Prólogo - Parte I - Preparo

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Prólogo - Parte I - Preparo
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Os Leões de Ashgar
Prólogo – Parte I
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A vida de um cáride podia transcorrer de um modo muito curioso, ponderava o
jovem Arkesim, enquanto puxava, já cansado do longo dia de viagem, seus dois
camelos por suas curtas rédeas de couro. A maioria dos ashgar estranhava os
membros da família dos tamaurils – puxa, ele gostaria de ver um deles ao vivo o
quanto antes – cujos hábitos e costumes eram considerados bem menos
refinados, educados e limpos que os dos demais leões. Mas, na verdade, refletia
Arkesim, os cárides é que na prática eram bem mais diferentes dos demais. Isso
porque, ao mesmo tempo em que possuíam o menor território dentre todos os
filhos de Arkush, eram também os mais ricos, prósperos e abastados dentre eles.
Tudo graças ao comércio, que era ao mesmo tempo sua benção e sua sina:
desprovidos dos amplos espaços que as demais famílias reservaram-se em algum
passado distante, precisaram se dedicar ao papel de viajantes e intermediários
do deserto, tirando seu sustento do tráfico de bens. O comércio os fazia ricos e
livres – singravam toda Tirra. Por outro lado, também estavam presos ao seu
ofício – porque não podiam simplesmente deixar de comerciar. Suas parcas
terras jamais seriam suficientes. Então, na prática, somos os mais livres e os mais
presos, simultaneamente, concluiu Arkesim.
Às vezes achava que pensava demais nas coisas. Um de seus irmãos mais velhos
lhe dissera isso, certa vez. Não que estivesse infeliz, mas sua vida poderia ser
muito diferente, se não fossem alguns pequenos detalhes para os quais não
conseguia encontrar explicação aceitável. Por exemplo, se sua mãe – a oitava
filha de um pobre sheik beltânida, não tivesse a rara e bela coloração chamada
de cobre, que mistura o ouro ao vermelho escuro, jamais teria sido escolhida
pelo seu já velho pai como sua quinta esposa oficial. Ou, se entre as quakbas
dos cárides não houvesse sempre ao menos uma Bruxa do Azar, seu pai jamais
teria tido acesso às beberagens escuras que lhe garantiram, fugidiamente, a
possibilidade de engravidar sua mãe. E, se sua concepção não houvesse ocorrido
com o auxílio dos sortilégios de Caria, senhora da má sorte, talvez sua mãe não
houvesse morrido em seu parto. E, se ele não tivesse herdado a bela coloração
de sua mãe, possivelmente teria sido melhor tratado pelos seus dezoito irmãos.
Principalmente se seu pai, o Velho Sheik Akkel, não houvesse morrido quando
ele não contava ainda com quatro flamas de idade…
Sabia que divagava, mas não podia evitar. Bom, ao menos Ahaggar, seu irmão
mais velho, que herdou a Quakba e o título de sheik, nunca foi mau. Pelo
contrário, o irmão, ao que parece, até gostava dele, ainda que com um certo
desdém. Deu-lhe uma noite com uma bela akasta, no dia que se tornara leão,
lembrava. Era bem tratado – mas foi preparado para ser mais um guerreiro da
Quakba, mais um vendedor para a Quakba, e não propriamente para se portar
como o filho de um sheik. No fundo, de certa forma, entendia o irmão – devia
ser muito difícil ter dezessete pretendentes ao seu título. Quanto mais deles
pudesse eliminar, de preferência sem ter que matá-los, melhor devia ser para o
irmão, que, sabia, não era cruel. Gostava dele. De toda forma, Arkesim sempre
soube que seu destino não estava na Quakba de seu pai. O começo de sua vida
foi marcado pela sensação da passagem, da provisoriedade. Tão logo terminou
seu treinamento militar, já sabia que desejava partir.
Ahaggar não achou nem um pouco ruim, portanto, quando Arkesim lhe pediu
ajuda para adquirir algumas mercadorias e dar início a uma vida de mercador
do deserto. “Não pretendo voltar por aqui tão cedo, irmão”. O sheik foi
generoso – apesar dos tempos serem pobres. Deu-lhe dois camelos, e encheu
seus lombos de tapetes púrpuras de seda de tamaurils – as minhocas de
verdade! – e de incensos adquiridos entre os cnitas, esses humanos ligeiramente
menos insanos que os demais humanos. Trocou suas armas velhas por armas
novas e belas, lhe deu roupas perfumadas e pequenos presentes usualmente
trocados entre amras. Não se tornara rico, claro, mas as dádivas do irmão
seriam uma verdadeira fortuna para um jovem leão de qualquer uma das outras
grandes famílias. Para um cáride, infelizmente, era muito pouco. Mas, bah –
sonhava em partir, e faria sua própria fortuna longe da terra natal que nunca
realmente fora sua. Venderia as mercadorias de modo proveitoso, e, com calma
e paciência, construiria a própria prosperidade.
“Infelizmente, querido irmão vermelho, não posso lhe dar uma escolta. Lamento.
Lamento mesmo.”
Essa era a parte que o deixava com um pouco de medo – porque, oras, viajar
pelo deserto era sempre perigoso. Bom, mas não tão perigoso. Sabia se virar.
Era um guerreiro competente – foi treinado como amra, e não como akasta,
afinal. Precisava apenas tomar cuidado. Um bom cuidado. Quem sabe pensando
menos e prestando mais atenção no que acontecia à sua volta…
O Sol se punha no horizonte, e pelo deserto se espalhava a luz vermelhoalaranjada do final das tardes, prenúncio da fria noite que se avizanhava.
Arkesim pensava sobre um dos tapetes que lhe havia sido dado como
mercadoria pelo irmão – uma bela representação do Leão Vermelho. O jovem
sempre gostara do fiel semideus – talvez por julgar que tinham a mesma cor.
Sentia-se um devoto do Leão, na medida do possível. Afinal, os cárides davam
maior atenção a Arkush e a Astare, como todos os leões, e também a Caria.
Ninguém conhecia estórias do Leão Vermelho, além das lendas compartilhadas
por todos os ashgar. Mas gostava da idéia de Justiça e punição que ele
representava. Julgava-se também um leão justo, afinal. Planejava que se seus
negócios corressem bem, manteria o tapete em sua propriedade, como talismã
sagrado.
Ficou muito surpreso, não poderia deixar de ser, quando avistou no topo do
morro de rochas à sua direita, um imenso leão-irmão que o contemplava. Não
sabia dizer se por efeito da luz difusa do fim do dia, ou se era sua fértil
imaginação, mas o imenso felino parecia vermelho – como em seus sonhos sobre
o Leão Vermelho. Era um animal magnífico e portentoso. Sentiu imediatamente
uma espécie de temor reverencial – e medo, muito medo, uma estranha angústia
no peito. O leão então sumiu, tão subitamente quanto lhe aparecera ao final da
tarde.
Arkesim – dessa vez sem pensar muito a respeito – sentiu a necessidade de
seguir o animal. Com grande pressa tirou um “pino de terra” da bolsa que
carregava às costas, fincou-o no chão e prendeu seus camelos. Aparentemente
agraciado com uma habilidade que não sabia ter, escalou velozmente as paredes
rochosas do morro, alcançando o topo defronte ao Sol onde outrora estava o
grande animal que lhe surpreendera. A fera de fato havia sumido, sabe-se lá
para e por onde. Abaixo, todavia, havia um pequeno vale, em cuja extremidade
oposta de onde estava abria-se a entrada escura de uma caverna imemorial e,
mesmo de longe, tomada por uma soturna escuridão. Caído próximo à entrada
da caverna, aparentemente desmaiado, havia um ashgar todo negro – cujas
vestimentas rasgadas lembravam a dos sacerdotes de Arkush. Era impossível
saber se o leão estava ferido ou não.
O cáride correu em direção ao amra caído. Pegou seu cantil e molhou o rosto e
a juba do desconhecido. Deitado ao seu lado havia um pergaminho pequeno,
mas bem conservado. Pegou-o, e nele estava escrito, no estilo das quakbas
astáridas:
“De tudo, eu não poderei me esquecer que a escuridão da caverna deve ser
cruzada até o fim. Se de tê-la cruzado eu não me lembrar, é porque ainda não a
cruzei. Os caminhos antigos são escuros, mas que essas palavras possam me
servir de lanterna na escuridão.”
Arkesim nada entende do que está escrito. Neste momento o amra negro
acorda, e toma, sem violência, o papel das mãos do mercador. Ele rapidamente
passa os olhos pelo pergaminho, enquanto tenta se levantar com algum esforço.
Há uma estranha ferida abaixo de seu peito esquerdo, cuja carne em volta do
corte está profundamente enegrecida. Um leve sopro gelado exala do corte que,
apesar de aberto, não sangra. O leão, que parece mais velho que Arkesim, fecha
os olhos enquanto tenta pensar sobre alguma coisa. É difícil – extremamente
difícil. Sua mente está completamente anuviada. O cáride sente-se desnorteado
pela situação. Então, finalmente, o amra negro olha em direção a Arkesim, e
fala:
“Meu nome é Gwasa. E, isto é a única coisa que eu lembro sobre mim… Mas
conheço minha letra, e sei que preciso entrar nesta caverna à nossa frente. Eu…
eu acho que já estive lá, a pouco. E acho que coisas ruins aconteceram… Mas,
há algo lá. Algo que eu preciso – não, devo – encontrar.”
Atônito, Arkesim tenta pensar no que dizer ao estranho amra à sua frente.
Olhou para a escuridão da caverna e novamente para o bizarro ferimento,
obviamente antinatural, que afligia o estranho leão. Sabia que fora levado até
aquele ashgar por um presságio importante do Leão Vermelho e provavelmente
deveria auxiliar aquele irmão amra em dificuldades. Por outro lado não sabia se
sua ajuda deveria consistir em auxiliá-lo a adentrar a caverna ou impedi-lo e
prover cuidados médicos mínimos. Ainda ansioso com a inusitada situação,
decidiu se apresentar:
“Gwasa, deixe-me falar antes de decidir seu caminho. Meu nome é Arkesim e
sou um amra cáride comerciante. Eu somente o encontrei aqui desacordado
porque segui um estranho presságio, que eu acredito ser do próprio Leão
Vermelho. Portanto, eu acredito que devo auxiliá-lo em nome do que é certo e
justo, apesar de não saber exatamente o que devo fazer para ajudar”.
Após breve pausa enquanto ponderava sobre os riscos de deixar seus camelos
em campo aberto sem a sua proteção – havia um risco, claro, já que mesmo não
tendo avistado uma única viva alma nos últimos dias de viagem, o deserto era
sempre perigoso – continuou com um sorriso inofensivo:
“Veja, tenho dois camelos carregados com as mercadorias que disponho para
minha primeira viagem de comerciante. Quero saber se podemos buscar meus
camelos para prendê-los em segurança e olharmos melhor esta ferida estranha
que o aflige. Caso insista, faço questão de entrar na caverna para buscarmos
suas memórias perdidas ou o que quer que você precise buscar dentro desse
buraco de onde provavelmente saíste ferido e desacordado.”
Com a cabeça ainda enevoada, mas já sentindo o vigor voltar-lhe ao corpo, o
grande leão negro levantou-se rindo paternalmente do filhote que falava pelos
cotovelos de tanta excitação – sabia que era mais velho que ele, mas, quão mais
velho? Não conseguia se recordar. Sentou-se levando instintivamente a mão à
ferida, que curiosamente não lhe causava estranheza, a despeito de seu aspecto
incomum – ainda assim, a pele lacerada estava gelada. Após duas inspirações
profundas que denunciavam ser uma leve dormência a única sensação causada
pela pústula negra em seu peito além do frio, finalmente voltou-se para Arkesim,
que aguardava aflito:
“Hummm…?! Claro, claro. Seus camelos… Vá buscá-los. Não queremos ficar
sem mantimentos no deserto, não é mesmo? Hehehehehe…”
Disse o leão, rindo-se sozinho do seu próprio chiste, antes de se dar conta de
que este não surtiu o efeito que desejava em seu jovem interlocutor.
Nesse momento, lembrou-se dos deuses – de todos eles; do grande Arkush, da
mãe Astare. Era um sacerdote – mas, além disso, o que mais? Nada vinha à sua
mente – e, a contra-senso, sabia que o seu esquecimento era algo correto, era
algo que constituía… uma escolha. Batendo em suas pernas cruzadas com as
duas mãos ele olha à sua volta, e então se fixa na escuridão que parece brumar
da caverna, antes de completar:
“Essa caverna não vai a lugar nenhum, afinal…”
Então ele se volta novamente ao jovem Arkesim, que sobe o pequeno morro de
pedras numa velocidade estonteante, deixando o leão perdido em seus
pensamentos. Ele sorri diante da atitude do cáride, preocupado com seus bens
materiais. Percebe nesse instante, que se trata de um amra educado, talvez rico,
e muito bem cuidado. Era um rapaz extremamente simpático, fácil de gostar.
Simpatizou imediatamente com ele.
Enquanto o leão devaneia sobre seu recém-encontrado companheiro, Arkesim
salta sobre as rochas em direção a seus camelos. Ele os vê, estão aparentemente
calmos – os dois deitaram na areia, como costumavam gostar de descansar.
Conforme se aproxima, todavia, o mercador percebe que um deles está de olhos
fechados, quase como um leão apertando as pálpebras, e treme como uma amra
em sua noite de núpcias. O outro, a seu turno, parece estar imóvel –
completamente imóvel…
Nisso Gwasa é assolado por uma memória distante. Alguma coisa está muito
errada naquele vale – e a responsabilidade era sua.
Arkesim olha em volta, como se buscasse a origem da aflição dos camelos. A
princípio, nada vê. Em seguida, busca contato visual com o amra negro para
informá-lo silenciosamente através de sinais faciais que algo está errado e que
acredita se encontrarem em perigo. Entretanto, os morros rochosos impedem o
jovem de avistar o leão…
Enquanto aguardava o retorno daquele novo companheiro, que dizia se chamar
Arkesim, Gwasa permaneceu sentado, de pernas cruzadas, e com suas grandes
patas negras sobre seus joelhos. Espremia os olhos na tentativa de trazer mais
alguma memória de volta ao consciente – lembrou-se de alguns fatos distantes,
mas as memórias evaporavam instantes após, como sonhos à medida que o
despertar se afasta, causando certa frustração no grande leão. Enfim, ele desiste,
pelo momento, de tentar lembrar-se, e se foca na escuridão que parece rastejar
para forma da caverna. Mais uma vez voltou-lhe a sensação de que algo estaria
errado, e de que a responsabilidade era sua. A despeito da fria chaga em seu
peito, devia agir, e agora!
Respirando pesadamente pelo esforço de levantar-se, ele se ergue apoiado em
sua fina lança de aço, decidido a entrar – quiçá novamente – na escuridão
negra daquela caverna. Uma vez em pé, olhou para o chão em busca de seus
pertences. Segurou sua bolsa e quando se virou, viu seu escudo de madeira e
couro no chão. Por um segundo sentiu-se tonto e sua visão enegreceu. Por um
instante sentiu ter visto o rosto de um leão desenhado no escudo, que refletia
uma fraca radiação cobreada. Chacoalhando o rosto para reajustar a visão,
voltou a ver apenas seu escudo normalmente. Sensações discrepantes e dúvidas
surgiram em seu peito, mas por fim a visão que tivera só lhe serviu para reforçar
o ímpeto. Entraria de uma vez por todas na caverna, mas agora, pensou
aliviado, teria companhia.
Frustado, Arkesim acena para os camelos que tremem, e se aproxima dos
animais. O tremor da montaria enervada aumenta cada vez mais, e o cáride,
sem sucesso, não consegue acalmá-lo. Toca no outro animal, que se revela
completamente gelado – morto. Antes, todavia, que possa sequer raciocinar
sobre o que poderia ter matado o animal, três sinistros felinos começam a se
materializar em sua volta…
Para seu horror, diabólicos tigres-fantasma o encaram ferozmente enquanto se
manifestam como se saídos da própria Jaula Abismal…
O mercador tem poucos segundos para decidir o que fazer. Arkesim lembrou-se
do dia em que decidiu aceitar a vocação de sua família e se tornar comerciante.
Sim, ele almejava riquezas, aventuras e viagens, mas também queria se afastar
das disputas de poder pelo título de sheik que pertencia a seu irmão mais velho.
Entretanto, sua primeira aventura mostrava-se mais crua e perigosa do que a
corte de seu irmão. Lamentavelmente, não tinha mais tempo para maiores
questionamentos sobre a vida quando a morte o rondava literalmente. Enquanto
atacava o tigre mais próximo com sua lança curta, rugiu seu grito de guerra o
mais alto possível imaginando que o leão negro o ouviria:
“Eu sou Arkesim e a justiça do Leão Vermelho recairá sobre vocês pelas minhas
mãos!!!”
Gwasa coçava a juba num ato de inquietação. Desde que terminara de amarrar
o escudo ao seu braço sentia que algo estava estranho, como se a escuridão que
advinha da caverna começasse a obliterar o próprio Sol. Ele conjeturava sobre
que forças estariam em ação quando, incomodado como estava, ouviu o grito
de seu companheiro, que o tirou imediatamente de seu estado contemplativo.
Correndo o mais rápido que pode, ele subiu as escarpas rochosas invejando a
agilidade de Arkesim, que parece ter levado metade do tempo para fazer o
mesmo. Atingindo o ápice, já bufando pelo esforço, ele vê a cena que congela
seu coração. Arkesim está prestes a se digladiar a com o que parece ser um tigre
fantasmagórico, enquanto dois outros tentam contorná-lo para estripá-lo por
trás. Por um instante o terror toma conta do grande leão negro diante de tais
crias do sobrenatural, que, todavia, não lhe parecem completamente
desconhecidas. Uma fúria que Arkush sabe de onde veio toma-lhe de assalto, e,
então, ele só se lembraria mais tarde de ter rugido como um grande herói-leão
dos mitos antigos e de ter descido a pequena colina rochosa em carga
ensandecida contra as crias de Barana.
“Pelas chamas de Astare, queimeeeeemmmm!!!!!!!”
Os etéreos felinos cercavam Arkesim lentamente, quase como que brincando
com sua presa antes de atacar. Uma maldade primal, irracional, emanava de
seus escuros olhos que pareciam ignorar a luz difusa que se esvaía dos últimos
raios de Sol. O primeiro ataque do guerreiro, apesar de planejado, falhara de
modo retumbante, e o imenso animal fantasma nem mesmo se abalara por sua
investida. Subitamente animado pela aparição do leão negro que lhe atendia o
chamado, o jovem cáride, em um átimo de coragem que outrora só tivera em
treinamentos militares com fantoches de estopa, agachou-se e estocou a criatura
azulada a sua frente como um pêndulo que vai de baixo para cima. A lança que
jamais esperara utilizar tão cedo penetrou fundo o animal, e atingiu-lhe onde
deveria estar seu coração diabólico. Enquanto o frio aço esgarçava o peito da
besta, ela, por um instante, arregalou os olhos repletos de ódio, como que
incrédula que a simples arma lhe pudesse ferir. No instante seguinte, porém,
tombou morta, para, poucos segundos depois, dissipar-se em uma estranha e
fétida nuvem azul.
O audaz golpe do companheiro aumenta a coragem de Gwasa, que investe
furiosamente contra as duas bestas às costas de Arkesim. A velocidade de sua
corrida não dá tempo aos demônios para se preparar adequadamente contra o
novo inimigo. Seu golpe impulsionado por ambos os braços faz com que a rígida
ponta de sua lança atinja, em cheio, a mandíbula de um dos monstros que se
virava em sua direção, esmigalhando-a em um baque surdo e sinistro. O tigre se
contorce por três segundos para, assim como seu demoníaco parente, se
dissolver em uma nuvem azulada e igualmente fedorenta. Seriam tais aberrações
menos poderosas do que aparentavam à primeira vista?
A terceira das crias de Barana hesita, confusa pelo imprevisível girar de sua
sorte. Sabe Arkush se a criatura era guiada por instinto ou por alguma maligna
força ancestral, mas seu instante de dúvida é suficiente para que Gwasa firme
seus pés no chão e, auxiliado pela proximidade do oponente, arremesse sua
lança contra a carcaça do insano espírito. O aço penetra no flanco esquerdo do
tigre, e quase lhe trespassa. Ferida, a criatura tomba com o impacto – antes de
ter a oportunidade vã de tentar se reerguer, Arkesim velozmente aproxima-se e
crava sua lança de cima para baixo no centro do pescoço do demônio, que se
contorce febrilmente até se esvair como os demais.
Ofegantes, os dois companheiros tossem com força e arfantes para afastar o
imundo cheiro de seus inimigos. Incrédulos diante da fácil, mas quiçá enganosa
vitória, os dois se entreolham enquanto o último raio do dia prenuncia a
emergência do véu das três irmãs…
Ainda cobrindo o focinho com a mão esquerda na vã tentativa de afastar o
mau-cheiro deixado pelos espíritos de podridão, Gwasa atinge o chão com o
punho direito três vezes e com toda a força, como para que esgotar a fúria que
lhe restava. No fundo, na parte consciente de sua mente, sabia que essa fúria
tinha um quê de sobrenatural. Mas era algo bom. Algo de Arkush. E era bemvinda. Após bufar e ranger os dentes por mais algum tempo, amaldiçoando
todos os tigres do mundo, ele vira-se e caminha com passos decididos em
direção à pequena área chamuscada, onde caíra o último dos tigres. Lá ainda
permanecia sua lança fincada pelo impacto do golpe derradeiro. Arrancou-a e
contemplou rapidamente as três luas:
“Humpf! Quisera eu lutar sob a luz abençoada das três irmãs…”
Disse lacônico antes de completar:
“…e sob os olhos de Arkush. Mas nosso destino, meu caro, não é nem um nem
outro. É sob a terra pútrida! A escuridão negra que engole e mata. O lar da mãe
de todos os tigres.”
O pensamento sobre Barana fez com que os pelos de sua nuca se eriçassem.
Pôde ver que o cáride também se incomodou com a citação direta. Entre alguns
clãs, falar abertamente dela era tabu. Mas um verdadeiro filho de Arkush, um
leão negro como a noite sem luar, não deve temer ninguém, muito menos….
“…muito menos a derrotada.”
Concluiu em palavras as suas elucubrações, com um sorriso vitorioso. Um
pensamento destinado mais a se convencer que poderia prevalecer sobre o que
quer que fosse que o esperasse dentro do antro da terra, do que uma crença
verdadeira, pensaria mais tarde. Eis que então sua atenção se voltou para
Arkesim que contemplava inconsolado o que restava de suas riquezas. O jovem
lutara bem. Tinha sangue frio e o braço forte. Com seu apoio, pensava, poderia
enfim sair vitorioso.
“Meu caro, lamento se de alguma forma trouxe-te a má sorte do destino que me
cabe. Mas antes que te lamuries pelas tuas perdas, saibas que creio não haver
outra explicação para todo o teu aparente infortúnio do que os desígnios do
grande pai, Arkush. Rejubila-te! Teu infortúnio está prestes a se tornar bênção!
Inclusive… bênçãos materiais”.
Arkesim permanecia submerso na raiva do calor da batalha quando Gwasa
começou a falar sobre suas intenções. Trincou os dentes de raiva enquanto
constatava as dificuldades que o camelo morto impunha à sua incipiente
carreira. O pouco caso do leão negro com seu prejuízo não ajudou a acalmar
seus ânimos, pelo contrário, sua raiva aumentou quando Gwasa virou as costas
para retornar à caverna como se mesmo os mantimentos fossem desnecessários e
dispensáveis. Entretanto, o presságio que ele presenciava não podia ser
ignorado, tampouco aquelas criaturas decrépitas que sinalizavam o pior que
estava por vir. No fundo, igualmente sentia que o leão era um felino santo,
talvez ligeiramente absorto do mundo real dos ashgar comuns. Respirou
profundamente e disse:
“Gwasa, peço que aguarde o tempo necessário para distribuir a carga possível
para o outro camelo e enterrar o resto na areia, se necessário. Também creio
que devemos queimar este camelo morto. As condições profanas de sua morte
podem atrair azar, além de bestas noturnas em busca de alimento. Creio que
não precisamos de carniceiros atacando o outro camelo e consumindo nossos
suprimentos.” Não soube dizer, depois, porque usara a palavra “nossos”, quase
automaticamente.
Apressadamente, Arkesim começou a carregar o outro camelo com seus bens
que estavam no animal morto. O pobre sobrevivente ficou bastante
sobrecarregado, mas, ainda assim, suportou a carga. Levou o animal para a
base oposta da encosta rochosa, em uma região mais próxima da entrada da
caverna – era o melhor que podia fazer no caso, acreditava. Em seguida,
auxiliado por Gwasa, espalhou óleo combustível – que usualmente os humanos
cnitas compravam para as lamparinas que compensam seus fracos olhos – sobre
o corpo do camelo e ateou fogo para evitar chacais.
Após concluir a operação, pegou seus equipamentos e disse, notando que se
acalmara durante a atividade:
“Fiz o que pude sobre minhas obrigações como comerciante e com os animais,
agora podemos caçar a mãe daquela prole infernal que enfrentamos há pouco.”

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