o exame nacional do ensino médio como gênero do discurso

Transcrição

o exame nacional do ensino médio como gênero do discurso
UNIVERSIDADE FEDERAL DE CAMPINA GRANDE
CENTRO DE HUMANIDADES
UNIDADE ACADÊMICA DE LETRAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LINGUAGEM E ENSINO
LUDMILA KEMIAC
O EXAME NACIONAL DO ENSINO MÉDIO COMO
GÊNERO DO DISCURSO
Campina Grande – PB
Novembro de 2011
2
LUDMILA KEMIAC
O EXAME NACIONAL DO ENSINO MÉDIO COMO
GÊNERO DO DISCURSO
Dissertação apresentada ao Programa de
Pós-Graduação em Linguagem e Ensino,
como pré-requisito para obtenção do título de
Mestre em Linguagem e ensino
Orientadora: Profa Dra Denise Lino de Araújo
Campina Grande – PB
Novembro de 2011
3
4
Folha de Aprovação
___________________________________________________________________
Profa Dra Denise Lino de Araújo – UFCG
(Orientadora)
___________________________________________________________________
Profa Dra Andréia Ferreira da Silva – UFCG
(Membro Interno)
___________________________________________________________________
Profa Dra Lívia Suassuna – UFPE
(Membro Externo)
5
RESUMO
Nesta pesquisa procuramos compreender o Exame Nacional do Ensino Médio como
um gênero do discurso em um contexto de reformas educacionais.
Especificamente, traçamos como objetivos: 1. Analisar a dimensão social na qual se
constituem exames como o Enem. 2. Analisar a dimensão verbal desse exame,
atentando para seus aspectos estilístico-composicionais. Nosso referencial teórico
pautou-se principalmente nos conceitos bakhtinianos (BAKHTIN, 1992, 2003, 2009)
de gênero, esfera, estilo; no conceito de Estado ampliado de Gramsci (2002); nos
estudos sobre avaliação enquanto política educacional (FREITAS, 2007; SOUSA,
2009; ZANARDINI, 2008). Ao nos debruçarmos sobre essas duas dimensões
correlacionadas – a dimensão social e verbal – , pudemos compreender como o
Enem se estrutura em um contexto de redefinição do papel do Estado, como reaçãoresposta às propostas de reformas educacionais para o ensino médio. Defendemos,
nesta dissertação, que exames como o Enem constituem gêneros do discurso
complexos, vinculados à ação normativa Estatal. O Enem, de forma específica,
reveste-se de estratégias de consenso, as quais revelam o papel indutor do Estado.
Sobre os aspectos estilístico-composicionais do Enem, percebemos que estes se
constituem em um movimento de distanciamento e assimilação do tradicional e do
inovador, negando o que poderia ser considerado mais „tradicional‟, e investindo
continuamente em um discurso da inovação.
Palavras-chave: Gênero. Enem. Avaliação em larga escala.
6
ABSTRACT
In this research we seek to understand the “Exame Nacional do Ensino Médio” as a
genre of discourse within a context of educational reforms. Specifically, we draw the
following objectives: 1. Analyze the social dimension in which exams like the Enem
are consolidated. 2. Analyze the verbal dimension of this evaluation, noting stylisticcompositional aspects. Our theoretical framework was based mainly on the
bakhtinian concepts (BAKHTIN, 1992, 2003, 2009) of gender, sphere, style; the
concept of State of Gramsci (2002); studies on educational assessment as a policy
(FREITAS, 2007; SOUSA, 2009; ZANARDINI, 2008). Correlating these two
dimensions - the social and verbal - we could understand how Enem is structured in
a context of redefining the role of the State as a reaction-response to the proposed
education reforms for high schools. We argue, in this research, that tests how Enem
are complex genres, linked to the State regulatory actions. The Enem, specifically, is
covered of consensus strategies, which show the inductive role of the state. On the
compositional-stylistic aspects of the Enem, we realize that these are constituted in a
movement of assimilation and alienation of traditional and innovative practices,
denying what could be considered 'traditional', and continually investing in a speech
innovation.
Keywords: Gender. Enem. Large-scale evaluation.
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LISTA DE ILUSTRAÇÕES
Ilustração 1 - Questão 63, Enem 2002 .................................................................................................. 57
Ilustração 2 - Nota emitida pelo Comitê de Governança sobre a matriz de referência do
Enem 2009 ........................................................................................................................................ 136
Ilustração 3 - Questão 58, Enem 1998 ......................................................................................... 161
Ilustração 4 - Questão 46, Enem 2000 ......................................................................................... 164
Ilustração 5 - Questão 97, Enem 2010 ......................................................................................... 168
Ilustração 6 - Questão 98, Enem 2010 ......................................................................................... 170
Ilustração 7 - Questão 136, Enem 2010 ....................................................................................... 172
Ilustração 8 - Questão 39, Enem 2010 ......................................................................................... 177
Ilustração 9 - Questão 25, Enem 2010 ......................................................................................... 179
Ilustração 10 - Questão 44, Enem 2010 ....................................................................................... 180
Ilustração 11 - Questão 24, Enem 2010 ....................................................................................... 182
Ilustração 12 - Questão 83, Enem 2010 ....................................................................................... 183
Ilustração 13 - Questão 133, Enem 2010 ..................................................................................... 187
Ilustração 14 - Questão 104, Enem 2009 ..................................................................................... 187
Ilustração 15 - Questão 54, Enem 2010 ....................................................................................... 190
Ilustração 16 - Questão 75, Enem 2010 ....................................................................................... 191
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LISTA DE TABELAS
Tabela 1 – Relação de Questões analisadas ............................................................ 24
Tabela 2 – Temas das propostas de redação do Enem (1998-2010) ..................... 194
9
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO ................................................................................................................................................. 11
1.1 A natureza discursiva da avaliação: introduzindo o problema .............................................................. 11
1.2 O percurso da pesquisa: o texto como forma de conhecimento........................................................... 13
1.3 A construção do objeto ................................................................................................................................ 20
1.3.1 Descrição do corpus e categorias de análise ....................................................................................... 22
2 GÊNERO, AVALIAÇÃO: DISCUTINDO ALGUNS CONCEITOS ........................................................... 26
2.1 Gênero, esfera, estilo .................................................................................................................................. 26
2.1.1 Os gêneros do discurso: reação-resposta a dois problemas fundamentais .................................... 28
2.2 Avaliação: enquadrando o tema sob a ótica bakhtiniana ..................................................................... 42
2.2.1 Das origens às (in) definições ............................................................................................................... 43
2.2.2 Provas/testes/exames sob a ótica bakhtiniana .................................................................................... 50
2.2.2.1 Provas/testes/exames: um gênero do discurso ................................................................................ 53
2.3 O estado como avaliador: entre o consenso e a coerção ..................................................................... 63
2.4 Avaliação por competências ...................................................................................................................... 69
2.5 Primeira síntese intermediária ................................................................................................................... 72
3 EXAMES PADRONIZADOS, EM LARGA ESCALA: UM OLHAR SOBRE A DIMENSÃO SOCIAL
DESSE GÊNERO DO DISCURSO EM UM CONTEXTO DE REFORMAS .............................................. 76
3.1 A avaliação em larga escala em um contexto de reformas ................................................................... 77
3.1.1 Redefinição do papel do estado e ideologia neoliberal: considerações sobre a esfera de
emergência da avaliação em larga escala...................................................................................................... 81
3.1.1.1 Dos precursores .................................................................................................................................... 81
3.1.1.2 Das reformas do papel do estado e da ideologia neoliberal ........................................................... 84
3.1.1.2.1 Reforma educacional: a emergência de exames em larga escala ............................................. 92
3.2 Gêneros em interação ............................................................................................................................... 103
3.3 Requisitos para a eficiência do exame ................................................................................................... 109
3.3.1 Objetividade, credibilidade, isonomia do processo avaliativo .......................................................... 109
3.4 O enem como gênero do discurso: consenso e coerção ..................................................................... 121
3.4.1 A difusão de ideias sobre a „educação necessária‟: estratégia para o consenso......................... 125
3.4.1.1 Distinção do exame ............................................................................................................................. 127
3.4.1.2 Relevância dos conteúdos ou habilidades/competências e pressupostos teóricometodológicos ................................................................................................................................................... 134
3.4.1.3 Capacidade de reestruturar e intervir no ensino ............................................................................. 139
10
3.5 Função social .............................................................................................................................................. 144
3.6 Segunda síntese intermediária ................................................................................................................ 151
4 O EXAME NACIONAL DO ENSINO MÉDIO COMO EXAME EM LARGA ESCALA: UM OLHAR
SOBRE A DIMENSÃO VERBAL DA PROVA .............................................................................................. 155
4.1 O exame nacional do ensino médio e as reformas nos conteúdos e currículos de ensino: uma
questão de estilo ............................................................................................................................................... 156
4.2 Forma composicional: tipos de questões e contextualização ............................................................. 175
4.3 Um olhar sobre as propostas de redação: formação para o consenso ............................................. 192
4.4 Terceira síntese intermediária .................................................................................................................. 198
5 CONCLUSÕES .............................................................................................................................................. 200
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS .............................................................................................................. 203
ANEXOS ............................................................................................................................................................ 208
ANEXO A - PROPOSTA À ASSOCIAÇÃO NACIONAL DOS DIRIGENTES DAS INSTITUIÇÕES
FEDERAIS DE ENSINO SUPERIOR ............................................................................................................ 209
ANEXO B – ENEM: UM EXAME DIFERENTE ............................................................................................ 216
11
1 INTRODUÇÃO
1.1 A natureza discursiva da avaliação: introduzindo o problema
A partir da década de 90 do século XX, assistimos à construção de ideias
hegemônicas sobre a educação brasileira, as quais apregoam a necessidade da
descentralização da oferta do ensino, da gestão democrática e participativa, da
flexibilidade e desregulamentação dos serviços públicos. Todavia, em contrapartida
a essa flexibilização e descentralização estão cada vez mais em pauta as políticas
de avaliação educacional, enquanto mecanismos centralizados de controle. Nesse
contexto, são instituídas e legitimadas avaliações em larga escala da educação
nacional, como o Enem, que, dentre outros objetivos, visaria aferir a qualidade da
educação básica.
Oliveira (2007) ressalta que a descentralização da oferta do ensino no Brasil
teve
como
contrapartida
processos
de
padronização
de
procedimentos
administrativos e pedagógicos, de forma a se rebaixar os custos do atendimento
sem abrir mão do controle central das políticas. Dentre esses processos de
padronização, a avaliação em larga escala é, certamente, o maior expoente.
Não obstante, para serem aceitas e, mais que isso, legitimadas, as iniciativas
de avaliação são difundidas por diversos documentos – Notas técnicas,
propagandas, documentos parametrizadores – que evidenciam o papel do Estado
como indutor e difusor de valores, signos e ideologias.
Logo, consideramos que a avaliação em larga escala possui uma natureza
discursiva, fundamentando-se como produto dos sistemas ideológicos constituídos,
12
para utilizarmos a expressão bakhtiniana (2009), sendo, ademais, resultado de
ações normativas estatais.
Essas considerações levam-nos a questionar: como produto de sistemas
ideológicos oficiais, apresentando uma composição relativamente estável e um estilo
singular, constituiriam exames em larga escala, e mais especificamente o Enem,
gêneros do discurso em um contexto de reformas educacionais?
Tal questionamento leva-nos a propor como objetivo geral compreender o
Enem como um exemplar de um gênero do discurso em um contexto de redefinição
do papel do Estado e reformas educacionais. Especificamente, a fim de atingir esse
objetivo geral, procuramos: 1. Analisar a dimensão social na qual se constituem
exames como o Enem. 2. Analisar a dimensão verbal desse exame, atentando para
seus aspectos estilístico-composicionais.
A relevância e mesmo a pertinência da pesquisa ora proposta advém da
seguinte constatação: desde o final da década de 1980 e início da década de 1990
temos, no Brasil, a aplicação de avaliações em larga escala que visam, segundo o
discurso oficial, aferir a qualidade da educação básica, direcionar ações
governamentais e, assim, melhorar o ensino público brasileiro. O Enem é um
exemplo emblemático de ação normativa federal, pois, a um só tempo, condensa os
papeis do Estado como indutor, difusor de crenças e criador de uma ambiência
propícia à disseminação de determinadas práticas educacionais.
Embora há mais de vinte anos avaliações em larga escala estejam sendo
aplicadas no Brasil, não se pode afirmar convictamente que esses exames tenham
cumprido aquele que seria seu papel precípuo de melhorar a qualidade do ensino
público brasileiro. Os dados de indicadores como o IDEB e a participação do Brasil
em pesquisas avaliativas internacionais nem sempre são animadores.
13
Versieux (2004, p.1) afirma que, perante o fracasso de algumas políticas
educacionais, a pesquisa acadêmica se impõe como ferramenta de desvelamento.
Para o autor: “O fracasso de boa parte delas traz à tona a necessidade do
pesquisador trabalhar estes temas e trazer à crítica da ciência educacional estas
políticas educacionais, o que elas representam e em que resultaram”.
Nesse quadro mais amplo, nossa pesquisa propõe-se a fornecer uma visão
complexa, ao tentar compreender o Enem enquanto gênero do discurso. Essa
pesquisa, portanto, atravessando as áreas disciplinares da Linguística, da Educação
e da Política, poderá contribuir com os estudos sobre avaliação da educação básica.
1.2 O percurso da pesquisa: o texto como forma de conhecimento
Nesta pesquisa, conforme descrevemos de forma mais detalhada adiante 1,
analisamos documentos escritos oficiais que versam sobre o Enem (Notas técnicas,
a Fundamentação teórico-metodológica etc), bem como algumas questões do
exame. Nesse sentido, a priori, definimos o texto como nosso objeto amplo de
estudo, considerando que nos situamos no âmbito da pesquisa em Ciências
Humanas. Em O problema do texto na Linguística, na filologia e em outras ciências
humanas, Bakhtin (2003), logo nas primeiras linhas afirma:
Se entendido o texto no sentido amplo como qualquer conjunto
coerente de signos, a ciência das artes (a musicologia, a teoria e a
história das artes plásticas) opera com textos (obras de arte). São
pensamentos sobre pensamentos, vivências das vivências, palavras
sobre palavras, textos sobre textos. Nisto reside a diferença
1
Descrevemos os documentos analisados nesta dissertação no tópico “1.3.1 Descrição do corpus e
categorias de análise”.
14
essencial entre as nossas disciplinas (humanas) e naturais (sobre a
natureza), embora aqui não haja fronteiras absolutas, impenetráveis.
(p. 307).
Sem ser radical, o teórico propõe uma diferenciação entre as ciências
“naturais” , rótulo que englobaria a física, a biologia, a medicina etc, e as ciências
humanas ou sociais. A diferença fundamental reside no objeto de investigação:
essas últimas ciências inevitavelmente têm como objeto de estudo o texto, objeto
semiótico, constituído, imerso em posições axiológicas. Assim, as ciências humanas
nascem como pensamento sobre pensamento dos outros, ideias sobre ideias.
Considerando nosso objeto, podemos afirmar que ele se constitui a partir
desse jogo dialógico de pensamentos e ideias: aos discursos oficiais sobre o Enem
e à prova em si lançaremos ideias outras, pensamentos que procuram enquadrar o
objeto em seu tempo, em seu contexto sócio-histórico, e, ao mesmo tempo,
procuram, à luz das teorias selecionadas, construir outro discurso sobre esse objeto,
a fim de que possamos compreendê-lo como um gênero em uma esfera discursiva
(nosso objetivo geral de pesquisa).
O texto – objeto amplo das pesquisas em ciências humanas e, por
conseguinte, nosso objeto amplo – se constitui sobre dois pólos: de um lado, temos
os elementos da língua, tudo o que é passível de reprodução; por outro lado, temos
o texto como um elemento único e singular, que se revela numa cadeia de textos, na
ampla comunicação discursiva de uma esfera. Esse segundo pólo, segundo Bakhtin
(op. cit.), “é indissoluvelmente ligado ao elemento da autoria e não tem nada em
comum com a singularidade natural e casual” (p. 310).
Se o texto, tomado sob esse segundo pólo, é individual, único, irrepetível,
como tomá-lo enquanto objeto científico, considerando que a ciência está
constantemente em busca de regularidades, de generalizações? Eis como Bakhtin
15
(op. cit.) apresenta essa problemática: “Surge a questão de saber se a ciência opera
com tais individualidades absolutamente singulares como os enunciados, se eles
não iriam além dos limites do conhecimento científico generalizador” (p. 313). A
busca de generalizações, de regularidades, por muito tempo dominou as ciências
sociais, influenciando e limitando, particularmente, a pesquisa em educação,
conforme assinala Ghedin (2008). Todavia, considerando o paradigma atual em
ciências humanas, é preciso considerar as multirreferencialidades que organizam o
fenômeno humano (GHEDIN, op. cit.), o que torna problemático a busca de
generalizações.
Bakhtin, já na década de 1960, época provável de produção do Problema do
texto, atenta para essas questões. Sobre o questionamento acerca da validade de
se estudar as singularidades, responde o autor:
Em primeiro lugar, o ponto de partida de toda ciência são as
unidades ímpares, e em todas as etapas da sua trajetória ela
permanece ligada a estas. Em segundo, a ciência, e acima de tudo,
a filosofia, pode e deve estudar a forma específica e a função dessa
individualidade. (BAKHTIN, 2003, p. 31).
Unidade ímpar, elemento singular, o texto é, para Bakhtin (2003, p. 318), “o
reflexo subjetivo do mundo objetivo”, “expressão da consciência que reflete algo”. No
texto, o mundo objetivo não se apresenta tal qual é, pois passa a outra ordem – a
ordem dos sistemas semióticos. Como ressalta o autor em Marxismo e filosofia da
linguagem (2009), nenhum sistema semiótico é neutro, mas profundamente
constituído pela ideologia. O texto torna-se, pois, o reflexo subjetivo do mundo, pois
não só o reflete, mas o refrata. Nesse sentido, não tomamos nosso objeto de estudo
como simples reflexo de um tempo, de uma tendência de uma esfera (a avaliação
em larga escala como projeto de um Estado-avaliador), mas também como refração
16
desse tempo, dessa esfera: contradições constituem o objeto, tornando-o
multirreferencial.
A compreensão do texto, por sua vez, envolve um novo reflexo sobre aquilo
que já se apresenta como reflexo do mundo. Segundo Bakhtin, “Quando o texto se
torna do nosso conhecimento podemos falar de reflexo do reflexo. A compreensão
de um texto sempre é um correto reflexo do reflexo. Um reflexo através do outro
através do objeto refletido”. (BAKHTIN, 2003, p. 318-319).
Amorim (2008, p. 98) ressalta que Bakhtin, ao propor as ciências humanas
como ciências do texto, considera que “Pesquisador e sujeito pesquisado são ambos
produtores de texto, o que confere às ciências humanas um caráter dialógico”. O
texto reflete subjetivamente o mundo; ao me debruçar sobre esse texto, produzo
novos textos, que se apresentam também como reflexos subjetivos no sentido do
objeto. Pesquisador e sujeito pesquisado se encontram em diálogo à medida que o
pesquisador busca captar o olhar do sujeito investigado, inserindo-se no contexto
desse sujeito, mas, ao mesmo tempo, o olha de fora, imerso em seu próprio tempo,
segundo seus objetivos, suas expectativas. O pesquisador, exotopicamente,
enquadra o objeto em determinado ângulo, confere-lhe um acabamento específico.
A visão do pesquisador e a do pesquisado não se fundem, já que o diálogo,
conforme assinala Amorim (op. cit. p. 100), não é simétrico. Para a autora: “O
pesquisador deve fazer intervir sua posição exterior: sua problemática, suas teorias,
seus valores, seu contexto sócio-histórico, para revelar do sujeito algo que ele
mesmo não pode ver”.
O sujeito/objeto investigado, que se apresenta como texto, encontra-se em
um constante devir, sua condição é a de algo inacabado. A pesquisa em ciências
humanas constitui um modo singular de compreender a realidade, de entendê-la –
17
um modo que propõe um acabamento construído a partir de um discurso próprio e
socialmente legitimado. De fato, o discurso científico confere o acabamento
necessário ao objeto, enquadra-o em um ângulo, tal qual o artista, perante uma
paisagem infinita, seleciona um ângulo, uma visão, e a retrata, confere-lhe um
acabamento específico. Não há como negar a subjetividade: o enquadramento em
um ângulo pressupõe subjetividade, seleção, escolha. Todavia, não se deve
entender a subjetividade do enquadramento (do acabamento exotópico) como uma
profunda anarquia. O objeto não diz como quer ser investigado, mas impõe limites à
investigação (BORGES NETO, 2004).
Ressaltamos, ademais, que, na pesquisa, ao captarmos o objeto – inacabado
– e lhe impormos determinado acabamento, conferimos-lhe, de certa forma, um
„acabamento inacabado‟, já que não somos os primeiros nem seremos os últimos a
falar sobre esse objeto. Com efeito, o objeto construído, fruto da teorização, suscita
leituras, interpretações, entendimentos, já que esse objeto é necessariamente um
texto, que se relaciona com outros textos, pressupõe-nos, retoma-os, com eles
dialoga.
Considerando esse diálogo inevitável, propomos a análise não apenas do
Enem em si (a prova), mas também de documentos que com ele se relacionam:
pronunciamentos expostos no site do MEC, a proposta de adesão aos dirigentes das
IFES ao Enem e ao sistema de vestibular unificado.
O texto, realidade primeira, é o ponto de partida de qualquer disciplina nas
ciências humanas. Para Bakhtin:
Um conglomerado de conhecimentos e métodos heterogêneos
chamado filologia, linguística, estudos literários, metaciência, etc.
Partindo do texto eles perambulam em diferentes direções, agarram
pedaços heterogêneos da natureza, da vida social, do psiquismo, da
história, e os unificam por vínculos ora causais, ora de sentido,
18
misturam constatações com juízos de valor. (BAKHTIN, 2003, p.
319).
Afirmar que as disciplinas agrupadas sob o rótulo de ciências humanas
partem necessariamente do texto enquanto expressão semiótica para construir seu
objeto, significa compreender que a ação física do homem “deve ser interpretada
como atitude mas não se pode interpretar a atitude fora de sua eventual (criada por
nós) expressão semiótica” (BAKHTIN, op. cit., p. 319).
O fato de as disciplinas das ciências humanas tomarem o texto como ponto
de partida não significa, porém, que o objeto construído seja necessariamente o
mesmo. Como afirma Bakhtin na citação acima transcrita, as disciplinas, partindo do
texto, perambulam em diferentes direções, agarram pedaços heterogêneos,
encontram relações (causais ou não) entre esses pedaços „agarrados‟, formulam
conceitos, agregam juízos de valores, constroem um objeto com base no ponto de
vista que se quer (ou se pode) privilegiar.
Borges Neto (2004) compara a construção do objeto científico a um
loteamento da realidade: cada disciplina, ao selecionar determinadas porções da
realidade, loteia, faz uma redução parcial da enorme diversidade que se apresenta a
toda observação. Podemos afirmar que as diversas disciplinas das ciências
humanas „loteiam‟ diferentes porções do texto a ser estudado, considerando que o
texto, em sentido amplo, conforme afirma Bakhtin (2003, p. 307) envolve “qualquer
conjunto coerente de signos”. Nesse sentido, “a ciência das artes (a musicologia, a
teoria e a história das artes plásticas) opera com textos (obras de arte)”.
Ao selecionar, lotear porções do texto como objeto de estudo, de que forma
se procede a investigação? Eis o que afirma Bakhtin:
É como se obrigássemos o homem a falar (nós construímos os seus
importantes depoimentos, explicações, confissões, desenvolvemos
19
integralmente o seu discurso interior eventual ou efetivo, etc). Por
toda parte há o texto real ou eventual e a sua compreensão. A
investigação se torna interrogação e conversa, isto é, diálogo. Nós
não perguntamos à natureza e ela não nos responde. Colocamos as
perguntas para nós mesmos e de certo modo organizamos a
observação ou a experiência para obtermos a resposta. Quando
estudamos o homem, procuramos e encontramos signos em toda
parte e nos empenhamos em interpretar o seu significado.
(BAKHTIN, op. cit., p. 319).
A citação transcrita evidencia que a metodologia nas ciências humanas
possui uma natureza essencialmente dialógica, já que ao investigarmos o homem,
encontramos signos em toda parte. Ademais, as perguntas postas não são
direcionadas à natureza, mas a nós mesmos: organizamos nossa observação com
base nessas perguntas. A pesquisa se funda, pois, a partir de uma interrogação
constante. É importante observar que é com base no ponto de vista daquele que
interroga que as perguntas são feitas e desenvolvidas. O pesquisador debruça-se
sobre o objeto, procura captá-lo em seu contexto sócio-histórico, mas não pode
desvincular-se totalmente do contexto no qual está imerso o próprio pesquisador.
Em outras palavras, interrogamos exotopicamente o objeto – interrogamo-nos de
nossa posição valorativa, para lhe impor determinado acabamento. A investigação
pressupõe, por conseguinte, um jogo incessante de vozes sociais: as vozes que
entrecortam o objeto em seu tempo, em seu contexto; as vozes que o interrogam
hoje, que compõem o horizonte social daquele que paira seu olhar sobre
determinado fenômeno semiótico. Para Bakhtin,
A compreensão dos enunciados integrais e das relações dialógicas
entre eles é de índole inevitavelmente dialógica (inclusive a
compreensão do pesquisador de ciências humanas); o
entendedor (inclusive o pesquisador) se torna participante do
diálogo ainda que seja em um nível especial (em função da
tendência da interpretação e da pesquisa). (op. cit., p. 332, grifo
nosso).
20
Segundo ressalta Amorim (2008, p. 101), o conceito de exotopia, que tão bem
se aplica à pesquisa e, sobretudo, à pesquisa em ciências humanas, “designa uma
relação de tensão entre pelo menos dois lugares: o do sujeito que vive e olha de
onde vive, e daquele que, estando de fora da experiência do primeiro, tenta mostrar
o que vê do olhar do outro”. Na pesquisa, ao tomarmos o texto como objeto de
investigação, tentamos desvendar e compreender o que „o outro olha‟, isto é, o que
ele significa, como significa. O outro não consegue captar uma imagem completa de
si: não nos vemos de forma integral, a imagem de nosso próprio corpo é,
necessariamente, fragmentada. Apenas sob o olhar do outro constituímos nossa
própria imagem. A constituição do eu passa, então, pela visão do outro. Assim é o
texto, objeto das ciências humanas: um objeto que só se constroi integralmente pelo
olhar do outro que interroga.
1.3 A construção do objeto
Considerando que o objeto de estudo no âmbito das ciências humanas
constrói-se pelo olhar do pesquisador, que interroga, seleciona e delimita porções da
realidade, podemos afirmar que assim se dá a construção de nosso objeto: a uma
realidade complexa, em devir constante, propomos um enquadramento específico –
estudaremos o Exame Nacional do Ensino Médio como objeto discursivo em uma
esfera da atividade verbal. Para tanto, determinada abordagem investigativa e
interpretativa se faz necessária. Poderíamos afirmar, ao modo tradicional, que este
estudo constitui uma pesquisa de natureza qualitativa, seguindo uma abordagem
descritivo-interpretativista. Considerando, porém, as observações até o momento
realizadas, julgamos tal afirmativa redundante. Ao nos debruçarmos sobre diferentes
21
textos – objetos semióticos – nossa abordagem e a natureza da pesquisa não
poderiam ser outras.
As questões que se colocam devem ser mais específicas: que porção do texto
pretendemos delimitar? Qual porção da realidade loteamos? De que forma
construímos reflexos subjetivos sobre o mundo objetivo? A essas questões,
respondemos o seguinte: no plano „objetivo‟, da realidade palpável, empiricamente
documentada e atestada, nosso objeto é o Enem (amostras representativas de
questões presentes em sua versão inicial, em 1998, à versão 2010), bem como
documentos que surgem atrelados a este, conforme afirmamos anteriormente:
pronunciamentos do ministro da educação expostos no site do MEC, a
Fundamentação teórico-metodológica do Enem (2005), A Proposta à Associação
Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior, veiculada pela
Assessoria de Comunicação Social (ASC) do Ministério da Educação. Trata-se, pois,
de documentos que apresentam a visão (e a versão) oficial desse exame e que
estão disponibilizados no site do MEC.
Considerando o segundo pólo do texto de que nos fala Bakhtin (2003) – o
texto como enunciado, posição axiológica, em relação ininterrupta com outros textos
– , nosso objeto refere-se à natureza sócio-histórica e, por conseguinte, ideológica e
dialógica desse Exame. Em outros termos, o Enem como gênero em uma esfera
discursiva.
Nossa pesquisa, portanto, ao selecionar textos de natureza verbal escrita2
para serem analisados, pode ser denominada como pesquisa de análise
documental, segundo a classificação estabelecida por Moreira e Caleffe (2008). Sá-
2
Destacamos que a pesquisa documental não trabalha necessariamente com textos escritos, já que o conceito de
documento é complexo, envolvendo materiais de natureza verbal (oral e escrita) e não verbal. Nesta pesquisa,
porém, analisamos apenas documentos verbais escritos.
22
Silva et al. (2009, p. 6) afirmam que a pesquisa documental é caracterizada pela
busca de informações em documentos que não receberam nenhum tratamento
científico, a exemplo de relatórios, reportagens, cartas, filmes etc. Os documentos
nesta dissertação analisados apresentam uma visão sobre o Enem – a visão oficial –
, e a partir dessa visão, interrogamos nosso objeto (o Enem como exemplar do
gênero exame em larga escala), construindo questionamentos a partir do ângulo
aqui selecionado, a partir da realidade aqui „loteada‟.
1.3.1 Descrição do corpus e categorias de análise
Devemos ressaltar que nossa escolha por analisar não apenas o Enem em si
(a prova), mas também alguns documentos produzidos de forma atrelada a este,
resulta de nossas questões de pesquisa, que buscam compreender o Enem como
exemplar de um gênero em um contexto de reformas político-sociais, que
demandam uma forma específica de regulação educacional.
Considerando nossos dois objetivos específicos de pesquisa, que versam
sobre a dimensão social e a dimensão verbal do Enem, nosso corpus foi agrupado
em duas partes. No capítulo 3, analisamos os seguintes documentos:
1. “Proposta à Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de
Ensino Superior” (BRASIL, 2009a), veiculado pela Assessoria de Comunicação
Social (ASC) do Ministério da Educação, sobre a proposta do que viria a se tornar o
„novo Enem‟.
2. O documento intitulado “Enem: um exame diferente” (BRASIL, 2009b), no qual o
MEC apresenta o exame para a sociedade.
23
3. O pronunciamento do ministro da educação, Fernando Haddad, publicado no site
do MEC em 20093 (BRASIL, 2009c), no qual o ministro expõe esclarecimentos sobre
um fato que abalaria a credibilidade do Enem naquele ano: o furto da prova.
4. Nota do Conselho Nacional de Secretários da Educação – CONSED - sobre a
Matriz de Referência do Enem 2009 (BRASIL, 2009d).
5. A Fundamentação teórico-metodológica do Enem (BRASIL, 2005), notadamente:
Apresentação e Eixos teóricos que estruturam o Enem.
Esses documentos foram organizados conforme as seguintes categorias:
1. Requisitos para a eficiência do exame.
2. O Enem como gênero do discurso: consenso/coerção

A difusão de ideias sobre a „educação necessária‟:
a) distinção do exame;
b) relevância dos conteúdos ou habilidades/competências e pressupostos
teórico-metodológicos;
c) capacidade de reestruturar e intervir no ensino.
3. Função social.
O terceiro capítulo foi elaborado tendo em vista o primeiro objetivo de
pesquisa (Analisar a dimensão social na qual se constituem exames como o Enem.).
Nele, defendemos que exames em larga escala constituem gêneros do discurso em
um contexto de reformas e redefinição do papel do estado frente à educação. O
Enem é sempre utilizado para ilustrar e corroborar nossas afirmativas. As
observações e análises estabelecidas no capítulo 3, inicialmente, assumem traços
mais gerais. Assim, em um primeiro momento, utilizamos a expressão exames em
3
Esse pronunciamento foi proferido em rede nacional. No entanto, tivemos acesso a ele no referido
site, sob a forma escrita.
24
larga escala de forma genérica, já que nosso objetivo, no referido capítulo, é analisar
a dimensão social na qual se constituem exames como o Enem. Debruçamo-nos,
portanto, sobre os precursores desses exames, o contexto de redefinição do papel
do Estado e de reformas educacionais, a ideologia neoliberal.
No capítulo 4, nosso olhar se refina e passamos a focalizar o Enem de forma
mais específica, como reação-resposta às propostas de reformas curriculares – um
gênero que assimila um discurso inovador, mas que, ao mesmo tempo, convive com
práticas tradicionais. Analisamos amostras representativas de questões constantes
desde a primeira edição do Enem até a edição 2010. Todavia, nosso foco foi
realmente essa última versão (2010), por ser, à época de elaboração desta
dissertação, a mais recente e por materializar as transformações às quais foi o
exame submetido a partir de 2009. A tabela a seguir sintetiza as questões
analisadas:
Edição do Enem
1998
2000
2009
2010
2010
2010
2010
2010
2010
2010
2010
2010
2010
2010
Tabela 1 – Relação de Questões analisadas
Questão
58
46
104
24
25
39
44
54
75
83
97
98
133
136
25
Categorizamos esse segundo grupo de documentos da seguinte forma:
1. O Exame nacional do Ensino Médio e as reformas nos currículos de ensino: uma
questão de estilo.
2. Estruturação do exame: tipos de questões e contextualização.
3. Um olhar sobre as propostas de redação.
Enquanto o capítulo 3 focaliza a dimensão social na qual emerge e é
instituído o Enem, o capítulo 4 focaliza a dimensão verbal do exame, com ênfase em
seus aspectos estilístico-composicionais. Dessa forma, procuramos atingir, no
capítulo 4, o segundo objetivo que norteia esta pesquisa (Analisar a dimensão verbal
desse exame, atentando para seus aspectos estilístico-composicionais).
Por fim, destacamos que não esgotamos o objeto, mas o interrogamos, o
enquadramos em uma realidade, em um ângulo que nos pareceu o mais apropriado
e obtivemos algumas respostas, algumas surpresas, algumas inquietações.
26
2 GÊNERO, AVALIAÇÃO: DISCUTINDO ALGUNS CONCEITOS
O objeto de estudo proposto nesta pesquisa é, em essência, complexo, pois
propomos a análise do Enem em correlação aos condicionantes sócio-políticos em
que essa avaliação foi instituída e legitimada. Dessa forma, estudaremos o Enem
enquanto um gênero, o qual não pode ser desvinculado de sua esfera discursiva
para
que
possa
ser
compreendido.
Estudar
essa
articulação
pressupõe,
inevitavelmente, uma análise da ação normativa do Estado que constrói um
consenso sobre a „educação necessária‟.
Antes de estabelecer essa relação, em um primeiro momento, no tópico 2.1,
analisamos os conceitos de gênero, esfera e estilo segundo a ótica bakhtiniana –
conceitos importantes para a investigação de nosso objeto de pesquisa. Em
seguida, em 2.2, discutimos a avaliação a partir dos conceitos bakhtinianos
analisados. No tópico 2.3, nos debruçamos sobre a atuação do Estado como
avaliador. No tópico subsequente, 2.4, discutimos a avaliação por competências,
que fundamenta o Enem. Por fim, propomos uma primeira síntese intermediária no
tópico 2.5. Destacamos que a forma como este capítulo foi organizado pressupõe
um percurso que vai de ideias e conceitos mais gerais até algumas ideias mais
específicas.
2.1 Gênero, esfera, estilo
Neste tópico, procuramos analisar o modo através do qual os conceitos de
gênero, esfera e estilo são desenvolvidos e expostos por Bakhtin.
27
De antemão, esclarecemos que nossa leitura tentará demonstrar que os
conceitos e ideias bakhtinianas partem de um princípio fundamental, que possibilita
e mesmo sustenta a constituição de sua arquitetura teórica. Poderíamos pensar na
interação verbal social como uma noção primeira, um princípio fundamental e não
como o resultado de uma demonstração. Em consequência, alguns conceitos
desenvolvidos por Bakhtin – estilo, esfera, enunciado, gênero etc – precisam ser
correlacionados a essa ideia primeira.
Faraco (2008, p. 43) afirma que o grande pressuposto bakhtiniano parte do
“primado da alteridade, no sentido de que tenho de passar pela consciência do outro
para me constituir”. A alteridade enquanto princípio constitutivo já conduz, de
antemão, à ideia de interação social. Ressaltamos que a própria constituição da
consciência subjetiva, conforme assinala Bakhtin (2009), pressupõe os signos –
signos estes que “só podem aparecer em um terreno interindividual” (p. 35).
Se a comunicação e mesmo o pensamento só são possíveis pela mediação
do signo, e se este só pode aparecer num terreno interindividual, a interação
representa um primado fundamental. Não se trata, porém, de qualquer tipo de
interação, mas de uma interação social, isto é, socialmente organizada: “não basta
colocar face a face dois homo sapiens quaisquer para que os signos se constituam.
É fundamental que esses dois indivíduos estejam socialmente organizados, que
formem um grupo (uma unidade social): só assim um sistema de signos pode
constituir-se” (BAKHTIN, 2009, p. 35).
Feitas essas considerações iniciais, passemos, primeiramente, à análise de
algumas considerações tecidas em Os gêneros do discurso (1992).
28
2.1.1 Os gêneros do discurso: reação-resposta a dois problemas fundamentais
A necessidade de se teorizar sobre os gêneros do discurso decorre, segundo
Bakhtin (1992), de dois problemas fundamentais, a saber: o problema do estilo – do
estilo do autor e do estilo geral – não resolvido pela estilística, que trata da questão
de forma insatisfatória; a natureza do enunciado, ainda não compreendido como
unidade real da comunicação verbal.
Comecemos pela primeira problemática. Para introduzi-la, Bakhtin inicia seu
discurso mencionando a relação esfera/utilização da língua, uma vez que entender o
primeiro problema pressupõe o entendimento de como as diferentes esferas
condicionam diversos modos de utilização da língua, caracterizados por estilos
igualmente diversos. Segundo o autor,
Todas as esferas da atividade humana, por mais variadas que
sejam, estão sempre relacionadas com a utilização da língua. Não é
de surpreender que o caráter e os modos dessa utilização sejam tão
variados como as próprias esferas da atividade humana, o que não
contradiz a unidade nacional de uma língua (BAKHTIN, 1992, p.
179).
A noção de esfera, segundo Grillo (2008, p. 143), constitui um conceito-chave
na arquitetura bakhtiniana. Para o autor, através desse conceito, “Bakhtin busca
superar a visão determinista e mecanicista da ortodoxia marxista, da influência dos
fatos da base socioeconômica comum sobre os produtos ideológicos”. O marxismo
apregoava uma influência direta e mecânica entre a infraestrutura e a
superestrutura. Bakhtin, por sua vez, afirma que o contexto influencia a produção
verbal, mas não o determina estritamente de forma mecânica, já que a palavra, no
interior de uma esfera social, não só reflete como também refrata a realidade. Para
Grillo (op. cit., p. 147): “O campo/esfera é um espaço de refração que condiciona a
29
relação
enunciado/objeto
de
sentido,
enunciado/enunciado,
enunciado/co-
enunciadores”. Há, portanto, uma relação imbricada entre esfera e estilo. Vejamos:
Cada esfera compreende seus gêneros, apropriados à sua
especificidade, aos quais correspondem determinados estilos. Uma
dada função (científica, técnica, ideológica, oficial, cotidiana) e
dadas condições, específicas para cada uma das esferas da
comunicação verbal, geram um dado gênero, ou seja, um dado tipo
de enunciado, relativamente estável do ponto de vista temático,
composicional e estilístico (BAKHTIN, 1992, p. 284).
Depreende-se, da citação acima transcrita, que existe uma relação
inextricável entre gênero, estilo e esfera. Determinada esfera, conforme as
especificidades da função comunicativa, produz gêneros caracterizados por estilos
próprios. Essa relação se torna mais complexa se considerarmos que, conforme
assinala Bakhtin (2009), as esferas não se apresentam como contextos fechados ou
simplesmente justapostos, como se fossem uns aos outros indiferentes. Essa
consideração reforça a tese do princípio interativo (interação verbal social) enquanto
ideia primeira, ao mesmo tempo em que fundamenta a relação gênero/estilo/esfera
em uma dinâmica dialógica.
Parece-nos que os conceitos de enunciado – unidade real da comunicação
verbal – e gênero – tipos relativamente estáveis de enunciados – são constituídos
para estabelecer essa relação complexa (gênero/estilo/esfera em uma dinâmica
dialógica). Observemos:
A utilização da língua efetua-se em forma de enunciados (orais e
escritos), concretos e únicos, que emanam dos integrantes duma ou
doutra esfera da atividade humana. O enunciado reflete as
condições específicas e as finalidades de cada uma dessas esferas,
não só por seu conteúdo (temático) e por seu estilo verbal, ou seja,
pela seleção operada nos recursos da língua – recursos lexicais,
fraseológicos e gramaticais – , mas também, e sobretudo, por sua
construção composicional. Estes três elementos (conteúdo temático,
estilo e construção composicional) fundem-se indissoluvelmente no
todo do enunciado, e todos eles são marcados pela especificidade
de uma esfera de comunicação. Qualquer enunciado considerado
30
isoladamente é, claro, individual, mas cada esfera de utilização da
língua elabora seus tipos relativamente estáveis de enunciados,
sendo isso que denominamos gêneros do discurso. (BAKHTIN,
1992, p. 279).
A utilização da língua não se dá de forma aleatória, mas através de
enunciados que refletem as condições nas quais estes são produzidos (as
condições e finalidades de cada esfera). O reflexo dessas condições específicas
ocorre sob a forma de um conteúdo, de recursos da língua selecionados conforme
um propósito comunicativo (estilo) e de uma construção composicional relativamente
estável.
Na citação transcrita, há, claramente, uma oposição entre individual/social.
Considerado isoladamente, o enunciado é individual, pertence ao indivíduo que o
produz. Não obstante, à luz de uma dada esfera, o enunciado mostra-se como
manifestação de algo relativamente cristalizado, fruto da atividade verbal (interativa)
humana: os gêneros do discurso.
O teórico russo, ao citar as incoerências nos estudos sobre os estilos da
língua, afirma que “Tal estado de coisas resulta de uma incompreensão da natureza
dos gêneros dos estilos da língua e de uma ausência de classificação dos gêneros
do discurso por esferas de atividade humana” (BAKHTIN, 1992, p. 284-285). Tal
afirmativa leva-nos a supor que, em decorrência da relação fundamental
estabelecida entre gênero/estilo/esfera, mencionada acima, um princípio básico
classificatório dos gêneros do discurso basear-se-ia, a priori, nas esferas sociais em
que eles são criados. A própria distinção gêneros primários (“simples”, fruto da
atividade cotidiana) e gêneros secundários (“complexos”, produtos dos sistemas
ideológicos constituídos) parece fundamentar-se no primado da esfera da
comunicação para se propor enquanto tal.
31
De fato, se retomarmos “Marxismo e filosofia da linguagem” (BAKHTIN,
2009), veremos que esse princípio classificatório meramente mencionado em “Os
gêneros do discurso” permanece coerente com a ordem metodológica para o estudo
da língua, que, segundo Bakhtin (op. cit.), deve ser o seguinte:
1. As formas e os tipos de interação verbal em ligação com as
condições concretas em que se realiza.
2. As formas das distintas enunciações, dos atos de fala isolados,
em ligação estreita com a interação de que constituem os
elementos, isto é, as categorias de atos de fala na vida e na criação
ideológica que se prestam a uma determinação pela interação
verbal.
3. A partir daí, exame das formas da língua na sua interpretação
lingüística habitual. (p. 124)
Embora Bakhtin, no texto supracitado, praticamente não utilize a expressão
“gêneros do discurso”, os termos “formas” e “tipos de interação verbal” lembram ou
prenunciam o conceito desenvolvido anos depois. Destacamos que essas formas e
tipos de interação, para serem compreendidas, devem ser estudadas em correlação
a seu contexto (a sua esfera). O estudo da língua percorreria um caminho do mais
geral ao mais específico – e isso faz Bakhtin em Marxismo e filosofia da linguagem,
ao tratar, na primeira parte, de questões referentes ao signo, às ideologias, às
relações entre infraestrtuturas e superestruturas; passando, na segunda parte da
obra, a uma análise filosófico-marxista da linguagem; e, por fim, na terceira parte,
abordando aspectos relativos a problemas sintáticos a partir de uma aplicação do
método sociológico.
Para Bakhtin formular a teoria dos gêneros do discurso, ele o faz, conforme
afirmamos anteriormente, em reação-resposta a dois problemas fundamentais. O
primeiro concerne ao estilo.
Segundo o autor (1992, p. 282-283), “O estilo está indissoluvelmente ligado
ao enunciado e a formas típicas de enunciados, isto é, aos gêneros do discurso”. Há
32
alguns gêneros mais aptos para refletir a individualidade na língua (geralmente os
gêneros literários), ao passo que outros gêneros praticamente nada refletem da
individualidade, do estilo individual do locutor (gêneros padronizados, como as
ordens militares). Existe, por conseguinte, um “vínculo indissolúvel, orgânico, entre o
estilo e o gênero” (BAKHTIN, op. cit., p. 283).
Bakhtin, ao estabelecer esse vínculo orgânico entre gênero e estilo, afirma
que um estudo sobre esse último elemento, para ser produtivo, “deve partir do fato
de que os estilos da língua pertencem por natureza ao gênero e deve basear-se a
estudo prévio dos gêneros em sua diversidade” (p. 284). A estilística, no entanto,
desconsiderou essa relação, estudando e classificando os estilos da língua de forma
abstrata. Trata-se, segundo Bakhtin, de um erro grosseiro – “A separação entre o
estilo e o gênero repercute de um modo muitíssimo nefasto sobre a elaboração de
toda uma série de problemas históricos” (BAKHTIN, op. cit., p. 285) –, um equívoco
que desvincula a língua de sua constituição histórica, já que “As mudanças
históricas dos estilos da língua são indissociáveis das mudanças que se efetuam
nos gêneros do discurso” (p. 285).
Com efeito, o estilo, inextricavelmente atrelado ao gênero, resulta de uma
relação estabelecida entre o locutor e seu grupo social. Voloshinov (1926, p. 16)
enfatiza que o estilo corresponde a “uma pessoa mais seu grupo social na forma de
seu representante autorizado, o ouvinte”. O estilo do gênero desenvolve-se, pois,
nas relações dialógicas, como resultado da constituição de uma posição axiológica
perante o mundo e a vida.
Ora, se o estilo de um gênero constitui-se a partir das relações estabelecidas
entre o locutor e as vozes sociais que compõem o enunciado, diríamos que o
princípio da interação social torna-se um conceito primeiro para fundamentar a
33
noção de estilo. Ratificamos, então, o pressuposto defendido no início deste texto.
Ao mesmo tempo, acrescentamos que, em “Os gêneros do discurso”, o estilo de um
enunciado depende fundamentalmente da imagem que se faz do interlocutor, uma
vez que a ele se dirige a palavra, pressupondo, de antemão, uma atitude
responsivo-ativa.
Brait (2008, p. 95) enfatiza que a questão do estilo na acepção bakhtiniana
assume um matiz essencialmente dialógico. Para a autora, “O texto bakhtiniano
sobre os gêneros do discurso representa, no que diz respeito à concepção dialógica
do estilo, uma abordagem discursiva que, de fato, é a parte menos considerada pela
maioria dos consumidores de teorias sobre gêneros”. Adiante, Brait acrescenta que
essa concepção dialógica do estilo “implica sujeitos que instauram discursos a partir
de seus enunciados concretos, de suas formas de enunciação, que fazem história e
são a ela submetidos” (p. 98). O estilo é, portanto, fundamentado numa relação
interativa entre sujeitos.
A língua nos fornece recursos que possibilitam a construção de um estilo
singular, mas esses recursos, arquitetados num estilo, compõem o todo de um
enunciado ou de seus tipos relativamente estáveis; em outras palavras, só adquirem
sentido na medida em que constituem o enunciado, participam de seu propósito
comunicativo voltado para uma problemática em dada esfera da atividade verbal: eis
a relação indissolúvel entre estilo/gênero/esfera.
Em relação ao segundo problema abordado em “Os gêneros do discurso”,
sem abandonar a problemática do estilo Bakhtin debruça-se sobre o estudo do
enunciado em sua qualidade de unidade real da comunicação. Para o autor, a
análise do enunciado como unidade comunicativa permitiria “compreender melhor a
34
natureza das unidades da língua (da língua como sistema): as palavras e as
orações” (BAKHTIN, 1992, p. 287).
Bakhtin introduz essa segunda problemática criticando a Linguística do século
XIX, que relegara a função comunicativa da linguagem a segundo plano, bem como
critica a escola de Vossler, ao passar a função expressiva ao primeiro plano,
tratando o locutor “como se este estivesse sozinho, sem uma forçosa relação com os
outros parceiros da comunicação verbal” (BAKHTIN, op. cit., p. 289).
Contrapondo-se a essas concepções da linguagem, Bakhtin insiste na
interação verbal como realidade primeira da língua: o locutor não está sozinho, pois
fala, escreve, dirige-se sempre a outrem. Da mesma forma, o destinatário não
permanece passivo; adota uma atitude responsiva ativa, concorda ou discorda,
completa, adapta etc (“Toda compreensão é prenhe de resposta e, de certa forma
ou de outra, forçosamente a produz: o ouvinte torna-se locutor”, BAKHTIN, op. cit.,
p. 290).
Destacamos que o enunciado se constrói numa relação de sentidos, de
valores, de posições axiológicas, já que “cada signo constituído possui um tema” e
“O tema ideológico possui sempre um índice de valor social” (BAKHTIN, 2009, p.
46). Acrescenta o autor, em Marxismo e filosofia da linguagem, que “O índice de
valor é por natureza interindividual” (p. 46). Essas considerações levam-nos a
afirmar o primado da interação enquanto ideia primeira, que sustenta e possibilita
todas as demais. Tal ideia vincula-se organicamente ao princípio do dialogismo
como pressuposição para a existência da linguagem.
Para defender esse princípio, o próprio discurso bakhtiniano nos revela a
constituição da linguagem enquanto fluxo dialógico. Vejamos:
35
Esses termos deliberadamente vagos costumam designar aquilo
que está submetido a uma segmentação em enunciados de língua
concebidas como frações da língua: fônicas (o fonema, a sílaba, o
grupo acentuado) e significantes (a oração e a palavra). “O fluxo
verbal se subdivide...”, “Nosso discurso se subdivide em...”, eis
como costumam, nos cursos de Linguística geral e de gramática, e
também nos estudos especializados de fonética, de lexicologia,
introduzir as seções de gramática consagradas à análise das
unidades lingüísticas correspondentes. (BAKHTIN, 1992, p. 292).
Na citação transcrita acima, Bakhtin critica os estudos linguísticos
contemporâneos à sua época, que desconsideravam a natureza viva da linguagem,
o caráter interativo do enunciado, utilizando-se, de forma incerta e ambígua, de
termos e expressões como “a fala”, “o fluxo verbal”, “o nosso discurso”. Tais estudos,
segundo Bakhtin, menosprezavam “o papel ativo do outro no processo de
comunicação verbal” (p. 292). Para contrapor-se a essa perspectiva, o teórico
introduz a fala alheia em seu discurso (“O fluxo verbal se subdivide...”, “Nosso
discurso se subdivide em...”, eis como costumam...), negando-a em um movimento
de distanciamento, de desqualificação da voz do outro (“Todos esses problemas
estão imersos numa completa indeterminação e num conhecimento fragmentário”, p.
292).
Com efeito, os dois problemas fundamentais – o problema do estilo, a
natureza do enunciado – a partir dos quais Bakhtin fundamenta sua teoria sobre os
gêneros do discurso constituem dialogicamente o próprio discurso bakhtiniano, que
surge como reação-resposta (numa atitude responsivo-ativa) a questões e ideias
correntes em sua época: o estudo do estilo da língua pela estilística; o estudo da
língua pelos gramáticos e pelos filólogos.
Em Marxismo e filosofia da linguagem, é perceptível um movimento dialógico
similar, à medida que o teórico, para construir sua argumentação, traz para seu
discurso, dentre outros, o discurso marxista, as correntes filosóficas objetivistas e
36
subjetivistas. Não obstante, ao compor os alicerces de sua teoria, Bakhtin critica a
ortodoxia e o mecanicismo marxista, a abstração objetivista, o idealismo exacerbado
e incoerente dos subjetivistas.
Ressaltamos que o teórico, ao realizar tais críticas e ao compor sua
arquitetura teórica, não apenas se distancia dos pensamentos e teorias citadas: ele
as complementa, discute, debate, polemiza com elas. Existem, pois, movimentos
dialógicos múltiplos em seus discursos, os quais não serão aqui objeto de análise.
Por ora, devemos analisar a natureza do enunciado, segundo problema em
relação ao qual o ensaio “Os gêneros do discurso” (BAKHTIN, 1992) surge e se
constitui como reação-resposta. Já mencionamos que o enunciado é definido,
inicialmente, como “unidade real” da comunicação, e, em seguida, é apresentado
como um elo em uma cadeia ininterrupta de outros enunciados. Por fim, Bakhtin
enumera e discute as principais características daquela que seria a “unidade real da
comunicação”, as quais podem assim ser resumidas:
Características do enunciado:
1. É delimitado em suas duas extremidades pela alternância dos
sujeitos falantes;
2. Está em contato imediato com a realidade (com a situação
transverbal);
3. Encontra-se em relação imediata com os enunciados do outro
(constitui um elo numa cadeia muito complexa de enunciados).
4. Possui uma significação plena e uma capacidade de suscitar
uma atitude responsivo-ativa.
Bakhtin formula tais características contrapondo o enunciado – unidade real
da comunicação – à oração – unidade gramatical, pertencente ao sistema abstrato
da língua. Para acentuar essa distinção, o autor afirma que “As pessoas não trocam
orações, assim como não trocam palavras (numa acepção rigorosamente
linguística), ou combinações de palavras, trocam enunciados constituídos com a
37
ajuda de unidades da língua” (1992, p. 297). Essa afirmação reforça a natureza
interativa do enunciado.
Adiante, Bakhtin evidencia que a diferença entre a oração e o enunciado é de
natureza qualitativa e não quantitativa: “nada impede que o enunciado seja
constituído de uma única oração, ou de uma única palavra, por assim dizer, de uma
única unidade da fala” (BAKHTIN, op. cit., p. 297). A expressão “Fogo!”, se
enunciada em um contexto real, suscitando uma atitude responsivo-ativa, constituirá
um enunciado composto por uma só palavra. Por esses critérios, considera-se
enunciado tanto uma ordem militar quanto um romance em vários tomos – daí
decorre a extrema complexidade e heterogeneidade do enunciado, o que talvez
tenha sido uma barreira para seu estudo sistemático, segundo assinala Bakhtin.
Além das características enumeradas acima, o autor ainda discute e analisa
algumas particularidades do enunciado, quais sejam:
1. As fronteiras delimitadas pela alternância dos sujeitos falantes;
2. O acabamento específico;
3. A relação do enunciado com o próprio locutor e com os outros
parceiros da comunicação verbal.
Sobre a primeira particularidade, Bakhtin afirma: “Todo enunciado – desde a
breve réplica (monolexemática) até o romance ou o tratado científico – comporta um
começo absoluto e um fim absoluto” (BAKHTIN, op. cit., p. 294). Este começo e este
fim absolutos são delimitados pela alternância dos sujeitos falantes, em consonância
com as particularidades das situações comunicativas.
As réplicas do diálogo são as formas mais simples e mais visíveis de
alternância dos sujeitos e de delimitação das fronteiras do enunciado. Não se deve,
porém, reduzir o fenômeno às formas do diálogo: todo enunciado é delimitado por
essa alternância. O autor ressalta que a relação que liga as réplicas do diálogo “é
38
apenas uma variante da relação específica que liga enunciados completos durante o
processo da comunicação verbal” (BAKHTIN, op. cit., p. 294-295), e que “esta
relação só é possível entre enunciados provenientes de diferentes sujeitos falantes.
Pressupõe o outro” (p. 295). Conclui-se, pois, que as fronteiras do enunciado
pressupõem a interação verbal, que não se limita à interação face a face.
O objeto de sentido é, teoricamente, conforme assinala Bakhtin, inesgotável.
Não obstante, ao se tornar tema de um enunciado, ele recebe um acabamento em
função do intuito, do querer-dizer do locutor, dos objetivos por atingir, estruturandose segundo as formas típicas do gênero. Uma questão, porém, Bakhtin não
responde em “Os gêneros do discurso”: de que forma um objeto torna-se tema de
um enunciado? Essa questão é discutida alguns anos antes, em Marxismo e filosofia
da linguagem. Ao tratar das relações entre infraestruturas e superestruturas, o autor
ressalta o seguinte:
Para que o objeto, pertencente a qualquer esfera da realidade, entre
no horizonte social do grupo e desencadeie uma reação semióticoideológica, é indispensável que ele esteja ligado às condições
socioeconômicas essenciais do referido grupo, que concerne de
alguma maneira às bases de sua existência material.
Evidentemente, o arbítrio individual não poderia desempenhar aqui
papel algum, já que o signo se cria entre indivíduos, no meio social.
(BAKHTIN, 2009, p. 46).
Aqueles objetos vinculados às condições socioeconômicas de um grupo
social organizado entram no domínio da ideologia, ao se constituírem como tema de
um enunciado. São as condições socioeconômicas “que associam um novo
elemento da realidade ao horizonte social, que o tornam socialmente pertinente”
(BAKHTIN, op. cit., p. 47). Sendo assim, o tema de um enunciado representa
sempre um valor social.
39
Essas observações levam-nos a afirmar o quão complexa é a constituição de
um tema, muitas vezes reduzido ou erroneamente entendido como sinônimo de
“conteúdo”, “assunto tratado”. O gênero possui um estilo, um tema e uma construção
composicional – tal frase é frequentemente repetida por “consumidores de teorias de
gêneros”, para nos apropriarmos da expressão de Brait (2008). Muitos daqueles que
se debruçam sobre essas teorias não percebem a verdadeira natureza do tema, do
estilo, da composição – natureza vinculada a posições valorativas numa dada
esfera, já que, conforme afirma Faraco (2008, p. 38), “para Bakhtin, a grande força
que move o universo das práticas culturais são precisamente as posições
socioavaliativas postas numa dinâmica de múltiplas interrelações responsivas”.
Diríamos, por conseguinte, que, para Bakhtin, não são as respostas, nem as
perguntas que movem o mundo, mas as posições valorativas das esferas
ideológicas.
Até o presente momento, apresentamos e discutimos as particularidades do
enunciado enquanto unidade da comunicação verbal, bem como discutimos outros
conceitos apresentados por Bakhtin (esfera, estilo, dialogismo etc). Falta, no
entanto, esclarecer as distinções entre gênero e enunciado.
De antemão, é preciso considerar que Bakhtin não se utiliza de uma
terminologia fixa, sem oscilações. Ao lado das expressões “enunciado” e “gêneros
do discurso” encontramos também: “tipos particulares de enunciados”, “tipos
relativamente estáveis de enunciados”, “gêneros de enunciados”, “formas de
enunciados”,
“enunciados
primários”,
“enunciados
secundários”
etc.
Frequentemente, “gênero” e “enunciado” são utilizados indistintamente: “O romance
em seu todo é um enunciado, da mesma forma que a réplica do diálogo cotidiano ou
a carta pessoal (são fenômenos da mesma natureza); o que diferencia o romance é
40
ser um enunciado secundário (complexo)” (1992, p. 281). Com efeito, ao longo de
quase todo o texto, os termos parecem intercambiáveis: as mesmas características
atribuídas ao enunciado são atribuídas ao gênero.
Destacamos, porém, que a distinção posta logo nas primeiras páginas de “Os
gêneros do discurso”, assim como as sutilezas de linguagem presentes no ensaio
evidenciam tratar-se de fenômenos distintos, a depender do nível de abstração a
que se proceda. O enunciado é a unidade concreta, imediata da comunicação, que
se cristaliza, segundo os usos, segundo as especificidades de sua esfera, em
gêneros. Podemos dizer que determinado objeto enquanto tal, enquanto unidade
comunicativa é um enunciado, à medida que tem um autor, dirige-se a outrem (a um
interlocutor), respondendo a determinada problemática de uma esfera. Considerado
em seu conjunto, isto é, no conjunto de outros enunciados que possuem
características bastante semelhantes, estamos no domínio dos gêneros 4.
“Gênero”, “enunciado”, “estilo” e “esfera” são alguns conceitos-chave na
arquitetura bakhtiniana bastante discutidos. Correlacionando tais conceitos a nosso
objeto de estudo, podemos afirmar que o Enem, tomado isoladamente, é um
enunciado, caracterizado pela alternância de avaliadores e sujeitos avaliados,
estando em contato imediato com a situação transverbal que define esses papéis
sociais.
Considerando, porém, o exame em uma dimensão social mais ampla, é
possível perceber que ele representa um exemplar de um gênero em um momento
de redefinição do papel do Estado e de reformas educacionais – gênero que está
4
“Qualquer enunciado considerado isoladamente é, claro, individual, mas cada esfera de utilização
da língua elabora seus tipos relativamente estáveis de enunciados, sendo isso que denominamos
gêneros do discurso” (BAKHTIN, 1992 [1953], p. 279).
41
sendo socialmente reconhecido sob a denominação avaliação ou exame em larga
escala.
Esse gênero atende às especificidades de uma esfera condicionada pela
ofensiva neoliberal, a qual justifica problemas/fracassos ou sucessos econômicos
através de fracassos ou êxitos educacionais. Nesse sentido, sendo a educação
tomada como condição necessária para o desenvolvimento econômico, apregoa-se
a necessidade de auditá-la, por meio de instrumentos pretensamente racionais,
objetivos, imparciais: os exames.
Ao mesmo tempo, nesse contexto social de mudanças, propõem-se reformas
educacionais capazes de atender à reestruturação produtiva, à flexibilização das
relações de trabalho, apregoa-se a necessidade de transformação no ensino em
decorrência de novas demandas e desafios gerados por uma sociedade imersa na
informação. Defende-se o conhecimento como algo que não pode mais ser
fragmentado e
totalmente
compartimentado
em disciplinas,
bem
como
o
desenvolvimento de competências e habilidades para que se possa enfrentar a nova
realidade imposta. Dessa situação histórica, retira o Enem seu estilo, em um olhar
responsivo dos avaliadores aos ditames dos „signos da modernidade‟.
Essas questões serão mais bem discutidas nos capítulo 3 e 4. Por ora,
devemos entender que nenhum gênero emerge sem quaisquer relações com
gêneros já existentes. Os exames em larga escala (dentre os quais, tomamos o
Enem como objeto de análise), por conseguinte, encontram precedentes nos
exames escolares, oriundos da consolidação da sociedade burguesa e da escola
moderna.
42
A seguir, entenderemos melhor esse percurso – dos exames restritos ao
âmbito escolar aos exames sob a tutela estatal – utilizando os conceitos até o
momento discutidos.
2.2 Avaliação: enquadrando o tema sob a ótica bakhtiniana
Embora não exclusiva da instituição escolar, a avaliação permeia o imaginário
como algo intrínseco à escola. Provas, testes, notas são vocábulos que certamente
emergem quando se fala, pensa ou se escreve sobre avaliação. Existem inúmeros
estudos, livros, teses e pesquisas das mais diversas que debatem o tema, a maioria
situada no âmbito dos estudos em Educação ou Didática.
A pesquisa bibliográfica por nós desenvolvida permitiu-nos constatar a
presença de um discurso pré-estabelecido sobre o que seria a avaliação „necessária‟
e „desejável‟; o que não deve ou não deveria ser feito; o que as escolas, de fato, têm
feito cotidianamente. Ao mesmo tempo, lacunas, indefinições ou definições confusas
permeiam o campo dos estudos sobre avaliação da aprendizagem, o que nos
permite dizer que nos movemos sobre um chão movediço, ainda repleto de
incertezas.
Não constitui nosso objetivo propor modelos, construir um discurso sobre o
que seria a avaliação da aprendizagem ideal. Ao invés disso, propomo-nos a
enquadrar o tema a partir dos postulados bakhtinianos discutidos no sub-tópico
precedente, bem como a partir dos estudos em Educação.
Considerando que o ponto de vista determina o objeto, conforme formulou
Saussure em seu Cours de Linguistique Genérale, a teoria escolhida para focalizar a
avaliação nos levará a construir interdisciplinarmente um objeto que já vem sendo
43
amplamente discutido, segundo mencionamos acima. De forma geral, as ideias aqui
apresentadas servirão de fundamento para o tópico que a este sucede, no qual
discutiremos como o Estado se tornou, nos últimos anos, um Estado-avaliador,
assumindo uma função que, em origem, pertencia exclusivamente à escola.
Tomando em consideração, primeiramente, a esfera escolar em específico,
comecemos, pois, pelas origens, para que, em seguida, possamos discutir algumas
(in) definições, e, por fim, possamos formular nossa visão sobre o objeto, servindonos de alguns conceitos e ideias de Bakhtin, os quais foram apresentados
anteriormente.
2.2.1 Das origens às (in) definições
Luckesi (1999) situa a origem da avaliação escolar nos séculos XVI e XVII, a
partir da consolidação da escola moderna oriunda da cristalização da sociedade
burguesa. Para servir a essa sociedade, a avaliação caracterizar-se-ia, desde a
origem, por atos antagônicos, autoritários e seletivos. É preciso ressaltar, todavia,
que a terminologia então utilizada não era propriamente avaliação, mas provas,
exames e testes. A utilização do termo avaliação foi proposto por Tyler, segundo
assinala Luckesi (op. cit.), atrelando-se o processo avaliativo à verificação de
mudanças comportamentais, conforme os objetivos traçados pelo professor.
A nomenclatura avaliação impera na bibliografia recente. No entanto, mais
que uma mudança terminológica, uma nova carga semântica parece separar, nas
pesquisas acadêmicas em educação, o vocábulo avaliação dos outrora correlatos
testes, provas e exames, segundo discutimos adiante.
44
Por ora, assinalamos a relação imbricada entre avaliação e sociedade, e,
mais especificamente, entre avaliação e sociedade burguesa, considerando que
aquela emergiu com a consolidação desta. Luckesi (1999) enfatiza que, segundo o
modelo de sociedade e de educação em pauta, a avaliação assumirá matizes
diferenciados. Assim, se temos um modelo de sociedade e de escola liberais,
teremos uma avaliação autoritária, como instrumento disciplinador; se o modelo de
escola/sociedade é o „libertador‟, „democrático‟, teremos uma avaliação que visa
superar o autoritarismo, e que propõe o estabelecimento da autonomia.
O autor, ao que nos parece, propõe uma correlação mecânica e simplista, ao
desconsiderar a dialética e as contradições inerentes a qualquer modelo que se
imponha, seja de educação, seja de sociedade. Não se pode tão somente afirmar
que ao modelo “x” de escola, teremos a avaliação “y”, afinal, os atos humanos, o agir
humano não reproduzem tal e qual a estrutura social, conforme assinala Bakhtin
(1920-1924). Se considerarmos que a avaliação é, em sentido amplo, um ato
humano (o ato de avaliar x, y ou z, a partir de uma posição axiológica), deveremos
considerar, igualmente, as singularidades e contradições desse ato.
O primeiro “sintoma” (se assim podemos denominar) dessas contradições que
permeiam a avaliação escolar reside, certamente, nas indefinições sobre seus
significados. Indefinições presentes tanto na fala de professores da educação
básica, quanto no discurso de pesquisadores que se debruçam sobre o tema.
Em relação aos professores, esclarecedora é a pesquisa de Sarmento (1997),
ao demonstrar “o quadro contraditório em que a escola se encontra, reproduzindo
um discurso democrático e crítico, mas na realidade desenvolvendo uma prática
autoritária e tradicional” (p. 12). A autora, após investigar as práticas de avaliação
em três escolas de Minas Gerais (duas públicas e uma particular), constata falta de
45
clareza nas falas dos professores, no que concerne às definições e às concepções
de avaliação por eles empreendida. Para Sarmento: “As entrevistas mostram uma
dificuldade por parte de professores e especialistas em conceituar e realizar a
avaliação” (p. 93). Adiante, acrescenta: “Parece que os avaliadores na escola não
têm clareza quanto ao objeto de avaliação” (p. 107). Quando interrogadas, as
professoras entrevistadas por Sarmento enfatizavam o fato de “avaliar o aluno como
um todo”. Na prática, esse „todo‟ reduzia-se a provas que tendiam a meramente
reproduzir exercícios desenvolvidos em sala.
Hoffmann (2010) constata, por sua vez, imprecisões nas terminologias e nos
significados “do testar” e “do medir”. Em discussões e encontros com professores, a
autora observou que “Os termos teste e medida são definidos de forma vaga e as
respostas não revelam consenso entre os professores” (p. 39).
Ferreira (2009) menciona a falta de conscientização dos professores em
relação à avaliação, considerando que esta é “parte integrante do processo ensinoaprendizagem” (p. 30), sendo, também, um dos meios para tornar esse processo
mais efetivo. Segundo a autora (op. cit., p. 50), “muitos professores não apresentam
um entendimento claro sobre o verdadeiro significado e funções da avaliação, ao
expressarem sua concepção de avaliação”. A obrigação burocrática e formal estaria,
conforme Ferreira, sobreposta aos verdadeiros sentidos e funções da avaliação
enquanto processo que potencializa a aprendizagem, tornando-a mais eficaz.
Constatação semelhante apresenta Melchior (1999, p. 14), ao afirmar que “a
maioria dos professores não tem uma percepção clara com relação a questões
básicas como: o que é avaliar? E por que avaliar?”. A autora procura responder a
essas questões, evidenciando a importância da avaliação, e estabelecendo
parâmetros para aquela que seria, em sua ótica, a „avaliação necessária‟.
46
Gama (1999, p. 138), em um estudo de caso realizado em uma escola pública
(“Escola Minas Gerais” – EMG5) da rede de escolas oficiais do estado do Rio de
Janeiro, chega à conclusão de que “Entre os professores da EMG há ainda
confusões acerca do que é avaliação, medida e verificação da aprendizagem. Quase
sempre tomam uma coisa pela outra”.
Embora não tenhamos vivenciado os contextos descritos pelos pesquisadores
supracitados, ao que nos parece, as ambiguidades e imprecisões nas falas dos
professores decorrem da própria situação de pesquisa, nem sempre cômoda, nem
sempre natural. Professores, quando interpelados a responder “o que é avaliação”
ou “como avaliam”, podem não saber propor definições claras e objetivas. Todavia,
não haveria tantas dubiedades na prática: cada professor sabe como avalia, por que
avalia, o que avalia, ainda que sua prática avaliativa não siga exatamente os
modelos esperados por pesquisadores, muitas vezes alheios ou „estranhos‟ aos
contextos estudados. De fato, Sarmento (1997) constata uma prática avaliativa
consolidada nas escolas por ela estudadas, mesmo que a fala das professoras
estivesse embebido em imprecisões.
Se, por um lado, pesquisadores criticam docentes por estes não
demonstrarem ter em mente conceitos e concepções claras, precisas sobre
“avaliação” e sobre o objeto a ser avaliado, é possível afirmar, por outro lado, que
nem sempre o discurso desses mesmos pesquisadores, situados num paradigma
qualitativo de avaliação, apresenta a tão almejada clareza e precisão.
A revisão bibliográfica por nós empreendida evidenciou que, no paradigma
qualitativo emergente, no qual se enfatiza o aspecto formativo da avaliação, as
terminologias adotadas muitas vezes se mostram confusas e/ou contraditórias. Foi
5
Denominação fictícia atribuída pelo autor.
47
possível perceber, ademais, lacunas metodológicas no que concerne a propostas
„alternativas‟, „democráticas‟ e „inclusivas‟ de avaliação. Discorramos sobre esses
dois aspectos.
Primeiramente, acerca das terminologias adotadas, constatamos que o termo
avaliação aparece como alternativa, mais ampla, mais democrática aos outrora
correlatos provas, testes e exames. Mais que uma nova terminologia, segundo
afirmamos acima, avaliação parece propor uma nova carga semântica, sendo
apresentada como algo mais amplo, algo que envolveria um processo que não se
esgotaria em momentos terminais, como se esgotam provas/testes/exames – a
ênfase se desloca do produto para o processo.
Os vários autores citados ao longo deste tópico (Luckesi, 1999; Hoffmann,
2010; Ferreira, 2009; Gama, 1997; Melchior, 1999; Sarmento, 1997 etc) propõem
distinções entre “avaliação” e “verificação da aprendizagem” (LUCKESI, 1999, por
exemplo), “avaliar” x “testar/medir” (HOFFMANN, 2010). Não obstante, a despeito
das diferenciações muitas vezes com tanto ardor defendidas, o discurso revela o
emprego indistinto justamente dos termos que são diferenciados.
Luckesi (1999), em um dos artigos reunidos na obra Avaliação da
aprendizagem escolar6, diferencia “verificação” de “avaliação da aprendizagem”,
atribuindo carga semântica negativa àquela (à verificação), à medida que a simples
verificação estaria revestida de autoritarismo, seletividade e exclusão. Em outro
artigo7 da mesma obra, a avaliação é definida como um “ato amoroso”, que acolhe,
inclui o aluno, ao invés de segregar e excluir. Todavia, em um terceiro artigo 8 da
6
O artigo intitula-se “Verificação ou avaliação: o que pratica a escola”.
7
A saber: “Avaliação da aprendizagem escolar: um ato amoroso”.
8
“Avaliação educacional escolar: para além do autoritarismo”.
48
obra supracitada, o autor toma o vocábulo “avaliação” por aquilo que seria
meramente “verificação”, ao afirmar que “A avaliação está muito mais articulada com
a reprovação do que com a aprovação e daí vem a sua contribuição para a
seletividade social, que já existe independente dela” (p. 26). Ora, se a avaliação é
“um ato de amor” não é ela que estaria “articulada com a reprovação”, mas a
“verificação da aprendizagem”, cristalizada em testes, provas e exames.
Ademais, assinalamos que a própria definição de avaliação como „ato
amoroso‟ não nos parece clara, se nos debruçarmos sobre o sentido dos vocábulos
empregados. O que o autor entenderia por “ato”? O ato, ou os atos humanos são
objeto de reflexões profundas e filosóficas, tendo Bakhtin discorrido sobre o assunto
no ensaio Para uma filosofia do ato (1993). Anteriormente, afirmamos que a
avaliação, em sentido amplo, pode ser considerada um “ato”, no sentido em que
este se apresenta como o movimento do pensamento – ato de pensar, de criar, de
produzir, a partir de uma posição singular. As discussões que neste tópico confluem,
no entanto, não se debruçam sobre o sentido amplo da avaliação, mas sobre seu
sentido estrito, em um contexto específico: o contexto escolar.
Falando sobre avaliação da aprendizagem, é possível constatar, no
paradigma qualitativo emergente, conforme mencionamos, uma rejeição aos termos
provas, testes e exames, uma vez estes seriam „autoritários‟ e „excludentes‟. Há,
também, uma recusa à visão tecnicista, em prol de uma visão que privilegia o
processo, a construção. Não obstante, a avaliação, ainda que entendida como
processo, é, frequentemente, definida como “instrumento” ou “técnica”.
Melchior (1999), por exemplo, diferencia “avaliação” de “técnica”, ao afirmar
que “aplicar um teste ou fazer uma observação são técnicas que podem ser usadas
pelo professor (...). Atribuir uma nota é, apenas, expressar os resultados e não
49
avaliar” (p. 17, grifos nossos). Não obstante, a autora apresenta, páginas adiante,
“técnicas utilizadas na avaliação escolar”, denominando, pois, avaliação como
“técnica”.
Procedimento, processo, instrumento, prática... tais são os vocábulos
recorrentes quando se procura definir e conceituar “avaliação da aprendizagem” no
âmbito escolar. Esses vocábulos são utilizados indistintamente, evidenciando que,
malgrado tenhamos talvez imagens, símbolos, sentidos pré-construídos sobre o
tema, este se apresenta, ainda, de forma indefinida. O que significa, de fato, avaliar
a aprendizagem, ou o ensino-aprendizagem? Essa é uma questão ainda sem
resposta.
Mesmo que não se tenha uma resposta, dadas as imprecisões e indefinições
nas pesquisas sobre avaliação, é possível perceber, no paradigma qualitativo
emergente, um discurso pré-construído sobre a „avaliação necessária‟, conforme
afirmamos anteriormente.
A
avaliação,
nesse
paradigma,
é
entendida
como
processo/instrumento/prática que visa superar as dificuldades de aprendizagem do
educando, de forma a incluí-lo socialmente, em prol de uma prática pedagógica
democrática, não-autoritária.
Barretto (2001, p. 49), ao analisar a avaliação da educação básica entre dois
modelos, afirma que o paradigma qualitativo emergente reforça “uma abordagem
historicamente situada, que, em relação ao aluno, leve em conta não apenas a
dimensão cognitiva, mas a social, a afetiva, seus valores, motivações e até mesmo a
sua própria história de vida”. Embora exista certo consenso acerca dessa
“abordagem historicamente situada”, a autora argumenta que “O paradigma
emergente de avaliação qualitativa não tem uma dimensão teórica própria. Ele
50
empresta elementos de várias vertentes de pensamento, constituindo-se numa
formulação multidisciplinar”. Adiante, Barretto menciona as lacunas que permeiam
esse paradigma de avaliação:
Embora gozando de grande consenso na área, o que vem à tona em
relação ao paradigma de avaliação qualitativa é sobretudo a
afirmação de certos pressupostos que o fundamentam, tendo sido
constatada grande lacuna em termos de sugestões metodológicas e
de procedimentos a serem adotados para viabilizá-lo na prática. São
muito escassos os textos que se ocupam desses aspectos
(BARRETTO, op. cit. p. 52).
A autora supracitada nos chama a atenção para um aspecto relativo à relação
teoria/prática: em que medida os princípios defendidos como constitutivos de uma
avaliação „democrática‟ são aplicáveis à realidade escolar? Esses princípios são, de
fato,
considerados
cotidianamente
nas
escolas?
As
respostas
a
tais
questionamentos conduzem a uma focalização em aspectos metodológicos e
operacionais, os quais não constituem nosso objeto de estudo. Propomo-nos, antes,
a entender o sentido da avaliação. O que é a avaliação no âmbito escolar?
Processo, procedimento, instrumento, prática? Não nos conformamos com a
utilização indistinta desses termos. Pensemos, pois, sobre a avaliação focalizando
sua esfera social. Pensemos sobre a avaliação com vistas a propor algumas
definições, que não se impõem, evidentemente, como definitivas, mas como
propostas, alternativas, caminhos a serem percorridos.
2.2.2 Provas/testes/exames sob a ótica bakhtiniana
No
tópico
2.1,
discorremos
sobre
a
relação
orgânica
entre
estilo/gênero/esfera, sob a ótica bakhtiniana. Essa relação será fundamental para
que possamos entender a avaliação no âmbito da esfera escolar. Antes, porém, com
51
base nas questões levantadas anteriormente, pensemos: o que é a avaliação da
aprendizagem no âmbito escolar – processo, procedimento, instrumento, prática?
É consenso entre pesquisadores contemporâneos a ideia segundo a qual a
avaliação não se reduz a provas/testes/exames (orais ou escritos). A avaliação
envolveria múltiplas e complexas ações do professor, as quais, quase sempre, se
traduzem em notas ou conceitos com vistas a cumprir finalidades burocráticas (a
exigência de notas pela instituição escolar) e/ou pedagógicas (verificar a
aprendizagem dos alunos, (re) direcionar o ensino, fazer um diagnóstico etc).
Acordos tácitos subjazem à avaliação: a determinado sujeito é atribuído o
papel de avaliador; a outros, o papel social de avaliados, sem que isso precise ser
explicitamente concordado – os sujeitos assumem (naturalmente?) seus papéis.
Essa característica da avaliação – acordo tácito sobre papéis sociais
assumidos – envolve, ou não, a constituição de um ritual (a aplicação de
provas/testes/exames como evento ritualístico). Por outro lado, a fim de se instituir
uma situação mais democrática, poderíamos ter a simulação da inversão de papéis:
o aluno se autoavaliando, ou avaliando o professor. Todavia, mesmo que o aluno
temporariamente assuma o papel de avaliador, ainda assim temos uma relação
instituída entre avaliador – avaliando – objeto a ser avaliado – instrumento, meios de
avaliação.
Outra característica da avaliação no âmbito escolar reside na relação
interativa entre sujeitos, mediada pela escrita. Com efeito, a leitura e a escrita estão,
necessariamente, presentes na avaliação, ainda que não sejam objetos estritos a
serem avaliados. Sempre que se tem a avaliação, tem-se, consequentemente, a
remissão
a
textos
escritos.
Ademais,
a
própria
avaliação
pode
ser
realizada/materializada por materiais escritos: provas, anotações na caderneta do
52
professor, registros, diários constituem meios materiais diversos que servem para
fins pedagógicos e/ou burocráticos.
É possível afirmar, também, que a avaliação envolve atividades regulares,
constituídas sócio-historicamente. Trata-se, pois, de atividades muitas vezes
repetidas e repetíveis, apre(e)ndidas nas interações sociais, envolvendo regras,
modos específicos de comportamento. Exemplifiquemos: na avaliação materializada
em uma prova escrita, temos um ritual que deve ser obedecido (alguém distribui as
provas, outros a respondem, preferencialmente em silêncio, em um tempo prédeterminado). Se temos, por outro lado, uma avaliação desenvolvida em um
conselho de classe, não se tem a presença física dos sujeitos avaliados, mas
apenas a dos avaliadores, os quais debatem, discutem se estes sujeitos avaliados
deverão ser aprovados ou reprovados, conforme alguns critérios estabelecidos. Em
uma avaliação constituída por testes orais, praticamente os mesmos rituais da
“prova escrita” são seguidos, com a diferença de que o avaliado deverá verbalizar
oralmente conhecimentos aferidos que são questionados.
As regras, os rituais, as práticas descritas acima são, certamente, suscitadas
pelas especificidades da esfera discursiva em questão – esfera que constitui a
palavra, o signo ideológico, refletor e refrator de condições de produção as quais
quase sempre exigem a disciplina, a ordem, a obediência à hierarquia, de tal forma
que tais aspectos (ordem, disciplina etc) acabam por se tornar componentes e
mesmo objeto de avaliação (pensemos nos tão famosos „pontos de comportamento‟
atribuídos aos alunos como parte da avaliação bimestral, semestral...).
As características até o momento apresentadas nos permitem concluir que a
avaliação ocorre em diferentes eventos – múltiplos, muitas vezes multiformes – nos
quais temos a presença de determinadas práticas geralmente ritualísticas. Tais
53
eventos envolvem a instituição de uma relação, entre sujeitos sociais, mediada pela
escrita, mesmo que textos escritos não estejam fisicamente presentes, ou sejam
oralizados.
Tais eventos, uma vez mediados por textos escritos, suscitam, ademais,
gêneros discursivos, que assumem funções específicas naquele evento e naquela
esfera aos quais estão intimamente vinculados. Em outras palavras, em eventos de
avaliação temos, muitas vezes, a utilização de provas/testes/exames enquanto
materiais escritos ou orais que possuem uma composição relativamente estável, um
tema vinculado a sua esfera discursiva e um estilo singular.
2.2.2.1 Provas/testes/exames: um gênero do discurso
O último parágrafo que antecede este tópico (“Provas/testes/exames: um
gênero do discurso”) já nos deixa em condições de entender a natureza discursiva
da avaliação, ao mesmo tempo em que nos impõe uma segunda problemática: o
que caracteriza este gênero que emerge em eventos de avaliação escolar,
considerando a relação estabelecida anteriormente entre gênero/estilo/esfera?
Pensemos primeiramente sobre a esfera sem que nos detenhamos profundamente
em sua análise.
A escola moderna, segundo ressaltamos acima com base em Luckesi (1999),
consolidou-se nos séculos XVI e XVII, em decorrência da constituição da sociedade
burguesa. Os testes e exames eram utilizados para verificar a aprendizagem, bem
como para punir os alunos por eventuais falhas em sala de aula. Temos, portanto,
na origem, uma relação prova/instrumento de controle que evidencia também uma
das funções daquela instituição em fase de consolidação: a escola não se propunha
54
apenas a ensinar conteúdos, mas também a moldar comportamentos, ensinar
atitudes, modos de conduta a uma classe seleta.
No século XX, a „pedagogia para o exame‟, ou a pedagogia em função
exclusiva do exame, passa a ser questionada, sobretudo com o movimento da
Escola Nova. Apoiando-se em autores como Rogers (1985), que apregoa a não
diretividade do ensino, e Piaget (1970, 1977, 1984, 1987), muitos estudiosos do
campo educacional passam a defender a não utilização de provas e testes,
mecanismos autoritários e discriminatórios, a serviço da seletividade social. O termo
“avaliação” passa a substituir “provas”, “testes” e “exames”, segundo mencionamos
acima.
Todavia, as provas, os testes e os exames nunca deixaram de existir, nunca
deixaram de ser aplicados em sala de aula, o que nos leva a correlacionar
imediatamente a instituição escolar a esse gênero. Não há como dissociar a escola
das provas e testes utilizados em eventos de avaliação. Podemos afirmar, por
conseguinte, uma relação imbricada entre a esfera escolar e esse gênero do
discurso, ao qual múltiplas funções são atribuídas.
Em uma breve revisão da literatura sobre avaliação da aprendizagem,
pudemos levantar as seguintes funções sociais atribuídas a esse gênero:
1. Diagnosticar (dificuldades, o estágio atual de desenvolvimento do aluno etc);
2. (re) direcionar o ensino e as práticas pedagógicas;
3. coletar dados e informações (sobre os alunos, sobre o professor, sobre as
práticas pedagógicas e a efetividade das mesmas etc);
4. investigar (o aprendizado, as dificuldades do aluno etc);
5. mediar a reorganização do saber;
55
6. verificar (o aprendizado, as dificuldades do aluno etc);
7. aperfeiçoar o ensino e retroalimentar o processo de ensino-aprendizagem;
8. “domesticar” alunos (adequá-los ao sistema, às normas);
9. qualificar e classificar alunos (segundo suas competências, seu nível de
desenvolvimento, estágio de aprendizagem);
10.
selecionar
(alunos/candidatos),
estabelecendo
e
certificando
se
o
aluno/candidato encontra-se apto a ser promovido a uma próxima etapa;
11. manter a disciplina ou manter o poder disciplinar;
12. punir maus comportamentos, corrigindo “desvios”, “distorções”;
13. controlar e adaptar as condutas sociais dos alunos;
14. comparar alunos, segundo grau/nível de desenvolvimento/aprendizagem;
15. reproduzir modelos/reproduzir a sociedade;
16. prestar contas/ dar satisfações aos pais/à sociedade;
17. validar o trabalho pedagógico de professores/da direção da escola/da
administração pública ou privada: não apenas os alunos são avaliados;
18. fornecer informações sobre rendimentos (do aluno), eficácia (do professor, do
método, da prática pedagógica, do sistema etc).
Algumas das dezoito funções acima elencadas podem parecer – e, de fato,
são – contraditórias. Como pode esse gênero do discurso “mediar a reorganização
do saber” e, ao mesmo tempo, “domesticar alunos”? Ressaltamos que essas
diferentes funções são atribuídas explicita e implicitamente ao gênero “prova” ou
“avaliação”.
Os
autores
contemporâneos
anteriormente
citados
criticam
a
seletividade social promovida por esse gênero, propondo-lhes novas funções. No
entanto, propor novas funções e finalidades para a avaliação escolar não significa a
56
supressão das „antigas‟ funções. Em outros termos, temos, atualmente, um discurso
que evidencia contradições, ou mesmo luta de classes. A escola moderna constituise como esfera discursiva ideal para que se travem tais lutas e se estabeleçam tais
contradições: instituída com a consolidação da sociedade burguesa, em sua origem
seleta e reservada a uma classe específica, a escola estende-se, com o passar dos
anos, às classes populares.
Classes sociais distintas, como ressalta Bakhtin (2009, p. 47), “servem-se de
uma só e mesma língua”, pois, não se confundem “Classe social” e “comunidade
semiótica”. O signo, utilizado por diferentes classes, concentrará índices de valor
contraditórios, afinal, “O signo se torna a arena onde se desenvolve a luta de
classes” (BAKHTIN, op. cit., p. 47). Assim vemos a constituição do discurso atual
sobre avaliação da aprendizagem – um discurso que tende a criticar a seletividade
social, mas que se mostra lacunoso, confuso e, muitas vezes, contraditório, segundo
evidenciamos acima.
Considerando provas e exames como gêneros do discurso que emergem em
eventos de avaliação escolar nesse cenário contraditório, é preciso destacar, porém,
as características que nos fazem reconhecer esse gênero, identificá-lo enquanto tal,
ainda que em breves contatos, sem uma análise mais aprofundada.
A primeira característica concerne, certamente, à composição relativamente
estável, identificada de antemão. De forma mais simples, temos a estrutura de
perguntas e respostas (orais ou escritas). Cabendo às perguntas ao professor, e as
respostas ao aluno. Mais que uma forma composicional, temos um índice de valor
social atribuído a essa composição: apenas a alguns sujeitos é reservado o direito
de fazer as perguntas. As respostas são submetidas a uma validação segundo
parâmetros estabelecidos por aquele que formula as perguntas ou a pergunta, o
57
tema sobre o qual se deve discorrer etc. A própria esfera discursiva impõe essa
forma composicional ao gênero: em um espaço onde alguns atribuem notas a
outros, a estrutura não poderia ser outra. Eis a relação imbricada entre forma
composicional de um gênero e esfera discursiva.
Em provas e exames mais complexos temos a intercalação de gêneros, os
quais, uma vez intercalados, “mantêm sua estrutura, sua autonomia e suas
idiossincrasias linguísticas e estilísticas” (SOBRAL, 2009, p. 124). Não obstante,
perdem o vínculo direto “com a realidade concreta e os enunciados reais alheios”
(BAKHTIN, 1992, p. 263). A fim de exemplificarmos essas afirmativas, observemos,
abaixo, uma questão retirada do Enem 2002, a qual foi analisada por Borba (2007):
Ilustração 1 - Questão 63, Enem 2002
58
Borba (2007), ao se debruçar sobre a questão acima, analisa aspectos
referentes a habilidades de compreensão requeridas. A autora chega à conclusão de
que não se pode definir com exatidão a área de conhecimento testada – se Língua
Portuguesa, se Literatura ou mesmo História. A questão “privilegia o domínio do
conhecimento prévio do aluno, que pode estar associado aos conhecimentos
formais, adquiridos ao longo de sua trajetória escolar, mas também pode estar
relacionado à visão de mundo do aluno, sua carga cultural” (BORBA, op. cit., p. 31).
A questão 63 retirada de um exemplar do Enem 2002 constitui-se a partir da
intercalação de um gênero específico – a tirinha – que circula em uma esfera social
própria – a esfera jornalística. A tirinha, não obstante, uma vez transposta para o
interior de um exame, perde seu vínculo direto com essa esfera, ao mesmo tempo
em que outros objetivos são postos a sua leitura, a sua recepção. Em um exame,
não se lê mais a tirinha para se divertir (embora não se possa negar essa função),
mas para se avaliar competências de leitura. O domínio prévio de conhecimento do
aluno, sua capacidade de realizar inferências, de correlacionar diferentes áreas do
saber passam a primeiro plano. Nesse sentido, a avaliação torna-se um gênero
complexo, à medida que assimila outros gêneros, intercalados conforme propósitos
específicos de avaliação, de medição de conhecimentos, competências e
habilidades.
A escolha por determinados gêneros a serem intercalados, ou por
determinada estrutura (por exemplo: questões dissertativas, questões objetivas de
múltipla escolha etc) faz parte de um propósito didático atrelado ao que se pretende
avaliar e por que se avaliar tais ou quais aspectos em detrimento de outros. Esse
propósito vincula-se intimamente à imagem de aluno/candidato avaliado: espera-se
que o sujeito X detenha as habilidades/competências Y. Uma imagem de aluno
59
“ideal” é, assim, projetada em provas e exames, com base no que o professor
espera, no que é estabelecido no projeto pedagógico da escola, no que é
normatizado em documentos oficiais (parâmetros e diretrizes curriculares, Leis e
Decretos que dispõem sobre a educação etc). Essa imagem é, evidentemente,
constituída socialmente, segundo índices valorativos pertencentes ao horizonte
social da esfera ideológica em questão. Se, em determinado período sócio-histórico,
valorizavam-se as habilidades de memorização, em outro, competências como a
capacidade de se fazer inferências e correlacionar interdisciplinarmente áreas do
saber são postas em destaque. Espera-se um sujeito que detenha tais
competências, e que em função delas seja avaliado.
Essas constatações levam-nos a uma segunda característica do gênero, qual
seja o estilo. No tópico 2.2. e em seus sub-tópicos, afirmamos que, segundo
Voloshinov (1926, p. 16), o estilo corresponde a “uma pessoa mais seu grupo social
na forma de seu representante autorizado, o ouvinte”. O estilo de uma prova/exame
dependerá, por conseguinte, da imagem de aluno que dele se projeta. Em um
exame cujo foco reside na avaliação de competências e habilidades mais voltadas
para a cognição, teríamos, provavelmente, um estilo constituído com base na
imagem de um sujeito cognitivo, detentor de conhecimentos prévios armazenados
na mente. Um exame constituído por questões que exigem tão somente a
memorização de fórmulas ou de regras pressupõe, por outro lado, um sujeito/aluno
que tenha desenvolvido tais habilidades, mas que, talvez, não saiba se posicionar
perante o que tenha sido memorizado. Em qualquer caso, temos a projeção de um
ideal, um padrão normatizado, já que a padronização desse gênero praticamente
não permite a consideração das diversas individualidades daqueles a quem se
destina (alunos/candidatos).
60
Analisando a questão do Enem acima apresentada, poderíamos afirmar que
essa questão apresenta um estilo didático que valoriza a compreensão textual, a
partir da correlação com determinados conhecimentos de mundo. O formato em
múltiplas escolhas é representativo de um estilo escolarizado, mais „prático‟ e mais
objetivo: questões assim são mais fáceis de serem corrigidas, posto que apenas
uma alternativa é aceitável; evitam, por conseguinte, a subjetividade de quem a
responde, considerando que a resposta aceitável é formulada de antemão pelo
próprio avaliador.
Grillo (2008, p. 197), ao discutir a noção de esfera e estilo na obra
bakhtiniana, afirma que “cada gênero do discurso, em cada campo da comunicação
discursiva, tem a sua concepção típica do destinatário que o determina como o
gênero”. Transpondo essas palavras para analisar a questão acima, podemos
afirmar que o Enem é formulado a partir de determinadas concepções de
destinatário, determinada concepção de aluno, a qual repercute em seu estilo.
Como se vê, não há como o estilo ser dissociado da forma composicional: o
estilo não se manifesta no „vácuo‟, mas na seleção de recursos linguísticos
organizados conforme as especificidades da esfera, do horizonte social ao qual se
prende
o
enunciado
–
o
grupo
social
representado
sob
a
forma
do
ouvinte/destinatário. A estrutura sob a forma de perguntas/respostas que compõe
testes e exames dos mais diversos parece simular a própria estrutura da interação
em sala de aula, caracterizada, geralmente, pela interação do tipo IRA (MEHAN,
1979): perguntas/iniciações do professor – respostas dos alunos – avaliação do
professor. Em exames, podemos não ter a presença física do professor/avaliador,
mas sua imagem lá está projetada, sob a forma de questões. As questões iniciam o
aluno/candidato, „guiam‟ ou direcionam a leitura dos textos apresentados. Os alunos,
61
em seguida, respondem, assinalando um “X”, dissertando sua opinião etc. Por fim,
quase sempre sem a presença do aluno, o professor/avaliador avalia, atribuindo
uma nota ou um conceito ao que foi respondido, conforme critérios aos quais o aluno
pode ou não ter acesso. Em provas e exames, por conseguinte, as interações
ocorrem na maioria das vezes entre sujeitos que não estão no mesmo espaçotempo. Em decorrência desse aspecto, temos a necessidade e mesmo a exigência
de clareza e objetividade na formulação de questões.
Em sala de aula, as provas/exames constituem uma reação-resposta aos
conteúdos, às explicações, às discussões suscitadas. Esses aspectos culminam em
uma prova que reelabora os conteúdos – não se trata mais de conteúdos a serem
ensinados, mas avaliados. Deve existir uma relação dialógica singular entre a prova
e as ações do professor, os conteúdos ministrados. Essa relação se manifesta
naquilo que denominamos estilo didático.
Considerando que o texto, em sentido amplo, é uma refração da realidade,
reflexo subjetivo do mundo objetivo (BAKHTIN, 2003), podemos afirmar que o estilo
didático é uma refração do mundo com propósitos pedagógicos. Expliquemo-nos
melhor: uma ciência qualquer, digamos a biologia, é uma refração da realidade
moldada por um sistema ideológico (o discurso da ciência). Uma vez transposta para
objeto de ensino, essa refração da realidade, fundamentada na ciência, passa a ser
refratada pelo discurso pedagógico, adquire um acento valorativo outro que não
apaga por completo o acento avaliativo da ciência, mas o transforma, o
recondiciona. Não se estuda uma célula da mesma forma em um laboratório
conduzido por cientistas e em uma sala de aula da educação básica: os propósitos
são outros. Não se nega, todavia, o discurso da ciência na realidade da sala de aula
– o que se tem é uma ressignificação do objeto. Nesse sentido, podemos afirmar
62
que um exame voltado para a educação básica, seja o Ensino Fundamental, seja o
Médio, apresenta um estilo didático fundamentado na ressignificação do objeto que
se pretende avaliar e na imagem de aluno que se projeta na prova.
Essa imagem corresponde, em parte, à entoação avaliativa do locutor perante
seu objeto de discurso. Juntas, a entoação avaliativa e a imagem de aluno
projetada, constituem o tema do gênero, ao apontarem para a situação enunciativa
concreta. Bakhtin (2009) distingue a significação do tema na linguagem,
caracterizando aquela como algo relativamente estável, repetível, pertencente ao
sistema da língua. O tema, por sua vez, representa o signo ideológico, irrepetível,
expressão de uma situação histórica concreta, indissociável da enunciação. Em um
gênero, o tema concatena o objeto de discurso, acentuado por uma posição
valorativa, à imagem do interlocutor projetada no enunciado.
Na questão do Enem anteriormente exposta, o locutor propõe ao
aluno/avaliado (seu interlocutor) uma avaliação da postura de um personagem de
uma tirinha. Todas as alternativas apresentadas, dentre as quais se encontra a
correta, são iniciadas pelas formas verbais “valoriza” ou “desvaloriza”. O aluno deve,
basicamente, decidir se o personagem valoriza ou desvaloriza as diversidades
culturais, com base na leitura das falas desse mesmo personagem. Na verdade,
porém, o próprio locutor já avalia, de antemão, essa postura, ao apresentar as
possíveis respostas à questão. Ao mesmo tempo, direciona a leitura do aluno, uma
vez que outras questões sobre outros aspectos poderiam ter sido feitas, mas não
foram. A tirinha, transposta ao exame, é ressignificada com base no que se acredita
que um aluno ideal será capaz de compreender a partir da leitura. Dessa forma, a
tirinha vincula-se a uma nova situação enunciativa, na qual o que se está em foco é
a avaliação de determinadas habilidades e competências.
63
Em síntese, podemos afirmar, de todas essas discussões, que, conforme
nossa posição, a avaliação constitui-se em eventos que suscitam gêneros
caracterizados: 1. por uma forma composicional (perguntas/respostas, alternativas a
serem avaliadas, enunciados de questões etc) relativamente cristalizada; 2. por
materializar um tema vinculado à situação enunciativa; 3. por constituir-se
estilisticamente a partir da imagem de aluno ideal avaliado. Esses gêneros
suscitados recebem nomes diversos: provas, testes, exames etc.
Fruto da consolidação da sociedade burguesa, esse gênero, anteriormente
exclusivo da instituição escolar, passou, nas últimas décadas do século XX, a ser
controlado pelo Estado, como expressão máxima dos valores hegemônicos de uma
cultura conservadora e neoliberal. Em outras palavras, o Estado tornou-se o „grande
avaliador‟, conforme discutiremos adiante.
2.3 O Estado como avaliador: entre o consenso e a coerção
Falar em avaliação e estado-avaliador implica, a priori, entender que essa
última expressão traduz uma nova forma de regulação educacional que combina a
descentralização e desregulamentação dos serviços públicos com a centralização de
medidas de controle, dentre as quais se destaca a avaliação, em larga escala, da
educação. Trata-se, em suma, de uma estratégia típica do sistema neoliberal.
Consolidado na década de 70 do século XX, a partir da crise econômica
ocorrida nesse período, o neoliberalismo apresentou-se como uma saída para os
desafios vivenciados na época. No Brasil, o projeto neoliberal começou a ser
implementado no governo Collor, sendo, no entanto, efetivado durante o governo
64
Fernando Henrique Cardoso, que propôs uma série de medidas visando à
modernização da economia brasileira.
No campo educacional, em 1998 o Exame Nacional do Ensino Médio – Enem
– foi instituído, como uma avaliação voluntária que visava, segundo a Portaria
Ministerial n° 438, de 28 de Maio de 1998:
I – conferir ao cidadão parâmetro para auto-avaliação, com vistas à
continuidade de sua formação e à sua inserção no mercado de
trabalho;
II – criar referência nacional para os egressos de qualquer das
modalidades do ensino médio;
III – fornecer subsídios às diferentes modalidades de acesso à
educação superior;
IV – constituir-se em modalidade de acesso a cursos
profissionalizantes pós-médio.
Em 2009, o governo federal propôs a utilização do Enem como vestibular
unificado, cuja adesão ficaria a critério de cada Instituição de Ensino Superior. Não
obstante, iniciou-se um processo de indução para essas instituições aderirem ao
exame, conforme discutiremos no próximo capítulo. Em 2010, foi publicada a
Portaria 807, de 18 de junho de 2010, estabelecendo, em seu artigo 2º, que os
resultados do Enem possibilitam:
I – a constituição de parâmetros para auto-avaliação do participante,
com vistas à continuidade de sua formação e à sua inserção no
mercado de trabalho;
II – a certificação no nível de conclusão do ensino médio, pelo sistema
estadual e federal de ensino, de acordo com a legislação vigente;
III – a criação de referência nacional para o aperfeiçoamento dos
currículos do ensino médio;
IV – o estabelecimento de critérios de participação e acesso do
examinando a programas governamentais;
V – a sua utilização como mecanismo único, alternativo ou
complementar aos exames de acesso à Educação Superior ou
processos de seleção nos diferentes setores do mundo do trabalho;
VI – o desenvolvimento de estudos sobre a educação brasileira.
65
Observa-se que apenas o primeiro objetivo permanece praticamente o
mesmo nas duas Portarias. Em 2010, os objetivos dos resultados do Enem tornamse mais explícitos, afirma-se claramente que o exame deve servir como referência
para o aperfeiçoamento dos currículos do ensino médio (III); o exame é estabelecido
como critério para participação e acesso a programas governamentais (IV) e como
indicador sobre a qualidade da educação brasileira (VI). Enquanto em 1998 o Enem
parecia ter uma função mais autoavaliativa, em 2010 afirma-se sua função de
monitoramento da qualidade educacional, sua pretensão a aperfeiçoar os currículos
do ensino médio, embora a autoavaliação ainda esteja presente.
Acreditamos que não há como analisar o Enem sem investigar a atuação do
Estado brasileiro como Estado-avaliador, uma vez que os sentidos, os conceitos, as
competências que subjazem à prova, considerada aqui um gênero do discurso, são
resultado da construção de uma hegemonia, baseada na regulação educacional e
na difusão de valores, de conhecimentos e de visões de mundo.
O conceito de “Estado-avaliador”, segundo Freitas (2007), foi proposto por
Neave (1988), ao estudar a ampliação da avaliação do ensino superior pelo Estado,
em países de capitalismo avançado. Tal conceito, conforme assinala a autora
(FREITAS, op. cit.), apóia-se na concepção gramsciana de que o Estado é educador
à medida que tende a manter certo tipo de civilização e cidadania, valendo-se de
instituições como a escola.
Segundo Gramsci (2002, p. 23), o Estado possui uma tarefa educativa e
formativa,
cujo fim é sempre o de criar novos e mais elevados tipos de
civilização, de adequar a “civilização” e a moralidade das mais amplas
massas populares às necessidades do contínuo desenvolvimento do
aparelho econômico de produção e, portanto, de elaborar fisicamente
novos tipos de humanidade.
66
Adiante, acrescenta o autor que “na realidade, o Estado deve ser concebido
como „educador‟ na medida em que tende precisamente a criar um novo tipo ou
nível de civilização” (p. 28). Para compor suas teses sobre o Estado, Gramsci
reelabora as concepções marxistas sobre Estado/Sociedade civil, contribuindo para
que, atualmente, possamos compreender os Estados modernos e a forma como
estes, através de recursos como exames em larga escala, criam e estabelecem, pelo
consenso/coerção, certas ideias e práticas hegemônicas.
Marx e Engels, conforme observa Figueiredo (2011, p. 5), concebiam a
sociedade civil “como estrutura e base da superestrutura político ideológica do
Estado e este como um comitê da burguesia para a garantia de seus interesses,
sendo o resultado do desenvolvimento das forças produtivas e das relações de
produção em um determinado período histórico e impulsionada pelo advento da
sociedade burguesa”. Gramsci amplia o conceito de Estado tal como concebido por
Marx e Engels e pensa a sociedade civil como componente da superestrutura e não
da base estrutural.
O Estado, segundo Gramsci, constitui-se pela organicidade entre a sociedade
civil e a sociedade política na configuração do bloco histórico. À sociedade política
corresponde a função de dominação das classes subordinadas, mediante os
aparelhos de coerção do Estado (forças militares, poder judiciário, sistema carcerário
etc). Já à sociedade civil corresponde a função de hegemonia exercida pelo grupo
dominante. Magrone (2006, p. 357) observa que, para Gramsci, “A sociedade civil é
o lócus no qual as classes sociais lutam para exercer a hegemonia cultural e política
sobre o conjunto da sociedade”.
Assim constitui-se, pois, o Estado: por uma correlação de forças que
envolvem o estabelecimento do consenso e o uso da coerção. Exames em larga
67
escala, como o Enem, segundo defendemos nesta dissertação, constituem gêneros
do discurso que materializam essa correlação de forças, atuando de forma coercitiva
sobre instituições de ensino superior – que se veem impulsionadas a aderir ao
exame – disseminando também ideias, aos poucos hegemônicas, sobre o que deve
ser objeto de ensino e de avaliação (a avaliação por competências).
Temos, portanto, conforme discutiremos no próximo capítulo, a disseminação
de pelo menos duas ideias que se tornam consenso. A primeira concernente à
própria necessidade e viabilidade dos exames como instrumentos seletivos,
preditivos de desempenhos futuros, mas, também, segundo o discurso oficial,
„democráticos‟, por atuarem na melhoria do ensino, através de uma espécie de
„monitoramento à distância‟. A segunda ideia, igualmente presente no discurso oficial
sobre o Enem, tende a criar um consenso sobre a necessidade e sobre a „inovação‟
de se avaliar por competências e não por conteúdos, estabelecendo, assim, uma
„pedagogia das competências‟ (RAMOS, 2001).
O Estado atua pela força e pelo consenso, pela autoridade e pela hegemonia,
pela violência e pela civilidade (GRAMSCI, 2002, p. 33), mas, na análise dessa
correlação de forças, deve-se considerar a complexidade assumida pela sociedade
civil nas sociedades modernas, que se tornou, nas palavras de Gramsci, “uma
estrutura muito complexa e resistente à „irrupções‟ catastróficas do elemento
econômico imediato” (op. cit., p. 73). Ademais, segundo observa Magrone (2006, p.
359), “a existência de uma separação orgânica entre a sociedade civil e a sociedade
política é inconcebível”, pois, na realidade prática, não é possível perceber uma
“divisão funcional entre as duas esferas da superestrutura, tanto o consenso quanto
a coerção são empregados alternativamente pela classe dominante” (MAGRONE,
op. cit., p. 359).
68
Acrescentamos que, se não é possível estabelecer uma distinção rígida entre
a sociedade política e a sociedade civil, a coerção e o consenso, também não se
deve conceber o poder como uma força unilateral ao qual não se tem resposta. Se
um dos objetivos do Enem é atuar na reforma do ensino, é possível também
perceber que esse exame não agiu unilateralmente sobre as instituições de
educação básica. A reformulação do exame, em 2009, que passou a ser agrupado
em quatro áreas do conhecimento, deve ter também sido influenciada pela
instituição escolar brasileira, ainda não muito bem adaptada a uma prática tão
interdisciplinar quanto a proposta pelo antigo modelo do Enem. Conforme discutimos
no próximo capítulo, exames em larga escala como o Enem são gêneros que atuam
no estabelecimento de ideias hegemônicas pelo consenso e pela coerção.
A emergência desses exames atrela-se a um movimento mais amplo,
relacionado à proposta de Reforma do Estado, dirigida por mudanças em seu
modelo de gestão – do modelo burocrático para o modelo de administração pública
gerencial, essa última pautada, dentre outros, no controle ou cobrança a posteriori
dos resultados, na competição administrada no interior do próprio Estado, no
deslocamento dos procedimentos (meios) para os resultados (fins) (BRASIL, 1995).
Esse modelo de gestão constitui o Estado-avaliador, que passa a ser gerido
por alguns princípios típicos do mercado: eficiência, eficácia, concorrência, avaliação
do produto/controle de qualidade. As avaliações em larga escala, nesse contexto,
proporcionam a definição de metas claras a serem atingidas (por exemplo: deve-se
ensinar o que os exames exigem, seguir as matrizes de referência etc) e o controle
do produto (o desempenho dos alunos em exames unificados). Busca-se, também, a
instituição da competição entre escolas por melhores resultados (portanto, a
competição no interior do próprio Estado). Tem-se, assim, os seguintes princípios
69
sob os quais se apóia o Estado-avaliador, conforme destaca Freitas (2007):
regulação baseada na noção de „quase-mercado‟ na educação; competição
administrada no interior da própria estrutura administrativa estatal; modernização da
gestão;
orientação
para
resultados
objetivos
e
mensuráveis;
flexibilidade
administrativa; autonomia e controle hierárquico gerencial.
A seguir, considerando que a avaliação por competências tem se tornado
uma das „metas claras a serem atingidas‟ pelas instituições de ensino, sobretudo
pelo ensino médio, com a crescente adesão das Instituições de Ensino Superior ao
Enem como exame de ingresso nos cursos superiores, discutiremos o que significa
essa proposta de avaliação.
2.4 Avaliação por competências
Acompanhado por uma retórica que enfatiza as transformações da
modernidade e põe em relação dicotômica o „tradicional‟ e o „inovador‟, o Enem tem
como fundamento a avaliação por competências. Ao que nos parece, essa retórica
da inovação aos poucos valida o ensino e a avaliação por competências,
transformando-a em uma questão hegemônica, em uma prática a ser, de forma
impositiva, assimilada pelas escolas e pelos professores, sem que, contudo, tenha
se estabelecido um diálogo mais amplo sobre o tema, sobre os sentidos dessa
pedagogia.
A noção de competência originou-se no mundo do trabalho, sendo transposta
para a educação devido “à sua dimensão socializadora e de formação de
consciências, por um lado, e a sua dimensão econômica fundamental ao projeto de
progresso e modernidade, por outro” (RAMOS, 2001, p. 236). Ramos (op. cit.), ao
70
analisar a origem, os sentidos e a dimensão social e econômica da pedagogia por
competências, confronta esse último conceito – competência – ao de qualificação,
defendendo a existência de um deslocamento conceitual da qualificação para a
competência.
Segundo Ramos, o conceito de qualificação reporta-se ao Estado de bem
estar-social, “retomando, no processo de consolidação da sociedade industrial, o
papel regulador jogado outrora pelas corporações” (op. cit., p. 41). Assim, a
qualificação seria uma resposta à ausência de regulações sociais “ocorridas com a
liberalização das relações de trabalho, a partir do século XVII” (p. 41). Com o
advento da tecnologia e com os impactos no mundo do trabalho, a qualificação dos
trabalhadores é tomada como pressuposto da eficiência produtiva. A qualificação
repousaria sobre repertórios relativamente estáveis e coletivos, por meio de
certificações, apoiando-se ainda numa visão produtiva assentada no taylorimofordismo.
No entanto, a crise do capital nos anos 1970, as mudanças no setor produtivo
e a crise do modelo de bem-estar social fazem convergir um deslocamento
conceitual da noção de qualificação para a de competência – esta última emergente
em um contexto caracterizado pela: flexibilização das ocupações; integração de
setores de produção; multifuncionalidade e polivalência dos trabalhadores;
valorização dos saberes dos trabalhadores não ligados ao trabalho prescrito ou ao
conhecimento formalizado (RAMOS, 2001, p. 38).
Segundo Ramos (op. cit., p. 47), na qualificação, a educação certificada por
diplomas, as regulamentações profissionais ganham destaque central, já quando o
foco se desloca para as competências, “o diploma deixa de ser o único ou o principal
71
pressuposto para o emprego e passa a concorrer com as formações ditas
qualificantes que visam a adaptação ao emprego”.
Em um mundo assolado pela crise do emprego, pela instabilidade e pela
precarização das relações de trabalho, a escola, “especialmente a média, é
convocada a contribuir para a aprendizagem de competências gerais, visando à
constituição de pessoas mais aptas a assimilar mudanças, mais autônomas em suas
escolhas e que respeitem as diferenças” (RAMOS, op. cit., p. 135). A noção de
competência, cuja base teórica se apóia na Psicologia cognitiva, enfatiza os
processos individuais de construção do conhecimento, a capacidade dos indivíduos
de se adaptarem às incertezas de um mundo em transformação, conferindo primazia
“ao desenvolvimento de estruturas cognitivas e afetivas, sem dar relevância às
dimensões sociológicas do aprendizado e do processo de construção do
conhecimento” (op. cit., p. 263).
Tendo em vista as transformações processadas no setor produtivo, a escola,
enquanto instituição privilegiada para a socialização e formação de cidadãos e
futuros trabalhadores, é interpelada a se adaptar a uma nova realidade. Reformas
curriculares são propostas buscando-se a formação de um educando apto a
assimilar as características da sociedade pós-industrial. Ramos, no entanto,
questiona a ênfase acrítica conferida ao pós-industrialismo nas propostas de
reformas dos currículos e do ensino. Para a autora, o que se convencionou
denominar “pós-industrialismo” abrange uma realidade complexa, caracterizada pela
precarização
das
relações
de
trabalho,
reestruturação
produtiva
e
pela
heterogeneidade, já que o processo não ocorre da mesma forma em todos os
países. A autora (op. cit., p. 130) observa “certo determinismo tecnológico que
sustenta a maioria das argumentações em defesa de um novo ensino médio”.
72
Nesse nível de ensino, segundo Ramos, as propostas curriculares criticam a
compartimentação disciplinar do conhecimento e propõem a aprendizagem com
destaque para a experiência concreta dos sujeitos. Essa crítica e essa proposta são
assimiladas pelo Enem, que, conforme discutiremos no capítulo 4, constitui-se a
partir de um olhar responsivo às propostas de reformas curriculares, que, por sua
vez, remontam a um contexto mais amplo de transformações produtivas as quais a
escola tem sido induzida a assimilar. Todavia, dada as peculiaridades do exame, da
escola e da nossa própria realidade, a avaliação por competências assume traços
próprios no Enem, caracterizando o estilo desse exame, segundo será discutido no
próximo capítulo.
2.5 Primeira síntese intermediária
Nesta dissertação defendemos que exames padronizados, em larga escala
constituem gêneros em um contexto de reformas educacionais decorrentes da
redefinição do papel do Estado. Como não poderíamos analisar a emergência e
constituição de todos os exames, tomamos o Enem como exemplar desse gênero
que, na atualidade, monitora padrões de qualidade na educação.
No capítulo que ora se encerra, apresentamos e discutimos, inicialmente,
alguns conceitos básicos, importantes para a compreensão de nosso objeto, quais
sejam: gênero, esfera, estilo. Vimos que todo gênero emerge no seio de uma esfera
ideológica, refletindo as finalidades dessa esfera. Considerando que o signo reflete
índices ideológicos contraditórios, dada sua pureza semiótica, é possível perceber
que exames como o Enem coadunam tais valores díspares.
73
De um lado, temos um exame que atua na classificação de sujeitos, voltado
para o desempenho individual segundo uma ótica seletiva e, muitas vezes,
excludente. Por outro lado, esse exame é investido em um discurso que enfatiza os
valores democráticos, a inclusão, sendo apresentado, pelo governo federal, como
uma alternativa „mais justa‟ aos já consolidados „exames vestibulares‟.
Como nenhum gênero ou mesmo nenhuma produção de linguagem emerge
do nada, sem precedentes, os atuais exames em larga escala, sob a tutela estatal,
na representação de órgãos federais principalmente, remetem aos exames
escolares, sob responsabilidade dessa instituição específica.
A origem dos exames escolares, por sua vez, remonta aos séculos XVI e
XVII, com a consolidação da sociedade burguesa e da escola moderna. Tidos como
antagônicos, autoritários e seletivos, os exames escolares passam, no século XX, a
serem criticados. Propõe-se a substituição dos vocábulos provas, testes, exames
por avaliação. Defende-se a necessidade de uma avaliação democrática, mediadora
do processo ensino-aprendizagem.
Percebemos, no paradigma qualitativo emergente, que defende uma
avaliação democrática nas escolas, indefinições e uma terminologia flutuante. É
possível também perceber certo consenso, entre muitos pesquisadores atuais, que
procuram conceber a avaliação escolar como prática mediadora, necessária e
democrática, a depender da forma como conduzida pelos professores. Todavia, não
deixam clara sua concepção de avaliação.
Para fins de sistematização, afirmamos que, no âmbito escolar, a avaliação se
constitui em eventos sempre mediados pela escrita (ainda que textos escritos não
estejam fisicamente presentes nos eventos). Nesses eventos, temos a utilização de
gêneros,
os
quais
materializam
atividades
regulares,
constituídas
sócio-
74
historicamente, apresentando ainda uma composição relativamente estável, um
tema vinculado a sua esfera discursiva e um estilo que traduz as especificidades
dessa esfera e que se projeta em função do sujeito que será avaliado.
Dois momentos são perceptíveis no que se refere à avaliação no âmbito
escolar. Até o século XIX, a avaliação era tomada como um dos recursos para o
„bom adestramento‟. No século XX, critica-se o autoritarismo, a seletividade,
propondo-se uma avaliação democrática, conforme afirmamos anteriormente.
Em fins do século XX e início do século XXI, temos a emergência e
consolidação de exames não mais administrados pela escola, mas propostos como
ação do Estado. Temos, pois, os exames em larga escala.
Certas peculiaridades levam-nos a afirmar que estamos diante de um gênero
intrinsecamente relacionado a um novo contexto. Primeiro, temos uma situação
sócio-histórica peculiar, que propiciou o surgimento de vários exames administrados
sob a tutela estatal. Na segunda metade do século XX, a crise do capital faz emergir
uma retórica que propõe mudanças concernentes ao papel do Estado frente aos
serviços prestados à população. A educação é tomada como condição estrutural
para o desenvolvimento econômico, precisando, portanto, ser auditada, monitorada,
controlada. Exames padronizados, em larga escala são frutos dessa situação, não
poderiam ter se consolidado, como nos dias atuais se consolidaram, em outra
época.
Segundo, conforme é discutido nos capítulos que a este sucedem, esses
exames, dentre os quais tomamos o Enem como objeto específico de análise,
tendem a se caracterizar por um estilo próprio, singular, em decorrência de um olhar
responsivo dos avaliadores aos „signos da modernidade‟, que propõem o
conhecimento como algo flexível, interdisciplinar, baseado no „saber fazer‟ e não na
75
memorização. A leitura passa a primeiro plano. A LDB e os PCN são referências
para a elaboração desses exames, sempre apresentados como „modernos‟,
„eficientes‟ e „necessários‟.
Terceiro, temos uma distinção, embora difusa, socialmente reconhecida. É
possível ver muitos alunos, quando interrogados se fizeram vestibular, responderem
que não, pois fizeram o Enem (como se o Enem fosse algo „diferente‟), embora esse
exame esteja sendo utilizado com os mesmos propósitos de um exame vestibular.
No
próximo
capítulo,
aprofundaremos
alguns
questionamentos
levantados, a partir de um olhar sobre a dimensão social do Enem.
aqui
76
3 EXAMES PADRONIZADOS, EM LARGA ESCALA: UM OLHAR SOBRE A
DIMENSÃO SOCIAL DESSE GÊNERO DO DISCURSO EM UM CONTEXTO DE
REFORMAS
Neste capítulo defendemos que exames padronizados, em larga escala,
gerenciados pelo Estado, constituem gêneros do discurso em um contexto de
reformas. Tomamos o Enem como exemplar e objeto específico de análise.
Identificamos os precursores do que viriam a se tornar, atualmente, exames
que aferem a qualidade do ensino, argumentando que o Enem materializa uma
tendência delineada nas últimas décadas que propõe reformas nos sistemas de
ensino, as quais visam, dentre outros, à introdução de uma aprendizagem por
competências, à formação para a cidadania e para o mundo do trabalho. Nesse
sentido, exames como o Enem parecem cumprir a função precípua de induzir a
mudanças, apostando em um potencial efeito retroativo nas escolas.
Ao longo deste capítulo, é possível perceber a construção de um percurso
que vai de uma visão geral até um olhar mais específico. Assim, em um primeiro
momento, nos debruçamos, de forma ampla, sobre a natureza dos exames em larga
escala, analisando a esfera na qual estes emergem e se consolidam.
Paulatinamente, nosso olhar se refina, nosso foco torna-se mais específico, e
nossas observações tendem a se concentrar no Enem. Esse movimento analítico
conclui-se no capítulo 4, no qual analisamos a dimensão verbal do Enem,
considerando seu estilo sob uma perspectiva bakhtiniana. Nesse sentido, no capítulo
que ora se apresenta, nosso olhar recai substancialmente sobre a dimensão social
do Enem.
77
Organizamos este capítulo em seis partes principais. A primeira, introduzida
pelo tópico “3.1 A avaliação em larga escala em um contexto de reformas”, discute
a esfera de emergência dos exames em larga escala, com destaque para o
movimento de redefinição do papel do Estado frente aos serviços públicos e para a
ideologia neoliberal. Em seguida, no tópico “3.2 Gêneros em interação”,
apresentamos a interação entre gêneros de diferentes esferas como uma
peculiaridade de exames como o Enem. O tópico “3.3 Requisitos para a eficiência do
exame” discute as exigências de objetividade, credibilidade, isonomia do processo
avaliativo como requisitos para que o gênero “avaliação em larga escala” cumpra
suas funções. Em seguida, no tópico “3.4 O Enem como gênero do discurso:
consenso/coerção”, demonstramos como o Enem pode ser considerado um
instrumento coercitivo revestido de consenso. A função social de exames como o
Enem é discutida e analisada no tópico 3.5 e, por fim, na sexta parte, tópico 3.6,
propomos uma síntese intermediária de todas as discussões, análises e reflexões
levantadas neste capítulo.
3.1 A avaliação em larga escala em um contexto de reformas
Segundo mencionamos brevemente no capítulo 2, Barretto (2001) identifica,
basicamente, dois modelos ou duas tendências que povoam os estudos sobre
avaliação. O primeiro, constituído “a partir de várias vertentes teóricas, nem sempre
claramente explicitadas e nunca aprofundadas, acabam por esboçar características
de um novo modelo de avaliação apresentado como desejável” (BARRETTO, op. cit.
p. 48); o segundo reporta-se às raízes da função reguladora do Estado, sendo, pois,
a avaliação apresentada como resultado da ação de um „Estado-avaliador‟.
78
Ao discutirmos, no capítulo que a este antecede, o primeiro modelo de
avaliação (mais assentada no âmbito escolar restrito), observamos indefinições e
algumas inconsistências. Para os fins deste trabalho, assim sistematizamos as
reflexões expostas: entendemos que, no âmbito escolar, o termo avaliação refere-se
a eventos os quais suscitam gêneros que, na maioria das vezes, são representados
por exames, provas ou testes (orais ou escritos).
A origem desse gênero remonta à consolidação da sociedade burguesa e à
instituição da escola moderna. Provas e exames surgem, portanto, como gêneros
tipicamente escolares, cuja responsabilidade pela aplicação, correção e divulgação
das notas era praticamente exclusiva da escola. O que dizer então quando exames,
a exemplo do Enem, passam a ser aplicados em larga escala sob a
responsabilidade do Estado? Como interpretar a emergência da avaliação em larga
escala? Quais as funções/características desses exames? A esses (dentre outros)
questionamentos procuraremos responder neste capítulo.
Para tanto, começamos por enquadrar uma realidade, sempre em constante
devir, em um ângulo constituído com base em nossas escolhas teóricas. Os estudos
sobre avaliação centram-se quase sempre nas pesquisas em Didática ou Política
educacional, conforme afirmamos no capítulo 2. A tais pesquisas acrescentamos
alguns conceitos bakhtinianos apresentados no capítulo precedente, de forma a
construir interdisciplinarmente nosso objeto de pesquisa.
De fato, talvez o verbo acrescentar não seja o mais adequado, já que não
simplesmente somamos algumas teorias a outras, mas procuramos conceitos que
convergem, ideias que pudessem nos ajudar a enquadrar a realidade – que não diz
como quer ser teorizada, mas impõe limites às reflexões – em um ângulo
selecionado.
79
Os conceitos de gênero, esfera, estilo, ideologia, dentre outros, tais como
formulados por Bakhtin, nos parecem importantes para que possamos entender a
emergência da avaliação em larga escala em um contexto de reformas do papel do
Estado, momento em que se constrói e se veicula a ideia de que „avaliar é preciso‟;
momento histórico no qual se responsabilizam professores por baixos rendimentos
dos alunos em exames nacionais e internacionais.
Antes de nos debruçarmos sobre a temática da avaliação, não nos
conformávamos com a ideia simplista de que os baixos rendimentos dos alunos
(notadamente dos alunos oriundos de escolas públicas) em exames em larga escala
seriam resultado tão somente do „despreparo dos professores‟, do mau
gerenciamento dos recursos distribuídos às escolas, da falta de interesse dos pais e
da comunidade para com a educação, ou mesmo da falta de interesse dos próprios
estudantes.
Com base nessas inquietações e após a leitura de teses, artigos, livros e
estudos diversos sobre avaliação, ação normativa federal, ideologia neoliberal e
redefinição do papel do Estado, compreendemos que exames em larga escala
constituem gêneros do discurso em um contexto sócio-histórico peculiar, estando a
serviço da ideologia neoliberal, de um modelo de gestão gerencial pautado no
controle a posteriori, na aferição de resultados objetivos e na responsabilização dos
sujeitos (professores, estudantes) pelos desempenhos dos alunos. Exames
nacionais, como o Enem, são os mais representativos e emblemáticos exemplares
de avaliações em larga escala, cuja função não seria tão somente „melhorar o
ensino‟9, conforme apregoa o discurso oficial, mas atuar como coadjuvante, ou
9
Não negamos a existência desse objetivo, apenas consideramos que ele não ocorre da forma como é
apresentada no discurso oficial, segundo discutiremos adiante.
80
mesmo auxiliar na reforma do papel do Estado e na reforma da Educação. Ademais,
antes de induzir a melhorias no ensino, esse gênero teria a função precípua de se
„autoaperfeiçoar‟, a partir de experimentações prévias, estudos e pesquisas
educacionais.
Os
estudos
bakhtinianos,
ao
centrarem-se
na
relação
entre
linguagem/sociedade, linguagem/ideologia, nos parecem ideais para compreender e
formular as ideias acima expostas. Para o teórico russo, todas as esferas da
atividade humana estão relacionadas com a utilização da língua, considerando que o
conceito de esfera aduz, sobretudo, a um espaço de refração ideológica.
A ideologia refrata a realidade, impõe determinados modos de concebê-la.
Conforme mencionamos no capítulo precedente, Bakhtin (2009) concebe o signo
como uma arena de luta entre classes sociais, na qual a classe dominante procura
impor uma visão única da realidade. Para o teórico, o signo é essencialmente
ideológico, uma vez que, na visão do autor, não há propriamente diferenciação entre
ideológico e não-ideológico, mas variação no tipo e na forma da ideologia
(RODRIGUES, 2001). Nesse sentido, os gêneros do discurso são, sobretudo,
gêneros ideológicos, já que constituídos fundamentalmente pela linguagem, ou seja,
pelo signo linguístico, o qual, devido a sua “pureza semiótica”, serve às mais
variadas ideologias.
Reiteramos, porém, que Bakhtin reformula algumas ideias marxistas, uma vez
que o autor não concebe uma relação direta e mecânica entre a infraestrutura e a
superestrutura, pois, mediando essa relação, encontra-se a esfera ideológica, que
refrata a realidade. Exames em larga escala, como o Enem, são gêneros do
discurso que surgem no seio da esfera estatal, veiculando sua ideologia.
81
Feitas essas observações, e considerando a ordem metodológica para o
estudo da língua defendida por Bakhtin (2009), na próxima seção nos debruçaremos
sobre a esfera ideológica na qual emerge a avaliação em larga escala.
3.1.1 Redefinição do papel do Estado e ideologia neoliberal: considerações
sobre a esfera de emergência da avaliação em larga escala
3.1.1.1 Dos precursores
Para entendermos o modelo atual que se impôs de avaliação – em larga
escala e centralizada sobretudo na esfera federal – é fundamental entendermos, a
priori, a esfera social de emergência desse gênero. Zanardini (2008) afirma que a
avaliação resulta de uma série de reformas do papel do Estado. A reforma
educacional é apresentada como uma dessas reformas, já que a educação é
frequentemente definida por organismos internacionais, a exemplo do Banco
Mundial, como condição estrutural para o desenvolvimento das nações e para o
progresso econômico (ZANARDINI, op. cit.).
Antes, porém, das reformas instauradas em meados da década de 70 do
século XX, como resultado da crise do capital, Zanardini (op. cit.) identifica os testes
psicométricos bem como os testes de mensuração de aptidões cognitivas enquanto
uma espécie de „precursores‟ do modelo atual de avaliação em larga escala. Para o
autor, tratar-se-ia de instrumentos diferenciados, mas com uma ontologia comum.
Tal ontologia vincula-se essencialmente à manutenção do status quo da sociedade
burguesa.
82
Com vistas a manter a sociedade desigual, a burguesia se vê forçada “a
encontrar argumentos „válidos‟ que justificassem tal ordem social. Nesse momento
de afirmação hegemônica os testes de aptidão e de capacidade se mostram como
ferramentas imprescindíveis ao projeto hegemônico burguês” (ZANARDINI, op. cit.,
p. 64). Esta seria, portanto, a „origem ontológica‟ dos atuais exames em larga escala,
gênero que justifica as desigualdades apontando os „fracassos individuais‟ ou os
fracassos das escolas e sistemas de ensino (responsabilização). Pela lógica
burguesa, todos teriam as mesmas oportunidades, mas apenas os mais aptos, os
mais esforçados triunfariam.
Zanardini (2008) destaca que os testes psicométricos, surgidos no século XIX
e intensificados no pós-guerra (II Guerra mundial), foram usados principalmente na
escola, na indústria e nas forças armadas. Essa constatação leva-nos a reconhecer
tais instituições como aparelhos disciplinadores, essenciais para a manutenção da
ordem.
Como características centrais desses testes que antecederam o atual modelo
de avaliação em larga escala, podemos destacar a racionalidade, a objetividade e a
economia de tempo, afinal os testes tinham que racionalmente mensurar
capacidades cognitivas, com o máximo de precisão e economia, considerando os
problemas econômicos advindos do pós-guerra, os quais demandaram controle da
eficiência e da produtividade. A objetividade e a racionalidade vão paulatinamente
sendo incorporados ao modelo atual de avaliação em larga escala, conforme
discutiremos adiante, de forma a aperfeiçoar cada vez mais os exames, tornando-os
instrumentos „seguros‟, „confiáveis‟, de alto „poder preditivo‟.
83
Sobre essa última característica (instrumento de poder preditivo), vejamos o
que afirma Zanardini (2008, p. 65) sobre os testes de inteligência implantados no
século XIX e intensificados no século XX:
A preocupação expressa nos testes de inteligência é encontrar um
instrumento de predição, ou seja, quanto mais os prognósticos
contidos nos testes são confirmados mais comprovam a realidade
substancial que „medem‟, pois somente aptidões desiguais permitem
explicar a diferenciação e hierarquização dos indivíduos e das classes
sociais.
Segundo discutiremos adiante, essa preocupação expressa em encontrar
„instrumentos preditivos‟ sobre desempenhos dos avaliados perdura no modelo atual
de avaliação, sobretudo no Enem, sendo, ademais uma preocupação explicitamente
enunciada.
Outra característica dos exames de inteligência que permanece nos atuais
exames em larga escala reporta-se à necessidade de legitimação, sobretudo
legitimação científica. Considerando que tanto os exames de inteligência quanto os
nossos modernos exames em larga escala sofreram forte influência do modelo
americano, Zanardini (op. cit., p. 80) afirma que constantemente “requereu-se o
apoio da ciência como forma de referendar a prática avaliativa, tendo em vista
atribuir-lhe qualidade inquestionável”.
Essas observações levam-nos a afirmar que não basta apenas avaliar, é
preciso demonstrar que a avaliação é válida, legítima, inquestionável e, sobretudo,
necessária. Como embebida em um poder invisível, a avaliação se apresenta como
alternativa primeira para se controlar a qualidade, predizer aptidões, justificar
fracassos. No século XIX, os testes psicométricos determinavam quem eram os mais
„aptos‟, justificavam o status quo da sociedade. Em fins do século XX e início do
84
século XXI, como interpretar a emergência de exames em larga escala? Quais as
funções atribuídas a esses exames pelo discurso oficial e quais as funções „nãodeclaradas‟ considerando a relação gênero/esfera/ideologia? Essas indagações
movem-nos nas linhas a seguir.
3.1.1.2 Das reformas do papel do Estado e da ideologia neoliberal
Segundo Peroni (2003, p. 22), as mudanças ocorridas na política educacional
dos anos 1990 devem “ser entendidas como parte da materialidade da redefinição
do papel do Estado”. Essa redefinição, por sua vez, deve ser concebida como um
movimento mais amplo e complexo de crise do capitalismo.
A autora destaca que, no período pós-Segunda Guerra, havia uma tendência
– embora não homogênea em todos os países – de direcionamento das políticas
para setores vinculados ao crescimento da produção e do consumo, de forma a se
garantir o pleno emprego – tratava-se do well faire state, ou Estado de bem-estar
social. Hayek e Keynes polemizavam nesse período histórico, triunfando este último
naquele momento específico. Para Zanardini (2008, p. 87), “Como o capitalismo na
época vivia seu „período de ouro‟, as recomendações de Hayek não encontravam
campo fértil para se proliferarem”.
Não obstante, nos anos 1970, acirrou-se uma crise do capital que acabaria
por trazer à tona os ideais apregoados por Hayek como alternativa para superação
da crise. Culpavam-se o Estado, seu engessamento, seus gastos irresponsáveis.
Argumentava-se sobre a ineficiência do Estado, e, sobre esse argumento, construiuse a ideia segundo a qual o Estado não deveria promover diretamente o crescimento
econômico, mas facilitá-lo, atuando como „catalisador‟, „indutor‟, „regulamentador‟.
85
A crise econômica é, portanto, concebida, pelos neoliberais, como resultado
de uma crise do Estado. A esse respeito, vejamos o que diz um documento oficial
elaborado pelo então “Ministério da Administração Federal e Reforma do Estado”,
num momento em que se procurava implementar a reforma do Estado brasileiro:
A crise brasileira da última década foi também uma crise do
Estado. Em razão do modelo de desenvolvimento que Governos
anteriores adotaram, o Estado desviou-se de suas funções
básicas para ampliar sua presença no setor produtivo, o que
acarretou, além da gradual deterioração dos serviços públicos,
a que recorre, em particular, a parcela menos favorecida da
população, o agravamento da crise fiscal e, por conseqüência,
da inflação. Nesse sentido, a reforma do Estado passou a ser
instrumento indispensável para consolidar a estabilização e
assegurar o crescimento sustentado da economia. Somente assim
será possível promover a correção das desigualdades sociais e
regionais. (BRASIL, 1995, p. 6, grifos nossos).
Segundo o discurso acima transcrito, o Estado, ao se desviar de suas funções
básicas de „incentivador‟, „regulador‟, para atuar diretamente na produção, seria
responsável pela crise que deterioraria os serviços públicos. Nesse sentido, faz-se
necessário repensar os papeis assumidos pelo Estado, de forma a se promover o
crescimento econômico.
No campo educacional – entendido como estratégico para o crescimento
econômico – desponta o Estado avaliador, atuando de forma regulatória e agindo
sobretudo através da avaliação materializada em testes padronizados em larga
escala. O Estado avaliador, segundo Zanardini (2008, p. 96), desponta “como
alternativa de mudança dos papeis do Estado, rompendo com seu aspecto de
fomentador e promotor direto, acentuando-se seu caráter de incentivador e
regulamentador do desenvolvimento”.
86
Vê-se, portanto, que a reforma e redefinição do papel do Estado surge num
momento de crise estrutural do capitalismo. Zanardini (2008, p. 89) afirma que a
ontologia que embasa a relação Estado e sociedade “tem em vista a reprodução e
manutenção das relações capitalistas de produção”. Logo, considerando a
“necessidade e a essencialidade do Estado, particularmente do burguês, para o
sistema do capital, reformá-lo, sempre que as condições objetivas o exijam, significa
rever entraves e fatores de ineficiência para a reprodução desse modelo social”
(ZANARDINI, op. cit., p. 89).
No período de crise do capital, aprofundada em 1973, tem-se, conforme
ressalta Peroni (2003), a implantação de um modelo de acumulação flexível,
contrastante com a rigidez fordista. Em consequência, cresce o desemprego
estrutural, havendo, em contrapartida, uma banalização das desigualdades sociais.
A reforma do papel do Estado brasileiro, segundo observa Peroni (op. cit.), foi
fundamentada na teoria da “falha do Estado”, denominada Renting seeking, que fora
desenvolvida pela Public Choice, ou Escola de Virgínia. Caracterizariam, dentre
outras, ideias defendidas pela Public Choice:

A diferenciação entre ações do Estado (assentado em „regras gerais‟,
responsável por garantir a liberdade, o direito à propriedade) e do governo
(transitório, irresponsável);

a distinção entre níveis decisórios Constitucional e Pós-constitucional;

a tentativa de restringir ações dos legisladores comuns;

a tensão entre liberdade individual e democracia.
87
A autora ressalta que, no período atual, as contradições econômicas e sociais
estão mais acirradas. A ofensiva neoliberal aparece nesse contexto “justamente
como uma estratégia para superação dessa crise” e “utiliza-se, em larga escala, de
sua ideologia para construir a ambiência cultural necessária a esse período
particular do capitalismo” (PERONI, 2003, p. 26).
A respeito da ideologia neoliberal como projeto hegemônico que acompanha
a reforma do Estado, afirma Zanardini (2008, p. 89):
O projeto hegemônico materializado pelo neoliberalismo pode,
então, ser caracterizado como um processo de duplo caráter, que
permite: por um lado impor uma intensa dinâmica de mudança
material composta por estratégias políticas, econômicas e jurídicas
que visam encontrar uma saída para o processo de crises cíclicas
do capitalismo a partir do fim dos anos 1960, e por outro representar
e aglutinar um projeto com força ideológica na sociedade, atuando
principalmente na construção de outro senso comum que
fornecesse coerência rumo à legitimação de suas propostas
reformistas.
A citação acima transcrita trata a ideologia neoliberal como um projeto que
visa à construção de um consenso, de uma hegemonia, de forma a justificar as
propostas de reformas.
Tendo como obra fundamental O caminho da servidão (1944), de Friedrich
Hayek, a ideologia neoliberal, assentada sobre a meta fundamental de estabilizar e
manter estável a economia, tende, segundo Zanardini (2008), a justificar os
problemas econômicos pelos problemas educacionais. Não se trata, porém,
conforme destaca o autor, de um discurso absolutamente novo (e o que seria
absolutamente novo se olharmos o mundo sob a visão bakhtiniana?), mas que
remonta suas origens ao liberalismo clássico. Segundo Zanardini (2008, p. 83),
Quando nos reportamos à tentativa de justificar os problemas
econômicos pelos problemas educacionais e à consideração de que
88
por meio da educação se promoveria mobilidade social numa
sociedade de classes antagônicas, devemos ressaltar que essa
tentativa não é nova. Tal perspectiva nasce por volta do século XVIII
quando princípios educativos, como o da universalização da
educação, compõem os princípios da doutrina liberal, lado a lado
com a igualdade de direitos e oportunidades, o fim dos privilégios
hereditários e o respeito às iniciativas e capacidades individuais.
Outras
características
da
ideologia
neoliberal,
pensando
mais
especificamente sobre as políticas sociais, e, dentre elas, a educação, conforme
Peroni (2003):
1. A tese do „repasse de responsabilidades‟ com vistas à melhoria dos
serviços – o Estado repassa responsabilidades para a iniciativa privada, para os
indivíduos e para as organizações sociais; surgem parcerias entre setores públicos e
privados; redefine-se o próprio conceito de „serviço público‟.
2. A defesa da necessidade de se privatizar setores considerados
estratégicos para o desenvolvimento da nação, bem como a crescente privatização
de serviços (saúde, educação, previdência social), ocasionando a „mercadorização‟
desses serviços; a privatização „seletiva‟ (privatização de serviços considerados
lucrativos, como, por exemplo, o ensino superior); a implementação de „quasemercados‟ em educação.
3. A descentralização – responsabilidades outrora do governo federal são
repassadas a estados e municípios, sob o argumento de que os serviços seriam
mais bem gerenciados. No Brasil, essa descentralização efetivou-se, na educação,
através, sobretudo, da municipalização do ensino fundamental.
4. A monitoração da qualidade dos serviços prestados, principalmente dos
serviços educacionais, por meio de avaliações.
5. A defesa da focalização das políticas sociais, que deveriam atender aos
„mais pobres‟, em detrimento de políticas universais, de amplo alcance.
89
Sobre as relações Estado/sociedade, temos:
1. A tensão ente um modelo de Estado “que seja ao mesmo tempo forte e
fraco” (ZANARDINI, 2008, p. 87). Peroni (2003) afirma que, no modelo neoliberal,
temos um Estado máximo para o capital e mínimo para gastos sociais. Afonso
(1999), por sua vez, enfatiza que nas reformas implantadas ao longo dos anos
1980/90 nos países centrais predominou uma „bipolaridade‟, através da defesa da
livre economia (tradição liberal – “Estado fraco”) com a defesa da autoridade do
Estado (tradição conservadora – “Estado forte”).
2. A tensão entre liberdade individual e democracia. Peroni (2003, p. 27)
destaca que, para Hayek, “a maximização da liberdade está em proteger-se o
sistema de mercado, necessário e suficiente para a existência da liberdade
individual. Assim, o mercado deve ser protegido contra o Estado e, também, da
tirania das maiorias”.
3.
A crença em „regras gerais‟ que salvaguardariam os direitos de
propriedade privada e de competição.
Com base nessas premissas, três principais motivos são apresentados como
responsáveis pelo sucesso econômico de um país. Primeiro, o compromisso com a
estabilidade econômica. Para manter estáveis os índices econômicos, geralmente
cortam-se gastos, sobretudo gastos sociais, uma vez que o neoliberalismo
representa o Estado máximo para o capital e mínimo para as políticas sociais. O
discurso neoliberal, inevitavelmente, menciona a tão almejada estabilidade, os
baixos índices de inflação como indicadores de que determinado país “vai muito
bem, obrigado”. O Banco mundial, por exemplo, ao avaliar o primeiro mandato do
governo Lula, afirma:
90
Partindo dos sucessos da administração anterior – mudança na
gestão fiscal e monetária e substanciais melhorias sociais – as duas
vertentes do enfoque do novo governo são: manter a estabilidade
macroeconômica e, ao mesmo tempo, promover um crescimento
mais eqüitativo e acelerar o progresso social. A nova
administração federal se comprometeu com a austeridade
fiscal, com o estabelecimento de metas de inflação e com o
cumprimento dos contratos da dívida. (BANCO MUNDIAL, 2004,
p. 17, destaques nossos).
A estabilidade macroeconômica, o comprometimento com a austeridade
fiscal, os baixos índices inflacionários e o cumprimento do pagamento da dívida
externa são apresentados como metas que teriam sido responsáveis pelo
crescimento econômico do Brasil, permitindo-se, assim, o aceleramento do
progresso social. Logo, manter estável a economia deve, segundo a ideologia
neoliberal, ser o objetivo dos países comprometidos com o crescimento e com a
melhoria da vida da população.
O segundo motivo apresentado como responsável pelo sucesso econômico
de uma nação seria o dinamismo da iniciativa privada. O discurso neoliberal tende a
apresentar o Estado, seu „agigantamento‟, como responsável pelas crises que de
tempos em tempos assolam os países. Culpa-se principalmente a ineficiência do
setor público, apresentado como atrasado, burocrático, vicioso. Nesse sentido, a
solução estaria no setor privado, quase sempre visto como dinâmico, eficiente,
moderno. O Banco mundial (1997, p. 6) afirma que, “com freqüência, empresas
estatais ineficientes representam uma sangria para as finanças do Estado”. Nesse
sentido, a privatização parece oferecer uma solução óbvia, gerando benefícios
econômicos e fiscais positivos.
Por fim, o terceiro motivo responsável pelo crescimento econômico seria a
racionalidade e regulação avançada do eficiente sistema bancário. Peroni (2003, p.
34) apresenta como característica marcante do período iniciado com as reformas do
91
papel do Estado “a autonomia do sistema bancário e financeiro, acentuando o que
Harvey chama de dinheiro sem Estado”. A expansão do mercado financeiro
internacional caracterizar-se-ia pela acumulação flexível e pela autonomia do
sistema bancário. Nesse sentido, a eficiência desse sistema seria também
responsável pelo desenvolvimento econômico.
Em suma, a estabilidade, a iniciativa privada e o sistema bancário estariam na
origem do progresso econômico. A escola, nesse cenário, desponta como instituição
privilegiada para a socialização e formação de sujeitos aptos a atuarem num mundo
competitivo.
Afirmamos anteriormente que a educação, sob a égide da reforma do papel
do Estado, ao longo dos anos 80 e 90 do século XX, foi apresentada e concebida
como área estratégica para o desenvolvimento econômico. Por meio da educação,
conforme observa Zanardini (2008), ao analisar documentos veiculados pelo Banco
Mundial, ter-se-ia o empoderamento das classes mais vulneráveis, que poderiam vir
a se tornar „empregáveis‟.
É comum ler e ouvir em debates e discussões sobre educação que o
crescimento econômico de um país ocorreu devido a amplos investimentos
educacionais. Nesse sentido, o exemplo do Japão já se tornou praticamente um
clichê apresentado na mídia, na política e largamente disseminado como uma
“verdade incontestável”. Ora, se a educação é setor estratégico para o
desenvolvimento econômico, conforme enfaticamente apregoa o discurso neoliberal,
como aferir sua qualidade, como monitorar os desenvolvimentos em educação? A
avaliação, padronizada e em larga escala, aparece como resposta a tais
questionamentos, sendo, ainda, resultado de mudanças no modelo administrativo –
92
do modelo burocrático para o modelo público gerencial, pautado em metas e na
aferição de resultados objetivos, conforme citamos no capítulo a este precedente.
3.1.1.2.1 Reforma educacional: a emergência de exames em larga escala
O crescente interesse pela temática da avaliação educacional na atualidade
levou muitos pesquisadores, segundo observa Freitas (2007), a acreditarem
erroneamente que o envolvimento do Estado brasileiro com a avaliação é um
fenômeno recente. A autora, ao tentar entender por quais vias o Estado brasileiro
“chegou a empreender as iniciativas sistemáticas de avaliação em larga escala na
regulação da educação básica” (p. 8), observa medidas avaliativas ainda na década
de 30 do século XX. Não obstante, o modelo atual de avaliação foi, segundo Freitas
(2007), delineado recentemente, entre os anos 1980 e 1990.
Versieux (2004, p. 13), por sua vez, observa que, na década de 50 do século
XX, começavam a emergir avaliações envolvendo sistemas escolares. No entanto,
“não havia um quadro geral da posição individual do aluno em relação aos seus
pares e da escola em relação às outras, num quadro de referências comparativas” –
tendência amplamente observada nos dias atuais.
No sub-tópico precedente, vimos que a educação, sob a égide da reforma do
papel do Estado, é concebida como setor estratégico para o desenvolvimento
econômico e para o empoderamento das classes consideradas mais vulneráveis.
Põe-se em foco, com a reforma do aparelho estatal, a necessidade de se controlar
os serviços públicos prestados à população. Considerando que se dissemina
amplamente a ideia de uma „ineficiência‟ do setor público, cada vez mais se
dissemina também a crença no „fracasso generalizado‟ da escola pública – fracasso
93
atribuído ao modelo administrativo vigente, pouco afeito à competição e à
meritrocracia.
A avaliação da educação básica, que assumiria sobretudo a forma de exames
padronizados em larga escala, emerge a partir de um imperativo de qualidade do
ensino. Freitas (2007, p. 53) afirma que “O interesse pela avaliação em larga escala
como expediente do governo da educação básica fortaleceu-se com a intensificação
do questionamento da qualidade tanto da expansão como dos resultados do ensino,
no final dos anos de 1970 e início dos anos de 1980”.
Um importante marco na definição de padrões mínimos de qualidade é a
promulgação da Constituição de 1988, que, embora não tenha citado explicitamente
a avaliação como medida de controle, pressupõe a qualidade dos serviços
educacionais prestados “como uma tarefa pública que supõe a atuação do Estado
segundo a concepção de federalismo e a natureza da relação Estado-sociedade
inscritas na Lei maior” (FREITAS, 2007, p. 65).
A avaliação do ensino básico atuou como importante ferramenta na
redefinição do papel do Estado, mais precisamente na redefinição do papel do
Estado em relação à educação. Institui-se, com a avaliação, uma via de controle „à
distância‟, concentrada na esfera Federal, que promoverá a conjugação entre
descentralização (da oferta do ensino) e centralização (da qualidade do ensino
ofertado, por meio da avaliação). Trata-se de uma “via de regulação percebida como
alternativa a um comando burocrático” (FREITAS, 2007, p. 151), isto é, uma forma
„moderna‟, „prática‟ e „eficiente‟ de gerir e induzir a melhorias no ensino. Segundo
Freitas (op. cit., p. 102),
Para além da edição de normas, o governo central promoveu ações
de medida, avaliação e informação. Tornou-se prática sistemática do
94
governo central, desde o ingresso dos anos de 1990, avaliar a
educação básica. Isso lhe propiciou atuar, de forma inédita, na
gestão desse nível de educação escolar no país, ainda que, por
força de dispositivos constitucionais e de práticas históricas
vigentes, os estados e municípios fossem as instâncias incumbidas
tanto da oferta como da gestão desse nível de educação e ensino.
A reforma educacional veio acompanhada de um discurso sobre a
modernização da gestão pública. A partir desse discurso, a avaliação atuaria no
monitoramento tanto da qualidade, quanto da descentralização da oferta do ensino.
Ao mesmo tempo, difundir-se-ia valores da cultura hegemônica, como a
supervalorização do mérito individual de alunos e de escolas. Sobre essa questão, é
importante destacar que o modelo de avaliação imposto tem recorrido, muitas vezes,
ao desempenho de alunos, de forma individual, para aferir a qualidade de sistemas
de ensino e escolas – assim ocorre com o Enem. Sousa (2009, p. 34) observa que a
avaliação
tem servido para viabilizar uma lógica de gerenciamento da
educação, reconfigurando, por um lado, o papel do Estado e, por
outro, a própria noção de educação pública, ao difundir uma ideia de
qualidade que supõe diferenciações no interior dos sistemas
públicos de ensino, como condição mesma de produção de
qualidade.
Partindo de seu potencial para induzir reformas na educação, a avaliação
orientou-se por um viés pragmático, por uma “lógica objetiva, direta, que buscou
sobretudo produzir efeitos práticos, que considerou o valor prático como critério de
verdade, que esperou comportamentos em conformidade com recomendações e
normas centralmente definidas” (FREITAS, 2007, p. 120).
Considerando que a educação, sob a ótica neoliberal, é vista como condição
estrutural para o desenvolvimento econômico, e que se tornou, portanto, imperativo
monitorar a qualidade do serviço educacional prestado, podemos inferir que uma
95
condição sócio-discursiva singular emergiu. Precisava-se de um instrumento, de um
artefato simbólico capaz de aferir a qualidade almejada e que se mostrasse ou
aparentasse uma neutralidade e uma eficiência reconhecidas socialmente. Exames
padronizados, em larga escala, pedagogicamente reconhecidos parecem o ideal
para cumprir tais metas de monitorar a educação, impor uma lógica racional
pragmática e investir numa cultura meritocrática. Em outros termos, exames em
larga escala, a exemplo do Enem, surgem e se consolidam como gênero do discurso
em um contexto de reformas educacionais e redefinição do papel do Estado.
Emergem a serviço da ideologia neoliberal.
Ora, segundo a ótica bakhtiniana, todo signo é ideológico. O gênero, como
forma tipificada de enunciados numa dada esfera, é, por extensão, gênero
ideológico. Todo gênero estará a serviço de valores, de visões de mundo.
Ademais, considerando também que todo enunciado e, por conseguinte,
todos os gêneros surgem como reação-resposta a algo, em uma esfera discursiva,
devemos, para os propósitos desta pesquisa, entender não apenas por que a
avaliação em larga escala assumiu tal forma, mas também entender a que esse
gênero responde, a que ele se constitui como reação resposta.
Analisar tão somente a materialidade textual de exames em larga escala
pouco nos diria sobre essa questão. Ao invés, devemos olhar as especificidades da
conjuntura na qual os exames emergiram e foram legitimados como eficiente
instrumento capaz de aferir a qualidade do ensino. Com efeito, a exigência de
qualidade e de controle, a necessidade de monitoração dos serviços prestados à
população constitui-se como primeiro imperativo ao qual os exames em larga escala
surgem como reação-resposta.
96
A Constituição de 1988 em seu art. 206, inciso VII, apresenta a “garantia de
padrão de qualidade” como princípio que fundamenta a educação. Em seu art. 209,
afirma-se que a educação “é livre à iniciativa privada”, não obstante, condiciona-se
tal liberdade ao atendimento de duas condições, dentre elas, “a autorização e
avaliação de qualidade pelo Poder Público”. O art. 214, por sua vez, ao estabelecer
dispositivos legais para o plano nacional de educação, afirma que esse plano visará
“à articulação e ao desenvolvimento do ensino em seus diversos níveis” e “à
integração das ações do poder público que conduzam” à cinco metas, dentre as
quais, destacamos, in verbis, “III - melhoria da qualidade do ensino”.
O texto constitucional, segundo mencionamos acima, não apresenta
explicitamente a avaliação como mecanismo de controle da qualidade do ensino,
mas, ao propor a melhoria dessa qualidade como meta e como atribuição do Poder
Público, lança as bases do que viria a se tornar um sistema de avaliação
padronizado e amplamente difundido socialmente. A qualidade, percebe-se, era um
imperativo.
A LDB/1996, como principal dispositivo legal que rege a educação,
estabeleceu, em seu art. 3º, inciso IX, a “garantia de padrão de qualidade” enquanto
um dentre os onze princípios que fundamentam o ensino. A avaliação torna-se
explícita no art. 9º, no qual se estabelecem as atribuições da União sobre a oferta e
manutenção do ensino. O inciso VI assegura o “processo nacional de avaliação do
rendimento escolar no ensino fundamental, médio e superior, em colaboração com
os sistemas de ensino, objetivando a definição de prioridades e a melhoria da
qualidade do ensino”.
Uma vez que a questão da qualidade do ensino foi imposta como imperativo,
a avaliação, padronizada e em larga escala, devendo atender a um grande número
97
de alunos, emerge como reação resposta a tal demanda. Temos, pois, a constituição
de um gênero que, a priori, deveria mensurar a qualidade de um serviço prestado à
população, qualificar tal serviço como adequado ou não, e classificar os
estabelecimentos que prestam tal serviço. A avaliação, como observa Freitas (2007),
recaiu sobre o rendimento individual do aluno, daí decorre que os exames
padronizados em larga escala sejam o exemplo mais emblemático de instrumento
avaliativo, aqui compreendido como gênero do discurso consolidado em um contexto
específico de redefinição do papel do Estado.
É importante observar que dois eixos fundamentavam o discurso sobre o
ensino, no período constituinte, quais sejam: a equalização de oportunidades
educacionais e o estabelecimento de padrões mínimos de qualidade do ensino.
Segundo Freitas (2007, p. 69),
Equalização de oportunidades educacionais e padrão mínimo de
qualidade do ensino seriam garantidos mediante a função
redistributiva e supletiva da União, incumbida de realizar assistência
técnica e financeira aos entes da federação. Essas tarefas
justificaram a utilização da avaliação em larga escala, pelo
governo central, para regular a educação básica. (destaque nosso).
Os exames em larga escala emergem como reação-resposta às reformas
educacionais estabelecidas sob a égide da redefinição do papel do Estado. Tais
reformas definem a necessidade do controle de qualidade e da descentralização do
ensino ofertado. Nesse sentido, competiria à avaliação monitorar a descentralização
da oferta do ensino. Freitas (2007, p. 77), ao analisar a tramitação do anteprojeto da
LDB, observou que “No conjunto, a avaliação apareceu nessa proposta do MEC
como estratégia de descentralização, de gestão democrática e de controle
sistêmico”. Adiante, ao discutir a implementação do SAEB, a autora destaca que
esse
sistema
de
avaliação
“orientou-se
(...)
para
o
monitoramento
da
98
„descentralização‟ de políticas, num contexto de redefinição de competências dos
três níveis de governo propiciados por esses instrumentos legais” (p. 110).
Apostava-se na avaliação como mecanismo para garantir padrões mínimos
de qualidade, para monitorar a descentralização da oferta do ensino e, também,
para induzir reformas educacionais. Segundo Freitas (op. cit., p. 120), “A força
normativa da avaliação em larga escala foi condicionada pelo desafio de reformar a
gestão dos sistemas de ensino nos marcos de uma nova regulação estatal, sendo
esta conformada por um federalismo regido por uma lógica pragmática” (grifo
nosso). Destacamos que, como reação-reposta a uma necessidade de induzir
reformas no ensino, a avaliação em larga escala, sob a forma de exames
padronizados, a exemplo do Enem, assumirá uma importante característica
prevalecente hoje em dia, qual seja a aposta no efeito retroativo da avaliação. De
fato, quando se fala que um exame como o Enem atuará ou deverá atuar na reforma
do Ensino Médio, tornando o currículo desse nível de ensino „menos enciclopédico‟,
ou que, por meio desse exame, o aluno preparar-se-á para „os desafios do mundo
do trabalho‟, aposta-se no efeito retroativo do exame sobre sistemas de ensino.
Conforme discutimos anteriormente, a avaliação, porém, não é um fenômeno
absolutamente novo, sem precursores. Se Zanardini (2008) identifica nos exames
psicométricos e nos testes cognitivos antecessores do que viria a se tornar os atuais
exames em larga escala, podemos afirmar, pois, que os exames atuais surgem
também como reação-resposta a tais experimentações prévias, se considerarmos
que, sob a ótica bakhtiniana, os gêneros encontram-se numa relação dialógica
ininterrupta. Não existe nada absolutamente novo. Bawarshi e Reiff (2010, p. 83)
assinalam duas relações estabelecidas entre os gêneros, conforme Bakhtin.
Primeiro, temos a assimilação de gêneros (o romance assimilando o gênero “carta”,
99
por exemplo), ou a assimilação dos gêneros primários pelos secundários. Segundo,
Bakhtin
also describes a more horizontal set of relationships between genres,
in which genres engage in dialogic interaction with one another as one
genre becomes a response to another within a sphere of
communication. For example, a call for papers leads to proposals,
which lead to letters of acceptance or rejection, and so on.
(BAWARSHI e REIFF, 2010, p. 83)10.
Nesse sentido, os gêneros não existem de forma isolada, mas em contínua
interação uns com os outros. Trata-se de uma conclusão óbvia se pensarmos que só
nos comunicamos e só interagimos por meio de gêneros. Ora, se os gêneros
existem numa relação horizontal, na qual cada gênero se torna uma resposta a outro
dentro de uma esfera, podemos afirmar que os exames em larga escala,
coordenados sob a tutela do Estado, encontram-se em relação dialógica com os
exames escolares, restritos ao domínio mais limitado da escola. Considerando a
antecedência destes, os exames em larga escala constituir-se-iam como reaçãoresposta aos exames escolares, com eles guardando muitas semelhanças,
sobretudo no que tange à composição (estruturada em perguntas e respostas,
contendo ou não alternativas etc) e ao tema (didatização de conteúdos a serem
avaliados).
Pesquisas
educacionais
e
experimentações
prévias
antecederam
a
consolidação de exames nacionais amplamente aceitos e divulgados hoje em dia, a
exemplo do Enem. Freitas (2007, p. 8) constata que, ainda no período 1937-1945,
10
“também descreve um conjunto de relações mais horizontais entre os gêneros, no qual os gêneros
se envolvem em interação dialógica com outro enquanto um gênero torna-se uma resposta a outro
dentro de uma esfera da comunicação. Por exemplo, uma chamada para publicação leva à
apresentação de propostas, que levam às cartas de aceitação ou rejeição, e assim por diante.”
Tradução nossa.
100
o Estado Novo deu expressivo impulso à “ciência” e “a técnica” de
quantificar a educação, tendo em vista a intenção de planificar ações
governamentais voltadas para a instauração de “uma ordem social
integral”. Os estudos em educação tornaram-se cada vez mais
institucionais, científicos e acadêmicos, tendo obtido impulso a
valorização da mensuração para o bom governo educacional.
A autora supracitada, em sua pesquisa sobre a avaliação da educação básica
no Brasil, parte da hipótese de que a avaliação “emergiu via percurso de
configuração e articulação da pesquisa e do planejamento educacional” (p. 2), e
evidencia um longo percurso de pesquisa educacional (iniciado ainda na década de
30 do século XX) e de experimentações prévias. Podemos afirmar, pois, que os
exames em larga escala, máximo expoente da avaliação educacional, emergem
também como reação-resposta a tais pesquisas e experimentações anteriores.
Para se chegar ao modelo atual de exames padronizados, importante também
foram as experiências e exemplos de outros países. Zanardini (2008), por exemplo,
ressalta a influência norte-americana no modelo de exames brasileiros. Segundo o
autor, o
modelo
de
avaliação
educacional
que
acompanha
o
desenvolvimento da teoria do currículo de viés positivista, que Saul
(2006) denomina de quantitativista, irá perpassar toda a década de
1970 avançando até os anos 1980. A partir de meados de 1980
começam a ganhar força no Brasil, novamente por influência
norte-americana (Schwartzman, 2005) as discussões em torno
dos testes avaliativos em larga escala, que perduram até os
dias atuais materializados no SAEB, ENEM e ENC. (p. 79, grifos
nossos).
Os nossos exames em larga escala que avaliam a qualidade da educação
básica constituem-se, por conseguinte, como reação-resposta a experiências e
exemplos de outros países. Ademais, devemos destacar que a tendência em avaliar
e monitorar a educação, com vistas a assegurar padrões de qualidade, é uma
101
tendência mundial, exemplo emblemático do que Dale (2001) denomina agenda
globalmente estruturada para a educação. Por fim, lembramos que tais exemplos
internacionais são também condicionados por pressões e imposições de organismos
internacionais, como o Banco Mundial, que defende a monitoração dos serviços
prestados à população, a exemplo da educação, como demonstrou Zanardini (2008).
Em síntese, exames em larga escala, como o Enem, nosso objeto estrito
nesta dissertação, surgem como gêneros do discurso emergentes em um contexto
de redefinição do papel do Estado e reformas educacionais. Consideramos que esse
gênero constitui-se, por um lado, como reação-resposta a vários e complexos
fatores, como:

Exigência
de
qualidade
(“imperativo
de
qualidade”)
da
educação,
evidenciada em normas jurídico-legais, como a Constituição de 1988 e a
LDB/1996. Trata-se de uma exigência também condicionada à necessidade
de se controlar e monitorar a descentralização e privatização da oferta do
ensino, distribuído entre os estados (responsável pelo Ensino fundamental,
mas, sobretudo, pelo Ensino Médio) e municípios (responsável por ofertar
principalmente o Ensino Fundamental).

Pesquisas educacionais e experimentações prévias.

Experiências e exemplos de outros países e demandas internacionais
(Banco Mundial) condicionadas por uma “agenda globalmente estruturada
para a educação”.
Por outro lado, podemos afirmar que os exames em larga escala,
padronizados, organizados sob a tutela do Estado central, constituem-se também
como reação-resposta aos exames escolares e com a instituição escolar mantêm
relações dialógicas.
102
Falar, porém, em dialogismo, sob a perspectiva bakhtiniana, implica
considerar que todo enunciado surge não apenas como reação respostas a
enunciados, a discursos a sentidos prévios, mas também como motivador de
respostas, de atitudes responsivas. Existe um fluxo dialógico ininterrupto, que
remete a um princípio imensurável, a um “princípio sem princípio”, e se estende a
um futuro sem limites. Nas palavras de Bakhtin,
Não existe a primeira nem a última palavra e não há limites para o
contexto dialógico (este se estende ao passado sem limites e ao
futuro sem limites). Nem os sentidos do passado, isto é, nascidos
no diálogo dos séculos passados, podem jamais ser estáveis
(concluídos, acabados de uma vez por todas): eles sempre irão
mudar (renovando-se) no processo de desenvolvimento
subseqüente, futuro do diálogo. (BAKHTIN, 2003, p. 410).
O fluxo dialógico dos exames em larga escala estende-se para sua influência
na escola (efeito retroativo), nos materiais didáticos, na disseminação de crenças e
valores, nas repercussões na mídia, dentre outros. Trata-se de uma relação
complexa, na qual gêneros dos mais diversos encontram-se em relação intrincada.
Em um pólo, temos gêneros que antecedem e viabilizam a realização e a existência
desses exames. Gêneros pertencentes às mais variadas esferas. Por exemplo: para
um novo exame nacional entrar em vigor, ele precisa ser normatizado por uma
Portaria, que dispõe, de forma geral, sobre a estrutura; os objetivos; a vigência do
exame; o (s) responsável (eis) pelo planejamento, pela operacionalização, pela
normatização e supervisão das provas; dispõe sobre a forma de participação dos
avaliados (se voluntária ou obrigatória) etc. No caso do Enem, temos, a priori, a
Portaria Ministerial 438, de 28 de maio de 1998. Ademais, pronunciamentos oficiais
devem ser proferidos, a fim de divulgar o exame à sociedade, de forma geral, e à
comunidade escolar/acadêmica, de forma específica. Exames prévios, testes
103
„modelo‟ podem ser aplicados, de forma a se estudar e analisar a viabilidade, a
eficiência do novo exame. Convênios, licitações e contratos devem ser feitos para
garantir a elaboração, reprodução, redistribuição e aplicação do exame. Em suma,
uma série de outros gêneros, impossíveis de serem todos aqui citados, antecedem a
promulgação de um exame em larga escala, assinado sob a tutela estatal.
Em um segundo pólo, temos as repercussões, os materiais didáticos
elaborados, as notícias e reportagens divulgadas na mídia, a apreciação, o
levantamento dos resultados, as pesquisas acadêmicas, o estabelecimento de
rankings entre instituições – outra infinidade de gêneros que respondem aos
exames. Trata-se de uma relação tão complexa que os estudos sobre dialogismo
centrados no círculo de Bakhtin não poderiam responder por esse intrincado
complexo de gêneros interagindo. Dessa forma, recorremos a alguns conceitos dos
estudos
retóricos
para
esboçar
uma
relação
dessa
interação
complexa.
Esclarecemos que mantemos nossos estudos com base principalmente nas
asserções bakhtinianas. Não obstante, frente à problemática que a nossos olhos se
impôs, procuramos alguns outros conceitos que pudessem nos fazer compreender a
complexa forma pela qual os exames em larga escala interagem como vários outros
gêneros. Discutiremos essa questão a seguir.
3.2 Gêneros em interação
Carolyn Miller (1994) define gênero como formas retóricas tipificadas,
socialmente derivadas, intersubjetivas, de ações sociais recorrentes. Para Bawarshi
e Reiff (2010),
104
Our ability to recognize, make sense of, and respond to exigencies is
part of our social knowledge, and part of how we come to shared
agreements on what situations call for, what they mean, and how to
act within them. (...)
By associating social purposes with recurrent situations, genre
enable their users both to define and to perform meaningful actions
within recurrent situations11 (p. 71-72).
Pela citação acima, percebe-se que os gêneros, segundo essa visão,
permitem o desempenho de ações significativas ao se constituírem como resposta a
situações recorrentes, ao tempo em que ajudam a definir e a construir tais situações
em uma interação dinâmica. Um conceito-chave dos estudos de gênero na tradição
retórica é o conceito de tipificação. Trata-se de um conceito oriundo dos estudos
fenomenológicos de Alfred Schutz, para quem as tipificações constituem a maior
parte do nosso estoque de conhecimento. Tais estoques derivam de situações
percebidas como similares, e que são constituídas em referência a experiências
prévias (BAWARSHI e REIFF, 2010). Os gêneros são concebidos como formas
tipificadas de ação social. Formas que respondem dinamicamente a situações
recorrentes.
Tal concepção nos parece dialogar, em parte, com o conceito de gênero
desenvolvido por Bakhtin. Lembremo-nos que, para o teórico russo, os gêneros são
tipos relativamente estáveis de enunciados. Ora, as situações sociais recorrentes
em uma esfera discursiva estabilizam formas de comunicação que se apresentam
como relativamente estáveis. O que seria o enunciado senão a estabilização
(relativamente estável) de situações típicas? A ordem militar, os cumprimentos na
11
“Nossa capacidade de reconhecer, dar sentido e responder às exigências faz parte do nosso
conhecimento social, e parte de como chegamos a acordos compartilhados que a situação requer, o
que eles significam e como agir dentro deles.
(...) Ao associar fins sociais, com situações recorrentes, o gênero permite àqueles que os utilizam
tanto definir quanto desenpenhar ações significativas dentro de situações recorrentes.” Tradução
nossa.
105
conversa do cotidiano respondem, evidentemente, a situações típicas. Nesse
sentido, podemos aproximar tal conceito dos estudos retóricos aos postulados
bakhtinianos.
Outros conceitos importantes dos estudos de gênero na tradição retórica são
conjuntos de gêneros, sistemas de gêneros e meta-gêneros. Conjuntos de gêneros
são, segundo Amy Devitt (apud. Bawarshi e Reiff, 2010, p. 87), “the more loosely
defined sets of genres, associated through the activities and functions of a collective
but defining only a limited range of actions12”. Sistemas de gêneros, por sua vez,
constituem “the set of genres interacting to achieve an overarching function with an
activity system13”. Por fim, meta-gêneros são concebidos como gêneros cuja função
é “to provide shared background knowledge and guidance in how to produce and
negotiate genres within systems and sets of genres14” (BAWARSHI e REIFF, op. cit.,
p. 94).
De forma geral, pode-se dizer que o conceito de sistema de gêneros mostrase mais amplo que o conceito de conjuntos de gêneros, uma vez que esses últimos
definem um número limitado de ações. Um conjunto de gêneros organiza-se em um
sistema mais amplo de gêneros, concernentes a um sistema de atividade,
considerando esse último conceito (sistema de atividade) como “any ongoing, object-
12
“os conjuntos de gêneros mais vagamente definidos, associados com as atividades e funções de
uma coletividade, mas que apenas definem uma gama limitada de ações.”
13
“o conjunto de gêneros que interagem para atingir uma função primordial de um sistema de
atividade.”
14
“fornecer conhecimento compartilhado e orientação sobre como produzir e negociar os gêneros
dentro de sistemas e conjuntos de gêneros.”
106
directed, historically conditioned, dialectically structured, tool-mediated human
interaction15” (BAWARSHI e REIFF, op. cit., p. 95-96).
Um sistema de atividade, digamos a logística de elaboração de um exame,
envolve um objetivo (elaborar o exame), sujeitos (elaboradores, colaboradores,
revisores etc) e meios mediativos, dentre os quais, os gêneros que medeiam as
atividades. Esses gêneros entram em relação dinâmica, organizam-se segundo
objetivos, ações a serem realizadas. Um conjunto de gêneros interrelacionados
formará um sistema de gêneros naquele sistema de atividades específico. Cada
sistema, porém, relaciona-se a outros sistemas. Nesse sentido, o sistema de
atividades que envolve a elaboração de um exame relacionar-se-á ao sistema de
atividades dispostas sobre a execução propriamente dita desses mesmos exames (o
ato de respondê-los, a avaliação sendo respondida pelos avaliados).
Sistemas de atividades estarão mais ou menos próximos, mais ou menos
relacionados uns aos outros. Por exemplo, a apreciação valorativa da mídia sobre
um exame poderá, em certo sentido, estar mais distante dos trâmites burocráticos
que antecederam os processos de licitação, de seleção de elaboradores etc. Outros,
por sua vez, estarão mais próximos: as repercussões pedagógicas nas escolas, as
aulas preparatórias estão mais próximas e relacionadas ao sistema de atividade que
envolve responder o exame na data pré-determinada.
Em todo caso, trata-se de um complexo sistema de interação, no qual
importantes funções terão os meta-gêneros. Esses, conforme citamos, concernem a
gêneros que guiam a produção de outros gêneros nos sistemas de atividades.
15
“qualquer curso, dirigido a objetos, historicamente condicionado, dialeticamente estruturado,
ferramenta de interação mediada por humanos.” Todas as traduções são nossas.
107
Importantes meta-gêneros são os materiais didáticos ou instrucionais que surgem
como reação-resposta aos exames, e que são amplamente divulgados e
comercializados quando um exame adquire grande importância e relevância social.
Quando o Enem passou por uma reformulação em 2009, com vistas a se tornar um
sistema de „vestibular unificado‟, assistimos a uma verdadeira proliferação de
materiais didáticos dos mais diversos, desde aqueles ditos „oficiais‟ (livros didáticos),
até aqueles considerados „alternativos‟ (manuais sob o formato de „apostilas‟ ou
„revistas‟, como as que foram organizados pela Editora Abril). Esses materiais
podem ser concebidos como meta-gêneros, à medida que, surgidos como reação
resposta a outros gêneros, guiam, ensinam, e, em certo sentido, estabilizam visões
sobre esses gêneros aos quais estão relacionados.
Uma particularidade envolve a emergência de um exame em larga escala:
esse gênero específico tem sempre um meta-gênero a ele associado. Meta-gênero
que assume a função de matrizes de referência, fundamentações teóricometodológicas. Tais meta-gênero apresentam para os principais interlocutores dos
exames (alunos, professores) as características daquele exame específico, o quê,
como e por que tais e quais objetos, competências e habilidades serão avaliadas.
Ao mesmo tempo, os meta-gêneros ajudam a estabilizar certas visões e concepções
sobre o exame em foco. Ao que parece, dificilmente um exame em larga escala é
proposto sem que a ele esteja associado um meta-gênero. No Enem, temos tanto
meta-gêneros oficiais, como sua Matriz de referência e sua Fundamentação Teóricometodológica, como meta-gêneros não oficiais (materiais didáticos preparatórios dos
mais diversos, apostilas elaboradas por cursinhos etc).
Em síntese, todo gênero relaciona-se a outro (s) gênero (s), formando-se
conjuntos de gêneros e sistemas de gêneros que interagem num ou noutros
108
sistemas de atividades. Os exames em larga escala, não obstante, singularizam
essa interação entre gêneros, ao envolverem múltiplas esferas, múltiplos sistemas
de atividades. Para exemplificar, pensemos, primeiramente, as relações, os gêneros
relacionados ao Enem numa análise das suas repercussões sobre as esferas
escolar e acadêmica. Teríamos, a priori, a Matriz de Referência e a fundamentação
teórico-metodológica como meta-gêneros que, em certo sentido, antecedem o
próprio gênero. Em seguida, temos as repercussões, os debates, as pesquisas em
torno do exame.
Por outro lado, poder-se-ia analisar a relação entre gêneros sob o ponto de
vista da esfera administrativa/burocrática, focalizando-se os trâmites envolvidos na
implementação, legitimação, execução da prova. Assim, considerar-se-iam as
Portarias Ministeriais que
regulamentam e
tornam
público o
exame;
os
pronunciamentos oficiais; a avaliação do processo como um todo, feito pela
administração.
Várias outras relações poderiam ser estabelecidas, a partir de um foco
específico a ser considerado. De fato, exames em larga escala, que se
estabeleceram sob a tutela do Estado, podem envolver diversas esferas discursivas,
o que torna complexa a própria noção de esfera e de interação entre gêneros. Ao
mesmo tempo, esses exames, para serem amplamente aceitos, precisam atender a
requisitos que garantam sua própria eficiência. Em outros termos, não basta apenas
avaliar, é preciso demonstrar que a avaliação é isonômica, idônea, relevante. Ao que
parece, o quanto mais um exame é socialmente difundido, mais pressões recaem
sobre sua eficiência, conforme discutiremos adiante.
109
3.3 Requisitos para a eficiência do exame
Para ser aceito e mesmo para „funcionar‟ na sociedade, o Enem, ao que nos
parece, precisa atender a alguns requisitos que atestam sua eficiência. A
publicidade, a exigência de objetividade; a busca da credibilidade e isonomia do
processo avaliativo; a busca por ampla adesão de alunos, professores e instituições;
a eficiência didático-pedagógica; a legalidade do processo são alguns desses
requisitos ou mesmo „pressões‟ aos quais estão submetidos exames em larga
escala, de forma geral, e o Enem, de forma específica. Atender a tais pressões é um
pré-requisito para que o gênero funcione adequadamente na sociedade, cumpra
suas funções – declaradas, ocultas ou, ainda, subentendidas.
A seguir discutiremos esses requisitos para a eficiência, a partir,
principalmente, da análise de documentos oficiais veiculados no site do Ministério da
Educação.
3.3.1 Objetividade, credibilidade, isonomia do processo avaliativo
O
artigo
37
da
Constituição
Federal
estabelece
a
legalidade,
a
impessoalidade, a moralidade, publicidade e eficiência como princípios básicos que
devem reger a Administração pública. Segundo Rosa (2004, p. 9-10),
Os princípios básicos da Administração, à luz do art. 37 da
Constituição Federal, são: legalidade, segundo o qual ao
administrador somente é dado realizar o quanto previsto na lei;
impessoalidade, porquanto a atuação deve voltar-se ao atendimento
impessoal, geral, ainda que venha a interessar a pessoas
determinadas, não sendo a atuação atribuída ao agente público,
mas à entidade estatal; moralidade, que encerra a necessidade de
toda a atividade administrativa, bem assim de os atos
administrativos atenderem a um só tempo à lei, à moral, à eqüidade,
110
aos deveres de boa administração, visto que pode haver imoralidade
em ato tido como legal (nem tudo que é legal é honesto);
publicidade, que torna cogente e obrigatória a divulgação e o
fornecimento de informações de todos os atos da Administração,
seja de forma interna ou externa; e, por fim, eficiência, que impõe a
necessidade de adoção, pelo administrador, de critérios técnicos, ou
profissionais, que assegurem o melhor resultado possível, abolindose qualquer forma de atuação amadorística, obrigando também a
entidade a organizar-se de modo eficiente. (grifos do autor).
Tais princípios podem exercer influência sobre exames em larga escala
administrados sob a tutela estatal, a exemplo do Enem, afinal, esse exame deve
atender aos princípios legais vigentes (legalidade), os quais facultaram ao poder
público o direito de gerir avaliações dos sistemas de ensino (Constituição 1988,
LDB/1996); a impessoalidade deve reger todo o processo avaliativo, desde os
trâmites licitatórios que definem quais empresas serão responsáveis pela execução
em si do exame, ao julgamento dos resultados, que não deve priorizar ou beneficiar
nenhum aluno ou nenhuma instituição/empresa específica; os atos administrativos
envolvidos no processo devem obedecer à lei, à moral, à equidade (moralidade);
esses atos, por sua vez, precisam ser divulgados, precisam vir a público – o próprio
exame deve ser normatizado por meio de uma portaria publicada no Diário Oficial da
União (publicidade); por fim, o processo deve atender a normas objetivas, eficientes,
assegurando-se resultados tidos como idôneos (eficiência).
Diretamente atrelados à eficiência estão a objetividade, a credibilidade e a
isonomia do processo. Um exame produzido e aplicado em larga escala deve,
necessariamente, ser objetivo, prático, apresentar critérios objetivos de mensuração
de resultados. Observemos o que afirma o documento intitulado “Proposta à
Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior”
111
(BRASIL, 2009a)16, veiculado pela Assessoria de Comunicação Social (ASC) do
Ministério da Educação, sobre a proposta do que viria a se tornar o “novo Enem”:
O cuidado especial com a elaboração de itens e a composição
dos testes remete a um planejamento estruturado: (i) itens
pautados pela matriz de habilidades e conjunto de conteúdos a elas
associados; (ii) itens elaborados e revisados a partir de critérios
técnicos e pedagógicos estabelecidos com base empírica e na
literatura; e (iii) itens pré-testados, identificando parâmetros
estatísticos de discriminação, de dificuldade e de probabilidade de
acerto ao acaso.
Quanto à escala, será utilizada a Teoria de Resposta ao Item, sob o
modelo logístico de três parâmetros, que permite a comparação de
resultados entre diversos ciclos de avaliação. Propõe-se a
construção de quatro escalas distintas, uma para cada área do
conhecimento. Cada escala será capaz de ordenar os estudantes
conforme seu nível de proficiência, sendo possível às IFES
estabelecer distintas ponderações ou pontos de corte para seleção
de seus candidatos.
Espera-se, assim, que a reestruturação do Enem atenda
plenamente à demanda das IFES por um instrumento de alto poder
preditivo de desempenho futuro, capaz de diferenciar estudantes em
diferentes níveis de proficiência.
O INEP domina a tecnologia de desenvolvimento de testes pela
metodologia da TRI, que se caracteriza por medir habilidades de
cada indivíduo e pela utilização de itens de prova com diferentes
níveis de dificuldade, que permitem identificar o nível de habilidade
dos alunos a partir do conjunto de itens que ele acerta.
O Sistema Nacional de Avaliação da Educação Básica –
SAEB/Prova Brasil, conduzido pelo INEP, já é desenvolvido a partir
da metodologia da Teoria de Resposta ao Item – TRI há mais de
dez anos. Na aplicação da prova para o ensino médio, ainda que
hoje o Saeb foque as disciplinas de língua portuguesa e matemática,
em 1997 a prova já avaliou conteúdos de física, química, biologia,
história e geografia. Portanto, a tecnologia em avaliação permite que
se construa exame que atenda à demanda das IFES, e o Inep
possui absoluto know how para conduzir com sucesso esse
processo.
Aliar a capacidade técnica do Inep, no que diz respeito à
tecnologia educacional para desenvolvimento de exames, à
excelência acadêmico-científica das IFES, é de suma importância
nesse momento. Trata-se não apenas de agregar funcionalidade a
um exame que já se consolidou no País, mas da oportunidade
16
Cf. ANEXO A - Proposta à Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino
Superior
112
histórica para exercer um protagonismo na busca pela resignificação do ensino médio. (grifos nossos).
Nos trechos acima destacados, o MEC discorre sobre a metodologia utilizada
na elaboração dos itens que compõem o Enem e na aferição dos resultados. A todo
momento constrói-se uma imagem de objetividade, cientificidade e eficiência a reger
a avaliação. Afirma-se que “um cuidado especial deverá ser tomado quanto à
complexidade dos itens que comporão os testes”, ou seja, não se trata de um exame
“elaborado de qualquer jeito”, mas elaborado com “cuidados especiais”, técnicos e
científicos, seguindo uma diferenciação na complexidade dos itens, com base em
uma teoria altamente objetiva, precisa – a Teoria de Resposta ao Item. O
planejamento é, segundo o discurso oficial, estruturado e “revisado a partir de
critérios técnicos e pedagógicos”.
Minhoto (2008, p. 72), ao estudar a institucionalização do Enem com foco na
disseminação de uma cultura avaliativa, nota a consolidação de um discurso
moderno, “fundamentado em um código cuja racionalidade é a da medida científica,
da objetividade nos julgamentos e no estabelecimento de padrões, produto na
crença e no poder dessa racionalidade como caminho para alcançar melhor
desenvolvimento social e econômico”. Adiante, afirma a autora que “a avaliação,
conduzida profissionalmente, reconhecida por sua metodologia científica, cumpre a
função de legitimar as ações do estado ante a sociedade”. (p. 77). Observa-se essa
função da avaliação, sempre respaldada pelo método científico, nos trechos
destacados da Proposta à Associação... (BRASIL, 2009) acima, o que nos leva a
afirmar que os exames em larga escala devem ser vistos como gêneros que
precisam ser cientificamente legitimados, dado o poder assumido pela ciência na
atual sociedade.
113
Nota-se que o documento supracitado faz menção não apenas ao Enem,
embora seja esse exame o foco de atenção, mas também ao Saeb, enfatizando que
ambos fazem utilização da TRI. Destacamos que o referido documento menciona a
elaboração e revisão dos itens constitutivos do Enem com base em “critérios
técnicos” e “com base empírica”. Trata-se, pois, de um exame que segue um método
científico, que segue procedimentos empíricos e que, por conseguinte, merece
credibilidade dos dirigentes das IFES. Os itens são, ademais, “pré-testados”, para se
identificar “parâmetros estatísticos de discriminação”. Tais procedimentos –
elaboração, pré-teste, teste, avaliação com base empírica – em muito lembram um
procedimento científico altamente controlado. Nada mais conveniente e convincente
para que se possam construir imagens de credibilidade e, sobretudo, de eficiência –
princípio que deve reger a administração pública.
O discurso científico é incorporado nesse documento elaborado pelo MEC
com vistas a convencer dirigentes de IFES a aderir ao Enem, reformulado em 2009,
evidenciando que diferentes vozes sociais perpassam esse texto. A presença desse
discurso científico leva-nos a ratificar nossa posição segundo a qual exames
padronizados, em larga escala constituem gêneros que precisam e devem ser
legitimados pela cientificidade, de forma muito mais visível que os exames restritos
ao âmbito escolar. Lembremo-nos também que os exames em larga escala atuais,
concebidos sob a tutela estatal, tem como precursores os exames cognitivos
desenvolvidos no início do século XX, segundo observou Zanardini (2008), os quais,
por seu turno, remeteriam às pesquisas científicas realizadas em fins do século XIX
e início do século XX.
De fato, tal pretensão à cientificidade visa, principalmente, demonstrar a
eficiência da administração, a qual “impõe a necessidade de adoção, pelo
114
administrador, de critérios técnicos, ou profissionais, que assegurem o melhor
resultado possível” (ROSA, 2004, p. 9). Observemos que o MEC constrói a imagem
de um Inep „eficiente‟ e experiente, ao afirmar que essa autarquia federal “domina a
tecnologia de desenvolvimento de testes pela metodologia da TRI” (BRASIL, 2009a)
e que “Aliar a capacidade técnica do Inep, (...) à excelência acadêmico-científica
das IFES, é de suma importância nesse momento”. Ademais, o Inep possuiria
“absoluto know how para conduzir com sucesso esse processo” (op. cit., 2009a).
Por meio dessa capacidade técnica seria possível realizar alguns dos
objetivos não declarados, mas que regem exames em larga escala como o Enem,
quais sejam, discriminar alunos com base em níveis de proficiência; e ordenar
estudantes a partir desses níveis. O documento supracitado afirma esperar “que a
reestruturação do Enem atenda plenamente à demanda das IFES por um
instrumento de alto poder preditivo de desempenho futuro, capaz de diferenciar
estudantes em diferentes níveis de proficiência”. O desenvolvimento cognitivo dos
alunos, aferido por meio da mensuração de habilidades e competências, seria,
então, o objeto a ser estudado, pré-testado, testado, classificado e qualificado, a fim
de se fornecer um instrumento confiável, objetivo, de “alto poder preditivo de
desempenho futuro” (BRASIL, 2009a).
Sobre a credibilidade e a isonomia do processo, destacamos que tal princípio
apóia-se no estabelecimento de uma cultura meritocrática, na qual os mais
preparados triunfam. Zanardini (2008), ao analisar a ontologia dos exames em larga
escala, a partir da discussão de seus precedentes, verifica que tal cultura
meritocrática reporta-se ao princípio da liberdade individual na sociedade burguesa.
Na Europa pós-revolução burguesa, sobretudo na França, já se falava em
universalização das séries iniciais do ensino, com vistas a garantir a todos as
115
mesmas oportunidades em potencial – aqueles que „falhassem‟ o fariam por pura
falta de capacidade, já que a todos teriam sido dadas as mesmas oportunidades
para triunfar socialmente. Segundo Zanardini (op. cit., p. 64), a burguesia, com o
objetivo de manter a sociedade desigual procura “encontrar argumentos „válidos‟ que
justificassem tal ordem social. Nesse momento de afirmação hegemônica, “os testes
de aptidão e de capacidade se mostram como ferramentas imprescindíveis ao
projeto hegemônico burguês”. Adiante, faz o autor uma inferência que nos parece
bastante elucidativa:
Inferimos que a ontologia dos testes, em que a diferenciação escolar
por eles proporcionada e pelos mecanismos de avaliação, se
constitui numa necessidade do capitalismo. Logo, podemos afirmar
que há nos testes, sistemas de avaliação, de orientação vocacional
e educacional e todo o caudal de certificações uma intencionalidade
para esses mecanismos de seleção e de controle social com vistas
à manutenção da sociedade capitalista (p. 67).
Para garantir tais propósitos, os exames em larga escala devem manter-se
isentos de vícios, devem parecer „justos‟, cumprindo, ademais, os princípios da
moralidade e da legalidade que devem reger a administração pública. Só assim se
justifica que a todos são dadas as mesmas oportunidades – todos são avaliados por
um único instrumento que não diferencia aleatoriamente aqueles que se submetem
a processos avaliativos. Considerando o Enem, que não apenas visa aferir a
qualidade do ensino, mas também constituir-se como instrumento seletivo para
ingresso no ensino superior brasileiro, a credibilidade, a isonomia do processo sofre
um imperativo ainda maior, de forma a se estabelecer a seguinte verdade: todos
concorreram justamente. Não se pode dizer que uns tenham sido privilegiados em
detrimento de outros. As mesmas oportunidades de ingresso ao ensino superior
foram dadas aos concorrentes, já que todos respondem às mesmas questões, no
116
mesmo tempo delimitado, em um espaço controlado, em uma vigilância constante.
Ainda sobre a Proposta à Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições
Federais de Ensino Superior (BRASIL, 2009a), observemos os dois parágrafos
iniciais do documento:
Os exames de seleção para ingresso no ensino superior no Brasil
(os vestibulares) são um instrumento de estabelecimento de mérito,
para definição daqueles que terão direito a um recurso não
disponível para todos (uma vaga específica em determinado curso
superior). O reconhecimento, por parte da sociedade, de que os
vestibulares são necessários, honestos, justos, imparciais e que
diferenciam estudantes que apresentam conhecimentos, saberes,
competências e habilidades consideradas importantes é a fonte de
sua legitimidade.
Parte-se aqui, portanto, do reconhecimento da necessidade,
importância e legitimidade do vestibular. O que se quer discutir são
potenciais ganhos de um processo unificado de seleção, e a
possibilidade concreta de que essa nova prova única acene para a
reestruturação de currículos no ensino médio.
O documento supramencionado visa convencer dirigentes de IFES a aderir à
proposta do Enem como vestibular unificado.
Para tanto, nas primeiras linhas,
apresentam-se os exames seletivos como instrumentos “necessários, honestos,
justos, imparciais”. As vagas nos cursos superiores, em especial nas universidades
federais, não estariam a todos disponíveis, logo, tais instrumentos justos e idôneos
garantiriam a seleção dos melhores, dos mais bem preparados. O documento não
questiona a necessidade de exames vestibulares. Pelo contrário: afirma sua
imprescindibilidade. A “necessidade, importância e legitimidade do vestibular” são
apresentadas como pressuposto. Não se questionam pressupostos, como bem se
sabe: parte-se deles para que outras questões sejam apresentadas. O que está em
foco, conforme se enuncia, “são os potenciais ganhos de um processo unificado de
seleção”, até então inédito no Brasil. Não obstante, a afirmação da legitimidade, da
necessidade do vestibular como primeiro assunto em foco não deixa de ser curioso.
117
Por meio desse pressuposto, institui-se um discurso conservador, pautado no
mérito, na crença de que todos têm, em potencial, as mesmas oportunidades ao
ensino superior – as vagas do vestibular não são destinadas a „A‟ ou a „B‟, são
destinadas àqueles que, por seu esforço, conseguiram conquistá-las, conseguiram
por meio de um instrumento absolutamente imparcial.
A honestidade, a imparcialidade do Enem certamente seria abalada em 2009,
ano de implantação da proposta de vestibular unificado, quando se descobriu o furto
da prova antes de sua aplicação17. Tal fato levou o Ministro da Educação a proferir o
seguinte pronunciamento em rede nacional (pronunciamento também publicado no
site do MEC):
Boa noite!
Nas primeiras horas da manhã de hoje fomos informados por um
jornal de grande circulação que uma prova impressa do ENEM havia
sido furtada e oferecida para publicação naquele jornal.
Da descrição da jornalista que teve acesso ao material, pudemos
identificar fortes indícios de que o material era autêntico.
Com base nisso, em nome da credibilidade e segurança que o
ENEM possui, decidimos inutilizar os itens da prova e adiar a sua
realização, até que uma nova versão possa ser impressa com
condições reforçadas de segurança.
Felizmente, a descoberta do furto se deu antes da utilização da
prova, o que nos permitiu adiá-la, sem os transtornos que a sua
anulação, após a realização do exame acarretaria.
Os estudantes inscritos no ENEM 2009 serão comunicados
oportunamente pelos meios habituais da nova data e do local das
provas. Enquanto isso, convido os estudantes a aproveitar o tempo
e aprimorar seus estudos. O Ministério da Educação e o INEP
colocaram em seus portais eletrônicos a prova descartada para uso
em simulados.
Estamos trabalhando para minimizar os efeitos do atraso. O
Ministério da Educação já tomou providências no sentido de apurar
eventuais responsabilidades criminais relativas ao vazamento,
requerendo a abertura de inquérito pela Polícia Federal para
punição dos responsáveis.
Muito obrigado! (BRASIL, 2009c, grifos nossos).
17
Em 2009, um caderno de perguntas do Enem foi furtado dentro da gráfica Plural, responsável pela
impressão das provas, posteriormente substituída, em 2010, pela gráfica RR Donelley. As provas
foram adiadas e o fato ganhou grande repercussão na mídia.
118
Embora a prova do Enem 2009 tenha sido furtada, o que revela a falibilidade
do exame, o Ministro apresenta a credibilidade e a segurança do Enem como algo
posto e inquestionável. Ademais, aproveita o fato para, tentando contornar a
situação, pôr à disposição, no site do Inep, para estudos, o exame roubado. Assim,
convida “os estudantes a aproveitar o tempo e aprimorar seus estudos”. O descarte
do exame furtado evidencia a importância da lisura do processo avaliativo como
requisito para a eficiência do exame.
Refletindo sobre os antecedentes dos atuais exames que visam aferir a
qualidade da educação básica, lembrando suas funções relacionadas a manter o
status quo da sociedade burguesa, por meio da justificativa do „fracasso‟ daqueles
que não se esforçariam o suficiente, pode-se entender a importância assumida por
esse requisito. Não se pode questionar a credibilidade de um instrumento imparcial,
„cego e surdo‟ às diferenças. Não se pode questionar a credibilidade de um
instrumento que deve ser visto como eficiente mecanismo técnico-pedagógico,
exercendo seus poderes no efeito retroativo suscitado em escolas e sistemas. Para
além de induzir a elaboração e utilização de um novo currículo, um exame que tende
a substituir o vestibular reforça a cultura avaliativa baseada no mérito. Justifica o
fracasso, aponta erros. Chega-se a uma situação em que se detecta que „o ensino
vai mal‟ com base em indicadores de exames em larga escala. Questionam-se os
professores. Questiona-se o sistema de ensino público (e mesmo o privado).
Questionam-se alunos e pais, pouco interessados na educação de seus filhos.
Pouco se questiona o próprio exame.
É evidente que, em situações como as ocorridas em 2009 (furto de uma prova
do Enem antes de sua aplicação) e em 2010 (problemas e erros gráficos no gabarito
119
de algumas provas)18, o exame passa a ser criticado socialmente. Essas críticas
evidenciam os requisitos para a eficiência aos quais está submetido esse gênero –
objetividade, credibilidade, isonomia e lisura do processo avaliativo. Todavia,
destacamos
que,
quando
determinadas escolas
ou
regiões
obtêm
baixo
desempenho em exames em larga escala, geralmente são responsabilizados o
sistema de ensino (aponta-se a „falha‟ da escola); os professores, tidos como
„despreparados‟; ou mesmo os alunos, pais e comunidade. Não se questiona o
exame em si. Este, dada a sua natureza, deve ser visto como instrumento „neutro‟,
„objetivo‟, „eficiente‟ cumprindo seu papel.
Assim se constitui esse gênero como algo que não pode (ou não deve, a
priori) ser questionado. Parte-se do princípio de sua lisura, de sua eficiência, de sua
validade técnico-pedagógica. Pesquisas acadêmicas analisam concepções teóricas
subjacentes aos itens, discutem a recepção, o efeito retroativo desses exames nas
escolas. Pouco se pensa sobre a ontologia do exame em si. Como uma verdade
inquestionável,
induzem
os
exames
em
larga
escala
a
promover
e
fortalecer/consolidar essa cultura avaliativa.
A continuidade e a estabilidade do processo devem também reger esse
gênero, afinal, como conceder credibilidade a algo inconstante? A título de análise e
exemplificação, vejamos trechos de outro documento também disponível no site do
18
No ano de 2010 foram amplamente divulgados pela imprensa problemas envolvendo o processo de
confecção do Enem. Um dos erros foi na folha de resposta, que trazia cabeçalhos invertidos. No
caderno de perguntas, as questões de 1 a 45 eram de ciências humanas e, de 46 a 90, de ciências
da natureza. Na folha de respostas, o cabeçalho de ciências da natureza aparecia primeiro (na
numeração de 1 a 45). O de ciências humanas vinha depois (na numeração de 46 a 90). Na ocasião,
o Ministério da educação informou que o aluno que se sentisse prejudicado poderia enviar um
requerimento, para que os casos fossem analisados.
120
Ministério da Educação, e que, convenientemente intitula-se “Enem: Um exame
diferente”19 (BRASIL, 2009b):
A trajetória de uma década do Exame já merece um destaque na
história da educação brasileira, tão marcada por instabilidades
administrativas e descontinuidades das políticas públicas. É um
caso de sucesso que deve suscitar reflexões e debates.
Uma explicação plausível para o êxito dessa iniciativa pode ser
encontrada na diferenciação, em voga no discurso atual, entre
„política de Estado‟ e „política de governo‟.
À primeira categoria pertenceriam iniciativas que, em razão do
amplo consenso quanto à sua relevância e interesse público, teriam
continuidade assegurada independentemente de alternâncias de
governo. Já a segunda categoria refere-se a programas que,
identificados com a plataforma político-ideológica de determinado
partido e/ou administração, estariam fadados à descontinuidade em
face de mudanças de governo.
Nesta perspectiva, o Enem pode ser visto como um bom
exemplo de política de Estado. Afinal, já atravessou duas
administrações sem sofrer qualquer solução de continuidade (...).
(grifos nossos).
O trecho acima visa apresentar o Enem à sociedade. Nele, o MEC regozija a
continuidade, a estabilidade do Enem, capaz de atravessar “duas administrações
sem sofrer qualquer solução de continuidade”. Para explicar o sucesso dessa
iniciativa do governo federal, menciona-se um “discurso em voga”, no qual se
distinguem as políticas de Estado das políticas de governo.
Lembremo-nos que, no início deste capítulo, afirmamos, com base em Peroni
(2003), ter a reforma do Estado brasileiro se baseado na teoria da Public Choice.
Segundo Peroni (2003, p. 31),
A Public Choice aponta a diferença entre governo e Estado: o
governo é transitório e, por isso, irresponsável ao provocar inflação
19
Cf. ANEXO B – Enem: Um exame diferente
121
e déficit público a fim de atender à demanda dos eleitores e manter
o estadista no cenário político; já o Estado permanece com as
regras gerais, que dão garantias à liberdade e à propriedade. O
momento constitucional equivale ao Estado, enquanto o pósconstitucional, ao governo.
O discurso da Public choice atravessa o documento emitido pelo MEC. Com
fundamento nesse discurso, aquele Ministério justifica o sucesso do Enem: este
exame seria uma “política de Estado” e não meramente uma “política de governo”.
Nesse sentido, consegue o Enem atravessar duas administrações, sobressaindo-se,
pairando além da “descontinuidade das políticas públicas”. Assim, o Enem é
apresentado como “um caso de sucesso que deve suscitar reflexões e debates”.
De fato, a continuidade, a estabilidade e a permanência emergem não apenas
como resultado de uma política de Estado exitosa, mas como um consenso
estabelecido em torno de exames em larga escala como o Enem. Seu sucesso
depende da ampla adesão da sociedade. Como conseguir ampla adesão se o
exame se mostrar descontínuo? Tal questão se torna mais crítica com a proposta do
vestibular unificado. Como fazer universidades, constitucionalmente autônomas,
aderir a um exame se ele não se mostra contínuo, estável? Para garantir tal
estabilidade, difunde-se a ideia do interesse público – não se mantém algo que não
for do interesse da nação. Difunde-se, sobretudo, pela coerção/consenso, a crença
em sua relevância social, conforme discutiremos a seguir.
3.4 O Enem como gênero do discurso: consenso e coerção
Se adotarmos a concepção gramsciana segundo a qual o Estado, conforme
mencionamos no capítulo precedente, atua pela coerção e pelo consenso, é
possível perceber que o Enem, enquanto gênero do discurso, consiste em um
122
instrumento de coerção revestido de estratégias de consenso. Trata-se de um
mecanismo centralizado nacionalmente com o objetivo principal, dentre outros, de
unificar o currículo, entendido em um sentido amplo, do ensino médio e os
processos seletivos para o ingresso ao ensino superior no país.
Segundo Freitas (2007), a regulação educacional emergente no Brasil revelou
esses três papéis assumidos pelo Estado:
•
A) difusor: generaliza-se um discurso sobre a educação necessária.
•
B) Indutor e mobilizador: tanto de agentes como de processos pedagógicos
(parcerias, mobilização de entes federados, acordos, negociações).
•
C) Criador de „ambiência‟ propícia à disseminação de práticas educativas por
dentro de diversas práticas sociais – criação de um ambiente propício à
flexibilização e de mecanismos de incentivo às iniciativas privadas.
Freitas (op. cit.) ressalta também que “A força do Estado central resultou
menos do seu poder de coerção do que da sua capacidade indutiva, com a qual
mobilizou forças sociais e construiu a hegemonia do seu projeto de governo da
educação básica na federação” (op. cit., p. 149). De fato, ao analisar documentos
oficiais que versam sobre o Enem, percebemos sobretudo a função indutiva do
Estado. A indução, não obstante, consiste em uma forma de coerção revestida de
consenso, por meio da qual dirigentes de Instituições de Ensino Superior (IES),
alunos e sistemas de ensino são levados a aderir ao Enem. Nesse sentido, a
Proposta à associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino
Superior (BRASIL, 2009a), citada anteriormente, é um exemplar desse papel
indutivo, necessário para a legitimação desse gênero em um contexto de reformas e
123
redefinição do papel estatal. A título de exemplificação, observemos o seguinte
trecho do mesmo documento:
A alternativa à descentralização dos processos seria, então, a
unificação da seleção às vagas das IFES por meio de uma única
prova. A racionalização da disputa por essas vagas, de forma a
democratizar a participação nos processos de seleção para vagas
em diferentes regiões do país, é uma responsabilidade social
tanto do Ministério da educação quanto das instituições de
ensino superior, em especial as IFES. Da mesma forma, a
influência dos vestibulares tradicionais nos conteúdos ministrados
no ensino médio também deve ser objeto de reflexão. (grifos
nossos).
O discurso materializado em documentos e pronunciamentos, sejam orais ou
escritos, revela o papel indutor do Estado. Se se parte do pressuposto de que os
vestibulares são necessários, eficientes, imparciais, honestos e justos, embora
exista a exclusão de grande número de candidatos, adota-se, ao mesmo tempo, um
discurso em prol da democratização de oportunidades. A proposta de vestibular
unificado, por meio do Enem, aparece como essa alternativa necessária à
democratização – estudantes de diferentes regiões deste país continental
concorreriam às vagas em diferentes regiões. A democratização ao acesso é
apresentada como „compromisso social‟, uma responsabilidade do Ministério da
Educação, mas não dele somente, como também das Instituições de ensino superior
e, em especial, uma responsabilidade das IFES (“em especial as IFES”). Por meio
da estrutura comparativa “tanto... quanto”, o MEC (re)distribui responsabilidades. Ao
mesmo tempo, propõe um destaque às Instituições Federais de Ensino Superior,
induzindo-as a aderir ao Enem.
Para conseguir a adesão de alunos, professores e setores sociais, o Estado
não só induz, mas também apresenta a adesão em si como algo certo, algo
124
inquestionável. Observemos trechos do documento intitulado “Enem: um exame
diferente” (BRASIL, 2009b):
Histórico
Na sua 1ª edição, em 1998, o Enem contou com um número
modesto de 157,2 mil inscritos e de 115,6 participantes. Na 4ª
edição, em 2001, já alcançava a marca expressiva de 1,6 milhão
de inscritos e de 1,2 milhão de participantes.
(...)
A popularização definitiva do Enem veio em 2004, quando o
Ministério da Educação instituiu o Programa Universidade para
Todos (ProUni20) e vinculou a concessão de bolsas em IES privadas
à nota obtida no Exame. No ano seguinte, o Enem alcançava a
marca histórica de três milhões de inscritos e 2,2 milhões de
participantes. Em 2006, o Enem estabeleceu novo recorde, com
3,7 milhões de inscritos e 2,8 milhões de participantes (grifos
nossos).
Notória é a gradação estabelecida por meio das expressões “um número
modesto”, “marca expressiva”, “marca histórica e “novo recorde”. Por meio dessa
gradação, atribui-se importância ao número de estudantes que aderiram ao Enem,
apresentando tal fato como resultado de uma política que logra êxitos. Mostrar a
crescente adesão de alunos e instituições de ensino superior a um exame evidencia
a eficiência administrativa – estabelece-se um discurso que atribui, indiretamente,
eficiência à administração pública.
20
“O Prouni - Programa Universidade para Todos tem como finalidade a concessão de bolsas de
estudo integrais e parciais em cursos de graduação e sequenciais de formação específica, em
instituições privadas de educação superior. Criado pelo Governo Federal em 2004 e institucionalizado
pela Lei nº 11.096, em 13 de janeiro de 2005, oferece, em contrapartida, isenção de alguns tributos
àquelas instituições de ensino que aderem ao Programa.”
Informação disponível em:
<http://prouniportal.mec.gov.br/index.php?option=com_content&view=article&id=124&Itemid=140>
Acesso: Ago. 2011.
125
Outro importante papel assumido pelo Estado é, certamente, o de difusor, por
meio do qual se difunde um discurso sobre a „educação necessária‟ – discurso que
tenderá a ser aceito como verdadeiro e orientará a elaboração de currículos e
materiais didáticos, conforme discutiremos adiante.
3.4.1 A difusão de ideias sobre a „educação necessária‟: estratégia para o
consenso
Se, por um lado, os exames em larga escala como o Enem devem ser
apresentados como instrumentos eficientes no que concerne ao processo avaliativo
em si (execução, divulgação de resultados, idoneidade do processo etc), por outro
lado, devem, ademais, representar um importante e eficiente instrumento didáticopedagógico, capaz de não apenas aferir a qualidade do ensino, mas também de
reestruturar currículos, disseminar novos objetos a serem ensinados, de intervir
retroativamente na educação básica.
Não basta apenas propor um exame que
avalie habilidades e competências. É preciso disseminar a ideia de que é importante
avaliar tais habilidades e competências. Não é suficiente afirmar que tais objetos e
tais conteúdos ou competências serão avaliados. Deve-se fazer crer na importância
de avaliá-los, deve-se difundir a ideia de que é importante que os estudantes
detenham certos conhecimentos vistos como imprescindíveis para o mundo
globalizado. Nesse sentido, observemos o que afirma a fundamentação teóricometodológica do Enem (BRASIL, 2005, p. 7):
O modelo de avaliação do Enem foi desenvolvido com ênfase na
aferição das estruturas mentais com as quais construímos
continuamente o conhecimento e não apenas na memória, que,
importantíssima na constituição dessas estruturas, sozinha não
consegue fazer-nos capazes de compreender o mundo em que
vivemos. Há uma dinâmica social que nos desafia, apresentando
126
novos problemas, questiona a adequação de nossas antigas
soluções e exige um posicionamento rápido e adequado ao cenário
de transformações imposto pelas mudanças sociais, econômicas e
tecnológicas com as quais nos deparamos nas últimas décadas.
Este cenário permeia todas as esferas de nossa vida pessoal,
mobilizando continuamente nossa reflexão acerca dos valores,
atitudes e conhecimentos que pautam a vida em sociedade.
Subjaz ao trecho destacado a ideia de um mundo em transformação, uma
sociedade flexível, em mudança, na qual não se constrói mais o conhecimento
apenas com base na memória. Novas formas de compreender o mundo são
impostas, exigindo “posicionamento rápido” aos desafios apresentados.
O
documento difunde a crença de que não mais adianta, portanto, ensinar os alunos
com base na memorização. É preciso desenvolver habilidades e competências; é
preciso aferir “estruturas mentais com as quais construímos continuamente o
conhecimento”.
Tal concepção de aprendizagem/avaliação não foi elaborada pelo Enem. Este
exame reflete uma tendência desenvolvida ao longo dos anos 80 e 90 do século XX,
baseada no discurso da sociedade do conhecimento, que exigiria um novo tipo de
homem,
apto
a
enfrentar
as
incertezas
e
instabilidades decorrentes da
reestruturação produtiva. Freitas (2007) observa que, no SAEB (sistema de
avaliação que antecede o Enem), “o desempenho dos alunos é medido em termos
de aprendizagem de conteúdos e de aquisição de habilidades e competências” (p.
107), considerando que habilidades e competências são operações mentais. Tratase, segundo a autora (op. cit., p. 108), “de uma avaliação cognitiva”.
Peroni (2003, p. 104) assinala que, de forma geral, os exames em larga
escala desenvolvidos no Brasil tendem a seguir as orientações contidas nos PCN.
Os parâmetros curriculares, por sua vez, sofreram forte influência, em sua
elaboração, de organismos internacionais, como a CEPAL, que propôs, no
127
documento Educação e conhecimento: eixo de transformação produtiva com
equidade (1992), um novo paradigma de conhecimento, baseado na ação (saber
fazer), na utilização (saber usar) e na interação (saber comunicar). A ação e a
utilização, sobretudo, parecem subjacentes ao Enem, mais especificamente na
proposta de resolução de situações-problema.
De forma geral, podemos perceber uma tendência delineada nas duas ou três
últimas décadas, que tem enfatizado o conhecimento voltado para a ação, utilização
e interação; a flexibilidade do conhecimento; a interdisciplinaridade, isto é, tem
enfatizado a formação por competências. Trata-se da construção de uma hegemonia
não apenas sobre a ideia de que „avaliar é preciso‟, mas também em torno do que
se deve avaliar. O Enem tem seguido essa tendência, o que nos leva a afirmar que
tal tendência torna-se, de fato, uma questão de estilo, nos termos bakhtinianos. Ora,
se se pode falar, conforme o teórico russo, em estilo do gênero e estilo do autor,
diríamos que estamos diante de um estilo do gênero.
Essa tendência, aqui compreendida como uma questão de estilo, advém de
estudos científicos (construtivismo, psicologia cognitiva, dentre outros). O Enem
assume um olhar responsivo às propostas de reformas dos currículos e do ensino,
de forma geral, para ser visto como eficiente instrumento técnico-pedagógico. Essa
eficiência é estruturada em três principais sentidos: a distinção, isto é, o exame é
apresentado como „diferente‟, „inovador‟; a relevância dos pressupostos teóricometodológicos; a capacidade de reestruturar e intervir no ensino. Analisemos cada
um desses aspectos.
3.4.1.1 Distinção do exame
128
Ser um eficiente instrumento pedagógico, capaz de reestruturar currículos,
intervindo no ensino, pressupõe a difusão de uma crença pautada na distinção
desse exame, isto é, investe-se no discurso que separa, antagoniza o „velho‟,
„tradicional‟, „retrógrado‟ e „repetitivo‟, baseado em memorização e acúmulo de
informação versus o „novo‟, „diferente‟ e „flexível‟. Assim, se a escola busca
instrumentos capazes de melhorar o ensino, capazes de propor uma avaliação
menos „punitiva‟, e se a avaliação é vista como excludente e autoritária, procura-se,
sobretudo, uma „nova avaliação‟ que se apresente como „mais democrática‟.
Segundo Freitas (2007, p. 113), a introdução de descritores de natureza cognitiva,
em exames em larga escala, leva a crer que se está substituindo a cobrança de
produtos, decorrentes de memorizações excessivas, por cobranças de conteúdos na
perspectiva de competências e habilidades. Institui-se, dessa forma, o discurso do
„novo‟, da avaliação democrática, que, aparentemente, não exclui tanto e que
„prepara para a vida‟.
O Enem, por conseguinte, acaba sendo, frequentemente, apresentado pelo
governo federal como um „exame diferente‟. Observemos de que forma isso
acontece no documento Enem: Um exame diferente (BRASIL, 2009b):
Diferentemente dos modelos e processos avaliativos tradicionais,
a prova do Enem é interdisciplinar e contextualizada. Enquanto os
vestibulares promovem uma excessiva valorização da memória
e dos conteúdos em si, o Enem coloca o estudante diante de
situações-problema e pede que mais do que saber conceitos, ele
saiba aplicá-los.
O Enem não mede a capacidade do estudante de assimilar e
acumular informações, e sim o incentiva a aprender a pensar, a
refletir e a “saber como fazer”. Valoriza, portanto, a autonomia do
jovem na hora de fazer escolhas e tomar decisões. (destaques, em
negrito, nossos).
129
Existe uma oposição no trecho acima destacado entre “processos avaliativos
tradicionais”, que promoveriam “excessiva valorização da memória e dos conteúdos
em si”, medindo, portanto, “a capacidade do estudante de assimilar e acumular
informações”, e o Enem, interdisciplinar, contextualizado, com ênfase não na
memorização, mas na aplicação do conhecimento, incentivando o estudante a
aprender a pensar, a refletir, a “saber como fazer”.
Essa oposição aparece de forma clara e recorrente na fundamentação
Teórico-Metodológica do Enem (BRASIL, 2005):
Até pouco tempo, a grande questão escolar era a aprendizagem –
exclusiva ou preferencial – de conceitos. Estávamos dominados
pela visão de que conhecer é acumular conceitos; ser
inteligente implicava articular logicamente grandes ideias, estar
informado sobre grandes conhecimentos, enfim, adquirir como
discurso questões presentes principalmente em textos eruditos e
importantes. Nesses termos, dar aula podia ser para muitos
professores um exercício intelectual muito interessante. O problema
é que muitos alunos não conseguem aprender nesse contexto,
nem se sentem estimulados a pensar, pois sua participação
nesse tipo de aula não é tão ativa quanto poderia ser.
Hoje, essa forma de competência continua sendo valorizada,
principalmente, no meio universitário. Mas, com todas as
transformações tecnológicas, sociais e culturais, uma questão
prática, relacional, começa impor-se com grande evidência.
Temos muitos problemas a resolver, muitas decisões a tomar,
muitos procedimentos a aprender. Isso não significa, obviamente,
que dominar conceitos deixou de ser importante.
Esse tipo de aula, insisto, continua tendo um lugar, mas cada vez
mais torna-se necessário também o domínio de um conteúdo
chamado de “procedimental”, ou seja, da ordem do “saber
como fazer”. Vivemos em uma sociedade cada vez mais
tecnológica, em que o problema nem sempre está na falta de
informações, pois o computador tem, cada vez mais, o poder de
processá-las, guardá-las ou atualizá-las. A questão está em
encontrar, interpretar essas informações, na busca da solução
de nossos problemas ou daquilo que temos vontade de saber.
(INEP, 2005, p. 17, destaques, em negrito, nossos).
No trecho citado, a argumentação sobre a necessidade de uma reforma no
ensino, que deveria acompanhar o fluxo de transformações da sociedade, constrói-
130
se com base em uma oposição entre o tempo passado – quando a aprendizagem de
conceitos era suficiente – e os dias atuais, permeados por “transformações
tecnológicas, sociais e culturais”. Assim, embora exista uma série de ressalvas
através das quais se afirma que a forma de ensinar de outrora ainda é valida (“Hoje,
essa forma de competência continua sendo valorizada, principalmente, no meio
universitário”; “Esse tipo de aula, insisto, continua tendo um lugar”), prevalece a
afirmativa de que o mundo em transformação requer novas formas de
aprendizagem, que devem ir muito além da simples acumulação de conceitos.
Conforme o trecho acima destacado, muitos alunos não conseguiriam aprender
nesse contexto e nem se sentiriam estimulados a pensar. Adiante, seguindo a
mesma linha argumentativa, fundamentada em uma oposição temporal – outrora:
aprendizagem baseada em conceitos e memorização; dias atuais: aprendizagem
dinâmica, em transformação constante – há uma associação entre essa forma
“retrógrada” de ensinar e a própria indisciplina em sala de aula:
No tempo em que a escola – mesmo as públicas – não era para
todos, manter a disciplina, como problema de gestão de sala de
aula, talvez não tivesse a dimensão que tem hoje. Rigor, expulsão
(ou sua ameaça), castigos físicos, cumplicidade da família com as
estratégias usadas pelo professor garantiam, talvez de forma mais
imediata e eficaz, que os alunos se mantivessem quietos enquanto o
professor dava as lições. Hoje, que a escola fundamental é
obrigatória para todas as crianças, manter a classe interessada nas
propostas do professor concorre com e, muitas vezes, perde para
tudo o que em contraposição os alunos insistem em fazer. Não por
acaso, sabe-se que frequentemente os professores gastam mais da
metade do tempo da aula tentando manter um nível de disciplina
favorável à aprendizagem. Ou seja, ensinar conceitos ou cálculos
concorre com conversas paralelas, risadas e brincadeiras. O
professor, além do compromisso de ensinar fatos e conceitos, deve
saber manter a disciplina na sala de aula, envolver os alunos e
conseguir que sejam cooperativos e façam as tarefas. (BRASIL, op.
cit., p. 17, grifos nossos).
131
O documento acima citado associa indiretamente a forma tradicional como o
ensino está organizado – baseado na transmissão de conceitos – a muitos dos
problemas de indisciplina na escola, já que, se a sociedade era diferente, se a
escola não era para todos, essa sociedade estruturada de outra maneira requeria
formas tradicionais de ensino. Hoje, com todas as transformações em curso, seria
necessário repensar o ensino, por uma questão de manutenção do próprio sistema
escolar, assolado por recorrentes problemas indisciplinares.
Concordamos
que
uma
sociedade
em
transformação
requer
novas
abordagens relativas ao ensino-aprendizagem. Todavia, acreditamos que não se
devem traçar fronteiras tão delimitadas entre o „tradicional‟, sempre constituído por
uma visão negativa, e o „novo‟, positivo e desejável. Afinal, como bem destacou
Signorini (2007, p. 8), “onde se costumam traçar fronteiras nítidas e firmes entre a
inovação e o conservadorismo, ou entre o inovador e o tradicional, tem-se de fato
bordas fluidas e dinâmicas, ou seja, zonas de contínuo embaralhamento do que se
apresenta como separado e excludente”. Parece-nos que associar sempre o „novo‟
ao que é „bom‟ e „desejável‟, ao que deve ser urgentemente aprendido, assimilado
por professores e alunos contribui para a exclusão e estigmatização de docentes,
discentes e sistemas de ensino.
Exames em larga escola, como o Enem, parecem ser constituídos com base
nessa oposição entre „velhas práticas educativas e retrógradas‟ e as „novas formas
de ensino-aprendizagem‟, que devem urgentemente ser assimiladas. Aqueles que
não as assimilam com a máxima brevidade são classificados como „atrasados‟ e
mesmo „incompetentes‟. Pensando em uma escala mundial, essa parece ter sido a
tônica que fundamentou a emergência e consolidação de exames em larga escala,
os quais, fundamentando o estabelecimento de rankings de classificação,
132
estigmatizam aqueles que estariam nas últimas classificações, isto é, os „atrasados‟,
os que não se adéquam às novas tendências globais, amplamente divulgadas ao
longo da década de 90 do século XX.
Em escala nacional, chama-nos a atenção a constante referência, feita
sobretudo pela mídia, aos resultados das notas obtidas por estudantes no Enem,
sempre com destaque para as regiões mais pobres do Brasil, como o Nordeste,
classificada como a „mais atrasada‟, a região onde os alunos obtêm os piores
desempenhos. Mais que promover a melhoria da qualidade do ensino, mais que
reformular retroativamente o ensino médio, como tanto enfatizam os documentos
oficiais, exames em larga escala, às vezes, tão somente apontam falhas,
classificando e qualificando negativamente estados, regiões, sistemas de ensino e
estudantes. De fato, conforme argumenta Zanardini (2008), esta seria a ontologia
dos exames em larga escala: avaliar para apontar erros e avaliar para aperfeiçoar
não o sistema educacional, mas a própria avaliação.
Chama-nos, ademais, a atenção o fato de, a partir de 2009, ter sido o Enem
proposto como alternativa aos vestibulares21, de forma unificada. Esse exame foi, a
partir de então, apresentado como instrumento avaliativo „distinto‟, „diferente‟ e mais
democrático. Ora, se pensarmos que, para ingressar no ensino superior, os alunos
continuam tendo que responder a um exame, em um tempo pré-determinado, tendo
que preencher um gabarito, produzir uma redação, obedecendo a certas regras de
conduta em um verdadeiro ritual, não assistimos, de fato, a uma mudança. Todavia,
é interessante observar como, de forma geral, tanto o governo federal como a
21
Destacamos, porém, que desde 1998, ano de instituição do exame, o Enem tem pretensões
seletivas, uma vez que, segundo a Portaria MEC N° 438, de 28 de maio de 1998 (BRASIL, 1998b),
um dos objetivos do Enem seria “fornecer subsídios às diferentes modalidades de acesso à educação
superior”.
133
população e os meios midiáticos não se referem ao Enem como vestibular, mas
como „Enem‟. Em outras palavras, não noticiam os jornais, não diz o Ministro da
Educação, não dizem os jovens que farão um vestibular, afirmam todos que será
realizado o „Enem‟. É possível encontrar algum candidato que, interrogado se fez
vestibular em 2010, responda, “Não. Fiz o Enem”. Este exame, portanto, parece
estar sendo socialmente representado como „diferenciado‟ – daí decorre nosso
interesse em estudá-lo como um gênero em um contexto de reformas.
Para que o Enem seja apresentado como eficiente instrumento pedagógico,
investe-se, ademais, em um discurso que reflete o poder disciplinar, observemos
outro trecho do mesmo documento supracitado (“Enem: Um exame diferente”):
Além disso, desde a sua primeira aplicação tem havido um esforço
permanente para aprimorar a estrutura conceitual e a
metodologia de avaliação utilizada. Graças a esse tratamento
como política de estado, a legitimidade e credibilidade do Exame
também foram fortalecidas ao longo do tempo.
Hoje, o Enem é um patrimônio da sociedade brasileira e tem o seu
valor reconhecido pela comunidade educacional. Como órgão
responsável pelo desenvolvimento e coordenação do Exame, o Inep
se empenhou desde o início em conquistar o apoio dos sistemas de
ensino, das instituições de ensino superior e da comunidade de
especialistas e educadores.
Os pressupostos teórico-metodológicos do Enem, fundamentados
na LDB e nas diretrizes e parâmetros curriculares nacionais, foram
explicitados e divulgados junto à comunidade educacional. A
proposta recebeu contribuições de especialistas em avaliação e
currículo, pedagogos e profissionais do ensino com larga
experiência em sala de aula. (BRASIL, 2009b, grifos nossos).
Segundo a citação, o Enem estaria sendo continuamente aprimorado, tanto
no que concerne à estrutura conceitual quanto à metodologia utilizada. Esse
aprimoramento ocorre com o apoio de poderes disciplinares, representados por
“especialistas em avaliação e currículo, pedagogos e profissionais do ensino com
larga experiência em sala de aula”. Nesse sentido, para que o Enem seja legitimado
134
como eficiente instrumento pedagógico, há a necessidade de fazer referência à
participação daqueles que, de acordo com o Inep, são os guardiões do
conhecimento sobre ensino-aprendizagem: especialistas, pedagogos, profissionais
do ensino “com larga experiência em sala de aula”.
Essa observação leva-nos a afirmar que exames como o Enem precisam ser
legitimados por especialistas e pedagogos – esta é uma peculiaridade do gênero: os
conteúdos tematizados, objeto de avaliação, precisam receber o aval de
especialistas. Em outros termos, para se constituir como eficiente instrumento
pedagógico, exames em larga escala precisam atestar a relevância dos conteúdos
ou habilidades/competências e dos pressupostos teórico-metodológicos, conforme
discutiremos a seguir.
3.4.1.2
Relevância
dos
conteúdos
ou
habilidades/competências
e
pressupostos teórico-metodológicos
Segundo Sousa (2009), o SAEB e os PCN tendem a ser referência não
somente para a elaboração de exames nacionais, como o Enem, mas também de
exames estaduais e municipais, o que evidencia a construção de uma ideia
hegemônica, tanto sobre a necessidade de avaliar para monitorar a qualidade
quanto sobre o quê avaliar. A autora (op. cit.) observa grande similaridade nas
propostas avaliativas no nível dos Estados, “os quais tendem a assumir na
elaboração dos itens das provas os Parâmetros Curriculares Nacionais e a matriz de
referência do SAEB” (p. 36).
Ao que parece, nenhum exame em larga escala legitima-se sem que seus
conteúdos ou habilidades/competências e pressupostos teórico-metodológicos
135
sejam concebidos como relevantes – daí decorre a referência, observada no tópico
precedente, à atuação de pedagogos e especialistas, que precisam legitimar esses
conteúdos e pressupostos. Ao mesmo tempo, tais conteúdos são, constantemente,
associados à „inovação‟, estabelecendo-se uma distinção entre o „novo‟ e o
„retrógrado‟, que precisaria ser urgentemente reformulado, conforme demonstramos
acima. Assim, a interdisciplinaridade, a ênfase no „saber como fazer‟ por meio da
resolução de situações-problema, a necessidade de desenvolver competências e
habilidades e não apenas decorar e assimilar conceitos são apresentados como
pressupostos teórico-metodológicos relevantes, que precisam ser aprendidos,
adotados por escolas, para que essas se adéquem aos desafios impostos pela
sociedade altamente informatizada.
Para atestar a relevância desses conteúdos afirma-se, no documento Enem:
um exame diferente (BRASIL, 2009b), que “O desenvolvimento do Enem, nos
últimos dez anos, acompanhou as profundas mudanças legais, organizacionais e
curriculares que atingiram todas as etapas e modalidades de educação, da préescola à educação superior”. Ou seja: o exame é, constantemente, apresentado
como instrumento pedagógico eficiente e atual, que acompanha as mudanças da
sociedade, e, portanto, precisa ser assimilado pela escola, pelos sistemas de ensino,
pelos professores e pelos alunos. Observemos, a título de exemplificação, a nota
emitida pelo Comitê de Governança, a propósito da matriz de referência do Enem
2009:
136
Ilustração 2 - Nota emitida pelo Comitê de Governança sobre a matriz de referência do Enem
2009
137
No segundo parágrafo do documento reproduzido, afirma-se consubstanciar a
matriz de referência do Enem “evolução importante na forma de avaliação dos
estudantes”. Ademais, afirma-se que essa matriz “se pauta por habilidades
consideradas essenciais aos estudantes” que concluem o ensino médio. De forma
reiterada, em documentos oficiais e em pronunciamentos de autoridades envolvidas
com o Enem, tem-se a afirmativa da relevância, da importância dos pressupostos
que embasam esse exame nacional. É possível que essa insistência na qualidade,
na essencialidade desses pressupostos não seja percebida diretamente por aqueles
que são cotidianamente interpelados por pronunciamentos e documentos dos mais
diversos. Todavia, acreditamos que, aos poucos, constrói-se uma ideia hegemônica
segundo a qual o Enem precisa ser assimilado, segundo a qual as escolas precisam
adequar-se a uma nova realidade.
Essa nova realidade pressupõe a melhoria do sistema educacional. Tal
melhoria, por sua vez, é diretamente associada ao próprio aperfeiçoamento dos
instrumentos que aferem os indicativos de qualidade de escolas e sistemas de
ensino. No terceiro parágrafo do documento acima reproduzido integralmente,
afirma-se que, “Estabelecida a Matriz de Referência, os objetos de conhecimento
associados poderão ser aprimorados, nas edições seguintes do ENEM, de modo a
consagrar o papel do Exame de orientar a melhoria do Ensino Médio em harmonia
com os processos de seleção para o acesso à Educação Superior”. Essa citação
ratifica a assertiva apresentada por Zanardini (2008), segundo a qual um dos
objetivos de exames em larga escala, como o Enem, é o autoaperfeiçoamento, isto
é: avalia-se para que se possam aperfeiçoar os próprios instrumentos avaliativos.
Aperfeiçoando-se, garante-se (ou se espera garantir) a lisura do processo, a
138
racionalidade exigida para a segura qualificação e classificação de sujeitos e
escolas.
Assim, até o conhecimento, algo naturalmente subjetivo, difícil de ser
mensurado, precisa ser objetivamente aferido, como se constituísse uma grandeza,
como peso ou altura. Observemos, por exemplo, a seguinte informação, constante
na seção “perguntas frequentes”, no site do Ministério da Educação, a respeito do
Enem22:
7. Em linhas gerais, como funciona a TRI?
A TRI possibilita a comparabilidade entre provas diferentes. Existem
instrumentos para medir peso, altura, distância. Mas não há um
instrumento que meça, de forma direta, o conhecimento. Então, para
medir o conhecimento de uma pessoa, há que fazê-lo de forma
indireta – e essa forma é a avaliação. Com a TRI, o que se pretende
é criar uma unidade de medida para o conhecimento.
Se você medir a altura de uma pessoa com uma trena ou com uma
fita métrica, ela terá a mesma altura. Assim deve ser com o
conhecimento: qualquer que seja a prova, uma vez que o
participante carrega o mesmo conhecimento, ele deve obter a
mesma nota. E a TRI busca fazer isso.
É por isso que as questões são calibradas em pré-teste, para que a
prova seja tecnicamente sólida. Tal como na balança: se ela mostra
peso menor que o seu peso real, é porque está desajustada. O peso
independe da balança da mesma forma que o conhecimento
independe da prova.
O trecho destacado permite-nos compreender que o Enem constitui um
exemplar de um gênero cuja eficiência recai substancialmente na objetividade e
relevância dos pressupostos teórico-metodológicos, racionalidade e precisão.
Cumprir tais requisitos constitui uma exigência para a assimilação desses exames
pelas escolas, ao mesmo tempo, constitui um indicador de êxito dessa política de
avaliação. Afinal, não basta ter um eficiente instrumento de aferição do
22
Disponível em <http://www.enem.inep.gov.br/faq.php>. Acesso: Dez. 2010.
139
conhecimento, de aferição da qualidade de sistemas de ensino se não houver
adesão de alunos e instituições a esse exame.
Essa assimilação é um dos grandes objetivos que constitui exames como o
Enem, fundamentado não na atuação direta da União na oferta do ensino médio,
mas na indução de mudanças, difusão de crenças, no „controle à distância‟ e a
posteriori, conforme discutiremos adiante.
3.4.1.3 Capacidade de reestruturar e intervir no ensino
O objetivo de reformar ou reestruturar o ensino médio é explicitamente
enunciado em diversos documentos oficiais que versam sobre o Enem. Vejamos23:
(I) O Enem tem, ainda, papel fundamental na implementação da
Reforma do Ensino Médio, ao apresentar, nos itens da prova, os
conceitos
de
situação-problema,
interdisciplinaridade
e
contextualização, que são, ainda, mal compreendidos e pouco
habituais na comunidade escolar. A prova do Enem, ao entrar na
escola, possibilita a discussão entre professores e alunos dessa
nova concepção de ensino preconizada pela LDB, pelos Parâmetros
Curriculares Nacionais e pela Reforma do Ensino Médio,
norteadores da cocepção do exame.
(BRASIL, 2005, p. 8).
(II) Ao completar dez anos, o Enem ocupa lugar de destaque na
agenda educacional brasileira pela sua contribuição para
reorganização e reforma do currículo do ensino médio,
democratização do acesso ao ensino superior e, em última
instância, melhoria da qualidade da educação básica.
(BRASIL, 2009b).
(III) Parte-se aqui, portanto, do reconhecimento da necessidade,
importância e legitimidade do vestibular. O que se quer dizcutir são
os potenciais ganhos de um processo unificado de seleção, e a
possibilidade concreta dee que essa nova prova única acene
para a reestruturação de currículos no ensino médio.
(BRASIL, 2009a).
23
Todos os destaques, nessas quatro citações, são nossos.
140
(IV) O Comitê de Governança do novo ENEM, pelas representações
do CONSED e do MEC reunidas em 14 de maio de 2009, aprovou
os seguintes princípios:
1. Que o novo ENEM, no formato proposto pelo MEC/INEP, é
importante instrumento de reestruturação do Ensino Médio; (...)
(BRASIL, 2009d).
Ao que parece, reestruturar ou reformar os currículos da educação escolar no
país é um objetivo subjacente à própria natureza de exames em larga escala,
desenvolvidos, sobretudo, ao longo dos anos 1990 – quer se trate de exames
geridos na esfera federal quer nos estados nacionais, afinal, a toda proposta de
avaliação enuncia-se o objetivo de monitorar a qualidade do ensino e, ao mesmo
tempo, definir o que é a qualidade almejada. A ontologia desses exames, por
conseguinte, vincular-se-ia a esse objetivo. Essa é uma das características que nos
levam a defender que o Enem constitui um exemplar de um gênero em um contexto
de reformas e redefinição do papel do Estado frente aos serviços públicos prestados
à população. Uma nova situação sócio-histórica requer gêneros que traduzam os
objetivos, as necessidades de uma esfera. Exames, padronizados, em larga escala
parecem ter assumido a função de monitorar, definir o que é a qualidade do ensino,
promover reformas na educação, nessa situação sócio-histórica peculiar que se
impôs com a reforma do aparelho estatal. Esses exames assumiriam tal função de
forma retroativa, pautando-se no pressuposto da atuação reguladora do Estado.
Destacamos, porém, que a maioria dos exames parece ter um efeito
retroativo fraco sobre o ensino, sobre a reestruturação de currículos. De fato, os
usos dos indicadores de avaliações são esparsos nas comunidades escolares,
conforme observam Ribeiro et al. (2005).
Ao se debruçarem sobre os usos sociais desses indicadores, os autores (op.
cit., p. 3) constataram pouco efeito nas escolas, no que se refere mais
141
especificamente à escola pública. Interrogando sobre as possíveis causas desse
efeito esparso, as autoras concluem o seguinte:
É provável que esses indicadores não interessem às comunidades
escolares porque respondem a perguntas que não foram formuladas
por essas mesmas comunidades. Pesquisadores e tecnocratas não
observam e não interrogam a realidade escolar da mesma
perspectiva que as pessoas que a vivem no cotidiano.
Os exames de seleção ao ensino superior, por outro lado, parecem ter um
efeito retorativo mais acentuado, considerando o ensino médio em específico. Para
Araújo (2010, p. 111), os vestibulares são as grandes influências do ensino médio,
tendo um grau acentuado de efeito retroativo nesse nível de ensino. A autora, para
corroborar sua afirmativa, cita o parecer do Conselho Nacional de Educação sobre a
Reforma do Ensino Médio (Parecer 15/98), segundo o qual “o exame de ingresso no
ensino superior tem sido a referência da organização curricular do ensino médio”.
Araújo destaca, ademais, que “os sucessivos documentos norteadores e
parametrizadores do ensino médio não tiveram junto aos professores desse nível de
ensino a repercussão que os PCN tiveram junto aos professores do ensino
fundamental” (p. 111-112), uma vez que, no ensino médio, o que parece ser
determinante são os processos seletivos de ingresso no ensino superior.
Nesse sentido, a proposta de vestibular unificado, por meio da nota obtida no
Enem, seria estratégica para a implementação e consolidação de uma reforma no
ensino. É interessante observar que a Fundamentação teórica do Enem reconhece
indiretamente essa pouca influência que documentos oficiais parametrizadores da
educação tiveram sobre o ensino médio. Na Fundamentação (BRASIL, 2005, p. 8),
afirma-se que “A prova do Enem, ao entrar na escola, possibilita a discussão entre
professores e alunos dessa nova concepção de ensino preconizada pela LDB, pelos
142
Parâmetros Curriculares Nacionais e pela Reforma do Ensino Médio, norteadores da
cocepção do exame”. Logo, a discussão em torno do ensino preconizado pela LDB,
PCN e reforma do Ensino Médio seria mediada pelo Enem, mediada por um exame
que pretende servir como instrumento seletivo para o ingresso no ensino superior.
O Enem, por conseguinte, pode potencializar o efeito retroativo que parece
fundamentar exames em larga escala, se considerarmos o objetivo destes de
reestruturar, melhorar a qualidade do ensino, segundo enunciado em documentos
oficiais. Essa indução é uma ação típica dos papeis assumidos pelo Estadoavaliador, conforme discutimos anteriormente, e parece pautar-se, sobretudo em se
tratando do Enem, em uma retórica pautada no que seria „moderno‟ e „inovador‟ para
o ensino, segundo discutimos anteriormente. Induz-se, pois, a uma reforma no
ensino com base na associação de práticas escolares consolidadas ao que é „velho‟,
„retrógrado‟ e „ultrapassado‟. Aprender conteúdo/conceitos seria, segundo essa
lógica, algo que precisaria ser superado, frente aos desafios do mundo
contemporâneo. O Enem, trazendo situações-problema, questões interdisciplinares,
aferindo habilidades e competências, estaria, segundo o discurso oficial, mais
concatenado aos novos desafios de um mundo em transformação.
Lembramos que, para Freitas (2007), o Estado avaliador atua principalmente
pela difusão e indução. Na promoção do Enem, o Estado induz a reformas no ensino
utilizando-se de um instrumento (exame) e difunde (papel difusor) crenças sobre o
que seria a „educação necessária‟, o que seria importante ensinar, aprender, avaliar
e como avaliar.
Temos, paulatinamente, a construção de ideias hegemônicas sobre
educação, de signos da cultura hegemônica, os quais ocultam outras vozes e outros
valores. Bakhtin (2009) assinala que a refração do signo ideológico é determinada
143
pelo “confronto de interesses sociais nos limites de uma só e mesma comunidade
semiótica, ou seja: a luta de classes” (p. 47, destaque do autor). Classes sociais
distintas servem-se de uma mesma língua. “Consequentemente, em todo signo
ideológico confrontam-se índices de valor contraditórios” (p. 47, destaque do autor),
tornando-se o signo a arena onde se desenvolve a luta de classes. Nesse sentido, o
signo é vivo, dinâmico. Não obstante,
aquilo mesmo que torna o signo ideológico vivo e dinâmico faz dele
um instrumento de refração e de deformação do ser. A classe
dominante tende a conferir ao signo ideológico um caráter intangível
e acima das diferenças de classe, a fim de abafar ou de ocultar a
luta dos índices sociais de valor que aí se trava, a fim de tornar o
signo monovalente.
(BAKHTIN, op. cit., p. 48).
Empregando as ideias de Bakhtin, acreditamos que a classe dominante busca
construir ideias hegemônicas sobre a educação e sobre o que deve ser objeto de
ensino-aprendizagem no ensino-médio. A voz de muitos que vivem a escola no
cotidiano tende, em contrapartida, a ser silenciada e qualificada, frequentemente,
como „desatualizada‟. O signo ideológico, portanto, oculta possíveis concepções
divergentes sobre o ensino, passando a veicular que o correto é investir na
interdisciplinaridade e na resolução de situações-problema.
Essa ideia sobre o que é correto, o que é desejável para o ensino
fundamenta-se, ademais, em uma crença no poder preditivo de resultados aferidos
em exames sobre desempenhos futuros.
Chama-nos a atenção o fato de, já em fins do século XIX e início do século
XX, exames de mensuração de habilidades cognitivas terem assumido essa função
de predizer desempenhos futuros com vistas a diferenciar e hierarquizar indivíduos
com base nessas supostas habilidades aferidas. Para Zanardini (2008, p. 65):
144
A preocupação expressa nos testes de inteligência é encontrar um
instrumento de predição, ou seja, quanto mais os prognósticos
contidos nos testes são confirmados mais comprovam a realidade
substancial que „medem‟, pois somente aptidões desiguais permitem
explicar a diferenciação e hierarquização dos indivíduos e das
classes sociais.
A diferenciação de sujeitos e de escolas, por meio da criação de rankings de
classificação, tem sido cada vez mais comum, sobretudo com a proposta de
utilização do Enem como exame seletivo para ingresso em IES. Acreditamos que a
classificação e distinção de sujeitos estão subjacentes a todo exame, afinal, desde
cedo, em nossa trajetória escolar, somos muitas vezes classificados a partir das
notas obtidas em exames escolares. Todavia, exames em larga escala como o
Enem, que assumiu a função de exame seletivo para acesso a diferentes IES,
acirram essa classificação, estendendo-a para escolas e sistemas de ensino,
justificando, muitas vezes, o fracasso ou o triunfo de instituições.
A seguir, discutiremos melhor essa questão, ao nos debruçarmos sobre a
função social dos exames em larga escala.
3.5 Função social
Os gêneros do discurso são extremamente heterogêneos e apresentam uma
heterogeneidade funcional que dificulta seu estudo. Segundo Bakhtin (2003, p. 262),
“A heterogeneidade funcional, como se pode pensar, torna os traços gerais dos
gêneros discursivos demasiadamente abstratos e vazios”.
Ao que parece, a questão da função social dos gêneros do discurso parece ter
sido reduzida a um conjunto estruturado e definido de funções. „Informar‟, „entreter‟,
145
„persuadir‟, „instruir‟, „vender‟, „alertar‟ são algumas dessas funções automaticamente
associadas a algum gênero em estudos e pesquisas das mais diversas.
Ao propormos o estudo do Enem enquanto representante de um gênero que
se poderia denominar exame em larga escala, uma difícil e complexa questão se
impôs: qual seria a função social desse gênero em um contexto de redefinição do
papel do Estado, cujas origens remontam a exames escolares e a exames
psicométricos de inteligência? Logo percebemos que associar algumas funções a
exames em larga escala ou mesmo simplesmente afirmar que suas funções são
aqueles objetivos explicitamente enunciados em documentos oficiais seria reduzir a
complexidade que envolve esses instrumentos discursivos, constantemente
referidos na mídia, que tende a destacar os resultados obtidos por escolas –
notadamente escolas públicas – de forma a justificar o „fracasso‟ dessa rede de
ensino.
Para entender as funções assumidas por esse gênero, tomando o Enem como
exemplar e objeto específico de estudo, reunimos uma série de pesquisas sobre
avaliação, reforma do papel do Estado, atuação do Estado-avaliador. Procuramos
observar recorrências nos estudos e tentamos comprovar essas recorrências por
meio de uma análise crítica da realidade.
Em um trabalho de observação, análise e síntese, pudemos elencar funções
atreladas ao contexto sócio-histórico que vem sendo constituído a partir da década
de 70 do século XX – contexto de ofensiva neoliberal, em que a educação é vista
como um serviço e como condição estrutural não apenas para o desenvolvimento
econômico, mas para justificar o „fracasso‟ de alguns países e as desigualdades
entre nações.
146
Uma primeira função desempenhada por exames em larga escala, como o
Enem, seria a função de induzir/controlar/monitorar a qualidade do ensino. Conforme
destacamos anteriormente nesta dissertação, a definição de padrões mínimos de
qualidade foi estabelecida na Constituição de 1988, sendo explicitada na LDB. Para
Freitas (2007, p. 53), “o interesse pela avaliação em larga escala como expediente
de
governo
da
educação
básica
fortaleceu-se
com
a
intensificação
do
questionamento da qualidade tanto da expansão como dos resultados do ensino, no
final dos anos de 1970 e início dos anos de 1980”. Adiante, acrescenta a autora:
Equalização de oportunidades educacionais e padrão mínimo de
qualidade do ensino seriam garantidos mediante a função
redistributiva e supletiva da União, incumbida de realizar assistência
técnica e financeira aos entes da federação. Essas tarefas
justificaram a utilização da avaliação em larga escala, pelo governo
central, para regular a educação básica. (p. 69).
Para desempenhar essa função, exames em larga escala estariam a serviço
do diagnóstico e controle da eficiência de políticas. Nesse sentido, destaca Peroni
(2003, p. 110) o fato de quase todos os acordos assinados entre o Brasil e o Banco
Mundial terem “um componente de avaliação educacional, visando a verificar a
efetividade das ações geradas nos projetos”.
O que nos parece peculiar em exames padronizados em larga escala é que
antes de induzir a melhorias no ensino, esse gênero parece ter a função precípua de
se „autoaperfeiçoar‟, a partir de experimentações prévias, estudos e pesquisas
educacionais, de forma a garantir a máxima objetividade e eficiência do instrumento
de avaliação.
Zanardini (2008) defende que exames em larga escala teriam como objetivo
não apenas a melhoria do ensino, mas o estabelecimento de padrões mínimos de
qualidade com vistas ao controle social. Nas palavras do autor:
147
A avaliação educacional, realizada por meio de testes padronizados
em larga escala, consubstanciada na lógica da racionalidade
econômica, se mostra como importante mecanismo de controle
social, por determinar os padrões mínimos de eficiência educacional
„capazes‟ de incrementar a produtividade dos pobres, cultivando o
seu empoderamento (p. 22).
O autor associa a ampla utilização de exames padronizados em larga escala,
disseminados principalmente ao longo dos anos 90 do século XX, à ideologia da
globalização, que traz consigo a retórica do alívio da pobreza, do empoderamento
(“empowerment”)
das
classes
vulneráveis
em
países
pobres
ou
em
desenvolvimento. Nesse contexto, a educação é vista como condição estrutural para
o desenvolvimento econômico. Definir padrões mínimos de qualidade (aferidos por
exames em larga escala) seria uma das formas de propiciar o tão almejado
desenvolvimento. Segundo Zanardini (2008, p. 30), “via ampliação do aparato
avaliativo e no foco centrado nos resultados escolares, a educação realizaria melhor
o papel que lhe é requerido na redução da pobreza e na galgada da escala do
crescimento econômico”.
Para Zanardini (2008), os resultados aferidos em exames em larga escala
justificariam
a
existência
de
desigualdades,
apontando
a
pobreza,
o
subdesenvolvimento não como condições estruturais de um sistema capitalista,
baseado na exploração do trabalho, mas como um „desvio‟, uma „anomalia‟. Nesse
sentido, o subdesenvolvimento é associado a fracassos na educação – „fracassos‟
atestados em exames em larga escala. Segundo o autor,
A pobreza é apontada pelos organismos internacionais (...) não
como o que realmente é, uma condição inextirpável do modo de
produção da vida sob a lógica do capital, mas sim como uma
anomalia, como um defeito na aplicação dos ditames dos
organismos internacionais na trajetória dos países na escala do
148
desenvolvimento. Assim, ganha força, principalmente a partir dos
anos de 1990, a relação entre pobreza e educação, ou melhor, da
pobreza com a falta ou ineficácia da educação. Logo, a educação
eficiente desponta como solução para aliviar a pobreza. Cabe à
avaliação verificar, medir e expressar o grau de eficiência da
educação (p. 37-38).
Verificar, medir e expressar o grau de eficiência da educação, objetivando, de
uma forma mais profunda, justificar a existência da pobreza seria outra função social
de exames padronizados em larga escala, segundo defende Zanardini (2008). Se o
sistema capitalista não pode eliminar a pobreza, deve mantê-la em níveis
suportáveis. Exames em larga escala constituiriam, pois, „artifícios ideológicos‟ que
obliterariam tal situação, conforme destaca o autor.
Exames em larga escala são também constantemente associados à
modernização da administração estatal, tendo como função induzir reformas na
gestão escolar. Segundo Freitas (2007, p. 120), “A força normativa da avaliação em
larga escala foi condicionada pelo desafio de reformar a gestão dos sistemas de
ensino nos marcos de uma nova regulação estatal, sendo esta conformada por um
federalismo regido por uma lógica pragmática”. A autora chega à conclusão de que
“a avaliação e a informação eram vistas como instrumentos estratégicos de
modernização institucional e administrativa, sendo a informação condição de
qualificação da capacidade de regulação educacional” (p. 21).
A avaliação educacional estaria a serviço tanto da modernização institucionaladministrativa, quanto do controle da efetivação de programas, projetos e ações do
governo central. Assim, uma terceira função fundamental dos exames em larga
escala seria fornecer informações para subsidiar políticas e decisões.
Modernizar a administração e fornecer informações são, de fato, funções
intimamente relacionadas, considerando que se apostou no potencial informativo
dos exames para a orientação de políticas. Sousa (2009, p. 32) considera a
149
avaliação, materializada em exames padronizados em larga escala, uma ferramenta
de gestão, constituída “em um contexto de reformas do Estado e de mudanças na
sua forma de atuação no campo das políticas públicas”.
Acreditamos que outra importante função social assumida pelos exames em
larga escala, ainda pouco discutida, é a disseminação de crenças e valores. Ao
longo desta dissertação, reiteramos que parece estar sendo construído um discurso
hegemônico tanto em torno da ideia de que „avaliar é preciso‟ quanto do que é
importante ensinar, aprender e avaliar.
Sobre essa primeira ideia (necessidade e urgência de avaliar a educação),
Freitas (2007, p. 165), ao citar a constituição do SAEB, afirma que houve,
declaradamente, a “intencionalidade de desenvolver e consolidar uma cultura
avaliativa nos sistemas e escolas, tendo como foco padrões de qualidade e
equidade e controle social”. Para Sousa (2009, p. 36), a organização de sistemas
estaduais de avaliação, ao lado da avaliação centrada na esfera federal, evidencia
“uma adesão à ideia da necessidade da avaliação para qualificar a gestão da
educação”.
Em torno da ideia da necessidade de avaliar a educação para qualificar sua
gestão disseminaram-se certos valores, como o princípio da competição (princípio
do modelo de administração público gerencial), o qual, segundo assinala Freitas
(2007, p. 177), “põe em destaque a comparação. Estimula-se a comparação de
desempenho e rendimento – em lugar dos progressos (...) alcançados pelos alunos”.
Nesse sentido, exames padronizados em larga escala tendem a enfatizar os
resultados, focalizar os produtos aferidos.
Zanardini (2008, p. 30) destaca a ênfase nos resultados como uma
característica dos exames padronizados em larga escala que estaria a serviço de
150
um deliberado controle social. Nas palavras do autor, “via ampliação do aparato
avaliativo e no foco centrado nos resultados escolares, a educação realizaria melhor
o papel que lhe é requerido na redução da pobreza e na galgada da escala do
crescimento econômico”. Organismos internacionais, como o Banco Mundial e a
OCDE, atuariam efetivamente incentivando práticas avaliativas, contribuindo para a
construção de uma cultura da avaliação (contribuindo, portanto, para a construção
da ideia de que „avaliar é preciso‟).
Sobre a construção de ideias hegemônicas em torno do que avaliar, conforme
discutimos anteriormente, parece haver uma tendência, principalmente no Enem, em
associar „velhas práticas de sala de aula‟, como o ensino de conteúdos e conceitos,
ao que é retrógrado, ao que deve ser superado. A aquisição de competências e
habilidades, por outro lado, é investida em um discurso da „inovação‟ associado aos
desafios do mundo contemporâneo e da sociedade da informação.
Por fim, considerando a grande repercussão que os resultados (notadamente
os maus resultados) de exames em larga escala têm na sociedade, sobretudo por
serem alardeados pela mídia, esse gênero parece ter também como função prestar
contas à sociedade das políticas públicas. Sousa (2009, p. 34) afirma que uma das
características dos exames é “a ampla divulgação dos resultados das avaliações na
mídia, usualmente na forma de classificação das instâncias avaliadas, induzindo à
comparação, em nome da necessidade de prestação de contas à sociedade”.
Adiante, acrescenta a autora uma crítica que nos parece bastante relevante.
Segundo Sousa (op. cit., p. 34), a avaliação orientada pela classificação, por dados
predominantemente quantitativos, pela ênfase nos produtos ou resultados, atribuição
de mérito a alunos, instituições ou redes de ensino pauta-se no princípio de que a
avaliação gera competição, e a competição gera qualidade.
151
Nesta perspectiva o Estado assume a função de estimular a
produção dessa qualidade. Políticas educacionais formuladas e
implementadas sob os auspícios da classificação e seleção
incorporam, consequentemente, a exclusão, como inerente aos seus
resultados, o que é incompatível com o direito de todos à educação.
(SOUSA, 2009, p. 34).
Como se vê, entender a função social de exames em larga escala tomados
como gêneros do discurso é uma questão complexa que pressupõe o entendimento
da repercussão desses exames na sociedade, o contexto em que emergiram –
caracterizado pela ampliação das desigualdades sociais – e no qual a avaliação foi
intensificada.
A seguir, propomos uma breve síntese.
3.6 Segunda síntese intermediária
Na introdução desta dissertação, questionamos se exames em larga escala, a
exemplo do Enem, não constituiriam gêneros em um contexto de reformas e
redefinição do papel estatal. Ao longo deste capítulo, até o presente momento,
argumentamos e demonstramos que esses exames devem ser vistos como produtos
de uma situação sócio-histórica peculiar, caracterizada pela ofensiva neoliberal, que
apregoa a educação como condição estrutural para o desenvolvimento econômico
dos países, para o empoderamento das classes vulneráveis, que devem vir a se
tornar „empregáveis‟. Exames padronizados, em larga escala justificariam o fracasso
de muitos países, inaptos a investir e gerenciar efetivamente a educação. Nesse
sentido, atravessados pela ideologia neoliberal, esse gênero, através de seus
resultados, justificaria desigualdades.
152
Segundo mencionamos no início deste capítulo, existem duas tendências que
povoam os estudos sobre avaliação. A primeira centrada na avaliação escolar, que
tende a tentar encontrar soluções para uma avaliação menos punitiva, mais
democrática e pedagogicamente mais eficiente. A segunda voltada para questões
relativas a política educacional e ação normativa estatal, tendo sido cunhado o termo
avaliação em larga escala. Acrescentamos, ademais, que a sociedade parece
reconhecer exames como o Enem de forma diferenciada, muitas vezes não
denominando esse exame de „vestibular‟, mas tão somente de „Enem‟, não obstante
ele esteja servindo como instrumento de seleção para ingresso em instituições de
ensino superior.
Os exames escolares, conforme discutimos principalmente no capítulo 2,
surgem em um contexto de consolidação da sociedade burguesa e de seus ideais.
Os exames em larga escala emergem em um contexto de crise do capitalismo,
momento em que são propostas reformas do papel do Estado e, dentre elas,
reformas educacionais.
Considerando, porém, que, sob a ótica bakhtiniana, não existe nada
absolutamente novo, nada pode ser criado do nada, observamos que exames em
larga escala constituem-se com base tanto nos exames escolares quanto nos testes
psicométricos de inteligência (ZANARDINI, 2008), amplamente difundidos entre fins
do século XIX e início do século XX.
Considerando também que todo enunciado e suas formas tipificadas, isto é,
os gêneros do discurso, constituem reação-resposta a algo, a uma questão, a um
problema em dada esfera, destacamos que exames em larga escala são reaçãoresposta a:
153
1. Uma situação sócio-histórica que trouxe como imperativo a garantia da
qualidade do ensino e o estabelecimento de padrões mínimos de qualidade.
2. Reformas educacionais estabelecidas sob a égide da redefinição do papel
do Estado, tendo como objetivo a monitoração da descentralização da oferta do
ensino e a indução de reformas na educação.
3. Implantação do modelo administrativo público-gerencial.
4. Experimentações prévias e experiências de outros países.
5. Recomendação de organismos internacionais, como o Banco Mundial, que
propuseram a monitoração da qualidade do ensino e do controle dos investimentos
em educação.
Como características centrais desse podemos citar: a racionalidade,
objetividade, economia de tempo (questões quase sempre objetivas), a tentativa de
predição de desempenhos futuros, a avaliação com base, geralmente, no
desempenho individual de alunos, a interação com outros gêneros, notadamente
„meta-gêneros‟.
Outra peculiaridade desse gênero concerne à exigência de objetividade,
credibilidade, isonomia e lisura do processo, bem como a eficiência didáticopedagógica,
baseada
na
distinção,
relevância
dos
pressupostos
teórico-
metodológicos e capacidade de reestruturar e intervir retroativamente no ensino.
Quanto às funções sociais, citamos:
1. Induzir/monitorar/controlar a qualidade do ensino, instituindo um currículo mínimo
a ser ensinado.
2. Se „autoaperfeiçoar‟, por de experimentações prévias, estudos e pesquisas
educacionais, de forma a garantir a máxima objetividade e eficiência do instrumento
de avaliação.
154
3. Promover o controle social, justificando fracassos e sucessos.
4. Fornecer informações para subsidiar políticas e decisões.
5. Disseminar crenças e valores baseados na meritocracia.
7. Prestar contas à sociedade.
Por fim, ressaltamos que o Enem parece seguir uma tendência delineada nas
duas ou três últimas década, que tem enfatizado o conhecimento voltado para a
ação, utilização e interação, a ênfase em habilidades e competências, a flexibilidade
do conhecimento, a interdisciplinaridade. Trata-se, em suma, de uma questão de
estilo, discutida no próximo capítulo.
155
4 O EXAME NACIONAL DO ENSINO MÉDIO COMO EXAME EM LARGA
ESCALA: UM OLHAR SOBRE A DIMENSÃO VERBAL DA PROVA
No capítulo 3, demonstramos que exames padronizados, em larga escala
devem ser entendidos como gêneros em um contexto de reformas e redefinição do
papel do estado, frutos de uma sociedade complexa. Em nossas explanações,
tomamos o Enem como exemplar desse gênero e analisamos documentos oficiais
diversos
(Notas
técnicas,
pronunciamentos
do
ministro
da
educação,
Fundamentação teórico-metodológica etc).
Neste capítulo, propomos um olhar sobre a dimensão verbal do Enem,
considerando que esse exame materializa uma tendência delineada nas últimas
décadas, que propõe uma reformulação dos currículos e conteúdos do ensino
médio, o conhecimento voltado para o „aprender a aprender‟, a ação e interação.
Nosso objetivo, no capítulo que ora se apresenta, é demonstrar que o Enem
visa materializar um „discurso moderno‟, pautado nas reformas curriculares
propostas. Segundo Ramos (2001, p. 126), “As reformas curriculares, por sua vez,
visam re-orientar a prática pedagógica organizada em torno da transmissão de
conteúdos disciplinares para uma prática voltada para a construção de
competências”. Assim, o Enem constituir-se-ia a partir de um olhar responsivo às
propostas de reformas curriculares.
Ao mesmo tempo, como não pode existir nada absolutamente novo ou
inovador, o exame expõe uma tensão entre a tentativa de inovar e a convivência
com velhas práticas, estilos de questões mais tradicionais.
Este capítulo está dividido em quatro partes além desta introdução. No tópico
4.1., defendemos que a tentativa de inovação por meio de situações-problema,
156
interdisciplinaridade, avaliação centrada em competências e habilidades e não em
conteúdos constitui o estilo do exame, no sentido bakhtiniano atribuído ao termo. Em
seguida, no tópico 4.2., analisamos a forma composicional do exame, focalizando a
estruturação das questões. No tópico 4.3., lançamos um olhar sobre as propostas de
redação, defendendo a posição de que essas propostas muito além de avaliar
competências e habilidades, visam transmitir valores, atitudes necessárias à
inserção no mercado de trabalho e à participação cidadã.
No tópico 4.4.,
apresentamos uma síntese intermediária, a partir das reflexões aqui abordadas.
Por fim, esclarecemos que cada edição do exame deve ser concebida como
realização particular, que expõe a tensão entre a tentativa de inovar e a filiação da
prova a uma tradição da qual seus fundamentos teórico-metodológicos procuram se
desvincular. Se, por um lado, cada edição é um acontecimento único, por outro lado,
esse acontecimento vincula-se aos demais, à história do exame. Embora
consideremos cada realização como um evento único, priorizamos, neste capítulo, a
análise da edição de 2010, por ser a edição que consolida as reestruturações pelas
quais passou o Enem a partir de 2009. Questões de outras edições, no entanto,
também foram analisadas.
4.1 O Exame nacional do ensino médio e as reformas nos conteúdos e
currículos de ensino: uma questão de estilo
Nas últimas décadas, temos presenciado a emergência de políticas em torno
da reforma nos currículos da educação básica. Documentos que subsidiam o ensino
são editados, formações continuadas de professores são propostas, programas de
157
capacitação que visam qualificar os profissionais do ensino para uma nova realidade
são realizados.
O Enem insere-se nesse quadro complexo, no qual críticas são feitas às
formas „tradicionais‟ de ensinar e avaliar. Nesse sentido, a formação e a avaliação
por competências é investida em um „discurso da modernidade‟.
Segundo assinala Zanardini (2008, p. 134),
No quadro da reforma da Educação básica, principalmente a partir
dos anos de 1990, ao lado dos aspectos referentes à gestão da
escola, os conteúdos do ensino também compuseram o foco
dos reformadores e das mudanças curriculares que se
materializaram nos Parâmetros Curriculares Nacionais e nas
Diretrizes Curriculares Nacionais respaldadas na LDB 9394/96.
(grifo nosso).
Em uma situação sócio-histórica na qual se preconizam mudanças, órgãos
internacionais destacam a necessidade de adequar sistemas educacionais às
necessidades requeridas pelo sistema de produção capitalista. Zanardini (op. cit., p.
135) menciona o documento da Comissão Econômica para a América Latina e
Caribe da ONU, Transformação produtiva com equidade (CEPAL, 1990), o qual,
segundo o autor (ZANARDINI, op. cit., p. 135), “alertava para a necessidade de
implementação de mudanças, recomendando que os países investissem em
reformas educacionais para adequá-los a oferecer as habilidades e competências
requeridas pelo sistema produtivo” (destaque nosso).
Um ensino e, por conseguinte, uma avaliação centrada em conceitos e
conteúdos parece não mais corresponder às necessidades e aspirações de um novo
sistema de produção. Da mesma forma, o saber fragmentado, dividido em
disciplinas, estaria em desacordo com as demandas decorrentes de uma
reestruturação produtiva. A avaliação por competências e habilidades, com foco na
158
interdisciplinaridade, desponta como tema do Enem, com vistas à implementação de
uma reforma no currículo do ensino médio.
Competências e habilidades, interdisciplinaridade e situação-problema são
conceitos caros para o Enem, os quais traduzem essa aspiração ao que seria
“moderno” e adequado às demandas de um mundo em transformação.
Sobre os dois primeiro conceitos – competências e habilidades –, a
Fundamentação teórico-metodológica do Enem (BRASIL, 2005) propõe uma
distinção (a escola da excelência e a escola para todos) que visa esclarecer a
necessidade de se ensinar por competências e habilidades. Esses dois conceitos
são definidos com base nas Matrizes Curriculares de Referências do Saeb (BRASIL,
1998), segundo as quais se deve entender por competências cognitivas
as modalidades estruturais da inteligência – ações e operações que
o sujeito utiliza para estabelecer relações com e entre os objetos,
situações, fenômenos e pessoas que deseja conhecer. As
habilidades instrumentais referem-se, especificamente, ao plano do
„saber fazer‟ e decorrem, diretamente do nível estrutural das
competências já adquiridas e que se transformam em habilidades.
(BRASIL, 1998a, p. 9).
A Fundamentação teórico-metodológica do Enem apresenta três modos de
entender o conceito competência: competência como condição prévia do sujeito,
herdada ou adquirida; competência como condição do objeto, independente do
sujeito que a utiliza; competência relacional, como um jogo de interações entre as
demais competências, caracterizada pela mobilização de habilidades para atuar com
o novo, o inesperado, o elemento surpresa.
Até 2008 o exame fundamentava-se em cinco competências associadas a
vinte e uma habilidades. Vejamos as competências descritas:
I - Dominar linguagens – Dominar a norma culta da língua portuguesa e fazer uso da
linguagem matemática, artística e científica.
159
II - Compreender fenômenos – Construir e aplicar conceitos das várias áreas do
conhecimento para a compreensão de fenômenos naturais, de processos históricogeográficos, da produção tecnológica e das manifestações artísticas.
III - Enfrentar situações-problema – Selecionar, organizar, relacionar, interpretar
dados e informações representados de diferentes formas, para tomar decisões e
enfrentar situações-problema.
IV. Construir argumentação – relacionar informações, representadas de diferentes
formas, e conhecimentos disponíveis em situações concretas, para construir
argumentação consistente.
V. Elaborar proposta – Recorrer aos conhecimentos desenvolvidos na escola para
elaboração de propostas de intervenção solidária na realidade, respeitando os
valores humanos e considerando a diversidade sociocultural.
A partir de 2009, com a reestruturação do Enem, mantiveram-se as cinco
competências descritas acima com algumas alterações24 enquanto “eixos cognitivos”
comuns a todas as áreas do conhecimento, e foram acrescentadas e discriminadas
diferentes competências segundo as quatro áreas do conhecimento definidas no
exame.
Segundo Beth Marcuschi (2006, p. 75), as cinco competências básicas que
estruturam o Enem são bastante diversificadas e não guardam uma unidade entre si.
Nas palavras da autora:
A análise das cinco competências propostas pelo ENEM revela sua
natureza bastante diversificada. A primeira, principalmente, ao
24
Por exemplo, a competência “I” passou a ser descrita com a seguinte redação: “Dominar
linguagens (DL): dominar a norma culta da Língua Portuguesa e fazer uso das linguagens
matemática, artística e científica e das línguas espanhola e inglesa”. Vê-se, portanto, que as línguas
estrangeiras espanhola e inglesa passaram a compor o exame, o que demonstra a proximidade que o
Enem foi adquirindo com os já consolidados “exames vestibulares”.
160
destacar o domínio da “norma culta da língua portuguesa” e o “uso
das linguagens matemática, artística e científica”, e a segunda,
quando remete à “compreensão de fenômenos naturais, de
processos histórico-geográficos, da produção tecnológica e das
manifestações artísticas”, remete a áreas de conhecimento
específicas. Não estão, portanto, no mesmo nível de abrangência
das competências III e IV, bem mais amplas e não situadas em
áreas de conhecimento pontuais. As capacidades de “selecionar,
organizar, relacionar, interpretar dados e informações” (...), inclusive,
podem e devem ser utilizadas no estudo que leva ao domínio da
língua portuguesa e no uso de outras linguagens. Além disso, às
competências III, IV e V é acrescida uma finalidade pragmática, ou
seja, deve-se operar com dados “para tomar decisões e enfrentar
situações-problema” (III); relacionar informações “para construir
argumentação consistente” (IV); recorrer a conhecimentos “para a
elaboração de propostas de intervenção solidária na realidade” (V).
O foco desse quinto item, aliás, não está propriamente numa
competência, mas num comportamento social e ético desejável.
Ao que nos parece, essa diversidade é resultado de uma tentativa de adequar
a proposta de avaliação aos novos „códigos da modernidade‟ amplamente difundidos
ao longo dos anos 90 do século XX. Nesse novo paradigma, a escola torna-se
responsável pelo ajustamento social – daí a necessidade de transmissão não só de
conteúdos básicos, mas também de valores e atitudes considerados fundamentais
para o „pleno exercício da cidadania‟. Conforme discutiremos adiante, o Enem
expressa essa tendência de ajuste e regulação social do sujeito nas suas propostas
de redação, sempre relacionadas a temas como ética, cidadania, meio ambiente etc.
No
que
concerne à
interdisciplinaridade,
a
Fundamentação
teórico-
metodológica do Enem (BRASIL, 2005) reconhece que esse conceito procura
estabelecer uma visão sintética, reconstruir a unidade perdida que envolve as
diferentes disciplinas.
Segundo mencionamos acima, até 2008, o Enem era composto por 63
questões interdisciplinares, que não tinham, segundo exposto no site do MEC,
relação direta com os conteúdos do Ensino Médio. Nesse modelo antigo do exame,
encontrávamos questões como a ilustrada abaixo:
161
Ilustração 3 - Questão 58, Enem 1998
162
A questão acima exposta, retirada da primeira edição do Enem, apresenta
dois textos que precisam ser correlacionados e associados ao seu contexto de
produção.
O texto I, produzido no século XIX, evidencia a segregação social
existente no Brasil. O texto II, produzido mais de cem anos depois, demonstra a
continuidade dessa realidade – uma realidade em que sucessivos governos não são
capazes
de
garantir
a
cidadania
a
milhões
de
brasileiros,
recaindo
a
responsabilidade pela socialização dos excluídos a projetos voluntários.
Para responder à questão, deve o candidato fazer inferências complexas,
observando que a segregação existente no século XIX perpetua-se nos dias atuais,
já que a cidadania é ainda incompleta para milhões de brasileiros. O texto II, embora
tenha o objetivo de divulgar o projeto axé, o faz, inicialmente, em um tom de
denúncia, ao afirmar que “Em Salvador, Bahia, o Projeto Axé conseguiu fazer, em
apenas três anos, o que sucessivos governos não foram capazes: a um custo dez
vezes inferior ao de projetos governamentais, ajuda meninos e meninas de rua a
construírem projetos de vida, transformando-os de pivetes em cidadãos”.
O candidato pode recorrer a seus conhecimentos de história do Brasil para
responder à questão; ao mesmo tempo, deve fazer inferências sobre os textos
apresentados, configurando a questão como de leitura e interpretação. Os
conhecimentos sobre Geografia Humana, sobre a realidade nos grandes centros
urbanos em países periféricos também podem ser acionados para a análise e
interpretação, sobretudo, do texto II. Em suma, a questão levanta reflexões em
diferentes
disciplinas
das
Ciências
Humanas,
evidenciando
sua
natureza
interdisciplinar.
No modelo antigo do Enem, não havia agrupamento das questões segundo a
área do conhecimento abordada. Era possível reconhecer algumas questões como
163
típicas de uma determinada área disciplinar; outras, no entanto, tornavam-se dúbias,
difíceis de serem classificadas em uma só área do conhecimento. Observemos, por
exemplo, a questão 46, retirada do Enem 2000:
164
Ilustração 4 - Questão 46, Enem 2000
165
Borba (2007, p. 49), ao analisar a questão acima, afirma que conhecimentos
relativos a, pelo menos, quatro disciplinas são considerados na elaboração da
questão. Segundo a autora,
Da Língua Portuguesa, aproveitam-se as informações acerca das
características do gênero charge; da Geografia, os conceitos de
Reforma Agrária, Êxodo rural, demarcação de terras; da História, a
memória dos conflitos pela posse de terras, a relação de exploração
à qual os portugueses submetiam os índios, que resultou na
desapropriação do território indígena; e da Literatura, o
conhecimento dos autores e das características dos movimentos
dos quais eles fazem parte, além da leitura crítica e social e
historicamente constituída dos textos selecionados.
A partir de 2009, as questões do Enem passaram a ser agrupadas em quatro
áreas do conhecimento (Ciências humanas e suas tecnologias; Ciências da natureza
e suas tecnologias; Linguagens, códigos e suas tecnologias; Matemática e suas
tecnologias), além da redação, presente desde a primeira edição do exame. Ainda
em 2009, foi lançada a proposta de vestibular unificado, tendo sido as universidades
federais induzidas ou mesmo pressionadas a aderirem ao SISU, ou, pelo menos,
utilizarem a nota do Enem como forma de ingresso aos cursos superiores.
É consenso a influência que os exames de seleção para o ensino superior
exercem sobre o ensino médio, a ponto de várias escolas terem, durante muito
tempo, separado os alunos concluintes conforme a área pretendida para o vestibular
(por exemplo: turmas de humanas, de saúde ou exatas). Ao se constituir como
mecanismo de seleção para o ensino superior e, sobretudo, como proposta de
vestibular unificado, o Enem seria certamente uma influência muito maior para o
currículo do Ensino médio. O sistema escolar brasileiro, porém, caracterizado pela
fragmentação do currículo e mesmo pela falta de interlocução entre as diversas
áreas do saber, a começar pela própria forma como se organiza o trabalho docente,
166
possivelmente não estaria preparado para uma proposta como a do “antigo” Enem,
estruturado em 63 questões sem quaisquer agrupamentos. Nesse sentido, a
reestruturação do exame coincidindo com a proposta de vestibular unificado não
parece ser fortuita.
Por fim, no que concerne à situação problema, conceito caro ao Enem, a
Fundamentação teórico-metodológica do referido exame define esse conceito como
uma espécie de representação de situações inesperadas, que “implicam resolver ou
decidir sobre variáveis não-previstas” (BRASIL, 2005, p. 15). Para resolver um
problema, o sujeito teria de tomar decisões sobre variáveis, seguindo as seguintes
etapas: 1. Interpretação da situação; 2. planejamento da solução; 3. execução; 4.
avaliação.
O conceito de situação-problema é proposto com base na distinção entre
exercícios e problemas. Os exercícios seriam repetitivos, não desafiadores,
centrados, muitas vezes, na cópia. Os problemas, por outro lado, seriam
desafiadores, exigiriam reflexão, articulação de competências e habilidades.
A justificativa da relevância de se avaliar por situações-problema e não por
questões mais próximas dos exercícios escolares fundamenta-se em um discurso
que tende a enfatizar as transformações vividas em uma sociedade da informação,
sociedade que exigiria não a memorização apenas, mas o desenvolvimento da
capacidade de aprender a aprender. Conforme a Fundamentação teóricometodológica do Enem (BRASIL, op. cit., p. 17), “com todas as transformações
tecnológicas, sociais e culturais, uma questão prática, relacional começa a impor-se
com grande evidência. Temos muitos problemas a resolver, muitas decisões a
tomar, muitos procedimentos a aprender”. Adiante, afirma-se: “cada vez mais torna-
167
se necessário também o domínio de um conteúdo chamado de „procedimental‟, ou
seja, da ordem do „saber como fazer‟”. (p. 17).
A defesa de um exame estruturado em situações problemas parece, portanto,
materializar a tendência acima referida de incorporar ao ensino os „signos da
modernidade‟. Nesse sentido, investe-se em um discurso da sociedade em
transformação e do conhecimento como algo que deve ser continuamente
construído, algo que deve ser flexível, capaz de se adaptar ao inesperado.
Todavia, lembramos que, segundo Signorini (2007), onde são traçadas
fronteiras entre o retrógrado e o „inovador‟ tem-se, de fato, bordas fluidas e zonas de
constante entrelaçamento. Assim, embora o Enem, em diversos documentos oficiais,
a exemplo da Fundamentação Teórico-metodológica, seja apresentado como
„exame inovador‟, embora essa ideia da „inovação‟ esteja sendo constantemente
veiculada na promoção do exame, temos, com efeito, bordas fluidas, difíceis de
serem delimitadas. Observemos, por exemplo, a questão 97 da edição 2010:
168
Ilustração 5 - Questão 97, Enem 2010
A questão acima versa sobre a função da linguagem predominante no trecho
destacado. Esse tipo de questão é frequente em livros didáticos de língua
portuguesa, fruto da divulgação dos estudos funcionalistas do Círculo Linguístico de
Praga. Na década de 70 do século XX, grande influencia tiveram esses estudos
sobre o ensino de língua portuguesa, estendendo-se tal influência até a legislação
oficial, sob o rótulo “comunicação e expressão”. Segundo Oliveira e Wilson (2010, p.
236-237),
embora para o Círculo a língua fosse concebida como um sistema
funcional por conta do caráter de finalidade, de propósito
comunicativo com que era tratada a atividade linguística, parece ter
havido, em termos de ensino, certa incompreensão dessa proposta,
com sua redução a um conjunto estruturado de seis „funções da
linguagem.
169
A linguagem, na questão 97 supracitada, é reduzida a “um conjunto
estruturado” de funções. Ademais, difícil torna-se a identificação da situaçãoproblema que supostamente fundamentaria a questão, afinal, seguindo as etapas
constitutivas da realização de uma situação-problema (Interpretação da situação,
planejamento da solução, execução, avaliação), percebemos que o candidato deve
interpretar a situação – interpretar o texto, entender o objetivo da enunciação –, mas
o planejamento da solução e a execução nos parecem bastante difusos. Não vemos,
também, no momento em que está respondendo a questão, como poderia o
candidato avaliar as decisões tomadas. Em síntese, trata-se de uma questão
notavelmente tradicional (não muito diferente de exercícios há muito tempo
encontrados em livros didáticos de língua portuguesa), na qual não se identifica
propriamente um „problema‟, nos termos definidos na Fundamentação Teóricometodológica do Enem (BRASIL, 2005).
Não obstante, na edição 2010 do Enem, ao lado de questões mais
tradicionais, como a questão 97 acima exposta, encontram-se questões que trazem
noções e conceitos difundidos, no Brasil, mais recentemente, quais como os
conceitos de gênero e mesmo o conceito de “função social”, que amplia e
problematiza o conceito de “funções da linguagem”, tratado, muitas vezes, de forma
simplificada em livros didáticos. Observemos, a título de exemplificação, a questão
98, também da edição 2010 do Enem:
170
Ilustração 6 - Questão 98, Enem 2010
A questão acima problematiza a função de um gênero textual, revelando a
influência de teorias divulgadas mais recentemente no Brasil. Nessa questão, não se
concebe a linguagem como um conjunto estruturado de seis ou mais funções
independentes do contexto, mas como artefato sociocultural. Para responder à
questão, deve o candidato correlacionar o texto apresentado às informações
expressas no enunciado, lançando mão, ainda, de seu conhecimento de mundo
sobre o gênero horóscopo.
171
Chama-nos a atenção, porém, a identificação dessa e de outras questões
como “situação- problema”, nos moldes como essa expressão é definida na
Fundamentação teórico-metodológica. Senão, vejamos:
No Relatório Pedagógico do Enem (2002, p. 38), as situações-problemas
são definidas como uma espécie de forma simbólica de representação do mundo,
representação à qual deve o candidato atribuir sentido e “agir, ainda que em
pensamento (atribui valores, julga, escolhe, decide, entre outras operações mentais”.
Percebe-se, portanto, que a ênfase recai na interpretação e ação de situações
simbólicas, apresentadas como desafiadoras.
Questões como a 98 acima reproduzida exigem evidentemente interpretação,
mas os conceitos de planejamento da solução, execução e avaliação – etapas que
compõem a resolução de situações-problema – tornam-se difusos. Devemos
entender a identificação da função social do gênero como desafio, como situação
inesperada? Se sim, como intervir nessa „situação inesperada‟? O desafio seria
encontrar a alternativa correta?
Considerando as etapas que compõem a resolução de situações-problema,
talvez pudéssemos classificar a questão de redação como uma situação que leva o
aluno a interpretar a problemática apresentada em diferentes textos que precisam
ser correlacionados; planejar uma „solução‟, isto é, planejar uma forma de ação e
intervenção, por meio da argumentação, do jogo de linguagem; executar sua ação;
e, por fim, avaliá-la. Não obstante, muitas questões de múltipla escolha não nos
parecem muito diferentes dos já conhecidos „exercícios escolares‟, os quais são
criticados pela Fundamentação teórico- metodológica do Enem. Vejamos, por
exemplo, a questão 136 também da edição 2010 do exame:
172
Ilustração 7 - Questão 136, Enem 2010
A questão 136 acima reproduzida, constante na área “Matemática e suas
tecnologias”, não nos parece muito diferente de exercícios presentes em livros
didáticos
de
conhecimentos
nível
fundamental.
básicos
da
área
Primeiro,
a
supracitada
–
e
porcentagens.
fração
questão
exige
Segundo,
a
173
contextualização – conceito fundamental no Enem – parece ser meramente
figurativo. Ora, suprimindo-se a história do professor que dividiu a lousa da sala de
aula em quatro partes iguais, poderíamos ter um enunciado simples, do tipo:
“Considerando que a figura 1 tem 75% de sua área preenchida, qual das figuras
abaixo tem sua área preenchida em 40%?”. Nesse sentido, suprimindo a
contextualização, mantém-se a essência da questão, que não apresenta
propriamente um desafio, uma situação „inesperada‟, conforme é preconizado na
Fundamentação teórico-metodológica do Enem.
Nesse documento oficial, o
conceito de “situação-problema” é apresentado, conforme mencionamos acima, a
partir de uma distinção entre os exercícios escolares e os „problemas desafiadores‟.
Vejamos:
Penso que vale a pena insistir na distinção entre exercício e
problema porque, algumas vezes, nas escolas e nos livros didáticos,
problemas e exercícios são tratados como se fossem equivalentes.
Voltemos ao jogo de percurso. Uma coisa é seu uso como recurso
para exercitar cálculos que a criança já aprendeu e que pode
“fortalecer” por intermédio desse jogo. Outra, são os problemas
propostos no contexto do jogo ou mesmo de certos tipos de cálculos
que implicam tomadas de decisão, correr riscos, etc. É importante
termos em conta que o cálculo pode não ser o problema, ainda que
faça parte de sua solução ou corrobore para ela. Em outras
palavras, o exercício é fazer contas; o problema é realizar uma
conta para a qual não se estava suficientemente preparado,
porque é de um outro tipo, tem uma estrutura mais complexa,
coloca uma dificuldade a mais, etc. Em síntese, exercício é o
repetir, como meio para uma outra finalidade: por exemplo,
caminhar para promover um trabalho cardiovascular. Problema é o
que surpreende nesse exercício, é o novo, o que supõe
invenção, criatividade, astúcia. (BRASIL, 2005,p. 15, grifos
nossos).
Seguindo a definição acima, deveríamos conceber a representação de 40%
de uma figura como uma situação inesperada, que exige astúcia, que “coloca uma
dificuldade a mais”, o que não ocorre na questão 136 anteriormente reproduzida. O
174
foco, nessa questão, reside em conhecimentos elementares, os quais não são
propriamente problematizados pela contextualização apresentada. Não se exige do
candidato astúcia ou destreza para resolver uma situação que surpreende.
Com efeito, muitas questões do Enem não são muito distintas dos já
conhecidos „exames vestibulares‟ ou dos exercícios constantes em livros didáticos.
Não obstante, documentos oficiais que versam sobre o exame investem em uma
retórica da „inovação‟, do „diferente‟, daquilo que surpreende e vai além do que a
escola usualmente tem feito. Trata-se, de fato, da necessidade de apresentar o
exame como algo „diferente‟, conforme discutimos no capítulo a este precedente –
necessidade que representa uma atitude responsivo-ativa às reformas nos
conteúdos e currículos de ensino que têm sido propagadas nas últimas décadas.
Podemos, pois, afirmar que a estruturação ou pretensão à estruturação do
Enem
em
situações-problema,
com
ênfase
na
interdisciplinaridade,
na
contextualização e na aferição de competências e habilidades, constitui o que se
poderia denominar estilo do exame. Lembramos que, conforme Voloshinov (1926), o
estilo corresponde a uma pessoa mais seu grupo social. Nesse sentido, o estilo do
Enem tende a refletir as mudanças, as transformações que se impõem aos
currículos e conteúdos de ensino nas últimas décadas. Ao longo dos anos 90 do
século XX, a educação básica tem sido alvo de propostas de reformas, com vistas à
adequação da escola ao mundo do trabalho, à sociedade da informação, que não
mais exigiria um conhecimento estanque, fragmentado e enciclopédico. Segundo
Barbosa (2000, p. 56, apud ZANARDINI, 2008, p. 137),
O currículo já não correspondia às necessidades da realidade que
teria emergido com a chamada globalização econômica e cultural. A
antiga formação para a produção padronizada em larga escala, que
teria determinado um tipo de currículo que consagrou o saber de
forma fragmentada, estaria incapacitada para responder às
175
demandas geradas pela reestruturação produtiva, agravando o
problema do desemprego.
No entanto, conforme demonstramos, não se podem aventar inovações sem a
percepção de que toda transformação constroi-se em um movimento de idas e
vindas com aquilo que é qualificado como „tradicional‟ ou mesmo „retrógrado‟. O
Enem procura inovar, seguindo uma tendência; diversos documentos oficiais que
versam sobre o exame investem em um discurso da inovação. O inovador e o
tradicional, porém, parecem conviver lado a lado, e, com frequência, o que é, de
fato, tradicional às vezes é apresentado como inovador.
Feitas essas considerações, na próxima seção observaremos como se
estruturam as questões do exame, atentando para outro conceito caro ao Enem: a
contextualização.
4.2 Forma composicional: tipos de questões e contextualização
Conforme afirmamos anteriormente, a partir de 2009 o Enem foi
reestruturado, passando de 63 questões, não agrupadas de acordo com uma área
específica do conhecimento, para 180 questões objetivas agrupadas em quatro
áreas do saber. A redação, presente desde a primeira edição, foi mantida. Além
disso, o exame passou a ser aplicado em dois dias consecutivos.
Ao analisarmos a edição de 2010 do Enem, observamos que, de forma geral,
os enunciados das questões não apresentam grande variedade e tendem a seguir
um único padrão.
176
Conforme Reinaldo e Viana (2008, apud COSTA, 2009, p. 50-51), as
questões de múltipla escolha estruturam-se segundo cinco subtipos:
a) Afirmação incompleta: o enunciado é uma afirmação que se completa com
uma das alternativas.
b) Resposta múltipla: o enunciado consta de várias proposições, admitindo
mais de uma correta. Após as proposições, é necessária a construção de
alternativas que contemplem essas proposições.
c) Questão lacunada: uma ou várias partes relevantes do enunciado são
suprimidas e apresentadas nas alternativas. Algumas normas devem ser observadas
na sua formulação para não dificultar sua compreensão: o número de lacunas não
deve ser excessivo, deve-se evitar a lacuna no início do enunciado.
d) Verdadeiro – Falso: são apresentados dois grupos distintos de informações
que se associam ou se completam.
e) Associação: o enunciado envolve a correspondência, o emparelhamento ou
a combinação de grupos de informações.
Das 180 questões que compõem o Enem 2010, 146 são do tipo “afirmação
incompleta” e apenas 34 podem ser classificadas como “associação”, o que
evidencia a pouca variabilidade na elaboração dos enunciados. Observemos, por
exemplo, a questão 39, constante na área “Ciências humanas e suas tecnologias”.
177
Ilustração 8 - Questão 39, Enem 2010
Como a maior parte das questões que compõe a prova, o enunciado da
questão 39 reproduzida acima completa-se com uma das cinco alternativas que
devem ser selecionadas pelo candidato. Destacamos, ademais, que o comando das
questões do Enem tende a se diferenciar dos comandos típicos dos exercícios
escolares, os quais, quase sempre no modo imperativo, exigem explicitamente a
realização de atividades ou operações mentais (responda, analise, julgue etc).
As questões do Enem, como pode ser visualizado no exemplo destacado, ao
invés de proporem operações por meio de verbos no imperativo, quase sempre
apresentam contextualizações ou interpretações do texto/fragmento de texto que é
178
tomado como referência para análise das alternativas. Quase todas as questões são
contextualizadas por meio de textos de referência. Esses textos, porém, são, em boa
parte, fragmentos ou fragmentos adaptados, o que evidencia uma concepção
escolarizada de leitura subjacente ao exame.
Considerando que boa parte das questões são contextualizadas por
fragmentos de textos diversos, pudemos observar as seguintes relações entre o
texto de referência, o enunciado e as alternativas:
a) O texto ou fragmento fornece „pistas‟ para o candidato encontrar a
alternativa correta. Todavia, o conhecimento formal escolar deve ser acionado.
b) O texto fornece pouca ou nenhuma indicação para a resposta, assumindo,
muitas vezes, uma função meramente ilustrativa, já que o foco recai sobre o
conhecimento formal escolar.
c) Ênfase na interpretação: o texto, por si só, responde à questão. Trata-se de
uma questão de leitura (independentemente da área do conhecimento), quase
sempre inferencial ou global. Não se focaliza tanto o conhecimento formal
escolarizado, como conceitos e fórmulas, mas a interpretação textual.
Vejamos alguns exemplos, a título de ilustração das relações observadas:
179
Ilustração 9 - Questão 25, Enem 2010
180
Na questão acima reproduzida, presente na edição 2010 do Enem, embora o
texto de referência forneça algumas pistas para a resposta, o conhecimento escolar
sobre o período histórico em questão deve ser acionado. Nessa questão, o aluno
deve interpretar o texto e recorrer a seus conhecimentos referentes às
consequências da mudança da família real portuguesa para o Brasil. O texto
(fragmento adaptado) por si só não responde à questão.
Por outro lado, na questão 44 da mesma edição da prova, também presente
na área “Ciências humanas e suas tecnologias”, o texto (fragmento adaptado) por si
só responde à questão. Observemos:
Ilustração 10 - Questão 44, Enem 2010
181
Na questão acima, o que está em foco é a interpretação do texto. O candidato
deve demonstrar ter compreendido o sentido global do fragmento em destaque,
segundo o qual as ações humanas individuais adquirem um sentido coletivo e
político, considerando a dimensão histórico-social da ética na contemporaneidade.
Não são exigidos, aqui, conhecimentos históricos, como o faz a questão 25
anteriormente citada, mas habilidades de leitura e interpretação textual.
Muitas questões do Enem estruturam-se dessa forma, com ênfase na
interpretação do texto, que por si é capaz de responder à questão. Com efeito, a
leitura é descrita, na Fundamentação teórico-metodológica (BRASIL, 2005), como
uma arquicompetência, responsável por articular as demais competências e
habilidades. Segundo esse documento, a área “Linguagens, códigos e suas
tecnologias” está presente na descrição de todas as competências, pois
O grupo autor da matriz resolveu elegê-la como uma
arquicompetência. Esse grupo, formado de professores de várias
disciplinas, indicou que, sem o desenvolvimento pleno da atividade
leitora, todas as competências e habilidades avaliáveis teriam suas
possibilidades reduzidas ou interrompidas. Pela primeira vez, em
situação de avaliação institucional, assume-se o papel essencial da
leitura como pré-requisito básico. (BRASIL, op. cit., p. 59).
Subjaz à citação, uma visão instrumental da leitura, considerada condição
para o desenvolvimento de outras competências e habilidades. O desenvolvimento
da leitura não parece ser propriamente um fim em si, mas um meio para outros fins,
um “pré-requisito básico”. Destacamos, também, o discurso da inovação presente no
fragmento acima, segundo o qual “Pela primeira vez, em situação de avaliação
institucional” assumiu-se o papel essencial da leitura, ou seja, o exame é
apresentado como inovador, como instrumento que, antes dos demais, focalizou a
leitura. Nesse trecho, enfatizado pela expressão “pela primeira vez”, afirma-se a
distinção do exame. Trata-se de uma ideia, difundida pelo discurso oficial, que aos
182
poucos vem se tornando hegemônica, induzindo (por meio do papel indutor do
Estado), dirigentes de IES, sistemas de ensino e alunos a aderirem ao Enem.
Por fim, encontramos no Enem questões centradas quase exclusivamente no
conhecimento formal escolar (fórmulas, conceitos, definições, conhecimentos
históricos etc), assumindo o texto que contextualiza a questão uma função
ilustrativa. Observemos dois exemplos:
Ilustração 11 - Questão 24, Enem 2010
A questão 24 acima, retirada do Enem 2010, apresenta um fragmento
adaptado do Alvará de liberdade para as indústrias, no qual o Príncipe Regente
183
apresenta seu projeto industrializante para o Brasil. O foco da questão, porém, não
reside propriamente no que é apresentado no texto, mas nas características do
período histórico responsáveis pela não concretização do projeto. O texto, por
conseguinte, não fornece quaisquer indicações para a resposta, assumindo uma
função ilustrativa.
Vejamos agora a questão 83 do Enem 2010 (área: “Ciências da natureza e
suas tecnologias”):
Ilustração 12 - Questão 83, Enem 2010
184
O texto de referência da questão 83 acima reproduzida, retirado de um site,
fornece informações elementares sobre a definição de “soluto”, “solvente” e
“solução” – definições geralmente aprendidas ainda no ensino fundamental. O foco
da questão, no entanto, não reside nessas definições, mas em conhecimentos mais
aprofundados, referentes à concentração em mol/l da sacarose no café. O texto
poderia até mesmo ser desconsiderado, já que não acrescenta informações
significativas para a resolução do problema apresentado.
Muitas questões do Enem, após sua reestruturação em 2009, apresentam um
formato muito próximo ao da questão 83, o que evidencia maior ênfase dada aos
conhecimentos formais escolarizados, como fórmulas, definições, eventos históricos.
Nesse sentido, esse exame em larga escala aproximou-se bastante dos tradicionais
„vestibulares‟, conforme afirmamos acima, ficando, por extensão, mais próximo do
que já era ensinado nas escolas.
Com base nessas observações, consideramos o Enem exemplar de um
gênero complexo, ainda não muito bem compreendido, fruto de transformações
ocorridas nas últimas décadas do século XX. No Enem, os avaliadores adotam um
olhar responsivo a uma tendência instituída por uma agenda globalmente
estruturada para a educação, e adotam também um olhar responsivo para a
realidade
da
escola
interdisciplinaridade,
brasileira,
para
uma
ainda
forma
não
de
totalmente
avaliação
preparada
que
para
a
desconsidera
o
conhecimento enciclopédico, as fórmulas, os conceitos. Nessa disputa, insere-se o
Enem, advogando a favor do novo, do „inovador‟, mas mantendo muitas práticas
tradicionais.
Como exemplo dessa hibridização que perpassa o exame, podemos citar a
própria seleção de textos tematizados. A priori, é preciso considerar que a forma de
185
apresentação dos textos (fragmentados ou adaptados), além de evidenciar uma
concepção escolarizada de leitura, é um movimento de constituição de um estilo
didático. Bunzen (2007, p. 87) define “estilo didático” como uma maneira específica
de apreciação valorativa sobre os objetos de ensino, considerando as discussões de
Bakhtin (1992) sobre estilo do gênero e estilo do autor.
Nesta dissertação, definimos estilo didático como uma ressignificação do
objeto que se pretende avaliar condicionada pela imagem de aluno que se projeta no
exame. Ora, a adaptação ou fragmentação de textos é um movimento de
didatização por meio do qual suprimem-se, por exemplo, partes que se possam
considerar difíceis de compreender. A leitura do texto é, portanto, facilitada. Essa
fragmentação e/ou adaptação de textos, sendo condicionada pela imagem de aluno
projetada na prova, evidencia uma concepção de sujeito-avaliado pouco afeito a
textos mais longos, isto é, um leitor de fragmentos, de trechos, usualmente utilizados
para contextualizar ou ilustrar uma questão.
A seleção dos textos que compõem o Enem, por outro lado, revela a
complexidade que permeia o exame. Beth Marcuschi (2006, p. 81), ao observar os
textos que compõem o Enem, afirma que esses textos
ainda estão centrados naqueles mais utilizados na escola e nos
livros didáticos, como os da esfera jornalística, literária e do lazer,
deixando de se fazerem presentes textos multimodais (que unem
linguagem verbal e não verbal) e de uso na prática cotidiana, como
formulários, panfletos, tabelas, instruções, propagandas, gráficos,
diagramas, entre outros, que requerem uma leitura não linear.
Concordamos em parte com a afirmação da autora. Primeiramente,
destacamos que a pesquisadora analisa o Enem em suas edições anteriores à
reformulação de 2009 e que, atualmente, algumas mudanças já são observadas.
186
O exame, segundo observou Beth Marcuschi em edições anteriores à edição
de 2009, na edição de 2010 continuou pouco utilizando textos de uso na prática
cotidiana. Todavia, acreditamos que a seleção de textos não esteja mais centrada
apenas naqueles mais utilizados na escola e nos livros didáticos. A forma de
apresentação dos textos talvez esteja próxima à forma como os livros didáticos e as
instituições de ensino trabalham os textos: fragmentados e adaptados, isto é,
facilitados para a leitura. Todavia, a seleção desses textos parece evidenciar uma
lenta mudança em curso. Observemos, a título de exemplificação, as questões 133
da edição 2010 do Enem e 104 da edição 2009 (área: Linguagens, códigos e suas
tecnologias):
187
Ilustração 13 - Questão 133, Enem 2010
Ilustração 14 - Questão 104, Enem 2009
188
Primeiramente, chama-nos a atenção a fonte de onde foram retirados os
fragmentos de texto sobre os quais incidem as questões: na questão 133 temos um
trecho de Cibercultura, do filósofo Pierre Lévy, enquanto na questão 104 temos um
fragmento da obra Cognição, linguagem e práticas interacionais, de autoria do
linguista Luis Antonio Marcuschi. Trata-se de textos acadêmicos, em geral distantes
daqueles usualmente abordados na esfera escolar com propósitos de ensinoaprendizagem. Nesse sentido, podemos discordar, em parte, da observação feita
por Beth Marcuschi, segundo a qual o Enem aborda textos tipicamente escolares,
como os que estão geralmente presentes em livros didáticos.
Em segundo lugar, a própria temática escolhida para ser objeto das questões
supracitadas não deixa de ser peculiar: o hipertexto e as novas formas de
comunicação/interação advindas do ciberespaço. Se a escola, conforme destacam
muitos pesquisadores, a exemplo de Beth Marcuschi (2006), pouco tem trabalhado
com textos multimodais, o que dizer do trabalho com gêneros hipertextuais ou
mesmo hipermodais? Nesse sentido, as reflexões suscitadas nas questões 133
(Enem 2010) e 104 (Enem 2009) parecem inovadoras, refletindo um olhar
responsivo dos avaliadores às discussões atuais sobre as novas formas de
linguagem e interação mediadas por gêneros digitais. Ao trazer fragmentos de textos
acadêmicos, estabelece-se, ademais, um perfil de sujeito-avaliado capaz de ler,
compreender e construir reflexões em torno de tais textos. Por outro lado, não se
supõe propriamente um sujeito com plena proficiência em textos acadêmicos,
considerando que esses textos se apresentam fragmentados e facilitados para a
leitura – um movimento que caracteriza o estilo didático do exame.
A respeito da seleção de textos multimodais – um ponto „fraco‟ no Enem,
segundo a visão de Beth Marcuschi (2006) – , observamos que o exame parece não
189
guardar uma unidade quanto à utilização destes textos nas questões, distribuindo-os
conforme a área do saber avaliada. Assim, a área de Ciências humanas e suas
tecnologias apresenta, na edição 2010, a menor quantidade de questões que
utilizam textos multimodais (apenas quatro), sendo um gráfico, dois esquemas e
uma tirinha. A área “Matemática e suas tecnologias”, por outro lado, é a que mais
utiliza textos multimodais. Estes, porém, limitam-se a gráficos e figuras cuja função é
ilustrar ou esclarecer alguma informação difícil de ser expressa apenas por palavras
(por exemplo: a representação do volume em uma figura geométrica). Seguindo a
mesma tendência, a área “Ciências da natureza e suas tecnologias” apresenta
grande quantidade de figuras com funções similares às figuras presentes em
“Matemática e suas tecnologias”. É possível perceber, porém, maior variedade de
textos multimodais, como mapas e imagens, por exemplo. Por fim, a área
“Linguagens, códigos e suas tecnologias” possui maior diversidade no que concerne
à utilização de textos multimodais, sendo possível encontrar, nessa área, imagens
de obras de arte, charges, propagandas e infográficos.
Ao analisar o Enem 2010, pudemos perceber dois modos de abordagem
desses textos multimodais: 1. Os textos são meramente figurativos ou visam a,
didaticamente, facilitar a compreensão de um problema, assumindo, assim, uma
função secundária ou auxiliar; 2. os textos devem ser analisados, interpretados, pois
são o foco da questão. Observemos um exemplo de cada uma dessas abordagens:
190
Ilustração 15 - Questão 54, Enem 2010
Na questão 54 acima reproduzida, retirada do Enem 2010 (área: Ciências da
natureza e suas tecnologias), a imagem destacada tem uma função meramente
figurativa, ilustrando o desaparecimento de uma das faixas de Júpiter. O foco dessa
questão não reside propriamente na interpretação dessa imagem, que, em último
caso, poderia até mesmo ser suprimida, já que a informação central necessária para
a interpretação da questão encontra-se no texto verbal abaixo da imagem. Diferente
função assume o texto multimodal presente na questão 75 da mesma edição do
exame, na mesma área avaliada. Vejamos:
191
Ilustração 16 - Questão 75, Enem 2010
192
Na questão acima, o mapa precisa ser interpretado, correlacionado ao texto
verbal para que o candidato encontre a resposta correta. Este deve basicamente
identificar no mapa (que não apresenta legendas) qual a região representada pelas
setas e qual o tipo de vegetação característico dessa determinada região. Nesse
sentido, o mapa não apresenta uma função meramente ilustrativa: está, de forma
intricada, relacionado ao texto verbal.
De fato, conforme observou Beth Marcuschi (2006), o Enem não apresenta
muita variedade no que concerne à utilização de textos multimodais, assumindo
esses textos, muitas vezes, uma função ilustrativa ou auxiliar. A seleção desses
textos dá-se em função de uma determinada imagem de destinatário, nesse caso,
um leitor de textos em sua maioria verbais, que utiliza eventualmente imagens,
gráficos, tabelas e figuras com o objetivo de esclarecer alguma informação não
muito bem compreendida ou não muito bem expressa apenas por palavras.
Outra característica estilístico-composicional que singulariza o exame é
intenção de transmitir valores relacionados à formação cidadã, conforme
discutiremos a seguir.
4.3 Um olhar sobre as propostas de redação: formação para o consenso
Segundo Zanardini (2008), nas últimas décadas, de forma explícita, delineiase na escola uma tendência de transmissão de valores, de ajustamento social à
nova ordem produtiva. Os temas transversais nos PCN, abrangendo a ética, a
pluralidade cultural, o meio ambiente, saúde, orientação sexual, trabalho e consumo,
são exemplos dessa tendência. O autor destaca que os parâmetros conferem
relevante importância às atitudes “com relação aos conteúdos preponderantemente
193
de caráter moral e ideológico” (p. 141). A importância dada a essas atitudes se
firmaria “como pressuposto político necessário e sustentador da ordem social
estabelecida” (idem).
De fato, os PCN afirmam que “As atitudes têm a mesma
importância que os conceitos e procedimentos, pois, de certa forma, funcionam
como condições para que eles se desenvolvam” (BRASIL, 1998, p. 50).
É no mínimo curiosa essa afirmativa segundo a qual conceitos teriam a
mesma importância que as atitudes, pois o desenvolvimento de atitudes positivas,
de valores éticos passa a ser explicitamente enunciado como função da escola. É
claro que a essa instituição foi, desde a origem, delegado esse papel. Todavia, nos
últimos anos passa-se a defendê-lo de forma explícita, sob o auspício do discurso da
„modernidade‟.
Para Zanardini (2008, p. 141-142), a transmissão de valores com vistas ao
ajustamento social, tendência expressa nos PCN e seguida pelo Enem,
é decorrente, a exemplo de outros momentos históricos, da „atenção
especial dedicada‟ à educação em razão do seu papel estratégico. A
educação fortaleceria o consenso em torno dos ideais neoliberais e
da globalização com sua retórica de alívio da pobreza. Nessa
conjuntura a educação tem reiterada a sua perspectiva „redentora‟,
capaz de equacionar e amenizar as desigualdades sociais.
Ramos (2001, p. 30), por sua vez, destaca que, desde o século XVIII, “a
educação se insere no plano de luta hegemônica, devido à sua dimensão
socializadora e de formação de consciência que prevalece inicialmente, já que a
consolidação da cidadania é o seu mote principal”.
Com efeito, o Enem tem como referência o conceito de cidadania e como um
dos propósitos a formação cidadã. Na Fundamentação teórico-metodológica, lê-se a
seguinte afirmativa (BRASIL, 2005, p. 14):
194
O direito de todas as crianças percorrerem os ciclos que compõem a
escola fundamental é uma conquista recente e importante. Está
expresso, por exemplo, na Declaração dos Direitos Humanos
(1948), no Estatuto da Criança e do Adolescente (1990), em nossa
atual Constituição Brasileira (1988) e, mais recentemente, na Lei de
Diretrizes e Bases da Educação Nacional (1996). Com isso,
pretende-se que a escola seja para todos e que nela as crianças
possam formar valores, normas e atitudes favoráveis à sua
cidadania e dominarem competências e habilidades para o
mundo do trabalho e da vida social, nos termos em que hoje se
expressam. (grifos nossos).
A articulação formação cidadão/competências e habilidades para o mundo do
trabalho estaria a serviço da regulação e ajustamento social necessários à
reestruturação produtiva. Se à escola cumpre a função de promover tal articulação,
os exames em larga escala, enquanto gêneros que auditam essa instituição, tendem
a trazer textos ou promover situações que abordem diretamente questões
relacionadas à formação cidadã e à formação para o trabalho. No Enem, é
perceptível essa tendência nas propostas de redação.
Um levantamento dessas propostas, desde a primeira edição do exame, em
1998, até a edição de 2010, nos permitiu verificar uma confluência nos temas.
Vejamos a tabela a seguir.
195
ANO
1998
1999
2000
2001
2002
2003
2004
2005
2006
2007
2008
2009
2010
TEMA DA REDAÇÃO
“Viver e aprender”
“Cidadania e participação social”
“Direitos da criança e do adolescente:
como enfrentar esse desafio nacional?”
“Desenvolvimento
e
preservação
ambiental: como conciliar os interesses
em conflito?”
“O direito de votar: como fazer dessa
conquista um meio para promover as
transformações sociais de que o Brasil
necessita?”
“A violência na sociedade brasileira:
como mudar as regras desse jogo?”
“Como garantir a liberdade de
informação e evitar abusos nos meios
de comunicação?”
“O trabalho infantil na realidade
brasileira”
“O poder de transformação da leitura”
“O desafio de se conviver com a
diferença”
“Preservação da floresta amazônica”
“O indivíduo frente à ética nacional”
“O trabalho na construção da dignidade
humana”
Tabela 2 – Temas das propostas de redação do Enem (1998-2010)
É possível perceber uma tendência nas propostas de redação em abordar
temáticas relacionadas a cidadania, ética, meio ambiente, trabalho. De 2000 a 2004,
propõe-se explicitamente um problema, introduzido pelo advérbio interrogativo
“como”, que deve ser resolvido por meio da argumentação. O candidato deve, então,
selecionar, organizar e relacionar argumentos, fatos e opiniões para defender seu
ponto de vista, elaborando propostas para a solução do problema discutido.
A ênfase, nas propostas de redação, parece recair sobre as competências 4 e
5, quais sejam: Construir argumentação e Elaborar proposta de intervenção solidária
na realidade, respeitando os valores humanos e considerando a diversidade
sociocultural. Nessas propostas, quase sempre o candidato é advertido sobre a
196
necessidade de respeitar, em sua argumentação, os direitos humanos, evidenciando
o quão ideologicamente marcadas são as propostas.
Nesse sentido, o exame forma para o consenso, procurando instituir valores
relativos a uma “cidadania possível”. Segundo Ramos (2001, p. 140), nas reformas
curriculares propostas para o ensino médio,
a cidadania não é resgatada como valor universal, mas como a
cidadania possível, conquistada de acordo com o alcance dos
próprios projetos individuais e segundo os valores que permitam
uma sociabilidade pacífica e adequada aos padrões produtivos e
culturais contemporâneos.
Afirmamos que o Enem constroi valores relativos a essa “cidadania possível”,
uma vez que se pode perceber, nas propostas de redação, o direcionamento para
uma posição pré-estabelecida, pautada na intervenção solidária e no respeito aos
direitos humanos. Ademais, temas mais polêmicos, que possam gerar certas
divergências, parecem ser evitados. A proposta de 2010, por exemplo, embora
apresente um texto motivador sobre o trabalho escravo nos dias atuais, direciona o
candidato avaliado a assumir que o trabalho „dignifica o homem‟. Assim, institui-se
uma „socialização pacífica‟ do aluno/candidato avaliado, imerso em uma realidade
na qual “as desigualdades são sublimadas em nome do direito à diferença”
(RAMOS, 2001, p. 135).
A primeira edição do exame, por outro lado, apresentou uma proposta de
redação bastante simples e centrada em um tema abstrato (“Viver e aprender”).
Nessa primeira edição foi fornecido apenas um texto motivador para leitura e
elaboração da redação (trecho da música “O que é o que é”, de Gonzaguinha),
diferentemente das propostas dos anos subsequentes, as quais, disponibilizando
mais textos, possibilitaram melhor uma análise, seleção e organização de
argumentos. Em 1998, a proposta de redação solicitava ao candidato: Redija um
197
texto dissertativo, sobre o tema “Viver e Aprender”, no qual você exponha suas
idéias de forma clara, coerente e em conformidade com a norma culta da língua,
sem se remeter a nenhuma expressão do texto motivador “O Que É O Que É”.
Parece-nos problemática essa proposta por vários motivos. Primeiro, porque
disponibilizava apenas trechos de um único texto, não apresentando maior
diversidade de ideias para reflexão; segundo, porque o tema era bastante vago,
abstrato; terceiro, porque solicitava que a redação não remetesse a nenhuma
expressão do texto motivador, sem deixar claro o porquê dessa exigência,
destituindo, ademais, o caráter de „motivador‟ ao texto (se se trata de um texto
motivador, qual o problema em se travar um diálogo intertextual entre a redação
produzida e esse texto?). Poderíamos também acrescentar o fato de o Enem
solicitar apenas dissertações ou dissertações-argumentativas em suas propostas,
algo criticado por pesquisadores da linguagem. Todavia, é preciso destacar que
esse exame avalia competências e habilidades desenvolvidas pela escola,
centrando-se, por conseguinte, em uma concepção escolarizada de leitura/escrita,
estabelecendo, ademais, um padrão médio de aluno egresso do ensino médio em
um país de dimensões continentais.
Por fim, a precariedade da proposta de redação de 1998 deve ser decorrente
da fase experimental do exame. Segundo afirmamos no capítulo 3 desta
dissertação, exames em larga escala parecem ter como um de seus objetivos
precípuos o autoaperfeiçoamento, por meio de experimentações prévias, pesquisas
e estudos sobre sua própria qualidade. Assim, se a proposta de 1998 apresentavase relativamente rudimentar, os anos subsequentes evidenciam uma evolução,
expondo mais textos para reflexão, propondo temas menos abstratos, mais voltados
para a ação e intervenção solidária e cidadã.
198
A predileção por temáticas ideologicamente acentuadas, voltadas para a ação
cidadã, não nos parece arbitrária, mas motivada por um projeto que concebe a
educação como área estratégica para o desenvolvimento econômico e, por
extensão, para formação daqueles que deverão ser futuramente inseridos no setor
produtivo – indivíduos que, em seus locais de trabalho e na sociedade, deverão
conviver com a diversidade, que deverão pensar sobre o desenvolvimento
sustentável, que deverão propor ações para a intervenção em seu meio.
4.4 Terceira síntese intermediária
Neste capítulo defendemos que o estilo do Enem constitui-se a partir de uma
situação sócio-histórica peculiar. De um lado, o exame materializa um olhar
responsivo dos avaliadores aos „signos da modernidade‟, às propostas de reformas
dos currículos da educação básica, que tendem a enfatizar a interdisciplinaridade, a
educação voltada para a formação cidadã, o conhecimento procedimental, voltado
ao aprender como fazer. Nesse sentido, o Enem estrutura-se ou evidencia uma
pretensão a se estruturar por competências e habilidades, situações problemas
contextualizadas e interdisciplinares. Documentos oficiais que versam sobre o
exame, como sua Fundamentação teórico-metodológica, investem em uma retórica
da inovação.
Por outro lado, o exame também materializa um olhar responsivo à realidade
da educação brasileira, que ainda não incorporou totalmente as „inovações‟
pretendidas
e
aclamadas
nas
últimas
décadas.
Assim,
o
Enem
sofre
reestruturações, como o agrupamento de questões segundo quatro áreas do
conhecimento, passando também a abordar mais conhecimentos escolarizados,
199
como conceitos, definições e fórmulas. Ao lado de questões relativamente
inovadoras é possível encontrar questões bem tradicionais, muito próximas das que
são usualmente abordadas em livros didáticos.
No que concerne à forma composicional do exame, além da reestruturação
ocorrida em 2009, destacamos a pouca variedade na apresentação das questões,
quase sempre do tipo “afirmação incompleta”, e a predominância de fragmentos de
textos adaptados, revelando uma concepção escolarizada de leitura.
Por fim, é possível perceber que além de tematizar competências e
habilidades, o Enem visa à transmissão de valores e formação de condutas,
conforme evidencia a predileção, nas propostas de redação, por temáticas
ideologicamente acentuadas, voltadas para a ação cidadã.
200
5 CONCLUSÕES
No início desta dissertação, questionamos se exames em larga escala como o
Enem não constituiriam gêneros do discurso em um contexto de redefinição do
papel do Estado e reformas educacionais. Ao propor essa questão, tentávamos
compreender como esse exame em específico materializava uma ação normativa,
baseada no controle, no mérito, na qualificação e classificação de indivíduos e
sistemas de ensino.
Dois objetivos específicos nortearam esta pesquisa, quais sejam 1. Analisar a
dimensão social na qual se constituem exames como o Enem. 2. Analisar a
dimensão verbal desse exame, atentando para seus aspectos estilísticocomposicionais.
Conforme discutimos principalmente no capítulo 2, os atuais exames em larga
escala remontam aos exames escolares, os quais surgem em um contexto de
consolidação da sociedade burguesa e de seus ideais. Os exames em larga escala,
por sua vez, emergem em um contexto de crise do capitalismo, momento em que
são propostas reformas do papel do Estado e reformas educacionais. Como
exemplar desse gênero, o Enem procura atuar explicitamente na reforma do ensino
médio, sendo, para tanto, revestido de estratégias de consenso – a difusão de ideias
sobre a importância de se ensinar e avaliar por competências, a distinção do exame
como algo „inovador‟ – e de coerção: considerando o conceito de Estado educador,
inserido no conceito de Estado ampliado de Gramsci (2002), percebemos que, para
a implantação da avaliação externa da educação, há os mecanismos de coerção aos
que não aderirem ao exame, como a participação em programas de financiamento, a
exemplo do ProUni.
201
Ao longo do capítulo 3, sobretudo, pudemos demonstrar, por meio da análise
de documentos diversos – Fundamentação teórico-metodológica do Enem (BRASIL,
2005), pronunciamento do Ministro da Educação, Notas técnicas etc – que o Enem,
enquanto exame em larga escala, é fruto de uma situação sócio-histórico peculiar,
caracterizada pela ofensiva neoliberal, que apregoa a educação como condição para
o desenvolvimento econômico dos países. Os exames em larga escala, de forma
geral, partindo de experimentações prévias e experiências de outros países,
atuariam na implantação do modelo público-gerencial, fundamentado, dentre outros,
na aferição de metas claras e objetivas (por exemplo: ensinar o que os exames
avaliam; aferir os resultados do ensino-aprendizagem).
Ao analisar a dimensão social do Enem (primeiro objetivo de pesquisa),
pudemos compreender como esse exame se estrutura em um contexto de
redefinição do papel do Estado, como reação-resposta às propostas de reformas
educacionais para o ensino médio. Defendemos, nesta dissertação, que exames
como o Enem constituem gêneros do discurso complexos, vinculados à ação
normativa Estatal.
Sobre a dimensão verbal do Enem (segundo objetivo de pesquisa),
defendemos, principalmente no capítulo 4, que esse exame, ao se constituir como
reação-resposta às propostas de reformas curriculares para o ensino médio, assimila
o conceito de competências, tentando ultrapassar uma avaliação centrada em
conteúdos. Todavia, como não pode existir nada absolutamente inovador, é possível
encontrar questões bastante tradicionais no Enem, ainda centradas em fórmulas,
definições ou acontecimentos históricos – algo próximo, portanto, das questões
encontradas em livros didáticos ou em exames escolares tradicionais que o Enem
202
procura superar. Nesse sentido, os aspectos estilístico-composicionais do Enem
constituem-se em um movimento de distanciamento e assimilação do tradicional e
do inovador. Ademais, no que concerne às propostas de redação, é possível
perceber uma postura conservadora, pautada não na formação de uma cidadania
emancipatória, mas de uma „cidadania possível‟, que visa à inserção pacífica no
mundo do trabalho. Assim, o Exame tende a sublimar as desigualdades em nome do
direito à diferença.
Por fim, devemos destacar que, com a crescente adesão de instituições de
ensino superior, sobretudo instituições federais de ensino, à utilização do exame
como seleção para o ingresso de alunos em seus cursos superiores, o Enem tornase cada vez mais visível em nossa sociedade. Ao que nos parece, contribui de forma
decisiva para essa crescente visibilidade as estratégias de consenso/coerção
citadas anteriormente. Nesse sentido, o Enem, aos poucos, torna-se uma questão
hegemônica. A pesquisa acadêmica tem, então, a finalidade de refletir criticamente
sobre aquilo que se naturaliza, que se apresenta como a verdade. Foi a partir do
desejo de refletir sobre uma questão cada vez mais hegemônica que esta
dissertação tomou forma.
Não procuramos, certamente, esgotar essa questão,
apenas tecer alguns apontamentos que poderão mover discussões futuras.
203
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208
ANEXOS
209
ANEXO A - Proposta à Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais
de Ensino Superior
210
211
212
213
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215
216
ANEXO B – Enem: um exame diferente
217
Enem: Um exame diferente25
O Enem é um exame individual, de caráter voluntário, oferecido anualmente aos
estudantes que estão concluindo ou que já concluíram o ensino médio em anos
anteriores. Seu objetivo principal é possibilitar uma referência para autoavaliação, a partir das competências e habilidades que estruturam o Exame.
O modelo de avaliação adotado pelo Enem foi desenvolvido com ênfase na
aferição das estruturas mentais com as quais construímos continuamente o
conhecimento e não apenas na memória, que, mesmo tendo importância
fundamental, não pode ser o único elemento de compreensão do mundo.
Diferentemente dos modelos e processos avaliativos tradicionais, a prova do
Enem é interdisciplinar e contextualizada. Enquanto os vestibulares promovem
uma excessiva valorização da memória e dos conteúdos em si, o Enem coloca o
estudante diante de situações-problemas e pede que mais do que saber
conceitos, ele saiba aplicá-los.
O Enem não mede a capacidade do estudante de assimilar e acumular
informações, e sim o incentiva a aprender a pensar, a refletir e a “saber como
fazer”. Valoriza, portanto, a autonomia do jovem na hora de fazer escolhas e
tomar decisões.
Histórico
Na sua 1ª edição, em 1998, o Enem contou com um número modesto de 157,2
mil inscritos e de 115,6 mil participantes. Na 4ª edição, em 2001, já alcançava a
marca expressiva de 1,6 milhão de inscritos e de 1,2 milhão de participantes.
Uma medida importante para democratizar o Enem foi a isenção do pagamento
da taxa de inscrição para os alunos da escola pública. O apoio das Secretarias
Estaduais de Educação, das escolas de ensino médio e das instituições de
ensino superior (IES) foi outro fator decisivo para o sucesso do Exame.
A popularização definitiva do Enem veio em 2004, quando o Ministério da
Educação instituiu o Programa Universidade para Todos (ProUni) e vinculou a
concessão de bolsas em IES privadas à nota obtida no Exame. No ano seguinte,
o Enem alcançava a marca histórica de 3 milhões de inscritos e 2,2 milhões de
participantes. Em 2006, o Enem estabeleceu novo recorde, com 3,7 milhões de
inscritos e 2,8 milhões de participantes.
O principal incentivo para que os concluintes e egressos do ensino médio façam
o Exame é a possibilidade concreta de carimbar o passaporte de ingresso ao
ensino superior. Afinal, a nota obtida no Enem pode significar tanto uma bolsa
integral ou parcial do ProUni quanto a conquista de uma vaga em algumas das
mais prestigiadas instituições de ensino superior do País, entre elas as
universidades públicas mais concorridas.
Já são mais de 600 IES cadastradas no Inep para utilizar os resultados do Enem
25
Esse documento encontrava-se disponível no site do MEC/INEP (www.enem.inep.gov.br) até 2009.
218
em seus processos seletivos, seja de forma complementar ou substitutiva. As
universidades têm autonomia para organizar seus processos seletivos. Muitas
delas já substituíram ou estudam substituir o vestibular pelo Enem.
A trajetória de uma década do Exame já merece um destaque na história da
educação brasileira, tão marcada por instabilidades administrativas e
descontinuidades das políticas públicas. É um caso de sucesso que deve
suscitar reflexões e debates.
Uma explicação plausível para o êxito dessa iniciativa pode ser encontrada na
diferenciação, em voga no discurso público atual, entre „política de Estado‟ e
„política de governo‟.
À primeira categoria pertenceriam iniciativas que, em razão do amplo consenso
quanto à sua relevância e interesse público, teriam continuidade assegurada
independentemente de alternâncias de governo. Já a segundo categoria referese a programas que, identificados com a plataforma político-ideológica de
determinado partido e/ou administração, estariam fadados à descontinuidade em
face de mudanças de governo.
Nesta perspectiva, o Enem pode ser visto como um bom exemplo de política de
Estado. Afinal, já atravessou duas administrações sem sofrer qualquer solução
de continuidade.
Além disso, desde a sua primeira aplicação tem havido um esforço permanente
para aprimorar a estrutura conceitual e a metodologia de avaliação utilizada.
Graças a esse tratamento como política de estado, a legitimidade e credibilidade
do Exame também foram fortalecidas ao longo do tempo.
Hoje, o Enem é um patrimônio da sociedade brasileira e tem o seu valor
reconhecido pela comunidade educacional. Como órgão responsável pelo
desenvolvimento e coordenação do Exame, o Inep se empenhou desde o início
em conquistar o apoio dos sistemas de ensino, das instituições de ensino
superior e da comunidade de especialistas e educadores.
Os pressupostos teórico-metodológicos do Enem, fundamentados na LDB e nas
diretrizes e parâmetros curriculares nacionais, foram explicitados e divulgados
junto à comunidade educacional. A proposta recebeu contribuições de
especialistas em avaliação e currículo, pedagogos e profissionais do ensino com
larga experiência em sala de aula.
O desenvolvimento do Enem, nos últimos dez anos, acompanhou as profundas
mudanças legais, organizacionais e curriculares que atingiram todas as etapas e
modalidades de educação, da pré-escola à educação superior.
Como instrumento educativo, o Enem precisa ser flexível para acompanhar as
mudanças. Afinal, a educação é, por natureza, dinâmica e deve ser
continuamente interrogada criticamente e reinventada como projeto coletivo e
prática social.
Ao completar dez anos, o Enem ocupa lugar de destaque na agenda educacional
brasileira pela sua contribuição para a reorganização e reforma do currículo do
ensino médio, democratização do acesso ao ensino superior e, em última
219
instância, melhoria da qualidade da educação básica.
Objetivos do Enem
O principal objetivo do Enem é avaliar o desempenho do aluno ao término da
escolaridade básica, para aferir desenvolvimento de competências fundamentais
ao exercício pleno da cidadania. Desde a sua concepção, porém, o Exame foi
pensado também como modalidade alternativa ou complementar aos exames de
acesso aos cursos profissionalizantes pós-médio e ao ensino superior.
Este objetivo vem sendo atingido um pouco mais a cada ano, graças ao esforço
do Ministério da Educação na sensibilização e convencimento das instituições de
ensino superior (IES) para o uso dos resultados do Enem como componente dos
seus processos seletivos. Muitas IFES já aderiram.
Além disso, o Enem tem como meta possibilitar a participação em programas
governamentais de acesso ao ensino superior, como o ProUni, por exemplo, que
utiliza os resultados do Exame como pré-requisito para a distribuição de bolsas
de ensino em instituições privadas de ensino superior.
O Enem busca, ainda, oferecer uma referência para auto-avaliação com vistas a
auxiliar nas escolhas futuras dos cidadãos, tanto com relação à continuidade dos
estudos quanto à sua inclusão no mundo do trabalho. A avaliação pode servir
como complemento do currículo para a seleção de emprego.

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