PATOLOGIZAÇÃO DO AMOR: TECNOLOGIAS DE CURA E SUAS

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PATOLOGIZAÇÃO DO AMOR: TECNOLOGIAS DE CURA E SUAS
1 PATOLOGIZAÇÃO DO AMOR: TECNOLOGIAS DE CURA E SUAS MEDIDAS DE NORMALIDADE Francine Tavares1 A proposta deste trabalho é refletir sobre as medidas que escapam da “normalidade” no discurso sobre a patologização do amor e as alternativas que estão sendo desenvolvidas para a cura do sofrimento proveniente das relações amorosas a partir da matéria da “IstoÉ”, “O amor pode ter cura”, de abril de 2014, e do artigo de Brian Earp sobre a biotecnologia anti­amor. Além dos tratamentos terapêuticos para esse fim, comuns desde o início do século XX, a biotecnologia “anti­amor” permite acelerar o processo de cura com uma droga que promete apagar as experiências ruins daqueles que “amam demais”. Numa espécie de realização farmacológica do sonho futurista ficcionado no filme “Um brilho eterno de uma mente sem lembranças”, o sofrimento, outrora considerado potencializador da criatividade humana e inerente às relações amorosas assim como à vida, não encontra espaço­tempo na economia do amor “moderno”. Atualmente, a medida do amor, e das emoções de maneira geral, é calculada aos moldes do mercado: qual é a utilidade do que você está sentindo? Esse sentimento ajuda ou atrapalha seu projeto de empreendimento de si? Seu perfil emocional está de acordo com o programa de liderança da sua empresa? Você sabe como se manter emocionalmente saudável? Palavras­chave: amor, patologização, tecnologias de cura Considerações Iniciais Como é imensa a felicidade da virgem sem culpa. Esquecendo o mundo, e pelo mundo sendo esquecida. Brilho eterno de uma mente sem lembranças! Cada prece é aceita, e cada desejo realizado…2 Protagonizado por Jim Carrey e Kate Winslet, o filme “O brilho eterno de uma mente sem lembranças”, vencedor do Oscar de melhor roteiro em 2004, mostra a luta do personagem 1
Mestranda em Comunicação no PPGCOM UERJ na linha de Tecnologias de Comunicação e Cultura. Bolsista Faperj. Email: [email protected]. 2
Trecho do poema de Alexander Pope "Eloisa to Abelard" de 1717, em referência ao famoso casal Eloísa e Abelardo, cujas cartas românticas são as primeiras que se têm registro na história do amor Ocidental. 2 Joel (Jim Carrey) para manter as lembranças da sua ex­namorada que ele, arrependido, pagou para apagar. Depois de saber que Clementine (interpretada por Kate Winslet) havia buscado um inovador tratamento clínico para apagar as memórias dos momentos que viveu com Joel, ele decide fazer o mesmo. Entretanto, ao se deparar com os momentos vividos pelo casal como parte do processo de apagamento das lembranças, serviço comercializado pela empresa­clínica médica “Lacuna”, Joel decide desistir do tratamento e prefere conviver com as memórias, ainda que elas possam causar sofrimento. Do século XII, período em que Eloísa e Abelardo viveram seu romance carregado de contestação e sofrimento, passando pelo século XVIII, quando Alexander Pope escreve sobre o casal que inaugura o amor romântico, até hoje, século XXI, com o filme “O brilho eterno de uma mente sem lembranças”, cujo nome é inspirado no poema de Pope ​
"Eloisa to Abelard", muitos séculos se passaram e com eles muitas transformações no modo como as pessoas se relacionam amorosamente. Das modulações relacionadas à sensibilidade dos amantes no decorrer dos séculos, interessa destacar neste trabalho dois pontos em especial: o modo como se vive a experiência do sofrimento de amor, como ele tem perdido valor no âmbito da experiência amorosa contemporânea e, mais importante, como o amor e o sofrimento proveniente dele passa a ser considerado um lugar de problematização da ciência. Se em algum momento, por longos séculos, sofrer por amor além de valor moral positivado consistia na própria condição da experiência amorosa, o que faz com ele atualmente tenha perdido não apenas seu status positivo, mas também esteja sendo considerado em, certa medida, uma patologia passível de diagnóstico, monitoramento, controle e cura? Essa é a grande questão de uma pesquisa em desenvolvimento, por isso ela não será respondida neste trabalho, evidentemente. Entretanto, trazê­la para este artigo é importante porque ela norteia a investigação particular da atual problematização do amor enquanto doença e das técnicas e das tecnologias terapêuticas e biotecnológicas com a finalidade de curá­lo, que é propriamente o objeto tratado neste trabalho. 3 Medidas de normalidade do amor contemporâneo Numa espécie de realização atualizada da máquina de apagar memórias do filme “Um brilho eterno de uma mente sem lembranças”, cientistas da neurociência e da biotecnologia estão defendendo o desenvolvendo de drogas que prometem apagar o sofrimento proveniente das relações amorosas quando elas se tornam ou podem se tornar descontroladas e/ou perigosas, como mostra a matéria “O amor pode ter cura” da revista “IstoÉ”, publicada em abril de 2014. O cientista Brian Earp, coordenador do grupo que estuda os tratamentos para o sentimento do amor da Universidade de Oxford, consultado para a elaboração da matéria, publicou um artigo chamado “If I could just stop loving you: Anti­love biotechnology and the ethics of a chemical breakup”, em 2013, apresentando um panorama de como as intervenções químicas sobre o amor têm sido estudadas, desenvolvidas e aplicadas. Esse artigo levantou debates acalorados sobre as implicações éticas a respeito do uso de drogas para curar sentimentos. Algumas das questões levantadas giram em torno do perigo incipiente de simplesmente tratar como doença relacionamentos não aceitos socialmente, como no caso da homossexualidade, e, mais especificamente, do rompimento com a aura espontânea do amor, como se alternativas como essas ferissem sua própria natureza. Um dos componentes que torna histórica essa problematização é o fato dos cientistas fazerem parte da discussão. Não se trata efetivamente da sexualidade que sempre, de alguma forma, foi pensada em sua condição corpórea, mesmo que para subjugar o corpo. O amor, por outro lado, vem sendo pensado e até mesmo vivenciado historicamente pelo viés metafísico, inclusive, até a década de 1960, em oposição à sexualidade, assumindo uma posição de superioridade justamente pelo seu caráter transcendente, como era hegemonicamente construído. Sobre esse ponto, Earp enfatiza que o amor do qual os cientistas se referem é um amor científico, biológico, para ser mais específico, localizado bioquimicamente no corpo, em oposição ao amor da arte, da literatura, de Shakespeare e de Platão. Como o amor científico se difere do amor romântico, diz ele, e emerge da química cerebral, faz sentido falar em cura. 4 Entretanto, não foi a neurociência que inventou o amor patológico, embora ela seja um dos principais atores a possibilitar estudos de monitoramento do cérebro. Antes mesmo da entrada da biotecnologia com a proposta de cura farmacológica, um tipo de terapia já se apresentava como remediadora do amor patológico. Em uma matéria publicada no site do jornal O Globo em 2012, cujo título é “​
Um novo remédio para casos de amor patológico”, é anunciada na Santa Casa de Saúde do Rio de Janeiro a inauguração da oferta do serviço, como o texto jornalístico mesmo propõe, para atender às “vítimas da doença no Rio” (FERNANDES, 2012). Até então, as mulheres que sofriam dessa doença, mulheres, já que todos os exemplos citados se referem a pacientes do sexo feminino, no Rio de Janeiro, só tinham como alternativa de refletir sobre seus problemas afetivos as reuniões do grupo Mulheres que Amam Demais Anônimas (MADA)3 , problemas esses que não tinham ainda um nome, como relata uma das pacientes. A diferença essencial é que há uma passagem do ato de refletir sobre a experiência de um amor considerado excessivo no âmbito das experiências compartilhadas entre iguais, ou seja, mulheres que amam demais, para a decisão de buscar um serviço enquanto paciente (direcionadamente a mulheres, mas não se restringe a elas nesse segundo caso) que é diagnosticado com uma doença chamada amor patológico. Em entrevista dada também ao jornal O Globo em 2012, ​
Analice Gigliotti, chefe do Serviço de Dependência Química e Outros Transtornos do Impulso da Santa Casa e uma das especialistas entrevistadas para falar sobre o diagnóstico do amor patológico na matéria da IstoÉ, conta sobre o tratamento para vícios que a Santa Casa está oferecendo a pacientes de baixa renda, salientando a novidade de que, a partir daquele ano, seriam oferecidos tratamentos para o amor patológico, além de contar também que na clínica particular que possui em Botafogo é possível a realização de tratamentos mais profundos, com internação, meditação etc. Na matéria que anuncia a inauguração do tratamento no Rio, as especialistas salientam que o público­alvo do tratamento é composto em sua maioria por mulheres bem informadas e bem formadas, na faixa dos 40 anos, que sofreram abandono emocional durante a infância. Entretanto, Analice pontua em sua entrevista que o tratamento oferecido na Santa Casa se destina 3
Para conhecer a proposta do MADA, acesse: ​
http://grupomadarj.blogspot.com.br/​
. 5 a pacientes ​
de baixa renda, salientando: "é o caso da mulher submissa, dependente do marido. É maltratada, humilhada, mas aceita qualquer coisa para ficar com ele” ​
(FERNANDES, 2012)​
. Na matéria da revista Istoé, a psicoterapeuta Eglacy Sophia, supervisora do setor de Amor e Ciúme Patológico do Hospital das Clínicas de São Paulo, colabora com a descrição das características que servem para diagnosticar o amor patológico, cujo público é, em sua maioria, composto por mulheres: ​
prestar cuidados e atenção ao parceiro de maneira repetitiva e sem controle, em detrimento de interesses próprios; pensamentos suicidas ou perseguição a ex­parceiros; incapacidade de recuperação de um rompimento; insegurança e baixa autoestima (PEREIRA, 2014). Tanto no âmbito da psicoterapia quanto da biotecnologia, o tratamento é indicado de maneira geral quando a relação é claramente prejudicial. O risco de violência de quem ama, tanto daquele de pode agir violentamente contra a pessoa que ama quanto daquele que se coloca em risco numa relação potencialmente violenta por não conseguir se desvincular em função da existência ainda latente do sentimento, é a principal argumentação daqueles que defendem o diagnóstico do amor doentio e a intervenção das tecnologias de cura. Além do risco de violência, Brian Earp encara o amor como doença ou casos em que a biotecnologia anti­amor pode ser usada em situações mais delicadas. O cientista de Oxford afirma que a droga anti­amor seria útil nos casos de pedofilia ou quando alguém, casado ou vivendo uma relação monogâmica, se apaixona por outra pessoa. Ele pontua ainda que já há casos de rabinos em Israel indicando o uso de antidepressivos para controle da libido dos jovens religiosos. Outro lugar que aparece como problemático e passível de tratamento é o tempo e a atenção dedicados à pessoa amada. Há uma medida de tempo que, se ultrapassada, é considerada anormal e doentia. Não há uma conta exata que se faça para saber se a pessoa está dedicando tempo demais ao outro (embora as revistas e os sites femininos colaborem nesse sentido com os inúmeros testes do tipo “Sua paixão é obsessiva?”, “”Seu amor é doentio”)4, o tempo de menos 4
Uma rápida busca no Google mostra mais de 44 mil resultados em menos de um minuto> https://www.google.com.br/webhp?sourceid=chrome­instant&ion=1&espv=2&ie=UTF­8#q=teste%20amor%20doe
ntio​
. 6 também não aparece como problema, mas a pesquisadora italiana Donatella Marazziti afirma, por exemplo, que “os apaixonados e os pacientes que sofrem de Transtorno Obsessivo Compulsivo dividem um mesmo tipo de pensamento. Os primeiros são focados nos parceiros, e os segundos, em suas obsessões” (PEREIRA, 2O14). O fato da pessoa deixar de trabalhar ou estudar para dar atenção ao outro é visto como sinal de patologia. Essa imagem de esquecimento de si e de valorização do outro, percebida como excessiva, aparece repetidamente durante a matéria em frases como “a pessoa não consegue ficar sem pensar/cuidar do parceiro”, “gastar muito tempo pensando em controlar o outro” e “investimentos profissionais, cuidados com os filhos e convivência familiar são deixados de lado”, “o sentimento é mantido apesar de estar consciente dos prejuízos para sua vida, do parceiro de mais familiares”. Como se cura um amor doentio O tratamento para o amor patológico da Santa Casa do Rio, inspirado na experiência de sucesso alcançada pelo Instituto de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP), consiste numa abordagem psicodramática na qual dois terapeutas mediam as conversas em grupo e investem na melhoria da autoestima dos pacientes. Na USP, os resultados do tratamento destinado à doença caracterizada na matéria como “dependência comportamental capaz de causar tanto sofrimento quanto a compulsão por jogo, sexo ou comida. E tão destrutiva quanto as dependências químicas” (FERNANDES, 2012) são significativos, chegando a alcançar a reversão de 40% a 80% dos casos. Entretanto, de 2012 a 2014, a problematização entorno das tecnologias de cura de um amor doente avançou tanto a ponto de ser possível pensar em alternativas que aceleram o próprio processo de cura. Isso porque estamos considerando apenas o que emerge no contexto nacional em termos midiáticos.. Ao invés de levar de 16 a 20 sessões para observar os primeiros resultados de melhoria, drogas que agem diretamente na produção bioquímica do sentimento surgem como alternativas mais rápidas e eficazes. Isso não quer dizer que há superação de um técnica e de uma tecnologia de tratamento e cura do amor por outra, pois não há. E não há por alguns motivos: não existe uma total 7 substituição de um modo por outro; não há ainda nenhuma droga efetiva que cumpra essa função; ainda que a droga anti­amor assuma uma posição central no tratamento do amor patológico, será necessária a etapa de diagnóstico da própria patologia, que passará pelo olhar do psicólogo e/ou psiquiatra e até do tratamento terapêutico antes do químico, provavelmente haverá essas etapas até que a droga se popularize a ponto de ser popularmente receitada, como é a ritalina atualmente. Além de todos esses pontos que produzem uma fabulação futurística sobre os usos da droga anti­amor, o mais importante é considerar não a validade desse ou daquele tratamento, a essência ou não de um amor verdadeiro, a existência ou não de um amor doente, a verdade do saber científico, mas sim a própria problematização dessa questão. Earp afirma que a ciência do amor e da sexualidade ainda está engatinhando, mas que, ainda assim, os pesquisadores, incluindo ele, têm enfatizado a importância da autonomia e do consentimento dos pacientes quanto à decisão de tratar o amor por meio de soluções farmacológicas. Brian reconhece também que a biotecnologia anti­amor pode ser usada tanto para o “bem” quanto para o “mau”, “como qualquer tecnologia”, diz ele, mas que as drogas serão úteis nos casos em que o amor possa ser transformado em uma emoção perigosa. São várias as categorias de remédios que poderiam ser usadas para interromper a evolução da paixão, segundo os pesquisadores ingleses. Entre eles estão os antidepressivos, para reequilibrar as concentrações de serotonina, reduzir pensamentos obsessivos, interferir na liberação de dopamina para haver menos euforia diante do amado. Medicações que impedem a ação da testosterona, agindo na diminuição do desejo, também estão entre os indicados, além de remédios que já são usados para transtornos como alcoolismo. A antropóloga Helen Fisher afirma que a manipulação da memória por meio de técnicas de tratamento de estresse pós­traumático não está descartada e poderia ser trabalhada com o uso do anti­hipertensivo propanolol, por exemplo, e outras técnicas ainda em estudo. Fisher, que estuda os relacionamentos humanos e os processos corporais de atração amorosa e sexual há mais de 30 anos, que também foi uma das pesquisadoras consultadas para a 8 matéria, alerta em uma de suas participações no TED5 sobre o uso excessivo de antidepressivos e sobre como eles podem afetar negativamente a capacidade humana de amar. Ela afirma que cresce a cada ano o número de pessoas que ingerem substâncias químicas para tratar a depressão por longos tempos, muitas vezes desde a infância, como é o caso da ritalina para pacientes em idade escolar que apresentam déficit de atenção e continuam a utilizar durante a juventude para auxiliar na concentração dos estudos em momentos de tensão, como na preparação para concursos e vestibulares. Sua preocupação se deve ao fato dos remédios aumentarem os níveis de serotonina no organismo, o que, por sua vez, diminui a capacidade de produção da dopamina, que é a substância associada ao amor romântico6. O uso contínuo das substâncias antidepressivas e similares, ao afetar os circuitos cerebrais, interfere nas produções químicas responsáveis pelo amor. A preocupação de Fisher, em última instância, é de vivermos em um mundo sem amor. Amor esse que, segundo ela, não tem ligação direta com a felicidade. Ao contrário, a antropóloga acredita que o humano, enquanto organismo vivo, não tem como finalidade ser feliz ­ pelo menos não ao se tratar de amor ­ mas sim reproduzir­se. Amor na lógica do biopoder Nos estudos sobre o sistema penal, Foucault (2003) observa como o foco da noção de poder enquanto interdição, repressão e negação, passa por alterações no mesmo período de desenvolvimento do capitalismo. Uma série de técnicas para vigiar e controlar o comportamento dos indivíduos que não tinham como função principal proibir, como nas práticas do poder soberano, vão ganhando força com os dispositivos disciplinares. Ao mesmo tempo, a vida emerge como lugar de interesse do poder, que antes, com a soberania, tinha como foco o controle da morte. O biopoder, que atualmente incorpora o discurso 5
O vídeo do TED, com legendas em português, está disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=fjE0O50z3bE​
. Acessado em 12/04/2015. 6
Earp menciona em seu artigo como Fisher e colaboradores têm trabalhado com a hipótese, bastante aceita no campo científico, de que as três fases são desejo, amor romântico e apego. Isso quer dizer que, embora integrados, o cérebro humano desenvolveu ao longo da evolução estruturas diferentes para fases distintas do amor. 9 de bem­estar, de juventude, de vida saudável, como o próprio dispositivo amor patológico revela, atua na preservação da vida como força produtiva. Se o poder soberano agia para fazer morrer e deixar viver, o poder disciplinar sob forma do biopoder vai na contramão: faz viver e deixa morrer (PELBART, 2008). Como aponta o filósofo, um dos principais objetivos dos mecanismos de confinamento da sociedade disciplinar é organizar os indivíduos e desenvolver a força e a aptidão necessárias para o aparelho produtivo da sociedade (FOUCAULT, 2003, p. 31). Ao observar as medidas de classificação e as técnicas de normalização do dispositivo amor patológico, podemos perceber como os mecanismos do poder disciplinar ainda se fazem presentes quando, ao evidenciar o comportamento social e as produções químico­biológicas patológicas, normaliza e atua na produção subjetiva não de sujeitos dóceis, como no auge da sociedade disciplinar, mas de sujeitos saudáveis, flexíveis, atores de um modo de vida cujos valores se refletem no modo neoliberal de construção de si. Isso quer dizer que, assim como não há uma transferência total de técnicas de cura ­ da psicoterapia à farmacologia, não há uma evolução em termos de sistemas de poder constitutivos de uma sociedade. Entretanto, há modos hegemônicos pelos quais os jogos de verdade são construídos. Atualmente, na sociedade de controle, como classifica Deleuze (1992) no post­scriptum em referência ao momento de transição da sociedade pós­disciplinar, ou pós­industrial, na segunda metade do século XX, não se trata de moldar os indivíduos como fazia o poder disciplinar e suas instituições enclausurantes como a escola, a prisão, o hospital etc., mas sim de modular. O controle se refere às modulações vivas, móveis, intercambiáveis que caminham numa velocidade própria do capitalismo pós­industrial que não tem como foco de produção apenas produtos, mas sim serviços, gente, modos de vida. Ainda que não tivesse dado nome, Foucault percebeu que a sociedade da qual ele era contemporâneo não apresentava mais os mecanismos do poder disciplinar com a mesma força. Em seus últimos estudos, seu interesse se volta para o sujeito como lugar de uma problematização a partir do ponto de vista do governo de si. Essa reflexão está relacionada à relação do sujeito consigo mesmo e com os outros. No trilhar do próprio caminho de pesquisa do filósofo, seu foco recai sobre a constituição do sujeito em relação à “formação dos 10 procedimentos pelos quais o sujeito é levado a se observar, se analisar, se decifrar e de reconhecer como campo de saber possível” (FOUCAULT, 2003, p. 41). Foucault começa a observar na Antiguidade as técnicas de cuidado de si que tinham como objetivo fazer da vida uma obra de arte, uma espécie de uma estética da existência, na qual aqueles, homens livres, que decidiam autônomamente viver uma vida calcada nas práticas ascéticas, segundo valores inscritos socialmente, mas não impostos, assumiam práticas cotidianas de leitura, escrita, meditação e outras que corroboravam com os valores da época. Em seguida, ele chega a observar como o cristianismo incorporou essas técnicas na prática do poder pastoral, com a diferença de que a autonomia não mais ocupava a mesma centralidade que as técnicas de si da Antiguidade, mas sim o princípio da obediência à vontade de Deus com uma moral que assumia a forma de um código de regras. Ele afirma: “da Antiguidade ao cristianismo, passa­se de uma moral que era essencialmente a busca de uma ética pessoal para uma moral como obediência a um sistema de regras” (FOUCAULT, 2003, p. 290). Essa contextualização teórica é importante para chegarmos ao ponto mais recente das práticas de cuidado de si que assumem as formas do que poderíamos chamar de práticas de empreendimento de si no âmbito do capitalismo cognitivo (LAZZARATO;NEGRI, 2013), entendido como um modo de produção cuja força produtiva está baseada no trabalho imaterial, na produção de afetos, conhecimento e subjetividades e não fundamentalmente na produção de bens materiais como no capitalismo industrial. A noção de governamentalidade de Foucault, como ressalta Rabinow e Rose no artigo “O conceito de biopoder hoje” (2006), é útil para pensarmos esses mecanismos regulatórios não apenas no âmbito do Estado ou das grandes instituições. Esse conceito trata de pensar as variações que problematizam e agem sobre a conduta individual e coletiva, sem ter origem ou finalidade estatal, e que não implicam necessariamente em algo prejudicial à vida. O próprio discurso do amor patológico é útil para melhorar a condição de vida da pessoa que sofre de um mal. Não se trata de uma forma de poder que oprime, que fere e nem que obriga. Entretanto, a emergência de uma subjetividade que perfura os valores inscritos na lógica neoliberal de empreendimento de si aparece como perturbadora para os dias atuais. Alguém que abre mão de si por outro, alguém que coloca o outro no lugar de objetivos profissionais tão 11 necessariamente desejantes não está dentro de dentro dos padrões de sanidade que, embora não fechados, agem na e moralização da singularidade. Dito de outra maneira e mais uma vez, o que interessa na questão do amor patológico, em princípio, não é o amor como lugar intocável, mas sim a própria problematização do que ele é, de sua verdade e da relação entre as instituições que produzem e sustentam essa verdade e os sujeitos que amam e, mais, como esses sujeitos se constituem como amantes no âmbito de uma sociedade que oferece agora conhecimentos científicos, verdadeiros (?), observáveis, sobre o amor. Para aqueles que fizeram a pergunta mais buscada no Google em 20147, “O que é o amor?”, uma resposta. Se no romance “Amor nos tempos de cólera”, em que Gabriel Garcia Marquez conta a história de seus pais, podemos sentir a experiência de um amor que faz o amante adoecer, sofrer e esperar uma vida para estar junto da amada e no arrastapé de Luiz Gonzaga, Xote das Meninas, podemos celebrar o fato do doutor não ter um remédio para a menina que “só pensa em namorar”, não quer dizer que se exalte o sofrimento do amor, mas sim a própria experiência do amor que não se desvincula das dores, desilusões e sofrimentos que eventualmente o constituem, como à própria vida. Como pontua Pelbart, para os franceses, o corpo é aquilo que não aguenta mais. E o que o corpo não aguenta, ele se questiona e respode: “​
o corpo não agüenta mais é a mutilação biopolítica, a intervenção biotecnológica, a modulação estética, a digitalização bioinformática do corpo, o entorpecimento sensorial que esse contexto anestésico lhe inflige” (PELBART, 2008, p. 11). Aqui sim, ainda que não seja o princípio, reivindicar o lugar do amor contemporâneo se faz urgente. Não como um lugar de essência, de natureza, mas especificamente histórico, mas de uma história que não é natural, científica apenas, embora também seja, mas que está longe de ser progressista. Pelo contrário, uma História de Amor construída de modo autônomo num corpo que não dependa de drogas para se sustentar. Um corpo, tal como defende Pelbart (2008) a partir de ​
Nietzsche, que preserve sua capacidade de ser afetado, que desenvolva a habilidade de 7
O Google divulgou no final de 2014 a listas das principais buscas feitas durante o ano em diversas categorias. ​
"o que é o amor" liderou as principais perguntas, com cinco vezes mais pesquisas que "o que é ciência". A pesquisa está disponível neste link: ​
http://www.google.com/intl/pt­BR_ALL/trends/2014/story/top­questions.html​
. 12 selecionar, evitar, escolher, acolher para continuar a ser afetado mais e melhor, já que “a aptidão de um ser vivo de permanecer aberto à alteridade, ao estrangeiro, ao novo depende também de sua capacidade em evitar a violência que o destruiria” (PELBART, 2014). Referências Bibliográficas EARP, Brian D. et al. ​
If I Could Just Stop Loving You: Anti­Love Biotechnology and the Ethics of a Chemical Breakup​
. The American Journal of Bioethics, 13:11, 3­17, 2013. Disponível em: http://www.tandfonline.com/doi/abs/10.1080/15265161.2013.839752#.VS72NvnF_uI. Acesso: 15/04/2015. DELEUZE, Giller. ​
Post­Scriptum: sobre as sociedades de controle​
. In: ​
Conversações​
. Trad. de Peter Pál Pelbart. São Paulo: Editora 34, 1992 FERNANDES, Liliane. ​
Um novo remédio para casos de amor patológico. ​
2012. O Globo. Disponível em: <http://oglobo.globo.com/sociedade/saude/um­novo­remedio­para­casos­de­amor­patologico­43
32818>. Acesso em: 20 out. 2015. FISHER, Helen. ​
Anatomia do amor: a história natural da monogamia, do adultério e do divórcio​
. Eureka, Rio de Janeiro, 1995. FOUCAULT, Michel. ​
O governo de si e dos outros: curso no Collège de France​
(1982­1983). São Paulo: Martins Fontes, 2010. __________________. ​
Ditos e Escritos V​
: Ética, Sexualidade, Política. Rio de Janeiro, Editora Forense Universitária, 2003. LAZZARATO, M.; NEGRI, A. ​
Trabalho Imaterial: formas de vida e produção de subjetividade​
. 2ª Edição. Rio de Janeiro: Lamparina, 2013. PELBART, Peter Pál. ​
Vida e Morte em Contexto de Dominação Biopolítica. ​
2008. Conferência proferida no Ciclo "O Fundamentalismo Contemporâneo em Questão", organizado pelo Instituto de Estudos Avançados (IEA) da USP.. Disponível em: <http://www.iea.usp.br/publicacoes/textos/pelbartdominacaobiopolitica.pdf>. Acesso em: 24/08/2015. _________________.​
Peter Pál Pelbart no Encontro Vulnerável​
. Realização de Uerj. Rio de Janeiro, 2014. (29 min.), son., color. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=VZp6bF81eEs&feature=youtu.be>. Acesso em: 24 ago. 2015. PEREIRA, Cilene. ​
O amor pode ter cura​
. Revista Istoé. Disponível em: http://www.istoe.com.br/reportagens/356120_O+AMOR+PODE+TER+CURA​
. Acesso: 15 abr. 2015. 13 RABINOW, P. e Rose, N. ​
O conceito de biopoder hoje​
. Política & Trabalho Revista de Ciências Sociais no. 24, Abril de 2006. VENTURA, Mauro. ​
Dois cafés e a conta com Analice Gigliotti: ​
Psiquiatra trata dependentes de cigarro, álcool, drogas, jogo, internet, sexo, compras.Disponível em: <http://oglobo.globo.com/rio/dois­cafes­a­conta­com­analice­gigliotti­5833447>. Acesso em: 21 ago. 2015. 

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