Revista Intercultural da UFMG – Edição África

Transcrição

Revista Intercultural da UFMG – Edição África
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2
Área total em km2: 30.221.532
54 países independentes e 06 dependências
População: 1,111 bilhão (2013)
Maior país: Argélia
Menor país: Seicheles
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SUMÁRIO
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CARTA AO LEITOR
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ÁFRICA SEGUNDO OS BRASILEIROS
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CONHECIMENTO SEM FRONTEIRAS
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ENTREVISTA COM ESTER MELO
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UMA HISTÓRIA SEM HIPOCRISIA
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ARROZ E FEIJÃO NÃO!
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UMA PELE, UMA COR E UM AMOR
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SESSÃO ESPECIAL
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O ENCONTRO DO CONGO COM MINAS
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UM FILHO DE MARIA JOSÉ
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A MUITAS PEDALADAS DE CASA
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SOMOS MAIS AFRICANOS DO QUE PENSAMOS
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DRAMAS DE UM MUNDO GLOBALIZADO:
imigrações e refugiados
CARTA AO LEITOR
Eis um projeto que se inicia. Que caminha a passos lentos à procura de
um contorno, de uma forma. Um projeto que seja mutante e se adapte a
cada cultura, história... A cada novo personagem.
A Revista Intercultural convida estudantes, professores, funcionários
e visitantes da Universidade Federal de Minas Gerais a conhecerem
um pouco mais sobre as origens, vidas, pensamentos, questionamentos,
opiniões, culturas, comportamentos, experiências e planos daqueles
que vêm de tão longe e que, agora, se encontram tão perto e presentes
no dia a dia dos que frequentam a UFMG: os estudantes estrangeiros.
Eles, que contribuem de forma tão significativa para a diversidade cultural da instituição, encontrarão nesta revista um espaço para se apresentarem à comunidade acadêmica por meio de suas histórias de vida,
bem como de suas opiniões sobre a nova realidade que vivem no Brasil,
especialmente na capital mineira e na universidade.
A cada três meses, caro leitor, você poderá acompanhar perfis de alunos
vindos de cada continente. Essa primeira edição será protagonizada
pelos africanos. Dois foram os motivos que levaram a equipe da revista a escolhê-los para a estreia: por serem maioria entre os alunos
estrangeiros e pela África possuir um estreito e forte vínculo histórico
com o Brasil.
Além dos perfis de dois congoleses, um beninense, uma gabonesa, um
angolano e uma queniana, a revista também apresenta uma matéria sobre a troca de conhecimento propiciada pela internacionalização da
educação superior; uma entrevista com Ester Melo, a responsável pelos
alunos do programa PEC-G; um artigo sobre imigração da jornalista
Ariane Gervásio em parceria com o professor de Relações Internacionais na Universidade Federal do Tocantins (UFT), Carlos Frederico Pereira da Silva Gama; e um artigo sobre a histórica relação entre o Brasil e
a África, de autoria do historiador Osmar Macedo.
Convidamos você a viajar nesses mundos que habitam a Universidade
Federal de Minas Gerais. Boa viagem!
Equipe InterCultural
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Ano 01, edição 01, Novembro de 2015
DIREÇÃO GERAL
Taiany Gonçalves
EDITORAS
Lígia Oliveira
Taiany Gonçalves
REPÓRTERES
Lígia Oliveira
Taiany Gonçalves
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REDATORES
Lígia Oliveira
Osmar Macedo
Taiany Gonçalves
REVISORES
Aluisio Marques
Filipe Ferreira
Osmar Macedo
FOTOGRAFIA
Aluisio Marques
Filipe Ferreira
DIAGRAMAÇÃO/ DESIGN
Agnes Moreira
Fábio Martins
Lígia Oliveira
Taiany Gonçalves
COLABORADORES
Agnes Moreira
Ariane Gervásio
Carlos Gama
Fábio Martins
ÁFRICA SEGUNDO OS
BRASILEIROS
“A África é a nossa raiz. Uma das
bases culturais do povo brasileiro.”
(Eduardo Villela, médico.)
“São nossos irmãos separados pelo
Atlântico, mas unidos pelo coração.
Aprendemos muito com a África,
pois ela é o berço da civilização.”
(Ivânia Maria, enfermeira.)
“Os africanos são exemplo de vida.
Apesar de tanta exploração sofrida por eles, ainda têm forças para
lutar e vencer. São guerreiros!”
(Nelma Gomes, professora.)
“Para mim, a África representa orixás, divindades da natureza, dança,
culto aos ancestrais, alegria, sofrimento... E renascimento no Brasil
com as religiões de matriz africana.”
(Márcio Sá, babalorixá.)
“A África é uma mão que construiu um
país que a obriga a usar luvas.” (Flávia
Lovisi, jornalista.)
“Muito do que sou e do que faço
é herança daquele povo de fé e
vontade. A África representa um
jeito diferente de viver e que consegue transmitir marcas originais a
cada geração do povo brasileiro.”
(Junia Soares, professora.)
“Admiro muito o povo africano,
cujo sorriso não foi apagado pelo
sofrimento e exploração vivido
dentro e fora de seus países.”
(Juliana Farias, professora.)
“A África é uma multiplicidade ocultada pelos estereótipos. É muito além
da fome, dos conflitos étnicos ou até
mesmo das savanas e do Saara.”
(Richardson Ventura, professor.)
“A África é um continente muito rico,
porém, explorado de maneira errada.”
(Lucas Severino, estudante de gestão
pública.)
“Povo batalhador que busca uma vida
melhor, com enredo dramático.” (Ravik Gomes, funcionário público.)
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“Lugar onde tudo começou. O descaso
com que a tratamos revela quanta ‘humanidade’ há em nós, e a hipocrisia com
que pronunciamos: ‘somos todos macacos’.” (Carlos Augusto Costa, estudante
de psicologia.)
“A África possui fauna e belezas naturais que impressionam o coração
do ser humano. Porém, há nela países
muito pobres e sofridos que entristecem o coração da humanidade.”
(Natália Santos, graduada em pedagogia.)
“É um continente muito pobre e que sempre precisa de ajuda de outros países.”
(Alaíde Queiroz, aposentada.)
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“Apesar de serem muitas vezes esquecidos, a bagagem genética e cultural dos
africanos foi fundamental para a formação do Brasil como ele é hoje.” (Aline
Almeida, estudante de arquitetura.)
“Não podemos contar a história
do Brasil ignorando a participação dos africanos, pois somos um
país de maioria afrodescendente.”
(Iêde Almeida, auxiliar de enfermagem.)
“À procura de seus objetivos, longe da pátria mãe, os africanos que
vêm para o Brasil sabem que não
há nada a temer. Honrando os seus
costumes, eles confiam na vitória que
vem com o tempo e muito esforço.”
(Letieri Fernandes, mestranda em química.)
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CONHECIMENTO
SEM FRONTEIRAS
por Osmar Macedo
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Quem passa pelos campi da Universidade Federal de Minas Gerais, logo percebe
a mistura de sotaques e idiomas. Considerada uma das maiores Instituições de
Ensino Superior do país, a UFMG tem
recebido um número cada vez maior de
estudantes estrangeiros nos últimos anos.
De acordo com a Diretoria de Relações
Internacionais da UFMG – DRI, no ano
passado, 1391 estrangeiros estavam matriculados aqui, e concorreram por meio
de uma das cinco formas de ingresso:
Vestibular, Transferência, Intercâmbio,
Programa Estudante Convênio – Graduação (PEC-G) ou Programa Estudante
Convênio – Pós-graduação (PEC-PG).
Entre eles, os africanos são maioria.
Como prova disso, há, atualmente, 93 deles só na graduação, vindos pelo PEC-G,
criado a partir de acordos de cooperação
entre países em desenvolvimento. Outros 16 foram selecionados e cursaram
língua portuguesa no primeiro semestre
de 2015. Mas aguardam o resultado para
poderem ingressar no próximo ano em
diversos cursos de graduação da universidade. Confira a relação:
Cabo Verde
Trindade e Tobago
Quênaia
Togo
Gabão
Senegal
Gana
Benin
Namíbia
Moçambique
5
1
1
1
1
1
2
1
2
1
Essa interação com diversos países é
uma das características fundamentais
da internacionalização das universidades brasileiras, prevista no Plano
Nacional de Educação (PNE-2011). O
objetivo é alcançar um maior destaque
no mundo, enfatizando as pesquisas
desenvolvidas no país, e, por conseguinte, melhorando o posicionamento
internacional de cada universidade.
Neste processo de inserção no cenário
internacional e de fortalecimento de
relações com instituições do exterior,
a DRI, além dos programas que incentivam e apoiam o envio de estudantes
brasileiros para outros países, gerencia
outros para recepcionar centenas de
estudantes estrangeiros semestralmente.
É nesse contexto que o Programa Bemvindo, institucionalizado em fevereiro
de 2012, atua em parceria com o Setor
de Acolhimento da DRI. Ele trabalha
com o intuito de atender às diversas
demandas dos estudantes, professores e
pesquisadores internacionais. Antes dos
estrangeiros virem para cá, informações
consideradas importantes são enviadas a
eles, como, por exemplo, uma lista com
documentos necessários para o registro
acadêmico e a matrícula. E, assim que
chegam à universidade, são recepcionados com diversas orientações durante
a Semana do Estudante Intercambista.
Nesta oportunidade, realizada sempre
uma semana antes do início do período
letivo de cada semestre, conhecem
melhor a instituição e a cidade de Belo
Horizonte, sempre acompanhados por
membros da DRI ou por aqueles alunos
que se interessaram em apadrinhá-los.
Esse acolhimento não para aqui. Durante
todo o período em que estão na universidade, eles são orientados sobre os
assuntos acadêmicos, culturais, serviços
prestados pela UFMG e as atividades de
interação com a comunidade acadêmica.
Essas parcerias e esses projetos realizados pelas Instituições de Ensino
Superior são instrumentos que estão impulsionando o Brasil a ter conhecimento
compartilhado com outras nações, além
de se tornarem um modelo de ensino
para o mundo. Como o próprio nome
diz, a universidade é local de múltiplas
possibilidades, que estão crescendo
constantemente ao transpor as barreiras
dos campi e ao manter diálogo e trocas
em todos os continentes.
Essa cooperação entre as nações, especialmente com as do continente africano, é um exemplo de como o ensino
compartilhado pode contribuir para o
desenvolvimento de todos os povos.
A Declaração Universal dos Direitos
Humanos, adotada pela Organização
das Nações Unidas em 10 de dezembro
de 1948, já delineava àquela época os
direitos humanos básicos e continua
defendendo que toda pessoa tenha
direito à educação.
Vivemos numa sociedade do conhecimento, pautada pela facilidade de
acesso à informação e interação entre
povos e culturas. Neste sentido, as
universidades desempenham papel
preponderante, pois contribuem para
o crescimento intelectual das pessoas,
bem como os seus desdobramentos
positivos em prazos cada vez menores. Estar atento a essa realidade e às
necessidades e especificidades num
ambiente universitário bastante heterogêneo é um caminho que exige olhares
atentos.
Se consideramos que não há fronteiras
para o conhecimento, ele se tornará
cada vez mais acessível para a sociedade onde quer que ela esteja. A internacionalização, neste sentido, torna-se
compromisso para fomentar o ensino,
a pesquisa e a extensão em âmbito
globalizado.
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SAIBA MAIS SOBRE MODALIDADES DE INGRESSO PARA ESTRANGEIROS NA UFMG
VESTIBULAR
Para se tornar um aluno regularmente
matriculado em um curso de graduação
na UFMG, o estudante estrangeiro precisa se submeter ao Exame Nacional
do Ensino Médio -ENEM- realizado
anualmente, e ser aprovado através do
Sistema de Seleção Unificada- SISU.
TRANSFERÊNCIA
A aceitação de um aluno de outra
Instituição de Ensino Superior (IES),
seja ela nacional ou estrangeira, é
condicionada à existência de vagas
remanescentes.
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INTERCÂMBIO
A UFMG recebe estudantes estrangeiros
no âmbito de Programas de Mobilidade
e de Convênios de Cooperação, estabelecidos com Universidades estrangeiras.
Os alunos podem frequentar até dois
semestres acadêmicos na Universidade.
O Grau é atribuído pela instituição de
origem, sendo emitido um certificado
com o devido aproveitamento de disciplinas na UFMG.
Podem participar de intercâmbio estudantes de Graduação e Pós-graduação
regularmente matriculados em instituição estrangeira de nível superior, com
as quais a UFMG tenha cooperação
acadêmica. Conheça as instituições conveniadas clicando no menu Convênios.
A UFMG não exige uma prova de proficiência de Português para o ingresso
do aluno estrangeiro, mas todas as aulas,
atividades acadêmicas e exames são feitas nesta língua. Assim, recomendamos
um nível intermediário na língua.
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PROGRAMA ESTUDANTES CONVÊNIO – GRADUAÇÃO E PÓS-GRADUAÇÃO (PEC-G E PEC-PG)
O Programa Estudantes Convênio de
Graduação e Pós-graduação é resultado
de acordos de cooperação cultural, científica e tecnológica assinados entre países
em desenvolvimento visando à formação
de recursos humanos. Possibilita que
estudantes, professores universitários,
pesquisadores, profissionais e graduados do ensino superior desses países
realizem seus estudos no Brasil.
As embaixadas brasileiras nos países
conveniados estão encarregadas da
divulgação do programa e do processo
de seleção.
FONTE:
Diretoria de Relações Internacionais
da UFMG – DRI.
REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA:
DECLARAÇÃO
UNIVERSAL
DOS DIREITOS HUMANOS. Assembleia Geral das Nações Unidas em
10 de dezembro de 1948. Disponível
em: <http://unesdoc.unesco.org/images/0013/001394/139423por.pdf>.
Acesso em: 15 nov. 15.
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Foto: Diretoria de Relações Internacionais - UFMG
ENTREVISTA COM ESTER MELO
“Sei dos problemas deles e procuro ter essa proximidade”
Há 17 anos convivendo com alunos estrangeiros, a psicóloga e servidora responsável pelo
Programa Estudantes Convênio de Graduação (PEC-G), Ester Melo, conta sobre o funcionamento do programa e fala das experiências que teve nessas quase duas décadas de trabalho com os intercambistas.
por Taiany Gonçalves
O Programa Estudantes Convênio de Graduação, ou simplesmente PEC-G, possibilita a vinda
de estrangeiros ao Brasil para cursarem a graduação no país. Existe também o PEC-PG, que é
basicamente a mesma versão do primeiro programa, só que para alunos que desejam fazer a pósgraduação. Este convênio, que é realizado entre o governo brasileiro e o do país do estudante,
atende as nações em desenvolvimento, como as da África, daAmérica Latina e daAmérica Central.
A maioria dos alunos africanos vem para a UFMG por meio do PEC e, já que essa edição
da revista ser destinada a falar sobre as experiências dos estudantes africanos, Intercultural realizou uma entrevista com a responsável por esse programa na Universidade Federal
de Minas Gerais, a servidora Ester Melo, para que ela nos contasse mais sobre o processo
de vinda e de recepção deles, bem como sobre histórias que vivenciou com os estudantes.
A maioria dos alunos africanos vem para a UFMG por meio do PEC e, já que essa edição
da revista ser destinada a falar sobre as experiências dos estudantes africanos, Intercultural
realizou uma entrevista com a responsável por esse programa na Universidade Federal de
Minas Gerais, a servidora Ester Melo, para que ela nos contasse mais sobre o processo de
vinda e de recepção deles, bem como sobre histórias que vivenciou com os estudantes.
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Intercultural – O que é o PEC-G?
parte, no entanto, são federais.
Ester Melo - PEC-G é um programa do
governo brasileiro para a mobilidade do
aluno estrangeiro. O programa é unilateral: os alunos de lá vêm, mas os brasileiros não vão. Justamente para fortalecer,
criar e capacitar recursos humanos para
que essas pessoas voltem para os seus
países e possam dar essa contribuição
que elas tiveram aqui. Os estudantes
vêm para cá, fazem a graduação toda
aqui e retornam aos seus países.
Na UFMG, cada curso oferece, geralmente, uma ou duas vagas. Então, é
feita uma seleção pelo MRE (Ministério das Relações Exteriores) e o MEC
(Ministério da Educação).
Intercultural – Quando começou esse
programa aqui na UFMG?
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Ester Melo – Nós temos indícios desde
1952, mais ou menos. Os professores
daqui iam fazer pós-graduação fora.
Chegando lá, eles faziam interface com
outros professores e com outras universidades e levavam, portanto, um pouco de
informação da UFMG. E, então, começou uma mobilidade. Começaram a vir
professores e alunos de lá para cá. Nós
não temos esse arquivo certo, mas temos
o registro de mobilidade de professores
desde 1950, 1952... Mas, oficialmente, o
PEC-G foi criado em 1965.
Intercultural – Quais os países fazem
parte do Programa?
Ester Melo – Inclui todos os países africanos, que são mais de 50. E agora tem a
Ásia também, alguns países da América
Central e da América Latina.
Na América Latina, o pessoal que procura esse programa se interessa mais pela
pós-graduação, que é o PEC-PG, porque
nos seus países, como Chile e Argentina,
têm ótimas universidades. Isso já é um
pouco diferente de países do continente
africano, onde as universidades ainda
não estão muito fortalecidas. Então, há
essa necessidade de buscar em outras
instituições.
Intercultural – Como é o processo seletivo?
Ester Melo - Só participam universidades federais e algumas particulares,
como PUC e Isabela Hendrix. A maior
No caso do MEC, junta-se uma seleção
de pró-reitores de graduação e professores que vão a Brasília e analisam
todo esse processo que foi feito inicialmente na embaixada.
Eu já participei de um processo. Chega
o histórico escolar do aluno e nós o
avaliamos. Geralmente, os pró-reitores
olham o tipo de conhecimento prévio
que o aluno necessita ter para ingressar
no curso ao qual se candidatou. Por
exemplo: se o aluno se candidata ao
curso de Medicina, ele tem que ter
boas notas em Biologia, Química, etc.
Mas a embaixada é o primeiro contato
do estudante. Então, antes dessa avaliação aqui, o aluno passou por algum
processo na embaixada do seu país,
que é direcionado de um jeito diferente
em cada lugar.
Intercultural – Existe uma quantidade
de vagas destinadas para cada país?
Ester Melo - Não. A UFMG oferece
por ano para esse programa, geralmente, uma faixa de 65 vagas. Então,
mandamos essas vagas para o MEC e é
ele que vai distribuí-las.
Intercultural – Analisando as modalidades de ingresso na UFMG (vestibular, transferência, intercâmbio,
PEC-G e PEC-PG), imagina-se que,
pelos programas PEC estarem em
outra modalidade, não se enquadram
como intercâmbios. Mas podemos considerá-los como tais?
Ester Melo – Apesar da graduação
ser completa no PEC-G, eles se enquadram na categoria de intercâmbio,
pois também é uma forma de adquirir
conhecimento fora do país natal. Ou
seja, independente do tempo que dure,
é considerado intercâmbio.
Intercultural – Você percebe uma defasagem dos alunos africanos em relação
aos brasileiros ao longo da graduação?
Ester Melo - No primeiro ano tem a
questão da adaptação, mas depois... Eu
tenho alguns alunos congoleses e camaronenses das engenharias, por exemplo,
que são fantásticos e esforçados. Eles
dão aula, inclusive, para brasileiros.
O que é defasado lá em relação ao Brasil
é o currículo do ensino médio. É muito
distante comparado com o daqui.
Intercultural - Eles fazem um curso de
português na Faculdade de Letras assim
que chegam. E se não passar na prova
ao final do curso?
Ester Melo – Se não passar, volta. Ou
seja, se desliga do programa.
Há muito tempo já aconteceu com 3
alunos de não passarem. Eu não gosto de
lembrar, porque é muito triste pensar que
o aluno fica um ano fazendo o curso e
depois não passa.
Intercultural – Caso o aluno queira dar
continuidade aos estudos e fazer a pósgraduação aqui, na universidade, qual é
o procedimento?
Ester Melo - Quando ele termina a graduação, está desligado do PEC. Eu acho
que é uma coisa que precisa ser revista,
pois o aluno está aqui há 5 ou 6 anos e
já conhece os professores e várias áreas
de pesquisa. Contudo, quando se forma,
tem que voltar para o país e esperar 2
anos para se candidatar a uma pós-graduação, caso queira.
Existem alunos que tentam o mestrado
assim que acabam a graduação, como
foi o caso de um rapaz do Benin. Neste
caso, eles não estão mais vinculados ao
programa, ou seja, se candidatam nas
mesmas condições de um brasileiro.
Intercultural – Você tem muita proximidade com eles?
Ester Melo - Tenho. Eu conheço todos.
Sei dos problemas deles e procuro ter
essa proximidade. As mães mandam
cartas para mim dizendo: “Cuida do
meu filho.” Eu acho isso ótimo, porque
gostaria de fazer o mesmo quando os
meus filhos estivessem fora do país.
Eu sinto que eu sou um parâmetro para
eles. Quando têm qualquer problema,
eles vêm para cá. Eu acho bacana isso.
Mas quando é preciso, eu também
“puxo a orelha”. (Risos)
Eles também me ajudam muito. Em
janeiro, quando tem gente chegando
para fazer o curso de português, eles
me ajudam na recepção, no contato
com os novatos...
Intercultural – Alguns africanos que
entrevistamos relataram a ausência da
UFMG perante a chegada deles.
Ester Melo – Nós não temos o hábito
de buscar o estudante no aeroporto.
Geralmente, são os alunos africanos
que já estão aqui que vão. Nós até tentamos fazer algo para buscar o pessoal
no aeroporto. Teríamos que programar
para chegar todo mundo na mesma
hora e, então, alugaríamos uma van.
Existem os carros da universidade,
mas são para a instituição inteira. Ou
seja, tem toda uma logística. Então, eu
acho melhor contar com a ajuda dos
meninos, porque tem dado certo.
Intercultural – Qual é a maior dificuldade que eles enfrentam quando
chegam aqui?
Ester Melo – Além da questão da
língua, eu acho que eles estão vindo
cada vez mais jovens. E essa falta de
maturidade pode atrapalhar.
Tem outras questões também, como um
lugar para morar. Nós não temos vagas
na Moradia da UFMG, pois ela ainda
não consegue atender a todos os alunos. Eles podem até se candidatar, mas
têm que enfrentar fila como qualquer
um. Para conseguir um apartamento ou
uma casa tem a questão do fiador, que
eu acho terrível, pois quem vai querer
ser o fiador? Mas os africanos que já
estão aqui são ótimos e generosos, e
acabam acolhendo quem está chegan-
17
do.
Intercultural – Algum aluno voltou por
não aguentar a pressão?
Ester Melo – Já aconteceu casos em que
os pais, pela vontade de verem o filho
com mais oportunidades na vida, inscreverem-nos sem o consentimento do jovem ou omitindo algumas informações.
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Na África, o vínculo e o respeito com
os pais é muito forte. Então, teve um
pai que fez a inscrição do filho para
Ciências Agrárias, mas mentiu para o
garoto. Ele veio ao Brasil achando que
ia fazer Medicina. Ele chegou para mim
e disse que estava doido para as aulas
começarem. Eu respondi que as aulas
dele não eram aqui, mas sim em Montes
Claros. O menino me perguntou se o
curso de Medicina de Montes Claros era
o mesmo daqui de Belo Horizonte. Eu
disse a ele: “Não é Medicina, querido.
Você vai fazer Ciências Agrárias. Você
vai ser agrônomo.” Esse menino chorou
tanto! Ele queria mudar de curso, mas eu
expliquei que era impossível por serem
áreas completamente diferentes, pela
Medicina só oferecer duas vagas por ano
para o PEC-G e pelo Colegiado desse
curso só abrir vaga para quem é de país
lusófono. Hoje, ele faz Ciências Agrárias
em Montes Claros e adora a sua área.
Ainda bem!
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Frédérique Michele Nno Ella
19 anos
País: Gabão
Curso: Engenharia de Controle e Automação
UMA HISTÓRIA
SEM HIPOCRISIA
por Taiany Gonçalves
20
Na praça de serviços da Universidade
Federal de Minas Gerais, aguardo a
minha primeira personagem feminina.
Como não a conheço pessoalmente, fico
na expectativa a cada pessoa que passa.
De repente, vejo uma garota com traços
que me remetem à minha futura entrevistada. Sem ter muita certeza, acesso à
internet em meu celular na tentativa de
sanar essa dúvida. Encontro a foto, olho
novamente para a garota que caminha em
minha direção e constato ser a própria.
Para ser notada, como quem quer se
apresentar e dizer: “Oi, eu sou quem
você procura!”, começo acenar e sorrir
descompassadamente. Mal sabia eu que
naquele momento eu acabara de me tornar hipócrita aos olhos de minha personagem. Sem ainda saber dessa impressão
que, inconscientemente, havia criado,
eu inicio uma conversa tranquila para
que Frédérique Michele se sinta mais à
vontade.
Michele, como prefere ser chamada, a
uma semana de completar 20 anos, já
viveu muitas coisas para uma garota de
19. Vinda de uma família grande, de 12
irmãos, a jovem foi a precursora do lar
a desbravar o mundo. E o país escolhido por ela para construir uma parte da
sua história foi o Brasil. “Eu escolhi o
Brasil, porque tinha a oportunidade de
convênio e não são todos os países que
têm. Dos irmãos, sou a primeira a sair
do país para estudar. Meu irmão mais
velho vai para a França, em breve, para
fazer doutorado em Direito”, conta. A
estudante de Engenharia de Controle
e Automação relata que o governo do
seu país ajuda com pouco dinheiro para
o custeio. Além de pagar as passagens
de ida e volta, o governo do Gabão
contribui para a aquisição do material
acadêmico.
Tímida e de poucas palavras, a gabonesa não me parece ainda muito à
vontade. Sugiro que ela me conte um
pouco mais sobre sua escolha pelo
Brasil. “Eu tinha opções de ir para a
França e África do Sul. Mas o Brasil
era um país diferente. Eu não conhecia ninguém aqui. Queria fazer algo
diferente, viver uma experiência única
e depois contar para os meus amigos”,
diz. A intercambista não sabia nada
sobre o país tropical, apenas que aqui
havia belas praias e um tal de futebol.
“Eu gostava muito do Neymar. Foi só
isso que me fez gostar do Brasil e querer vir pra cá”, assume com franqueza.
Logo que chegou, há mais de um ano,
a gabonesa começou a fazer aulas de
“As pessoas aqui parecem um pouco hipócritas. Você não pode saber
realmente o que eles pensam e o que
acham.”
português. Passados 8 meses de curso na
Faculdade de Letras, realizou uma prova
para comprovar o seu nível de fluência
e, assim, ingressar no curso superior.
Quem não passa nesta prova, volta para
casa. “Acho que antes podia repetir,
agora não. Eu achei fácil. Passei com
certificado avançado superior”, diz com
orgulho de si e de sua dedicação. Para
ela, o único problema do português não
está nele em si, mas nas gírias inseridas
pelos brasileiros durante a comunicação.
PROBLEMAS
E já que o assunto é “problema”, abro
aqui a sessão homônima à temática para
que Michele tenha a oportunidade de
falar de suas aflições no Brasil, especialmente em Belo Horizonte e na UFMG.
A estudante para, pensa um pouco... E
eis que começa o seu relato de âmbito
universitário. “É muito difícil a plataforma Minha UFMG. Quando eu entrei na
faculdade, não sabia muito como usar.
Para informações, você tinha que ir no
Colegiado e tudo isso estava muito difícil.”, conta. Quanto aos estudos, embora
também enfrente dificuldades, a jovem
possui uma visão mais determinada e
aguerrida. “O dia a dia dos estudos é
muito difícil, porque tem matérias, como
Algoritmos e Estrutura de Dados, que o
vocabulário é totalmente diferente. Então, durante as aulas é muito complicado
para entender e acompanhar, mas, antes
de voltar para casa, costumo pegar um
livro na biblioteca e estudar sozinha.
Além disso, têm professores que falam
francês e isso ajuda”, explica a garota
que, embora tenha receio de ser reprovada em algumas matérias, acaba se
divertindo com a situação.
De pequenos problemas, chegamos aos
verdadeiros choques culturais, que vão
muito além da dificuldade na comunicação. Antes, Frédérique conta que
conheceu os estados do Rio de Janeiro
e do Rio Grande do Sul, já que possui
nestes lugares amigos do seu país e de
outros locais do continente africano, e
brinca: “Dizem que as pessoas do Sul
são ‘fechadas’ por causa do frio.” O
fato das pessoas serem assim não atrapalhou em nada o seu passeio. Muito
pelo contrário. A sua personalidade e
cultura conversam com algo mais reservado e particular. E foi a partir daí
que descobri que a minha entrevistada
me considerava hipócrita.
“As pessoas aqui parecem um pouco hipócritas. Você não pode saber
realmente o que eles pensam e o que
acham.”, me surpreende Michele. Sem
entender muito bem o que ela quis
dizer com “hipócritas”, a indago sobre
o real sentido da palavra e se queria
dizer que os brasileiros com os quais
já teve algum tipo de contato, em sua
maioria mineiros, são fingidos. Ela,
sem pensar duas vezes, responde: “É,
um pouquinho. Porque no meu país,
por exemplo, você não pode sorrir para
uma pessoa que não conhece. Mas
aqui as pessoas fazem muito isso. É
algo muito estranho. Acho que é falsidade. Nesse aspecto eu gostei do Sul.”
Neste momento, imediatamente, eu
me recordo de sua chegada ao local da
entrevista. Me lembro do meu aceno e
do meu sorriso, e entendo o porquê da
atitude dela não ter sido recíproca ao
me ver. Com um leve sorriso no rosto,
de como quem acha inusitada e engraçada a situação, continuo a escutá-la e
prestar ainda mais atenção naquela que
me pareceu a mais sincera das pessoas
que já conheci.
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Além desse choque cultural, outras
coisas não agradam à jovem gabonesa,
como a burocracia na Polícia Federal
para a renovação do visto e as altas temperaturas do verão mineiro. Por esses e
outros motivos que Michele parece não
querer revelar, ela não pretende continuar morando aqui no país após os cinco
anos de curso. “Quando acabar eu não
vou ficar aqui não. Porque o Brasil é
bom para vir, passar um tempo, mas morar aqui eu não quero”, conclui. Embora
nem tudo “sejam flores”, nada também
é tão ruim. Frédérique conta que existem muitas oportunidades na faculdade
mineira, como as práticas laboratoriais
e os estágios. Segundo a jovem, é quase
impossível ir para a faculdade apenas
para assistir às aulas, pois existem
muitas outras coisas para enriquecer o
conhecimento.
22
Além disso, a grande variedade de cursos impressiona a estudante. O seu, por
exemplo, não existe no Gabão. Quando
ainda estava no processo seletivo ela teve
que optar por dois cursos existentes aqui.
Por influência do pai - que é Engenheiro
aposentado –, pela facilidade que tem
com a área de Exatas e para fugir da área
da saúde por “não aguentar ver sangue”,
Michele optou primeiramente por Engenharia Civil – curso existente no seu
país –, e, em seguida, por Engenharia
de Controle e Automação – totalmente
desconhecido por ela. A oportunidade
de se conhecer o desconhecido foi a
que vingou e a sua aprovação se deu na
segunda opção.
O FIM
Sem voltar para a sua pátria desde a
chegada ao Brasil, a futura engenheira
dribla a saudade conversando todos
os dias com os familiares pelas redes
sociais. Contudo, às vezes, a saudade
chega a ser tão forte que a jovem pensa
em desistir, como no período de comemorações no final do ano. “Aqui é muito chato ficar! Todo mundo tem casa,
todo mundo está com a família e tudo
está fechado, mas eu não tenho família
aqui. Então eu fiquei com amigos. Mas
foi muito diferente, porque lá no meu
país, no fim do ano, tem festa em todo
lugar, a cidade é muito animada. Aqui
eu estava chorando, querendo voltar”,
finaliza a gabonesa.
Decidida a não passar mais as festas de
fim de ano no Brasil, a sincera Michele
se concentra nos estudos a fim de que
os próximos anos passem rápido e a
vida em Belo Horizonte se torne uma
boa lembrança em sua história.
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25
Eva Ndunge
20 anos
País: Quênia
ARROZ E
FEIJÃO NÃO!
por Lígia Oliveira
26
Antes mesmo de estabelecer meu primeiro contato pessoalmente com Eva, ela
já me pede, por meio das redes sociais,
para votar em seu texto que iria concorrer a um prêmio online. O relato, em
inglês, da futura estudante de Ciências
Atuariais da UFMG, conta a história de
uma tragédia que aconteceu muito perto
da sua casa. Depois de ler seu desabafo,
fico muito curiosa para saber a história
dessa menina que com apenas 20 anos
já pôde sentir na pele os males de um
ataque terrorista.
“Nasci no Quênia, mas me mudei recentemente para o Brasil para estudar. Há
pouco tempo no meu país aconteceu um
ataque terrorista em uma universidade
que deixou 148 pessoas mortas. (...)
Esse evento trágico me proporcionou um
aprendizado intercultural sobre o Quênia,
a África e o resto do mundo. Minha nova
experiência no Brasil me deu a oportunidade de ser proativa e compartilhar mi-
nha cultura para diminuir a ignorância
que persiste na minha pátria. Eu vou
trabalhar para reduzir a ignorância e, o
mais importante, criar um diálogo para
conseguir ajudar a quebrar as barreiras
sociais, econômicas e financeiras pelo
continente.”
Segundo ela, a situação no Quênia
está muito complicada. Por ser o país
majoritariamente cristão, o fundamentalismo islâmico, que está em ascensão
no local, tem vitimizado muitas pessoas. Quando o atentado aconteceu, ela
estava há pouco tempo no Brasil e teve
que assistir de longe ao drama de sua
família que estava na cidade ao lado de
onde ocorreu a tragédia. A estudante
me causa surpresa quando pergunto
se ela está com medo dessa realidade:
“Medo? Não. Não tenho medo! Eu sei
que Deus vai nos proteger, a mim e a
minha família. Mas, às vezes, quero
voltar e ficar perto deles.”
Eva veio para cá no começo do ano para
estudar Ciências Atuarias na UFMG. Ela
conta que saiu do país para conseguir
condições melhores de estudo e para ter
novas experiências. Apesar de ter sido
selecionada para outra universidade em
São Paulo, decidiu vir para a UFMG,
pois considera que esta universidade
possui o melhor curso no país.
No Quênia, os principais idiomas falados são a língua inglesa e o suaíli, que é
o idioma banto com o número maior de
falantes. Ela conta que quando chegou
aqui causava estranheza por saber falar
inglês. “Perguntavam para mim se eu
tinha ido aos Estados Unidos estudar
inglês. Eu achava engraçado e respondia
que era o idioma oficial do meu país”,
relata.
Chegando aqui, ela teve que aprender a
falar a língua portuguesa e, por este motivo, está fazendo um curso de português
para estrangeiros. No final do ano de
2015, ela deverá fazer uma prova de proficiência. Caso seja aprovada, finalmente
vai poder realizar seu sonho de estudar
em uma universidade. “Não vejo a hora
de fazer a prova e começar a estudar aqui
(na UFMG)”, afirma com excitação.
Com jeito de menina, ela tem paixão
pelo novo em busca do conhecimento.
Mesmo com o coração apertado, pela
primeira vez longe de casa, parece estar
gostando de sua estada aqui Brasil. “Eu
gosto do Brasil. No começo só era difícil
falar a língua, porque eu não sabia falar
nada de português. Mas agora eu gosto
muito daqui. Tive a oportunidade de
conhecer muita gente nova, fazer muitos
amigos. Minha vida é igual era lá. Eu me
divirto bastante”, comenta a estudante.
A queniana afirma que não teve nenhuma dificuldade aqui em Belo Horizonte. Ela me conta que se acostumou
rápido com a cidade e com as pessoas,
mas tem uma coisa que a incomoda:
a desinformação. Ela afirma que as
pessoas não sabem muito sobre a
África e pensam que lá só tem doença
e pobreza. Isso é uma das coisas que
a intercambista tenta mudar aqui no
Brasil. “As pessoas aqui falam: ‘lá
vocês sofrem muito, vocês andam em
animais.’ Eles (os brasileiros) acham
que a vida lá é sempre sofrimento, o
que é muito estranho, porque estamos
no século XXI. No Quênia, a vida é
igual no Brasil. Tem as pessoas que são
muito ricas e as que são mais pobres.
Existe da educação básica até a universitária. Nós, quenianos, temos carro
e casa. Não tem nada de diferente ou
novo”, afirma.
Quando o assunto é voltar para casa,
a saudade fica clara e os olhos lacrimejam. “Eu quero voltar, vim aqui
só para ter um estudo melhor”, revela.
E quando a pergunta é o que ela mais
sente falta, não há menor hesitação:
“Sinto falta da comida. Comer só arroz
e feijão não dá. Lá no meu país a gente
come muita coisa diferente, aqui vocês
comem as mesmas coisas. Se eu pudesse mudar alguma coisa no Brasil seria
a comida.” E assim me despeço cada
vez mais surpresa com a inteligência e
sinceridade dessa queniana.
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Yaovi Mathias Honore TODJRO
28 anos
País: República do Benin
Graduado
em
Ciências
Biológicas
Atualmente faz mestrado em Bioquímica
e Imuno
UMA PELE, UMA
COR E UM AMOR
A conversa com Yaovi Mathias tomou um rumo que eu não esperava. Ao falar de si,
o beninense levantou questões sociais que afligem as pessoas que vivem no Brasil,
mas que, muitas vezes, passam despercebidas pelos que nasceram aqui. Mais do que
a construção de um perfil pessoal, os relatos de Yaovi evocaram um assunto que faz
parte do cotidiano de boa parte da população que mora no Brasil, seja ela brasileira ou não, mas que nem sempre é tratado com a devida importância: o racismo.
por Taiany Gonçalves
Há seis anos no Brasil, desde 2009, Yaovi já se graduou em Ciências Biológicas
pela Universidade Federal de Minas
Gerais e cursa atualmente o mestrado
em Bioquímica e Imuno na mesma instituição. Contudo, o ramo da Biologia
não o acompanhou sempre nos estudos.
Quando morava em seu país, Mathias,
como é chamado pelos amigos, cursou
Transporte e Logística.
Ele realizou o “ENEM beninense”,
chamado de BAC (abreviação da palavra baccalauréat), com o intuito de
cursar Análise Biomedical. Porém, não
conseguiu vagas nessa área e optou por
Transporte e Logística. Em dois anos já
estava com seu diploma de tecnólogo.
Para obter a licença era preciso cursar
mais um ano e ele chegou a iniciar esta
etapa. Entretanto, no meio do caminho,
foi aceito no Brasil para estudar Ciências
Biológicas e acabou por não concluir o
último ano daquele curso.
Ao contrário de africanos de outros
países, o beninense não precisou fazer
nenhum teste específico para o intercâmbio. O governo do Benin utilizou
a nota do BAC para aprová-lo no
processo, que, segundo ele, não é nada
fácil. “O ‘nosso ENEM’, o BAC, tem
uma nota mínima. A média para passar
é 50, mas a prova é tão difícil que eles
deixam a média para 45. A prova é toda
aberta e é referente à série que você
escolheu no ensino médio. Eu escolhi
a série D, que tem Matemática, Física,
Química e Biologia. Na parte da prova de Matemática, por exemplo, cai
integral e derivado. É realmente muito
difícil”, conta.
A segunda parte era escolher o país
de destino. A opção pelo Brasil foi influenciada por um tio que morava aqui.
“Um tio meu, que estudou na Unicamp
e agora é professor de lá, me falou que
o curso aqui era bom e que as univer-
29
sidades brasileiras eram de qualidade”,
conta. Então, Yaovi, além da França,
entrou no processo para vir ao Brasil
também. Estava no resultado que saísse
primeiro o seu futuro. E o vencedor foi o
Brasil. Sem querer esperar o resultado da
França, não pensou duas vezes ao decidir
desembarcar em solo brasileiro.
DEPOIS DO DESEMBARQUE...
“A UFMG não tem estrutura para receber os estrangeiros. Nós entramos em
contato com o DRI, mas ainda não existe
a estrutura do pessoal dessa diretoria em
buscar os estrangeiros no aeroporto. Nós
avisamos aos veteranos o dia em que
iríamos chegar e eles nos buscaram”,
inicia Mathias.
30
Após esta etapa, o segundo passo é a
residência. Como somente a passagem
é custeada pelo governo beninense, os
trâmites com aluguel ficam por conta do
estrangeiro. E essa é uma das grandes
dificuldades para um recém-chegado.
“Você tem que arrumar uma casa para
alugar, mas tem que ter fiador. Ninguém
vai aceitar alugar para você sem fiador,
mas você também não consegue achar
uma pessoa que esteja disposta a ser”,
relata o jovem. Assim, os veteranos se
tornam ainda mais fundamentais nesses
primeiros momentos de vida brasileira
ao procurarem uma moradia para os calouros antes mesmo deles chegarem. E é
nesse tipo de veterano que Yaovi também
se tornou. “A gente fica procurando apartamento ou casa para os novatos antes
deles chegarem e já avisamos o quanto
eles irão pagar por mês. Se a gente não
conseguir arrumar uma casa a tempo,
eles podem ficar na nossa”, conta.
Hospitaleiro com o próximo, assim
como considera o povo do interior do
nosso estado, o biólogo não economiza
elogios ao se referir aos mineiros: é um
povo legal, bacana e acolhedor. Mas é
um povo também, que, assim como as
pessoas de outros estados brasileiros,
possuem um grande e infeliz defeito. “O
povo de Minas é um povo legal, mas tem
uma coisa que a gente percebe quando
chega aqui no Brasil: o racismo. A gente percebe logo de cara que tem muito
preconceito em relação aos negros”,
relata Yaovi Mathias, dando início ao
tema que mais o indigna e incomoda
no país da diversidade.
O DESPRAZER DE CONHECER O
NOVO
Um dia, quando criança, o estudante
já correu atrás de brancos gritando
“Yovo, yovo, yovo!”, que quer dizer
“Branco, branco, branco!”. No Benin,
as crianças fazem isso quando aparece
alguém de pele clara, porque é novidade, é diferente. Mathias já fez isso. Mas
diz que hoje, depois de saber como o
branco o trata, não pode fazer mais.
Conhecer outro país é conhecer uma
cultura, visões e realidades diferentes.
É ampliar a bagagem cultural e aprender a respeitar as diferenças que existem. Contudo, conhecer outra nação é
também se deparar com as desigualdades e os desrespeitos que existem
naquele lugar, e, muitas vezes, sofrer
na própria pele e por ela a ignorância
existente. E foi no Brasil que Yaovi foi
conhecer e sentir o que é o preconceito
racial. “No Benin todo mundo é preto.
Eu nasci em um país onde eu nunca
sofri o racismo. Aí você chega aqui e
tem gente te olhando de um jeito diferente. A forma de olhar já é um tipo de
preconceito e a gente sente isso”, diz o
jovem que acabou aflorando mais a sua
sensibilidade por imposição da realidade que passou a conviver no Brasil.
O biólogo relembra alguns episódios
de preconceito que sofreu. Foram dois
casos que marcaram de forma negativa
a sua estada no Brasil. “Teve uma vez
que eu estava na porta da minha casa
conversando com um amigo, quando
um cara passou num carro e gritou:
‘Macaco!’. Esse cara só pode ser um
mané para fazer uma coisa dessas.
Mas eu ri, porque nada vai me atingir.
Você vale mais do que isso!”, relembra
a história com um sorriso no canto da
boca, como quem se orgulha de sua
maturidade diante dos fatos.
A outra situação de racismo havia acontecido poucos dias antes do nosso batepapo. Pelo fato de ser mais recente, as
marcas ainda eram visíveis em seu olhar
e na fala. “Há uma semana eu estava
indo para um bar. Estava andando na rua
quando vi uma moça sair de um prédio e
se despedir de um rapaz. Quando ela me
viu, voltou correndo. Como já passei por
esse tipo de situação, eu não fico chateado, vou para frente e encaro na hora.
Ela voltou em direção ao prédio e eu
ouvi o moço perguntar: ‘O que foi?’. Ela
respondeu algo que não consegui ouvir e
então todos entraram. Eu parei na porta
do prédio e gritei: ‘Preconceituosos!’.
Talvez eu esteja um pouco enganado,
mas você encontra qualquer negro na
rua à noite e as pessoas fogem. Sabe por
quê? Porque negro é bandido”, ironiza.
Além dessas duas lembranças vivas
em sua memória, segundo ele, o comportamento e a desconfiança da polícia
brasileira para com os negros também o
incomoda. Ele foi abordado duas vezes
pela polícia. O que para muitos é pouco,
para ele foram momentos que pareceram
durar uma eternidade. A primeira vez em
que foi revistado já fazem quatro anos,
mas nenhum detalhe daquele dia foi perdido em sua memória. “Eu estava voltando da aula, à noite, quando, virando
a esquina para pegar a rua Boaventura,
me pararam com arma. Foi a primeira
vez que alguém apontou uma arma para
mim. Eu fiquei em choque! Me perguntaram de onde eu vinha e eu disse que
estava vindo da UFMG. Eles revistaram
a minha mochila e me pediram desculpas. Disseram que teve um assalto e que
o cara tinha o mesmo perfil que eu”,
conta. Como o beninense nunca havia
sido revistado pela polícia em seu país,
foi no Brasil que ele teve que aprender a
lidar com o “sistema de segurança”.
Essa primeira ocorrência o fez ficar mais
alerta em relação ao policiamento. Não
queria que acontecesse novamente, mas
se assim fosse, ele já não seria pego de
surpresa e teria mais controle emocional
diante da situação. E como se fosse um
teste, para realmente ver se ele estava
preparado para reviver tudo aquilo, a
polícia voltou a lhe parar, mas dessa
vez não o revistaram. “Perto da minha
antiga casa existe uma favela e naquele
dia eu estava bem vestido, porque eu
gosto de me vestir bem. Me pararam,
mas pelo meu sotaque perceberam
que eu sou estrangeiro e começaram a
conversar comigo. Eu me pergunto o
porquê de terem me parado e eu sei a
resposta. É porque eu sou negro, bem
vestido e estava indo em uma direção
que poderia ser a da favela. O negro
não pode ser bem vestido porque ou é
traficante ou está fazendo coisa ruim
para ter dinheiro. Essa coisa me deixa
revoltado”, relata.
Envergonhada dos constrangimentos
e desrespeitos pelos quais ele e seus
colegas têm sofrido, o indago se isso
seria uma mistura de xenofobia com
preconceito racial. Porém descubro
algo diferente. Ele atesta que quando
descobrem que ele é estrangeiro o
comportamento melhora. “Quando a
pessoa percebe que você é estrangeiro,
aí ela muda de cara. Muda a forma de
falar, fica mais sorridente... Eu acho
que o preconceito é realmente pela
cor”, conta sobre essa bipolaridade do
brasileiro.
Mas se Yaovi não percebe a xenofobia,
o mesmo não pode ser dito do preconceito social e de classe. Ele não nega
que esse tipo de preconceito exista
em seu país. Mas, diferentemente do
Brasil, segundo ele, em Benin, o preconceito social não está relacionado
com a cor. “Aqui existe uma interação
entre pobre e negro. É como se ser negro fosse ser pobre, entendeu? Essa é a
diferença entre o preconceito no Brasil
comparado a outros lugares. A cor está
associada à pobreza. Aqui as pessoas
me tratam de uma maneira, mas quando eu digo que estudo na UFMG, faço
mestrado e falo francês, as pessoas
mudam de comportamento”, conclui.
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“Nós, desde pequenos, lá no ensino
fundamental, aprendemos a cantar
assim: ‘Sou muito orgulhoso de ser
negro. Gosto do meu cabelo crespo
e do meu nariz achatado’.”
NEGRO É MEU NOME
O grande problema do brasileiro, segundo
Yaovi, é, além de ser preconceituoso com
o próximo, ser consigo mesmo. “Mais da
metade da população brasileira é negra e tem
muita gente que não se assume. Não quer se
assumir e nem se orgulhar”, reprova o beninense, que procura se informar e entender
mais sobre a sociedade brasileira.
32
Segundo dados divulgados pelo Instituo
Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE)
em 2013, 8% dos brasileiros se consideram
de cor preta e 45% se declaram de cor parda.
Juntos, esses dois grupos formam a população negra, o que na soma equivale a 53% da
população brasileira. Embora a quantidade
de pessoas que se afirmam negras tenha
aumentado nos últimos anos, grande dificuldade ainda é encontrada por parte dos negros
brasileiros em se aceitarem como tal.
Já na República do Benin, a história é bem
diferente. O mestrando conta que em seu
país a cultura é a de valorização do negro.
“Nós, desde pequenos, lá no ensino fundamental, aprendemos a cantar assim: ‘Sou
muito orgulhoso de ser negro. Gosto do meu
cabelo crespo e do meu nariz achatado’”,
exalta Mathias. A poesia citada e cantarolada
por Mathias em sua infância é Negre c’est
mon nom (em tradução livre: “Negro é o
meu nome”), do senegalês Léopold Sédar
Senghor. Atualmente, as crianças beninenses
continuam exaltando a honra e o orgulho de
serem negras através dela.
NEGRE C’EST MON NOM
Nègre c’est mon Nom
Nègre c’est ma race.
Si mon teint parfois bronzé t’induis en
embarras,
NEGRE C’EST MON NOM
Nègre c’est mon Nom Nègre c’est ma race.
Si mon teint parfois bronzé t’induis en embarras, d autres traits peuvent souligner ce que je
suis.
Nègre c’est la forme de ma tete
Ce sont mes lèvres lippues
c’est mon nez applati.
Mes cheveux créppus tèmoignent fort que je
suis un Nègre d’origine
Fils de l’Afrique noire,
Afrique qui regrette encore sont passé
Ce passé mystique et plein de sagesse,
Oui , tu as refusé d’apprécier mes civilisations.
Ne conçois tu pas enfin que Nègre est mon
nom?
Présente donc mes complimenets à ma mère
qui m’a donné ce nom encore
Ignores tu que cette mère,
C’est l’Afrique noire dont je suis fier d’etre
le Fils ?
Mieux vaut. Regarde Assiba ma soeur,
Examine la blancheur de ses dents
Son esprit docile et la franchise de sa mine
Négresse est son Nom
Nègresse est le nom de ma soeur.
Et ces ambitieux émigrants qui ont fait de
nous des betes de sommesne sont que de
méprisables négriers.
Etre Nègre est un privilège
Et je suis heureux
Et je suis fier d etre un Nègre!!
NEGRO É O MEU NOME
(Traduzido por Arnaud Zalete Musa a nsa)
Negro é o meu nome
Negro é a minha raça.
Se a minha tez por vezes bronzeada te leva a algum desconforto,
outras características podem enfatizar o que eu sou.
Negro é a forma da minha cabeça
Estes são os meus lábios grossos
este é o meu nariz achatado.
Meu cabelo crespo testemunha alto que eu sou de origem Negra
Filho da África negra,
África que chora ainda seu passado
Este passado místico, cheio de sabedoria,
Sim, você recusou-se a apreciar a minha civilização.
Você não concebe, finalmente, que Negro é o meu nome?
Apresente meus cumprimentos a minha mãe que me deu esse nome
novamente
Você ignora essa mãe,
E a África negra que eu tenho orgulho de ser o Filho?
Melhor. Olha Assiba minha irmã,
Examina a brancura dos seus dentes
Seu espírito dócil e a franqueza de sua mina
Negra é o meu nome
Negra é o nome da minha irmã.
E estes imigrantes ambiciosos que nos tornaram burros de carga
são apenas negreiros desprezíveis.
Ser Negro é um privilégio
E eu estou feliz
E eu tenho orgulho de ser um Negro!!
33
DISSEMINANDO A CULTURA
BENINENSE
Embora o biólogo reconheça que existam problemas em seu país, assim como
em qualquer lugar do mundo, prefere
divulgar apenas o lado positivo e as exuberâncias do Benin. “Em qualquer lugar
você tem um lado ruim, de pobreza e um
lado bom, de riqueza. Eu faço palestras
sobre o meu país e só mostro o lado de
riqueza. O lado negativo não precisa ser
mostrado, porque a mídia já faz esse
trabalho”, conta sobre a maneira que
encontrou para desmistificar a visão que
as pessoas têm sobre os países africanos.
34
Em suas palestras, existe o espanto de
alguns espectadores ao conhecerem uma
realidade tão diferente daquela que os
meios de comunicação geralmente exibem. Algumas pessoas chegam a indagar
se o lugar que ele está mostrando pertence a África, pois nunca tinham imaginado que pudesse haver hotéis e prédios
grandes e luxuosos, por exemplo. Muito
tranquilo, Mathias não se enfurece com
esses achismos sobre o seu país e o
continente africano, até gosta muito de
informar as pessoas sobre a sua cultura.
Na nossa conversa não foi diferente.
Dividido entre etnias, o Benin possui
muitas línguas faladas entre os povos.
Yaovi fala três outras línguas além do
francês, que é a oficial. “Eu falo francês,
fon, mina e gun. A primeira língua que
eu aprendi foi o mina, que é a da etnia
do meu pai. O francês eu só fui aprender
na escola, porque dentro de casa a gente
conversa em dialetos. E o fon, falada em
todo o sul de Benin, eu aprendi brincando com os meninos do bairro, pois essa é
outra opção para a gente se comunicar. É
como se fosse a lingala no Congo”, explica detalhadamente. Já o gun é a língua
da etnia de sua mãe, mas nem ela própria
faz mais uso desse dialeto, pois teve que
aprender a língua do marido para ensinar
aos filhos.
Além disso, Mathias também destaca a
poligamia que um dia existiu em sua nação e que hoje não é mais liberada. Com
dezoito irmãos, divididos entre quatro
mães diferentes, ele conta que o pai se
casou legalmente com todas essas mulheres. O beninense não esconde que
acontecem muitas brigas entre as mães
e que os filhos acabam entrando na
confusão. Embora agora estejam mais
maduros, o que melhorou as relações,
ele revela a preferência pelos irmãos
que são filhos da mesma mãe. “Eu
tenho uma relação mais forte com os
filhos da minha mãe, que comigo são
sete, do que com os filhos das outras.
Você pode ficar em paz, mas sempre
vai ter essa divisão: somos do mesmo
pai, mas não da mesma mãe”, explica
com bastante sinceridade. Na passagem de Ano Novo, todos se reúnem
numa grande festa, na qual todos são
amigos, mesmo que seja apenas por
um dia.
ENTRE BENIN E BRASIL
Ao mesmo tempo em que percebe diferenças entre a terra natal e o Brasil,
Yaovi vê semelhanças entre os dois
lugares. O acolhimento das pessoas é
a primeira característica similar que
ele destaca, principalmente quando se
trata das pessoas do Nordeste. Em suas
viagens por alguns estados daquela
região, constatou que lá é o lugar onde
as pessoas mais se assemelham aos
africanos. “O Brasil é um país muito
acolhedor e nós somos muito parecidos
com os brasileiros. O povo do Nordeste
é muito acolhedor, como os africanos”,
pontua. Mas, infelizmente, ainda não
pôde conhecer o estado brasileiro que
mais considera parecido com Benin:
a Bahia. Admirador das músicas de
axé, o beninense conta que tem muita
vontade de visitar e conhecer a cultura
baiana para se sentir verdadeiramente
em casa. “Benin tem muito a ver com
Salvador e com a Bahia. O povo de lá
é derivado do meu país. Alguém da
Bahia que estudou História sabe que a
maioria do povo baiano é descendente
do povo de Benin. Acarajé, por exemplo, não é daqui, mas sim de Benin,
Nigéria, Togo”, mostra que procurou
conhecer mais as relações entre a África e o Brasil.
Tendo visitado o seu país desde que se
instalou no Brasil apenas uma vez, e sem
ainda ter tido a oportunidade de visitar a
Bahia para sentir um pouco da energia
africana, o jeito encontrado por ele e por
seus amigos para vivenciar a cultura da
África é a realização de festas. Ainda
que alguns encontros sejam abertos a
brasileiros, o resgate cultural acontece,
assim como a troca, já que participam
intercambistas africanos de diferentes
países.
Sem previsão de retorno ao Benin, já
que participará do processo seletivo para
o doutorado na UFMG, e sem saber se
o regresso será definitivo, pois a área
laboratorial, segundo ele, é bastante
precária em seu país, o futuro doutor só
pensa em se dedicar aos estudos. “Se eu
sair do Brasil, será para outro país que
tenha uma estrutura adequada para fazer
pesquisa. A gente fica com saudade, mas
não é a ponto de ficar mal. Pior é quando
a gente sofre preconceito. Aí dá vontade
de ir embora para ficar com a mãe”, finaliza Yaovi Mathias, o filho.
“O Brasil é um país
muito acolhedor e nós
somos muito parecidos com os brasileiros.
O povo do Nordeste é
muito acolhedor, como
os africanos.”
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36
SESSÃO ESPECIAL
República Democrática do Congo
37
por Taiany Gonçalves
A entrevista realizada com os dois congoleses, Peter Abram e Arnaud Zalete, aconteceu simultaneamente, de modo que houvesse trocas de experiências entre eles.
Os jovens falaram bastante sobre as tribos existentes no Congo e a comunicação
estabelecida entre membros de diferentes etnias. O diálogo rendeu uma sessão,
que não esperávamos, completamente baseada na visão e na construção que os
congoleses fizeram sobre a vida em Kinshasa, capital da República Democrática
do Congo.
ARNAUD ZALETE
PETER ABRAM
Línguas faladas: Francês, Lingala, kikongo, Inglês e Português.
Línguas faladas: Francês,
Tshiluba e Português.
Lingala,
Embora Kinshasa seja uma das maiores
cidades do continente africano, aos olhos
dos jovens estudantes a capital acolhe
de forma tão aprazível uma invejável
diversidade cultural e linguística que
não parece tão grande assim. Para eles,
a província de Kinshasa – província
é o nome utilizado para as divisões de
regiãodentro do país congolês – é muito
pequena em relação a de outros países.
Pela facilidade que as pessoas têm de
chegar à capital congolesa e pela mistura
de culturas existentes, a melhor definição
que eles encontram para Kinshasa é o de
“Centro”. Segundo eles, a diversidade de
tribos na capital se faz bastante presente.
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Pergunto,então, qual seria o conceito
de “tribo” e eles afirmam que é a
comunidade das pessoas que compartilham da mesma origem, cultura, modo
de pensar e língua. Esta última característica foi a que dominou a interação
entre os dois. Virei mera espectadora.
“Eu e o Arnaud somos de tribos diferentes. Nós dois falamos francês e
mais um dialeto, que se chama ‘lingala’. Lingala é uma língua, mas para
você entender, vou chamar de dialeto.
Além dessas duas, cada um de nós tem
uma língua própria de nossa tribo. Eu
posso falar e ele não vai entender”,
conta Peter Abram. Para provar que
Arnaud não entenderia o seu “dialeto”,
Peter fala algumas coisas, fazendo com
que Arnaud e eu ficássemos pasmos
diante da situação, sem entender uma
palavra sequer pronunciada por ele.
Pergunto a Arnaud se ele realmente não
entendeu nada e, sem pestanejar, ele me
diz: “Nada!”.
LÍNGUAS NACIONAIS
Mais de 250 línguas são faladas pelos
quase 80 milhões de habitantes da República Democrática do Congo. Além da
língua francesa, que é a oficial, lingala,
kikongo, suaíli e tshiluba são as quatro
principais línguas nacionais.
Francês e Lingala
“Se somos de tribos diferentes, falamos em francês ou em lingala”, assim
descrevem a importância dessa língua
no território congolês. Considerada um
idioma materno na região noroeste da
República Democrática do Congo, em
grande parte da República do Congo e
em alguns outros países africanos, essa
língua banta tem tanta ou mais importância que a própria língua oficial.
O francês, segundo Peter e Arnaud, é a
língua ensinada na escola, apesar de algumas pessoas já aprenderem dentro de
casa com a família, o que facilita quando
há o ingresso no colégio. Embora o Congo de Kinshasa seja o país francófono
mais populoso, o que contribui para uma
maior proliferação da língua francesa,
a lingala não perde o seu espaço no
país, principalmente pela necessidade
que eles têm em conservar fragmentos
do passado. “A gente tem aquela coisa
de preservar a nossa história. Existem
línguas que não têm escrita e nem regra gramatical, por exemplo, e, então,
nós arrumamos um jeito de escrever. A
lingala não tem uma tradição escrita. O
pessoal só aprende na família, de boca
a boca, mas a gente arruma um jeito de
escrever”, contam. Não existe, portanto,
certo ou errado quando a palavra pertence a um idioma que seja apenas de
tradição oral. O que vale é conseguir ser
compreendido.
A capital Kinshasa é uma mistura de
muitas tribos e línguas. E lingala foi o
idioma escolhido pelo povo congolês
para a comunicação com pessoas de
outras tribos.
Tshiluba
De origem banta e com o status de
língua nacional no Congo, tshilubaé a
língua da tribo de Peter. Ele conta que
embora esse seja o primeiro idioma
falado em sua região, isso não impede
que uma pessoa de outra etnia more
lá. Esta pessoa irá se deparar com o
idioma da tribo em questão, porém não
enfrentará problemas de comunicação,
já que as pessoas também falam em
lingala e em francês. E assim acontece
nas outras tribos.
Kikongo
Essa língua africana é a dominante na
tribo de Arnaud. Mas, assim como no
caso da tribo de Peter, os integrantes
da tribo de Arnaud interagem entre si
e com pessoas de outras etnias também
em lingala e francês.
Suaíli
Deixo que Arnaud fale sobre esse idioma banto. “Você conhece o filme ‘Rei
Leão’, aquele do Hakuna Matata?”, me
pergunta o congolês. Balanço a cabeça
afirmando que sim. “Então, Hakuna
Matata é suaíli”, simplifica e sintetiza
a definição.
Mesmo falando muito bem a língua
portuguesa, eles não deixam as origens
de lado quando estão em grupos de
congoleses. Na ausência de brasileiros,
o português não tem vez: é lingala ou
francês.
39
Arnaud ZaleteMuza a nsa
27 anos
País: República Democrática do Congo
Curso: Engenharia Civil
O ENCONTRO
DO CONGO COM
MINAS
40
De lugar desconhecido a possível lar
permanente. É isso que se tornou o Brasil na vida de Arnaud Zalete. Depois de
pouco mais de 3 anos no país, o jovem
de 27 anos já consegue se imaginar fixando residência aqui após a conclusão
do curso de Engenharia Civil. Se vai ou
não permanecer, já é outra história.
por Taiany Gonçalves
A vontade de trilhar um caminho diferente foi o que guiou a escolha de Arnaud.
Ele tinha outras opções de viagem, principalmente por ter alguns tios residentes
na Europa e na África do Sul. Seria mais
fácil optar por um lugar em que muitas
coisas já estivessem encaminhadas.
Porém, quem disse que o jovem queria
facilidade na vida? “Eu queria fazer um
caminho sozinho. Naquela época eu
estava pensando em ir para o Canadá ou
para os Estados Unidos, mas eu tenho
amigos que falaram que lá é cada um na
sua”, conta. Em uma conversa sobre o
futuro, um amigo lhe fez uma despretensiosa sugestão, que acabaria levando-o
ao encontro dopaís que um dia foia pátria de chuteiras. “Meu amigo me disse:
‘Por que você não pensa no Brasil?’”,
relembra Arnaud.
A história de um dos maiores times de
futebol do mundo foi e ainda é construída com a ajuda de grandes craques
brasileiros, como Romário, Ronaldo,
Ronaldinho Gaúcho e Neymar. O Bar-
celona ocupa um lugar no coração de
milhares de pessoas no mundo, inclusive no do congolês, que só conhecia o
Brasil por causa de sua paixão por esse
esporte.“O que a gente sabe daqui é
sobre o futebol esobre aqueles grandes
nomes, como Ronaldo. Quando meu
amigo me fez aquela sugestão, eu logo
disse: ‘O que tem lá? É futebol e o quê
mais?’”, conta com muito humor.
A curiosidade surgiu. Arnaud iniciou
suas pesquisas para saber se valeria a
pena se arriscar dessa forma eir para
um lugar tão desconhecido para ele.
No entanto, em suas buscas, descobriu
que havia muito mais coisas em comum entre África e Brasil do que ele
poderia imaginar. “Eu vi que a África
realmente tem uma história, um vínculo muito grande com o Brasil. Então,
eu pensei que não iria estranhar muito
ao chegar aqui”, explica.
O processo seletivo foi tão rápido que
não deu tempo do congolês terminar o
curso preparatório,que estava fazendo
em seu país, para iniciar a graduação
em Engenharia. Com o anúncio do resultado positivo, ele teve que abrir mão
desses estudos para então começar uma
nova vida distante dali. Porém, antes
de vir para o Brasil, teve uma surpresa.
O estado escolhido para passar os seus
próximos anos não era a sua primeira
nem segunda opção. “Ninguém esco-
lhe Minas Gerais. Todo mundo escolhe
Rio ou São Paulo. Eu não sabia nada sobre Minas. Foi a minha terceira escolha.
Mas as nossas notas são recolhidas pela
embaixada e enviadas para o governo
daqui, que propõe nas universidades.
E foi a universidade mineira que me
escolheu”, explica.Quando leu a palavra
“Belo Horizonte”, Arnaud não sabia
do que se tratava. “Perguntei o que era
Belorrizonté?”, diz ele com seu sotaque
francês. Mesmo sem saber o que seria, já
estava ansioso para conhecer e desvendar esse “mistério”.
Além dessas dúvidas, ele ainda teria
que vencer o seu medo e o de seus pais
sobre o que lhe aguardava nesse lado
do Atlântico. “Tipo assim...Tenho um
convênio com o governo. Mas a questão
é que você vai num país que não conhece, com uma cultura e uma língua que
você não conhece. Você fica com medo
e os pais também”, revela. Contudo, os
amigos que já moravam aqui disseram
que o Brasil é um país tranquilo e que
ele poderia vir sem medo.
UM LEMA: INDEPENDÊNCIA
Vindo de uma família de classe média
de Kinshasa, capital da República Democrática do Congo, onde o pai trabalha
em uma empresa de distribuição de
água - como a Copasa em Minas Gerais
- e a mãe vende roupas, Arnaud sempre
aprendeu a se virar para adquirir suas
coisas. E aqui no Brasil não é diferente.
Sem contar com ajuda de custo do governo, ele dá aulas de inglês e francês em
uma escola de idiomas para se sustentar.
“O convênio só garante a faculdade e a
sua formação. Quem sustenta a gente,
normalmente, é a família. Mas a gente
não fica num lugar quadrado, e vai se
virando. Eu falei para os meus pais:
‘Cuidem de vocês aí, que eu vou cuidar
de mim aqui.’ Então, comecei a dar aula
na Wizard. Isso ajuda a pagar o aluguel
da casa e as contas. Eu dependo de mim
mesmo e do cara lá de cima”, conta
apontando para o céu.
Essa busca pela independência sempre
esteve presente na vida de Arnaud e,
segundo ele, é algo bastante recorrente
em seu país. “Os pais africanos criam
os meninos do jeito deles para que, ao
chegar num determinado momento,
eles saiam de casa e se virem como
homens. Tem a saudade da família,
mas ao mesmo tempo você pensa que
precisa fazer algo. Você precisa viver.
Nós fomos educados para sair do
ninho”, explica. Entretanto, nem por
isso ele caracteriza a sua criação como
distante. Seus pais sempre estiveram
presentes e muito próximos dele e da
irmã.
E é só falar da irmã que seu lado ciumento desperta. Ao se lembrar que ela
se casará em breve, Arnaud Zalete,
bem humorado, comenta a situação.
“Minha irmã vai se casar e eu também
não sabia. Fiquei sabendo há pouco
tempo. Eles sabem que se eu tivesse
descoberto antes já teria ido lá e batido no cara. Minha irmã não pode se
casar”, brinca o congolês. Surge então
uma boa ocasião para rever a família
depois de quase 4 anos.
É CONGOLÊS E NÃO DESISTE
NUNCA
A cultura e a forma de ser dos mineiros
causou um certo estranhamento em
Arnaud. A disposição dos nativos deste
estado em ajudar é o que mais chama
a atenção dele. “Aqui chega a ser
estranho. O pessoal chega e conversa
com você numa boa. Às vezes você
tenta falar e a pessoa tenta te ouvir
com cara de quem está entendendo.
Mesmo quando ela não entende, tenta
te ajudar. Isso é legal com o mineiro,
um povo que está sempre pronto para
te ajudar”, conta com gosto.
Quanto à UFMG, as opiniões, em sua
maioria, são positivas. O graduando
em Engenharia exalta não só a qualidade da universidade, mas também a boa
relação estabelecida com os alunos e
professores. Todavia, existem pontos a
serem melhorados, como a assistência
por parte do Colegiado de Graduação,
41
“Isso faz com que a gente se torne
brasileiro mesmo.”
segundo ele. O congolês conta que
quando chegou à instituição não sabia
detalhes sobre seu curso e nem o que era
grade curricular. Não sabia sequer quantas disciplinas teria que cursar. “Fiquei
realmente perdido. Eu só ia para a aula”,
se diverte ao relembrar. Ele teve que
pedir ajuda a um amigo. Por essa dificuldade encontrada, o jovem acredita que
a vida acadêmica precisa ser mais bem
guiada e orientada para os estrangeiros.
42
“Uma coisa que nunca tinha acontecido
comigo era aquela coisa de ser revistado pela polícia. Pensei em desistir no
momento em que isso aconteceu”,diz
Arnaud Zalete com bastante desânimo e
tristeza ao lembrar da situação. Ele consegue relembrar em detalhes o constrangimento que passou e que ainda passa ao
ser abordadopela polícia.
“Você está num ponto de ônibus e param
só você. Ou está voltando para casa
cansado, com fome, querendo dormir...
e a polícia te para. Ou mesmo em casa.
Uma vez estava conversando com um
amigo, também africano, na porta de
casa, e a gente foi parado. Por um lado,
eu entendi que é o trabalho do pessoal,
mas me senti mal e incomodado. É uma
coisa que a gente não está acostumado.
Nunca teve isso no meu país. Senti que
não estou aquie pensei em ir embora”,
conta Arnaud. “Minha mãe chegou a
me ligar. Eu não sei como, mas as mães
sentem. Ela me ligou e falou: ‘Arnaud, o
que está acontecendo? Você está triste.’
Mas eu não contei nada”, conclui.
À exceção dessas experiências com os
militares, o persistente congolês não
pensou mais em desistir. Nem mesmo
o racismo sofrido foi capaz de desestruturá-lo. “Eu já passei por essas atitudes
de discriminação e de segregação. Já
percebi pessoas olhando diferente para
mim várias vezes, mas não fico incomodado. Eu penso que o importante não é o
que essa pessoa está pensando de mim,
mas sim o que eu estou pensando de
mim e o que eu quero fazer. Tem gente
que me tratou muito bem nesse país e
é para elas que eu olho. O resto não
é da minha conta”, ressalta. Com uma
visão mais leve e madura sobre a vida,
Arnaud demonstra que não se deixa
abater.
O FUTURO: UM BELO HORIZONTE
Na metade da graduação, o futuro
engenheiro civil ainda não sabe o que
fazer e para aonde vai após a formatura. Seu principal objetivo é trabalhar,
ganhar dinheiro, ajudar a seus pais e
construir a sua própria família. Onde
isso tudo ocorrerá? Ele ainda não sabe.
Na tentativa de conseguir mais alguns
detalhes sobre suas decisões, crio duas
situações para ver por qual ele opta.
Entre duas propostas de emprego com
o mesmo salário aqui e no Congo,
Arnaud escolhe o Brasil. “Acho que
fico aqui, por causa do hábito. Uai, eu
já estou vivendo aqui desde 2012”, diz.
Ao longo da entrevista algumas gírias
foram ditas pelo congolês, como “tipo
assim” e “’tô’ nem aí”. O “uai” é o que
mais me impressiona e eu o interpelo
por isso. Ele justifica esse mineirês
pelo costume e conclui que é por isso
que a maioria dos intercâmbios são de,
no máximo, um ano para que a pessoa
não se acostume com o lugar. “O nosso caso é diferente, porque estamos
fazendo aqui um convênio a longo
prazo. Você faz a faculdade por cinco,
seis anos e muitos fazem o mestrado e
tudo mais. Isso faz com que a gente se
torne brasileiro mesmo”, finaliza Arnaud, além de universitário, professor
de inglês e francês, futuro engenheiro,
africano e congolês, ainda encontra
espaço para ser brasileiro e mineiro.
Peter Abram
28 anos
País: República Democrática do Congo
Curso: Comunicação Social
UM FILHO DE
MARIA JOSÉ
por Taiany Gonçalves
“No dia em que eu saí de casa a minha
mãe me disse: ‘Filho, vem cá!’” Surpreendida sou, logo no começo da entrevista, com a música de uma famosa dupla
sertaneja na voz do protagonista da vez.
A milhares de quilômetros de distância
de Goiás, onde nasceram Zezé di Camargo e Luciano, Peter Abram descobriria,
assim como os dois filhos de Francisco,
o que é sair de casa e aprenderia a lidar
com a saudade que sente da mãe e dos
irmãos.
Nascido em Kinshasa, capital da República Democrática do Congo, Peter,
aos 28 anos, já tem muitas histórias
brasileiras para contar. Há 6 anos no
Brasil, desde o dia 26 de fevereiro de
2009, o congolês e futuro jornalista queria sair do seu país para adquirir novas
experiências e conhecer outra cultura.
Muitos colegas e irmãos tinham o desejo
de conhecer os Estados Unidos e alguns
países europeus. Ele também não nega
essa vontade. No entanto, foi a oportunidade de vir para a terra Tupiniquim que
apareceu no momento em que ele mais
queria viajar.
Embora já cursasse Comunicação Social
em seu país, Peter conta que não há
nenhum tipo de vínculo entre o curso de
lá com o daqui. Segundo o jovem, não
se pode denominar como “intercâmbio”
a sua vinda. “Eu vim para cá não por
intercâmbio, mas para viajar e estudar
fora. Nosso caso é integral. É como você
abandonar o seu curso de graduação lá
para fazer de novo, desde o começo”,
afirma.
Pelo fato do governo congolês não custear a sua estada aqui, o seu sustento
vem da família e dos estágios que faz.
Pergunto, então, se posso considerá-lo
como uma pessoa rica em seu país, já
que conseguiu sair de lá sem a ajuda
do governo. Ele acha graça da pergunta e me responde com muito bom
humor: “Quem me dera! Se somos os
reis do pedaço?! Não, a gente não é
isso tudo. Eu não sou rico. Sou filho
de uma faxineira. Minha mãe trabalha,
se vira na vida. E eu, antes de vir para
cá, juntei dinheiro com o meu trabalho.
Além disso, a minha mãe também me
ajudou.” Empolgado com o rumo da
conversa, Peter começa a contar um
pouco sobre a vida na República Democrática do Congo.
ANTES DO BRASIL:
A VIDA NO CONGO
Numa família de 8 irmãos, na qual 5
são homens, desde cedo os garotos já
tinham como meta sair de casa. Segundo Peter Abram, essa necessidade
de sair do lar é mais do que cultural, é
algo “de sangue”, que, mesmo quando
não há a motivação oral dos pais, criase uma própria pressão e necessidade
internas para trilhar um novo caminho.
Porém, no caso do estudante de Comu-
43
nicação, o “empurrão” dentro da própria
casa pela mãe, dona Marie José, nunca
faltou.
O receio de que os filhos não prosperassem na vida angustiava Marie e, por
isso, ela os incentivara de maneira única.
“Quando dava 7 horas da manhã e a gente ainda estava dormindo, ela batia panela e falava: ‘Levanta, levanta, levanta!
Vai trabalhar, vai arrumar alguma coisa
para fazer! Vai na faculdade, arruma um
estágio... faz alguma coisa. Não quero
ninguém dormindo aqui até as 8 horas’”,
relembra o congolês.
44
Aos 15 anos de idade, Peter começou
a fazer estágio na televisão e saiu de
casa. O irmão, um ano mais novo, por
ser muito apegado a ele, também saiu
e juntos foram morar com a tia. Seus
olhos se enchem de lágrimas ao falar do
companheiro: “Meu irmão criou um personagem para seguir, como se eu fosse
um ídolo para ele. Qualquer coisa que eu
faço, ele também tem que fazer. Quando
eu vim para o Brasil, ele quis vir e lutou
muito para conseguir. Mas não deu e ele
foi para a França. Eu queria muito, muito
mesmo que ele estivesse aqui, mas eu ‘tô
de boa’. A gente conversa todo segundo!” Assim, desde os 21 anos de idade, o
estudante teve que aprender a lidar com
a saudade, já que quis alçar voos longe
de casa.
A CHEGADA
“Quando eu cheguei aqui, foi mais do
que esperava. Eu achava que ia ficar
muito sozinho, mas isso só acontecia
quando voltava para casa, porque durante o tempo do curso de língua portuguesa
eu fiz bastante amizade com o pessoal da
Letras”, relata os primeiros momentos
em terra mineira. Além disso, já residiam em Belo Horizonte outros colegas
africanos que orientaram e procuraram
um lugar para que a turma de 2009, da
qual Peter fazia parte, pudesse se instalar
assim que chegasse.
No entanto, se nada disso tivesse acontecido, se ele não tivesse se identificado
com Minas Gerais e com nenhum outro
estado onde eventualmente chegasse a
morar, o congolês poderia voltar para
o seu país. Ele conta que presenciou a
desistência de um conterrâneo: “Eu já
testemunhei um caso em que um menino do Congo desistiu. Ele chegou e
depois de uma ou duas semanas voltou
para o nosso país. Disse que não conseguiria se adaptar, que achou muito
complicado.”
Com Peter Abram, felizmente, a história foi diferente. Contrariando as
expectativas dos familiares e amigos
congoleses que temiam ao achar que
ele viraria escravo no Brasil, o jovem
estudante viu que não passavam de
visões equivocadas e se adaptou muito
bem à terra mineira, criando a sua própria opinião diante da realidade vivida
aqui.
O QUE SE VÊ POR AQUI
Embora tenha viajado apenas uma vez
ao Congo para visitar a família, as viagens dentro do território brasileiro não
faltam. Ele já conheceu as cidades de
São Paulo, Rio de Janeiro, Florianópolis, Goiânia e Brasília. Porém nenhuma
recepção, segundo ele, foi tão boa
quanto em Minas Gerais. Peter afirma,
com muito humor, que não está dizendo isso só por estar conversando com
uma mineira: “Não ‘tô’ puxando saco
de ninguém não, mas o mineiro é diferente, ele está pronto para te receber e
conhecer. Quando você está no ponto
de ônibus, ele começa a conversar com
você mesmo sem te conhecer. Isso aí é
muito raro ver em outro estado. Aqui
você nem precisa iniciar a conversa. A
pessoa já chega em você e fala: ‘Nossa, hoje está quente!’. Isso que destaca
em Minas Gerais em relação a outros
estados, além da comida.”
As imperfeições também existem e
Peter se mostra bem atento a elas. A
Assistência Estudantil, por exemplo,
deixa a desejar em alguns aspectos. Os
direitos, segundo ele, não são os mesmos para estudantes brasileiros e para
os estrangeiros. Assistido pela FUMP,
o congolês pediu ajuda financeira para a
aquisição de um óculos de grau. O pedido foi rejeitado, mas ele não consegue
entender o motivo. “Eles não podem
ajudar um aluno como eu? Não podem
ajudar um africano? Nossos direitos de
aluno são limitados. Um aluno daqui do
Brasil, nesse caso, teria direito”, relata
com bastante pesar.
Muitos, porém, são os lados positivos
da universidade, principalmente quando o aluno sabe utilizar as ferramentas
disponibilizadas. Além do ensino de
qualidade, Peter exalta a excelência e
atenção dos professores, principalmente
para com alunos estrangeiros, já que
têm paciência para explicar a matéria
quantas vezes sejam necessárias quando
há dificuldade na comunicação. O futuro
jornalista ainda é categórico ao salientar
que o fator determinante para o sucesso
é o próprio aluno: “Se ele prestar atenção
nas aulas, se sairá bem!”
O QUE SE VÊ POR LÁ
Muitos brasileiros acreditam que a África se resume a um continente de fome,
miséria e guerra. Porém, poucos sabem
que pesquisar, entender e compreender
que esse continente é composto por 54
países, os quais têm realidades diferentes, é necessário. Assim, peço ao Peter
que fale um pouco sobre o seu país, seu
continente e sobre o que acha dessa visão distorcida que as pessoas têm. “Eu
admito que no meu país tem problema,
como em qualquer lugar. Mas as pessoas
vivem e são felizes. Nosso país está indo
para frente. Eu acho que a pessoa que
fala que a África tem pobreza e que só
tem guerra é alguém que só fica assistindo às coisas pela televisão”, ressalta.
A mídia, na visão do congolês, é a principal responsável por essas interpretações
distorcidas. “Só se filma uma coisa que
chama a atenção. A realidade não pode
competir com a CNN, por exemplo. Ela
não vai mandar um repórter para um
lugar que tem paz, porque não é notícia.
Ela vai no lugar que tem problema. Aí
a pessoa vê isso na televisão e pensa:
‘Os meninos da África estão sofrendo.
Será que as pessoas estão comendo?’”,
diagnostica o jornalista congolês.
Todavia, o que mais o incomoda está
longe de ser o que pensam sobre o seu
continente, e sim quando consideram
a África um país. É ainda mais complicado quando essa abordagem parte
de colegas de profissão. “Eu já vi na
Record e também o William Bonner
falarem assim: ‘Está tendo guerra na
África.’ e mostram um país em guerra. Aí a pessoa que sabe que a África
não é um país, já pensa que isso está
acontecendo em todo o continente. Os
jornalistas têm que especificar e falar o
nome do país”, diz Peter e mostra que
não foi à toa que escolheu o jornalismo
como ofício.
O QUE NÃO SE VÊ NO AMANHÃ
Há outro incômodo na vida de Peter
desde que chegou ao Brasil: o preconceito racial. Algo que até então era
desconhecido para ele, tornou-se mais
próximo desde que aqui se instalou.
“Ninguém chegou a me falar. Mas
você olha a atitude da pessoa, o jeito
que ela te trata como se você fosse
inferior e isso desanima. Com certeza
meus filhos serão negros e, por isso,
eu fico pensando que se eu ficar aqui
eles vão passar por esta situação. Se
eu já estou sentindo isso, imagina meu
filho chegando em casa e me contando
uma coisa dessas... Então você pensa:
“Não sei se vou ficar. Tenho que ir para
o meu país, porque é um lugar onde
ninguém nunca pensou isso de mim”,
reflete o congolês.
Reticente e em dúvida quanto ao futuro,
principalmente pelo que o presente tem
lhe proporcionado, Peter Abram, em
breve formado, ainda não sabe o que
fará após a conclusão da graduação. Se
não for possível alçar novos voos fora
daqui, o estudante já tem um segundo
plano, como fazer pós-graduação ou
mestrado.
45
Assim, o tranquilo jovem de 28 anos
procura não se preocupar muito em
como e onde estará no futuro. Prefere
viver o agora como pode: estudando,
trabalhando, se divertindo e cantando
Zezé di Camargo e Luciano para matar
a saudade da mãe e dos irmãos. O futuro
ele deixa para se preocupar amanhã!
46
47
48
49
Ingo Cambolo
28 anos
País: Angola
Curso: Medicina
A MUITAS
PEDALADAS DE
CASA
por Lígia Oliveira
50
Era inverno, mas aquela sexta-feira de
manhã devia fazer uns 34 graus. Para
piorar, o número 591 da principal rua do
Bairro Ouro Preto parecia só existir na
imaginação do meu entrevistado. Depois
de muitas trocas de mensagens e auxílio
do GPS, finalmente encontro a entrada do
prédio, que parecia estar se escondendo
de mim em meio a tantos outros edifícios.
Antes mesmo de chegar, já havia sido avisada: “ Nem adianta tocar a campainha,
ela nunca funcionou.” Então, não hesitei.
Peguei o telefone e liguei para Ingo.
Livre do calor e do Sol, pergunto se eu
havia acordado o estudante de medicina,
que estava aproveitando a greve dos servidores da UFMG para descansar da sua
rotina intensa de estudos. “Costumo acordar muito cedo. Às 6 horas geralmente já
estou de pé”, assegura. Pois é, não temos
isso em comum. Com sono e cambaleante subo várias escadas para, finalmente,
chegar à casa do intercambista.
Ao entrar no apartamento, a primeira coisa com a qual me deparo é uma bicicleta
no meio da sala. O local era espaçoso com
traços de casa antiga. Não havia muitos
móveis. Ou foi apenas uma impressão? A
sala combinada com a cozinha era muito
grande. Dentro do espaço, meio vazio e
muito escuro, o que mais chamava atenção era aquela bicicleta verde. Havia bandeiras em todos os lugares, espalhadas
pela parede, embaixo da televisão, em
“Um dia eu estava
no ônibus e uma
pessoa se dispôs a
segurar minha bolsa
para mim. Fiquei
muito impressionado,
porque isso não
acontece no meu
país.”
cima do sofá. Quando resolvo comentar
sobre elas, Ingo alerta que“essas bandeiras não são da Angola”. É sempre muito
bom começar a entrevista com uma gafe
geográfica.
Com 28 anos, o angolano mostrou-se
muito educado. Os seus traços eram fortes e a pele negra brilhava naquele lugar.
O olhar era cativante e firme.
Há dois anos, o intercambista viu que seu
lugar não era mais em Angola e decidiu se
inscrever para uma bolsa de estudos fora
do país. Movido à base de muita curiosidade pela busca de novos conhecimentos,
seu esforço foi recompensado. Ele foi
selecionado para morar na capital mineira. “Eu não conhecia Minas Gerais. Lá
na Angola a gente sabe muito do Brasil,
mas é apenas do Rio de Janeiro ou São Paulo.
Nunca tinha ouvido falar de Belo Horizonte”,
comenta.
E foi aqui que ele desembarcou. Belo Horizonte é famosa pelos bares e montanhas, mas
o que chamou a atenção do angolano foi a
educação dos mineiros. “Um dia eu estava no
ônibus e uma pessoa se dispôs a segurar minha bolsa. No começo eu fiquei desconfiado,
pois não estou acostumado, mas, depois, dei
minha mochila para ela que segurou até o fim
da minha viagem. Fiquei muito impressionado, porque isso não acontece no meu país. Os
mineiros são pessoas muito educadas”, afirma.
O carinho e o acolhimento dos belorizontinos
foi o ponto mais elogiado por Ingo. Porém, essas características não podem ser confundidas
com a amizade com os africanos. Assim que
fala de sua terra natal, pude perceber, apesar
dafirmeza e do encantamento com as terras
Tupiniquins, muita saudade de casa. “Eu tenho
saudade do meu país. Lá eu tenho meus grandes amigos. Amizade lá tem muito valor. Aqui,
é cada um por si. Lá, não. Lá tem mais calor
humano. A gente se reúne na casa dos amigos
todas as semanas. Compartilha tudo. Aqui eu
consigo fazer amizade com brasileiros, mas é
mais difícil interagir com as pessoas”, diz.
O sentimento de nacionalismo está presente
em todos os africanos, e em Angola não é diferente. Lá, o patriotismo é exaltado pela cultura
e política do país. Eles acreditam que o amor à
terra natal é um dos únicos bens que acompanham a pessoa aonde quer que ela vá. “Se vai
para outro país, você carrega a sua cultura, sua
nação”, explica Ingo, que acaba dando uma
dica aos brasileiros: “Acho que você tem que
ter orgulho de ser brasileiro. Tente melhorar o
Brasil para que outras pessoas também tenham
o interesse de vir para cá e conhecer essa terra.
Se eu pudesse trazer da África alguma coisa,
seria o sentimento de nacionalismo.”
A desinformação também é um ponto muito
criticado pelo angolano. O rapaz, que nasceu
e foi criado na área urbana de Angola, se incomoda muito quando perguntado sobre leões
e elefantes, animais que ele nunca tinha visto
antes de chegar ao Brasil: “Eu não entendo
quando as pessoas perguntam para mim sobre
zebras ou girafas. Eu nunca fui à selva.Na selva
de alguns países da África tem esses animais,
mas eu nunca vi. Eu fui ver leão aqui no zoológico de Belo Horizonte. Antes, eu nunca tinha
visto. Aqui tem muita desinformação sobre a
África. As pessoas acham que andamos nas
ruas montados em leões dando comida para
elefantes.”
Quando pergunto se ele pensa em voltar,
Ingo afirma que precisasse formar primeiro.“Eu vim para cá para aprender, mas, principalmente, para levar conhecimento para o
meu país. Lá estão a minha família e os meus
amigos. Sinto muita falta. Gosto daqui, mas
meu lar é lá na Angola”, ressalta.
Depois de uma hora e meia de entrevista, entendo, finalmente, o porquê daquela bicicleta
estar no meio da sala. Ali está a vontade de
movimento, de conhecer o novo, de explorar
culturas. No entanto, quando a saudade aperta é hora de voltar correndo, pedalando para
o verdadeiro aconchego do lar.
51
SOMOS MAIS
AFRICANOS DO QUE
PENSAMOS
As relações históricas e culturais que unem
Brasil e África
por Osmar Macedo
52
Cores, sabores, ritmos, dores, sonhos,
encontros e desencontros. Não é por acaso que Brasil e África têm tanta semelhança. Nossos laços são mais estreitos
do que se parecem.
Ao observarmos o mapa mundi, logo
percebemos algumas características em
comum no traçado da costa oeste africana
e do litoral brasileiro. O Brasil e a África
já estiveram unidos, literalmente. Há
200 milhões de anos, todos os continentes formavam um único bloco, chamado
de Pangeia. Mas foram se separando e
constituindo os cinco continentes do
planeta Terra.
Essa união também é evidenciada pelas
características em comum entre os dois
territórios. Mesmo que tenhamos um
oceano entre nós, vários aspectos natu-
rais, culturais e históricos nos aproximam ainda mais. Imensas florestas são
marca desses lugares, ocupando a mesma linha dos trópicos, como a Amazônia brasileira e a Floresta Equatorial do
Congo, e também o nosso Cerrado, conhecido como Savana brasileira. Mas
não para por aí. O Brasil, assim como
a África, foi colonizado por europeus,
que extraíram, ao máximo, as matérias-primas de nossos territórios para
fortalecerem seus impérios e nações.
Durante o período da colonização, e
depois dele, o Atlântico, enfim, tornouse o caminho que nos religou, porém
de maneira dolorosa. Na primeira
metade do século XVI, o tráfico de
africanos para serem escravizados
no Brasil marcou profundamente as
nossas histórias. Mais de 4,5 milhões de
nativos daquele continente foram trazidos, compulsoriamente, para cá, sendo
empregados em atividades relacionadas
aos ciclos econômicos da cana-de-açúcar (séculos XVI e XVII); da mineração
(final do século XVII e século XVIII);
e do café (séculos XVIII e XIX). De
Moçambique, Nigéria, Congo, Angola
e Daomé (antigo Estado africano onde
hoje é o Benin) partiram a maioria dos
africanos que se tornaram força de trabalho no Novo Mundo. Todos eles têm
papel fundamental na construção da
identidade brasileira.
Desta maneira, é perceptível a influência
africana na cultura e características do
povo brasileiro. Os traços que herdamos
deles ao longo dos quase quatrocentos
anos de escravidão, influenciaram a
nossa formação cultural. Não é à toa que
nos consideram um povo com ginga e
samba no pé. A população vinda daquele
continente firmou raízes aqui. Não há o
que negar. Somos mais africanos do que
pensamos!
“Toda a cultura
brasileira está
impregnada da
herança africana.
Sua presença fez
quase tudo o que
aqui se fez.”
(Darcy Ribeiro)
De acordo com a Pesquisa Nacional por
Amostra de Domicílios (Pnad) de 2013,
53% dos brasileiros se declaram pretos
ou pardos. Essa predominância é evidenciada na maneira como elementos afros
compõem o nosso dia a dia. Alimentos,
temperos, sabores, danças, crenças e palavras, tudo isso faz parte de um universo
cultural que é comum no Brasil.
Como exemplo, o samba, que tem suas
origens no batuque proveniente de
Angola, é inspirado nos momentos em
que os africanos escravizados reuniamse em rodas para cantar e dançar após
os longos dias de trabalho. Tocando
instrumentos de percussão e batendo
palmas, eles procuravam amenizar o
sofrimento que encontraram neste lado
do Atlântico. Outras danças como o
jongo e o maracatu também são marcas
desta herança.
Quando falamos de formação de uma
cultura afro-brasileira, não podemos
deixar de lado os cultos religiosos. O
culto aos orixás era proibido no período da escravidão. Desta maneira, os
escravos começaram a cultuar a santos
católicos, relacionando-os aos seus
orixás e estabelecendo um sincretismo
religioso, o que deu origem ao Candomblé.
A culinária, logicamente, também foi
influenciada. Pratos com temperos
típicos da África foram se constituindo. Caruru, vatapá e acarajé são os
mais emblemáticos e apimentados.
Por aqui, chuchu, inhame, quiabo e
pimenta tornaram-se rotineiros nos
caldeirões e panelas. Os ingredientes
foram temperando a vida dos escravos
e dos brasileiros.
O ritmo que foi dado a essa nova realidade favoreceu expressões musicais
como o maracatu, o carimbó, o maxixe, o coco e o samba, inspirados nos
instrumentos africanos como agogô,
atabaque, tambor, afoxé, alfaia e berimbau.
E quem nunca admirou as esculturas
do mestre Aleijadinho, os livros de
Machado de Assis e as artes de Grande
Otelo? Todos afrodescendentes! Mas
no Brasil ainda precisamos nos aceitar
como tal e combater o que a nossa própria cultura, infelizmente, carrega em
si negativamente. O preconceito racial
e social em relação às pessoas negras é
muito grande em nosso país. Apesar de
terem contribuído para a nossa forma-
53
ção, são subjugadas por parte da sociedade. Sendo assim, precisamos admitir
que o Brasil é uma nação heterogênea,
assim como o continente africano.
Apesar dessa triste realidade, notamos,
nos últimos anos, uma aproximação da
nossa nação com países africanos, seja
nas relações econômicas, culturais ou
de ensino. Os programas de incentivo a
esses intercâmbios estão, cada vez mais,
unindo os dois continentes. O restabelecimento dos vínculos históricos é o
melhor caminho para isso, pois temos
muito mais características em comum do
que até então pensávamos.
O Brasil é parte da África, pois ela é o
berço da humanidade. Somos filhos daquela terra e, por isso, o sentimento que
em nós deve ser despertado e cultivado é
o de orgulho.
REFERÊNCIAS
BIBLIOGRÁFICAS:
54
FREYRE, Gilberto. Casa Grande e
Senzala. 48ª Ed. São Paulo: Global Editora, 2006.
HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes
do Brasil. São Paulo: Companhia das
Letras, 1995.
PESQUISA
NACIONAL
POR
AMOSTRA DE DOMICÍLIOS 2013.
Disponível em: <http://www.ibge.gov.
br/home/estatistica/populacao/trabalhoerendimento/pnad2013/>. Acesso em
15 nov. 15.
RIBEIRO, Darcy. O Povo Brasileiro: a
formação e o sentido do Brasil. 3ª Ed.
São Paulo: Global Editora, 2015.
VESENTINI, José Willian. Sociedade e
Espaço – Geografia Geral e do Brasil.
São Paulo: Editora Ática, 2005.
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COLUNA
DRAMAS DE UM
MUNDO
GLOBALIZADO
Imigrações e refugiados
por Ariane Gervásio e Carlos Frederico Pereira da Silva Gama
56
O grande drama de 2015 nas relações internacionais foi a chegada de milhares de
pessoas à Europa. Assistimos sua fuga da
guerra civil na Síria: crianças e adultos
jogados ao mar e em seguida, andando
milhares de quilômetros. Encontraram,
quase sempre, portas fechadas e desconfiança. Para muitos – como o menino
curdo Aylan Kurdi e familiares – seria a
última viagem.
Nas últimas semanas, mais de 200 mil
pessoas chegaram à Europa. Os que já
tinham chegado anteriormente (aproximadamente um milhão) eram jogados de
uma parte para outra do continente europeu, teoricamente integrado, “sem fronteiras”. Rejeitados na Hungria, passaram
pela Eslovênia e Áustria, a caminho da
Alemanha – que recebeu 700 mil pessoas
em 2015. A sequência de campos humanitários, cercas de arame farpado, muros
de pedra e vagões fechados impressiona.
Esses espaços murados são necessários
para separar “indesejáveis” da população local? Nem sempre foi assim.
Na Idade Média, o poder dos reis e
rainhas na Europa era associado com
propriedades mágicas. Governantes
seriam eleitos pelo Deus cristão para
governar uma determinada população.
Se dizia que os reis possuíam dois
corpos: o corpo humano e um corpo
místico, reunindo todos os súditos. A
soberania – poder superior a todos os
outros – derivava das escrituras cristãs.
O Deus cristão era soberano. Representantes divinos, monarcas teriam
poder sobre os corpos dos súditos.
Leviatã (Thomas Hobbes, 1642): o
corpo do soberano é formado pelos súditos;o soberano tem em mãos símbolos
de força e autoridade.
Na Era Moderna, a partir de suas fortalezas muradas, os reis e rainhas ampliaram
seus domínios, conquistando novas
terras pela força armada. A Europa invadiu e ocupou outros continentes: terras
“descobertas” que já eram habitadas há
milênios. Cismas e disputas religiosas
enfraqueceram a crença num direito
divino dos monarcas baseado no Cristianismo.
Uma nova imagem passou a informar a
imaginação internacional: famílias reais
governavam porções da superfície terrestre, delimitadas por acidentes geográficos. O poder sobre os corpos de súditos
se transformou no governo, pela força
(“terrere” em Latim – aterrorizar), de
uma terra fértil (“terratorum”, também
em Latim – terra delimitada para o cultivo). A soberania se tornava murada (das
palavras latinas “moerus” – fixar, construir fortificações e cercas, e “munire”
– proteger). Muros passaram a separar as
soberanias na Europa e foram exportados para “novos” mundos colonizados.
As pessoas deviam obediência a quem
controlava a terra onde elas viviam.
Se havia discordância entre súditos e
governantes, a “solução” da época era
expulsar os descontentes para outra
parte da Europa, ou para as colônias
(puritanos ingleses foram expulsos
da Europa e “criaram” 13 colônias na
América do Norte, que mais tarde se
transformariam nos Estados Unidos da
América). Havia uma clara separação
entre pessoas “da terra” e forasteiros.
A Europa viveu grandes deslocamentos de populações entre Cruzadas e
guerras religiosas. Essas pessoas eram
migrantes forçados, obrigados a deixar
sua terra por motivos políticos.
A partir do século XVIII na Europa, as
pessoas lutaram por direitos, questionando a autoridade e o poder dos reis,
via lutas e revoluções. A soberania
passaria por novas transformações.
Seria um contrato entre pessoas livres,
ou o próprio povo seria soberano. Em
ambos os casos, os governantes seriam
representantes escolhidos pelo povo,
não por deuses. Governantes deviam
lealdade à população local e tinham
como principal tarefa protegê-la de
invasores.
A ideia do muro é a defesa física. Mas
a defesa física gera defesas psicológica...Que é onde se corre o risco do
isolamento e julgamento. O que se
desconhece, é mais seguro ficar fora.
Os muros que simbolizavam o poder
dos reis se transformaram na proteção
de populações livres.
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Nesse momento podemos falar de refugiados e imigrantes. Pessoas que sofressem perseguição política já não eram
protegidas por seu estado: poderiam se
refugiar em outra parte da Europa. Por
livre vontade, pessoas poderiam sair de
casa e ir habitar em outras partes do continente, se houvesse condições para tal
(seriam imigrantes) ou para as colônias
(colonos).
Essas pessoas seriam livres para sair, mas
teriam que ser acolhidas em outro lugar.
Teriam que se compatibilizar com novos
lares, correndo o risco de isolamento e
ser tratados como ameaças.
Novas concepções de soberania murada
foram exportadas para todo o mundo via
direito internacional (“direito das gentes”) e pelas lutas por descolonizações
na América, África e Ásia.
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Desde 2012, 8 milhões de pessoas foram
tiradas de suas casas e obrigadas a buscar segurança em outro lugar, na guerra
civil na Síria. A participação armada de
outros estados (Rússia, Irã, Estados Unidos, Turquia, Arábia Saudita) no conflito
torna mais difícil a vida dos deslocados.
A maior parte das pessoas buscou abrigo
nos países vizinhos (como o Líbano, que
tem atualmente ¼ de sua população formado por refugiados). Países distantes
se disseram abertos a receber refugiados
do conflito – casos da Alemanha (700
mil), Austrália (12 mil), EUA (10 mil),
Canadá (10 mil), Reino Unido (20 mil),
França (24 mil) e Brasil (8 mil) .
Ao mesmo tempo, movimentos xenófobos (de ódio a imigrantes) se espalham
por toda a Europa. Alguns governos são
especialmente influenciados pelo discurso de ódio: caso da Hungria, que declarou serem indesejáveis os refugiados e
ergueu muros improvisados nas fronteiras do país com os estados balcânicos.
Com a intensificação dos combates na
Síria (incluindo bombardeios de Rússia
e EUA) países europeus fecharam temporariamente suas fronteiras. A Europa
se murava.
A dimensão psicológica dos muros
aparece na linguagem utilizada pelos
estados. Para não se comprometer a
assistir imediatamente as milhares de
pessoas em fuga, o governo francês
fala em “imigrantes” (refugiados teriam simplesmente “decidido” ir para a
Europa). Até mesmo estados distantes
utilizaram a linguagem estrategicamente para filtrar “pessoas desejáveis”.
Dilma Rousseff disse que o Brasil está
de braços abertos para receber pessoas
que queiram vir trabalhar no Brasil.
Aylan e outras milhares de pessoas
estariam excluídas, por esse critério .
O número de pessoas acolhidas é
pequeno em relação ao número de
pessoas em fuga. O discurso de acolher
refugiados, muitas vezes, funciona
como um filtro que estados utilizam
para conseguir mão-de-obra especializada a custo baixo ou promover suas
próprias imagens no exterior. Esse discurso mobiliza barreiras psicológicas
para proteger os cidadãos de possíveis
ameaças/pessoas “indesejáveis” – reforçando noções modernas de soberania e espaço.
No dia-a-dia moderno, nossas formas
de convivência são espacializadas
desse jeito: erguendo muros, territorializamos nossa imaginação. Muros
simbólicos e de concreto impedem
que vejamos a situação de outras pessoas. Dificultam sentirmos suas dores
e simpatizar com suas dificuldades.
Imagens são poderosas: o que vemos e
o que não vemos molda nossa visão de
mundo. Crises de refugiados não são
apenas um problema de integração de
estados.
Aprendemos que muros são ruins.
Arames farpados, cercas e paredes são
visíveis e constrangedores. Barreiras
psicológicas são mais sutis. A invisibilidade dos muros simbólicos torna
precária a vida de milhões de seres
humanos expulsos de seus lares, julgados e temidos em outros lugares. Num
mundo globalizado, insistimos em
construir muros que derrubaríamos, se
estivéssemos do lado de lá.

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