Nomads - RIM 2004

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Nomads - RIM 2004
Mauritânia, no país da areia
Trajecto efectuado em todo-o-terreno a verde
Mais uma vez o Nomad’s Trail Moto Clube de Portugal inova e desbrava novas
fronteiras numa expedição inédita em termos de maxitrails, Mauritânia 2004!
Este projecto começou há mais de um ano e ficou marcado pela preparação
exaustiva dos participantes nas mais variadas vertentes, desde workshops de
mecânica, curso de primeiros socorros ministrados pela AMI e treinos nas areias
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de Leiria e Comporta, tudo foi feito com a intenção de deixar todos bem
preparados para uma viagem muito exigente, marcada pelo isolamento e autosuficiência num país praticamente sem meios de assistência.
E mais uma vez contámos com alguns apoios que muito facilitaram a realização
da expedição. A BP forneceu combustível, a Castrol o fantástico óleo R4, a AMI
preparou um curso de suporte básico de vida para todos os participantes, a
Vodafone cedeu um telefone satélite, a Xanauto preparou a Strakar para a
expedição, a Lafuma facilitou equipamento de campismo e a Multivector
ofereceu o website oficial da expedição. Por último um agradecimento especial à
Motojornal que mais uma vez nos apoiou incondicionalmente.
Para transportar todo o material, gasolina, água e alimentação foram
necessários três veículos de apoio que permitiram aligeirar as nossas pesadas
maxitrails. Uma grande variedade de modelos estiveram presentes, desde as
mais pesadas BMW R1100GS e R1150GS, uma KTM 640 Adventure, e a s
Honda 750 África Twin, 650 TransAlp, duas XR 650R e, finalmente, uma
NX400, a demonstrar que o tamanho não conta, o que conta é a determinação!
FINALMENTE A CAMINHO...
O encontro estava marcado para as 7.30 na BP no Aeroporto de Lisboa, na
semana anterior o tempo fugiu e muitos são os que fizeram directas na última
noite com os preparativos finais. Abastecemos os veículos e saímos com muitos
familiares e amigos a despedirem-se. O percurso até Espanha foi feito
rapidamente, parámos apenas em Aracena para almoçar e abastecer com os
famosos enchidos e queijos da região. Seguimos até Itálica, perto de Sevilha,
onde reabastecemos novamente na BP e continuámos até Tarifa onde por dez
minutos perdemos o último ferry que tinha saído às seis. Nada de grave, temos
outro em Algeciras às sete e meia. Não perdemos tempo, estávamos em
Algeciras bem a horas, mas durante os preparativos para a compra dos bilhetes
o primeiro contratempo: o passaporte esquecido! A Isabela, única participante
feminina, entrou em pânico, logo ela, a mais metódica do grupo, esqueceu-se do
mais importante. Depois de muita discussão e alguns telefonemas, uma solução:
o seu companheiro voaria no seu carro desde Lisboa, de passaporte em punho,
para no dia seguinte podermos embarcar no primeiro ferry! Assunto em vias de
resolução, fomos calmamente abastecer veículos e jerricans na BP de Algeciras,
onde o espanto da senhora da caixa não tinha descrição, enquanto passava
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uma factura com mais de 700 litros de combustível. Jantámos uns fantásticos
secretos de porco preto na estrada para Tarifa e passámos a noite num antigo
refúgio de espiões alemães durante a II Guerra Mundial, hoje um albergue rural
já nosso conhecido de outras viagens.
No dia seguinte bem cedo lá estava o herói e o passaporte, com tudo pronto
seguimos até Tarifa a caminho de Tânger. A travessia foi rápida e os
procedimentos fronteiriços também, passadas três horas já estávamos em
Larache a almoçar. Para recuperar o atraso do dia anterior a caravana seguiu
directamente para Marraqueche, eram já 20.30 quando chegaram as primeiras
motos, estava um frio incrível e a estrada tinha sido um autêntico desafio.
Fizemos praticamente toda a nacional de noite, com carros e camiões
permanentemente em contramão, de máximos à força toda e com
ultrapassagens suicidas em que as motos pareciam o alvo a abater... Conduzir
com óculos de motocross, as manchas de gasóleo invisíveis na estrada e os
quatro ou cinco graus de temperatura, tornou este percurso muito desgastante e
perigoso. Depois de chegarem os jipes hospedámo-nos num hotel junto à praça
Jma El Fnaa e fomos jantar numa das suas famosas tasquinhas.
Bem cedo partimos em direcção ao Sahara Ocidental, esperava-nos uma longa
estirada até Layounne. Começámos por subir o Médio Atlas com os seus picos
espectaculares cobertos de neve. Num dos planaltos fomos surpreendidos por
uma tempestade de gafanhotos gigantes que atingiam as motos e o nosso corpo
como balas, deixando, para além de algumas nódoas negras, uma massa verde
e pegajosa por todo o lado. Fomos obrigados a reduzir o andamento e a
refugiarmo-nos por trás do pára-brisas, mas lá chegámos ao fim desta
cordilheira montanhosa, onde uma planície imensa deixava já ver Agadir. Pouco
depois já havia algum avanço das motos em relação às pickups, pelo que
decidimos parar para almoçar numa tasca. Continuámos viagem e atravessámos
desta vez o Anti-Atlas, nova vaga de gafanhotos e uma descida com o Sahara
Ocidental e as suas intermináveis planícies já à vista. No final da descida surge
o primeiro controlo militar, passaportes verificados, algumas perguntas e
estávamos de volta à estrada. Poucos quilómetros depois novo controlo, desta
vez da Gendarmerie. Aqui começámos a dar uso às fotocópias com que íamos
prevenidos, bastante úteis aliás, já que tornavam muito mais rápida a
transposição destes controlos. Em Tarfaya, mais um azar, o Teles deu por falta
do casaco impermeável. Ainda voltámos uns quilómetros para trás mas tinha
desaparecido definitivamente, juntamente com o telemóvel, algum dinheiro e, o
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mais importante, o papelinho verde da importação temporária da moto emitido
na fronteira de Marrocos. Como o que não tem remédio, remediado está,
continuámos até Tan-tan onde decidimos seguir até Layounne, novamente já
com o Sol a desaparecer. Faltavam ainda 300 kms sempre junto ao mar e o pôrdo-sol, embora espectacular, trazia mais frio e menos visibilidade. A maresia nos
óculos, o frio, o vento e os faróis sempre no máximo dos camiões fizeram-nos
perceber que não tinha sido boa ideia continuar. Para além disso começaram a
aparecer zonas da estrada com muita areia, com a visibilidade tão reduzida
eram surpresas arrepiantes, principalmente nas curvas. Parámos numa estação
de serviço para reavaliar a situação e fomos informados que a zona seguinte até
Layounne era muito perigosa. Decidimos continuar a um ritmo mais cuidadoso e
sempre à vista uns dos outros. Muitos controlos militares depois e
completamente exaustos, chegámos finalmente a Layounne, ao hotel que tinha
sido combinado. Tudo estava já fechado, decidimos por unanimidade ir para a
cama sem jantar nem esperar pelas pickups.
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A Travessia do Sahara Ocidental
Sahara Ocidental
Às oito horas já estávamos quase todos acordados. Depois de um pequenoalmoço com o sumo de laranja típico de Marrocos, o ânimo voltou a subir, afinal
já estávamos no Sahara e era o último dia de asfalto. O dia foi passado a rolar
por planícies intermináveis, sempre perto da costa, com uma paisagem a
lembrar os filmes americanos. Entretanto mais um azar, uma moto encosta à
berma sem gasolina. Uma situação que obrigou a esperar pelos jipes para o
primeiro abastecimento autónomo. O almoço foi em Bojador, um belo
hambúrguer de camelo com um ovo frito e uma bebida fresca. De tarde a
paisagem passou a ser cada vez mais árida, mais desértica, e os primeiros
cordões de dunas começaram a aparecer ao longe. Por vezes saíamos da
estrada para uma pista paralela repleta de pneus e peças calcinadas. Em alguns
pontos, e como o avanço para os jipes já era de novo grande, fazíamos uma
paragem junto à arriba e olhávamos a praia, aqui e ali povoada de navios
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surpreendidos pelo mar que encalham e vão sendo desmantelados pela força do
Atlântico. O GPS marcava as ilhas Canárias a escassos 200 km e nos placares
da estrada começaram a aparecer a distância para as cidades da rota transsahariana do Atlântico: Nouadhibou, Nouakchott, Saint Louis, Dakar... O que
muito nos entusiasmava, sentir a aproximação de locais tão emblemáticos e
durante tanto tempo sonhados. A quantidade de controlos aumentava
consideravelmente e perto das cidades era possível ver alguns veículos da
ONU. Eram visíveis os colonatos criados por Marrocos para cativar a população
para esta região, como oásis no meio da aridez, com água, luz, uma estação de
serviço e uma construção muito recente e cuidada que nada tem a ver com a
confusão arquitectónica habitual nas povoações marroquinas mais a norte. A
gasolina nesta região é só por si um incentivo muito forte, custa cerca de metade
que no resto do país. Um grande investimento do governo marroquino para
manter a sua soberania nesta região, que continua em disputa com a Frente
Polisario. Chegámos ainda com o pôr-do-sol ao local combinado, a última
estação de serviço antes da fronteira com a Mauritânia. Trata-se de uma infraestrutura muito oportuna num local em que num raio de centenas de quilómetros
não existe mais nada. Uma estação de serviço, um hotel, tudo nas imediações
de uma fábrica de conservas propriedade de um magnata da região, o Barbas!
Local obrigatório para todos os que atravessam o Sahara por esta rota, é o
ultima vestígio de civilização antes de entrar noutro país, noutro mundo, noutro
tempo, enfim, na Mauritânia!
Manobras em campo minado!
As motos que tinham sido transportadas nos jipes foram montadas e revistas, os
últimos abastecimentos de víveres, água e gasolina foram efectuados. De
manhã todos estavam muito entusiasmados. A fronteira a uns escassos 80 km,
finalmente a Mauritânia e o verdadeiro deserto sonhado durante tanto tempo.
Um furo estreou a eficaz assistência mecânica Nomad’s no caminho para a
fronteira de Marrocos. Aqui esperava-nos mais um azar! O papelinho verde da
importação temporária que tinha sido perdido perto de Tarfaya era indispensável
para a moto sair. De nada valeram as insistências. O Teles ficou destroçado,
queria voltar para casa, mas convencemo-lo a seguir num jipe e a deixar a moto
no Barbas. Furioso, acabou por concordar, e seguiu até ao Barbas para deixar a
sua adorada BMW. Pelo caminho ainda teve tempo de literalmente pulverizar um
controlo militar, ia tão desesperado que não viu a corrente que atravessava a
estrada, felizmente era uma velha corrente enferrujada que nem beliscou a
BMW. Curiosa a reacção dos guardas ao verem uma moto perto dos 200 km/h a
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passar pelo controlo… estavam bem dispostos e saíram do seu posto com um
grande sorriso.
Com mais este azar, só conseguimos sair da fronteira de Marrocos eram já seis
da tarde, pouco depois acabou o asfalto e entrámos na terra de ninguém! Aqui a
circulação tem de ser muito cuidadosa e é absolutamente proibido sair da pista.
Foi numa zona como esta que o jipe de assistência da Elisabete Jacinto em
pleno Dakar activou uma mina e um mecânico perdeu parte de um pé. A pista
está relativamente bem marcada e é principalmente de grandes pedras, algumas
zonas de areia muito revolvida criavam problemas às motos. Toda a zona
circundante está minada e mesmo os militares não saem da pista.
Finalmente chegámos à fronteira da Mauritânia e ás suas impressionantes
instalações, primeiro o posto fronteiriço e depois a aduana, duas construções de
pedra e terra com cerca de quatro metros quadrados e com bidões BP
espalmados a servir de telhado. No posto fronteiriço pagámos a obrigatória taxa
de entrada de cinco euros mas na aduana os guardas criaram alguns problemas
exigindo uma quantia abusiva e completamente ilegal.
Já era noite quando entrámos realmente na Mauritânia, o campo minado só
terminava na linha de caminho-de-ferro pelo que para acamparmos com
segurança só a sul desta linha. O caminho foi penoso, as luzes das motos pouco
iluminavam, e em algumas zonas a areia revolvida, macia e sem escapatória
possível dificultou-nos muito a vida. Para ‘melhorar’ a situação enganámo-nos
várias vezes até encontrarmos a linha de comboio. Finalmente longe da minas
encontrámos uma clareira e montámos acampamento.
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Mauritânia – A pista do caminho-de-ferro
O incrível comboio de mais de 200 vagões e dois quilómetros de comprimento
Pouco passava das 6 da manhã quando acordámos sobressaltados com o chão
a tremer e com um som de ferro a chiar. Um comboio com cerca de duzentos
vagões de minério passava a pouco mais de 50 metros do acampamento. Que
luxo, despertados pelo maior combóio do mundo, que traz incessantemente
minério das profundezas do Sahara para o porto de Nouadhibou. Levantámos o
acampamento e seguimos para leste, deixámos de ter referências de civilização
e começaram as planícies imensas com alguma vegetação rasteira e acácias
isoladas. A boa pista inicial tinha acabado e seguíamos agora por pistas pouco
marcadas mas quase sempre com a linha do combóio à vista. Chegámos à
primeira aldeia, e foi com surpresa que descobrimos uma loja com bebidas
frescas. As aldeias são construídas nas poucas elevações e o vento inunda-as
de areia, o que torna num martírio a evolução das pesadas maxitrails. Para
dificultar a coisa os tubos de electricidade e de água estão em cima da areia e
não há como os evitar. Resumindo, a chegada a uma aldeia é um desespero,
circulando por entre casas à maior velocidade possível para não enterrar e
procurando zonas duras para parar as motos. Aproveitámos para trocar as
primeiras oughiyas e continuámos para leste à procura de uma sombra para
almoçar.
Ora aqui está um problema, sombra é coisa que não existe por aquelas bandas,
e para quem há dois dias estava com quatro graus em Marraqueche, ter agora
quarenta, juntando condução em areia, pouco descanso e ritmo acelerado, era
absolutamente extenuante. Por fim encontrámos uma acácia onde foi difícil gerir
a minúscula sombra e mesmo sem muito apetite lá engolimos as primeiras
conservas.
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Na moto o cansaço quase desaparecia, tal era o gozo. Uma atenção
permanente era obrigatória, as armadilhas neste tipo de terreno são muitas. Em
certas zonas era possível rodar a 80 ou 90 km/h, a pista era plana, de cascalho
e areia, depois vinham zonas só de areia onde quanto mais depressa melhor.
De vez em quando apareciam uns pequenos oueds secos transversais com os
seus tufos verdes e rijos onde eram perfeitamente visíveis, graças à areia fina
muito revolvida, as várias pistas paralelas. Era comum tentarmos fugir dessas
zonas e procurar a areia “virgem” por entre os tufos. Foi num desses tufos que a
Isabela voou, direitinha a uma pedra. A queda foi feia e a Isabela ficou bastante
maltratada. Aterrou de frente com o capacete no chão e com o ombro numa
pedra. A princípio ficou imóvel e assustou-nos a todos, depois lá se mexeu e
começou a gritar com dores. A farmácia a postos e demos uso ao curso de
socorrismo da AMI, puxa aqui vira ali, toma analgésicos, almofadinha,
cadeirinha, e pronto, ombro e braço imobilizados. Enquanto isso a assistência
mecânica nomad’s dá um tratamento à NX que tinha ficado um bocadinho torta.
A menina estava já mais calma e com muito menos dores pelo que decidimos
seguir até Choum, a localidade mais próxima e onde seria possível obter algum
tipo de assistência ou mesmo o transporte para um hospital. Um dos ocupantes
dos jipes levaria a NX, o único problema era que ainda faltavam mais de 250 km
para Choum e provavelmente só passados dois dias conseguiríamos lá chegar.
Ainda era relativamente cedo, mas a Isabela precisava de descanso e
acampámos perto do local do acidente.
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Pista do combóio
No dia seguinte e apesar de algumas dores a Isabela estava bem, tinha dormido
alguma coisa e estava muito bem disposta. O dia foi calmo, a acidentada
melhorava a olhos vistos, parecia mesmo que tudo não passara de um valente
susto. Fizemos a bom ritmo algumas pistas fantásticas, muito rápidas, outras
mais técnicas, depois mais dunas até que simplesmente a pista desapareceu e
pela frente apenas areia virgem modelada pelo vento. O resto do dia foi um sobe
e desce delicioso por entre dunas sem o mínimo vestígio de passagem de outro
veículo até que alguém parou no cimo de uma delas. Todos fomos parando
junto, avisados pelos primeiros a chegar, e facilmente percebemos o motivo da
paragem, tratava-se de uma duna perfeitamente cortada em forma de lua
crescente e praticamente invisível para quem vinha a favor do vento. A altura,
sem exagero, era a de um prédio de dois andares, e se de um lado o declive era
ligeiro, do outro um abismo praticamente a pique. Fomos unânimes em recordar
o acidente do Carlos Sousa no Dakar, é impossível adivinhar uma armadilha
destas. Mas, imagine-se, a KTM não teve contemplações e subiu a duna, para
espanto geral, numa diagonal arriscada mas perfeita! Apesar dos arrepios
iniciais o local era maravilhoso, isolado e rodeado por dunas desenhadas pelo
vento, resolvemos aproveitar o local para acampar.
A noite foi espectacular, a primeira noite em que realmente descansámos, o
vento parou, tivemos tempo para fazer um jantar quente e saboroso regado com
um bom vinho. Houve lugar até a alguns luxos, enquanto uns aproveitaram para
tomar um duche, outros ficaram à volta da “mesa” a degustar um chá (leia-se
whisky), e a ouvir Tom Jobim e Miles Davis apenas iluminados pelo céu
estrelado!
No dia seguinte continuámos para leste a atravessar a cordilheira de dunas
denominada Azeffâl, que se estende desde o coração do Sahara até à costa
atlântica. Ainda haveríamos de a atravessar mais três vezes, uma antes de
Zouerat, outra no El Hammâmi e por fim já na pista da praia em Nouâmghar.
Rodávamos com a linha de caminho de ferro por vezes à vista, e por sorte o
azar do dia aconteceu relativamente perto da linha. Desta vez foi a embraiagem
da Strakar que entregou a alma ao criador. O incansável João Rodrigues ainda
tentou resolver o problema ali mesmo mas não era possível, só havia uma
solução, rebocá-la até à próxima localidade. Estávamos a mais de 80 kms de
Choum e foi definida uma estratégia: pela pista era impossível, as dunas
tornariam impossível o reboque, a solução era circular pela linha. Duas motos
seguiram à frente, outras duas vinham atrás e os jipes viriam pela linha onde
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poderiam ser avisados via rádio se vinha algum combóio. Os primeiros
quilómetros correram bastante bem, passámos por uma pequena locomotiva
com funcionários que reparavam a linha e que nos disseram que apenas às seis
da tarde viria um combóio de Choum. Quando todos estávamos mais tranquilos,
mais um azar, um furo, desta vez na pickup rebocadora. Os afiados restos da
linha não perdoaram. Apesar de avisados desta eventualidade, com a avaria
tínhamos de arriscar circular na linha. Perto de uma aldeia e de forma a evitar
problemas optámos por nos afastar da linha, atascanço após atascanço fomos
progredindo com muito esforço. Ao longe víamos Ben Amera, o segundo maior
monólito do planeta, apenas suplantado pelo Ayers Rock na Austrália. A visita às
suas famosas pinturas rupestres tinha de ficar para outra vez.
Monólito Ben Amera
Finalmente o terreno melhorou, ficou mais rijo apenas com zonas de areia mais
dispersas que eram evitadas pelos jipes depois de avisados pelas motos que
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seguiam à frente em pistas paralelas, a tentar descobrir a que oferecia menos
dificuldades.
A paisagem também mudou, começaram a aparecer mais acácias, mais zonas
de erva alta, tufos em tudo semelhantes às savanas. Finalmente, e já com o sol
a querer ir embora, chegámos a Choum. Fomos logo rodeados pelas crianças e
por adultos que ofereciam albergues refrescantes. Optámos por ir para um dos
albergues e ver de um médico para a Isabela e de uma oficina para a Strakar.
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CHOUM - O GRUPO DIVIDE-SE
Strakar no camião
Fizemos um ponto de situação enquanto bebíamos o delicioso zrig (mistura de
leite de cabra, camelo e água) oferecido pela anfitriã, e chegámos à conclusão
que Choum, apesar de ser uma das paragens do combóio, não tinha qualquer
tipo de infra-estruturas para resolver os nossos problemas. A Isabela já mexia o
braço relativamente bem. Para a Strakar havia três hipóteses: o combóio para
Nouâdhibou; rebocá-la mais 150 km para Atar; ou um camião que a transportaria
até Zouérat, onde segundo o dono do Albergue seria possível encontrar uma
embraiagem nova. Acabámos por optar pela última hipótese. A Strakar e três
ocupantes seguiriam no camião com o dono do albergue, o restante grupo
seguiria por pista com um guia do albergue de forma a todos nos encontrarmos
em Zouérat. Depois de uma autêntica aventura para colocar a Strakar no
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camião, os nossos heróis seguiram viagem, esperava-os uma noite atribulada
dentro do jipe entre taipais de madeira por mais de 200 km de pistas e dunas.
No dia seguinte bem cedo seguimos para norte em direcção a Zouérat, a pista
começou por ser uma mistura de savana com zonas de areia muito macia,
depois alternou para grandes planícies com zonas do perigoso tefe-tefe (um pó
muito fino, como pó de talco). O ritmo estava muito bom e em pouco mais de
hora e meia tínhamos feito 100km. Uma paragem numa duna grande para as
habituais brincadeiras acabou por provocar uma separação involuntária do
grupo. Os jipes atravessaram a linha de combóio para norte, três motos ficaram
ligeiramente para trás e acabaram por perder os jipes de vista, subi a uma
elevação que me parecia de piso consistente, parei a moto e subi a pé umas
pedras, já não vi ninguém, e quando voltei a moto tinha enterrado o descanso e
caído. Levantei-a, o chão afinal era areia macia forrada com uma gravilha
fininha, resultado, atascou! Procurei localizar as outras duas motos mas já não
via ninguém, tentei em vão desatascar a moto mas ela acabava por assentar.
Deitava de novo a moto, levantava a roda de trás e tentava novamente, mas
nada, tentava empurrar e acelerar e nada, tentei fazer um rego à frente para
libertar a roda da frente e nada… enfim continuava até à exaustão e quando
recuperava as forças repetia.
Estive assim mais de duas horas e apesar de não ter GPS (tinha ido na Strakar)
via a linha do combóio e por isso sabia para onde era o caminho. Finalmente,
tentei tudo ao mesmo tempo, esvaziei mais os pneus, fiz um rego à frente,
desenterrei a roda de trás, forrei o chão com pedras e desatei aos pulos no
banco até que finalmente arrancou. Respirei de alívio e segui a pista que via lá
de cima e que parecia seguir a linha. Andei 20 km e vi umas figuras no horizonte
a mexer, quando cheguei perto reparei que afinal eram três dromedários
solitários, nesta altura já não via a linha e resolvi voltar para trás até à duna onde
tinha atascado e onde via a linha. Para melhorar a coisa a gasolina começava a
escassear para os 100 km que faltavam para Zouérat. Quando as coisas
começaram a ficar assustadoras vi o combóio ao longe, atalhei na sua direcção
e segui-o por fora de pista. Pouco depois vejo ao longe duas motos, pareciamme estrangeiros, mas depois percebi que eram dois nomads que vinham à
minha procura. Mais atrás vinha um jipe e seguimos reagrupados a pista para
Touâjil. Almoçámos nesta pacata aldeia e depois de encher os pneus e
abastecer atravessámos pela segunda vez a cordilheira de dunas que segue
desde o El Hammâmi até à costa. Aí encontrámos outros dois nomads que
entretanto tinham tido um problema mecânico. A TransAlp tinha a caixa do filtro
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do ar e o carburador cheios de areia o que a impedia de passar as 2000
rotações. O João Rodrigues estava já em Zouérat com a Strakar, mas com a
sabedoria de um grande mestre teleguiou por satélite a reparação e passados
poucos minutos estávamos a caminho.
Entretanto a paisagem tinha mudado novamente, as dunas deram lugar a
grandes planícies de gravilha negra, depois surgiram vastas zonas de savana
desta vez mais verdejante e densa, e com o Sol já no horizonte chegámos a
Fdérjk. O piso passou a ter uma cor avermelhada, a vegetação era bem mais
abundante e ao longe víamos a grande montanha que vai sendo consumida por
uma das minas mais produtivas do mundo! Aqui está a maior riqueza da
Mauritânia, o seu minério, e os britânicos que o exploram. A sua influência não
podia ser mais clara, nos 15 km que ligam a mina a Zouérat, o único asfalto num
raio de muitos quilómetros, a circulação faz-se pela esquerda. Chegámos a
Zouérat e encontrámos facilmente o único hotel que para o nível mauritano devia
ter, pelo menos, 8 estrelas...
Finalmente lençóis limpinhos e banhos abundantes, o dia seguinte foi de
descanso para todos à excepção do João Rodrigues que passou o dia inteiro de
volta da Strakar e da embraiagem nova que tinha conseguido comprar ao chefe
de oficinas da companhia de caminho de ferro SNIM. A cidade, apesar de ser a
terceira em termos de importância no país, é um aglomerado de pó, gente e
comércios que vendem tudo o que se possa imaginar, nenhuma rua tem asfalto
e todas se cruzam num emaranhado onde é muito fácil perder o norte. Por todo
o lado existem cabras que substituem os serviços municipalizados, devoram
tudo o que vêem pelo chão, nada escapa ao apetite voraz destes pequenos
animais que tal como os camelos são multi-utilitários. Eles limpam as aldeias,
fornecem carne e leite fresco, as suas peles servem de recipientes de água, de
tapetes, de colchões, e ainda servem de moeda, enfim, mais polivalência é
difícil. O fim de tarde, já com a Strakar prontinha, serviu para uma mini revisão
às motos. À noite, e depois de um retemperador jantar no jardim, havia que
decidir o que fazer para continuar a expedição. Os atrasos eram já irremediáveis
e só para quem tinha quatro semanas era possível avançar para o Maqteir.
Acabámos por decidir dividir o grupo, dois jipes e as motos a que davam apoio,
com apenas três semanas disponíveis, voltariam para sul em direcção a Atar,
enquanto o terceiro jipe e três motos seguiriam para sudeste e atravessariam o
Maqteir, as suas quatro semanas permitiam manter a rota prevista no inicio.
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No dia seguinte, depois de abastecer todos os veículos e das difíceis
despedidas, seguimos rumos diferentes.
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