louis kahn e 0 poder da arquitectura
Transcrição
louis kahn e 0 poder da arquitectura
NELSON NOTA CORRESPONDENTES LOUIS KAHN E 0 PODER DA ARQUITECTURA N u m dos momentos mais marcantes do documcntario My> Architect. A Son's Journey, u m antigo colaborador de Louis Kahn fica indignado com o tempo que o realizador do filme p r e v ê para mostrar o edificio da Assembleia Nacional do Bangladeche, em Daca. "Dez n ü n u t o s ? " , pergunta Shamsul Wares ao entrevistador, e acrescenta emocionado: "Nao se pode tratar u m edificio destes assim! Kahn deu-nos a democracia... Ele deu-nos a institui^ao para a democracia a partir da qual nos pudemos erguer." Poucos arquitectos se poderao orgulhar de u m dia a l g u é m dizer sobre eles o que u m bangladecliiano disse sobre Kahn: que Ihe deu a democracia. Esta prova contundente do poder da arquitectura t a m b é m serve para justificar o t i t u l o dado a exposicao retrospectiva The Power of Architecture. Este t i t u l o tem, no entanto, algo de p r o v o c a t ó r i o . Kahn foi, e talvez ainda se possa dizer que seja, u m arquitecto de arquitectos, cuja obra nunca se inseriu nos padroes de gosto dos media nem f o i objecto de u m interesse comercial particular. Para u m arquitecto com u m nicho restrito de admiradores, a maior parte deles arquitectos, onde esta o poder da sua arquitectura? De que modo é que a obra de Louis Kahn nos permite perceber melhor as circunstancias em que f o i produzida e, principalmente, de que f o r m a podera contribuir para enfrentarmos os desafios com que a arquitectura se depara nos nossos dias? Esta exposicao ajuda-nos a responder a estas q u e s t ö c s . Esta organizada em seis nucleos que tentam agrupar a obra de Kahn em outros tantos temas, sem preocupagao de sequência cronológica, arruma^ao geografica ou pretensa coerência disciplinar. Aquilo que confessadamente pareceu interessar aos comissarios f o r a m OS temas que i n f o r m a m a p e r t i n ê n c i a da obra de Kahn no tempo presente. Ficou para tras a discussao de q u e s t ö e s estritamente discipUnares - ja abordadas em duas grandes retrospectivas anteriores - como a documenta^ao do processo de trabalho do arquitecto ou as p r e o c u p a c ö e s no§öes tao difusas como as de modernismo e pós-modernismo. Agora o foco é apontado para a presciência de Kahn em relagao a assuntos actuals, tais como a revisitagao a temas caros ao movimento mctabolista dos anos de i 9 6 0 através do destaque a concepgao de sistemas modulares para a construgao em massa, ou o desenvolvimcnto de uma cultura de projecto ecologicamcnte responsavel, ou ainda apresentando as estruturas espaciais de Kahn como exemplo da rela^ao da arquitectura com a ciência moderna. A esta vontade de apresentar Kahn como uma espécie de visionario, os comissarios acrescentam dois temas mais convencionais: a Cidade e a Casa. N o entanto, existe u m aspecto recorrente, tanto no documentario de 2003, como agora nos textos do catalogo, nas comunica^öes do dia de abertura da exposicao, ou nas entrevistas a arquitectos famosos apresentadas na exposicao: a ideia de intcmporalidade na obra de Kahn. N o documentario de Nathaniel Kahn, por exemplo, é referido que durante a guerra de i n d e p e n d ê n c i a do Bangladeche com o Paquistao, em 1971, OS pilotos paquistaneses nao se preocuparam em bombardear o edificio da Assembleia Nacional porque pensavam que se tratava de uma ruina. Este relato é eloquente: o que é mais intemporal do que uma ruina? A exposicao dedica o nucleo Eternal Present. Ruins and Archetypes a este assunto, mas a decisao de colocar este tenia a par com os outros nao ilustra hem a sua centraHdade e transversalidade na obra de Kahn. Se o objectivo da divisao tematica f o i construir uma imagem de Kahn e da sua obra como simultaneamente comprometidos com o status quo e o intemporal, a observacao das pecas expostas parece, no entanto, valorizar mais a u l t i m a do que a primeira, tal como 80 CORRESPONDENTES 61 Aspecto da exposifao. O crocodilo tem de querer ser um crocodilo por razöes do crocodilo. Fotografia: Nelson Mota O do ,acöes ;nto em esciência de •evisitacao IS de i 9 6 0 lulares Ito de uma OU ain da 310 exemplo a. espécie to, existe e 2003, icöes as a lideiade ario de ante a Paquistao, laram em orque ;oé •uina? nsand ar este tema idade e da divisao sua obra atus quo e irece, no ra, t a l como Or* THEc 81 CORRESPONDENTES pode ser comprovado pelo destaque dado na exposi^ao a uma cópia de grande formato da planta imaginaria do Campo Marzio em Roma, desenhada por Giovanni Battista Piranesi em 1762. A exibigao desta gravura, que esteve pcndurada durante muitos anos na parede do escritório de Louis Kahn, demonstra bem como a geometria abstracta da reconstru^ao u t ó p i c a de Roma por Piranesi reverbera em varios edificios construidos por Kahn na India e no Bangladeche, que revelam, como bem referem os comissarios, "opathos de estaleiros de obra presos no tempo. Sao 'ruinas ao contrario'". Curiosamente, ao lado da seccao sobre a ideia de eterno presente na obra de Kahn, os comissarios apresentam uma seccao com o surpreendente t i t u l o Group Form. The Logic of Assembly. A surpresa justifica-se pelo facto de a no§ao de group form estar associada ao movimento metabolista dos anos de i 9 6 0 , inspirado numa analogia organica com processes vitais onde o crescimento e a t r a n s f o r m a § a o ocorrem de f o r m a natural, através de u m ciclo m e t a b ó l i c o . O que é que pode ser mais dinamico do que u m corpo vivo? Portante, parece existir u m contra-senso no cnquadraracnto simultaneo da obra com o conceito de intemporalidade e de permanente t r a n s f o r m a t i e , e quem visita a exposigao t e m sérias dificuldades em associar a obra de Kahn a de u m organisme vivo disponivel para ser permanentemente transfermado. De facto, esta associacao nao parece m u i t o convincente e f o i talvez fundamentada numa leitura de al guns projectos ende a composicao de varios volumes sem aparente ordem é interpretada com u m sistema aberto, dinamico e disponivel para ser transfermade. N e entanto, O p r ó p r i o Kahn parece refutar tal interpreta^ao ao afirmar, em 1959, no encerramento do congresso C I A M de Otterio: "Eu acredito verdadeiramente que u m edificio nao deve ser considerado sem ter u m termo." No t e x t o f a z e m o s r e f e r e n d a a s e x p o s i p ö e s L O U I S Kahn. Dokumentation Arbeitsprozesse, q u e i n a u g u r o u e m 1969 e foi o r g a n i z a d a pela E T H Z u r i c h , e L O U I S Kahn. In the Realm of Architecture, L o s A n g e l e s M u s e u m of C o n t e m p o r a r y A r t . NO primeiro caso, a exposifao centrava-se no p r o c e s s o d e trabalho d e K a h n , e n q u a n t o disso, que es arquitectos deveriam "trabalhar com uma cerda atada ao p é , para que nao possam i r demasiado longe da terra em que t ê m raizes, e dos homcns que melhor conhecem". E, cementando e seu desagrado em rela^ao a evolucao recente da abordagem disciplinar, escreveu que "no melhor dos cases procura-se a solu^ao em formalismos e temas de gloriosos e velhos mestres da arquitectura actual, prescindindo do seu espirite, da sua circunstancia, e sobretudo ecultando cuidadesamente com grandes e magnificas palavras a nossa grande irresponsabilidade, ambicao e ligeireza". Ha meie sécule, es principles universalistas e cosmológicos que informavam a abordagem a r q u i t e c t ó n i c a de Kahn desafiavam a visao mais humanista de uma nova gera§ao que tentava recuperar uma medernidade fundada na circunstancia. A ambicao dos comissarios de actualizar e legade de Kahn, enquadrando-e com t e n d ê n c i a s recentes do debate disciplinar, nao reduz o poder da sua arquitectura. As maquctes, os desenhos, os esboces e as aguarelas exibidas na exposicao documentam a sua contribuigao para desafiar os canenes, rcvelando a riqueza da sua ambivalência e e poder da sua arquitectura: o seu compromisso com a medernidade para a l é m da circunstancia. Na sec§ao sobre group form é ainda exibido u m outro dcsenho mitico, dcsignado Otlerlo Circles, que A i d e van Eyck apresenteu nesse congresso de 1959 para ilustrar a sua ideia de uma abordagem disciplinar apeiada na sintese das qualidades da arquitectura classica (o imutavel) com as virtudes das vanguardas artisticas (o transmutavel) mediadas per uma atencae dada aos valores da vida em comunidade e apoiadas numa observacao atenta as referências vernaculares. A ideia dos comissarios talvez seja a de resgatar para a obra de Kahn a sintese defendida per van Eyck. N o entanto, para Kahn, fazer esta sintese implica pensar numa nova erdem. Na sua c e n f e r ê n c i a de Otterle, Kahn comparava a arquitectura a miisica e argumentava que OS arquitectos deveriam censeguir i r para a l é m da circunstancia para a qual trabalham, t a l como u m musice "tem a sua estrutura f o r m a l e disciplina que Ihe permitem tocar em quase qualquer instrumcnte. Dcpcndc do sen génie". A capacidade de criar este compromisso f o i muitas vezes tentada e poucas vezes censeguida. O confronte diferido entre as posigöes de Kahn e Coderch teve ceo em diversas ocasiöes desde entao. E m Portugal, per exemplo, marcou cerca de meio século de debate disciplinar, influenciande tanto a pratica a r q u i t e c t ó n i c a como o meio académico basta para t a l lembrar o contributo dado para este debate por discipulos de Kahn como Hestnes Ferreira e Manuel Vicente, por u m lado, e apoiantes da mesma via defendida por Coderch como Fernando Tavora e muitos dos seus U m outro participante no congresso de Otterio, o catalao José Antonio Coderch, escreveu em 1961 uma reflexao sobre esse u l t i m o C I A M , dande ao texte o sugestivo t i t u l o "Nao é de Génios que Precisamos Agora". Coderch, talvez reagindo as palavras de Kahn, defendia que se deveria evitar a percepgao do arquitecto come uma figura messianica, prenta a mudar o munde com uma ideia. Alegava, em vez exposicao Louis Kahn. The Power of Architecture génios que precisamos? 82 dei.xa- CORRESPONDENTES osTfoes •prozesse, zada pela E T H >f Architecture, zada pelo rary Art. ra va-se nquanto ibuiu para lo conceito ibora esse nao os comissarios. muma >iado longe elhor rela§ao a eveu que irmalismos ctura instancia, ades e iidade, litectónica m a nova e fundada ictualizar o recentes do aitectura. As > exibidas na lesafiar os a e O poder Lodernidade 62 Cópia exposta da gravura da planta imaginaria do Campo Marzio em Roma, desenhada por Giovanni Battista Piranesi em 1762, que Louis Kahn teve durante varios anos pendurada no seu gabinete. Fotografia: Nelson Mota A exposicao retrospectiva Louis Kalm. The Power of Architecture f o i organizada pelo V i t r a Design M u s e u m e comissariada por Stanislaus v o n Moos e Jochen Eisenbrand. I n a u g u r o u em Roterdao em Setembro de 2012, no Netherlands Architecture I n s t i t u t e , seguindo depois para o V i t r a Design M u s e u m , em W e ü am Rhein, onde estara patente entre M a r c o e Agosto de 2013. As seis seccöes tematicas em que esta organizada sao: City. Philadelphia as Urban Laboratory', House. Regional Building', Science. The World as Structure; Eternal Present. Ruins and Archetypes; Grounding. Earth, Water, Wind, Light; e Group Form. The Logic of Assembly. O catalogo f o i organizado por Mateo Kries, Jochen Eisenbrand, Stanislaus v o n Moos (Louis Kahn: The Power of Architecture, W e i l am Rhein, V i t r a Design M u s e u m , 2012), uitas vezes diferido i diversas , marcou ïnciando émico — te debate Manuel defendida is seus t o . A visita a • deixal hoje, é de 83