Força-Exemplo-I - Editora Literária

Transcrição

Força-Exemplo-I - Editora Literária
Prosa
Editora Literária
Prosa, .º 5
Força do Exemplo
mplo
(PARTE I)
Maria Galito
2001
º`tÜ|t ZtÄ|àÉ
Força do Exemplo, 2001
Apresentação
O livro “À Força do Exemplo é uma narrativa que se desenvolve em torno de uma
personagem feminina, Sancha Rodrigues Lobo, de dezassete anos, que tem duas irmãs,
Leonor (dezasseis anos) e Joana (doze anos). As três raparigas vão com os pais numa
viagem à Grécia e à Turquia durante as férias do Verão, e a trama centra-se nas suas
peripécias, num tom leve e divertido.
Personagens principais:
Família Rodrigues Lobo
Pai: João Pedro
Mãe: Matilde
Filha mais velha: Sancha (17 anos)
Ficha do meio: Leonor (16 anos)
Filha mais nova: Joana (12 anos)
Plano da Viagem:
Dia 1: Chegada ao Pireu. Ilha de Mikonos.
Dia 2: Ilha de Rodes. Cidades de Rodes e Lindos.
Dia 3: Ilha de Creta. Ilha de Santorini.
Dia 4: Chegada a Atenas. Acrópole. Tarde livre. Noite turística.
Dia 5: Canal de Corinto, Epidauro e Micenas.
Dia 6: Delfos. Partida para Istambul.
Dia 7: Visita a Istambul.
Dia 8: Partida para Tróia.
Dia 9: Regresso a casa.
Maria Galito
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2
I
Descemos sobre o Pireu, olhando as águas cristalinas daquele que foi, para muitos, o
berço da civilização europeia. O sol irradia-nos a chegada. Desde as cinco da manhã que
irrompe das nuvens de algodão, hora em que avistei os primeiros dourados no muito azul.
Perscruto da minúscula e baça janela do avião. Falta pouco para a aterragem final.
As minhas irmãs fervilham de curiosidade:
- Viste o Pártenon? – Pergunta Joana, debruçada sobre nós, tentando vislumbrar o
pormenor quando, apesar do olhar esbugalhado, pouco mais distinguir que imagens
difusas.
Leonor resmunga-lhe em resposta:
- És pesada, sabias?
- Acorda, meu querido, já chegámos. – É a voz da nossa mãe, nas cadeiras em frente.
O pai dormia, pelo que respira com força ao acordar. A sua cabeça grisalha remexe no
banco, meio atordoada. Deve revirar o bigode e alisar a curta barba, como sempre faz para
ordenar ideias ou recuperar a confiança numa qualquer situação em que foi apanhado
desprevenido. Pois todo ele é serena tranquilidade – ou gosta de assim transparecer,
procurando preservar uma postura há muito passada de moda mas que lhe confere um ar
distinto. E lá está ele a espreitar-me. Pisca-me o olho. Sorrio-lhe.
Mas é a nossa mãe quem recorda:
- Vamos descer. – E olhando para mim – Minha querida, lembra-te que costumam
fechar-te os ouvidos. Faz aquilo que te ensinei, não te esqueças.
Trata-se de abrir bem a boca por detrás de uma mão discreta, enquanto respiro.
Mãe protectora, ainda nos observa, mas depois senta-se, virando-se para a janela de
onde brotam as casas e telhados rasos, muito juntinhos na paisagem. Observa atentamente,
pois é arquitecta de profissão. Pouco faltará para desenhar, sobre um pedaço de papel ou
um simples guardanapo, as imagens que guardou ou recriou para novos projectos.
Continuamos a descer, cruzando os ares em semicírculo, de asas bem abertas.
Enfrentando medos, lendas e mitos. Não os de hoje. Nem os de ontem. Mas os de
tempos há muito distantes. Os que marcaram a mentalidade europeia e aos quais fui
apresentada quando primeiro li Camões na escola – um dos três poetas épicos de todos os
tempos, que glorificou os Portugueses em Os Lusíadas, tanto ou mais que Virgílio evocou
os romanos na Eneida, ou Homero os gregos na Ilíada e na Odisseia.
Camões que terminava Os Lusíadas, cantando:
“A minha já estimada e leda Musa
Fico que em todo o mundo de vós cante,
De sorte que Alexandro em vós se veja,
Sem à dita de Aquiles ter enveja.” 1
1
Canto X, últimos versos de Os Lusíadas, de Luís de Camões. A obra épica foi pela primeira vez publicada
em Lisboa, no ano de 1572.
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Com isto asseverava que os heróis lusos mereciam que lhes cantassem os feitos. Que
estes lhes eram devidos por mérito próprio. Não havendo, pois, razões para invejar heróis
anteriores, cuja glória suplantavam.
Mas que valentes eram esses? Para já, heróis muito antigos, símbolos de uma cultura
milenar. Referências vivas para um sem número de gerações, que lhes conferiram uma
fama difícil de igualar.
Mas porquê? Que terão feito para merecer tão elevado reconhecimento?
Fosse porque razão fosse, aos meus catorze anos, não sabia responder às minhas
dúvidas. Até porque estava habituada a respirar certezas. O certo é que resolvi indagar.
Nem sabia no que me estava a meter.
É meio-dia e nove minutos, hora local. Estou sentada sobre uma mala e não vejo a hora
de embarcar.
Queria eu viajar num paquete branco nas belas águas do Egeu...
Sei que o autocarro nos empurrou pelas longas, confusas e pouco atraentes ruas do
Pireu, para nos depositar – pelas nove e pouco da manhã – à porta deste imenso casarão que
me cobre a retaguarda. Por essa altura, estava pouco mais que vazio, mas tivemos de o
atravessar de ponta a ponta antes de avistarmos o meio de transporte que nos levaria em
cruzeiro às ilhas gregas – que tão belas pareciam nos folhetos promocionais. Um colosso
branco que, ao primeiro olhar sobre a realidade, se descobrira mais parecido a uma banheira
amarela.
Caiu-me o coração aos pés. Ainda não me refiz do choque.
Olho à minha volta. Os turistas foram entregues à sua sorte e há muito que se
manifestam inconformados com o atraso da partida. Mas afinal, quanto mais tempo vamos
ter de esperar pelo início do cruzeiro?
- Tenho fome. – Queixa-se a Joana, cansada de estar mal sentada, deixando por um
minuto aquele CD de música alternativa de que tanto gosta.
Procuro entre os meus pertences um pequeno pacote de bolachas, ainda fechado, que
trouxe comigo de Lisboa e guardei algures no meio de uma quantidade de coisas que
sempre acabam por fazer falta.
Joana recebe as bolachas com agrado, movida mais pela fome do que pela gula; ao
contrário da Leonor que, embora perpetuamente em dieta, as devora com os olhos antes de
as levar à boca e de as saborear qual néctar dos deuses.
Sou a única que acaba por não as comer. Teria preferido chocolate – mas este sofre com
o Verão e faz-me borbulhas horríveis. Pena que seja a única coisa que me acalma. Estou
desgostosa. Impaciente. Irritada!
Aos dezassete anos, com toda a energia de uma adolescente, pareço cada vez menos
capaz de controlar as minhas emoções, geralmente tão disciplinadas.
- Francamente, estamos aqui há três horas! Só podem estar a gozar comigo!
- .ão stresses… – pede-me a Leonor, querendo lá saber do que eu estou a dizer.
De resto, ela é que é a impetuosa do grupo. Mas a situação é perfeitamente excepcional.
Eu quis muito fazer esta viagem. Nada está a começar como previsto!
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Levada pelas pernas, aproximo-me de um dos homens fardados, junto à entrada. Deve
ter uns cinquenta e tal anos, e todo ele traja branco. Abro a boca para falar. Nem penso
muito. Ou melhor, para não haver equívocos, e a mensagem passar depressa, lanço-lhe em
inglês as palavras de ordem que me queimam a garganta:
- Do you want a mutiny? We’re here for three hours!2
Como não tinha sido a primeira a demonstrar impaciência, não foi apanhado de
surpresa. Mas sendo eu tão jovem e tendo, a minha frase, sido tão incrivelmente directa –
até para mim! – Começa a replicar-me – em grego! – Palavras que não entendo mas posso
facilmente adivinhar.
Enfim, talvez mereça resposta tão pouco simpática, mas o meu rosto, intransigente e
fechado, certamente transparecerá uma consciência menos sensata do facto.
Até que uma mão me agarra pelo ombro. É o meu pai. Encolho os ombros, meio
embaraçada. Para não dizer que coro até à raiz dos cabelos. Isto enquanto ele se vira para o
senhor de branco, numa voz igualmente firme mas ponderada:
- So, when do we leave?3
Na presença do meu pai, o relações-públicas resolve declarar prontamente:
- Right a way, sir.4
Sem mais, regressamos para junto da mãe e das manas, que ainda se sentam sobre as
malas. Mantenho-me em silêncio. Ele disfarça um sorriso:
- O que lhe disseste, filha? O homem estava lívido como o fato que tinha vestido.
- Bom, eu... – hesito, preferindo não contar a história toda – disse que já estávamos à
espera há muito tempo. É verdade, não é?
O sorriso esmorece sobre si mesmo:
- Temos uma semana de viagem à nossa frente. Não queremos aborrecer-nos logo no
primeiro dia, pois não?
Abano imediatamente a cabeça. Para bom entendedor, meia palavra basta.
Seja como for, o objectivo é miraculosamente conseguido. Em menos de dois minutos,
os turistas são incentivados a recolher as malas e a entrar na banheira amarela.
Sigo os meus pais, conquistando o meu lugar na espontânea e mal organizada fila
indiana. A Leonor passa por mim, leve como uma pena. O que me leva a duvidar, com
francas razões para isso, se a Joana não traz tudo o resto.
De facto, a mana mais nova carrega, não só as suas coisas como as da irmã, a câmara de
filmar, todos os casacos e dois chapéus que lhe foram enterrados na cabeça.
Puxo o braço da Leonor:
- Ajuda a tua irmã, se fazes o favor. – Peço-lhe. Ao que me devota, em resposta, um
bom repertório de caretas. Mas lá se prontifica, muito lentamente, a recuperar a sua
mochila do braço da Joana. Respiro fundo. Para insistir com ela. – Mais...
- Ela é forte. – Atira-me com desplante.
- Mas não é burro de carga. – Replico, para rematar a conversa.
- E tu és impossível de aturar! – Atira-me, de olhos virados.
Isto de ser a irmã mais velha é uma profissão!
Alço a perna na subida a bordo. Percorro, com o olhar, as sombras daquele barco de
interior amarelo. E respiro fundo.
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«Quer um motim? Estamos aqui há três horas (à espera)!»
«Então, quando partimos?»
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«Imediatamente, senhor.»
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Uma desilusão não partilhada, pelos vistos. Os demais turistas – incluindo os meus pais
e as minhas irmãs – sorriem alegremente, aparentemente esquecidos da longa espera a que
foram sujeitos, cegos pela perspectiva rejuvenescedora de umas merecidas férias.
Já levada pela corrente, atraco junto a duas portas que abrem dois cubículos. Reconheço
o reino que me cabe: a Leonor e a Joana discutem lá dentro. Os nossos pais ficaram no
quarto ao lado e despedem-se com um “até já”.
Avanço para a turbulência. As manas discutem sobre o beliche que recusam em
uníssono, escondido à esquerda atrás da porta. Á direita avista-se uma cama de palmo e
meio colada à casa de banho da direita, com uma entrada tão baixinha que nem um gnomo
conseguia atravessá-la sem baixar-se.
Em frente, uma janela; pequena e redonda, onde o mar ondula de cima para baixo.
Hipnotizada, avanço na sua direcção, enquanto salto para cima da cama do andar de cima
do beliche, agarrando-me à almofada, sempre magnetizada pelo movimento das ondas.
Tiro a sacola púrpura dos ombros e a máquina fotográfica que se enrola no meu
pescoço, enquanto o corpo se desequilibra de um lado para o outro, ao ritmo das águas. E
deixo-me estar, silenciosa. Até começar a ver as coisas a andar à roda.
Apercebo-me que a briga terminou. Começaram a arrumar os vestidos e os calções nas
cruzetas, e as T-shirts nas gavetas.
Leonor apodera-se do território pelo qual competiu com a força das palavras.
Não sei quanto tempo passou.
- Não desfazes as tuas malas? – Rezinga ela – Não o vou fazer por ti.
Surpreendo-as ao afirmar, com um salto do beliche abaixo:
- Tenho de sair. Espero por vocês e pelos pais na proa.
Apresso-me a abrir a porta e a sair para o imenso corredor, cheio de portas e de pessoas
a caminharem nos dois sentidos – a rirem como aquele casal, a reclamarem contra o peso
das bagagens, ou a regressarem como eu à luz que irrompe por tufos de lã no céu de Verão.
Enfim respiro. E recupero do mal-estar, cruzando os braços.
Ajusto o cabelo avançando para a proa, onde mesas rectangulares oferecem cornucópias
de comida. Já se faz fila para o almoço, em self-service. Embala-nos uma música estridente.
Prossigo caminho, paralelamente à piscina onde um sol redondo emana raios
incandescentes. Está calor. Muito calor – mais que em Portugal por esta altura do ano, o
que ainda parece mais estranho. Mas só me detenho na ponta extrema do navio, onde o
porto se afasta sem remorsos, com cara de edifícios amontoados uns nos outros em colina.
Passo a mão pelo rosto. Escalda. Os cabelos desprendem-se e a terra firme despede-se a
ritmo certo. Viro-me, então, para a piscina. Talvez seja melhor ir arranjando lugar na fila
indiana para o Almoço Continental.
Só muitos minutos depois é que a Leonor e a Joana aparecem. A primeira das quais se
aproxima de mim, com a intenção explícita de se pôr a meu lado, independentemente de já
ter atrás de mim uns quinze ou vinte indivíduos.
A maior parte das pessoas faz isso, sem um mínimo de arrependimento. A Joana,
porém, fiel aos seus princípios, caminha para o fim da fila, disposta a aguentar o tempo que
for preciso pela sua vez. A Leonor ri-se, estampando no rosto o quanto considera a atitude
da irmã um despropósito.
Até que se avistam os nossos pais. Caminham sorridentes, de óculos de sol.
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Aqui estão as minhas lindas. Tenho que andar sempre atrás de vocês! – Comenta a
mãe, enterrando-nos na cabeça, minha e da Leonor, os chapéus que esquecemos de
pôr.
Ao que vai fazer companhia ao nosso pai. Não junto a mim e da Leonor, nem da Joana
mas precisamente no fim da fila. Percebe-se, portanto, a quem eu e a Joana saímos.
Aproximo-me enfim da mesa de mil cores, com um pratinho na mão. Mas já outra
dúvida me assola. Onde raios nos vamos sentar? Ao sol, como aqueles senhores? Nem
pensar, estão vermelhos que nem lagostas!
Partilho as minhas apreensões com a Leonor, mas ela não me liga nenhuma, absorta que
está com as iguarias que lhe fazem crescer água na boca.
Tenho de ser eu a resolver o assunto, portanto.
Sirvo-me rapidamente antes de me lançar pela porta lateral e entrar cá dentro, onde o
calor de quase quarenta graus parece uma miragem; aqui temos ar condicionado! Excelente.
Resta descobrir o sítio indicado onde poderão sentar-se cinco pessoas à vontade.
Dou uma vista de olhos pelas mesas. Estão todas preenchidas. Porque será?
Ah, mas aqueles senhores estão a levantar-se. Aproximo-me e aguardo.
Mais ou menos pela mesma altura em que a Leonor, a primeira do grupo, surge à porta
do salão, a mesa desocupa. Todavia, para minha surpresa, estes senhores – que apareceram
agora, sabe-se lá de onde! – Querem usurpar o trono pelo qual tenho estado à espera.
Dirijo-me à senhora que quase se senta:
- Desculpe, mas eu estava primeiro.
Ela vai logo aos arames, colocando as mãos para cima:
- Oh, por favor... – mas como quem engole palavras bem mais fortes.
Respondo simplesmente, com firmeza:
- Por favor, não. Por direito. Eu cheguei primeiro.
Afastam-se logo, com muito maus modos. Rebolo os olhos e sento-me.
A Leonor aproxima-se, com um sorriso de troça. Assistiu à cena:
- Então, a fazer amigos?
Exalto-me:
- O que foi, já não posso defender-me? – Mas logo procuro controlar-me. Peço-lhe
discrição. – Não aconteceu nada, por isso não precisas contar aos pais.
Ela faz cara de caso:
- Se não aconteceu nada, o que há para contar? – Desafia, arqueando as sobrancelhas.
A sua expressão é dúbia. Mergulho novamente nas águas da incerteza.
Ela apercebe-se e olha-me com cara de gozo. Começo a bater com as pontas dos dedos
no tampo da mesa.
A Joana aproxima-se na sua lentidão habitual. Senta-se ao lado da irmã.
Estranhando o silêncio, interroga-nos:
- Então, zangaram-se?
Leonor ri-se, enquanto corta um pedaço de carne:
- Não, a mana é que passou uma noite em claro no avião e agora está que não se
pode! – Esbugalha os olhos. Mas depois, levanta-se. Onde é que ela vai? – Olha,
trouxeste sumo e eu esqueci-me. Esperem, vou buscar!
Cruza-se com os pais. Os que, ao chegarem junto à mesa, não poupam elogios à sua
localização: em frente à janela, de onde se avista a imensidão do mar; num sítio fresco, mas
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sem o ar condicionado sobre a nossa cabeça; e com música ambiente, mas não tão alta que
nos impeça de conversar.
- Muito bem, meninas. Dou-vos os meus parabéns. – Delicia-se a mãe, conferindo um
beijo gordo na testa da Joana.
Quando a Leonor regressa damos, enfim, início ao nosso almoço.
Entretanto, a Joana lembra o quanto a nossa prima teria adorado vir connosco. De facto,
a mana ficou particularmente desiludida quando a Catarina – mais concretamente, a filha do
primeiro casamento da nossa tia materna – resolveu declinar o convite para vir à Grécia,
por causa do trabalho de fim de curso, que vai apresentar imperativamente – segundo a
própria – em finais de Setembro.
A nossa mãe não desanima:
- Vem para a próxima, minha querida. – Beija-a na testa, querendo muito animá-la. –
Ao que, numa expressão divertida – Oh, vai ser uma viagem maravilhosa, vão ver. –
Abraça a Joana e a Leonor – É tão bom ter-vos cá todos. Vemo-nos tão pouco
quando estamos em Lisboa; vocês a estudar, nós os dois a trabalhar, cada qual para
seu lado. Mal nos vemos ao jantar.
Mas o nosso pai murmura, mais desolado:
- Seria uma viagem mais engraçada se tivessem escolhido um país com menos ruínas.
- A Grécia não está em ruínas. – Obrigo-me a intervir.
Olha-me com espanto. Mas sorri, pegando-me na mão:
- Claro, minha querida. E vamos divertir-nos bastante.
Como não estava à espera do seu consolo, acabo por me descontrair.
Acordo deambulante. O mar bate forte na vidraça.
- O que se passa? – Pergunto repetidamente. Mas as minhas irmãs não sabem
responder-me.
Batem à porta. A nossa mãe apressa-nos com determinação:
- As pessoas estão a ir todas para o andar de cima. Temos que saber o que se passa.
Não é normal que o barco se mexa tanto.
Joana perde a calma mas é levada pela mãe com um braço sobre os seus ombros. Todo
o navio dança de frente para trás, de trás para a frente. Ao que parece atravessamos um
remoinho.
Subitamente, os altifalantes ecoam a aconselhar que busquemos os salva-vidas.
Leonor entreolha-nos, com consternação:
- Porque quererão que busquemos os salva-vidas? – Mas não parece uma pergunta.
Há já quem corra no corredor. A vaga que seguia rumo ao andar de cima, faz de repente
meia volta, desejosa de recuperar o equipamento. Os nossos pais ainda nos tentam alentar,
mas como o navio parece mais agitado, o ambiente no corredor acaba por imprimir-nos o
seu ritmo. Sobe-me um nervosismo miudinho mas é a Leonor quem primeiro decide imitar
os demais turistas, apercebendo-se da dificuldade que teremos para subir as escadas ao
andar superior.
Eu e a Leonor abrimos as portas e recuperamos os cinco salva-vidas. Tão rápidas
quanto podemos, distribuímo-los e retomamos caminho, levadas por uma turba de rosto
lívido. À nossa volta, as pessoas mostram-se preocupadas, se não mesmo alarmadas.
Começamos a temer o pior:
- João Pedro, não vamos ter um acidente no mar, pois não? – Pergunta a nossa mãe.
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Não, claro que não. – Responde-lhe, remexendo as mãos – Nós só precisamos de
compreender o que se passa.
O trânsito intensifica-se junto às escadas. Aqueles rostos revirados, de olhos enrugados,
agarram-se ao plástico vermelho como quem tenta garantir a salvação.
Iniciamos a subida.
Um dos senhores à nossa frente quase se estatela no chão, não fosse a ajuda do casal
que o recebeu em braços. Nada que detenha a Leonor – se é a sua sobrevivência que está
em jogo. Fura por ali a dentro, enquanto eu a sigo, puxando pela demais locomotiva.
Mas a mana é inadvertidamente empurrada contra a parede. Berra contra a descortesia,
incapaz de perceber que fora involuntária, e insiste em fazer-se entender como se tal
adiantasse de alguma coisa.
Para evitar confusão maior, resolvo ocupar a dianteira do comboio, guiando a família
para um local menos apertado. A Joana, coitada, tenta que não acabemos no colo de alguém
mas é o nosso pai quem aguenta a pressão traseira, para que não nos ensanduichem contra
os da frente de tanto empurrar.
Ultrapassamos a esquina. Dão-me uma cotovelada. Ainda me queixo mas, como não sei
quem foi e à minha volta todos parecem falar estrangeiro, obrigo-me a esquecer a dor e a
acelerar o passo a cada degrau conquistado a pulso.
Avisto o fim das escadas. A pressão dos lados aumenta. Começo a sufocar. Estamos
demasiado perto uns dos outros. O navio dá um solavanco súbito. O pânico instala-se.
Insisto em avançar, subindo enfim o último degrau. E agora? Bom, é seguir a onda.
Todos caminham na mesma direcção. Mas quanto tempo faltará para lá chegarmos?
Sou empurrada, arrastada pela corrente. Ao acelerar, acabo sozinha, perdida do grupo
que trazia comigo.
Bem olho à minha volta, mas nada reconheço que me seja familiar. Puxam-me corpos e
caras desconhecidas, todos na mesma direcção, mas sem propriamente um desígnio final.
Redescobrindo energia entre o cansaço, perfilho caminho. E insisto, com a sala como
desígnio. Até que a avisto, e entro por ali a dentro. Furo até poder ver (ou ouvir) o que me
ilumine. Ou, pelo menos, o que possa tranquilizar-me o espírito. Até avistar o tal homem de
branco, o relações-públicas do barco, bem aninhado no palco. Gesticula em várias línguas,
com um colete de salva-vidas enrolado ao corpo, enfiado pelo pescoço.
Interrogo sobre o que se passa. Não quero acreditar na evidência.
Mas a verdade é mais vezes simples. Os altifalantes – roufenhos e obsoletos – haviam
cuspido palavras incompreensíveis, mas apenas e tão só para ensinar princípios básicos de
sobrevivência. O tiro saíra-lhes pela culatra.
Portanto, o susto fora em vão. O mar podia mostrar-se inquieto mas, naquelas águas,
essa era uma situação pouco menos que regular. A tripulação apelara à nossa presença a fim
de nos ensinar – tal como se faz nos aviões antes de descolar – a usar os coletes de
salvação. Mas não se apercebera de como as várias condicionantes juntas haviam assustado
os passageiros. Pior que isso, não tinham sido suficiente rápidos ou sensíveis à necessidade
de remediar a situação.
O certo é que não vivíamos nenhum tipo de risco, nem iríamos ao fundo como o
Titanic. Fora tudo um mal-entendido. Fruto da desorganização dos responsáveis pelo navio.
E do pânico dos excursionistas.
Regresso, pelo caminho inverso. Mas não estou furiosa, como talvez fosse natural que
estivesse. Sinto-me aliviada.
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Estão só a ensinar a usar o salva-vidas. Não há perigo. – São as minhas palavras;
umas vezes em português, outras em inglês, para quem, ainda iludido, passa por
mim a caminho da sala.
No entanto, não parecem acreditar em mim. Respondem-me passivamente com olhares
difusos, apanhados pela perplexidade.
Até alguém bramir com mais força, em sonoro castelhano:
- ¡Fuimos engañados! Están solamente enseñando a emplear el salva-vidas!!5 – E
está furioso.
Aviso que cria, este sim, um grandessíssimo reboliço. Á minha volta, as pessoas
parecem mais agitadas, para não dizer exaltadas, revoltadas, furibundas.
Sou atirada, ora para um lado, ora para o outro, como se o mar de Inverno tivesse
catapultado cá para dentro. Mas insisto em marcar terreno pelo redemoinho de mil caras,
determinada em regressar para junto da minha família.
Pelo caminho, apercebo-me que ainda há quem não saiba o que se passa e tenha ficado
apreensiva com a mudança de humores. Passo então a palavra, em todas as línguas que sei e
não sei, até chegar às escadas onde avisto a Leonor e a minha mãe. Elas já sabem. Mas este
senhor ainda não. Resolvo encavalitar-me no corrimão, para avisar os que estão lá em
baixo, encravados entre degraus.
A meu lado, Leonor respira exaltação, e a Joana benze-se, amaldiçoando a hora em que
entrou neste navio.
- Será possível que ninguém tenha sabido explicar às pessoas que não havia causa de
alarme? – Exclama o pai. Como é seu hábito, sem elevar o tom de voz.
A nossa mãe é menos pacífica:
- Eu vou fazer uma reclamação escrita. Isto não fica assim. Vou ter com comandante
desta barcaça! – E levanta-se, pega no nosso pai – Vem comigo.
Tenta demovê-la. Por não haver necessidade, segundo ele, de ampliar o problema.
Porque veio de viagem para descansar e não para arranjar conflitos:
- Se iniciamos um processo, depois é papelada que nunca mais acaba. – Explica.
Mas a nossa mãe não é demovida por esse tipo de argumentos. Quando a sua fortíssima
personalidade dá sinal de si, ninguém a consegue parar:
- Eu vou falar com o comandante e vens comigo, João Pedro.
Desaparecem os dois entre a multidão que sucessivamente vai dispersando. Joana,
pálida de neve, encosta-se à parede com a mão espalmada a afastar o mau-olhado, enquanto
a Leonor se estende nas escadas que dão ao andar de cima, despreocupada quanto ao que
poderão dizer por estar sentada no chão.
Esbugalha os olhos, meio atarantada. Dou-lhe um toque no braço, para que se levante.
Ela remexe as sobrancelhas da abóbada orbital, qual ondas do mar, mas aceita erguer-se e
descer para junto de nós.
- Começo a ficar farta de escadas! – Resmunga.
Com uma careta tão patética que, ante o cansaço e o desespero, desatamos as três a rir.
Passaram três horas. As águas acalmaram.
A ilha de Mikonos continua uma miragem no mais profundo azul. São cinco da tarde.
Posso constatá-lo no relógio de pulso do nosso pai, que lê o jornal comprado no aeroporto
de Lisboa antes de embarcar no avião. Franzindo o sobrolho, folheia lentamente cada
5
«Fomos enganados! Estão só a ensinar a usar o salva-vidas!»
Maria Galito
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página, mastigando a informação das secções económica e política para se manter
actualizado, dedilhando o farto bigode. Assustou-se deveras mas mantém a postura, como
se nada tivesse acontecido.
A sua relutância em tirar conclusões precipitadas, mostrara-se mais sábia que a dos
outros turistas. Não fosse o ambiente de pânico a confundi-lo, nenhum de nós tinha passado
por aquela aflição. Porém, caso a situação tivesse sido realmente grave, teria levado
demasiado tempo a decidir-se, o que nos poderia ter sido fatal.
Á minha esquerda, desabrocham as primeiras rosáceas no rosto antes sério da nossa
mãe. Sempre foi falar com o comandante. Disse-lhe das boas e só veio quando, segundo a
própria, se cansou.
Joana contempla o mar. Firme como uma rocha, mas tensa na sua quietude. Tenta
escamotear a insegurança que sente, enrolando as mãos uma na outra.
Isto enquanto a Leonor, impetuosa e irrequieta, se atira de cabeça numa conversa
animada com um trio de espanhóis – duas raparigas e um rapaz – sentados na mesa ao lado
da nossa. Pelo que percebi, são de Barcelona. Comunicam em catalão – língua que
costumamos ouvir menos que o castelhano. Nada que atrapalhe a Leonor. Quando não
consegue identificar as palavras, tira a ideia do contexto.
Em contrapartida, eles parecem enfrentar sérias dificuldades em relação à língua
portuguesa. Pedem a Leonor que able mais de espacio. Mas a mana não desiste de se fazer
entender. Deve ter-se sensibilizado com o facto de estes espanhóis não lhe terem atirado
com um categórico “es que no te entiendo!”, que mormente se traduz por ou falas a minha
língua ou não há conversa.
Joana, mais discreta, mantém-se à margem mas logo é chamada para entrar no grupo.
Até Leonor vencer pela sua inesgotável força psicológica:
- Yes! – Exclama de braços no ar – Perceberam-me. – Ao que desata a dançar com os
ombros, com um sorriso franco que acaba por animar-nos a todos.
Pouso a esferográfica e deixo de escrevinhar sobre o papel, cuja face tem um programa
sobre Mikonos. Encosto-me à cadeira e fixo o horizonte dourado. Leonor aparece à minha
frente, pegando-me no braço:
- Vem connosco. – Exige. Sigo-a. Seria inútil negar-me a fazê-lo. Ao que me sussurra
aos ouvidos – Os espanhóis não têm mesmo jeitinho nenhum para línguas, não é? –
Troça, com um olhar divertido. Ao que, enrolando o braço ao meu – Mas já olhaste
para ele? É tão giro... – ao que mordisca o lábio, levando uma mão ao pescoço.
Depois decide-se e puxa-me, catapultando-nos para dentro do labirinto que é o interior
do navio. Até descobrirmos a razão da solidão dos corredores exteriores. O comandante do
navio serve um cocktail aos seus excelentes convidados. Não que nos tenham avisado.
Regresso, portanto, para o enunciar aos meus pais. Mas não mostram entusiasmo.
- Talvez uma bebida fresca? – Proponho.
Mas nem a alusão lhes desabrocha a energia. Continuam sentados ao sabor da brisa
marítima.
Encolhendo os ombros, torno a entrar nos corredores do navio que me transportam ao
salão de recepções. Leonor brinda com champanhe a uma qualquer futilidade, como se
fosse a maior glória dos últimos tempos. Talvez ajude o facto de o catalão ter uns
expressivos olhos azuis.
Maria Galito
Força do Exemplo, 2001
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Oh, onde o Carlos já vai? O Carlos!, colega da Leonor há anos!, por quem ela diz ter
uma paixão assolapada. Enfim, ainda estão naquela fase em que ainda não é gato nem
peixe. Só o tempo o dirá. Não hoje. Ela tem mais em que pensar.
Entretanto, um dos empregados passa com uma bandeja. Tiro duas taças, deixando o
pobre homem sem saber se mo há-de permitir ou não. Não que lhe dê tempo para grandes
decisões, desaparecendo em direcção ao mar.
Quando a mãe descobre que lhes trago as bebidas, sorri-me com doçura:
- Obrigada, minha querida. Leste-nos os pensamentos.
Surgem os primeiros contornos da ilha de Mikonos, mentes o crepúsculo pinta em
aguarelas a iluminura da paisagem. Três batéis baloiçam junto ao navio. Cada qual guiado
por um homem com umas calças arregaçadas e uma camisola às riscas brancas e azuis,
vestindo as cores da aldeia de Mikonos.
Descemos as escadinhas exteriores, subindo a bordo muito lentamente. O vento macio e
sedoso acaricia-nos a pele e o som das ondas embala a entrada do porto. O sol, de um
vermelho-púrpura, desaparece ao nosso lado esquerdo, enquanto nos movimentamos
desejosos de terra firme. Puxo da câmara de filmar, decidida a não perder a força do
momento.
Desta vez, nem precisamos aguardar pelo meio de transporte, que o autocarro aguardanos há um bom par de minutos. Os nossos companheiros de viagem já caminham na sua
direcção. Mas eu espero pelas manas, olhando em volta.
Um outro paquete, maior e mais imponente, envia os seus batéis cheios na nossa
direcção. Ambientada no horizonte, onde o mar espelha o púrpura do sol estival, a nossa
banheira de interior amarelo já não parece tanto uma banheira. É paquete sem pretensões de
grandiosidade, mas talvez não nos envergonhe como acreditei a princípio.
Ou então, é a súbita boa vontade que me comove.
A ilha, quase exclusivamente explorada pelo turismo, é conhecida pelas suas belas
praias onde acolhe anualmente milhares de fugitivos das grandes cidades. Foi moldada para
agradar aos turistas e o resultado foi conseguido.
Abro a mochila para ler o panfleto: «Mikonos, com o seu casario branco de formas
cúbicas e característicos moinhos de vento». Engraçadas são as cúpulas de umas quantas
casas, pintadas a azul – o mesmo tom de mar que representa a Grécia – com uma pequena
Cruz de Cristo. Que engraçado, são algumas das 365 capelas bizantinas da ilha – 365 como
os dias do ano. As persianas das habitações são igualmente azuis e, das janelas,
desabrocham vasos de flores brancas, rosas e vermelhas. Para trás fica o caos e a imundice
do Pireu. Aqui tudo cheira a limpeza.
Gosto especialmente das flores nas varandas. Enriquecem o azul-marinho intenso do
rodapé das casas. E enfim, eu adoro flores.
Pena que o autocarro seja velho. Acossado por uma tosse assimétrica, impõe o que mais
parece uma viagem de canguru a portugueses e espanhóis pelas ruas de Mikonos. Nem a
Joana consegue dedicar-se à música, agarrando-se aos braços da cadeira.
Até que tudo acaba. De repente.
- O quê? Já acabou a viagem? Estamos todos vivos? – Ironiza a Leonor.
As luzes substituem o sol e a noite cobre-nos dos altos céus, com um xaile de estrelas.
A estrada avança em L invertido, pela praia de ondas em espuma, levando o grupo risonho
até à zona dos cafés, pastelarias e comércio tradicional que nos atrai com as suas bijutarias
e cerâmica tradicional, ou com os habituais postais para enviar à família e amigos.
Maria Galito
Força do Exemplo, 2001
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Um casal pede-me que lhe tire uma fotografia. Enquadro-os rapidamente na paisagem
mas, ao contrário da maioria que tira muito de longe, aproximo a imagem para que os seus
rostos felizes possam realçar na fotografia.
Entretanto, a Joana e a Leonor perderam-se no comércio a retalho, enquanto os nossos
pais se dirigem a um dos cafés para comprar águas frescas. Aquiescendo, combino um
ponto de encontro, para daqui a meia hora. Porque preciso descobrir aquelas duas.
Onde estarão? Entro em duas lojas. Não, estão ali – completamente absortas nos fios,
pulseiras, brincos e anéis.
Aproximo-me, mais empurrada pelas pernas que por vontade expressa. Ainda observo
os postais mas rapidamente me canso. Até que a Joana se vira para mim, com três colares
nas suas mãos pequenas:
- De qual gostas mais? – Pergunta, verdadeiramente indecisa.
Aponto o da pedra verde. Ela concorda comigo mas vira-se para o vendedor sem uma
decisão formada. E vira-se para mim outra vez, hesitante:
- Então e este? É mais bonito, não é?
A Leonor já experimentou a maioria dos anéis. Colocou cinco de parte, para seleccionar
mais tarde, absolutamente indiferente ao nosso diálogo.
- Sim, é mais bonito. – Respondo, escondendo a indiferença da escolha.
Joana, pouco convencida, recupera do tabuleiro o colar de pedra azul, antes preterido a
favor do verde:
- E este? Não fica melhor com o vestido?
Felizmente não somos as únicas a quem o grego vende bijutaria, ou o pobre
desesperaria!
Avanço até à porta de onde posso avistar o movimento nas ruas. O jogo de luzes
favorece a marginal e esta aragem sabe bem depois de um dia de calor. Tranquiliza-me.
Deixo-me estar, fixa no movimento dos transeuntes mais do que nas pessoas que
participam nesse vai e vem de gente.
Observo o relógio. Passam três minutos da hora combinada. Encolho os ombros,
decidindo-me a arrancar as duas raparigas daquela loja.
- Não sei qual devo levar. – Queixa-se Joana, enchendo as bochechas de ar.
Ao balcão, Leonor acabou de comprar os cinco anéis que mais gostou.
- Joana, os nossos pais já estão à espera. – Peço-lhe, afastando-me ligeiramente a
cada palavra, arrastando comigo uma Leonor agarrada aos chapéus e aos lenços.
Leonor corre para junto dos nossos pais, a quem mostra as suas compras – cinco anéis
de que não precisa, para acumular a muitos outros sobre os quais perdeu interesse.
Enfim a Joana aquiesce aos meus apelos. Abre o pacotinho de papel, mostrando o
resultado da sua escolha – nenhum dos colares que dera a entender gostar. Este possuiu
duas belas pedrinhas pretas. Mas Joana já se mostra dez mil vezes arrependida com a
compra:
- Devia ter trazido o azul.
O espectáculo apresentado pelo Mil-Línguas – tocado por orquestra de três músicos,
executado por um quarteto de bailarinas – preenche o serão a bordo do navio.
O Mil-Línguas é o tal senhor que veste teimosamente o branco. É alto e adora alisar o
seu cabelo grisalho. Quarentão, julga-se o máximo – apesar do grande sinal que lhe brilha
na cara e da farta barriga que o cinto apertado não pode puxar para dentro. Tem vindo a
Maria Galito
Força do Exemplo, 2001
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conquistar reputação entre as damas solteiras que riem pateticamente quando ele canta ou
passa por elas. Ao que o Mil-Línguas lhes retribui um riso fabricado e insolente, de quem
sabe ser o artista que a assistência pediu a Deus!
Em compensação, atrás do pavão, estão três músicos, um dos quais a tocar guitarra
grega. Muito embora discreto, dedilha o instrumento com mestria e parece tocar mais para
ele do que para a assistência, como se já tivesse desistido de ser ouvido. Mas o som
melodioso que reproduz é muito interessante e aprazível.
Concentro-me na música, portanto, esforçando-me para não ligar às bazófias do Mil
Línguas.
Até que entram as bailarinas – três louras e uma morena. A mais velha é a coreógrafa e,
claramente, a líder do grupo. Anima pelo regozijo. Deve repetir a dança pela milionésima
vez mas, ao contrário das colegas, adora o seu trabalho. Não admira, pois, que no cancã à
moda de Paris, seja de um entusiasmo delirante, divertindo-se a corar os turistas homens,
sempre que se atira para o colo deles, ante o riso divertido ou disfarçado das respectivas
mulheres.
São sete da manhã. O altifalante, instalado no rádio do quarto, justo em cima da
mesinha de cabeceira, rebenta a mais alta das escalas.
- Fechem essa porcaria! – Expludo, atirando a almofada do alto do meu beliche
contra o despertador, depois de a ter enrolado à volta da cabeça sem sucesso.
A almofada foi certeira mas a música, controlada do exterior, só se silencia por si. E
depois de o Mil-Línguas falar à nação. Ao que parece, o pequeno-almoço começou a ser
servido no salão e continuará ao nosso dispor até às oito e meia, hora da partida para a ilha
de Rodes.
Leonor exaspera:
- Será possível que não conseguem calar aquele homem!
Mas Joana resolve tomar uma medida mais comedida. Propõe tomar banho em primeiro
lugar, para nos dar tempo para acordar. Agradeço-lhe, enquanto ponho as mãos na cabeça.
Esta estala-me de sono, enquanto os olhos se revoltam ante a possibilidade de esticar as
pestanas.
- Que horas eram quando nos deixámos dormir? – Se bem que a pergunta não se
dirija a ninguém em especial.
Joana responde-me:
- A última vez que olhei para o relógio eram três da manhã.
- Nem quatro horas dormimos... – queixo-me, desolada.
Enterro a cara nos lençóis, demasiado preguiçosa para procurar a almofada.
Os nossos pais batem-nos à porta quarenta e cinco minutos depois. Joana ainda escolhe
o fato e a Leonor não é capaz de encontrar os anéis que comprou ontem. Como já estou
pronta, saio para saudar os recém-chegados com um beijo. Têm muito melhor cara que eu e
troçam dos meus olhos inchados.
Lá dentro, Leonor berra por não saber da máquina fotográfica.
Enfiam-me um chapéu na cabeça. O pai pergunta-me se perdi alguma coisa,
escondendo atrás das costas os meus óculos de sol. Eu nem dera pela sua falta mas era, de
facto, uma maçada se os tivesse perdido.
Passam mais cinco minutos. Chegou a altura de tomar uma atitude:
Maria Galito
Força do Exemplo, 2001
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- Vá despachem-se. Ainda temos de tomar o pequeno-almoço e faz-se tarde.
No salão, as mais apetecíveis iguarias, além de um cardápio só de frutas. Ficamos ao
fundo, na mesa que nos ficou reservada, onde somos servidos por um velhote grego de uma
extrema simpatia. Às oito e dez dirigimo-nos ao grande hall, onde os turistas se concentram
antes de enunciada a partida. Prontifico-me a retirar as nossas cinco chapas do painel de
parede, as que conferirão, quando regressarmos ao fim da tarde, se estamos todos.
Portuguesas e espanholas, fiéis à tradição ibérica, abanam-se com coloridos leques para
atravessar o momento com orgulhosa dignidade, já que o navio leva uma eternidade a parar
completamente e a fila, desorganizada, dificulta a saída atempada.
O meu relógio marca oito e quarenta e dois, no preciso instante em que ponho os pés na
ilha de Rodes. Leonor e o jovem catalão passam por mim, expeditos, rindo de uma qualquer
parvoíce.
Estão os dois neste entretanto, quando uma rapariga de um louro platinado se aproxima
com uma lista de nomes.
- Família Lobo? Cinco pessoas. – Confirma, depois de o meu pai ter ido falar com
ela. Pede-nos então que entremos no autocarro número 6.
O nosso grupo forma-se à direita. Desta vez, os nossos companheiros são onze ingleses,
pelo que o trio de catalães não viajará connosco.
Leonor esconde o desapontamento, revoltando-se contra a primeira coisa que lhe vem à
cabeça:
- Uma pessoa, desde que se levanta até que se deita, não faz mais nada do que andar
em filas!
Reparo ainda no jovem catalão que nos acena. Leonor retribui-lhe o gesto com um
grande sorriso.
- Ele é giro, não é? – Comenta, virando-se para mim e para Joana.
- O... – ao que me apercebo que nunca cheguei a ouvir o seu nome – Como é que ele
se chama mesmo? – Leonor prenuncia-lhe o nome. Repito o que ouço. – Jámon?
Retribui-me uma cara absorta de gozo:
- Jamón é presunto. Ele chama-se Ramón.
Bocejava de sono mas engasgo-me a rir.
Fala-se de Rodes como a ilha das borboletas. Pertence ao arquipélago de Dodecaneso,
sendo esta ilha a sua principal referência. Ao que parece, os seus habitantes dedicam-se
sobretudo ao turismo, à pesca das esponjas, à produção do tabaco, à vinha e ao algodão.
A ilha de Rodes tem uma capital homónima, a cidade das rosas, conhecida
internacionalmente por o seu porto ter erigido aos céus, no século IV a.C., uma imensa
estátua dedicada ao deus Apolo, reconhecida como uma das sete maravilhas do mundo
antigo – o Colosso de Rodes. Era uma entre quase uma centena de estátuas gigantescas na
ilha, mas definitivamente a mais grandiosa de todas.
A guia aponta-nos o lugar exacto onde a estátua de Apolo esteve antes de ser destruída
pelo terramoto que igualmente arruinou parte da Acrópole e da urbe, espalhando pelo porto
falhas de cobre que a população foi pescando ao longo dos anos ou que a cidade vendeu,
depois de decidir que o colosso não mais seria reconstruído.
Maria Galito
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A guia desenvolve depois a História da ilha, levando-nos à época helenística, às
invasões romana e bizantina, ao tempo das cruzadas e da invasão turca, recordando as
influências venezianas e genovesas nos edifícios e jardins.
Subimos à Acrópole de Rodes, hoje em ruínas. A olho nu, identificam-se o templo de
Apolo, o teatro, o ginásio e a palestra – estes três mais em baixo, na descida. É que se muito
do seu mármore ainda resiste, não escamoteia a degradação a que o recinto chegou.
Sucessivas invasões e conquistas deixaram marcas profundas na cidade, que sempre viveu
períodos conturbados.
Prosseguindo viagem, entramos pelas muralhas medievais, acompanhando o discurso
decorado da guia que evita acrescentar uma palavra que seja ao texto previamente
estipulado, parando de vez em quando para rir-se das anedotas que o motorista lhe vai
contando – em grego!, para mais ninguém perceber.
- Olha, está ali um veado! – Exclamo.
Das janelas escorrem lágrimas de trepadeiras em flor. O brasão da cidade foi gravado
na torre mais alta do castelo e as arcadas das casas são uma sucessão de lojas de artesanato.
Aqui paramos. Seguimos a pé em direcção ao castelo. Ladeiam-nos lojinhas – pequenas
mas bem ambientadas no interior da cidadela – cujos artigos são exclusivamente para
consumo turístico.
Após uma entrada no castelo propriamente dito, subimos umas escadas quase a pique
rumo ao andar superior. Regulo a máquina de filmar, para poder gravar em ambiente
interior, enquanto a guia arrasta o grupo a passo acelerado.
Os turistas mal puderam ver a janela centenária, à minha esquerda – cujos braços, num
recanto, formam bancos de pedra, observa uma paisagem deliciosa – e já avançaram para o
primeiro salão.
Diz a guia que o recinto, no seu conjunto, é uma cópia italiana do verdadeiro palácio
destruído. Destas reconstituições, o que mais me desperta atenção é a estátua de Laocoonte
e dos seus dois filhos, a serem devorados pelas serpentes de Apolo. O pânico das
personagens reflecte-se nos olhos esbugalhados, nas pernas fugitivas, nos braços atirados
ao vazio que em vão desejam libertar-se. O artista que teve a ideia de esculpir na pedra tão
realista peça só poderia ter sido um mestre!
- Deixem-me dizer-vos quem é Laocoonte. – Começo por dizer. Joana vira-se para
mim. Leonor observa a peça de lado, desconfiada. Eu finjo não reparar. – Recordam
ter-vos falado da Guerra de Tróia? – Encolhem os ombros. Não desisto –
Resumidamente, posso dizer que Tróia era uma cidade costeira na actual Turquia,
que os gregos decidiram conquistar. Como passados dez anos as muralhas da cidade
continuava de pé, Odisseu (ou Ulisses), um dos gregos, decidiu tomar uma atitude.
Por isso inventou o famoso cavalo de madeira ou Cavalo de Tróia, uma espécie de
torre de combate, onde escondeu um grupo de homens. Os troianos, julgando ser
uma oferta aos deuses, introduziram o colosso dentro das muralhas. Um erro, pois
os gregos saíram do interior oco do cavalo, abriram as portas ao seu exército e a
cidade acabou reduzida em chamas.
Leonor arqueia as sobrancelhas:
- O que tem essa história a ver com Laocoonte?
Finjo-me desentendida:
- Laocoonte era um sacerdote de Tróia. Apelou ao povo para destruir o cavalo de
madeira na praia, antes de a oferenda entrar nas muralhas. Só que ele e os filhos
Maria Galito
Força do Exemplo, 2001
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foram, entretanto, atacados e mortos por serpentes. O povo, que assistiu a tudo sem
poder fazer nada para o impedir, atribuiu o incidente a um sinal da insatisfação dos
deuses, por os troianos ainda não terem introduzido o cavalo nas muralhas. – E
indicando com a cabeça – É esse momento que a estátua reproduz.
- Pois… – remata a Leonor, cortando caminho pelos corredores.
Os próprios mosaicos são dignos de se ver. Gostei especialmente de dois, diferentes no
tamanho mas igualmente coloridos: a medusa e as nove musas de Apolo.
Mas logo a guia desaparece, cheia de pressa.
- A rapariga terá corda? – Resmunga a nossa mãe, a quem as correrias aborrecem.
- Está com saudades do namorado. – Troça a Leonor.
- O condutor do autocarro. – Gozamos em uníssono.
Estamos a descer as escadas do castelo, quando encontramos os nossos colegas catalães
que vêem a subir. Perguntam-nos se a visita valeu a pena. Respondemos ao mesmo tempo.
A Joana diz que sim.
A Leonor faz uma careta de tédio.
Eu giro as mãos, num assim a assim.
Olhamos umas para as outras. Deixamo-nos rir, correndo abraçadas atrás da guia, para
não perder a excursão. Rámon ainda fica a olhar-nos, preso às escadas, enquanto nos
afastamos.
Caminhamos até à rua principal. Ao que parece, alberga consulados de vários países. A
guia lembra as aventuras medievais, para voltar a falar em inglês, sobre os venezianos.
A meio da rua que desce e vai dar à igreja, passamos por uma excursão que está parada
em frente a uma porta em bico. Algumas das senhoras do grupo resguardam a cabeça, não
com chapéus ou bonés, mas com longos lenços, em regra de uma só cor. O guia é um
senhor de uns quarenta anos; o que, para não perder os seus turistas de vista, leva uma
pequena bandeira numa haste que mais parece uma caneta; aliás, deve ser.
Que bandeira é aquela? Marrocos? Argélia? Egipto? Turquia?
- Tunísia. – Esclarece o nosso pai.
Uma das senhoras ao nosso lado, mete conversa:
- Já fui à Tunísia. Vale muito a pena. – Assegura-nos, acrescentando para nos
convencer – O país está a investir forte no turismo e, em geral, são de uma grande
simpatia. Sobretudo a norte, onde as praias são um regalo. E assisti a umas danças
berberes muito engraçadas.
Não são necessários mais argumentos para convencer a Joana:
- Já sabemos onde vamos para a próxima.
Chegamos à igreja. É um regalo à vista, com a sua esplêndida fachada. Mas está
fechada. Mais que isso, quando vou a ver, a guia despede-se. Sempre rapidamente.
- E agora? O que fazemos? – Pergunto.
- Compras! – Exclama a Leonor, abrindo os braços.
Deixo-as ir. Opto por ficar com os nossos pais, sentando-me numa esplanada. Peço uma
água, que estou cheia de sede. Isto enquanto a Joana e a Leonor aparecem e desaparecem na
rua, lançando-se sobre as lojas.
Findo o almoço, partimos para Lindos, uma cidade que já nos avisaram rodeada de
muralhas a crescer ao longo da colina. A excursão mostra-se bastante animada. O guia, um
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homem de cinquenta e tal anos que ainda deve fazer muito exercício físico, não consegue
parar de contar anedotas. Só com as tradições da ilha sobre o casamento, leva meia hora,
mas não se esquece da História das cidades de Rodes e de Lindos. Enfim, como melhor lhe
convém, para despertar o riso dos turistas.
Pelo caminho paramos numa loja à beira da estrada que vende porcelana típica; e que
consegue ser, por mais que ele jure a pés juntos que não, uma das suas fontes de
rendimento, pois deve receber uma comissãozinha por ali parar com os turistas que
acompanha.
A curiosidade do sítio é que atiram os pratos ao chão para provar a sua resistência. À
entrada, duas raparigas e um rapaz, membros da família de artesãos, mostram as várias
fases do processo pelo qual passam as peças de cerâmica.
Levamos um prato de tamanho médio, com uns rebordos amarelos e umas grandes
papoilas desenhadas. Uma compra simbólica, por fazer parte da festa. Claro que a Leonor
queria trazer a loja toda mas os pais convenceram-na que talvez não fosse boa ideia.
De regresso à estrada, passo o tempo encavalitada no braço do banco do autocarro a
filmar a paisagem – tendo guardado a imagem de um trio de cabritos que pastavam numa
elevação mesmo rente à estrada – à medida que o guia nos enumera os grandes artistas e
sábios da antiguidade, nascidos na ilha de Rodes.
Até que chegamos a Lindos.
Descemos do autocarro para seguir o guia. Outro cheio de pressa.
Tanto à nossa direita, como à nossa esquerda, vários são os animais peludos e
orelhudos, que nos fazem companhia.
- O que faz aqui tanto burro? – Pergunta Leonor, queixando-se do cheiro.
Enfim, burros, burras, mulas e machos. E eles estão aqui para nos levar, caso seja essa a
nossa escolha, até lá acima, à acrópole de Lindos. Que fica a trezentos degraus de distância.
- Trezentos degraus? Mas isso é uma enormidade! – Queixa-se o nosso pai. – E eu não
vou de burro. Era o que me faltava! – Insiste, consternado – Sabem que mais, fico aqui
numa explanada à vossa espera.
Ideia imediatamente declinada pela nossa mãe.
Enquanto se decidem e não decidem, acabo por comprar uma flor a uma senhora que
por ali as vende. E tiro umas quantas fotografias às ruas estreitas cheias de movimento e de
cor.
A Joana chama-me. Ao que parece vamos todos subir à acrópole, a pé. Porque faz bem
andar e fortalece os músculos, diz a mãe.
No esforço da subida, passamos por uma mula que, de orelhas baixas, carrega um
turista que, de tão gordo, sacode a barriga em ondas pelos infinitos socalcos da encosta.
Viro-me para o mar. A paisagem é idílica. O mar envolve-nos em várias tonalidades de
azul e o céu, desprovido de nuvens, irradia pureza. As casas vão surgindo sucessivamente
mais pequenas e, à nossa frente, avista-se o primeiro arco das muralhas ancestrais.
Com o coração na boca, avançamos pelas sombras, aproximando-nos do guia para
quem, a dita subida, custou muito pouco. Conta – ou melhor, já contou – a História de
Lindos, apontando agora para uma saliência na pedra onde em tempos esteve uma estátua,
agora supostamente num museu estrangeiro. Sim, que a Grécia é um esqueleto saudoso da
fartura do passado. Nem o próprio templo de Atena foge à regra, enrolado em guindastes e
cordas de protecção, elevando poeira, por estar tudo em obras.
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O nosso pai é o primeiro a sentar-se à sombra, tentando recordar os argumentos com
que o convencemos a subir. Ofereço-lhe a minha garrafa de água, infelizmente quente. A
dez metros, Joana tira uma fotografia ao templo. A nossa mãe examina a textura das
paredes e as linhas mestras do edifício. A Leonor folheia o panfleto sobre Lindos; enfim,
assim há-de ser difícil – está a vê-lo ao contrário.
- Cansado, pai? – Pergunto-lhe.
O suor rebenta-lhe em gotas e os olhos teimam em manter-se abertos apesar do sol:
- Os gregos possuem um passado histórico que deve ser aproveitado ao máximo, pois
só pode ser fonte inesgotável de rendimento. Mas francamente, do ponto de vista do
turista não posso compreender que interesse pode existir numa escalada de trezentos
degraus, num dia abrasador de quarenta graus, para tirar fotografias a ruínas em
obras, onde impera o pó!?
A porta que conduz ao salão de jantar encontra-se fechada. Os empregados empenhamse nos últimos retoques do lado de dentro. Algumas famílias aguardam sentadas nas
poltronas ou de pé a conversar entre si.
Ao nosso lado, um jovem casal de portugueses. Ambos são advogados e extremamente
afáveis. A senhora, nos seus trinta, loura e de grandes olhos castanhos, tem um olho
estrábico. Impressiona, mas ninguém faz qualquer referência ao facto, como não podia
deixar de ser.
Estão ambos primorosamente vestidos: ele com um terno negro, camisa branca e
gravata a condizer com o fato dela; a senhora ainda penteou o cabelo com a ajuda de um
gancho discreto do mesmo tom.
Pouco passa das oito. Sentamo-nos à mesa. O casal de advogados fica à nossa
retaguarda – por todos os lugares estarem marcados. Os nossos companheiros acabam por
ser uma mãe e uma filha de Coimbra e um tímido australiano, o qual, após uma curta
conversa para o entronizar no grupo, volta a fechar-se em copas.
O cardápio é pura comida grega. São-nos servidos uns rolos de carne picada, uns patês
multicolores e um conjunto de pratos ricamente temperados.
A rapariga de Coimbra é da minha idade. É com ela que metemos conversa até ao fim
do jantar; o que culmina com grandes bolos levados em carrinhos, como se a sua cobertura
de açúcar estivesse a ser queimada vivos. O sacrifício dá-se em louvor das quatro ou cinco
pessoas que completam o seu aniversário esta semana.
Quando o jantar termina, seguimos para a sala de espectáculo. Mais uma noite em que o
Mil Línguas nos afunda com o seu talento.
Acordo sobressaltada ao som de música tribal africana. Sentando-me estremunhada na
cama, bato com a cabeça no tecto.
- Quem invadiu o barco? – Ouço a Leonor resmungar, no andar de baixo.
Meio zonza, estico o braço, lançando a mão ao relógio de pulso. Pisco os olhos e enfim
descubro, no mais cerrado nevoeiro, que são seis e dez da madrugada. Santo céu!
- Estou a levantar-me mais cedo que num dia-a-dia de trabalho. – Sussurro, sem falar
com ninguém em especial – Julgava que estava em férias...
Desfaleço sobre os braços, morta de sono, tentando recuperar dos subsequentes berros
do Mil-Línguas no rádio.
- Raio do homem! – Queixa-se a Leonor, lá de baixo, ameaçando partir a rádio.
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O barco ancorou em Creta, a maior das ilhas do Egeu.
No autocarro figura o habitual grupo de portugueses e o destino de hoje é o Palácio de
Cnossos, um dos mais importantes parques arqueológicos da Grécia. Onde, de acordo com
a lenda, viveu o mais famoso dos monarcas da Era Minóica, cujo nome deu lugar ao dito
período histórico – Minos, personagem associada a várias lendas da Mitologia Grega.
Pelo caminho, atravessamos a povoação de Cnossos, uma cidade dependente dos
turistas que visitam o seu palácio.
Minutos depois, chegamos ao recinto arqueológico. Compete-nos sair do autocarro e
seguir a guia, uma mulher magra de uns cinquenta anos, de cabelos grisalhos, soltos e
desalinhados, penteados a direito pelos ombros. Já lhe chamam bruxa, por defender um
nariz bicudo e esconder umas unhas grandes e compridas; e por vestir – camiseiro, saia
comprida, meias e sapatos ortopédicos – de uma só cor.
Mas há uma dignidade na sua expressão que me impressiona.
Para mais, a senhora caminha pausadamente. Preocupa-se em passar a mensagem e
cada vez que se dirige ao grupo pelo qual é responsável, fala para os seus membros; não
atira as palavras ao ar – um toque de profissionalismo que me agrada.
- Leonor, olha o juízo. – Ralho, tentando demovê-la de tanto despropósito.
- Mas é feia como um morcego. – Insiste, tapando a boca com a mão de riso.
- Não sejas impertinente. Coitada da senhora.
Até porque é pertinente acrescentar que, muito embora o pessoal mais jovem costume
esquecer-se, o preto nem sempre é expressão de uma moda, de uma manifestação de grupo
ou de rebeldia individual. Quase era capaz de jurar que a senhora carrega tristeza e luto.
Pelo que merece respeito.
Entramos na zona arqueológica, de onde se avista, a princípio, apenas a parte de cima
das ruínas. Segundo o panfleto distribuído, o palácio possui 10000 m e foi primeiro
escavado por Sir Arthur Evans, que o recuperou do esquecimento.
- Aqui respira-se paz. – Comenta a nossa mãe, fascinada pela atmosfera de Cnossos.
De facto, os minóicos são historicamente conhecidos pela sua não-violência,
simplicidade de costumes e amor pela natureza.
Em compensação, as cigarras da ilha estão em pé de guerra, capazes de ensurdecer o
pobre visitante que ouse imiscuir-se no seu território.
Depois de uma breve mas cuidada introdução, acompanhamos a guia por umas escadas
que nos conduzem às divisões habilmente construídas abaixo da superfície, pintados a cores
garridas – pretos, vermelhos, dourados e brancos – banhados por um aperfeiçoado sistema
de canalizações. Aliás, os arqueólogos descobriram mais de mil e seiscentos metros de
tubos de barro cozidos, que levavam a água potável dos aquedutos para os aposentos da
rainha e dos nobres – apontando-nos os canais, aos cantos da sala de tecto aberto.
Olhando para cima, podemos ter uma noção sobre as escadas que acabámos de descer.
Á minha frente estão uns belos arcos esculpidos e os frescos das paredes representam
escudos em oito, típicos de uma época mais tardia (Micénica). A construção assenta em
colunas minóicas de tronco invertido, pretas no capitel, ensanguentadas na base,
distribuídas pelo peristilo.
No piso térreo, é-nos apontada uma entrada escura e estreita cujo interior nos é
incógnito. Somos então confrontados com a Lenda do Minotauro, uma mescla de devaneio
com fundo de verdade, passível de imaginar num palácio sinuoso quanto este.
Maria Galito
Força do Exemplo, 2001
20
Vendo-me parte do palácio, posso fantasiar o emaranhado de portas, salas e quartos que
se cruzariam uns nos outros, criando sombras e vazios, fascínio e superstição. Porque onde
a luz do sol não iluminasse, a única forma de percorrer os corredores seria carregando acesa
uma tocha ou uma candeia de azeite, que garantiria ao ambiente um ar dúbio de fervilhante
mistério.
Atravesso a estreita passagem escura. Qual não é o meu espanto quando me descubro nos
aposentos da rainha. Ou seja, os aposentos da abelha-mestra – e não do rei (Minos). A
cultura minóica resiste assim, apesar dos séculos e das tempestades culturais posteriores,
imortalizada onde nasceu – por volta de 3000 anos a.C.
Embora não seja especialista no assunto, a época Minóica parece ter sido a trave mestra
da chamada Civilização Ocidental e, na Grécia precedeu e influenciou épocas áureas
subsequentes – Micénica, Clássica e Helénica. Na altura teria noventa cidades, tão grandes
e ricas como a sua capital Cnossos. Palaicastro seria o seu bairro residencial; Hagia
Triada, a residência da corte durante os meses de maior calor; Gúrgia o centro industrial e
Festo o porto comercial, sempre que se comercializava com o Egipto.
Os minóicos enquanto civilização terão atingido o seu auge de riqueza e prestígio no
período entre 2000 e 1700 a.C., em que também o palácio de Cnossos terá sido construído
pela primeira vez. Atribui-se a queda definitiva de Creta às invasões aqueias gradualmente
mais intensas a partir de 1400 a.C.
Antropologicamente, sabe-se que os cretenses eram pessoas dedicadas ao mar,
excepcionais artistas e mercadores, e empenhados agricultores, menos virados para a guerra
que os seus sucessores – os Aqueus, ou indo-europeus, originários do norte da Europa.
A sua essência era simples. A religião baseava-se no culto da natureza e a sua deusa
principal era feminina – a Deusa Mãe – cuja figura se representava sempre gorducha, de
peito e abdómen desenvolvidos, sinónimos de fertilidade. A mulher entendia-se fecunda, na
mesma medida em que a terra o era. O papel determinante da mulher era inequívoco e a sua
sociedade provavelmente Matriarcal – pelo que a lenda de Minos deverá ser posterior a
1400 a.C., período em que Creta se abriu à Sociedade dos Guerreiros.
De facto, tudo em Creta lembra harmonia, a passagem tranquila dos tempos. A própria
arte o reflecte, na doçura dos movimentos, na agilidade das figuras representadas, nos tons
empregues e nos adornos aos cantos de cada página de História. Nada aqui lembra a guerra.
As mulheres são pintadas nos frescos a branco, enquanto os homens (Foikies – peles
vermelhas) se reconhecem por uma cor mais escura. Aparentemente, seriam pessoas
pequenas e magras, e usariam trajes suaves a moldar-lhes o corpo.
Dedicar-se-iam à caça e ao pugilato (no qual já usavam luvas). Desconheciam a troca
indirecta – ou seja, não usavam moeda – e os tributos destinavam-se à deusa, sob a forma
de oferendas.
Nas áreas destinadas à rainha não imperam cores fortes como o vermelho e o preto, mas
sim o azul-marinho, bem patente nas linhas ao longo das paredes e no maravilhoso fresco
no extremo superior da parede principal, onde foram desenhados vários golfinhos entre
outros elementos do mar.
Naquela divisão à esquerda, avista-se um recipiente em pedra. Uma banheira? Um
túmulo? Dificilmente se imagina uma mulher moderna a caber ali dentro. Teria de ter um
metro e quarenta/cinquenta, talvez.
Maria Galito
Força do Exemplo, 2001
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Justo a meu lado há uma ilustração feminina. Uma rainha cretense? Uma sacerdotisa?
Ambas as coisas? Os seios estão descobertos. Tratar-se-á de uma moda na corte ou de um
traje religioso.
- Crês que as mulheres se vestiam assim todos os dias? – Pergunta a Leonor.
Joana mostra-se perplexa com a ideia. O decote daquele vestido minóico, contorna a
parte de baixo dos seios e não a parte de cima.
Antes de eu poder responder o que seja, Leonor aproxima-se da figura pintada:
- Há qualquer coisa errada nesta moda. Se a sociedade cretense não era pudica,
porque é que o vestido é tão comprido? Não me digas que tinham medo que lhes
vissem os pés?
Deixo-me rir. Que mais posso fazer?
- É engraçado. No século XVIII da nossa era, as mulheres vestiam decotes profundos
enquanto se tapavam até aos pés. Tanto que os rapazes adoravam esperar por elas,
às portas do teatro, na esperança de as ver subir as saias ao descer dos coches; para
lhes conseguirem ver os sapatos. E se avistassem um tornozelo, era uma festa! –
Deixo-me rir – Eles atribuíam mais valor ao que estava envolto em mil tecidos.
Mesmo quando elas praticamente lhes mostravam os seios, eles preferiam imaginarlhes os tornozelos. Tem uma certa piada!
Agora é a vez de a Leonor apatetar a cara.
Caminho para fora do palácio atrás do grupo de portugueses, que já vai cinco metros à
frente, apesar do ritmo pausado com que avançam pelo terreno.
- Continuo sem perceber porque é que o vestido era tão longo. – Insiste a Leonor.
Respiro fundo. Não sei já bem o que replicar:
- Bom, por ser comprido, envolve muita matéria-prima. O que o torna dispendioso.
Se tiver pedras preciosas, ouro e prata, mais caro será ainda. Logo, a mulher que o
usa é rica. É uma senhora do palácio, possui prestígio na corte. Pode ser uma rainha.
– Joana acha que faz sentido. Leonor ainda não está convencida. Resolvo contar
algo que possa ter mais graça – Por outro lado, já cá se descobriram frescos nos
quais as mulheres vestem um conjunto de duas peças muito semelhante a um
biquíni, pelo que as minóicas dificilmente seriam pudicas.
De tão embasbacada, perde momentaneamente a fala. Até a recuperar, bem entendido:
- Mas isso é extraordinário! Biquínis em 1400 a.C.?
Mostro-me atenta aos pormenores:
- Esse é o período tardio. Os cretenses desenvolveram uma civilização que durou
quase dois mil anos. Só depois se substitui Creta por Micenas; e, mais tarde,
Micenas por Atenas e Esparta. A questão que se coloca é onde, neste intervalo de
tempo, a mulher perdeu o papel determinante que ocupava na sociedade.
Leonor prepara-se para continuar a bombardear-me de perguntas, a Joana consegue ser
mais rápida:
- Mas e o decote?
- Nos tempos idos, todas as questões da vida quotidiana estavam intimamente
relacionadas com a religião. Garantir a fertilidade, quer da Terra quer das Mulheres,
era essencial. Nem que fosse porque, sem alimentos e sem crianças, a sociedade não
tinha futuro. Portanto, mostrar os seios não era uma questão pessoal. Muito menos,
algo de que pudessem guardar vergonha. Pelo contrário, quem nascesse mulher era
privilegiada pela Natureza.
Maria Galito
Força do Exemplo, 2001
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Leonor fica encantada com a perspectiva:
- Já imaginaram? Se eu tivesse nascido neste palácio na época Minóica? Teria sido
uma rainha. – Sim porque, ela não faz por menos. E dançando os ombros – Uma
privilegiada da natureza. – Sorrimos. Continuamos a caminhar. Até Leonor nos
fazer parar, esticando os braços – Mas as minóicas não passavam o tempo a
conceber filhos, pois não?
Tento responder-lhe da melhor maneira possível:
- Antes não existiam propriamente biólogas, psicólogas, economistas, mulheres de
profissão definida. As tarefas eram divididas em sociedade e esta ramificava-se em
três estratos sociais. Na base da pirâmide, situavam-se as mulheres que trabalhavam
as propriedades agrícolas ou as que se dedicavam à pesca. Depois reuniam-se as
artífices. Mais importantes que elas eram as de sangue nobre e as sacerdotisas. No
topo da hierarquia havia uma rainha. Como as necessidades da comunidade eram
simples, simples eram as tarefas que desempenhavam. Mas, por exemplo, cada
mulher elaborava os seus próprios vestidos, exceptuando talvez a rainha. As
próprias nobres laboravam no tear, moíam o grão e cardavam a lã, muitas vezes de
joelhos no chão; lavavam a roupa ou as lajes das suas casas, aravam nas suas
terras... consoante tivessem, ou não, outras mulheres de condição social inferior a
ajudá-las. A comunidade era pequena e difícil de dimensionar segundo os padrões
modernos. Nós estamos demasiado habituadas a cidades de milhares ou milhões de
habitantes, com prédios a crescer em altura. As minóicas organizavam-se em
comunidades de poucas famílias.
A nossa mãe acena-nos, apontando para o teatro sobre o qual não escutámos uma única
explicação da guia.
- Já nos chamam para irmos embora. Nunca temos tempo para nada.
Leonor insiste para que lhe continue a explicar uma infinidade de coisas, enquanto o
teatro vai surgindo à nossa direita, nascente de uma comprida alameda de pinheiros e
cedros cujos braços se entrelaçam formando uma abóbada. O centro do teatro, reservado
aos artistas, está vazio mas as cigarras ocupam-se do arranjo orquestral.
Ultrapassamos o casal de advogados, que atravessa agora a área das cisternas e dos
buracos de metro e meio de profundidade onde se resguardam bojudos potes de cerâmica,
supostamente para armazenar alimentos.
- Se não corrermos, perderemos o autocarro. – Apresso-as.
Num minuto recuperamos a desvantagem e juntamo-nos aos nossos companheiros de
viagem, que nos transportarão de volta à actual cidade de Cnossos.
- Porque demoraram tanto? – Pergunta a nossa mãe, colocando-me a mochila num
dos compartimentos superiores do autocarro.
- A Leonor queria ter vivido no palácio de Cnossos, mãe. – Respondo, cingindo o
nariz com ar gozão.
Leonor senta-se ao lado de Joana, sem perder de vista a entrada no recinto
arqueológico:
- Porque não? – Atira, colocando-se de joelhos sobre o assento.
- E usar fatos daqueles? – Joana não parece grande adepta da ideia, pousando as mãos
sobre o peito. – Eu não tinha coragem.
Aguardamos pela partida. Da janela um último olhar, antes do palácio ficar
sucessivamente mais longe, imaterializando-se à medida que se torna numa recordação.
Maria Galito
Força do Exemplo, 2001
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O que posso dizer, é que foi certamente o primeiro lugar em que senti a chamada do
passado. Em Cnossos, a vida de outros tempos parece viva, apesar das ruínas. Não sei se
são as cores, se a planificação do espaço. Mas algo permanece. Não nos deixando esquecer.
E a imaginação fervilha, ao imaginar a luz da tocha acesa, pelos dedáleos corredores
daquele imenso palácio.
Maria Galito
Força do Exemplo, 2001
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II
O barco afasta-se mansamente da ilha de Creta, borbulhando as ondas. Levando consigo
montanhas que desenham no azul de um céu sem nuvens. Segundo a lenda, Zeus ainda
habita aquelas montanhas.
Joana abre a boca de surpresa, seguindo a indicação. Leonor dá-lhe uma ferroada:
- Às vezes és tão inocente que nem pareces minha irmã!
Joana cruza os braços violentamente, com cara de poucos amigos:
- Olha, vai-te lixar!
Sou obrigada a intervir. Antes que a troca de mimos perca, de vez, a sua espiritualidade:
- Parem com isso.
Joana prefere continuar a manifestar o seu descontentamento:
- Convence-me que gosto… – remata, num tom baixo, mas rasgado.
A própria Leonor está pelos cabelos de descontentamento:
- Zeus! Puf. – Exclama Leonor – Creta das rainhas, pois...
Respiro fundo, fingindo-me despercebida com a investida. Contorno a questão:
- O touro era o símbolo de Creta. A sua presença é constante; no palácio e nas várias
expressões artísticas da época minóica. – Recordo – Na altura, Creta dominava o
mar Egeu, incluindo a cidade de Atenas, pelo que se achava no direito de fazer certo
tipo de exigências às cidades sobre a sua alçada; o que poderia justificar o tributo
mencionado na lenda. – Elas não parecem nada interessadas no que tenho para
dizer. Acrescento. – É comum atribuir aos minóicos a invenção de um tipo de jogos
rituais antepassados das nossas touradas. Nesses jogos, raparigas e rapazes
aprendiam (acrobatas), ou não (simples vítimas sacrificiais), a saltar sobre animais
em pontas (sem protecção nos cornos do touro), para entretenimento dos habitantes
da cidade e, supostamente, júbilo dos deuses. – Ao que, prossigo – Em relação ao
labirinto propriamente dito. Convenhamos que a palavra deriva de labrys, ou
machado de dois gumes, ícone religioso de Cnossos. Haveria certamente um desses
à entrada do paço. Tudo leva a crer, portanto, até pela sua estrutura, e número de
salas e quartos distribuídos pelos vários pisos, que o labirinto fosse o próprio
palácio.
Procuro uma reacção. Qualquer reacção. De qualquer uma das duas. Mas a Joana
permanece fechada na sua turbulência interior. E a Leonor mantém aquele ar de desafio.
Enfim, resta muito por explicar.
Chegam-nos as primeiras brisas de Santorini às 15H e 36m, hora local. Conhecida por
Tera no mundo antigo, forma hoje uma espécie de quarto crescente, em frente do qual se
aninha uma ilha mais pequena.
Santorini pertence ao arquipélago das Cíclades e foi inicialmente colonizada pelos
minóicos. Por volta de 1500-1400 a.C., terá sido palco de uma das maiores erupções
vulcânicas de todos os tempos, que separaria a então ilha redonda em vários fragmentos.
Este acontecimento sempre interessou os cientistas. Inclusive aqueles que, baseando-se nas
novas tecnologias e nas leituras de Platão, procuram encontrar na antiga Tera, o berço da
Atlântida.
Maria Galito
Força do Exemplo, 2001
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Pelo menos por enquanto, a Atlântida mantém-se pura fantasia. Platão, segundo consta,
gostava de inventar mitos que um dia ponderava incutir aos habitantes da sua cidade ideal.
A pequena diferença, é que a lenda da Atlântida lhe terá sido contada, segundo o próprio,
por Sólon, um político ateniense que soubera da mesma em terras do Egipto – o mais
próximo que, na antiguidade, se podia conseguir como fonte credível.
Mas teria a Atlântida realmente existido?
Folheio novamente o meu livrinho, que sublinha – nos diálogos Timeu e Crítias, de
Platão – as partes que se referem à Atlântida. Tento encontrar respostas às minhas
perguntas, mas os textos fazem-me sempre confusão.
Pelos vistos, por volta de 355 a.C., Platão escreveu no seu livro Timeu – pela boca de
um personagem ao mesmo tempo real, Crítias o Jovem – que Sólon, um célebre magistrado
ateniense, soubera de uma história extraordinária durante as suas viagens, ao fazer escala na
cidade egípcia de Sais.
Uma vez que já li o texto umas duas ou três vezes, acabo por não ler directamente o que
lá está escrito. Aventuro-me numa análise reflexiva:
- Portanto, encontramos Sólon no templo da cidade de Sais, entretido numa conversa
com um sacerdote assim já para o velhote. Dizem-lhe que, aquele templo
(consagrado a uma deusa – Neit – equivalente a Atena, patrona de Atenas) guardava
registos de catástrofes destruidoras de homens (as maiores por água e fogo),
entretanto esquecidas pelos atenienses; os que transmitiam, as suas crenças escritas
(desde o grande dilúvio), de geração em geração, mas sem memória viva de tudo
quanto precedera esse acontecimento.
- A Bíblia também fala de um dilúvio. De Noé, de como a sua família se salvou, e da
sua arca, cheias de animais. – Aventura-se a Leonor, sempre pronta para meter a
colherada; principalmente num monólogo alheio, que começa a fazer-se longo.
Mas Joana corta-lhe a palavra:
- Não mistures. – Censura, peremptória – Estamos a falar de mitologia grega. – E
virando-lhe as costas, pede-me que prossiga.
Passo a mão pelo cabelo, enrolando o rabo-de-cavalo com o indicador esquerdo.
- O sacerdote egípcio refere o quanto Atenas, antes do dilúvio, já dominava a arte da
guerra – pondero, preferindo acrescentar – mas não sei se não será melhor traduzir
por tinha bons guerreiros.
- Vai dar ao mesmo. – Lembra a Leonor.
- Não exactamente. – Corrijo delicadamente, antes de continuar – Que Atenas era
obediente às leis e que recebeu como patrona a deusa Atena, mil anos antes. Depois,
segundo um cálculo aproximado, recua mais oito mil na antiguidade da cidade
egípcia. Para falar do que aconteceu nove mil antes. – Deixo-me rir – Nesta parte,
os autores costumam fazer grandes jogos de cabeça, para perceber porque raio os
egípcios falariam de uma civilização tão incongruentemente antiga. Mas nada me
garante que ou a ideia foi mal compreendida por Sólon, ou chegou deturpada a
Crítias (porque não a recebeu directamente do magistrado), ou resultou de uma
soma acrescentada pelo próprio Platão. Não me admira que, se dissessem mil e
depois oito mil ao filósofo, ele tenderia naturalmente a somar nove mil; tinha a
mania das matemáticas!
A Leonor encosta-se ao muro, com ar trocista:
Maria Galito
Força do Exemplo, 2001
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- É sempre mais fácil redefinir um texto que não se compreende.
Encolho os ombros.
- Vamos experimentar situar-nos mil anos antes de Sólon. – Mudo a página do livro –
Surge a revelação que Atenas deteve um império insolente, que avançava do
exterior sobre a Europa e a Ásia, cruzando o oceano atlântico – numa altura em que
podia ser atravessado – fazendo escala na Atlântida – que se situava em frente das
colunas de Héracles.
- Onde ficam as colunas de Héracles? – Pergunta a Joana, tentando visualizar no
mapa a localização do dito império insular.
Faço uma careta, enchendo a boca de ar. Respiro fundo.
- Desde os tempos dos romanos que as Colunas de Hércules (nome latino para o herói
grego, Héracles) são o estreito de Gibraltar. O oceano Atlântico começa e acaba
nesse estreito. A força vinda de fora teria que vir...
- Da América. – Atira-me a Leonor, encavalitando-se numa bóia de salvação.
- Sai já daí de cima. – Peço-lhe com veemência. Ainda recusa, fazendo finca-pé, mas
depois cede. Abano a cabeça, ela tira a língua de fora. Que idade julgará que
temos? Recupero o diálogo, do ponto em que foi interrompido. – Vais de encontro
às teses mais recentes, que argumentam exactamente a favor da localização da
Atlântida na América. Hipóteses mais famosas são as que evocam Santorini, e os
arquipélagos portugueses dos Açores ou da Madeira. Mas há teorias para tudo! GrãBretanha, Irlanda... até na Ásia Oriental!
Nesse aspecto, Leonor e Joana juntam-se num uníssono patriótico:
- Preferimos os Açores e a Madeira.
Sorrio-lhes, olhando o mar:
- Os Açores e a Madeira foram descobertos por continentais portugueses no século
XV da nossa era. 3000 anos depois do que estou a falar.
Joana desanima. Leonor faz caretas:
- Já não gosto da Atlântida!
Deixo-me rir. Hoje apanho uma dor de barriga.
- Vou continuar, se não se importam. – Sim porque, a esta velocidade, nunca mais
acabamos com a conversa – Diz aqui que a ilha era maior que a Líbia e a Ásia
juntas. Isto não faz sentido nenhum. De duas, uma: ou a ideia é fiel à lenda que
contaram a Sólon (e então não estamos a falar de uma ilha, mas de um continente),
ou induz-nos em erro pela forma como foi escrita.
- O que é que te parece? – Pergunta a Joana, agarrando-se ao meu braço, espreitando
o livro por cima com os seus olhos grandes.
Vou a responder quando opto por assumir o risco.
Proponho-lhes um jogo. Antes mesmo que aceitem, transmito uma mensagem ao
ouvido da Joana, que deverá transmiti-la à Leonor.
- O que é que ela te disse? – Pergunto à última das duas.
Leonor lança os braços no ar:
- E eu percebi alguma coisa? – Mas peço-lhe que tente. Faz-me caretas. – Que havia
uma ilha maior que a Líbia e a Ásia juntas, e que havia mais ilhas que davam para
terra firme.
Deixo-me rir. Em cheio!
Maria Galito
Força do Exemplo, 2001
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-
Eu disse: Havia uma ilha; dava para terra maior que a Líbia e a Ásia juntas; dela
podia passar-se a outras ilhas que davam para mais terra firme. – E encostando-me
ao muro – E só foram precisas três pessoas. Imagina a lenda contada de geração em
geração, apenas de forma oral e não escrita, durante séculos!
Joana confunde-se. Tenta perceber-me:
- Qual foi o objectivo deste jogo?
- Para explicar que aqui no livro Timeu de Platão – folheando o livro de bolso – devia
ler-se que maior que a Líbia e a Ásia juntas era o terreno para lá da Atlântida, e não
a própria Atlântida; por muito que esta fosse conhecida por ser uma ilha grande.
Leonor volta ao ataque:
- Portanto, a disposição seria Colunas de Hércules, Atlântida, terra firme, mais ilhas,
seguidas de mais terra firme. – E concluindo – Ou seja, estreito de Gibraltar, ilhas
da América Central, continente Americano, ilhas do pacífico e Ásia. – E batendo no
peito – Eu sou um génio. É preciso reconhecer que eu sou fantástica!
- É uma hipótese que faz sentido. – Aquiesço. – São vários os autores que a
defendem.
Mas ela não quer saber disso para nada. Reclama créditos totais para a sua pessoa:
- Com licença. Eu, Leonor Teles Lobo, é que o disse mesmo agora.
- Precisamente, há quem o tenha dito antes de ti. – Remata a Joana.
Rebolo os olhos. Preparo-me para avançar com solução alternativa para a Lenda da
Atlântida. Mas a Leonor faz cara de quem se prepara para ouvir um grandessíssimo
disparate. Atiro-lhe com esta:
- O que é que foi? Não posso dar a minha opinião?
Encolhe os ombros:
- Até parece que não a vais dizer na mesma.
- Então não digo.
Fecho-me em copas. Não é meu costume, mas uma pessoa não é de ferro! Saiu-me.
Leonor lança-se, com ar de briga. Acusa-me de ser autoritária e mandona; que lá por ser
a irmã mais velha, não tenho de mandar nela. Ah, mas eu sei que é tudo por lhe ter pedido
para descer da bóia de salvação. É tão óbvia!
Agarro a Leonor pelo nariz – ela fica logo desarmada. Joana tenta apaziguar-nos.
Assopro os cabelos que me pendem na cara, virando-me para o mar. Resolvo reabrir o
livro, para continuar a falar da Atlântida; sem expressar a opinião que disse ter sobre a sua
localização.
- A Atlântida estava dividida em dez, governada por uma confederação de dez reis,
irmãos entre si. Tudo corria bem, até que se brigaram todos. – Leonor agita a
cabeça, com a cara toda torcida. Escondo o riso. – Era uma ilha muito fértil (como
são geralmente os terrenos junto aos vulcões), rica em minerais e cheia de animais.
Assumia-se com uma cultura muito própria e avançada. Mas a civilização terá
degenerado, a partir de um determinado momento. Foi então que a cidade de Atenas
resolveu tomar uma atitude. Parece ter tentado reunir uma liga de cidades contra o
poder da Atlântida, mas acabou por avançar sozinha; e terá vencido. Mais tarde,
deu-se o dilúvio. Depois de um dia e uma noite terríveis, a Atlântida afundou-se nas
águas e aquela zona passou a ser, durante muitos anos, de difícil passagem para os
barcos.
- Isso está aí escrito? – Interroga-me a Leonor.
Maria Galito
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-
Cala-te. – Exige a Joana, o que não é de todo comum. Aponta-me com o dedo, mas
conserva os olhos fixos na Leonor – Quero saber o que ela ia dizer quando tu a
interrompeste. – Vira-se para mim. – Vá, diz.
Mete-me graça. Ponho-lhe a mão no ombro:
- És uma querida, mana. – E rindo mais ainda – Mas a Leonor é capaz de ter uma
certa razão. As minhas ideias são meio estranhas. Vê lá que eu meti na cabeça que a
lenda da Atlântida e a lenda de Minos se reportam ao mesmo evento. Ou melhor... –
e coçando a cabeça – preciso explicar o meu raciocínio com mais pormenor e de
forma mais consistente.
- Sim, explica-te, que ninguém te entende. – Desconversa a Leonor.
Oh, agora vai ser assim o dia todo! Mordo o lábio.
- Desde que li a lenda do Minotauro pela primeira vez, que achei que não falava de
um monstro destruidor, mas de um pai que renegava o filho, por este ser deficiente.
A ideia ficou-me, depois associei-a a outras. E se... – pestanejo, sorrindo – e se a
lenda fosse uma alusão a um período difícil, como o da queda da Atlântida, em que
o mar engolira Tera e sufocara Creta com um manto de poeiras? Não foi um dos
maiores desastres naturais de todos os tempos? Não afectou toda a zona do
Mediterrâneo? Pois então. Morreram centenas se não milhares de pessoas.
Alastraram as doenças. Algumas mulheres cretenses passaram a ter filhos com más
formações congénitas, produzindo um efeito revolucionário na mentalidade e nos
costumes mais ou menos matriarcas daquela civilização, o que acabou por minar a
sua autoconfiança, a sua solidez; ao ponto de esta sucumbir às invasões aqueias
vindas da península e das ilhas do mar Egeu.
Joana acha que faz sentido. A Leonor pensa a indução um perfeito disparate. Mas é a
nossa mãe que, ao fechar a câmara de filmar, se aproxima para espreitar a conversa:
- Sempre cheia de teorias, não é minha querida? – Diz-me – Ainda não tinha ouvido
essa tese. Ora continua, para eu ouvir.
Sinto mais responsabilidade sobre as minhas palavras.
- Só estou a pensar alto, mãe. Mas, de facto, há referências comuns. – E contando
com os dedos – Teseu vinha de Atenas e venceu o Minotauro em Creta. Na lenda de
que fala Platão, os atenienses defrontaram os atlantes, antes da catástrofe natural
que destruiu a sua ilha. Os atlantes veneravam o touro, como os minóicos. – Reabro
o livro para, desta vez, seguir o livro Crítias de Platão – Diz aqui que quando o
mundo foi dividido pelos deuses, a Atlântida coube a Posídon, que a povoou e lhe
deu reis ao unir-se com uma mortal, e o livro acaba repentinamente com a
referência a Zeus, que se reúne com os demais deuses, decidido a punir a soberba e
a corrupção dos Atlantes. – E fazendo o paralelo – Na lenda do Minotauro, Zeus
une-se a uma mortal, da qual tem o rei de Creta, e é Posídon quem pune os cretenses
com um monstro, que espalha o pânico na ilha.
- Os mesmos deuses, Posídon e Zeus, mas ocupando posições inversas. – Apercebese a nossa mãe. – Muito interessante.
- Exactamente. Segundo o livro Crítias, os reis atlantes reuniam-se no templo de
Posídon de seis em seis anos, sacrificando-lhe um touro que o deus mais gostasse;
ao que o caçavam sem ferro, antes com madeira e redes, conduzindo-o a uma coluna
onde o degolavam, fazendo votos pelo cumprimento das leis escritas, cuja
desobediência proclamava graves maldições. Mas os primeiros reis (de sangue mais
Maria Galito
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divino) começaram a mesclar-se demasiado com os mortais; a parte divina que lhes
circulava nas veias esgotou-se e eles perverteram-se. Tornaram-se corruptos e
altivos. Zeus castigou-os. – E relembrando a outra lenda – Na ilha de Creta, Minos
deslocava-se ao altar de Zeus de nove em nove anos. Um dia esqueceu-se de
venerar Posídon, e este deus castigou-o severamente com o Minotauro, metade
homem, metade cavalo. – E regressando ao Crítias, sobre a Atlântida – No livro diz
que havia dez reis, e que a confederação era regida por um desses reis, chamado
Atlas. O seu filho sucedia-lhe à cabeça do império. – Ao que juntando os dois
enredos – Mas se o filho de Atlas (ou de Minos) tivesse nascido violento ou
deficiente, não lhe poderia ter sucedido, certo? Significaria que o seu sangue teria
degenerado, certo? – E falando cada vez mais depressa, levada pela força da lógica
– E Teseu, que matou o Minotauro, era um guerreiro ateniense, não era? Deslocouse a Creta, furibundo contra o tributo que os minóicos obrigavam a sua cidade a
pagar (contra a altivez do império). Ao vencer, quem ouvisse a história poderia
facilmente rematar dizendo que Atenas era mais forte na arte da guerra.
Leonor decide-se a minar tanto quanto possível o meu raciocínio:
- Calma! Creta não pode ter sido a Atlântida. Não se afundou. – Remata, abrindo as
mãos vazias.
- Tens toda a razão. – Aquiesço, recuperando a ordem das ideias – Mas Tera foi
povoada pelos cretenses. Ou seja, Creta e Tera faziam parte do império dos
minóicos. – E tentando encontrar um paralelo – A Itália tem península e
arquipélagos; o povoamento passou da terra firme para as ilhas. Porém, no caso dos
minóicos, a influência passa da ilha maior (Creta), para outras ilhas e algumas
cidades em terra firme (que é como quem diz, nas actuais Grécia e Turquia).
Leonor quer-me irritar:
- E?
Respiro fundo, antes de prosseguir, enchendo-me de paciência:
- A lenda da Atlântida fala de uma ilha com dez reis. Mas e se fosse um império com
dez reis? Tera afundou-se nas águas e a civilização de Creta sofreu, talvez não
imediatamente mas um forte abalo comercial, social, político, etc. Os aedos podem
ter misturado as várias referências ao longo dos anos, resumindo a questão: a
Atlântida afundou-se. Originalmente, deveria referir-se a uma Creta (ilha mãe) que
perdera a força imperial e a uma cidade de Tera, essa sim, que tivesse ido ao fundo.
Até porque a zona de Tera tornou-se quase intransitável durante anos.
- São muitos ses, mana, tem paciência! – Queixa-se a Leonor – Além do que, onde
está a terra firme, seguida das ilhas, que passam para mais terra firme? Agora, a
teoria ficou sem ponta por onde se lhe pegue.
- A minha teoria não é um touro. – Ironizo, passando a explicar a minha ideia. – Os
textos falam num império insolente que avança sobre a Europa e a Ásia. Vêm do
exterior, avançam desde o grande mar atlântico e são uma ilha (maior que a Líbia e
a Ásia juntas) situada em frente das colunas de Héracles. A tendência é sempre
olharmos para o estreito de Gibraltar e, a partir daí, tirar as nossas conclusões. Mas
e se... aceitássemos adoptar o ponto de vista dos egípcios. Imaginemo-nos no
Egipto, de 1500 a. C, no berço da sociedade que se considerava a mais avançada da
altura, olhando para o mundo que a circundava. É o próprio sacerdote que diz que as
pessoas que haviam sobrevivido ao desastre da Atlântida, não tinham escrito a sua
Maria Galito
Força do Exemplo, 2001
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experiência. Talvez os egípcios julgassem que os Atlantes nem possuíam alfabeto e
que não sabiam escrever. O que não significava necessariamente que assim fosse,
até porque os arqueólogos descobriram que os minóicos usavam o Linear A. – mas
prossigo, para não confundir mais ainda. Abro as mãos, cheias de entusiasmo –
Afinal, a história foi contada a Sólon por um sacerdote de Sais. Os supostos textos
guardados no templo de Neit, foram escritos por egípcios. – Tento explicar. Leonor
cruza os braços. Joana pestaneja, confusa. A nossa mãe sorri. – E as referências são
sempre para lá de, ou em frente, certo? – Pergunto.
Leonor esbugalha os olhos. Mas é a Joana quem lembra:
- Para lá do oceano atlântico.
Mas também tenho resposta para isso:
- Para lá do grande mar atlântico. – Resolvo tomar como hipótese – Ora, o mar da
actual Grécia chama-se Egeu; supostamente desde que o rei de Atenas, pai de
Teseu, se atirou ao mar. – Ao que repito, para o caso da referência ter passado
despercebida; com a ajuda de um sinal a pedir associação – Egeu, pai do herói que
matou o Minotauro... – elas confundem-se. Nunca tal lhes tinha tal passado pela
cabeça. Pergunto, portanto. – Como se chamava o mesmo mar, antes de ser Egeu? –
E já previsivelmente – Que tal Atlântico, o mar dos Atlantes? Há muitos séculos
que a civilização da Atlântida era a maior e mais influente desse mar, não era?
- Não. A civilização mais influente era a minóica. – Corrige Leonor, descrente.
Insisto, com um sorriso:
- Minóica de Minos. Mas e se Minos veio depois? Ou pertence ao período de
transição? A lenda da Atlântida prefere evocar Atlas, que é simultaneamente o
gigante condenado por Zeus a carregar o peso do mundo. Talvez a lenda de Atlas
seja mais antiga! – De facto, começo a associar aquilo em que ainda nem sequer
havia pensado. – E se está tudo relacionado?
- Mas Atlas não é um livro cheio de mapas? – Joana começa a baralhar as ideias.
Não posso esconder o sorriso:
- Atlas é uma figura da mitologia grega. – Mas resolvo atalhar, se não nunca mais me
desembaraço deste emaranhado de lendas – Mas regressando àquilo que eu estava a
dizer. – Contando pelos dedos – E se a disposição fosse: Creta (sede do império
Minóico), com uma feitoria (posto comercial avançado no mar da Grécia; escala em
frente das colunas de Héracles, que permitia aos minóicos prosseguir viagem para
atingir a actual Grécia ou a Turquia). Maior que a Líbia e a Ásia (antigamente não
se conhecia a real dimensão da Ásia, como agora, pensava-se mais pequena) seria
talvez… a EUROPA. As ilhas para lá da terra firme poderiam ser a Noruega, a
Suécia e a Finlândia, ou outras que existam no Norte da Europa. E há mais terra
firme para cima e para os lados.
Leonor tem um ataque epiléptico!
- A Europa? Que barbaridade dizes?
- A lenda do Minotauro fala de como Zeus trouxe para Creta uma rapariga chamada
Europa, que era filha do rei de Tiro (uma cidade do mediterrâneo oriental). Ou seja,
a Europa veio para Creta. Ou foi conquistada por Creta. Sei lá, uma coisa assim! – E
voltando à carga, de rosto incandescente – Que civilizações fortes existiam no
continente europeu em 1500 a.C., que fossem suficientemente fortes para ameaçar
os egípcios, que se consideravam os maiores? Coloquem-se sempre na posição dos
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Força do Exemplo, 2001
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homens de Sais! – E porque tem de ser dito – Nós somos europeias, filhas de um
país que foi imperialista durante séculos. Por sua vez descendemos dos romanos,
que se misturaram com os lusitanos, outro povo imperialista. Mas nós temos de
recuar aos séculos XV e XIV a. C., e não à Europa de que falaria Platão, Virgílio ou
Camões. – E tentando ser clara – Desde Sólon à erupção do vulcão de Tera,
transcorreu aproximadamente um milénio. Em mil anos tudo muda. Não podemos
comparar Lisboa do século XXI, com a Lisboa de D. Afonso Henriques, não pode
ser! As comparações devem ser relativas e não absolutas.
Leonor parece respirar com dificuldade:
- Posso não estar em condições de te contradizer. Não li esses livros todos, como tu.
Mas posso dizer-te que não me convences. São muitos ses. E ao não aceitar a lenda
como ela é transmitida por Platão, abres precedentes, assumes escolhas. Como todos
os outros autores que pensam diferentemente de ti. – Remata.
Aceito as suas palavras, pois parecem-me justas. Ela não é obrigada a concordar
comigo.
- Toma atenção. Eu falo apenas por mim. E eu gosto de procurar a resposta mais
simples, pois costuma ser a mais segura. Prefiro uma solução geograficamente
próxima, pois se a lenda foi transmitida pelos egípcios, evidenciando traços comuns
a uma lenda cretense, presumo que o acontecimento, a ter tido lugar, terá sido na
zona. Mas não quero convencer ninguém.
Insisto em marcar a minha posição. Pois não penso pelos outros. E que sei eu, com a
minha idade? Não quero ser detentora de verdades. Não sou Platão. Apenas manifestei uma
opinião, que vale o que vale.
A nossa mãe resolve apaziguar os ânimos:
- Eu gostei da ideia. Não sei se terá algum fundamento histórico, mas tem lógica. – E
dando-me um beijo na testa – Gosto de saber as minhas filhas criativas. A
passividade perante as coisas, sejam elas quais forem, não traz nada de bom ao
mundo; porque este só avança quando está motivado.
Mas é o nosso pai quem me espanta, ao comentar – e eu que julgava que nem nos
estava a ouvir!
- Eu preferia que ela usasse a cabeça para se preocupar com algo verdadeiramente
importante; não se enchesse de lendas e mitos, que não adiantam nem atrasam. – E
agita a revista, cruzando a outra perna, sentado que está nesta cadeira encostada à
parede, virado para o mar.
A mãe mexe-me nos cabelos com um sorriso. Defende-me:
- Deixa-a, que a menina está de férias. Não te esqueças que é uma excelente aluna.
Ao que se seguiria uma resposta, mas o nosso pai contém-se. Muda a página da revista.
Está irritado. Para preencher o hiato, resumo a questão levantada por Platão nos seus livros:
- Ninguém sabe nada sobre a Atlântida. Os que crêem na improbabilidade física da
Atlântida, enfatizam a critica moral de Platão; pois ele, regra geral, censurava a
condição em que a própria Grécia Clássica vivia. – E espreitando a calma aparente
do meu pai, prossigo – Aliás, nunca foi provada a existência da Atlântida, mas Tróia
foi entretanto descoberta debaixo de toneladas e toneladas de terra que os anos
haviam acumulado sobre as suas ruínas. Antes julgava-se que Homero inventara
Tróia. Afinal, não só tinha havido uma cidade com esse nome, como várias,
construídas sucessivamente umas por cima das outras.
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-
Então talvez se encontre a Atlântida. – Convence-se a Joana.
Platão não era Homero. – Declara o nosso pai, peremptório. Não nos olha, fingindose ocupado, mas acrescenta – Platão detestava Homero.
- Por não ser tão bom quanto ele? – Pergunto, sempre pronta a defender o aedo.
Encolhe os ombros:
- Platão era um filósofo. Homero um poeta épico. Cada macaco no seu galho. –
Qualquer coisa me diz que, ou não gosta de Homero ou de Platão. Ou dos dois. Isso
mesmo expresso em voz alta. O pai prefere mostrar a sua perplexidade em relação a
mim. – Não consigo perceber o que te fascina tanto na Grécia. Nesses mitos todos!
Ou mesmo na Ilíada de Homero; quando a li no liceu, detestei-a.
Considero a crítica imerecida. Até porque:
- A avó Teles gostava dos clássicos. – Recordo.
Refiro-me, obviamente, à mãe da nossa mãe, que era exímia contadora de histórias. Não
chegou a ter uma profissão, porque na época uma menina de família não ia estudar para
Lisboa (nasceu em Santarém), mas jamais descurou a leitura. Pediam-lhe, inclusivamente
para preencher os serões – na altura não havia televisão – a ler e a tocar piano para a
família; serões nos quais a avó Teles declamava Camões e Fernando Pessoa, ou lia Júlio
Dinis, Camilo Castelo Branco, Almeida Garrett e Eça de Queirós. Mas sobre a mesinha de
cabeceira acumulavam-se também outros livros; inclusivamente proibidos na época –
segundo a própria nos contou.
Uma mulher sábia, muito determinada e digna do seu nome. Uma Senhora,
De tão apaixonada pela época medieval portuguesa, insistiu em legar nomes cheios de
História aos filhos. A minha tia, a primogénita, ficou Maria – a pedra basilar. O meu tio,
como não poderia deixar de ser, acabou Dinis – homónimo do rei favorito da minha avó; o
trovador, o romanesco, o altivo e garboso rei do pinhal de Leiria, quem poderia esquecer?
O nome da nossa mãe é o da primeira rainha de Portugal, mulher do extraordinário
Afonso Henriques – que, como se sabe, era Mafalda ou Matilde.
O que contrasta claramente com a minha linha paterna. Veja-se que o nosso pai é João,
filho de João, neto de João, bisneto de João – o resto não sei. Só muda o segundo nome. O
nosso pai é João Pedro, o meu avô João Manuel, filho de João Luís, bisneto... bom, de João.
Não admira que, depois da nossa mãe escolher os nomes das primeiras filhas, o nosso
pai tenha manifestado gosto de chamar à terceira filha... Joana. Silva como a sua mãe, Lobo
como o seu pai. Ou seja, Joana Silva Lobo. Sim, porque a Leonor é Teles como a mãe da
minha mãe e Lobo como o pai do meu pai. Eu, a primogénita, sou Rodrigues (do avô
materno) e Lobo (do avô paterno). Assim ficaram todos contentes. E conservaram-se os
nomes de família. Manteve-se a tradição. Uma forma simbólica de não se perder nos anais
da História. Ou no esquecimento.
O nosso pai respira fundo, enchendo-se de paciência:
- Já que teimas em tirar um dia uma licenciatura em História, começas a ter idade de
ler livros diferentes, como a República de Platão, ou a Política de Aristóteles. Para
saberes se, de facto, queres passar a vida enfiada em museus ou bibliotecas a
pesquisar sobre a vida dos que já morreram.
Sinto-me incomodada com as suas palavras. Aliás, não percebo o nosso pai. Pretenderá
dissuadir-me de uma carreira como Historiadora ou Arqueóloga, recomendando-me... a
leitura dos maiores escritores da Antiguidade? Não faz sentido.
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Mas a minha linha de argumentação acaba por seguir outro caminho. Obrigo-me a
pedir-lhe que não fale assim. Parece-me tão injusto:
- Por favor pai. Sei que não gostarias que fosse historiadora. Tens medo que eu não
arranje depois emprego, mas...
Embarga-me o discurso, decidido a fazer-se ouvir:
- Minha querida, escuta-me com atenção que o pai não vive a vida toda. – Ao que,
peremptório – Deves preocupar-te em projectar a tua vida e não a enterrares-te no
passado de quem viveu antes de ti. Esquece essas histórias e esses mitos absurdos,
ou mesmo as realidades que verdadeiramente não conheces e sobre as quais talvez
não gostasses de pesquisar; e vive a tua criatividade, a tua liberdade, com a tua
força de vontade. Não precisas esconder-te por detrás da suposta heroicidade de
sabe-se lá quem. Fortalece-te. Mostra a tua coragem perante a tua própria vida;
uma vida prospectiva, virada para o futuro. – Declara, pedagogicamente.
Não lhe levo a mal. A sua intenção é boa. Abro o jornal, a seu lado; o que comprou esta
manhã na cidade moderna de Cnossos. Insiste em que estude as notícias mais importantes;
para me manter actualizada. Virada para a vida, como costuma dizer.
No altifalante, o Mil-Línguas berra umas quantas palavras que ninguém entende,
enquanto Santorini se aproxima. Mantenho-me sentada, junto ao nosso pai. Leonor foge
para longe, para não ser obrigada a ler o jornal. A Joana acompanha a nossa mãe, que se
aproximou da senhora de Coimbra e da sua filha.
Podia revoltar-me contra o grau de exigência que o pai me pede. Mas não posso fazê-lo.
Aliás, devo agradecer-lhe a motivação com que me educa; com que me pede para
compreender o presente e me projectar no futuro; pois, com o passado aprende-se a melhor
seguir em frente, não a esconder-me dentro de uma concha que me proteja do dia-a-dia.
Se eu um dia preferir seguir uma licenciatura em História, não deverei simplesmente
bater o pé, mas saber argumentar a favor da minha escolha. Assim terei a certeza que é
mesmo essa a profissão que quero para mim; e não poderei desiludir os meus pais por a ter
escolhido. Pois a educação que tanto esforço fazem em me dar, garantirá mais facilmente os
seus frutos, não no passado, mas no futuro.
O gosto pela História herdei-o, portanto, por via materna. A nossa avó foi sempre
arrebatadora, ao contar – junto à lareira, rodeada pelos netos – todas aquelas histórias sobre
reis e rainhas portuguesas, imperadores romanos e bravos lusitanos!
O que justifica o meu nome de baptismo. Pois sou Sancha. Como a filha do primeiro rei
de Portugal – El rei D. Afonso Henriques. Sancha, que qual filho de peixe sabe nadar, se
tornou numa grande mulher, muito à frente do seu tempo, que praticamente governou e
geriu o país, enquanto o pai e o irmão se dedicavam às grandes batalhas e conquistavam
novas terras. Quando se casou, já tarde, com um estrangeiro – o que implicava
penosamente para ela a saída de Portugal – encarou a mudança de vida com coragem,
acabando aclamada como heroína na terra de acolhimento – a Flandres.
Sancha foi também a neta de D. Afonso Henriques, durante muitos séculos uma das
mais conhecidas santas de Portugal. Aliás, Sancha vem do latim e significa exactamente
aquela que é santa.
Seria nome mais que comum em Portugal, mas caiu em desuso. Sempre fui a única
Sancha na minha turma. Quem sabe se na escola inteira. Quando falam na Sancha, toda a
gente sabe que falam de mim. O que me traz vantagens. E inconvenientes.
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Resumindo, é com grande responsabilidade e orgulho que tento não envergonhar nome
tão vibrante de História. Pelo que tento ser fiel aos meus pais, à tradição familiar e a mim
própria. O que me recorda o dia em que a mãe se apercebeu que eu não tinha a sua vocação
para tocar violoncelo – pelo que nunca poderia seguir a profissão que ela, por um motivo
ou por outro, acabou por não seguir. Com estas palavras me falou:
- Minha querida, faz-te a ti própria um favor. No que quer que escolhas um dia fazer,
decide em consciência. Depois arranja maneira de ser a melhor na tua profissão. E
nunca, nunca desistas perante os obstáculos que possam surgir.
O mar ilustra o intenso suspiro das suas ondas, beijando a agreste costa da ilha cujas
elevações escarpadas, nos acolhem a chegada. Avançamos em redor da ilha. Esta
desabrocha uma doce flor azul, uma aldeia sobre o mar numa reentrância da rocha.
Acabei de ler o jornal. Tocam-me no ombro:
- Então, não ouves?
Pelos vistos, a Leonor e a Joana já estavam a fazer-me sinais há que tempos, sem que
lhes retribuísse um mínimo de atenção. Os nossos pais levantam-se. Ao que parece, já estão
barcas à nossa espera para nos levar ao porto de Santorini.
- Ainda a pensar na história da Atlântida? – Pergunta-me a Joana, vendo-me aérea.
Só me lembro de responder:
- Tal como o império romano, a Atlântida só ruiu por ter pés de barro.
Inclino o pescoço para trás, tentando afastar o sol para avistar a povoação enfiada no
cume do monte, salpicada por uns incontáveis seiscentos degraus. Pelos vistos, a subida à
cidade de Lindos tinha sido uma brincadeira de crianças!
- Mas a cidade fica lá em cima?
A nossa mãe sossega-me ao apontar... um teleférico.
A barca de pesca move-se. Passo as mãos pela água, juntinha a mim. Está
deliciosamente fria, contrastando com os trinta e cinco graus que me queimam as pernas,
nuas do joelho para baixo. Respiro fundo. A água acalma-me.
Leonor e Joana são as primeiras a pisar o chão de Santorini. Eu e os nossos pais
seguimos no vagão de trás.
Ora o pai tem um medo pavoroso de teleféricos, ainda que não se atreva a admiti-lo, ou
mesmo se recuse a viajar neles. Mas basta observá-lo, pálido, hirto, de costas voltadas para
a paisagem, suando em bica, controlando o nervosismo enquanto coça o bigode preto e a
barbicha em pêra, silencioso que nem um rato, acomodado a um canto.
Já a nossa mãe, desde que entrou que desenrola uma conversa divertida com a senhora
francesa a seu lado e com o marido desta, gordo que nem um pote, de ostensivas bochechas
e rabo de um metro, que transpira verdadeiros caudais pela sua longa testa.
Leonor e Joana aguardam-nos, queixando-se do calor. Mas os ricos bigodes do nosso
pai revivem ao sabor da brisa.
A cidade é sobretudo comercial. A parte arqueológica afasta-se a quilómetros de
distância e o museu hoje está fechado. Descer pelas ruas significa acabar temperada por
lojas e seus respectivos comerciantes, todos muito unidos numa mescla de cores onde
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predominam o azul e o branco – as mesmas de Mikonos; o que não admira, pois a própria
bandeira transporta consigo a própria alma grega. Os mais fascinantes são os lenços,
semitransparentes, dançando ao sabor da brisa.
Saboreando o meu gelado de chocolate, vou passeando alegremente pelas ruas.
A Joana pára sempre que vê CDs a vender, embora a maioria dificilmente satisfaça o
seu gosto excêntrico.
- Mana, não fiques para trás. A mãe já vai lá à frente. – Peço-lhe. Mas enfim, tenho
de esperar que ela se decida. Encho as bochechas de ar, até exclamar – Hoje, Joana!
Ela lá vem, agarrada ao leitor de CDs, voltando a pôr os auriculares nos ouvidos.
Juntamo-nos aos pais e à Leonor. O pai está a comprar presentes para os amigos e a
mãe ri-se. A Leonor encanta-se com uma boneca de porcelana.
- Oh mãe! Posso, posso, posso?
Ela sorri-lhe, afagando-lhe os cabelos:
- Já não tens oito anos, filha.
Não que o argumento demova a determinação da Leonor, que insiste na imperativa
necessidade de comprar a boneca.
Resolvo sair da loja, onde acabo de comer o gelado. Ao que subo a um muro caiado de
branco, justo em frente, de onde sou bafejada pela maresia. A paisagem é absolutamente
deslumbrante.
Caminho ao longo do corredor estreito. Sempre adorei muros, apesar de os saber
perigosos. Não sei explicar porquê. A verdade é que os subo com a vontade de, neles
esticando os braços para cima, tocar o céu azul com a ponta dos dedos.
E como o céu está azul no dia de hoje! Até o sol parece maior e o mar radia na sua prata
dourada.
Mas o tempo escasseia, escasseia sempre. Não há como impedi-lo e são horas de partir.
Vamos de mulas? Parece que não. Até porque a descer todos os santos ajudam; menos
um, que é coxo.
Iniciamos a descida pelos supostos seiscentos degraus até ao sopé da montanha,
enquanto as mulas permanecem enraizadas ao solo, passivas como moscas mortas, à espera
que o destino mude e o futuro lhes sorria mais brilhante. Bom, se continuarem pávidas e
serenas como estão, bem podem esperar sentadas!
A tarde conquista o primeiro algodão nos céus. Devem ser umas seis da tarde.
- Quantos degraus faltam? – Queixa-se a Leonor, ainda a meio de caminho.
Gozo-a, fingindo ter vindo a contá-los lá de cima:
- Pelas minhas contas, faltam uns mil e quinhentos e onze.
Leonor atira-me com o chapéu à cabeça, sabendo-se gozada.
Mas Joana surpreende-nos ao declarar:
- Não sei quantos faltam mas já descemos quatrocentos e treze degraus.
Escondo o riso:
- Oh, rapariga... a sério que vieste a contar os degraus até agora?
Enrubesce violentamente, desembaraçando-se com uma frase menor, dizendo ter sido
uma brincadeira. Estava-se mesmo a ver que não.
Esta é a última noite a bordo. No serão de despedida, o espectáculo será tipicamente
grego. Numa mesa redonda reúnem-se alguns doze portugueses, entre os quais os nossos
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pais, o casal de advogados, uma professora primária nortenha que fala pelos cotovelos e um
casal de meia-idade que o ano passado esteve no Egipto.
- Muito calor, um tempo pavoroso! Pior que aqui. – Explica o senhor, inclinando-se
para a frente. – Mas na minha opinião, o Egipto é mais interessante. Não se pode
beber água sem ser engarrafada. E a miséria é franciscana.
O Ramón e as irmãs fazem-nos sinais. São o, sentados numa mesa mais pequena na
companhia do Manuel – que apenas conhecemos de vista, apesar de ter andado connosco
nas excursões – e do Charles, um inglês ruivo de muitas sardas.
- Amanhã ancoramos no Pireu, com destino à capital. – Lamenta-se o Manuel – Vaise acabar a melhor parte da viagem. Dizem que o interior da Grécia não tem piada
nenhuma.
Nego-me a fazer parte das críticas ao país que há tanto tempo queria visitar:
- Não sejas má-língua. Atenas é uma cidade bonita.
Encolhe os ombros, com um vejamos, pouco entusiasmado.
O palco enche-se de música. O espectáculo em si ainda não começou. Curiosamente,
uma matrona grega e o seu companheiro dançam voluptuosamente na pista. Ocupam-se de
eclipsar os dotes amadores dos outros casais. Tanto que os estes se vão sentando, pouco a
pouco, a fim de os observar.
Diga-se de passagem, movimentam-se com verdadeira elegância. A grega em especial.
O marido, ou amante ou o que quer que seja!, limita-se a gravitar em torno dela.
Ambos morenos, ele é palmo e meio mais baixo; além de consideravelmente mais
magro. Que ela é fortíssima! O que não a desmistifica, pois a gordura assenta-lhe bem.
Uma mulher magra não conseguiria encher o palco; impor tal presença e postura naqueles
movimentos ao sabor da guitarra grega. Veste negro, e no camiseiro de seda desenham-se
umas quantas flores amarelas, verdes e azuis. Os seus longos e espessos cabelos compridos
bailam entre os dedos, e o parceiro está perfeitamente embasbacado com ela. Ambos,
sozinhos no palco, dominam a assistência, assumindo a nacionalidade e a herança do povo
a que pertencem.
Toca o clarinete. O par senta-se, feliz pelo triunfo.
A guitarra sibila. Surgem as dançarinas, vestindo uma casaqueta vermelha bordada a
dourado e um chapéu preso por um elástico com um pompom no cocuruto, de onde desce
um fiozinho também dourado. Vestem calças brancas em balão; nos punhos e na camisa
ostentam rendas e folhos tradicionais.
Mas o furor inicial cedo se esvai. As danças seguem-se umas às outras mecanicamente,
multiplicando movimentos desprovidos de sentimento – numa criação industrial e
descaracterizada, desprovida da genialidade inicial do artista.
É certo que se trata da primeira vez que assisto a uma dança helénica, mas posso
diferenciar uma herança – significativa e transmissível de uma geração para a seguinte – de
um produto artificial.
Ao contrário, o casal que antes ocupara o palco emanara uma autenticidade corpórea.
Certamente por a entrega à guitarra ter sido total, de alma e coração.
E entra o Mil-Línguas em palco. Para cantar. Traja branco. Para nos surpreender.
As solteironas assobiam-lhe a entrada e ele encavalita-se na expressão grave e ausente
que o caracteriza – não vão os elogios tirar-lhe um pedaço!
- Poltrão. – Resmunga Leonor, cingindo o nariz.
- Julgará que canta bem? – Pergunta o Manuel, cruzando os braços.
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Deixamo-nos rir. Apenas Charles, encabulado por ter sido o único a não entender a
piada, sorri sem saber porquê, interrogando-nos com o olhar. Situação que Joana se apressa
a corrigir no seu inglês perfeito.
E quase esquecemos o espectáculo. É que uma coisa é ver uma imitação do cancã na
Grécia, outra coisa é assistir a um logro grego no seu próprio país.
Nasce a manhã de 24 de Agosto. As malas estão prontas, o pequeno-almoço foi tomado
com antecedência. Os passageiros apinham-se na entrada do navio, formando várias filas.
Na recepção, dois homens fardados recebem uns pacotinhos das mãos dos turistas.
Aguardam pela gorjeta.
No cais aproximam-se os autocarros, todos eles bem equipados e elegantes, cada qual
com o seu guia turístico, e respectiva listagem dos nomes que deverão acolher e depois
distribuir pelos hotéis de Atenas consoante a escolha prévia das famílias.
Para variar, o dia ferve de quente.
As duas irmãs catalãs ordenam as malas junto a si, enquanto tentam descobrir nas guias
turísticas aquela que chamará pelos seus nomes. O Manuel e o Charles despediram-se há
minutos, seguindo para os seus diferentes destinos. A Joana joga no telemóvel, fixa na
pontuação que está a conseguir. Os nossos pais conferem a papelada, separando a que
deverão entregar à guia, e eu folheio um imenso panfleto sobre a capital - dobrado de mil
maneiras que não entendo, pelo que até agora guardado na mochila – para ver planifico
algumas visitas para esta tarde.
Ramón, por sua vez, preocupa-se em perguntar sobre o hotel em que nos vamos instalar
em Atenas, se iremos aqui ou ali, apercebendo-se rapidamente que nada, de hoje em diante,
teremos em comum.
Uma mulherona alta e gorda, de longos cabelos negros, aproxima-se do grupo
português, procurando ler-nos correctamente os apelidos. Assemelha-se muito à que dançou
nos palcos de ontem. Bom, os olhos talvez sejam maiores, a testa mais ampla e a boca mais
larga.
Decidida a nossa partida, erguemos as malas, preparando-nos para partir.
Saúdo pela última vez os amigos de Barcelona:
- Se não nos virmos mais, que a viagem vos corra o melhor possível.
Elas asseguram-se que temos os seus números de telemóvel e e-mails – trocados na
noite passada. Reafirmamos convites, para que nos visitemos mutuamente.
Compreendendo que o autocarro praticamente espera por nós as três, aviso:
- Temos de ir. – E despedindo-me – Divirtam-se!
Leonor dá um último abraço a Rámon. Ele também lastima a separação.
- .o olvidem de nosotros, he!6 – ainda ouvimos, antes de se fechar a porta e
rumarmos para Atenas.
(tem continuação – II Parte)
6
«Não se esqueçam de nós!»
Maria Galito
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