O MÉTODO SOFÍSTICO E O ENSINO DA FILOSOFIA 1 Introdução
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O MÉTODO SOFÍSTICO E O ENSINO DA FILOSOFIA 1 Introdução
ÁGORA – Revista Eletrônica ISSN 1809 4589 Página 79 - 91 O MÉTODO SOFÍSTICO E O ENSINO DA FILOSOFIA Jasson da Silva Martins∗ Resumo O ensino da filosofia sempre esteve vinculado ao desenvolvimento pleno de cada indivíduo. Esse ideário, ao longo da história, foi sendo aperfeiçoado, mas nunca suprimido. Neste texto pretendo apresentar o ideário que movia a formação do indivíduo nos poemas homéricos, através do herói-modelo, centrada na externalização da virtude guerreira como a verdadeira virtude (arete). Em seguida, a partir de alguns diálogos de Platão, apresentarei o traço moralizante que esse ideário recebeu na formação do cidadão dentro das Cidades-Estados, onde a formação da virtude deveria ser externalizada no vigor e na beleza (kalokagathia). Por fim, apresentarei uma crítica ao ideário platônico, realizada pelos sofistas Górgias e Protágoras. A crítica dos sofistas se justifica e está muito próxima ao ideário filosófico de hoje, à medida que faz uma crítica ao modelo da formação baseada nos heróis (poemas homéricos) ou baseada no filósofo ideal (Platão). Palavras-chave: Ensino. Método. Paideia. Virtude. Filosofia Abstract: The teaching of philosophy has always been linked to the full development of each individual. This notion is, throughout history, has been perfected, but never deleted. In this paper I intend to present the ideas that moved the formation of the individual in the Homeric poems, through the hero model, focused on outsourcing of warrior virtue, as the true virtue (arete). Then, from some of Plato's dialogues, I will present the trace moralizing ideals that received the training of citizens within the city-states, where the training should be outsourced because of the vigor and beauty (kalokagathia). Finally, I present a critique of Platonic ideals held by the Sophists Gorgias and Protagoras. The criticism of the sophists is justified and is very close to the philosophical ideas of today, as he makes a criticism of the model training based on the heroes (Homeric poems) or based on the ideal philosopher (Platão). Keywords: Teaching. Method. Paideia. Virtue. Philosophy 1 Introdução Comumente, considera-se que a educação na Grécia Antiga divide-se em dois períodos históricos: o primeiro, o período antigo, compreende a educação homérica (e abrange a educação espartana e ateniense), o segundo, o novo período, refere-se à educação no século de Péricles (e corresponde ao período áureo da cultura grega). Este último período é marcado, principalmente, pelo discurso e presença dos Sofistas, tendo como apogeu os chamados filósofos/educadores (Sócrates, Platão e Aristóteles). Depois, segue-se o período helenístico, cujas marcas são a expansão do pensamento ocidental e, sobremaneira, a conquista da Grécia pelos macedônios e, em seguida, pelos romanos. ∗ Doutorando, Bolsista CAPES/PROSUP, em Filosofia pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS). E-mail: [email protected]. Esse texto foi apresentado no IX Simpósio Sulbrasileiro sobre o ensino de Filosofia: “A filosofia e seu ensino: desafios emergentes”, realizado no IPA-Porto Alegre entre os dias 19-21 de maio de 2010. _________________________________________________________________________________________________________ www.agora.ceedo.com.br [email protected] Cerro Grande – RS Os textos, opiniões, dados, análises e interpretações, bem como citações, plágios e incorreções, são de responsabilidades legais, morais e econômicas ou outras quaisquer, do/a(s) seu/sua(s) autor/a(es). ÁGORA – Revista Eletrônica ISSN 1809 4589 Página 79 - 91 Com a conquista do Império Romano, Atenas perde a sua posição de centro cultural do mundo em favor de Alexandria. Mesmo assim, a Grécia triunfou no seio de toda a cultua ocidental, a ponto de podermos afirmar que somos herdeiros dos gregos e fiéis depositários do seu legado cultural, em três traços formadores essenciais: a filosofia grega, o direito romano e a religião cristã. A educação grega, sobretudo, a educação ateniense no seu apogeu, universalizada pelos romanos, patenteia ainda hoje as suas influências tanto no modo como concebemos o que seja educação, como nos ideais educativos almejados1. Em matéria de educação, os gregos não só definem o modelo a ser seguido como indicam a pedagogia a que deve ser seguida para todo o ocidente. Somos, então, forçosamente levados a concluir que uma genealogia das ideias filosófico-pedagógicas, com sentido e significado para a nossa realidade educativa atual, começa na Grécia, pois foi lá que o problema da educação como um todo foi pela primeira vez apresentado. Qual é, afinal de contas, esse ideário educativo dos gregos? Na atualidade, podemos nos considerar herdeiros desse ideário educacional, forjado na Grécia? O que significa assumir essa herança metodológica e filosófica na atualidade? 2 Da paidéia à arete: o ideal educativo na Grécia A preocupação com o ensino, de modo geral, foi dominante na Atenas do século V a.C. Dois fatores são determinantes e evidentes: primeiro, o aparecimento dos Sofistas que se apresentam com novas propostas e soluções educativas, com um novo plano de estudos e com novos mestres e com novos métodos; segundo, a presença de Sócrates que se diz impelido a realizar uma única missão, uma “missão divina”, que ele entende como “missão educativa”, que o conduz a questionar o ensino e o aprendizado do seu tempo. A justificativa da missão socrática está intimamente ligada ao modelo de ensino até então vigente. Ante o modelo de educação descrito nos poemas homéricos, no que diz respeito à aquisição da virtude (arete), Sócrates é taxativo: “Qual é a razão de degenerarem muitos filhos de pais excelentes?” (PLATÃO, Protágoras 326e). Minha contribuição parte do pressuposto que é possível – até mesmo necessário – ler as obras A república e As leis como tentativas de resposta de Platão a este questionamento socrático. Na mesma perspectiva, é possível ler a Ética a Nicômanos e também a Política, de Aristóteles, como tentativa de solucionar esse impasse na formação do cidadão, habitante da polis. 1 A Paideia e a Filosofia são, talvez, entre todas, as maiores e mais originais criações culturais do gênio e do espírito grego. A isso não é alheia, a sua eterna presença e a sua tenaz influência, ao longo da história, até aos nossos dias. Não é supérfluo fazer notar aqui que a esta reflexão é a partir de um ponto de vista ocidental. Não é possível, no entanto, hoje em dia, descurar a importância história de princípios outros que não a filosofia grega, para determinados povos (hindus e chineses, sobretudo). _________________________________________________________________________________________________________ www.agora.ceedo.com.br [email protected] Cerro Grande – RS Os textos, opiniões, dados, análises e interpretações, bem como citações, plágios e incorreções, são de responsabilidades legais, morais e econômicas ou outras quaisquer, do/a(s) seu/sua(s) autor/a(es). ÁGORA – Revista Eletrônica ISSN 1809 4589 Página 79 - 91 Mas essas tentativas de solução não representam algo restrito ao campo da filosofia. Na literatura grega desta época, nas suas diferentes expressões - na poesia, na tragédia ou na comédia -, a razão última centrava-se na educação do indivíduo ou do grupo social. Pensem, por exemplo, nas Odes, de Píndaro; o Prometeu Acorrentado ou na Orestia, de Ésquilo; na Antígona, no Édipo Rei e na Electra, de Sófocles; na Medéia e em Orestes, de Eurípedes; em As nuvens e As rãs, de Aristófanes. Todas essas obras foram construídas sob o pano de fundo da educação - quer seja dos sofistas, quer seja dos poetas e tragediógrafos -, confrontando os modelos de educação, bem como a sua finalidade. No período clássico, o fio condutor, que guia a história das ideias na Grécia, não é mais a paidéia2, mas este conceito, com o advento da democracia, foi absorvido e sobrevive no conceito de arete. A arete exprime o genuíno ideário do processo educativo da Grécia, no período clássico, no que diz respeito à formação individual do cidadão. Nesse sentido, a palavra paidéia, em sua densidade semântica, é quase intraduzível ao nosso idioma. As discussões sobre o processo educativo na Grécia desse período, envolve esses dois conceitos – paidéia e arete – , chegando a quase sinonímia3. Em sua defesa, ao descrever o exercício da sua missão divina diante do tribunal, Sócrates, aproxima esses dois conceito: Outra coisa não faço senão perambular pela cidade para persuadir a todos, moços e velhos, a não vos preocupardes com o corpo nem com riquezas, mas pordes o maior empenho no aperfeiçoamento da alma, insistindo em que a virtude não é dada pelo dinheiro, mas o inverso: da virtude é que provém a riqueza e os bens humanos em universal, assim públicos como particulares. Se tais ensinamentos eu corrompo a mocidade, é que são, realmente, prejudiciais. Estará falando à toa quem afirmar que eu ensino coisa diferente (PLATÃO, Apologia de Sócrates, 2001, 30a-b). Quase a totalidade dos diálogos de Platão, tem como temática central a procura de uma definição de arete. Por vezes, esse tema da arete, enquanto a virtude superior, aparece travestido em outras manifestações, tais como, a procura da essência da coragem, a essência da sabedoria, a essência do amor, a essência do belo, a essência da justiça, etc. Essas características, que hoje em dia podemos chamar de valores, faziam parte da essência do homem virtuoso (Cf. PLATÃO, Ménon, 71). O tema da virtude, enquanto arete, é o tema central da educação do filósofo-rei, pois educar é, em última análise, tornar o homem melhor, aperfeiçoá-lo. Essa concepção de educação como ensino da virtude é visível também em Aristóteles, descrita 2 Cabe aqui um esclarecimento. Não utilizaremos a palavra paidéia como ideia diretriz do processo histórico da evolução da educação. A razão é muito simples. Esta palavra, com o sentido que utilizamos hoje, sinônimo de cultura, humanismo, formação, configuração, só aparece no século V. (Cf. JAEGER, 1995, 25). Anterior a esse período, o uso da palavra paidéia, como se encontra no texto, Os sete contra Tebas de Ésquilo, designava apenas a “criação dos meninos”. Em função do espaço, remeto?? o leitor ao esclarecedor capítulo “A pederastia como fator pedagógico” do livro do prof. Reinholdo Aloysio Ullman (Cf. ULLMANN, 2005, p. 103-108). 3 No Ménon, os sofistas reclamam dos professores de arete política e da sua paidéia que consistia em ensinar a techné politiké, ensino esse que permitiria o domínio da arete política: “E esses sofistas, que são os únicos a apresentarem-se como professores de virtude (arete) - crês que de fato o sejam?” (PLATÃO, Ménon, 104). _________________________________________________________________________________________________________ www.agora.ceedo.com.br [email protected] Cerro Grande – RS Os textos, opiniões, dados, análises e interpretações, bem como citações, plágios e incorreções, são de responsabilidades legais, morais e econômicas ou outras quaisquer, do/a(s) seu/sua(s) autor/a(es). ÁGORA – Revista Eletrônica ISSN 1809 4589 Página 79 - 91 na sua filosofia prática (Ética a Nicômacos), na qual ele procura demonstrar que a felicidade não é outra coisa senão tornar-se aquilo que se é, ou seja, a suprema felicidade do homem consiste em tornar-se aquilo que o homem é na sua essência: animal racional, animal possuidor de logos. 3 A educação sofística nos poemas homéricos Toda essa idéia de educação para a virtude, para tornar o homem virtuoso, melhor, feliz, aparece formulada muito antes do período clássico da filosofia. Os poemas, certamente, mais famosos e conhecidos de todo o ocidente, chamados poemas homéricos4 - a Ilíada e a Odisséia - descrevem o ideário educativo grego em seus primórdios. Em ambos os poemas, embora o modo de conceber não seja semelhante, o ideal de homem é definido pela arete. Na Ilíada, Agamêmnon, Ájax, Pátrocles, Diomedes, Menelau, Nestor, Ulisses - do lado dos Aqueus e Páris, Príamo, Hécuba e Andrómaca - da parte dos troianos, juntamente com Helena, representam todas as qualidades do homem ideal, prefigurado no herói-modelo Aquiles. Aquiles encarna o herói-modelo, pois é nobre, valente e corajoso. É o melhor, entre os melhores. Ele é o legítimo aristói (melhor), entre os seus semelhantes, aquele que, investido da arete que lhe é natural, exterioriza e transborda toda essa herança nas suas ações. Ordenar-se, tornar-se virtuoso, conquistar um bem, possuir uma excelência, transformar-se em alguém dotado de virtude, de virtuosismo, de arete, na compreensão arcaica (Cf. SNELL, 2001, p. 168), seria, de certa maneira, trazer à vida pessoal, trazer também à cidade essas virtudes, esse virtuosismo. Várias serão as formas do homem se ordenar, ganhar excelência, virtude e virtuosismo, conquistar um bem. Por isso, para o homem antigo, a interrogação sobre o que é o bem é a questão central e está ligada a arete. No modelo de vida, baseado na arete, expresso nas epopéias homéricas, é possível verificar que a ética, a excelência, está identificada à situação natural e espontânea de determinadas pessoas, que são aquelas que se autodenominam melhores, são os aristoi os melhores, os excelentes, os bem nascidos. Exemplo desse excelência é expresso por Homero, na Ilíada, nas palavras de Odisseu, quando este se encontra sozinho e cercado pelo exército troiano: Fica só Odisseu, ínclita-lança. Mais nenhum Aqueu com ele, todos aterrados. Fremente, fala então ao seu mega-ardoroso-coração: “Sofro - ai de mim! -, fujo, temeroso, da turba, e será um grande 4 Não pretendo entrar aqui nas minudências sobre a autoria desses dois poemas. A questão da autoria da Ilíada e da Odisséia, vem se arrastando a muito tempo na crítica especializada. A questão é saber se, através do estilo, é possível saber se a autoria é de um único autor ou se são vários autores com o mesmo estilo. Para maiores detalhes, remete o leitor ao belo texto introdutório sobre essa temática: SCHÜLER. Donaldo. A construção da Ilíada. Porto Alegre: L&PM, 2004. Para o meu propósito aqui esses detalhes não são relevantes. _________________________________________________________________________________________________________ www.agora.ceedo.com.br [email protected] Cerro Grande – RS Os textos, opiniões, dados, análises e interpretações, bem como citações, plágios e incorreções, são de responsabilidades legais, morais e econômicas ou outras quaisquer, do/a(s) seu/sua(s) autor/a(es). ÁGORA – Revista Eletrônica ISSN 1809 4589 Página 79 - 91 mal; pior se me prendem sozinho. Aos outros Dânaos, o Croníade pôs em fuga. Pensar nisso, por que, coração? Só vis largam a luta. Valentes resistem, feridos ou ferindo”. Tudo isso remoía em sua mente e eu seu ânimo, quando os Troianos, portadores-de-escudos, em levas acorrem e o cercam, [....]. (Ilíada, XI, 401-414). Essas pessoas, exemplificadas, aqui, na figura de Odisseu, são melhores porque possuem um bem que lhes foi outorgado, que lhes foi transmitido pela estirpe ou pelo sangue. São os descendentes das grandes famílias, ou até mesmo descendentes de deuses. Esse é um modelo de virtude, obviamente, aristocrático, que permite ao bem nascido, ao de sangue nobre, ser considerado de fato e de direito como alguém dotado de excelência, sem precisar provar isso, mas, apenas, manifestar isso. Odisseu não precisa conquistar o bem, um estilo nobre e melhor de ser. Ele precisa, simplesmente, dar vazão a essa nobreza que lhe é inerente e inata. A exemplo de Odisseu, Aquiles é o protótipo do perfeito cavaleiro da época homérica arcaica: cortês, cavalheiresco, de boas maneiras, fino e polido no trato social. Mas se é em Aquiles que melhor se realiza este ideal, é evidente que não se chega lá espontaneamente, antes se pressupõe uma educação apropriada. É sobre essa educação que Homero nos fala no canto IX, quando põe na boca de Fénix, o velho preceptor e educador de Aquiles, um resumo sucinto de toda a educação de Aquiles, enquanto modelo/exemplo de uma educação nobre: Peleu, domador-de-concéis, quando, há tempo, da Ftia te mandou a Agamêmnon, enviou-me contigo; eras muito jovem, inexperiente ainda da guerra crua e dos debates da ágora, onde os nobres formam-se. Por isso me mandou, para que te fizesse na oratória eminente, eficiente nas obras (HOMERO, Canto IX, 737-445). Esses versos, definem bem a arete da dos poema homéricos e consagra o ideal educativo presente no período da composição dessa obra, ou seja, período imediatamente anterior ao nascimento da filosofia. No entanto, essa educação, como é possível depreender da sua descrição, é uma educação aristocrática. Ser um aristoi, como superlativo, significava ser, dentre todos, o mais valente, o mais conceituado. Essa posição levava os indivíduos a moldarem o seu comportamento, requeria que cada um dentre eles se comportasse como o primeiro, conforme o próprio significado do verbo aristein5. Contudo, esta arete procurada, descrita 5 A palavra aristeia, oriunda da família etimológica de aristeuei, com o passar do tempo, passou a designar a descrição dos combates valorosos entre dois guerreiros. Na Ilíada, essa descrição era feita como prêmio ao vencedor frente ao seu feroz adversário. O substantivo neutro aristeion é o subtítulo de alguns cânticos da Ilíada. O tradutor Haroldo de Campos empregou uma palavra que reproduz o mesmo sentido. Em vez de dizer a aristeia de Diomedes (canto V) ele preferiu dizer A gesta de Diomedes. Na mesma linha, a gesta de Agamêmnon (canto XI), a gesta de Menelau (canto XVII), a gesta de Pátroclo, também chamada Patrocleia, (canto XVI). Se Homero era o bardo primitivo do povo grego, cada povo (pensava-se) tinha direito ao seu próprio Homero. [...] Essa busca de uma poesia das origens se estendeu por toda Europa. Assim, Richard Wagner mesclou uma canção de gesta do século XIII, a Canção dos Nibelungos, com outros poemas de origem escandinava para escrever e por em música O anel _________________________________________________________________________________________________________ www.agora.ceedo.com.br [email protected] Cerro Grande – RS Os textos, opiniões, dados, análises e interpretações, bem como citações, plágios e incorreções, são de responsabilidades legais, morais e econômicas ou outras quaisquer, do/a(s) seu/sua(s) autor/a(es). ÁGORA – Revista Eletrônica ISSN 1809 4589 Página 79 - 91 nos poemas homéricos, ainda não é entendida como virtude, como vai ser no período clássico, mas simplesmente como excelência, como superioridade. Arete designa um atributo próprio da nobreza, um conjunto de qualidades físicas, espirituais e morais tais como: a bravura, a coragem, a força e a destreza do guerreiro, a eloquência e a persuasão, e, acima de tudo, a heroicidade, entendida como a fusão da força com o sentido moral. Este ideal de homem, o homem de ação - cujo modelo exemplar é Aquiles - e o homem de sabedoria, protagonizado por Ulisses, perdurarão na Grécia, mesmo durante a época clássica. A realização dos grandes festivais e dos Jogos Pan-helénicos são bem a prova disso6. Nesses festivais e, sobretudo, nos jogos, a combatividade e a competitividade constituíam o espírito do concurso onde o prêmio, para o vencedor, não tinha valor pecuniário, pois era uma coroa confeccionada a partir das folhas de árvores simbólicas para os diversos Deuses em honra dos quais os Jogos eram celebrados. O que estava em jogo (e era heroicamente defendido) era honra e a glória, a superioridade e a heroicidade, frente aos membros da sua cidade e frente às demais cidades. Um vencedor dos jogos Pan-helênico, em Atenas, era recebido com festa e em sua honra entoavam-se cânticos, compostos por grandes artistas. A cidade costumava pagar todas as despesas com alimentação servidas no Pritaneu. A Arete, descrita na Odisseia, é um pouco diferente, pois aí é narrado o regresso de Ulisses a casa, após a guerra de Tróia. A arete prefigurada em Ulisses é uma arete que transcende a arete apresentada na Ilíada. Ulisses, enquanto herói-modelo, junta à força, a coragem, a bravura e eloquência, a astúcia, a manha, o engenho e a inteligência. É essa arete mais refinada e complexa que permite a Ulisses vencer as peripécias do caminho de volta, narrada nos vários percalços que ele enfrentou durante o regresso à Ítaca. Não por acaso, no poema, o seu epíteto mais comum é o herói polymaketos (de mil artifícios, mil combates). Assim como na Ilíada, também na Odisséia, essas qualidades são incutidas e desenvolvidas através do processo de formação individual. É mister notar aqui que a primeira parte da Odisséia (cantos I a IV), pode ser considerada o primeiro manual de pedagogia como se conhece hoje. É nessa parte inicial da Odisséia, que o autor narra todo o dos Nibelungos, ressuscitando assim o espírito de Homero e o da tragédia grega para fazer com eles uma epopéia das origens germânicas. (VIDAL-NAQUET, 2002, p.123) 6 Faço uma distinção aqui entre os grandes festivais e os jogos. Os festivais (as Panateneias e as Grandes Dionísias), apesar de serem competições festivas e comemorativas, incluíam várias provas atléticas e recitação dos Poemas Homéricos. Os Jogos Panhelénicos (os Olímpicos, os mais importantes e prestigiados dos Jogos, realizados a cada quatro anos, em Olímpia perto da cidadeestado de Elis, em homenagem a Zeus; os jogos Píticos realizados a cada quatro anos, perto de Delfos, em homenagem a Apolo; os jogos Nemeus realizados a cada dois anos, perto de Neméia, também em homenagem a Zeus; e os jogos Ístmicos realizados a cada dois anos, perto de Corinto, em homenagem a Poseidon) como o próprio nome diz, eram composto essencialmente de competições. Para mais detalhes, remeto ao excelente livro de SHEID, John; SVENBRO, Jesper. Le métier de Zeus (2003). Uma edição em português deste livro está sendo preparada pela Editora CMC (Porto Alegre, 2010). _________________________________________________________________________________________________________ www.agora.ceedo.com.br [email protected] Cerro Grande – RS Os textos, opiniões, dados, análises e interpretações, bem como citações, plágios e incorreções, são de responsabilidades legais, morais e econômicas ou outras quaisquer, do/a(s) seu/sua(s) autor/a(es). ÁGORA – Revista Eletrônica ISSN 1809 4589 Página 79 - 91 processo educacional de Telêmaco, filho de Ulisses. Essa parte está voltada à descrição da educação de jovem, ministrada pela deusa Atena, disfarçada de Mentes ou Mentor, amigo e hóspede de seu pai, que o poema descreve logo no canto I. Graças a essa educação, Telêmaco pode ser transformado, pode adquirir uma arete digna e a altura do seu destino de herói: de jovem dócil e passivo do começo do poema, torna-se o príncipe consciente dos seus deveres, o companheiro de luta, o filho valente e ousado que ajudará o pai, na sua vingança, a enfrentar os pretendentes de Penélope. Em ambas as narrativas, tanto na Ilíada quanto na Odisséia, a educação proposta traz junto a si dois princípios básicos: 1. a educação adequada é aquela que corresponde ao perfil do educando; 2. a educação fundada no exemplo vivo ou, melhor, no exemplo mítico. Em outras palavras, uma educação calcada em um paradigma. O herói-modelo é instituído e descrito como exemplo a ser seguido. Imitar os heróis, nessas duas descrições homéricas, é ter a capacidade de despertar, através da emulação, para atos e feitos heróicos, plenos de arete heróica. Homero é, entre todos os poetas gregos, considerado o maior educador da Grécia. De fato, a tradição homérica e o ideal educativo que nela se propõe são transmitidos oralmente, de geração em geração, pelos aedos e rapsodos. Note-se, essas narrativas não estão misturadas à sofistica e não são narrativas técnicas que possuem a função de ensinar uma arte. Talvez, por isso, Homero goze de tamanho reconhecimento pelos seus préstimos à formação do ocidente que levou Werner Jaerger a afirmar: “Nele [Homero], pela primeira vez, o espírito pan-helênico atingiu a unidade da consciência nacional e imprimiu o seu selo sobre toda a cultura grega posterior (JAEGER, 1995, p. 84). Como se sabe, os gregos nunca chegaram a formar uma unidade política, em termos geográficos. A separação política e a organização em cidades-estados poderia ser um empecilho para a união espiritual dos gregos. No entanto, sempre houve uma unidade lingüística. A língua grega sempre foi o texto/tecido que permitiu unir as diversas cidades-estados. Além da língua, outros elementos presidem essa união: os jogos pan-helênicos, os grandes santuários religiosos e, sobretudo, a mesma cultura. Esse espírito, designado aqui de pan-helênico, que aparece claramente definido no Panegírio de Isócrates “[...] emprega o nome de helenos não mais à raça, mas à cultura, e de preferência chama helenos não às pessoas que participam de nossa educação, mas às da mesma origem que nós” (ISÓCRATES, 1956, 50). Como é possível depreender, para além de Homero, inegavelmente o mais influente, os feitos dos heróis e do povo grego são cantados e recitados por inúmeros poetas. Brevemente, não posso deixar de mencionar e destacar a obra de Hesíodo. O autor da Teogonia e dos Trabalhos e dias, introduz outra concepção de arete. Hesíodo dá um passo além dos poemas homéricos, aproximando o herói-modelo do homem comum: homem que trabalha e labuta a terra. Hesíodo re-significa a _________________________________________________________________________________________________________ www.agora.ceedo.com.br [email protected] Cerro Grande – RS Os textos, opiniões, dados, análises e interpretações, bem como citações, plágios e incorreções, são de responsabilidades legais, morais e econômicas ou outras quaisquer, do/a(s) seu/sua(s) autor/a(es). ÁGORA – Revista Eletrônica ISSN 1809 4589 Página 79 - 91 dimensão do trabalho, para em seguida, utilizá-lo como modelo para aquisição dos demais bens, inclusive da mais nobre arete, que é a honra. Quando ele afirma, no verso 311: “O trabalho, desonra nenhuma, o ócio desonra é!” (HESÍODO, 2008, p. 43), está fazendo um resgate da dimensão do trabalho e, junto com ele, um elogio da justiça7, enquanto valor fundamental que constitui o tema principal do seu poema e um dos núcleos centrais do seu mundo moral. É através da prática da justiça, que o homem se distingue dos animais e ambos, trabalho e justiça, conduzem à arete, ou seja, ao mérito e à glória do homem sob a terra. 4 A educação moralista de Platão Se é incontestável que os poetas foram os primeiros educadores do mundo grego, esse título honorífico de pioneirismo na educação grega, não é devido apenas ao aspecto cronológico, mas também ao fato de que a influência desse modelo de educação perdurou muito além do seu tempo. A influência de Homero no processo formativo dos gregos é tamanha que, saber de cor os seus poemas, era sinônimo de homem cultivado. Testemunha isso, várias fontes da antiguidade, embora a duas mais importantes seja o testemunho de Platão e de Xenofonte, exemplos máxime, dado que ambos são visceralmente contra este tipo de educação e a deploram. Até a época clássica, foram mantidos essa forma de educação tradicional e o ideal educativo legados de Homero. No entanto, esse ideário educativo, voltado para constante busca da arete sofreu uma grande transformação no período de transição entre o período arcaico e o período clássico. Na Grécia clássica, não bastava cobrir-se de honra e glória, como nos tempos homéricos, mas o objetivo foi ampliado e, agora, a busca pela excelência atingia tanto a dimensão do físico (corpo) quanto à dimensão moral (alma). Esse ideal encontra-se resumido na expressão Kalokagathia. Através da busca da Kalokagathia, ocorre a fusão entre beleza e bondade, como atributos que o homem deveria procurar e deveria realizar. Esse ideal de harmonia, expresso na arte, servia de modelo e inspiração para homem. O ideal de vida passou a ser governado pelo lema “viver feliz e belamente”, aquilo para o qual os gregos cunharam a palavra eurritmia. Assim, o homem grego passa a ser formado dentro do princípio da autarquia: através do crescente domínio de si, através da libertação dos seus instintos, e do controle dos desejos e das paixões. O ideário do herói-modelo, expressão 7 Justiça é, agora, concebida como a lei dos homens. Nos poemas homéricos, Thémis era o termo utilizado para designar justiça. Thémis diz respeito à justiça divina, a justiça definida e distribuída pelos Deuses ou pelo Destino (Moira). Hesíodo, diferente de Homero, faz um elogia da justiça estabelecida e distribuída equitativamente pelos homens. Nesse sentido, Hesíodo ultrapassa Homero e está mais próximo do conceito filosófico de justiça, ou seja, justiça compreendida enquanto Dyké. Esse é o termo que designa a justiça que é devida a cada um, e é a justiça que funda a eunomia (a boa ordem), a ordem estabelecida pela própria justiça, e a isonomia (a igualdade de direitos entre todos os cidadãos). Esse conceito de justiça está mais próximo da justiça discutido, por exemplo, nos primeiros livros da República, por Platão. _________________________________________________________________________________________________________ www.agora.ceedo.com.br [email protected] Cerro Grande – RS Os textos, opiniões, dados, análises e interpretações, bem como citações, plágios e incorreções, são de responsabilidades legais, morais e econômicas ou outras quaisquer, do/a(s) seu/sua(s) autor/a(es). ÁGORA – Revista Eletrônica ISSN 1809 4589 Página 79 - 91 máxima da vazão dos instintos, é substituído pelo princípio da autarquia, conduzindo-o ao domínio dos seus instintos através do condicionamento destes aos ditames da razão. Eis uma descrição sucinta e admirável dessa autarquia, nas palavras de Platão, precedendo em vários séculos os moralistas cristãos: Cálicles: Que queres dizer com isso? [comandar a si mesmo] Sócrates: Digo que cada um deve comandar a si mesmo. Ou não haverá necessidade de ninguém comandar-se a si mesmo, mas apenas aos outros? Cálicles: Que entendes por comandar a si mesmo? Sócrates: Não se trata de nada abstruso; a esse respeito penso como todo mundo: ser temperante e dono de si mesmo, e dominar em si os prazeres e apetites (PLATÃO, Górgias, 491d-e). É lógico que um moralista da estatura de Platão - capaz de conceber tal definição de autarquia -, é hábil quando se trata de oferecer uma receita para que cada um possa realizar esse ideal. Estou certo que essa interpretação só pode ser entendida dentro da concepção de democracia/estado, concebida por Platão e com o surgimento e aperfeiçoamento da sofística como técnica. Para alcançar tal ideal, Platão propõe aos indivíduos diversas atividades, tais como: a ginástica (para desenvolver o corpo), a música, a leitura e o canto (para o bom desenvolvimento do espírito). Tal programa educativo visava a desenvolver no homem uma qualidade muito desejada e procurada: a temperança (sofrosune), que implica um perfeito domínio de si, aliando sabedoria e ação consciente, fundadas na sabedoria. No Protágoras, Platão faz um esboço geral da educação que as crianças deveriam receber do estado: Desde que ela compreende o que se lhe diz, a mãe, a ama, o preceptor e o próprio pai conjugam esforços para que o menino se desenvolvo da melhor maneira possível; toda palavra e toda ato lhes enseja oportunidade para ensinar-lhe o que é justo ou o que é injusto, o que é honesto e o que é vergonhoso, o que é santo e o que é ímpio, o que pode ou o que não pode ser feito. [...]. Depois, o enviam para a escola e recomendam aos professores que cuidem com mais rigor dos costumes do menino do que do aprendizado das letras e da cítara. [...]. De seguida, entregam-nos os pais ao professor de ginástica, para que fiquem com o corpo em melhores condições de servir o espírito virtuoso, [...]. Quando saem da escola, a cidade, por sua vez, os obriga a aprender leis e a tomá-las como paradigma de conduta, para que não se deixem levar pela fantasia a praticar qualquer malfeitoria. (PLATÃO, Protágoras, 325c-326d). Não é difícil observar que a educação ateniense, descrita por Platão, tinha duas finalidades claras: 1. incutir no cidadão, desde a mais tenra idade, plena harmonia e domínio de si; 2. desenvolver no cidadão a fidelidade e obediência as leis do estado. Em síntese, essa é a ideia de autarquia desenvolvida por Platão: não basta ser apenas um indivíduo livre e autocontrolado. Agora no estado/democracia, deve ser livre e autocontrolado, em conformidade com a conjuntura sócio-política. O objetivo principal da educação, ao indicar a kalokagathia como meio para alcançar a arete individual, visava sempre à formação cívica. Esse processo educativo suplantou a educação baseada no modelo do herói e passou a desenvolver, cada vez mais, nos _________________________________________________________________________________________________________ www.agora.ceedo.com.br [email protected] Cerro Grande – RS Os textos, opiniões, dados, análises e interpretações, bem como citações, plágios e incorreções, são de responsabilidades legais, morais e econômicas ou outras quaisquer, do/a(s) seu/sua(s) autor/a(es). ÁGORA – Revista Eletrônica ISSN 1809 4589 Página 79 - 91 indivíduos o senso de cidadania. Existe certa coincidência entre a filosofia de Platão e Aristóteles, nesse pormenor: para ambos, a educação é um processo de preparação do indivíduo para o exercício da cidadania. Para Platão, o indivíduo só existe enquanto cidadão à medida que habita a Polis, segue suas leis e tem a sua vida afetada por ela. Aristóteles vai além de Platão, afirmando que não apenas o qualificativo de cidadão estava devotado a Polis, mas que ela é o lugar onde o homem se diferencia dos animais, passando da mera vida natural Biós politikos, (para transformar-se em animal...) transformando-se em animal político (zoon politikon). 5 A sofística como ferramenta educativa Com o estabelecimento das cidades-estados e o fim das guerras de conquistas, as cidades como Atenas e Esparta sentiram necessidade de uma nova educação, pois o antigo modelo educativo, baseado na ginástica e na música, não mais atendida às necessidades do estado nem correspondia às novas necessidades individuais, nem às novas exigências sociais e políticas. Como se sabe, a forma democrática de organização do governo foi a forma escolhida pela cidade-estado de Atenas. Nesse novo cenário, a exigência de todos os indivíduos enquanto homens livres, participantes ativos na construção do estado e da vida pública tornou-se um dever cívico inalienável. Para uma participação efetiva nas assembléias, tornou-se indispensável os dotes de eloquência e cada vez mais foi exigido o afeiçoamento dos cidadãos à oratória. É nesse contexto que surgiu uma nova estirpe de “educadores”, chamados “sofistas”. Eles foram os primeiros professores da história a oferecerem, a troco de dinheiro, o ensino da “virtude”, o ensino da arete política. Mais: a arete deixou de ser uma virtude ideal e aspirada por todos e passou a ser definida como arte da política como techné política, como deixa entrever o diálogo entre Protágoras e Sócrates: Protágoras: [...] Essa disciplina é a prudência nas suas relações familiares, que porá em condições de administrar do melhor modo sua própria casa e, nos negócios da cidade, o deixará mais do que apto para dirigi-los e para discorrer sobre eles. Sócrates: Será que apanhei bem o sentido do que disseste? perguntei; quero crer que te referes à arte da política e que promete formar bons cidadãos. Protágoras: Nisso mesmo, Sócrates, respondeu, é que a minha profissão consiste. (PLATÃO, Protágoras, 319a). Os sofistas convertem, pois, a educação numa técnica ou numa arte, na qual eles são mestres e, por isso, capazes de transmiti-la e ensiná-la, aos jovens. Mas essa techne política, em conexão com as finalidades práticas que se propõe - formação de homens de Estado e de dirigentes da vida pública - vai conduzir, necessariamente, à valorização do homem, cidadão individualmente considerado, e vai, igualmente, _________________________________________________________________________________________________________ www.agora.ceedo.com.br [email protected] Cerro Grande – RS Os textos, opiniões, dados, análises e interpretações, bem como citações, plágios e incorreções, são de responsabilidades legais, morais e econômicas ou outras quaisquer, do/a(s) seu/sua(s) autor/a(es). ÁGORA – Revista Eletrônica ISSN 1809 4589 Página 79 - 91 orientar-se num sentido amoral ou mesmo imoral. Indubitavelmente que o centro da vida política é o homem (daí falar-se em humanismo, no giro antropocêntrico que a sofística implica), mas o homem individual (de onde surge o individualismo sofístico). Nesse sentido, o humanismo sofista não é senão um individualismo ou um relativismo total, como é bem conhecido a paradigmática frase de Protágoras8. Indubitavelmente, também, que o homem, assim situado no coração da Pólis, quer vencer na vida política, quer fazer valer os seus interesses ou as suas convicções, quer ganhar um lugar de destaque, quer ser eleito para cargos públicos, quer ser governante e aceder ao poder. Para isso, para ter êxito político, precisa saber falar bem, encantar o auditório, construir discursos persuasivos, formular os argumentos que justifiquem e validem as suas posições, fazendo-as prevalecer como as melhores. Tudo isso,os sofistas poderiam viabilizar, através da arte da oratória, da retórica e da dialética, sem que fosse necessária uma virtude especial. E se a competição se desse com representantes de qualquer outra profissão, conseguiria fazer eleger-se o orador de preferência a qualquer outro, pois não há assunto sobre que ele não possa discorrer com maior força de persuasão diante do público do que qualquer outro profissional. Tal é a natureza e a força da arte da retórica (PLATÃO, Górgias, 456c). Sendo assim, esse conteúdo é esvaziado de sentido, pelo menos de sentido ético, e o discurso reduz-se, por isso mesmo, a um mero exercício tecnicista, a uma maestria ou a um virtuosismo técnico. O domínio dessa técnica permite construir os argumentos necessários para fazer valer este ou aquele ponto de vista, conforme os interesses do momento e independentemente da contradição que possa existir entre esses pontos de vista. Entram assim em crise os sacrossantos valores da tradição: verdade, justiça, virtude, retidão. Esses ideais não fazem mais parte do ideário do ensino sofístico, pois agora o que importa é vencer, ou, no máximo, o que importa é o que é bom para mim. Com os sofistas, todos os valores, até então, tidos como absolutos, são relativizados. A dialética aplicada à política afasta o homem da ética. Esse é o tema central do diálogo Górgias, pois o importante é saber o que é a retórica ou oratória, não enquanto ciência, mas enquanto técnica. Platão chega a equiparar os sofistas aos oradores: “Sofistas e oradores são a mesma coisa” (PLATÃO, Górgias, 520b). Não admira que os sofistas vão ser acusados de imoralidade, de administrar uma educação perversa e pervertida, de corromper a juventude e de transmutar os valores tradicionais, minando as bases da ordem social e política estabelecida. Esta situação é caricaturizada e ridiculariza por Aristófanes em As Nuvens. O ponto central do pensamento de Protágoras é a tese do homem-medida, exposta por Platão em Teeteto 152a e confirmada por Sexto Empírico em Contra os Matemáticos VII 60: “O homem é a medida de todas as coisas, das que são como são e das que não são como não são”. No mesmo livro, em Teeteto 152b-c, Platão explica essa tese do homem-medida. _________________________________________________________________________________________________________ www.agora.ceedo.com.br [email protected] Cerro Grande – RS 8 Os textos, opiniões, dados, análises e interpretações, bem como citações, plágios e incorreções, são de responsabilidades legais, morais e econômicas ou outras quaisquer, do/a(s) seu/sua(s) autor/a(es). ÁGORA – Revista Eletrônica ISSN 1809 4589 Página 79 - 91 Dentro desse contexto que a missão de Sócrates se estabelece como “missão divina”: missão de reconstruir a conexão da cultura do espírito, da cultura intelectual com a cultura moral e política; missão de situar o ethos no coração do homem e situar o homem no centro da atividade política. Ao longo dos diálogos platônicos, são muitas as vezes que Sócrates se escandaliza e considera um paradoxo o fato de que, para alguns ofícios, seja necessária uma competência específica, não sendo o mesmo válido para os governantes e políticos. O ensino que os sofistas proporcionavam, enquanto mestres de arete política, estava longe de corresponder a presunção de uma educação completa. Eles não defendiam mais os ideais educativos que não fossem viáveis, muito embora, eles ensinassem os homens a discursar elegantemente nas assembléias, chegando até mesmo ao ponto de torná-los hábeis no uso de quaisquer meios para realizar as suas ambições. É comum a todos os sofistas considerarem-se mestres da arete política. Existe, no entanto, uma divergência entre o modo de concebê-la e a maneira para atingir tal missão. Para uns, a educação que levará ao domínio da arte política consiste na transmissão de um saber enciclopédico, de uma polimatia da qual se gabam e se dizem mestres - o representante mais significativo desta tendência é Hípias (Cf. PLATÃO, Hípias Menor, 368 b - 368), o qual, contrariamente à maior parte dos outros sofistas, atribui um alto valor formativo às matemáticas, (Cf. PLATÃO, Protágoras, 318), disciplinas estas que, mais tarde, constituíram o quadrivium. Para os demais, do qual o principal representante é Protágoras, a educação é, essencialmente, formação, formação do espírito e formação do cidadão, e o modo privilegiado de consegui-la é através do ensino da gramática, da oratória e retórica e da dialética, disciplinas que, na Idade Média, formaram o chamado trivium e juntamente com o quadrivium, constituíram as sete artes liberais. 6 Conclusão A verdadeira paidéia, conscientemente procurada e dentro desta tradição que vem dos gregos, não pode descurar a importância dos sofistas na formação do idearia educativo de hoje. Afinal de contas, no ensino de filosofia, o método e a prática mais recorrente e eficaz é o método sofistico. Cada vez mais, a prática pedagógica do professor de filosofia está associada ao ensino de técnicas, quer seja para ler um texto, para compreender o mundo entorno, quer seja para compreender a si mesmo ou fazer análise de conjuntura. Não é este também o papel que as outras disciplinas esperam que a filosofia realize? A ligação da prática do ensino de filosofia hoje e aos sofistas não é algo negativo, dado que entre as novidades introduzidas pelos sofistas destaca-se o fato de terem sido os primeiros defensores de um processo educativo que não termina com a saída da criança da escola. Esta idéia de que a filosofia é uma ciência para pessoas _________________________________________________________________________________________________________ www.agora.ceedo.com.br [email protected] Cerro Grande – RS Os textos, opiniões, dados, análises e interpretações, bem como citações, plágios e incorreções, são de responsabilidades legais, morais e econômicas ou outras quaisquer, do/a(s) seu/sua(s) autor/a(es). ÁGORA – Revista Eletrônica ISSN 1809 4589 Página 79 - 91 adultas e que ela é mãe de todas as ciências é uma herança dos sofistas que até hoje está presente no nosso ideário educativo. Se, no período homérico, existiu o herói-modelo, hoje nós podemos falar do professor-modelo, aquele que inspira alunos, através de sua oratória e retórica. O ideal grego de educação é o primeiro que aparece na história de maneira consciente e caracterizase, em geral, pela formação do homem político, o homem da pólis, do cidadão, tanto no aspecto civil como no aspecto bélico. Esse ideal sofre uma evolução a partir dos tempos heróicos de Homero, onde predomina o guerreiro, até à época de Péricles, em que sobressai o político. Dentro desse desenvolvimento, a educação grega tem como aspiração a excelência - arete -, mais tarde esse ideal é completado pelo de kalokagathia, o ideal da perfeição do corpo e da alma em beleza, bondade, sabedoria e justiça do indivíduo na comunidade pública. Mas todo o ideal grego aparece, finalmente, como paidéia. Referências HESÍODO. Os trabalhos e os dias. São Paulo: Iluminuras, 2008. (Bilíngüe) ISOCRATE. Discours. Paris: Les Belles Lettres, 1950, 1956. (Vol. III, II). JAEGER, W. Paidéia: a formação do homem grego. 3 ed. São Paulo: Martins fontes, 1995. PLATÃO. Timeu, Crítias, O segundo Alcebíades, Hípias menor. 3. ed. Belém: UFPA, 2003. ______. Protágoras, Górgias, Fedão. 2. ed. Belém: UFPA, 2002. ______. O banquete, Apologia de Sócrates. 2. ed. Belém: UFPA, 2001. ______. Teeteto, Crátilo. 3. ed. Belém: UFPA, 2001. ______. A república. 8. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1996. SCHÜLER. D. A construção da Ilíada. Porto Alegre: L&PM, 2004. SHEID, J; SVENBRO, J. Le métier de Zeus: mythe do tissage et du tissu dans le monde grégo-romain. Paris: Editions Errance, 2003. ULLMANN, R. A. Amor e sexo na Grécia antiga. Porto Alegre: Edipucrs, 2005. VIDAL-NAQUET, P. O mundo de Homero. 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