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1 Anais - 2014 V SITRE - ISSN 1980 - 685X SUMARIO GT – 13 TRABALHO FEMININO E EMPODERAMENTO DA MULHER: PERCEPÇÕES DE USUÁRIAS O PROGRAMA BOLSA FAMÍLIA __________________________________ 2 NADÚ, Amanda C. A _______________________________________________________ 2 SIMÃO, Andréa Branco _____________________________________________________ 2 TORRES, Laiene Joyce P ____________________________________________________ 2 O TRABALHO EMOCIONAL EM SERVIÇO SOCIAL __________________________ 23 BOLZAN, Débora de Paula _________________________________________________ 23 NUNES, Jordão Horta _____________________________________________________ 23 “ANTIGAMENTE TODO MUNDO TRABALHAVA...” MUDANÇAS SOCIAIS E TRAJETÓRIAS DE GÊNERO NA COMUNIDADE LINHA DA CRUZ, MG._________ 44 SOUZA, Gabrielly Merlo de _________________________________________________ 44 APRESENTAÇÃO EM POSTER _____________________________________________ 62 AS IDAS E NÃO VINDAS DOS ALUNOS DO PROEJA NA ÓTICA FEMININA _____ 62 SCOPEL, Edna Graça ______________________________________________________ 62 FERREIRA, Maria José de Resende __________________________________________ 62 ROSA, Silvia Nepomuceno __________________________________________________ 63 TRANSFORMAÇÕES NO MUNDO DO TRABALHO: OS IMPACTOS ECONOMICOS, POLÍTICOS E SOCIAIS DA REGULAMENTAÇÃO DO TRABALHO DOMÉSTICO NO BRASIL _________________________________________________________________ 76 FURNO, Juliane __________________________________________________________ 77 LEONE, Eugenia__________________________________________________________ 77 PARTICIPAÇÃO DAS MULHERES NO MERCADO DE TRABALHO. _____________ 88 PONCIANO, Roberta Rodrigues _____________________________________________ 88 2 Anais - 2014 V SITRE - ISSN 1980 - 685X TRABALHO FEMININO E EMPODERAMENTO DA MULHER: PERCEPÇÕES DE USUÁRIAS O PROGRAMA BOLSA FAMÍLIA NADÚ, Amanda C. A - [email protected] Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais – Serviço Social Rua Rio Comprido, 4580- Cinco CEP 32010025- Contagem – Minas Gerais. SIMÃO, Andréa Branco - [email protected] TORRES, Laiene Joyce P. - [email protected] RESUMO: Este estudo aborda, no âmbito do Programa Bolsa Família, a questão do trabalho feminino, dando ênfase ao empoderamento da mulher. Discute, de maneira mais específica, aspectos relacionados à inserção da mulher no mercado de trabalho, evidenciando a percepção de beneficiárias do programa sobre dificuldades e possibilidades para sua inserção no mercado de trabalho e apontando algumas questões sobre o empoderamento feminino. As discussões são baseadas em entrevistas semi-estruturadas realizadas no município de Contagem/MG com doze beneficiárias do programa. Os resultados parciais encontrados demonstram que as entrevistadas acreditam que o trabalho é um aspecto fundamental para o empoderamento feminino. Além disso, as entrevistadas acreditam que o trabalho possibilita que sejam mais valorizadas e amplia as chances para que estabeleçam relações sociais que ultrapassem os limites da família. Dessa forma, para elas, o trabalho não é significativo apenas no âmbito econômico, mas relevante também na esfera social. Contudo, percebem sua inserção no mercado de trabalho como sendo permeada por vários obstáculos, dentre os quais estão a baixa escolaridade, as dificuldades para encontrar quem cuide dos filhos e os vários papéis que precisam desempenhar dentro do lar. Palavra –chave: Trabalho feminino, Empoderamento da mulher, Bolsa família 3 Anais - 2014 V SITRE - ISSN 1980 - 685X 1 INTRODUÇÃO O objetivo central deste estudo é analisar como beneficiárias do Programa Bolsa Família percebem uma relação entre inserção no mercado de trabalho e empoderamento feminino. Em particular, este trabalho pretende contextualizar a inserção feminina no mercado de trabalho e evidenciar a percepção de mulheres beneficiárias do Programa Bolsa Família sobre dificuldades e possibilidades para sua inserção neste contexto e como relacionam a questão do trabalho com o empoderamento feminino. Neste sentido, este estudo apresenta, em primeiro lugar, uma breve contextualização sobre a inserção feminina no mercado de trabalho. Em seguida descreve, de maneira sucinta, o Programa Bolsa Família, dando ênfase às condicionalidades impostas pelo programa. Posteriormente, trata da relação entre empoderamento feminino e trabalho, enfocando questões acerca das relações de gênero. Logo após, são apresentados argumentos e análises de resultados do estudo realizado junto a beneficiárias do Programa Bolsa Família no município de Contagem, Minas Gerais. Para finalizar, à luz da discussão teórica e dos resultados empíricos apresentados, são feitas algumas considerações finais acerca dos conflitos existentes entre o desejo de inserção no mercado de trabalho e empoderamento feminino. 2 2.1 BASES TEÓRICAS Inserção feminina no mercado de trabalho Historicamente, o homem foi instituído como o provedor do lar, cabendo à mulher o papel de cuidadora, de mãe e de esposa. A inserção da mulher no mercado aconteceu de 4 Anais - 2014 V SITRE - ISSN 1980 - 685X forma lenta e gradual, e ainda pode ser considerada como um processo em construção. As constantes transformações sociais e econômicas ocorridas na humanidade contribuíram, e ainda contribuem, na sustentação desse processo. De acordo com Probst (2003), desde o início do século XVII, quando o movimento feminista passou a adquirir características de ação política, as mulheres vêm buscando a igualdade com os homens. O século XIX, com suas inúmeras mudanças, em especial a consolidação do sistema capitalista, significou uma possibilidade para que boa parte da mãode-obra feminina fosse transferida para as fábricas. A literatura também mostra, segundo Probst (2003), que as duas grandes Guerras Mundiais contribuíram para que a mulher passasse não só a assumir os negócios da família, mas também muitas das posições que eram destinadas aos homens no mercado de trabalho, já que os mesmos eram convocados a estar à frente das batalhas. Aos poucos, mulheres de vários países foram conquistando mais espaço e prestígio no mercado de trabalho. No Brasil, essa ascensão ocorreu mais expressivamente a partir da segundo metade do século XX, sobretudo a partir da década de 1970, auge do movimento feminista. Alves e Corrêa (2009) destacam que, neste período, houve um aumento da participação feminina no mercado de trabalho, cuja abertura para as mulheres é explicada pelo processo de urbanização e de crescimento do setor terciário da economia, que abriu as portas para a inserção produtiva das mulheres. As mulheres, por sua vez, passaram oferecer cada vez mais seu trabalho devido à redução da fecundidade, a mudanças na dinâmica conjugal e familiar e a elevação dos níveis médios de escolaridade que, segundo Abramo (2001), já são superiores aos dos homens. Diante disso, Probst (2003) sinaliza que a mulher deixou de ser vista somente como parte da família, mas ela também passou a ser considerada como mentora desta importante instituição. Discorrendo mais especificamente sobre a inserção da mulher no mercado de trabalho, Bruschini (2008) argumenta que, embora vários fatores tenham influenciado a entrada das mulheres no mercado de trabalho, tal inserção, está estritamente ligada às necessidades e às possibilidades que as mulheres têm de trabalhar fora de casa, ou seja, depende tanto de fatores econômicos quanto da posição que a mesma ocupa na unidade familiar. Além disso, a disponibilidade dos indivíduos do sexo feminino para o trabalho também depende de uma 5 Anais - 2014 V SITRE - ISSN 1980 - 685X complexa combinação de características pessoais, dentre as quais podem ser citadas a idade e a escolaridade, além de outras relacionadas à família, tais como o estado civil e a presença de filhos. Adicionalmente, o ciclo de vida e a estrutura familiar também são características que influenciam a possibilidade de inserção feminina no mercado de trabalho (BRUSCHINI, 2008, p.182). Para Santos e Oliveira (2010), a partir das condições objetivas e subjetivas dos papéis que ocupam socialmente e do modo desigual como são construídas as relações, as mulheres não possuem acesso igualitário ao trabalho, aos salários e aos bens de maneira geral. Sarti (2011) ao escrever sobre o trabalho remunerado da mulher ressalta que, por mais secundário que seja seu lugar na família, ela freqüentemente trabalha, ainda, que intermitentemente, dividindo com os filhos as entradas e as saídas do mercado de trabalho, de acordo com as necessidades e possibilidades da família. Ao descrever mais especificamente sobre a inserção da mulher pobre no mercado de trabalho, a autora pontua que a mulher pobre sempre trabalhou, pois o trabalho feminino inscreve-se na lógica de obrigações familiares e é motivado por ela, não necessariamente rompendo seus preceitos e não obrigatoriamente se configurando como um meio de afirmação individual para a mulher. O trabalho da mulher pobre não constitui uma situação nova que forçosamente abale os fundamentos patriarcais da família pobre, porque não desestrutura o lugar da autoridade do homem, que pode se manter sendo, inclusive, transferido para outros homens da rede familiar (SARTI, 2011, p.99). É inegável a entrada da mulher no mercado de trabalho. A posição da mesma apenas como cuidadora e mãe tem sido “desnaturalizada”. Sorj e colaboradores (2007) defendem que o modelo “tradicional”, de homem provedor e mulher dedicada aos cuidados da família, vem sendo substituído por um modelo no qual homens e mulheres se inserem no mercado de trabalho, mas os cuidados com a família permanecem, em grande medida, uma tarefa realizada apenas pelas mulheres. Para Rocha Coutinho, (2004), o que fica evidenciado é que “a mulher de hoje apenas multiplicou funções, mas ainda não dividiu as responsabilidades”. Ao fazer considerações sobre as obras de Calderia (1984); Telles (1992); entre outros, Sarti (2011) nos diz que o trabalho da mulher está subsumido no desempenho de papel de mãe/esposa/dona de casa: seja por meio período, seja em casa, seja não afastando a mãe das 6 Anais - 2014 V SITRE - ISSN 1980 - 685X crianças, ou seja, reiterando a associação entre trabalho feminino e desordem familiar. Para a autora, o significado do trabalho remunerado para a mulher pobre é medido pelo seu papel de mãe e dona-de-casa, o qual deve estar voltado para suprir o que ela sabe o que está faltando, por coisas pelas quais o homem não vai esquentar a cabeça (destaque da autora). Sobre esse aspecto, a inserção da mulher no mercado de trabalho pode ser compreendida como um desafio, dado que, na maioria das vezes, ela soma a sua participação no mercado de trabalho às tarefas domésticas e às obrigações de mãe e esposa. 2.2 Programa Bolsa Família Criado em 2003, tendo como proposta fundamental o combate à fome e a pobreza, o Programa Bolsa Família (PBF) organizou e unificou os programas de transferências de renda preexistentes no Brasil. Entre os objetivos que orientam o programa, destacam-se o combate às desigualdades por meio de transferência de um benefício financeiro associado à garantia do acesso aos direitos sociais básicos (saúde, educação, assistência social e segurança alimentar). Têm ainda por objetivo, a inclusão social, contribuindo para a emancipação das famílias das beneficiárias, construindo meios e condições para que elas possam sair da situação de vulnerabilidade que se encontram (Brasil/MDS, 2006 apud Silva e Lima 2010, p.37). O PBF se caracteriza como um Programa de Transferência de Renda Condicionada (PTRC), na área da educação e saúde, no qual os benefícios são concedidos a partir da renda familiar per capita e de duas definições de pobreza: pobreza extrema e pobreza. Para Cotta e Paiva (2010) as condicionalidades postas pelo Programa Bolsa Família constituem um sistema de indução que busca afetar o comportamento dos membros adultos das famílias vulneráveis, por meio da associação de um prêmio financeiro a decisões consideradas socialmente ótimas, como o investimento na saúde e educação das próximas gerações. Curralero e colaboradores (2010) afirmam que no âmbito dos Programas de Transferência de Renda Condicionada (PTRC), as condicionalidades vislumbram um objetivo de longo prazo, o qual está voltado para a ruptura do ciclo intergeracional da pobreza, por meio da elevação do capital humano das populações mais pobres e excluídas. Os serviços de educação e saúde, apesar de serem direitos universais garantidos pela Constituição de 1988, ainda não estão 7 Anais - 2014 V SITRE - ISSN 1980 - 685X disponíveis a todos os brasileiros, em particular os de baixa renda. Por isso, o monitoramento das condicionalidades deve ser visto com um sistema de “vigilância” da prestação desses serviços às famílias do Programa Bolsa Família, como forma de assegurar que os direitos de cidadania sejam garantidos. O fato das famílias acessarem um dado conjunto de serviços em saúde e educação é considerado tão ou mais importante do que o recebimento de repasses financeiros, uma vez que, segundo a lógica desse tipo de intervenção tal acesso propicia a mobilidade social futura das famílias atendidas (COTTA e PAIVA, 2010, p.67). Entretanto, Soares e Sátyro (2010) enfatizam que há, atualmente, uma vertente que pontua o fato do Bolsa Família ser, antes de tudo, um programa de proteção social e, ao colocar contrapartidas excessivas, essa função de proteção social enfraquece, na medida em que serão provavelmente as famílias mais vulneráveis as que não conseguirão cumprir as exigências mais rigorosas. Cotta e Paiva (2010) consideram em seu artigo diversos tipos de criticas às condicionalidades, que segundo eles, além de inócuas, não seriam efetivamente monitoradas, nem teriam impacto nos serviços de educação e saúde. Os autores também apresentam uma crítica dos Direitos Humanos no que tange as condicionalidades. Sob essa perspectiva, segundo eles, vincular o direito à renda e à alimentação adequada ao cumprimento de qualquer tipo de imposição é condenável por princípio. Um ponto importante e que gera polêmicas, nas discussões relativas ao Programa Bolsa Família, refere-se a um possível desincentivo ao trabalho, decorrente do recebimento do benefício monetário. Souza e Caetano (2012), ao apropriar-se da ideia de Tavares (2010) recorrem à crítica feita ao Programa Bolsa Família no que diz respeito ao potencial desestímulo ao trabalho adulto causado pelo recebimento do benefício. Na opinião dos autores tal crítica baseia-se em três hipóteses: a primeira refere-se à existência de um efeito renda do PBF, de tal modo que a transferência auferida reduziria a necessidade econômica do trabalho, uma segunda possibilidade está relacionada ao fato cujo intuito era que a renda familiar permaneça elegível ao PBF, os beneficiários podem preferir ofertar menos trabalho e, por fim, os beneficiários podem ser forçados a reduzir sua jornada de trabalho para atender as condicionalidades do programa. A avaliação de Impacto do Programa Bolsa Família realizada pelo CEDEPLAR (2007) não confirma a hipótese de desincentivo ao trabalho do PBF. Pelo contrário, os resultados encontrados sugerem a existência de incentivo ao trabalho, sendo a 8 Anais - 2014 V SITRE - ISSN 1980 - 685X participação dos beneficiários no mercado de trabalho mais elevada do que aquela dos não beneficiários, especialmente quando se tratava das mulheres (SOUZA e CAETANO 2012, p. 4). Para Souza e Caetano (2012) evidências que sugerem o desincentivo ao trabalho, devido ao recebimento do benefício monetário concedido pelo Programa Bolsa Família, podem estar relacionadas ao comprimento das condicionalidades. De acordo com os autores, o tempo dedicado pela mulher aos afazeres domésticos pode aumentar em função do aumento da renda familiar advinda do recebimento do benefício do PBF e, neste cenário, o tempo disponível para a oferta de trabalho remunerado pode ser reduzido. Para contextualizar esse raciocínio Souza e Caetano (2012) recorrem a Tavares (2010) que embora considere que o PBF apresente um efeito positivo sobre a participação das mães no mercado de trabalho, alega que fica evidente um efeito negativo associado ao valor da transferência, pois quanto maior o beneficio auferido, menor sua jornada de trabalho. Esse resultado sugere a existência de um efeito substituição, seja devido à redução do trabalho infantil, em decorrência da maior disponibilidade do tempo das mães para o mercado de trabalho ou devido ao efeito estigma, associado à participação no programa. 2.3 Empoderamento da mulher e trabalho Para discorrer sobre o empoderamento da mulher é necessário que se amplie a compreensão a respeito de categoria histórica, denominada gênero. De acordo com Araújo (2005), em sua concepção gramatical, a palavra gênero designa indivíduos de sexos diferentes (masculino e feminino) ou coisas sexuadas, mas, na forma como vem sendo usada, nas últimas décadas, pela literatura feminista, a palavra adquiriu outras características: enfatiza a noção de cultura, situa-se na esfera social, diferentemente do conceito de “sexo”, que se situa no plano biológico, e assume um caráter relacional do feminino e masculino. Para Scott (1991) o núcleo essencial da definição de gênero baseia-se na conexão integral entre duas proposições: o gênero é um elemento constitutivo de relações sociais baseado nas diferenças percebidas entre os sexos, e o gênero é uma forma primeira de 9 Anais - 2014 V SITRE - ISSN 1980 - 685X significar as relações de poder. Ao pontuar essas proposições, a historiadora Joan Scott chama atenção para as mudanças que ocorrem na organização das relações sociais e também para a intrínseca relação entre gênero e significação do poder (ARAÚJO, 2005, p.43). Considerando as diferentes concepções de gênero postas em nossa cultura, é possível argumentar que, durante muito tempo, perpetuou-se uma naturalização dos papéis femininos e masculinos. Nesse cenário, o papel da mulher esteve, por vezes, relacionado à submissão. Entretanto, segundo Cortez e Souza (2008) as conquistas e avanços dos movimentos feministas relativos à inserção da mulher em espaços considerados “masculinos”, permitem à mulher, categoria submetida a processos de exclusão pelo grupo dominante masculino, ferramentas para se empoderarem e conseguirem lutar por maior autonomia. Lorio (2002) argumenta que identificar a origem do conceito de empoderamento é uma tarefa que resulta inconclusiva. A origem do conceito é disputada tanto pelos movimentos feministas, como pelo movimento American Blacks que, nos anos 1960, movimentou o cenário político norte-americano exigindo o fim do preconceito e da discriminação que marcavam a vida dos negros nos EUA. No entanto, é na perspectiva das relações de gênero que o conceito de empoderamento se desenvolve, tanto teóricamente como quanto um instrumento de intervenção na realidade. A autora aponta que nos anos de 1970 e 1980, feministas e grupos de mulheres espalhadas pelo mundo, desenvolveram um árduo trabalho de conceitualização e de implementação de estratégias de empoderamento, com o qual buscaram romper com as diferentes dinâmicas que condicionavam a existência e impediam a participação e a cidadania plena das mulheres (LORIO, 2002, p.22). Neste contexto, Rego e Pinzani (2013) argumentam que a estrada da cidadania para as mulheres nunca foi fácil, exatamente porque sempre tiveram que enfrentar várias modalidades de exclusão da vida pública, a qual implicou, em geral, uma maior dificuldade para desenvolvimento e utilização de suas capacidades. De acordo com os autores, afirma-se para as mulheres uma espécie de perpetuação de um círculo vicioso de não direitos, de não cidadania e de não participação igualitária na vida pública (REGO e PINZANI, 2013, p.54). Baseados em Okin (1993), Rego e Pinzani (2013) também pontuam que uma das causas da exclusão da mulher da vida pública reside no fato de que o discurso político dominante 10 Anais - 2014 V SITRE - ISSN 1980 - 685X oculta, em geral, o fato de que a família onde esta mulher está inserida é, além de outras coisas, uma instituição política. Isto faz com que tenha poder para atribuir papéis e funções a seus integrantes, tudo, legitimado pela tradição e pelos costumes os quais, em geral, excluem a mulher da esfera pública (OKIN, 1993, p.48 apud REGO E PINZINI, 2013, p. 54). Conforme Itaboraí (2003) quando falamos em empoderamento feminino, a questão mais evidente é a crescente dedicação das mulheres ao trabalho, o que garantiu sua definitiva inserção na esfera pública. O trabalho feminino tem sido associado como causa ou condição para as mudanças em curso nas relações de gênero, e finalmente, no formato das famílias. Nessa perspectiva Sen (2000) sinaliza que, quando mulheres podem auferir renda fora de casa e o fazem isso tende a melhorar a posição relativa feminina, inclusive em distribuições no âmbito da família. A contribuição da mulher para a prosperidade da família é mais visível quando ela trabalha fora de casa e recebe um salário. Ainda conforme Sen (2000) ela também tem mais voz ativa, pois depende menos dos outros. A condição de agente das mulheres, com ganho do poder é um dos principais mediadores da mudança econômica e social, sua determinação e suas conseqüências relacionam-se estritamente a muitas características centrais do processo de desenvolvimento (SEN, 2000, p. 236). Cabe, destacar, aqui, duas definições de empoderamento, as quais nortearam esse estudo. Na primeira delas empoderamento é considerado como “a expansão nas habilidades das pessoas para fazerem escolhas estratégicas de vida em um contexto em que essa habilidade foi previamente negada” (MALHORTA et al., 2002, p.6). Na segunda definição, empoderamento é apresentado como “... um processo através do qual o agente desempoderado ganha controle sobre as circunstâncias de suas vidas” (PRESSER E SEN, 2000, p.18). Nessa direção, Carloto e Mariano (2012) ao realizarem uma pesquisa sobre empoderamento e trabalho no contexto do Bolsa Família, constataram que para as mulheres, ter autonomia e poder significa também ter mais liberdade, independência, poder viver por conta própria, não depender de ninguém, principalmente do marido. Essas características estão intrinsecamente associadas com o trabalho. Em contrapartida, as autoras relatam que a conciliação entre a esfera dos cuidados intra-familiares e o trabalho remunerado é o grande desafio a ser transposto. 11 Anais - 2014 V SITRE - ISSN 1980 - 685X Nesse sentido, conforme Carloto e Mariano (2012), as condicionalidades do Programa Bolsa Família reforçam a ideia que vem sendo perpetuada ao longo da história, de que a mulher é a principal responsável pelo cuidado da família, e podem assim, estar inviabilizando o empoderamento feminino. 3 ARGUMENTAÇÃO E ANÁLISE Os resultados apresentados neste estudo se fundamentam nos dados qualitativos obtidos a partir da pesquisa “Trabalho feminino e empoderamento da mulher: percepções de usuárias do Programa Bolsa Família”, realizada pela Escola de Serviço Social da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais – Unidade de Contagem. Respeitando os princípios éticos que regem os estudos que envolvem seres humanos, a pesquisa na qual foram coletados estes dados foi devidamente aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. O trabalho de campo, ainda em curso, teve início em novembro de 2013 e se fundamenta na realização de entrevistas semi-estruturadas com doze beneficiárias do PBF no município de Contagem/MG. A entrevista semi-estruturada, escolhida para este estudo, é aquela conduzida com base em uma estrutura solta, a qual consiste em questões abertas que definem a temática a ser explorada, e a partir da qual o entrevistado e o entrevistador podem divergir a fim de prosseguir com uma idéia ou uma resposta em maiores detalhes (BRITTEN, 2005). Uma das principais vantagens desta técnica é que ela permite ao pesquisador obter informações que não são acessíveis através de questionários estruturados. Tais informações ajudam a compreender o comportamento do entrevistado, bem como as representações que este possui acerca de suas experiências de vida (MAYS, 2004). Nesse estudo são evidenciadas, num primeiro momento, algumas considerações sobre as falas relativas à participação no Programa Bolsa Família. Posteriormente, são analisadas algumas falas relativas à importância que as entrevistadas atribuem à escolaridade. Por fim, 12 Anais - 2014 V SITRE - ISSN 1980 - 685X são apresentadas e discutidas algumas falas sobre a percepção das entrevistadas sobre o trabalho e a importância atribuída pelas beneficiárias a essa variável. A análise da avaliação que as entrevistadas fazem do PBF, mostra que atribuem grande importância ao benefício monetário recebido, o qual, segundo elas, por ser um valor fixo e certo, possibilita certo grau de segurança e ajuda nas despesas que precisam realizar com gastos da casa. As falas a seguir ilustram tal percepção. Ajuda porque eu recebo sempre no final do mês né, e ele sempre no início do mês, ai ajuda né, compra um gás. É sempre assim pra dentro de casa mesmo. (Beneficiária há 02 anos, casada, 31 anos, dois filhos) Melhorou bastante, porque é um dinheiro que você pode contar pra comprar as coisas e antes cê não tinha e agora cê conta com ele pra comprar fruta pros meninos, leite. (Beneficiária há 03 anos, casada, 33 anos, três filhos) Não é um dinheiro que pode ajudar bastante, mas ajuda um pouquinho entendeu? Eu consigo comprar de tudo pra eles, de tudo básico né. É bom que eu posso contar com aquele dinheiro, faltou alguma coisa eu vou saber que eu vou pegar , que ele tá ali, é um dinheiro certo. Eu não to trabalhando, mas posso contar com aquele dinheiro, mesmo que demora. (Beneficiária há 06 anos, solteira, 24 anos, quantro filhos) As falas das beneficiárias evidenciam a importância atribuída ao benefício monetário oferecido pelo programa. Mesmo que o valor não seja considerado suficiente para suprir todas as necessidades, é apontado como sendo significativo na vida de suas famílias. Para as entrevistadas a garantia do recebimento mensal representa uma segurança. Cabe ainda destacar que o valor recebido através do Programa Bolsa Família é sempre destinado para suprir necessidades domésticas, em geral, compra de alimentação e vestuário para os filhos. É importante frisar que muitas mulheres declararam que o mesmo não aconteceria caso a transferência monetária fosse dirigida aos homens. Na percepção da maioria das entrevistadas, ao contrário do que elas fazem, os homens gastariam o dinheiro com bebida e diversão. Prates e Nogueira (2005), Mariano e Carloto (2009) enfatizam que as mulheres, ao participarem de programas sociais, se tornam sujeitas a obrigações impostas pelo Estado, as quais afetam o tempo e o trabalho feminino. Tais obrigações, segundo as autoras, se expressam no cumprimento de atividades e responsabilidades por mulheres pobres, vinculadas 13 Anais - 2014 V SITRE - ISSN 1980 - 685X ao cuidado de crianças, adolescentes, idosos, doentes e pessoas com deficiências. Ao impor tal participação, argumentam os autores, o Estado está gerando para as mulheres pobres, responsabilidades ou sobrecarga de obrigações relacionadas à reprodução social. Essas considerações vão ao encontro do que se observa nos depoimentos de algumas beneficiárias, as quais declararam que se sentem sobrecarregadas por serem as principais responsáveis por acompanhar o cumprimento das obrigações impostas pelo referido programa. Os extratos de falas apresentados a seguir ilustram este ponto. Eu acho que sim. Às vezes pesa, o homem deveria estar lado a lado com a mulher, principalmente em situação de saúde. Tem que dividir com o homem. (Beneficiária há 02 anos, casada, 31 anos, dois filhos) Então, se ela tiver trabalhando, aí tem que dividir. Se ela pode perder um hora do serviço dela, o pai também tem a obrigação. Mas se ela ta dependendo do marido e do Bolsa Família, ela tem a obrigação de ta cumprindo esse papel. Eu não acho que é uma responsabilidae que sobrecarrega, mas não é uma coisa tranqüila se só a mulher tem que fazer. (Beneficiária há 01 ano, separada, 50 anos, três filhos) Dentro dessa ótica, é relevante refletir sobre os papéis tradicionalmente atribuídos à mulher. Historicamente é a mulher que ocupa o papel de cuidadora, de mãe e de esposa. Centralizar as obrigações do Programa Bolsa Família na mulher, de acordo com Mariano e Carloto (2009) reforça a tradicional associação da mulher com a maternidade e as tarefas pertencentes à clássica esfera reprodutiva, dificultando, dessa maneira, a conquista da cidadania pela mesma. Os resultados obtidos neste estudo, embora não sejam passíveis de generalização, revelam que as mulheres responsáveis por receber o benefício do PBF estão inseridas numa rede de obrigações da qual os homens e outros membros da família não fazem parte. Embora a maioria das beneficiárias demonstre claramente o desejo de que seus companheiros as auxiliem no cumprimento das obrigações no âmbito familiar, isso não ocorre. Uma possível explicação para isso é descrita por Rego e Pinzani (2013). Para os autores, as mulheres pobres, são destituídas de capacitação discursiva e treinadas para funções ligadas à tradição e ao costume, como se fossem prerrogativas da natureza feminina. Ao legitimar o papel da mulher no âmbito privado, a sociedade reforça desigualdade da mulher em relação ao homem. . Assim, centralizar as responsabilidades do acompanhamento e cumprimento das condicionalidades do PBF apenas na mulher pode estar reforçando o modelo de servilismo que permeia a esfera feminina desde seus primórdios. 14 Anais - 2014 V SITRE - ISSN 1980 - 685X A educação, ou a ausência dela é uma variável que permeia o cenário de vulnerabilidade social. O Programa Bolsa Família preconiza, como uma de suas condicionalidades, que crianças e adolescentes devem freqüentar a escola. Dessa forma, busca investir no capital humano e romper, mesmo que a médio ou longo prazo, com o ciclo intergeracional de pobreza. No âmbito deste trabalho é possível verificar, entre as entrevistadas, a existência de um consenso a respeito da relevância da escolaridade na vida dos indivíduos. As falas, apresentadas a seguir, corroboram com os estudos de Bruschini e Lombardini (1996) apud Scorzafave (2001) sobre a escolaridade como um determinante relevante para inserção das mulheres no mercado de trabalho. Nossa, muito importante, porque eu não consigo arrumar um emprego por causa deu ter só, assim emprego pra ganhar mais ou menos, por ter só esse estudo né, se eu tivesse mais com certeza arrumaria um emprego para ganhar um pouquinho melhor, hoje eu não consigo, consigo no mínimo um salário mínimo por causa do estudo. Eu penso que é por causa do estudo né. (Beneficiária há 03 anos, casada, 33 anos, três filhos) Ah é muito importante pra arrumar uma boa profissão né, igual eu sempre trabalhei de empregada doméstica. Minha irmã trabalha e tem um emprego melhor porque ela terminou os estudos dela, e eu sempre em casa de família. Para ter um currículo melhor é importante sim. (Beneficiária há 02 anos, casada, 31 anos, dois filhos) Ah, o estudo nossa, é uma coisa que eu me arrependo grandemente deu ter saído da escola, porque eu to querendo voltar a estudar e não posso voltar a estudar. Que eu parei no meio do 3º ano, pra fechar faltava só 6 meses e eu sai da escola. Então agora eu quero voltar, mas não tem como, pelo fato das crianças, eu tenho que ter um tempo pra elas. (Beneficiária há 01 ano e meio, unida, 24 anos, três filhos) Para a maioria das entrevistadas, a escolaridade é fundamental para melhorar a qualidade de vida das pessoas. O fato de estarem fora do mercado de trabalho, ou em ocupações de pouco prestígio social e baixa remuneração é atribuído, em geral, à falta de estudo. Adicionalmente, o que se percebe na fala de muitas entrevistadas, é a estreita relação que estabelecem com o nível de escolaridade e o número de filhos. Algumas alegam que se tivessem estudado, certamente não teriam tido filhos tão novas ou não teriam tido o número de filhos que tem hoje. Nesta direção, muitas alegam que por terem filhos precisam cuidar dos mesmos e não conseguem voltar a estudar. 15 Anais - 2014 V SITRE - ISSN 1980 - 685X Em relação ao trabalho, os resultados coletados neste estudo, revelam que a grande maioria das entrevistadas acreditam ser o trabalho um aspecto importante para a vida dos indivíduos. É a partir dele que se conquista a independência e a valorização das atividades realizadas. As falas a seguir elucidam esta questão: [...] a mulher que trabalha fora de casa ela, sei lá, ela fica mais disposta, fica mais contente com o que faz, ela num fica em casa. É uma chatice é uma rotina, é menino, é casa. Apesar que, quem trabalha fora tem a casa pra cuidar, mas não é aquele trem focado ali o tempo todo. Você trabalha em casa cê num dorme, cê só fica em casa e não recebe. É menino pra aula, menino tem que tomar banho, é menino no médico, é casa pra arrumar, é roupa pra lavar, ah, é bem melhor quem trabalha fora, é bem mais tranqüilo [...] eu preferia a época que eu trabalhava. Ter seu próprio salário, eu não tinha problema de saúde. Independência é melhor, muito bom. O dinheiro é seu, você faz o que você faz, o que você quiser, apesar de que eu recebo o bolsa família, mas o salário é bem melhor [...] se for pra eu optar entre trabalhar o receber bolsa família eu escolho trabalhar porque é melhor. (Beneficiária há 07 anos, casada, 42 anos, três filhos). Antigamente eu podia vestir, vestir minhas meninas hoje já tem mais dificuldade. Meu esposo, o que ela ganha é pra casa, é comida e aluguel. Então assim, se precisa de um sapato tem que esperar ele fazer um hora extra ou uma coisa assim, então é mais dificuldade. Quando eu trabalhava eu comprava as minha coisas, e hoje tenho que esperar por ele, se der deu, se não der. A auto estima da gente vai lá em cima, a gente que tem o dinheiro da gente e pode comprar. Ainda mais eu que tenho menina, que gosta de andar bem arrumada. Eu choro de depressão, eu gosto de trabalhar, mas não tava compensando. (Beneficiária há 02 anos, casada, 31 anos, dois filhos) No péssimo, hoje em dia é péssimo! Porque a gente tem que depender só daquele dinheiro ali, que talvez você nem tenha, a gente precisa trabalhar. Eu acho que a mulher hoje em dia tem que ser independente, tem que trabalhar. Quando a gente trabalha é outra coisa, você tem seu dinheiro, você pode fazer o que você quer, quando não, é complicado. (Beneficiária há 03 anos, casada, 33 anos, três filhos) Apesar de perceberem o trabalho como um ponto importante para suas vidas e sentirem desejo de ingressar no mercado formal, as entrevistas revelam que há uma dificuldade, por parte das mulheres, em conciliar as atividades domésticas, particularmente àquelas relativas aos cuidados com os filhos e com a casa, com as atividades de trabalho. Um grande obstáculo para a inserção no mercado de trabalho formal diz respeito à possibilidade de encontrar quem cuide dos filhos e quem possa ajudá-las nos trabalhos que precisam ser realizados em casa, já que usualmente não conseguem dividir as responsabilidades com o companheiro. No que se refere aos cuidados com os filhos, vale pontuar que a rede familiar nem sempre pode ser utilizada como auxílio, pois, em muitos casos, os próprios membros da família, como as avós, precisam trabalhar para engrossar a renda familiar. A fala da beneficiária entrevistada, apresentada a seguir, mostra esta questão. 16 Anais - 2014 V SITRE - ISSN 1980 - 685X Eu indo trabalhar eu deixava os menino com a minha mãe e pagava ela pra olhar, e eu ficava mais leve, eu saía e tinha contato com outras pessoas. Eu não era tão estressada como eu to hoje só cuidando de menino. É cuidar de casa, apesar de quando eu trabalhava, eu não morava com ela, eu morava sozinha já, só que eu chegava aliviada, era aquela coisa diferente, sabe? Arrumava a minha casa toda e não tinha aquele estresse igual eu to tendo hoje [...] eu não trabalho hoje porque assim, querer eu quero demais, até arrumei uma pessoa pra olhar meus meninos, mas não tava de acordo com o que eu queria, então abri mão do serviço por conta deles. (Beneficiária há 03 anos, unida, 27 anos, quatro filhos). Como discutido por Sarti (2011), através do trabalho, os pobres constroem a ideia de autonomia moral, o valor moral atribuído ao trabalho compensa as desigualdades socialmente dadas. As percepções das entrevistadas, nos extratos das falas supracitadas, corroboram os argumentos de Sarti (2011) sobre como o trabalho pode trazer, à mulher, a satisfação de ter algum dinheiro. Mesmo que parco e dificilmente destinado para elas próprias, o rendimento do trabalho permite certa afirmação da individualidade. Em contrapartida, ainda que as beneficiárias do PBF percebam o trabalho como um aspecto importante da vida dos indivíduos, a maior parte delas não estava trabalhando no momento da realização das entrevistas. Os depoimentos das entrevistadas apontam alguns aspectos que contribuem para a não inserção das mesmas no mercado de trabalho. Em geral, como mostra a fala de uma das entrevistadas, apresentada a seguir, a necessidade de cuidar dos filhos pequenos tem um peso grande na entrada e saída do mercado de trabalho. Adicionalmente, a fala também remete a questionamentos sobre a precariedade dos equipamentos sociais que permitam às mulheres conciliar maternidade e atuação no mercado de trabalho. Eu sempre trabalhei, mas toda vez que eu começava a trabalhar eu ficava uns dois, três meses no serviço tinha que sair por causa das minhas crianças. Geralmente porque a pessoa que tava olhando não queira olhar mais. Aí eu não tinha condição de arrumar uma pessoa mais barata. Ai adoecia e eu tinha que ficar faltando muito no período de experiência, mas eu sempre trabalhei pra pode manter eles. (Beneficiária há 01 ano, solteira, 29 anos, cinco filhos). Ficou também evidenciado, nos resultados obtidos nesse estudo, que a inserção das entrevistadas no mercado de trabalho é atravessada pelos vários papéis que ela ocupa dentro 17 Anais - 2014 V SITRE - ISSN 1980 - 685X das relações familiares. Os extratos das falas a seguir ilustram a dificuldade para conciliar papéis e atender normas socialmente estabelecidas. É difícil, para conciliar as duas coisas fica pesado. Igual minhas meninas mesmo, se comia, comia, se não comia tava por isso mesmo, não é minha filha. Meu marido me cobrava muito, apesar eu chegava dentro de casa e já ia começar a mexer em tudo, lavar, passar, cozinhar, não tirava nem a bolsa do lado, mas ele pedia atenção. Era pesado, é uma carga muito pesada. Ainda mais nesse serviço de doméstica né, a gente já trabalha igual doido na casa dos outros, e tem que chegar e fazer tudo de novo. (Beneficiária há 02 anos, casada, 31 anos, dois filhos) Eu penso que a casa ela da conta, mas com os filhos a gente fica devendo. Trabalhar e cuidar da casa quando a gente chega, a gente da conta, mas o filhos, aquele tempo, a gente fica devendo pra eles e pra gente também. A gente fica querendo ficar o tempo todo com eles e não pode. Quando a gente vê já cresceu, já é tarde [...]A gente perde muito tempo, não tem tempo pra casa, não tem tempo pro marido, não tem tempo pros filhos. A gente chega e: Ah tenho que arrumar a casa, tenho que lavar a roupa, e o marido fica ali, e os filhos fica ali. (Beneficiária há 01 ano, separada, 50 anos, três filhos) Os depoimentos das entrevistas sugerem que, mesmo diante de conquistas significativas no que diz respeito a igualdade entre homens e mulheres, as relações de gênero ainda são norteadas por valores patriarcais. Existe ainda, uma divisão muito clara em relação aos papéis exercidos pelos homens e pelas mulheres. Sarti (2011) descreve que o homem é considerado chefe da família, e a mulher chefe da casa. Em determinado momento das entrevistas, as mulheres foram solicitadas a comentarem o que pensavam sobre as seguintes frases: “A responsabilidade do homem é ganhar dinheiro e sustentar a casa”; e “A mulher cuida melhor da casa e dos filhos do que o homem”. A maior parte das beneficiárias alegam que a responsabilidade do homem é ganhar dinheiro e sustentar a casa, e que a mulher cuida, de fato, melhor da casa e dos filhos do que o homem. Contudo, as beneficiárias que se encontram separadas, não revelam, nos seus depoimentos, dificuldades em assumir a responsabilidade de ganhar dinheiro e sustentar a casa. Neste sentido, os resultados vão em direção ao descrito por Sarti (2011), que pontua que cumprir o papel masculino de provedor não configura, de fato, um problema para a mulher, acostumada a trabalhar, sobretudo quando tem precisão (destaque da autora). A pesquisa revela, ainda, que o fato de receberem o benefício via Bolsa Família, não gera desestimulo ao trabalho. De maneira geral, o recebimento do benefício proporcionou, e 18 Anais - 2014 V SITRE - ISSN 1980 - 685X proporciona significativas mudanças na vida material dessas famílias, especialmente para as crianças. Pelo contrário, as entrevistadas são bastante incisivas ao expressarem o desejo de ingressar no mercado de trabalho, mas ressaltam, entretanto, que a baixa escolaridade e a necessidade de cuidarem dos filhos fazem, em geral, que isto não seja vantajoso. Ou seja, o custo seria mais elevado, já que o salário seria baixo e o que teriam que pagar para uma pessoa cuidar dos filhos não valeria à pena. Assim, é possível argumentar que os arranjos de cuidado infantil são fundamentais para viabilizar o ingresso das mulheres que desejam se inserir no mercado de trabalho formal. Além disso, mais uma vez, é importante ressaltar a lacuna existente em nossa sociedade quanto à disponibilidade de equipamentos sociais que favoreçam o engajamento das mulheres no mercado de trabalho. A estrutura de creches públicas no país é bastante precária, o que gera uma dificuldade para as mulheres de classes menos favorecidas que não podem pagar por serviços privados. Partindo dessas considerações, é oportuno que sejam desenvolvidas estratégias de conciliação entre o trabalho e família. Como ressalta Silva e Lima (2010) o Programa Bolsa Família, pouco investe em políticas complementares que possa possibilitar maiores condições de inserção da mulher no mercado de trabalho. A ausência de equipamentos públicos como creches e escola integral foi mencionado pela maioria das entrevistadas como um dificultador da participação da mulher no mercado de trabalho. Seriam esses equipamentos importantes dispositivos de conciliação entre família e trabalho. 4 CONSIDERAÇÕES FINAIS O objetivo central deste estudo foi verificar se as beneficiárias do Programa Bolsa Família (PBF) percebem uma relação entre inserção feminina no mercado de trabalho e empoderamento, buscando evidenciar a percepção das mulheres beneficiárias sobre dificuldades e possibilidades de sua inserção no mercado de trabalho. A partir das entrevistas realizadas com beneficiárias do programa, foi possível identificar que, independente do arranjo familiar, a maior parte das mulheres expressam 19 Anais - 2014 V SITRE - ISSN 1980 - 685X interesse em exercer uma atividade remunerada e se dedicarem aos estudos. A análise também evidencia que, para essas mulheres, o trabalho remunerado seria um meio para se afirmarem como pessoas mais independentes, tendo voz mais ativa em suas famílias e relacionamentos. A inserção da mulher no mercado de trabalho é, portanto, considerada, pelas beneficiárias do Programa, uma possibilidade repleta de desafios. Para elas, o fato de ter filhos, as inúmeras tarefas domésticas e, em geral, a baixa escolaridade são aspectos que dificultam sua participação no mercado formal de trabalho. A pouca escolaridade, que resulta em recebimento de baixos salários, faz com que a saída do lar não seja recompensadora. Como principais beneficiárias do programa, as mulheres se tornam responsáveis pelo atendimento das diferentes condicionalidades postas pelo Programa Bolsa Família. Tais cumprimentos somam-se aos encargos domésticos já existentes, sobrecarregando ainda mais a mulher beneficiária. Este panorama geral indica que a possibilidade de realizarem escolhas estratégicas em função de expansão em habilidade, ou seja, o empoderamento, ainda é um caminho que poucas mulheres começaram a percorrer. Sem dúvidas, muitas mulheres passaram a ter um controle sobre determinadas esferas de suas vidas, mas não de maneira tal que se possa alegar que são mulheres empoderadas e autônomas, afinal o controle ainda está circunscrito, de maneira evidente, ao domínio privado do lar. 5 REFERÊNCIAS ABRAMO, Laís. A situação da mulher latino-americana: o mercado de trabalho no contexto da reestruturação. In: DELGADO, Didice M.; CAPPELLIN, Paola; SOARES, Vera. (org.). Mulher e trabalho: experiências de ação afirmativa. São Paulo: Boitempo, 2000. p. 111-134. ALVES, José E.D; CORRÊA, Sônia. Igualdade e desigualdade de gênero no Brasil: um panorama preliminar, 15 anos depois do Cairo. In: ASSOCIAÇÃO Brasileira de Estudos Populacionais–ABEP. Brasil, 15 anos após a Conferência do Cairo. Campinas: ABEP/UNFPA, 2009. p. 121-223. ARAÚJO, Maria de Fátima. Diferença e igualdade nas relações de gênero: revisitando o debate. Psicologia Clínica, Rio de Janeiro, v. 17, n. 2, p. 41-52, 2005. 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WOMEN´S WORK AND EMPOWERMENT: PERCEPTIONS FROM THE BRAZILIAN BOLSA FAMÍLIA PROGRAM BENEFICIARIES Abstract: The aim of this study is to discuss women´s work, emphasizing issues related to their empowerment in the context of the Brazilian Bolsa Família program. Specifically, it analyses aspects related to women´s work difficulties and possibilities and women´s empowerment. Discussions are based upon 12 semi-structured interviews made with women who are beneficiaries from the Brazilian Bolsa Família program in the city of Contagem, Minas Gerais. Our partial results show that interviewed women believe that work is a main key for conquering their empowerment. Besides that, they also believe that working women are more valued and are more likely to establish social relationships outside the family borders. Hence, work is not only economically important; it is also a social relevant aspect. Despite that, interviewed women argue that their insertion in the labor market is replete with a variety of obstacles. Among those obstacles are their low educational levels, their problems to find someone trustful to take care of their kids and traditional social values and norms that impose some kinds of roles to women. Keywords: Female work, Women´s empowerment, Brazilian Bolsa Família Program 23 Anais - 2014 V SITRE - ISSN 1980 - 685X O TRABALHO EMOCIONAL EM SERVIÇO SOCIAL1 BOLZAN, Débora de Paula2 - [email protected] Universidade Federal de Goiás – Faculdade de Ciências Sociais Campus II - Samambaia 74001-970 – Goiânia – GO NUNES, Jordão Horta3 - [email protected] Resumo: Esta comunicação analisa o trabalho emocional como uma das diferentes dimensões e exigências do trabalho em Serviço Social. Para tanto, propõe uma discussão da temática, ainda pouco utilizada no Brasil, e traça como objetivo identificar como a apropriação do trabalho emocional é feita nessa profissão. A metodologia privilegia as abordagens qualitativas, com base em levantamento da literatura pertinente, análise documental e observação sistemática. A pesquisa de campo foi desenvolvida por meio de entrevistas narrativas e entrevistas semiestruturadas com assistentes sociais da região metropolitana de Goiânia, GO. Os resultados identificam que a natureza da tarefa de assistente social é, por si só, altamente exigente de trabalho emocional, configurando um campo complexo de atuação frente à necessidade de gerenciamento das emoções da/o profissional e as dos usuários, trazendo ainda, em alguns casos, efeitos negativos para a saúde. Os resultados apontam ainda, que o trabalho em Serviço Social envolve uma interseção intrínseca com gênero, configurando o trabalho das emoções como sexuado e constitutivo do processo de construção da identidade profissional. A comunicação, que tem como base um projeto em desenvolvimento, organiza-se da seguinte forma: apresentação do campo dos serviços como lócus privilegiado do trabalho emocional, inserindo nesse contexto o Serviço Social; construção de embasamento teórico para implementar a análise do trabalho emocional; apresentação de resultados da pesquisa empírica. 1 Esta comunicação tem como base um projeto em desenvolvimento em nível de mestrado: “O trabalho em Serviço Social: profissionalização, identidade e gênero”, no Programa de Pós-graduação em Sociologia da UFG, sob orientação do Prof. Jordão Horta Nunes. 2 Mestranda do Programa de Pós Graduação em Sociologia da Universidade Federal de Goiás (PPGS/UFG). 3 Professor da Faculdade de Ciências Sociais da Universidade Federal de Goiás. Doutor em Sociologia pela Universidade de São Paulo. 24 Anais - 2014 V SITRE - ISSN 1980 - 685X Palavras-chave: Serviço social, Trabalho emocional, Setor de serviços, Gênero. INTRODUÇÃO As atuais relações de trabalho têm despertado velhos e novos debates sobre o mundo do trabalho, suas transformações e seus efeitos sociais sobre os trabalhadores, como desemprego, precarização do trabalho, terceirização, enfraquecimento dos sindicatos etc. Dentre as transformações em curso o aumento da População Economicamente Ativa (PEA) feminina é uma das alterações demográficas mais importantes do final do século XX em nosso país. Esse crescimento foi impulsionado pelo aumento da escolaridade feminina, pela diminuição da taxa de fecundidade, pelo aumento do custo de vida e principalmente, pelo crescimento do setor de serviços4, setor que mais absorve o trabalho de mulheres. O desenvolvimento deste setor tem provocado mudanças fundamentais na economia, tornando-se a principal forma de ocupação nas economias ocidentais (SORJ, 2000). Nesse contexto, a globalização tende a gerar ou potenciar polarizações no mundo do trabalho, com efeitos evidentes e complexos em largos extratos da população. Suas dimensões e consequências tendem a afetar, sobretudo, trabalhadores mais jovens, imigrantes, mulheres e negros. Como resultado dessas mudanças, Sorj (2000) observa que tem havido “uma forte estratificação do mercado de trabalho”, em que os empregos menos qualificados, em tempo parcial ou temporário, são ocupados predominantemente por mulheres e jovens com pouca escolaridade e, portanto, apresentam poucas oportunidades de carreira e mobilidade. Para Sorj (2000) as ocupações do setor de serviços se distinguem do processo do trabalho na indústria e assumem um “novo modelo de trabalho que escapa completamente ao 4 A distinção habitual entre atividades econômicas compreende os tradicionais setores: primário (agrícola, pesca, caça e extrativismo), secundário (industrial) e terciário (serviços). Entretanto, essa classificação superficial não leva em conta o atual crescimento e a diversificação que os serviços adquiriram nas economias atuais. Entre as principais atividades de serviços pode-se listar: comércio, transportes; publicidade; computação; telecomunicações; educação; saúde; recreação; o setor financeiro, bancário e de seguros; administração pública; serviços postais, religiosos; alimentação; manutenção e reparação; beleza e higiene; diversões e recreação, etc. 25 Anais - 2014 V SITRE - ISSN 1980 - 685X padrão prevalecente na produção industrial” (p.30). As interações estabelecidas nas ocupações do setor de serviços exigem novas formas de controle, de gerenciamento e administração das emoções constituídas nessas interações. Não obstante, um viés de gênero torna-se fundamental para a análise dessas interações e das transformações em curso no mundo do trabalho, uma vez que as mulheres constituem maioria nos postos de trabalho mais precários e informais, principalmente no setor de serviços (HIRATA, 2002). Historicamente, o setor é por excelência ocupado por mulheres, essencialmente no emprego doméstico; no entanto, mesmo nas ocupações de nível superior, ainda permanecem guetos ocupacionais, como enfermagem, pedagogia e serviço social; são ocupações vistas como extensões aos trabalhos já realizados por elas no âmbito doméstico. Ou seja, a externalização de atividades com qualidades e atributos considerados femininos, que ocupam uma posição inferior na hierarquia das profissões, auferem baixos rendimentos e obtêm baixo status social. As atividades menos qualificadas, em que o trabalho manual e repetitivo é requerido, são destinadas as mulheres, por meio da divisão sexual5 do trabalho, naturalizada no mercado de trabalho. Isso significa que o trabalho feminino tem sofrido uma exploração ainda mais intensificada na era globalizada, sendo predominante no universo do trabalho em tempo parcial, precarizado e desregulamentado (HIRATA, 2009). Em contrapartida, Hirata (2009) observa que tem havido um aumento da escolaridade feminina e um contingente, ainda muito pequeno, mas crescente, de mulheres em ocupações de mais prestígio e em profissões historicamente masculinizadas, como engenharia e medicina. É crescente a presença feminina em chefias, gerências e em ocupações jurídicas, como juízas e delegadas. Apesar disso, as desigualdades de rendimento entre homens e mulheres, a permanência feminina como principal responsável pelas tarefas do âmbito doméstico e pelo cuidado dos filhos mostram as relações desiguais e discriminatórias que incidem e persistem sobre o trabalho feminino. 5 O termo refere-se à distribuição desigual de homens e mulheres no mundo de trabalho e as variações no tempo e no espaço dessa distribuição. Essa divisão se associa à distribuição desigual do trabalho doméstico entre os sexos, hierarquizando atividades, valorizando ou não certas profissões e criando “guetos” ocupacionais, como é o caso do Serviço Social. No contexto da literatura brasileira sobre a temática, é fundamental consultar o trabalho pioneiro de Lobo, E.S. A classe operária tem dois sexos, trabalho, dominação e resistência. São Paulo: Brasiliense, 1991. 26 Anais - 2014 V SITRE - ISSN 1980 - 685X O trabalho em serviços envolve um componente altamente sexuado, designado por Arlie Hochschild (1983) como trabalho emocional (doravante TE). O termo remete a atividades em determinadas ocupações que incorporam componentes emocionais, como o trabalho de comissárias/os de vôo, que exige o domínio de emoções e é objeto da expropriação de forma contínua, pela empresa, da simpatia e do sorriso exibidos no comportamento dos/as trabalhadoras/es, mesmo quando esses manifestações de sentimentos não correspondam, subjetivamente, aos sentimentos experimentados. O trabalho emocional constitui assim, fator implícito e não pago em grande parte dos empregos em serviços, apresentando um caráter fortemente ligado a atributos socialmente construídos como femininos. Nesse contexto, o trabalho em Serviço Social incorpora também trabalho emocional, apoiado na figura feminina e em valores ligados à imagem da mulher, como será visto mais adiante, recuperando os dados da pesquisa empírica. Além disso, o trabalho em Serviço Social apresenta particularidades, principalmente porque a profissão é constituída historicamente por marcadores de desigualdade: é historicamente feminizada, instalada no setor de serviços, recebendo escasso prestígio social e os baixos níveis de remuneração característicos dos vínculos nessa ocupação. 1 O TRABALHO EMOCIONAL A gerência das interações, sentimentos e emoções produzidas no ambiente de trabalho caracterizam o trabalho emocional. Hochschild (1983) mostra, em The managed heart... como a ocupação das aeromoças relaciona-se com um profundo controle de emoções e a expropriação de uma imagem aos clientes, como sorrisos, cordialidade, amabilidade, mesmo que não sejam autênticos ou sinceros, materializando o trabalho emocional. Dessa forma, o gerenciamento das emoções é uma forma consciente de como “os seres humanos atuam para suprimir a distância entre o que estão sentindo e o ideal que têm do que deveriam sentir” (BONELLI, 2003, p.358). Hochschild (1983) explica, por intermédio da noção de trabalho emocional, como a empresa interfere nos sentimentos dos próprios funcionários, interpretando-os e redefinindo-o 27 Anais - 2014 V SITRE - ISSN 1980 - 685X com uma finalidade de lucro. A expressão de emoções torna-se passível de compra e venda, ou seja, os sentimentos humanos revestem-se de racionalidade, assumindo a feição de mercadorias. Nesse contexto, até a aparência física do trabalhador torna-se instrumento de venda, sendo inclusive sinônimo de profissionalismo. O trabalho emocional constitui assim, fator implícito, ainda que não administrado ou plenamente racionalizado, em grande parte dos vínculos em serviços, apresentando um caráter fortemente sexuado, ligado a sentimentos socialmente construídos como femininos, tais como paciência, amabilidade e dedicação. Nesse contexto, o trabalho em Serviço Social o trabalho em Serviço Social apresenta particularidades, principalmente porque a atividade é constituída por marcadores de desigualdade: é historicamente feminizada; instalada no setor de serviços; não ocupa lugar de destaque na hierarquia das profissões; associa-se a escasso prestígio social e a baixos níveis de remuneração característicos dos vínculos na ocupação. O conceito de TE é ainda pouco difundido no Brasil; mas, desde que foi formulado por Arlie Hochschild (1983) na década de 1980 passou a orientar diversas pesquisas no âmbito internacional. Valquíria Padilha (2013) registra a publicação de mais de 300 artigos empregando o conceito de TE, indicando que a temática encontra-se num intenso debate em diferentes países. O conceito contribui para pensar o trabalho no setor de serviços em seus diversos aspectos e pode ser estendido para entender como as/os profissionais de Serviço Social se apropriam e gerenciam as emoções decorrentes do trabalho nessa profissão. Hochschild tornou-se o nome forte da sociologia das emoções, consolidando as emoções como campo de estudos, com ênfase ao mundo do trabalho e articulando cultura, emoção, família, trabalho, identidade, cuidados e personalidade. Utilizando o ponto de vista dos teóricos interacionistas, a socióloga considera a cultura como determinante na manifestação da emoção. Segundo Hochschild, “o trabalho emocional (emotional work) consiste na administração do sentimento para criar uma fachada facial e corporal publicamente observável” (2003, p. 7). Na esfera pública o trabalho emocional tem um valor de troca, torna-se uma mercadoria comercializada, ainda que, no espaço privado, esses atos emocionais tenham apenas um valor de uso.6 Ao desempenhar o trabalho emocional o agente 6 Hochschild designa como administração das emoções (emotion management) ou operacionalição das emoções (emotion work) a atividade do trabalho emocional no espaço privado. 28 Anais - 2014 V SITRE - ISSN 1980 - 685X atua superficialmente (surface acting), como ao sorrir para demonstrar gentileza e receptividade, mas também atua em profundidade (deep acting), refletindo e transformando seus sentimentos para justificar subjetivamente a expressão de sinais corporais que manifestam objetivamente o trabalho emocional. Historicamente, a oposição entre emoção e racionalidade faz parte da cultura ocidental. Durante muito tempo acreditou-se que era possível separar razão e emoção na esfera do trabalho; isso faria com que o trabalhador fosse mais eficaz e produtivo. Essa visão, ainda existente, heterogeniza e simplifica o trabalho, subestimando os efeitos das emoções, inclusive sob a saúde do trabalhador. No entanto, como atividade humana, o trabalho “é cenário de (re)produção de diferentes emoções”: as pessoas se emocionam com uma promoção, sentem medo de perder o emprego ou de sofrer um acidente no trabalho, criam relações no trabalho etc. (SOARES, 2013). Essas relações estabelecidas no ambiente de trabalho envolvem emoções e sentimentos e influenciam no processo de construção das identidades sociais. A interação estabelecida produz “significados que operam como importantes sinalizadores do valor do produto para os consumidores. Dito de outra forma, o próprio trabalhador é parte do produto que está sendo oferecido ao cliente” (SORJ, 2000, p.30). Nessas interações “o trabalhador está obrigado a estabelecer contatos rotineiros com pessoas que não conhece, com as quais não possui nenhum vínculo, e com o desafio de oferecer a elas serviços numa dimensão às vezes absolutamente pessoal” (NUNES, 2011, p.38). O controle emocional, que deveria ser uma atitude privada, torna-se, em muitas ocupações, atributo do trabalho, sendo desempenhado tão rotineiramente que pode ser considerado no mercado como uma commodity (NUNES, 2011). No trabalho em serviços exige-se do trabalhador muito mais do que trabalho físico, do corpo e das mãos: as interações são altamente demandantes de esforço emocional. Muitas vezes o que se compra é a própria relação que se estabelece, como nas instituições de ensino-aprendizagem. O TE apresenta três características essenciais para Hochschild: o contato direto e constate com o público (face a face ou voz a voz); o contato com o estado emocional do cliente/usuário, interagindo e produzindo um estado emocional no outro (gratidão, emoção, alegria, satisfação, medo etc.); a influência da administração/gerência, por meio de treinamento e supervisão, exercendo controle sobre as atividades dos empregados (PADILHA, 29 Anais - 2014 V SITRE - ISSN 1980 - 685X 2013). No caso do Serviço Social certamente as duas primeiras características se evidenciam, pois o contato com os usuários frequentemente ocorre, muitas vezes em seus próprios domicílios ou vizinhanças de moradia. Entretanto, o controle administrativo ou, no limite, coercitivo, não ocorre, a não ser em casos específicos. Por um lado, as competências hoje atribuídas e reconhecidas na ocupação priorizam a implementação de políticas públicas e programas sociais, mas ainda é forte a dimensão “assistencialista” que caracterizou a ocupação no passado, a que corresponde uma representação social ligada ao cuidado (care), valorizando social e psicologicamente a interação presencial e, no limite, afetiva, com os usuários. Na Lei 8.662/93, por exemplo, que institui as atribuições privativas para o exercício profissional de assistentes sociais, a dimensão do “cuidado” está presente na competência de encaminhar providências, prestar orientação social a indivíduos e grupos, orientando-os no sentido de identificar recursos e de fazer uso dos mesmos no atendimento e na defesa de seus direitos. (Cf. BRASIL, 1993, art. 4º). Além disso, as relações estabelecidas entre profissional e usuários se tornam de grande importância para as instituições empregadoras, geralmente órgãos públicos. Ou seja, a qualidade dos atendimentos e das relações estabelecidas entre profissional e usuários favorece a representação positiva da instituição, legitimando suas políticas e reforçando o poder estatal. Nessa relação se requer maior dispêndio de TE pelo profissional de Serviço Social, mediando os interesses e objetivos entre instituição e usuários. Segundo Glória Bonelli (2003), as ocupações que lidam diretamente com público e estão em posições subalternas na hierarquia das profissões são as que incorporam mais TE, contribuindo, assim, para pensarmos o trabalho das emoções numa perspectiva de gênero, uma vez que o TE “é mais acentuado entre as mulheres do que entre os homens” (p.357). Determinados grupos ocupacionais estão mais suscetíveis a realizar TE, como: comissárias de vôo, enfermagem, serviço social, relações públicas, venda direta. Tais profissões são marcadas por uma estreita separação entre as características pessoais e sua adequação ao trabalho, transformando traços como aparência, idade, educação, gênero e raça em potencial produtivo, “de tal forma que características e competências individuais são a condição mesma da empregabilidade” (SORJ, 2000, p.30). A clivagem entre TE e gênero faz com que trabalhos que exigem maior grau de expropriação das emoções sejam geralmente preenchidos por trabalhadoras, afirmando que as 30 Anais - 2014 V SITRE - ISSN 1980 - 685X disposições emocionais fazem parte das próprias condições de trabalho. As diferenças entre os sexos criadas desde a socialização dos indivíduos ganham concretude na divisão sexual do trabalho, atribuindo às mulheres profissões que impõe uma sobrecarga emocional mais pronunciada (SOARES, 2013). Em vários casos o gerenciamento laboral de emoções está relacionado ao reconhecimento e valorização cultural de certos estereótipos, como o da “família tradicional” e seus papéis de homem “provedor”, ligado à esfera pública, e a mulher voltada ao trabalho reprodutivo, doméstico, e valores a este associados. No caso das comissárias de vôo, pesquisadas por Hochschild, percebe-se que, no contexto histórico dos anos 1960 o conjunto de valores e regras da família tradicional foi adaptado com sucesso para as atividades das aeromoças. Nos treinamentos ministrados por uma das empresas pesquisadas às aeromoças e comissários empregava-se a analogia do “lar”, conduzindo os/as funcionários/as a se relacionarem com os passageiros assim como se relacionariam com convidados numa reunião familiar, em suas próprias casas (Cf. 2003, p. 105). Entretanto, esse tipo de analogia sofreu transformações com o desenvolvimento da aviação comercial e o aumento do número de passageiros, bem como a acessibilidade do serviço a estratos de menor poder aquisitivo. Com a criação de linhas de trajetos menos extensos os vôos tornam-se mais curtos para os clientes, enquanto as jornadas tornam-se mais longas para as comissárias, com número maior de passageiros a serem atendidos. Assim, as representações sociais sobre a família tradicional e os vocabulários de motivações a elas associados se modificaram com o ingresso das mulheres na esfera pública do trabalho externo, acarretando mudanças no trabalho emocional, em nível privado e público; processo análogo sofre não somente no trabalho de comissários de vôo, mas no setor de serviços em geral. Entretanto, essas mudanças no trabalho emocional acarretam negociações identitárias, transformações nos selves, por vezes afetando o campo psicológico, já que se trata de proteger a autoestima. Essas alterações nem sempre coadunam com os interesses da empresa ou instituição, podendo redundar em problemas na interação com os usuários, descontinuidades no envolvimento ocupacional e até consequências para a saúde, como estresse, o estranhamento de si e a perda da capacidade de sentir Em pesquisa com teleatendentes, Vilela e Assunção (2007) constatam que a supressão da emoção e o gerenciamento do TE podem causar feitos negativos para a saúde e para o 31 Anais - 2014 V SITRE - ISSN 1980 - 685X funcionamento da organização, entre eles a exaustão emocional e o esgotamento físico e emocional. Para as autoras: Isso pode ser explicado pelo fato de ser possível controlar o comportamento, mas não a experiência subjetiva da emoção. Uma das causas de adoecimento e exaustão nas tarefas que requerem trabalho emocional é o fato de que, apesar de a organização tentar controlar o comportamento e a forma de manifestar emoções, ela não consegue alterar a experiência interna, a vivência da emoção verdadeira (VILELA e ASSUNÇÃO, 2007, p.90). No trabalho das emoções nem todos os sentimentos podem ser expressos ao público. Na prática, códigos de conduta e regras de comportamento estabelecidas e aceitas socialmente guiam o trabalho emocional, preconfigurando as interações. Emoções negativas, como raiva e desprezo não podem ser visíveis, ao passo que outras, tais como simpatia, amabilidade podem e devem ser externadas. As regras de sentimentos são construídas culturalmente, fazendo parte da tradição e da socialização. Soares (2013) pontua que o próprio ato de chorar é sexuado. Os homens são educados para reprimir emoções e não demonstrá-las em público. Principalmente na infância é freqüente ouvirmos que “homem não chora”. “No mundo da virilidade, as lágrimas são associadas à fraqueza, à feminilidade, à covardia” (idem, p.167). Por outro lado; os estereótipos de gênero permitem que a mulher exponha suas emoções, relacionando-as a sua “natureza biológica”, a fragilidade e docilidade (SOARES, 2013). Portanto, a cultura e a socialização têm papel crucial na determinação de quem pode expor ou inibir suas emoções, determinando como, onde e por que elas devem e podem aparecer. No mundo dos serviços, as regras de sentimentos buscam reduzir tempos, aumentar a produtividade, vender produtos, fidelizar clientes e, claro, contemplar um dos principais requisitos deste setor: o atendimento ao público. Essas regras visam, de acordo com Vilela e Assunção (2007), moldar as emoções do trabalhador para o contato com as emoções do cliente. No caso do teleatendimento, o trabalhador deverá, entre outras atividades, atender usuários irritados com a qualidade do serviço prestado, solucionar problemas, receber reclamações de clientes aborrecidos, entre outras atividades, e, para tanto, deverá gerir e moldar suas próprias emoções e mediar o contato cliente-fornecedor, além de trabalhar sob rígido controle e com poucas margens para alterar a forma prescrita pela organização para 32 Anais - 2014 V SITRE - ISSN 1980 - 685X conduzir a solução do problema. Assim, as situações de contato com o cliente exigem equilíbrio na lida com situações extremas – como manifestações agressivas e/ou abusivas demonstradas pelos clientes insatisfeitos- ou permanente cortesia e amabilidade. Para isso, as regras de sentimentos são apresentadas em treinamentos formais e transmitidas no cotidiano de trabalho com o objetivo de administrar o tipo, o momento e a intensidade da emoção, além disso, há monitoração intermitente para que a empresa se assegure de que “a demonstração de sentimentos está “correta” (VILELA E ASSUNÇÃO, 2007, p.86). Se todos os trabalhadores atuam sobre suas emoções, essa atuação se dá de forma diferente em cada grupo ocupacional, sendo que uns o fazem mais que outros, reproduzindo concepções de masculinidade e feminilidade historicamente construídos. Assim, torna-se importante identificar como a apropriação do trabalho emocional é feita no Serviço Social. 2 O TRABALHO EM SERVIÇO SOCIAL E O GERENCIAMENTO DAS EMOÇÕES No decorrer da pesquisa empírica desenvolvida para o mestrado em andamento foram realizadas e transcritas dezesseis entrevistas semiestruturadas, em que foram empregados também elementos da técnica de entrevistas narrativas 7 . Todas/os as/os profissionais são formados em Serviço Social e empregadas/os como assistentes sociais. Foram selecionadas seis8 entrevistas para a análise desta comunicação, cinco mulheres e um homem, conforme mostra o Quadro 1. Nos espaços ocupacionais, o cotidiano das/os assistentes sociais e as demandas são envoltas de componentes emocionais que exigem um alto grau de gerenciamento emocional: 7 As entrevistas semiestruturadas foram empregadas como um guia, mas permitindo o improviso de outras questões sobre os objetivos pesquisados. As entrevistas enfocaram as experiências biográficas, possibilitando o contato com a realidade vivida pelos sujeitos, permitindo a obtenção de dados dos mais diversos aspectos da vida social das assistentes sociais. Já as narrativas tem o objetivo de obter experiências mais subjetivas e dados de maior profundidade do que nos relatos da entrevista semiestruturada. Compreende-se as histórias de vida como construções sociais, ou seja, as narrativas fornecidas revelam as construções culturais dos processos construtivos da vida das/os entrevistadas/os (FLICK, 2009). 8 Para garantir a privacidade e confidencialidade das/os participantes da pesquisa os nomes verdadeiros foram substituídos, resguardando a identidade e a identificação das/os mesmas/os. A pesquisa contempla todos os requisitos legais exigidos pelo Comitê de Ética da UFG. 33 Anais - 2014 V SITRE - ISSN 1980 - 685X violência doméstica, injustiças sociais, pobreza, desigualdades de todo tipo, trabalho doméstico, abuso sexual e moral, direitos reprodutivos (gravidez, aborto), planejamento familiar, disputa de guarda, dependência química, movimento LGBT; entre outros. Os relatos seguintes expõem as principais demandas que exigem TE das assistentes sociais: Situação Número Religião conjugal de filhos Pertença Ano de étnicoformação racial Nome Sexo Idade Naturalidade Alice feminino 42 Goiânia/GO casada 3 católica e espírita negra 1998 contrato autônomo de prestação de serviço Laura feminino 43 São Paulo/SP casada 5 católica negra 2005 contrato autônomo de prestação de serviço Luiza feminino 53 Damolândia/GO casada 2 católica branca 2006 estatutário Ana feminino 30 Goiânia/GO união estável 0 espírita branca 2007 estatutário Gabriela feminino 35 Franca/SP casada 0 católica branca 2006 estatutário 50 Rio Casca/MG casado católico pardo 2003 contrato autônomo de prestação de serviço Pedro masculino 2 Tipo de vínculo QUADRO 1– PERFIL DAS/O ASSISTENTES SOCIAIS ENTREVISTADAS/OS Fonte: Construído pelos autores com base nas entrevistas realizadas A gente lida com muitas situações de violência na nossa área e eu estou sentindo mais do que quando eu trabalhava no judiciário, porque eu trabalhava na vara de família, geralmente era disputa de guarda, não era como no Ministério Público de denúncia, problemas mais urgentes. (...) Violência contra mulheres pra mim é bem difícil (Gabriela). Aqui são todas, porque são vítimas de violência, crianças, né; muitas vezes é violência intrafamiliar. A gente faz o atendimento e busca garantir todos os direitos, porém, eu não gostaria de estar nesse programa, isso mexe muito comigo (...) são jovens, são crianças que vêm pro atendimento, são de baixa renda (...) vêm em sol ou chuva pra ter o atendimento (Laura). Situação de criança, criança me afeta muito e idosos; me afeta, mas eu gosto de trabalhar é com essa demanda...eu gosto de trabalhar com isso embora me afete (Ana). Olha, (...), por exemplo, mãe solteira que tem dois, três filhos e ela que resolve tudo, que dá alimento, ela que encaminha pra escola, é pai e é mãe, isso me emociona muito, eu fico emotiva com isso porque eu sei que ela tem que ir pro trabalho e fica entre a cruz e a espada. Ela fica pensando no filho que pode tá usando droga; ou uma mãe que tem uma filha pequena, não tem com quem deixar, não tem família, é só ela e as crianças, a mãe tá se matando e chega em casa vai lavar a roupa, vai preparar a comida pra deixar pronta pro outro dia; isso é o que mais acontece (Luiza). 34 Anais - 2014 V SITRE - ISSN 1980 - 685X Alice ressalta que próprio relacionamento com o usuário, a capacidade de escuta e as emoções trazidas pelos esses produzem TE: Ai me emociona porque tem hora que você.... tem vezes que o usuário só quer ser ouvido, e isso também é muito importante, porque a partir do momento que ele chega na unidade, que você recebe, que você faz a primeira acolhida, que ele senta na sua frente e faz assim “ai”, você vê que você já acolheu bem aquele usuário. E ali ele tá aberto a tudo, você entra no seio da família, você entra na intimidade daquele usuário, ele traz coisas assim, que querendo ou não, não tem como não se emocionar (Alice). De uma parte, o usuário chega ao Serviço Social com um conjunto de expectativas de natureza psicológica, emocional e material advindas de situações como violação de direitos, empobrecimento, abuso sexual, carência material etc. De outra, a/o assistente social ao mesmo tempo apresenta-se com uma conformação psicológica e emocional também complexa, tendo este que gerir e mediar a relação daquele com o Estado. Essa relação de proximidade faz com que a/o assistente social tenha acesso privilegiado a informações dos usuários e desenvolva ainda mais o TE, tornando a prática profissional um exercício constante no sentido de gerenciar, além das suas próprias emoções, as emoções do outro. O cotidiano de trabalho interioriza as emoções, fazendo com que fazer o TE seja desenvolvido de forma intermitente no Serviço Social. Na tentativa de separar o racional do emocional, Pedro afirma: “A gente acha que com algum tempo vai conseguir, mas não consegue não”. E relata que se sente “abalado” quando os obstáculos burocráticos das políticas públicas prejudicam os usuários: “Saber que o entrave burocrático acaba com a vida da criança e adolescente, isso me deixa extremamente triste” (Pedro). Nesta ocasião, ele se refere a um episódio acontecido na noite anterior a entrevista. Essa noite houve uma confusão, por inabilidade da técnica e do educador a menina foi parar no DEPAI9. Ela está aqui porque tem o direito violado, se ela vai pro DEPAI, ela vai deixar de ser uma menina com ação protetiva, pra ser uma menina que vai ser penalizada. Com certeza ela vai pra medida socioeducativa, isso me deixa muito triste, muito chateado (Pedro). 9 A Delegacia de Apuração de Ato Infracional (DEPAI) é responsável pela investigação e apreensão de adolescentes autores de atos infracionais. 35 Anais - 2014 V SITRE - ISSN 1980 - 685X Neste caso, a inabilidade de outros profissionais fazendo com que a “menina” fosse encaminhada para um lugar indevido fez com que o entrevistado se sentisse, de alguma forma, também afetado pela situação de injustiça. A entrevistada Luiza ressalta que as exigências da instituição não condizem com as reais condições de trabalho, pontuando a sobrecarga de trabalho, o desgaste e a burocracia como demandantes de TE: Olha, aqui é um trabalho que exige muito, que absorve muita energia da gente, aqui é atendimento ao adolescente infrator [...]. Aqui é demais o trabalho, eu falo aqui, mas não é só aqui não, isso é em todas as unidades; a exigência é muito grande, mas as condições de trabalho não são boas, não temos material pra trabalhar. Até uma coisa simples, uma pasta, um prontuário, tudo é muito burocrático, a carga horária é excessiva porque você tem que mergulhar mesmo no trabalho e é muita cobrança de relatório. Pela lei nós não podemos assistir mais de vinte adolescentes, mas eu estou com trinta e quatro adolescentes, então isso sobrecarrega muito, tem coisa que você não quer levar pra casa, mas você leva (Luiza). Os relatos apresentados comprovam que no Serviço Social as emoções são administradas em nível de profundidade (deep acting) e são tão rotineiras que chegam a ser interiorizadas e inseparáveis do cotidiano, mesmo quando se tenta manter certa distância e racionalidade. Isso conduz a que o trabalho emocional se constitua como parte da identidade profissional. Alice afirma tentar manter-se distante do envolvimento com o usuário, mas não consegue e se diz admiradora de profissionais que conseguem tal distanciamento: É difícil lidar com as dificuldades dos outros né, não tem como você não se envolver, a gente tenta, mas tem situações que não tem como você não se fragilizar com a vivência do outro. Então há um pouquinho [de estresse] porque você lhe dá com as diferenças, com as dificuldades do outro e isso traz uma certa angústia. Eu fico admirada daquela que fica isenta de tudo, eu admiro, mas eu, eu não consigo (Alice). As condições de trabalho precárias, a falta de todo tipo de material de trabalho são descritas nas entrevistas. Muitas/os profissionais relatam levar tarefas para serem feitas em casa devido à falta de equipamentos básicos nos locais de trabalho. “Nós temos telefone na sala da coordenação, na minha sala não tem telefone, não tem ventilador, não tem computador, não tem impressora, não tem a menor....na minha unidade não tem” (Alice). “Eu já levei relatórios, porque acumula e aqui só tem um computador; você faz visita e tem que fazer o relatório ai a gente faz (em casa), põe no pen drive e traz” (Laura). Já Pedro expõe que além 36 Anais - 2014 V SITRE - ISSN 1980 - 685X de levar atividades do trabalho para casa, continua pensando nele fora do horário de expediente: “Levo os meus relatórios para serem elaborados em casa. Eu não posso levar o prontuário, mas posso xerocar o que eu quero pra me ajudar elaborar um relatório. Então eu levo sim, o dia que eu não estou aqui, estou ligado aqui” (Pedro). Ana também afirma pensar na complexidade do trabalho social quando não está trabalhando: “Então, você trabalha com usuários de drogas, gente em situação de rua há muito tempo, violação de direitos, criança vítima de abuso, então, eu as vezes penso muito fora de lá (da instituição) nessas situações, eu não consigo sair desse lugar e ir pra casa e esquecer. Tem casos que a gente dorme e acorda pensando nele” (Ana). Na época de realização de sua entrevista (agosto de 2013) o contrato de trabalho da assistente social Laura estava vencendo e ela não tinha esperança de que se renovasse. Explanando sua saída do local de trabalho e a insatisfação em não ver a solução dos atendimentos, a profissional faz o seguinte relato: Eu tô saindo daqui muito frustrada, porque a gente faz a visita, faz o relatório e o idoso continua nas mesmas condições. A gente faz a visita sem respaldo de segurança, porque a maioria dos agressores, os que cometem a violência moram com o idoso, ai vou eu lá só com o motorista; muitas vezes a gente vai em casas de traficantes. E a gente é obrigada a fazer (Laura). Além da precariedade das condições de trabalho, a burocracia onera o trabalho, tornando processos que poderiam ser rápidos em tarefas morosas: As condições são precárias mesmo, é uma precariedade não muito estampada, porque quem entra aqui vê essa casa, mas é uma precariedade embutida porque você tem que elaborar um documento, um relatório de visita, por no pen drive, mandar pra Secretaria (de Assistência Social) pra quando tiver disponibilidade imprimir, pra mandar de volta, pra depois mandar pro Ministério Público novamente, isso requer tempo e atrasa (Laura). O entrevistado Pedro também relata os obstáculos estabelecidos pela burocracia para solicitar um carro para visitas domiciliares: “você tem que elaborar o relatório, você elabora 37 Anais - 2014 V SITRE - ISSN 1980 - 685X um memorando solicitando o ofício das SEMAS10. Aí vai o memorando daqui pra SEMAS, a SEMAS responde o memorando e estou aguardando o ofício tem quatro dias. O menino está aqui há quatro meses. Então a gente fica de mãos e pés atados” (Pedro). Além disso, profissionais acabam utilizando recursos próprios para dar agilidade ao trabalho: “o telefone eu mesmo pego o meu e faço contato (...), questão de material você vê que o prédio é todo sucateado. Trabalhei aqui nesse prédio uns quinze anos atrás, o prédio está todo sucateado” (Pedro). Relato parecido é feito por Luiza, que também diz se sentir “frustrada”: Aqui mesmo tem um computador pra todas as profissionais, se uma senta já tem outra querendo fazer um relatório, não tem mais computador, não tem impressora, não tem uma copiadora, até uma cópia tão simples você tem mandar pra Semas, pra fazer e voltar pra você pra depois você encaminhar pro juiz, é dessa forma que funciona. Se esses gestores pensassem melhor desburocratizavam pra facilitar nosso trabalho, a coisa ia andar mais, porque você pensa bem, uma correspondência que você vai mandar pro adolescente, você precisa do CEP, não tem um computador com internet pra você pesquisar o CEP, ai você manda pra Semas pra eles te informarem; então são coisas pequenas e fáceis de resolver, mas a gente vai ficando frustrada no trabalho. Eu vou falar pra você uma coisa, eu amo essa profissão, eu amo o que eu faço [...] mas a gente vai ficando frustrada e cansada com o tempo (Luiza). O desgaste e a insatisfação com alguns aspectos, como o salário e condições precárias de trabalho aparecem nas falas ao mesmo tempo em que se descreve o prazer pessoal em exercer essa profissão; isso indica que a identidade construída nas relações de trabalho influencia na forma como definem e constroem suas identidades, como se percebe no depoimento da assistente social Luiza: “Você tem que amar a profissão, você tem que abraçar a causa, é uma coisa sofrida que te deixa as vezes triste de você falar que não dá conta, deixa, as vezes deixa, né; mas quando você ama a profissão você luta por aquilo, né”. Dentre as entrevistas selecionadas, a única situação em que não há relato de condições precárias de trabalho para o trabalho em Serviço Social ocorreu no ambiente de trabalho da profissional Gabriela, que relata dispor de todo aparato necessário, como computador, impressora, internet, veículo para visitas, além de estabilidade no emprego. 10 Secretaria Municipal de Assistência Social (SEMAS). É o órgão responsável pela implementação da Política de Assistência Social no município de Goiânia. A Secretaria foi instituída em julho de 2007, pela Lei nº8537. Mais informações em: http://www.goiania.go.gov.br/html/semas/ 38 Anais - 2014 V SITRE - ISSN 1980 - 685X É também importante mencionar que o trabalho emocional não é por si só um motivo de estresse, exaustão emocional e esgotamento, mas outros fatores, como condições de trabalho desfavoráveis, jornadas longas, pouca experiência e tempo de trabalho na atividade de interação com clientes, sim. Quanto maior for a autonomia, a possibilidade de ser autêntico nas interações e o reconhecimento no trabalho, são significativamente menores os níveis de desgaste emocional. Isso implica que “não é o trabalho emocional em si que esgota o trabalhador”, mas o conjunto de fatores, exigências afetivas e condições em que o trabalho emocional é realizado no contexto da organização, afirmam Vilela e Assunção (2007). As entrevistas expõem que o desgaste do ambiente de trabalho, o esforço emocional e físico, além das condições inadequadas de trabalho, trazem consequências para a saúde, tornando frequentes as queixas de esgotamento, cansaço, estresse, entre outras patologias, como no caso de Pedro: “Inclusive eu fui vítima do estresse, eu adoeci. Estresse e depressão”. Em outros casos há relato de “mal estar, desânimo, que é o que a gente vê em todos” (Laura). Problemas de saúde também já afetaram Luiza: “eu tive um problema na coluna e tive LER11 na Casa da Acolhida12, porque a gente escrevia demais e eu escrevo muito”. Além disso, o sistema imunológico também pode ser afetado nas situações de repressão de emoções, como constatam Vilela e Assunção (2007, p.90): “os efeitos são mais intensos quando a inibição de emoções é crônica, inflexível e insensível às nuances do ambiente social”. Por outro lado, as relações sociais estabelecidas fora do ambiente de trabalho oferecem suporte externo (relações familiares, amorosas, amizades) e são fatores protetores contra a exaustão emocional e de alívio do estresse emocional. As/os entrevistadas/os descrevem a prática de atividades físicas, como corrida, caminhada e academia, além de relato de trabalho manual com plantas, viagem em final de semana para chácara e cultos religiosos como práticas para alívio das tensões físicas e emocionais geradas no trabalho. 11 Lesão por Esforço Repetitivo (LER), em inglês Repetitive Strain Injury. Criada em 2007, a Casa de Acolhida Cidadã tem como objetivo abrigar temporariamente, famílias e adultos em situação de rua; aqueles que estão em trânsito: migrantes e imigrantes, e pessoas que recebem alta hospitalar e não possuem vínculo familiar identificado no município de Goiânia. O atendimento prestado inclui desde a provisão das necessidades básicas como: alimentação, higiene pessoal e pernoite com segurança, bem como atendimento psicossocial; orientação e encaminhamento para aquisição de documentos pessoais, atividades ocupacionais, orientação e encaminhamento para o mercado de trabalho. Mais informações em: https://www.goiania.go.gov.br/shtml/semas/casa_acolhida_cidada.shtml 12 39 Anais - 2014 V SITRE - ISSN 1980 - 685X A apropriação do trabalho emocional, no que tange à manipulação emocional por exigência institucional, aparece no relato de Ana, funcionária da rede municipal de assistência social em Goiânia. A profissional demonstra que há uma separação entre o significado dos sentimentos exigidos pela instituição, de seus próprios sentimentos e interpretações e exemplifica essa dissonância: Lá as pessoas vivem muito de aparência, então assim, o tratamento que pedem para com os usuários - inclusive é um tratamento que eles querem que seja tratamento paternalista, de política assistencialista - eles pedem para você ter esse tratamento, mas não é por conta do usuário, é muito para deixar a impressão da equipe da primeira dama, a equipe da primeira dama é a melhor equipe, é uma equipe humanizada, mas é aquele humanismo conservador. Então assim, não é a questão do usuário, do usuário se sentir bem; é a questão do usuário dizer que foi na Secretaria (de Assistência Social) e ele foi muito bem atendido pelo pessoal da primeira dama. Então, ninguém ta preocupado com o usuário, todo mundo ta preocupado é em manter seu poder e as relações de poder (Ana). O trecho elucida a divergência entre a “aparência” que o usuário deve ter do serviço e a simulação que a instituição exige da profissional por intermédio da manipulação da emoção. Entretanto, a assistente social parece apresentar uma leitura crítica e consciente sob a dissonância entre o componente político envolvido na simulação de sentimentos e a autenticidade de seus próprios sentimentos enquanto profissional. Segundo Padilha (2013), esse é um aspecto fundamental do trabalho emocional, no qual o trabalhador vende a imagem da empresa/instituição e sua marca/serviço, e nesse processo, estabelece relações com os clientes/usuário O TE orientado por gênero, também deixa suas implicações no Serviço Social, como se evidencia no relato de Pedro, que percebe uma diferença no comportamento dos “meninos” quando os mesmos são atendidos por um profissional do sexo masculino: “Eu acho que na questão de abordagem, tem hora que tem ser forte. Então aí que entra a questão de ser homem, a questão do menino te ouvir sabendo quando é pra tomar uma atitude, ele vai tomar de uma forma diferente da mulher” (Pedro). Soares (2013) observa que o TE está implícito na divisão sexual do trabalho, sendo que os homens devem externar atitudes que exijam um comportamento mais agressivo, rude, duro, frio, etc. Esses estereótipos associam os homens 40 Anais - 2014 V SITRE - ISSN 1980 - 685X ao “campo do racional, do público e da produção, enquanto as mulheres são associadas ao campo do emocional, do doméstico e da reprodução” (idem, p.164). O Serviço Social é produto de construções complexas e dinâmicas da definição de “ser” assistente social e das relações entre os sexos, sendo permeado por valores simbólicos e vocacionais em torno do trabalho feminino e com base em um sistema de qualidades que influenciam as mulheres nas escolhas profissionais, como é possível perceber na fala de Laura: “falam que se parece muito comigo [o Serviço Social] porque eu me preocupo muito com o outro, eu procuro orientar, até com os vizinhos mesmo”. Dessa forma, os atributos baseadas nas qualidades socialmente construídas entre mulheres e homens agem, diferentemente, sobre a identidade construída no trabalho, como se percebe na fala desta profissional: Eu acho que as pessoas não conhecem o que é Serviço Social porque se conhecem não teria essa discriminação de falar que Serviço Social é para mulher e não pra homem. Hoje eu estou vendo mais homens fazendo Serviço Social, mas eu sempre procurei entender isso, na minha sala mesmo só tinha dois homens, eu achava que é porque é uma profissão que o salário não é tão justo e o homem acha que não pode ganhar tão pouco (Luiza). Observa-se a permanência de certos símbolos e situações que atestam que o Serviço Social pode não ser atrativo para a imagem social masculina. Como históricos “provedores do lar”, os homens não poderiam ganhar um salário tão modesto. A inserção de homens no Serviço Social é pequena e lenta, e, mesmo sendo um curso de nível superior não se mostra atrativo suficiente para que os homens vislumbrem nessa profissão uma verdadeira e valorizadora opção profissional. Dados recentes da RAIS 2010 sobre Goiás mostram que a taxa de feminização do Serviço Social no nesse Estado é de 89,9%. Em nível nacional os dados da Pnad 2011 apontam que as mulheres representaram 87,4% da categoria em todo o Brasil neste ano. TABELA 1: ASSISTENTES SOCIAIS OCUPADOS X SEXO - BRASIL- 2011 41 Anais - 2014 V SITRE - ISSN 1980 - 685X Sexo Masculino Feminino TOTAL Frequência 22.069 152.968 175.037 (%) 12,6 87,4 100,0 Fonte: Microdados da PNAD – Pessoas - 2011 – Construção dos autores. CONSIDERAÇÕES FINAIS Diante do exposto, pode-se concluir que a administração do trabalho emocional no Serviço Social ocorre sobretudo em nível de “atuação profunda” (deep acting), que engloba todo o ser, ou seja, esses profissionais não conseguem separar o trabalho das emoções do trabalho cotidiano, fazendo com que até sua subjetividade seja engajada no trabalho, “misturando muito mais as fronteiras entre o público e o privado” (PADILHA, 2013, p.187). As emoções são tão cotidianas no Serviço Social que se tornam parte da identidade profissional das/os assistentes sociais. Isso porque no trabalho em serviços “é impossível separar claramente o trabalhador, o processo de trabalho e o produto” (idem, 2013, p.190). Entretanto, não se pode afirmar, a exemplo do que ocorre em outras ocupações no mundo dos serviços, que se verifica uma exploração predatória ou até mesmo uma expropriação do trabalho emocional por parte das instituições empregadores, pois a maior parte dos trabalhadores em Serviço Social está vinculada a instituições públicas, além de que a formação desses profissionais geralmente incorpora uma orientação marxista ou libertária que, a despeito de suas possíveis ramificações ideológicas, critica a exploração econômica e valoriza a emancipação e a inclusão dos segmentos alijados de seus direitos. Ressalta-se, portanto, a necessidade de uma cuidadosa reconstrução dos conceitos de trabalho e gerenciamento emocional, com suporte na pesquisa empírica e reelaboração de um instrumental teórico-metodológico adequado à analise do Serviço Social no Brasil, levando em conta sua trajetória histórica e as diferentes formas de organização do trabalho, formas de contratação e de atuação ocupacional em localidades distintas. 42 Anais - 2014 V SITRE - ISSN 1980 - 685X A gestão emocional é um aspecto importante do trabalho em Serviço Social, uma vez que este é realizado em constante interação com os usuários. As entrevistas comprovam que assistentes sociais realmente vivenciam emoções, em grau considerável e alteram o gerenciamento emocional nas diferentes demandas, competências e situações relacionadas à profissão. Além disso, a interseção entre TE e gênero mostra que a persistência do Serviço Social como nicho de trabalho feminino desnuda as desigualdades entre os gêneros que persistem no mercado de trabalho. A permanência da marca de gênero subsiste no Serviço Social, reproduzindo uma concepção sexuada de exercício profissional. REFERÊNCIAS BRASIL. Lei 8.662 de 07 de junho de 1993. Dispõe sobre a profissão de assistente social e dá outras providências. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Brasília, DF, 8 jun. 1993, Seção 1, p. 1. BONELLI, Maria da Gloria. Arlie Russell Hochschild e a sociologia das emoções. Cadernos Pagu, Campinas, v. 22, p.357-372, 2003. FLICK, Uwe. Dados verbais. In:______. Uma introdução à pesquisa qualitativa. 2ed. Porto Alegre: Bookman, 2004, p.89-143. HIRATA, Helena. A precarização e a divisão internacional e sexual do trabalho. Sociologias, Porto Alegre, ano 11, nº 21, p. 24-41, jan/jun 2009. HOCHSCHILD, Arlie Russel. 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The field research employs semi-structured and narrative interviews with social workers in Goiânia metropolitan region. The results points that the activities in the social work demands high level of emotional labor, establishing a complex actuation field towards the requirement of management of emotional labor in professionals and customers, besides bringing, in some cases, negative occupational health effects. Social work evolves an intrinsic gender intersection and the gendered emotional labor constitutes the proper professional identity construction. This paper, supported by a project in progress, is structured as following: presentation of the field of services sector as a privileged locus of emotional labor by inserting this context Social Work services; building theoretical base to implement the analysis of emotional labor; present results of empirical research. Keywords : Social work, Emotional labor, Service sector, Gender. 44 Anais - 2014 V SITRE - ISSN 1980 - 685X “ANTIGAMENTE TODO MUNDO TRABALHAVA...” MUDANÇAS SOCIAIS E TRAJETÓRIAS DE GÊNERO NA COMUNIDADE LINHA DA CRUZ, MG. SOUZA, Gabrielly Merlo de13 - [email protected] Professora Substituta de Sociologia no Instituto Federal de Minas Gerais (IFMG). Ouro Preto – Minas Gerais. Resumo: neste artigo trato das mudanças sociais e das relações de gênero em uma comunidade rural, localizada no sertão do norte de Minas Gerais, município de Matias Cardoso, conhecida como “Linha da Cruz”. Essas mudanças são acompanhadas de uma serie de processos territoriais de formatação do espaço, entre os quais, mais recentemente, a implementação do Programa Nacional de Produção de Biodiesel – PNPB –, criado pelo governo federal em parceria com a Petrobrás Biocombustíveis – PBIO, tem sido um dos geradores de mudanças nos modos de vida dos moradores. Analiso como a entrada de uma nova economia (biodiesel) se relaciona com os modos tradicionais de vida da comunidade. Para tanto, me detive em realizar uma etnografia atenta à perspectiva das mulheres e às representações de gênero no espaço e na forma de divisão sexual do trabalho. Palavras-chave: Mudanças Sociais, Espaço, Gênero, Biodiesel, PNPB. 1 INTRODUÇÃO “Antigamente todo mundo trabalhava! A mulher ia pra roça também! Só não fazia cortar as ferramentas, pegar de machado... mas enxada? Isso sim... cavava o chão, jogava semente também...14”. 13 Mestre em Antropologia Social, Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). 45 Anais - 2014 V SITRE - ISSN 1980 - 685X Quando estive pela primeira vez na Comunidade Linha da Cruz, localizada em Matias Cardoso, no Norte de Minas Gerais, em novembro de 2010, tinha uma ideia, ainda em construção, de que pretendia pesquisar, sob uma perspectiva de gênero, os impactos na agricultura familiar 15 do Programa Nacional de Produção de Biodiesel (PNPB) 16 . Assim, durante o trabalho de campo, priorizei a discussão com as mulheres sobre suas impressões acerca do Programa na comunidade. Nesse primeiro momento, realizei cerca de 10 entrevistas gravadas, como um primeiro contato com as mulheres. Na segunda ida à campo, mais do que entrevistas, durante minha estadia na comunidade, procurei realizar uma pesquisa etnográfica, no sentindo de produzir uma descrição densa (GEERTZ, 1989), a fim de acompanhar o cotidiano das mulheres e compreender como se relacionam com o lugar, suas atividades e as relações sociais que travam no dia-a-dia. Desde a minha primeira imersão em campo, ao tratar com as mulheres, fui logo informada da existência da “Associação das Trabalhadoras Rurais da Linha da Cruz”, criada pelas mulheres da comunidade. O caráter declaradamente excludente da então existente “Associação dos Homens” conduziu, após alguns anos, na formação de uma Associação formada apenas por mulheres. As pautas das mulheres na Associação costumam ir além do acesso formal a direitos sociais, políticos e civis. Dos encontros que participei, pude observar que elas privilegiam incluir demandas providenciais à comunidade, como acesso a água e a recursos financeiros para projetos agrícolas e que também incentivam aprendizados pessoais e políticos, como a ida das mulheres para cursos de formação política e encontros que acontecem em outros municípios. A Associação também aposta na ação coletiva para alcançar melhorias na vida da comunidade, envolvendo, sobretudo, a área de segurança alimentar e 14 Entrevista com Seu Vicente, agricultor, morador da primeira geração desde a formação da comunidade Linha da Cruz (anteriormente chamado Sertão Antigo). 15 O PNPB utiliza a categoria “agricultura familiar” para definir o grupo social atendido pelo Programa. No entanto, ao longo desta dissertação, não utilizo esta designação por se tratar da forma posta pelo Programa e não pelos agricultores. Assim, procurei utilizar outros termos – como “agricultores”, “produtores rurais” ou “catingueiros” – para me referir ao grupo aqui examinado, tendo em vista a forma como eles mesmos se autoreferem. A categoria “agricultor familiar” utilizado pelo PNPB está de acordo com a forma como o Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (PRONAF) a enquadra. 16 O PNPB é uma política pública voltada para agricultura familiar, criada em 2004, no âmbito do governo federal em parceria com a Petrobrás Biocombustíveis, para promover “sustentabilidade social”, “desenvolvimento regional” e “geração de renda” às famílias do campo. 46 Anais - 2014 V SITRE - ISSN 1980 - 685X geração de renda. Essas ações geralmente se dão através de mutirões para realização de algum empreendimento – como construção de cercas para as hortas ou para a instalação da caixa d’água, por exemplo. Aliadas à ação política, os projetos para melhoria da vida na comunidade não se dão apenas no plano institucional. Aninha, agricultora, moradora da comunidade, co-fundadora e presidenta da Associação, conta que as mulheres quando se reúnem conversam sobre tudo – “a pessoa fala de algum movimento, de algum projeto, fala de saúde, um bucado de coisa...” – e, a partir das conversas, elas definem as ações. Nos dias em que estive na Linha, por exemplo, acompanhei o engajamento delas com os preparativos para as barracas de uma festa popular a acontecer no povoado de Lajedão e participariam vendendo produtos e comidas. No cotidiano, as atividades das mulheres se voltam ao cuidado diário da casa, dos filhos, marido e, até mesmo, de agregados que se juntam à família, e, todavia, com a Associação, elas agora dedicam também uma parte do tempo para os encontros e ações do grupo, reconhecem que tem sido através da Associação que elas têm conseguido apoio para o criatório de galinhas, para ampliação de mudas de árvores frutíferas do quintal, assim como tem angariado recursos junto à EMATER17 para as hortas que, hoje, com alcance comercial, tem crescido cada vez mais em suas residências. Há casos em que uma mesma horta é cuidada por duas mulheres ou mais mulheres que dividem o trabalho, as despesas e o lucro – ainda que o cálculo não venha exatamente de uma lógica de produção de excedente ou maximização de recursos. Esses pequenos circuitos comerciais e de trocas (como de mudas de plantas ou vendas de ovos, por exemplo), reforçam a hipótese de que as mulheres têm tornado aquelas práticas tradicionalmente conhecidas por elas, em atividades que possibilitam geração de renda, além da circulação de conhecimentos entre elas e troca de produtos. O comércio em pequena escala e a rede de mulheres, embora ainda não vistos objetivamente pelos órgãos públicos e mesmo pelos moradores como uma fonte de renda relevante para a comunidade, ou mesmo como uma importante base para a segurança alimentar das famílias, na prática, por outro lado, esse 17 Empresa de Assistência Técnica de Extensão Rural de Minas Gerais, vinculada à Secretaria de Agricultura, Pecuária e Abastecimento. 47 Anais - 2014 V SITRE - ISSN 1980 - 685X “circuito feminino” tem sido uma alternativa significativa ao modelo monocultor/comercial da mamona – considerado até então “carro chefe” da economia local. Com base nesse contexto, as mulheres da Linha da Cruz podem ser vistas como apresentando uma importante contrapartida à crise que vem se estabelecendo no lugar. A crise ao qual me refiro é resultado do processo de intensificação da produção de mamona 18 , incentivada pelo PNPB e por empresas privadas de biodiesel. A substituição da cultura alimentar pelo cultivo de matéria prima industrial, tem sido apontada como principal causa da crise que hoje várias comunidades daquela região tem enfrentado19. Em linhas gerais, observa-se que a entrada de uma economia de mercado nos moldes da economia de biodiesel em um sistema agrícola tradicional como os dos catingueiros 20 do Norte de Minas, tem resultado em um quadro de total dependência econômica de mercados externos e dívidas adquiridas de empréstimos bancários (MERLO, 2012; LASCHEFSKI, 2010; PENIDO, 2011; RAMOS, 2011). Em linhas gerais, pode-se afirmar que esta situação evidencia a perda da autonomia do pequeno produtor rural sobre sua produção – autonomia que é central e característico do ethos camponês (BRANDÃO, 1998). Em minha pesquisa, procurei fazer um “deslocamento epistemológico” no que vinha a ser a discussão sobre “agricultura familiar e o Programa Nacional de Produção de Biodiesel” para, então, dar atenção às questões de gênero no que concerne aos modos de produção local – ou ao o que a antropóloga Emília Godoi (1998) chamou de o sistema do lugar. Com isso, procurei não apenas tomar as atividades dos homens como única, apesar da perspectiva das políticas públicas. Como mostra Moore (2004), observar a reação das mulheres diante dos processos de transformação capitalista, por exemplo, pode revelar aspectos consideráveis da vida social da comunidade geralmente invisibilizadas no plano da economia hegemônica. 18 Mamona é uma matéria prima que pode ser usada para fabricação de biodiesel ou para indústria ricinoquímica, entre outras. Muito embora, estudos tem revelado que nenhum litro de biodiesel tem sido produzido até hoje a partir da mamona. O consumo deste produto se explicaria por ser uma via de obtenção do selo “combustível social”. Segundo a legislação, este selo só é garantido para empresas que consomem pelo menos 30% da agricultura familiar. A obtenção do selo garante a participação de grandes empresas em leilões internacionais de biodiesel. Estes estudos apontam que a maior parte do biodiesel produzido hoje no Brasil é derivado, principalmente, de sebo de boi e soja, produtos obtidos basicamente do agronegócio. FONTE 19 Segundo a Petrobrás, a comunidade Linha da Cruz, localizada em Matias Cardoso/MG, foi identificada como principal produtora de mamona da região norte de Minas – na micro região de Januária figura a maior produção regional, 36,5%, sendo 860 hectares concentrados no município de Matias (MERLO, 2012). 20 os povos da caatinga tem sido externamente classificados como Catingueiros. 48 Anais - 2014 V SITRE - ISSN 1980 - 685X Para fins deste artigo, faço uma breve discussão da relação entre trabalho, gênero e espaço através da bibliografia relacionada, procurando apresentar algumas das minhas impressões resultantes de trabalho de campo realizado na comunidade catingueira Linha da Cruz, localizada no norte de MG. 2 MUDANÇAS SOCIAIS, TRAJETÓRIAS DE GÊNERO A razão pela qual considerei destacar o trabalho da mulher e os marcadores de gênero para análise dos sistemas produtivos e da organização social na comunidade Linha da Cruz/Sertão Antigo 21 se deve ao fato de o fio condutor da minha pesquisa ser o modelo agrícola em área Caatinga consonante ao que Purajuli (1996) chama de “etnicidades ecológicas22”, assim, ao tratar acerca do tema dos “sistemas produtivos rurais”, observei que, tradicionalmente, a bibliografia clássica (CHAYANOV, 1974; POLANYI, 1980) produz uma separação binária e automática entre trabalho masculino e feminismo, delegando quase que naturalmente às mulheres o espaço da esfera doméstica, e o trabalho (na roça) como de domínio masculino. Assim, trabalho produtivo é entendido sempre como aquele que além de definir a cultura como um todo, também é tido, não por acaso, apenas como a esfera de domínio dos homens23. 21 “Sertão Antigo” é uma expressão usada pelos moradores para dividir a comunidade da parte mais nova, a Linha da Cruz”, da parte antiga, ocupada pelos primeiros posseiros de terra. 22 Com o termo “etnicidades ecológicas”, Parajuli (1996) se refere ao fenômeno que surge na India, no início do sec. XX, de “etnização da destruição ecológica”, o qual grupos étnicos utilizam-se da rubrica da “ecologia” para lutar pela sua autonomia, logo, contra a exploração capitalista e o desenvolvimento estatal. Ainda que não se articulem explicitamente aos objetivos ecológicos, o surgimento desses novos movimentos políticos, representa, na perspectiva do autor, uma mudança de foco dentro dos movimentos ambientalistas. Os grupos étnicos, ao reivindicarem sua autonomia, estão lutando por questões ecológicas, já que necessitam dos recursos naturais para existir. Assim, o novo movimento ecológico lança mão de uma abordagem nacionalista, para enfatizar, então, as diferenças étnicas e os variados modos dos grupos interagiram com os recursos naturais. O autor considera a etnicidade central para o desenvolvimento e a ecologia, uma vez que conflitos por recursos estão localizados, geralmente, nas áreas onde estes grupos estão situados (Ecological Regions). 23 Sobre esse ponto, Ortner (1974) é uma referência importante para análise do status social das mulheres em termos culturais. A autora, em seu artigo “Is Female to Male as Nature to Culture?”, apresenta o argumento de que a “cultura” é sempre pensada e definida em termos das práticas masculinas. Para ela, cada cultura, à sua maneira, coloca a mulher em uma posição de inferioridade em relação aos homens. 49 Anais - 2014 V SITRE - ISSN 1980 - 685X Nos últimos anos, a importância da abordagem de gênero para análise da organização social do campesinato tem sido cada vez mais endossada pelas pesquisas na área, já que os “modelos tradicionais de compreensão de grupos de agricultores, especialmente aqueles identificados como camponeses, costumavam naturalizar a divisão do trabalho e da vida cotidiana entre homens e mulheres e também entre adultos e jovens” (SCOTT, 2006, p.17). Henrietta Moore (2004) dedicou-se aos estudos de gênero e Antropologia Social procurando, a partir dessa interseção, contribuir para o debate em torno das noções de “trabalho”, “produção” e “reprodução” que rondam o universo de pesquisas na Antropologia. Em seu livro Antropologia y Feminismo, ela faz uma detalhada revisão teórica de etnografias que descrevem as práticas de homens e mulheres em diferentes contextos culturais como forma de elucidar acerca do tratamento teórico que a Antropologia tem historicamente dado às relações de gênero. Ela mostra que, embora o espaço doméstico tenha sido culturalmente identificado como domínio feminino, a naturalização desse dado na teoria que trata da organização social do trabalho oculta ou invisibiliza outras formas possíveis de inserção das mulheres na economia e em atividades que garantem a reprodutividade social do grupo. Por outro lado, a autora destaca que, especialmente nas últimas décadas, a participação das mulheres em trabalhos ditos “produtivos” tem sido cada vez mais evidente. Uma das principais consequências identificadas da crise nos pequenos sistemas rurais policultores, provocados pela modernização agrícola e globalização da economia, tem sido a intensificação do êxodo rural. A migração dos homens para os centros urbanos em busca de trabalho se relaciona ao valor moral do “homem” enquanto “chefe de família”, o que por sua vez está atrelada ao princípio de “honra masculina” (WOORTMAN, 1990). No entanto, a migração dos “chefes de família” para a cidade, tem deflagrado no âmbito do sítio camponês em novos arranjos nos papéis tradicionais de gênero. Na ausência do homem (marido/pai), as mulheres (esposas/filhas) tem assumido os serviços na roça deixados pelos homens como forma promover a manutenção das lavouras e até mesmo do negócio, bem como garantir a sobrevivência do grupo familiar 24 . Alguns dados mostram que, hoje, as mulheres tem 24 Para Ortner (1974), as mudanças em relação aos papéis sexuais de homens e mulheres numa determinada sociedade, não necessariamente representa uma mudança na estrutura simbólica dos sistemas sociais. 50 Anais - 2014 V SITRE - ISSN 1980 - 685X garantido de 40 a 80% da produção agrícola em países em desenvolvimento (CHARLTON, 1984 apud MOORE, 2004, p.60). Sobre isso, Henrietta Moore (2004) chama atenção para o tratamento teórico que as pesquisas tem dado às atividades das mulheres nas sociedades rurais. Ela aponta ser a própria definição ou conceito de trabalho o problema para que se tenha, historicamente, colocado o “trabalho feminino” ou “trabalho reprodutivo” num lugar de menor importância nas etnografias e investigações em geral. “trabajo no es solo lo que hace la gente, sino además las condiciones em que se realiza la actividad y su valor social em um contexto cultural determinado. Reconocer el valor social atribuído al trabajo, o a um tipo particular de trabajo, nos ayuda a entender por qué algunas actividades se consideran más importantes que otras” (MOORE, 2004, p.60). Moore (2004) também critica a recorrência na literatura antropológica da identificação das mulheres como “donas de casa”, quando na realidade elas exercem também outras atividades como ajuda25 ou mesmo assumem o trabalho na roça, realizam trocas comerciais em pequena escala, entre outras atividades que fogem àqueles trabalhos do plano doméstico26. Uma vez que se concebe que a contribuição das mulheres com tais atividades “menores” é decisiva para reprodução social do grupo, compreende-se que “economia” não é exclusivamente de domínio masculino, assim como também não são os homens necessariamente os únicos provedores de alimentos do grupo familiar ou da comunidade. Woortmann (1991) ao pesquisar comunidades localizadas no litoral do Rio Grande do Norte que se identificam como “comunidades pesqueiras”, analisou a relação entre espaço, construção do gênero e condição feminina. Seu trabalho é bastante ilustrativo para mostrar como as representações do espaço e do tempo são também marcadoras de gênero. Nos tempos passados, nos mostra a autora, as atividades da comunidade em “terra firme” – como criação 25 Hernandéz (2010) mostra com base em dados empíricos que as mulheres “se percebem como coadjuvantes, principalmente na lavoura, mesmo que seja em tarefas específicas como a colheita de soja e aplicação de fertilizantes (...) essa participação é categorizada como ‘ajuda’” (p. 106). 26 Embora muitas das atividades das mulheres, como comércio em pequena escala, possa, muitas vezes, acontecer no plano do privado, em suas próprias casas, etc. Razão pela qual torna-se falacioso falar em termos de público/privado como instâncias discrepantes no plano da vida prática. 51 Anais - 2014 V SITRE - ISSN 1980 - 685X de animais e agricultura de subsistência – eram praticadas exclusivamente pelas mulheres, tais práticas eram cruciais para o sustento das comunidades e revelavam que aquele grupo social não vivia apenas das atividades de pesca, mas o trabalho das mulheres era crucial para reprodução social do grupo. Com o avanço do turismo na região e com a especulação mobiliária, os espaços e ambientes onde as mulheres exerciam suas atividades foram sendo cada vez mais reduzidos para dar espaço ao avanço da economia globalizada. Conforme a autora procurou mostrar em sua pesquisa, mar e terra eram os dois principais domínios naturais para os quais as comunidades se referenciavam, com isso, são também importantes marcadores das diferenças entre homens e mulheres: o mar é domínio dos homens, enquanto a terra é lugar das mulheres. As formas de classificação do espaço que Woortman (1991) descreve revela um conjunto de representações coletivas que intercalam o universo simbólico das representações de gênero de cada sociedade. Portanto, para a autora, toda transformação do espaço, seja por fatores externos ou internos, produz mudanças significativas nas relações sociais. Deste quadro que Woortman (1991) apresenta das comunidades estudadas, pode-se concluir que no passado, antes do avanço do turismo, as mulheres travavam com os homens uma relação de complementaridade econômica. Se por um lado os homens exerciam a atividade da pesca e comercialização dos peixes, eram as mulheres que produziam os demais alimentos, faziam artesanato e praticavam coleta extrativista. Além disso, “mar” e “terra”, embora simbolizassem uma oposição de gênero, podiam, eventualmente, ser transitados por mulheres e homens quando fosse preciso. Assim, se mulheres eram responsáveis pela agricultura, homens ajudavam construindo as cercas, se a pesca era executada exclusivamente por homens, as esposas tinham o trabalho de costurar as redes e tarrafas para seus maridos, além de salgar o pescado para venda. No entanto, embora essas atividades estivessem atreladas a um sistema hierárquico de divisão de gênero, no plano do discurso, a pesca é subentendida como atividade principal em detrimento das atividades femininas. Os anos 1950 e 1960 Woortman descreve como o período da chegada do arame farpado na região, ou seja, o cercamento do espaço casa-quintal, sua redução e a perda das soltas. Antes a fartura das famílias não estava associada ao dinheiro, mas à auto-subsistência e à internalização dos supostos de produção (não haviam gastos monetários ou eles eram 52 Anais - 2014 V SITRE - ISSN 1980 - 685X reduzidos ao mínimo). O que se altera a partir desse momento é que os tempos de “fartura” passam, então, a serem substituídos pela necessidade de reunir várias atividades comerciais para que a sobrevivência do grupo seja garantida. Por fim, os tempos atuais, parafraseando a forma como se referem os próprios moradores à Woortmann, é “um tempo muito esquisito” (WOORTMANN, 1991, p.15). O nexo monetário que dominou, praticamente, toda a vida cotidiana do povoado, o “saber tradicional”, antes transmitido pelos mais velhos da comunidade, agora não é mais passado aos mais jovens, já que fora substituído por um saber médico, científico. Além disso, não há mais espaço para produção agrícola e a substituição das jangadas por embarcações a motor fez com que muitos pescadores se afastassem da pesca. “[...] a construção do tempo é também a construção do gênero, pois ele é percebido através de experiências que são específicas a cada gênero, em espaços que lhes são também específicos. Se o tempo e o espaço são categorias universais do pensamento, são também categorias pensadas culturalmente [...]. Antigamente, com o conteúdo que tem hoje, só existe hoje. A percepção do tempo histórico é, ela mesma, histórica, pois é dada num momento específico da história – e não menos histórica é, por certo, a percepção do antropólogo que fala sobre o tempo dos outros; há não muito tempo atrás, os antropólogos não se preocupavam em distinguir a temporalidade de mulheres e de homens” (WOORTMANN, 1991, p.25). Na comunidade Linha da Cruz examinada, as atividades de cuidado do gado representam uma atividade masculina local e uma forma de afirmação da identidade dos homens. Além disso, ela era uma das principais tarefas executadas pelos agricultores no cotidiano. Hoje essa realidade tem se modificado em função da mamona. Seu Antônio dizia: “tem gente que tá vendendo o gado pra investir na mamona. Tem gente que tá investindo. Inclusive, eu fiz até um cálculo de vender as duas vacas o ano passado mesmo, eu fiz o cálculo, ‘vou vender essas vaquinhas aqui e vou plantar mamona’”. Diante desse quadro, observei algumas mudanças na divisão sexual do trabalho na comunidade. Ao menos no período entre safras, em que os homens aguardavam a época de colheita, muitas das atividades ocupadas tradicionalmente por mulheres passaram a contar com a “ajuda” dos homens, ou mesmo passaram a ser feita por eles. A “inversão” dos papéis de gênero, expressa no deslocamento das atuações, sugere uma possível reconfiguração dos papéis sexuais de trabalho – o que não significa exatamente romper com a “estrutura 53 Anais - 2014 V SITRE - ISSN 1980 - 685X patriarcal” de manutenção das hierarquias sexuais. O que antes as mulheres executavam junto aos homens recebia o nome de “ajuda” – como o trabalho na roça, por exemplo –, hoje o trabalho de domínio das mulheres – como o cuidado da horta, separar a produção para venda nas feiras, etc – tem os homens como ajudantes, seja para levantar a cerca da horta ou para cuidar dos animais domésticos. O caráter puramente comercial da produção da mamona a torna, todavia, lócus de trabalho masculino, uma vez que são os homens quem tomam a frente nas práticas do negócio (WOORTMANN, 1983). Assim, observa-se que a lógica do PNPB fundada no objetivo de promover inclusão social da agricultura familiar e desenvolvimento regional, não apenas apresenta uma postura “neutra” em relação a uma perspectiva de gênero, como reforça a lógica de que a economia do lugar se define pelo trabalho dos homens, naturalizando o papel que lhes é atribuído na divisão sexual do trabalho. 3 ETNOGRAFIA DO ESPAÇO NO TEMPO27 A diferença entre instrumentos utilizados por mulheres e homens fica evidente na fala do Seu Vicente; as atividades realizadas no espaço e a organização da economia eram sempre descritos em termos de “feminino” e de “masculino”. Através do discurso de homens e mulheres sobre o passado, foi possível identificar como a relação entre eles foi se modificando com o tempo. Esses relatos vinham acompanhados, geralmente, de descrições sobre a mudança no espaço e nas relações de trabalho, as quais forneciam pistas que indicavam a forma como o trabalho era dividido e o tempo ocupado. Como explica Woortmann (2009), o trabalho na terra não é apenas de ordem técnica, mas atua simbolicamente, marcando hierarquia e posições sociais. Como ela mostra, a organização social do universo camponês está constantemente atrelada a noções morais, seja em torno dos espaços que separa roça, quintal e casa, seja em relação aos instrumentos de 27 Expressão extraída de Woortmann (1991). 54 Anais - 2014 V SITRE - ISSN 1980 - 685X trabalho – como Seu Vicente, morador da Linha da Cruz, certo dia me disse: “antigamente todo mundo trabalhava! A mulher ia pra roça também! Só não fazia cortar as ferramentas, pegar de machado... mas enxada? Isso sim... cavava o chão, jogava semente também...”. Houve um tempo em que, apesar das relações hierárquicas existentes no plano da ideologia demarcar o lugar do homem como “chefe de família” e da mulher e filhos como subordinados a ele, na prática, as relações internas da família no âmbito do trabalho eram caracterizadas pela complementaridade entre os gêneros e a subsistência do grupo social dependia, justamente, do envolvimento de todos os membros do grupo familiar nas atividades produtivas e reprodutivas. No Sertão Antigo, como contam os moradores, além do negócio de mamona (nos anos 2000) e algodão (anteriormente, nos anos 1980), o cuidado do gado era atividade dos homens, assim como a caça. As mulheres plantavam horta, cuidavam do quintal, mas também tinham algumas funções no trabalho de roçado e colheita, junto com os homens. Além disso, haviam a seu encargo atividades como de parteira, rezadeira, conhecedora de plantas medicinais e também da administração da casa. A captura e transporte da água dos lajedos até a casa e sua reserva para beber, a preparação de alimentos, higiene pessoal, controle da alimentação dos animais de pequeno porte do quintal e o cuidado com as plantas consistiam também em responsabilidades atribuídas às mulheres. A unidade de produção familiar conjugava antigamente uma ampla espacialidade que favorecia a interação entre homens e mulheres, uma vez que a “ênfase estava na autosubsistência e na ‘internalização dos supostos de produção’ [...], isto é, na minimização de insumos externos à unidade espacial-familiar e à comunidade” (Woortmann, 1991, p.07), ou seja, o grupo doméstico trabalhava junto como um workteam, voltado para distribuição do trabalho entre solta, roçado, caça, e outras atividades. Essa forma de execução das atividades nos tempos antigos fica muito bem ilustrada na fala do Seu Pio, quando ele diz: “Naquele tempo quem vestia o homem era a mulher. A mulher fiava algodão, no tear...”. O algodão, plantado na roça por homens, geralmente era colhido pelas mulheres e filhos, podia ser utilizado tanto para fabricação de roupas por parte 55 Anais - 2014 V SITRE - ISSN 1980 - 685X das mulheres, quanto para venda na cidade em sacarias costuradas pelas mulheres – ou seja, indiretamente, as mulheres estavam envolvidas em atividades para realização do negócio. As soltas eram terras livres onde o gado era criado e havia liberdade de trânsito, tanto para a lavoura, criatório, retirada de madeira e lenha, quanto para obtenção de água para as mulheres armazenarem ou lavarem roupas. Com a privatização dessas terras pela Ruralminas28, em 1974, essa área foi transformada em assentamento rural e dividida entre os posseiros do Sertão e chegantes que viam até a região interessados em um pedaço de terra, todavia, a maior parte da área foi vendida para grandes proprietários rurais. Assim, se as soltas outrora eram a condição para a reprodução social daquele grupo, a criação de gado era o que caracterizava o modo de vida e demarcava o trabalho do homem, uma vez que só o trabalho agrícola não garantia sua sobrevivência – devido às secas constantes, o grupo investia também nas atividades pastoris. Com a privatização das terras e perda das soltas, homens e mulheres tiveram seus espaços restringidos. A redução do espaço casa-quintal, sobretudo de domínio das mulheres, e a caça, foram os principais afetados no processo, comprometendo substancialmente o universo simbólico espacial constituído pelo grupo. Massey (2007) diz: “spaces and places are not only themselves gendered but, in their being so, they both reflect and affect the ways in which gender is constructed and understood29” (p.179). De acordo com a perspectiva dos estudos de gênero, os lugares e as coisas não são masculinas ou femininas, no sentido discutido por Massey (2007), é o significado desses valores de gênero que são cruciais para definição dos lugares e dos espaços. A autora chama atenção para a importância de se abordar não apenas as questões em torno das relações econômicas, mas também das relações de gênero como significativas abstrações dos espaços sociais: “the hegemonic spaces and places which we face today are not only products of forms of economic organization but reflect back at us also – and in the process reinforce – 28 Fundação Rural Mineira de Colonização e Desenvolvimento Agrário, criada nos anos 1960 pelo governo de Minas para promover colonização e desenvolvimento rural em Minas Gerais. 29 Tradução livre: “lugares e espaços são não são em si mesmo gendered, mas, ambos refletem e afetam a forma na qual gênero será construído e entendido”. 56 Anais - 2014 V SITRE - ISSN 1980 - 685X other characteristics of social relations, among them those of gender 30 (MASSEY, 2007, p.183). Em relação às atividades das mulheres na Linha da Cruz/MG, a moradora Aninha conta que antigamente elas ficavam encarregadas de administrar as reservas de alimentos para a família, alimentar os animais domésticos, cuidar dos filhos e do abastecimento de água para casa. No entanto, elas também participavam daquelas atividades tidas como sendo exclusivamente masculinas, como a caça e o cuidado do gado, por exemplo. Seja no trato e preparo do animal caçado ou na ordenha do gado, nenhuma dessas atividades era exclusivamente feita pelos homens, o que aponta para o fato de que a forma como o gênero é representado no plano do discurso não corresponde à forma como as atividades de homens e mulheres são executadas na prática. Sobre esse ponto, Brandão (1998), ao tratar da relação de trabalho cotidiano de homens e mulheres numa comunidade rural no interior paulista, mostra: “Sim, os homens caçam, não há dúvida. Mas as mulheres os acompanham muitas vezes, cuidam dos cães e carregam os macacos mortos. Ritualmente elas fazem sortilégios propiciatórios e simbolicamente respondem por uma fração complementar essencial do significado da caçada. Os homens atiram nas águas as plantas que atordoam e matam os peixes e os ferem. Mas as mulheres os recolhem; coletam os peixes na água, como frutas fáceis de pegar com as mãos. As mulheres semeiam, tratam da lavoura e colhem. Os homens preparam a terra bravio, queimam e, assim, dominam uma porção próxima de natureza ainda não incorporada à sociedade, para que as mulheres exerçam ali uma espécie de trabalho duplamente fecundador. Primeiro, ao fecundar com a semente a terra pronta para o plantio. Segundo, ao colher e preparar com o fruto da terra a condição de vida do grupo humano da unidade doméstica” (BRANDÃO, 1998, p. 138) Strathern (1999) em trabalho de campo, ao longo de três décadas em que esteve entre os Hang que vivem na Papua Nova-Guiné, Melanésia, também faz uma importante análise dos processos de mudanças sociais numa perspectiva temporal e de gênero. O extenso trabalho feito por ela no início da década de 1970 foi retomado nos anos 1990. Neste momento, a antropóloga se deparou com a região passando por um intenso processo de mudanças, desencadeadas pela entrada do mercado monetário do café e pelo avanço do comércio – em 30 Tradução livre: “os espaços e lugares hegemônicos que enfrentamos hoje não são apenas produtos de formas de organização econômicas, mas refletem em nós também – e nesse processo – outras características das relações sociais, dentre elas a de gênero”. 57 Anais - 2014 V SITRE - ISSN 1980 - 685X contraste com o tempo caracterizado pela “troca de dádivas”. No entanto, Strathern (1999) mostra que, apesar da nova economia ter sido “divisora dos costumes”, por outro lado, dois tempos pareciam coexistir: podia-se viver tanto no futuro como no passado, “seguir costumes dos antepassados ou seguir os costumes do comércio”, sendo essa a forma como o presente se apresenta – “the past and the future are both present31” (STRATHERN, 1999, p.90). Strathern (1999) aponta que a emergência de um novo Estado da Papua Nova-Guiné e o sistema judiciário adquirido mostravam-se inadequados para lidar com questões internas ao grupo, tais como as “guerras tribais” e as “políticas hagens” para o homicídio (o pagamento pelos homicídios passou a ser feito a partir de grandes quantias em dinheiro que se podia adquirir trabalhando com as plantações de café e chá, e não mais com conchas – “desvalorizadas em face do dinheiro”). A entrada da horticultura de mercado surtiu efeito democratizante para homens e mulheres. Estas, todavia, passaram a se envolver na atividade comercial e tinham agora seu próprio recurso. Strathern mostra que o porco no passado era o “símbolo por excelência do esforço conjugal”, mas que agora, se necessário, poderia ser comprado. Ela mostra que quando esteve entre os hagens nos anos 1970, o desejo das mulheres de criar porcos para comer parecia “fazer parte do ciclo de produção e consumo relativo às relações de sexos opostos”, não entravam na esfera de transação econômica, já que a produção subsumia o consumo. Agora, mostra Strathern, homens falam de produção/transação de um lado, e consumo de outro, justamente o contraste que define a “nova esfera do empreendimento comercial”. Também a horticultura vinha aos pouco sendo desviada para o cultivo de café. Motivados por um “espírito pioneiro em relação ao negócio”, alguns povos retornaram para aquela região interessados em ganhar dinheiro; dizia-se que a terra lá era boa e o dinheiro “vinha fácil”. Com isso, Strathern mostra que o território estava mudando bruscamente, que a forragem dos porcos se reduzia mês a mês, e que os porcos, agora, deviam ficar presos ao invés de soltos pelas ruas fuçando comida. Com a presença constante do mercado no 31 Tradução livre: “passado e futuro são, ambos, presente”. 58 Anais - 2014 V SITRE - ISSN 1980 - 685X cotidiano, homens solteiros agora podiam ir para rua comprar um lanche, como nunca haviam feito antes. Na Linha da Cruz/MG, a participação das mulheres no novo circuito econômico, ainda que limitada à obtenção de parcelas menores do dinheiro que entrava – sendo as grandes quantias responsabilidades dos homens –, conduzia não apenas ao surgimento de novos desejos de consumo por parte delas, como também passou a estabelecer novas posições entre os sexos. Não apenas a nova economia impulsionada pela entrada do PNPB resultou em uma nova forma dos moradores se relacionarem com a terra, como também uma nova atitude feminina passou a vigorar. Deparar-me com um coletivo de mulheres da Comunidade possibilitou à pesquisa um cenário diferenciado que evidencia uma experiência singular das mulheres do campo, ou seja, uma vivência política que conjuga experiências pessoais e coletivas, criando formas de representação e apresentação das mulheres. Como expressa Mota (2006), “não existe um trabalho com homens, mas sim um trabalho com mulheres, e é por este que se redefinem e se reposicionam as mulheres nas relações sociais como trabalhadoras e mulheres que tem valor – reveem a si e ao que fazem atribuindo significado e valor” (p.348 – grifos meus). 4 CONSIDERAÇÕES FINAIS Woortmann (1991) e Strathern (1999), em suas respectivas pesquisas, descrevem o florescimento de novas relações sociais entre homens e mulheres, em ambos os casos, propiciadas pelo inflacionamento da economia, em função de mudanças nos modos de produção local e de transformações no espaço. No entanto, como mostra Strathern (1999), mudanças no modo tradicional de organização social não significa necessariamente uma alteração na forma de pensar ou de entendê-la por parte dos nativos. Segundo a antropóloga, em relação aos hagen, as pessoas ainda pensam em termos de moka (presentes rituais), mas, como relata um morador antigo, o que mudou foram as relações entre os sexos e as relações maternas em particular que passaram a ficar “cada vez mais caras” – mais inflacionadas. 59 Anais - 2014 V SITRE - ISSN 1980 - 685X Nesse sentido, as pesquisas das autoras nos mostram como a entrada do dinheiro (ou a necessidade dele) introduz novas ocasiões na relação entre homens e mulheres que conduzem a mudanças que devem ser observadas nas relações reprodutivas e produtivas. De forma similar, na comunidade Linha da Cruz, a vida cotidiana está imersa em questões em torno do dinheiro, o que representa a monetarização da vida social, como aponta Woortmann (1991). Ao atentar para as atividades das mulheres na comunidade Linha da Cruz, pude observar que elas construíram uma economia paralela ao comércio da mamona. A atuação das mulheres em um comércio de pequena escala cunhava como que uma alternativa – silenciosa e “com aparência de conformidade” (SCOTT, 2002) – aos tempos de instabilidade econômica que vinham afetando a comunidade. No discurso das mulheres não havia, contudo, qualquer intenção declarada em produzir uma alternativa ao mercado de mamona. Por outro lado, pude inferir que a construção de uma rede social de mulheres e as articulações cotidianas em torno de necessidades pessoais ou familiares, ainda que incipientes para reprodução social do grupo, diziam sobre uma intenção, não-declarada, impressa em suas ações, que tendiam mais para construção da autonomia local do que para a aquiescência a um mercado regional/global – como o de biodiesel. As práticas sociais das mulheres, assim como as discussões levantadas por elas no diaa-dia, afastavam-se de uma perspectiva de mercado em grande escala. Mais interessadas em potencializar seus recursos a partir da diversidade de produtos e de uma perspectiva local, elas, ao que me pareceu, distanciavam-se do ensejo produtivista-mercadológico posto pelo PNPB. Nesse sentido, observa-se a importância da abordagem de gênero no que concerne à observação das práticas produtivas existentes no lugar. 5 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BRANDÃO, Carlos Rodrigues. Cenário e momentos da vida camponesa: três dias de caderno de campo em uma pesquisa no Preto de Baixo do Bairro dos Pretos, em Joanópolis, São Paulo. In: GODOI, E. P.; NIEMEYER, A. M (orgs). Além dos territórios: para um diálogo entre a 60 Anais - 2014 V SITRE - ISSN 1980 - 685X etnologia indígena, os estudos rurais e os estudos urbanos. Campinas: Mercado das Letras, 1998. p.133-166. CHAYANOV, Alexander V. 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Abstract: this article dealing with social change and gender relations in a rural community located in the backwoods of northern Minas Gerais state, county Matias Cardoso, known as "Linha da Cruz". These changes are accompanied by a series of territorial space formatting processes, including, most recently, the implementation of the National Program for Biofuel Production (PNPB), created by the federal government in partnership with Petrobras Biofuels - PBIO, has been a generators changes in ways of life of residents. So, I analyze how the entry of a new economy (biofuel) relates to traditional ways of life of the community. For that, I stopped in to perform a thorough perspective of women and gender representations in space and in the form of sexual division of labor ethnography. Keywords: Social changes, Space, Gender, Biofuel, PNPB. APRESENTAÇÃO EM POSTER AS IDAS E NÃO VINDAS DOS ALUNOS DO PROEJA NA ÓTICA FEMININA SCOPEL, Edna Graça32 – e-mail: [email protected] FERREIRA, Maria José de Resende33 – e-mail: [email protected] 32 Doutoranda em Educação do PPGE/CE/Ufes. Membro do Núcleo I do PPG/CE/UFES na Rede de Pesquisa UFG/Ufes/UnB do Programa Observatório da Educação (Obeduc/Capes). Pedagoga do Proeja do Ifes campus Vitória. 63 Anais - 2014 V SITRE - ISSN 1980 - 685X ROSA, Silvia Nepomuceno34 - e-mail: [email protected] Instituto Federal do Espírito Santo campus Vitória Avenida Vitória, 1729 - Bairro Jucutuquara 29040-780 - Vitória – ES Resumo: Esse estudo propõe fazer uma análise dos fatores que contribuíram para o fracasso escolar do público feminino que participa do Programa Nacional de Integração da Educação Profissional com a Educação Básica na Modalidade Educação de Jovens e Adultos (Proeja) no período de 2010 a 2013 no Ifes Campus Vitória. É uma investigação de natureza qualiquantitativo, de caráter descritivo com apresentação de estudo de caso. Os intercessores teóricos são Nader (2005; 2007), Bruschini (2000; 2008), Ferreira (2003; 2010) e Nogueira (2003); Patto (1997; 2004); Abramowicz (200); Bourdieu (1975); Fernandez (2005); Freire (1996), entre outros, que problematizam as questões das relações sociais de gênero e o fracasso escolar. A produção dos dados é feita por meio de entrevista com as educandas evadidas dos cursos técnicos integrados ao Proeja e pela análise documental. Considera que os dados produzidos pela pesquisa possam contribuir para repensar a oferta do Programa no Ifes e na reelaboração de políticas pelo Estado e/ou de ações afirmativas por organizações atentas à questão da escolarização feminina. Palavras-chave: Fracasso escolar, Proeja, Estudos de gênero. 1 PARA INÍCIO DE CONVERSA... É corrente nos estudos acerca da escolarização do público feminino, a constatação de que as novas gerações do gênero feminino conseguiram transformar a histórica situação de desigualdade, visível também no campo educacional, em que os índices de analfabetismo 33 Doutoranda em Educação do PPGE/CE/Ufes. Membro do Núcleo I do PPG/CE/UFES na Rede de Pesquisa UFG/Ufes/UnB do Programa Observatório da Educação (Obeduc/Capes). Coordenadora do Proeja do Ifes campus Vitória. 34 Aluna da Licenciatura em Letras do Ifes campus Vitória. 64 Anais - 2014 V SITRE - ISSN 1980 - 685X dessa parcela da população sempre foram maiores que os masculinos. Segundo Nogueira (2003) essa equiparação e superação vêm acontecendo gradativamente desde 1940, quando o país iniciou o processo de democratização do sistema de ensino. Entretanto, com relação a outros níveis de escolarização do segmento feminino de idade considerada jovem e adulta, pertencente à população de baixa renda, essa afirmativa é discutível. Os estudos de Ferreira (2003, 2010) revelam as especificidades do público feminino inseridos em cursos técnicos no âmbito das instituições da Rede Federal de Educação Profissional e Tecnológica. Os mesmos apontam que ainda persistem muitos fatores que dificultam a inserção, a permanência e o êxito escolar desse segmento estudantil nos cursos técnicos de nível médio, tanto no que diz respeito às questões de cunho socioeconômico, pedagógicas e metodológicas quanto às determinadas pelas relações sociais de gênero. Constatamos que essas alunas, além das dificuldades de aprendizagens pelo longo tempo fora da escola e pelas trajetórias de estudos descontínuos, pelas práticas pedagógicas inadequadas à especificidade desses sujeitos, entre outras questões pertinentes, convivem também com outros obstáculos, tais como as dificuldades financeiras, o pouco apoio familiar (oposição do pai, marido e filhos) e do poder público, no que diz respeito à falta de infraestrutura como creches e escolas no período integral para seus filhos/as e casa de assistência aos idosos/as. Esses fatores dificultam a sua inserção, sua permanência e seu êxito nos cursos de formação profissional técnica da escola. É conhecida e pertinente a discussão da dualidade do sistema educacional, que ainda persiste na sociedade brasileira – educação superior para as camadas privilegiadas e educação profissional para as camadas populares. Por outro lado, estudos científicos, comprovam a contribuição da educação profissional de nível médio para o sucesso desses jovens, oriundos dos setores populares e dos grupos médios, para ingressarem no ensino superior e no mundo do trabalho com mais competitividade. Nesse sentido, o Ifes campus Vitória representa, para uma parte considerável da população capixaba, uma alternativa para dar sequência ao seu itinerário formativo e ao mesmo tempo, buscar sua inserção no mundo do trabalho, pela profissionalização técnica. E esta parcela estudantil a que busca essa Instituição, grande parte pertence ao gênero feminino. 65 Anais - 2014 V SITRE - ISSN 1980 - 685X Faz-se necessário, ainda destacar que hoje, trabalho e salário femininos são necessários à sobrevivência da própria família. Desde 2006, o Ifes campus Vitória abre editais para ingresso de alunos para os cursos técnicos integrados ao ensino médio de jovens e adultos. A cada semestre são oferecidas uma média 34 vagas para cada curso (Edificações, Metalurgia e Segurança do Trabalho). Entretanto, detectamos que são poucos os alunos que concluem o curso. Pela análise documental dos dados depreende-se que há uma taxa elevada de evasão. Diante desse quadro, nos preocupamos sobremaneira acerca da situação do público feminino da EJA nesse contexto, devido a histórica dificuldade de sua inserção e êxito no processo de escolarização. Defendemos, dessa forma, a importância de fazer um recorte de gênero, para se debruçar na especificidade da oferta de escolarização feminina em uma instituição de educação profissional técnica. Deve-se destacar, ainda, que apesar da crescente publicação sobre a Educação de Jovens e Adultos e dos Estudos Femininos, a presente pesquisa justifica-se pela constatação da escassez de trabalhos investigativos integrando as temáticas: a Educação de Jovens e Adultos (EJA), a Educação Profissional (EPT) de nível Médio e os Estudos de Relações de Gênero. Constatam-se também a inexistência de interfaces dos estudos dessas modalidades de educação (EJA e EPT) e as causas do fracasso escolar, no diálogo com os estudos de relações de gênero, etnia, classe, geração, entre outras. Objetivamos dar continuidade Proeja/Capes/Setec/Ufes/Ifes realizado no às ações do projeto de pesquisa período de 2006 a 2011, que possibilitou a produção de pesquisas científicas e tecnológicas e a formação de recursos humanos pósgraduados em educação profissional integrada à educação de jovens e adultos, contribuindo, assim, para desenvolver e consolidar o pensamento brasileiro na área, como também integrar às ações do Grupo de Pesquisa e Estudos em Educação Profissional (GEPEP), do Ifes Campus Vitória para a produção de um diagnóstico para o ensino técnico e superior no referido Instituto e do grupo de pesquisa do Observatório da Educação UFG/UNB/Ufes que desenvolvem estudos no âmbito do Programa. 66 Anais - 2014 V SITRE - ISSN 1980 - 685X Nesse sentido, esse estudo propõe fazer uma análise dos fatores que contribuíram para o fracasso escolar do público feminino que participa do Programa Nacional de Integração da Educação Profissional com a Educação Básica na Modalidade Educação de Jovens e Adultos (Proeja) no período de 2009 a 2012 no Ifes Campus Vitória. 2 GÊNERO E FRACASSO ESCOLAR: JOVENS E ADULTOS NO CONTEXTO DO PROEJA Particularmente, desde os primórdios da colonização, os papéis sexuais para homens e mulheres foram prescritos com muita rigidez. A herança de uma ordem cultural patriarcal europeia relegou as responsabilidades do mundo privado-doméstico à mulher, o que restringiu sua participação aos cargos de poder e no campo profissional, a determinados postos de trabalhos. Estes em grande parte, relacionados às atividades antes desempenhadas no interior dos domicílios, tais como serviços pessoais, educação, alimentação e saúde. Nesse sentido, a literatura consultada nos aponta que, por tradição histórica, a mulher teve sua existência atrelada à família, o que lhe dava a obrigação de submeter-se ao domínio masculino, seja pai, esposo ou mesmo o irmão. Sua identidade, segundo esses estudos, foi sendo construída em torno do casamento, da maternidade, da vida privada-doméstica, fora dos muros dos espaços públicos. E por essa tradição, construída historicamente, a mulher se viu destituída de seus direitos civis. Não podia participar de uma educação que fosse capaz de prepará-la para poder administrar sua própria vida e de ter acesso às profissões de maior prestígio. Assim, por um longo período histórico, a família, a igreja e a escola, elementos inerentes a esse processo, enquanto instituições vão sustentar esse projeto moralizador, tutelando a mulher ao poder econômico e político do homem brasileiro. Os estudos sobre a educação feminina no Brasil desvelam também que foram por meio dos espaços escolares, que as mulheres conseguiram ultrapassar as barreiras impostas à sua 67 Anais - 2014 V SITRE - ISSN 1980 - 685X escolarização formal e alcançaram o espaço público, vale ressaltar que isso se deu dentro de certos limites impostos pela ideologia dominante. E mesmo diante desses condicionantes, e submetidas a uma condição de inferiorizarão social, as mulheres foram se inserindo e ocupando os espaços que lhes era possível. Mas como temos afirmado, ainda persistem muitos fatores que dificultam a permanência das mulheres das camadas populares de frequentar a escola. Ferreira (2010) aponta os fatores ligados às questões socio-econômico e às de ordem pedagógicas-adminsitrativas, porém, a autora destaca, nesse contexto as motivações marcadas pelas determinações sociais das relações de gênero. Patto (1997) ao discutir o desencontro entre a família pobre e a escola pública preconiza que esse segmento de classe valoriza a escolarização formal e luta para manter seus filhos na escola e Zago (2003) distingue dois pilares sobre o qual se alicerça a valorização dessa instrução formal para esse grupo social: “a lógica prática ou instrumental da escola” e a “escola como espaço de socialização e proteção dos filhos do contato com a rua e as influências negativas advindas deste contato” (p. 24). Já Abramowicz (2000, p.165) acrescenta o fato de que “o erro, o fracasso e a repetência, que são vias de ruínas, só podem ser definidos no interior de uma prática específica e definida, ou seja, cada escola produz um tipo de aprendiz e de repetente. A forma de organização da escola também é um elemento importante no processo de produção do fracasso escolar. Outras pesquisas apontam para a importância de levar em consideração os aspectos intra-escolares sobre o desempenho dos alunos. É comum na sociedade brasileira que nas famílias das camadas populares, as crianças comecem a trabalhar muito cedo para complementar a renda familiar, uma vez que e é por meio do rendimento coletivo do grupo que é possível assegurar as suas necessidades básicas de subsistência. E na maioria das vezes, essa inserção no mundo do trabalho, acontece em postos de trabalhos precários. Para os meninos são atividades ligadas aos serviços de ajudante de pedreiro, pintor, comércio ambulante, entre outras e para as meninas prevalece o trabalho doméstico dentro e/ou fora de casa e as ocupações de babás. Essas atividades também são causa de afastamentos das mulheres da escola porque acarreta dificuldades na frequência e assiduidade delas nas aulas, já que se submetem aos horários estabelecidos pelos/as patrões/as, na maior parte das vezes inexiste o horário fixo. Elas dependem da demanda do serviço. Essas 68 Anais - 2014 V SITRE - ISSN 1980 - 685X questões expostas fazem parte das histórias de vida dos sujeitos da EJA no contexto do Proeja. Os estudos de Nader (2007) sobre família, gênero e violência denunciam que as pesquisas que tratam da violência contra a mulher, abrangem a violência física de modo genérico. Ferreira (2010) em seu trabalho registra depoimento de alunas da EJA no Ifes que passam por essa problemática e outras que foram e (ainda são) impedidas de permanecerem na escola por seus maridos/companheiros e até mesmo pelos pais. Muitas vezes são coagidas a deixarem a escola, pois são obrigadas a assumirem todo o trabalho doméstico e o cuidado com os filhos, idosos e/ou doentes. E essas coações, vêm acompanhadas de humilhações, cerceamentos de desejos e ações que não são considerados condutas agressivas. Essas ações são denominadas como “dor moral” que ocorre geralmente no espaço doméstico, e “[...] é uma prática mais comum do que se percebe, pois suas sequelas são transparentes e há a impossibilidade feminina de comprovar materialmente um fenômeno abstrato e sutil” (NADER, 2007, p. 10). É importante destacar também, que as dificuldades de conciliar os estudos e o trabalho doméstico é uma das causas da evasão. Os afazeres domésticos, “atividades aparentemente óbvias e sem muita importância” foram sempre identificadas como obrigação das mulheres, uma “ordem natural das coisas”, tomam muito o tempo que deveria ser reservado aos estudos ou até mesmo para o lazer. Essa conciliação custa enormes sacrifícios para essas educandas, que se submete a uma tripla rotina cotidianamente – família/trabalho/estudo. Bruschini (2008), ao coordenar uma pesquisa para entender a articulação entre trabalho e família urbana de baixa renda, detectou um “avanço” nas relações de gênero, no que concerne à divisão sexual de trabalho no meio familiar. Os homens, segundo a autora, participam de alguma forma do trabalho doméstico. Afirma que das inúmeras atividades que se escondem na “rubrica de afazeres domésticos”, algumas delas contam com certa participação masculina: A natureza peculiar de cada item contido no extenso rol dos afazeres domésticos, portanto, determina, em certa medida, a forma assumida pela distribuição de papéis na família e explica porque os homens, quando participam da vida doméstica [...] tendem a fazê-lo, de preferência, nas tarefas mais valorizadas, naquelas que são realizadas fora dos limites da casa ou naquelas já rotuladas de “masculinas” pela 69 Anais - 2014 V SITRE - ISSN 1980 - 685X sociedade (BRUSCHINI, 2008, p. 72). Essas reflexões até agora apresentadas evidenciam que a luta pela inserção das mulheres, em igualdade de condição com a dos homens, no sistema educacional e, principalmente, no processo de profissionalização, ainda é uma realidade. Evidenciamos indicadores que comprovam a existência de discriminação referente ao tratamento dado aos gêneros nas relações sociais e profissionais, persistindo a desigualdade sexista no mundo do trabalho. Acreditamos que essa Instituição educativa, formadora de mão-de-obra, não pode eximir-se de cumprir sua função social. E uma delas é implementar ações que possam minimizar as causas do fracasso escolar feminino proveniente das camadas populares e que hoje frequenta esses espaços escolares por meio do Proeja. Moura (2010, p. 60) destaca que é fundamental, então, pensar na implementação de uma política voltada para o atendimento aos jovens e adultos que não concluíram os seus estudos na faixa etária denominada regular. Para esses sujeitos de direitos a elevação da escolaridade deve estar associada a uma formação profissional, que vise contribuir para melhoria de suas condições de participação na sociedade e que é preciso compreender a necessidade de se universalizar não apenas o acesso ao ensino fundamental e ao ensino médio públicos, gratuitos e de qualidade, mas também a permanência e a conclusão da educação básica com aprendizagem. Destacamos que a construção do Programa nasceu de diálogos fecundos com sujeitos representativos de atores sociais da educação profissional e tecnológica brasileira, acerca dos IFETS, do ensino médio integrado, da educação agrícola, da formação de professores para a EPT, da democratização do acesso às escolas da Rede Federal de Educação Profissional e Tecnológica, das políticas focais, como a da formação para a pesca, para os assentamentos, para a educação técnica a distância entre outros temas (MOLL, 2010, p. 19). [...] “ensino profissional e tecnológico”, sinalizam um claro encaminhamento para essa modalidade de ensino se torne uma poderosa ferramenta, na parceria com outras políticas públicas, para a implementação de projetos educativos com forte determinação superadora de desigualdades nos planos social, econômico, cultural e político (FISCHER, 2008 apud MOLL, 2010, p. 15). 70 Anais - 2014 V SITRE - ISSN 1980 - 685X Sabe-se que um problema social, de natureza e dimensões tão amplas, não permite imediatismo em sua resolução. Mas pensamos que ao adotar um recorte de relações de gênero nas análises educacionais, na perspectiva dessa temática, é possível edificar novas formas de pensamento isentas de diferenciação sexista, o que levaria a práticas pedagógicas e sociais compatíveis com a nova posição dos gêneros no mundo atual. 3 CAMINHO METODOLÓGICO Essa investigação caracteriza-se por uma abordagem quanti-qualitativa de caráter descritivo, com a realização de um estudo de caso. Para Lüdke e André (2003, p. 18), o estudo qualitativo “[...] é rico em dados descritivos, tem um plano aberto e flexível e focaliza a realidade de forma complexa e contextualizada”. Para Hernández Sampieri et all (2006, p. 100-101) o propósito do investigador nos estudos quanti-qualitativos de caráter descritivo “é descrever situações e eventos, isto é, dizer como é, e como se manifesta determinado fenômeno. [...] Eles medem, avaliam, ou coletam dados sobre diversos aspectos, dimensões ou comportamentos dos fenômenos a ser pesquisados”. A opção para a realização de estudo de caso deveu-se pela possibilidade de que essa perspectiva traz de retratar a realidade de forma complexa e profunda e leva em conta o contexto em que ele se situa (LUDKE; ANDRÉ, 2003). Para Minayo (1994), esse caminho metodológico possibilita enfocar um mundo de significados das ações e relações humanas, pois nelas a fala passa a ser reveladora de valores e símbolos como representações de determinadas condições histórico-sociais. Para a produção dos dados, serão selecionadas uma amostra de alunas evadidas dos cursos técnicos integrados ao Ensino Médio de Jovens e Adultos, no período de 2010 a 2013. Serão feitas também análises de um corpus documental constituído pelas fichas de matrículas, pelos relatórios dos conselhos de classes e do Setor de Serviço Social. A categoria de análise que vai nortear a seleção dos dados considerados relevantes será 71 Anais - 2014 V SITRE - ISSN 1980 - 685X a de Gênero, referencial teórico defendido nesta pesquisa, que discute as respectivas identidades do homem e da mulher, constituídas culturalmente ao longo da história humana. Paralelo a esse direcionamento dos referenciais teóricos e a produção dos dados, recorremos à análise de conteúdo, apoiada por Bardin (2009) e a técnica da triangulação dos dados. Essas opções vão permitir fazer o cruzamento de duas fontes: a teórica, dada pelas contribuições da literatura visitada, que auxilia na construção do objeto de estudo e a empírica, que desde o início do projeto de pesquisa, apresenta indícios e pistas de elementos pertinentes para a compreensão do problema colocado. Assim, será possível obter um corpus de informações preciosas, que nos permitirá avançar para o estudo da problemática proposta por essa investigação. 4 CONSIDERAÇÕES FINAIS Acredita-se assim, que a relevância social desse estudo será sua contribuição para suprir a lacuna existente, na pesquisa acadêmica, da temática de Gênero e fracasso escolar na perspectiva dos sujeitos envolvidos: jovens e adultos no contexto do Proeja. Pretende-se ao dar visibilidade a essas mulheres e às suas trajetórias educacionais, com ênfase na educação técnica profissional e contribuir com a instituição em suas políticas de oferta de vagas para o público oriundo das camadas populares. Busca-se também oferecer subsídio ao Governo Federal, em especial a Coordenadoria Geral do Proeja, ligada a Secretaria de Educação Tecnológica e Profissional (Setec), órgão do Ministério da Educação e Cultura, sobre a especificidade da inserção, permanência e êxito escolar do público feminino nos cursos técnicos profissionalizantes nas Instituições Federais de Educação Tecnológica. E de uma forma em geral, esse projeto vai contribuir com as políticas afirmativas que envolvem o público da EJA, como também, para a (re) formulação de políticas públicas pelo Estado ou de ações afirmativas conduzidas por organizações ligadas à questão da mulher, no que diz respeito ao seu processo de escolarização e a sua formação técnica profissional. 72 Anais - 2014 V SITRE - ISSN 1980 - 685X Espera-se contribuir para superação a condição de exclusão e de discriminação a que essa parcela da população feminina vem sendo submetida historicamente. 5 REFERÊNCIAS ABRAMOWICZ, Anete. Quem são as crianças multirepetentes? In: ABRAMOWICZ, Anete e MOLL, Jaqueline. Para além do fracasso escolar. Campinas, Papirus, 2000. ALVES-MAZZOTTI, A. J.; GEWANDSZNAJDER, F. O método nas ciências naturais e sociais: pesquisa quantitativa e qualitativa. São Paulo: Pioneira, 2004. BARDIN, Laurence. Análise de conteúdo. 4. ed. Lisboa: Edições 70, 2009. BOURDIEU, Pierre; PASSERON, Jean-Claude. 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It is an investigation of the qualitative and quantitative nature, with a descriptive character for the presentation of case study. The intercessors 74 Anais - 2014 V SITRE - ISSN 1980 - 685X theorists are Nader (2005; 2007), Bruschini (2000; 2008), Ferreira (2003; 2010) and Nogueira (2003); Patto (1997; 2004); Abramowicz (200); Bourdieu (1975); Fernandez (2005); Freire (1996), among others, to problematize the issues of social relationships of gender and school failure. Data production is made through interviews with the students who left the technical course integrated to the Proeja and by the document analysis.It is considered that the data produced by the research may contribute to rethink the offer of the Programa at Ifes and in the redraft of policies of the State and/or affirmative actions by organizations attentive to the female education issue. Keywords: School failure, Proeja, Gender studies 75 Anais - 2014 V SITRE - ISSN 1980 - 685X 76 Anais - 2014 V SITRE - ISSN 1980 - 685X TRANSFORMAÇÕES NO MUNDO DO TRABALHO: OS IMPACTOS ECONOMICOS, POLÍTICOS E SOCIAIS DA REGULAMENTAÇÃO DO TRABALHO DOMÉSTICO NO BRASIL 35 FURNO, Juliane – [email protected] (UNICAMP) 36 LEONE, Eugenia - [email protected] (UNICAMP) Resumo: O presente trabalho aborda a problemática da divisão sexual do trabalho e do trabalho doméstico no Brasil, atentando para a sua trajetória de reivindicações na busca de equidade nos direitos trabalhistas, a sua herança cultural que o constitui com singularidade e aponta o cenário político e econômico no qual emerge sua regulamentação. A problemática desse artigo compreende uma investigação no sentido de entender as recentes transformações políticas no debate do trabalho doméstico como um avanço na conquista e consolidação de direitos trabalhistas e da formalidade, em que pese o serviço doméstico ter permanecido historicamente negligenciado em relação aos demais trabalhos. Além disso, procura-se compreender os impactos e as transformações sociais, políticas e econômicas geradas por essa recente medida de proteção e regulamentação do trabalho doméstico. Palavras chaves: Relações de Gênero, Trabalhadoras domésticas, Mercado de Trabalho, Direitos Trabalhistas, Formalidade. 1 35 INTRODUÇÃO Graduada em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Mestranda em Desenvolvimento Econômico pela UNICAMP 36 Prof. Doutora do Programa de Pós Graduação em Desenvolvimento Econômico da UNICAMP 77 Anais - 2014 V SITRE - ISSN 1980 - 685X O sistema de tipo patriarcal, vindo com a colonização portuguesa, imprimiu no Brasil uma imposição imperialista da raça atrasada em contraposição a raça atrasa (FREYRE, 2006). Foi nesse cenário de aculturação nacional em que se institui os embriões do trabalho doméstico no Brasil. A estrutura da casa grande e da senzala representava, no seu microcosmo, o sistema político, econômico e social no Brasil, no qual o trabalho era representado pelo figura do escravo. O trabalho doméstico das escravas nas Casas Grandes, deixa suas marcas fixadas na história do desenvolvimento do trabalho domésticos- também de tipo remuneradodas trabalhadoras brasileiras. Como na Casa Grande, até hoje temos a presença do sujeito “agregado” (FREYRE, 2006), agora, porém, com dimensões reificadas, mas preservando a herança do trato com as trabalhadoras domésticas em uma esfera pessoal e essencialmente desigual, aparentando, no entanto, apresentar contornos “familiares”. Segundo Pochamman,”parte significativa das atividades desenvolvidas nos lares brasileiros carrega ainda hoje traços semelhantes observados no passado serviçal e escravista” (POCHMMAN, 2012, p. 49). O trabalho doméstico possui demasiada importância social na produção e reprodução da sociedade, pois é ele que cria, cotidianamente, as condições necessárias para a manutenção da força de trabalho, através do provimento do cuidado, da alimentação, da estadia entre outros. Paradoxalmente, no entanto, tanto o trabalho doméstico remunerado, quando o não remunerado, estão na escala dos trabalhos mais desvalorizados socialmente. As teorias clássicas sobre o trabalho situavam o trabalho reprodutivo no polo oposto ao trabalho produtivo- aquele que produz riqueza, ou que está inserido no mercado de trabalho que gera valor monetário, e o trabalho improdutivo é aquele que “a mão de obra alocada gera valor econômico insuficiente para a sua própria manutenção, o que impede a existência de excedentes econômico a ser apropriado por outrem” (POCHMMAN, 2012, p. 48) No entanto, só é possível, materialmente, que haja trabalho produtivo na sociedade se existirem sujeitos aptos e com condições objetivas de realiza-lo, o que somente o trabalho reprodutivo é capaz de garantir. A atividade doméstica é invisível para a sociedade capitalista, porém, é fundamental para o desenvolvimento dela, por proporcionar o seu funcionamento, o suporte para a força de trabalho e a reprodução. (PERROT, 2007) 78 Anais - 2014 V SITRE - ISSN 1980 - 685X Considerado tipicamente feminino, o trabalho doméstico historicamente esteve associado à baixa qualificação, a extensas jornadas de trabalho, a baixos salários e a pouca formalização e limitadas garantias trabalhistas. Além disso, existe um importante elemento subjetivo que é marca característica do emprego doméstico. Ele, não raras vezes, não é elevado ao status de “trabalho”. É comum as trabalhadoras domésticas não remuneradas identificarem que “não trabalham” e que “apensas cuidam do lar e da família”. Nesse sentido, parece haver um acordo tácito entre empregadores e empregadas de que o emprego doméstico não necessita passar pela legislação trabalhista vigente, basta um “acordo” entre as partes, o que na maioria das vezes é feito informalmente. Essa relação com o empregador é marcada por relações interpessoais e familiares, descaracterizando seu caráter profissional. O trabalho doméstico remunerado assemelha-se a visão de trabalho que historicamente foi sendo construída no imaginário coletivo social do que seja o trabalho das mulheres. A sociedade brasileira tradicionalmente não encarou o serviço doméstico como um “trabalho”. Os afazeres do lar, naturalmente relegado às mulheres, dificilmente foram encarado como um “trabalho”, sendo considerado uma simples obrigação feminina, sem valor produtivo nem econômico, e sem reconhecimento da sociedade. Segundo Pochmman (2012) o trabalho doméstico voltado para as famílias possui características distintas da observada no emprego de mão de obra em outros setores, “sua existência relaciona-se mais à combinação da concentração de renda e riqueza com a existência de parcela significativa de trabalho sobrante às atividades desenvolvidas nos setores públicos e privados” (POCMMAN, 2012, p.46) A justificativa para essa desigualdade na legislação e na valorização, está ancorada na perspectiva da Divisão Sexual do Trabalho. A divisão sexual do trabalho é a maneira como o trabalho é dividido socialmente nas relações entre os sexos, sendo essa forma histórica e conjunturalmente modificada em cada sociedade. O que parece ser recorrente, nesses tempos históricos, é a designação prioritária aos homens à esfera produtiva, e consequentemente, ao espaço público e de poder, e as mulheres a espera reprodutiva, representado pelo lar. Essa forma de divisão do trabalho tem dois sentidos, segundo Kergoat (2003). O primeiro seria o princípio da “separação” (existem trabalhos de homens e de mulheres) e o segundo princípio seria o da “hierarquização” (o trabalho dos homens vale mais do que o da mulher) “Esses princípios podem ser aplicados graças a um processo específico de 79 Anais - 2014 V SITRE - ISSN 1980 - 685X legitimação, a ideologia naturalista, que empurra o gênero para o sexo biológico, reduz as práticas sociais a papéis sociais sexuais, os quais remetem ao destino natural da espécie” (KERGOAT, 2003 p. 56). A divisão sexual do trabalho, portanto, não é neutra no ambiente doméstico familiar (NOGUEIRA 2006). Nesse sentido, segundo Souza (2004), para que haja eficácia legal na regra de igualdade é necessário que a percepção da igualdade na dimensão da vida cotidiana seja efetivamente internalizada. Atualmente, segundo Antunes (2003) vivencia-se um aumento significativo da força de trabalho feminina, alcançando os 40% das mulheres economicamente ativas. No entanto, esses trabalhos têm sido absorvidos pelo capital na modalidade do part time, de precarização e de desregulamentação. A expansão no trabalho, paradoxalmente, tem tido refluxo no que tange a esfera dos salários, no qual a desigualdade entre homens e mulheres permanece como um empecilho à igualdade substantiva. “A expansão do trabalho feminino tem se verificado, sobretudo, no trabalho mais precarizado, nos trabalhos marcados por uma informalidade ainda mais forte, com desníveis salariais ainda mais acentuados em relação aos homens, além de realizar jornadas mais prolongadas” (ANTUNES, 2003, p. 108), além de a mulher trabalhadora, em regra geral, realizar uma dupla jornada de trabalho, necessitando, por força dos valores culturais, realizar as tarefas domésticas, no caso específico das empregadas domésticas nas suas casas e nos domicílios onde presta serviço. O trabalho doméstico remunerado parece ser um espelho da representação simbólica do trabalho doméstico como um todo. Com isso, faz-se compreensível, na história dos direitos trabalhistas no Brasil, que as empregadas domésticas tenham sido deixadas de fora do conjunto dos elementos de proteção e formalização do trabalho na nossa sociedade, uma vez que sempre foi visto com um “trabalho de pouco valor”- quando considerado como trabalhoe como uma tarefa “natural” das mulheres. Além disso, segundo o Dieese “a reduzida proteção da legislação contribui para acirrar a desvalorização desse tipo de trabalho, exercido em condições diferenciadas da maioria das ocupações” (DIEESE, 2010, p. 10). O fato de as trabalhadoras domésticas trabalharem dentro dos domicílios restringe a sua socialização e limita suas relações com a sua categoria profissional, encontrando-se com ela quase que exclusivamente por relações pessoais. Acrescenta-se a isso que essa é uma categoria de baixa sindicalização, de acesso limitado a direitos trabalhistas plenos, mesmo 80 Anais - 2014 V SITRE - ISSN 1980 - 685X com o pouco contingente que conta com carteira assinada, e uma ocupação com baixos rendimentos e extensas jornadas de trabalho. Todos esses elementos também contribuem para uma desvalorização desse trabalho e para sua não equiparação com os demais trabalhos regulamentados no Brasil. No ano de 2013, o Senado Federal aprovou por unanimidade a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 66/2012 que amplia o acesso aos direitos trabalhistas também as empregadas domésticas. É no âmbito dessa recente transformação no universo do trabalho no Brasil que emerge essa problemática de pesquisa e sua correlata justificativa. Em primeiro lugar, as poucas produções teóricas sobre o sujeito “Trabalhadoras domésticas” estão quase que exclusivamente restritas as ciências sociais, enfocando seus aspectos políticos antropológicos e sociológicos. A dimensão econômica da produção do conhecimento científico a cerca da realidade social e de trabalho dessas trabalhadoras parece ter sido negligenciado pelos economistas e relegados aos estudos de identidade, reconhecimentos e demais aspectos que compõem a subjetividade desse grupo social. Com a PEC das domésticas, como ficou popularmente conhecida, abre-se um novo cenário para a problematização dos seus impactos na sociedade brasileira e no mercado de trabalho. Faz-se necessário aos acadêmicos debruçar-se sobre essas novas transformações que afetam o mundo do trabalho, a luta por direitos trabalhistas no Brasil e a reivindicação por formalidade. Nesse sentido, a justificativa desse trabalho de pesquisa repousa no interesse em analisar as recentes e profundas transformações na conjuntura brasileira, as quais possibilitaram a um contingente da sociedade sair da “invisibilidade” com que tradicionalmente são tidas as empregadas domésticas, e dar as condições para que se tornem trabalhadoras, sujeitos de direitos em igualdade com os demais trabalhadores formais. 2 2.1 MERCADO DE TRABALHO E GÊNERO O mercado de trabalho doméstico no Brasil 81 Anais - 2014 V SITRE - ISSN 1980 - 685X No Brasil, segundo Pochamann, (2012) desde a abolição da escravatura, o trabalho realizado em âmbito doméstico foi perdendo sua participação no total da ocupação urbana. “Até o início do século XX, a ocupação doméstica representava a principal forma de trabalho nas cidades” (POCHMANN, 2012, p. 50). No entanto, o serviço doméstico no Brasil, segundo dados da PNAD 2008, ainda tem uma demasiada incidência sob a ocupação remunerada de trabalhadores no Brasil, em especial às mulheres. 6.626,001 são o contingente de sujeitos envolvidos nessa atividade, o que equivale a 7,2% da população ocupada, e representa 15,8% da mão de obra feminina. Na análise sob o total dos trabalhadores domésticos, nota-se que majoritariamente estamos falando de mulheres, e, por isso, utilizarei sempre a expressão “empregadas domésticas”, visto que estamos tratando de uma atividade remunerada na qual 93,6% da mão de obra é feminina. Do total das mulheres trabalhadoras em serviços domésticos, 61,7% são negras e 38,3% não negras. No conjunto de todos os setores que compõem o mercado de trabalho brasileiro, esse foi o ramo em que se verificou a maior proporção de trabalhadoras negras. (Dieese 2010). No entanto, em que pese à renda acumulada, as mulheres negras seguem na esteira da história escravagista brasileira, e- apesar de serem maioria entre as domésticas- são as que auferiram rendimento menor. As trabalhadoras negras receberam, em 2009, 364, 84 reais, e as não negras receberam 421, 22 reais. O trabalho doméstico remunerado no Brasil foi exercido, até a década de 40, sem que houvesse nenhuma legislação e sem que nenhum instrumento legal fosse criado em âmbito nacional no qual o trabalho doméstico fosse o objeto de interesse e atuação. Em 1941, entretanto, foi dado o primeiro passo visando o reconhecimento do trabalho doméstico e a busca de regulamentação do mesmo. Através de um decreto Lei no governo Getúlio Vargas, os trabalhadores domésticos passaram a ser aqueles que “de qualquer profissão ou mister, mediante remuneração, prestem serviços em residências particulares ou em benefício desses” (art. 1º). Este decreto lei instituiu o direito a carteira assinada, o aviso prévio e demais direitos dos empregadores e dos empregados, porém, sua verdadeira efetivação dependida da sua regulamentação, como previa o artigo 15, e isso jamais aconteceu. 82 Anais - 2014 V SITRE - ISSN 1980 - 685X A Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), elaborada também no governo Getúlio Vargas, em 1943, delimitou e regulou as relações individuais e coletivas de trabalho. No entanto, como previsto em seu artigo 7º, as normas presentes na Consolidação não se aplicam: aos empregados domésticos, aos trabalhadores rurais, aos funcionários públicos e aos servidores de autarquias paraestatais. Com exceção dos dois últimos grupos de trabalhadores, que já gozavam de proteção por parte do aparato estatal, os empregados domésticos e os trabalhadores rurais permaneceram sem proteção e nem regulação trabalhista, ficando refém das negociações tácitas entre empregadores e empregados. De decorrer do século xx, uma série de iniciativas, em diferentes governos, caminharam no sentido de buscar uma maior equidade entre as empregadas domésticas e os demais trabalhadores, porém, sua efetivação na prática ainda teria um extenso e tortuoso caminho. O passo mais significativo conquistado pelas trabalhadoras domésticas no que tange a sua reivindicações por direitos iguais, esteve presente na Constituição de 88 que previu os seguintes direitos aos empregados domésticos: a) salário mínimo; b) irredutibilidade do salário, salvo negociação; c) décimo terceiro salário; d) repouso semanal remunerado, preferencialmente aos domingos; e) gozo de férias remuneradas com, pelo menos, um terço a mais do que o salário normal; f) licença à gestante, sem prejuízo do emprego e do salário, com duração de 120 dias; g) licença-paternidade; h) aviso prévio proporcional ao tempo de serviço, sendo no mínimo de 30 dias; i) aposentadoria; j) integração à previdência social. No entanto, seu efetivo avanço esbarrou mais uma vez na natureza “não lucrativa” da empregada doméstica, sendo esse um elemento chave na negação de equiparação de direitos com os demais trabalhadores. Apesar de derrotada a proposta da equidade, as disputas políticas presentes nesse debate apontavam para a possibilidade de manutenção ou até mesmo retrocesso das poucas leis existentes na defesa do trabalho das empregadas domésticas. Dentre as mais significativas conquistas da Constituição de 1988 destacaria o direito à sindicalização, até então não permitido as trabalhadoras domésticas. Esse foi o principal direito conquistado no sentido de permitir a constante busca de novas direitos, mediante a capacidade de organização coletiva que, a partir daquele momento, foi concedido a essa categoria social. 83 Anais - 2014 V SITRE - ISSN 1980 - 685X Desde 1980, o trabalho doméstico remunerado foi a ocupação que mais cresceu no Brasil, segundo Pochmann (2003). O aumento médio anual no número de trabalhadores domésticos entre 1980 e 2000 foi de 4,0% ante a variação média anual de 2,1% no total da ocupação no País para o mesmo período de tempo (POCHMANN, 2003). No ano de 2009, segundo dados do IPEA, o trabalho doméstico remunerado empregava 7,2 milhões de trabalhadores e trabalhadoras, 7,8% do total de ocupados no país. Entre os anos de 1979 e 2009, o emprego com registro em carteiro assinada cresceu 0, 8%, “se seguir esse ritmo de elevação da formalização da mão de obra, o Brasil poderá ter que aguardar 120 anos para alcançar a totalidade dos trabalhadores incluídos na proteção social e trabalhista” (POCHMANN, 2012, p. 50). 2.2 Alguns resgates sobre a organização sindical das empregadas domésticas A declaração da OIT, referente aos princípios e aos direitos fundamentais no trabalho, inclui como um eixo o direito à liberdade sindical e à negociação coletiva. (NOTAS OIT 2010). Para as trabalhadoras domésticas, entretanto, torna-se um pouco mais dificultosa a capacidade de se organizar, devido a particularidades da categoria. Entre os limites destaca-se o isolamento em domicílios fechados, longas jornadas de trabalho, relações pessoal com os patrões e uma frágil organização representativa da categoria. Segundo o DIEESE (2010) a primeira associação de empregadas domésticas no Brasil data de 1936, tendo como figura fundadora Dona Laudelina Campos Melo, em São Paulo. Atualmente, a Federação Nacional das Trabalhadoras Domésticas (FENATRAD) é reconhecida como a principal organização sindical das trabalhadoras doméstica. Sua origem é de 1997 e conta, hoje, com 35 sindicatos filiados. Dentre as atribuições do sindicato destacam-se as campanhas permanentes de valorização do trabalho doméstico, na tentativa de constantemente reforçar o papel profissionalizado que cumprem as trabalhadoras domésticas. Além disso, a organização sindical atua na luta por visibilidade da categoria, que sofre com a cultura da nossa história de invisibilizar o trabalho reprodutivo das mulheres. Em termos de incidência sobre a reivindicação de direitos trabalhistas, a federação destaca-se pela trajetória 84 Anais - 2014 V SITRE - ISSN 1980 - 685X de reivindicação da ampliação dos direitos já concedidos, mas - prioritariamente- para a inclusão da profissão na Consolidação das Leis do Trabalho (CLT). No Brasil há registro, segundo o Dieese, de inúmeras tentativas de negociações coletivas por parte das empregadas domésticas. Raras chegaram a algum termo, como foi o exemplo do Sindicato das Trabalhadoras Domésticas de Campinas e região. No entanto, elas tiveram seus ganhos e resultados anulados pela justiça do trabalho, que entendeu que esta não constitui uma categoria profissional com direito de negociar, uma vez que não se trata de uma atividade econômica que gere lucro para o empregador. O maior número de mulheres em serviço doméstico tem dois fatores determinantes: o aumento nas taxas de desemprego e uma tradição escravocrata que marcou a história da colonização do Brasil. Em consequência de o Brasil ter sido o último país a abolir a escravatura, nos relegou a marca de uma taxa muito alta das mulheres economicamente ativas trabalharem em serviço doméstico. Outro fator que reforça esse argumento é que mais da metade das trabalhadoras domésticas são negras, e mais de 70% delas não tem relação formal de trabalho. 3 3.1 TRABALHO E GÊNERO Debate sobre a centralidade da categoria trabalho O trabalho, segundo Nogueira (2006), ao longo do processo histórico se apresenta de inúmeras formas, atendendo às necessidades de cada momento. No entanto, ele se mantém sempre como um momento de efetivação das relações sociais, visando a produção e a reprodução da humanidade. Com isso, parto da acepção da Centralidade da categoria trabalho na análise das relações sociais. Nesse sentido, segundo Antunes (2003) “trabalho constitui-se como categoria intermediária que possibilita o salto ontológico das formas pré-humanas para o ser 85 Anais - 2014 V SITRE - ISSN 1980 - 685X social. Ele está no centro do processo de humanização do homem.” (ANTUNES, 2003, p. 138) Essas citação baseia-se em um debate proposto por Lukacs, sobre a Ontologia do Ser Social, no qual o autor levanta a tese da distinção entre o ser social e a natureza, O trabalho, ainda segundo Antunes, constitui-se como uma categoria intermediária, que possibilita o salto ontológico das formas pré-humanas para o ser social. Ele está no centro do processo de humanização do homem. Portanto, parto da perspectiva da centralidade do trabalho no desenvolvimento da vida humana, entendendo que o trabalho tem uma interação ontologicamente desenvolvida a fim de garantir o processo de humanização dos seres humanos, entendido no seu sentido mais amplo. “A busca de uma vida cheia de sentido, dotada de autenticidade encontra no trabalho seu lócus primeiro de realização” (ANTUNES, 2003, p. 143). Isso Poe que, segundo constatação ontológica fundamental de Marx, ao se referir ao trabalho, demonstrou que ele é: (...) um processo entre o homem e a natureza, um processo em que o homem, por sua própria ação, media, regula e controla seu metabolismo com a natureza. Ele mesmo se defronta com a matéria natural como uma força natural. Ele põe em movimento as forças naturais pertencentes à sua corporalidade, braços e pernas, cabeças e mãos, a fim de se apropriar da matéria natural numa forma útil para sua própria vida. Ao atuar, por meio desse movimento, sobre a natureza externa a ele e ao modifica-la, ele modifica, ao mesmo tempo, sua própria natureza. (MARX, 1988, vol I, p. 142) O Debate em torno da centralidade do trabalho torna-se constante desde as duas últimas décadas do século XX, nas quais procurou-se problematizar, dentro da acadêmica, a proeminência da categoria trabalho para a compreensão da sociedade. Desde conjunto de autores destaca-se o alemão Habermas, que logrou falar em sociedade do “pós trabalho” (CARVALHO, 2006, p. 10). No bojo destas análises do paradigma da sociedade do lazer ou do tempo-livre, procurou-se fazer uma identificação entre trabalho e emprego, parecendo, porém, esquecer que o emprego é uma construção histórica, “enquanto o trabalho é uma condição ineliminável da existência humana” (CARVALHO, 2006, p. 10). As principais premissas que constituem o debate a cerca do fim da categoria trabalho como explicadora do desenvolvimento da sociedade, está em compreender que as mudanças ocorridas nas forças produtivas e nas relações de produção caminham no sentido da perda da dimensão subjetiva 86 Anais - 2014 V SITRE - ISSN 1980 - 685X do trabalho, enquanto uma categoria constituinte e constituidora de uma conduta moral que é socialmente referenciada, ou seja, uma perda de identidade do trabalhador a partir da esfera do trabalho. Um segundo argumento parte das transformações recentes no mundo do trabalho que tem na flexibilização e na precarização do trabalho seus principais expoentes. Com isso, existe uma tendência na sociedade a construção de novos padrões de produção e também de organização desse trabalho, nos quais a diminuição do trabalho estável e assalariado, o desemprego e o aumento do trabalho informal e precarizado, apontam para o “fim de uma utopia de crescimento”- entendida como uma tendência que possibilita a capacidade de incorporação dos setores informais no núcleo central da economia. Para finalizar, parto da análise de que existe uma “moral do trabalho”, construída historicamente, que opõem a ética do trabalho à vadiagem, entendendo que existe uma ética do trabalhador encontrada no trabalho, que o dignifica e o coloca em uma posição de legitimação perante a sociedade. Segundo Hannan Arendt (1995) o trabalho, anterior ao século XIII, associava-se a escravidão. O pleno desenvolvimento da atividade humana deveria se realizar na esfera pública, o trabalho estava longe de adquirir status de dignidade. Porem, quando o capitalismo começa a se impor como modelo hegemônico de sociedade- e sabendo que sua sustentação material provém do trabalho- ele passou a adquirir o sentido de um dever, que torna os seres humanos dignos de viver em sociedade. Com isso, a falta do trabalho- ou a sua ameaça- criam um cenário de angústias e incertezas. De acordo com Lautier “A demonstração, por múltiplos trabalhos antropológicos, do papel preponderante do nível simbólico da inserção do trabalho contrasta com a precipitação desenvolta com a qual certos autores afirmam, simetricamente, que o trabalho teria perdido seu lugar central do sistema simbólico de nossas sociedades” (LAUTIER, 1999, p. 11) Assim, além da objetividade do trabalho como um garantidor da reprodução da vida social e da subsistência, existem a dimensão subjetiva e simbólica do trabalho como um elemento de reconhecimento e de garantia de um papel na sociedade, sendo pelo trabalho que os sujeitos se conhecem como moralmente aceitáveis. REFERÊNCIAS 87 Anais - 2014 V SITRE - ISSN 1980 - 685X ANTUNES, Ricardo. Excursos sobre a centralidade do trabalho. In: ______.Os sentidos do trabalho: ensaio sobre a afirmação e a negação do trabalho. 6. ed. São Paulo: Boitempo, 2003. ARENDT, Hannan. A vida do espírito. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1995. DIEESE–Departamento Intersindical de Estatísticas e Estudos Socio Econômicos. O emprego doméstico de 2000 a 2009. In: ______. Pesquisa de emprego e desemprego-PED. São Paulo: DIEESE/SEAD, 2010. Disponível em: <http://portal.mte.gov.br/data/files/FF8080812BA5F4B7012BA60957CB3833/PED_RMSP_ Mulher_2010.pdf>. Acesso em: 06 maio 2014. ______. As trabalhadoras domésticas e as mulheres dedicadas aos afazeres domésticos nas cidades de São Paulo e Salvador. Relatório Final. Abril de 2001. Disponível em: <http://www.dieese.org.br/estudosetorial/2012/2012trabDom.pdf>. Acesso em: 06 maio 2014. FREYRE, Gilberto. 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Sobre a Nova Condição de Agregado Social no Brasil: algumas considerações. Revista Paranaense de Desenvolvimento. Curitiba, n. 105, p. 5-23, jul/dez 2003. ______. Nova classe média?: o trabalho na base da pirâmide social brasileira. São Paulo: Boitempo, 2012 88 Anais - 2014 V SITRE - ISSN 1980 - 685X PARTICIPAÇÃO DAS MULHERES NO MERCADO DE TRABALHO. PONCIANO, Roberta Rodrigues – [email protected] IFG – Instituto Federal de Goiás - Câmpus Itumbiara Endereço Avenida Furnas nº 55, Village Imperial CEP – 75524-010. Itumbiara – Goiás Resumo: O governo, atualmente, vem investindo em políticas sociais de inclusão com recorte de gênero, visando a equidade, a igualdade entre sexos, o acesso à educação e a inserção no mercado de trabalho, um exemplo é o Programa Mulheres Mil, que tem como foco de atuação mulheres em situação de vulnerabilidade social. Busca proporcionar a elevação da escolaridade, e o acesso e/ou a permanência no mundo do trabalho, incentivando a criação do próprio negócio, para evitar o trabalho informal. Assim, o objetivo deste artigo é apresentar o perfil da empregabilidade das alunas ao se matricularem no Programa Mulheres Mil do campus Itumbiara, no curso de técnicas de artesanato, ministrado no segundo semestre de 2013. Aplicou-se um questionário as alunas e os resultados mostraram, na turma vespertina, que a maioria são donas de casas que buscam uma qualificação para pleitearem um trabalho, outras estão empregadas no trabalho formal e as demais desempregadas atuando no mercado informal. Na turma noturna, ocorreu o inverso, mais da metade estão empregadas no formal, sendo que depois vem as donas de casa seguido de desempregadas. Por tudo isso, percebe-se que as mulheres estão em busca de uma educação que lhes vislumbrem uma possível inserção no mercado de trabalho e /ou uma qualificação na busca por igualdade de direitos. Palavras-chave: Educação profissional; Gênero; Trabalho. 89 Anais - 2014 V SITRE - ISSN 1980 - 685X INTRODUÇÃO A mulher está atingindo um nível educacional mais elevado que o homem, segundo Maruani e Hirata (2003), isso é uma vantagem significativa, na evolução para uma sociedade do conhecimento. As desigualdades de gênero no trabalho tendem a se reduzir, mas as desigualdades entre as mulheres aumentam, gerando novas contradições. Constata-se, então, uma grande evolução da mulher na área profissional, mas é importante acompanhar as mudanças institucionais, jurídicas e de valores. Com exceção do trabalho doméstico e da ocupação como militar ou funcionário público estatutário, os homens eram maioria dentro da população ocupada nas diversas formas de inserção. Mesmo diante do predomínio masculino, constatou-se que as diferenças de inserção entre homens e mulheres foram reduzidas em 2011, com as mulheres aumentando sua participação em todas as formas de ocupação. Em 2003, por exemplo, a proporção de homens com carteira assinada no setor privado era de 62,3%, enquanto a das mulheres era de 37,7%, uma diferença de 24,7 pontos percentuais. Em 2011, essas proporções diminuíram para 19,1 pontos percentuais. O maior crescimento de participação feminina foi observado no emprego sem carteira no setor privado: diferença de 26,9 pontos percentuais em 2003 (63,5% homens e 36,5% mulheres) e de 19,1 pontos percentuais em 2011 (59,5% homens e 40,5% mulheres). (INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATISTICA, 2012). Assim, para atender à necessidade histórica de inclusão das mulheres na educação e no mundo do trabalho, foi criado um programa específico na área de gênero, educação e trabalho denominado Programa Mulheres Mil. Este foi instituído pela Portaria nº 1.015 de 21 de julho de 2011, visando à formação profissional e tecnológica articulada com elevação de escolaridade de mulheres em situação de vulnerabilidade social, contribuindo para a redução de desigualdades sociais e econômicas. De acordo com o Programa Nacional Mulheres Mil (BRASIL, s.d.) essa modalidade de ensino é coordenado pela Secretaria de Educação Profissional e Tecnológica do Ministério da Educação (SETEC-MEC), com cooperação Internacional Brasil-Canadá – Promoção de Intercâmbio de Conhecimento para Promoção da Equidade (PIPE) e parcerias com o 90 Anais - 2014 V SITRE - ISSN 1980 - 685X Conselho Nacional das Instituições da Rede Federal de Educação Profissional, Científica e Tecnológica. O curso ministrado, conforme o Guia Metodológico do Sistema de Acesso, Permanência e Êxito do Programa Mulheres Mil (BRASIL, s.d.), é escolhido após uma avaliação socioeconômica das comunidades locais, podendo ser de áreas diversas, e buscam orientar para as diferentes habilidades das alunas, conforme a vocação da região, sendo ofertado a cada seis meses e todas as mulheres inscritas e frequentes recebem um auxílio para custear despesas com os estudos. A opção pelo recorte gênero ocorre devido ao aumento no número de mulheres que ampliaram o seu papel na sociedade e em suas comunidades, assumindo diversos papéis, como por exemplo, o controle e o sustento financeiro da sua residência, bem como o desenvolvimento educacional e cultural dos filhos. Isso tudo repercute nas futuras gerações e no desenvolvimento justo e igualitário do país. Gênero remete a construções sociais, históricas, culturais e políticas que dizem respeito a disputas materiais e simbólicas envolvendo processos de configuração de identidade, definições de papeis e funções sociais, construções e desconstruções de representações e imagens, diferentes distribuições de recursos e de poder e estabelecimento e alteração de hierarquia entre os que são socialmente definidos como homens e mulheres e o que é- e o que não é - considerado de homem e de mulher, nas diferentes sociedades e ao longo do tempo (SECAD - Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade, 2007). O presente trabalho propôs-se a analisar qual a ocupação no mercado de trabalho das alunas do Curso de Técnicas de Artesanato do Projeto Mulheres Mil, ofertado no, Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Goiás (IFG) – Câmpus Itumbiara, no segundo semestre do ano de 2013. Aborda ainda, qual o tipo predominante do trabalho feminino, se formal ou informal, e suas particularidades. A feminização do mercado de trabalho é real, bem como o crescimento da escolaridade feminina, o que gera uma reviravolta na história das mulheres contribuindo para possíveis qualificações em determinada área, inserção efetiva no mundo do trabalho e/ou a criação de seu próprio negócio. METODOLOGIA 91 Anais - 2014 V SITRE - ISSN 1980 - 685X A metodologia da pesquisa sobre a ocupação no mercado de trabalho das alunas, bem como as particularidades e os tipos predominantes do trabalho feminino, ocorreu através de questionário aplicado nas duas turmas do curso de Artesanato do Programa Mulheres Mil, sendo uma turma no período vespertino e outra no noturno, ofertadas no segundo semestre de 2013. Os questionários foram preenchidos pelas próprias alunas, após explicação das questões. As perguntas tinham respostas de múltipla escolha, sendo orientada a marcação de apenas um item, e a linguagem utilizada foi simples e direta para que as alunas compreendessem com clareza o que estava sendo perguntado. Verificou-se então, que das 26 matriculadas na turma vespertina, apenas 17 responderam o questionário, pois eram as que estavam presentes em sala de aula no momento da pesquisa. Já na turma noturna, das 28 mulheres matriculadas apenas 12 preencheram o questionário. Em seguida, realizou-se a tabulação dos dados, e o tratamento estatístico. Com base nos dados, utilizou-se referências bibliográficas para realizar as interpretações, e foram feitas tabelas para melhor visualizar os resultados obtidos. RESULTADOS E DISCUSSAO No presente estudo, na tabela 1, observa-se que, a maioria das alunas participantes do Programa, são donas de casa, e ocorreu um empate entre aquelas que estão empregadas e desempregadas. O que se conclui através da observação dos relatos delas, que todas estão em busca de melhorar a escolaridade para poderem se inserir no mercado de trabalho, seja no formal ou informal, e até mesmo montar seu próprio negócio com aperfeiçoamento da aprendizagem ministrada em sala de aula. Tabela 1: Turma vespertina - Qual a sua ocupação? Número de Pessoas: Percentual 92 Anais - 2014 V SITRE - ISSN 1980 - 685X está empregada; 2 12% desempregada; 2 12% dona de casa. 13 76% Através da tabela 2, percebe-se que metade das alunas trabalham no mercado formal, e através da pesquisa de qual a profissão que exercem, disseram ser zeladora e a outra massagista. Já a outra metade atua no informal, sendo que uma trabalha como artesã, em sua residência e a outra é vendedora de cosméticos de revistas. Foi considerado trabalho formal aquele em que são respeitadas as leis trabalhistas do país, explicitadas na CLT (Consolidação das leis do trabalho) ou no Estatuto de Servidor Público. Tabela 2: Turma vespertina – Se trabalha, qual o tipo de trabalho que exerce? Número de Pessoas: Percentual formal; 2 50% informal. 2 50% A participação no Programa poderá propiciar mudanças na vida dessas mulheres, favorecendo a inclusão social, com a oferta de formação focada na autonomia e na criação de alternativas para inserção no mundo do trabalho. Na turma noturna, verifica-se na tabela 3, que mais da metade das alunas (58%) estão empregadas, seguido de que 25% são donas de casa e apenas 17% estão desempregadas. Uma dona de casa disse trabalhar na informalidade fazendo bordado em casa para vender e também é consultora de produtos de revista. Tabela 3: Turma Noturna - Qual a sua ocupação? 93 Anais - 2014 V SITRE - ISSN 1980 - 685X Número de Pessoas: Percentual está empregada; 7 58% desempregada; 2 17% dona de casa. 3 25% De acordo com a tabela 4,78% das alunas estão empregadas no mercado formal, e 22% estão no informal, sendo que uma delas faz artesanato para vender e a outra é a vendedora de produtos de revista. As atividades informais passam a ser a forma de geração de renda dessas mulheres com baixas remunerações e pouco reconhecimento. As profissões do mercado formal citadas foram gerente, doméstica, fotógrafa, auxiliar de caixa, auxiliar de serviços gerais, funcionária pública e autônoma. Assim, o acesso ao trabalho representa a oportunidade para que as mulheres possam utilizar suas capacidades e conhecimentos para obtenção da valorização profissional modificando sua realidade. Tabela 4- Turma Noturna: Se trabalha, qual o tipo de trabalho que exerce? Número de Pessoas: Percentual formal; 7 78% informal. 2 22% Leite e Araújo (2009) preconizam que a vulnerabilidade vivida no mercado de trabalho, representa o primeiro impulso para inserção em outras modalidades de trabalho, como nas cooperativas populares. Os motivos que agrupam um conjunto de desvantagens para a difícil inserção no mercado de trabalho são diversos, e impedem ou dificultam o acesso à 94 Anais - 2014 V SITRE - ISSN 1980 - 685X formalidade. Podemos citar como exemplo, longo período sem ocupação, a baixa escolaridade e a pouca experiência. Diante do grupamento de atividades estudadas, obtém-se que as mulheres estão cada vez mais procurando o aperfeiçoamento através de um ensino de qualidade, para saírem da posição de donas de casa ou desempregadas para empreendedoras do próprio negócio ou para a inserção no mercado formal. CONCLUSÃO São inúmeros os motivos que levam as mulheres a quererem sair da posição que se encontram atualmente, de desempregadas ou do lar, para empregadas no mercado formal, obtendo igualdade de direitos de gêneros. Para que isso continue crescendo é necessário que todas as instâncias envolvidas e atingidas pela crescente participação feminina reflitam sobre as diversidades que envolvem as particularidades do trabalho feminino. REFERÊNCIAS BRASIL. Ministério da Educação. Secretária de Políticas para Mulheres. Guia Metodológico do Sistema de Acesso, Permanência e Êxito do Programa Mulheres Mil. Disponível em: <http://portal.mec.gov.br/index.php?option=com_docman&task=doc_download&gid=11834 &Itemid=>. Acesso em: 03 de maio de 2012. ______. Ministério da Educação. Portaria nº 1.015 de 21 de julho de 2011. Diário Oficial da União, Brasília, DF, n. 140, 22 jul .2011. Seção 1. ______. Ministério da Educação. Programa Nacional Mulheres Mil - Educação, Cidadania e Desenvolvimento Sustentável. Disponível em: <http://portal.mec.gov.br/index.php?option=com_docman&task=doc_download&gid=8598& Itemid=>. Acesso em: 03 de maio de 2012. INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATISTICA (IBGE). Pesquisa Mensal de Emprego. Mulher no mercado de trabalho: perguntas e respostas. Disponível em: <http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/indicadores/trabalhoerendimento/pme_nova/Mulher _Mercado_Trabalho_Perg_Resp_2012.pdf>. Acesso em 25 set. de 2013. 95 Anais - 2014 V SITRE - ISSN 1980 - 685X LEITE, Marcia de Paula; ARAUJO, Angela Maria Carneiro. O trabalho reconfigurado: Ensaios sobre Brasil e México. São Paulo: Fapesp, 2009. MARUANI, Margaret; HIRATA, Helena. As novas fronteiras da desigualdade. homens e mulheres no mercado de trabalho. São Paulo: Senac, 2003. SECRETARIA DE EDUCACAO CONTINUADA, ALFABETIZACAO E DEIVERSIDADE (SECAD). Gênero e diversidade sexual na escola: reconhecer diferenças e superar preconceitos. Disponível em: <http://portal.mec.gov.br/secad/arquivos/pdf/escola_protege/caderno5.pdf>. Acesso em 15 ago. 2013. PARTICIPATION OF WOMEN IN THE LABOUR MARKET. Abstract: The government currently has invested in social inclusion policies with a gender, seeking equity, gender equality, access to education and entering the labor market, an example is the Thousand Women Program, which focuses on the action women in situations of social vulnerability. Seeks to provide the elevation of education, and access to and / or stay in work by encouraging the business itself, to avoid informal work. The objective of this article is to profile the employability of students to enroll in Thousand Women Program campus Itumbiara, in the course of craft techniques, taught in the second half of 2013. We applied a questionnaire the students and the results showed in the afternoon class, most are housewives who seek a qualification for a job plead, others are employed in the formal labor and other unemployed working in the informal market. At night class, the opposite happened, more than half are employed in the formal, and then comes the housewives followed by unemployed. For all this, one realizes that women are in search of an education that envisage them a possible inclusion in the labor market and / or a qualification in the search for equal rights. Keywords: Professional education; Gender; Work.