Mulheres de fibra
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Mulheres de fibra
12 ESPECIAL DIA INTERNACIONAL DA MULHER 7 de Março de 2007 Mulheres de fibra Na semana em que se assinala o Dia Internacional da Mulher, celebrado a 8 de Março, o CONTACTO trazlhe testemunhos no feminino do poder do espírito humano contra as adversidades. O que têm em comum uma manequim de lingerie para mulheres com cancro do seio – ela própria sobrevivente de tumores malignos –, uma karateca com títulos em Portugal e no Luxemburgo, uma mulher-polícia, e uma emp- regada de limpeza que criou sozinha o único filho? Quatro mulheres de origem e idades diferentes, todas imigrantes lusófonas no Grão-Ducado, quatro histórias de vida que provam que a mulher não é, afinal, o "sexo fraco". De fora ficam, claro, centenas de casos que, como estes, mereciam integrar a galeria das "mulheres de fibra". Porque, apesar das diferenças, são todas lutadoras. Sílvia Holtz-Duarte, 39 anos, manequim Um modelo para as mulheres com cancro do seio Letícia Ferreira, 18 anos, karateca A campeã Quem a vê, com os seus diáfanos 52 que ela é perigosa, não te metas com Kg, 1,65m e o cabelo claro que lhe ela!", comenta, divertida. Admite sublinha a palidez do rosto, não que não tem tempo para namorados. adivinha que Letícia Ferreira é ca- Além das aulas e do rigoroso propaz de levar qualquer um ao tapete grama de treinos, a jovem atleta com um simples golpe de karaté. ainda estuda luxemburguês oito hoAos 18 anos, esta "menina-mu- ras por semana – na expectativa de lher" já conquistou títulos em dois vir a obter a dupla nacionalidade, países: no Grão-Ducado, é a actual mal o projecto-lei seja aprovado (o campeã de juniores e a vice-campeã que poderá acontecer até final do de seniores. Em Portugal, depois de ano). A naturalização permitir-lhe-ia se ter sagrado vice-campeã de juni- representar o Grão-Ducado a nível ores, no ano passado, tomou de internacional, o que até agora, apeassalto o campeonato nacional de sar de ser a vice-campeã nacional de seniores, que se disputou a 17 de seniores, lhe está vedado. E obter Fevereiro, em Almada, derrotando a apoios do Estado luxemburguês para campeã nacional de 2006, Ana Fer- a prática da modalidade, reservados nandes, e arrebatando a medalha aos atletas nacionais. Até lá, vai de bronze. continuar a depender da ajuda do Nasceu em Madrid, filha de pais clube e dos pais, um operário da portugueses, em 18 de Outubro de construção e uma empregada do1988. No Luxemburgo há sete méstica que não poupam esforços anos, a atleta do KC Strassen pra- para apoiar a única filha. E o Dia da Mulher, diz-lhe altica karaté há apenas três, desde Fevereiro de 2004, mas já acumu- guma coisa? "Claro que sim! As lou dezenas de troféus e medalhas, mulheres têm direito a ter um dia expostos no quarto imaculada- delas", defende, sem hesitar. Até mente limpo e arrumado. Na pare- porque "a maioria tem que trabade, destacam-se as quatro meda- lhar mais que os homens. Além do lhas que conquistou em Portugal trabalho, ainda tomam conta dos (emolduradas pelo desenho do con- filhos e da limpeza doméstica. Os torno do país, que ela própria pin- homens deviam ajudar mais!", protou em dourado, a cor da glória que testa Letícia. Quem conquistar a ambiciona), e que lhe valeram o campeã lusa vai ter que partilhar as ■ P.T.A. convite para integrar a selecção tarefas domésticas. nacional. "O karaté é como uma droga: não posso passar sem isto!", reconhece, ela que pratica sete dias por semana, com uma intensidade que não a impede de ser a segunda melhor aluna da turma, no Liceu Técnico do Centro, na capital. A frequentar o 11o ano (11ème), Letícia almeja tornar-se professora de Educação Física. Mas apesar da proclamada igualdade entre os sexos, ainda há quem, "por ser rapariga", estranhe vê-la a praticar um desporto violento – durante esta entrevista, Letícia exibia um olho negro, "troféu" conquistado no "Open" da Bélgica juntamente com o primeiro prémio, em 24 de Fevereiro. O que vale é que "há cada vez mais mulheres a praticar a modalidade", regozija-se. As proezas físicas grangearam-lhe mesmo a reputação de "durona" entre o sexo masculino. "Os rapazes Letícia Ferreira, uma karateca de excepção dizem: ‘Cuidado, olha Foto: Paulo Lobo Sílvia Holtz-Duarte sobreviveu ao cancro da mama e é hoje manequim de lingerie para mulheres com próteses ou reconstrução mamária Foto: Tom Wagner Sílvia Holtz-Duarte é uma sobrevivente do cancro da mama que reencontrou a alegria de viver como modelo da "Anita Dr. Helbig", o fabricante alemão de lingerie famoso pela gama para mulheres com próteses ou reconstrução mamária. Hoje, é o rosto dos catálogos da marca, dos Estados Unidos à Austrália. Uma mudança de vida conquistada após uma luta aguerrida contra a doença. O pesadelo começou há sete anos, em Outubro de 1999. Quando Sílvia – na altura com 32 anos – tomava banho, detectou caroços por baixo do braço direito. A enfermeira portuguesa residente em Ettelbruck não perdeu tempo, e consultou imediatamente o ginecologista. A mamografia confirmou-lhe os piores receios: tumores malignos, espalhados por todo o seio. Ouviu o diagnóstico como uma sentença de morte: "Mas eu tenho dois filhos!", implorou, "não posso morrer!". O instinto de sobrevivência sobrepôs-se imediatamente ao medo de perder o seio, símbolo máximo da feminilidade. "Está canceroso, tirem-mo", pediu. "Para mim, o essencial era a vida. A minha aparência era o menos importante", conta Sílvia, hoje com 39 anos. A provação que se seguiu à ablação da mama só pode ser avaliada por quem passou pela via crucis da luta contra o cancro. Após as primeiras sessões de quimioterapia, perdeu completamente o cabelo, as sobrancelhas e as pestanas. E a energia. "Todos os dias via a morte no espelho", conta, recordando a funda depressão em que caiu. Valeu-lhe ter-se cruzado com pessoas que lhe apontaram o caminho – encontros fortuitos que, com um misticismo iluminado, atribui à sincronicidade (a explicação do psi- quiatra suíço Carl Jung, que leu no original, para o jogo de coincidências benéficas que protegem o espírito humano). "Uma amiga falou-me de uma enfermeira que também tivera cancro do seio. Foi um grande apoio para mim". E depois chegou-lhe às mãos a autobiografia de Lance Armstrong, o ciclista norte-americano simultaneamente vencedor de sete edições da Volta à França e da luta contra o cancro. "Comecei a correr, primeiro apenas alguns metros, depois mais demoradamente, até conseguir fazer 20 Km", recorda Sílvia, orgulhosa da boa forma física que mantém até hoje. Com o instinto vital desperto, reforça a auto-estima e os cuidados consigo própria. "A doença mudou completamente a minha vida. Aprendi a ouvir e a respeitar os meus sentimentos. E a dizer ‘não’". A começar pelos hediondos soutiens reservados às mulheres com prótese mamária, que não assentavam bem a uma mulher jovem e bem proporcionada, com os seus 52Kg e 1,65m. Em Novembro de 2000, quando procurava um soutien mais feminino numa loja em Ettelbruck, onde vive, o representante no Luxemburgo da marca de lingerie "Anita Dr. Helbig" propõelhe fazer desfiles na Bélgica para mulheres com cancro do seio. "Mas eu sou muito velha para isso!", objectou. Teve o baptismo de fogo em Liége, na Bélgica, onde conheceu uma ex-manequim da Yves Saint Laurent, ela própria sobrevivente de tumores no peito. "Foi a minha professora", explica Sílvia, que já perdeu a conta aos desfiles que fez nos últimos seis anos e conhece hoje todos os segredos da passerelle. Entretanto faz uma reconstrução mamária, em Aachen (Aix-la-Cha- pelle), na Alemanha, em Março de 2003, que envolveu duas operações. O ROSTO DA MARCA Em Agosto do ano passado, foi convidada pela casa-mãe da empresa de lingerie, na Alemanha, para participar no catálogo da "Anita Care", e hoje é o rosto, com outra sobrevivente de cancro, da gama para mulheres com próteses ou reconstrução mamária. Mas o que lhe dá mais prazer são os desfiles, ocasião para levar esperança a outras mulheres com cancro do seio. No fim, pedem-lhe conselhos sobre reconstrução estética, confessam medos, partilham confidências. A alegria de viver de Sílvia e a sua história tranquilizam-nas, provando que há vida depois do cancro da mama. E a energética modelo não se limita à passerelle: apaixonada por cinema, a mãe de dois filhos com 10 e 15 anos já fez figuração em cerca de 20 filmes produzidos no GrãoDucado, incluindo no conhecido "Der Neunte Tag", do alemão Volker Schlöndorff, realizador que recebeu a Palma de Ouro, em Cannes, em 1979. Perguntamos-lhe se ainda faz sentido, hoje, celebrar o Dia da Mulher. "Faz sentido todos os dias!", ri-se, ela que se tornou num símbolo da resistência contra uma doença que afecta anualmente 350 mulheres só no Grão-Ducado – prevendo-se que uma em cada dez venham a sofrer deste tipo de cancro. "Ser mulher é uma forma de ser humano", reflecte, para logo concluir: "Devemos respeitar e ser respeitadas". Sílvia, que reconquistou a duras penas o respeito por si própria, vai continuar a luta que iniciou há sete anos. ■ Paula Telo Alves ESPECIAL DIA INTERNACIONAL DA MULHER 7 de Março de 2007 13 Antónia Flor, 31 anos, mulher-polícia Uma mulher de armas Em pequena, não se lembra de alguma vez ter brincado aos polícias e ladrões, mas diz que sempre quis ser polícia, muito por culpa das séries norte-americanas. "Quando dava o ‘Starsky & Hutch’ ou o ‘CHips’ [NdR: 'California Highway Patrol'], ficava colada à televisão!", recorda Antónia Flor, destacada na Polícia Judiciária desde Outubro de 2006. Mas concluído o liceu em Ettelbruck, esta filha de imigrantes cabo-verdianos nascida em Santo Antão arranja emprego numa companhia de seguros, mais tarde num escritório de advogados. "Não era feliz a fazer o que fazia, mas achava que o meu sonho era irrealizável", explica. Um dia, lê no jornal um anúncio de recrutamento para a Polícia Grão-Ducal e decide candidatar-se. "Foi o destino que me pôs aquele anúncio no caminho", conta Antónia, na altura com 26 anos e já naturalizada, por opção do pai, desde os 14. Com medo de falhar, mantém o projecto em segredo até receber os resultados das provas físicas e teóricas. "Vou voltar para a escola!", anuncia finalmente à família. Ficara aprovada. Esperavam-na três meses de vida militar nas casernas de Diekirch e dois anos de intenso treino físico e teórico na Escola da Polícia GrãoDucal, que frequentou de Outubro de 2002 a Outubro de 2004. "Ao princípio, foi difícil. Fui sempre uma pessoa desportiva, mas não até àquele ponto! Fisicamente, foi muito duro", lembra. Filha de um operário e de uma doméstica que chegaram ao Luxemburgo nos anos 1970, a sétima de uma família de nove (quatro raparigas e cinco rapazes, hoje com idades entre os 24 e os 45 anos), Antónia Flor, que deixou Cabo Verde com seis anos, sempre soube que, na vida, nada se consegue sem esforço. "Recebemos uma educação exemplar. Os meus pais nunca tiveram riqueza material para nos dar, mas ensinaram-nos que nada se obtém de graça e penso que é graças a isso que temos um caractér que nos leva a lutar pelos nossos sonhos", reflecte. E ela tem lutado com sucesso para concretizar o seu: ser investigadora. Depois de um estágio no Comissariado de Merl e no Centro de Intervenção da rue Glesener, na capital, Antónia foi destacada para a Polícia Judiciária, onde aprende os ossos do ofício da investigação policial. Antónia Flor, de ascendência cabo-verdiana, faz carreira na Polícia Grão-Ducal, onde as mulheres continuam em minoria Foto: Paulo Lobo UMA MULHER ENTRE HOMENS A profissão que escolheu é uma das que mais testa os limites físicos das mulheres, mas Antónia nunca se sentiu discriminada na Polícia Grão-Ducal, onde há apenas 139 agentes do sexo feminino, num universo de 1.482 homens (9,4 %). "É verdade que, durante a formação, os homens eram melhores, fisicamente, que as mulheres, mas os colegas encorajavam-nos sempre", assegura. E não tem medo de sacar da arma, a que recorre "apenas em último recurso". "Já tive situações em que tive que o fazer, mas felizmente nunca tive que disparar", explica. Com 31 anos, Antónia é uma mulher atraente que sabe lidar com os piropos que recebe ocasionalmente durante as rondas. "Já tive 'atiradiços'", sorri, "mas é necessário manter a autoridade...Sem perder a humanidade". Não custa crêla: com 1,72m, voz grave e pausada e uma serenidade inata, Antónia Flor transmite uma autoridade natural. Esta mulher que faz carreira entre os homens não se considera feminista, apesar de se ter sempre batido "por ter os mesmos direitos" que o sexo forte. Não festeja o Dia da Mulher e não esconde mesmo uma certa aversão à efeméride, que encara como uma forma de proteccionismo. "Nunca festejei o dia. Festejá-lo seria aceitar que somos minoritárias – apesar de ser verdade que ainda não somos 100 % iguais aos homens", admite. Antónia Flor tem todas as armas para percorrer com sucesso o caminho da paridade. ■ Paula Telo Alves Úrsula Jacob Angélica, 59 anos, empregada de limpeza reformada Mãe coragem Úrsula Jacob Angélica herdou da avó materna os apelidos de origem judaica, e se o nome determina o destino, o seu estava marcado pela errância e sofrimento associados ao povo de Israel. Quando trocou o Alentejo pelo Luxemburgo, em 1968 – já de emprego arranjado pela irmã, a fazer limpezas num lar de idosos, em Mersch –, fugia à pobreza a que a condenava uma família de seis. Um dia, com as amigas, lê na revista "Maria" o anúncio de um homem quatro anos mais novo que procurava correspondente "para assunto sério". "Respondi por brincadeira", recorda Úrsula, hoje com 59 anos. A troca de cartas evoluiu para uma relação e acabariam por casar, em 1977. Mas quando prometeu ficar com o marido "na alegria e na tristeza", Úrsula não sabia que, momentos felizes, teria poucos. Quando, dois anos mais tarde, nasce o único filho do casal, Daniel Angélica – que herdou da mãe o apelido com sabor a nome próprio – já o marido colecciona amantes. O bebé tem apenas um ano e meio quando o pai começa a sair de casa, ausentando-se por períodos progressivamente mais longos. "Nem sei contar as vezes que ele ia e vinha, para França, para Portugal... Chegava aqui e não tinha trabalho, não tinha dinheiro, e eu abria-lhe a porta, sempre com esperança de que ele mudasse", conta Úrsula. Criou sozinha o filho nas intermitências do marido, que não parava em casa mais do que alguns meses e desaparecia com tudo o Daniel e a mãe, Úrsula Jacob Angélica, tiveram que se bastar um ao outro que ganhava, abandonando a família com previsível regularidade. Às dificuldades de manter o filho com o magro salário de operária de uma fábrica em Steinsel, que entretanto conseguira, juntavam-se as dívidas que o marido ia contraindo para manter o estilo de vida boémio: carros, rádios, tudo adquirido a crédito, com a morada da família. "Acumulavam-se as facturas de electricidade, acumulavam-se as dívidas", lembra Úrsula. Como se não bastasse, o marido rouba-lhe fios de ouro, anéis, todo o dinheiro que encontrasse. "Já estava tão cheia, tão farta!", conta. Mas o marido tem armas que a razão não supera. Um dia em que recusa abrir-lhe a porta, quebra uma janela e entra à força. Para não fazer escândalo e proteger o filho, que ele ameaça levar para Portugal, deixa-o ficar. Violência conjugal? Nem sabia que era esse o nome dos açoites que levou ("Ele nunca me deixou mar- Foto: Paulo Lobo cas", explica), e pelo menos nunca bateu no filho. O marido torna-se cada vez mais violento, física e verbalmente, e Úrsula teme-o. A vergonha acaba por confiná-la a casa, passa a viver apenas para o filho. Mas as dificuldades são muitas, chega a faltar-lhes que comer e o desespero vai alimentando a coragem de deixar o marido. O divórcio só será decretado em 1995, mas desde então Úrsula Angélica ganhou nova vida. Porteira no prédio em que vive, na capital, Úrsula começa a frequentar as actividades sociais da igreja, torna-se voluntária da associação "Maison de la Porte Ouverte", que mantém lares para mulheres maltratadas. Com a ajuda do filho, hoje com 27 anos, começa a escrever a história da sua vida, num computador que ainda não domina, ela que só fez a terceira classe. A luz intensa do extemporâneo sol de Março invade o modesto apartamento em que vive sozinha desde que o filho comprou casa em Bertrange, dissipando as sombras das recordações. "Hoje, olhando para trás, acho que me deixei manipular", admite. Com o filho criado (Daniel acumula um emprego no sector dos serviços com a figuração, perseguindo a paixão pelo cinema, que o levou já a rodar um filme de produção caseira), Úrsula dá a sua missão por cumprida. "Tenho imenso orgulho no meu filho. Sem ele, não teria conseguido ir em frente", diz. "Perguntei-me muitas vezes como é que ela aguentava, onde é que ia buscar forças", comenta Daniel, num português fluente só cortado a espaços por francesismos. "Poucas mulheres podiam aguentar o que ela suportou com um sorriso nos lábios", reconhece com ternura. "Fizemos a escola do sofrimento, mas estou grato à minha mãe por tudo o que fez por mim", diz Daniel. "E 'ce qui ne nous tue pas'... Como é que se diz, mãe?", pergunta. "O que não nos mata, tornanos mais fortes", completa Úrsula. ■ Paula Telo Alves