sacra folia - SP Cultura
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sacra folia - SP Cultura
1 SACRA FOLIA PRÓLOGO 1 COM O PUBLICO JÁ NO SAGUÃO, SÃO GABRIEL, COM AS DEVIDAS AURÉOLA E ASAS, ABRE AS PORTAS DO TEATRO E ANUNCIA COM VOZ ENTOADA COMO UM ARAUTO. ANJO Sacra Folia! Vinde ver um respeitoso e risonho auto de natal que recorda as peripécias da sagrada família no tempo em que andou por Goiás, Minas e Paraíba! Sacra Folia! Vinde ver a luta entre o arcanjo São Gabriel e o Demo aqui nas terras do Brasil! Sacra Folia! Vinde ver e acompanhar, contritos e horrorizados, o episódio da matança dos inocentes! E vinde rir e cantar de alegria com o triunfo final de Maria, José e do Menino Deus! Sacra Folia! Vinde, oh, vinde! (ANJO VIRA-SE E CONCLAMA O PUBLICO A ACOMPANHA-LO. CANTA “ Oh, Vinde” JUNTAMENTE COM OS OUTROS ATORES (VESTIDOS COMO PERSONAGENS DE “ OANEL DE MAGALÃO” QUE SE DISPÕEM EM VÁRIOS PONTOS DO TEATRO. ATORES CANTAM AGITANDO FITAS ATE QUE TODO O PUBLICO SE ACOMODE.) Vinde, oh, vinde todos Aqui em Belém Já nasceu o menino Cantemos amém! Rompem as aleluias Ao nascer da aurora Abram vosso riso A partir de agora. 2 Na aridez do mundo Um galho floresceu O galho é Maria E a flor é Deus. A estrela-guia Já cruzou o céu Clareando a noite Desvendando o véu. Sorriso de sol Água cristalina Orvalho da noite Centelha divina É o menino Deus Que agora nos acena Está entre nós Vale a vida a pena. ANJO Respeitável publico! Desculpai minha ousadia De pedir neste momento Seu maior tesouro. Não, não quero vosso ouro, Nem vossos sonhos a noite Nem vosso trabalho de dia. Para continuar Esta função já em curso Peço o que não tem preço. 3 Mais caro que vossa atenção e apreço Peço o concurso de vossa imaginação. E na falta de grandes cenários, Ricas roupas e ornamentos, Contai com nosso pouco talento Que contamos com vosso generoso coração. E, para que nossa arte Valha a pena Seja a nossa e a vossa Uma só criação. E que seja o chão nu desta arena o vasto território de vossa imaginação. Sacra Folia! ATORES, CANTANDO, INICIAM UMA COREOGRAFIA DE RODA PELO PALCO. ALGO MUITO SIMPLES COMO UMA CIRANDA OU ALGO ASSIM. A COREOGRAFIA OCULTA POR ALGUNS MOMENTOS AS FIGURAS DE MARIA E JOSÉ. QUANDO AS DESCOBREM NOVAMENTE, MARIA TEM JESUS ENVOLTO EM PANOS E FITAS. MARIA E JOSÉ DANÇAM APRESENTANDO O MENINO-DEUS AO PÚBLICO. ALGUÉM CANTA “WHITE CHRISTMAS”, ENQUANTO DE MÃOS DADAS, COMO NUMA CIRANDA, OS ATORES SAEM. POR ULTIMO SAI A FAMÍLIA SAGRADA E O CANTOR. O CLIMA TOCANTE DE “WHITE CHRISTMAS” E QUEBRADO POR UM GRITO ESTRIDENTE DE RAIVA. ENTRA MATEUSA PERSEGUIDA POR BORACÉIA. MATEUSA Deus me livre e todos profetas me guardem! Mai nem atada de pé e mão, mordaçada e arreada eu não faço os seus desejos! BORACEIA Que é isso, menina? Fala baixo! Que é que o povo vai pensar de mim? 4 MATEUSA Sei lá, mai não quero ter parte com o sujo, com o tirano, com o diabo, que Deus me livre! BORACEIA Você é minha escrava! MATEUSA Já fiz todo meu serviço! BORACEIA Vai fazer hora extra! MATEUSA E aqui na Judéia escravo faz hora extra invocando o demo, é? Não está no meu contrato de trabalho! BORACEIA E escrava lá tem contrato? Vai me ajudar, sim, a terminar o que comecei. MATEUSA Mai nem com ordem do papa! BORACEIA Que papa? Não tem papa! Estamos na Judéia, no tempo de Herodes, lembra, sua burra? MATEUSA (PERCEBE A MANCADA) É. O que eu quis dizer é que nem vinte, nem cinqüenta, nem cem turiões romanos vão me obrigar a ajudar a senhora nessa bruxaria! Não me mete nessas coisas de pacto com o capeta, dona Boracéia. Mexer com chifrudo só dá certo quando o marido é manso! BORACEIA Primeiro que o demônio não é tão feio quanto pintam! Segundo que quem ama o feio, bonito lhe parece! Terceiro, resto de cangalha velha, que não se deve parar uma invocação no meio! MATEUSA (ASSUSTADA) Não? E porque? BORACEIA Tudo pode acontecer! MATEUSA Não tenho nada a ver com isso. Não sabia que era pacto. E eu não falo aquelas palavras esquisitas prá chamar diabo... (APAVORADA) Pelos profetas do Aleijadinho! BORACEIA Que Aleijadinho? Não tem... (VIRA-SE E GRITA DE SUSTO AO VER UM DEMÔNIO TORTO E MANCO QUE ENTRA) Quem é você? DEMÔNIO Eu sou o cão, coisa-ruim, azucrim, arrenegado, cafute, demo, rabudo... 5 MATEUSA (CORTANDO) Dá licença, seu diabo, que eu não vou esperar o senhor dizer todos os sobrenomes, não, tá? Eu vou ali na casinha e já volto! (SAI CORRENDO) BORACEIA (DESCRENTE) Você é um demônio? (DEMÔNIO TIRA DO BOLSO UM CARTÃO E ENTREGA A BORACEIA) Vigésima quinta legião, quadragésima oitava categoria! (MEDE O DIABO DE ALTO À BAIXO) Bem vi que você era um diabrete muito mixuruca! (OLHA DE NOVO O CARTÃO) Que é isto? CRM? És médico? DEMÔNIO Conselho Regional do Mal, dona! BORACÉIA Pois muito bem! Quero o poder de Herodes, meu marido! Quero reinar sozinha na Judéia! DEMÔNIO Não posso fazer isso. BORACÉIA Então, pode voltar pro meio do enxofre de onde veio! E me mande alguém mais competente! (ENTRA HERODES GARGALHANDO) HERODES Então, queria meu lugar, cobra peçonhenta? BORACEIA (FURIOSA) Queria, sim, pedra do meu rim, bílis do meu fígado, ácido clorídrico da minha gastrite! Faria do poder bem melhor uso. HERODES Não enquanto eu viver! BORACEIA Prá tudo existe jeito na vida! E se esse diabo velho e frouxo não presta para o que quero, vou invocar um que justifica a fama! HERODES Pode desistir, ó, escorpião da minha cama, sou compadre do chefe desse aí! (APONTA O DEMÔNIO) BORACÉIA (MORDENDO A MÃO) Ái, que me mastigo de ódio! Que de raiva me como a dentadas! HERODES Enquanto você ia procurar a cobra eu já voltava com o veneno! BORACÉIA Veneno é o que vou por na sua bebida! DEMÔNIO Silêncio! O momento é grave! Nasceu o novo rei dos Judeus! BORACÉIA Como? (APONTA HERODES) O rei é ele! E quando ele se for, o que não deve demorar muito, a Judéia vai ter uma rainha: eu! HERODES Então o que disseram os reis magos era verdade!? 6 BORACÉIA Alguém quer me explicar o que está acontecendo? DEMÔNIO Nasceu o “filho do homem”. BORACÉIA Que filho? Que homem? (PARA HERODES) Ah! Seu filho, desgraçado? (AVANÇA PARA HERODES) Traiu-me com quem, maldito? Ai, que se te pego, arranco o mau pela raiz! HERODES Que meu filho o quê! É a profecia que diz que vai nascer um filho do homem que tambem é o filho de Deus. Será o messias, o enviado, e dele será o poder de todos os reis da terra! BORACÉIA Vai tomar o seu lugar? HERODES Parece que sim. E ao que tudo indica ele já nasceu! BORACÉIA E eu? HERODES Prá minha última alegria, você vai cair do trono antes de nele ter subido! BORACEIA Ai, que me desfaleço, que sucumbo, que me sufoco! (TRÁGICA) Ah, a injustiça da vida que marca a ferro o sonho humano: tantas boas intrigas que fiz, quantas bem planejadas conspirações, tantas profundas vilanias e bem pensadas traições! Tudo em vões! A vida passa como vendaval que varre todo nosso esforço! (MUDA DE TOM) Mas vamos pensar em coisas mais alegres: eu queria pegar esse rei que nasceu e dar-lhe um fim tão bem dado... DEMÔNIO A idéia é essa mesma. (DEMONIO PASSA O DEDO EM RISTE PELO PESCOÇO NUM GESTO CARACTERÍSTICO) HERODES Mas como saber entre tantas crianças quem o enviado? DEMÔNIO Só há um jeito! (SAEM. ENTRA O ANJO GABRIEL.) PRÓLOGO 2 - A MATANÇA DOS INOCENTES ENQUANTO GABRIEL NARRA, DESENVOLVE-SE SOBRE O PALCO UMA COREOGRAFIA SOBRE A MATANÇA DOS INOCENTES. SOLDADOS ARMADOS CRUZAM E RECRUZAM O PALCO ENQUANTO A SAGRADA FAMÍLIA FOGE (MARIA 7 NUM CAVALO-MARINHO PUXADO POR SÃO JOSÉ, EVITANDO SEMPRE ENCONTRAR-SE COM OS SOLDADOS. GABRIEL Cessai vosso riso por um momento apenas, E perdoai se rompo vossa alegria para lembrar penosos dias de muitas lágrimas e de não poucas penas. Soldados de Herodes armaram-se Com gládio, espada e lança. Sim, houve um tempo em que homens matavam crianças. A aldeia de Betânia, perto do rio Jordão, amanheceu como sempre amanhecia: silêncio bom de paz e de sono. Cavalos e soldados entraram a passo lento nessa aldeia, nessa manhã, nessa paz. Em silêncio as espadas ergueram-se nas mãos e em estrondo de portas arrombadas, de gritos e ordens, as espadas procuraram os inocentes. Nos berços, nos braços das mães, sob as camas, fugindo com passinhos miúdos. Encontraram todos num zás, traz e truz de corte e talho e saíram com a consciência do dever cumprido. E a aldeia de Betânia, perto do rio Jordão, entardeceu naquele dia, marcada inteira de morte, como nunca entardecia. (SOLDADOS SAEM E ENTRAM NOVAMENTE) Cruzaram e recruzaram o País e de madrugada chegaram ao rio. Os inocentes, desta vez, dormiam, atrás de um templo, amontoados, um cobertor do outro. A grande cidade também dormia. Então, eles chegaram na velocidade de uma vertigem e freiaram os carros bruscamente como quem fecha os olhos. E o canto dos pneus entrou no sonho e os inocentes abriram os olhos para ver a morte. E foi bala e bala, papapá de tiro, olho fechado de homem mirando pontaria em corpo de menino. E, depois, silêncio. 8 E depois do silêncio, as portas bateram com pressa e os carros arrancaram. De manhã levaram os corpos e lavaram o chão. Eu conto o que fizeram os soldados de Herodes para que não se lave a lembrança. Sim, há um tempo em que homens matam crianças. (LONGA PAUSA) E com este momento contrito E com a fuga do menino-deus Para o Egito Termina o prólogo desta representação. Retomai o vosso riso Recolhei vossa emoção E, de agora até o fim, Seja mandante a alegria . E, em vossa vida, doravante, Seja a dor tão inconstante Como há de ser nesta Sacra Folia. CENA 1 - UMA ESTRANHA ANUNCIAÇÃO ENTRA JOÃO TEITÉ CORRENDO E GRITANDO PERSEGUIDO POR MATIAS CÃO. MATIAS CÃO Quebro-lhe em dois, parto-lhe em três, descadeiro-lhe os quartos, lhe mando pros quintos, seu peste! JOÃO TEITÉ Vamos resolver nossas diferenças como pessoas maduras, Matias! Precisamos entrar num acordo! MATIAS CÃO Eu bato e você chora, eu surro e você grita, eu entro com a vara e você com o lombo, seu filho... JOÃO TEITÉ (CORTANDO) Não pode falar palavrão em auto de natal! 9 MATIAS CÃO (PAUSA, RACIOCINA E EMENDA)... de mulher sobre a qual pesam suspeitas de contumácia em relacões licenciosas e ilícitas com inúmeros desconhecidos! JOÃO TEITÉ Ô, doido, Matias, essa humilhou! Eu preferia um palavrão curto e grosso, alto e claro! ( CHOROSO) Isso magoa, ouviu, Matias! MATIAS CÃO Venha cá! JOÃO TEITÉ (COMO CRIANÇA) Só vou se você falar que não me bate! MATIAS CÃO Venha cá que eu estou mandando! JOÃO TEITÉ Então não me bate! MATIAS CÃO Maldita hora em que lhe pus como sócio de minha companhia de transporte! JOÃO TEITÉ Sua, não, nossa! MATIAS CÃO Agora não é nem minha, nem nossa! Você deu sumiço no único jegue que a gente tinha. JOÃO Questão de opinião! Eu fiz um investimento! (MATIAS AMEAÇA PEGAR TEITÉ. TEITÉ CORRE) MATIAS CÃO Eu vou lhe pegar, lhe arrear e lhe colocar no lugar do jegue, condenado! JOÃO TEITÉ Eu só tive um pouco de azar. Isso acontece todo dia com qualquer investidor da bolsa de valores! MATIAS CÃO Venha cá! JOÃO TEITÉ Então não me bate! MATIAS CÃO Não bato se você me explicar porque rifou o jegue! JOÃO TEITÉ Estava tudo bem pensado, Matias! Escuta e me dê razão: eu fiz duzentos números prá vender a cinco reais cada. Cinco vezes ` duzentos, mil. O seu jegue valia trezentos. Setecentos de lucro, Matias! Um ótimo retorno do investimento! MATIAS CÃO E onde está o lucro? Onde está o jegue? JOÃO TEITÉ Problemas de marketing: a imagem do produto não correspondeu às expectativas do consumidor. Tive de baixar minha expectativa de lucro e vendi cada número a vinte centavos. 10 MATIAS CÃO Ah, desgraçado! Vendeu por quarenta reais um jegue que valia trezentos! JOÃO TEITÉ Calma! Vê a relação custo-benefício: tive lucro de quarenta reais porque o jegue não era meu. MATIAS CÃO Eu vou vender seu coro prá fazer torresmo! Me dá os quarenta reais! JOÃO TEITÉ Gastei como justo pagamento por todo o trabalho de planejamento e execução do investimento! (SAI CORRENDO) MATIAS CÃO (OLHA PARA O CÉU) Deus, com todo o respeito, admite, sem desdouro nenhum, admite: o senhor errou quando fez esse traste! Ou, então, quis se superar depois das dez pragas do Egito! (ENTRA O ANJO GABRIEL) Vôte! Que tipo de espécie de coisa é esse negócio? GABRIEL Sou o anjo Gabriel! MATIAS CÃO De verdade? E pode provar? COM OS BRAÇOS COMO UM MÁGICO PRESTIDIGITADOR E, POR (GABRIEL FAZ UNS PASSES FINAL, RETIRA DA MANGA DA TÚNICA UMA CARTEIRA DE IDENTIDADE QUE ENTREGA A MATIAS) MATIAS CÃO (LENDO) RG. 5.379.886, SSP. Está bem mas o que é que o anjo quer? GABRIEL Preciso de sua ajuda. MATIAS CÃO Chi!!! Para um anjo precisar da ajuda de Matias Cão só pode estar metido em enrascada das grossas. Diga lá. GABRIEL É que nasceu uma criança. (MATIAS O OLHA ESPANTADO) MATIAS CÃO Que mal lhe pergunte mas por um acaso... assim... bem intencional, GABRIEL a criança é sua? É filho de Deus. MATIAS CÃO Sim, eu sei, todos somos, mas eu pergunto é quem é o pai da criança? GABRIEL É Deus! O verbo, o sopro divino se fez homem e habita entre vós, como anunciaram os profetas. 11 MATIAS CÃO E é, é? Quer dizer que Deus ‘tá aí, andando no mundo, como homem-cidadão? GABRIEL Exatamente. E é por isso que precisamos de ajuda. Prá fugir dos soldados de Herodes a Sagrada Família fugiu para o Egito e acabou se perdendo. Tanto andaram sem rumo que vieram bater por essas bandas do Brasil. E, agora, Herodes, seus soldados e o próprio demônio estão perseguindo o menino-deus. MATIAS CÃO E a ajuda é prá enfrentar o demo, é? E onde é que se pede dispensa? Tenho pé-chato, sou arrimo de família! (JOÃO TEITÉ RETORNA E AO PERCEBER O ANJO PÕE-SE A OUVIR ÀS ESCONDIDAS) GABRIEL Dessa luta ninguém tem dispensa. MATIAS CÃO E o que é que eu ganho? GABRIEL Muitas riquezas e o reconhecimento do Todo-Poderoso! JOÃO TEITÉ FHC! O Matias deve ter feito um negocião com o governo federal! MATIAS CÃO E o que é que eu tenho de fazer? GABRIEL Guiar a Sagrada Família de volta ao Egito. E depois levá-la, sã e salva, para Belém. MATIAS CÃO Ichi! Um estirão! Esse Egito deve de ser um par de léguas prá lá de Goiás que é o lugar mais longe que eu conheço. Não dá prá soltar algum como adiantamento pelos serviços a serem prestados? GABRIEL Só pagamos no final do trabalho feito. Você encontra a Sagrada Família na praça aí perto. E, rápido, que não temos tempo a perder. MATIAS CÃO Num minuto estou lá. (SAEM) JOÃO TEITÉ Pois eu vou estar em trinta segundos, Matias! Não me quis mais como sócio? Então vai me ter como concorrente! Esse cliente já é meu, Matias! Se Matias Cão é esperto, João Teité é esperto e meio! (SAI CORRENDO. ENTRA A SAGRADA FAMILIA. A VIRGEM VEM NUM BURRINHO (CAVALO MARINHO), PUXADO 12 POR SÃO JOSÉ.TRAZ JESUS ENVOLTO EM PANOS. MARIA PODE CANTAR MÚSICA FOLCLÓRICA REFERENTE À FUGA) CENA 2 - FALSO ENCONTRO E VERO DESENCONTRO. (ENTRA JOÃO TEITÉ.) JOÃO TEITÉ Por um acaso, assim, muito de propósito, vocês são a Sagrada Família? SÃO JOSÉ (EMPUNHA O CAJADO EM POSIÇÃO DE DEFESA.) E por um propósito, assim, muito ao acaso, posso saber quem você é? JOÃO TEITÉ Sou o guia. Vou levar vocês até Belém. SÃO JOSÉ (MEDE TEITÉ, INCRÉDULO) Você? Será que Gabriel não podia ter encontrado alguém melhorzinho, não? JOÃO TEITÉ (FALASTRÃO) Eu sou o melhor guia do lugar. Conheço a região como a palma da minha mão direita. (MOSTRA A PALMA DA MÃO ESQUERDA) SÃO JOSÉ Maria, quando seu filho crescer, pede prá ele olhar por esse lugar que a coisa aqui deve estar bem feia! Você sabe mesmo o caminho? JOÃO TEITÉ Prá Belém eu vou de olho fechado. SÃO JOSÉ Então, vamos! JOÃO TEITÉ Vamos, nada! Primeiro quero ter certeza que vocês são quem eu estou procurando. (SUCESSIVAMENTE JOSÉ, MARIA E O MENINO JESUS APRESENTAM SEUS DOCUMENTOS.) José dos Santos, Maria de Deus e Jesus Nazareno de Deus! Tudo certo. E agora, meus honorários: quero boi, porco, frango, peru, tudo de centena. Leite e derivados, tudo de arroba! Bananas de cacho, (COMEÇA A SALIVAR) frutas de baciada, vinho em dúzias... SÃO JOSÉ De garrafa? 13 JOÃO TEITÉ De barril! E duas piscinas olímpicas: uma cheia até a boca de gelatina, outra até o tampo de pêssego em calda. Vocês me dão isso, dão? SÃO JOSÉ Não. JOÃO TEITÉ Metade disso? Dez bois e uma banana? Dois? Um? Está bem, eu faço o serviço por uma entrada num rodízio, prá ninguém ficar no prejuízo. SÃO JOSÉ Tudo isso um dia acaba. Seu pagamento vai ser o maior e mais fino banquete como você nunca imaginou, farto, universal e sem fim. Nunca mais haverá fome... JOÃO TEITÉ Não faz isso, pelo amor de Deus! Fome é o tempero da comida e sem ela o banquete perde a graça, siô! A felicidade do homem é feita de três coisas principais: fome, comida e vontade de comer! SÃO JOSÉ Então, está bem. JOÃO TEITÉ Se está bem, bem está! Vamos logo, gente, que eu já me emociono, salivo, mastigo e como o que ainda é só minha imaginação. (SAEM. QUASE AO MESMO INSTANTE ENTRAM BRUSCAMENTE BORACÉIA, HERODES, O DEMO, SOLDADOS COM ESPADAS EM RISTE E MATEÚSA. ESTA CARREGANDO AS TRALHAS DE TODOS. ) BORACÉIA Ninguém! Não tem ninguém aqui! DEMÔNIO Deviam estar. BORACÉIA Ai, ai, ai,ai, ai que me doem os joanetes! Se me fizeram andar da Judéia até essa terra miserável a troco de nada, eu descadeiro um! E vou começar por você, seu pé-de-bode chifrudo! DEMÔNIO Me dê respeito que eu sou um diabo! BORACÉIA Mas nem que fosse o rei de todos eles! Ou me diz onde está esse menino-rei ou arranco seu chifre e encurto seu rabo! HERODES (PARA DIABO) Se eu fosse você eu achava agora a Sagrada Família. DEMÔNIO Ela é só uma mulher! 14 HERODES Ela não é só uma mulher. Às vezes acho que ela nunca foi mulher. Duvido até que seja humana. Deve ser alguma espécie de mutação, um elo perdido. DEMÔNIO Sou é macho! HERODES Tenho dúvidas se vai continuar sendo! MATEÚSA É melhor ouvir conselho que ouvir “coitado!” BORACÉIA (COMEÇANDO A BUFAR) Estou ficando nervosa! Não vou ser responsável pelo estrago! (TODOS SE AFASTAM DE BORACÉIA) HERODES Vai virar bicho! MATEÚSA Bicho já é! Vai virar outra coisa! BORACÉIA Está me subindo a sede! Está me dando gana de virar esse cão coxo do avesso só prá ver como é por dentro! DEMÔNIO Satanaz! Eu volto quando ela virar gente de novo. (SAI CORRENDO) BORACÉIA Se eu botar a mão em um estrago tanto o couro que médico nenhum dá jeito! (SEGURA MATIAS CÃO QUE ENTRA) MATIAS CÃO Vôte! Quem pode me acode, gente! BORACÉIA Quem é você? MATIAS CÃO (ASSUSTADO) Quem a senhora quer que eu seja? BORACÉIA Está brincando com a minha cara? MATIAS CÃO Não, dona, estou levando muito a sério. BORACÉIA Acho que vou lhe partir a fuça. MATIAS CÃO Não faz isso, dona, que vou ser obrigado a reagir e aí vou apanhar mais ainda. Faz de conta que não me viu que eu faço de conta que nunca estive aqui! BORACÉIA Prá onde está indo? HERODES De onde veio? SOLDADO Que está fazendo aqui? MATEÚSA Você já tem companheira? (TODOS SE VOLTAM PARA MATEÚSA) Cada um pergunta o que lhe interessa, uai! MATIAS CÃO Vim aqui para encontrar uma família sagrada. 15 BORACÉIA (GRITA E O SOLTA) Ah! MATIAS CÃO (AMEDRONTADO) Que quer dizer esse “Ah!”? BORACÉIA Que acabou de encontrar! MATIAS CÃO (INDRÉDULO) Vocês são a sagrada família? HERODES Bem, parte dela. É uma família muito grande. Ela (APONTA BORACÉIA) é a sogra, eu sou o cunhado, aquele é um primo. BORACÉIA Sabe onde eles estão? HERODES A gente está querendo reunir toda a família. MATIAS CÃO E tem certeza que a outra parte também está querendo se reunir? BORACÉIA Que quer dizer? MATIAS CÃO É que, por experiência própria e familiar, sei que encarar, de uma vez só, cunhado, sogra e primo só sendo uma família muito sagrada mesmo! BORACÉIA Eles estão correndo perigo. Precisamos ajudá-los. MATIAS CÃO Eu sei, o anjo me contou. HERODES Sabe onde estão? MATIAS CÃO (PROFESSORAL) Não, senhor, mas posso saber. Prá saber preciso procurar, procurar cansa, o cansaço me faz suar, suar faz perder vitaminas e sais minerais que precisam ser repostos, repor vitaminas e sais minerais custa dinheiro, logo... HERODES Não lhe dou um tostão, explorador da dor alheia! BORACÉIA Paga logo, tonel de toucinho! MATIAS CÃO Isso! É igual lá em casa: manda quem pode e obedece quem tem juízo! HERODES Vai esperando que o seu está assando! BORACÉIA Vamos! MATIAS CÃO Todo mundo aqui pertence à família? BORACÉIA Menos aquela escrava imprestável! MATIAS CÃO Se for jogar fora eu quero, viu? BORACÉIA Isso não serve prá nada! 16 MATIAS CÃO Sempre serve! Uma vez eu consegui uma igualzinha a essa, por um canivete, numa feira de trocas! ( MATEUSA DÁ-LHE UM CASCUDO) Isso, bate em quem você vai gostar! Amacia a carne que você vai alisar! MATEUSA (BOQUIABERTA PELA SURPRESA TENTA FALAR MAS A VOZ NÃO SAI) Se o senhor me deixar, assim, sem graça outra vez eu não sei o que eu faço! MATIAS CÃO Quer sugestão? BORACÉIA Vamos parar com esses arrufos que “pombinhos” só gosto como galeto! Vamos atrás dos fugitivos! MATIAS CÃO Não é preciso. Se passaram por aqui eles vão bater direto na estalagem. BORACÉIA E no meio desse sertão desgraçado tem uma estalagem? MATIAS CÃO Tem, dona! São léguas e mais léguas de caatinga esturricada, onde não vive nem calango, nem bacurau, mas tem estalagem. BORACÉIA Não passa ninguém por aqui! MATIAS CÃO Não passa ninguém, mas tem estalagem! BORACÉIA E de quem é? MATIAS CÃO (MEIO IRRITADO) Não tem dono, não mora ninguém mas é prá lá que a gente vai! BORACÉIA Mas... MATIAS CÃO (EXPLODINDO) Se a gente não for a história não segue, cáspita! Porco cane! E andiamo, via, chè rompo i musi e la faccia de tutti quanti, porca miséria! (SAEM) CENA 3 - PERDIDOS NO SERTÃO ENTRA JOÃO TEITÉ, COM A MÃO EM PALA, DIVISANDO O HORIZONTE. (COMPÕE EXPRESSÃO DE DESALENTO) ATRÁS DELE ENTRA MARIA EM SEU BURRICO, COM JESUS NO COLO. DE SEU BURRICO SAI UMA HASTE. NA PONTA DA HASTE UM CORDÃO QUE VAI ATÉ OUTRA HASTE QUE É 17 SEGURA, MAIS ATRÁS, POR SÃO JOSÉ. NO CORDÃO (VARAU) ESTENDEM - SE VÁRIAS FRALDAS. SÃO JOSÉ Está vendo alguma coisa? JOÃO TEITÉ Estou, mas não conheço nada do que estou vendo. SÃO JOSÉ Estamos perdidos, então? JOÃO TEITÉ Nem tanto. SÃO JOSÉ Prá onde estamos indo? JOÃO TEITÉ Daqui estamos indo prá lá. SÃO JOSÉ E onde é lá? JOÃO TEITÉ O problema está aí. (SÃO JOSÉ PEGA O CAJADO) Calma! Tenho certeza que estamos indo prá divisa de Sergipe com a Paraíba. SÃO JOSÉ É bom que esteja certo! (APARECE UMA SETA COM A INSCRIÇÃO: “PARAGUAI, A 2 km”. TEITÉ TOMA UM SUSTO E PÁRA) JOÃO TEITÉ Ave, maria! MARIA Que quer? JOÃO TEITÉ Não é nada com a senhora, não. Acho que estamos com um pequeno problema. MARIA Eu também estou. José, molhou mais uma! (JOSÉ DÁ O VARAU PARA TEITÉ SEGURAR E LEVA UMA FRALDA A MARIA. ESTA VIRA-SE DE COSTAS E TROCA O MENINO BRINCANDO COM ELE.) JOÃO TEITÉ (ABRE OS BRAÇOS TENTANDO DESCOBRIR OS PONTOS CARDEIAIS) Colocando-se de frente prá onde nasce o sol e abrindo os braços em cruz, temos à direita o sul, à esquerda... Ou será ao contrário? Ou o oeste é a esquerda? Eu faltei nessa aula de geometria! SÃO JOSÉ Estamos perdidos, Teité? 18 JOÃO TEITÉ Não. Estamos perto do Paraguai. Só não sei onde fica esse diacho de lugar! (SÃO JOSÉ TOMA DO CAJADO) Que é que você vai fazer, seu José? SÃO JOSÉ Sou conhecido como um velho paciente. Acho que vou mudar minha biografia! JOÃO TEITÉ Mãe de Deus! MARIA Não me envolva nisso! Resolvam vocês! SÃO JOSÉ Não vou tirar lasca! Só vou botar um pouco de juízo na sua cabeça! JOÃO TEITÉ Vê o lado bom da coisa, seu José: estamos tão perdidos que o demônio e o Herodes nunca vão farejar nosso rasto! SÃO JOSÉ (ACALMANDO-SE) Tem lógica! Mas a gente não pode ficar perdido para sempre. MARIA Deixa que isso eu resolvo. Teité, prá que lado você acha que está essa bendita estalagem? JOÃO TEITÉ Tenho certeza absoluta que está naquela direção. MARIA Burrinho, qual é o caminho da estalagem? (BURRO VIRA-SE NA DIREÇÃO CONTRÁRIA DE TEITÉ) José, vamos por aqui. (TOMAM DIREÇÃO APONTADA PELO BURRO) SÃO JOSÉ Sempre se encontra um burro que sabe mais que o outro! (SAEM) JOÃO TEITÉ Espera que o guia tem de ir na frente. (SAI) CENA 4- A TRAMA DESFEITA ENTRA MATIAS SEGUIDO DE BORACÉIA. MATIAS CÃO Não sei o que pode ter acontecido, dona Boracéia. BORACÉIA Pois, trate de saber! MATIAS CÃO Eles vão ter de passar por aqui, dona Boracéia! BORACÉIA Há uma semana que estamos aqui e nem sinal da sagrada família! MATIAS CÃO Daqui a pouco eles chegam. BORACÉIA Como é que sabe? 19 MATIAS CÃO (IRRITADO) Se eles não chegarem a história não anda! Mas que vontade desmedida é essa, dona Boracéia? BORACÉIA Não lhe interessa! Vai procurar, achar e me trazer essa família aqui, hoje! Do contrário... MATIAS CÃO Do contrário...? BORACÉIA Deixo prá sua imaginação o que vai lhe acontecer! (SAI FURIOSA. MATIAS FICA IMAGINANDO O QUE LHE PODE ACONTECER. ESPANTADO, PASSA O DEDO EM RISTE NO PESCOÇO; DRAMÁTICO, GOLPEIA A MÃO FECHADA SOBRE O PEITO COMO SE CRAVASSE UM PUNHAL NO CORAÇÃO; HORRORIZADO, PASSA A MÃO FECHADA SOBRE O ABDÔMEN COMO SE FIZESSE HARAQUIRI E FINALMENTE INICIA UM GESTO DE CASTRAÇÃO QUE INTERROMPE E COMEÇA A SOLUÇAR. ENTRA MATEUSA.) MATEÚSA Matias! Preciso de uma ajuda. MATIAS Eu preciso de uma ajuda e meia. Tenho de achar a sagrada familia. MATEÚSA Eu também. MATIAS Não sei o que está acontecendo mas parece que tem alguma desavença entre as duas partes da família. MATEÚSA Está começando a ficar esperto. MATIAS CÃO Não sei se é briga de sogra com nora ou se tem problema de herança que é coisa que mais MATEÚSA dá desavença. Eles não são da família. Eles tem parte é com o demo! MATIAS CÃO Como é que é que é? MATEÚSA Eles querem matar o menino! MATIAS CÃO Jesus! MATEÚSA É, esse mesmo! Como é que sabia o nome dele? MATIAS CÃO Bem que eu estava desconfiando, quase sabendo, sabia de fato mas não de direito! Só não desvendei a verdade porque “in dúbio, pro réo”, data vênia, como diz o direito romano! 20 MATEÚSA Que quer dizer isso? MATIAS CÃO Eu sei lá! A gente tem de decorar cada coisa! MATEÚSA A gente precisa fazer alguma coisa! MATIAS CÃO Azular, sumir, virar uma formiga preta, numa noite escura, dentro numa caverna escura, escondida em baixo de uma pedra preta! MATEÚSA Cadê sua coragem? MATIAS CÃO Está cumprindo aviso prévio. MATEÚSA A gente precisa cuidar da criança. MATIAS CÃO Mas nem é minha! MATEÚSA É de todos, conforme a profecia. A gente ampara os passos da criança agora que, amanhã, quando for adulta, ela nos abre os caminhos. MATIAS CÃO Está bem, eu vou porque também não gostei dessa gente. MATEÚSA Você é um homem justo. MATIAS CÃO Já que sou um homem justo, enquanto a família não chega, a gente podia ajustar a nossa parte. MATEÚSA Que está querendo dizer? MATIAS CÃO Eu sei que a história principal é a da sagrada família mas a gente, sabe como é, podia fazer uma históriazinha paralela, assim só prá ` animar um pouco o ambiente enquanto a gente espera...(ENTRA SÃO JOSÉ, SEGUIDO PELA VIRGEM E O MENINO.) SÃO JOSÉ O senhor esteja convosco. MATIAS Esteja com todos. Quem é o senhor? SÃO JOSÉ Sou José e queria pousada para três. MATEÚSA Minha Nossa Senhora! SÃO JOSÉ Ela está lá fora. Que a senhora quer com a minha dona? A senhora me conhece? MATEÚSA Vi uma foto do senhor num santinho. E dona Maria, está bem? E o menino já está falando? São eles, Matias, a sagrada família! A gente de tirar os três daqui. (ENTRA BORACÉIA) 21 BORACÉIA Benvindos à nossa humilde estalagem. Deixem tudo por nossa conta. Coloquem suas vidas em nossas mãos. MATIAS T’esconjuro! MATEÚSA Matias, eu vou... BORACÉIA Você não vai coisa nenhuma. Sai, suma, fora, caco de entulho! Vai preparar os quartos e as camas. (MATEÚSA SAI FAZENDO GESTOS DE CUMPLICIDADE PARA MATIAS) O sono deles pode deixar que eu preparo. (RI DA PRÓPRIA PIADA) O sono. (A JOSÉ) Vai, chama seu pessoal. Não deixa sua família lá fora que pode ser perigoso. (JOSÉ SAI. BRUTA) E você, tapa as orelhas que é hora do meu solilóquio! (MATIAS, ASSUSTADO, TAPA AS ORELHAS. LUZ SOBE EM BORACÉIA) Reinar! Ah, a onipotência de reinar! O prazer de exercer poder sobre gente assustada, homens, mulheres e crianças se curvando à minha passagem! E as delícias da bajulação? As lindas e elogiosas mentiras que ouvirei a meu respeito? E vou exigir virtude de todos os súditos e só eu poderei desfrutar dos vícios. E me sentirei bela, amada, tentadora! E vou governar com mão de ferro até que todas essas mentiras se convertam em verdade! (RETORNANDO AO REAL) Ai, que não me agüento de ansiedade. Eu devia era ter matado o menino de vez! Não! Estou em terra estrangeira. E no estrangeiro a gente deve buscar a maneira certa de fazer as coisas erradas! E vai ser essa noite. (SAI) MATIAS (SE RECOMPÕE OLHANDO ASSUSTADO PARA OS LADOS) E dizem que foi assim e assim sendo uma noite silenciosa l entamente caiu e suas sombras encobriram o que se tramava. O ar pesado da noite traziam aos ouvidos atentos sons abafados de passos, ameaças a meia voz e indistinguíveis murmúrios. (ENTRA MATEÚSA LENTAMENTE, DENTRO DO CLIMA DA NARRATIVA. FALA NUM FIO DE VOZ) 22 MATEÚSA Que é que a gente faz, Matias? Tem um soldado guardando a porta do quarto da sagrada família e ele não pisca nem prá soltar pum. MATIAS CÃO E o que é que sempre se faz numa situação como essa? (MOSTRA UM PEQUENO VIDRO.) O narcótico! (REPETE-SE A MESMA GAG DE “O ANEL DE MAGALÃO”.) Tucha narcótico na água dos soldados na aguardente da Boracéia. JOÃO TEITÉ Seu José! Ó, de dentro! MATIAS CÃO Que que o Teité... Me deixe sozinho, Mateúsa, que esse mineirinho não aparece nos lugares a custa de nada! (MATEÚSA VAI SAINDO MAS MATIAS A CHAMA.) Mateúsa, vem cá um pouquinho. (MATEÚSA SE APROXIMA. MATIAS AGARRA-A E SAPECA-LHE UM BEIJO.) MATEÚSA Que é isso, Matias? MATIAS CÃO Um amplexo seguido de um ósculo! MATÉUSA Pois eu vou dar-lhe cinco dedos no meio da fuça... MATIAS CÃO Não tem tempo, Mateúsa! O Teité vem vindo aí... Tem de preparar o narcótico... A Sagrada Família.... corre! (MATEÚSA ESBAFORIDA CORRE À SAIDA. PARA E PERCEBE O TRUQUE.) MATEÚSA Seu Matias... JOÃO TEITÉ Estou entrando. MATIAS CÃO Perdeu sua vez. É hora do João Teité. MATEÚSA Você não perde por esperar. (SAI. ENTRA TEITÉ) JOÃO TEITÉ Por acaso o seu José... Matias! Que surpresa! Que coincidência! Que inesperado prazer! MATIAS CÃO Não posso dizer a mesma coisa! JOÃO TEITÉ Mas podia mentir igual eu! MATIAS CÃO Que é que está fazendo aqui? JOÃO TEITÉ Estou guiando a Sagrada Família prá Belém! MATIAS CÃO Ah!, seu traste! Então você pegou meu contrato?! 23 JOÃO TEITÉ Negócios! Enquanto você estava tratando com intermediários, aquele anjo, fui conversar diretamente com o cliente! MATIAS CÃO Você atravessou meu negócio! JOÃO TEITÉ Agilidade comercial! E, depois, ofereci melhor serviço, melhor preço e melhor atendimento! É assim que se trabalha em época de globalização, seu bestão! MATIAS CÃO Seu tralha! Eu ainda lhe pego na curva! JOÃO TEITÉ Nem te ligo! O mundo é dos mais espertos, Matias. MATIAS CÃO Então esperta o passo que até o fim desse caminho tem muito chão! (SAI) JOÃO TEITÉ Entre você e eu, o segundo lugar será sempre seu! CENA 5 - A FUGA DE SERGIPE ANOITECE. DE LADOS CONTRÁRIOS DO PALCO ENTRAM MATIAS E MATEÚSA SEM SE PERCEBEREM. ENCONTRAMSE E ASSUSTAM-SE. TEITÉ Ave, Maria! MATIAS (PEDE SILÊNCIO AO MESMO TEMPO QUE ENTRA MARIA.) Psiu! MARIA Que é? MATIAS Não chamei a senhora, não! Foi só jeito de falar. Prepara tudo que já estamos de saída. (MARIA VOLTA PRÁ DENTRO.) TEITÉ Saída pra onde? Eles são meus clientes. MATIAS Eram. Eles estão correndo perigo, Teité. Vamos picar a mula! TEITÉ Não, senhor! Vamos esclarecer isso direitinho! MATIAS Não temos tempo, homem! TEITÉ Ninguém sai! Eu faço escândalo, exijo indenização! Vou aos tribunais! (ENTRA O ANJO. TEITÉ SE ASSUSTA) Virgem Maria! (ENTRA MARIA) MARIA Que é? 24 TEITÉ Chamei, não. É só jeito de falar. MARIA (PARA SI) Isso já está me irritando! GABRIEL Sai, Matias! Leva a família para lugar seguro. (MATIAS SAI. ARREGAÇA AS MANGAS) Eu estava mesmo com ganas de lhe botar as mãos, sujeitinho à toa! TEITÉ Que é que eu fiz? Só porque atravessei o negócio do Matias? E a liberdade de comércio, a livre iniciativa? GABRIEL Você colocou em risco... (ENTRA O DEMÔNIO) TEITÉ Virgem Maria Santíssima! MARIA (DE DENTRO, IRRITADA) Estão me chamando mesmo ou é só jeito de falar? TEITÉ Jeito de falar nada! Chama o José que coisa aqui ta feia. É o demo! DEMO E vai ficar pior! Quero o menino! MARIA Acima desse menino só existe a força de Deus. E essa força agora está em mim! Vem, que é hoje que vou esmagar a cabeça dessa serpente conforme a profecia! GABRIEL Deixem a coisa comigo e vão que demônio gasgueia sem precisão e grita por não ter opinião! DEMO Quem tem coragem não é filho de pai assustado! GABRIEL Vamos ver! É no fritar do ovo que a manteiga chia! (MARIA SAI. O DEMO TENTA IMPEDIR A SAÍDA MAS GABRIEL CORTA-LHE A PASSAGEM.) DEMO Ou vai ou racha, ou tudo se escacha ou arrebenta a borracha. GABRIEL Não há matreiro que não caia e vou te fazer cair de costas e quebrar o nariz. DEMO Por um truz, por um trás, por um triz, perco o cachorro mas não perco a perdiz! GABRIEL Cara feia prá mim é fome e cachorro de outro bairro, que não venha ladrar neste. 25 DEMO Vou te ensinar a comer feijão e arrotar galinha, comer lambari e arrotar tainha, cabra! GABRIEL Cavalo olho-de-porco, diabo de fala grossa, cachorro que não acoa, um não presta e dois à toa! (O DIABO TENTA RESPONDER MAS NÃO LHE VEM NENHUMA IDÉIA.) DEMO É... (DESISTE E SAI FURIOSO. ANJO COMEMORA.) GABRIEL (A TEITÉ QUE ASSISTIU A TUDO ASSUSTADO) A família tem outro guia. Não atravesse seu caminho! Suma! Vire um peido e desapareça no nariz do primeiro que acordar! TEITÉ Ô, louco! Que boca tem esse anjo! É melhor mesmo eu ficar quito no meu canto. CENA 6 - DE SEQUESTRO, ANDANÇAS E NEGOCIAÇÕES UM GALO CANTA. TEITÉ ENTRA NO PALCO ESPREGUIÇANDO - SE. ENTRAM, LOGO DEPOIS, BORACÉIA BATENDO NO SOLDA DO E HERODES. BORACÉIA Vou lhe macerar, triturar, mastigar! SOLDADO Não tive culpa! HERODES Deixa o homem, coitado! Colocaram alguma coisa em nossa bebida. E, depois, Quanto mais brigamos mais eles se distanciam! BORACÉIA (SOLTA O SOLDADO) Tem razão. Mas o que eu faço com a minha raiva? Tenho de bater em alguém! JOÃO TEITÉ Não olha prá mim, não, dona! (BORACÉIA OLHA PARA HERODES) HERODES (MEIO ASSUSTADO) Está bem, pode continuar batendo nele. Mas nem tanto que o aleije nem tão pouco que você ainda continue com esse mau humor de cascavel! (BORACEIA BATE NO SOLDADO. DEPOIS RESPIRA FUNDO ALIVIADA. DÁ AINDA UM ÚLTIMO TABEFE NO SOLDADO.) 26 BORACÉIA Só por segurança! JOÃO TEITÉ Pelos pés dos andarilhos, pelas barbas do profeta! Essa mulher é o cão! SOLDADO Você não viu nada! JOÃO TEITÉ E nem quero ver! Vou pegar a Sagrada Família e sumir daqui! HERODES Não vai. Eles fugiram. JOÃO TEITÉ Como é? BORACÉIA Fugiram, sua besta! Com o tal de Matias Cão e minha escrava. JOÃO TEITÉ Ah, vilania! BORACÉIA Ah, mesquinhez humana! JOÃO TEITÉ Não se pode confiar em amigos! BORACÉIA Nem em escravos! JOÃO TEITÉ Fomos miseravelmente traídos! (SENTIDO) Está certo que algumas vezes eu sacaneei o Matias mas não é razão para esse ato tão desprezível! BORACÉIA (IGUALMENTE SENTIDA) Mateúsa rompeu a mútua confiança, a relação íntima que existe entre senhora e escrava! Teve vez que lhe bati mais do que ela merecia mas bem menos do que eu precisava para me relaxar! HERODES Formam um belo par! Fica com ela que eu ainda te volto troco! JOÃO TEITÉ Agradeço mas não mereço o castigo! BORACÉIA Que quer dizer? JOÃO TEITÉ Quero dizer que vou encontrar a Sagrada Família e recuperar o meu posto de guia. HERODES Sabe onde encontrá-la? JOÃO TEITÉ Não, mas vou virar, mexer, farejar, ciscar todo esse sertão até achar! HERODES Posso fazer um trato. JOÃO TEITÉ Poder, você pode. Se eu vou aceitar vai depender do que vem daí prá cá. HERODES Dou tanto dinheiro que você não vai conseguir contar nem gastar. 27 JOÃO TEITÉ Não quero. Primeiro que não gosto de contar dinheiro. E prá que serve o dinheiro que não se gasta? BORACÉIA Que é que quer? Mulheres? JOÃO TEITÉ Só gosto de um tipo de mulher: boa cozinheira! BORACÉIA Gosta de comida! JOÃO TEITÉ De qualquer tipo, raça e cor! HERODES Então, encontre a sagrada família e nos traga o menino. JOÃO TEITÉ E posso saber prá que vocês querem o menino? HERODES Você conhece a história sagrada? JOÃO TEITÉ Não. BORACÉIA É a seguinte: eu sou a verdadeira mãe do menino. Sequestraram o menino com promessas de maria-mole e pé de moleque. JOÃO TEITÉ Pensa que sou bobo? Sei que um tal de Herodes tá procurando o menino prá matar. O nome desse gordo não é Herodes? BORACÉIA É um homônimo! O coitado já foi até protestado em cartório por conta disso! HERODES Traga-nos a criança e encho sua pança todos os dias em todos os anos de toda sua vida. Chouriços, presuntos, assados de carneiros, esfihas, churrasco grego... JOÃO TEITÉ Daqueles da estação da Luz? Chega que você me mata do coração de ansiedade! Assina o contrato, reconhece firma e autentica, que eu trago o menino. (PARA SI) Cala a boca, consciência, que não consigo lhe ouvir direito! Só consigo escutar a feijoada borbulhante, o tutu de feijão fumegante, a costelinha chiando da frigideira, a madioca fritando no óleo, os doces sons da minha recompensa! Prepara a mesa e acende o fogo porque, prá quem conhece esse sertão como conhece a palma da mão direita (MOSTRA A MÃO ESQUERDA), fazer esse serviço é num zástrás! (SAEM. ENTRA ANJO GABRIEL. ENQUANTO TEITÉ CRUZA E RECRUZA O PALCO NA CAPTURA DA SAGRADA FAMÍLIA O ANJO NARRA.) 28 GABRIEL As coisas, no entanto, não foram tão fáceis quanto Teité pensava. Ele se perdeu ao sair de Sergipe, errou o caminho que levava a Goiás, tomou direção contrária ao passar por Santa Catarina, confundiu-se todo na divisa de Minas e Bahia e não achou o rumo do Maranhão onde a Sagrada Familia estava. No entanto, tanto errou pelo País, tanto cruzou e recruzou esse chão, que acabou, graças a lei das probabilidades, encontrando quem procurava. (MARIA LAVA ROUPA ENQUANTO JOSÉ ESTENDE NO VARAU. MARIA CANTA.) MARIA Maria lavava, José estendia Menino chorava Do frio que fazia. Topei com a Senhora Na beira do Rio Lavando paninhos De seu bento filho Não chores, menino. Não chores, amor. Que a faca te corta Com um talho sem dor. Por ser bem nascido Por ser bem criado Nascido numa rosa Num cravo encarnado. (ENQUANTO MARIA E JOSÉ TRABALHAM, TEITÉ ` SORRATEIRAMENTE, ROUBA O MENINO JUNTO COM A BURRINHA E SAI EM DISPARADA. MARIA PERCEBE A FALTA DO FILHO EM DESESPERA-SE. ACORREM JOSE, MATIAS E 29 MATEÚSA E PÕEM-SE EM PERSEGUIÇÃO A TEITÉ. CRUZAM E RECRUZAM O PALCO EM PERSEGUIÇÃO. FINALMENTE TEITÉ SE DISTANCIA.) GABRIEL Olhem a frágil figura de mulher que chora e se desespera. MATIAS CÃO Olhe, seu José, a gente podia deixar as mulheres aqui e ir sózinhos atrás do sequestrador. Nessas coisas, mulher é igual em filme: cai, torce o pé, só serve prá atrasar a vida do mocinho! GABRIEL Olhem, de novo, a frágil figura: o choro cala, os olhos secam e uma raiva santa inunda! (MARIA DETERMINADA ULTRAPASSA (OS TRÊS E OS OBRIGA A ANDAR MAIS DEPRESSA.) De toda criação, a mulher é a mais variável: onde se espera frágil, assoma em fortaleza guerreira, e no meio da guerra pode desfazer-se em lágrimas. (SEGREDANDO AO PÚBLICO) Por que Deus as fez assim não sabemos. Só sabemos que ele era muito sábio. MATIAS (CANSADÍSSIMO) Virgem Santíssima! MARIA Não quero saber de conversa! MATIAS Seu José, rogai por nós à virgem santíssima, que estou a ponto de arriar! JOSÉ Se eu conheço, ela só pára depois de encontrar o menino! MATIAS Jesus! JOSÉ É, esse mesmo! (SAEM) GABRIEL (RI) Eu não quero estar na pele de Teité quando Maria, com a sede que está, nele deitar as mãos! (CRUZAM E RECRUZAM O PALCO TEITÉ NA BURRINHA COM O MENINO, HERODES E SUA TROPA E A FAMÍLIA E SUA TRUPE.) JOÃO TEITÉ (PARA E CHEIRA O AR) Outra vez! (FALA COM O MENINO ENQUANTO O TROCA.) Pelo amor de Deus! Não tem mais fralda, essa é a última vez! Se sujar vai ficar sujo porque lavar fralda eu não lavo! (CRUZAM E RECRUZAM O PALCO. A PRÓXIMA VEZ 30 QUE SE VÊ TEITÉ ELE BATE ROUPA NO RIO E CANTA A MESMA MÚSICA QUE MARIA CANTAVA.) JOÃO TEITÉ João Teité lavava João Teité estendia... (CRUZAM E RECRUZAM O PALCO. JOÃO TEITÉ ENTRA SEM A BURRINHA, NINANDO O MENINO.) Não vem, não vem, não vem Tutu-guará Que o pai desse menino Tá querendo te pegar. (OUVE-SE BARULHO DE GENTE QUE CHEGA.TEITÉ FALA AO MENINO) Agora, você vai ficar quietinho que vou fazer um negocião da china. (SAI E VOLTA SOZINHO. ENTRA HERODES COM SUA GENTE.) HERODES Onde está o menino? BORACÉIA Diga ou dou-lhe tanta pancada que quebro o que é duro e rasgo o que é mole. JOÃO TEITÉ Calma, gente. Negociando a gente se entende. HERODES Eu mantenho minha oferta. JOÃO TEITÉ Só que o preço aumentou: Eu quero o dobro do triplo.(ENTRA FAMILIA E TRUPE.) MARIA Você não se atreva a negociar meu filho! BORACÉIA Você não se atreva a desfazer o negócio! MATIAS CÃO Vou dar-lhe tanto bofete pelo que me fez, pelo que não fez, pelo que ainda fará e pelo que deixou de fazer. MATEÚSA Deixa um pedacinho do couro dele prá mim! HERODES Decide agora! (AVANÇAM OS DOIS GRUPOS PARA CIMA DE TEITÉ.) JOÃO TEITÉ Gente, prá que violência? Vamos entrar num acordo. MARIA Vai buscar meu filho agora! BORACÉIA Traz a criança! JOÃO TEITÉ (ENQUANTO TEITÉ SAI OS DOIS GRUPOS MEDEM-SE E AMEAÇAM-SE ATRAVÉS DE GESTOS. VOLTA TEITÉ COM A CRIANÇA EMBRULHADA. OS DOIS GRUPOS 31 AVANÇAM.) Esperem! (PARA SI) Como é que vou me sair dessa? Um lado quer meu couro, o outro quer o que sobrar! Um me morde, outro mastiga; um corta, o outro trincha, um estapeia, o outro soca. Eu não posso nem me arrepender porque na mão de um ou de outro eu me acabo! (PARA OS GRUPOS) Eu vou decidir: HERODES (AMEAÇANDO) Confio em seu bom senso. MARIA Confio em seu coração. MATIAS CÃO Ele não tem coração, só tem barriga e a fome do mundo! JOÃO TEITÉ (NUM TOM AMBIVALENTE, DRAMÁTICO E CÔMICO) É isso! É isso que eu tenho: um buraco no lugar da barriga, sempre vazio! Não quero fazer mal prá ninguém, nem para o menino, gente! Só que disseram que esse menino ia trazer fartura, ia transformar água em vinho, multiplicar pão e peixe... e quem multiplica pão e peixe multiplica frango, churrasco, linguiça...presuntos... Com esse menino vai haver um banquete universal, farto e eterno... vai correr leite e mel! (COMICAMENTE DRAMÁTICO, PATÉTICO) O caso, gente, é que eu sei como são essas promessas! Eu entro na fila e, quando chega a vez de João Teité, da panela não sobrou nem a rapa e do churrasco nem o osso da costela. Então, resolvi radicalizar: quero garantir agora minha parte na promessa. Também quero recolher o meu imposto na fonte! Então, eu vou fazer a escolha! (ENTRA O DEMÔNIO) DEMÔNIO Já está escolhido, cabra! (DEMÔNIO AVANÇA E ARRANCA O MENINO DAS MÃOS DE TEITÉ. ENTRA ANJO E CORTA-LHE O CAMINHO. DEMÔNIO PÕE O MENINO EM BAIXO DO BRAÇO E FAZEM UMA PARTIDA DE RUGBI PASSANDO O MENINO DE MÃO EM MÃO. NO FIM O MENINO É PASSADO PARA O DEMÔNIO QUE CONSEGUE FUGIR. TRUPE DE HERODES VIBRA E SAI ATRÁS DO DEMÔNIO. O ANJO SAI NO ENCALÇO 32 DELES. A TRUPE DA FAMÍLIA VOLTA-SE CONTRA TEITÉ QUE CORRE. SAEM ATRÁS DE TEITÉ.) CENA 7 - DE ONDE SE ENCERRA A FARSA E TEITÉ FAZ A NEGOCIAÇÃO FINAL. (ENTRA NO PALCO BORACÉIA E SOLDADO PRECEDIDOS PELO DEMÔNIO QUE RI. ESTE PASSA O DEMÔNIO PARA BORACÉIA QUE ESTENDE O MENINO PARA QUE O SOLDADO O MATE. O SOLDADO DESEMBAINHA A ESPADA E A DESCE SOBRE O MENINO, MAS SEGURA O GOLPE.) SOLDADO Não posso. Um homem mata outro em igual e franca luta. Mata correndo o mesmo risco de morte. Isso é um homem e homem não me fiz, como muitos, para a covardia de matar crianças!.(FOGE. DEMÔNIO ROSNA E PEGA A CRIANÇA.) DEMÔNIO Deixa comigo que eu dou fim. (PEGA A CRIANÇA, TIRA-LHE OS PANOS E GRITA.) Um boneco! BORACÉIA Ai, ai , ai ,ai ,ai! Eu jurei que se me fizessem andar até essa terra por nada... DEMÔNIO Calma... BORACÉIA Vou-lhe quebrar de pau, riscar de vara! DEMÔNIO Eu sou o diabo! BORACÉIA Mas não vai poder comigo! Vai apanhar de frente e de costa, embaixo e encima, por dentro e por fora. E é já! DEMÔNIO Por dentro e por fora? Como é isso? BORACÉIA Vai descobrir! (BORACÉIA SAI BATENDO NO DEMÔNIO. ENTRA JOSÉ E MARIA. JOSÉ DÁ CAJADADAS EM TEITÉ.) JOÃO TEITÉ Mãe de Deus! MARIA Agora não adianta pedir! (TEITÉ. ESTE GRITA, SÃO JOSÉ PÁRA A SURRA.) SÃO JOSÉ Dá o nosso filho! 33 JOÃO TEITÉ E isso que estou querendo dizer desde o começo: estava negociando um boneco! O menino está escondido aqui. (SAI, TRAZ O MENINO E O ENTREGA A MARIA.) Mau juízo de vocês! Eu seria incapaz de me aproveitar de uma criança! (ENTRA O DEMÔNIO FURIOSO E TODO ESTROPIADO.) DEMÔNIO (A TEITÉ) Ninguém engana o diabo assim! Eu vou lhe levar, cabra! SÃO JOSÉ (SEGURANDO TEITÉ) Não só estou de acordo como ajudo! Quem com o diabo anda, com a diabo se acabe! JOÃO TEITÉ Ah, é? Então vocês vão se entender com ela (APONTA MARIA) que acabo de nomear minha advogada. (SUPLICA.) A senhora vai me ajudar, não vai, não? MARIA Não devia... JOÃO TEITÉ Lavei fralda, passei maizena, nem assar ele assou! Melhor que muita ama-seca! MARIA Está bem. No final das contas suas trapalhadas ajudaram muito! (DIABO ROSNA E SAI.) JOÃO TEITÉ Já que tudo acabou bem, está todo mundo feliz... vamos falar de pagamento! JOSÉ Que pagamento? JOÃO TEITÉ Meus honorários! (APONTA) Seguindo reto uma légua nessa direção vocês chegam a Belém. SÃO JOSÉ Que Belém? JOÃO TEITÉ Belém do Pará, uai! MARIA A gente quer chegar em Belém da Judéia! JOÃO TEITÉ Belém da Judeía?! Sei lá onde fica isso! No combinado vocês não falaram nada de Judéia, não! Podem pagar! SÃO JOSÉ Você que se dê bem pago por não ir para o inferno! (ENTRA MATIAS CÃO CANSADÍSSIMO) MATIAS CÃO Ave, Maria! MARIA Ave! 34 MATIAS CÃO A senhora viu a Mateúsa? Virgem!, mas como vocês correm! Ah, então, pegaram o condenado! Sobrou um pedaço dele pra eu amarrotar? SÃO JOSÉ Ele já ganhou o dele. Embora pra Belém da Judéia, Matias. MATIAS CÃO ´bora! Oh, falta que a Mateúsa me faz! JOÃO TEITÉ E as promessas de fartura para essa terra? SÃO JOSÉ Vai ter de esperar um pouco mais. JOÃO TEITÉ (DÁ DE OMBROS) Podem ir. Só quero ver como é que vocês vão fazer prá sair do País! SÃO JOSÉ Por que? JOÃO TEITÉ Porque, com essa coisa toda de tráfico de criança, a alfândega não vai deixar vocês passarem com uma criança que não é de vocês. MATIAS Como é que é? JOÃO TEITÉ Nessas andanças eu passei num cartório e registrei o menino Jesus como filho legítimo de João Teité! TODOS O que?! JOÃO TEITÉ Está aqui, ó! Lavrado em cartório e com firma reconhecida! MATIAS Por que fez isso, homem de Deus? JOÃO TEITÉ Porque em tudo quanto é história, em qualquer canto do mundo, João Teité ou apanha ou atola em lama ou afunda em bosta! Cansei, virei revoltoso! Não é da profecia que esse menino vai fazer galho seco florescer e a terra frutificar? Pois, então! Ele fica aqui no Brasil que é prá gente aproveitar um pouco da profecia. SÃO JOSÉ Eu vou chamar o rabudo e resolver esse caso num zás-trás! JOÃO TEITÉ Pode chamar. Eu me ferro mas, do jeito que é a burocracia aqui, vocês vão levar bem uns cinquenta anos prá regularizar a situação do menino! MATIAS CÃO Olha aqui, seu sem-vergonha... JOÃO TEITÉ Você é subalterno! Subalterno! Agora eu só converso é com alta cúpula! 35 SÃO JOSÉ É caso de surra, de sova! De bater com gato morto até miar, com couro de boi até mugir! MARIA Por que fez isso, Teité? JOÃO TEITÉ Porque, diz o mineiro, “promessa e esperança é bom mas não enche a pança”. MARIA (IRRITADA) A promessa é de Deus! JOÃO TEITÉ Eu sei, não me leve a mal, mas eu queria era ver o menino realizar aqui a promessa de fartura. Queria ver, pelo menos uma vez, todo mundo comendo com a boca tudo o que até hoje só comeu com os olhos! Quero ver essa mesa que nunca é desfeita e esse banquete que nunca termina. (SÃO JOSÉ E MARIA REUNEM-SE PARA DISCUTIR A QUESTÃO.) MATIAS CÃO Acho que dessa vez você foi longe demais! Nessa mão de truco você está chamando doze com um “treiszinho” vagabundo na mão! JOÃO TEITÉ Eu sei. E o pior é que eles fizeram a primeira! Mas quem arrisca não petisca. Ou eu petisco um pouco dessa fartura ou o diabo petisca a minha carne dura. SÃO JOSÉ Senhor João Teité! JOÃO TEITÉ Começou bem. Está me chamando de senhor! SÃO JOSÉ O inferno... JOÃO TEITÉ Me desgracei! SÃO JOSÉ ...devia ser o seu castigo! Mas levando em consideração as ponderações de Maria, resolvemos negociar a permanência de uma temporada nessa terra! JOÃO TEITÉ (GRITA FESTEJANDO) Truco! SÃO JOSÉ Truco não, senhor! Ele só vai ficar aqui seis meses! JOÃO TEITÉ De jeito maneira! Assim não tem negócio. Seis meses só dá para o menino virar moda de verão! Trinta anos no mínimo! SÃO JOSÉ Eu perco a paciência com esse Teité! Dois anos! 36 JOÃO TEITÉ Pode chamar o rabudo! Ele pode me levar mas de menos de vinte anos não abro mão! (A FAMÍLIA CONTINUA DISCUTINDO ENQUANTO O ABU DECLAMA O TEXTO FINAL.) ABU E assim foi E assim ficou sendo E o mundo fica agora sabendo Onde o menino Deus Permaneceu até os doze anos Até ser visto novamente Ensinando os doutores do templo em Jerusalém. A vocês, agradeço sua presença e riso Seja seu natal uma parte de Paraíso Tal como foi essa representação A lembrança do mais alto mistério, por inteiro: Deus se tornou homem E pelos próximos anos caminhará entre nós E o melhor, com registro em cartório, É brasileiro! (CANTAM “Oh, vinde!”) FIM