto e o que é
vergonhoso, o que é santo e o que é ímpio, o que pode ou o que não pode ser feito. [...]. Depois, o
enviam para a escola e recomendam aos professores que cuidem com mais rigor dos costumes do
menino do que do aprendizado das letras e da cítara. [...]. De seguida, entregam-nos os pais ao
professor de ginástica, para que fiquem com o corpo em melhores condições de servir o espírito
virtuoso, [...]. Quando saem da escola, a cidade, por sua vez, os obriga a aprender leis e a tomá-las
como paradigma de conduta, para que não se deixem levar pela fantasia a praticar qualquer
malfeitoria. (PLATÃO, Protágoras, 325c-326d).
Não é difícil observar que a educação ateniense, descrita por Platão, tinha duas finalidades claras: 1.
incutir no cidadão, desde a mais tenra idade, plena harmonia e domínio de si; 2. desenvolver no cidadão a
fidelidade e obediência as leis do estado. Em síntese, essa é a ideia de autarquia desenvolvida por Platão:
não basta ser apenas um indivíduo livre e autocontrolado. Agora no estado/democracia, deve ser livre e
autocontrolado, em conformidade com a conjuntura sócio-política. O objetivo principal da educação, ao indicar
a kalokagathia como meio para alcançar a arete individual, visava sempre à formação cívica. Esse processo
educativo suplantou a educação baseada no modelo do herói e passou a desenvolver, cada vez mais, nos
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indivíduos o senso de cidadania. Existe certa coincidência entre a filosofia de Platão e Aristóteles, nesse
pormenor: para ambos, a educação é um processo de preparação do indivíduo para o exercício da cidadania.
Para Platão, o indivíduo só existe enquanto cidadão à medida que habita a Polis, segue suas leis e tem a sua
vida afetada por ela. Aristóteles vai além de Platão, afirmando que não apenas o qualificativo de cidadão
estava devotado a Polis, mas que ela é o lugar onde o homem se diferencia dos animais, passando da mera
vida natural Biós politikos, (para transformar-se em animal...) transformando-se em animal político (zoon
politikon).
5 A sofística como ferramenta educativa
Com o estabelecimento das cidades-estados e o fim das guerras de conquistas, as cidades como
Atenas e Esparta sentiram necessidade de uma nova educação, pois o antigo modelo educativo, baseado na
ginástica e na música, não mais atendida às necessidades do estado nem correspondia às novas
necessidades individuais, nem às novas exigências sociais e políticas. Como se sabe, a forma democrática
de organização do governo foi a forma escolhida pela cidade-estado de Atenas. Nesse novo cenário, a
exigência de todos os indivíduos enquanto homens livres, participantes ativos na construção do estado e da
vida pública tornou-se um dever cívico inalienável. Para uma participação efetiva nas assembléias, tornou-se
indispensável os dotes de eloquência e cada vez mais foi exigido o afeiçoamento dos cidadãos à oratória. É
nesse contexto que surgiu uma nova estirpe de “educadores”, chamados “sofistas”. Eles foram os primeiros
professores da história a oferecerem, a troco de dinheiro, o ensino da “virtude”, o ensino da arete política.
Mais: a arete deixou de ser uma virtude ideal e aspirada por todos e passou a ser definida como arte da
política como techné política, como deixa entrever o diálogo entre Protágoras e Sócrates:
Protágoras: [...] Essa disciplina é a prudência nas suas relações familiares, que porá em condições
de administrar do melhor modo sua própria casa e, nos negócios da cidade, o deixará mais do que
apto para dirigi-los e para discorrer sobre eles.
Sócrates: Será que apanhei bem o sentido do que disseste? perguntei; quero crer que te referes à
arte da política e que promete formar bons cidadãos.
Protágoras: Nisso mesmo, Sócrates, respondeu, é que a minha profissão consiste. (PLATÃO,
Protágoras, 319a).
Os sofistas convertem, pois, a educação numa técnica ou numa arte, na qual eles são mestres e, por
isso, capazes de transmiti-la e ensiná-la, aos jovens. Mas essa techne política, em conexão com as
finalidades práticas que se propõe - formação de homens de Estado e de dirigentes da vida pública - vai
conduzir, necessariamente, à valorização do homem, cidadão individualmente considerado, e vai, igualmente,
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orientar-se num sentido amoral ou mesmo imoral. Indubitavelmente que o centro da vida política é o homem
(daí falar-se em humanismo, no giro antropocêntrico que a sofística implica), mas o homem individual (de
onde surge o individualismo sofístico). Nesse sentido, o humanismo sofista não é senão um individualismo ou
um relativismo total, como é bem conhecido a paradigmática frase de Protágoras8.
Indubitavelmente, também, que o homem, assim situado no coração da Pólis, quer vencer na vida
política, quer fazer valer os seus interesses ou as suas convicções, quer ganhar um lugar de destaque, quer
ser eleito para cargos públicos, quer ser governante e aceder ao poder. Para isso, para ter êxito político,
precisa saber falar bem, encantar o auditório, construir discursos persuasivos, formular os argumentos que
justifiquem e validem as suas posições, fazendo-as prevalecer como as melhores. Tudo isso,os sofistas
poderiam viabilizar, através da arte da oratória, da retórica e da dialética, sem que fosse necessária uma
virtude especial.
E se a competição se desse com representantes de qualquer outra profissão, conseguiria fazer
eleger-se o orador de preferência a qualquer outro, pois não há assunto sobre que ele não possa
discorrer com maior força de persuasão diante do público do que qualquer outro profissional. Tal é a
natureza e a força da arte da retórica (PLATÃO, Górgias, 456c).
Sendo assim, esse conteúdo é esvaziado de sentido, pelo menos de sentido ético, e o discurso
reduz-se, por isso mesmo, a um mero exercício tecnicista, a uma maestria ou a um virtuosismo técnico. O
domínio dessa técnica permite construir os argumentos necessários para fazer valer este ou aquele ponto de
vista, conforme os interesses do momento e independentemente da contradição que possa existir entre esses
pontos de vista. Entram assim em crise os sacrossantos valores da tradição: verdade, justiça, virtude, retidão.
Esses ideais não fazem mais parte do ideário do ensino sofístico, pois agora o que importa é vencer, ou, no
máximo, o que importa é o que é bom para mim. Com os sofistas, todos os valores, até então, tidos como
absolutos, são relativizados.
A dialética aplicada à política afasta o homem da ética. Esse é o tema central do diálogo Górgias,
pois o importante é saber o que é a retórica ou oratória, não enquanto ciência, mas enquanto técnica. Platão
chega a equiparar os sofistas aos oradores: “Sofistas e oradores são a mesma coisa” (PLATÃO, Górgias,
520b). Não admira que os sofistas vão ser acusados de imoralidade, de administrar uma educação perversa e
pervertida, de corromper a juventude e de transmutar os valores tradicionais, minando as bases da ordem
social e política estabelecida. Esta situação é caricaturizada e ridiculariza por Aristófanes em As Nuvens.
O ponto central do pensamento de Protágoras é a tese do homem-medida, exposta por Platão em Teeteto 152a e confirmada por
Sexto Empírico em Contra os Matemáticos VII 60: “O homem é a medida de todas as coisas, das que são como são e das que não
são como não são”. No mesmo livro, em Teeteto 152b-c, Platão explica essa tese do homem-medida.
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Dentro desse contexto que a missão de Sócrates se estabelece como “missão divina”: missão de reconstruir
a conexão da cultura do espírito, da cultura intelectual com a cultura moral e política; missão de situar o ethos
no coração do homem e situar o homem no centro da atividade política.
Ao longo dos diálogos platônicos, são muitas as vezes que Sócrates se escandaliza e considera um
paradoxo o fato de que, para alguns ofícios, seja necessária uma competência específica, não sendo o
mesmo válido para os governantes e políticos. O ensino que os sofistas proporcionavam, enquanto mestres
de arete política, estava longe de corresponder a presunção de uma educação completa. Eles não defendiam
mais os ideais educativos que não fossem viáveis, muito embora, eles ensinassem os homens a discursar
elegantemente nas assembléias, chegando até mesmo ao ponto de torná-los hábeis no uso de quaisquer
meios para realizar as suas ambições.
É comum a todos os sofistas considerarem-se mestres da arete política. Existe, no entanto, uma
divergência entre o modo de concebê-la e a maneira para atingir tal missão. Para uns, a educação que levará
ao domínio da arte política consiste na transmissão de um saber enciclopédico, de uma polimatia da qual se
gabam e se dizem mestres - o representante mais significativo desta tendência é Hípias (Cf. PLATÃO, Hípias
Menor, 368 b - 368), o qual, contrariamente à maior parte dos outros sofistas, atribui um alto valor formativo
às matemáticas, (Cf. PLATÃO, Protágoras, 318), disciplinas estas que, mais tarde, constituíram o quadrivium.
Para os demais, do qual o principal representante é Protágoras, a educação é, essencialmente, formação,
formação do espírito e formação do cidadão, e o modo privilegiado de consegui-la é através do ensino da
gramática, da oratória e retórica e da dialética, disciplinas que, na Idade Média, formaram o chamado trivium
e juntamente com o quadrivium, constituíram as sete artes liberais.
6 Conclusão
A verdadeira paidéia, conscientemente procurada e dentro desta tradição que vem dos gregos, não
pode descurar a importância dos sofistas na formação do idearia educativo de hoje. Afinal de contas, no
ensino de filosofia, o método e a prática mais recorrente e eficaz é o método sofistico. Cada vez mais, a
prática pedagógica do professor de filosofia está associada ao ensino de técnicas, quer seja para ler um
texto, para compreender o mundo entorno, quer seja para compreender a si mesmo ou fazer análise de
conjuntura. Não é este também o papel que as outras disciplinas esperam que a filosofia realize? A ligação da
prática do ensino de filosofia hoje e aos sofistas não é algo negativo, dado que entre as novidades
introduzidas pelos sofistas destaca-se o fato de terem sido os primeiros defensores de um processo educativo
que não termina com a saída da criança da escola. Esta idéia de que a filosofia é uma ciência para pessoas
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adultas e que ela é mãe de todas as ciências é uma herança dos sofistas que até hoje está presente no
nosso ideário educativo. Se, no período homérico, existiu o herói-modelo, hoje nós podemos falar do
professor-modelo, aquele que inspira alunos, através de sua oratória e retórica.
O ideal grego de educação é o primeiro que aparece na história de maneira consciente e caracterizase, em geral, pela formação do homem político, o homem da pólis, do cidadão, tanto no aspecto civil como no
aspecto bélico. Esse ideal sofre uma evolução a partir dos tempos heróicos de Homero, onde predomina o
guerreiro, até à época de Péricles, em que sobressai o político. Dentro desse desenvolvimento, a educação
grega tem como aspiração a excelência - arete -, mais tarde esse ideal é completado pelo de kalokagathia, o
ideal da perfeição do corpo e da alma em beleza, bondade, sabedoria e justiça do indivíduo na comunidade
pública. Mas todo o ideal grego aparece, finalmente, como paidéia.
Referências
HESÍODO. Os trabalhos e os dias. São Paulo: Iluminuras, 2008. (Bilíngüe)
ISOCRATE. Discours. Paris: Les Belles Lettres, 1950, 1956. (Vol. III, II).
JAEGER, W. Paidéia: a formação do homem grego. 3 ed. São Paulo: Martins fontes, 1995.
PLATÃO. Timeu, Crítias, O segundo Alcebíades, Hípias menor. 3. ed. Belém: UFPA, 2003.
______. Protágoras, Górgias, Fedão. 2. ed. Belém: UFPA, 2002.
______. O banquete, Apologia de Sócrates. 2. ed. Belém: UFPA, 2001.
______. Teeteto, Crátilo. 3. ed. Belém: UFPA, 2001.
______. A república. 8. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1996.
SCHÜLER. D. A construção da Ilíada. Porto Alegre: L&PM, 2004.
SHEID, J; SVENBRO, J. Le métier de Zeus: mythe do tissage et du tissu dans le monde grégo-romain. Paris:
Editions Errance, 2003.
ULLMANN, R. A. Amor e sexo na Grécia antiga. Porto Alegre: Edipucrs, 2005.
VIDAL-NAQUET, P. O mundo de Homero. São Paulo: Cia. das Letras, 2002.
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