Revista Intercultural da UFMG – Edição África
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Revista Intercultural da UFMG – Edição África
1 2 Área total em km2: 30.221.532 54 países independentes e 06 dependências População: 1,111 bilhão (2013) Maior país: Argélia Menor país: Seicheles 3 SUMÁRIO 5 CARTA AO LEITOR 7 ÁFRICA SEGUNDO OS BRASILEIROS 10 CONHECIMENTO SEM FRONTEIRAS 15 ENTREVISTA COM ESTER MELO 20 UMA HISTÓRIA SEM HIPOCRISIA 26 ARROZ E FEIJÃO NÃO! 29 UMA PELE, UMA COR E UM AMOR 37 SESSÃO ESPECIAL 40 O ENCONTRO DO CONGO COM MINAS 43 UM FILHO DE MARIA JOSÉ 50 A MUITAS PEDALADAS DE CASA 52 SOMOS MAIS AFRICANOS DO QUE PENSAMOS 56 DRAMAS DE UM MUNDO GLOBALIZADO: imigrações e refugiados CARTA AO LEITOR Eis um projeto que se inicia. Que caminha a passos lentos à procura de um contorno, de uma forma. Um projeto que seja mutante e se adapte a cada cultura, história... A cada novo personagem. A Revista Intercultural convida estudantes, professores, funcionários e visitantes da Universidade Federal de Minas Gerais a conhecerem um pouco mais sobre as origens, vidas, pensamentos, questionamentos, opiniões, culturas, comportamentos, experiências e planos daqueles que vêm de tão longe e que, agora, se encontram tão perto e presentes no dia a dia dos que frequentam a UFMG: os estudantes estrangeiros. Eles, que contribuem de forma tão significativa para a diversidade cultural da instituição, encontrarão nesta revista um espaço para se apresentarem à comunidade acadêmica por meio de suas histórias de vida, bem como de suas opiniões sobre a nova realidade que vivem no Brasil, especialmente na capital mineira e na universidade. A cada três meses, caro leitor, você poderá acompanhar perfis de alunos vindos de cada continente. Essa primeira edição será protagonizada pelos africanos. Dois foram os motivos que levaram a equipe da revista a escolhê-los para a estreia: por serem maioria entre os alunos estrangeiros e pela África possuir um estreito e forte vínculo histórico com o Brasil. Além dos perfis de dois congoleses, um beninense, uma gabonesa, um angolano e uma queniana, a revista também apresenta uma matéria sobre a troca de conhecimento propiciada pela internacionalização da educação superior; uma entrevista com Ester Melo, a responsável pelos alunos do programa PEC-G; um artigo sobre imigração da jornalista Ariane Gervásio em parceria com o professor de Relações Internacionais na Universidade Federal do Tocantins (UFT), Carlos Frederico Pereira da Silva Gama; e um artigo sobre a histórica relação entre o Brasil e a África, de autoria do historiador Osmar Macedo. Convidamos você a viajar nesses mundos que habitam a Universidade Federal de Minas Gerais. Boa viagem! Equipe InterCultural 5 Ano 01, edição 01, Novembro de 2015 DIREÇÃO GERAL Taiany Gonçalves EDITORAS Lígia Oliveira Taiany Gonçalves REPÓRTERES Lígia Oliveira Taiany Gonçalves 6 REDATORES Lígia Oliveira Osmar Macedo Taiany Gonçalves REVISORES Aluisio Marques Filipe Ferreira Osmar Macedo FOTOGRAFIA Aluisio Marques Filipe Ferreira DIAGRAMAÇÃO/ DESIGN Agnes Moreira Fábio Martins Lígia Oliveira Taiany Gonçalves COLABORADORES Agnes Moreira Ariane Gervásio Carlos Gama Fábio Martins ÁFRICA SEGUNDO OS BRASILEIROS “A África é a nossa raiz. Uma das bases culturais do povo brasileiro.” (Eduardo Villela, médico.) “São nossos irmãos separados pelo Atlântico, mas unidos pelo coração. Aprendemos muito com a África, pois ela é o berço da civilização.” (Ivânia Maria, enfermeira.) “Os africanos são exemplo de vida. Apesar de tanta exploração sofrida por eles, ainda têm forças para lutar e vencer. São guerreiros!” (Nelma Gomes, professora.) “Para mim, a África representa orixás, divindades da natureza, dança, culto aos ancestrais, alegria, sofrimento... E renascimento no Brasil com as religiões de matriz africana.” (Márcio Sá, babalorixá.) “A África é uma mão que construiu um país que a obriga a usar luvas.” (Flávia Lovisi, jornalista.) “Muito do que sou e do que faço é herança daquele povo de fé e vontade. A África representa um jeito diferente de viver e que consegue transmitir marcas originais a cada geração do povo brasileiro.” (Junia Soares, professora.) “Admiro muito o povo africano, cujo sorriso não foi apagado pelo sofrimento e exploração vivido dentro e fora de seus países.” (Juliana Farias, professora.) “A África é uma multiplicidade ocultada pelos estereótipos. É muito além da fome, dos conflitos étnicos ou até mesmo das savanas e do Saara.” (Richardson Ventura, professor.) “A África é um continente muito rico, porém, explorado de maneira errada.” (Lucas Severino, estudante de gestão pública.) “Povo batalhador que busca uma vida melhor, com enredo dramático.” (Ravik Gomes, funcionário público.) 7 “Lugar onde tudo começou. O descaso com que a tratamos revela quanta ‘humanidade’ há em nós, e a hipocrisia com que pronunciamos: ‘somos todos macacos’.” (Carlos Augusto Costa, estudante de psicologia.) “A África possui fauna e belezas naturais que impressionam o coração do ser humano. Porém, há nela países muito pobres e sofridos que entristecem o coração da humanidade.” (Natália Santos, graduada em pedagogia.) “É um continente muito pobre e que sempre precisa de ajuda de outros países.” (Alaíde Queiroz, aposentada.) 8 “Apesar de serem muitas vezes esquecidos, a bagagem genética e cultural dos africanos foi fundamental para a formação do Brasil como ele é hoje.” (Aline Almeida, estudante de arquitetura.) “Não podemos contar a história do Brasil ignorando a participação dos africanos, pois somos um país de maioria afrodescendente.” (Iêde Almeida, auxiliar de enfermagem.) “À procura de seus objetivos, longe da pátria mãe, os africanos que vêm para o Brasil sabem que não há nada a temer. Honrando os seus costumes, eles confiam na vitória que vem com o tempo e muito esforço.” (Letieri Fernandes, mestranda em química.) 9 CONHECIMENTO SEM FRONTEIRAS por Osmar Macedo 10 Quem passa pelos campi da Universidade Federal de Minas Gerais, logo percebe a mistura de sotaques e idiomas. Considerada uma das maiores Instituições de Ensino Superior do país, a UFMG tem recebido um número cada vez maior de estudantes estrangeiros nos últimos anos. De acordo com a Diretoria de Relações Internacionais da UFMG – DRI, no ano passado, 1391 estrangeiros estavam matriculados aqui, e concorreram por meio de uma das cinco formas de ingresso: Vestibular, Transferência, Intercâmbio, Programa Estudante Convênio – Graduação (PEC-G) ou Programa Estudante Convênio – Pós-graduação (PEC-PG). Entre eles, os africanos são maioria. Como prova disso, há, atualmente, 93 deles só na graduação, vindos pelo PEC-G, criado a partir de acordos de cooperação entre países em desenvolvimento. Outros 16 foram selecionados e cursaram língua portuguesa no primeiro semestre de 2015. Mas aguardam o resultado para poderem ingressar no próximo ano em diversos cursos de graduação da universidade. Confira a relação: Cabo Verde Trindade e Tobago Quênaia Togo Gabão Senegal Gana Benin Namíbia Moçambique 5 1 1 1 1 1 2 1 2 1 Essa interação com diversos países é uma das características fundamentais da internacionalização das universidades brasileiras, prevista no Plano Nacional de Educação (PNE-2011). O objetivo é alcançar um maior destaque no mundo, enfatizando as pesquisas desenvolvidas no país, e, por conseguinte, melhorando o posicionamento internacional de cada universidade. Neste processo de inserção no cenário internacional e de fortalecimento de relações com instituições do exterior, a DRI, além dos programas que incentivam e apoiam o envio de estudantes brasileiros para outros países, gerencia outros para recepcionar centenas de estudantes estrangeiros semestralmente. É nesse contexto que o Programa Bemvindo, institucionalizado em fevereiro de 2012, atua em parceria com o Setor de Acolhimento da DRI. Ele trabalha com o intuito de atender às diversas demandas dos estudantes, professores e pesquisadores internacionais. Antes dos estrangeiros virem para cá, informações consideradas importantes são enviadas a eles, como, por exemplo, uma lista com documentos necessários para o registro acadêmico e a matrícula. E, assim que chegam à universidade, são recepcionados com diversas orientações durante a Semana do Estudante Intercambista. Nesta oportunidade, realizada sempre uma semana antes do início do período letivo de cada semestre, conhecem melhor a instituição e a cidade de Belo Horizonte, sempre acompanhados por membros da DRI ou por aqueles alunos que se interessaram em apadrinhá-los. Esse acolhimento não para aqui. Durante todo o período em que estão na universidade, eles são orientados sobre os assuntos acadêmicos, culturais, serviços prestados pela UFMG e as atividades de interação com a comunidade acadêmica. Essas parcerias e esses projetos realizados pelas Instituições de Ensino Superior são instrumentos que estão impulsionando o Brasil a ter conhecimento compartilhado com outras nações, além de se tornarem um modelo de ensino para o mundo. Como o próprio nome diz, a universidade é local de múltiplas possibilidades, que estão crescendo constantemente ao transpor as barreiras dos campi e ao manter diálogo e trocas em todos os continentes. Essa cooperação entre as nações, especialmente com as do continente africano, é um exemplo de como o ensino compartilhado pode contribuir para o desenvolvimento de todos os povos. A Declaração Universal dos Direitos Humanos, adotada pela Organização das Nações Unidas em 10 de dezembro de 1948, já delineava àquela época os direitos humanos básicos e continua defendendo que toda pessoa tenha direito à educação. Vivemos numa sociedade do conhecimento, pautada pela facilidade de acesso à informação e interação entre povos e culturas. Neste sentido, as universidades desempenham papel preponderante, pois contribuem para o crescimento intelectual das pessoas, bem como os seus desdobramentos positivos em prazos cada vez menores. Estar atento a essa realidade e às necessidades e especificidades num ambiente universitário bastante heterogêneo é um caminho que exige olhares atentos. Se consideramos que não há fronteiras para o conhecimento, ele se tornará cada vez mais acessível para a sociedade onde quer que ela esteja. A internacionalização, neste sentido, torna-se compromisso para fomentar o ensino, a pesquisa e a extensão em âmbito globalizado. __________________________ SAIBA MAIS SOBRE MODALIDADES DE INGRESSO PARA ESTRANGEIROS NA UFMG VESTIBULAR Para se tornar um aluno regularmente matriculado em um curso de graduação na UFMG, o estudante estrangeiro precisa se submeter ao Exame Nacional do Ensino Médio -ENEM- realizado anualmente, e ser aprovado através do Sistema de Seleção Unificada- SISU. TRANSFERÊNCIA A aceitação de um aluno de outra Instituição de Ensino Superior (IES), seja ela nacional ou estrangeira, é condicionada à existência de vagas remanescentes. 11 INTERCÂMBIO A UFMG recebe estudantes estrangeiros no âmbito de Programas de Mobilidade e de Convênios de Cooperação, estabelecidos com Universidades estrangeiras. Os alunos podem frequentar até dois semestres acadêmicos na Universidade. O Grau é atribuído pela instituição de origem, sendo emitido um certificado com o devido aproveitamento de disciplinas na UFMG. Podem participar de intercâmbio estudantes de Graduação e Pós-graduação regularmente matriculados em instituição estrangeira de nível superior, com as quais a UFMG tenha cooperação acadêmica. Conheça as instituições conveniadas clicando no menu Convênios. A UFMG não exige uma prova de proficiência de Português para o ingresso do aluno estrangeiro, mas todas as aulas, atividades acadêmicas e exames são feitas nesta língua. Assim, recomendamos um nível intermediário na língua. 12 PROGRAMA ESTUDANTES CONVÊNIO – GRADUAÇÃO E PÓS-GRADUAÇÃO (PEC-G E PEC-PG) O Programa Estudantes Convênio de Graduação e Pós-graduação é resultado de acordos de cooperação cultural, científica e tecnológica assinados entre países em desenvolvimento visando à formação de recursos humanos. Possibilita que estudantes, professores universitários, pesquisadores, profissionais e graduados do ensino superior desses países realizem seus estudos no Brasil. As embaixadas brasileiras nos países conveniados estão encarregadas da divulgação do programa e do processo de seleção. FONTE: Diretoria de Relações Internacionais da UFMG – DRI. REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA: DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS HUMANOS. Assembleia Geral das Nações Unidas em 10 de dezembro de 1948. Disponível em: <http://unesdoc.unesco.org/images/0013/001394/139423por.pdf>. Acesso em: 15 nov. 15. 13 14 Foto: Diretoria de Relações Internacionais - UFMG ENTREVISTA COM ESTER MELO “Sei dos problemas deles e procuro ter essa proximidade” Há 17 anos convivendo com alunos estrangeiros, a psicóloga e servidora responsável pelo Programa Estudantes Convênio de Graduação (PEC-G), Ester Melo, conta sobre o funcionamento do programa e fala das experiências que teve nessas quase duas décadas de trabalho com os intercambistas. por Taiany Gonçalves O Programa Estudantes Convênio de Graduação, ou simplesmente PEC-G, possibilita a vinda de estrangeiros ao Brasil para cursarem a graduação no país. Existe também o PEC-PG, que é basicamente a mesma versão do primeiro programa, só que para alunos que desejam fazer a pósgraduação. Este convênio, que é realizado entre o governo brasileiro e o do país do estudante, atende as nações em desenvolvimento, como as da África, daAmérica Latina e daAmérica Central. A maioria dos alunos africanos vem para a UFMG por meio do PEC e, já que essa edição da revista ser destinada a falar sobre as experiências dos estudantes africanos, Intercultural realizou uma entrevista com a responsável por esse programa na Universidade Federal de Minas Gerais, a servidora Ester Melo, para que ela nos contasse mais sobre o processo de vinda e de recepção deles, bem como sobre histórias que vivenciou com os estudantes. A maioria dos alunos africanos vem para a UFMG por meio do PEC e, já que essa edição da revista ser destinada a falar sobre as experiências dos estudantes africanos, Intercultural realizou uma entrevista com a responsável por esse programa na Universidade Federal de Minas Gerais, a servidora Ester Melo, para que ela nos contasse mais sobre o processo de vinda e de recepção deles, bem como sobre histórias que vivenciou com os estudantes. 15 Intercultural – O que é o PEC-G? parte, no entanto, são federais. Ester Melo - PEC-G é um programa do governo brasileiro para a mobilidade do aluno estrangeiro. O programa é unilateral: os alunos de lá vêm, mas os brasileiros não vão. Justamente para fortalecer, criar e capacitar recursos humanos para que essas pessoas voltem para os seus países e possam dar essa contribuição que elas tiveram aqui. Os estudantes vêm para cá, fazem a graduação toda aqui e retornam aos seus países. Na UFMG, cada curso oferece, geralmente, uma ou duas vagas. Então, é feita uma seleção pelo MRE (Ministério das Relações Exteriores) e o MEC (Ministério da Educação). Intercultural – Quando começou esse programa aqui na UFMG? 16 Ester Melo – Nós temos indícios desde 1952, mais ou menos. Os professores daqui iam fazer pós-graduação fora. Chegando lá, eles faziam interface com outros professores e com outras universidades e levavam, portanto, um pouco de informação da UFMG. E, então, começou uma mobilidade. Começaram a vir professores e alunos de lá para cá. Nós não temos esse arquivo certo, mas temos o registro de mobilidade de professores desde 1950, 1952... Mas, oficialmente, o PEC-G foi criado em 1965. Intercultural – Quais os países fazem parte do Programa? Ester Melo – Inclui todos os países africanos, que são mais de 50. E agora tem a Ásia também, alguns países da América Central e da América Latina. Na América Latina, o pessoal que procura esse programa se interessa mais pela pós-graduação, que é o PEC-PG, porque nos seus países, como Chile e Argentina, têm ótimas universidades. Isso já é um pouco diferente de países do continente africano, onde as universidades ainda não estão muito fortalecidas. Então, há essa necessidade de buscar em outras instituições. Intercultural – Como é o processo seletivo? Ester Melo - Só participam universidades federais e algumas particulares, como PUC e Isabela Hendrix. A maior No caso do MEC, junta-se uma seleção de pró-reitores de graduação e professores que vão a Brasília e analisam todo esse processo que foi feito inicialmente na embaixada. Eu já participei de um processo. Chega o histórico escolar do aluno e nós o avaliamos. Geralmente, os pró-reitores olham o tipo de conhecimento prévio que o aluno necessita ter para ingressar no curso ao qual se candidatou. Por exemplo: se o aluno se candidata ao curso de Medicina, ele tem que ter boas notas em Biologia, Química, etc. Mas a embaixada é o primeiro contato do estudante. Então, antes dessa avaliação aqui, o aluno passou por algum processo na embaixada do seu país, que é direcionado de um jeito diferente em cada lugar. Intercultural – Existe uma quantidade de vagas destinadas para cada país? Ester Melo - Não. A UFMG oferece por ano para esse programa, geralmente, uma faixa de 65 vagas. Então, mandamos essas vagas para o MEC e é ele que vai distribuí-las. Intercultural – Analisando as modalidades de ingresso na UFMG (vestibular, transferência, intercâmbio, PEC-G e PEC-PG), imagina-se que, pelos programas PEC estarem em outra modalidade, não se enquadram como intercâmbios. Mas podemos considerá-los como tais? Ester Melo – Apesar da graduação ser completa no PEC-G, eles se enquadram na categoria de intercâmbio, pois também é uma forma de adquirir conhecimento fora do país natal. Ou seja, independente do tempo que dure, é considerado intercâmbio. Intercultural – Você percebe uma defasagem dos alunos africanos em relação aos brasileiros ao longo da graduação? Ester Melo - No primeiro ano tem a questão da adaptação, mas depois... Eu tenho alguns alunos congoleses e camaronenses das engenharias, por exemplo, que são fantásticos e esforçados. Eles dão aula, inclusive, para brasileiros. O que é defasado lá em relação ao Brasil é o currículo do ensino médio. É muito distante comparado com o daqui. Intercultural - Eles fazem um curso de português na Faculdade de Letras assim que chegam. E se não passar na prova ao final do curso? Ester Melo – Se não passar, volta. Ou seja, se desliga do programa. Há muito tempo já aconteceu com 3 alunos de não passarem. Eu não gosto de lembrar, porque é muito triste pensar que o aluno fica um ano fazendo o curso e depois não passa. Intercultural – Caso o aluno queira dar continuidade aos estudos e fazer a pósgraduação aqui, na universidade, qual é o procedimento? Ester Melo - Quando ele termina a graduação, está desligado do PEC. Eu acho que é uma coisa que precisa ser revista, pois o aluno está aqui há 5 ou 6 anos e já conhece os professores e várias áreas de pesquisa. Contudo, quando se forma, tem que voltar para o país e esperar 2 anos para se candidatar a uma pós-graduação, caso queira. Existem alunos que tentam o mestrado assim que acabam a graduação, como foi o caso de um rapaz do Benin. Neste caso, eles não estão mais vinculados ao programa, ou seja, se candidatam nas mesmas condições de um brasileiro. Intercultural – Você tem muita proximidade com eles? Ester Melo - Tenho. Eu conheço todos. Sei dos problemas deles e procuro ter essa proximidade. As mães mandam cartas para mim dizendo: “Cuida do meu filho.” Eu acho isso ótimo, porque gostaria de fazer o mesmo quando os meus filhos estivessem fora do país. Eu sinto que eu sou um parâmetro para eles. Quando têm qualquer problema, eles vêm para cá. Eu acho bacana isso. Mas quando é preciso, eu também “puxo a orelha”. (Risos) Eles também me ajudam muito. Em janeiro, quando tem gente chegando para fazer o curso de português, eles me ajudam na recepção, no contato com os novatos... Intercultural – Alguns africanos que entrevistamos relataram a ausência da UFMG perante a chegada deles. Ester Melo – Nós não temos o hábito de buscar o estudante no aeroporto. Geralmente, são os alunos africanos que já estão aqui que vão. Nós até tentamos fazer algo para buscar o pessoal no aeroporto. Teríamos que programar para chegar todo mundo na mesma hora e, então, alugaríamos uma van. Existem os carros da universidade, mas são para a instituição inteira. Ou seja, tem toda uma logística. Então, eu acho melhor contar com a ajuda dos meninos, porque tem dado certo. Intercultural – Qual é a maior dificuldade que eles enfrentam quando chegam aqui? Ester Melo – Além da questão da língua, eu acho que eles estão vindo cada vez mais jovens. E essa falta de maturidade pode atrapalhar. Tem outras questões também, como um lugar para morar. Nós não temos vagas na Moradia da UFMG, pois ela ainda não consegue atender a todos os alunos. Eles podem até se candidatar, mas têm que enfrentar fila como qualquer um. Para conseguir um apartamento ou uma casa tem a questão do fiador, que eu acho terrível, pois quem vai querer ser o fiador? Mas os africanos que já estão aqui são ótimos e generosos, e acabam acolhendo quem está chegan- 17 do. Intercultural – Algum aluno voltou por não aguentar a pressão? Ester Melo – Já aconteceu casos em que os pais, pela vontade de verem o filho com mais oportunidades na vida, inscreverem-nos sem o consentimento do jovem ou omitindo algumas informações. 18 Na África, o vínculo e o respeito com os pais é muito forte. Então, teve um pai que fez a inscrição do filho para Ciências Agrárias, mas mentiu para o garoto. Ele veio ao Brasil achando que ia fazer Medicina. Ele chegou para mim e disse que estava doido para as aulas começarem. Eu respondi que as aulas dele não eram aqui, mas sim em Montes Claros. O menino me perguntou se o curso de Medicina de Montes Claros era o mesmo daqui de Belo Horizonte. Eu disse a ele: “Não é Medicina, querido. Você vai fazer Ciências Agrárias. Você vai ser agrônomo.” Esse menino chorou tanto! Ele queria mudar de curso, mas eu expliquei que era impossível por serem áreas completamente diferentes, pela Medicina só oferecer duas vagas por ano para o PEC-G e pelo Colegiado desse curso só abrir vaga para quem é de país lusófono. Hoje, ele faz Ciências Agrárias em Montes Claros e adora a sua área. Ainda bem! 19 Frédérique Michele Nno Ella 19 anos País: Gabão Curso: Engenharia de Controle e Automação UMA HISTÓRIA SEM HIPOCRISIA por Taiany Gonçalves 20 Na praça de serviços da Universidade Federal de Minas Gerais, aguardo a minha primeira personagem feminina. Como não a conheço pessoalmente, fico na expectativa a cada pessoa que passa. De repente, vejo uma garota com traços que me remetem à minha futura entrevistada. Sem ter muita certeza, acesso à internet em meu celular na tentativa de sanar essa dúvida. Encontro a foto, olho novamente para a garota que caminha em minha direção e constato ser a própria. Para ser notada, como quem quer se apresentar e dizer: “Oi, eu sou quem você procura!”, começo acenar e sorrir descompassadamente. Mal sabia eu que naquele momento eu acabara de me tornar hipócrita aos olhos de minha personagem. Sem ainda saber dessa impressão que, inconscientemente, havia criado, eu inicio uma conversa tranquila para que Frédérique Michele se sinta mais à vontade. Michele, como prefere ser chamada, a uma semana de completar 20 anos, já viveu muitas coisas para uma garota de 19. Vinda de uma família grande, de 12 irmãos, a jovem foi a precursora do lar a desbravar o mundo. E o país escolhido por ela para construir uma parte da sua história foi o Brasil. “Eu escolhi o Brasil, porque tinha a oportunidade de convênio e não são todos os países que têm. Dos irmãos, sou a primeira a sair do país para estudar. Meu irmão mais velho vai para a França, em breve, para fazer doutorado em Direito”, conta. A estudante de Engenharia de Controle e Automação relata que o governo do seu país ajuda com pouco dinheiro para o custeio. Além de pagar as passagens de ida e volta, o governo do Gabão contribui para a aquisição do material acadêmico. Tímida e de poucas palavras, a gabonesa não me parece ainda muito à vontade. Sugiro que ela me conte um pouco mais sobre sua escolha pelo Brasil. “Eu tinha opções de ir para a França e África do Sul. Mas o Brasil era um país diferente. Eu não conhecia ninguém aqui. Queria fazer algo diferente, viver uma experiência única e depois contar para os meus amigos”, diz. A intercambista não sabia nada sobre o país tropical, apenas que aqui havia belas praias e um tal de futebol. “Eu gostava muito do Neymar. Foi só isso que me fez gostar do Brasil e querer vir pra cá”, assume com franqueza. Logo que chegou, há mais de um ano, a gabonesa começou a fazer aulas de “As pessoas aqui parecem um pouco hipócritas. Você não pode saber realmente o que eles pensam e o que acham.” português. Passados 8 meses de curso na Faculdade de Letras, realizou uma prova para comprovar o seu nível de fluência e, assim, ingressar no curso superior. Quem não passa nesta prova, volta para casa. “Acho que antes podia repetir, agora não. Eu achei fácil. Passei com certificado avançado superior”, diz com orgulho de si e de sua dedicação. Para ela, o único problema do português não está nele em si, mas nas gírias inseridas pelos brasileiros durante a comunicação. PROBLEMAS E já que o assunto é “problema”, abro aqui a sessão homônima à temática para que Michele tenha a oportunidade de falar de suas aflições no Brasil, especialmente em Belo Horizonte e na UFMG. A estudante para, pensa um pouco... E eis que começa o seu relato de âmbito universitário. “É muito difícil a plataforma Minha UFMG. Quando eu entrei na faculdade, não sabia muito como usar. Para informações, você tinha que ir no Colegiado e tudo isso estava muito difícil.”, conta. Quanto aos estudos, embora também enfrente dificuldades, a jovem possui uma visão mais determinada e aguerrida. “O dia a dia dos estudos é muito difícil, porque tem matérias, como Algoritmos e Estrutura de Dados, que o vocabulário é totalmente diferente. Então, durante as aulas é muito complicado para entender e acompanhar, mas, antes de voltar para casa, costumo pegar um livro na biblioteca e estudar sozinha. Além disso, têm professores que falam francês e isso ajuda”, explica a garota que, embora tenha receio de ser reprovada em algumas matérias, acaba se divertindo com a situação. De pequenos problemas, chegamos aos verdadeiros choques culturais, que vão muito além da dificuldade na comunicação. Antes, Frédérique conta que conheceu os estados do Rio de Janeiro e do Rio Grande do Sul, já que possui nestes lugares amigos do seu país e de outros locais do continente africano, e brinca: “Dizem que as pessoas do Sul são ‘fechadas’ por causa do frio.” O fato das pessoas serem assim não atrapalhou em nada o seu passeio. Muito pelo contrário. A sua personalidade e cultura conversam com algo mais reservado e particular. E foi a partir daí que descobri que a minha entrevistada me considerava hipócrita. “As pessoas aqui parecem um pouco hipócritas. Você não pode saber realmente o que eles pensam e o que acham.”, me surpreende Michele. Sem entender muito bem o que ela quis dizer com “hipócritas”, a indago sobre o real sentido da palavra e se queria dizer que os brasileiros com os quais já teve algum tipo de contato, em sua maioria mineiros, são fingidos. Ela, sem pensar duas vezes, responde: “É, um pouquinho. Porque no meu país, por exemplo, você não pode sorrir para uma pessoa que não conhece. Mas aqui as pessoas fazem muito isso. É algo muito estranho. Acho que é falsidade. Nesse aspecto eu gostei do Sul.” Neste momento, imediatamente, eu me recordo de sua chegada ao local da entrevista. Me lembro do meu aceno e do meu sorriso, e entendo o porquê da atitude dela não ter sido recíproca ao me ver. Com um leve sorriso no rosto, de como quem acha inusitada e engraçada a situação, continuo a escutá-la e prestar ainda mais atenção naquela que me pareceu a mais sincera das pessoas que já conheci. 21 Além desse choque cultural, outras coisas não agradam à jovem gabonesa, como a burocracia na Polícia Federal para a renovação do visto e as altas temperaturas do verão mineiro. Por esses e outros motivos que Michele parece não querer revelar, ela não pretende continuar morando aqui no país após os cinco anos de curso. “Quando acabar eu não vou ficar aqui não. Porque o Brasil é bom para vir, passar um tempo, mas morar aqui eu não quero”, conclui. Embora nem tudo “sejam flores”, nada também é tão ruim. Frédérique conta que existem muitas oportunidades na faculdade mineira, como as práticas laboratoriais e os estágios. Segundo a jovem, é quase impossível ir para a faculdade apenas para assistir às aulas, pois existem muitas outras coisas para enriquecer o conhecimento. 22 Além disso, a grande variedade de cursos impressiona a estudante. O seu, por exemplo, não existe no Gabão. Quando ainda estava no processo seletivo ela teve que optar por dois cursos existentes aqui. Por influência do pai - que é Engenheiro aposentado –, pela facilidade que tem com a área de Exatas e para fugir da área da saúde por “não aguentar ver sangue”, Michele optou primeiramente por Engenharia Civil – curso existente no seu país –, e, em seguida, por Engenharia de Controle e Automação – totalmente desconhecido por ela. A oportunidade de se conhecer o desconhecido foi a que vingou e a sua aprovação se deu na segunda opção. O FIM Sem voltar para a sua pátria desde a chegada ao Brasil, a futura engenheira dribla a saudade conversando todos os dias com os familiares pelas redes sociais. Contudo, às vezes, a saudade chega a ser tão forte que a jovem pensa em desistir, como no período de comemorações no final do ano. “Aqui é muito chato ficar! Todo mundo tem casa, todo mundo está com a família e tudo está fechado, mas eu não tenho família aqui. Então eu fiquei com amigos. Mas foi muito diferente, porque lá no meu país, no fim do ano, tem festa em todo lugar, a cidade é muito animada. Aqui eu estava chorando, querendo voltar”, finaliza a gabonesa. Decidida a não passar mais as festas de fim de ano no Brasil, a sincera Michele se concentra nos estudos a fim de que os próximos anos passem rápido e a vida em Belo Horizonte se torne uma boa lembrança em sua história. 23 24 25 Eva Ndunge 20 anos País: Quênia ARROZ E FEIJÃO NÃO! por Lígia Oliveira 26 Antes mesmo de estabelecer meu primeiro contato pessoalmente com Eva, ela já me pede, por meio das redes sociais, para votar em seu texto que iria concorrer a um prêmio online. O relato, em inglês, da futura estudante de Ciências Atuariais da UFMG, conta a história de uma tragédia que aconteceu muito perto da sua casa. Depois de ler seu desabafo, fico muito curiosa para saber a história dessa menina que com apenas 20 anos já pôde sentir na pele os males de um ataque terrorista. “Nasci no Quênia, mas me mudei recentemente para o Brasil para estudar. Há pouco tempo no meu país aconteceu um ataque terrorista em uma universidade que deixou 148 pessoas mortas. (...) Esse evento trágico me proporcionou um aprendizado intercultural sobre o Quênia, a África e o resto do mundo. Minha nova experiência no Brasil me deu a oportunidade de ser proativa e compartilhar mi- nha cultura para diminuir a ignorância que persiste na minha pátria. Eu vou trabalhar para reduzir a ignorância e, o mais importante, criar um diálogo para conseguir ajudar a quebrar as barreiras sociais, econômicas e financeiras pelo continente.” Segundo ela, a situação no Quênia está muito complicada. Por ser o país majoritariamente cristão, o fundamentalismo islâmico, que está em ascensão no local, tem vitimizado muitas pessoas. Quando o atentado aconteceu, ela estava há pouco tempo no Brasil e teve que assistir de longe ao drama de sua família que estava na cidade ao lado de onde ocorreu a tragédia. A estudante me causa surpresa quando pergunto se ela está com medo dessa realidade: “Medo? Não. Não tenho medo! Eu sei que Deus vai nos proteger, a mim e a minha família. Mas, às vezes, quero voltar e ficar perto deles.” Eva veio para cá no começo do ano para estudar Ciências Atuarias na UFMG. Ela conta que saiu do país para conseguir condições melhores de estudo e para ter novas experiências. Apesar de ter sido selecionada para outra universidade em São Paulo, decidiu vir para a UFMG, pois considera que esta universidade possui o melhor curso no país. No Quênia, os principais idiomas falados são a língua inglesa e o suaíli, que é o idioma banto com o número maior de falantes. Ela conta que quando chegou aqui causava estranheza por saber falar inglês. “Perguntavam para mim se eu tinha ido aos Estados Unidos estudar inglês. Eu achava engraçado e respondia que era o idioma oficial do meu país”, relata. Chegando aqui, ela teve que aprender a falar a língua portuguesa e, por este motivo, está fazendo um curso de português para estrangeiros. No final do ano de 2015, ela deverá fazer uma prova de proficiência. Caso seja aprovada, finalmente vai poder realizar seu sonho de estudar em uma universidade. “Não vejo a hora de fazer a prova e começar a estudar aqui (na UFMG)”, afirma com excitação. Com jeito de menina, ela tem paixão pelo novo em busca do conhecimento. Mesmo com o coração apertado, pela primeira vez longe de casa, parece estar gostando de sua estada aqui Brasil. “Eu gosto do Brasil. No começo só era difícil falar a língua, porque eu não sabia falar nada de português. Mas agora eu gosto muito daqui. Tive a oportunidade de conhecer muita gente nova, fazer muitos amigos. Minha vida é igual era lá. Eu me divirto bastante”, comenta a estudante. A queniana afirma que não teve nenhuma dificuldade aqui em Belo Horizonte. Ela me conta que se acostumou rápido com a cidade e com as pessoas, mas tem uma coisa que a incomoda: a desinformação. Ela afirma que as pessoas não sabem muito sobre a África e pensam que lá só tem doença e pobreza. Isso é uma das coisas que a intercambista tenta mudar aqui no Brasil. “As pessoas aqui falam: ‘lá vocês sofrem muito, vocês andam em animais.’ Eles (os brasileiros) acham que a vida lá é sempre sofrimento, o que é muito estranho, porque estamos no século XXI. No Quênia, a vida é igual no Brasil. Tem as pessoas que são muito ricas e as que são mais pobres. Existe da educação básica até a universitária. Nós, quenianos, temos carro e casa. Não tem nada de diferente ou novo”, afirma. Quando o assunto é voltar para casa, a saudade fica clara e os olhos lacrimejam. “Eu quero voltar, vim aqui só para ter um estudo melhor”, revela. E quando a pergunta é o que ela mais sente falta, não há menor hesitação: “Sinto falta da comida. Comer só arroz e feijão não dá. Lá no meu país a gente come muita coisa diferente, aqui vocês comem as mesmas coisas. Se eu pudesse mudar alguma coisa no Brasil seria a comida.” E assim me despeço cada vez mais surpresa com a inteligência e sinceridade dessa queniana. 27 28 Yaovi Mathias Honore TODJRO 28 anos País: República do Benin Graduado em Ciências Biológicas Atualmente faz mestrado em Bioquímica e Imuno UMA PELE, UMA COR E UM AMOR A conversa com Yaovi Mathias tomou um rumo que eu não esperava. Ao falar de si, o beninense levantou questões sociais que afligem as pessoas que vivem no Brasil, mas que, muitas vezes, passam despercebidas pelos que nasceram aqui. Mais do que a construção de um perfil pessoal, os relatos de Yaovi evocaram um assunto que faz parte do cotidiano de boa parte da população que mora no Brasil, seja ela brasileira ou não, mas que nem sempre é tratado com a devida importância: o racismo. por Taiany Gonçalves Há seis anos no Brasil, desde 2009, Yaovi já se graduou em Ciências Biológicas pela Universidade Federal de Minas Gerais e cursa atualmente o mestrado em Bioquímica e Imuno na mesma instituição. Contudo, o ramo da Biologia não o acompanhou sempre nos estudos. Quando morava em seu país, Mathias, como é chamado pelos amigos, cursou Transporte e Logística. Ele realizou o “ENEM beninense”, chamado de BAC (abreviação da palavra baccalauréat), com o intuito de cursar Análise Biomedical. Porém, não conseguiu vagas nessa área e optou por Transporte e Logística. Em dois anos já estava com seu diploma de tecnólogo. Para obter a licença era preciso cursar mais um ano e ele chegou a iniciar esta etapa. Entretanto, no meio do caminho, foi aceito no Brasil para estudar Ciências Biológicas e acabou por não concluir o último ano daquele curso. Ao contrário de africanos de outros países, o beninense não precisou fazer nenhum teste específico para o intercâmbio. O governo do Benin utilizou a nota do BAC para aprová-lo no processo, que, segundo ele, não é nada fácil. “O ‘nosso ENEM’, o BAC, tem uma nota mínima. A média para passar é 50, mas a prova é tão difícil que eles deixam a média para 45. A prova é toda aberta e é referente à série que você escolheu no ensino médio. Eu escolhi a série D, que tem Matemática, Física, Química e Biologia. Na parte da prova de Matemática, por exemplo, cai integral e derivado. É realmente muito difícil”, conta. A segunda parte era escolher o país de destino. A opção pelo Brasil foi influenciada por um tio que morava aqui. “Um tio meu, que estudou na Unicamp e agora é professor de lá, me falou que o curso aqui era bom e que as univer- 29 sidades brasileiras eram de qualidade”, conta. Então, Yaovi, além da França, entrou no processo para vir ao Brasil também. Estava no resultado que saísse primeiro o seu futuro. E o vencedor foi o Brasil. Sem querer esperar o resultado da França, não pensou duas vezes ao decidir desembarcar em solo brasileiro. DEPOIS DO DESEMBARQUE... “A UFMG não tem estrutura para receber os estrangeiros. Nós entramos em contato com o DRI, mas ainda não existe a estrutura do pessoal dessa diretoria em buscar os estrangeiros no aeroporto. Nós avisamos aos veteranos o dia em que iríamos chegar e eles nos buscaram”, inicia Mathias. 30 Após esta etapa, o segundo passo é a residência. Como somente a passagem é custeada pelo governo beninense, os trâmites com aluguel ficam por conta do estrangeiro. E essa é uma das grandes dificuldades para um recém-chegado. “Você tem que arrumar uma casa para alugar, mas tem que ter fiador. Ninguém vai aceitar alugar para você sem fiador, mas você também não consegue achar uma pessoa que esteja disposta a ser”, relata o jovem. Assim, os veteranos se tornam ainda mais fundamentais nesses primeiros momentos de vida brasileira ao procurarem uma moradia para os calouros antes mesmo deles chegarem. E é nesse tipo de veterano que Yaovi também se tornou. “A gente fica procurando apartamento ou casa para os novatos antes deles chegarem e já avisamos o quanto eles irão pagar por mês. Se a gente não conseguir arrumar uma casa a tempo, eles podem ficar na nossa”, conta. Hospitaleiro com o próximo, assim como considera o povo do interior do nosso estado, o biólogo não economiza elogios ao se referir aos mineiros: é um povo legal, bacana e acolhedor. Mas é um povo também, que, assim como as pessoas de outros estados brasileiros, possuem um grande e infeliz defeito. “O povo de Minas é um povo legal, mas tem uma coisa que a gente percebe quando chega aqui no Brasil: o racismo. A gente percebe logo de cara que tem muito preconceito em relação aos negros”, relata Yaovi Mathias, dando início ao tema que mais o indigna e incomoda no país da diversidade. O DESPRAZER DE CONHECER O NOVO Um dia, quando criança, o estudante já correu atrás de brancos gritando “Yovo, yovo, yovo!”, que quer dizer “Branco, branco, branco!”. No Benin, as crianças fazem isso quando aparece alguém de pele clara, porque é novidade, é diferente. Mathias já fez isso. Mas diz que hoje, depois de saber como o branco o trata, não pode fazer mais. Conhecer outro país é conhecer uma cultura, visões e realidades diferentes. É ampliar a bagagem cultural e aprender a respeitar as diferenças que existem. Contudo, conhecer outra nação é também se deparar com as desigualdades e os desrespeitos que existem naquele lugar, e, muitas vezes, sofrer na própria pele e por ela a ignorância existente. E foi no Brasil que Yaovi foi conhecer e sentir o que é o preconceito racial. “No Benin todo mundo é preto. Eu nasci em um país onde eu nunca sofri o racismo. Aí você chega aqui e tem gente te olhando de um jeito diferente. A forma de olhar já é um tipo de preconceito e a gente sente isso”, diz o jovem que acabou aflorando mais a sua sensibilidade por imposição da realidade que passou a conviver no Brasil. O biólogo relembra alguns episódios de preconceito que sofreu. Foram dois casos que marcaram de forma negativa a sua estada no Brasil. “Teve uma vez que eu estava na porta da minha casa conversando com um amigo, quando um cara passou num carro e gritou: ‘Macaco!’. Esse cara só pode ser um mané para fazer uma coisa dessas. Mas eu ri, porque nada vai me atingir. Você vale mais do que isso!”, relembra a história com um sorriso no canto da boca, como quem se orgulha de sua maturidade diante dos fatos. A outra situação de racismo havia acontecido poucos dias antes do nosso batepapo. Pelo fato de ser mais recente, as marcas ainda eram visíveis em seu olhar e na fala. “Há uma semana eu estava indo para um bar. Estava andando na rua quando vi uma moça sair de um prédio e se despedir de um rapaz. Quando ela me viu, voltou correndo. Como já passei por esse tipo de situação, eu não fico chateado, vou para frente e encaro na hora. Ela voltou em direção ao prédio e eu ouvi o moço perguntar: ‘O que foi?’. Ela respondeu algo que não consegui ouvir e então todos entraram. Eu parei na porta do prédio e gritei: ‘Preconceituosos!’. Talvez eu esteja um pouco enganado, mas você encontra qualquer negro na rua à noite e as pessoas fogem. Sabe por quê? Porque negro é bandido”, ironiza. Além dessas duas lembranças vivas em sua memória, segundo ele, o comportamento e a desconfiança da polícia brasileira para com os negros também o incomoda. Ele foi abordado duas vezes pela polícia. O que para muitos é pouco, para ele foram momentos que pareceram durar uma eternidade. A primeira vez em que foi revistado já fazem quatro anos, mas nenhum detalhe daquele dia foi perdido em sua memória. “Eu estava voltando da aula, à noite, quando, virando a esquina para pegar a rua Boaventura, me pararam com arma. Foi a primeira vez que alguém apontou uma arma para mim. Eu fiquei em choque! Me perguntaram de onde eu vinha e eu disse que estava vindo da UFMG. Eles revistaram a minha mochila e me pediram desculpas. Disseram que teve um assalto e que o cara tinha o mesmo perfil que eu”, conta. Como o beninense nunca havia sido revistado pela polícia em seu país, foi no Brasil que ele teve que aprender a lidar com o “sistema de segurança”. Essa primeira ocorrência o fez ficar mais alerta em relação ao policiamento. Não queria que acontecesse novamente, mas se assim fosse, ele já não seria pego de surpresa e teria mais controle emocional diante da situação. E como se fosse um teste, para realmente ver se ele estava preparado para reviver tudo aquilo, a polícia voltou a lhe parar, mas dessa vez não o revistaram. “Perto da minha antiga casa existe uma favela e naquele dia eu estava bem vestido, porque eu gosto de me vestir bem. Me pararam, mas pelo meu sotaque perceberam que eu sou estrangeiro e começaram a conversar comigo. Eu me pergunto o porquê de terem me parado e eu sei a resposta. É porque eu sou negro, bem vestido e estava indo em uma direção que poderia ser a da favela. O negro não pode ser bem vestido porque ou é traficante ou está fazendo coisa ruim para ter dinheiro. Essa coisa me deixa revoltado”, relata. Envergonhada dos constrangimentos e desrespeitos pelos quais ele e seus colegas têm sofrido, o indago se isso seria uma mistura de xenofobia com preconceito racial. Porém descubro algo diferente. Ele atesta que quando descobrem que ele é estrangeiro o comportamento melhora. “Quando a pessoa percebe que você é estrangeiro, aí ela muda de cara. Muda a forma de falar, fica mais sorridente... Eu acho que o preconceito é realmente pela cor”, conta sobre essa bipolaridade do brasileiro. Mas se Yaovi não percebe a xenofobia, o mesmo não pode ser dito do preconceito social e de classe. Ele não nega que esse tipo de preconceito exista em seu país. Mas, diferentemente do Brasil, segundo ele, em Benin, o preconceito social não está relacionado com a cor. “Aqui existe uma interação entre pobre e negro. É como se ser negro fosse ser pobre, entendeu? Essa é a diferença entre o preconceito no Brasil comparado a outros lugares. A cor está associada à pobreza. Aqui as pessoas me tratam de uma maneira, mas quando eu digo que estudo na UFMG, faço mestrado e falo francês, as pessoas mudam de comportamento”, conclui. 31 “Nós, desde pequenos, lá no ensino fundamental, aprendemos a cantar assim: ‘Sou muito orgulhoso de ser negro. Gosto do meu cabelo crespo e do meu nariz achatado’.” NEGRO É MEU NOME O grande problema do brasileiro, segundo Yaovi, é, além de ser preconceituoso com o próximo, ser consigo mesmo. “Mais da metade da população brasileira é negra e tem muita gente que não se assume. Não quer se assumir e nem se orgulhar”, reprova o beninense, que procura se informar e entender mais sobre a sociedade brasileira. 32 Segundo dados divulgados pelo Instituo Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) em 2013, 8% dos brasileiros se consideram de cor preta e 45% se declaram de cor parda. Juntos, esses dois grupos formam a população negra, o que na soma equivale a 53% da população brasileira. Embora a quantidade de pessoas que se afirmam negras tenha aumentado nos últimos anos, grande dificuldade ainda é encontrada por parte dos negros brasileiros em se aceitarem como tal. Já na República do Benin, a história é bem diferente. O mestrando conta que em seu país a cultura é a de valorização do negro. “Nós, desde pequenos, lá no ensino fundamental, aprendemos a cantar assim: ‘Sou muito orgulhoso de ser negro. Gosto do meu cabelo crespo e do meu nariz achatado’”, exalta Mathias. A poesia citada e cantarolada por Mathias em sua infância é Negre c’est mon nom (em tradução livre: “Negro é o meu nome”), do senegalês Léopold Sédar Senghor. Atualmente, as crianças beninenses continuam exaltando a honra e o orgulho de serem negras através dela. NEGRE C’EST MON NOM Nègre c’est mon Nom Nègre c’est ma race. Si mon teint parfois bronzé t’induis en embarras, NEGRE C’EST MON NOM Nègre c’est mon Nom Nègre c’est ma race. Si mon teint parfois bronzé t’induis en embarras, d autres traits peuvent souligner ce que je suis. Nègre c’est la forme de ma tete Ce sont mes lèvres lippues c’est mon nez applati. Mes cheveux créppus tèmoignent fort que je suis un Nègre d’origine Fils de l’Afrique noire, Afrique qui regrette encore sont passé Ce passé mystique et plein de sagesse, Oui , tu as refusé d’apprécier mes civilisations. Ne conçois tu pas enfin que Nègre est mon nom? Présente donc mes complimenets à ma mère qui m’a donné ce nom encore Ignores tu que cette mère, C’est l’Afrique noire dont je suis fier d’etre le Fils ? Mieux vaut. Regarde Assiba ma soeur, Examine la blancheur de ses dents Son esprit docile et la franchise de sa mine Négresse est son Nom Nègresse est le nom de ma soeur. Et ces ambitieux émigrants qui ont fait de nous des betes de sommesne sont que de méprisables négriers. Etre Nègre est un privilège Et je suis heureux Et je suis fier d etre un Nègre!! NEGRO É O MEU NOME (Traduzido por Arnaud Zalete Musa a nsa) Negro é o meu nome Negro é a minha raça. Se a minha tez por vezes bronzeada te leva a algum desconforto, outras características podem enfatizar o que eu sou. Negro é a forma da minha cabeça Estes são os meus lábios grossos este é o meu nariz achatado. Meu cabelo crespo testemunha alto que eu sou de origem Negra Filho da África negra, África que chora ainda seu passado Este passado místico, cheio de sabedoria, Sim, você recusou-se a apreciar a minha civilização. Você não concebe, finalmente, que Negro é o meu nome? Apresente meus cumprimentos a minha mãe que me deu esse nome novamente Você ignora essa mãe, E a África negra que eu tenho orgulho de ser o Filho? Melhor. Olha Assiba minha irmã, Examina a brancura dos seus dentes Seu espírito dócil e a franqueza de sua mina Negra é o meu nome Negra é o nome da minha irmã. E estes imigrantes ambiciosos que nos tornaram burros de carga são apenas negreiros desprezíveis. Ser Negro é um privilégio E eu estou feliz E eu tenho orgulho de ser um Negro!! 33 DISSEMINANDO A CULTURA BENINENSE Embora o biólogo reconheça que existam problemas em seu país, assim como em qualquer lugar do mundo, prefere divulgar apenas o lado positivo e as exuberâncias do Benin. “Em qualquer lugar você tem um lado ruim, de pobreza e um lado bom, de riqueza. Eu faço palestras sobre o meu país e só mostro o lado de riqueza. O lado negativo não precisa ser mostrado, porque a mídia já faz esse trabalho”, conta sobre a maneira que encontrou para desmistificar a visão que as pessoas têm sobre os países africanos. 34 Em suas palestras, existe o espanto de alguns espectadores ao conhecerem uma realidade tão diferente daquela que os meios de comunicação geralmente exibem. Algumas pessoas chegam a indagar se o lugar que ele está mostrando pertence a África, pois nunca tinham imaginado que pudesse haver hotéis e prédios grandes e luxuosos, por exemplo. Muito tranquilo, Mathias não se enfurece com esses achismos sobre o seu país e o continente africano, até gosta muito de informar as pessoas sobre a sua cultura. Na nossa conversa não foi diferente. Dividido entre etnias, o Benin possui muitas línguas faladas entre os povos. Yaovi fala três outras línguas além do francês, que é a oficial. “Eu falo francês, fon, mina e gun. A primeira língua que eu aprendi foi o mina, que é a da etnia do meu pai. O francês eu só fui aprender na escola, porque dentro de casa a gente conversa em dialetos. E o fon, falada em todo o sul de Benin, eu aprendi brincando com os meninos do bairro, pois essa é outra opção para a gente se comunicar. É como se fosse a lingala no Congo”, explica detalhadamente. Já o gun é a língua da etnia de sua mãe, mas nem ela própria faz mais uso desse dialeto, pois teve que aprender a língua do marido para ensinar aos filhos. Além disso, Mathias também destaca a poligamia que um dia existiu em sua nação e que hoje não é mais liberada. Com dezoito irmãos, divididos entre quatro mães diferentes, ele conta que o pai se casou legalmente com todas essas mulheres. O beninense não esconde que acontecem muitas brigas entre as mães e que os filhos acabam entrando na confusão. Embora agora estejam mais maduros, o que melhorou as relações, ele revela a preferência pelos irmãos que são filhos da mesma mãe. “Eu tenho uma relação mais forte com os filhos da minha mãe, que comigo são sete, do que com os filhos das outras. Você pode ficar em paz, mas sempre vai ter essa divisão: somos do mesmo pai, mas não da mesma mãe”, explica com bastante sinceridade. Na passagem de Ano Novo, todos se reúnem numa grande festa, na qual todos são amigos, mesmo que seja apenas por um dia. ENTRE BENIN E BRASIL Ao mesmo tempo em que percebe diferenças entre a terra natal e o Brasil, Yaovi vê semelhanças entre os dois lugares. O acolhimento das pessoas é a primeira característica similar que ele destaca, principalmente quando se trata das pessoas do Nordeste. Em suas viagens por alguns estados daquela região, constatou que lá é o lugar onde as pessoas mais se assemelham aos africanos. “O Brasil é um país muito acolhedor e nós somos muito parecidos com os brasileiros. O povo do Nordeste é muito acolhedor, como os africanos”, pontua. Mas, infelizmente, ainda não pôde conhecer o estado brasileiro que mais considera parecido com Benin: a Bahia. Admirador das músicas de axé, o beninense conta que tem muita vontade de visitar e conhecer a cultura baiana para se sentir verdadeiramente em casa. “Benin tem muito a ver com Salvador e com a Bahia. O povo de lá é derivado do meu país. Alguém da Bahia que estudou História sabe que a maioria do povo baiano é descendente do povo de Benin. Acarajé, por exemplo, não é daqui, mas sim de Benin, Nigéria, Togo”, mostra que procurou conhecer mais as relações entre a África e o Brasil. Tendo visitado o seu país desde que se instalou no Brasil apenas uma vez, e sem ainda ter tido a oportunidade de visitar a Bahia para sentir um pouco da energia africana, o jeito encontrado por ele e por seus amigos para vivenciar a cultura da África é a realização de festas. Ainda que alguns encontros sejam abertos a brasileiros, o resgate cultural acontece, assim como a troca, já que participam intercambistas africanos de diferentes países. Sem previsão de retorno ao Benin, já que participará do processo seletivo para o doutorado na UFMG, e sem saber se o regresso será definitivo, pois a área laboratorial, segundo ele, é bastante precária em seu país, o futuro doutor só pensa em se dedicar aos estudos. “Se eu sair do Brasil, será para outro país que tenha uma estrutura adequada para fazer pesquisa. A gente fica com saudade, mas não é a ponto de ficar mal. Pior é quando a gente sofre preconceito. Aí dá vontade de ir embora para ficar com a mãe”, finaliza Yaovi Mathias, o filho. “O Brasil é um país muito acolhedor e nós somos muito parecidos com os brasileiros. O povo do Nordeste é muito acolhedor, como os africanos.” 35 36 SESSÃO ESPECIAL República Democrática do Congo 37 por Taiany Gonçalves A entrevista realizada com os dois congoleses, Peter Abram e Arnaud Zalete, aconteceu simultaneamente, de modo que houvesse trocas de experiências entre eles. Os jovens falaram bastante sobre as tribos existentes no Congo e a comunicação estabelecida entre membros de diferentes etnias. O diálogo rendeu uma sessão, que não esperávamos, completamente baseada na visão e na construção que os congoleses fizeram sobre a vida em Kinshasa, capital da República Democrática do Congo. ARNAUD ZALETE PETER ABRAM Línguas faladas: Francês, Lingala, kikongo, Inglês e Português. Línguas faladas: Francês, Tshiluba e Português. Lingala, Embora Kinshasa seja uma das maiores cidades do continente africano, aos olhos dos jovens estudantes a capital acolhe de forma tão aprazível uma invejável diversidade cultural e linguística que não parece tão grande assim. Para eles, a província de Kinshasa – província é o nome utilizado para as divisões de regiãodentro do país congolês – é muito pequena em relação a de outros países. Pela facilidade que as pessoas têm de chegar à capital congolesa e pela mistura de culturas existentes, a melhor definição que eles encontram para Kinshasa é o de “Centro”. Segundo eles, a diversidade de tribos na capital se faz bastante presente. 38 Pergunto,então, qual seria o conceito de “tribo” e eles afirmam que é a comunidade das pessoas que compartilham da mesma origem, cultura, modo de pensar e língua. Esta última característica foi a que dominou a interação entre os dois. Virei mera espectadora. “Eu e o Arnaud somos de tribos diferentes. Nós dois falamos francês e mais um dialeto, que se chama ‘lingala’. Lingala é uma língua, mas para você entender, vou chamar de dialeto. Além dessas duas, cada um de nós tem uma língua própria de nossa tribo. Eu posso falar e ele não vai entender”, conta Peter Abram. Para provar que Arnaud não entenderia o seu “dialeto”, Peter fala algumas coisas, fazendo com que Arnaud e eu ficássemos pasmos diante da situação, sem entender uma palavra sequer pronunciada por ele. Pergunto a Arnaud se ele realmente não entendeu nada e, sem pestanejar, ele me diz: “Nada!”. LÍNGUAS NACIONAIS Mais de 250 línguas são faladas pelos quase 80 milhões de habitantes da República Democrática do Congo. Além da língua francesa, que é a oficial, lingala, kikongo, suaíli e tshiluba são as quatro principais línguas nacionais. Francês e Lingala “Se somos de tribos diferentes, falamos em francês ou em lingala”, assim descrevem a importância dessa língua no território congolês. Considerada um idioma materno na região noroeste da República Democrática do Congo, em grande parte da República do Congo e em alguns outros países africanos, essa língua banta tem tanta ou mais importância que a própria língua oficial. O francês, segundo Peter e Arnaud, é a língua ensinada na escola, apesar de algumas pessoas já aprenderem dentro de casa com a família, o que facilita quando há o ingresso no colégio. Embora o Congo de Kinshasa seja o país francófono mais populoso, o que contribui para uma maior proliferação da língua francesa, a lingala não perde o seu espaço no país, principalmente pela necessidade que eles têm em conservar fragmentos do passado. “A gente tem aquela coisa de preservar a nossa história. Existem línguas que não têm escrita e nem regra gramatical, por exemplo, e, então, nós arrumamos um jeito de escrever. A lingala não tem uma tradição escrita. O pessoal só aprende na família, de boca a boca, mas a gente arruma um jeito de escrever”, contam. Não existe, portanto, certo ou errado quando a palavra pertence a um idioma que seja apenas de tradição oral. O que vale é conseguir ser compreendido. A capital Kinshasa é uma mistura de muitas tribos e línguas. E lingala foi o idioma escolhido pelo povo congolês para a comunicação com pessoas de outras tribos. Tshiluba De origem banta e com o status de língua nacional no Congo, tshilubaé a língua da tribo de Peter. Ele conta que embora esse seja o primeiro idioma falado em sua região, isso não impede que uma pessoa de outra etnia more lá. Esta pessoa irá se deparar com o idioma da tribo em questão, porém não enfrentará problemas de comunicação, já que as pessoas também falam em lingala e em francês. E assim acontece nas outras tribos. Kikongo Essa língua africana é a dominante na tribo de Arnaud. Mas, assim como no caso da tribo de Peter, os integrantes da tribo de Arnaud interagem entre si e com pessoas de outras etnias também em lingala e francês. Suaíli Deixo que Arnaud fale sobre esse idioma banto. “Você conhece o filme ‘Rei Leão’, aquele do Hakuna Matata?”, me pergunta o congolês. Balanço a cabeça afirmando que sim. “Então, Hakuna Matata é suaíli”, simplifica e sintetiza a definição. Mesmo falando muito bem a língua portuguesa, eles não deixam as origens de lado quando estão em grupos de congoleses. Na ausência de brasileiros, o português não tem vez: é lingala ou francês. 39 Arnaud ZaleteMuza a nsa 27 anos País: República Democrática do Congo Curso: Engenharia Civil O ENCONTRO DO CONGO COM MINAS 40 De lugar desconhecido a possível lar permanente. É isso que se tornou o Brasil na vida de Arnaud Zalete. Depois de pouco mais de 3 anos no país, o jovem de 27 anos já consegue se imaginar fixando residência aqui após a conclusão do curso de Engenharia Civil. Se vai ou não permanecer, já é outra história. por Taiany Gonçalves A vontade de trilhar um caminho diferente foi o que guiou a escolha de Arnaud. Ele tinha outras opções de viagem, principalmente por ter alguns tios residentes na Europa e na África do Sul. Seria mais fácil optar por um lugar em que muitas coisas já estivessem encaminhadas. Porém, quem disse que o jovem queria facilidade na vida? “Eu queria fazer um caminho sozinho. Naquela época eu estava pensando em ir para o Canadá ou para os Estados Unidos, mas eu tenho amigos que falaram que lá é cada um na sua”, conta. Em uma conversa sobre o futuro, um amigo lhe fez uma despretensiosa sugestão, que acabaria levando-o ao encontro dopaís que um dia foia pátria de chuteiras. “Meu amigo me disse: ‘Por que você não pensa no Brasil?’”, relembra Arnaud. A história de um dos maiores times de futebol do mundo foi e ainda é construída com a ajuda de grandes craques brasileiros, como Romário, Ronaldo, Ronaldinho Gaúcho e Neymar. O Bar- celona ocupa um lugar no coração de milhares de pessoas no mundo, inclusive no do congolês, que só conhecia o Brasil por causa de sua paixão por esse esporte.“O que a gente sabe daqui é sobre o futebol esobre aqueles grandes nomes, como Ronaldo. Quando meu amigo me fez aquela sugestão, eu logo disse: ‘O que tem lá? É futebol e o quê mais?’”, conta com muito humor. A curiosidade surgiu. Arnaud iniciou suas pesquisas para saber se valeria a pena se arriscar dessa forma eir para um lugar tão desconhecido para ele. No entanto, em suas buscas, descobriu que havia muito mais coisas em comum entre África e Brasil do que ele poderia imaginar. “Eu vi que a África realmente tem uma história, um vínculo muito grande com o Brasil. Então, eu pensei que não iria estranhar muito ao chegar aqui”, explica. O processo seletivo foi tão rápido que não deu tempo do congolês terminar o curso preparatório,que estava fazendo em seu país, para iniciar a graduação em Engenharia. Com o anúncio do resultado positivo, ele teve que abrir mão desses estudos para então começar uma nova vida distante dali. Porém, antes de vir para o Brasil, teve uma surpresa. O estado escolhido para passar os seus próximos anos não era a sua primeira nem segunda opção. “Ninguém esco- lhe Minas Gerais. Todo mundo escolhe Rio ou São Paulo. Eu não sabia nada sobre Minas. Foi a minha terceira escolha. Mas as nossas notas são recolhidas pela embaixada e enviadas para o governo daqui, que propõe nas universidades. E foi a universidade mineira que me escolheu”, explica.Quando leu a palavra “Belo Horizonte”, Arnaud não sabia do que se tratava. “Perguntei o que era Belorrizonté?”, diz ele com seu sotaque francês. Mesmo sem saber o que seria, já estava ansioso para conhecer e desvendar esse “mistério”. Além dessas dúvidas, ele ainda teria que vencer o seu medo e o de seus pais sobre o que lhe aguardava nesse lado do Atlântico. “Tipo assim...Tenho um convênio com o governo. Mas a questão é que você vai num país que não conhece, com uma cultura e uma língua que você não conhece. Você fica com medo e os pais também”, revela. Contudo, os amigos que já moravam aqui disseram que o Brasil é um país tranquilo e que ele poderia vir sem medo. UM LEMA: INDEPENDÊNCIA Vindo de uma família de classe média de Kinshasa, capital da República Democrática do Congo, onde o pai trabalha em uma empresa de distribuição de água - como a Copasa em Minas Gerais - e a mãe vende roupas, Arnaud sempre aprendeu a se virar para adquirir suas coisas. E aqui no Brasil não é diferente. Sem contar com ajuda de custo do governo, ele dá aulas de inglês e francês em uma escola de idiomas para se sustentar. “O convênio só garante a faculdade e a sua formação. Quem sustenta a gente, normalmente, é a família. Mas a gente não fica num lugar quadrado, e vai se virando. Eu falei para os meus pais: ‘Cuidem de vocês aí, que eu vou cuidar de mim aqui.’ Então, comecei a dar aula na Wizard. Isso ajuda a pagar o aluguel da casa e as contas. Eu dependo de mim mesmo e do cara lá de cima”, conta apontando para o céu. Essa busca pela independência sempre esteve presente na vida de Arnaud e, segundo ele, é algo bastante recorrente em seu país. “Os pais africanos criam os meninos do jeito deles para que, ao chegar num determinado momento, eles saiam de casa e se virem como homens. Tem a saudade da família, mas ao mesmo tempo você pensa que precisa fazer algo. Você precisa viver. Nós fomos educados para sair do ninho”, explica. Entretanto, nem por isso ele caracteriza a sua criação como distante. Seus pais sempre estiveram presentes e muito próximos dele e da irmã. E é só falar da irmã que seu lado ciumento desperta. Ao se lembrar que ela se casará em breve, Arnaud Zalete, bem humorado, comenta a situação. “Minha irmã vai se casar e eu também não sabia. Fiquei sabendo há pouco tempo. Eles sabem que se eu tivesse descoberto antes já teria ido lá e batido no cara. Minha irmã não pode se casar”, brinca o congolês. Surge então uma boa ocasião para rever a família depois de quase 4 anos. É CONGOLÊS E NÃO DESISTE NUNCA A cultura e a forma de ser dos mineiros causou um certo estranhamento em Arnaud. A disposição dos nativos deste estado em ajudar é o que mais chama a atenção dele. “Aqui chega a ser estranho. O pessoal chega e conversa com você numa boa. Às vezes você tenta falar e a pessoa tenta te ouvir com cara de quem está entendendo. Mesmo quando ela não entende, tenta te ajudar. Isso é legal com o mineiro, um povo que está sempre pronto para te ajudar”, conta com gosto. Quanto à UFMG, as opiniões, em sua maioria, são positivas. O graduando em Engenharia exalta não só a qualidade da universidade, mas também a boa relação estabelecida com os alunos e professores. Todavia, existem pontos a serem melhorados, como a assistência por parte do Colegiado de Graduação, 41 “Isso faz com que a gente se torne brasileiro mesmo.” segundo ele. O congolês conta que quando chegou à instituição não sabia detalhes sobre seu curso e nem o que era grade curricular. Não sabia sequer quantas disciplinas teria que cursar. “Fiquei realmente perdido. Eu só ia para a aula”, se diverte ao relembrar. Ele teve que pedir ajuda a um amigo. Por essa dificuldade encontrada, o jovem acredita que a vida acadêmica precisa ser mais bem guiada e orientada para os estrangeiros. 42 “Uma coisa que nunca tinha acontecido comigo era aquela coisa de ser revistado pela polícia. Pensei em desistir no momento em que isso aconteceu”,diz Arnaud Zalete com bastante desânimo e tristeza ao lembrar da situação. Ele consegue relembrar em detalhes o constrangimento que passou e que ainda passa ao ser abordadopela polícia. “Você está num ponto de ônibus e param só você. Ou está voltando para casa cansado, com fome, querendo dormir... e a polícia te para. Ou mesmo em casa. Uma vez estava conversando com um amigo, também africano, na porta de casa, e a gente foi parado. Por um lado, eu entendi que é o trabalho do pessoal, mas me senti mal e incomodado. É uma coisa que a gente não está acostumado. Nunca teve isso no meu país. Senti que não estou aquie pensei em ir embora”, conta Arnaud. “Minha mãe chegou a me ligar. Eu não sei como, mas as mães sentem. Ela me ligou e falou: ‘Arnaud, o que está acontecendo? Você está triste.’ Mas eu não contei nada”, conclui. À exceção dessas experiências com os militares, o persistente congolês não pensou mais em desistir. Nem mesmo o racismo sofrido foi capaz de desestruturá-lo. “Eu já passei por essas atitudes de discriminação e de segregação. Já percebi pessoas olhando diferente para mim várias vezes, mas não fico incomodado. Eu penso que o importante não é o que essa pessoa está pensando de mim, mas sim o que eu estou pensando de mim e o que eu quero fazer. Tem gente que me tratou muito bem nesse país e é para elas que eu olho. O resto não é da minha conta”, ressalta. Com uma visão mais leve e madura sobre a vida, Arnaud demonstra que não se deixa abater. O FUTURO: UM BELO HORIZONTE Na metade da graduação, o futuro engenheiro civil ainda não sabe o que fazer e para aonde vai após a formatura. Seu principal objetivo é trabalhar, ganhar dinheiro, ajudar a seus pais e construir a sua própria família. Onde isso tudo ocorrerá? Ele ainda não sabe. Na tentativa de conseguir mais alguns detalhes sobre suas decisões, crio duas situações para ver por qual ele opta. Entre duas propostas de emprego com o mesmo salário aqui e no Congo, Arnaud escolhe o Brasil. “Acho que fico aqui, por causa do hábito. Uai, eu já estou vivendo aqui desde 2012”, diz. Ao longo da entrevista algumas gírias foram ditas pelo congolês, como “tipo assim” e “’tô’ nem aí”. O “uai” é o que mais me impressiona e eu o interpelo por isso. Ele justifica esse mineirês pelo costume e conclui que é por isso que a maioria dos intercâmbios são de, no máximo, um ano para que a pessoa não se acostume com o lugar. “O nosso caso é diferente, porque estamos fazendo aqui um convênio a longo prazo. Você faz a faculdade por cinco, seis anos e muitos fazem o mestrado e tudo mais. Isso faz com que a gente se torne brasileiro mesmo”, finaliza Arnaud, além de universitário, professor de inglês e francês, futuro engenheiro, africano e congolês, ainda encontra espaço para ser brasileiro e mineiro. Peter Abram 28 anos País: República Democrática do Congo Curso: Comunicação Social UM FILHO DE MARIA JOSÉ por Taiany Gonçalves “No dia em que eu saí de casa a minha mãe me disse: ‘Filho, vem cá!’” Surpreendida sou, logo no começo da entrevista, com a música de uma famosa dupla sertaneja na voz do protagonista da vez. A milhares de quilômetros de distância de Goiás, onde nasceram Zezé di Camargo e Luciano, Peter Abram descobriria, assim como os dois filhos de Francisco, o que é sair de casa e aprenderia a lidar com a saudade que sente da mãe e dos irmãos. Nascido em Kinshasa, capital da República Democrática do Congo, Peter, aos 28 anos, já tem muitas histórias brasileiras para contar. Há 6 anos no Brasil, desde o dia 26 de fevereiro de 2009, o congolês e futuro jornalista queria sair do seu país para adquirir novas experiências e conhecer outra cultura. Muitos colegas e irmãos tinham o desejo de conhecer os Estados Unidos e alguns países europeus. Ele também não nega essa vontade. No entanto, foi a oportunidade de vir para a terra Tupiniquim que apareceu no momento em que ele mais queria viajar. Embora já cursasse Comunicação Social em seu país, Peter conta que não há nenhum tipo de vínculo entre o curso de lá com o daqui. Segundo o jovem, não se pode denominar como “intercâmbio” a sua vinda. “Eu vim para cá não por intercâmbio, mas para viajar e estudar fora. Nosso caso é integral. É como você abandonar o seu curso de graduação lá para fazer de novo, desde o começo”, afirma. Pelo fato do governo congolês não custear a sua estada aqui, o seu sustento vem da família e dos estágios que faz. Pergunto, então, se posso considerá-lo como uma pessoa rica em seu país, já que conseguiu sair de lá sem a ajuda do governo. Ele acha graça da pergunta e me responde com muito bom humor: “Quem me dera! Se somos os reis do pedaço?! Não, a gente não é isso tudo. Eu não sou rico. Sou filho de uma faxineira. Minha mãe trabalha, se vira na vida. E eu, antes de vir para cá, juntei dinheiro com o meu trabalho. Além disso, a minha mãe também me ajudou.” Empolgado com o rumo da conversa, Peter começa a contar um pouco sobre a vida na República Democrática do Congo. ANTES DO BRASIL: A VIDA NO CONGO Numa família de 8 irmãos, na qual 5 são homens, desde cedo os garotos já tinham como meta sair de casa. Segundo Peter Abram, essa necessidade de sair do lar é mais do que cultural, é algo “de sangue”, que, mesmo quando não há a motivação oral dos pais, criase uma própria pressão e necessidade internas para trilhar um novo caminho. Porém, no caso do estudante de Comu- 43 nicação, o “empurrão” dentro da própria casa pela mãe, dona Marie José, nunca faltou. O receio de que os filhos não prosperassem na vida angustiava Marie e, por isso, ela os incentivara de maneira única. “Quando dava 7 horas da manhã e a gente ainda estava dormindo, ela batia panela e falava: ‘Levanta, levanta, levanta! Vai trabalhar, vai arrumar alguma coisa para fazer! Vai na faculdade, arruma um estágio... faz alguma coisa. Não quero ninguém dormindo aqui até as 8 horas’”, relembra o congolês. 44 Aos 15 anos de idade, Peter começou a fazer estágio na televisão e saiu de casa. O irmão, um ano mais novo, por ser muito apegado a ele, também saiu e juntos foram morar com a tia. Seus olhos se enchem de lágrimas ao falar do companheiro: “Meu irmão criou um personagem para seguir, como se eu fosse um ídolo para ele. Qualquer coisa que eu faço, ele também tem que fazer. Quando eu vim para o Brasil, ele quis vir e lutou muito para conseguir. Mas não deu e ele foi para a França. Eu queria muito, muito mesmo que ele estivesse aqui, mas eu ‘tô de boa’. A gente conversa todo segundo!” Assim, desde os 21 anos de idade, o estudante teve que aprender a lidar com a saudade, já que quis alçar voos longe de casa. A CHEGADA “Quando eu cheguei aqui, foi mais do que esperava. Eu achava que ia ficar muito sozinho, mas isso só acontecia quando voltava para casa, porque durante o tempo do curso de língua portuguesa eu fiz bastante amizade com o pessoal da Letras”, relata os primeiros momentos em terra mineira. Além disso, já residiam em Belo Horizonte outros colegas africanos que orientaram e procuraram um lugar para que a turma de 2009, da qual Peter fazia parte, pudesse se instalar assim que chegasse. No entanto, se nada disso tivesse acontecido, se ele não tivesse se identificado com Minas Gerais e com nenhum outro estado onde eventualmente chegasse a morar, o congolês poderia voltar para o seu país. Ele conta que presenciou a desistência de um conterrâneo: “Eu já testemunhei um caso em que um menino do Congo desistiu. Ele chegou e depois de uma ou duas semanas voltou para o nosso país. Disse que não conseguiria se adaptar, que achou muito complicado.” Com Peter Abram, felizmente, a história foi diferente. Contrariando as expectativas dos familiares e amigos congoleses que temiam ao achar que ele viraria escravo no Brasil, o jovem estudante viu que não passavam de visões equivocadas e se adaptou muito bem à terra mineira, criando a sua própria opinião diante da realidade vivida aqui. O QUE SE VÊ POR AQUI Embora tenha viajado apenas uma vez ao Congo para visitar a família, as viagens dentro do território brasileiro não faltam. Ele já conheceu as cidades de São Paulo, Rio de Janeiro, Florianópolis, Goiânia e Brasília. Porém nenhuma recepção, segundo ele, foi tão boa quanto em Minas Gerais. Peter afirma, com muito humor, que não está dizendo isso só por estar conversando com uma mineira: “Não ‘tô’ puxando saco de ninguém não, mas o mineiro é diferente, ele está pronto para te receber e conhecer. Quando você está no ponto de ônibus, ele começa a conversar com você mesmo sem te conhecer. Isso aí é muito raro ver em outro estado. Aqui você nem precisa iniciar a conversa. A pessoa já chega em você e fala: ‘Nossa, hoje está quente!’. Isso que destaca em Minas Gerais em relação a outros estados, além da comida.” As imperfeições também existem e Peter se mostra bem atento a elas. A Assistência Estudantil, por exemplo, deixa a desejar em alguns aspectos. Os direitos, segundo ele, não são os mesmos para estudantes brasileiros e para os estrangeiros. Assistido pela FUMP, o congolês pediu ajuda financeira para a aquisição de um óculos de grau. O pedido foi rejeitado, mas ele não consegue entender o motivo. “Eles não podem ajudar um aluno como eu? Não podem ajudar um africano? Nossos direitos de aluno são limitados. Um aluno daqui do Brasil, nesse caso, teria direito”, relata com bastante pesar. Muitos, porém, são os lados positivos da universidade, principalmente quando o aluno sabe utilizar as ferramentas disponibilizadas. Além do ensino de qualidade, Peter exalta a excelência e atenção dos professores, principalmente para com alunos estrangeiros, já que têm paciência para explicar a matéria quantas vezes sejam necessárias quando há dificuldade na comunicação. O futuro jornalista ainda é categórico ao salientar que o fator determinante para o sucesso é o próprio aluno: “Se ele prestar atenção nas aulas, se sairá bem!” O QUE SE VÊ POR LÁ Muitos brasileiros acreditam que a África se resume a um continente de fome, miséria e guerra. Porém, poucos sabem que pesquisar, entender e compreender que esse continente é composto por 54 países, os quais têm realidades diferentes, é necessário. Assim, peço ao Peter que fale um pouco sobre o seu país, seu continente e sobre o que acha dessa visão distorcida que as pessoas têm. “Eu admito que no meu país tem problema, como em qualquer lugar. Mas as pessoas vivem e são felizes. Nosso país está indo para frente. Eu acho que a pessoa que fala que a África tem pobreza e que só tem guerra é alguém que só fica assistindo às coisas pela televisão”, ressalta. A mídia, na visão do congolês, é a principal responsável por essas interpretações distorcidas. “Só se filma uma coisa que chama a atenção. A realidade não pode competir com a CNN, por exemplo. Ela não vai mandar um repórter para um lugar que tem paz, porque não é notícia. Ela vai no lugar que tem problema. Aí a pessoa vê isso na televisão e pensa: ‘Os meninos da África estão sofrendo. Será que as pessoas estão comendo?’”, diagnostica o jornalista congolês. Todavia, o que mais o incomoda está longe de ser o que pensam sobre o seu continente, e sim quando consideram a África um país. É ainda mais complicado quando essa abordagem parte de colegas de profissão. “Eu já vi na Record e também o William Bonner falarem assim: ‘Está tendo guerra na África.’ e mostram um país em guerra. Aí a pessoa que sabe que a África não é um país, já pensa que isso está acontecendo em todo o continente. Os jornalistas têm que especificar e falar o nome do país”, diz Peter e mostra que não foi à toa que escolheu o jornalismo como ofício. O QUE NÃO SE VÊ NO AMANHÃ Há outro incômodo na vida de Peter desde que chegou ao Brasil: o preconceito racial. Algo que até então era desconhecido para ele, tornou-se mais próximo desde que aqui se instalou. “Ninguém chegou a me falar. Mas você olha a atitude da pessoa, o jeito que ela te trata como se você fosse inferior e isso desanima. Com certeza meus filhos serão negros e, por isso, eu fico pensando que se eu ficar aqui eles vão passar por esta situação. Se eu já estou sentindo isso, imagina meu filho chegando em casa e me contando uma coisa dessas... Então você pensa: “Não sei se vou ficar. Tenho que ir para o meu país, porque é um lugar onde ninguém nunca pensou isso de mim”, reflete o congolês. Reticente e em dúvida quanto ao futuro, principalmente pelo que o presente tem lhe proporcionado, Peter Abram, em breve formado, ainda não sabe o que fará após a conclusão da graduação. Se não for possível alçar novos voos fora daqui, o estudante já tem um segundo plano, como fazer pós-graduação ou mestrado. 45 Assim, o tranquilo jovem de 28 anos procura não se preocupar muito em como e onde estará no futuro. Prefere viver o agora como pode: estudando, trabalhando, se divertindo e cantando Zezé di Camargo e Luciano para matar a saudade da mãe e dos irmãos. O futuro ele deixa para se preocupar amanhã! 46 47 48 49 Ingo Cambolo 28 anos País: Angola Curso: Medicina A MUITAS PEDALADAS DE CASA por Lígia Oliveira 50 Era inverno, mas aquela sexta-feira de manhã devia fazer uns 34 graus. Para piorar, o número 591 da principal rua do Bairro Ouro Preto parecia só existir na imaginação do meu entrevistado. Depois de muitas trocas de mensagens e auxílio do GPS, finalmente encontro a entrada do prédio, que parecia estar se escondendo de mim em meio a tantos outros edifícios. Antes mesmo de chegar, já havia sido avisada: “ Nem adianta tocar a campainha, ela nunca funcionou.” Então, não hesitei. Peguei o telefone e liguei para Ingo. Livre do calor e do Sol, pergunto se eu havia acordado o estudante de medicina, que estava aproveitando a greve dos servidores da UFMG para descansar da sua rotina intensa de estudos. “Costumo acordar muito cedo. Às 6 horas geralmente já estou de pé”, assegura. Pois é, não temos isso em comum. Com sono e cambaleante subo várias escadas para, finalmente, chegar à casa do intercambista. Ao entrar no apartamento, a primeira coisa com a qual me deparo é uma bicicleta no meio da sala. O local era espaçoso com traços de casa antiga. Não havia muitos móveis. Ou foi apenas uma impressão? A sala combinada com a cozinha era muito grande. Dentro do espaço, meio vazio e muito escuro, o que mais chamava atenção era aquela bicicleta verde. Havia bandeiras em todos os lugares, espalhadas pela parede, embaixo da televisão, em “Um dia eu estava no ônibus e uma pessoa se dispôs a segurar minha bolsa para mim. Fiquei muito impressionado, porque isso não acontece no meu país.” cima do sofá. Quando resolvo comentar sobre elas, Ingo alerta que“essas bandeiras não são da Angola”. É sempre muito bom começar a entrevista com uma gafe geográfica. Com 28 anos, o angolano mostrou-se muito educado. Os seus traços eram fortes e a pele negra brilhava naquele lugar. O olhar era cativante e firme. Há dois anos, o intercambista viu que seu lugar não era mais em Angola e decidiu se inscrever para uma bolsa de estudos fora do país. Movido à base de muita curiosidade pela busca de novos conhecimentos, seu esforço foi recompensado. Ele foi selecionado para morar na capital mineira. “Eu não conhecia Minas Gerais. Lá na Angola a gente sabe muito do Brasil, mas é apenas do Rio de Janeiro ou São Paulo. Nunca tinha ouvido falar de Belo Horizonte”, comenta. E foi aqui que ele desembarcou. Belo Horizonte é famosa pelos bares e montanhas, mas o que chamou a atenção do angolano foi a educação dos mineiros. “Um dia eu estava no ônibus e uma pessoa se dispôs a segurar minha bolsa. No começo eu fiquei desconfiado, pois não estou acostumado, mas, depois, dei minha mochila para ela que segurou até o fim da minha viagem. Fiquei muito impressionado, porque isso não acontece no meu país. Os mineiros são pessoas muito educadas”, afirma. O carinho e o acolhimento dos belorizontinos foi o ponto mais elogiado por Ingo. Porém, essas características não podem ser confundidas com a amizade com os africanos. Assim que fala de sua terra natal, pude perceber, apesar dafirmeza e do encantamento com as terras Tupiniquins, muita saudade de casa. “Eu tenho saudade do meu país. Lá eu tenho meus grandes amigos. Amizade lá tem muito valor. Aqui, é cada um por si. Lá, não. Lá tem mais calor humano. A gente se reúne na casa dos amigos todas as semanas. Compartilha tudo. Aqui eu consigo fazer amizade com brasileiros, mas é mais difícil interagir com as pessoas”, diz. O sentimento de nacionalismo está presente em todos os africanos, e em Angola não é diferente. Lá, o patriotismo é exaltado pela cultura e política do país. Eles acreditam que o amor à terra natal é um dos únicos bens que acompanham a pessoa aonde quer que ela vá. “Se vai para outro país, você carrega a sua cultura, sua nação”, explica Ingo, que acaba dando uma dica aos brasileiros: “Acho que você tem que ter orgulho de ser brasileiro. Tente melhorar o Brasil para que outras pessoas também tenham o interesse de vir para cá e conhecer essa terra. Se eu pudesse trazer da África alguma coisa, seria o sentimento de nacionalismo.” A desinformação também é um ponto muito criticado pelo angolano. O rapaz, que nasceu e foi criado na área urbana de Angola, se incomoda muito quando perguntado sobre leões e elefantes, animais que ele nunca tinha visto antes de chegar ao Brasil: “Eu não entendo quando as pessoas perguntam para mim sobre zebras ou girafas. Eu nunca fui à selva.Na selva de alguns países da África tem esses animais, mas eu nunca vi. Eu fui ver leão aqui no zoológico de Belo Horizonte. Antes, eu nunca tinha visto. Aqui tem muita desinformação sobre a África. As pessoas acham que andamos nas ruas montados em leões dando comida para elefantes.” Quando pergunto se ele pensa em voltar, Ingo afirma que precisasse formar primeiro.“Eu vim para cá para aprender, mas, principalmente, para levar conhecimento para o meu país. Lá estão a minha família e os meus amigos. Sinto muita falta. Gosto daqui, mas meu lar é lá na Angola”, ressalta. Depois de uma hora e meia de entrevista, entendo, finalmente, o porquê daquela bicicleta estar no meio da sala. Ali está a vontade de movimento, de conhecer o novo, de explorar culturas. No entanto, quando a saudade aperta é hora de voltar correndo, pedalando para o verdadeiro aconchego do lar. 51 SOMOS MAIS AFRICANOS DO QUE PENSAMOS As relações históricas e culturais que unem Brasil e África por Osmar Macedo 52 Cores, sabores, ritmos, dores, sonhos, encontros e desencontros. Não é por acaso que Brasil e África têm tanta semelhança. Nossos laços são mais estreitos do que se parecem. Ao observarmos o mapa mundi, logo percebemos algumas características em comum no traçado da costa oeste africana e do litoral brasileiro. O Brasil e a África já estiveram unidos, literalmente. Há 200 milhões de anos, todos os continentes formavam um único bloco, chamado de Pangeia. Mas foram se separando e constituindo os cinco continentes do planeta Terra. Essa união também é evidenciada pelas características em comum entre os dois territórios. Mesmo que tenhamos um oceano entre nós, vários aspectos natu- rais, culturais e históricos nos aproximam ainda mais. Imensas florestas são marca desses lugares, ocupando a mesma linha dos trópicos, como a Amazônia brasileira e a Floresta Equatorial do Congo, e também o nosso Cerrado, conhecido como Savana brasileira. Mas não para por aí. O Brasil, assim como a África, foi colonizado por europeus, que extraíram, ao máximo, as matérias-primas de nossos territórios para fortalecerem seus impérios e nações. Durante o período da colonização, e depois dele, o Atlântico, enfim, tornouse o caminho que nos religou, porém de maneira dolorosa. Na primeira metade do século XVI, o tráfico de africanos para serem escravizados no Brasil marcou profundamente as nossas histórias. Mais de 4,5 milhões de nativos daquele continente foram trazidos, compulsoriamente, para cá, sendo empregados em atividades relacionadas aos ciclos econômicos da cana-de-açúcar (séculos XVI e XVII); da mineração (final do século XVII e século XVIII); e do café (séculos XVIII e XIX). De Moçambique, Nigéria, Congo, Angola e Daomé (antigo Estado africano onde hoje é o Benin) partiram a maioria dos africanos que se tornaram força de trabalho no Novo Mundo. Todos eles têm papel fundamental na construção da identidade brasileira. Desta maneira, é perceptível a influência africana na cultura e características do povo brasileiro. Os traços que herdamos deles ao longo dos quase quatrocentos anos de escravidão, influenciaram a nossa formação cultural. Não é à toa que nos consideram um povo com ginga e samba no pé. A população vinda daquele continente firmou raízes aqui. Não há o que negar. Somos mais africanos do que pensamos! “Toda a cultura brasileira está impregnada da herança africana. Sua presença fez quase tudo o que aqui se fez.” (Darcy Ribeiro) De acordo com a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) de 2013, 53% dos brasileiros se declaram pretos ou pardos. Essa predominância é evidenciada na maneira como elementos afros compõem o nosso dia a dia. Alimentos, temperos, sabores, danças, crenças e palavras, tudo isso faz parte de um universo cultural que é comum no Brasil. Como exemplo, o samba, que tem suas origens no batuque proveniente de Angola, é inspirado nos momentos em que os africanos escravizados reuniamse em rodas para cantar e dançar após os longos dias de trabalho. Tocando instrumentos de percussão e batendo palmas, eles procuravam amenizar o sofrimento que encontraram neste lado do Atlântico. Outras danças como o jongo e o maracatu também são marcas desta herança. Quando falamos de formação de uma cultura afro-brasileira, não podemos deixar de lado os cultos religiosos. O culto aos orixás era proibido no período da escravidão. Desta maneira, os escravos começaram a cultuar a santos católicos, relacionando-os aos seus orixás e estabelecendo um sincretismo religioso, o que deu origem ao Candomblé. A culinária, logicamente, também foi influenciada. Pratos com temperos típicos da África foram se constituindo. Caruru, vatapá e acarajé são os mais emblemáticos e apimentados. Por aqui, chuchu, inhame, quiabo e pimenta tornaram-se rotineiros nos caldeirões e panelas. Os ingredientes foram temperando a vida dos escravos e dos brasileiros. O ritmo que foi dado a essa nova realidade favoreceu expressões musicais como o maracatu, o carimbó, o maxixe, o coco e o samba, inspirados nos instrumentos africanos como agogô, atabaque, tambor, afoxé, alfaia e berimbau. E quem nunca admirou as esculturas do mestre Aleijadinho, os livros de Machado de Assis e as artes de Grande Otelo? Todos afrodescendentes! Mas no Brasil ainda precisamos nos aceitar como tal e combater o que a nossa própria cultura, infelizmente, carrega em si negativamente. O preconceito racial e social em relação às pessoas negras é muito grande em nosso país. Apesar de terem contribuído para a nossa forma- 53 ção, são subjugadas por parte da sociedade. Sendo assim, precisamos admitir que o Brasil é uma nação heterogênea, assim como o continente africano. Apesar dessa triste realidade, notamos, nos últimos anos, uma aproximação da nossa nação com países africanos, seja nas relações econômicas, culturais ou de ensino. Os programas de incentivo a esses intercâmbios estão, cada vez mais, unindo os dois continentes. O restabelecimento dos vínculos históricos é o melhor caminho para isso, pois temos muito mais características em comum do que até então pensávamos. O Brasil é parte da África, pois ela é o berço da humanidade. Somos filhos daquela terra e, por isso, o sentimento que em nós deve ser despertado e cultivado é o de orgulho. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS: 54 FREYRE, Gilberto. Casa Grande e Senzala. 48ª Ed. São Paulo: Global Editora, 2006. HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1995. PESQUISA NACIONAL POR AMOSTRA DE DOMICÍLIOS 2013. Disponível em: <http://www.ibge.gov. br/home/estatistica/populacao/trabalhoerendimento/pnad2013/>. Acesso em 15 nov. 15. RIBEIRO, Darcy. O Povo Brasileiro: a formação e o sentido do Brasil. 3ª Ed. São Paulo: Global Editora, 2015. VESENTINI, José Willian. Sociedade e Espaço – Geografia Geral e do Brasil. São Paulo: Editora Ática, 2005. 55 COLUNA DRAMAS DE UM MUNDO GLOBALIZADO Imigrações e refugiados por Ariane Gervásio e Carlos Frederico Pereira da Silva Gama 56 O grande drama de 2015 nas relações internacionais foi a chegada de milhares de pessoas à Europa. Assistimos sua fuga da guerra civil na Síria: crianças e adultos jogados ao mar e em seguida, andando milhares de quilômetros. Encontraram, quase sempre, portas fechadas e desconfiança. Para muitos – como o menino curdo Aylan Kurdi e familiares – seria a última viagem. Nas últimas semanas, mais de 200 mil pessoas chegaram à Europa. Os que já tinham chegado anteriormente (aproximadamente um milhão) eram jogados de uma parte para outra do continente europeu, teoricamente integrado, “sem fronteiras”. Rejeitados na Hungria, passaram pela Eslovênia e Áustria, a caminho da Alemanha – que recebeu 700 mil pessoas em 2015. A sequência de campos humanitários, cercas de arame farpado, muros de pedra e vagões fechados impressiona. Esses espaços murados são necessários para separar “indesejáveis” da população local? Nem sempre foi assim. Na Idade Média, o poder dos reis e rainhas na Europa era associado com propriedades mágicas. Governantes seriam eleitos pelo Deus cristão para governar uma determinada população. Se dizia que os reis possuíam dois corpos: o corpo humano e um corpo místico, reunindo todos os súditos. A soberania – poder superior a todos os outros – derivava das escrituras cristãs. O Deus cristão era soberano. Representantes divinos, monarcas teriam poder sobre os corpos dos súditos. Leviatã (Thomas Hobbes, 1642): o corpo do soberano é formado pelos súditos;o soberano tem em mãos símbolos de força e autoridade. Na Era Moderna, a partir de suas fortalezas muradas, os reis e rainhas ampliaram seus domínios, conquistando novas terras pela força armada. A Europa invadiu e ocupou outros continentes: terras “descobertas” que já eram habitadas há milênios. Cismas e disputas religiosas enfraqueceram a crença num direito divino dos monarcas baseado no Cristianismo. Uma nova imagem passou a informar a imaginação internacional: famílias reais governavam porções da superfície terrestre, delimitadas por acidentes geográficos. O poder sobre os corpos de súditos se transformou no governo, pela força (“terrere” em Latim – aterrorizar), de uma terra fértil (“terratorum”, também em Latim – terra delimitada para o cultivo). A soberania se tornava murada (das palavras latinas “moerus” – fixar, construir fortificações e cercas, e “munire” – proteger). Muros passaram a separar as soberanias na Europa e foram exportados para “novos” mundos colonizados. As pessoas deviam obediência a quem controlava a terra onde elas viviam. Se havia discordância entre súditos e governantes, a “solução” da época era expulsar os descontentes para outra parte da Europa, ou para as colônias (puritanos ingleses foram expulsos da Europa e “criaram” 13 colônias na América do Norte, que mais tarde se transformariam nos Estados Unidos da América). Havia uma clara separação entre pessoas “da terra” e forasteiros. A Europa viveu grandes deslocamentos de populações entre Cruzadas e guerras religiosas. Essas pessoas eram migrantes forçados, obrigados a deixar sua terra por motivos políticos. A partir do século XVIII na Europa, as pessoas lutaram por direitos, questionando a autoridade e o poder dos reis, via lutas e revoluções. A soberania passaria por novas transformações. Seria um contrato entre pessoas livres, ou o próprio povo seria soberano. Em ambos os casos, os governantes seriam representantes escolhidos pelo povo, não por deuses. Governantes deviam lealdade à população local e tinham como principal tarefa protegê-la de invasores. A ideia do muro é a defesa física. Mas a defesa física gera defesas psicológica...Que é onde se corre o risco do isolamento e julgamento. O que se desconhece, é mais seguro ficar fora. Os muros que simbolizavam o poder dos reis se transformaram na proteção de populações livres. 57 Nesse momento podemos falar de refugiados e imigrantes. Pessoas que sofressem perseguição política já não eram protegidas por seu estado: poderiam se refugiar em outra parte da Europa. Por livre vontade, pessoas poderiam sair de casa e ir habitar em outras partes do continente, se houvesse condições para tal (seriam imigrantes) ou para as colônias (colonos). Essas pessoas seriam livres para sair, mas teriam que ser acolhidas em outro lugar. Teriam que se compatibilizar com novos lares, correndo o risco de isolamento e ser tratados como ameaças. Novas concepções de soberania murada foram exportadas para todo o mundo via direito internacional (“direito das gentes”) e pelas lutas por descolonizações na América, África e Ásia. 58 Desde 2012, 8 milhões de pessoas foram tiradas de suas casas e obrigadas a buscar segurança em outro lugar, na guerra civil na Síria. A participação armada de outros estados (Rússia, Irã, Estados Unidos, Turquia, Arábia Saudita) no conflito torna mais difícil a vida dos deslocados. A maior parte das pessoas buscou abrigo nos países vizinhos (como o Líbano, que tem atualmente ¼ de sua população formado por refugiados). Países distantes se disseram abertos a receber refugiados do conflito – casos da Alemanha (700 mil), Austrália (12 mil), EUA (10 mil), Canadá (10 mil), Reino Unido (20 mil), França (24 mil) e Brasil (8 mil) . Ao mesmo tempo, movimentos xenófobos (de ódio a imigrantes) se espalham por toda a Europa. Alguns governos são especialmente influenciados pelo discurso de ódio: caso da Hungria, que declarou serem indesejáveis os refugiados e ergueu muros improvisados nas fronteiras do país com os estados balcânicos. Com a intensificação dos combates na Síria (incluindo bombardeios de Rússia e EUA) países europeus fecharam temporariamente suas fronteiras. A Europa se murava. A dimensão psicológica dos muros aparece na linguagem utilizada pelos estados. Para não se comprometer a assistir imediatamente as milhares de pessoas em fuga, o governo francês fala em “imigrantes” (refugiados teriam simplesmente “decidido” ir para a Europa). Até mesmo estados distantes utilizaram a linguagem estrategicamente para filtrar “pessoas desejáveis”. Dilma Rousseff disse que o Brasil está de braços abertos para receber pessoas que queiram vir trabalhar no Brasil. Aylan e outras milhares de pessoas estariam excluídas, por esse critério . O número de pessoas acolhidas é pequeno em relação ao número de pessoas em fuga. O discurso de acolher refugiados, muitas vezes, funciona como um filtro que estados utilizam para conseguir mão-de-obra especializada a custo baixo ou promover suas próprias imagens no exterior. Esse discurso mobiliza barreiras psicológicas para proteger os cidadãos de possíveis ameaças/pessoas “indesejáveis” – reforçando noções modernas de soberania e espaço. No dia-a-dia moderno, nossas formas de convivência são espacializadas desse jeito: erguendo muros, territorializamos nossa imaginação. Muros simbólicos e de concreto impedem que vejamos a situação de outras pessoas. Dificultam sentirmos suas dores e simpatizar com suas dificuldades. Imagens são poderosas: o que vemos e o que não vemos molda nossa visão de mundo. Crises de refugiados não são apenas um problema de integração de estados. Aprendemos que muros são ruins. Arames farpados, cercas e paredes são visíveis e constrangedores. Barreiras psicológicas são mais sutis. A invisibilidade dos muros simbólicos torna precária a vida de milhões de seres humanos expulsos de seus lares, julgados e temidos em outros lugares. Num mundo globalizado, insistimos em construir muros que derrubaríamos, se estivéssemos do lado de lá.