APOSTILA: TRADIÇÃO JUDAICA NO NOVO TESTAMENTO

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APOSTILA: TRADIÇÃO JUDAICA NO NOVO TESTAMENTO
Cultura Judaica, História e Teologia
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CENTRO CRISTÃO DE ESTUDOS JUDAICO
CULTURA JUDAICO-CRISTÃ, HISTÓRIA E TEOLOGIA
APOSTILA:
TRADIÇÃO JUDAICA
NO NOVO TESTAMENTO
Professora: Ira. Judite Paulina Mayer, NDS
SÃO PAULO
MAIO DE 2016
Tradição Judaica no Novo Testamento
Cultura Judaica, História e Teologia
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INDICE
Ementa ..........................................................................................................................................................................................................................................
03
Unidade I: Vocabulário Judaico e o estudo e a leitura da Torá ................................................................................
04
Unidade II: Targum: uma leitura popular das Escrituras ................................................................................................
11
Unidade III: O Midrash ...........................................................................................................................................................................................
14
Unidade III: anexo: quatro mortes segundo o Midrash ....................................................................................................
19
Unidade III: anexo: Um Midrash - Gn 2,23 ....................................................................................................................................
22
Unidade III: anexo: os elos da tradição oral; a importância de uma tradição oral ............................
23
Unidade IV: Parábola
...............................................................................................................................................................................................
25
Unidade V: As narrativas da infância de Jesus ............................................................................................................................
28
Unidade VI: exegese judaica na época dos escritos neo-testamentários ......................................................
45
Unidade VI: Quadro comparativo; Midrash Pesher e Midrash Farisaico ...................................................
50
Unidade VII: Hillel e Jesus .................................................................................. ..............................................................................................
51
Unidade VIII: Quem é um Judeu? ................................................................................... ..........................................................................
59
Unidade IX: Bibliografia .......................................................................................................................................................................................
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Tradição Judaica no Novo Testamento
Cultura Judaica, História e Teologia
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CULTURA JUDAICO-CRISTÃ,
HISTÓRIA E TEOLOGIA
TRADIÇÃO JUDAICA NO NOVO TESTAMENTO
1) Ementa
Análise de textos de passagens das Escrituras e do Novo Testamento a partir da tradição rabínica.
2) Objetivo
Capacitar o(a) aluno(a) para:
1. Responder aos desafios da integração Palavra-Vida, através de instrumental teórico que auxilie o exercício
interpretação bíblica do dia a dia, ou seja, da hermenêutica.
2. Descobrir a dinâmica e a força experiencial subjacente da Palavra de Deus na vida aprofundando as raízes
históricas judaicas da Palavra de Deus.
3) Conteúdo Programático
1.
2.
3.
4.
A tradição oral do judaísmo e sua influência na redação dos evangelhos.
Torá oral: métodos da exegese judaica nas escrituras cristão.
Análise de textos do N.T. a partir da Torá oral, com ênfase nas parábolas.
Análise de textos escolhidos das cartas de Paulo
4) Metodologia
Desenvolveremos o aprofundamento da tradição judaica através da leitura e análise de textos para
debate. Na medida do possível serão feitos trabalhos em duplas com textos escolhidos, facilitando a troca de
experiência sobre a atualização das Escrituras na vida do dia a dia favorecendo a e integração entre fé e vida.
Outras modalidades serão integradas a partir da sugestão dos (as) alunos(as).
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Cultura Judaica, História e Teologia
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UNIDADE I
VOCABULÁRIO JUDAICO
E O ESTUDO E A LEITURA DA TORÁ
1.1 - PEQUENO VOCABULÁRIO
1. Amida – Significa “estar de pé” oração das Dezoito bênçãos – Shemone Esserê, conhecida simplesmente
como Tefilá – oração, a oração por excelência.
2. Amora, amoraim – singular e plural – nome dado à geração dos sábios após os tanaim.
3. Baraita, baraitot: singular e plural, palavra de origem aramaica ‘bar’ que significa ‘externo’. É uma tradição
da época dos tannaím que ficou fora da Mishná. Elas se encontram tanto na Tosefta ou nas coleções de
midrashim.
4. Darash: darash que significa buscar, investigar, escrutar. O darash das Escrituras leva à compreensão e
interpretação das Escrituras.
5. Darshan: Aquele que busca nas escrituras seu significado profundo das Escrituras, através da dérashá, tornase um grande pregador, um darshan.
6. Derashá: homilia que nasce do resultado da busca de darash.
7. Guemara: palavra de origem aramaica, o verbo gamar significa estudar ou aprender uma tradição. São
comentários e analises rabínicas da Mishná.
8. Hagadah: haggid - que significa falar e contar, sinônimo do verbo hebraico - sapper que significa relatar ou
contar uma história.
9. Halakhá: halakh - significar caminhar. No sentido figurativo é o ensinamento que alguém segue e por ele é
guiado. Halakha é o caminho da vida judaica de acordo com a Torá escrita e oral, fundamentada na experiência
do dia a dia.
10. Hanucá: festa das luzes, nas Escrituras conhecida como “festa da dedicação do Templo”, iniciada coma
vitória dos Macabeus.
11. Midrash: da raiz hebraica darash significa a busca amorosa de Deus através da Palavra de Deus.
12. Mashal: termo hebraico mashal, traduzido comumente por “parábola” provém da raiz hebraica que abarca
uma polissemia muito grande e pode significar: comparação, contar uma parábola, fábula, provérbio.
Exemplo: enigma, discurso profético, etc.
13. Meggilah: significa rolo.
14. Mishná: Compilação da tradição de Israel realizada nos finais do segundo século e meados do terceiro século
da era cristã.
15. Nimshal: Resposta dada ao mashal através de uma comparação ou do seu significado.
16. Parábola: palavra de origem grega, parábola significa comparação, alegoria Pessach: Pascoa judaica, a
grande festa da libertação do Egito.
17. Purim: significa ‘sorteio’. Festa que comemora a salvação dos judeus na época persa. Encontra-se narrada
na Meguilah de Ester, onde pela primeira vez se fala dos judeus como denominação do povo de Israel, fora
da terra de Israel.
18. Rosh há-shana: Cabeça do ano, Ano novo judaico.
19. Shavua, shavuot: Semana, semanas – Festa das semanas – em grego Pentecostes
20. Seder: Significa ordem. Nome da ceia pascal.
21. Shema: profissão de fé, oração recitada pelo menos duas vezes ao dia.
22. Suca, sucot: Cabana, cabanas – Festa das cabanas, nas Escrituras conhecida como festa dos tabernáculos. Na
época de Jesus era uma festa tão importante que se denominava simplesmente a Festa.
23. Tana, tanaim: singular e plural. Tana significa repetir. Nome dado aos mestres doa dois primeiros séculos
da era cristã responsáveis pela colocação por escrito da tradição oral das gerações anteriores, ou seja, dos
‘zugot’.
24. Tanu rabanan: expressão muito utilizada ‘nossos mestres ensinaram’.
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25. Talmud: Talmud – vem do verbo ‘lamad’ estudar. O Talmud é estudo e ensino da Tradição de Israel. Ele
desenvolve o que se encontra na Mishná. Existem dois Talmudim.
26. Talmud da Babilônia: Compilado na Babilônia. É o Talmud maior e mais conhecido, também chamado de
Babli.
27. Talmud Jerusalém: Como o nome diz foi compilado em Jerusalém indicado como T.J.
28. Targum: O termo targum vem da raiz hebraica que significa tradução. Targum num primeiro momento se
refere à tradução aramaica das Escrituras, feita oralmente. Meturguemem é a pessoa que faz targum, ou seja,
a tradução oral.
29. Tosefta: coleção de textos da tradição oral de Israel que ficaram ‘fora’ da Mishná.
30. Zug, zugot: par, pares. São os sábios que precederam os Tanaim. Com certeza já ouvimos falar do zug Shamai
e Hillel.
31. Yom kipur: Festa da Reconciliação ou do perdão.
32. Sábios de Israel: são os rabinos dos dois primeiros séculos, da época de Jesus.
33. Rabinos: mestres que surgiram depois da destruição do Templo, após Yavneh, seguimento dos sábios.
1.2 - O ESTUDO E A LEITURA DA TORÁ1
“Aprender por si mesmo não faz um discípulo”2.
A religiosidade da época em que nasceu cresceu e viveu Jesus de Nazaré, veicula uma nova
concepção religiosa a partir da realidade enfrentada por Israel na sucessão das dominações estrangeiras. A
investigação deste novo tipo de religiosidade nos leva a conclusões que podem ser comprovadas somente se
dermos atenção aos subgrupos e movimentos que existiam no interior do Judaísmo do Segundo Templo e a
coexistência de uma diversidade de interpretações presentes tanto na literatura bíblica e pseudoepígrafa, como na
literatura rabínica e neo-testamentária.
Há uma nova percepção e a compreensão da natureza humana se aprofunda. A complexidade da
natureza humana e da percepção religiosa se afina. A compreensão do relacionamento do ser humano com o
divino se formula de maneira nova, mas em continuidade com a tradição recebida. As questões se multiplicam
gerando uma infinidade de respostas. Nessa abordagem percebe-se que em alguns círculos farisaicos a Tradição
oral vai desenvolver o sentido humanitário que amplia as fronteiras do ensinamento que se encontra na Torá
escrita, enquanto entre os essênios a Tradição oral dará uma resposta à questão de uma forma radical e excludente
ao mesmo princípio.
1.2.1 - Tradição Oral e Escrituras
A partir do exílio da Babilônia (± 587 a.C.) a vida do povo de Israel se organiza em torno da Torá.
A Torá escrita, ponto de coesão do povo é também base da sua diversidade. O Judaísmo dos séculos que precedem
o Cristianismo se caracteriza pelo florescimento de uma grande atividade literária e cultural resultado da grande
criatividade do povo de Israel veiculada pela Tradição oral. Assim sendo, a vida judaica neste período é bastante
complexa. Grande parte das informações que conhecemos sobre os diferentes grupos ou tendências repousa nas
informações recebidas através das obras de Flávio Josefo que escreveu para um público greco-latino.
Flávio Josefo, com o objetivo de facilitar a compreensão de seu público, por vezes, não se privou de
simplificar sua descrição assimilando os saduceus aos epicureus, os fariseus aos estoicos e os essênios aos
pitagóricos. Atualmente os estudos sociológicos e as descobertas arqueológicas sugerem diferentes hipóteses
procurando uma aproximação mais adequada na tentativa de discernir as diferentes tendências que existiam.
O estudo da relação entre a Torá Escrita = Torá she-bikhtav e a Torá oral = Tora shebe-al-pe revela
a dinâmica da vida do povo de Israel que se realiza pela busca constante de viver a Aliança, de colocar em prática
a vontade de Deus para seu povo através das mitzvot. Essa dinâmica se encontra no interior do próprio texto
bíblico que atualiza, adapta, transforma e inova o texto revelado em função da nova situação histórica.
A Torá escrita e a Torá oral são dois modos de exprimir a única Palavra de Deus, revelada ao povo
de Israel no Sinai, para que ele se torne seu povo. Através delas, Deus continua a falar em todas as épocas. A vida
1
2
Tora é o nome hebraico para o Pentateuco, os cinco primeiros livros da Bíblia.
Em S. SAFRAI, The Jewish People in the First Century, v. 2, Van Gorcum &Comp. B.,1976, p. 964.
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é uma aplicação prática da Torá, única fonte dos ensinamentos divinos que abrange todas as esferas da vida. Ela
é o único meio dado por Deus para viver sua Aliança. E para viver a vontade de Deus, primeiramente é preciso
conhecer a sua vontade.
Este conhecimento se fará pelo estudo e interpretação da Torá Escrita. Há somente uma Torá, mas
as diferentes interpretações darão nascimento no período do II Templo a diferentes tendências no judaísmo. Todas
nascem do desejo de viver e perpetuar a comunidade da Aliança e cada uma delas acredita possuir a ‘única’
interpretação da Torá3. Trata-se da mesma busca amorosa de fazer a vontade de Deus através da escuta atenta da
Torá.
A Tradição oral é fruto de um longo processo entre a convivência das diferentes tendências, por vezes
flexíveis, por vezes conflituosas, e que vão se desdobrando antes de atingir uma normalização com princípios que
geraram o grande patrimônio da tradição oral a partir do período do IIº Templo4.
Grande parte da Tradição oral ficará para sempre desconhecida, pois continuou oral e se perdeu na
história. O que conhecemos desta tradição se encontra na literatura rabínica que chegou até nós como forma escrita
da Torá oral. Do ponto de vista histórico a Torá oral recobre a vida cotidiana tanto pública como privada e do
ponto de vista literário ela se expressa em vários gêneros literários.
1.2.2 - O Estudo da Torah e a relação Mestre Discípulo
O desenvolvimento da tradição oral no I século da e.C. nos permite dizer que o ponto central da
educação judaica, já nessa época, é o estudo da Torá. Segundo os Sábios5, “o estudo da Torá é um dos pilares do
mundo” e a Shekhina, a “presença de Deus” no meio do povo, depende do estudo da Torá. O estudo da Torá e
seus comentários renovam diariamente o dom da Torá no Sinai. O comentário dos Sábios investe a Torá oral de
uma autoridade específica que se iguala à Torá escrita e por vezes deve ser preferida. O acontecimento da
Revelação no Sinai garante não somente a Torá escrita e a Torá oral, mas também o dom da autoridade de
interpretá-la.
O estudo da Torá não é somente um meio de aprender a se conduzir e a maior parte da literatura
deste período manifesta também o seu objetivo religioso6. Ele é um dever sagrado que aproxima o discípulo de
Deus. O cumprimento desse dever sagrado se torna uma experiência religiosa, que nesse período é incentivado
através da: liturgia pública nas sinagogas; leitura pública da Torá e seus comentários 7 ; durante as festas de
peregrinação no Templo; pelo estudo individual e em grupos, tidos como momentos privilegiados de estudo da
Torá.
A partir de Esdras e Neemias as crianças, objetos de uma atenção particular, vão receber todas as
etapas de sua educação em torno da Torá. A regra geral era que toda criança deveria ir para a escola, aprender os
livros das Escrituras e adquirir o conhecimento básico que lhe permitisse participar da vida judaica. Em relação
ao estudo não havia diferença entre rico (filho do haver) e o pobre (filho do am ha-haretz). Sem dúvida havia
crianças que não estudavam, pois vemos o exemplo de R. Akiba, um dos maiores mestres do início do segundo
século e que foi martirizado em 135, que segundo a tradição, começou a estudar com 40 anos.
No entanto, o estudo da Torá não era reservado aos especialistas e sacerdotes, ao contrário era, e
continua sendo, uma questão de toda a comunidade. Todo aquele que recebia algum conhecimento da Torá tinha
obrigação de ensinar os outros. Se não o fizesse era como se houvesse “desprezado a Palavra do Senhor”8. Embora
3
A Torá oral não tem o caráter de um grupo ideológico fechado, antes, é corpo de ensinamentos criado e apoiado por uma adesão
diversificada entre as diferentes camadas da sociedade. Justamente por ser oral é que tem como consequências variedade na intensidade
da adesão, fato que permite diversidade e flexibilidade dentro de um quadro de conceitos e atitudes geralmente aceitos cf. M. Fishbane,
“Torá et Tradition” in: A. Knight, Tradition et Théologie. Paris: Cerf, 1977, p. 285-311.
4 S. Safrai, The Literature of the Sages. Philadélfia: Fortpress, 1987, p.36. 5 cf. id. p. 37.
5
cf.E.E. Urbach, Les sages d´Israel.Paris: Cerf, 1996, p.299.
cf. S. Safrai, The Jewish People...,1976, p.945.
7 O hábito da leitura da Torá na sinagoga aos sábados, segundas e quintas feiras e no período das festas praticada hoje nas sinagogas
remonta a este período. A leitura na sinagoga era feita por qualquer membro da comunidade que fosse convidado a fazê-lo. Aos sábados,
pelo menos sete membros da comunidade liam a Torá, um dos profetas e outro traduzia as leituras cf. S. Safrai, The Jewish People...,1976,
p. 949. É o que nos relata o evangelho de Lc 4,16ss. A partir do século X de nossa era, a leitura continua da Torá é feita em um ano,
dividida em 54 perícopes sabáticas chamadas Parasha.
8 cf. Tb Sanhedrin 99a, Nm 15,31.
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se possam perceber as diferentes maneiras utilizadas pelos fariseus e essênios para transmitir a tradição, o estudo
da Torá e a relação mestre-discípulo ocupam lugar central na prática dos dois grupos9.
Segundo a Tradição oral, é dever e responsabilidade do pai de iniciar seu filho no estudo da Torá. O
Talmude reteve duas tradições diferentes sobre o estabelecimento de escolas que levam a confirmar que durante
o I século o conhecimento fundamental da cultura judaica era difundido mesmo em pequenos povoados10.
Em 135, após a revolta de Bar Kokhba, quando Roma baixou o decreto proibindo o ensino e o estudo
da Torá e exigindo apostasia, os sábios se encontraram e proclamaram: “Todo aquele que estudou venha e ensine e
todo aquele que não estudou, venha e aprenda”11.
O estudo era obrigatório para os meninos e não para as meninas. Entretanto o lugar que ocupa a
mulher na vida da família, a obrigação de recitar benção e ação de graça nas refeições e a responsabilidade da
educação das crianças levam a pensar que também elas recebiam alguma educação. Elas participavam da oração
e das homilias educativas da sinagoga. As tradições do período tanaítico e amoraítico conservam o nome de
algumas mulheres ‘mestras’ o que na realidade é uma exceção12.
A Torá revelada no Sinai só se torna conhecida porque há pessoas que a recebem e pessoas que a
transmitem. Portanto a Torá oral engloba a Torá escrita através da recepção, transmissão e interpretação que a
torna sempre nova, trazendo em seu bojo a oralidade da transmissão que se concretiza na relação mestrediscípulo13. Esta relação de recepção e transmissão é que permite a atualização da Torá escrita em cada geração,
numa continuidade integrada ao espírito inovador. A Torá oral é investida da autoridade interpretativa do povo
através dos sábios que falam em seu nome 14. Esta mediação a Palavra de Deus é atualizada em função das
necessidades da vida. No entanto, o poder da interpretação é grande, por isso necessita um controle. Este controle
é confiado à relação mestre-discípulo, que se apoia por um lado sobre a origem mosaica da Torá e por outro, a
cada momento, pela comunidade de Israel, ela mesma sustentada pelo Espírito Santo15.
No final do I século antes de Jesus Cristo os sábios já possuem uma ‘teologia’ da relação mestrediscípulo apoiada diacronicamente sobre Moisés, o primeiro mestre e, sincronicamente, sobre o povo esclarecido
pelo Espírito Santo recebido de Moisés, o primeiro profeta. Um discípulo pode ter vários mestres sucessivamente.
O que se exige do discípulo é fidelidade ao antigo mestre mesmo se ele cai em heresia. Cada elo da corrente da
tradição é importante e ao mesmo tempo relativo aos elos que a precedem ou sucedem ou se desenvolvem em
paralelo. Os diversos elos se completam ou podem se contradizer. A contradição é tolerada e não deve ser
eliminada. Ela é considerada expressão legitima da mesma Torá recebida e transmitida por canais diferentes16-17.
Para compreender como se exerce a função de continuidade na relação mestre/discípulo, é preciso
levar em conta a dupla exigência à qual ela se submete. Por um lado, ela exige fidelidade ao mestre pelo qual se
recebe a transmissão de Moisés. Por outro lado, ela pede também fidelidade à comunidade de Israel. Através dos
sábios que representam a comunidade, a legitimidade das diversas correntes de tradição que existem ao mesmo
9
cf. S. Safrai, The Jewish People...,1976, p. 946.
Sobre a questão da educação neste período seguimos a opinião de Safrai que se encontra, junto com outros autores, classificado por
Meier como produtores de “um quadro ‘homogeneizado’ da educação por volta da passagem da era”. Embora citando vários autores e
dando seu parecer crítico sobre a questão da educação e instrução na época de Jesus, sem dúvida Safrai é o autor mais citado por Meier.
cf. J. P. Meier Um judeu marginal. Rio de Janeiro: Imago 1993, pp. 269 – 276.
11 cf. Tb Sanhedrin 17b.
12 O caso mais conhecido é o de Beruria que estudou Torá antes da revolta de Bar Kockba. Ela era filha de R. Hananiah ben Teradyon de
Siknin na Galiléia e mulher de R. Meir. A tradição conserva halakhot feita por ela e que foram aceitas pelos sábios. cf. M. Kellim Baba
Kamma 4,17; M.Kelim Baba Metzia 1,6; Tb. Pesahim 62b.
13 Talvez por ser a relação mestre-discípulo eixo central na transmissão oral, as fontes escritas sobre a questão são escassas. O trabalho
mais significativo do qual dependemos basicamente para os possíveis desdobramentos apresentados sobre a questão é de autoria de P.
Lenhardt, “Voix de la continuité juive” in: R.S.R, 1978, T 66, n°4, pp. 489 – 516. Falando sobre os escritos rabínicos e qumrânicos, Nodet
comenta a diferença destes dois conjuntos de literatura que em muitos aspectos chamam a atenção, pois no caso de Qumrã trata-se de um
grupo reformador cujo acesso é estritamente controlado enquanto que na literatura rabínica a insistência é feita sobre a tradição oral e a
relação mestre e discípulo. Constata-se com facilidade que para um leitor desprevenido, mesmo que tenha boa vontade, a literatura é de
difícil compreensão, pois supõe o ensinamento oral. cf. E. Nodet e J. Taylor, Essai sur les origines du Christianisme.Paris: Cerf,1998.
14 Os sábios provinham de diferentes meios da comunidade de Israel. Havia entre eles sábios originários da nobreza sacerdotal, filhos de
famílias ilustres, artesãos, agricultores, diaristas, filhos de prosélitos, etc. cf. E.E. Urbach, Les Sages...1996, p. 581 - 620.
15 P. Lenhardt, “Voies de la continuité juive” in: R.S.R. 1978, T.66, n°4, p. 494. A questão da cessação da profecia é bastante complexa.
Há aspectos do modo de falar e agir dos profetas que se assemelham ao modo de falar e agir dos sábios. Cf. também E.E. Urbach, Les
Sages...1996 especialmente p. 581-584.
16 cf. Pierre LENHARDT. “Le renouvellement (hiddush) de l’alliance dans le judaïsme rabbinique” in: Cahiers Ratisbonne, nº 3, 1997, p.
126-176
17 Em Yavné a bat qol (filha da voz) assim falou: umas e outras são palavras de Deus (Hillel e Shamai), mas a halakha é segundo as
palavras dos discípulos de Hillel. (cf. TJ Berakhot 1,7,3b).
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tempo é reconhecida. Através dos sábios a comunidade convida ao discernimento, à crítica, à iniciativa, à
inovação.
O novo (hiddush) se revela na relação mestre-discípulo quando o discípulo descobre a partir das
palavras do seu mestre um novo aspecto da Torá que se torna patrimônio da tradição a partir de sua geração 19. É
preciso receber a Torá daqueles que a dão para poder em seguida transmiti-la. A fidelidade ao mestre é um dever
religioso que revela a fidelidade de Deus. Isto exige o compromisso de cada pessoa e da comunidade no esforço
que representa o estudo e ensino da Torá, e antes de tudo da Torá oral.
1.2.3 - Considerações
O entrelaçamento e convivência entre judeus e judeu-cristãos continuou por mais de quatro ou cinco
séculos antes da ruptura final. O que se pode comprovar historicamente é que a partir do primeiro século, em
diferentes lugares, de diferentes maneiras, se estabelece um clima de tensão e se inicia um processo de
distanciamento entre os judeus que acreditaram em Jesus como Messias e Filho de Deus e os judeus que não o
reconheceram como Messias. Ambos continuaram fiéis à Torá de Moisés.
Este processo de distanciamento nos dois primeiros séculos se desenvolve num clima de busca de
identidade, de auto definição. Para o Judaísmo trata-se de redefinir e reestruturar sua identidade diante da
catástrofe de 70 e para o Cristianismo nascente, balbuciante de encontrar sua identidade. Assim, de forma
diferente, os dois grupos religiosos buscam sua identidade. Esta busca se fará parcialmente um contra o outro. É
preciso abordar o final do primeiro século como inauguração da reestruturação da identidade judaica e construção
da identidade cristã.
Marguerat 18 chama atenção para a necessidade de sobrevivência que enfrentam os dois grupos
religiosos. Por um lado, os discípulos de Jesus, após a execução do mestre, foram obrigados a lutar pela
sobrevivência de sua fé. Eles encontraram incompreensão das populações do império romano e hostilidade de
seus correligionários judeus. O Judaísmo, por seu lado, após a tomada de Jerusalém e o incêndio do Templo, foi
obrigado a lutar para sobreviver a uma catástrofe que o privava da proximidade de Deus significada pelo ritual
sacrificial do Templo e pela proibição de falar hebraico, praticar a circuncisão, estudar a Torá e entrar em
Jerusalém.
Hoje podemos perceber que esse processo se fez buscando justificativas que fundamentassem suas
posições e por isso mesmo num clima de exclusão mútua. Havia na época certa flexibilidade sobre diferentes
posições, mas ainda não se tinha consciência de que é preciso ir além da flexibilidade para se respeitar o outro
como ele se define e aceitá-lo em sua diferença, ou seja, assumir uma atitude de reverência, uma atitude dialógica.
Na Igreja Católica Romana, o Concílio Vaticano II inaugurou uma nova atitude face ao povo judeu
e ao judaísmo com a Declaração conciliar Nostra Aetate.
“Perscrutando o Mistério da Igreja, o concílio recorda o vínculo que une espiritualmente o povo do Novo
Testamento a descendência de Abraão...Sendo pois tão grande o patrimônio espiritual comum aos Cristãos e
aos Judeus, o concílio deseja estimular e recomendar, a ambas as partes, o conhecimento e a estima
mútua.”(NA nº4).
Em seu discurso a Pontifícia Comissão Bíblica em 11 de abril de 1997, João Paulo II se expressa
dizendo:
“Na realidade não podemos expressar plenamente o mistério de Cristo sem recorrer ao Antigo Testamento. A
identidade humana de Jesus se define a partir de sua relação com o povo de Israel, com a dinastia de Davi e a
descendência de Abraão. Não se trata somente de uma aparência física. Frequentando a sinagoga onde eram
lidos os textos do Antigo Testamento, Jesus tomava também humanamente consciência destes textos. Ele
nutria seu espírito e seu coração destes textos. Em seguida, servindo-se deles em sua oração, neles inspirava
seu comportamento. Ele se tornou assim um autêntico filho de Israel, profundamente enraizado na longa
história de seu povo... Privar o Cristo de sua relação ao Antigo Testamento é desligá-lo de suas raízes e esvaziar
seu mistério de todo significado. Com efeito, para ser significativa, a encarnação tinha necessidade de se
enraizar em séculos de preparação. Se não fosse assim, Cristo teria sido como um meteoro caído
acidentalmente sobre a terra e privado de qualquer ligação com a história da humanidade... Sois chamados a
ajudar os cristãos a bem compreender sua identidade. Uma identidade que se define antes de tudo pela fé em
Cristo, Filho de Deus. Mas esta fé é inseparável de sua relação com o Antigo Testamento a partir do momento
18
cf. D. Marguerat, Le déchirement: juifs et chrétiens au premier siècle. Bruxelas: Labor et Fides,1996, p. 9-10.
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em que esta fé é uma fé em Cristo “morto por nossos pecados segundo as Escrituras” e “ressuscitado ...segundo
as Escrituras” (1Cor 15, 3-4)”19.
A partir de Vaticano II e, sobretudo no pontificado de João Paulo II, a documentação que fundamenta
esta nova atitude é bastante significativa. As orientações dadas podem ser resumidas em quatro aspectos:
1) As raízes do Cristianismo se encontram no Judaísmo. A árvore que não cuida de suas raízes acaba
morrendo. Aprofundar a relação entre as Escrituras judaicas e as Escrituras cristãs, a continuidade da
Revelação e o Judaísmo nos primeiros séculos são a condição necessária para que o Cristianismo aprofunde
sua própria identidade.
2) A importância do Diálogo: “Se você é diferente você me enriquece”20. O encontro face a face com o outro
diferente. Descobrir o outro como ele se define, permite ao interlocutor a descoberta de si mesmo e ajuda a
aprofundar sua própria identidade.
3) A liturgia é um ponto de encontro das raízes que unem judeus e cristãos. A própria estrutura da
proclamação da Palavra encontra sua origem no Judaísmo.
4) A história do povo judeu ano não terminou no ano 70 com a destruição do Templo. Sua permanência é
um fato histórico e um sinal a ser interpretado no plano de Deus. A presença histórica do povo judeu nos
convoca e nos questiona. Sua presença nos desafia. Seu modo de viver a tradição oral e escrita é para nós
cristãos e cristãs um grande apelo. Ela nos sensibiliza e nos convida a lutar contra toda forma de racismo e
discriminação que no mundo de hoje exclui a grande maioria da população. Somos chamados (as) a ser
parceiros (as) na história apressando a chegada do Reinado de Deus, na justiça paz e amor.
P C. B., Discurso de abertura, 11 de abril de 1997 cf.La Documentation Catholique, 4 mai. 1997, n°2159, pp. 406 – 407. A tradução
do texto é da responsabilidade da autora do artigo.
20 D. Helder Câmara.
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Este quadro pode nos ajudar a perceber a grandeza da Tradição oral em relação à Escritura.
SINAI
TRADIÇAO
ESCRITA
TRADIÇAO
ESCRITA
(Torá-she-bicktav)
(Torá-she-be –al- pe)
T = TORÁ
N = NEVIIM
MESTRES DA GRANDE
ASSEMBLÉIA
K = KETUVIM
MIDRASH
MISHNA
Midrash
Midrash
haggadá
halacka
TOSEFTA
BARAITOT
( Tanaíta )
s
GUEMARA – (Amoraim)
TALMUDE
Saboraim
Balilônia/Jerusalém
Babilônia / Jerusalém
Tradição Judaica no Novo Testamento
Cultura Judaica, História e Teologia
11
UNIDADE II
TARGUM: UMA LEITURA
POPULAR DAS ESCRITURAS
2.1 - TARGUM E ESCRITURAS
O termo targum vem da raiz ‫ תרגם‬que significa tradução. Targum num primeiro momento se refere
à tradução aramaica das Escrituras, feita oralmente, segundo a tradição judaica, a partir da volta do exílio, por
volta de 537/39 a.C. O Targum nasceu da necessidade concreta de levar ao conhecimento do povo a Torá numa
linguagem que fosse compreensível, pois a maioria dos judeus não falava mais o hebraico que havia sido
substituído pela língua do dominador, o aramaico.
Não sabemos exatamente qual foi o momento em que o aramaico se tornou a língua popular de todo
o império persa, incluindo a Terra de Israel. Por isso também é difícil dar uma data precisa para a generalização
desta prática e situar a partir de quando o targum se tornou a primeira etapa de uma educação que tinha como
fundamento único a Escritura, ficando mais unido à liturgia do que à beit-midrash - casa de estudo. Ele testemunha
a cultura popular da massa do povo judeu que forneceu os primeiros discípulos de Jesus.
Algumas vezes a palavra Targum designa de fato uma tradução como é o caso de Onqelos. Targum
designa também as obras que trazem paráfrases completas do Pentateuco como é o caso do Pseudo Yonathan
atribuído a Yonatham ben Uziel.
Em 1958, Diez-Macho, fazendo pesquisas sobre o Pseudo Yonatahn, encontrou na Biblioteca do
Vaticano um outro Targum que havia sido classificado como Pseudo Yonathan, mas na realidade tratava-se de
um outro Targum. Ele recebeu o nome de Neofiti, data do século sexto e nos dá uma ideia completa do modo de
fazer Targum no período do Segundo Templo, ou seja, o modo como as Escrituras eram apresentadas na sinagoga.
Pela Megilla (Megilla significa rolo. Quando se usa esse termo sem outra referência significa o rolo
de Ester, lido na festa de Purim. A Megilla se encontra na segunda ordem do Talmud - Mo’ed, é o décimo tratado)
podemos saber que a leitura na sinagoga seguia certos princípios. Em geral lia-se um versículo e em seguida
procedia-se a tradução. Podia também se ler três versículos.
Atualmente temos acesso a estes textos graças ao trabalho do padre espiritano Roger Le Déaut que
traduziu para o francês o Targum Pseudo Yonathan e o Neofiti. É imprescindível ler o prefácio e a apresentação
desta obra para entender o que significou o Targum no período do II Templo. Gerza Vermés diz que o Targum
foi a forma de tornar o texto inteligível e ao mesmo tempo teologicamente aceitável. E, Le Déaut vai dizer que o
Targum incorpora as notas que existem, no interior do texto.
Hoje quando falamos de Targum parece que é algo de intelectuais ou de academias. Na realidade
estamos diante de uma catequese popular, para as pessoas simples, pastores, ferreiros e outros tipos de tarefas e
que vem à sinagoga para escutar as Escrituras. O texto por si só fala a estas pessoas e por isso mesmo levanta
questões a partir desta escuta. O meturgeman devia encontrar as respostas e explicações para as questões
levantadas pelo texto, a partir da realidade da vida das pessoas que escutam as Escrituras.
Um exemplo: Gn 9, 20-21 fala que Noé plantou a vinha, fez vinho e ficou embriagado. Quando
relemos o texto do dilúvio vamos perceber que em nenhum lugar do texto diz que Deus mandou Noé guardar uma
muda de vinha na arca. Como explicar de onde veio a vinha que Noé plantou? O Targum dará uma explicação no
momento de fazer a tradução dizendo que uma raiz de vinha foi levada pelas águas do dilúvio e quando Noé a
plantou ela cresceu imediatamente dando frutos. Assim é possível explicar a passagem rápida dos versículos 20 e
21 com esta paráfrase.
Outra característica é a necessidade de se fazer entender através de imagens o que diz as Escrituras
como no caso de Dt 30,12-13, o mandamento que não está fora do alcance. Os exemplos serão tirados da vida da
própria vida do povo. A Escritura é ao mesmo tempo história, enciclopédia, geografia, etc. Todos os exemplos
para clarificar uma situação serão retirados das Escrituras. Assim ao falar acima dos céus, acrescenta-se para que
não digas é preciso que Moisés nos explique (lembrar que no Sinai Moisés se aproximou do céu) e também nas
profundezas do grande mar (grande mar é o Mediterrâneo) para esperar por Jonas que foi até as profundezas do
mar para nos explicar. E assim por diante.
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12
Existe uma amplificação do maravilhoso. É preciso ter a arte de manter o auditório ligado. Sempre
que existe algo de maravilhoso a chance de comentar e acrescentar se torna mais intensa. O maravilhoso está
muito presente, principalmente na história dos patriarcas.
Mesmo se hoje sabemos que havia versões aramaicas das Escrituras que circulavam antes da era
cristã, na sinagoga o targum era recitado de memória e havia uma maneira apropriada de fazê-lo. Para a leitura do
texto hebraico da Torá a tradução era feita após cada versículo e para a leitura hebraica dos profetas após cada
três versículos. A leitura do targum era proibida nas sinagogas o que não impedia a preparação feita a partir de
textos escritos em vista do ofício sinagogal. Os textos escritos de targum que chegaram até nos atestam o caráter
de transmissão oral durante séculos no uso vivo das sinagogas.
2.2 – TARGUM E MIDRASH
Targum e Midrash21 são dois tipos de literatura vizinhas em seu método e em seus resultados. A
atividade midráshica da busca do sentido profundo do texto está presente em todas as etapas da formação do
targum. O aspecto essencial que o distingue do Midrash é que ele se apresenta como uma tradução que segue de
perto o texto bíblico, não é um comentário. Sua paráfrase subordinada ao texto bíblico lhe impõe limites pelo
texto original dentro do quadro litúrgico sinagogal. Entretanto as relações entre targum e Midrash são contínuos.
Muitas tradições midráxicas remontam ao targum oral ou a uma mesma fonte de tradições interpretativas.
O targum tem a preocupação de tornar o texto compreensível ao povo e para isso ele acrescenta notas
ou modifica a sintaxe, recorrendo a um estilo direto na segunda pessoa ou suprindo um sujeito, um complemento
ou mesmo todo um contexto que falta. Ele interpreta as palavras obscuras, antigas ou equívocas, introduz glosas
que dão números e datas precisas e nomes para as pessoas anônimas. O targum não se detém diante de
anacronismo, aproxima fatos e explica o presente tanto pelo passado como pelo futuro pois para aquele que faz
targum (‫ מתרגמם‬- o metugermem) não existe “nem antes nem depois”22 nas Escrituras. Assim o targum gosta das
alusões históricas, da aproximação de paralelos e de traços moralizantes23.
Targum e Midrash não se opõem enquanto método de interpretação antiga judaica. O targum procura
dar o sentido ‫ פשט‬- peshat - simples da Escritura e o Midrash o resultado de suas técnicas de interpretação. Ambos
devem dar um sentido aceito tanto na sinagoga como na casa de estudo. O targum exige que o Midrash seja
subordinado e limitado à “tradução”.
2.2.1 - Características gerais do Targum
1) Targum e liturgia sinagogal
O targum está ligado à liturgia sinagogal com a preocupação de adaptação diante de um auditório
concreto. O texto bíblico deve se tornar compreensível e teologicamente aceitável. É o lugar privilegiado para se
passar o ensinamento da Tora em sua dupla forma halakhica e aggádica 24. A pregação e o targum não eram
nitidamente separados e havia uma interação entre a leitura da Torá e a leitura dos Profetas.
2) Uma literatura de caráter popular
Antes de mais nada o targum era destinado às pessoas simples sem por isso excluir outras pessoas.
O caráter popular é evidente e reconhecido pelo gosto popular ao exagero, narrativas legendárias e pitorescas, uso
de parábolas, valor numérico dos números e também de dar nome aos personagens anônimos da Escritura. Assim
a interpretação tradicional popular será enriquecida com a criação de ‘tipos’ no sentido literário do termo. O
exemplo de ‘bons’ e ‘maus’ como Caim e Abel, Datan e Coré, etc. O targum acolhe com mais facilidade a aggada
que vem ao encontro do gosto popular e mais adaptado a uma assembleia litúrgica popular.
21
22
23
24
Os detalhes sobre midraxe serão dados mais adiante.
Sifré de Nm. 9,1
DIAZ MACHO, A. 1973, p.20
Mais adiante aprofundaremos estas duas formas da tradição oral.
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3) Uma linguagem que deve ser compreendida imediatamente
Nos targumim escritos que chegaram até nós, é difícil discernir o que provem de uma tradição oral.
Somente levando em conta a tradição oral é possível apreciar a propensão de glosar, explicitar e clarificar
enunciando o sentido do texto original. O targum utilizará uma linguagem mais simples do que a linguagem
hebraica procurando uma linguagem concreta. Torna claro as comparações, as metáforas ou parábolas.25
4) O Targum traduz um livro sagrado
A Escritura considerada como Palavra inspirada por Deus não pode conter nenhum erro, nem
contradição e tudo deve ter um significado. Esta convicção leva a tentar solução para as dificuldades textuais por
menores que sejam; um sentido profundo de palavras e expressões que em si não tem nenhuma significado;
interpretação das passagens mais obscuras do hebraico estabelecendo rapidamente uma tradição interpretativa que
se nota pelo acordo das versões; harmoniazação dos textos que parecem se contradizer; resposta imediata às
perguntar que um leitor comum da Bíblia pode se colocar; resposta às dificuldades de todo tipo que pode
apresentar o enunciado bíblico.
5) A Escritura considerada como uma unidade
A Escritura é compreendida antes de tudo à luz da própria Escritura. O targum não é uma criação
inesperada. Ele dá o resultado de uma interpretação anterior, atestada pela aproximação de versículos paralelos
muitas vezes feita a partir da analogia. A Escritura como um todo é colocada para contribuir na ilustração e
clarificação de um texto. O sentido da unidade da Escritura apresenta visões sintéticas e reagrupamento de textos
sem preocupações de ordem cronológica.
6) O Targum apresenta uma Escritura atualizada
A Escritura deve não somente ter um sentido. Ela deve ter um sentido para o fiel de hoje. A Revelação
tendo sido dada uma vez por todas e nela deve-se encontrar tudo o que é preciso para se conduzir na vida. Esse
processo de adaptação já se manifesta dentro da própria Escritura. Há uma dialética que permite à Escritura de
continuar viva pelo contato com a própria vida do povo: Pode-se descrever como a projeção espontânea da
problemática atual sobre os fatos do passado, e do sentido profundo do passado sobre os problemas presentes. Há
vários níveis de atualização. Ela pode ser histórica, geográfica, cultural e religiosa. Ela levará em conta as
concepções sobre Deus, as ideias correntes sobre a questão da vida futura, dos anjos, expiação, messianismo, etc.
Há um sentido aguçado para distinguir o sagrado do profano com uma atitude de profundo respeito à Deus. Ao
mesmo tempo há um desejo profundo de falar somente bem dos ancestrais, o que será uma preocupação
fundamental da aggadá.26
7) A importância da transmissão do Targum
Um dado de suma importância na transmissão do targum é que o intérprete transmitia a interpretação
tradicional e não suas opiniões ou pontos de vista pessoais. Muitos dos textos foram transmitidos fielmente durante
séculos e como transmitiam sobretudo a aggadá foram menos censurados e controlados do que outros tipos de
textos. Como são textos de tradição oral a questão de datação continua sempre problemática. Na opinião de
Heinemann27, o estágio das pesquisas que se atingiu em relação ao targum mostra sem sombra de dúvida que o
material que ele contém ocupa um lugar considerável e importante na corrente da transmissão oral. Uma aggadá
que existe somente na tradição targumica, com efeito é de origem muito antiga, tão antiga que não se pode ignorála se quisermos realmente chegar à origem e ao desenvolvimento das origens da aggadá.
Um exemplo “terra onde corre leite e mel” de Nm 14, 8 se torna “um país que produz frutos excelentes, puros como leite e doces como
mel” no Targum Neofiti I.
26 LE DÉAUT chama atenção para o fato de que estas características se encontram nos escritos neotestamentários, na utilização da
Escritura, na transmissão das logia de Jesus. Voltaremos ao assunto em outro momento de nosso trabalho.
27 J. Heinemann, Aggadah and its developement 1974, p.62.
25
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UNIDADE III
O MIDRASH
3.1 – O MIDRASH
A palavra Midrash vem da raiz hebraica darash (‫ )דרא‬que significa buscar, investigar, escrutar.
Urbach comenta a palavra midrash como termo equivalente à palavra grega história significa literalmente
investigação. O termo midrash derivado desta raiz é utilizado duas vezes no livro de Crônicas com o significado
de relato da investigação histórica.
Na literatura dos sábios o verbo darash assumirá o significado de explicar ou interpretar a Torá em
geral ou um texto em particular. É a exegese da busca de sentido do texto que caminha ao lado da hermenêutica
com técnicas e procedimentos determinados. O uso do termo midrash como busca do sentido bíblico remonta a
Neemias. Como vimos, é possível constatar que o primeiro desenvolvimento do midrash se encontra na própria
Escritura.
O termo midrash é abrangente e extensivo, não pode ser limitado a um gênero literário. Ele designa
ao mesmo tempo um tipo de literatura e uma atividade. Podemos então falar do midrash de duas maneiras que
estão relacionadas, a primeira, como uma atividade e processo de interpretação e a segunda como corpo literário
que nasceu da compilação dos comentários e diversas interpretações dos sábios de Israel.
A partir de seu conteúdo, podemos agrupar a literatura midráshica de três modos:
1) Comentários de um grupo de livros, como acontece com o Midrash Rabba que compila o comentário do
Pentateuco;
2) Comentário sobre um livro bíblico, como por exemplo Midrash Threni sobre Lamentações;
3) Agrupamento de comentários por temas ou ocasiões especiais, Pesiqta Rabbati que faz a compilação de
homilias para as festas e certos shabbats.
A partir da estrutura bíblica, os midrashim se apresentam sob duas formas: midrash halakha e
midrash aggadá. Ainda no que se refere à forma, a apresentação é diferente durante a época dos Tannaim e dos
Amoraim.
Os midrashim da época dos Tannaim se apresentam como comentários cursivos que seguem o texto
bíblico e se ocupam da exegese dos livros bíblicos do Êxodo ao Deuteronômio. Da escola de R. Ismael chegaram
até nós a Meckilta de Rabi Ishmael sobre o Êxodo e Sifré sobre Números. Da escola de R. Akiba, Meckilta de R.
Simeon b. Yohai conhecido também como Meckilta de Rashbi sobre o Êxodo, Sifra ou Torat Cohanim sobre o
Levítico, Sifra Zuta sobre Números e Sifré Devarim sobre Deuteronômio.
Os midrashim da época dos Amoraim se apresentam sob duas formas:
1) Os midrashim exegéticos que seguindo passo a passo o texto bíblico, reúnem sobre um mesmo versículo e
as vezes sobre uma mesma palavra, todos os comentários de diversas épocas, tanto da sinagoga como da beit
midrash. O exemplo típico desta forma midráshica é o Bereshit Rabba, comentário sobre o livro do gênesis;
2) Os midrashim homiléticos, reunindo homilias elaboradas a partir de seções da Torá ou leituras litúrgicas das
festas e shabbats. A Pesiqta de Rav Kahana é exemplo desta forma de midrash.
O midrash significa investigação, buscar todas as possibilidades possíveis de um texto. O midrash
segue passo a passo o texto bíblico.
Na literatura de Israel, os sábios vão usar o verbo darash para interpretar a Torah e usar as regras
midda (middot)
O midrash só pode ser feito a partir de uma citação bíblica, pois é um hagadáh. Ele sempre tem um
pé na escritura. Já o Halahah que é norma de conduta, nem sempre tem respaldo bíblico.
3.1.1 - Objetivos do Midrash
Sendo que o midrash é busca do sentido das Escrituras seu primeiro principal objetivo é libertar o
seu sentido profundo e a sua aplicação prática. É o processo da própria vida judaica que escuta, perscruta, estuda
e interpreta a Palavra de Deus. A autoridade da interpretação repousa na manifestação da responsabilidade da
pessoa e da comunidade diante da revelação de Deus dada uma vez por todas. Ela é única e contém todas as
respostas necessárias se forem procuradas. Por isso o midrash procura responder às questões e dificuldades que
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surgem na leitura dos textos sagrados a partir do próprio texto. Nada no texto se encontra por acaso. Tudo tem
significado. Deus não diria duas vezes as mesmas coisas se não existisse um porquê. Se há repetição de palavras
é porque existe um sentido. Um erro de ortografia será interpretado nesse sentido. Esta é a visão de interpretação
de R. Akiba que será adotada por seus discípulos e sucessores.
A Escritura sendo divina, nenhum comentário pode esgotá-la. A visão unitária da Escritura permitirá
encontrar resposta às questões das Escrituras através das próprias Escrituras, como expressam as palavras de Ben
Bag Bag: “Vira e revira a Torá em todos os sentidos pois nela encontrarás tudo. Somente ela te dará a verdadeira
sabedoria. Envelheças nesse estudo e jamais o abandone. Não encontrarás nada melhor”.
Um segundo objetivo é preencher as lacunas dos textos dando detalhes que o texto bíblico não relata.
Do mesmo modo o midrash buscará conciliar passagens ou afirmações contraditórias, ou eliminar passagens que
ferem a sensibilidade moral e religiosa da época em que se faz a interpretação.
O judeu não comia porco para ser diferente dos outros povos da região, questão da diferenciação,
higiênica. Frente aos persas, aos gregos, o judeu fazia uma diferenciação das outras culturas.
A própria vida do Rabino Akiva é um midrash. Ele era pobre, não podia estudar a Torah. Ajudada
por uma namorada. Ele tinha 40 anos, estudou 40 anos e ensinou 40 anos. Viveu 120 anos, o mesmo tempo que
Moisés viveu.
Akiva terá muitos sucessores que interpretaram a Torah a partir de seus ensinamentos. Se há um iud
(‫)י‬, ele deve ser interpretado. Sara perdeu um iud que foi para Josué quando se tornou chefe de Israel.
3.1.2 - Princípios do Midrash
Um dos princípios da interpretação midráshica é a unidade da Escritura. Na época do midrash se
considera a Escritura como um livro único mesmo se existe títulos ou rolos diferentes. Mesmo se há autores
secundários como Moisés para a Torá, Davi para os salmos e Salomão para a Sabedoria, o verdadeiro autor é
Deus. O contexto é total, assim o intérprete pode se permitir de aproximar um versículo do outro sem se preocupar
com a distância do tempo e dos acontecimentos. O modo utilizado para demonstrar esta unidade da Escritura é
feita pela hariza - colar. Agrupando citações da Torá, Neviim e Ketuvim, a hariza manifesta ao mesmo tempo a
unidade das Escrituras e sua coerência, refletindo o próprio Deus que é Um.
O termo “cumprir as Escrituras” é muito utilizado pelos escritos neotestamentários, e é empregado
em diferentes contextos. A hariza, que encontramos de modo sucinto em Lc 24,27 e 24,44 é um modo de inovar
e ao inovar ela cumpre as Escrituras. Na literatura rabínica o termo “cumprir será utilizado em três níveis:
1) Num primeiro nível “cumprir a Escritura” significa descobrir através do midrash a ação concreta que deve
ser realizada de forma responsável e comprometida.
2) O segundo nível de “cumprir a Escritura” é agir de acordo com o ensinamento dos sábios que emana do
midrash, e por sua vez estudar e comentar a Escritura.
3) O terceiro nível de “cumprir” engloba os dois primeiros midrash e ação que aponta para a realização das
promessas que se encontram na Torá e nos Neviim. A vinda do Reino de Deus é a realização de todas as
coisas e a base desta realização é a Torá estudada e praticada por Israel.
É também a partir da visão da unidade das Escrituras e da multiplicidade de seus sentidos, se torna
relevante o uso da expressão “abrir as Escrituras”. O midrash tem a finalidade de “abrir” o sentido concreto
que precisa ser compreendido em cada geração. Assim o termo “abrir” é um termo técnico da exegese midráshica
e possui um tríplice significado:
1) Abertura de um discurso homilético que predispõe o ouvinte à escuta. Muitas homilias começam com a
expressão “R. Tal - ‫ פתה‬- patah) abriu”.
2) Abertura do sentido da Escritura, sentido de um texto. A formula utilizada no primeiro significado introduz
a um versículo sobre o qual ele fará sua pregação relacionado com outros versículos da Escritura que o
esclarecem;
3) O terceiro significado ligado ‫ א‬abertura da liturgia da Palavra. A abertura uma breve homilia que abre na
visão do pregador, o sentido principal ou preferencial da Parasha - texto de leitura da Torah, que será lida na
comunidade. Após a leitura da Parasha será feita a leitura da Haftara, que significa despedida, e a leitura de
uma passagem dos Profetas. A abertura termina com o primeiro versículo que começará a leitura da Parasha.
Entre o início e o fim se encontra o ensinamento para o público e o momento em que o pregador pronuncia
sua homilia.
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Outro princípio é que a Escritura se explica pela Escritura. Da unidade intrínseca da Escritura surge
a possibilidade de aproximar textos sem se preocupar com cronologia ou contexto histórico. Palavras, lugares,
personagens e situações iguais ou semelhantes se atraem, se explicam e dá o nascimento a uma nova possibilidade
de significado.
E ainda a pluralidade de sentidos que encerram as Escrituras, outro de seus princípios. Como vimos
anteriormente as palavras de B. Bag Bag expressam a realidade e a visão que se tem das Escrituras como fonte
inesgotável de sentidos para todas as situações. Os acontecimentos passados e futuros se concretizam no presente
através da interpretação e da busca amorosa da vontade de Deus nelas contidas. A multiplicidade de sentido era
o princípio vivido por R. Akiba e seu colega R. Ishmael que o criticam por sua grande liberdade exegética,
esquecendo que Deus fala a linguagem humana dirá que como um martelo que faz sair faíscas da pedra, do mesmo
modo cada Escritura se divide numa multiplicidade de sentidos.
Assim o midrash se situa entre a Escritura que ele interpreta e o terreno da halakha e da aggadá que
iluminam seus ensinamentos.
Não se estuda a palavra de Deus sozinho. Ela deve ser feita ao grupo. O estudo junto leva a
interpretação de um grupo para encontrar na Palavra aquilo que ela traz para a vida.
3.2 – O MIDRASH HALAKHA
As origens da halakha, sua fonte de interpretação das Escrituras e sua confirmação, se encontram a
partir da época de Esdras e Neemias, ou seja, com a volta do exílio da Babilônia. Halakha, da raiz hebraica halakh
(‫ )חלכ‬que significar caminhar. No sentido figurativo é o ensinamento que alguém segue e por ele é guiado.
Halakha é, pois, o caminho da vida judaica de acordo com a Torá escrita e oral. Fundamentada na
experiência do dia a dia, ela está ligada ao real e não é uma justaposição de conclusões longínquas. Através de
sua orientação a halakha insere um dinamismo nas situações e ações da realidade contemporânea que obriga a
rever, reformular e atualizar as regras e normas com novos exemplos que nascem do novo contexto. “O midrash
combinado com halakha cria aliança entre a história e a lei”.
A essência da Torá oral é a halakha e ocupa lugar de primeira importância na literatura judaica, na
vida e pensamento no período do II° Templo. Por definição, halakha é uma tradição normativa que apoia seu
ensinamento nas Escrituras e por isso se reveste de autoridade divina. Disto decorre a impressão que temos de
que ao tratar da halakha se olha a essência da Torá oral.
Segundo Safrai, “uma compreensão adequada da literatura da halakha não pode ser derivada
simplesmente da literatura na qual ela foi fixada e preservada, mas, necessita uma compreensão que entre na
natureza e história do desenvolvimento da halakha”. O termo halakha recobre uma série de significados:
1) Lei, menor unidade da coleção de halakhot, como por exemplo na Tosefta;
2) Diante de opiniões diferentes halakha é a lei aceita pela maioria;
3) Halakha ou halakhot é o objeto de estudo da literatura do gênero oposto à aggadá;
4) Do ponto de vista legal da vida judaica, e da tradição legal do Judaísmo, a halakha dos sábios, por exemplo,
é distinta da halakha de Qumrã.
No período que chamamos nos meios cristãos de ‘inter-testamentário’ e que na tradição judaica
recobre o período do II° Templo, vamos encontrar o desenvolvimento que se dá em termos de halakha sobretudo
nos escritos a partir da época de Antíoco Epífanes e no período dos Asmoneus.
Encontramos dois tipos de halakha. As que derivam, pelo menos formalmente, dos versículos
bíblicos e são transmitidas em forma midráshica e as que foram transmitidas sem referência às Escrituras, também
chamadas halakhot independentes.
As halakhot de forma midráshica se encontram, sobretudo nas coleções de midrashim haláquicos da
época dos Tannaim. Grande parte da halakha originariamente independente, mais tarde foi apoiada pelo midrash.
Em seu trabalho sobre a literatura tannaítica, Epsteinafirma que o midrash apoia a halakha, mas não cria halakha.
Ele é da opinião que os sábios trazem confirmação bíblica à halakha mas não inventam halakha tendo como base
o midrash.
Na corrente da tradição, no período que recobre os zugot, até Hillel e Shammai, raramente as halakhot
são transmitidas com atribuição de nomes. A partir de Hillel e Shammai, juntamente com a tendência do
desenvolvimento do sistema midráshico, crescerá o hábito de transmitir a halakha com atribuição de quem a
pronunciou.
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A origem de uma halakha se coloca também, no sentido de saber até que ponto o fato do povo de
Israel possuir a beit din (corte de julgamento) como instituição de orientação do povo, esta teria se tornado uma
fonte importante na criação de halakhot.
Para fazer face ao contexto vivido e ao mesmo tempo criar uma ‘cerca’- seyag (‫)סעג‬, em torno da
Torá, os sábios desenvolveram dois tipos de halakhot que atingem todas as áreas da vida. Da época dos zugot
temos as gezerot e na época do tannaim temos as takkanot. A gezara é um decreto proibitivo que confirma
oficialmente uma halakha aceita enquanto a takkana inicia algo novo e procura corrigir uma aberração que havia
se desenvolvido.
O que se pode dizer é que como outras partes da Torá oral, a halakha deve ser vista como produto de
uma comunidade caminha e busca viver a Palavra de Deus e neste sentido é uma comunidade de aprendizes. Nela
os líderes de cada época, e no nosso caso, os sábios, desempenham o papel de orientadores numa relação próxima
e recíproca com o povo em geral. Portanto, fundamentalmente, a halakha não deriva de instituições legislativas,
mas, emerge nos pequenos grupos de companheiros de um sábio e seus discípulos e daí, como um efeito de ondas,
se torna mais amplo, atingindo mais tarde, toda a comunidade judaica.
Caso - Maasse (‫)מעשה‬
Parece que tanto nas fontes mais antigas como nas mais recentes, muitas halakhot se originaram em
costumes populares. Quando uma halakha não é identificada como derivada o ensinamento dos sábios, seja por
um midrash, seja por um decreto, provavelmente tratase de um Minhag (‫ )מנחג‬costume que se originou na realidade
cotidiana da vida dói povo e se tornou aceito pela comunidade. É a inovação legitimada pela comunidade. O poder
criativo do costume se verifica pelo próprio fato de que se torna normativo. Por outro lado, em caso de dúvida, o
costume é o melhor meio de verificar como agir, conforme está dito:
“Vá lá fora e observe qual é o costume do povo”.Por isso o costume popular tem um poder que exerce
dupla função, clarificar em caso de dúvida e atualizar o modo de fazer, fonte de inovação diante das exigências
da vida em novas circunstâncias.
As controvérsias Mahloqet (‫)מחלוקת‬, discussão sobre as halakhot testificam que em sua base a
halakha não é de natureza institucional. A halakha emerge de pequenos grupos, mestre-discípulo. Ela é produto
de uma comunidade aprendiz na qual os sábios exercem a função de facilitadores, através da liderança através de
seu saber, mas sempre numa relação recíproca com a comunidade.
Halakha leMoshe miSinai (‫)חלכה מסיני למשה‬
3.3 - MIDRASH AGGADÁ
Ao falar de aggadá o primeiro problema que encontramos é como defini-la. Isto porque o universo
que recobre o termo ‘aggadá’ é tão vasto que dificilmente pode ser contido em uma simples “definição”. No
entanto é possível descrever a realidade que o termo recobre possibilitando uma aproximação da realidade e da
grande riqueza que esta forma de tradição oral significa na vida do povo judeu.
Na realidade a palavra ‘aggadá’ tem um sentido muito amplo. Por um lado, está ligado à interpretação
de textos bíblicos de natureza estritamente exegética e outros tentam clarificar as partes não narrativas dos textos
bíblicos. Por outro lado, está ligado a legendas, estórias, provérbios que prolongam a narrativa bíblica de uma
maneira criativa. Dos dois modos o objetivo seguido pela ‘aggadá’ é de cunho didático. “O conjunto da ‘aggadá’
não é midrash e o conjunto do midrash não é ‘aggadá’”. Ela é instrumento de educação do povo, meio para
fortificar sua fé e aumentar a esperança a partir da Torá. Ela representa também a capacidade de desenvolver
novos métodos exegéticos destinados a dar uma nova compreensão das Escrituras em um tempo de crise e de
conflito externo sob a pressão que se verifica em meio a culturas estrangeiras, e interno quando se desenvolve um
espírito sectário no meio do povo judeu. O período mais florescente da aggadá coincide com as grandes catástrofes
históricas, especialmente após 70 da e.C. Portanto um dos principais objetivos da aggadá é ensinar à pessoa viver
os caminhos de Deus e de ajudá-la a compreender como Deus se revela na nova situação.
O Midrash Rabba do Cântico dos Cânticos narra a palavra de R. Levi que diz: “Outrora quando o
dinheiro era abundante, o ser humano pedia para escutar Mishna, halakha e discussões talmúdicas. Mas agora
em que a situação é de pouco dinheiro, sobretudo que [o ser humano está esgotado pela dominação das nações,
ele pede para escutar palavras de benção e consolação”. Ou seja, em tempo de dificuldade o povo deseja escutar
aggadá mais do que halakha.
As aggadot se tornaram parte do discurso sinagogal e o pregador as utilizava segundo a ocasião para
dar voz ao seu auditório, para ler os acontecimentos de seu tempo, para fazer uma crítica à situação. Mas tudo o
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que ele dizia deveria estar ligada à parashá que o público acabara de escutar. Portanto, os pregadores estavam
nutridos e formados pela Torá. As palavras das Escrituras eram vivas nele de tal modo que seus pensamentos e
seus sentimentos estavam ligados ao texto assim a exegese e a idéia aggádica nasciam simultaneamente.
Segundo Heinemann, não se sabe exatamente quando a palavra ‘aggadá’ passou a determinar um
tipo especial de literatura. Ela está profundamente ligada à idéia de ‘falar’ pois as fontes palestinenses utilizam
um substantivo equivalente do verbo le-haggid (‫)לחגיד‬, que significa falar e contar. Outra possibilidade é o fato
de que le-haggid é sinônimo do verbo hebraico le-sapper (‫ )לספר‬que significa relatar ou contar uma história.
A maior parte dos midrashim haggadicos são sobre Exodo, Números, Levítico e Deuteronomio. De
um modo geral esses midrashim podem ser divididos em dois grupos os que são atribuídos à Escola de Rabi
Ismael e os da Escola de Rabi Akiba. Estas duas escolas se distinguiram pela sua terminologia e por seu método
exegético. A predileção da escola de Rabi Ismael é pelo senso óbvio, a Bíblia fala a linguagem humana. A
interpretação de todas as particularidades linguísticas nos chega pela escola de Rabi Akiba. Esta classificação é
genérica e podemos encontrar estas características nas duas escolas. Uma distinção muito rápida, pois a matéria
haggádica é comum às duas escolas.
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UNIDADE III
ANEXO
QUATRO MORTES SEGUNDO O MIDRASH
☞ 17/11/2002 Benjamin Mandelbaum
1 - A MORTE DE MOISÉS, NOSSO MESTRE
Disse o Rabi Abbahu: Vinde ver como foi dura a hora de Moisés, quando nosso libertador partiu do
mundo. Pois quando Deus lhe disse: Chegou a tua hora de deixar o mundo, Moisés começou a chorar e a gritar,
e perguntou a Deus: Senhor do Universo, tudo que fiz foi por nada? Foi para nada que trabalhei como um cavalo
para Teus filhos? Terei agora, como final, o túmulo?
Terminarei em pó? Se Vós pudésseis vê-lo da minha maneira, Vós me afligiríeis com sofrimento,
mas não me mandaríeis às dores da morte (Davi falou disso) Senhor me castigue com sofrimento, mas não me
entregue à morte (Salmos 118,18).
E Deus disse a ele: Moisés, Eu jurei que um reinado não pode sobrepor o outro nem por um fio de
cabelo. Assim, foste rei de Israel, mas chegou agora o tempo em que Josué deverá reinar sobre eles.
Moisés respondeu a Deus: Mestre do Universo, no passado fui mestre, e Josué meu discípulo.
Deixa-me agora ser seu discípulo e ele meu mestre, mas não me deixe morrer.
E Deus disse: Se tu o podes fazer, siga adiante.
Moisés foi imediatamente até a porta de Josué, onde se postou a serviço deste, com o corpo curvado
e os braços cruzados. Não percebeu Josué que ali estava seu mestre Moisés colocado a seu serviço.
Os israelitas, como era de seu costume, levantaram-se cedo para levar o seu respeito à porta de
Moisés, mas não o encontraram. E perguntaram: Onde poderá estar Moisés? E então lhes disseram: Ele se
levantou cedo para levar seus respeitos à porta de Josué.
Então os israelitas foram ver o que se passava e viram Josué sentado e Moisés, nosso mestre, em pé
a seu serviço. E perguntaram: Josué, Josué, o que fizeste? Moisés, o teu mestre, fica a teu serviço, com o corpo
curvado e as mãos cruzadas?
Os olhos de Josué se abriram e ele então notou que era Moisés quem estava diante dele e a seu
serviço. Josué prostou-se imediatamente diante de Moisés e implorou: Meu pai! Meu pai! Meu Mestre! Meu
Mestre! Pai, que me criou desde a infância, Mestre, que me ensinou sabedoria. Os filhos de Arão se postaram à
direita de Moisés e Josué ficou à sua esquerda. E lhe perguntaram: Moisés, nosso mestre, por que o fizeste? E ele
respondeu: Deixem-me ficar, pois Deus me ordenou: Faze isso para Josué para não morreres.
O Rabi Shmuel bar Nehmani citou então Rabi Yohanan: Nesse momento todo Israel teria apedrejado
Josué até a morte, se não fosse a coluna de nuvens que veio protegê-lo. Então disseram a Moisés: Conclui a
Torah para nós! Mas as tradições tinham sido esquecidas por Moisés e ele não soube o que responder. Então
Moisés se prostrou e orou: Senhor do Universo, minha morte é melhor do que minha vida (Jonas, 4,3) Quando
Deus viu que Moisés tinha se reconciliado com a morte, então Deus o elogiou: está escrito, Quem se levantará a
Meu favor, nesta nação de fracos? Quem estará Comigo contra os que praticam a iniqüidade? (Salmos 94,16)
Quem se levantará a Meu favor nas guerras dos Meus filhos quando pecarem diante de Mim?
Veio então o anjo Miguel e curvou-se diante do Todo-Poderoso. E disse diante de Deus: Senhor do
Universo, Moisés foi Teu em vida, e assim é Teu na morte. E Deus respondeu: Eu não lamento por Moisés, mas
por Israel, pois muitas vezes eles pecaram e ele se levantou e pregou e venceu. Minha ira é assim como está
escrito, Deus tê-los-ia exterminado se Moisés, o eleito de Deus, não se houvesse interposto, impedindo que a Sua
cólera os destruísse (Salmos 106,23).
E eles vieram a Moisés e lhe disseram: Chegou o momento da tua partida deste mundo. E ele disse
a eles: Israel, meus filhos, perdoai-me por todas as vezes que eu vos tenha afligido. E eles responderam: Moisés,
nosso Mestre, estás perdoado, estás perdoado. E então disseram a ele: Moisés, perdoa-nos por todas as vezes que
te enfurecemos. E ele lhes disse: Meus filhos, estais perdoados, estais perdoados.
Eles vieram e lhe disseram: Não resta mais do que a metade de um momento para que partas do
mundo. Ele tomou suas duas mãos e colocou-as dobradas sobre o seu coração, e então chorou e disse: Agora, as
minhas mãos, que receberam a Torah da boca do Todo-Poderoso, certamente descerão ao túmulo.
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E eles vieram e disseram a ele: Está terminando o momento da tua partida deste mundo. Neste
momento Moisés bradou fortemente a Deus. Ele disse: Senhor dos dois Mundos, se Tu tomais minha alma neste
mundo, devolver-me-la-ás no Futuro? E Deus respondeu: Pela tua vida! Assim como foste o guia de todos eles
neste mundo, assim o serás no Futuro, como está dito, Ele marchou adiante do seu povo (Deut. 33,21). E por
que? Pelo justo que foi com Israel, como está dito, Ele executou a justiça do Senhor e os Seus julgamentos para
com Israel (Deut 33,21).
O Rabi Nehemias explicou: O que ele fez? Ensinou-lhes a Torah, as leis e a justiça. (Midrach Mishle,
capítulo 14).
2 - A MORTE DO RABI AKIVA
Conta-se que quando o Rabi Akiva estava encarcerado na prisão, Josué de Gerasa o servia. E certa
feita, na véspera de uma festividade, ele deixou o serviço do Rabi Akiva para ir até a sua casa. Elias, o sacerdote,
veio até a casa de Josué e, diante da porta, chamou-o: “Apareça, Josué! Apareça Josué!” E Josué perguntou:
“Quem és tu?” E ele respondeu: “Eu sou Elias, o sacerdote, que veio te dizer que o teu mestre, o Rabi Akiva
morreu na prisão.”.
Os dois se dirigiram imediatamente para lá e encontraram a porta da prisão aberta e o guarda
dormindo. Na realidade, todos estavam dormindo, enquanto o Rabi Akiva descansava em seu catre. Elias correu
para ele, e colocou-o nos seus ombros.
Josué de Gerasa lhe observou: “Tu não me disseste que és Elias, o sacerdote? Contem-te, é proibido
para um sacerdote tornar-se ritualmente impuro pelo contato com um cadáver!”! E ele respondeu: “Basta, Josué,
meu filho. Deus proíbe que haja impureza para o ritual quando se trata de um justo ou mesmo dos seus
discípulos.”.
Eles saíram da prisão e caminharam a noite inteira, até chegar ao monumento de quatro arcos de
Cesaréia. Chegando lá, desceram alguns degraus e então subiram três lances de escadas. Lá encontraram um
esquife aberto (em um compartimento que tinha) um banco, uma mesa e uma lâmpada. Eles puseram o Rabi
Akiva no esquife e imediatamente a lâmpada se acendeu e a mesa foi posta!
E então eles exclamaram: “Abençoados sejam os que labutam na Torah! Abençoados sejam os
tementes a Deus! Abençoados sejas, Rabi Akiva, que se encontrou para ti um bom lugar de descanso na hora da
tua morte”. (Midrash Mishie, capitulo 9).
3 - A MORTE DE ELISHA BEM AVUYA
O Rabi Meir perguntou a seu mestre Elisha ben Avuya: “Rabi, qual é o significado deste versículo,
A adúltera anda à caça da alma preciosa (Provérbios 6,26)?”
E ele respondeu: “Meu filho, se alguém for apenas uma pessoa comum, e for pego em pecado, não
haverá desgraça para tal pessoa. Por que? Porque essa pessoa pode dizer “Eu sou apenas uma pessoa comum e
não sei qual é a punição que a Torah prescreve (para esse pecado)”. Mas se um que guarda a lei é pego pecando,
então aí se tem uma desgraça. Por que? Porque ele mistura coisas puras com as impuras. A própria Torah, que
era preciosa para ele, fica conspurcada. Pois o ignorante dirá “Venha ver como esse judeu cumpridor da lei foi
pego pecando e conspurcou a Torah!” Eis porque o livro dos Provérbios diz A adultera anda à caça da alma
preciosa!
E o Rabi Meir perguntou: “Rabi, (vendo que a Torah prescreve sentença de morte para o adúltero e
para a adúltera) qual será a punição para o pecado do adultério no Futuro (ou seja, eles podem se arrepender, ou
a morte poderá ser a sua expiação)?”
E o Rabi Elisha respondeu:”Meu filho, já que tu me fizeste essa pergunta, vem ver o que está escrito
logo após esse versículo dos Provérbios: Assim ser com o que se chegar à mulher do seu próximo; n o ficar sem
castigo todo aquele que a tocar (Provérbios 6,29).”
E o Rabi Meir perguntou: “Não há recuperação?” E o Rabi Elisha respondeu: “Meu filho, certa vez
estava eu estudando esse capítulo com o meu colega ben Azzai. Quando chegamos a esse versículo, ele me disse
que uma pessoa poderia criar um órfão e ensinar-lhe a Torah e obedecer com ele a todos os Mandamentos, e dessa
forma ganharia a reconciliação no Mundo Futuro, visto que teria mudado sua vida e se arrependido. Perguntei a
ben Azzai que texto comprovava essa afirmação, e ele citou: Se voltares, ó Israel, diz o Senhor, volta para Mim
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(Jeremias 4,1). E por que? Porque sou compassivo, diz o Senhor, e n o manterei para sempre a minha ira
(Jeremias 3,12). Eu disse então a ele que outro texto comprovava isso melhor ainda, porque está escrito, Volta, ó
Israel, para o Senhor teu Deus, porque pelo teus pecados est s caído (Oséas 14,2) – mesmo que tenhas negado a
Deus. Assim sendo, se alguém que tenha negado a Deus é aceito por ele com o arrependimento da hora, Deus
certamente aceitará o adúltero quando se arrepender”. E o discípulo de Elisha ben Avuya lhe respondeu dizendo:
“Rabi, os teus próprios ouvidos não ouvem o que dizes? Se Deus aceita a esses quando se arrependem, muito
mais aceitará Deus a ti, que tens toda esta Torah! Por que não te arrependes?”
E ele explicou: “Meu filho, certa vez entrei em uma sinagoga e vi um estudante sentado diante do
seu rabino, que o ensinava a ler. Disse o mestre, Mas ao ímpio (ulerasha) pergunta Deus: de que te serve repetires
os Meus preceitos? (Salmos 50,16). Chegando a vez do estudante, ele leu: Mas a Elisha (ulelisha) pergunta Deus:
de que te serve repetires os Meus preceitos e teres nos lábios a Minha aliança? Quando ouvi isso, conclui que o
decreto contra mim já estava selado no Alto”.
E o Rabi Meir respondeu: “Rabi, arrepende-te neste mundo e eu me postarei diante do executor da
tua sentença no Dia do Juízo, no Futuro!”!
Apesar disso, Elisha não se arrependeu. Quando ele morreu, vieram dizer a Meir: “Vem ver como o
fogo consome o túmulo do teu mestre”. O Rabi Meir, então, estendeu seu manto por sobre o túmulo do teu mestre
e conjurou as chamas, dizendo: Fica-te aqui esta noite, e ser que, pela manhã se Ele te quiser resgatar, bem este
que te resgate; porém, se não Lhe apraz resgatar-te, eu o farei, tão certo como vive o Senhor; deita-te aqui até
a manhã (Rute 3,13) Fica aqui esta noite – neste mundo que é noite. E pela manhã – do Mundo Futuro, se Ele te
quiser resgatar, bem está, que te resgate; porém, senão Lhe apraz resgatar-te, eu o farei, tão certo como vive o
Senhor!” Quando Meir invocou o nome de Deus, o fogo morreu. E assim comentaram os sábios, Abençoado
aquele que faz discípulos que se tornem assim. (Midrach Mishle, capítulo 6).
4 - A MORTE DOS FILHOS DO RABI MEIR
Mulher virtuosa, quem a achará? (Provérbio, 31:10). Conta-se uma história sobre o Rabi Meir, que
estava sentado, ensinando na sinagoga numa tarde de Shabat, quando seus dois filhos morreram. E o que fez a
mãe deles? Colocou-os na cama e cobriu-os com um lençol. Ao final do Shabat o Rabi Meir voltou para casa, e
perguntou à sua mulher: “Onde estão meus dois meninos”?
E ela respondeu, “Eles foram à sinagoga”.
Ele retrucou: “Eu procurei por eles na sinagoga, mas não os vi”.
Ela lhe passou uma taça de vinho para a cerimônia do Havdala e ele encerrou o Shabat. E perguntou
de novo a ela, “Onde estão meus dois filhos”? E ela respondeu “Às vezes eles vão a algum lugar, e agora estão a
caminho”. Ela serviu o jantar e ele comeu.
Depois de ter recitado ele a benção de após a refeição, ela lhe disse: “Rabi, eu tenho uma pergunta
para te fazer”.
E ele disse: “Faz a tua pergunta”.
Ela disse: “Rabi, há algum tempo determinada pessoa veio a mim e me deixou um certo depósito
(para que eu tomasse conta). Agora essa pessoa veio pegar de volta o depósito; devemos devolver-lhe ou não”?
Ele respondeu: “Minha filha, quando alguém tem um depósito a seu cargo, não está obrigado a
devolve-lo ao seu dono”?
E ela disse: “Eu não faria a devolução sem seu consentimento”.
E o que fez ela? Tomou-o pela mão, levou-o até aquele quarto, trouxe-o para perto da cama, e tirou
o lençol de cima dos dois para que ele os visse mortos, deitados na cama.
Ele começou a gritar e a lamentar “Meus filhos, meus filhos, meus mestres, meus mestres. Meus
filhos pelo nascimento, meus mestres porque iluminaram (meirin) a minha expressão com a sua Torah.
E nesse momento, ela disse ao Rabi Meir: “Rabi. Não me disseste que devemos devolver o depósito
a seu Dono”? E então ele disse: “O Senhor me deu, o Senhor me tirou, bendito seja o Nome do Senhor” (Jô,
1,21). E Rabi Hanina disse: “Assim fazendo, ela o confortou e aquietou a sua mente”. E então ele disse, Mulher
virtuosa, quem a achara”? (Midrash Mishle, capítulo 31).
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UNIDADE III
ANEXO
UM MIDRASH Gn 2,23
Adão ao ver diante de si a auxiliar que Deus lhe apresentou exclamou: “Esta sim, é osso dos meus
ossos e carne da minha carne!”
Compreendeu que para obter semelhante companhia qualquer filho dos dois nascido haveria de
deixar pai e mãe sem saudades nem reclamações.
E entendeu isso com amor. Compreendeu também o alcance dos conceitos masculino e feminino, e
por amor cunhou as palavras homem (‫ )איש‬e mulher (‫)אשה‬.
Poderiam ser escritas de maneira diferente? Absolutamente não, basta olhar para entender o motivo disso as
palavras ‫ איש‬e ‫אשה‬. Onde temos duas letras iguais e duas diferentes.
As duas letras diferente yod (‫ )י‬e he (‫ )ה‬são as primeiras letras do Senhor, o Eterno que criou o
mundo. Elas estão ali para demonstrar que a união entre diferentes é que dá frutos suculentos.
Há duas palavras que podem ser formadas com estas quatro letras e simbolizam dois tipos de relação
que se estabelecem entre um homem e uma mulher amor humano: ishá (‫ )אשה‬e ish (‫)איש‬.
☞ O amor de um homem e uma mulher sem Deus é esh (‫)אש‬, o fogo que tudo devora.
☞ O amor de um homem e uma mulher com Deus (‫ )יה‬é uma aliança eterna.
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UNIDADE III
ANEXO
OS ELOS DA TRADIÇÃO ORAL:
A IMPORTÂNCIA
DE UMA TRADIÇÃO ORAL (SLIDES)
Porque tradição oral? Tradição é memória que permite um enriquecimento da experiência e de certo
modo significa uma prioridade da transmissão oral sobre a Escritura e mesmo uma certa dependência do escrito
em relação à transmissão oral, à conservação da fé nos corações (Yves Congar).
1) Tradição Oral judaica no limiar da era cristã





Diáspora e Eretz Israel;
Babilônia;
Egito: Alexandria;
Questão da língua falada e língua escrita;
A produção literária judaica em língua grega.
No Sinai, Deus ensinou a Moisés mais leis, que ele deveria memorizar e transmitir oralmente a seus
sucessores, que por sua vez deveriam manter essa tradição de geração a geração.
Esse ato deu origem à palavra "Messorá", que significa "transmitir". Texto Massorético século VII
em Tiberíades.
Moisés a passou a Josué, Josué aos anciãos e juízes, os anciãos aos Profetas, os Profetas aos Homens
da Grande Assembléia durante o exílio babilônico.
Entre os últimos sábios da Grande Assembléia estava Simeão, O Justo, que foi também SumoSacerdote no II Templo.
Entre os últimos sábios da Grande Assembléia estava Simeão, O Justo, que foi também SumoSacerdote no II Templo. Simeão, O Justo, passou a tradição à Antigono de Sokho...
2) Os Pares - Zugot
A Torá Oral foi então transmitida seguindo esta ordem:
1 – José ben Yoezer e José ben Yochanan;
2 – Yehoshua ben Perakya eNitai d’Arbel;
3 – Yehuda ben Tabbai e Shimon ben Shétah;
4 – Shemaya e Abtalion;
5 – Hillel, o ancião e Shammai.
Com Raban Shimon ben Hillel e Rabi Yochanan ben Zakkai inicia-se o período dos Tannaim. Eles
serão responsáveis pelos Midrashim e pela Mishna, Tosefta e Baraitot.
Seguindo a corrente da tradição: Raban Gamaliel ben Raban Shimon e os discípulosde Rabi
Yochanan ben Zakai: Rabi Eliezer, Rabi Yehoshua ben Hananya, Rabi Yossê Hacohen, Rabi Shimon ben
Netan'el e Rabi Elazar ben Arach, Raban Shimon ben Raban Gamaliel e Rabi Akiva, Raban Gamaliel (II) ben
Raban Shimon, e os discípulos de Rabi Akiva: Rabi Nechemya, Rabi Shimon bar Yochai, Rabi Elazar ben Rabi
Shimon, Rabi Meir, Rabi Yehudá, Rabi Elazar ben Shamua.
Raban Shimon (II) ben Raban Gamaliel, Rabi Yehudá Há-Nassi ben Raban Shimon, conhecido
como Rabênu HaKadosh, "nosso santo Rabi" ou simplesmente "Rebi". Os mestres que sucederam os Tannaim
foram os Amoraim. Eles nos deixaram a Guemará.
De Moisés até Yehuda Ha-Nassi, as leis orais foram assim aprendidas de cor e passadas de geração
a geração oralmente. Rabi Yehudá, entretanto, percebeu que por causa das crescentes dificuldades e perseguições,
os judeus poderiam não ser capazes de reter na memória todas aquelas leis tradicionais, e decidiu registrá-las.
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Sendo um grande estudioso, e também um homem de recursos consideráveis, ele reuniu à sua volta
os maiores eruditos do seu tempo e registrou todas as leis tradicionais e as interpretações da Torá que eles haviam
aprendido de seus mestres.
Rabi Yehudá Ha-nassi, é um tanna das últimas gerações. Ele organizou todo este vasto conhecimento
em seis seções, conhecido como Mishna.
1. Zeraim - "Sementes": as leis ligadas à agricultura;
2. Mo’ed - "Estação" : leis de Shabat e dos Festivais;
3. Nashim - "Mulheres": as leis do casamento etc...;
4. Nezikin - "Danos": as leis civis e criminais;
5. Kodashim - "Coisas Sagradas": as leis dos sacrifícios;
6. Taharot – “Purezas": as leis sobre pureza.
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UNIDADE IV
PARÁBOLA
4.1 – AS PARÁBOLAS
A parábola é um gênero literário de caráter popular. Na consciência popular a sabedoria nasce da
reflexão sobre a realidade concreta e material que forma o tecido da vida cotidiana. A parábola é um meio
pedagógico para fazer descobrir através da realidade natural, uma outra realidade mais profunda, na vida de hoje,
o caminho do além que faz a unidade entre a vida presente e aquela a que toda pessoa é chamada. Ela ultrapassa
o ensinamento da sabedoria humana pois possui uma função reveladora: comunicar o “mistério” de Deus,
convidando o ouvinte a tomar posição diante da proposta revelada.
A parábola tem também um propósito exegético. Ela é um procedimento habitual para tentar resolver
uma dificuldade da Escritura. Jesus explica a Escritura somente no caso do primeiro mandamento [Lc 10 27-37
(cf. Dt 6,5 e Lv 19,18)]. Normalmente e Jesus não tem necessidade de invocar autoridade pois “ele ensinava como
quem tem autoridade e não como os escribas”(Mt 7,29). Sua vida é de acordo com sua palavra: impossível de
pegá-lo em falta. Esta é sem dúvida, uma das pedras ao menos, sobre a qual vão tropeçar alguns de seus
contemporâneos.
O segredo do narrador é encontrar um quadro conhecido onde ele introduz algo inusitado, por vezes
chocante, para produzir o efeito surpresa, provocar o ouvinte, suscitar uma questão ou uma reflexão.
No hebraico mashal (‫ )לשמ‬que quer dizer parábola, tem duas maneiras de ser introduzido: Parábola
do rei... ou A que a coisa se assemelha ou é semelhante? Em geral a parábola é narrada através de uma
comparação. A resposta vem através do nimshal (‫)לשמנ‬, ou seja, o significado da comparação. Na tradição
rabínica encontramos a seguinte parábola, para explicar o que é parábola:
Nossos mestres disseram: que o mashal não seja para você como uma coisa de pequena importância aos teus
olhos pois é graças a elel que o ser humano pode compreender as palavras da Torá. Parábola de um rei que, em
sua casa, perdeu uma peça de ouro ou uma pedra preciosa. Como vai ele procurá-la? Usando uma mecha que
custa somente um tostão. Assim também o mashal não deve ser uma coisa de pouco valor aos teus olhos, pois é
graças a ele que você pode penetrar nas palavras da Torá. E você sabe que é assim porque foi por meio do mashal
que o rei Salomão compreendeu os menores detalhes da Torá. (Cantico Rabba, 1,6-8).
Mateus 13,34 vai dizer que “Tudo isso, Jesus o disse às multidões em parábolas, e nada lhes
disse a não ser em parábolas...” Ora, se Jesus se dirigia assim às multidões era porque desejava realmente
ser compreendido por todos.
Quando comparamos as parábolas dos evangelhos com as parábolas rabínicas, o que mais chama a
atenção, além da forma estereotipada de introduzir, por exemplo: “O Reino dos céus é semelhante a ....” É
semelhança dos temas por exemplo.
 A retribuição dos operários pelo seu mestre em J. Berackot, II, 8,5c e Mt 20, 1-16;
 O mestre que confia seus bens aos seus servidores Seder Eliyahu Zuta 2 e a parábola dos talentos em Mt
25,14-30;
 As relações entre um pai e seu filho Deuteronômio Rabba II, 24 e Lc 15,11-32;
 O tema do banquete “Parábola de um rei que preparou um banquete para seus amigos e que disse: ninguém
poderá entrar sem mostrar meu selo” e que Mateus desenvolve longamente no festim nupcial 22,1-14;
Assim como os temas há motivos semelhantes como o tesouro escondido, o atraso num convite, a
roupa nupcial, etc. estes motivos são como linguagem codificada, simbólica que estabelece uma conivência entre
o narrador e seus ouvintes. A “porta fechada” é o tempo da teshuva (conversão), que se deixou passar; o dia de
trabalho representa a vida humana; os prudentes, são os justos e os tolos os ímpios; o dono da casa que convida
ou que emprega é sempre Deus...
Mas estas correspondências habituais não levam a um automatismo pois “os pássaros do céu” que
representam satã em Mt 13,4 e 19 são propostos em Lc 12,24 como modelos de confiança. Assim também há um
fermento que faz a massa crescer (13,33) e outro que é preciso evitar (16,5).
A importância está no ponto que desperta o ouvinte por exemplo: é possível enviar um convite sem
dia nem hora? Não é normal que o salário seja de acordo com a duração do trabalho? Até que ponto é normal um
pai que dá um banquete para um filho que acabou de esbanjar seus bens?
O ápice ou a ‘ponta da narrativa’ suscita reflexão do ouvinte. Entre a literatura rabínica e as parábolas
de Jesus há um parentesco muito próximo:
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 Mesmo contexto cultural, mesmos motivos, mesmos sujeitos e aparentemente o mesmo ensinamento.
 Deus mestre absoluto, pede ao ser humano, seu servidor, de fazer frutificar os bens recebidos; Deus Pai não
cessa de esperar seu filho (sua filha) pois ele deseja fazê-los(las) sentar-se no banquete preparado para todos.
Portanto é preciso viver na vigilância, atenção cotidiana, a fim de não deixar passar o tempo do encontro.
No que as parábolas de Jesus diferem? Nas parábolas evangélicas, o significado da comparação
(nimshal) raramente é explicitado. Isto acontece somente quando os discípulos pedem explicação e, no entanto,
as parábolas são dirigidas à multidão. Assim Jesus deixa em suspenso uma questão à qual cada pessoa é chamada
a responder segundo a sua compreensão.
Acontece também que Jesus, à guisa de “nimshal” coloca uma questão direta ao seu interlocutor:
 Qual dos três se mostrou próximo? Lc 10,36.
 Qual dos dois fez a vontade do pai? Mt 21,31.
Jesus sabe que a resposta que cada um dará a si mesmo será uma provocação, um desafio maior à
sua conversão do que uma explicação colocada do exterior. Jesus respeita a liberdade da pessoa. Ele propõe e não
impõe, respeita a caminhada de cada pessoa e sua capacidade de compreender e agir aqui e agora. Enquanto a
questão resta um convite, a “moral” explícita pode fechar a pessoa em sua incapacidade do momento.
Mas a liberdade também pode ser um risco e fechar os olhos e ouvidos e endurecer o coração, apesar
deste perigo, Jesus, como o próprio Deus ao longo de toda a revelação, se contenta, pela parábola, de propor a
conversão. Muitos textos rabínicos mostram que Deus vela para que cada pessoa tenha, no tempo desejado, ao
alimento que lhe convém.
O discurso em parábolas do capítulo 13, é um agrupamento intencional de Mateus, são sete parábolas,
três conhecidas da tradição sinóptica e quatro que lhe são próprias. O nº 7 para os judeus evoca 7 dias da semana
e da criação, simbolizando a história do mundo, ou seja, a realidade espiritual do ser humano que se expressa pelo
nº 3 no seio da natureza da qual o número 4 expressa os elementos básicos: fogo, ar, terra e água.
Para o semita o nº 3 é o nº do ser humano composto dos três elementos (‫ רהח‬- ruah) espírito; (‫– פנש‬
nefesh) vida; (‫ שבר‬- basar) carne, um microcosmo que reproduz a tríplice estrutura da criação:
 O mundo superior, imaterial, domínio dos anjos;
 O mundo astral, ao mesmo tempo material e espiritual;
 O mundo inferior, o mundo material.
A natureza representada pelo nº 4 lembra, além dos elementos constitutivos da matéria como
mencionamos acima, os quatro pontos cardeais incluindo assim toda a terra. As 7 parábolas do Reino sugerem a
revelação no tempo, na realidade do Reinado de Deus.
Muitos exegetas apresentam o capítulo 13 numa divisão tripartite:
 13,1- 23: O semeador e sua explicação que enquadra o porquê do discurso em parábolas;
 13,24- 43: Trigo e joio com a interpretação envolvendo as duas parábolas do grão e do fermento;
 13,44-52: As parábolas do tesouro, da pérola, da rede e conclusão final. Seriam assim, três etapas para iniciar
os discípulos na compreensão das parábolas ou de três tempos do crescimento do Reino que vai pouco a pouco
ultrapassando as resistências e desabrochando no coração da pessoa até sua consumação. É difícil negar esta
progressão no decorrer do discurso, mas esta visão não dá conta de todos os elementos que podemos encontrar
no texto. Uma análise mais precisa permite dividir o discurso em duas grandes partes paralelas, tendo cada
uma das partes 3 etapas que se correspondem significativamente nas duas partes.
1ª Etapa
1ª Parte
2ª Parte
 Parábola do Semeador
 Parábola do Joio e do Trigo
 vv. 1-9;
 vv. 24-33
 Dirigida ao povo
 Dirigida ao povo.
2ª Etapa
Anotações sobre o ensinamento em parábolas
 vv. 10-15
 vv. 34-35
3ª Etapa
 Explicação da parábola;
 Explicação da parábola, seguida
de 3
 vv. 16-23
 vv. 36-52
 Dirigido aos discípulos
 Dirigido aos discípulos
Tradição Judaica no Novo Testamento
Cultura Judaica, História e Teologia
27
Esta estrutura coloca em evidência o duplo auditório ao qual Jesus se dirige. Mateus nos coloca neste
caminho com inúmeros indícios literários:
 Por duas vezes é questão da casa em ligação com as multidões v. 1 e 36 e no v.52 fala o mestre da casa:
 1 – Naquele dia, Jesus saiu de casa e sentou-se...
 36 – Depois, despedindo a multidão, entrou em casa...
 52 – ... Deus parece-se com um dono de casa...
 Os discípulos longe da multidão aparecem no v.10 e 36 com explicação à parte sublinhada no v. 18;
 A expressão “tudo isso” ou “todas essas coisas “ v.34 e 51 designa a realidade da qual Jesus fala de maneira
velada às multidões e a qual os discípulos compreendem em profundidade;
 A parábola da rede, uma parábola apocalíptica, fala da consumação dos séculos cf. v 49;
 O discurso de parábolas se apresenta também como julgamento final, tem um valor escatológico. Sua função
é de realizar um discernimento diante do Reino dos céus.
Algumas antíteses que aparecem no texto: compreender e não compreender; multidão e discípulos;
dentro e fora de casa; filhos do Reino e filhos do maligno, bons e maus,etc...
A importância da atitude profunda que está por trás deste discurso: ESCUTA e COMPREENSÃO da
PALAVRA para fazer a vontade do Pai e apressar o Reinado de Deus na terra. É o eco do Shema Israel de Dt 6,
4ss. Este Reinado de Deus jamais acaba e deve sempre ser buscado. Ele não é uma definição, mas um processo
que está a caminho. Discípulos(as) são os(as) que se colocam a caminho e na busca do Reinado de Deus.
Muitas vezes nós também devemos falar em parábolas para que as pessoas percebam que nós
descobrimos em Jesus o sentido do mistério de sua vida e através Dele o mistério de nossas próprias vidas.
5.3 - BIBLIOGRAFIA BÁSICA UTILIZADA
(Com tradução livre de alguns textos e comentários)
1. J. RADERMAKERS. Au fil de l’Évangile selon Mathieu. Hervelee: Louvain, 1972.
2. D. de la MAISONNEUVE. “Les paraboles de Jesus et les paraboles rabbiniques” in: Sidic,vol. XIX, n° 1,
1987, pp.9-15.
3. _______________________, Paraboles rabbiniques, Supplément au Cahier Evangile, n° 50, Cerf, 1984.
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Cultura Judaica, História e Teologia
28
UNIDADE V
AS NARRATIVAS DA INFÂNCIA DE JESUS
5.1 – AS NARRATIVAS MATEANA E LUCANA
Quando vamos falar do nascimento e da infância de Jesus devemos começar por um fato muito
importante que está no coração da história humana: sua morte e ressurreição. Todo mundo conhece como se deu
a sua morte, qual o sofrimento pelo qual Jesus passou e principalmente o que aconteceu depois de sua morte: a
ressurreição.
Com o evangelho de Mateus, a história de Jesus foi passada pela tradição oral e a medida que a Boa
Notícia se alastra longe de Jerusalém, é preciso falar, escrever, contar sobre Jesus e sua origem, pois a maioria
das pessoas que vão segui-lo não o conheceram pessoalmente. Nasce nas comunidades a curiosidade e a
necessidade de falar sobre a origem e o nascimento de Jesus, sua infância e juventude. É desta necessidade que
encontramos em Mt e Lc as narrativas da infância.
As dificuldades sobre os evangelhos de infância são comuns a Mateus e Lucas. As dificuldades que
se apresentam podem ser de nível literário, histórico ou teológico28.
Dificuldades de nível literário:
1) As narrativas em questão nascem mais ou menos 80 anos após os acontecimentos, numa época em que
as comunicações eram muito mais precárias;
2) A documentação utilizada é tardia e de qualidade diferente; as narrativas da infância que temos são
diferentes e não são comuns na tradição dos sinóticos;
3) O gênero literário utilizado é diferente do resto do relato evangélico, tem em sua base uma reflexão
teológica de origem posterior aos acontecimentos.
Dificuldades de nível histórico:
1) Podemos descobrir por trás dos relatos de Lc e Mt, elementos trazidos pela tradição oral anterior aos
evangelistas, mas até que ponto há um aproveitamento das tradições e até onde há criação?
2) Há discordância das narrativas: enquanto em Mt José é obrigado a ir para Nazaré em Lucas isto é um fato
normal pois tudo já acontece em Nazaré; o nascimento em Belém: enquanto em Lucas se dá casualmente por
causa do recenseamento, em Mt, a família é natural de Belém, portanto o nascimento em Belém é normal,
etc.;
3) Nas narrativas da infância entramos no mundo do “maravilhoso”, luz de anjos, estrela que orienta magos
e a própria concepção milagrosa de Jesus nos aproxima de relatos paralelos no mundo fora do judaísmo;
4) Dificuldades quanto aos dados históricos, um exemplo é o caso do recenseamento em Lc 2,2 “ foi o primeiro
enquanto Quirino era governador da Síria”. Em Flávio Josefo o recenseamento de Quirino foi no ano 6 da
nossa era. Como conciliar este dado com o nascimento de Jesus sob Herodes, o grande, que morreu no ano 4
a.C. que corresponde à matança dos inocentes em Mt.?
Quanto às questões de nível teológico: Elas nascem exatamente do modo como lemos os evangelhos
da infância com incidência direta na prática cristã. Caso exemplar é o lugar de Maria nas diversas tradições
eclesiais. No catolicismo, por vezes, a meditação sobre Maria se distancia do que nos é apresentado por Lc 1-2 e
em outras tradições cristãs não é dado o lugar à pessoa de Maria nem mesmo no que encontramos nas Escrituras.
Vamos tenta abordar as narrativas dentro da realidade em que surgiram, isto é, dentro da tradição
oral, enraizada na tradição judaica, acostumada a contar a história de sua fé através de narrativas como as da
infância de Jesus. No mundo judaico do I século, as narrativas da infância dos patriarcas, de Moisés e outros
personagens ilustres da tradição, recebiam um tratamento muito especial e eram muito usadas. Este fato, por si
só, traz profundas consequências para o nosso tema. Ao falar das origens de Jesus, os evangelistas não inventaram
a linguagem utilizada no seu meio ambiente. A Encarnação do Filho de Deus se fez dentro de uma cultura, com
suas tradições e modos de expressar o mistério. Para os judeus os textos da Escritura são vivos, graças ao Espírito
de vida que os anima, e porque ela é Palavra do Deus vivo, deve responder vitalmente a cada nova situação
histórica Uma maneira de fazer isto acontecer, no I século, era através do midrash.
28
cf. C.Perrot, As narrativas da infância de Jesus: Mt 1-2 e Lc 1-2, Paulinas, 1982
Tradição Judaica no Novo Testamento
Cultura Judaica, História e Teologia
29
Já vimos que o midrash, em suas diferentes formas, é a procura do sentido da Escritura para o hoje
da época em que se está vivendo. É uma hermenêutica da Escritura. Uma boa maneira de defini-lo seria: “a busca
amorosa de Deus através da Palavra de Deus nas Escrituras”.
Relembrando: Midrash vem da raiz hebraico darash (‫ )דרש‬que significa explicar, interpretar, buscar,
perscrutar, etc. As duas formas mais comuns são o midrash halakha e o midrash aggadá.
Midrash halakha, da raiz hebraica (‫ הלכ‬- halakh) - significar caminhar. No sentido figurativo é o
ensinamento que alguém segue e por ele é guiado. Halakha é, pois, o caminho da vida judaica de acordo com a
Torá escrita e oral. Fundamentada na experiência do dia a dia, ela está ligada ao real e não é uma justaposição de
conclusões longínquas. A essência da Torá oral é a halakha e ocupa lugar de primeira importância na literatura
judaica, na vida e pensamento no período do II° Templo. Por definição, halakha é uma tradição normativa que
apoia seu ensinamento nas Escrituras e por isso se reveste de autoridade divina. Disto decorre a impressão que
temos de que ao tratar da halakha se olha a essência da Torá oral.
As origens da halakha se encontram nas Escrituras que a confirmam sobretudo a partir da época de
Esdras e Neemias, ou seja a partir da ‘volta’ do exílio da Babilônia. No período que chamamos nos meios cristãos
de intertestamentário’ e que na tradição judaica recobre o período do IIº Templo, vamos encontrar o
desenvolvimento que se dá em termos de halakha sobretudo nos escritos a partir da época de Antioco Epifanes e
no período dos Asmoneus29.
Midrash aggadá - aggadá vem da raiz higgid (‫ )הגיד‬que quer dizer contar ou narrar. Este tipo de
midrash reúne as atualizações bíblicas, muitas vezes edificantes, feitas a partir das Escrituras e de numerosas
tradições orais, falando de personagens do passado, que permanecem modelos para o povo. No meio dos essênios
e dos cristãos, insistiu-se muito no midrash aggádico como cumprimento das Escrituras.
Instrumento de educação do povo, o midrash aggadá é um meio para fortificar a fé e aumentar a
esperança a partir da Torá. Ele representa também a capacidade de desenvolver novos métodos exegéticos
destinados a dar uma nova compreensão das Escrituras em um tempo de crise e de conflito externo sob a pressão
que se verifica em meio a culturas estrangeiras, e internas quando se desenvolve um espírito sectário no meio do
povo judeu. O período mais florescente da aggadá coincide com as grandes catástrofes históricas, especialmente
após 70 eC. Portanto um dos principais objetivos da aggadá é ensinar à pessoa viver os caminhos de Deus e de
ajudá-la a compreender como Deus se revela na nova situação.
O tipo de midrash mais utilizado nas comunidades essênicas e mais tarde pelas comunidades dos
nazarenos, foi o midrash pesher. Considerando que os últimos tempos já tinham chegado, os essênios acreditavam
possuir a chave última e definitiva da interpretação das Escrituras. Logo, tudo era identificado com o presente
comunitário, tanto pessoas como acontecimentos. Em Qumrã os essênios reliam os profetas e identificavam todos
os pormenores com a vida presente que se vivia.
Nos relatos da infância encontramos muitos elementos de midrash aggadá com as citações bíblicas
em Mt 1-2. Em Lucas vamos encontrar também o midrash antológico nas orações e muitas vezes o midrash
pesher, que é a atualização direta do texto para o acontecimento presente. Do mesmo modo em Lc 24,27 Jesus
explica aos discípulos de Emaús “...começando por Moisés e por todos os profetas, o que dizia a seu respeito em
todas as Escrituras...”, utilizando o método midráxico. Lucas usa também procedimentos literários do meio
heleno-cristão, como é o caso do paralelismo, que já havia sido assimilado pela tradição judaica.
A atualização das Escrituras acontecia nas sinagogas, muitas vezes durante a semana, mas sem
dúvida aos sábados. Quando lemos o livro de Atos, encontramos Paulo que chega sempre para o serviço da
sinagoga no sábado e é convidado a falar para os judeus. Somente quando os judeus não acolhem o seu discurso
que ele se volta para os estrangeiros, no caso gregos e romanos.
A sinagoga muito antes da época de Jesus é o lugar em que se faz a leitura e a releitura da Palavra
de Deus. Como diz Charles Perrot, havia “uma concordância viva” da Bíblia30. As primeiras comunidades cristãs
usaram os mesmos processos de leitura e atualização das Escrituras e assim começaram a meditar sobre o
nascimento de Jesus colocando-as em relação com outras narrativas de nascimento e de outras tradições
29
No livro de Judite encontramos a questão de conversão de Aquior (Jt 14,10) e que supõe uma grande evolução da halakha assumida no
tempo de Esdras e Neemias a respeito dos estrangeiros e também a nova realidade histórica do helenismo. Fala-se também do jejum na
viuvez e na época das festas (Jt 8,6) da imersão após o jejum (10,1 –3). No livro dos Jubileus encontramos uma abordagem mais restrita
do que a halakha dos fariseus sobre a questão da páscoa. O autor do livro de Jubileus segue a tradição mais antiga (Jubileus
7,36;19,17;32,10-14; 49, 10-12.16-20). Nele também se encontra a menção do calendário de 364 dias (Jubileus 6, 32 – 38). Em 1Mc 2, 39
– 41 encontramos a halakha sobre a autodefesa em caso de ataque de guerra em dia de Sábado.
30 cf. C. Perrot, op. cit. p.18.
Tradição Judaica no Novo Testamento
Cultura Judaica, História e Teologia
30
midráxicas da época. Para o cristão da época em que foi escrito o nascimento de Jesus, o nascimento de Jesus em
Belém resumia todas as narrativas da infância existentes.
Para nós hoje o processo parece pouco histórico, no entanto para os cristãos do século I, recusar o
caráter midráxico para falar da infância de Jesus seria recusar ver em Jesus a realização plena da Palavra de Deus.
Para o judeu o comentário parte das Escrituras e volta para as Escrituras. Na releitura cristã, Jesus Cristo cumpre
as Escrituras, logo, as Escrituras só podem falar de Jesus. É da pessoa de Jesus que se vai às Escrituras e de lá se
volta. Mateus e Lucas vão buscar nas Escrituras os sinais, os modelos de uma vocação que cumpre todas as
vocações.
5.1.1 - Narrativa da infância em Mateus
Mateus descreve sua narrativa em três blocos:
1) Uma genealogia 1,1-17;
2) Uma narrativa de anunciação: anunciação a José 1,18-25
3) Uma narrativa do tipo aggádico da perseguição de Herodes onde encontramos:
 2,1-12: a visita dos magos;
 2,13-15: fugas para o Egito;
 2,16-18: massacre dos inocentes;
 2,19-23: estabelecimento em Nazaré.
Não podemos separar estes dois capítulos de Mateus de todo o seu evangelho. Há expressões
semelhantes que encontramos no início da narrativa e que serão retomadas no final do texto, por exemplo:
 “Rei dos judeus” 2,2 e 27,37;
 Emanuel, Deus conosco e “Estou convosco” 1,23 e 26,28;
 O tema da adoração 2,11 e 28,17;
 O Espírito 1,18-20 e 28,19;
 As ordens de 1,24 e 28,20;
 O universalismo religioso 2,1-12 e 28,19.
Portanto para poder entender bem a infância de Jesus no evangelho de Mateus é preciso ler todo o evangelho na
perspectiva de Mateus que apresenta Jesus como novo Moisés.
5.1.2 – A genealogia de Mateus
Quando entramos num edifício ou numa igreja, ou qualquer construção arquitetônica, temos primeiro
uma visão de conjunto e depois podemos nos deter nos detalhes. Mateus construiu seu evangelho como um
arquiteto que faz sua obra prima. No interior desta arquitetura encontramos a dinâmica da caminhada de fé
proposta por Mateus.
Em Mt 1-2, vamos ver que ele nos apresenta o Messias esperado. Sendo coletor de impostos Mateus
é judeu e sua comunidade é uma comunidade judia. Um judeu que escreve a boa nova para judeus cristãos. Mateus
é o evangelista que mais cita as Escrituras judaicas: 108 versículos, e outras vezes toma como modelo o que há
nas Escrituras judaicas como já tivemos ocasião de falar sobre o modo literário, seu vocabulário, etc.
Tanto no evangelho de Mateus, como também no evangelho de Lucas devemos estar sempre atentos
a dois níveis:
1) Palavras e atos do tempo de Jesus;
2) Palavras e atos após a ressurreição.
Não podemos esquecer que o entrelaçamento da tradição escrita e da tradição oral é vital e
característica do judaísmo, assim como será nas comunidades nascidas desta realidade: por exemplo em 28,19
temos uma igreja que batiza após a ressurreição.
Mateus vai nos falar do projeto de Deus. Quando falamos de projeto devemos nos colocar na
perspectiva judaica: esse começa com a criação que saiu das mãos de Deus. Deus vai se revelar, manifestar e
mostrar seu amor.
Quando queremos falar do amor é preciso mostrar com algumas pessoas como nós amamos. É
preciso concretizar esta ação. Deus fez assim - escolheu um povo pequeno para mostrar através destes poucos
como ama todos os povos e todas as pessoas, homens e mulheres. O amor não tem razões, é gratuito - Deus vai
Tradição Judaica no Novo Testamento
Cultura Judaica, História e Teologia
31
mostrar a este pequeno povo como Ele a ama. O primogênito carrega consigo a esperança de todos. O primogênito
mostra que há lugar para uma multidão. Apesar das limitações este primogênito é amado. Para mostrar isso Deus
faz uma Aliança - é uma eleição que lhe dá uma missão de fazer compreender o amor de Deus por todas as pessoas.
Assim, quando olhamos para Israel vamos descobrindo o projeto de amor de Deus, como ele ama
este filho primogênito e como Deus se comporta com esse seu filho quando o seu filho não se comporta bem. Esta
é toda a história das Escrituras judaicas. Deus já está presente com seu povo o tempo todo. Deus está aí e
acompanha seu povo em todas as situações: no Egito, na Terra, no Exílio, na Volta do exílio, jamais Deus
abandona seu povo. O que Deus fez uma vez, fará tantas vezes quantas forem necessárias, para todos, para cada
pessoa em particular, sempre. Assim sendo Deus vem de uma maneira mais completa, vem habitar em nosso
meio: a grande novidade, a encarnação.
De agora em diante não somente Deus está presente, mas está no meio de nós como Mateus nos diz
em 1,18-25: como homem, Jesus é um homem, tem um pai, uma missão, um lugar para morar: enraizado na
família humana, mas ele é o Senhor da história.
1) A genealogia 1,1-17 dará sentido a toda a história.
2) Onde começam as Escrituras cristãs em Mt? Em Abraão, começa com o livro das origens: gênese de Jesus,
Messias vai até Davi e chega a Abraão. Portanto para Mateus as Escrituras cristãs começam em Abraão.
Em Mt. 1,1-17 temos uma grande lista de nomes. Muitas vezes achamos que é difícil e nem prestamos
muita atenção, afinal para que servem? É uma genealogia que dá sentido à toda a história. Mateus quer nos contar
a história de Jesus através de seus antepassados, por isso ele começa seu evangelho dizendo: “Livro das origens
de Jesus, filho de Davi, filho de Abraão”. As Escrituras judaicas será o fundamento de nossas raízes históricas de
fé. É preciso amar esta genealogia. São pessoas de nossa família em todas as gerações. Todos fizeram alguma
coisa na caminhada de fé. Jesus é da linhagem de Abraão. Os primeiros 11 capítulos do Gênesis nos contam em
parábolas a origem da humanidade. A partir do capítulo 12 se inicia a história do chamado de uma pessoa: Abraão
Pai dos crentes.
Com a genealogia apresentada por Mateus coloca-se em evidência a origem histórica do personagem
esperado há muitas gerações pelo povo judeu - o Messias. Desenvolvendo a história das promessas messiânicas,
Mateus afirma que Jesus vem da linhagem de Davi, depositária da promessa feita a Abraão (Mt1,2) renovada com
o rei Davi (Mt 1,6), mantida após a provação do exílio (Mt 1,11-12) e que se realiza enfim por Jesus e em Jesus
(Mt 1,16). E Mateus conclui dizendo que o número das gerações é 14 de Abraão a Davi, 14 de Davi até o exílio
da Babilônia e 14 do exílio até Jesus, o Messias. Através do número 14 Mateus indica mais uma vez que Jesus é
filho de Davi, pois em hebraico a soma dos números das letras de David (‫ )דוד‬é l4, as vogais não contam. D = 4
e V = 6, logo 4+6+4 = 14.
O projeto de Deus se realiza na história através de etapas. Israel sempre soube que deveria anunciar
este projeto de Deus para todas as nações da terra. Quando encontramos em Mateus, Jesus, seus pais, sua família,
uma nova luz ilumina nossa fé, um caminho novo se abre através do primogênito Israel, através de quem Deus
falou primeiro. A maneira que Mateus encontrou para nos falar que há uma unidade nas Escrituras que vai desde
o Gênesis até Jesus.
Jesus se fez gente neste povo e é no meio deste povo que Jesus aprendeu as coisas de Deus. Ele
cresceu como toda pessoa humana e tudo o que aprendeu foi na tradição do seu povo. Para o judaísmo, a história
passa pela geração, e ao fazer a genealogia de Jesus Mateus acrescenta o nome de 5 mulheres: Raab, Tamar, Rute,
a mulher de Urias e Maria mãe de Jesus. Isto é uma grande novidade, pois na época o importante para a genealogia
eram os homens embora a descendência fosse determinada pelas mulheres. Isto é realidade para o judaísmo até
os dias de hoje. Justamente a estas mulheres nós chamamos carinhosamente de “avós de Jesus” e vamos falar de
cada uma delas de modo especial. Todas foram mães em situações irregulares.
A primeira mulher que aparece é pois Tamar (Mt 1,3). Nós encontramos sua história no livro do
Gn38. As tradições judaicas fazem de Tamar o modelo da fidelidade por ter assegurado a descendência de Judá,
que será a tribo de Davi, e, portanto, antepassada do Messias.
A história de Tamar mostra a escolha de Deus pelos pequenos e marginalizados, esquecidos, que
levam para frente o projeto do Deus da Vida. Vemos que Judá, o chefe da família, é quem toma as decisões. Ele
escolhe Tamar como esposa de seu filho primogênito Her e ele morreu sem deixar filhos. Segundo as leis de Israel
isso significava que seu nome deixaria de existir. Para que o nome de alguém não desaparecesse havia a lei do
levirato que dizia:
“Quando dois irmãos moram juntos e um deles morre sem deixar filhos, a mulher do morto não sairá para
casar-se com um estranho à família; seu cunhado virá até ela e a tomará, cumprindo seu dever de cunhado.
Tradição Judaica no Novo Testamento
Cultura Judaica, História e Teologia
32
O primogênito que ela der à luz tomará o nome do irmão morto, para que o nome deste não se apague em
Israel” (Dt 25,5-6).
Aconteceu que Onã, cunhado de Tamar, não quis engravidá-la e morreu. Judá com medo de perder
o terceiro filho manda a viúva Tamar de volta para a casa de seu pai com a promessa de que lhe daria seu filho
em casamento quando chegasse o tempo. Tamar volta para a casa do pai mas espera em vão que Judá cumpra a
promessa como mandava a lei.
Tamar sabe quais são os seus direitos nesta sociedade e vai lutar por eles através de uma cilada bem
preparada para seu sogro Judá. Para tanto, Tamar coloca sua vida em perigo como adúltera (cf. Lv 20, 10.12) para
poder realizar o que prescrevia a lei ou seja: suscitar um nome, uma descendência para seu marido. Ela não tem
medo de arriscar sua vida. Procurada como prostituta, não é encontrada, pois em sua cidade não havia prostitutas,
o texto bíblico o afirma por 3 vezes (cf. Gn 38,20-23).
Tamar não é prostituta, o que fez foi usar uma estratégia para que seu sogro cumprisse a promessa
feita. A cidade de Tamar era pequena e logo sua gravidez foi percebida e o povo levou a notícia a seu sogro que
imediatamente diz: “Tirai-a fora e seja queimada viva”
(Gn 38,25). Mas em toda a história Deus está do lado de Tamar e o próprio Judá vai dizer que ela é
justa e ele não (cf. Gn 38,26).
A vida que brota no seio de Tamar, é uma benção, nascem gêmeos, vida em abundância para a pobre
e oprimida por ser mulher e viúva. Deus a protege. Tamar, a justa, entra com pleno direito entre as grandes
mulheres que lutaram para preparar, em Cristo a plena realização do projeto de Deus.
A segunda mulher que encontramos na genealogia é Raab (Mt 1,5) uma estrangeira, prostituta de
Jericó. Sua história nós encontramos em Js 2,1-21 e 6,17-25. Ela é mencionada na carta aos Hebreus 11,31 e na
carta de Tiago 2,25. Esta mulher estrangeira acolhe os espiões israelitas no momento da entrada da terra
prometida. Em sua profissão de fé (Js 2,9-13). Raab mostra não só que Deus existe mas fala também da ação e
poder de Deus tanto no céu como na terra. Na tradição judaica ela é louvada como prosélita, pois na circunstância
do encontro com os israelitas professa sua fé no Deus de Israel e um midrash diz que o “Espírito Santo pousou
sobre ela”. Alguns rabinos a consideram esposa de Josué e Mateus a coloca como mãe de Booz, sublinhando sua
importância na contribuição messiânica da história na linhagem davídica. Mais uma vez encontramos a mulher
lutando em favor da vida, pela vida de toda a sua família. Como diz Maria da Glória: “Raab ganhou um lugar para
si: defendeu a vida... prostituta e estrangeira, pela fé e pelas obras, Raab passa a fazer parte do povo de Deus”31.
A terceira mulher que encontramos é Rute (Mt 1,5). Conhecemos a história de Rute pelo livro bíblico
que traz seu nome. Sua história é contada em uma pequena novela de quatro capítulos onde descobrimos que esta
estrangeira moabita deixa sua terra para acompanhar a sua sogra, assume o mesmo compromisso do povo de
Israel. Como Tamar ela vai viver a lei do levirato.
A situação do povo na época de Rute estava muito difícil - tempo de fome. Por causa da fome sua
sogra Noemi saíra de Belém em Judá para viver em Moab com seu marido e dois filhos procurando uma vida
melhor. Mas em Moab para Noemi a vida trouxe outras provações. Perdeu o marido e seus dois filhos, que lhe
deixaram duas noras estrangeiras sem filhos. Nesta situação, sem dúvida, Noemi estava se sentindo miserável e
fracassada. Seu nome doçura passa a ser Mara, a amarga. Mas ela não desiste de lutar por uma vida melhor. Toma
a decisão de voltar para Belém e suas noras desejam segui-la32. Noemi, porém, não ilude Orfa e Rute e mostra
que a situação de pobreza vai continuar. Rute cujo nome significa ‘amiga’ diz para Noemi:
“Não adianta insistir comigo para que eu te deixe. Pois para onde fores, eu também vou; onde for tua morada,
será também a minha. Teu povo será o meu povo. Teu Deus será o meu Deus! Onde morreres, quero eu
também morrer e ser sepultada. Juro! Deus é testemunha e me castigue se outra coisa, a não ser a morte, me
separar de ti” (Rt 1,16-17).
Noemi acolheu a decisão de Rute e elas chegam a Belém na época da colheita. Era costume em Israel
deixar nos campos parte da colheita para os pobres e estrangeiros. É como pobre e estrangeira que Rute vai
respigar nos campos de Booz, parente mais próximo do seu marido. Ficando com Noemi, Rute optou por ser
pobre como Noemi, um compromisso de vida e fidelidade e assim entrou na história do povo de Deus.
Por sua fidelidade à parentela judaica ela prepara Davi, será avó de Davi (Rt. 4,29). Obed, filho de
Rute gerou Jessé e Jessé gerou Davi. Na tradição judaica até hoje o livro de Rute é lido na festa de Pentecostes
(Shavuot), pois sua história se passa no tempo da colheita, época da festa, mas sobretudo ela lembra a todos a
31
M. da Glória Ladislao. As mulheres na Bíblia, Paulinas, 1995, p.87
O livro de Rute critica a reforma de Esdras e Neemias sobre o casamento com mulheres estrangeiras e tenta mostrar que a fé no Deus
UM é suficiente para se tornar parte do povo de Israel.
32
Tradição Judaica no Novo Testamento
Cultura Judaica, História e Teologia
33
importância de lembrar na vida cotidiana o lugar do pobre:“Não endurecerás teu coração e nem fecharás tua mão
para teu irmão pobre...” Dt l5,7-11).
As pesquisas atuais sobre a composição do livro o colocam na época da volta do exílio e exalta a
inclusão da mulher estrangeira na vida judaica. Em nosso cancioneiro popular lembramos constantemente a
descendência de Rute, pois cantamos que “de Jessé nasceu a vara, da vara nasceu a flor e da flor nasceu Maria e
de Maria o Salvador...” e muitas vezes nem nos damos conta de todo o passado que relembramos na canção
popular!
A quarta mulher aparece em Mateus como - a mulher de Urias. Mencionada sem que seu nome
apareça. Trata-se de Bersabéia, mãe de Salomão. Encontramos sua história no 2Sm 11-12 e 1Rs 1,11-40, quando
junto com o profeta Natã pede a Davi o trono para seu filho Salomão. Bersabéia foi uma mulher vítima das
circunstâncias. O rei que tinha direito de vida e morte sobre as pessoas e exige sua presença. Torna-se mãe,
assegura a linhagem davídica através de seu filho Salomão, luta pela sucessão do trono para seu filho, e assim
aparece na genealogia de Mateus.
Estas quatro mulheres são geradoras de vida e estão a serviço da vida na linhagem da promessa de
Deus. É fácil constatar que a maternidade destas quatro mulheres passa por irregularidades. Isto nos mostra que o
plano de Deus foge dos nossos planos e é feito de surpresas. Diríamos que obedecendo a vida elas se submetem
espontaneamente à ação do Espírito Santo. A vocação destas mulheres anuncia a vocação de Maria, a última
mulher nomeada na genealogia, que também aparece com uma irregularidade. Até então na genealogia são
nomeados os pais e no versículo 16 Maria toma o lugar do pai e é dito se: “Maria de quem nasceu Jesus”. Maria
toma o lugar do pai, ela gera a vida e Mateus vai explicar porque isto acontece no texto que segue de 1,18-25, o
anúncio feito a José de que Maria está grávida do Espírito Santo.
A presença das mulheres na genealogia de Mateus manifesta que o caminho do Messias (O Cristo)
passa pela autêntica linhagem Davídica que inclui todos, entre elas encontramos estrangeiras que aderiram ao
Deus de Israel e por sua fidelidade contribuíram para a chegada do Messias. Assim a genealogia passa a ser a
história concreta de que em Jesus se encontram todos aqueles e aquelas que abraçam o projeto do Deus da vida,
que viveram e vivem na esperança da realização das promessas de Deus.
Na genealogia de Mateus encontramos a exclusão de uma mulher - Atalia (2Rs 8-14; 2Cr 22-25) e
com ela a supressão dos reis Ocozias, Joas e Amasias, reis que morreram pela “Mão de Deus” (cf. 2Cr 22,9;
24,25; 25,27). Atalia (2Rs 11; 2Cr 22-23) extermina a descendência real, é excluída com seu filho, neto e bisneto,
encurta a maldição do decálogo (Ex 20,5; Dt 5,9) contra os idólatras, até 3ª e 4ª geração (Ex 34,7).
5.1.3 - Mt 1,18-25 e o anúncio do nascimento de Jesus33
Em Mt 1,18-25 temos uma aparição, anunciação de nascimento 34 típica: Aparição; perturbação;
mensagem; questão; sinal.
O modo de Deus se manifestar é o mesmo pelo qual se manifestou a seu homônimo José em Gn 37,5
-9.19, que é o símbolo da fecundidade do povo (cf. Gn 49,22-26 e Dt 33,13-17).
Qual é o papel de José? Ele é descendente da linhagem do justo nas Escrituras judaicas: Noé (Gn
6,9) caminha com Deus; Abraão (Gn 15,4-6) acreditou em Deus e isto lhe foi contado como justiça. José vai
seguir este caminho, pois o que fará e o que lhe é pedido fazer não é a justiça segundo a Torá, pois a Torá diz que
se deve repudiar a noiva adúltera (Dt 22,13-21; 22,23-27).
Ele é justo porque diante de Maria toma uma decisão de clemência que revela não somente a sua
sabedoria como também o domínio de si mesmo e muito mais ainda uma benevolência de misericórdia. E isto é
verdadeiro no primeiro nível de leitura, mas para a comunidade de Mateus a preocupação é muito mais teológica
e José é o ‘justo’ que sintetiza todos os justos das Escrituras judaicas em sua pessoa.
Para Mt a concepção da criança pelo Espírito Santo é um fato adquirido, pois no v.18 isto é
mencionado como fato consumado. Ele não se preocupa em falar e explicar claramente sobre este fato como faz
Lucas. O texto sugere que José já sabe disso à semelhança das maternidades mencionadas anteriormente na
genealogia: docilidade ao Espírito e uma participação profética no desígnio de salvação sobre a humanidade.
Sobre esta perícope, dois artigos interessantes: Pedro Lima VASCONCELOS, “Uma gravidez suspeita, O messianismo e a hermenêutica
– anotações sobre Mt 1,18-25”. In: Ribla, n° 27, Vozes, 1997, pp.29-47; Jane SCHABERG, “As antepassadas e a mãe de Jesus”. Concilium,
n° 226, 1989, pp. 117-125. Anne Catherine AVRIL In Ribla nº 40...
34 cf. sobre a questão de a anunciação ver nesta apostila.
33
Tradição Judaica no Novo Testamento
Cultura Judaica, História e Teologia
34
Entre os gregos e egípcios, a concepção da mulher e a divindade é conhecida. Em Israel o Espírito
preside a criação (Gn 1,2), faz renascer o povo como na visão dos ossos dessecados em Ez 37,1-14 e suscita no
povo um poder de vida absolutamente novo (Is 44,3-4). Com o Reino de Deus aparecendo na pessoa de Jesus, o
poder criador do Espírito se revela em sua plenitude.
Em seguida ao anúncio do nascimento para José, e após o nascimento virginal e davídico, Mt anuncia
a sua missão de salvação numa aurora de luz e sofrimento com três episódios. Ele dá o mesmo ensinamento de
Lc que encontramos nos lábios de Simeão, ou seja: apelo de salvação dado aos pagãos através da visita dos magos
e a crise e contradição em Israel com o massacre dos inocentes, a fuga para o Egito e a vida obscura em Nazaré.
Os episódios são centrados em textos escriturísticos obedecendo ao gênero literário midráxico.
Na narrativa da infância, Mateus nos coloca diante de uma série de perguntas:
 Que significa a presença de Jesus?
 Como se situar diante dele?
 Qual é o impacto de sua vinda na história de Israel e das nações?
Embora não seja o tema central do evangelho de Mt. há um movimento antitético que vai percorrer
todo o evangelho com a recusa dos judeus e o acolhimento dos pagãos até no relato da paixão em 27,39 – 44.54
e da ressurreição 28,11-15. A salvação dos pagãos no Primeiro Testamento é anunciada em Gn 12,3; Is 2,2-5;
19,6-25; 45,14-17; 45,20-25; 66,18-21; Sl 47 etc. isto para dar alguns exemplos. Há livros inteiros que falam sobre
o mesmo tema como o caso dos livros de Jonas e Rute.
5.1.3 – Mateus 2 e os magos que procuram Jesus
O capítulo 2 de Mateus pode assim ser dividido:
1) 2,1-12: Reis pagãos chegam a Jerusalém;
2) 2,13-18: A fuga para o Egito e massacre dos inocentes;
3) 2,19-23: A volta à Nazaré.
Em 2,1-12 encontramos os primeiros contrastes, tanto os magos como Herodes procuram:
Magos procuram o rei.
Herodes procura o Messias.
Os magos adoram v.10.
Herodes quer adorar v.8.
Os magos (pagãos) acolhem o menino Jesus. Herodes e Jerusalém não o aceitam o menino.
Jesus, rei dos judeus.
Herodes, rei.
Descoberta do Salvador.
Escritura velada.
Vamos observar como os magos colocam a questão em 2,2:
 Eles procuram pelo rei dos judeus - o título Messias é conhecido só pelos judeus, logo falar do “rei dos judeus”
é um modo de falar dos pagãos. Vamos encontrar este mesmo título na boca de outro pagão, Pilatos, no
momento do processo de Jesus em 27,11. Assim, são sempre os pagãos que falam “Rei dos judeus”.
 O título Messias aparece na boca dos representantes do povo judeu. A mesma questão aparece com duas
respostas:
 O rei Herodes pergunta e a resposta dos judeus vem com linguagem religiosa e rei = reinado, o Messias que
traz toda a esperança messiânica.
 Algo que deve ser notado ao longo de todo o evangelho de Mateus é o tipo de linguagem bíblica como o
emprego da partícula EIS (idou) do grego que corresponde ao “hine” (‫ )הינה‬do hebraico. Quando a Escritura
emprega “hine” haverá uma surpresa, uma Intervenção maravilhosa de Deus, verifica-se algo fora de comum.
 Em 2,11, os magos vieram do Oriente à Jerusalém. Para aquele que crê, Jerusalém é o centro do mundo (cf.
Sl 87(86). Portanto, acontece uma grande virada na história, pois eis que os magos vieram, isto é, os pagãos
estão a caminho de Jerusalém. Esta visão traz em seu bojo a visão judaica do fim dos tempos ou mesmo fim
do mundo. O sucesso do projeto de Deus começa a ter lugar quando for reconhecido pelos pagãos que vierem
à Jerusalém para cantar com o primogênito conforme diz Is 66,18-18; ou mesmo em Is 56.
 Em 2,9 encontramos novamente EIS que o astro que tinham visto no Oriente. Uma estrela que marca o
caminho é aqui o extraordinário. Estrelas se vêem à noite, no entanto os magos do país do sol - oriente - estão
caminhando na noite e têm necessidade de ser guiados por um elemento da natureza - buscando o rei dos
judeus - que os sacerdotes chamam de Messias. Mateus fala de um recém-nascido que nunca está sozinho,
mas com Maria - filho de Maria, rei dos judeus.
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35
Mateus começa nos dizendo que há uma boa notícia para os pagãos - Israel já conhecia está boa
notícia - agora os pagãos que se colocam a caminho precisam passar por Jerusalém para encontrar o menino e sua
mãe. O caminho de todo pagão para chegar até o menino passa por Jerusalém - é preciso interrogar o povo para
descobri-lo. Quando os magos encontraram o menino deram presentes, isto é, entregaram todas as suas riquezas.
E eles não voltaram pelo mesmo caminho, porque quando se encontra Maria e o menino não se pode voltar atrás,
não se volta pelo mesmo caminho, é preciso ir sempre para a frente, é um caminho novo que se abre.
Quando encontramos Jesus, seus pais, sua família, uma nova luz ilumina o caminho novo, através
do primogênito, para quem Deus falou primeiro. Esta é a maneira pela qual Mateus encontrou para nos falar da
unidade das Escrituras. Jesus se fez gente neste povo, é nesse povo que vai aprender as coisas de Deus. Ele não
tinha ciência “infusa” - possuía, isto sim, uma visão acurada de Deus. Jesus cresceu como toda pessoa humana e
tudo o que aprendeu foi na tradição do seu povo, que é sempre escrita e oral - tudo o que os mestres ensinavam.
Deus fala às pessoas para que caminhem na Torá que é caminho de vida e é importante para a prática,
para ajudar o povo a compreender. Deveria haver de nossa parte, um reconhecimento para com o povo judeu que
através da história por sua vida guardou esta Palavra para nós. Quanto mais conhecemos a tradição judaica melhor
conheceremos o ensinamento de Jesus, não há ruptura - o que faz a ruptura é Jesus Messias, Filho de Deus questão da messianidade e da divindade de Jesus.
A estrela mencionada por Mt lembra a profecia feita pelo “profeta” pagão Balaão em Nm 24,17. Ao
mesmo tempo a estrela é uma metáfora muito comum no Antigo Oriente para falar da Providência Divina. O
nascimento de cada pessoa é um grande acontecimento, tão grande que aparece mais uma estrela no céu. A
metáfora da estrela para o Rei Messias era comum na época a partir do Targum Palestinense, Testamento de Levi.
Assim Mt incorpora no seu midrash um dado importante na tradição oral no que se refere ao Messias, acrescido
dos oráculos que falam de menino: cf. Is 6,14; Mq 5,1-3; Os 11,1; Jr 31,15.
Ao dizer isso não se pode esquecer que são judeus os que fundaram a Igreja - entraram neste
movimento que se chamava no princípio - caminho novo – eram nazarenos, seguidores do mestre Jesus de Nazaré.
No início judaico, este caminho novo, logo em seguida pagão. É preciso lembrar que a entrada massiva de pagãos
levou a Igreja judaica diminuir rapidamente e a Igreja pagã tomou o seu lugar de tal forma que a excluiu.
Até o século IV há duas denominações - Igreja dos gentios e Igreja da circuncisão. Nas Igrejas de
Roma é comum encontrar duas mulheres para simbolizar a Igreja dos gentios com Paulo e a Igreja da circuncisão
do lado de Pedro. Com o desaparecimento da Igreja da circuncisão, desapareceram também nossas raízes.
Hoje, temos que fazer como os magos, voltar à “Jerusalém” e interrogar o povo para poder
compreender melhor o nascimento de Jesus de Nazaré.
Um último pensamento, toda pessoa que não tem raízes tem problemas de identidade. É preciso que
a Igreja redescubra suas raízes para poder melhor dar conta de sua própria identidade.
5.1.4 - Mateus 2,13-18 e a fuga de Jesus para o Egito
Em 2,13-18 a fuga para o Egito em Mt vai mostrar Jesus como filho de Israel em seu sentido pleno.
Em Os 11,1, Deus faz sair do Egito seu filho Israel. É muito importante ler este episódio iluminado pelo êxodo
do Egito bem como da infância de Moisés. Mateus vê, aponta com este episódio um primeiro traço que faz da
infância de Jesus, um cumprimento “tipológico” do destino doloroso de Israel.
Jesus, como Moisés (Ex 1,7-2,15) e o povo é perseguido, massacrado e salvo. É o que encontramos
em Ex 4,22-23; Jr 31,9: um chamado do país do cativeiro e junto com ele Deus chama todo um povo messiânico
que Jesus traz em si (1,1-7). Sua volta é a garantia messiânica da libertação (cf. Is 10,25-27;11,11-16; Mq 7,1415; Jr 16,14-15).
O massacre está também ligado ao exílio e a Moisés. A perseguição sempre foi a arma utilizada
quando os grandes sentem o seu poder ameaçado. Moisés foi perseguido pelo faraó (Ex 2,15) e a literatura rabínica
deu ao fato muita importância o que sem dúvida influenciou a piedade cristã sobre a infância de Jesus como novo
Moisés, tal como encontramos em Mt. O texto base para o massacre se encontra em Jr 31,15 (cf. Gn 33,9; 48,7),
túmulo de Raquel em Belém, em Gn 30,22.24; 41,52 o túmulo se encontra em Ramá. Ramá é o lugar dos efraimitas
e benjaminitas em Gn 35,16-18.
Em Jeremias esse choro é alusão ao exílio da Babilônia das tribos do norte, sobretudo de Efraim (Jr
31,6.9.18.20). Ramá foi o lugar donde partiram os comboios dos deportados (Jr 40,1). Esta dupla vertente permite
a Mt evocar ao mesmo tempo o massacre das crianças em Belém e a deportação do exílio da Babilônia. Portanto
a grande provação da história de Israel se reflete na existência da criança Jesus e a sua volta à terra Prometida: o
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segundo êxodo que encontramos nos profetas, sobretudo em Isaias, que reproduz o primeiro e anuncia o definitivo
na era messiânica exatamente com Jesus.
Tomando com seriedade o que é dito em Mateus sobre os dois anos, nos leva a deduzir que neste
tempo Maria, José e Jesus ficaram em Belém, sobretudo se admitirmos que para Mateus o domicílio normal de
José era Belém. É uma perspectiva diferente de Lucas que logo após a purificação, isto é, 40 dias depois, ele os
coloca em Nazaré. Contudo, podemos também pensar que “dois anos” é força de expressão em Mateus.
5.1.5 - Mateus 2,19-23: Jesus volta para Israel
No capítulo 2,19-23 temos a volta de Jesus à Terra de Israel. Aqui a semelhança com Moisés é
evidente, pois o versículo 20 retoma literalmente Ex 4,19; como Moisés, Jesus pode voltar porque os que queriam
matá-lo já morreram, texto plural como no êxodo.
Sobre a palavra “nazareno”. Primitivamente poderia ser o nome de uma “seita”. Em Mc e Lc a relação
é feita com Nazaré/Nazareno. Mt encontra uma etmologia fundamentada na Escritura: Nazir - Nm 6 e Jz 13,5;
Nezer: Is 11,1 morfologicamente diferente e que, no entanto, leva a pensar em natzur (particípio de natzur)
“guardado”, “ conservado” fazendo alusão ao servo de Is 42,6 e ao resto messiânico em Is 49,6, os “guardados “
de Israel.35
Assim em Mt, Jesus obrigado a se refugiar na obscuridade de Nazaré seria o “resto” humilhado que
volta do exílio, mas um “resto” preservado por Deus para que de seu seio jorre a salvação messiânica.
A seu modo, de maneira profundamente teológica, Mateus toca o pensamento de Lc sobre Maria a
filha de Sion em Sf 3,14ss (cf também Zac 9,9; Ez 14,17.21-23; 5,1-3; 6,3.8;12,14-16; 17,21; 23,10.25 ).
Podemos assim seguir a estrutura de Mateus que faz penetrar nas Escrituras através dos episódios da
infância de Jesus. Os textos básicos são conforme quadro abaixo:
Evangelho de Mateus
1,1-17
1,18-25
2,1-12
2,13-15
2,16-18
2,19-23
Tanak
1Cr 1,34; 2,1-15; 3,1-18; Rt 4,18-22
Is 7,14
Mq 5,1; 2Sm 5,2
Os 11,1
Jr 31,15
Com a citação “profetas”
Em Mateus, Jesus é o cumprimento da história humana: por um lado recapitulando a caminhada de
Israel e por outro lado atinge a busca das nações.
5.2 – O EVANGELHO DE LUCAS
5.2.1 – Lucas 1-2
Lucas tem profunda consciência de estar escrevendo uma “revelação”. Ele vai buscar suas expressões
na língua sagrada da LXX imitando o estilo bíblico das comunidades da diáspora. Usa expressões da Escritura a
fim de dar a sua narrativa uma apresentação mais arcaica, o que a seus olhos, lhe concede uma apresentação mais
autorizada. Esta maneira lucana de empregar a Escritura o diferencia de Mt. Mateus cita a Escritura usando a
argumentação própria da tradição oral judaica enquanto Lucas usa o fundo da Escritura, assumida pela
A raiz natzar significa ‘observar, guardar’, e o substantivo netzer que significa ‘rebento’, broto ou ramo. A raiz nezer significa
consagrar. Assim ‘nazoreu’ pode ser visto como um topônimo geográfico, de rmb - Natzarat, modo como se escrevia Nazaré em hebraico,
atestado por uma inscrição descobertta em 1962 nas escavações de Cesaréia de Filipe. A partir da raiz natzar a interpretação midráshica
sugere várias possibilidades: - pode ser compreendido como ‘resto de Israel’ segundo a raiz natzar; - o ‘rebento ou broto de Deus’ segundo
o substantivo netzer; - ou ainda ‘consagrado de Deus’ a partir da raiz nazar.cf. Mimouni, S.C., Les nazoréens. Recherche étymologique et
historique in: REVUE BIBLIQUE, n° 2, avril - 1998 p.222
35
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comunidade cristã sem citá-la explicitamente. Isto fica evidente nos cânticos que encontramos no prólogo de seu
evangelho.
Enquanto em Mateus encontramos a aggadá de Jesus-Moisés própria de uma comunidade judeocristã, em Lucas vamos encontrar a leitura bíblica da comunidade heleno-cristã, onde usando a Escritura, continua
a escrever a história sagrada, e tece a origem de Jesus como a figura profética de Samuel. Os dois primeiros
capítulos de Lucas fazem parte integrante de seu evangelho onde encontramos os mesmos temas e o mesmo estilo.
Seu prólogo é um prólogo cristológico que nasce da fé no acontecimento pascal da ressurreição.
5.2.1.1 – Exercício
1) Ler os dois primeiros capítulos de Lucas assinalando:
a) As citações onde aparece o Espírito Santo;
b) Sublinhar os títulos e as qualidades atribuídas a Jesus;
c) Tentar esboçar as linhas gerais da missão de Jesus.
2) Ao ler estes dois capítulos salta aos olhos e efusão do Espírito Santo que aparece:





1,15 João repleto do E.S.;
1,35 O E.S. virá sobre Maria;
1,41 Isabel está repleta do E.S.;
1,67 Zacarias está repleto do E.S.;
2,25-27 Simeão também cheio do E.S.
3) Ler Lc 1-2 marcando os títulos e qualidades atribuídas a Jesus:




Filho de Davi 1,27.32.69; 2,4;
Salvador 2,11; Cristo Senhor 2,11; cf 1,43;
O santo, o grande, a luz, repleto do E.S., Filho do Altíssimo, Filho de Deus.
O título Filho de Deus que resume a fé do evangelista é colocado nos lábios do anjo e é sempre pronunciado
na forma de revelação (cf. 3,22; 9,34. etc.).
4) Podemos também encontrar as linhas gerais da missão de Jesus:
 O nome de Jesus - Deus salva, será designado Filho do Altíssimo, descendente de Davi = Messias reinará
para sempre - 1,32;
 Filho de Deus - 1,35;
 Luz para a revelação dos pagãos e glória de Israel - 2,32;
 Sinal de contradição 1,34;
 Revelará a contradição de muitos corações 1,35.
5.2.1.2 – Exercício
1) Ler algumas narrativas de nascimento no Primeiro Testamento
a) Jz 13,8-25; I Rs 17,1ss;
b) Anúncios de nascimento: Gn 17,15-22; 18,9-15; 21,1-7 (Isaac); Jz 6,11-17 (Gedeão); Jz 13,2-25 (Sansão);
1Sm 1,9-20 (Samuel).
c) Reler as narrativas dos nascimentos de João e Jesus no evangelho de Lucas
d) Analisar uma das narrativas de Lucas buscando os elementos comuns às narrativas de anunciação que
encontramos nas Escrituras.
2) Elementos que podemos encontrar numa narrativa de anunciação
a) Situação dos personagens, são pessoas santas, ressalta uma dificuldade que muitas vezes parece insuperável:
esterilidade, idade avançada, etc.;
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b) Aparição do anjo de Senhor;
c) Susto provocado e a expressão “ não temas” (cf. Lc 1,13.30);
d) Anúncio da vinda, menção do nome e missão - uma expressão técnica que muitas vezes encontramos é EIS
(Lc 1,20.31);
e) Uma pergunta que levanta uma dificuldade;
f) Um sinal dado pelo mensageiro;
g) Execução do sinal e realização do anúncio.
Lucas usa um processo literário bastante conhecido na época, principalmente no mundo helenístico,
o paralelismo, processo utilizado especialmente para biografias de homens ilustres. Este método se introduziu
inclusive em Israel onde temos a história dos antigos mestres como Hillel e Shammai agrupados aos pares. Lucas
vai utilizar este procedimento para nos apresentar João Batista e Jesus.
5.2.2 - Paralelismo do nascimento entre João Batista e Jesus
Estrutura do paralelismo Lucano
 Anúncio do nascimento de J. Batista: 1,5 Anúncio do nascimento de Jesus
25
1,26-38
 Nascimento de J. Batista: 1,57-58
 Nascimento de Jesus: 2,1-7
 Circuncisão de J. Batista: 1,59-66
 Circuncisão de Jesus: 2,21-28
 Canto de Zacarias: 1,67-79
 Canto de Maria: 1,46-55
 Crescimento de J. Batista: 1,80
 Crescimento de Jesus: 2,40.51-52
 João Batista é profeta do Altíssimo que  Jesus é o Filho do Altíssimo (1,32), Filho de Deus (1,35),
Filho de precederá o Senhor preparandoSalvador, Cristo, Senhor (2,11). Luz que ilumina as nações
lhe os caminhos (1,7).
(2,32).
 A história de J.B começa no Templo  A história de Jesus começa em Nazaré (1,26).
(1,15).
 Prolonga-se na região montanhosa da  Passa pelo alto do país da Judéia (1,39), retorna a Belém (2,4).
(1,39).
 Acaba no deserto até o dia em que se  e termina por uma subida ao Templo (2,22.42)
manifesta diante de Israel (1,80).
5.2.3 - Raízes Judaicas da Infância de Jesus em Lucas
Para falar da infância e adolescência de Jesus como nos apresenta Lucas, devemos situá-lo dentro
do cotidiano da vida de uma família judia do primeiro século, na Galiléia, em Nazaré, um pequeno povoado que
nem figurava nos mapas da época, pois não produzia nada de importante para o comércio romano!
O fato de estar situado na Galiléia deve nos lembrar que o Templo fica longe de Nazaré - periferia.
Ele está situado em Jerusalém - centro. No entanto, Lucas nos diz que Maria e José foram obrigados a ir até
Jerusalém por causa do recenseamento, assim o início da vida do judeu galileu Jesus se dá na Judéia, em Belém,
não muito longe da cidade de Jerusalém.
Para os judeus um dos nomes mais frequentes para se falar da Palestina é Eretz - a Terra. A Terra
de Israel é a Terra por excelência e desde o tempo do rei Davi, Jerusalém tornou-se o coração da terra de Israel.
Por isso Eretz tem uma importância muito grande em toda a espiritualidade e a vida do povo judeu. Nesta “Terra”
tudo fica impregnado do divino, tudo é modelado pela história santa. O judeu não conhece teologia em forma de
dogmas para as verdades de sua fé. No entanto a ausência deste tipo de teologia não significa ausência de verdades
da fé. É na oração, no serviço a Deus que o judeu exprime estas verdades de fé, verdades tiradas da Revelação e
das Escrituras. Ele as exprime e as aprofunda dado que a liturgia, toda a liturgia é uma catequese.
1) A oração e a bênção
O judeu não apenas crê em Deus, como entendemos esta palavra atualmente. Ele constata a
presença de Deus na história e por isso crê, ou se é incrédulo, constata-se a não presença de Deus. No hebraico
Tradição Judaica no Novo Testamento
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antigo, do tempo de Jesus, não havia uma palavra para significar o credo. A palavra usada era emuna que implica
uma certeza. É desta raiz que vem a palavra Amem (comum a cristãos e judeus), que significa assim seja. Ela é a
marca da aceitação dos fiéis da vontade de Deus. Para o judeu do tempo de Jesus amem é justamente uma
expressão de constatação: assim é! O Deus de Israel, portanto, é um Deus que se pode constatar a presença, um
Deus imanente. Esta é a certeza vivida e experimentada pelos judeus em sua relação com Deus. Assim a
transcendência de Deus é também constatada pela aceitação de sua soberania sobre toda a criação.
As orações do menino Jesus estão, portanto, banhadas na certeza existencial e se inscrevem no
mundo real e concreto, mundo da presença de Deus e não numa fé abstrata. Sua experiência de Deus passa pelos
fatos materiais transfigurados pelo espírito sem deixar de ser naturais. O mundo das orações é ligado às vidas
cotidianas.
No dia a dia a benção (berakha) tem um significado muito importante e envolve toda a vida. Tratase de ‘santificar o Nome’, de transformar cada vez mais o mundo como lugar da manifestação de Deus. Assim
em Gn 12,1-3 vamos ver que a primeira missão dada a Israel em Abraão é de ser uma benção para todas as famílias
da terra. Cada ato da vida é abençoado - abençoa-se Deus pelo sono, pela água, pelos vizinhos, amigos, flores,
pássaros, enfim, cada pequena coisa da vida é abençoada. Isto leva a pessoa a lembrar que a criação pertence a
Deus e ao enunciar a benção ela se apropria desta criação como filho e filha de Deus.
Ao lado da realidade da benção que santifica a rotina do dia a dia, a Aliança (berit) vai nortear a
vida do povo e de cada membro do povo. As alianças são sucessivas, marcam as etapas da revelação divina à
medida que o ser humano pode captar e conhecer a Deus naquilo que Deus pode lhe confiar - ela se inicia com
Adão, passa por Noé e chega a Abraão que houve o apelo da radicalidade: “Vai, parte da tua terra...” (Gn 12,1).
Chegando ao Sinai o povo dirá “Faremos e obedeceremos ” (Ex 24,7). Cada nova aliança não apaga as que a
precederam, pois, cada aliança se cumpre no momento em que é realizada. As sucessivas alianças correspondem
a um momento diferente na eternidade, mas na eternidade elas se encontram na mesma continuidade.
Viver a aliança, santificar o Nome na rotina da vida se alia à ‘santificação do tempo’ que se realiza
por excelência no momento do Shabat - Jesus vai assimilar a santificação do tempo na vivência do shabat e nós
o vemos entrar muitas vezes na sinagoga durante sua vida. O sábado é o momento em que o menino Jesus penetra
materialmente e mais ainda espiritualidade segundo a Torá e a tradição oral, faz memória (zicaron) do momento
em que o Espírito de Deus interrompeu seu trabalho para contemplar a criação permitindo assim ao ser humano
de fazer o mesmo, suspender o trabalho para consagrar o seu tempo a Deus.
A vida religiosa de Jesus se desenrola entre dois pólos e cada um deles se expressa através das
bênçãos, o polo divino e o polo humano e os dois pólos contribuem ao equilíbrio entre profano e sagrado que
constitui o caráter essencial da religião de Israel.
2) O casamento dos pais de Jesus
O casamento de Maria e José foi celebrado segundo o rito judaico da época reforçou a pertença à
Torá de Israel. Ele era realizado em dois tempos: o noivado e o casamento propriamente dito. O noivado já era
um compromisso religioso, pois somente o divórcio poderia dar liberdade aos noivos. Ao aceitar Maria como sua
noiva, José havia tomado o compromisso de nutri-la, vesti-la e assegurar-lhe um teto. Um ano mais tarde, será
celebrado o casamento, com uma cerimônia que praticada no tempo de Jesus é evocada no Talmud e certos
elementos fazem parte ainda hoje do casamento judaico.
No momento da benção nupcial, o oficiante segurava uma taça cheia de vinho e pronunciava a
seguinte benção: “Bendito seja o Eterno, nosso Deus, Rei do universo, que criou o fruto da vinha. Bendito seja
o Eterno, nosso Deus, Rei do universo, que nos santificou pelos seus mandamentos e que nos ordenou à castidade,
que nos proibiu nossas noivas, mas que nos permitiu que nos sejamos unidos pelos laços do casamento precedidos
do noivado. ”
Em seguida os noivos bebiam um pouco do vinho consagrado pelo oficiante e que, em Nazaré,
poderia ser um habitante da aldeia, que conhecia o serviço divino. No momento em que o noivo passava o anel
nupcial no dedo de sua mulher, em presença de dois testemunhos ele dizia: “Vede, por este anel, você me é
consagrada segundo a lei de Moisés e de Israel.” Em seguida o oficiante pronunciava sete bênçãos relativas à
criação do ser humano imagem e semelhança de Deus, graça da fecundidade e dos filhos que nascerão e um desejo
pelo bem estar de todo o povo de Israel.
A cerimônia se terminava e até hoje se termina com o oficiante e os noivos bebendo algumas gotas
do vinho, derramando o resto e quebrando a taça e para o qual existem várias explicações: no tempo de Jesus
seria sinal de alegria enquanto hoje relembra a queda do Templo de Jerusalém. Também pode ser visto como
alegoria da indissolubilidade do casamento, pois os cacos de uma taça quebrada dificilmente podem voltar à forma
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primitiva. A cerimônia terminava com a recitação do salmo 45, que é interpretado como o canto de núpcias do
Rei Messias com Israel tanto na tradição judaica e que continua a ser assim interpretado na tradição cristã.
3) A circuncisão como sinal da aliança
Com este casamento nasce o fundamento da família onde deveria nascer Jesus. Através do casamento
se prepara a atmosfera sagrada na qual ele irá viver e onde ele mesmo, no momento do nascimento, receberá o
sinal da aliança, antes de ser purificado em companhia de sua mãe.
Lc precisa bem o rito da circuncisão Lc 2,21 “No oitavo dia, quando chegou o momento da
circuncisão do menino, deram-lhe o nome de Yeshua (Jesus)”. Nome que havia sido indicado pelo anjo no
momento de sua concepção. Em seguida vem a descrição do rito de purificação Lc 2,22-24 (cf. Lv 12,1-8).
O texto lucano que acabamos de lembrar é marcado pelo duplo cumprimento da Lei, como vimos
pela citação de Lv 12,1-8, circuncisão e purificação. Em seguida, temos mais duas cenas que se passam no Templo
durante a apresentação do menino e a purificação da mãe:
 De 2,25-35 temos a entrada em cena de Simeão, com a dupla benção sobre o menino e sobre a mãe;
 2,36-38 trata-se da intervenção de Ana.
4) A apresentação do menino ao Templo e as profecias de Ana e Simeão
Na narrativa de Lucas, os ritos de purificação e resgate estão misturados. Segundo a Lei somente a
mãe é purificada e aqui nós temos que os dois foram purificados. Por outro lado, ele centraliza a cerimônia sobre
a apresentação e resgate do primogênito (pedyon haben). O pano de fundo parece ser o episódio da consagração
de Samuel “apresentado” por sua mãe Ana no templo de Silo (1Sm 1,22-28. O episódio do encontro de Jesus no
Templo de Jerusalém mostrará que, mesmo se Jesus não ficou no Templo de Jerusalém após a apresentação, como
Samuel ficou em Silo, no entanto ele está irrevogavelmente devotado “ a seu Pai ”.
Segundo a tradição, sem dúvida palestina, seguida por Lucas, nós estamos chegando no final das 70
semanas de que nos fala a profecia do livro de Daniel, Dn 9,20-27. De fato, se contarmos a primeira semana no
momento da aparição do anjo Gabriel no santuário, a Zacarias (1,11) no momento da oferenda da tarde, teremos
o início do cumprimento desta profecia, com a chegada do Messias e a unção de “um Santo dos Santos” no
momento da apresentação de Jesus no Templo. Desta maneira a apresentação de Jesus em Jerusalém aparece
como a entrada do Senhor no Templo, predita por Ml 3,1 - “...ele entrará no Templo, o Senhor que vós
procurais...” e a “unção do Santo dos Santos” da qual fala o anjo Gabriel em Dn 9,24. Trata-se da última etapa
onde a criança é declarada santa para o Senhor (2,23), consagrada ao Senhor como o anjo havia anunciado (1,35)
“o que nascer de ti será santo”.
Para reconhecer nesta criança de pobres a “consolação de Israel” aparece o duplo testemunho
profético de Simeão e Ana. Com Simeão e a profetisa Ana, Lucas assegura o testemunho duplo exigido pela Lei
(Dt 19,15). Homem e mulher estão associados no reconhecimento da salvação, cada um à sua maneira. Todo
Israel vê se realizar sua esperança.
Esta revelação messiânica não se desenrola mais no campo, como no nascimento, em que os pastores
são os primeiros a receber a Boa Notícia. Aqui a cena vai se desenrolar no centro da Aliança, lá onde bate o
coração de Israel, diante da presença de seu Deus. Os destinatários não são mais os nômades pastores, mas os
círculos piedosos dos “pobres de YHWH” que esperam, no segredo da oração e do jejum, a “salvação preparada”
por Deus para o seu povo.
Em 2,9-15 a glória do Senhor irrompeu com o canto dos anjos. Aqui, ao contrário, vemos mais a
continuidade da caminhada histórica da salvação. Acolhendo o pequeno em seus braços, Simeão, herdeiro dos
profetas da Promessa, recebe a Palavra do cumprimento e Lucas sublinha que este reconhecimento é obra do
Espírito Santo (vv. 25.26.27).
Simeão surge como o porta voz daqueles que aspiram do mais profundo do seu ser os dias do Messias,
invocado como consolador. O tema da consolação havia sido repetido pelos profetas do pós-exílio para significar
a esperança de Israel. (cf. Is 40,1-2; 49,10.13; 57,18; 66,12.13) Descobrindo em Jesus o “Ungido do Senhor”
Simeão reconhece o herdeiro da dinastia real (cf. 1Sm 24,7; Sl 2,2; 18,50; 20,6; 84,9;132,10). É o Messias de
Deus, ungido para testemunhar o Reino de Deus sobre o povo e para salvar Israel (cf. Ex 34,23-24).
O nome de Simeão significa “aquele que escuta, aquele que obedece” e atesta a salvação que ele
reconhece na criança que está sendo apresentada. Seu cântico composto no estilo de hinos bíblicos, com o recado
que dá à Maria se desenrola num conjunto de luz e sombra. Ele se inscreve na linha da grande tradição de Isaias
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sobre o servo de YHWH. Salvação e paz já estavam presentes no cântico de Zacarias, aqui, o cântico de Simeão
acrescenta a luz com uma nota insistentemente universal.
Da profetisa Ana só podemos falar através de figuras. Ela traz o mesmo nome da mãe do profeta
Samuel: “a graciosa” ou “agraciada”. O nome de seu pai Fanuel - “face de Deus” no relembra a história de Jacó
ao atravessar o vale do Yaboq (Gn 32,31), quando ele luta com Deus e lhe arranca uma benção. Ele viu Deus
“face a face” e continuou com vida.
Por sua idade (13 ou 14 anos + 7 + 84 = 104 ou 105 anos) lembra Judite (cf. Jt 16,13), a “judia”,
personificação legendária do povo de Israel. Sua viuvez, como a de Judite, testemunha a fidelidade ao Senhor. A
duração de sua viuvez, 84 anos (12x7 = 84 anos, i.é a multiplicação do nº 12, símbolo de Israel pelo nº 7, símbolo
das nações) exprime a perfeição da espera do mundo. Enfim pela expressão “com jejuns e orações, dia e noite,
não se afastava do Templo” fala do que há de mais puro e fiel na espera das 12 tribos.
É interessante ainda, notar que Ana, filha de Fanuel é da tribo de Aser. Uma das figuras mais antigas
da aggadá judaica é a da filha de Aser - Séra. A Bíblia nos diz pouca coisa sobre essa mulher (cf. Gn 46,17 e Nm
26,47). Séra que desceu ao Egito com Jacó e sua família em Gn 46,17, aparece na lista dos israelitas que saíram
do Egito quatrocentos anos mais tarde em Nm 26,47. O fato de seu nome ser citado duas vezes com quatro séculos
de distância, despertou atenção dos comentadores da antiguidade. Chegaram à conclusão de que ela viveu durante
todo este tempo. Esta longevidade fora do comum foi desejada por Deus. Séra é memória viva de Israel e
depositária de muitos segredos ligados à saída do Egito e da redenção de Israel.
Talvez esta tradição possa também iluminar a narrativa lucana em que Ana, a profetisa, reconhece
em Jesus o salvador de Israel. Além do que concerne a personagem Séra, a aggadá não diz mais nada sobre a
tribo de Aser a não ser que as mulheres desta tribo se distinguiam pela sua beleza e que eram dignas de ser esposas
de reis36. O Seder Eliahu Rabba - 9, acrescenta ainda que em sua velhice, elas ultrapassavam a beleza das jovens
das outras tribos.
A oferenda no Templo havia sido precedida pela circuncisão praticada segundo o que Deus havia
prescrito a Abraão em Gn 17,10-13, sinal da aliança concluída com o patriarca.
A atmosfera que respira a criança Jesus é sagrada por duas razões: primeiro porque o universo, na
visão judaica, é sagrado e em particular a terra concedida ao ser humano por Deus, terra da qual Ele é Criador e
possuidor. Em seguida porque como ser humano, pelo fato de seu nascimento, de sua descendência familiar, é
também consagrado a Deus. Assim a vida com Deus é um dos fundamentos da vida judaica, desde o seu
nascimento até sua morte. Todo instante da sua existência será banhada por esta visão de mundo.
5) A circuncisão do menino
A circuncisão (Berit Mila ou Berit Abraham) é realizada no oitavo dia após o nascimento. Como
outros costumes judaicos, a circuncisão tem sua origem antes do monoteísmo. É um rito com conotação social,
rito de iniciação à vida adulta ou à vida do clã. Em geral a coragem demonstrada pelo adolescente durante a
operação é importante para sua aceitação no clã.
A partir de Abraão em Gn 17,10-13, a circuncisão se transforma em sinal que lembra a Deus sua
Aliança e ao mesmo tempo ao homem sua pertença ao povo escolhido por Deus e as responsabilidade que
decorrem desta pertença. Portanto, a partir do momento que Abraão circuncidou Isaac, a circuncisão se torna um
fato essencial na tradição de Israel.
Desde a sua origem é um rito estabelecido para o 8º dia do nascimento. Parece que no início a
circuncisão era efetuada pela própria mãe (cf. Ex 4,24-26) e mais tarde pelo próprio pai. No tempo de Jesus já
não era mais assim. Há um homem especializado na prática da circuncisão, o mohel, que a faz na presença dos
pais e na presença imaginária do profeta Elias. O profeta Elias na circuncisão e em outros momentos, como na
refeição pascal, é lembrado e esperado como o anunciador do Messias. Atualmente no ritual da circuncisão, há
uma cadeira para o profeta Elias e a criança é colocada nesta cadeira antes de ser entregue ao mohel, para ser
circuncidada. Se Elias, precursor do Messias, preside em espírito cada circuncisão, é porque todo menino que
nasce é um Messias possível.
Bênçãos que provavelmente remontam ao 2º Templo e, portanto, podem ter sido pronunciadas na
circuncisão de Jesus.
 Antes da operação: “Bendito seja, Eterno nosso Deus, Rei do universo, que nos santificou pelos teus
mandamentos e nos ordenou de praticar a circuncisão”.
36
Genése Rabba 98,12; Midrash Aggadah Nombres Ed. S. Buber, p. 77
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 Quando a operação termina o pai recita a seguinte benção: “Bendito sejas Tu, Eterno nosso Deus, Rei do
universo, que nos prescreveu de fazê-lo entrar na Aliança de Abraão nosso pai”.
 E a comunidade responde - “Como ele entrou na Aliança de Abraão possa ele também entrar no estudo da
Torá e no cumprimento das boas ações”.
Para o mundo greco-romano a circuncisão era uma mutilação. Durante o tempo do imperador
Adriano os judeus foram proibidos de praticar a circuncisão.
6) A Purificação de Maria
Sobre a purificação de Maria, o texto de Lc evoca exatamente as prescrições da Lei formuladas no
Lv 12,4. Assim que terminaram os 40 dias, Maria e José subiram ao Templo (cf. Lv 12,1-8). Maria entrou pela
porta dos Recém-nascidos, a leste do Templo enquanto José comprava no mercado do monte das Oliveiras os dois
pombinhos ou rolinhas, sem dúvida segurando-as pelas patas. Isto nos faz compreender logo porque Maria e José
oferecem 2 rolinhas, símbolo de sua descendência davídica e ao mesmo tempo de sua modesta condição pois não
tinham dinheiro suficiente para oferecer uma oferta dos ricos. José entregou as duas pombinhas ao sacerdote.
Lá longe, do alto da galeria das mulheres, Maria viu o sacerdote matar uma das pombas e queimá-la
sobre o altar. Assim ela podia considerar seu filho resgatado pela aliança e assim tomar seu lugar no universo
sagrado que é o mundo da oração judaica.
7) O Shabbat
Podemos imaginar nos bairros judeus das cidades da Galiléia, das ruelas da cidade de Nazaré, entre
as quais está situada uma sinagoga, a agitação que toma conta da pequena cidade no momento em que irá se iniciar
o sábado - as casas se enchem de cantos e orações - é o santuário em que se transforma cada casa e cada pequena
sinagoga, e na casa de Maria e José, o menino Jesus penetra nesta atmosfera de alegria, de repouso, de santificação
e louvor pela Criação, pela libertação do Egito, entra na intimidade de seu Pai, na pequena casa de Nazaré:
adoração do Criador, conhecimento da Torá e vocação de Israel, preenchem os dias do crescimento de Jesus em
Nazaré. E sua chegada foi preparada há muito pelo povo de Deus, mas também pelo próprio casal Maria e José.
Na época de Jesus a idade de doze anos era o momento tanto para o menino como para a menina de
ingressarem na vida adulta. Até os quatro anos de idade, tanto os meninos como as meninas ficavam aos cuidados
da mãe. A partir da idade de 4 anos, o menino começava a prender o ofício com o pai e a menina com a mãe. Isto
não significa que a mãe não continuasse a ter contato com os filhos homens. Vemos que no momento em que pela
primeira vez o menino Jesus vai ao Templo, tanto Maria como José saem à procura do menino e é Maria que lhe
chama a atenção por não ter avisado onde tinha ficado.
A tradição judaica diz o seguinte: “Até os treze anos é dever do pai educar seu filho. Mas depois
disso ele deve dizer: “Abençoado seja Aquele que tirou de mim a responsabilidade por este rapaz”. Deste
momento em diante o rapaz de treze anos será responsável por suas atitudes e pela prática da Torá.
Na antigüidade o rapaz era levado pelo seu pai até a presença do sacerdote no Templo ou perante os
anciãos a fim de receber uma benção que lhe garantisse uma porção na Torá e no cumprimento das boas ações.
8) A Páscoa em Jerusalém
Provavelmente a subida à Jerusalém quando Jesus tinha doze anos foi a primeira vez que Jesus
participou da peregrinação da páscoa. Chegara enfim o momento de subir até Jerusalém para receber a benção
que lhe garantia a porção da Torá. Podemos imaginar o deslumbramento do menino da província que faz sua
primeira viagem para a capital. Não é de admirar que o menino acabou ficando na cidade grande e sobretudo no
Templo, sem dúvida em discussão na sinagoga que existia dentro do Templo, com os doutores da lei,
provavelmente fariseus.
A viagem de Nazaré até Jerusalém era feita em quatro etapas, durante quatro dias, percorrendo
cento e quarenta e um quilômetros. Esta viagem era toda intercalada por bênçãos, orações e canções que refletiam
sobre o destino de Israel. Podemos imaginar que sem dúvida, durante estas reflexões a questão quente do
momento: e o Messias? Será que está próximo o tempo de sua vinda? E discutia-se assim a opinião de Daniel
sobre as 70 semanas ou então os discípulos de Hillel diriam que o Messias já tinha vindo no tempo do rei Ezequias.
Estas discussões permitiam aos peregrinos trocar suas opiniões sobre a realização das promessas.
A peregrinação era também o momento para se tomar conhecimento da ocupação romana e das
novas dificuldades que estavam existindo em outras partes da Terra, fora de Nazaré. Na última etapa, antes de
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entrar na cidade santa, no monte das Oliveiras, José e Maria, aproveitando da pausa, vão lembrar a Jesus as
memórias do santuário. Para José é a evocação das peregrinações que já fez para cumprir o ritual segundo a Torá,
por ocasião das três grandes festas. É também o momento propício para contar a Jesus sobre a chegada dos
romanos e a implantação dos pagãos no país.
Em Jerusalém mesmo, a presença romana é feita de uma maneira brutal e indiscreta e os peregrinos
a todo momento se encontram com soldados e tropas de ocupação. Eles é que controlam a entrada e a saída da
cidade. Sem dúvida José pode lembrar a Jesus os últimos fatos escandalosos que ocorreram como a colocação das
insígnias romanas no Templo por Herodes, a coragem de jovens que tiraram esta grande águia do Templo e a
repressão exercida por Herodes, inclusive a execução do sumo sacerdote que ele acreditava responsável pelo
ocorrido, etc. Enfim, o momento da peregrinação a Jerusalém foi para Jesus um momento decisivo de sua entrada
na vida adulta.
De volta para Nazaré, depois de ter sido submetido ao exame dos doutores em Jerusalém, Jesus vai
manifestar sua maturidade religiosa através de sua Bar mitzva.
A cerimônia do Bar Mitzva (atualmente Bat Mitzva para as meninas) consiste em presidir o ofício
da sinagoga em todos os detalhes, leitura da Tora, fazendo a homilia. Pela primeira vez o menino lerá o rolo da
Torá diante de toda a congregação.
O nome utilizado para se falar desta cerimônia na época de Jesus no momento de sua profissão de
fé era gadol que significa grande, quer dizer adulto, e Bar-Onesh (filho do castigo), pois de agora em diante, é
responsável por seus atos, como todo adulto, ele pode ser submetido ao mesmo castigo pelas faltas que cometerá.
A partir deste momento ele exerce todos os poderes e todas as responsabilidades de um homem. Pode contrair
votos ou consagrar seus bens. Pode assumir o peso de suas próprias limitações que até então era solidário de seu
pai, tanto para a vida como para a morte.
Outra dimensão muito importante desta cerimônia é o assumir publicamente o estado sacerdotal.
No momento em que Jesus, dentro da sinagoga de Nazaré, revestiu o seu talit, começou a pronunciar a benção do
ofício, neste mesmo momento, pronunciando as mesmas orações, o menino Jesus, como todo judeu, se torna
sacerdote e homem, pois Israel lembrando a humanidade integrada, só é possível ser verdadeiramente sacerdote
quando se é verdadeiramente homem. Só assume Deus quem assume a sua própria condição humana.
Atualmente a cerimônia que celebra a maioridade religiosa se faz no primeiro sábado logo após
completar catorze anos. O adolescente é um dos sete homens chamados para honrar a Torá.
O ofício da sinagoga consiste em uma leitura da Torá (Parasha), porção da Torá para cada Shabbat
e uma leitura dos profetas (haftara). Em seguida se fará um comentário próprio para a ocasião, atualizando as
palavras da Torá. A sinagoga não é um santuário consagrado. É um lugar de reunião onde a reunião de 10 homens
(miniam) é suficiente para se realizar um ofício. Não existe um clero profissional que atue na sinagoga. O rabino
é alguém que por dedicação ou gosto, conhece melhor a Bíblia e a tradição do que a maioria. Talvez isso lhe
confira uma autoridade particular dentro de uma pequena aldeia como Nazaré, mas não mais do que alguém que
tem experiência dentro de uma pequena comunidade.
Enquanto o adolescente lê pela primeira vez uma passagem do texto sagrado, neste momento tão
solene e importante, o pai permanece na assembléia e silenciosamente pronuncia a benção: “Bendito seja Aquele
que me retirou a responsabilidade das ações deste menino”.
O professor, seja rabino ou alguém que ama a Torá, alguém que ama a Deus, podemos pensar que
no caso de Jesus poderia ter sido o próprio José, segue as linhas do rolo sagrado aberto sobre a teba. Jesus lerá
sua parte com as entonações e a melodia segundo o tipo de texto que deverá ler. Em seguida o rabino ou aquele
que preside a cerimônia dirá algumas palavras exaltando a entrada de Jesus na Aliança de Abraão e no destino de
Israel. A seu lado, todas as pessoas da comunidade, pessoas que amam a Deus, participam desta ascensão do
jovem judeu ao sacerdócio. Jesus professará sua fé (Shema) Escuta Israel, o que manifestará sua admissão na
assembléia sacerdotal dos pais. Com treze anos completos, como para todo judeu, Jesus atinge a idade da
santificação. A partir deste sábado, Jesus é sacerdote, Jesus é judeu e deverá se aplicar para a sua integração à
Torá. Podemos imaginar que esta preparação foi feita durante muitos sábados seguidos, por José, antes de Jesus
chegar a falar com os doutores em Jerusalém e chegar a ser chamado para ler na sinagoga de Nazaré. Assim Jesus
poderá, se for julgado capaz pelos doutores da Lei, de entrar na grande corrente da interpretação da Torá e trazer
sua própria interpretação às prescrições e palavras dos profetas.
Robert Aron diz: “A religião de Israel é como uma eterna tribuna, onde, de geração em geração,
o pensamento humano se exprime, trazendo seus comentários sucessivos à Lei do Eterno”.
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5.3 - BIBLIOGRAFIA BÁSICA UTILIZADA
1.
2.
3.
4.
5.
6.
7.
8.
9.
10.
ARON, R. Ainsi priait Jésus enfant. Paris: Grasset, 1968.
AVRIL, A.C. e LA MAISONNEUVE, D. de. As festas judaicas. S. Paulo: Paulus, 1997.
LA MAISONNEUVE, D. de. Le Judaïsme. Paris: Editions Ouvrières, 1998.
LADISLAO, M. da G. As mulheres na Bíblia, Paulinas, 1995.
MIMOUNI, S.C. “Les Nazoréens. Recherche etymologique et historique. Revue Biblique, n°2, avril, 1998,
pp. 222ss.
PERROT, C. As narrativas da infância de Jesus: Mt 1-2 e Lc 1-2. São Paulo: Paulinas, 1988.
RADERMAKERS, J. Au fil de l’evangile selon saint Mathieu, Bruxelas Institut d’Études Theologiques,
1972. “Testaments des douze patriarches” in: La bible, écrits intertestamentaires. Paris:Gallimard : 1987,
pp. 811-944.
DI SANTE, C. Israel em oração: as origens da liturgia cristã. São Paulo: Paulinas, 1989.
SCHABERG, J. “As antepassadas e a mãe de Jesus. Concilium, n°226, 1989, pp. 117-125.
VASCONCELOS, P. de L. “Uma gravidez suspeita, o messianismo e a hermenêutica – Anotações sobre Mt
1, 18 – 25”. In: Ribla, n°27, 1997, pp. 29 – 47. Anne Catherine AVRIL In: Ribla, n°40.
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UNIDADE VI
EXEGESE JUDAÍCA NA ÉPOCA DOS
ESCRITOS NEO-TESTAMENTÁRIOS
6.1 – EXEGESE JUDAICA, MIDRASH, HALAKHÁ E MIDDOT
Um dos princípios fundamentais da halakhá é a crença de que Moisés recebeu ao mesmo tempo a
Torá escrita e Torá oral. Entretanto os mestres sempre distinguiram a tradição oral transmitida de geração em
geração e outras partes da Torá oral criada e desenvolvida pelos mestres da halakhá.
As regras de interpretação midráshica tem por objetivo alargar a Torá e aplicá-la às novas situações.
Esta interpretação da Escritura provocou a ruptura entre saduceus e fariseu. Os saduceus consideravam somente
a autoridade da Torá escrita. O livro de Decretos por eles escrito e ‘depositado no Templo’ não estava ligado à
Torá Escrita. Os essênios não reconheciam a autoridade temporal por isso só aceitavam a halakhá deduzida pelo
midrash diretamente do texto sagrado.
Os sábios deviam explicar certos textos contraditórios da Escritura e ao mesmo tempo resolver certos
problemas que nasceram as grandes mudanças que o judaísmo enfrentou nesse período, sobretudo no decorrer do
I século da era comum37.
O objetivo é preencher as lacunas dos textos dando detalhes que o texto bíblico não relata. Um
exemplo, em Gn 4, 8 lemos: Caim falou a seu irmão e, quando foram ao campo, Caim atacou seu irmão Abel e
o matou. Há um problema neste versículo: O que disse Caim a seu irmão? Para o midrash aí se encontra uma
oportunidade de transmitir um diálogo no qual aparece um profundo ensinamento. Porque Caim matou Abel?
Encontramos em Gênesis Rabba 22, 7 o seguinte comentário.
- Caim falou (‫ ויאמר‬- discutiu) a seu irmão Abel, e quando foram ao campo, Caim atacou seu irmão Abel e
o matou. Qual foi o assunto da discussão? Eles haviam decidido: Vamos nós dividir o mundo. Um (Caim)
ficou com as terras e outro com as propriedades. Então Caim disse: A terra em que está é minha! E Abel
disse: as roupas que vestes são minhas! Tire-as imediatamente! Saia daqui, respondeu o outro. Então Caim
atacou seu irmão Abel e o matou....
O midrash continua a discussão e no final do ensinamento transmitido pode-se deduzir que há três
coisas que podem causar disputa, violência e morte entre irmãos: posse de bens, o poder e prestígio, e o ciúme
que nasce no relacionamento entre as pessoas.
Tradicionalmente Torá oral (Halakha) é uma dedução midráshica da Torá escrita. Outros sustentam
que a Torá oral deriva dos costumes e decisões do sumo sacerdote ou da beit din ou do sinédrio.
A partir do 1°século a.e.c. os sábios começam a deduzir halakha das Escrituras. A partir de Hillel38
com as middot (7 regras hermenêuticas que lhe são atribuídas, teriam sido transmitidas pelos seus mestres
Shemaya e Abtalion).
A Torá oral de origem midráshica será então desenvolvida e integrada na Torá de Moisés pelos
mestres fariseus.
6.1.1 – As regras de Hillel
A apresentação mais antiga das regras de interpretação se encontram na Tosefta Sinhedrim fazendo
remontar a Hillel sua enumeração por vezes é apresentada de modo diferente. A apresentação abaixo foi tirada da
obra de Bonsirven39. As regras apresentadas são as seguintes.
1. Qal vahomer: do maior para o menor – a fortiori.
2. Gezerá shavá: por assimilação ou analogia.
3. Binyan av mikatuv hehad: a partir de uma citação das Escrituras.
4. Binyan av mishene Ketuvim: a partir de duas citações das Escrituras.
5. Kelal ufehrat uferat vkelal: do geral para o particular do particular para o geral.
6. Kyosé bo mimmaqon aher: Existe algo similar em outra citação.
37
Para aprofundar a temática sugerimos a obra de Frederic MANNS Pour lire la Mishna. Jerusalém: Franciscan Printing Press, 1984.
Tos. Sanhedrin 7,11 com o título “As sete coisas que Hillel ensinou diante dos Bené Betyra...
39 Joseph BONSIRVEN. Exégèse rabbinique et exégèse paulinienne. Paris: Beauchesne et ses fils, 1938.
38
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7. Davar ha-lamed me’inyano: algo que se deduz a partir do contexto.
No final do II século da era comum já são conhecidas as 13 de Ishmael e as 32 de Elièzer ben José,
o Galileu, que já teriam sido utilizadas por Akiba.
Ainda seguindo Bonsirven elencamos alguns exemplos, olhando um pouco mais de perto algumas
destas Middot.
6.1.1.1 - Qal vahomer: do maior para o menor ou do menor ao maior (raciocínio a fortiori)
Descrito como do maior para o menor, de algo menos importante para algo mais importante ou viceversa. Pouco importa qual é o tipo de articulação que se faz ao raciocínio.
Apresenta-se uma situação A e compara-se com a situação B, situação mais recente e se conclui
dizendo: com mais forte razão... Exemplos:
1) O Senhor disse a Moisés e Aarão na terra do Egito (Ex 12,1):
Fora da cidade. Talvez você diga: foi fora da cidade ou no interior da cidade? Pois ele disse: E Moisés
lhe disse: Depois que eu tiver saído da cidade estenderei as mãos para o Senhor... (Ex 9,29) ... não se pode
raciocinar qal vahomer? Se para a oração, que é algo menos importante, Moisés rezou fora da cidade, para o
encontro, que é mais importante, não é justo que ele se encontre (com o Senhor) fora da cidade?40
2) Uma forma condensada de raciocínio.
Após uma discussão casuísta bastante complicada entre o mestre e os alunos, eles chegam à mesma
opinião: estávamos dizendo: se o silêncio é muito bom para os sábios, com mais forte razão (qal vahomer) ele
será para os estúpidos assim como está dito: Mesmo o insensato, quando se cala, passa por sábio: e nem há
necessidade de dizer: por inteligente quando fecha os lábios. (Prov. 17,28)41.
3) Nas Escrituras Cristãs:
 Mt 6,30: Ora, se Deus veste assim a erva do campo, que hoje existe e amanhã é lançada no forno, quanto
mais a vós outros, homens de pequena fé?
 Mt 7,11: Ora, se vós, que sois maus, sabeis dar boas dádivas aos vossos filhos, quanto mais vosso Pai, que
está nos céus, dará boas coisas aos que lhe pedirem?
 Jo 7,23: E, se o homem pode ser circuncidado em dia de sábado, para que a lei de Moisés não seja violada,
por que vos indignais contra mim, pelo fato de eu ter curado, num sábado, ao todo, um homem?
 Jo 10,34: Replicou-lhes Jesus: Não está escrito na vossa lei: Eu disse: sois deuses?
 Rm 5,12.17: 12 Portanto, assim como por um só homem entrou o pecado no mundo, e pelo pecado, a morte,
assim também a morte passou a todos os homens, porque todos pecaram... 17 Se, pela ofensa de um e por
meio de um só, reinou a morte, muito mais os que recebem a abundância da graça e o dom da justiça reinarão
em vida por meio de um só, a saber, Jesus Cristo.
 2Cor 3,7-11: 7E, se o ministério da morte, gravado com letras em pedras, se revestiu de glória, a ponto de
os filhos de Israel não poderem fitar a face de Moisés, por causa da glória do seu rosto, ainda que
desvanecesse, 8como não será de maior glória o ministério do Espírito! 9Porque, se o ministério da
condenação foi glória, em muito maior proporção será glorioso o ministério da justiça. 10Porquanto, na
verdade, o que, outrora, foi glorificado, neste respeito, já não resplandece, diante da atual sobre excelente
glória. 11Porque, se o que se desvanecia teve sua glória, muito mais glória tem o que é permanente.
6.1.1.2 - Gezerá shavá: por assimilação ou analogia.
É a aproximação de dois versículos ou palavras idênticas em textos diferentes. Estes detalhes que
favorecem a interpretação midráshica se perdem com a tradução. É o raciocínio por analogia. Esta aproximação
da Escritura faz por si mesma surgir um novo significado. A partir do momento que se encontra uma expressão
idêntica é um dever aproximá-las, pois nascerá um novo sentido.
A analogia ou assimilação é o argumento mais empregado na beit ha-midrash e na beit din. Todas as
vezes que um determinado texto não expressa o modo de agir em determinada situação, procuram-se os casos
análogos ou já resolvidos para responder ao momento atual. O raciocínio por analogia terá um lugar importante
na literatura rabínica.
40
41
Mekhilta Ex 12,1.
Tos. Pesahim, 32
Tradição Judaica no Novo Testamento
Cultura Judaica, História e Teologia
47
Por assimilação – heqques, da raiz aramaica que significa aproximar, fazer par de dois objetos,
assimilar duas idéias. É uma analogia mais completa. Trata-se de fazer uma aproximação da Escritura, uma
justaposição, seja porque tem diversos pontos em comum. Como em toda analogia, a assimilação será legitima na
medida em que os pontos comuns sejam numerosos ou essências. Exemplo:
1) O Senhor disse a Moisés e Aarão... (Ex 12, 1).
Penso que só Moisés foi juiz do Faraó, de onde Aarão? Do que foi ensinado nestes termos: a Moisés
e Aarão. Ele assimila Moisés à Aarão e Aarão à Moisés. Assim como Moisés foi juiz do Faraó, assim também
Aarão foi juiz do Faraó. Assim como Moisés dizia suas palavras sem ter medo, assim também Aarão dizia suas
palavras sem ter medo42.
2) Por vezes a própria Escritura faz a assimilação. A carne (dos primogênitos) será tua, como o peito que será
apresentado e a coxa direita (Nm 18,18).
A Escritura assimila os primogênitos ao peito à coxa direita dos sacrifícios pacíficos: do mesmo
modo que eles devem ser consumidos em dois dias.
Nestes casos o ponto de partida é inteiramente escriturário. A exegese ajuda a compreender o texto,
complementando-o em vista de sua exploração jurídica.
3) As vezes a aproximação não é assim tão concreta e a assimilação, baseada em uma palavra, é mais
artificial.
Rabbi dizia: honrar eu pai e sua mãe é agradável diante daquele que disse e o mundo foi feito, pois
ele disse equivalente: a honra deles e sua honra; o temor deles temor e seu temor; injuria deles e sua injuria. Está
escrito: Honrarás teu pai e tua mãe (Ex 20,12); e está escrito de maneira correspondente: Honra o Senhor com
tua riqueza (Prov 3,9). Ele assimila a honra dada ao pai e à mãe à honra devida ao Lugar (Deus). Está escrito: que
cada um de vós tema sua mãe e seu pai (Lv 19,3); corresponde ao que está escrito Tu temerás o Senhor teu Deus
(Dt 6,13) Ele assimila temer seu pai e sua mãe ao temor ao Lugar (Deus). Está escrito: Aquele que maldirá seu
pai e sua mãe (Ex 21,17); ele corresponde ao que está escrito Todo homem que maldiz Deus (Lv 24, 15). Ele
assimila maldizer seu pai e sua mãe a maldizer a Deus.
Em Gn 1, na narrativa da criação fala-se do dia um e em seguida segundo dia, terceiro dia e assim
por diante. Em Zc 14,7 ele vai falar do dia um (BJ único), logo o dia UM passa a ter um significado, por que ao
falar dos dias da criação somente o dia Um é numeral enquanto os outros são cardinais? A reflexão verá nesse dia
UM o dia que contém todos os outros e em Zacarias é o dia escatológico, portanto o dia UM é ao mesmo tempo
o primeiro e o último.
4) Nas Escrituras Cristãs
 Mt 12,1-443 Por aquele tempo, em dia de sábado, passou Jesus pelas searas. Ora, estando os seus discípulos
com fome, entraram a colher espigas e a comer. 2Os fariseus, porém, vendo isso, disseram-lhe: Eis que os
teus discípulos fazem o que não é lícito fazer em dia de sábado. 3Mas Jesus lhes disse: Não lestes o que fez
Davi quando ele e seus companheiros tiveram fome? 4Como entrou na Casa de Deus, e comeram os pães da
proposição, os quais não lhes era lícito comer, nem a ele nem aos que com ele estavam, mas exclusivamente
aos sacerdotes?
 At 2,25-28: Porque a respeito dele diz Davi: Diante de mim via sempre o Senhor, porque está à minha direita,
para que eu não seja abalado. 26Por isso, se alegrou o meu coração, e a minha língua exultou; além disto,
também a minha própria carne repousará em esperança, 27porque não deixarás a minha alma na morte, nem
permitirás que o teu Santo veja corrupção. 28Fizeste-me conhecer os caminhos da vida, encher-me-ás de
alegria na tua presença.
 Rm 4,1-12: 9Porque Deus, a quem sirvo em meu espírito, no evangelho de seu Filho, é minha testemunha de
como incessantemente faço menção de vós 10em todas as minhas orações, suplicando que, nalgum tempo,
pela vontade de Deus, se me ofereça boa ocasião de visitar-vos. 11Porque muito desejo ver-vos, a fim de
42
Idem Meckilta...
Paulo, servo de Jesus Cristo, chamado para ser apóstolo, separado para o evangelho de Deus, 2 o qual foi por Deus, outrora, prometido
por intermédio dos seus profetas nas Sagradas Escrituras, 3 com respeito a seu Filho, o qual, segundo a carne, veio da descendência de
Davi 4 e foi designado Filho de Deus com poder, segundo o espírito de santidade pela ressurreição dos mortos, a saber, Jesus Cristo,
nosso Senhor, 5 por intermédio de quem viemos a receber graça e apostolado por amor do seu nome, para a obediência por fé, entre todos
os gentios, 6 de cujo número sois também vós, chamados para serdes de Jesus Cristo. 7 A todos os amados de Deus, que estais em Roma,
chamados para serdes santos, graça a vós outros e paz, da parte de Deus, nosso Pai, e do Senhor Jesus Cristo. 8 Primeiramente, dou
graças a meu Deus, mediante Jesus Cristo, no tocante a todos vós, porque, em todo o mundo, é proclamada a vossa fé. 9
43
Tradição Judaica no Novo Testamento
Cultura Judaica, História e Teologia
48
repartir convosco algum dom espiritual, para que sejais confirmados, 12isto é, para que, em vossa companhia,
reciprocamente nos confortemos por intermédio da fé mútua, vossa e minha.
 Gl 3,10-14 10Todos quantos, pois, são das obras da lei estão debaixo de maldição; porque está escrito:
Maldito todo aquele que não permanece em todas as coisas escritas no Livro da lei, para praticá-las. 11E é
evidente que, pela lei, ninguém é justificado diante de Deus, porque o justo viverá pela fé. 12Ora, a lei não
procede de fé, mas: Aquele que observar os seus preceitos por eles viverá. 13Cristo nos resgatou da maldição
da lei, fazendo-se ele próprio maldição em nosso lugar (porque está escrito: Maldito todo aquele que for
pendurado em madeiro), 14 para que a bênção de Abraão chegasse aos gentios, em Jesus Cristo, a fim de que
recebêssemos, pela fé, o Espírito prometido.
Não há muita necessidade de distinguir as analogias aggádicas das halaquicas pois as duas se
fundamentam em termos bíblicos e tem o mesmo objetivo. Um exemplo de gezerá shavá haláquico: Trata-se a
separação entre homens e mulheres preparando-se para o encontro com Deus.
E ele (Moisés) lhes disse: estai preparados para o terceiro dia (Ex 19,15). Mas nós não ouvimos que
o Lugar tenha dito de se separar das mulheres, ele disse somente (estai preparados). Estai preparados segundo (o
julgamento) gezerá shavá: do mesmo modo que o “estai preparados” dito aqui (Ex 19,15) é para a separação das
mulheres, do mesmo modo “estai preparados” dito lá (Ex 19,11) é para a separação das mulheres.
Um exemplo de gezerá shavá aggádico: de onde podemos dizer que aquele que volta os olhos da
esmola é como se praticasse a idolatria? Do que está dito: Fica atento a ti mesmo para que não surja um
pensamento vil (um pensamento de Belial)... para com teu irmão pobre( Dt 15, 19). Está dito ... homens malignos
(gente de Belial) saíram do meio de ti seduzindo seus habitantes dizendo: Vamos e sirvamos a outros deuses...
(Dt 13,14) do mesmo modo o Belial que se fala lá (Dt 15,19) designa idolatria.
Os raciocínios por analogia são inúmeros: por equivalência que aproximam personagens ou
acontecimentos; textos que tem ideias análogas, argumento tirado de uma espécie análoga, conclusões a partir de
analogias reais etc. Há uma grande criatividade para interpretar e tornar a Torá encarnada no dia a dia.
6.1.1.3 - Binyan av mikatuv hehad: a partir de uma citação das Escrituras.
A Binyan av mikatuv hehad se dá a partir de uma citação das Escrituras: Dois exemplos:
1) Exemplo Haláquico
“E se encontrar” (Dt 17,2): isto se refere aos testemunhos a partir do princípio, pois é dito aqui
(Dt17,6): pela palavra de duas ou de três testemunhas poderá ser condenado (Dt 19,15).
Este é o caso de Binyan av mikatuv hehad: Para todos os lugares em que aparecer “E se encontrar”
(immase) a Escritura fala de duas ou três testemunhas. Casos semelhantes se encontram em Dt 18,10; 22,22; 24,7.
Faltas que só podem ser julgadas diante de duas ou três testemunhas.
2) Exemplo Aggádico
Tu mostrastes tua grandeza e a tua poderosa mão; porque que deus há, nos céus ou na terra, que
possa fazer segundo as tuas obras, segundo os teus poderosos feitos? (Dt 3,24): eis aqui um bynian av para toda
grandeza que se encontra na Torá.
6.1.1.4 - Binyan av mishene Ketuvim: a partir de duas citações das Escrituras
Um exemplo complicado, mas interessante porque mostra em que condições pode-se mostrar em que
condições deve-se responder uma analogia para poder fundamentar um raciocínio exegético ou jurídico.
Se fizer cair um dente do seu escravo ou da sua escrava...(Ex 21,27). Compreendo um dente de leite
também; foi ensinado nestes termos ou um olho: do mesmo modo que um olho não pode renascer, do mesmo
modo o dente estipulado não pode renascer. Vejo somente o dente e o olho, a extremidade de outros membros de
onde? Eis que tu dizes raciocinando (julgando) um binyan av a partir de dois: a condição do dente e a do olho são
diferentes.
O lado igual dos dois é a mutilação de um e outro que causa um defeito irreparável e a mutilação da
extremidade dos membros que não podem renascer, feito com a intenção e abertamente, providencie a libertação
da vítima: do mesmo modo a mutilação dos membros que não podem renascer providencie a libertação da vítima.44
44
Mekhilta Ex
Tradição Judaica no Novo Testamento
Cultura Judaica, História e Teologia
49
6.1.1.5 - Kelal uferat vferat ukelal: do geral para o particular do particular para o geral
Kelal, vem da raiz que significa abraçar, completar, designa, pois, a totalidade, o conjunto, o geral, a
soma de casos particulares. Significa também princípio como na sentença de Akiba: Eis o maior princípio da
Torá; amar o próximo como a si mesmo45. Para poder entender melhor esta regra é bom olharmos um pouco as
raízes hebraicas. Kelal (‫ )כלל‬se precisa a partir da palavra seguinte ferat (‫ )פרט‬ao qual se opõe. Ferat da raiz
hebraica que designa o particular, singular. A tradução pode ser do geral e do singular, contudo o verdadeiro valor
das duas palavras na linguagem rabínica que terá suas nuances.
Um exemplo de que não há nada no geral que não esteja no particular. (Oferecereis) uma cesta de
pães sem fermento, geral, bolos de flor de farinha amassados com azeite, e tortas sem fermento untadas com
azeite...(Nm 6,15), particular. Geral e particular, não está no geral senão o que está no particular. Pois poderíamos
raciocinar o seguinte: já que o sacrifício de ação de graças inclui pão e que ao bode do nazir deve-se acrescentar
o pão, se aprende que no sacrifício de ação de graças inclui quatro espécies é preciso que o bode do nazir comporte
as quatro espécies, mas é ensinado nestes termos: uma cesta de pães sem fermento, geral, farinha ...particular; não
está no geral senão o que está no particular. Nesse caso o que é chamado de geral não é feito por um corte da
frase, nem segue uma análise lógica da proposição, nem uma operação lógica que descobre o geral. Se o cesto de
pães sem fermento é o geral, sua extensão é determinada pela menção dos particulares que seguem: bolos e tortas.
Logo o kelal uferat no caso não são duas categorias lógicas do geral e particular. A relação não é lógica, mas
permite concluir do geral ao particular pela indução e o particular ao geral.
Na Escritura não é prevista a mutilação de outros membros, a dedução foi feita a partir das duas
mutilações tipos. O procedimento consiste em enfatizar o que é essencial em duas espécies jurídicas análogas que
se apresentam com diferenças essenciais a ampliar a lei determinada por um ponto comum.
45
Siphra Lev. 19, 18,89b.
Tradição Judaica no Novo Testamento
Cultura Judaica, História e Teologia
50
UNIDADE VI
ANEXO
QUADRO COMPARATIVO
MIDRASH PESHER E MIDRASH FARISAICO
PESHER
Midrash muito utilizado em Qumrã
e nas escrituras apocalípticas
pseudo epigrafas
♦ Tipo de interpretação bíblica utilizada
especialmente pelo grupo de qumrã. O
objetivo do pesher é mostrar como se
realizam as palavras bíblicas no tempo do
autor do pesher. É uma sorte de atualização
da literatura bíblica em função da história do
grupo e em particular da vida do fundador –
no caso de qumrã – o mestre da justiça. Este
tipo de interpretação foi também muito
utilizado pelas comunidades judeo-cristãs,
como é o caso do evangelho de Mateus.
♦ Parte do presente e o esclarece
♦ Explica procurando aplicar o texto aos
membros do seu grupo (seita, casta ou
similares) possui um objetivo antropomorfico
e ético e outro histórico e escatológico.
♦ Vai da realidade ao texto.
♦ Sacraliza o acontecimento atual correndo o
risco de fazer o texto dizer mais do que diz
Midrash da tradição farisaica e
posteriormente rabínica
♦ Segue um modelo constituído da citação de
um versículo bíblico ou parte dele, em seguida
o explicita, desdobra, amplifica, esclarece
♦ Parte do texto bíblico e o comenta
♦ Completa ou abre o sentido do versículo,
colocando-o em relação com acontecimentos
bíblicos ulteriores.
♦ Desce do texto à realidade atual
♦ Solicita o texto e tende a circunscrever seu
alcance anunciador
Tradição Judaica no Novo Testamento
Cultura Judaica, História e Teologia
51
UNIDADE VII
HILLEL E JESUS
☞ Mirelle HADAS-LEBEL. Hillel - Un sage au temps de Jésus, Albin Michel, 1999.
CAPÍTULO IV: HILLEL E JESUS (pp 85-106)
Há um pouco mais de um século que os dois nomes, Hillel e Jesus, se encontravam um ao lado do
outro e estabeleceram paralelos entre os proprios atributos de ambos. A história desta comparação, efetuada as
vezes por judeus, as vezes por cristãos, merece ser feita porque através deste trabalho se reflete a evolução das
relações entre judaismo e cristianismo.
1 - As polémicas do século XIX
A idéia mesma de uma comparação entre os dois personagens era impensável por muito tempo, tanto
do lado judeu como do lado cristão. Na verdade, a literatura rabínica, que constitutui ao longo dos séculos todo o
horizonte intelectual dos judeus, dá um lugar ínfimo a Jesus nas passagens tanto legendárias como obscuras às
quais várias foram suprimidas pela censura eclesiástica46. Para a maioria dos Judeus da Europa, o nome de Jesus
era associado à cruz que brandiam seus perseguidores, da península Ibérica até a Ucrânia, fato que não os
encorajava à leitura do Novo Testamento. Por sua parte, os eruditos cristãos que aprendiam o hebraico a partir do
Renascentismo não era senão para ter acesso à Bíblia, e aqueles que se esforçaram para adquirir noções do
hebraico ou do aramaico talmúdico, estavam preocupados sobretudo para ridicularizar as <frivolidades47> dos
rabinos. No século XVIII, na famosa escola teológica de Halle, como no século XIX entre os maiores especialistas
do judaismo antigo, quem dava o tom para o resto da Europa, o objetivo principal era mostrar a superioridade do
cristianismo48.
Um rabino célebre do século XVIII, Jacob Emden (1697-1776), foi quem conduzido por sua
polémica contra os frankistas (membros da seita do falso Messias Sabbatai Tsvi), se interessou pelo inicio do
cristianismo. A leitura dos Evangelhos, dos Atos dos Apóstolos e das cartas paulinas o convenceu que eram
escritos autenticamente judaicos. Jesus e Paulo pareciam-lhe de pleno acordo com os textos rabínicos, porque eles
propunham aos gentios uma religião fundada nos sete mandamentos de Noé (proibição da idolatria, blasfêmia,
assassinato, roubo, infração sexual, crueldade contra os animais e o estabelecimento de tribunal de justiça), graça
aos quais estes poderiam ser considerados como justos das nações e ter parte no mundo a vir, paralelamente eles
sustentavam que os judeus de nascimento deveriam observar toda a Tora. Desta forma <o Nazareno> trouxe um
duplo bem ao mundo: de uma parte, ele reforçou majestosamente a Tora de Moises porque nenhum de nossos
sábios insistiu tanto sobre a infabilidade da Tora; de outra parte, ele fez bem aos gentios distanciando-os da
idolatria e lhes impondo os sete mandamentos para que não vivam como os animais49. Essas considerações não
deixam de suscitar vivas críticas da parte do rabino Altona - acusado de pactuar com os frankistas, mas foi apenas
um elemento na polemica aguçada entre os dois antagonistas.
No fo final do século XVIII, um judeu de Dessau se estabeleceu em Berlin, Moisés Mendelssohn
(1729-1786), é reconhecido como um dos mais brilhantes pensadores de seu tempo. Este filosofo é também o
iniciador da Aufklärung judaica, a haskala (iluminismo). No grande afã de otimismo que caracteriza a aurora da
emancipação dos judeus, Mendelssohn é seguro que as portas dos guetos se abrirão definitivamente e que seus
correligionários são destinados a se integrar na sociedade ambiental, sem no entanto renunciar à sua religião. Eles
devem se esforçar para conhecer seu próximo cristão, sua língua, sua literatura, suas crenças, fato que deveria
levar a uma abertura paralela junto aos seus interlectores e o fim dos esteriótipos caluniosos. Ele mesmo se
interessa ao Novo Testamento e sua leitura dos Evangelhos o convence de que Jesus não quis criar uma nova
46
Cf G.F. Moore, Christian Writers on Judaism, Harvard Theological Review 14 (1921), p 197-254. O pamfleto anti-cristão Toldot Yeshu
é datado do século XIII.
47 Assim, J. Buxtorf na sua Synagoga Judaica, Bâle, 1604.
48 Cf G.F. Moore, op.cit; J. Blenkinsopp, Prophecy and Canon, University of Notre Dame Press, 1977, p 19-20; P. Sanders, Paul and
Palestinian Judaism, London, 1977, p 33-59.
49 Ver a tradução inglesa desta carta do Conselho da Polonia que apareceu em apêndice ao seu Seder Olam, 1757, em H. Falk, Jesus the
Pharisee, New York, 1985, p 17-23.
Tradição Judaica no Novo Testamento
Cultura Judaica, História e Teologia
52
religião nem revogar a lei de Moisés. Pela primeira vez se exprime em alemão um ponto de vista judeu sobre
Jesus50.
Porém é na França que deveria se realizar mais rapidamente a emancipação esperada. Desde os anos
vinte do século XIX, os jovens judeus assimilados que militam no movimento Santo-Simão, manifestam simpatia
e respeito por Jesus e exprimem suas certezas de que Jesus não buscou uma ruptura com o judaismo 51. Um
personagem fora do comum, o monpeliano Joseph Salvador (1796-1873), nascido de pai judeu e de mãe católica,
renunciou, muito jovem, o exercicio da medicina para se dedicar à história do judaismo e inicio do cristianismo.
Em uma de suas obras, Jésus-Christ et sa doctrine (1838), sem cair na crítica exagerada de certos protestantes
alemães, ele apresenta Jesus como um mestre espiritual vindo trazer uma solução às “dificuldades de uma certa
época52”. Evocando de passagem a diversidade das correntes no interior do judaismo, ele cita Hillel como um
grande mestre fariseu cujo as máximas se inspiram no ensinamento de Moisés 53. Segundo ele, Jesus denunciou
certos excessos do farisaismo, mas há uma continuidade entre mosaismo e cristianismo. O livro, violentemente
atacado pelos católicos conservadores, foi posto no Index, mas suscitou o interesse de Silvestre de Sacy e do
jovem Ernest Renan.
Mais significativa que a evolução que se fez no interior do judaismo é a tomada de posição de um
rabino alemão, ele mesmo filho de rabino, Abraham Geiger (1810-1874), um dos pilares da reforma religiosa que
se manifestou em duas direções: uma atenção maior no décor dos oficios e o destaque de aspectos universais do
judaismo. O rabino Abraham Geiger, sem ser um reformador extremista, foi uma figura de ponta da reforma e de
toda a nova “ciência do judaismo” (Wissenschaft des Judentums). Sua paixão pela erudição filosófica e historica
o leva a considerar a imagem dos Fariseus. Aos Saduceus aristocratas conservadores, ligados à letra da Escritura,
ele opos aos Fariseus que representa a grande corrente popular dirigida por uma aristocracia do espirito que liga
o saber a uma autêntica piedade. Entre todos os grandes mestres fariseus, nenhum lhe parece ter uma mensagem
mais elevada que Hillel, cujo preceitos éticos universais acompanhavam juntos com as audaciosas decisões
haláchicas. Tal era a orientação que Geiger entendia dar ao judaismo reformado. Neste sentido, Hillel possuia
tudo de um verdadeiro reformador. Jesus o havia eclipsado aos olhos do mundo, mas na verdade ele era um dos
seus seguidores, o mais ilustre: “Jesus era um Fariseu que caminhava sobre os passos de Hillel. Ele não transmitia
um pensamento novo54”, esta era a convicção profunda de Geiger. Sem dúvida sua convicção não estava isenta
de uma preocupação apologética em um tempo que muitos judeus alemães eram tentados a fazer o passo da
conversão para adquirir seus “bilhetes de entrada” na sociedade. De fato, Geiger era sobretudo racionalista: depois
de por de lado tudo o que nos Evangelhos, emanava de lendas, ele via em Jesus um personagem muito semelhante
a Hillel. A critica textual era ainda muito pouco desenvolvida em seu tempo para que ele pudesse questionar a
historicidade das anedotas que colocavam em cena Hillel. Mesmo se opondo ao reformismo de Geiger, o
historiador de maior vulto da Wissenschft des Judentums, Heinrich Graetz, aproxima as duas figuras de Jesus e
de Hillel. Jesus teria reagido contra o rigorismo de Shamai se alinhando a Hillel, dado que Jesus como Hillel não
tinha a intenção de se separar da lei de Moisés. Hillel e Jesus, ambos possuiam “a nobreza de coração, a pureza
moral e a santidade religiosa”; eles consideravam “o amor pela paz e a doçura de carater coma as mais belas das
virtudes”. Em uma palavra, eles representam ‘a religiosidade superior55”.
Em 1863, Renan publicou a Vie de Jesus que deveria lhe conferir uma notoriedade universal; é
verdade que ele adotou um ponto de vista menos radical crítico que o alemão Strauss, mas ele apresentou Jesus
somente como um homem. Este especialista de linguas semíticas que conhecia admiravelmente o hebraico bíblico
possuia uma profunda repulsão pelo hebraico rabínico em que ele via “alguma coisa de bárbaro e sem inteligencia,
um desprezo desolante pela língua e pela forma56”. Mesmo que ele tenha escrito sobre o Talmud, ele não possuiu
jamais o conhecimento suficiente para ler uma página. Ele conhecia ao menos a parte mais acessivel, os Pirkei
Avot (principio dos Pais) onde estão concentradas quase todas as máximas atribuidas à Hillel. Na sua Vie de Jésus,
Renan emite portanto a hipótese de que Jesus conheceu essas máximas “não através do estudo, mas como
provérbios que eram frequentemente repetidos57”. Ao mesmo tempo que ele precisa que “Jesus adotou quase todo
Espinoza havia já exprimido uma opinião em latin. Cf M. Graetz, “Lectures juives de Jésus au XIX siècle”, Jésus de Nazareth. Nouvelle
approche d’une religion (éd D. Marguerat, E. Norelli, J. M. Poffet), Labor et Fides, Genève, 1990.
51 Cf M. Graetz, Les juifs en France au XIX siècle, Seuil, Paris, 1989, p 157.
52 Jésus-Christ et sa doctrine, t. II, p 502.
53 Para a pequena história, Salvador, que não sabia hebraico, citava em latin algumas máximas de Hillel encontradas nos famosos ecritos
antijudaicos de Wagenseil, Tela ignea Satanae (As flechas enflamadas de Satan), 1681.
54 Judentum und seine Geschichte, Breslau, 1862, vol. I, p 99-107.
55 Cf H. Graetz, Sinaï et Golgotha ou les origines du judaïsme et du christianisme, Paris, 1867, p 296-301 (obra publicada diretamente em
frances).
56 Origines du christianisme, t. VI, L’Eglise chrétienne, éd originale, p 245.
57 Vie de Jésus, éd 1867, p 85. Outras menções sobre Hillel p 37, 93, 95, 96.
50
Tradição Judaica no Novo Testamento
Cultura Judaica, História e Teologia
53
o ensinamento oral, mas introduzindo um ensinamento superior” pois “ele queria a perfeição58” e que se “Jesus
filho de Sirach59 e Hillel haviam emitidos aforismos quase tão elevados como os de Jesus, Hillel no entanto,
afirma Renan, não passaria jamais como verdadeiro fundador do cristianismo”. Renan escreve mesmo que “pela
sua pobreza humildemente vivida, pelo seu carater meigo, pela oposição que ele fazia aos hipócritas e aos
sacerdotes, Hillel foi o mestre de Jesus” mas, em seu estilo oscilante e sempre disposto a retratação, Renan corrige:
“se é permitido de falar de mestre quando ele age com uma tão elevada originalidade60”. Jesus não é “um rabino
a mais (é o mais charmoso de todos)” repetindo “as máximas, que na sua maior parte eram já difundidas entre a
população, é precisamente graças a Ele que essas máximas deveriam regenerar o mundo 61”. Aliás ele possuia
uma “alta noção da Divindade que não se devia ao judaismo62” pois era uma criança da alegre Galiléia distante
do “pedantismo farisaico63”, contrária à Jerusalém “verdadeira pátria do judaismo obstinado, fundado sobre os
fariseus64”. “Não somente Jesus não é o continuador do judaismo, Ele representa a ruptura com o espírito judaico,
ele sai do judaismo como Sócrates dos sofistas, como Lutero da Idade Média, como Rousseau do Século XVIII”,
conclui Renan65 no final de seu livro Vie de Jésus.
O teologo alemão Franz Delitzsch, vivamente ofuscado pelas “fantasias” de Renan que
frequentemente contradizem os Evangelhos, ironiza sobre seus “mistérios de Jesus” ou novos “mistérios de Paris”
e se empenha em refutá-lo em uma brochura destinada a uma grande difusão 66 . Ele havia explicitamente
evidenciado em Renan a idéia de que Hillel poderia ter sido o mestre de Jesus e coligava algumas páginas com a
idéia de Geiger sobre Hillel e Jesus. É porisso que ele se concentrou sobre a comparação entre estas duas figuras
e intitulou seu pequeno opúsculo (42 páginas) Jesus und Hillel. Este grande hebraisante protestante tinha antes de
tudo uma atitude amigável em relação aos judeus e foi um dos raros eruditos cristãos que teve acesso ao Talmud.
Ele queria admitir as qualidades de Hillel, de sua sabedoria, de sua humildade, de sua realeza, mas para melhor
sublinhar a incontestável superioridade de Jesus. Hillel não havia cumprido nenhuma reforma profunda, ele se
contentara de prolongar o ensinamento escolar de seus mestres Shemayah e Abtalion, ele permaneceu prisioneiro
da <casuística farisaica> e do <espírito estreito nacional>. Jesus, ele mesmo, não teve nenhum mestre e ele se
liberou de todo sistema rabínico; sua mensagem radicalmente nova era inspirada pelo Espirito Santo e atingia o
universal. Ele trazia uma religião de amor e de salvação do mundo através de seu sacrificio. Esta polémica, mesmo
que permanecendo cortez, se inscrevia no vasto trabalho de proselitismo do autor que tinha criado, em 1863, a
revista Saat und Hoffnung (Semente e esperança) destinada a converter os judeus (esta revista existiu até 1935).
Mais tarde ele traduziu o Novo Testamento em hebraico intencionando aos judeus (1877) e fundou a Leipzig,
uma institutição para a formação missionaria (1886) chamada após sua morte Institutum Judaicum Delizschianum,
ativo ainda hoje, mas com outros objetivos.
Um discipulo de Delitzsch, formado para ser missionario, Ferdinand Weber, decide escrever uma
obra descrevendo o judaismo antigo, que foi publicado em 1880. Weber, negligenciando a variedade dos
ensinamentos contidos nas fontes rabínicas, fez, porisso, do judaismo um <sistema> teológico segundo a maneira
moderna. A quinta-essência da religião judaica segundo ele era o <nomismo> ou o legalismo. Como resultado
disso, o Deus dos judeus permanecia infinitamente distante, e toda comunhão com o divino se tornou impossível,
resultando porisso um <judaismo abstrato> e um <trascendentalismo abstrato67>. Esta obra, como mostrou o
sábio americano, G.F. Moore, visava uma apologia do novo luteranismo, que durante quarenta anos foi <a
principal fonte dos escritores cristãos que tratavam ex professo ou incidentemente do judaismo no inicio da éra
cristã68>. Ele influenciou também vários eruditos pertecentes a outras escolas, mas todos se interessavam pelo
58
Ibid, p 86
Autor judeu do livro conhecido na Igreja como Eclesiástico, escrito por volta do ano -190, hoje é designado pelos especialistas com o
nome de Ben Sirac.
60 Ibid. p 38.
61 Ibid. p 95.
62 Ibid. p 77.
63 Ibid. p 65.
64 Ibid. p 67.
65 O que não o impede de escrever, em uma obra posterior, que <Jésus é mais um grande Judeu que um grande homem>, ou que o
cristianismo começa no século VIII com o proféta Isaias e que <Jesus não faz senão dizer, em uma linguagem popular e charmante, o que
se tinha dito ha sete séculos antes dele em hebraico clássico>, Les origines du christianisme, t. VII, Marc Aurèle (1882), p 634. Ele
acrescenta: <Seus discipulos fizeram d’Ele o que há de mais anti-judeu, um homem-Deus.>
66 ela teve várias edições: 1866, 1875, 1879 e foi traduzida em ingles.
67 System der altsynagogalen palästinischen Theologie 1880, retomado em 1886 com o sub-título Die Lehren des Talmuds. Como sublinha
G.F. Moore que lhe consagra um longo espaço no seu artigo (citado sopra, nota 1), p 228-239, seria ai, segundo Webwe, uma reação à
cristologia, mas seus leitores aplicaram sua teorias egualmente ao judaismo pré-cristão.
68 Moore, ibid, p 228.
59
Tradição Judaica no Novo Testamento
Cultura Judaica, História e Teologia
54
judaismo antigo somente para tratar do cristianismo. Assim o jovem W. Bousset69 se esforçou para mostrar que o
ensinamento de Jesus, não se fundamentava no judaismo, ele era fundamentalmente oposto, mas, não tendo ele
acesso às fontes rabínicas, ele descrevia o judaismo através dos Apócrifos e dos Pseudo-epígraficos privilegiando
o gênero apocalíptico onde ele acreditava encontrar a expressão de um Deus distante. A imagem dominante do
judaismo era no entanto, aos seus olhos, uma erudição árida centrada sobre a letra da Lei e completamente oposta
à vivacidade da mensagem evangélica70. O biblista Kittel seguiu o mesmo sentido na sua obra Jesus und die
Rabbinen (1914).
No final do século XIX a equação entre judaismo e legalismo era uma idéia adquirida, fato este que
nunca havia sido desenvolvido nas polémicas antigas malgrado as bases que poderiam fornecer as epístolas
paulinas 71 . Nas elites judaicas assimiladas da Europa, a imagem negativa recebida do judaismo produzia
frequentemente o fenômeno conhecido como jüdische Selbsthasse (ódio de si). Alguns judeus deram o passo da
conversão, outros encontraram no judaismo reformado o meio de permanecer fiéis aos ancestrais, escapando assim
à acusasção do legalismo. É neste contexto que se deve compreender a aparição de um opúsculo respondendo
àquele de Delitzsch entitulado Hillel und Jesus (Hambourg, 1905), de um rabino históriador, Paul Rieger, adepto
do judaismo reformado e da Wissenschaft des Judentus. A anterioridade de Hillel em relação a Jesus, com o qual
havia pontos comuns, devia mostrar que a mensagem cristã se enraizava no judaismo, e a irradiação de um mestre
que havia resumido toda a religião em uma máxima tão universal como a <regra de ouro> deveria isentar o
judaismo da acusação de legalismo.
2 - A reintegração de Jesus no judaismo no século XX
O paralelo entre Hillel e Jesus começou portanto a partir da apologética tanto do lado judaico como
do lado cristão. Com o tempo, viu-se desenvolver entre os sábios judeus formados nas Universidades ocidentais
o que um pastor evangélico contemporaneo, D.A. Hagner, chama <the Jewish Raclamation of Jesus 72 >. Na
Inglaterra, G. Friedländer estudava as fontes judaicas do Sermão da Montanha (1911), enquanto que Claude
Montefiore se consagrava ao estudo dos Evangelhos sinóticos de onde deveria surgir sua importante obra, The
Synoptic Gospels (2 vol., Londres, 1927) 73 . Na segunda metade do século XX, este movimento de
<reapropriação> de Jesus pelo judaismo se acelerou e ultrapassou o quadro da corrente reformada onde ele parecia
estar confinado74.
O grande precursor foi Joseph Klausner na sua obra Jesus de Nazaré escrito em hebraico e
imediatamente traduzido em frances (Payot, 1933). Nesta biografia, em que o autor se esforça dar uma noção
exata do Jesus hostórico <que não seja nem o da teologia cristã e nem tampouco o da teologia judaica>, mostra
que Jesus sempre viveu como um judeu. Se sua mensagem não pode ser aceita tal qual aos seus irmãos, é que Ele
se limitou à moral e deixou de lado partes inteiras importantes do judaismo. Como conclusão intervem um
interessante paralelo entre Jesus e Hillel: Jesus foi sobretudo um pregador de moral - e porisso combativo; Hillel
não foi inferior sobre o plano moral, mas ele não se desinteressou dos outros aspectos da vida de seus irmãos.
Hillel não foi somente um <mestre e um rabino, mas também um juiz, um legislador e um chefe 75> que havia
como preocupação a manutenção da paz social. Esta conclusão, seguindo a um estudo erudito, sublinhava
paradoxalmente, através da comparação entre Hillel e Jesus, a oposição do ortodoxo e da corrente reformada. Para
este último, Hillel prefigurava Jesus pois ele enfocava sobretudo a moral: para o judaismo ortodoxo, a esféra do
religioso englobava todos os aspectos da vida, o que Hillel eceitava e que Jesus recusava.
69
Jesu Predigt in ihrem Gegensatz zun Judentum. Ein religionsgeschichtlicher Vergleich (1892), trad. ingles, New York, 1911. Moore
nota p 24 que ele e outros especialistas do Novo Testamento - Scürer, Baldensperger, Weiss - tinham então menos de trinta anos e que
Scürer era o único que possuia algumm conhecimento das fontes rabínicas.
70 Cf a crítica de Bousset por P. Sanders na introdução de sua obra Paul and Palestinian Judaism.
71 Cf Moore, ibid, p 252. A única obra alemã do final do século XIX que Moore nota a ciência e a objetividade é a de Gustav Dalman,
Die Worte Jesus, mit Berücksichtigung des nachkanonischen jüdischen Schriftums und des aramäischen Sprache (1898], trad. ingles,
Edimbourg, 1909. Delman faz uma recensão (p 77-78) das obras cristãs ou judaicas que fizeram paralelo entre o Novo Testamento e a
literatura rabínica, geralmente de uma parte ou de outra com objetivos apologéticos.
72 É o título de sua obra publicada em Grand RApids, Michigan, em 1984, sub-titulada <An Analysis and Critique of the modern Jewish
Study of Jesus>. A partir de um tom moderado, o autor critica esta <reapropriação> do Jesus da história onde ele não reconhece o Cristo.
73 Ver os pontos de vista desses dois autores resumidos por B. Lindeskog em Die Jesusfrage in neuzeitlichen Judentum, Uppsala, 1938, p
250.
74 Cf P. Lapide, Israli Jews and Jesus, New York, 1979. Este autor nota que de 1948 a 1975 se publicou em hebraico 187 livros sobre
Jesus, bem mais que os dezoito séculos precedentes. Ver também Sh. Malka, Jésus rendu aux siens, Albin Michel, Paris, 1999.
75 Jésus de Nazareth, Payot, Paris 1933, p 561.
Tradição Judaica no Novo Testamento
Cultura Judaica, História e Teologia
55
No final do século XX vê-se um ensaio de aproximação entre judeus e cristãos que se reflete nas
publicações que mostram a judaicidade de Jesus. Assim o catolico alemão Laurenz Volken escreveu Jesus der
Jude (Düsseldorf, 1985). O israelense Schalom Ben Chorin publica Bruder Jesus (Munich, 1967) traduzido em
frances com o título de Mon frère Jésus (Seuil, 1983) que faz de <seu irmão judeu> Jesus <um revolucionario de
coração>. O históriador frances Robert Aron faz descobrir ao grande público o fundamento judaico dos
Evangelhos nos Les Années abscures de Jésus (Grasset, 1960) e Ansi priait Jésus (Grasset, 1968). No seu conjunto
as publicações cristãs não deixam de mencionar que Jesus viveu como Judeu.
Existe menos unanimidade quando se trata de ligar o Jesus histórico a tal ou tal corrente do judaismo
de seu tempo (a corrente dos saduceos é a única excluida). Em 1968, o Ingles Brandon provocou rumores no
desenvolvimento da tese de um Jesus zelota. O exegéta frances Charles Perrot, no Jésus et l’histoire (Desclée,
1979), ensiste sobre a corrente batista. Na sua célebre obra intitulada Jews the Jew (Londres, 1973), Geza Vermes
revela a semelhança entre Jesus e alguns carismáticos <fazedores de milagres>, Honi76 ou Hanina ben Dosa.
Ademais, a velha idéia, afirmada sem prova no século XIX, segundo a qual o cristianismo seria um <essenismo>,
se despertou por ocasião das descobertas dos escritos do Mar Morto e hoje não se leva em consideração as
publicações mais ou menos cientifica fazendo de Jesus um Essênio ou o discipulo de João Batista essênio.
A image de Jesus fariseu, afirmada por vários autores judeus a partir do século XIX 77 e retomada
entre outros pelo rabino americano H. Falk no seu livro Jesus the Pharisee (New York, 1984), as vezes encontra
eco do lado cristão que se apoia notadamente sobre textos de Flavio José que caracteriza a doutrina farisaica pela
crença na ressurreição dos mortos e na conciliação entre a providência divina e o livre arbítrio do homem78.
Este ponto de vista que, até o inicio do século XX se apoiava antes de tudo sobre a comparação entre
Hillel e Jesus, se tornou mais aceitável do lado cristão depois da reabilitação dos Fariseus da Antiquidade, iniciada
no término da Segunda Guerra mundial e após o Concilio Vaticano II; a preocupação de isenter os judeus
comtemporâneos dos ataques hostis contra aqueles aos quais eles são os herdeiros não é estrangeira. Assim sendo,
as palavras violentas contra os Fariseus atribuidas a Jesus em Mateus 23, são geralmente interpretadas como fruto
da polémica que se opunha aos primeiros cristãos à única corrente judaica sobrevivente após o fracasso da grande
revolta judaica conta Roma no ano 70. Mas em outras atitudes onde Jesus se opõe aos Fariseus a conclusão final
depende da importância dada à crítica textual.
Muitos cristãos permanecem reticentes para classificar o Jesus da história dentro de uma corrente ou
de outra do judaismo, se põe mesmo a questão de sua novidade. Por outro lado é dificil separar totalmente nos
Evangelhos sinóticos, que são nossa principal fonte, os aspectos históricos e cristológico difundidos nos textos.
Recentemente, um professor da Catholic University of America de Washington, John P. Meier,
tentou imaginar o que poderia sair de um diálogo entre um católico, um protestante, um judeu e um agnóstico
fechados na Divinity School de Harvard, até que eles terminassem de redigir um documento consensual sobre
Jesus que pudesse servir de base para um diálogo ecuménico. O resultado é um inteligente estudo em três grossos
volumes, rapidamente apresentado como uma obra de referência sobre Jesus histórico. É significativo que Jesus
desta obra é qualificado de <judeu marginal79>.
Portanto fora algumas exceções80, a reintegração do Jesus histórico no seu quadro judaico é aceito.
É dentro da atmosféra do diálogo judeu-cristão que aconteceu em Jerusalém, em junho 1992, um colóquio
internacional em que os trabalhos publicados em 1997 se intitulam Hillel and Jesus. Comparisons of Two Major
Religious Leaders81. Estes trabalhos permitem retomar a comparação entre seus dois ensinamentos a partir de
novas bases.
76
Este personagem é mencionado sob o nome helenizado de Onias por Flávio José, AJ XIV, 22-24.
Martin Buber, Two Types of Faith (London, 1955), p 137; P. Winter, On the Trial of Jesus, Berlin-New York 1974, p 186; D. Flusser,
Jésus, Seuil, Paris, 1970, p 81; H. Macoby, Revolution in Judaea, London, 1973, p 106.
78 Ver por exemplo o artigo de um sábio protestante, W. Phipps, “Jesus the Prophetic Pharisee” in Journal of Ecumenical Studies 14
(1977), p 17-31.
79 A Marginal Jew. Rethinking the Historical Jesus, dois volumes aparecidos, Doubleday, New York, 1991 e 1994; o terceiro volume está
por aparecer. (n.t. esta obra está traduzida em portugues pela Imago).
80 Por exemplo o “Jésus méditerranéen” de André Paul, novas desaventuras de Jesus ariano do século XIX (Foi et Vie, vol. 92 nº 5, sept.
1993, p 101-111). Ver as vivas reações contra este artigo: M.R. Mecina, “Hérode-Messie ou l’apologie du ‘Renard’ de A. Paul: Réponse
à une désinformation historico-théologique” Ad Veritatem, Bruxelles, 1994, p 19-43, e “Jésus ‘le juif’ ou Jésus ‘l’Hérodien’. A propos
d’une thèse d’ A. Paul”, Foi et Vie vol. 93 nº3, juillet 1994, p 87-104.
81 Publicados sob a direção de J.H. Chalesworth e L. Johns, Fortress Press, Mineapolis, 1997.
77
Tradição Judaica no Novo Testamento
Cultura Judaica, História e Teologia
56
3 - A regra de ouro
Na primeira lista das palavras de Hillel e Jesus entre a mais comum posta em paralelo, encontra-se a
famosa <regra de ouro> enunciada por Hillel sob a forma negativa: <Não faz a outro o que não queres que te
faça> (Shabbat 31a) e enunciada por Jesus sob a forma positiva: <fazei a outros o que quereis que eles vos façam>
(Lc 6,31; Mt 7,12). Este preceito é suposto resumir toda a Tora (Hillel) ou <a lei de Moisés e os livros proféticos>
(essas palavras de Jesus se encontram unicamente em Mt 7,12).
Nas polémicas do século XIX, quase todos os teólogos cristãos puseram no primeiro plano a fórmula
evangélica para sublinhar a superioridade82: o cristianismo ensinaria uma moral positiva e o judaismo uma moral
negativa. A esta posição alguns sábios judeus contestavam dizendo que não havia diferença entre as duas
formulações 83 ; outros lembravam que Agostinho nas Confissões (I, 18) não hesitou parafrasear a fórmula
evangélica por <não faça a outro...> Sublinhando que as duas versões derivam de preceitos positivos bíblicos, tais
como: <Tu amarás teu próximo como a ti mesmo> (Lv 19,18) e <amarás o estrangeiro> (Dt 10,19), I. Abrahams
observa que a fórmula negativa é mais fundamental e resume melhor a moral social84.
O ensaista Asher Ginzberg, melhor conhecido sob o pseudônimo hebraico Ahad HaAm, coloca o
debate na dialética do autruismo e do egoismo. Segundo ele, a concepção judaica da justiça exclui as duas atitudes:
<Assim como eu não posso arriscar a vida do outro para o meu próprio interesse, eu não posso riscar a minha vida
para o interesse do outro. Somos todos os dois homens e nossas duas vidas têm o mesmo valor diante do trono da
justiça85>.
Entre as posições tomadas as mais apaixonadas ignoram geralmente as questões colocadas pela
crítica textual. Elas supõem implicitamente que as afirmações citadas são sustentadas por personagens históricos
enquanto que se trata de tradições concernentes a estes personagens. Como mostra P. Alexander86, a citação da
regra de ouro de Hillel não se encontra senão em uma baraita do Talmud da Babilonia e é ausente nas duas
versões de Avot de Rabbi Nathan A15 e B29 (século III) enquanto que as outras anedotas que se opõem à
paciência de Hillel à irracibilidade de Shamai são citadas87. Estas anedotas parecem pertencer a um periodo onde
os esteriótipos de Hillel et de Shamai foram constituidos privilegiando o primeiro, e a parte relativa à regra de
ouro, ausente em Avot de Rabbi Nathan, poderia ser uma adição posterior.
A crítica neo-testamentaria não atribui a Jesus o Sermão da Montanha como o ensinamento que
segue, em que a regra de ouro <positiva> é posta em Sua boca, embora sabendo que a redação dos Evangelhos é
cronologicamente mais próxima dos episódios evocados. Aplicando à logia de Jesus, - isto é, às suas sentenças
de sabedoria - ao método da história da forma, Rodolf Bultmann incluia desde 1921 a regra de ouro de Mt 7,12 e
Lc 6,31 na categoria dos meshalim ou máximas profanas <transformadas em palavra de Jesus pela tradição88>.
Segundo ele, <todas estas palavras são pouco ou nada caracteristicas de uma piedade nova que ultrapasse o
judaismo. São observações sobre a existência, de regras de bom senso e de moral popular89>. Mais precisamente,
tratando-se da regra de ouro, ele considera como uma <ilusão acreditar que a formulação positiva seria
caractiristica de Jesus, diferenciando da formulação negativa atestada entre os rabinos. Isto é puro acidente, pois,
que ela seja positivamente ou negativamente formulada, esta palavra considerada por ele mesma exprime a moral
de um inocente egoismo90>.
De fato, a regra de ouro parece surgir de um fundo de sabedoria comum, bem anterior à Hillel e
Jesus. A. Dihle 91 evidenciou ocorrências na literatura grega após Thales ou Heródoto. Ela está igualmente
presente entre os contemporâneos chineses, Confúcio (-551 a -479)92, ou no Mahabharata (XII, 259, 20). Na parte
judaica, ela é atestada no livro de Tobias (4,15) datada seja no periodo persa (-350), seja no periodo helenista (200), assim como na Carta de Aristeo a Filocrata (aproximadamente -150) contando as circunstâncias da tradução
do Pentateuco em grego na Alexandria.
Cf P.S. Alexander, “Jesus and the Golden Rule”, in Hillel and Jesus, p 379.
Cf Hamburger citado por I. Abrahams, Studies in Pharisaism and the Gospels, Cambridge, 1917, reimpresso, New York, 1967, p 22.
84 Ibid, p 22-20. Sua interpretação é retomada por Cl. Montefiore in The Sinoptic Gospels II, p 119-120 e in Rabbinic Literature and
Gospel Teachings, London, 1930, reeditato New York, 1970, p 150.
85 “Le judaïsme et les Evangiles” (1910) retomado em Kol Kitvé Ahad HaAm, Tel Aviv, 1947, p 374 e Ten Essays on Judaism, New York,
1973, p 236, citado por P.S. Alexander (artigo citado).
86 Artigo citado, p 364-369.
87 Ademais uma história análoga é contada a proposito de RAbi Akiba em Avot de Rabbi Nathan, B26.
88 R. Bultmann, Histoire de la tradition synoptique, Trad. francesa, Le Seuil, Paris, 1973, p 134.
89 Ibid, p 136.
90 Ibid, p 135.
91 Die ‘Goldene Regel’: Ein Einführung in die Geschichte der antiken und frühchristlichen Vulgärethik, Göttingen, 1962, p 85-102.
92 Analectes 15.23, cf Alexander, artigo citado, p 373.
82
83
Tradição Judaica no Novo Testamento
Cultura Judaica, História e Teologia
57
No interior do judaismo, a regra de ouro pode, como frequentemente sublinhamos93, ser vista como
uma reformulação do <Amarás teu próximo como a ti mesmo> (Lv 19,18) que, segundo (Mc 12,28ss e Mt 22,34ss;
Rm 13,8-10; Gl 5,14), e segundo Rabi Akiba, é um dos principais mandamentos da Tora. A originalidade do
judaismo é a busca, sensivel as vezes nos Evangelhos e no Talmud, de um grande princípio englobando a essência
mesma da Tora94. A formulação positiva pode cobrir a noção de guemilut hasadim apresentada alhures (Pirkei
Avot I, 2) como um dos tres pilares do universo: ela prescreve praticar a caridade e estar junto ao seu próximo na
alegria e na dificuldade.
Somente a frase que Hillel acrescenta se dirigindo ao futuro prosélito: <agora va e estuda95>, sublinha
um diferença essencial: Jesus aparece, segundo a fórmula de Delitzch, como um <mestre sem mestre> (Lehrer
ohne Lehrer), ele fala como <fazendo autoridade>. Hillel se situa já numa longa tradição de sábios; ele não exige
que o ouça pessoalmente, mas que a transmissão do saber ancestral se perpetue.
4 - As máximas paralelas
Faz já um século que os eruditos começaram a evidenciar os paralelos entre o ensinamento de Jesus
e o dos rabinos. É <a deliciosa estrannheza> da narração semítica, isto é, da palavra que, segundo Renan, fez o
sucesso dos Evangelhos e conquistou as <raças difíceis96> da Europa. As parábolas do Novo Testamento e os
escritos rabínicos forneceram portanto a parte a mais importante destas comparações97. Sobre dois mil parábolas
rabínicas 325 são dataveis entre os dois primeiros séculos e destas apareceram em torno de trinta que são paralelos
com os Evangelhos98 e em torno quarenta se assemelham muito. A proximidade das metéforas - por exemplo do
rei ou o mestre para designar Deus - é muito grande. A parábola representa certamente um gênero muito vivo no
tempo de Jesus, mas as fontes rabínicas anteriores ao II século são tão raras que as que sebreviveram não contem
quase parábolas. São portanto os Evangelhos que, no I século, ilustram a existência de um gênero muito familiar
no interior do judaismo.
As parábolas atribuidas a Hillel, como aquela da estátua, se reencontram em textos muito posteriores
o que dificulta afirmar sua autencidade. Restam as máximas ou logia. Estas fórmulas incisivas parecem ter sido
o gosto de Hillel, mas existe muito pouco em comparação às que os Evangelhos atribuem à Jesus. Eis aqui algumas
que parecem fazer eco:

Pois nada há de oculto que não venha a 
Não diga alguma coisa que não possa ser
ser manifesto, e nada de segredo que não ouvida, pois no final ela terminará por ser
venha à luz do dia. (Mc 4,22; Lc 8,17).
escutada. (Pirkei Avot II,5).

Quem não ajunta comigo, dispersa. (Mt 
Quando se ajunta, dispersa, quando se
12,30; Lc 11,23).
dispersa, ajunta. (Tos. Berakhot VI, 24; tj Ber.
IX, 5; tb Ber.63a).

Pois todo aquele que se exalta será 
Hillel dizia: minha humilhação é minha
humilhado, e quem se humilhia será exaltado. exaltação e minha exaltação é minha
(Lc 14,11; Mt 23,12).
humilhação. (Lv Raba I,5/ sobre Lv 1,1: tb
Eruvin 13b; Sanh. 17b).

Pois àquele que tem, lhe será dado e lhe
Aquele que não ajunta, diminue. (Pirkei
será dado em abundância, mas ao que não tem, 
Avot
I,3).
mesmo o que tem lhe será tirado. (Mt 13,12;
Mc 4,25; Lc 8,18).
Cf W.H.P. Hatch, “A Syriac Parallel to the Golden Rule”, Harvard Theological Review 14 (1921), p 194, e P. Alexander, art. citado.
Cf Alexander, artigo citado, p 382-388.
95 T.W. Manson, The TEaching of Jesus, Cambridge, 19552, p 305, faz uso destas palavras para fazer apologia da mensagem evangélica
sublinhando que para Hillel o comentario “is in every whit as essential as the Golden Rule”.
96 E. Renan, Origines du christianisme, t. V, Les Evangiles, éd. originale, p 101.
97 Cf bibliografia dada por C. Evans, Jesus and his contemporaries. Comparative Studies, Brill. Leyde-New York, Cologne, 1955, p 251.
98 Ibid, p 252.
93
94
Tradição Judaica no Novo Testamento
Cultura Judaica, História e Teologia
58

Mas Jesus lhe disse: guarda a tua 
Porque tu afogaste, foste afogado e
espada no seu lugar, pois todos os que pegam aqueles que te afogaram serão afogados. (Pirkei
na espada, pela espada perecerão. (Mt 26,52). Avot II,7).
Não julgues a teu próximo antes de estar

Não julgueis e não sereis julgados. (Mt 
no
seu
lugar.
(Pirkei Avot II,5)
7,1; Lc 6,37)
No total a colheita é magra quando se compara os textos precisos. No entanto se pode ter a impressão
geral de uma proximidade entre os dois mestres tão vizinhos cronologicamente que prescreviam uma sabedoria
universal <de maneira cínica ou estoica99> correspondendo ao espírito do tempo.
5 - Semelhanças e diferenças
Evidentemente que é o amor pela paz e o amor pelas criaturas100 que mais justificam a proximidade
entre Hillel e Jesus. Poderiamos também acrescentar o amor pela Tora mesmo que cada um, a sua maneira, tenha
trazido às leis bíblicas algumas modificações101. Jesus não disse: <Eu não vim para abolir, mas cumprir> (Mt
5,17)? A confiança em Deus deste dois mestres se exprime nas suas maneiras de se comportarem: Hillel não faz
reserva e bendiz Deus: <dia após dia> (Beitza 16a). Jesus, por sua vez, aconselha de não se preocupar com o dia
de amanhã: <A cada dia basta a sua pena> (Mt 6,34). Segundo o que podemos jugar pelos textos sobreviventes,
Hillel espera o <mundo futuro> como Jesus o <reino dos céus> ou <o mundo a vir102>.
As diferenças não são menos evidentes. O babilônico Hillel veio a Jerusalém para adquirir toda a sua
ciência hermenêutica dos mestres da Judeia. Jesus aparece como um produto espontâneo de uma Galiléia simples
e interiorana. Um adquire respeito por seu saber e suas arbitragens jurídicas, o outro ganha as multidões por sua
pregação e seus milagres. Um morre de sua bela morte após uma longa carreira e deixa uma descendência, o outro
passa como um meteoro e padece crucificado na flor da idade. E sobretudo, na memória dos homens, um
permanece homem, simplesmente homem, o outro se torna o Cristo.
No entanto há um fato que fora raramente mencionado. De todas as correntes que agitaram o
judaismo no primeiro século, as únicas que sobreviveram são as originadas de Hillel e de Jesus. Enquanto que os
discípulos de Jesus fundam o cristianismo, a corrente farisaica, que sobreviveu à catástrofe de 70, afirma com
insistência que ela perpetua o ensinamento de Hillel.
☞ Tradução: Elio Passeto
☞ Jerusalém, março, 2006
Ch. Perrot a propósito de Jesus em “Pluralité théologique du judaïsme au I er siècle”, Jésus de Nazareth. Nouvelles approches d’une
énigme (éd D. Marguerat, E. Novelli, J.M. Paffet) Labor et Fides, Genève, 1998, p 173. Se encontra muitos paralelos com outores gregos
e latinos no artigo de A. Kaminka, “Hillel’s Life and Work”, Jewish Quartely Review 30 (1939-1940), 118-119.
100 Cf por exemplo Piekei Avot I, 12 citado supra e Mt 5,9.
101 Ver supra as taqqanot de Hillel e, para Jesus, a valorização das leis bíblicas em Mt 5, 21-47.
102 A expressão rabínica haolam haba, ‘o mundo a vir’ se encontra frequentemente sob a forma grega ο΄ μελλω ou ερχο΄μενος, no Novo
Testamento cf Mt 12,32; Mc 10,30; Lc 18,30.35; Ef 1,21; Heb 6.5.
99
Tradição Judaica no Novo Testamento
Cultura Judaica, História e Teologia
59
UNIDADE VIII
QUEM É UM JUDEU?
Questão difícil. Nem mesmo o Estado de Israel, o Estado judeu, não deu resposta satisfatória para
todos. Seguramente, não se trata de uma particularidade natural, biológica: já foi provado cientificamente que o
povo judeu não constituía uma raça, mas que era proveniente de uma mistura de raças.
Não é, principalmente, o lugar de origem: há judeus instalados na França há muito tempo, outros
provenientes da Rússia, no fim do século XIX, ou da Polônia, da România, da Bulgária... (atual Europa do Este)
antes da Segunda Guerra Mundial, ou, mais recentemente, da África do Norte.
 Não é a língua: cada um fala a língua do país onde se encontra.
 Não é a religião: se alguns judeus são observantes, outros se afastaram da sinagoga, enquanto outros aderiram
à fé da Igreja. Esses últimos, porém, não são mais considerados como judeus no grupo a que pertencem.
Não é tão pouco o fato de possuir leis próprias, espécie de estado no Estado. Exceção feita aos crentes
no que concerne ao domínio religioso, eles seguem a legislação do país do qual são cidadãos.
Então... quem é judeu?
De acordo com a Halakah, tradição oral que indica as normas de vida, é judeu quem nasceu de mãe
judia. No entanto, sem ser de mãe judia, muitos, que não podem justificar uma longínqua ascendência judaica, se
reconhecem e se dizem, portanto, judeus. Talvez não freqüentem habitualmente a sinagoga, talvez não observem
as leis alimentares nem o repouso do sábado; eles se consideram, porém, judeus sem sentir sempre a necessidade
de dizer isso.
O fato de ser judeu não significa, pois, em primeiro lugar, a adesão a uma confissão religiosa, mas
o fato de pertencer a um povo. Praticantes ou não, leigos de alguma forma, mesmo “ateus”103, os judeus se
reconhecem em comunhão de destino com seu povo.
Mais próximo da realidade, portanto, sem dúvida, mais próximo da verdade, é aceitar, com a grande
maioria dos judeus hoje, além de quem nasceu de mãe judia, que judeu seja aquele que se reconhece como tal e
afirma sua pertença a esse povo.
Vocabulário: Antes de entrar de falar sobre judaísmo é necessário precisar o sentido de algumas
palavras: judaísmo, Israel, Israeli, Israelita, judeu, judaicidade, hebreu...
Antes de qualquer coisa, que se compreende pelo “judaísmo” que constitui o objeto e o título deste
trabalho? Como todas as palavras em “ismo”, indicam um termo geral que abrange tanto a religião como a cultura
e o pensamento judeus. Depois da reforma de Esdras na volta do exílio de Babilônia, por ocasião da construção
do Segundo Templo (± 530 a.C.), até hoje, há o costume de chamar judaísmo tudo que constitui a vida judaica,
tanto do ponto de vista intelectual como do prático ou litúrgico.
“Israel” é um termo profundamente ambíguo. No Primeiro Testamento, não se trata do “povo de
Israel”, dos “filhos de Israel”, segundo o nome dado a Jacó no final da luta que teve com Deus104. Após a separação
em dois reinos (± a.C. 930), será chamado reino de Judá o reino do sul e reino de Israel, o do norte, até sua
conquista pelos Assírios (± a.C. 721).
Desde o 2o século da era cristã, o termo “Israel”, caído em desuso, será retomado pela Igreja nascente
que vai chamar a si mesma de “novo Israel”, crendo poder substituir o povo do Primeiro Testamento.
Hoje em dia, Israel considera-se uma realidade geopolítica e humana ao Estado, nascido em 1948.
Nós lhe reservamos essa significação. Em conseqüência, é “Israeli” todo cidadão do Estado de Israel,
independente de sua religião - judia cristã ou muçulmana - sua indiferença religiosa ou, eventualmente, sua
declaração de ateísmo.
Israeli não deve ser confundido com “israelita”. Até o final da Segunda Guerra mundial, israelita
designava um judeu, religioso ou não. Mas com o desenvolvimento da assimilação, esse termo evocava um
judaísmo sem cultura judaica, logo, antes negligente no plano da prática, usado principalmente nas siglas ou
expressões estereotipadas.
Após a volta do exílio da Babilônia, aparece o termo “judeu” dado do exterior àqueles que voltaram
à província de origem, a Judéia, sendo, por esse motivo, denominados Judeus (da mesma maneira, encontra-se
103
O ateísmo judeu é bastante único em seu gênero: talvez seja antes recusa de contar com Deus que simples negação de Deus.
Por tudo que se refere à história bíblica, consultar: G. Sindi, Le peuple de la Bible, n. 10. Coll. Tout Simplement, Editions del’Atelier,
1994.
104
Tradição Judaica no Novo Testamento
Cultura Judaica, História e Teologia
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em grego: judaísmo; em latim: judaei; em alemão: juden; em espanhol: judios; em polonês: jidku...). Dado
exteriormente, o termo “judeu” traduz certa distância da parte daquele que fala, ganhando muito depressa uma
conotação pejorativa que se encontra no quarto evangelho. Aí o autor designa “os judeus” como um grupo ao
qual não pertence! Seguindo Jesus, ele tomou distância em relação àqueles de seu povo que não o reconheceram
e que ele consideraria, desde então, como seus adversários. Eis porque, no evangelho de João, a expressão “os
judeus” não designa o povo judeu em geral, mas os inimigos de Jesus.
No que diz respeito a um judeu, falar de sua “judaicidade” é evocar o motivo por que ele é judeu,
sua pertença a esse povo. A judaicidade, o fato de ser judeu, não deve ser confundida com o judaísmo que designa
principalmente o que o judeu deve observar: sua tarefa, sua missão para viver em conformidade com sua
judaicidade.
Quanto ao termo “hebreu”, após ter no Primeiro Testamento designado os membros do povo, os
Hebreus, só é aplicado, hoje em dia, no que concerne ao Estado de Israel e principalmente à língua que aí se fala.
O hebreu é, antes de tudo, a língua da Revelação no Primeiro Testamento.
Se muitos judeus se tornaram cidadãos do Estado de Israel, mais numerosos são eles na Diáspora.
De uma raiz grega que significa “dispersão”, a Diáspora é o termo utilizado para designar os Judeus disseminados
no mundo inteiro; hoje ele é empregado mais precisamente por oposição ao povo judeu reunido no país de Israel.
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UNIDADE IX
BIBLIOGRAFIA
1) Documentos da Igreja
PONTIFÍCIA COMISSÃO BÍBLICA. O povo judeu e as suas Sagradas Escrituras na Bíblia Cristã. São Paulo:
Paulinas, 2002.
WILLEBRANDS, Johannes Card. Notas para uma correta apresentação dos judeus e do judaísmo nas
pregações e catequese da igreja católica, Roma: maio 1985.
2) Bibliografia básica
DEL AGUA PÉREZ, Agustín. El método midráshico y a exegese do Novo Testamento. Valencia: Artes Gráficas
Soler S.A.,1985.
HADDAD, Rabino Philippe. Jesus fala com Israel: uma leitura judaica das parábolas de Jesus. S. Paulo: Edições
Fons Sapientiae, 2015.
RIBEIRO, Donizete Luiz. Convidados ao Banquete Nupcial - Uma Leitura de Parábolas No Evangelhos e na
Tradição Judaica. S. Paulo: Edições Fons Sapientiae, 2015.
SCARDELAI, Donizete. Da religião bíblica ao judaísmo rabínico. S. Paulo: Paulus, 2008.
3) Bibliografia complementar
BARRERA, J.T. A Bíblia judaica e a Bíblia cristã: introdução à história da Bíblia. Petrópolis: Vozes, 1996.
COLLIN, Mathieu e LENHARDT, Pierre. Evangelhos e tradição de Israel. S.Paulo: Paulus, 1994, C.C.B, nº
58.
LENHARDT, Pierre e COLLIN, Mathieu. A Torá oral dos fariseus. S. Paulo: Paulus, 1997. C.C.B. n° 73.
BERKOVITS, E., Not in heaven; the nature and function of halakha. Ktav, 1983. GROSS, Pe. Fernando. O
ciclo das leituras da Torah na sinagoga. S. Paulo: Edições Fons Sapientiae, 2014.
KETTERER, Eliane e REMAUD, Michel. Midraxe. S.Paulo: Paulus, 1996.
LE DÉAUT, R., Targum du Pentateuque: traduction des deux recensions palestiniennes. SC. nº245, 1978.
MAIER, Johann. Entre os dois Testamentos: história e religião na época do Segundo Templo. S.Paulo: Loyola,
2005.
MENARD, J.E.(ed.), Exegese Biblique et Judaïsme. F.T.C.P.U., 1973.
REMAUD, Michel. Evangile et la tradition rabinique. Bruxelles : Lessius, 2003.
VOGELS, W. Abraham et sa legende. Genèse 12,1-35 (Col Lire la Bible 110). Paris : Cerf, 1999.
STRACK, H. L. et STEMBERGER, G., Introduction au Talmud et au Midrash, Cerf,1986. WENIN, A.
L’homme biblique: anthropologie et ethique dans le Premier Testament. Paris: Cerf, 1995.
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