A APROPRIAÇÃO DAS IMAGENS DO GOOGLE STREET VIEW
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A APROPRIAÇÃO DAS IMAGENS DO GOOGLE STREET VIEW
A APROPRIAÇÃO DAS IMAGENS DO GOOGLE STREET VIEW: ARTE E DIREITOS AUTORAIS. Lia Scarton Carreira1 Resumo: As características de ferramentas como o Google Street View, que promovem uma experiência de imersão virtual e de compartilhamento, viabilizam a apropriação de suas imagens pelos seus usuários. Esses usuários recontextualizam as imagens da ferramenta e dão à elas outras finalidades, tanto no seu cotidiano quanto no campo artístico. Assim, o estudo dessas ferramentas e dessas formas de apropriação artística é fundamental para a compreensão dos atuais modos de produção visual. O presente trabalho trata de uma primeira etapa desse estudo e busca, portanto, compreender a recente prática de apropriação das imagens do Google Street View por artistas contemporâneos a partir da problemática dos direitos autorias. Palavras-chave: apropriação, arte, cibercultura, Google Street View. A apropriação como estratégia artística O atual cenário da apropriação artística está situado no âmbito do digital. Manovich (1998) caracteriza essa forma de tecnologia não apenas pela sua representação numérica que permite sua manipulação e modificação, mas também pela sua capacidade de recombinação e reestruturação. Estas características permitem sua variabilidade, isto é, sua transformação em infinitas versões diferenciadas da original. Assim, uma imagem do Google Street View, disponibilizada na internet para acesso público, pode ser recortada, editada e transformada digitalmente. Ela pode ainda ser transferida para outras páginas da web e/ou para outros meios. Esse caráter variável incentiva, portanto, a apropriação pelo usuário tanto para uso cotidiano quanto para fins artísticos. Mestranda em Comunicação pela Escola de Comunicação, Universidade Federal do Rio de Janeiro. E-mail: [email protected] 1 No entanto, a apropriação para fins artísticos pressupõe a liberdade de transformação de conteúdos pré-existentes, sem a necessidade de autorização prévia de uso e exige para sua aplicação a ausência de restrições de propriedade como as impostas pelas leis de direitos autorais. Esse é um debate recorrente quando se trata da apropriação como prática artística. A prática é largamente utilizada no âmbito da arte, porém interfere no âmbito da regulação de uso da propriedade intelectual. Esse fator levou Sherrie Levine, importante artista apropriacionista dos anos de 1980, a mudar sua abordagem de refotografar as imagens do fotógrafo americano Walker Evans para a apropriação das imagens do russo Alexander Rodchenko, de modo a fugir das restrições das leis americanas (IRVIN, 2005). Dentro de um exemplo mais recente, temos o artista Richard Prince que foi processado por utilizar imagens do fotógrafo Patrick Cariou (HAGGART, 2011). O julgamento, ocorrido em dezembro de 2011, estabeleceu que Prince não fez um “uso justo” (fair use) da obra do fotógrafo. Já no início de 2011, o artista Michael Wolf recebeu, pelo seu trabalho com apropriações de imagens do Google Street View intitulado A Series of Unfortunate Events, menção honrosa na categoria de Contemporary Issues da conceituada premiação do World Press Photo, cujo foco está na prática do fotojornalismo e no fotodocumentário. Sua premiação no festival provocou uma série de debates na internet entre os blogs e sites especializados em fotografia que segundo Arnott (2011), giraram em torno do questionamento dos conceitos de autoria e propriedade, de nomeação e enquadramento nos padrões e categorias da prática fotográfica, e suas implicações no âmbito da fotografia. Questionou-se, portanto, a própria validade dessa prática enquanto ato fotográfico. Segundo Lutton (2011), esses argumentos usados para contestar a autenticidade da obra de Wolf são semelhantes aos usados para questionar as práticas apropriacionistas do século anterior como nos trabalhos de Marcel Duchamp, Andy Warhol e, inclusive, Richard Prince. Produção, apropriação e distribuição em rede A apropriação como estratégia artística é um importante instrumento de problematização dos discursos e conceitos que abrangem a produção de arte. Nesse âmbito, a prática pode ser entendida como a tomada da posse de obras, parcial ou integral, de um outro artista para adaptação, transformação e/ou desconstrução, entre outras aplicações que dependem dos objetivos e propostas do apropriacionista. Nesse processo, a obra é recontextualizada e resignificada, se transformando em uma outra obra, derivada da obra apropriada. Essa atividade funciona, portanto, por um processo dialógico e suplementar. É notório seu estabelecimento como prática relevante e amplamente presente nos diversos setores da cultura ocidental. Do modernismo ao pósmodernismo, artistas utilizaram esta prática como forma de questionar e denunciar valores e discursos e, assim, propor outros rumos e possibilidades não somente no âmbito da arte, mas no âmbito social, econômico e político. Dentre as suas diversas aplicações, alguns conceitos se destacam como elementos chaves dos questionamentos apropriacionistas, entre eles as noções de original e cópia, de autenticidade, de autoria e de propriedade intelectual. Cada época abordou esses elementos de uma forma específica, com base nos seus propósitos. Tomemos como exemplo Sherrie Levine que ao refotografar as imagens inteiras do catálogo da exposição de Walker Evans em 1979, não somente nos leva a analisar os modos de reprodução de arte neste período, como nos induz a questionar a própria noção de autoria e de propriedade. Assim, ao reproduzir um duplo inalterado da obra de Evans e tomar para si sua autoria, Levine coloca em cheque os parâmetros da própria reprodução, cuja validade está atrelada aos direitos do autor sobre sua propriedade intelectual. Vinte e dois anos depois, Michael Mandiberg reproduz digitalmente as imagens apropriadas de Levine por meio de um scanner e toma para si a autoria. Os projetos criados a partir delas, AfterSherrieLevine2 e AfterWalkerEvans, disponibilizam na internet as imagens apropriadas em alta resolução para download e compartilhamento, e ainda fornecem um certificado de autenticidade. Mandiberg (2011) afirma que, ao contrário do trabalho do artista Felix Fonzalez-Torres3, o certificado serve como garantia de que cada imagem baixada seja considerada igualmente autêntica. Para o artista, sua apropriação da apropriação não apenas retoma a questão da autoria implicada nas obras de Levine, mas, ao buscar facilitar o compartilhamento dessas obras, suscita o debate sobre o acesso à informação numa era digital. Trata-se, assim, de questionar as restrições impostas à reprodução e compartilhamento de conteúdos e informações pelos parâmetros legais contemporâneos. Martins (2011) argumenta que os padrões de controle relativos à autoria e à distribuição vêm sendo desestabilizados por meio de práticas sociais de compartilhamento, como as de Mandiberg, que incentivam modelos abertos de criação e acesso. Segundo a autora, nos encontramos dentro de um novo cenário produtivo que convoca os sujeitos à participação colaborativa e que impõe uma outra dinâmica de circulação de bens. Dentro deste novo cenário, o conhecimento é a principal força produtiva e deve, portanto, ser compartilhado e circulado livremente. Para Gorz (2005), este “capital humano” é uma forma de “cultura comum, saber vivo e vivido”. É o que agora determina a criação de valor dentro do processo produtivo, não mais o tempo de trabalho despendido. Esse conhecimento, diz o autor, pode ser compartilhado e multiplicado quase sem custo e utilizado ilimitadamente. Ele argumenta que quanto mais o conhecimento se propaga, mais útil ele é à sociedade. Nessa lógica, ao possuir pouco valor de troca, o conhecimento pode, em princípio, ser compartilhado à vontade, gratuitamente e, tornar-se, portanto, um bem comum acessível a todos. Levine utilizava nas legendas das suas obras o termo “after” para referenciar a obra apropriada. 2 Trata-se de uma escultura de guloseimas de papel exposta de modo a permitir que o observador interaja e pegue um pedaço. A obra se mantém sempre completa uma vez que o autor possui um certificado de autenticidade que lhe garante o direito de reprodução. 3 No entanto, o capital, segundo o autor, tende a associar o conhecimento às estruturas pelas quais funciona: capitalizando-o. Desse modo, apropria-se do conhecimento para impedir que ele se torne um bem coletivo, fazendo-o funcionar como “capital imaterial”. Para tanto, o conhecimento deve se tornar escasso e se transformar em propriedade privada. “Sempre se trata de transformar a abundância 'ameaçadora' em uma nova forma de escassez, e com esse objetivo conferir às mercadorias o valor incomparável, imensurável, particular e único de obra de arte, que não possuem equivalência e podem ser postas à venda a preços exorbitantes” (GORZ, 2005, p. 11). Assim, para manter a lógica capitalista da escassez, o mercado cria meios de restringir os modos de produção, acesso e compartilhamento. Trata-se de “barreiras artificiais” criadas para limitar o usufruto e aumentar o valor de troca. Segundo Gorz (2005), a privatização das vias de acesso possibilita a transformação de bens imateriais em quase-mercadorias. Para o autor, não se trata mais de identificar nessas mercadorias o conhecimento como fonte de valor, mas de identificar a fonte de valor do mercado no monopólio do conhecimento. “Basta que o capital se aproprie dos meios de acesso ao conhecimento – especialmente os meios de acesso à Internet – para conservar o controle sobre ele, para impedi-lo de se tornar um bem coletivo abundante. O acesso e os meios de acesso ao conhecimento se tornam assim o desafio maior de um conflito central” (GORZ, 2005, p. 37). Uma das formas de controle ao acesso está na aplicação das leis dos direitos autorais. Para Lima e Santini (2008) a propriedade intelectual dos bens imateriais se contrapõe aos interesses do comum. A criação de uma escassez artificial entra, assim, em conflito com a produção colaborativa e com o seu compartilhamento. Nesse sentido, os autores acreditam que o sistema de direito autoral como o copyright não é mais coerente com o cenário de produção contemporâneo. Assim, os autores apontam para as novas relações de propriedade intelectual estabelecidas por meio de licenças criativas, como o Copyleft, Creative Commons e o Open Access. Essas licenças buscam diminuir as restrições sobre a produção e seu compartilhamento. O Copyleft visa a regulação da informação de modo libertário ao permitir, além da reivindicação de autoria, de cópia, distribuição e uso, presentes também no copyright, a apropriação e derivação da obra sem a necessidade de solicitação de permissão de uso diretamente ao proprietário. Já a outra forma de regulação autônoma de produção e uso de propriedades intelectuais, o Creative Commons, tem por finalidade o desenvolvimento de licenças flexíveis voltadas para o acesso, cópia, distribuição e derivação de obras segundo a necessidade e preferência de circulação estabelecida pelo autor (LIMA; SANTINI, 2008, p. 125 ). Assim, segundo Nicolau e Nobre (2009), o que o Creative Commons propõe é a autonomia da decisão do autor sobre sua criação. De forma similar, o Open Access (Movimento Acesso Aberto) permite a apropriação livre de restrições de ordem financeira. Porém, neste sistema “o que se exige é apenas a devida citação ao autor da obra, além de manter a integridade de seu trabalho” (Nicolau e Nobre; 2009, p. 14). No entanto, essas iniciativas não deixam de ser relações contratuais estabelecidas a partir de conceitos da legislação do direito autoral. Não se aplicam, portanto, àquelas estratégias de apropriações artísticas que necessitam tomar a autoria da obra a partir de sua reprodução não autorizada. De todo modo, trata-se de licenças que incentivam a apropriação e produção, ao flexibilizarem os direitos de uso e de reprodução. Nesse sentido, tanto as táticas apropriacionistas quanto as licenças criativas incitam o debate sobre as questões de autoria e advertem sobre a inadequação dos parâmetros contemporâneos de reprodução e de propriedade intelectual. Dessa forma Lima e Santini (2008), acreditam que não há motivo para se presumir que a produção de valor da criatividade depende da apropriação privada. Pois, “a redução do controle econômico dos bens imateriais não visa apenas a facilitar o acesso, mas também a liberar a inovação e o desenvolvimento” (LIMA; SANTINI, 2008, p. 126). É interessante observar, contudo, que o próprio mercado que impõe estratégias de controle de produção, uso e distribuição é o mesmo que possibilita o consumo da cópia. Segundo Nicolau e Nobre (2009), este é um dos paradoxos da produção contemporânea. Os autores citam como exemplo a participação da empresa Sony, na década de 1970, na produção e comercialização de equipamentos de reprodução, como o videocassete. Neste sentido, o acesso aos meios de reprodução facilita a circulação da cópia, incentiva a apropriação pelo usuário e dificulta o controle sobre o compartilhamento. Esses aspectos são ampliados ainda mais dentro do âmbito do digital, principalmente na Internet, onde a conexão em rede propulsiona a distribuição. Apesar do caráter recente, esses modos de produção e compartilhamento de bens na Internet, segundo Nicolau e Nobre (2009), apontam para uma nova cultura traçada pela fluidez da comunicação em rede. “As conexões da web estão cada vez mais conscientes de seu novo papel e não se trata apenas de receber conteúdo ou reagir a alguma informação” (Nicolau e Nobre; 2009, p. 14). Trata-se, principalmente, de uma nova esfera produtiva e de distribuição focada em uma cultura de participação colaborativa. Portanto, a questão agora é “repensar os valores incutidos na criação, discutir qual a função de uma obra e, sobretudo, qual a relação do autor com o que cria e com quem deseja ter acesso à sua criação” (Nicolau e Nobre; 2009, p. 15). Apropriação das imagens do Google Street View É aqui, portanto, que inserimos no debate o objeto de estudo deste projeto: a apropriação das imagens do Google Street View (GSV) por artistas contemporâneos. O Street View é um dispositivo pelo qual fotografias de um determinado espaço físico são captadas, coletadas e agrupadas formando panoramas em 360 graus. Esses panoramas compõem o mapa virtual criado pela empresa Google em seu aplicativo Maps e, através da sobreposição e efeito de continuidade, permitem que o usuário da internet navegue por suas imagens como se estivesse “caminhando4” pela cidade. Trata-se, portanto, de uma simulação virtual da cidade através de fotografias agrupadas por computação gráfica. Os próprios conceitos utilizados pela Google para sua definição se baseiam na idéia de imersão do usuário em uma realidade virtual. No entanto, ao recriar um determinado espaço urbano por meio de imagens e panoramas, não se tratará apenas da simulação da realidade, mas de uma realidade fotográfica (MANOVICH, 1995). Esse aspecto é, segundo Manovich (1995), de extrema importância para o desenvolvimento da cultura visual, pois dá continuidade a uma noção de percepção da imagem que antecede, inclusive, o fotográfico: a aceitação do meio e de seus suportes como realidade. Esse aspecto possibilita, portanto, uma produção fotográfica a partir de um sistema virtual, como é o caso do Google Street View. Em essência, o GSV é uma ferramenta de geolocalização, mas não se limita à navegação cartográfica. A diversidade de suas aplicações é, inclusive, incentivada pela Google: “O Google Maps com Street View permite explorar lugares no mundo todo através de imagens em 360 graus no nível da rua. Você pode dar uma olhada em restaurantes, visitar bairros ou planejar a próxima viagem” (Google, 2012). Dessa forma, o propósito da ferramenta é incentivar o usuário a apropriar-se dela e inseri-la em suas atividades cotidianas. O uso da ferramenta no âmbito da arte, portanto, não é incoerente. Ela, inserida na dinâmica de produção e compartilhamento característica da cibercultura, possibilita que o usuário participe e gere conteúdos a partir de seus mapas. O usuário pode adicionar imagens próprias aos percursos, fazer marcações e comentários e ainda pontuar as publicações de outros usuários. Ele pode inclusive apropriar-se de seus dados cartográficos e publicá-los em outros meios e páginas da web. O que possibilita a Termo utilizado pelo Google ao descrever o Street View. 4 prática apropriacionista nessa ferramenta é, portanto, seu caráter aberto e a participação colaborativa característica dessa comunicação em rede. Nesse sentido, o que os apropriacionistas dessas imagens fazem, através da refotografia ou do recorte por meio de comandos do computador (como o printscreen), é selecionar cenas fotografadas anteriormente pela câmera da Google, retirando-as de seu contexto e transformando-as em outras imagens. Assim, esses métodos permitem que o usuário selecione, enquadre, interprete, capture e compartilhe uma determinada cena disponível para acesso público na internet. Eles, portanto, se apropriam de uma informação para reposicioná-la como novos fatos e narrativas. É o que fazem artistas como Michael Wolf, Jon Rafman, Doug Rickard, Nicholas Mason, Mishka Henner e Aaron Hobson. Outros artistas ainda apropriam-se dessas imagens ao interferir no processo de captura. O artista Aram Bartholl (2012), por exemplo, criou uma série de “autorretratos” ao correr atrás do carro da Google em 2009. Sua intervenção, intitulada 15 Seconds of Fame (2009) , foi exibida em 2010 no Café MÖRDER na Borsigstrasse, em Berlin, na mesma rua em que foi “retratado”. Para a exibição, as imagens em questão foram “recortadas” da ferramenta e apresentadas impressas e em vídeo. Imagem 01: Street With A View (2008), exposição interativa de Kinsley e Hewlett (2011). Já os artistas Ben Kinsley e Robin Hewlett elaboraram uma série de encenações, entre elas um duelo de espadas do século XVII e um desfile com banda de metais, a serem realizadas durante o percurso do carro da Google em maio de 2008 na Sampsonia Way, rua de Pittsburgh, EUA. O projeto, intitulado Street With A View (2008), fez parte da exposição Manipulating Reality do Centro di Cultura Contemporanea Strozzina (CCCS) em setembro de 2009, na qual participaram diversos artistas que compartilham o propósito de brincar tanto com as possibilidades desses novos meios quanto com as expectativas do observador. Segundo o CCCS (2011), a performance coletiva de Kinsley e Hewlett é um comentário irônico sobre o conceito de acesso à realidade por meio de imagens. Os valores incutidos no processo de criação destas obras estão, primariamente, no desejo de experimentar essa relativamente “nova” ferramenta como técnica e como matéria prima. Os artistas partem, portanto, do desejo de explorar suas características híbridas, isto é, tanto os aspectos do processo digital e da virtualização da realidade, quanto os conceitos implicados no processo fotográfico tradicional (captura, enquadramento, etc.). As obras criadas não estão necessariamente voltadas para o recorrente debate a respeito dos conceitos de original e cópia, de autenticidade e de direito autoral, mas para a produção de narrativas sobre os espaços e percursos da cidade. Trata-se, assim, de explorar as potencialidades estéticas e narrativas da ferramenta sobre os espaços urbanos e rurais a partir de suas dinâmicas e seu cotidiano. Esses artistas evidenciam, assim, um cenário fértil para o debate a respeito da produção visual contemporânea. Michael Wolf, ao inscrever sua série no World Press Photo, atuou mais explicitamente nesse sentido. Para o artistas, sua participação na premiação foi um modo de provocar o debate a respeito desses métodos de apropriação online e de evidenciar o fato de que precisamos lidar com as possibilidades desse meio e suas implicação na produção contemporânea de imagens (LAURENT, 2011). E mesmo que esse não seja o objetivo desses artistas, suas atividades nesse campo acabam por suscitar a discussão envolvendo os conceitos de original e cópia, de autenticidade e de direitos autorais. É engraçado observar que as declarações de descontentamento a respeitos desses modos de criação não provém da Google, mas daqueles que atuam no cenário da fotografia. Afinal, é o propósito da ferramenta estimular a apropriação pelo usuário. Assim, confrontar esses modos de produção artística não faria o menor sentido, pois essas criações e sua circulação incentivam ainda mais o uso e o compartilhamento da ferramenta. Neste sentido, apesar de tratarmos neste trabalho mais especificamente da apropriação de artistas, cabe ressaltar aqui a importância dessas imagens na dinâmica de apropriação dos demais usuários. Há diversos sites e blogs que se propõem a selecionar, através do print screen ou outro comando, cenas inusitadas do cotidiano das cidades capturadas pela máquina da Google. Nessas páginas da web são destaques algumas das encenações de Kinsley e Hewlett. Trata-se, portanto, de um investimento do usuário em realizar uma espécie de “curadoria” dos milhares de panoramas do GSV. Essa prática seria, inclusive, evidenciada por Wolf (apud LAURENT, 2011) como uma atividade emergente dentro do cenário da produção fotográfica digital. Essa forma de curadoria é, portanto, um modo de destacar dentre a multiplicidade de imagens presentes na web, cenas as quais os usuários acreditam ser de relevância ou que possuem o potencial de incitar o debate e o compartilhamento. Nesse sentido, o que move esses colaboradores é a dinâmica do compartilhamento e os valores a ele atribuídos. Assim, tanto as práticas apropriacionistas dos artistas quanto dos demais usuários atuam na dinâmica de participação colaborativa, pois não se tratam de meros usuários que desfrutam de um serviço proporcionado pela ferramenta, mas de indivíduos que atuam diretamente na rede, produzindo novos conteúdos. A diferença entre esses dois atores, no entanto, está no fato de que os usuários “curadores” almejam o compartilhamento em rede, a circulação de um bem ou conhecimento, e os artistas estariam mais focados na produção autoral. Assim, apesar de estremecerem as bases das noções de autoria e de propriedade intelectual, esses artistas buscam estabelecer uma produção artística própria. Inevitavelmente, eles exigem um reconhecimento de autoria e de propriedade. Nesse sentido, a função da prática da apropriação do Google Street View é dar às imagens captadas por uma máquina um novo autor, contextos, propósitos e significados. Trata-se de transformá-las em obras de arte, únicas e autênticas, e cujo acesso e compartilhamento dependem de seu criador. É, de fato, uma contradição. Excetuando o exemplo de Michael Mandiberg, cujo objetivo de suas obras era exatamente a questão do acesso à informação e à produção cultural, a grande maioria desses artistas não libera suas criações para acesso público. Eles dependem precisamente das leis de direitos autorais que refutaram inicialmente por meio do ato apropriacionista. Contudo, uma das vantagens proporcionadas por essa ferramenta, inserida no contexto digital, é permitir a constante variabilidade das criações. Nesse sentido, o panorama de referência se mantém inalterado e, devido ao acesso público, potencialmente ao alcance de todos. Desse modo, a imagem em questão pode ser apropriada e reapropriada de múltiplas maneiras para atender aos diversos propósitos dos usuários e artistas. Ela poderá ser recontextualizada e resignificada continuamente e, portanto, transformada em novas obras de arte. Referência bibliográfica ARNOTT, David R.. Photographs from Google Street View: art, journalism or something else altogether? Publicado em 28 fev 2011. Disponível em: <http://photoblog.msnbc.msn.com/_news/2011/02/28/6152140-photographs-fromgoogle-street-view-art-journalism-or-something-else-altogether>. Acesso em 21 setembro 2011 BARTHOLL, Aram. 15 seconds of fame. Aram Bartholl. Disponível em: <http://datenform.de/15-secs-of-fame.html>. Acesso em: 14 abr 2012. CASTELLS, Manuel. A galáxia da internet: Reflexões sobre a internet, os negócios e a sociedade, Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001. CCCS. Centro di Cultura Contemporanea Strozzina. Manipulating Reality. 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