o feiticeiro

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o feiticeiro
O FEITICEIRO
Lucas Zanella
Fraga chegou na cidade às treze e dezessete; o dia
estava bonito, ensolarado e as nuvens muito bem
dispersas no céu azul de Cármenes. Era uma quartafeira e todos se sentavam em suas varandas,
balançando-se em suas cadeiras.
O velho Jacir estava mascando um palito de
dente, por alguma razão achava aquilo bom, mas
ninguém realmente compreendia o porquê dele
fazer essas coisas malucas que faz. Era viúvo, a
mulher havia morrido três anos atrás, nunca tiveram
filhos. Vivia sozinho e todos achavam que ele já não
batia muito bem das ideias.
Não é a toa que um dos médicos da cidade
grande, ao passar por lá quando ficou perdido na
rua asfaltada, recomendou que ele tomasse um
remédio – que o próprio Jacir nem se lembrava o
nome. Na verdade, não se lembrava nem mesmo da
conversa com o médico. Possuía setenta e quatro
anos e a memória já começava a falhar, mesmo tão
cedo.
A casa do outro lado da rua era habitada por
Carolina e Jacobá, eram os mais novos na cidade,
mudaram-se havia sete anos. Ninguém realmente
sabia da existência da cidade, ela já não aparecia
mais nos novos mapas. Alguns diriam que era uma
cidade-fantasma, mas ela não poderia estar mais
viva.
- Você viu o garoto novo, Antônio? - Guides
perguntou para um freguês enquanto limpava sua
mesa com um pano encharcado de álcool.
O bar não estava muito movimentado. Nunca
era movimentado nas quartas-feiras. Nas segundas e
terças, bebiam porque era o início da semana. Nas
quintas e sextas, bebiam porque era quase o fim de
semana. Nos sábados e domingos, bebiam porque
era o final de semana. Mas as quartas eram calmas,
como se fosse o único dia da semana em que tudo
era zen, o único dia em que todos aceitavam que a
semana havia começado e já estava para acabar,
portanto ninguém bebia.
Todos haviam de ficar sóbrios por pelo menos
24 horas na semana. E ficavam.
E foi justamente num dia zen que Fraga
chegou em Cármenes, como se soubesse que o dia
estava calmo e aquilo o aborrecesse. Precisava
mudar essa coisa maluca que todos chamavam de
“tranquilidade”.
- Que garoto novo? - Antônio demorou para
responder. Primeiro esperou Guides limpar sua
mesa, enquanto segurava o copo de cerveja no ar,
depois o pousou, limpou a garganta e bebeu um
gole.
- Ora, como não o viu chegar? Se me perdeu
a cena que Jacir fez, isso me faz pensar o que mais
não perdeu enquanto esteve aqui - Guides
respondeu enquanto começava a limpar o balcão.
Estudiosos
diriam
que
ela
possui
um
transtorno obsessivo-compulsivo e que sente a
necessidade de limpar tudo a todo momento. Uma
terrível doença para alguém que trabalha num bar
ter. Antônio apenas diria que ela é uma “mulher
para casar”, pois estava sempre limpando as mesas,
as louças e o chão do bar.
Antônio era o xerife da cidade, e não havia
muita coisa que um xerife fazia lá. Basicamente, ele
apenas ficava sentado em sua cadeira, atrás da sua
escrivaninha, com os pés cruzados sobre a mesa e o
chapéu preto de caubói caído no rosto, como se
estivesse tentando esconder o fato de que estava
dormindo.
Durante toda a história da cidade, apenas uma
pessoa foi presa, um garoto de vinte e tantos anos
que foi preso porque roubou a casa da Dona
Carmen. O xerife estava, como sempre, dormindo
em sua cadeira. O garoto deu um jeito de escapar
da sua cela - pra falar a verdade, as celas não eram
nem mesmo boas o suficiente para prender alguém
dentro delas - e fugir da cidade. Nunca mais foi
visto, provavelmente partiu para uma cidade grande
e está agora mesmo roubando de outras casas.
- Por falar nisso - Guides começou. Não
haviam “falado nisso”, mas ela sempre inicia uma
segunda parte de uma conversa dessa maneira -, o
senhor não deveria estar no xerifério?
Por alguma razão que ninguém sabia, a
atendente do bar-hotel chamava a delegacia da
cidade de xerifério.
- Por falar nisso outra coisa - o xerife disse e
depois percebeu que não entendeu o que havia dito.
- Como a senhorita ficou sabendo da chegada dele?
- Bom, eu tenho a única pousada da cidade falou com um sotaque caipira que não lhe caía bem
-, então ele se hospedou aqui!
- E o que você estava falando sobre a briga
dele com o velho Jacir? - perguntou o xerife.
Guides o contou tudo nos mínimos detalhes,
embora, como se não pudesse evitar, aumentou um
ponto ou outro. Tal como aconteceu com todos os
outros que começavam a contar o que havia
acontecido
para
seus
maridos,
esposas
e
companheiros. A própria Guides deixou algumas
partes de fora, mas não por má intenção, e sim
porque
não
acompanhou
a
discussão
toda.
Ninguém havia acompanhado, mas todos saíram de
suas casas quando perceberam que os gritos não
parariam tão cedo. Eis aqui o relato do que
aconteceu, tal qual aconteceu.
Fraga parou no início da cidade, logo após fazer a
curva na estrada principal, que era a única asfaltada.
Ele andou como se fosse o mais novo caubói da
cidade e parou de repente, pondo as mãos no cinto.
Jacir estava sentado na varanda de sua casa,
mascando seu palito de dente, como faz todos os
dias. Aquele dia não era como outro qualquer. O
velho olhou para o lado e viu o homem em pé
olhando para a cidade, como se fosse eu protetor ou
destruidor. Fez um barulho com a garganta e cuspiu
no chão.
- Você não deveria estar aqui - gritou com
sua voz rouca e um pouco fina de velho. Fraga não
pareceu se importar. - Essa cidade não é sua para
destruir!
- Cale a boca, velho! -- Fraga disse enquanto
começava a andar até a frente da varanda da casa de
Jacir.
Os outros moradores começaram a sair de
suas casas, um por um. Jacir os viu e decidiu deixálos informados do que estava acontecendo.
- Foi ele quem matou o pessoal de Ravéra gritou para os vizinhos mais próximos. - Precisamos
fazer algo, ele vai acabar matando nóis também!
- Povo de Cármenes, não temam minha
chegada. Por favor ignorem o velho aqui, nós nos
conhecemos anos atrás e, por conta de um malentendido, ele passou a me odiar, nada que valha a
pena ocupar espaço em suas memórias. Voltem para
as suas casas, não se incomodem.
E todos pareceram acreditar, pois começavam
a entrar nas suas casas.
O velho, com sua cara enrugada e suas costas
doídas, levantou-se da cadeira e ela pareceu soltar
um grito estridente enquanto continuava a se
balançar de trás para frente, como se o espírito
invisível de uma garotinha estivesse nela se
balançando.
O velho Jacir pegou um rolo de papel que
pousava numa mesinha de madeira ao lado da
cadeira e balançou para o público que lhe restava.
- Não acreditem nesse feiticeiro filho da mãe
- gritou o mais alto que pode até começar a tossir leiam o jornal, ele é procurado pela região toda e
está se refugiando na nossa cidade.
- Cale a boca, velho! - gritou pela primeira
vez. - Pode não gostar de mim, mas exijo que pare
de espalhar mentiras por todo lado. Isso não é coisa
de gente decente.
- E quem é você para falar de gente decente?
- o velho Jacir desceu as escadas da sacada da casa e
ficou cara a cara com Fraga, um homem alto,
vestindo um casaco preto, com botas e calças
marrons e uma barba curta no rosto.
- Eu sou um habitante de Meléas e mereço
respeito – disse Fraga.
- Tu não é habitante de Meléas coisa alguma
- o velho tornou a gritar, alguns vizinhos
continuavam do lado de fora apreciavam o show
que Jacir dispunha. - É um cultivador do senhor das
trevas, isso sim. É um habitante de seu reino de
fogo e nada mais que isso.
Meléas era o nome do estado onde viviam, e
era um estado de respeito. Era verdade que muitos
cultos adoravam o senhor das trevas, mas ninguém
realmente ligava para eles, sendo que nenhum
desses grupos de adoradores fazia algo além de se
reunir para cantar músicas esquisitas que falavam
sobre mortes e sacrifícios.
Mas Fraga não estava em culto algum ou
cantava aquelas cantigas satânicas que apenas o
faziam rir. Ele era melhor que isso.
Sentia que não precisava fazer essas coisas
ridículas para ser adorado pelo seu senhor. E por
isso pensava que nada nem ninguém conseguia o
derrotar.
- Jacir, deixe o bom homem em paz - gritou
um dos vizinhos, que tomava um mate amargo
enquanto assistia a briga; o que era, para ele, o
equivalente a um bom filme e um balde de pipoca.
- Ele não é bom, Clemente! - gritou Jacir
olhando para o vizinho no segundo andar da casa à
frente da sua.
Fraga, enquanto isso, saía de lá e entrava no
bar. Guides, que agora já havia começado a
acompanhar a briga, o olhou torto enquanto
entrava, apenas porque sabia que Jacir não era
mentiroso. Mas também, depois quando olhou o
jornal, viu que não havia notícia alguma sobre
procurado algum.
É por isso que ela disse "sim" quando ele
perguntou:
- Você possui algum quarto vago? perguntou batendo a caneca agora cheia apenas
com espuma na mesa, ele viu o aviso na parede, que
falava sobre a hospedaria que funcionava no
segundo andar do bar.
- Sim, vai querer? - indagou Guides.
- Por favor - respondeu e pagou logo de
imediato, mostrando sua carteira cheia de deneres,
mas não comentou sobre sua riqueza ou sobre
como a conseguira. Tampouco explicou a razão de
ter ido para uma cidade pequena quando, com todo
aquele dinheiro, poderia estar num local grandioso
como a Cidade dos Anjos.
Guides o levou para o segundo andar, disse
seu clássico "cuidado onde pisa" enquanto subiam a
escada quebradiça e abriu a porta do quarto com a
chave mestra. Entregou para o homem uma chave
pequena que era a do quarto de número 3. Haviam
três quartos em toda a pousada, e eles nunca
estavam todos cheios ao mesmo tempo.
Não era muita gente que visitava a cidade,
apenas aqueles que se perdiam no meio do caminho
à Cidade dos Anjos ou aqueles que possuíam o
carro quebrado no meio da pista e precisavam de
um mecânico urgentemente. Ted era o único
mecânico da cidade, e ele cobrava caro.
Mas afinal, como não cobrar? Ninguém
dentro da cidade possuía carro e era, talvez, uma vez
por ano que alguém parava para ter seu carro
concertado ou checado a fim de ver se estava tudo
em ordem. Além de mecânico, também era
encanador, a profissão que mais lhe dava dinheiro,
porque os canos das casas não funcionavam direito parte porque ele os arrumava com uma “data de
validade”. Sendo que era o único encanador, era
certo que tornariam a contratá-lo quando o cano
estourasse novamente. E iria estourar.
Não era fácil trabalhar em Cármenes. As
únicas pessoas que ganhavam dinheiro de verdade
eram os agricultores, que vendiam seus produtos
para os outros habitantes e para a cidade grande –
onde ninguém sabia produzir merda alguma e
compravam do pessoal do campo – e também
Guides, que possuía o único bar da cidade, onde os
agricultores iam para beber algo depois de um
longo dia de trabalho debaixo do sol ardente.
Guides ganhava cerca de vinte e sete deneres
por dia, os agricultores ganhavam quarenta e nove
deneres por mês. Ted cobrava, para consertar os
canos, dez deneres, e trabalhava talvez uma ou duas
vezes por mês. Logo, Guides era a mulher mais rica
da cidade, embora a menos letrada. Mas certamente
não tão rica quanto Fraga, visto que mesmo ela
ficou surpresa ao ver toda aquela grana.
- Pacote completo? - perguntou Guides
enquanto contava o dinheiro.
- Hã... claro - aceitou mesmo sem saber o que
o pacote incluía ou quanto custava.
Guides o devolveu uma pequena parte do
punhado de deneres e guardou o restante no sutiã,
depois deu duas palmadinhas como se isso fizesse ele
ficar mais seguro.
Mais tarde, naquele mesmo dia, Fraga estava
sentado em sua cama, encarando o nada, como se
estivesse fazendo uma oração. Apenas observava a
parede com fascínio e não sabia nem mesmo a razão
de tamanho encanto. Levantou-se e abriu a janela,
o dia estava acabando, já era de noitinha.
Ele se escorou na janela e ficou observando
todos abaixo dele. O velho Jacir, que ficava na casa
ao lado, já não podia ser visto, pois provavelmente
estava dormindo. Mas certamente começaria a
incomodá-lo novamente. Fraga precisava dar um
jeito no velho, mas não ainda. Agora precisava
dormir para recuperar suas energias, depois poderia
começar a fazer com aquela cidade o que fez com a
anterior.
Ouviu batidas na porta enquanto botava sua
roupa de dormir, que era apenas uma longa blusa
branca rasgada, não usava nada por baixo. Andou
até a porta ajustando a blusa e girou o trinco,
observando o corredor e a visita através de uma
fresta.
- Olá, sinhô - uma moça jovem falou com
sotaque carregado e logo empurrou a porta e se
aconchegou na cama.
- Que perturbação é essa? - ele perguntou
ficando um pouco enfezado por conta da falta de
privacidade.
- O sinhô pediu o pacote completo - a moça
puxou a coberta da cama para o lado e fez um gesto
para que Fraga a acompanhasse.
- Se eu soubesse o que o pacote completo
continha, não o teria pedido - Fraga agarrou a
garota pelo braço e ela reclamou da dor, ele a
arrastou até fora do quarto.
- Por favor, sinhô, se eu não fazê isso num
ganho minha parte do dinheiro - o que soou como
partinheiro vindo de sua boca. Ela se pôs para
dentro do quarto novamente.
- Eu não ligo. Saia agora, antes que acabe
sobrando para você!
A garota vestia uma camisola branca curta,
um pouco mais bem cuidada do que a blusa rasgada
de Fraga, mas que também mostrava ter alguns anos
de uso. A garota apenas balançou a cabeça em
negação; Fraga não a queria ali, não estava na
cidade para aquelas coisas, estava a trabalho, apenas
iria conseguir vítimas para seu chefe, saquear as
casas, matar aqueles que resistissem e então partir
para a próxima.
- Eu estou mandando! - agarrou a garota
novamente pelo braço e a empurrou para fora do
quarto novamente.
- Não, por favor, eu preciso do dinheiro para
minha mãe! - gritou a moça.
Fraga pareceu se interessar de repente,
largando o braço da moça e a deixando entrar no
quarto. A moça entrou calmamente e Fraga a
seguiu muito interessado no assunto.
- Ah. Por que não falou antes? O que há de
errado com a sua mãe?
- Ela tá duente, sinhô, preciso de dinheiro pra
levar ela pra Cidade dos Anjos onde tem médicos
bom.
- Talvez isso nem mesmo seja necessário - ele
falou com uma voz calma. - O que você estaria
disposta a ceder pela vida de sua mãe?
- Tudo, sinhô, tudo!
- E que tal a sua própria? - perguntou
gentilmente. A garota se afastou um pouco, estava
sentada na cama e Fraga sentava também. - Sabe...
eu faço negócios por um homem amigo meu, e
posso garantir que ele fará a sua mãe ficar bem... por
um preço. Ele virá buscar você em alguns anos, e
você terá de ir com ele, ou então sua mãe morre,
mas se fazer tudo como ele disser, ela viverá!
Deu um sorriso esquisito e torto. A moça já
não sabia o que responder.
- Táááá... - respondeu desconfiada.
- Excelente - o homem comemorou. Apenas vou precisar que assine um contrato com o
meu mestre!
- Ô senhor Fraga! - Guides gritou à porta do
homem.
- Não há razão para gritar, minha cara; é ou
não é um bom dia hoje? - ele perguntou ao abrir a
porta.
Guides pôs a cabeça para dentro do quarto e
notou Eloá deitada na cama do hóspede.
- Vejo que gostou do que o pacote inclui Guides sorriu para ele.
- Ah, sim - Fraga olhou para a moça em sua
cama e voltou seus olhos para Guides. - Posso dizer
que achei... de matar!
Sorriu para a mulher e fechou a porta, saindo
do quarto e acompanhando Guides enquanto
desciam as escadas.
- O café está servido, senhor. Se quiser pode
sentar à mesa e juntar-se aos outros que vieram.
- Claro, eu adoraria - Fraga disse.
O bar estava cheio, afinal, era quase fim de
semana, quinta-feira. Fraga olhou para o relógio e
notou que era sete e meia da manhã. Havia uma
mesa onde o café fora servido, uma xícara com café
preto, uma jarra de leite gelado ao lado, junto de
pão, presunto, queijo e manteiga. Não havia muita
variedade do que comer, e por isso Fraga comeu o
que viu.
Tomou o café preto para acordar e logo pediu
outro, então colocou leite e preparou um sanduíche
com o pão, o presunto e a manteiga sobre a mesa.
Desprezava queijo. Para ele, era algo do... ser cujo
nome não deve ser pronunciado, porque seu patrão
não gosta. O mestre de Fraga sempre retira um
pouco de dinheiro do pagamento do funcionário
quando ele diz o nome Dele.
O dia aparentava estar calmo, pelo menos tão
calmo quanto todos os outros dias da semana.
Todos bebiam e gargalhavam enquanto contavam
histórias uns para os outros. Você pensaria que, por
ser uma cidade pequena onde nada nunca acontece,
alguma hora não teriam mais histórias para contar,
mas não. Eles sempre arranjavam um novo causo.
Guides limpava as mesas daqueles que saíam e
a caixa de som que ficava sobre o balcão gritava
feito louca as músicas que tocavam na rádio da
cidade grande - que não dava para ouvir muito bem
porque o sinal era péssimo, mas todos pareciam
gostar. Jacir entrou no bar dando socos na porta e
viu que o cara que ele chamara de feiticeiro ainda
estava na cidade. Isso o enfureceu tanto que não
aguentou e precisou falar algo.
- O que vocês tão fazendo? - ele gritou e
girou em torno de si mesmo de maneira cômica,
mas ninguém riu na hora. Estava a ponto de chorar.
- O que foi agora, Jacir? - perguntou um
homem de cabelo longo que ia até os ombros. Era
um cabelo dourado, como sua barba bem arrumada.
O homem certamente havia visto a cena que
o velho fizera no dia anterior. Fraga já sabia que o
assunto era com ele e não estava nem um pouco a
fim de enfrentar aquele velho. Desafio mesmo foi o
rei de Florrika, que possuía uma multidão de
guardas; Jacir seria apenas uma pequena medalha
para colocar no fundo de sua estante de troféus. O
velho era um nada, e Fraga não queria desperdiçar
sua tão conquistada energia com alguém daquela
laia.
- Ele ainda está aqui - Jacir disse, o que soou
como istáh. - Eu pensava que vocês fossem criar
juízo e expulsar ele da cidade, mas parece que sou o
único que realmente entende o que é que se deve
fazer.
- Jacir, deixe ele em paz, o que foi que o cara
te fez? - o mesmo homem perguntou.
- Ora, Maninho, ele não fez nada comigo, ele
fez algo é com a outra cidade - gritou de volta Jacir.
- É isso o que você diz - gritou um homem
de voz grossa e cavanhaque preto do fundo do bar,
era um pouco mais letrado e sua pronúncia quase
tão correta quanto a de Fraga -, mas quando fui
olhar o jornal não vi nada disso, não, Jacir.
E é claro que não viu, não deu tempo. Jacir
apenas viu a notícia porque havia lido o jornal antes
de Fraga chegar e mudar a notícia para algo sobre
um sequestro de irmãos na Cidade dos Anjos.
A notícia de Fraga era a única que o jornal
publicara que não falava sobre a Cidade, a única que
dava importância às cidades menores. Portanto, não
ver algo no jornal sobre um caso que aconteceu
numa cidade menor não seria surpreendente.
- O problema é que ele já está velho, não vê
mais coisa com coisa - um homem à frente do com
cavanhaque disse baixinho para ele.
- Velho coisa nenhuma – véicoisniuma. –
Romero, não era você quem anteontem mesmo foi
à minha casa me perguntar como trocar uma
fechadura? Como me confiaria numa coisa dessas se
eu fosse um velho que não sabe de nada?
- É um bom argumento - Cavanhaque falou
para Romero e Fraga virou a cabeça, já pensando
que iria dar merda se todos começassem a ouvir o
que o velho Jacir falava.
- E você, Britinho, alguma vez eu já falei
alguma mentira? Você me conhece desde que se
mudou pra cidade, eu mesmo te arranjei uma casa
aqui e agora tá dizendo que fiquei maluco? - Jacir
gritou para um outro conhecido.
Britinho, um homem de trinta e poucos anos,
escondeu a cara, como se não quisesse dizer o que
realmente pensava ou então estava com vergonha
por ter se questionado sobre aquilo. Como poderia
pensar que o amigo estava maluco? Pessoas que
pensam isso não são amigas, tão mais pra inimigas.
“Bom, isso saiu de controle rapidamente!”, pensou
Fraga enquanto era empurrado para a parede. Ele
estava sobre o mini palco onde bandas se
apresentariam no bar caso houvessem bandas na
cidade. Todos preferiam ouvir as músicas em má
qualidade que passavam pelo rádio do que ouvir
Antônio ou Guides cantarem com suas vozes de
taquara rachada, e olha que isso é elogio.
Jacir havia começado a falar de todos os
favores que realizou para todos os que estavam no
bar e, tal como dizem que de pouco em pouco a
galinha enche o papo, de conversa em conversa,
todos começaram a acreditar no que o velho dizia.
Fraga tentou escapar antes que a vaca fosse para o
brejo e começasse a montar acampamento, mas
quando notou que não estava mais com a vantagem
da briga já era tarde demais. Dois homens o
agarraram pelos braços e o arrastaram para o centro
do bar.
Guides também não possuía controle da
situação. Mas estava mais preocupada em continuar
a receber o dinheiro por hospedar o homem do que
realmente salvá-lo do que quer que pudesse
acontecer com o pobre coitado.
- A gente precisa é tirar ele daqui! - gritou
um homem no fim da grande bola de pessoas que
circulava Fraga.
- Bora jogar ele na estrada principal pra ir pra
Cidade dos Anjos, aqui não é lugar pra esse
feiticeiro.
“Malditos redatores” xingou Fraga. Não
gostava de ser chamado de feiticeiro, a palavra
parecia diminuir suas habilidades. Um feiticeiro não
seria capaz de falar com os mortos ou produzir todo
tipo de maldição, um feiticeiro é capaz de fazer um
Wingardium Leviosa e olhe lá. Mas os redatores de
jornais pareciam insistir em chamá-lo de feiticeiro,
mesmo sem sequer o conhecer.
- Senhores, por favor - Fraga falou pela
primeira vez. - Vocês realmente vão logo de cara ir
julgando um homem que pouco conhecem?
Perguntem à moça que ontem chegou em meu
quarto, enviada por Guides. Eu a ajudei com seu
problema familiar, sou um mau homem? Mereço
ser expulso desta pequena cidade que mal me
conhece e logo me joga para fora?
Os homens pareceram parar para pensar nas
suas ações pela primeira vez em todas as suas vidas.
- Se há alguém - continuou - que merece seu
desprezo é este que está lhes jogando mentiras, o
homem que, por conta de um desentendido por ele
causado agora quer me ver longe. Um homem que
engana o outro para seu próprio deleite é nada
senão um charlatão. É por isso que eu vos digo pela
primeira e última vez: não é comigo que devem se
preocupar, é com ele - apontou para Jacir. - Pois se
um homem pode enganar seu próximo com tanta
facilidade, ele não é um homem confiável, ele é um
homem que manipula a verdade a seu bem
entender. Se há alguém que merece ser expulso ou
preso é ele, meus senhores, e não eu.
Todos voltaram seus olhares para Jacir, que
começava a lentamente andar para trás enquanto
protestava com “não acreditem nele“s e “vocês me
conhecem”s. Nenhum dos homens pareceu o ouvir,
como se estivessem hipnotizados.
- Não deixem que ele lhes enganem, pois são
espertos. São inteligentes e sabem ver o que é certo
e o que é errado - Fraga recuperava o poder e logo
o calor do medo que antes sentia se tornava num
frio prazer de controle. - Me conhecem há tão
pouco tempo e já sabem que estou dos seus lados,
nunca faria nada para lhes fazer mal, não sou um
feiticeiro. ELE É!
- Sim - responderam em uníssono.
- Ele é o feiticeiro que conhecem, o homem
que... George, não se lembra? Ele matou seu filho
para que pudesse realizar um ritual satânico!
Queimem esse anticristo filho da puta antes que ele
queime vocês com o fogo do inferno sendo jogado
em suas caras - gritava como um pastor numa
missa.
- Meu filhinho - o homem que se chamava
George chorava com desprezo por Jacir. - Por que
fez isso com ele?
- Eu não fiz, nada George, eu não fiz nada,
por favor! - implorou Jacir.
- Cale a boca, feiticeiro - gritou Fraga
fazendo gestos como se estivesse livrando Jacir de
um demônio que estava preso em seu corpo, como
se jogasse água benta sobre a pele velha do homem.
- Em nome do nosso Pai e nosso Senhor,
você será condenado e sofrerá por toda a
eternidade.
- Amém - todos os homens gritaram
Fraga riu baixinho. Todos os homens, como
zumbis na busca por cérebros, andavam lentamente
atrás de Jacir, que não corria, tanto por conta da
idade quanto pelo fato de que pensava ainda ser
possível convencer seus amigos de que Fraga era o
malfeitor, e não ele.
Mas Fraga possuía o dom da oratória,
conseguia convencer qualquer pessoa de qualquer
coisa. É por isso que tinha o chefe que tinha. Suas
argumentações eram dignas daquele trabalho.
Parecia um feiticeiro, com o perdão da palavra, pois
sua voz enganava todos aqueles que o ouviam.
Como a sereia Iara, que enganava os pescadores por
meio do seu canto, Fraga enganava os cultos e os
estúpidos por meio de seu discurso. Um verdadeiro
político.
Não continuou a falar, pois já não era mais
necessário. Os homens estavam cegos à razão e
levavam Jacir à delegacia. Antônio, que estava
dormindo em sua mesa, ficou surpreso ao ver todos
os trabalhadores da cidade invadirem seu local de
trabalho e descanso.
- Posso saber qual o motivo dessa bagunça? gritou para o povo enquanto ficava com sua mão
pousada no coldre.
- Jacir está nos enganando, xerife, ele deve di
ficar preso! - falou um dos homens.
- Pois bem, sob quais acusações, exatamente?
- perguntou, como sendo o bom agente da lei que
era.
- Enganação, perturbação da paz púbica,
xerife - o homem que falou tinha problemas com o
“L”, mas ninguém riu do fato de ele ter dito
“púbica” em vez de “pública”.
- Coloquem-no naquela cela ali, depois
resolveremos todo esse caso! - Antônio disse
tentando tomar controle da situação. O xerife
esperou todos os homens passarem para dentro da
delegacia até que viu um que conhecia e confiava.
- Guilherme, você fica de vigia, não dá pra
confiar nessas celas.
- Como quiser, senhor xerife - Guilherme
disse.
Antônio ficou olhando todos jogarem Jacir
para dentro da cela. O velho bateu na parede e caiu
no chão duro e sujo, pois a cela nunca antes fora
limpada. O xerife não fez nada do caso por
enquanto, embora nenhum dos homens realmente
parecesse estar são.
Se estivessem bêbados, provavelmente iriam
depois à delegacia para pedir a Antônio que
libertasse Jacir, então isso poupar-lhe-ia o trabalho
de investigar.
Investigar não era para Antônio, apenas leu
sobre investigação uma vez, num parágrafo em um
livro que seu neto lia durante uma visita da filha,
duas semanas após a fuga do marido. Era uma
história de um tal de Parrot, se não lhe falhava a
memória.
Jacir acordou na cela da prisão e, por um segundo,
não entendeu por que estava lá, então se lembrou
do que aconteceu. Olhou para fora da cela e viu que
Guilherme estava lá, em pé, como se fosse um
soldado. O xerife não era visto em lugar algum.
Enquanto isso, Fraga continuava a procurar
mais possíveis clientes. Andou pela cidade e
procurou por todos os lados alguém que estivesse
em aflitos. Não havia muita gente com problemas,
no mais era a prostituta e ela seria a única cliente
que acharia. Seu chefe não gostaria disso, ele prefere
pelo menos cinco pessoas por cidade - e quando é
cidade grande tem que ser no mínimo vinte. É, não
era fácil a vida de Fraga.
Ninguém da cidade o olhava torto, mas
ninguém era simpático com ele. Não porque não
queriam, mas porque o próprio Fraga não queria, e
ele lhes disse isso, embora não nessas palavras exatas.
O homem andava pela cidade como se ela fosse
dele, se sentindo o tal.
Suas botas marrons levantavam poeira por
onde passavam e seu chapéu preto o protegia do
calor escaldante do sol. Decidiu entrar no bar para
beber algo antes de continuar seu trabalho de
escravo.
- Bom dia, senhor Fraga - Guides o
cumprimentou, estava limpando ainda mais mesas,
parecia que nunca parava.
-
Bom
dia,
dona
Guides
-
Fraga
cumprimentou dando uma ajeitada no chapéu.
- Vai querer uma cerveja? - perguntou
quando já estava de volta ao balcão e ele já se
sentava numa mesa limpa.
- Sim, por favor.
Guides pegou um copo grande de trás da
bancada e o pôs sob um grande barril, onde girou
uma pequena peça e o líquido amarelado e muito
espumado desceu à caneca. O copo bateu na mesa e
Fraga tomou um gole grande.
- Obrigado - disse
depois
de pousar
novamente o copo grande na mesa. Fraga olhou
melhor para Guides e notou que ela estava com
uma expressão estranha na cara - Algo aconteceu?
- Não, não é nada! - ela disse inocentemente.
- Por favor, Guides. Posso não ser um
entendido de mulher, mas sei quando uma tá
preocupada com alguma coisa - é geralmente assim
que ganho mais trabalho, ele não acrescentou.
- O problema, Fraga, é que pensei que viria
para a cidade apenas por algum tempo, até me
estabilizar financeiramente e então partiria para a
Cidade dos Anjos, onde poderia abrir um negócio
de verdade, sabe? - falou sonhadora. - Mas agora faz
mais de cinco anos que tô aqui nessa merda e parece
que nunca vou sair.
- Não deve desistir dos seus sonhos, Guides,
algum dia eles podem se realizar.
- Mas sonhar é algo tão bobo; você tá sempre
nas alturas, parece que tá querendo que a queda seja
maior ainda.
- Sonhar não é bobo, é apenas... humano!
E de ser humano Fraga entendia. Podia ter
seu chefe que lhe ajudava o máximo que podia
porque Fraga era um bom funcionário, mas que era
humano era. Possuía um corpo de carne e osso
como qualquer um e pode morrer, quer queira,
quer não queira. Claro que, ao morrer, iria para o
lugar onde seu chefe mora. Mas mesmo que fosse
para um bom lugar, viver sempre será melhor.
É na vida onde temos cidades grandes e altas
oportunidades de trabalho - como naquela vez em
que Fraga invadiu um orfanato e conseguiu
diversos trabalhos, pois lá ninguém tinha esperança,
todos faziam qualquer acordo. Eventualmente o
orfanato fechou porque não havia mais crianças lá.
E eventualmente a funerária da cidade já estava
cheia de enterros para realizar.
Você pode conseguir o que quer, mas tem de
conseguir por si mesmo, ou então não vive tempo o
suficiente para aproveitar.
- Suponho que ocê tenha razão, Fraga Guides concordou por fim, após um bom tempo
refletindo sobre a frase dele enquanto esfregava o
balcão.
Fraga saíra de sua mesa e agora seu copo
pousava no balcão de Guides, o homem estava
sentado num banco alto que lhe possibilitava pousar
os braços na madeira que apoiava seu copo.
- E caso você não consiga isso tão logo
quanto espera, talvez eu possa te ajudar, sabe... eu
tenho uns contatos que podem te dar um avanço
muito grande até o seu sucesso.
- Pois me fale, homem - Guides pareceu se
interessar de repente.
- Não, não. Primeiro você precisa tentar
sozinha, senão não tem o porquê conseguir. Se for
pra pegar um atalho ao topo, melhor nem seguir
por esse caminho.
- Suponho que ocê tenha razão - repetiu.
- É claro que tenho. Sabe, eu vou passar na
Cidade em algum tempo, vou dar uma procurada
por você e espero que esteja lá, hein?!
Guides deu um sorrisinho tímido. Não era
bela, mas não era feia. Fraga não se importaria de
aguentar aquela mulher pelo resto da sua vida caso
fosse um simples trabalhador. Mas naquele emprego
possuía dinheiro o suficiente para contratar as
melhores prostitutas das cidades onde passava.
Cármene era a única cidade onde as
prostitutas não eram tão belas quanto o esperado.
Sabia por experiência própria que as das cidades
pequenas são as melhores, pois a cidade é pequena e
elas não são rodadas demais, mas não aquela uma
que foi em seu quarto.
Fraga percebeu que aquela realmente tentava
ajudar sua mãe, o cheiro de pecado era forte. Mas
não era pecado para ele e seu chefe, apenas para o
outro cara; para os dois aquilo era, entre diversas
outras coisas, apenas um outro acaso da vida.
- Não chove mais - Guides falou como que
para não deixar a conversa morrer, encarava o chão.
- Perdão? - Fraga perguntou.
- Disse que não chove mais - repetiu, agora
deixando de encarar o além e olhando para Fraga,
então jogando o pano molhado no balcão e
tornando a limpá-lo.
- Por que diz isso?
- Porque a última chuva que aconteceu faz
mais de uma semana, foi terrível. Caiu pedra do
céu.
Fraga pensou por um momento, sem saber o
que ela dizia.
- Ah, granizo! - entendeu.
- Isso mesmo, essas pedras do demônio xingou Guides. - Depois daquele dia não choveu
mais, o que é um horror pras plantações, e as pedras
ainda quase destruíram os quartos lá de cima.
Também destruiu um monte de casas.
- Essas chuvas parecem que vêm acontecendo
bastante pela região - disse antes de dar outro gole
na caneca com um restinho de cerveja.
Guides não viu o sorriso de Fraga. O homem
sabia do porquê dessas chuvas, era a maneira que o
outro cara achava para avisar o povo de uma região
que o coletor do senhor das trevas está chegando.
Primeiro ocorre a chuva de granizo, para preparar a
população para o pior, então, uma semana depois,
chega Fraga, já escolhendo quais são suas vítimas.
Era incrível, na opinião dele, nenhum jornal
ter percebido que isso sempre acontece antes dele
chegar no local em questão, sendo que as chuvas
estão sendo estudadas há algum tempo já. Elas não
começaram há muito, pois Fraga apenas chegou
naquela região de Meléas há pouco tempo. Menos
de um ano.
Mas as chuvas o acompanhavam, sempre
alertando os habitantes, ou ao menos tentando. Para
Fraga, seria mais prático o outro cara descer dos
céus para avisar sobre a chegada, mas ele não fazia
isso. Não se sabia o porquê.
- Mas logo é verão - Fraga disse. - Deve
começar a chover em alguns dias.
Assim que eu sair da cidade, para ser mais
preciso, pensou.
- Deus te ouça - Guides disse e olhou para os
céus, fazendo um gesto de pedido que Fraga não
entendeu, apenas porque, quando faz um pedido,
ele não vai para os céus.
Guides não notou que Fraga a lançara um
olhar assassino ao falar o nome do outro cara. Ele
mesmo é proibido de falar, bom, proibido não, mas
é como se fosse. Passara tanto tempo chamando ele
de “outro cara” que já começava a estranhar ouvir
os outros o chamando daquele nome estranho e sem
significado.
O outro cara, é isso o que ele é.
Os dois estavam conversando, o tempo
passava rapidamente. Fraga não bebeu mais,
precisava ficar sóbrio caso uma oportunidade
batesse à sua porta. E uma porta bateu, a do bar.
Uma mulher entrou correndo e logo se
aproximou do balcão, usava um vestido curto
vermelho e seu cabelo estava preso em um coque.
Olhava para trás desesperadamente e estava suada,
como se tivesse corrido desde a Cidade dos Anjos
até Cármene.
- Por favor, preciso de ajuda - a mulher falou
para Guides em engasgos.
- O que aconteceu? - Guides perguntou,
embora não a conhecesse.
- Meu marido, ele tá me seguindo. Eu preciso
me esconder em algum lugar!
Guides olhou Fraga como se quisesse uma
ajuda, mas ele não respondeu. O bar era dela, e se a
mulher quisesse ajudar a outra, que ajudasse.
- Entre aqui! - Guides levantou uma parte do
balcão e a mulher entrou.
- Obrigada - agradeceu ela.
Guides a empurrou para baixo e encarou
Fraga por um segundo, como se estivesse assustada
e não soubesse se havia feito a coisa certa. Logo
veio outro tapa na porta, desta vez mais forte. Fraga
virou o pescoço e notou que era o marido, ou então
alguém muito furioso com a mulher que se
escondia atrás do balcão.
- Cadê ela? - gritou soltando saliva pelo ar.
- De quem fala? - Fraga perguntou, achou
que era melhor ele lidar com o homem do que a
própria Guides fazer isso.
- Da puta da minha mulher, Georgia, que
estava com o Marciel, estava sim que eu vi! pareceu estar defendendo sua causa num tribunal.
- Ninguém está falando que ela não estava Fraga tentou acalmá-lo. - Mas não vimos sua
mulher aqui!
Fraga ainda segurava sua caneca de cerveja,
um restinho ainda menor do que antes. Falava
calmamente, pois achava que isso amansaria a fera.
O homem, que parecia estar bêbado, embora
devesse ter bebido em outro bar ou em casa, pois
não aparecera lá pela manhã, começou a revirar o
salão todo atrás da esposa traíra. Jogou mesas e
cadeiras no chão. Fraga deixou sua caneca no balcão
e foi atrás do marido.
- Ei, acho melhor você ir embora, pois aquela
mulher lá é a esposa do xerife! - Fraga mentiu
parecendo ser um bom ator, ele apontava para
Guides. O homem acreditou.
- Não importa quem é quem, cadê minha
mulher? - o homem jogou Fraga para o lado e ele
caiu numa montanha de cadeiras, bateu as costas.
O marido andou pisando firme até o balcão e
gritou com Guides, que não respondeu nada
porque estava assustada. Logo o maluco se apoiou
no suporte de madeira e espiou por cima da
bancada, viu sua mulher chorando agachada no
chão duro do bar.
- Achei você, sua vadia - sua voz foi
aumentando de tom.
- Não, por favor! - Georgia gritou em
desespero.
O marido iria agarrá-la e provavelmente a
matar, mas antes que pudesse fazer isso foi agarrado
por trás e jogado para o lado, embora não tivesse
caído. Era Fraga, que havia se levantado e deixava
uma mão na coluna numa tentativa fútil de fazer a
dor diminuir.
- Eu disse que era melhor você sair daqui! falou e correu para cima do homem.
Fraga o agarrou e jogou para fora do bar, o
marido caiu na estrada de chão e poeira foi jogada
aos céus. O homem o olhou com desespero e
levantou-se aos poucos, então saiu correndo de
perto do bar.
Fraga ficou lá por mais algum tempo, para o
caso do maluco voltar. Pôs a cabeça de volta para
dentro do bar e recebeu um abraço e um
agradecimento de Georgia, que disse que era
perseguida por seu marido durante todos os seus
anos de casados, que ele a via com um Marciel
imaginário e todo dia ela precisava correr para se
esconder do marido maluco. Ele estava sempre
bêbado, embora a mulher não soubesse de onde
vinha a bebida. Ela disse que nunca teve coragem
de contar ao xerife, mas Fraga a afirmou que era
isso o que deveria fazer, e logo.
- Não, eu não posso aceitar - Georgia disse
para Guides.
- Por favor, eu insisto. Não é como se eu
pudesse ficar sem fazer nada depois de ver o que
quase aconteceu aqui. Se não fosse Fraga... Por
favor, aceite.
- Mas eu não tenho nem como te pagar.
- Psst! - brincou Guides. - Não precisa pagar!
Georgia falou com Guides e a mulher, tendo
um bom coração, a ofereceu um dos quartos do
segundo andar, não cobraria nada. Fraga pagou pela
cerveja, apesar da insistência de Guides e saiu do bar
com um aceno com a cabeça.
O feiticeiro parou na frente de uma igreja e
percebeu que havia algo ocorrendo lá dentro, um
sermão, uma missa.
Ele empurrou a porta e, embora tenha feito
um tremendo barulho, ninguém olhou para trás,
estavam focados no padre que parecia falar frases
mais hipnotizantes que o próprio Fraga. Haviam
diversas fileiras de bancos marrons, onde diversos
fiéis se sentavam. A igreja estava lotada e Fraga teve
de ficar em pé ao lado da porta, escorado na parede
como se fosse um garoto que só estava lá porque
esperava a missa acabar para tacar fogo no local.
Todos vestiam roupas levemente formais: as
mulheres vestidos claros e os homens ternos, exceto
aqueles que possuíam menos dinheiro que os
demais, esses usavam apenas suas camisetas sujas que
também usavam para o trabalho.
O padre vestia uma longa túnica branca e
balançava muito as mãos, como se o movimento
fosse fazer sua voz ser transmitida com mais
facilidade. O cabelo do homem era curto e preto,
seu rosto um pouco arredondado, embora fosse
magro como um palito, pelo que dava para
perceber por conta da grossura de seus braços.
Fraga continuava a mascar o palito em sua
boca, o padre o olhava de hora em hora, parecia
estar checando se ele não havia tacado fogo na
igreja antes da hora de costume. O homem, em seus
trinta ou quarenta anos, ficava muito longe. A
igreja era comprida demais para que ele reparasse
em Fraga, para que realmente percebesse o que
vestia e usava em seu pescoço, o símbolo daquele
ser que o padre não gosta.
- Irmãos - o padre gritou e o grito terminou
num agudo alto. - Não devemos, sob hipótese
alguma, ceder às tentativas que o senhor das trevas
nos dá. Ele promete coisas que nunca irá cumprir, e
tudo isso porque é o rei da mentira. Não confie
nesse homem podre que lhes promete melhoras de
vida, pois ele é egoísta e só pensa em sí próprio.
DEUS é o caminho, a verdade e a vida. Amém.
- Amém - disseram em uníssono. Dessa vez,
Fraga não riu, mas seu rosto demonstrava desprezo.
- Agora, irmãos, vamos rezar a oração que o
Pai nos ensinou - sua voz foi diminuindo até que se
calou, cruzou as mãos à sua frente e todos os fiéis
fizeram o mesmo, começando a olhar para baixo.
- Pai nosso que estais no céu - começaram a
rezar e rezaram duas vezes mais, pois “o Diabo está
aqui conosco, eu o sinto, rezemos novamente” foi
dito pelo padre outras duas vezes.
- Ide em paz e que o Senhor vos acompanhe o padre sorriu e fez um gesto delicado à porta,
como se estivesse mandando o Senhor junto dos
fiéis que começavam a sair da capela.
- Graças a Deus – falaram todos antes de se
levantarem e sair.
Todos passavam por Fragas, mas ninguém se
importava com sua presença, muitos nem sequer o
conheciam. Os mais fiéis não iam ao bar e não
estavam na hora da discussão do dia anterior porque
estavam na igreja. Há missas quase todos os dias na
cidade.
O último saiu porta afora e o padre desceu do
altar e andou até Fraga, o som de seus passos
circulavam por toda a igreja, o piso era liso. Ele
cruzou os braços antes de chegar, como se estivesse
preparado para ouvir ou estivesse impedindo a
entrada de o que quer que Fraga fosse falar.
- Bom dia, meu filho - o padre falou para
Fraga de bom humor.
- Bom dia, seu padre - respondeu.
- O que queres aqui na minha humilde
igreja? Vejo que espera uma resposta ou explicação.
- Nada disso, não, senhor padre, só entrei
aqui porque notei que havia algo acontecendo.
- Entendo. Então não é de ir em igrejas? perguntou o padre.
- Digamos que não - Fraga respondeu.
- Pois bem, mas saiba que isso lhe garante um
lugar com o nosso Senhor, lá no paraíso - apontou
para cima como se o paraíso ficasse no teto da
igreja.
- O problema, senhor, é que já tenho outro
lugar marcado para ir! - Fraga respondeu dando um
sorriso de canto de boca, o padre não notou.
O que o bom homem notou, porém, foi
muito pior. Fraga usava, pendurado no pescoço
como um colar, o símbolo do pentagrama
invertido. O colar era de ferro, assim como o
símbolo. O padre deu uma olhada e fez o sinal da
cruz, tentando expulsar o demônio de dentro da
casa do Senhor.
- Creio que seja melhor se o senhor se
retirasse - o padre falou educadamente.
- Ah, mas justamente quando recém cheguei?
- Minha igreja é local para pessoas de alma
bondosa e pura, não para pessoas que usam o
símbolo do capeta no pescoço - fez o sinal da cruz
de novo para se livrar do mal-olhado.
- Mas quem disse que eu quero ficar aqui
dentro da sua igreja? - Fraga perguntou em uma
voz fina enquanto, com a mão direta, acariciou o
cabelo do padre.
- Ótimo, então por favor se retire - repetiu.
- O único problema, senhor padre, é que eu
ganho pelas minhas ações, e não apenas pelos meus
negócios - sorriu de maneira assassina.
O padre o olhou esquisito, medrosamente.
Pôs a mão no pescoço e puxou uma corda para
cima, em sua ponta havia um crucifixo e nele o
filho de seu Senhor. Fraga desviou o olhar.
O padre agarrou o crucifixo de tal maneira
que sua mão chegava a ficar vermelha. Parecia,
talvez, estar se punindo por ter permitido que um
cultuador do homem de baixo entrasse na casa do
Senhor. Não podia se dar chibatadas porque não era
hora de se fazer isso ainda, então aquela era a única
punição que podia se dar.
Não podia maltratar o adorador porque isso
não era coisa de um homem de puro coração. Só
lhe restava a fé, e embora sua fé fosse forte o
suficiente para mover montanhas, talvez pudesse
não ser o suficiente para parar o ataque de Fraga.
- O Senhor é meu Pastor - o padre repetiu
religiosamente em sussurros, como se os únicos que
pudessem ouvir fossem ele e seu próprio Deus.
- Será que ele é? - perguntou Fraga e logo se
pôs a rir.
- Tu vais para o inferno, e lá serás torturado
por desrespeito ao nosso Senhor, o único Senhor,
aquele que mandou seu filho para que sofresse por
nós, para que pagasse nossos pecados - o padre
continuou incansavelmente, Fraga já não parecia
mais se importar com as constantes acusações.
- Se queres falar de meu Senhor desta maneira
- Fraga começou a dizer, usando o mesmo tom do
padre -, ensinar-te-ei a não desrespeitá-lo, pois se o
seu não lhe ajuda, o meu me dá forças para
combater os desprezíveis como vós.
O padre estava a um braço e meio de
distância de Fraga, segurando seu crucifixo e
rezando. Não rezava apenas por ele, rezava também
por Fraga, afinal, era um cristão, e tinha esperanças
de que todos tinham salvação, mesmo aqueles que,
como Fraga, faziam as escolhas erradas.
- Liberte sua alma e permita que veja a sua
luz, meu Deus - o padre falou um pouco mais alto
do que o resto de suas frases.
Fraga estendeu o braço e fechou os olhos,
começou a rezar tão forte quanto o padre. Mas
enquanto o padre rezava pela alma de Fraga, o
próprio rezava por outra coisa, por isso sua prece foi
atendida. A alma do homem já estava podre, além
de vendida, não valia nada além de um mísero
centavo que não era da época. Nem mesmo o
Senhor do padre poderia o salvar, mas o Senhor de
Fraga atenderia seu pedido com todo o prazer do
mundo, afinal, é isso o que faz nos tempos livres.
O padre apertava o crucifixo contra o peito e
logo sua respiração ficou pesada. Lentamente seus
órgãos foram parando de funcionar e ele já não
respirava mais, sem deixar de, com seu último
suspiro, pedir pela benção de todos da cidade.
Não morreu, pois voltou logo depois, antes
mesmo de cair no chão. Voltou dando fungadas
fortes para que o ar entrasse em seus pulmões que
brevemente voltaram a funcionar. Estava com suas
mãos nos joelhos, encarando o chão como em uma
oração esquisita. Recuperava seu fôlego e logo o
diafragma prendeu durante a mesma respiração.
A morte é algo “a mais” para o Senhor de
Fraga, o bom mesmo é a tortura, tanto que essa é a
premissa de seu local de descanso. A tortura dá, para
o Senhor de Fraga, mais prazer do que a morte, que
apenas termina. A vida termina na morte. A tortura
pode durar para sempre.
O padre pôs a mão no abdome e tentava
respirar pela boca, a mantinha aberta para o caso de
o ar resolver ser sorvido novamente. Logo o
diafragma foi solto e o homem se pôs a ofegar
novamente. Não sentiu que voltaria a ter sua
respiração presa então aproveitou o ar puro de
dentro da igreja. Seu estômago rebulhava e sua
cabeça estourava em febre.
- Por que fazes isso? - o padre perguntou
ainda de cabeça vidrada no chão da capela.
Fraga se aproximou até que sua boca estivesse
na altura do ouvido do padre. Molhou os lábios e
pareceu ter pensado durante um segundo no que
falar.
- Diversão - foi o que escolheu responder.
- Você ainda tem salvação, meu filho - o
padre tentou, pela última vez, libertar a alma de
Fraga.
- Não, senhor. VOCÊ ainda tem salvação. É
só aceitar meu Senhor como o seu Senhor e estará
ao Seu lado, não sofrerá nem será punido, receberá
luxúrias por toda a eternidade.
- Esse não é o meu Senhor, e não deve ser o
seu também! - o padre disse.
Fraga fechou os olhos e pôs a mão na nuca do
padre, apertando-a com força. O homem reclamou
da dor, mas logo não a sentiu mais. O que acontecia
era pior do que a própria dor.
A lava de um vulcão parecia subir por sua
garganta procurando pela boca, e finalmente a
achou. O padre estava com os olhos abertos
enquanto encarava o chão e viu o líquido vermelho
sair pela boca e cair no piso bege da igreja. Seu
sangue brilhava no soalho liso e inundado por sol.
Sentiu que mais vinha e sentia dor. Seus
pulmões, seus rins, seu diafragma e seu coração
doía. O pequeno músculo que lhe dava vida lutava
para realizar a sístole e diástole de sempre.
Lentamente o coração parou de bater e permaneceu
parado, mas o homem continuava em pé.
Nunca é um caso perdido até que o cérebro
também tenha morrido, mas ele morria junto do
resto do corpo. O padre pôs a outra mão na cabeça,
enquanto a direta segurava o diafragma que
apertava sua barriga. O cérebro parecia derreter e a
febre aumentava. Logo o homem sentiu como se
vomitasse o próprio órgão do sistema nervoso pela
boca.
“No céu eu estarei ao lado do Senhor, serei
cuidado pelos anjos que Lhe servem” o padre
pensou, e pensou novamente enquanto vomitava
seu próprio sangue. Tossia e o barulho de sua
agonia só não era ouvido da rua porque parecia
estar isolado apenas na igreja.
- Escolha melhor na próxima vida, filho da
puta - Fraga disse no ouvido do padre antes dele
desmaiar no próprio vômito.
- Eu escolhi o certo. Eu escolhi o certo foram suas últimas palavras.
A
túnica
branca
estava
encharcada
de
vermelho. E ninguém suspeitaria que o assassino
fora Fraga, pois ninguém realmente o notou parado
à porta da igreja. Sairia de lá impune e poderia
procurar por mais desesperados para conseguir as
outras quatro pessoas que lhe faltavam. Mesmo que
não conseguisse, sabia que o chefe estaria satisfeito
depois daquela demonstração de seu poder e
crueldade.
Fraga esfregou as mãos nas calças e ajustou o casaco
grande, então deu um peteleco no chapéu e abriu a
porta da igreja para sair de lá. Foi recebido na
cidade por uma pessoa que lhe era conhecida.
O problema com guardas comuns é que eles
dormem, e com as celas sendo fracas, é fácil para um
preso sair de uma delas e aparecer com uma
espingarda nas ruas da cidade. Fora isso o que Jacir
fizera, apenas esperou Guilherme pisar na bola, saiu
da cela e pegou a espingarda do xerife que não
estava lá no momento, pois falava com Guides no
bar.
Jacir apontava a espingarda de cano prata para
Fraga, o velho usava uma camisa flanela de xadrez e
calça bege. Seu cabelo era ralo e seus dentes pretos.
- Isso aqui – içaki - não é lugar procê,
feiticeiro filho da puta! - gritou e apertou o gatilho.
A bala foi rápida demais para que Fraga
desviasse. Ela passou direto pela sua testa, saindo do
outro lado e levando o chapéu junto. O homem
caiu de costas no chão duro da igreja e, quando os
outros habitantes chegaram para ver o que
acontecera, notaram padre Francisco caído no chão,
deitado sobre seu próprio sangue.