- iv rea | xiii abanne

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IV REUNIÃO EQUATORIAL DE ANTROPOLOGIA
XIII REUNIÃO DE ANTROPÓLOGOS DO NORTE E NORDESTE
04 A 07 DE AGOSTO DE 2013
FORTALEZA – CE
GT 43: SABERES LOCAIS, REGIONAIS E TRANSNACIONAIS NA
INTERFACE ENTRE ALIMENTAÇÃO E CULTURA
A Comida Hare Krishna em Fortaleza
VANESSA MOREIRA DOS SANTOS
[email protected]
UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO
A casa era branca assim como muitas da mesma rua, mas o passar
pelo portão revelava a entrada em uma realidade outra. Para adentrá1
la era preciso estar descalço , para não sujar o chão com resquícios do
que ficaria para trás. A música mais do que contagiava, as imagens
surpreendiam, as cores se propagavam e os perfumes me confundiam
o sentido; eram incensos, flores e comidas. O espaço era sagrado e
todos que ali estavam, com suas roupas muito coloridas,
provavelmente buscavam chegar um pouco mais perto daquele deus
de corpo azulado, rosto juvenil, enfeitado com flores, tocando flauta e
brincando. Para se tornar íntimo daquele deus azul era preciso cantar,
dançar e comer; a viagem era para a Índia e para muitos uma viagem
sem volta. (Diário de Campo, março de 2007).
As freqüentes visitas à Casa de Cultura Hare Krishna, espaço de
encontro e realização de cerimônias religiosas, durante quase quatro anos,
permitiram a descrição densa2 do ritual de sacralização do alimento, a prasada,
como expressão da relação dos adeptos do Movimento Hare Krishna -MHKcom a deidade Krishna. Por diversas vezes participei da refeição distribuída no
final da cerimônia para todos os presentes, o que completava, assim, a
intenção de purificação dos sentidos. O ritual se iniciava após todos lavarem
mãos e boca para inspirar a pureza de que nos fala Douglas (2012) e assim
concentrar-se em Krishna. Só então, podia-se entrar em contato com os
alimentos previamente escolhidos de acordo com as restrições religiosas, os
quais oferecidos com reverências e cânticos à Krishna se tornavam prasada.
As freqüentes visitas aos espaços ritualísticos e domésticos, as
entrevistas semi-estruturadas e as leituras das escrituras sagradas, contendo
os princípios religiosos hinduístas, contribuíram para que eu inferisse o
conjunto de significantes em termos dos quais os eventos, fatos, ações, e
contextos, são produzidos, percebidos e interpretados e não procedesse minha
investigação como mera observação e descrição de códigos. De posse dos
dados coletados desenvolvi uma etnografia das práticas alimentares dos
1
Antes de entrar no templo, devotos e visitantes devem retirar os sapatos com a finalidade de manter a
limpeza do local, além de demonstrar humildade, mas “quaisquer que tenham sido as valorizações e
interpretações dadas, no decurso dos tempos, à importância do ritual do limiar do templo ou da casa, ela
explica-se igualmente pela função separadora dos limites [entre sagrado e profano] (...). (ELIADE, 1998,
p.298)
2
O etnógrafo não procede sua investigação como mera observação e descrição de códigos. A maior
preocupação da etnografia é obter uma descrição densa, a mais completa possível, sobre o que um grupo
particular de pessoas faz e o significado das perspectivas imediatas que eles têm do que eles fazem. O
objeto da etnografia é esse conjunto de significantes em termos dos quais os eventos, fatos, ações, e
contextos, são produzidos, percebidos e interpretados, e sem os quais não existem como categoria cultural
(GEERTZ, 2008)
2 integrantes do MHK a partir de uma das visitas realizada na casa de Parama3,
a qual ampliou meu entendimento acerca do campo simbólico inerente à
experiência religiosa dos referidos sujeitos.
A partir de narrativas e em meio às panelas e receitas percebi o
quanto
a
alimentação
com
suas
regulações
religiosas
simbólicas
constantemente exercidas tem um papel fundamental no cotidiano dos adeptos
ao MHK, que precisam tornar sagrado tudo que ingerirem, seja sólido ou
líquido. Por várias vezes, enquanto preparavan as inúmeras receitas, Parama
observou como as restrições sobre determinados alimentos estão relacionados
aos modos de conceber as relações do homem com a natureza e desta, com
emoções, valores etc.
4
No Bhagavad Gita nosso Senhor Krishna diz que todos os alimentos
5
podem ser qualificados conforme os três modos da natureza material :
bondade, paixão e ignorância. Leites e essas coisas, doces naturais,
vegetais, frutas e grãos são alimentos no modo da bondade e podem ser
oferecidos à Krishna, nós podemos comer. O dia também é bondade. A
noite, a bebida, jogar, faz tudo parte dos modos da paixão e ignorância. De
forma geral, os alimentos nos modos da paixão e ignorância não podem se
tornar prasada, por que causam dor e doença: o alho, a cebola e o café.
(Parama, outubro de 2010.)
O conhecimento religioso entre os Hare Krishna é transmitido
mediante o estudo de escrituras sagradas védicas6, principalmente o Bhagavad
Gita, mas em especial pela oralidade, sendo o repasse de receitas, cuja
influência indiana é marcante, um momento privilegiado desse conhecimento.
Enquanto se preparava a comida, geralmente passatempos7 de Krishna eram
narrados, músicas cantadas e evocações à Krishna proferidas.
Entendendo a comida como transmissora de cultura, busquei nos
sistemas de classificação que lhe dão sentido, as qualidades simbólicas dos
alimentos; representações estas que definem a ordem do comestível, as
3
Atual dirigente do Movimento Hare Krishna no Ceará.
Bhagavad Gita é um texto religioso contendo os principais ensinamentos da dogmática religiosa
hinduísta e instruções do serviço devocional.
5
No Bhagavad Gita o termo natureza material é relativo à vida terrena.
6
A tradição védica se estabelece a partir dos Vedas, quatro textos escritos em sânscrito por volta de 1500
a.C., que formam a base do extenso sistema de escrituras sagradas do hinduísmo. (ELÍADE, 1983)
7
Os passatempos se assemelham às parábolas, narrativas curtas que desenvolvem uma moral, explícita
ou implícita.
4
3 modalidades de aquisição, preparação, consumo e partilha do alimento
(POULAIN, 2004).
A prasada: ritual de sacralização da comida
O domingo anunciava mais que uma etapa da pesquisa etnográfica,
onde teria que observar e anotar detalhes da prática alimentar de indivíduos
inseridos no Movimento Hare Krishna. A expectativa era de uma experiência
gastronômica particular, visto que participaria do preparo do almoço de
domingo na casa de uma família reconhecida por suas habilidades na cozinha.
O valor da prasada está no fato de ter sido espiritualizada pelo rito e
comumente, porém significa “refeição”, pois todo alimento deve ser
consagrado. Tais ritos têm um importante componente de transformação
simbólica de elementos naturais, que são “espiritualizados”, relacionando
verticalmente os símbolos e as coisas simbolizadas, e no caso particular, este
tipo de relação hierarquiza os diferentes níveis da realidade e de modos de ser
ao plano divino.
Numa cozinha com muitos detalhes vermelhos, todos precisaram
lavar as mãos e a boca, exigência de higiene para manipulação dos alimentos
que se transformarão em sagrados. De acordo com a literatura védica o hábito
de comer requer o cumprimento de algumas normas, visto que o alimento não
é preparado e consumido apenas com o propósito de satisfazer uma
necessidade fisiológica ou para agradar o paladar e o olfato, mas acima de
tudo para ser um oferecimento a deus. Conforme verso 26, capítulo 9 do
Bhagavad Gita
“... o Senhor Krishna, tendo estabelecido que Ele é o único
desfrutador, o Senhor primordial e o verdadeiro objeto de todas as
oferendas sacrificatórias, revela quais são as classes de sacrifícios
que Ele deseja que Lhe ofereçam. (...) Quem ama Krishna Lhe dará
tudo o que Ele quiser e evitará oferecer algo indesejável ou
inoportuno. Logo, carne, peixes e ovos não devem ser oferecidos a
Krishna. Se Ele desejasse esse tipo de oferenda Ele teria Se
manifestado nesse sentido. Em vez disso, Ele pede claramente que
Lhe dêem folhas, frutas, flores e água, e a respeito desta oferenda Ele
diz que “Eu a aceitarei”. Portanto, convém sabermos que Ele não
aceitará carne, peixe nem ovos. Legumes, cereais, frutas, leite e água
são os alimentos apropriados para os seres humanos e são prescritos
pelo próprio Senhor Krishna.” (BHAKTIVEDANTA, 2006, p. 487)
4 O cardápio, previamente planejado, seria diversificado e em grande
quantidade, tanto para nos apresentar à culinária lactovegetariana, quanto
para ser suficiente para todos os convidados. Todos os ingredientes a serem
utilizados nas receitas já haviam sido previamente adquiridos. Conforme as
instruções8 da Sociedade Internacional para a Consciência de Krishna
(ISKCON) o preparo da prasada se inicia na seleção dos alimentos ao adquirilos.
Começamos a cozinhar, após a distribuição de tarefas, preparando o
Vegetal, que faria parte da composição de alguns pratos. Um dos ingredientes
é o curry, denominação européia para ensopados condimentados. O curry,
enquanto uma especiaria, é uma invenção posterior à dominação inglesa na
Índia. Os europeus criaram um tempero que se aproximava do sabor marcante
da culinária indiana ao misturarem diversas especiarias como o açafrão da
Índia, cardamomo, coentro,
gengibre, cominho, casca de noz moscada,
cravinho, pimenta e canela9. Enquanto cortava os legumes, juntamente com
Parama, observaram a proibição de provar os alimentos durante o preparo,
visto que primeiramente ofereceriam à Krishna, conforme o ritual da prasada.
Vegetal
Ingredientes:
Batata, cenoura, couve-flor, repolho, jerimum, milho e curry.
Modo de preparo:
Cortar todos os legumes em cubos para cozinhar com água e curry.
No balcão da cozinha havia vários livros de receitas indianas e
vegetarianas, mas não foram utilizados. De forma muito ordenada, a realização
de cada prato era explicada passo – a - passo, conforme costumavam fazê-lo,
e as possíveis variações de ingredientes, que tinham suas medidas previstas
de acordo com a experiência culinária, já que não utilizavam utensílios de
medida e não se certificariam do sabor.
Arroz
Ingredientes:
8
9
Anexo 3.
Informação adquirida no site: pt.wikipedia.org/wiki/Caril.
5 Pimenta de cheiro, manteiga e curry.
Modo de preparo:
Refoga-se o arroz com a manteiga e a pimenta; acrescentando água
e curry para o cozimento.
Era perceptível a influência hinduísta10 nos hábitos de Parama e sua
esposa, Satyananda, revelada nas roupas, nos acessórios e principalmente no
ato de cozinhar. Com muita naturalidade apresentavam-me costumes e
receitas tradicionalmente indianas. A presença marcante do curry em diversas
receitas sugere a preocupação de um sabor associado à culinária da Índia.
Masala
Ingredientes:
Pimenta de cheiro, pimentão verde, manteiga, tomate e curry.
Modo de preparo:
Fritar todos os ingredientes na manteiga, acrescentando um pouco
de água.
Originalmente, na Índia, a Masala é uma espécie de molho composta
por especiarias que combinam os sabores amargo, doce, salgado,
adstringente, picante, azedo e amargo. Inevitavelmente, Satyananda adapta os
ingredientes, em virtude da dificuldade de encontrá-los e do alto custo, fazendo
um molho de tomate que será utilizado como acompanhamento em alguns
pratos.
Enquanto a cozinha era tomada por um aroma inconfundível, chegou
o casal convidado para participar do almoço, Goura Nitay e Caitanya11e os
filhos Damodara, Nityananda e Maharani12, que logo foram se investindo de
funções. O encontro das crianças, com idades entre nove e quinze anos, foi
muito festejado, e logo se reuniram para brincar no andar de cima da casa,
onde Parama e Satyananda possuem uma pequena empresa de confecção de
moda feminina.
10
O hinduísmo é considerado um organismo sócio religioso referente a complexidade social da Índia,
conforme explicarei mais adiante.
11
Dono da antiga casa de cultura Hare Krishna Acarapé Mandir.
12
Nomes de registro civil.
6 Enquanto
Caitanya
fritava
os
pastéis
indianos,
contava-nos
parábolas de Krishna e sobre sua vida religiosa, sempre relacionando com
aspectos da Religião Católica, na qual participou do processo de inicialização
para ser padre.
Samossa (Pastel indiano)
Ingredientes da massa:
Farinha de trigo, manteiga e sal.
Ingredientes do recheio:
Vegetal
Modo de preparo:
Misturar com as mãos a farinha de trigo e o sal, acrescentando a
água morna com manteiga aos poucos. Sovar até obter uma massa
homogênea. Deixar descansar. Separar a massa em pequenas bolinhas para
abri-las com um rolo em círculos finos. Acrescentar o recheio e fritar.
Satyananda, mesmo fazendo parte do Movimento Hare Krishna há
mais de quinze anos e assumidamente ter uma dieta lactovegetariana, ao
anunciar o Glúten como integrante do cardápio fez referência ao preparo de
carnes, sugerindo que o sabor seria equivalente.
Glúten
Ingredientes da massa:
1 Kg de farinha de trigo e 3 xícaras de água.
Ingredientes do molho:
Shoyo (molho de soja), curry, cominho, páprica, manjericão e
alecrim.
Modo de preparo:
Misturar a farinha de trigo com 3 xícaras de água. Amassar como se
fosse para fazer pão, pelo menos durante 10 minutos, até ficar uma bola firme.
Cobrir com água fria (numa tigela grande) e deixar de molho pelo menos 1
hora. Lavar a massa, para retirar todo o amido, amassando com as mãos,
dentro da água e mudando de água continuamente até que está saia quase
limpa. Conservar a massa sempre unida para não esfarelar. Colocar a massa
em forma de rolo em uma tábua a fim de escorrer toda a água. Cortar em fatias
7 de 1 centímetro. Cozinhar essas fatias durante 1 hora em panela comum, ou
20 minutos em panela de pressão no molho que deve ser feito com o restante
dos ingredientes. Em seguida, fatiar e fritar em óleo quente.
A cozinha estava equipada com um fogão de seis bocas e permitia
que várias panelas estivessem no fogo sob os cuidados de Caitanya e
Satyananda. Os pratos que iam sendo finalizados eram cuidadosamente
dispostos em travessas sob a mesa da sala de jantar, valorizando assim a
apresentação do banquete.
Kofta
Ingredientes:
Repolho, curry, sal, manjericão e farinha de trigo.
Modo de preparo:
Misturar todos os ingredientes com a mão até que haja consistência
para fazer bolinhas e fritar. Servir com molho de tomate.
Como se fosse uma almôndega de repolho, o Kofta é uma receita
originária da Ásia. Até mesmo Caitanya, que se disse um bom cozinheiro,
estava impressionado com a versatilidade das receitas.
A ajudante da casa já tinha ido embora, uma senhora que foi
preparada para auxiliar nos afazeres domésticos e no preparo das refeições de
forma que respeitasse as normas religiosas seguidas pelos donos da casa.
Assim, todos tentavam deixar o balcão limpo e a pia sem louças sujas, era
indispensável a higiene e organização do ambiente.
Por fim, prepararíamos a sobremesa e o suco, mas Satyananda
queria aproveitar uma quantidade considerável de batatas cortadas que
restaram, era inadmissível que houvesse desperdício.
Gouranga
Ingredientes:
Batata inglesa, curry, molho de tomate, hortelã e queijo.
Modo de preparo:
8 Cozinhar as batatas descascadas com curry e hortelã. Numa forma
untada, intercalar as batatas, o molho de tomate, o creme de leite e o queijo.
Levar ao forno.
Todas as comidas foram colocadas na mesa da sala de jantar
enquanto Parana preparava o ritual que transformaria os alimentos em
prasada, comida sagrada. Em pequenas travessas utilizadas somente para o
ritual, com a finalidade de servir Krishna, Parana colocou uma pequena mostra
de cada tipo de comida, com uma colher reservada para essa função, inclusive
da sobremesa e do suco de caju que estavam sendo terminados às pressas; já
passava do meio dia e as crianças reclamavam estar famintas.
Banana Celestial
Ingredientes:
Banana, açúcar, creme de leite, leite condensado, manteiga e queijo.
Modo de preparo:
Passar as bananas no açúcar para fritá-las na manteiga. Na forma
untada com manteiga, intercalar as bananas fritas com creme de leite, leite
condensado e queijo. Refrigerar.
Enquanto todos aguardavam em pé ao redor da mesa, Parana levou
todas as pequenas travessas para o altar. Organizando-as uma ao lado da
outra na frente dos porta-retratos, pronunciou em voz baixa palavras em
sânscrito; explicando-me que pedia permissão ao Prabhupada para ajudá-lo a
servir Krishna, e repetiu mais duas vezes:
nama om visnu-padaya krishna-presthaya bhu-tale
shrimate bhaktivedanta svamin iti namine
13
namas te sarasvate desen gaura-vani-pracarine
nirvishesha-shunyavadi-pascatya-desa-tarine
14
Em seguida, cantou uma oração ao Senhor Caitanya, repetindo três
vezes:
13
"Eu ofereço minhas respeitosas reverências a Sua Divina Graça A.C. Bhaktivedanta Swami
Prabhupada, que é muito querido pelo Senhor Krishna, por ter se refugiado em Seus pés de lótus”.
14
“Nossas respeitosas reverências são para vós, ó mestre espiritual, servo de Bhaktisiddhanta Sarasvati
Gosvami. Você está bondosamente pregando a mensagem do Senhor Chaitanyadeva e libertando os
países ocidentais, que estão repletos de impersonalismo e niilismo".
9 namo maha-vadanyaya krishna-prema-pradaya te
krishnaya krishna-chaitanya-namne gaura-tvihse namah
15
Sem ler e muito concentrado cantou uma oração de respeito à
Krishna, também repetindo três vezes:
namo-brahmanya devaya-go brahmana-hitaya ca
16
jagad-hitaya krishnaya govindaya namo namah
Finalizando, cantou o conhecido Maha Mantra Hare Krishna, três
vezes.
Hare Krishna, Hare Krishna, Krishna, Krishna, Hare Hare
Hare Rama, Hare Rama, Rama, Rama, Hare Hare
17
Deixamos a sala do altar por alguns minutos, para permitir que
Krishna e as outras entidades espirituais simbolicamente comessem.
Enfatizaram que a verdadeira finalidade desse ritual era demonstrar devoção e
gratidão a deus.
Perguntei a Parama se era sempre preciso a execução de todo o
ritual para poderem se alimentar e com um exemplo simples me respondeu
“Imagina, eu com a pressa do dia a dia, ter que comer uma banana e fazer isso
tudo”. Riu e interpretando o ato continuou:
“Vou descascando a banana e em voz baixa ou mentalmente digo, meu
querido Senhor Krishna, por favor, aceite este alimento, Hare Krishna,
Hare Krishna, Krishna, Krishna, Hare Hare, Hare Rama, Hare Rama,
Rama, Rama, Hare Hare, e antes de terminar o Maha Mantra já tenho
comido a banana.”
Explicou que estando em casa tenta realizar a sistematização
descrita nas refeições principais do dia, no café da manhã, no almoço e no
jantar.
Parama teria que finalizar o ritual da prasada, retornou a sala do
altar e colocou a testa no chão como reverência, retirando as porções de
comida sagrada para recolocá-las nas travessas sob a mesa. A partir deste
15
"Ó encarnação mais munificente! És o próprio Krishna aparecendo como Shri Krishna Caitanya
Mahaprabhu. Assumiste a cor dourada de Shrimati Radharani, e estás distribuindo à vontade o amor puro
por Krishna. Nós oferecemos nossas respeitosas reverências a ti".
16
“Meu senhor, és o benquerente das vacas e dos brahmanas, és o benquerente de toda a sociedade
humana e do mundo inteiro”.
17
“O Senhor todo-atrativo, fonte de todo prazer, ó energia do Senhor, por favor, ocupai-me em Vosso
serviço devocional”.
10 processo ritualístico a comida do almoço passou a ser chamada de prasada e
todos poderiam comer após cantar o Maha Mantra Hare Krishna.
Primeiramente as crianças foram servidas por suas mães, em
seguida os homens fizeram seus pratos e por fim todas as mulheres, de forma
muito ordenada. A louça e os talheres eram de plástico descartável e os copos
de alumínio. Todos foram para uma área externa da casa com seus pratos e
sentaram no chão em círculo, a intenção era que todos pudessem se reunir no
mesmo ambiente para comer e, assim, continuar as conversas que embalaram
toda a manhã.
A partir da prasada é possível conceber a manifestação do sagrado
para Parama, Satyananda, Caitanya e, de forma geral, para os adeptos do
Movimento Hare Krishna que contribuem para o processo de construção social
de identidade alimentar do referido grupo. A sacralização do alimento articulará
representações simbólicas que definirão os produtos a serem comprados no
supermercado, a preparação, o momento e a forma de consumir, a partilha e
os indivíduos que poderão fazer parte dos diferentes momentos do ritual.
A experiência religiosa manifestada como a apreensão de uma
realidade absoluta que exprime o sagrado pode se estabelecer em espaços
específicos e determinados, mas de forma inevitável se dissolve amiúde no
cotidiano através dos símbolos e de práticas.
Entre sabores e aromas,
panelas e receitas, há a possibilidade de se desenvolver muito mais que uma
experiência gastronômica, para muitos é a realização de um encontro com
deus.
Movimento Hare Krishna
O ato de comer para os Hare Krishna e, de forma geral, para
quaisquer grupos sociais, é indissociável das representações simbólicas do
sagrado. A comida, através da história da civilização, esteve presente em
banquetes e ritos oferecidos aos deuses. Conforme Eliade, o homem das
sociedades arcaicas santificava a vida, considerando-se uma parte do mundo
e o mundo uma criação dos deuses. Supostamente, para o homem dessas
sociedades, os atos fisiológicos como a sexualidade e a alimentação tinham
11 um significado religioso, sagrado. O ato alimentar era ritualístico, e os
alimentos sagrados eram uma oferenda dos deuses.
A religião, não supondo necessariamente a crença num deus
transcendente, é um sistema de idéias, de práticas e de símbolos, que
relaciona o pensamento e a ação para uma experiência específica,
estabelecendo uma força coletiva e impessoal, visto que é uma representação
da própria sociedade, para ratificar sentimentos e idéias sociais, além de
suspender temporariamente a ordem racional. Logo, comer poderá não ser
um simples ato de alimentar-se, mas mais uma forma de reverberar e legitimar
princípios religiosos.
As práticas religiosas concebem uma ação comum à sociedade que
se conscientiza dos ideais morais, potencializados e mantidos por intermédio
dos movimentos exteriores que os simbolizam. A articulação de rituais e
símbolos desenvolve entre os indivíduos sentimentos em comum que
constituem as classificações e representações coletivas.
O culto, conforme Durkheim (1992), um conjunto de atos
regularmente repetidos, tem extrema importância em todas as religiões, por
que, além de ser o meio de se recriar constantemente, é a forma que a
sociedade sente sua influência, já que se possibilita com a reunião de
indivíduos agindo em comum. Conforme a Sociedade Internacional para a
Consciência de Krishna fica estabelecido que aos domingos deva acontecer os
festivais, momento de encontro entre devotos e demais interessados para se
efetivar a sistematização dos rituais. A recomendação é que nos lugares que
não haja um lugar específico, como os templos, que os integrantes se
organizem e estruturem um lugar com o altar, mesmo que temporário em suas
casas, para a reunião do grupo.
Os sentimentos coletivos estabelecidos a partir da força religiosa
quando se exteriorizam refletem uma realidade transformada e idealizada a
partir da eficácia da fé, que desencadeia forças emotivas e altera a atividade
psíquica. Aos elementos que compõem essa experiência atribui-se uma
importância elevada que idealiza uma existência efetiva, tornando-os reais e
sagrados.
12 O homem religioso, considerando a pluralidade de experiências
religiosas que se explicam pelas diferenças de economia, cultura, organização
social e momento histórico, assume um modo de existência específica no
mundo, percebendo o espaço como uma oposição entre sagrado e o que não
é sagrado, o profano.
Considerando as ações e reações dos atores sociais em interação,
Simmel define a religiosidade como:
um ser particular, uma qualidade funcional da humanidade, por assim
dizer, que determina inteiramente alguns indivíduos, mas existe apenas
rudimentarmente em outros. Esse traço fundamental leva habitualmente
ao desenvolvimento de artigos de fé e à adoção de uma realidade
transcendental. (SIMMEL, 1997, p. 13)
A experiência religiosa, seja individual ou coletiva, é a visão e a
experimentação do sagrado que potencialmente provoca simplificações
institucionais, já que os estados de efervescência social propostos pela religião
num tempo sagrado podem ser vivenciados a partir de outro discurso e de
forma inovadora conforme a liturgia burocratizada.
Com o dinamismo social inevitavelmente as religiões passaram a
apresentar
características
culturais
mais
abrangentes
e
adquirindo
características nacionais e universais, como o budismo, cristianismo e
islamismo.
O hinduísmo desde o século XIX é considerado um organismo sócio
religioso, que reflete as complexidades geográficas e sociais da Índia, sendo
constituído por diversas seitas, cultos e sistemas filosóficos manifestados em
diversos rituais, de forma tão heterogênea que estabelecido o contato entre a
Europa e a Índia houve a necessidade de se criar um termo para designar tal
realidade, mas que inevitavelmente englobou atividades sociais e culturais.
Esta pluralidade de fenômenos religiosos, de forma geral, converge para o
conhecimento e orientação de escrituras antigas, em especial os Vedas,
redigidas
por
sábios
anônimos,
constituídas
por
orações,
instruções
ritualísticas e conteúdos filosóficos e mitológicos.
13 A ISKCON se apóia no Bhagavad Gita (A Canção do Senhor ou a
Sublime Canção), texto religioso védico integrante do épico Mahabharata18,
que narra uma batalha interpelada pelos ensinamentos de Krishna; além das
escrituras sagradas dos Vedas, que contribuem para sistematizar os rituais,
legitimar os símbolos e homogeneizar as práticas em várias instâncias sociais,
visto que enquanto sistema religioso o sistema doutrinário não está limitado à
questão teológica, abrangendo diversos campos do comportamento humano,
como alimentação, vestuário, organização familiar e social, economia, higiene,
música, dança, literatura, astrologia, concepções pedagógicas, técnicas
agrícolas e pecuárias, etc.
A experiência concreta e a teoria são indissociáveis nos princípios
norteadores dos Hare Krishna, que implicam na prática do autoconhecimento e
transformações das ações frente ao modo de agir que se resumem conforme
os quatro princípios básicos: não comer carne, peixe nem ovo, não se
intoxicar, não praticar sexo ilícito e não participar de jogos de azar.
Os devotos iniciados não devem comer nem beber nada sem
primeiramente oferecê-lo a Krishna com mantras e orações específicos. Assim,
a comida se torna prasada, ou seja, alimento sagrado. Uma das formas de
adoração às deidades, esculturas ou pinturas de avatares presentes nos
templos e nos altares domésticos, é lhes oferecendo alimentos, água, flores,
incensos, velas e outros elementos.
Segundo a ISKCON, este movimento não intenta reproduzir as
práticas conduzidas pelo sistema védico como foi desenvolvido há milhares de
anos na Índia, mas adaptá-lo à sociedade atual, enfatizando um estilo de vida
não pautado no consumismo excessivo. As atividades do dia-a-dia devem ser
orientadas
no
sentido
da
evolução
espiritual
que
primam
pelo
lactovegetarianismo, pela atitude devocional, pelo amor ao outro e pela não
agressão à natureza.
Em 1974 a ISKCON chegou ao Brasil consolidando-se como uma
instituição religiosa que faria parte do cenário religioso brasileiro, apesar de nos
18
Mahabarata é um grande poema épico que conta a história da Índia.
14 primeiros
momentos
apresentar-se
como
uma
vivência
exótica
de
uma
espiritualidade.
O surgimento do Movimento Hare Krishna no Brasil coincide com o
período do regime militar, entre a década de setenta e início dos anos oitenta,
atraindo, de forma geral, jovens engajados em movimentos sociais das
camadas médias urbanas, na tentativa de buscar alternativas de uma vida
menos consumista. Em várias partes do Brasil se estruturaram templos e
comunidades ecológicas, principalmente rurais, que buscaram efetivar o
conhecimento védico. Na década de oitenta havia dezoito templos e uma
comunidade
rural19,
Nova
Gokula,
que
se
mantém
até
hoje
em
Pindamonhangaba, São Paulo, através de seminários, serviços de hotelaria e
camping, venda de livros e doações.
Em 30 de Junho de 1981, Jagad Vithitra Dassa e Dura Sadana
Dassa
20
formalizaram estruturalmente o primeiro espaço em Fortaleza para
difusão da consciência de Krishna. Atualmente, há na cidade um restaurante
com cardápio lactovegetariano, gerido por devotos Hare Krishna e um templo.
Espaço social alimentar e espaço sagrado
A sistematização do ritual da prasada propõe intermediar uma
relação com seres considerados sagrados e operacionalizar uma experiência
religiosa que afeta o modelo alimentar do grupo, ao passo que interfere no
espaço social. Conforme Poulain (2004) este espaço é orientado pelo conjunto
de sistemas de relações e articula o meio natural – considerando componentes
físicos- com o cultural – que são as dimensões lingüísticas, tecnológicas, os
sistemas de representação, entre outros.
O espaço social alimentar, conceito que compreende diversas
dimensões, é estabelecido pela representação das práticas e relações sociais
que se constroem em torno do ato culinário. A alimentação humana pode ser
submetida às escolhas e restrições, assim como a maneira de comer e
cozinhar, que sejam culturalmente identificadas e valorizadas, visto que “as
escolhas dos produtos nos quais ele [comedor humano] encontra seus
19
20
Conforme dados da Revista de Estudos da Religião, nº 1, 2001.
Pai de Vaicunta, dono do restaurante lactovegetariano Mandir.
15 nutrimentos, a maneira de cozinhar, de comer, mais globalmente os gostos e a
ausência de gostos, são muito amplamente determinados por fatores sociais.”
(POULAIN, 2004, p. 245)
A partir do espaço do comestível, uma das dimensões do espaço
social alimentar, o qual corresponde às escolhas de um grupo humano, no
meio natural, que se efetivará a seleção das substâncias naturais – minerais,
vegetais e animais - , assim como, a forma de aquisição e conservação dos
alimentos. Seleção esta, que se manifesta através de representações
simbólicas e diferencia culturalmente grupos sociais, mesmo que convivendo
no mesmo espaço social.
Observar as práticas alimentares dos Hare Krishna é inferir o
processo de construção social de identidade alimentar enquanto um conjunto
normativo, com regras de inclusão e de exclusão de alimentos. A dieta
lactovegetariana, acentuada pela proibição do consumo de alho, cebola,
produtos que contenham cafeína e álcool e grãos durante dois dias específicos
do mês21, além do uso recorrente de especiarias indianas, como o curry e a
noz moscada; indica uma “hierarquia que transcende os gostos subjetivos
individuais e se afirma como valor cultural partilhado pelo conjunto do grupo.”
(POULAIN, 2004, p. 252)
Se relacionada à produção dos hábitos alimentares com o que Elias
(1970) e Bourdieu (1989) chamam de habitus, é possível dizer que hábito
consiste em um saber social incorporado, que é introduzido no indivíduo e nele
sedimentado ou que os padrões alimentares socialmente incorporados formam
um elo entre a mudança e a continuidade. Para Bourdieu (1989), o habitus
consiste em disposições internalizadas e naturalizadas em relação com as
práticas. Dessa maneira, o gosto relativo à comida sofre mudanças no tempo e
no
espaço.
Assim
novas
concepções
religiosas
podem
conduzir
a
transformações nos padrões alimentares do mesmo modo que estes podem
conduzir a transformações de concepções religiosas.
21
Ekadasi, palavra sânscrita, significa “o décimo primeiro". Ela se refere ao décimo primeiro dia depois
da lua cheia e ao décimo primeiro dia após a lua nova. Há dois dias de lua plena no mês, um é a cheia, e
o outro é a nova. Portanto, o ekadasi ocorre duas vezes ao mês, exatamente nestes dias, onde,
especialmente, deve-se fazer o jejum de grãos.
16 A partir da prasada é possível analisar como alguns indivíduos se
relacionam com o sagrado, manifestação esta de uma realidade diferente
revelada por Krishna. De forma geral, as definições do fenômeno religioso
apresentam à sua maneira uma oposição entre o sagrado e a vida religiosa ao
profano e a vida secular. Para Eliade (1998) é considerado profano tudo aquilo
que não foi preparado ritualmente e se aproxima de algo impuro ou
consagrado.
De fato, se quisermos delimitar e definir o sagrado, sernos-á
necessário dispor de uma quantidade conveniente de “sacralidades”,
isto é, de fatos sagrados. Esta heterogeneidade dos “fatos
sagrados” começa por ser perturbante e acaba, pouco a pouco, por
se tornar paralisante, pois se trata de ritos, de mitos, de formas
divinas, de objetos sagrados e venerados, de símbolos, de
cosmologias, de teologúmenos, de homens consagrados, de
animais, de plantas, de lugares sagrados. E cada categoria possui a
sua própria morfologia, de riqueza luxuriante e frondosa. (ELIADE,
1998)
Assim, cada categoria pode ser considerada uma hierofania e por
sua vez um documento de pesquisa, na medida em que exprime de forma
circunstancial uma modalidade do sagrado e um momento da sua história, o
qual revela a situação do homem em relação ao sagrado. Mas ainda que
determinadas categorias se justifiquem pelos mesmos simbolismos, em tempo
e espaço diversos, a hierofania que se transubstancia em um elemento de
forma material ou objetiva só é transparente aos olhos dos membros de
determinado grupo.
O ritual de sacralização da comida é um momento em que se
manifesta claramente a questão dialética da hierofania, já que qualquer
alimento pode incorporar a sacralidade e estabelecer uma oposição aos
alimentos profanos. A proibição para os Hare Krishna do consumo de alho,
cebola, carne, produtos à base de cafeína e grãos durante dois dias do mês,
evoca uma escolha que incorpora “algo para além de si mesmo” (ELIADE,
1998) e estabelece uma nítida separação do elemento hierofânico ao restante
do mundo.
Este “algo para além” extrapola uma possível forma singular, força
ou eficiência que por ventura fosse atribuída ao alimento na participação de um
rito de consagração ou pela inserção, voluntária ou involuntária, numa região
17 saturada de sacralidade, já que a evidência da hierofania faz-se perante ela
mesma, no momento em que deixou de ser um simples alimento profano e
adquiriu a dimensão da sacralidade.
Consistindo o rito na constante repetição de um gesto arquetípico,
este acaba que por coincidir com seu arquétipo, deuses e antepassados, e se
legitima através da hierofania, com a abolição do tempo profano. Por
conseqüência, o ato de comer passa a ser uma tentativa para se inserir na
esfera sagrada e se defender do insignificante, da esfera profana.
Se toda hierofania transfigura o lugar onde está inserida, tal lugar
ascende à categoria de espaço sagrado. Levar mostras da comida ao altar
para torná-las sagradas é, ao mesmo tempo, uma legitimação desse altar
enquanto um espaço sagrado, repetindo a hierofania primordial que consagrou
este espaço, singularizando-o, assim como, uma área e um momento definido
que torna possível a comunhão na sacralidade.
“Foi aí, nesses espaços hierofânicos, que se operaram as
revelações primordiais, foi aí que o homem foi iniciado na maneira
de se nutrir, de assegurar a continuidade das suas reservas
alimentares. Por isso todos os rituais alimentares celebrados nos
limites da área sagrada, do centro totêmico, não são mais do que a
imitação e a reprodução dos gestos realizados in illo tempore pelos
seres míticos” (ELIADE, 1998)
Construir um altar passa a ser uma repetição cosmogônica, onde se
cria um espaço e um tempo místico, diferente da esfera profana.
Segundo Mintz (2001), é possível, ainda, argumentar que a cultura
alimentar é constituída pelos hábitos alimentares em um domínio em que a
tradição e a inovação possuem importância. A cultura alimentar não diz
respeito apenas às raízes históricas, mas, principalmente, aos nossos hábitos
cotidianos, compostos pelo tradicional e pelo que se constituem como novos
hábitos.
A sistematização do ritual da prasada apóia-se em regras e
restrições alimentares, convenções estabelecidas como fatores delimitativos de
acesso ao sagrado e de afirmação identitária de que nos fala FernándezArmesto (2010). Estas refletem um sistema simbólico e possuem uma nítida
intenção de disciplinar o comportamento humano (DOUGLAS, 1976). Na
18 mesma perspectiva, Carneiro (2003, p.119) nos informa sobre como nas regras
alimentares incidem técnicas de autocontrole,
“Domá-la [a tentação] é domar a si mesmo, daí a importância da
técnica religiosa dos jejuns, cujo resultado também permite a obtenção
de estados de consciência alterada propícios ao êxtase. As regras
disciplinares sobre alimentação podem ser anti-hedonistas, evitando o
prazer produzido pelo alimento tornando-o o mais insípido possível, ou
podem ser pragmáticas, ao evitar alimentos que sejam
demasiadamente ‘quentes’ ou ‘passionais’. Os herbários medievais
identificavam em diversos alimentos, tais como as cenouras ou
alcachofras, fontes de excitação sexual. As regras budistas eliminam
até mesmo a cebola, a cebolinha e o alho, por considerarem que
essas inflamam as paixões.”
A experiência religiosa manifestada como a apreensão de uma
realidade absoluta que exprime o sagrado pode se estabelecer em espaços
específicos e determinados (SIMMEL, 1997), mas de forma tácita se dissolve
amiúde no cotidiano através dos símbolos e de práticas.
Considerações Finais
O ato de se alimentar está enraizado nos modos de ser e de fazer
das sociedades humanas. Os procedimentos culinários do cotidiano são ações
rituais que englobam aprendizado cultural e saberes religiosos. Ao longo da
história da civilização humana, o ser humano tem alimentado suas
necessidades orgânicas e simbólico-religiosas. Comem os seres humanos e os
deuses. Nos rituais da culinária sagrada dos Hare Krishna, variados elementos
e sabores são temperados com palavras votivas e devoção. Krishna e seus
discípulos se alimentam de cheiros, paladares e fé. Os devotos nutrem-se de
sacralidade e o equilíbrio entre sagrado e profano se restabelece. Mas esse
processo de manutenção do equilíbrio é dinâmico, tem sempre que ser refeito,
constantemente, não é algo dado e implica ações rituais exercidas conforme
princípios da Sociedade Internacional para a Consciência de Krishna. O
Movimento Hare Krishna é um fenômeno religioso que se preocupa com a vida
presente, com as atribuições concretas, cotidianas. Desse modo, a
alimentação do corpo, de Krishna e de toda a comunidade religiosa ocupa
lugar de destaque no ritual religioso.
A religião nunca é apenas metafísica. Em todos os povos as formas,
os veículos e os objetos de culto são rodeados por uma aura de
profunda seriedade moral. Em todo lugar, o sagrado contém em si
mesmo um sentido de obrigação intrínseca: ele não apenas
19 encoraja a devoção como a exige; não apenas induz a aceitação
intelectual como reforça o compromisso emocional. (GEERTZ, 2008,
p 93)
A partir da observação participante, sobretudo nos preparativos de
refeições, inferi que há uma "obrigação intrínseca" para com o sagrado, no
temor que é manifestado quando não é possível ou são negligenciadas as
obrigações para com princípios religiosos. O preparo da comida deve seguir os
preceitos rituais que vão desde a escolha dos alimentos até a transformação
culinária e organização das condições de consumo.
Importante salientar que na elaboração da prasada, conforme
verifiquei nas cozinhas pesquisadas, há diferenças em pequenos detalhes
quanto ao preparo das refeições, as quais são pertinentes a quem prepara
uma refeição seguindo uma receita e acrescenta seu "toque pessoal", não
comprometendo a receita básica nem os rituais sagrados.
É preciso alimentar a vida biológica, a vida simbólica e a vida
religiosa, constantemente, num ritual diário que tanto permeia o cotidiano mais
profano como os momentos mais sagrados de nossa existência humana. A
comida e o ato de alimentar expressa essas três esferas da vida. Comer e dar
de comer é um compromisso sagrado.
REFERÊNCIAS
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BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1989.
CARDOSO de Oliveira, Roberto. O trabalho do antropólogo. São Paulo:
UNESP, 2000.
CARNEIRO, H. Comida e sociedade: uma história da alimentação. Rio de
Janeiro: Campus, 2003.
DOUGLAS, M. Pureza e perigo. São Paulo: Perspectiva, 2012.
DURKHEIM, E. As formas elementares da vida religiosa. São Paulo:
Martins Fontes, 1992.
ELIADE, M. História das Crenças Religiosas. Rio de Janeiro: Zahar, 1983.
20 ______. Tratado de história das religiões. São Paulo: Martins Fontes, 1998.
ELIAS, Norbert. Introdução à sociologia. Lisboa: Edições 70, 1970.
FERNÁNDEZ-ARMESTO, Felipe. Comida: uma história. Rio de Janeiro:
Record, 2010.
FRITJOF, Capra. O Tao da Física: uma exploração dos paralelos entre física
moderna e o misticismo oriental. São Paulo: Cultrix, 1995.
GEERTZ, C. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: LTC, 2008.
GOSWAMI, Satsvarupa Dasa. Prabhupada, um santo no século XX. São
Paulo: Bhaktivedanta Book Trust (BBT), 1995.
LÉVI-STRAUSS, C. O cru e o cozido: mitológicos. São Paulo: Brasiliense, 1991.
MINTZ, S. Comida e antropologia: uma breve revisão. Revista Brasileira C.S;
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PERLÉS, Catherine. Les origines de la cuisine: l'acte alimentaire dans l'histoire
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2004.
PRABHUPADA,
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REVISTA DE ESTUDOS DE RELIGIÃO. Nº 1, 2001.
REVISTA VIDA SUPREMA. Nº 3, 1990.
SIMMEL, G. Essays on Religion. Yale: Yale University Press -Durham, 1997.
.
21 ANEXOS
22 Anexo 1: Krishna
Fonte: harekrishnacaruaru.webnode.com.br
23 Anexo 2: Parama e Satyananda
Fonte: casadeculturaharekrishna.blogspot.com
Anexo 3: Como preparar e oferecer prasada22
Nossa consciência do objetivo superior do vegetarianismo começa
ao percorrermos os corredores do supermercado selecionando os alimentos
que ofereceremos a Krishna. No Bhagavad Gita, o Senhor Krishna declara que
todos os alimentos podem ser qualificados conforme os três modos da
natureza material: bondade, paixão e ignorância. Produtos lácteos, doces
naturais, vegetais, frutas, nozes e grãos são alimentos no modo da bondade e
podem ser oferecidos a Krishna. Como regra geral, os alimentos nos modos da
paixão e ignorância não podem ser oferecidos a Krishna, que diz no Gita que
estes comestíveis "causam dor, tristeza e doença" e são "podres,
decompostos e impuros". Como se pode deduzir, carne, peixe e ovos são
alimentos nos modos inferiores. Mas, há também alguns poucos artigos
vegetarianos que são classificados nos modos inferiores. Alho e cebola, por
22
Dados obtidos no site oficial da ISCKON: www2.iskcon.com.br
24 exemplo, não devem ser oferecidos a Krishna. (Hing, às vezes chamado
assafétida, é um substituto aceitável na culinária védica e se encontra em lojas
de especialidades orientais e indianas). Café e chás que contenham cafeína
também estão nos modos inferiores. Se você gosta deste tipo de bebida, pode
comprar café descafeinado ou cevada e chás de ervas.
Ao fazer compras, você deve saber que poderá encontrar produtos
de carne, peixe e ovos misturados com outros alimentos; por isso não deixe de
estudar cuidadosamente os rótulos. Por exemplo, algumas marcas de iogurte e
requeijão contêm gelatina, que é preparada com os chifres, cascos e ossos de
animais mortos. Além disso, muitos produtos industrializados de sabor
morango contêm um corante natural chamado de cochonilha, que é feito com
uma lesma de cor avermelhada de mesmo nome. Cuidado para não comprar
queijo que contenha coalho, uma enzima extraída dos tecidos do estômago
dos bezerros. A maioria dos queijos contém coalho, portanto cuidado, só
compre queijos cujo rótulo indicar coalho vegetal.
Você deve também evitar alimentos pré-cozidos por pessoas que
não sejam devotos de Krishna. Segundo as sutis leis da natureza, o cozinheiro
age sobre o alimento não apenas física, mas também mentalmente. Assim o
alimento se torna um meio para influências sutis em sua consciência. Pelo
mesmo princípio, um quadro não é apenas uma coleção de traços numa tela,
mas é uma expressão do estado de espírito do artista, e este conteúdo mental
é absorvido pela pessoa que olha para o quadro. Igualmente, se comemos
alimentos cozinhados por pessoas carentes de consciência espiritual
(empregados que trabalham numa fábrica em algum lugar), então certamente
absorveremos uma dose de energias mentais materialistas. Então, faça o
possível para usar só ingredientes frescos e naturais.
No preparo do alimento, limpeza é o princípio mais importante. Nada
impuro deve ser oferecido a Deus, então conserve bem limpa a sua cozinha.
Sempre lave completamente as mãos antes de preparar os alimentos.
Enquanto prepara, não experimente a comida, porque você não está
cozinhando só para você, mas para o prazer de Krishna, que deve ser o
primeiro a saboreá-la. Disponha porções da comida em louça especial para
25 este fim. Ninguém a não ser o Senhor deve comer nestes pratos. A forma de
oferenda mais simples é dizer simplesmente: "Meu querido Senhor Krishna,
por favor, aceite este alimento", e cantar as seguintes orações três vezes cada,
tocando um sino:
Oração a Shrila Prabhupada:
nama om vishnu-padaya krishna-presthaya bhu-tale
shrimate bhaktivedanta-svamin iti namine
Ofereço minhas respeitosas reverências a Sua Divina Graça A.C.
Bhaktivedanta Swami Prabhupada, que é muito querido pelo Senhor Krishna,
por ter se refugiado em Seus pés de lótus.
namas te sarasvate deve gaura-vani-pracarine
nirvishesha-shunyavadi-pascatya-desha-tarine
Nossas respeitosas reverências a ti, ó mestre espiritual, servo de
Sarasvati Gosvami. Estás bondosamente pregando a mensagem do Senhor
Chaitanyadeva e libertando os países ocidentais, que estão repletos de
impersonalismo e niilismo.
Oração ao Senhor Chaitanya:
namo maha-vadanyaya krishna-prema-pradaya te
krishnaya krishna-chaitanya-namne gaura-tvishe namah
Ó encarnação mais munificente! És o próprio Krishna aparecendo
como Shri Krishna Chaitanya Mahaprabhu. Assumiste a cor dourada de
Shrimati Radharani, e estás distribuindo à vontade o amor puro por Krishna.
Oferecemos nossas respeitosas reverências a Ti.
Oração ao Senhor Krìshna:
namo brahmanya-devaya go-brahmana-hitaya ca
jagad-hitaya krishnaya govindaya namo namah
26 Meu Senhor, és o benquerente das vacas e dos brahmanas, és o
benquerente de toda a sociedade humana e do mundo inteiro.
Lembre-se que a verdadeira finalidade disso tudo é mostrar sua
devoção e gratidão ao Senhor. O próprio alimento que você está oferecendo é
secundário. Krishna aceita o sentimento devocional. Deus é completo em Si
mesmo. Ele não precisa de nada. Nossa oferenda é apenas um meio de
mostrar nosso amor e gratidão a Ele. Em seguida à oferenda, a pessoa deve
cantar por alguns minutos o mantra Hare Krishna (ou pelo menos 3 vezes):
Hare Krishna, Hare Krishna, Krishna Krishna, Hare Hare
Hare Rama, Hare Rama, Rama Rama, Hare Hare.
Então, pode-se servir a prasada. Tente apreciar a qualidade
espiritual da prasada lembrando que, por Krishna tê-la aceitado, ela não é
diferente de Krishna e por comê-la a pessoa se purifica.
Tudo o que é oferecido em seu altar se torna prasada, a misericórdia
do Senhor. Restos de flores, incenso, água e comida – tudo o que se oferece
para o prazer do Senhor se torna espiritualizado. O Senhor entra nas
oferendas, e os restos desta oferenda são diretamente o próprio Senhor.
Portanto, você não só deve respeitar profundamente as coisas que Lhe
ofereceu, mas deve distribuí-las aos outros. Esta distribuição de prasada, a
misericórdia do Senhor, é uma parte essencial da adoração à deidade.
27 

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