Retratos: a criança e a fotografia na sociedade dos anos 50
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Retratos: a criança e a fotografia na sociedade dos anos 50
48 RETRATOS: A CRIANÇA E A FOTOGRAFIA NA SOCIEDADE DOS ANOS 50 Cândida Gomide Paixão Universidade Federal de Minas Gerais RESUMO A presente pesquisa analisa o lugar social da infância abordando suas práticas de socialização produzidas no espaço familiar no Brasil nos anos 50 – sua presença no cotidiano e nos rituais familiares (batizado, primeira comunhão, coroação, formatura, natal e aniversário) – tendo como fontes privilegiadas a imagem fotográfica e entrevistas com os pessoas que foram as crianças retratadas nas imagens da época. Para se investigar sobre a construção da noção de infância num dado contexto histórico, não basta apenas justapor à “idéia” de infância, produzida na época pesquisada, informações sobre seu lugar social de produção ou sobre o “veículo” que torna sua circulação possível. Isso porque as práticas dos agentes que produzem as “idéias” de infância e as formas que as fazem circular são relevantes na própria determinação do seu significado. Assim nesta pesquisa a construção histórica da noção de infância vem sendo compreendida tendo como referência a ênfase na materialidade das práticas e dos objetos culturais, materialidade aqui referida à imagem fotográfica. A infância e sua imagem, produzida pela fotografia, guardam uma relação especular . Ou seja, a fotografia, ao mesmo tempo que retrata a criança, que reproduz uma imagem, também produz uma imagem. Constrói a infância através de suas imagens. Desse modo, a fotografia é considerada como produção social, evitando, portanto, concebê-la como reflexo do real, que espelharia fielmente a infância da época analisada. Desde os anos trinta e quarenta, com a “democratização” do registro fotográfico, a vida dos grupos sociais e dos indivíduos passou a ser registrada muito mais pela imagem do que pelos livros de memórias, cartas ou diários, e a memória individual e familiar passou a ser construída principalmente tendo por base o suporte imagético nas camadas médias brasileiras. Assim, a forma como a sociedade da década de 50, mais precisamente a família de classe média em Belo Horizonte, transformou, por meio da fotografia, fatos em textos memoráveis, e a importância que dão a ela na vida cotidiana, fornecem pistas importantes para entender as práticas de socialização da infância produzidas no espaço familiar nesta época. Período de ascensão da classe média que passa a desfrutar da ampliação de possibilidades de acesso à informação, lazer e consumo. No entanto, a fotografia porta em seu interior uma contradição entre sua comunicação imediata e a rapidez com que se esgota essa comunicação. Assim, estudos que apontam vias metodológicas para a interpretação da linguagem fotográfica destacam a importância de sua contextualização. Um dos caminhos para essa contextualização é a história oral. A historia oral , que recorre à técnica da entrevista, reconstitui a trajetória do indivíduo imerso num processo histórico. Porém, não é o indivíduo e sua história o objeto de estudo, mas sim as relações nas quais ele se encontra inserido, já que o indivíduo é também um fenômeno social. Assim é que aspectos importantes sobre as noções de infância da época pesquisada são compreendidos através da memória das histórias de vida dos entrevistados. Entre a fotografia e a memória existe uma relação muito estreita. Boris KOSSOY (1998:42) chega a dizer que “fotografia é memória e com ela se confunde”. Todos nós temos guardado fotos de nossas experiências de vida: “imagens-relicário que preservam cristalizadas nossas memórias” (Op. cit., p.42). A fotografia funciona em nossas mentes como uma espécie de passado preservado, lembrança imutável de um certo momento e situação, de uma certa luz, de um determinado tema, absolutamente congelado contra a marcha do tempo. A introdução das imagens durante o processo de entrevista além de desencadear a memória faz aflorar novos elementos, surgem detalhes, nomes, fatos, há um aguçamento da própria memória. A análise das fotografias não pode assim ser encarada como fase que se distingue da própria entrevista, ao contrário, ela deve ser um elemento da própria entrevista, na medida em que se vai recorrer às fotografias como forma de reavivar a memória. Ora, se, como diz LOTMAN (apud, FERREIRA, 1995, p.116), é através dos signos fornecidos pela cultura que se constrói a memória de um grupo social, as imagens fotográficas têm exercido papel significativo nesse processo de seleção e registro do que deve ser armazenado, constituindo assim um sistema útil de transmissão da memória para alguns grupos sociais. Memória aqui deve ser entendida na perspectiva trabalhada por HALBWACHS, que ressalta os “quadros sociais da memória”, pois ela se baseia na cultura de um agrupamento social e em códigos que são apreendidos nos processos de socialização que se dão no âmago da sociedade. A entrevista com os retratados está baseada no entendimento de que um conjunto expressivo e diverso de depoimentos resgatados pela memória constitui documentação que representa a percepção social dos fatos, permitindo a reconstrução desse construto sócio-histórico que é a infância, através de ângulos diferenciados, heterogêneos e plurais. TRABALHO COMPLETO Desde os anos trinta e quarenta, com o começo da “democratização” do registro fotográfico, a vida dos grupos sociais e dos indivíduos passou a ser registrada muito mais pela imagem fotográfica do que pelos livros de memórias, cartas ou diários, e a memória 49 individual e familiar passou a ser construída principalmente tendo por base o suporte imagético nas camadas médias brasileiras. Portanto, através da construção do álbum de fotos – seleção de certas imagens, enquadramentos, cenas recortes, cenários, suportes e poses, enfim, a elaboração de uma miseen-scène - a família soleniza momentos fortes e reafirma o sentimento que tem de si mesma. Mesmo que cada álbum narre um conjunto de lembranças singulares de cada família, são as etapas comuns de toda a vida familiar, como as férias, os passeios, os piqueniques, o Natal, o aniversário, a primeira comunhão e outros rituais, que conduzem os fios da narrativa do álbum de família, contando histórias singulares de um mesmo modelo familiar. As fotografias dos álbuns de família revelam de modo privilegiado articulações entre inclinações subjetivo-criadoras dos indivíduos e a reprodução de modelos sociais, tanto no seu conteúdo como na sua forma de circulação. A forma, como a sociedade da década de 50, mais precisamente a família de classe média na cidade de Belo Horizonte, transformou, por meio da fotografia, fatos em textos memoráveis, e a importância que dão a ela na vida cotidiana, nos fornece pistas importantes para entender as práticas de socialização da infância produzidas no espaço familiar nessa época. A fotografia não fala por si só, na maioria das vezes, após a manifestação do mais óbvio, ela se faz opaca e silenciosa. Estudos que apontam vias metodológicas para a interpretação da linguagem fotográfica1 destacam a importância da sua contextualização, para fazer falar a fotografia. Pesquisas em mapas, jornais, livros e revistas da época, bem como entrevistas com os fotógrafos e retratados, são caminhos possíveis para a contextualização. Nesta pesquisa, optei pela entrevista com os retratados e a análise de campanhas publicitárias. No entanto, mesmo após a contextualização das imagens fotográficas sobra um resto preso nas imagens, elas ainda continuam a sussurrar. Qual é a potencialidade da fotografia enquanto objeto em si? Por que ela exerce tanto fascínio em nós? De que substância ela é feita? Como podemos interpretá-la? Abordagens teórico-metodológicas a respeito da natureza da imagem fotográfica, a produção e interpretação de seus significados, perpassam sobre a questão do realismo ou, se quisermos, sobre a questão dos modos de representação do real, a questão dos modos de interpretação da imagem e a questão dos contextos e usos da fotografia. Abordagens que se cruzam na busca de respostas e de novas perguntas. Um pouco de história. A fotografia foi inventada em 1839, ou fomos levados a acreditar nisso. Mas é certo que em 1839 Fox Talbot, na Inglaterra e Daguerre, na França, anunciaram, em jornais científicos da época, o processo pelo qual tiraram e fixaram uma imagem foto-gráfica. A fotografia emergiu em meio a um grupo de invenções e inovações técnicas que surgiram por volta da metade do século XIX. Novas tecnologias são apresentadas a nós como agentes de uma mudança social e não como resultado de um desejo de mudança. Como causa e não como conseqüência. No entanto, novas máquinas e tecnologias podem ser desenvolvidas por culturas em resposta a um desejo prévio ou a uma necessidade social, e a fotografia é um exemplo disso. Um grande número de pesquisadores identificaram tecnologias precursoras da fotografia já no século XVIII e constataram também que, a maioria dos elementos do conhecimento tecnológicos necessários para o empreendimento fotográfico, já estava 1 Ana Maria Mauad Essus (1996), Míriam Moreira Leite (1996), Olga Von Sinson (1996) 50 disponível bem antes de 1839. Assim, a questão mais relevante não é quando e por quem a fotografia foi inventada, mas porque nessa determinada época a fotografia se tornou uma atividade cercada de pesquisa e descobertas. As tecnologias são adaptadas e introduzidas no uso social de forma tanto previsível quanto imprevisível. A tecnologia em si não tem nada que determine seu uso e status cultural. Pessoas se relacionam com as tecnologias subvertendo-as, resistindo ou inventando novas formas de utilizá-las, muitas vezes formas originalmente não imaginadas. Portanto, novas tecnologias, como neste caso a fotografia, são, com o passar do tempo, incorporadas na sociedade, estabelecendo relações de produção e consumo, contribuindo para a articulação de – e não causando - trocas e mudanças de relações e padrões de comportamento. E é tendo em vista esta dinâmica que devemos analisar a fotografia, seus usos, seus significados e sua história. As primeiras câmeras, fabricadas na França e na Inglaterra, no início da década de 1840, eram operadas somente por inventores e entusiastas que dispunham gastar tempo, trabalho e dinheiro. Fotografar era “brincadeira dos inteligentes, dos ricos e dos obcecados”2. No ano de 1940, Daguerre ao realizar uma vista urbana de Paris, percebeu mais tarde os vultos imprecisos de um engraxate e seu cliente. Aquela parece ser a primeira vez que a figura humana aparece numa fotografia ou, para ser mais preciso, num daguerreótipo3. A partir dessa foto o homem se tornou o tema central da fotografia, principalmente da fotografia amadora, que pode ser vista como a arte de sobrepor a imagem de uma pessoa querida a uma paisagem, momento ou cenário. No Brasil o retrato é tão popular que passou a ser sinônimo de fotografia e a câmera é conhecida como “máquina de tirar retrato”. O desenvolvimento da fotografia no Brasil ocorreu paralelo ao seu desenvolvimento nos países mais desenvolvidos da Europa e da América4; os primeiros daguerréotipos brasileiros de autoria do abade francês Louis-Compte são presumivelmente já de 17 de janeiro de 18405. No entanto, foi somente a partir da segunda metade do século XIX que a divulgação e o uso dessa técnica passou a fazer parte do cotidiano dos setores mais abastados da sociedade brasileira que, acompanhando a moda européia e deslumbrados com a capacidade de perpetuar a própria imagem , tornar-se-ão os principais clientes de fotógrafos, em geral estrangeiros, que vêem no Brasil a oportunidade de um vasto campo para o exercício dessa profissão/arte. Alguns fotógrafos circulavam pelo interior visitando engenhos e fazendas em busca de clientes6. Mudanças ocorridas na sociedade brasileira da segunda metade do século XIX em diante, principalmente nas cidades, faz surgir novos grupos sociais com a capacidade para consumir os novos produtos que aparecem no mercado, dentre eles a fotografia7. O modo de vida e gosto burgueses ditam os padrões que os segmentos intermediários deveriam seguir 2 SONTAG, Susan. Ensaios sobre a fotografia. Rio de Janeiro: Arbor, 1981. P.8. As primeiras fotografias eram uma peça única sobre a base de cobre banhada com prata e polidas em seguida. Não possibilitavam a obtenção de cópias e apresentavam uma imagem bastante nítida, embora pequena e de superfície extremamente refletora. Este tipo de fotografia recebe o nome de daguerreótipo. Para saber mais sobre o daguerreótipo e sobre a história do retrato ver: FREIRE, Gilberto, PONCE DE LEON, Fernando, VASQUEZ, Pedro. O retrato brasileiro: Fotografias da Coleção Franscisco Rodrigues, 1840-1920. Rio de Janeiro: Funarte, 1983. 4 KOSSOY, Boris. Origens e expansão da fotografia no Brasil – século XIX. Rio de Janeiro: Funarte, 1980. p.10 e 11. 5 FREIRE, Gilberto, PONCE DE LEON, Fernando, VASQUEZ, Pedro. O retrato brasileiro: Fotografias da Coleção Franscisco Rodrigues, 1840-1920. Rio de Janeiro: Funarte, 1983.p.27. 6 KOSSOY, Boris. Origens e expansão da fotografia no Brasil – século XIX. Rio de Janeiro: Funarte, 1980. P.10 e 11. 7 SÜSSEKIND, F. Cinematógrafo de Letras: Literatura, técnica e modernização no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1987. 3 51 como regra, fazendo com que o número de consumidores dos chamados “bens simbólicos” se amplie8. Podemos falar de um movimento de popularização do registro fotográfico, mas é só a partir do lançamento da câmera Kodak, em 1888, que podemos falar de um movimento em direção à democratização da fotografia. No Brasil, é só a partir dos anos 30 que podemos nos referir a um movimento de democratização do registro fotográfico, movimento que ganha força na década de 50, período em que a classe média ascende e passa a desfrutar da ampliação de possibilidades de acesso à informação, lazer e consumo. A principal característica dessa invenção foi separar o processo de tirar fotografia da sua revelação, que passou a ser feita em fábricas, fazendo com que a fotografia se tornasse acessível a aqueles que antes não dispunham de tempo, dinheiro, ou inclinação para se engajarem no complexo processo que era tirar uma foto até então. A Kodak era anunciada pela publicidade da época como uma câmera de tão fácil manuseio que até mulheres e crianças poderiam utilizá-las, o slogan era “você aperta o botão e nós fazemos o resto”. Simultaneamente ao processo de industrialização, a fotografia se tornou privada já que as pessoas passaram a deter o meio de produção das fotos. A equação entre as fotos privadas e familiares não é natural e sim histórica, o fato de as fotografias privadas terem se tornado familiares nos mostra o aumento do caráter doméstico no dia-a-dia. Atividades como cuidar da casa e da criança são sentidas cada vez mais como prazer ao invés de dever, a família é sentida como espaço de expressão e troca de afetividade e a fotografia se torna um ritual de comprovação, transmissão e perpetuação desses sentimentos, valores e hábitos. “Através da fotografia cada família constrói uma crônica – um retrato de si mesma- uma coleção portátil de imagens que testemunha sua coesão”9 A amostra de fotografia desta pesquisa revela que na década de 50 fotografias produzidas no âmbito familiar, dividem espaço no álbum com fotografias tiradas por fotógrafos profissionais e ambos os tipos, são fotos pousadas. No entanto, as poses começam a adquirir um pouco de descontração, as fotos de estúdio estão longe de parecer com as fotografias tiradas até pouco tempo antes, quando tirar uma fotografia era um grande acontecimento, fazendo com que as pessoas posassem compenetradas e nem as crianças aparecessem sorrindo. Algumas fotos produzidas no espaço familiar começam a retratar não apenas momentos marcantes da vida social, mas também momentos do cotidiano. Mesmo retratando momentos do cotidiano e adquirindo um certo clima de descontração a fotografia na década de 50 está longe de ser um instantâneo como as fotografias atuais. Tanto as fotografias da década de 50, quanto os instantâneos atuais reproduzem cenas do cotidiano, no entanto, as fotografias dos anos 50 ainda eram precedidas de um ritual: vestir a melhor roupa, mudar a disposição dos móveis, colocar flores no vaso, ou pelo menos fazer uma pose. Tirar fotografias hoje é tirar fotos de qualquer momento, é consumir fotos. Sontag fala que, na tentativa de diminuir a ansiedade frente a um mundo sempre em transformação, consumimos fotos.10 Consumir é sinônimo de gastar e portanto de reabastecer, e essa lógica parece se encaixar bem para esses casos, em que importa a quantidade. Outro dia uma grande amiga me mostrou os três álbuns - entediantes- de sua filha de apenas 10 meses de idade, mas apesar, ou melhor, por causa da grande quantidade de fotos, eu não me lembro de uma única delas. 8 SEGALA, Lydia. O popular brasileiro e a fotografia no século XIX. In: Anais do Seminário Pedagogia da imagem, imagem na pedagogia. Rio de Janeiro: Universidade Federal Fluminense, Faculdade de Educação, Departamento de Fundamentos Pedagógicos, 1996. P.70. 9 SONTAG, Susan. Ensaios sobre a fotografia. Rio de Janeiro: Arbor, 1981. p.12. 10 SONTAG, Susan. Ensaios sobre a fotografia. Rio de Janeiro: Arbor, 1981. p. 15 52 Mas, apesar de todas as modificações técnicas e estéticas que sofreu desde sua invenção, apesar da sua banalização, a fotografia mantém seu caráter mágico, se não, como explicar a sua sobrevivência frente a outras técnicas de reprodução imagética. Como explicar que preferimos as fotos ao vídeo, para ilustrar o enredo de nossas vidas? Como explicar a nossa relutância em rasgar fotos de pessoas queridas? Como explicar o caráter simbólico de rasgar a fotografia de um amor perdido? Como explicar a veneração de uma fã pela foto de seu ídolo? A questão do realismo Uma das características que faz com que a fotografia exerça tanto fascínio sobre nós é sua proximidade com o real. Existe um certo consenso entre os pesquisadores da imagem fotográfica, no sentido de compreender essas imagens diferentemente das outras formas de representação do real. Sua especificidade está na exatidão com que ela registra ou interpreta os objetos fotografados, fazendo com que lhe seja atribuída uma credibilidade, um peso de real bem singular. E essa virtude irredutível de testemunho baseia-se principalmente na consciência que se tem do processo mecânico de produção da imagem fotográfica – traço, fixado num suporte bidimensional sensibilizado por cristais de haleto de prata, de uma variação de luz emitida ou refletida por fontes situadas à distância num espaço de três dimensões – processo que necessita da presença física do objeto ou pessoa fotografada. No entanto, há diversas posições defendidas pelos teóricos da fotografia quanto ao princípio da realidade próprio da relação da imagem fotoquímica com seu referente, caminhos que nos ajudam a compreender melhor esse artefato humano. Uma das abordagens que dão ênfase ao caráter realista da imagem fotográfica é feita por Susan SONTAG (1979), em seu livro Ensaios sobre a fotografia, que define a “fotografia como um vestígio diretamente calcado sobre o real, como uma pegada, portanto, a fotografia é essencialmente um ato de não-intervenção”11 . Tratar a fotografia como traço da realidade pressupõe entender a realidade como uma entidade exterior e independente da condição humana, e a fotografia como prova, no presente, de como algo, alguém ou algum lugar um dia foi. Max KOZLOFF (1987) faz uma crítica à posição de SONTAG; ele propõe que a fotografia seja vista não como traço da realidade mas como testemunha , com todos malentendidos e visões parciais que o termo testemunha carrega. O semiótico e ensaísta francês Roland BARTHES12 (1984), em sua obra A Câmera Clara, é motivado por um desejo ontológico de entender a natureza da fotografia como objeto em si. O tom da obra é pessoal, ele começa se analisando enquanto leitor de imagens fotográficas, perguntando porque elas o emocionam tanto. Na primeira parte da obra, ele desenvolve comentários a respeito da natureza e do impacto causado pela imagem fotográfica. Na segunda parte ele focaliza a discussão nas fotografias de família, particularmente numa fotografia de sua mãe, buscando assim contemplar significados mais subjetivos. Em suas reflexões teóricas e filosóficas sobre a fotografia, ele assume também uma postura radicalmente realista, considerando a imagem fotográfica como a própria emanação do real, e não apenas uma simples cópia desse. Ao longo de sua obra sobre a fotografia, A Câmera Clara, ele não cessa de se espantar com a pregnância e a presença do referente dentro da foto e por meio dela: 11 SONTAG, Susan. Ensaios sobre a fotografia. Rio de Janeiro: Arbor, 1981. p. 148 Roland Barthes é conhecido por sua contribuição na análise da cultura visual, particularmente nos seus primeiros trabalhos como Mythologies (1957), ele propõe que aspetos culturais do dia-a-dia podem ser analisados em termos de linguagem ou comunicação (visual e verbal) e associados a mitos. 12 53 “Tal foto jamais se distingue de seu referente” (p.16) “A fotografia é literalmente uma emanação do referente” (p.126) “Diríamos que a foto sempre continua carregando seu referente com ela” (p.17) BARTHES vai em frente sugerindo que a fotografia, por ser uma emanação do real, quase não tem significação nela mesma, é uma mensagem sem código. Seu sentido é exterior. O que se destaca aqui é a dimensão essencialmente pragmática da fotografia, por oposição à semântica. Ele sugere que o significado não está na fotografia mas no seu contexto. A potencialidade da fotografia não está no que ela pode revelar, mas no fato de ela ser, de acordo com ele, um objeto “pensativo”. É claro que Barthes sabe que a fotografia não pensa: o fotógrafo pode pensar, o fotografado pode posar e o espectador pode refletir sobre a imagem. A fotografia em si é apenas um pedaço de papel morto que retrata algo que já foi, mas que renasce através do olhar. A fotografia é para ele, sempre sobre olhar e ver. De acordo com Philippe DUBOIS13 , ao apresentar as coisas dessa maneira, BARTHES “é pego na armadilha do referencialismo. Pois aqui está o perigo que espreita esse tipo de concepção : generalizar, ou melhor, absolutizar , o princípio da “transferência de realidade”, quando se adota uma atitude exclusivamente subjetiva de pretensão ontológica. Barthes está longe de ter escapado a esse culto – a essa loucura – da referência pela referência”.(p. 49) Pensar que o sentido da fotografia lhe é exterior e essencialmente determinado por sua relação efetiva com o objeto e com a situação de enunciação faz com que Barthes não nos mostre a foto de sua mãe, foto que motiva toda A Câmera Clara. Mas será que para nós leitores essa foto não teria nenhum sentido? Como SONTAG, Barthes dá ênfase ao referencialismo, mas, ao contrário dela, que absolutiza essa característica, ele define que é isso que caracteriza a mensagem fotográfica, mas o sentido não decorre da característica da imagem fotográfica ser uma mensagem sem código. Ao contrário, é impossível contemplar uma fotografia sem operar uma gama de códigos culturais e estéticos. Philippe Dubois em seu livro O ato Fotográfico (1994) nos mostra a importância de compreendermos o ato fotográfico. Para ele a fotografia não é apenas uma imagem produzida por um ato, é sim um ato “em si”, uma imagem-ato, a clivagem tradicional entre produto e processo deixa de existir no caso da fotografia. Assim: “Com a fotografia não é possível mais imaginar pensar a imagem fora do seu modo constitutivo, fora do que a faz ser como é, estando entendido por um lado que essa “gênese” pode ser tanto um ato de produção propriamente dito (a “tomada”) quanto um ato de recepção ou difusão...” (p. 59) Mais do que caminhos metodológicos para a interpretação da fotografia nesta pesquisa, a noção de pegada do real , vestígio do real , máscara mortuária de Sontag, emanação do referente de Barthes, são imagens que me ajudaram compreender um pouco melhor a especificidade da imagem fotográfica e o fascínio que ela exerce sobre nós. A questão da sua interpretação 13 DUBOIS, Philippe. O Ato Fotográfico. Campinas: Papirus, 1993. p. 49 54 Por outro lado, o princípio do traço, pegada, emanação do real por mais essencial que seja, marca apenas um momento no conjunto do processo fotográfico. Antes e depois do clic “existem gestos completamente culturais, codificados, que dependem de escolhas e decisões humanas”14. Mas, apesar desse instante de inscrição mecânica do mundo sobre a superfície sensível durar apenas uma fração de segundo, por ser construtivo da imagem fotográfica, não deixará de causar consequências teóricas. O fato de a fotografia ser caracterizada como algo “natural” (mensagem sem código de Barthes) é um falso problema para a análise semiótica, já que antes de depender de um código é algo que institui um código. Nesse sentido, no contexto da mensagem veiculada, a imagem - ao assumir o lugar de um objeto, de um acontecimento ou ainda de um sentimento incorpora funções sígnicas. É nessa abordagem da análise semiótica que Ana Maria Mauad Essus15, em seu trabalho sobre álbuns de fotografia de famílias, no Rio de Janeiro, na primeira metade do século XX, propõe a utilização de uma “metodologia coordenada” entre a história e a semiótica. Uma perspectiva histórico-semiótica, para a interpretação da imagem fotográfica. De acordo com Essus esta abordagem se fundamenta em três passos: “Primeiro passo é entender que, numa dada sociedade, coexistem e se articulam múltiplos códigos e níveis de codificação, que fornecem significado ao universo cultural dessa mesma sociedade. Os códigos são elaborados na prática social e não podem ser vistos como entidades a-históricas. O segundo passo é conceber a fotografia como resultado de um processo de construção de sentido. A fotografia, assim concebida, revela-nos, através do estudo da produção da imagem, uma pista para chegar ao que não está aparente ao primeiro olhar, mas que concede sentido social à foto. A fotografia comunica através de mensagens não verbais, cujo signo constitutivo é a imagem. Portanto, sendo a produção da imagem um trabalho humano de comunicação, pauta-se, enquanto tal, em códigos convencionalizados socialmente, possuindo um caráter conotativo que remete às formas de ser e agir do contexto no qual estão inseridas como mensagens. O terceiro passo é perceber que a relação acima proposta não é automática, posto que entre o sujeito que olha e a imagem que elabora existe todo um processo de investimento de sentido que deve ser avaliado.” 16 Passos que devem ser guiados tendo em vista o fato de a imagem fotográfica ser uma mensagem estruturada a partir de uma dupla referência: “a si mesma (como escolha efetivamente realizada) e àquele conjunto de escolhas possíveis, não efetuadas, que se acham em relação de equivalência ou oposição com as escolhas efetuadas.” Uma relação ao mesmo tempo “sintagmática” e “paradigmática”. Antônio de Oliveira Júnior, em seu trabalho Do reflexo à mediação - um estudo da expressão fotográfica e da obra de Augusto Malta17, desenvolve uma metodologia de análise da imagem fotográfica. Para ele, estão presentes na fotografia uma variada gama de ações expressivas como cortes do espaço, imobilizações do movimento dos sujeitos fotografados, estabelecimento de uma relação entre planos, jogos de luzes, sombras e contra luzes e posicionamento da câmera em relação ao objeto fotografado. A partir da relação entre espaço 14 DUBOIS, Philippe. O Ato Fotográfico. Campinas: Papirus, 1993. p. 51 ESSUS, Ana Maria Mauad. Sob o signo da imagem: a produção e o controle os códigos de representação social pela classe dominante no Rio de Janeiro, na primeira metade do século XX. Niteroi, UFF, Programa de Pós Graduação em História Social, 1990, 2v., Introdução. (Tese de doutorado) 16 ESSUS, Ana Maria Mauad. Através da Imagem: fotografia e história- interfaces. Tempo. Rio de janeiro Vol. 1. N. 2. 1996, p. 84. 17 OLIVEIRA JUNIOR, Antonio de. Do reflexo à mediação. Um estudo da expressão fotográfica e da obra de Augusto Malta. Campinas: Unicamp, 1994. Mestrado em Multimeios. 15 55 e movimento, é produzida a combinação dessas “ações expressivas”, elementos variáveis na imagem fotográfica: o espaço, os planos, o enquadramento, a angulação, a perspectiva linear e ilusão de profundidade, a composição o tempo e o movimento. Para o autor, tais elementos são essenciais para a interpretação e percepção da imagem. Junto a essas características ligadas mais às opções técnicas e estéticas de construção da imagem, deve-se analisar também o conteúdo, a relação dos elementos da fotografia com o contexto no qual se insere. Como por exemplo: a agência, o local retratado, o tema, as pessoas, os objetos, os atributos das pessoas, e da paisagem e o tempo (dia e noite). Devido à natureza da imagem fotográfica, vários autores18 são unânimes na escolha da noção de espaço como chave de leitura das mensagens visuais. Vale a referência ao trabalho de Míriam Moreira Leite, pela dimensão histórica que tal escolha assume: Chegou-se a conclusão de que a noção de espaço é a que domina as imagens fotográficas explícitas. Não apenas as duas dimensões em que a imagem representa as três dimensões do que comunica. Mas toda captação da mensagem manifesta se dá através de arranjos espaciais. A fotografia é uma redução, um arranjo cultural e ideológico do espaço geográfico, num determinado instante.19 Dimensão histórica essa que deve ser reforçada pela análise das fotografias em séries20. A fotografia para ser utilizada como fonte histórica, ultrapassando seu mero aspecto ilustrativo, deve compor um série extensa e homogênea no sentido de dar conta das semelhanças e diferenças próprias ao conjunto de imagens que se escolheu analisar. O sentido das séries foram construídas ao longo do trabalho com as fotos e provinham tanto da análise de seus dados espaciais, como também de temas interpostos por indagações da própria pesquisa, como por exemplo, nesste caso, séries de rituais da infância, entre outras. Resumindo, a abordagem histórico-semiótica aqui proposta enfatiza os elementos históricos, no sentido de que a fotografia, como objeto cultural, deve ser estudada no processo de sua produção, circulação e apropriação, para que se passe da aparência superficial da imagem à captação de seu sentido social. A questão central é aquela formulada por Bordieu: “o que é que as pessoas fazem com os modelos que lhe são impostos ou com os objetos que lhe são distribuídos?21 De que maneira cada comunidade fotografa e se deixa fotografar, como ela se apropria da fotografia? Em que momento as pessoas se posicionam para a câmera? Como se posicionam? Quem tira a foto? Quem comanda a cena? Por que a necessidade de registrar alguns instantes e outros não? Qual é o caráter dessa seletividade? Que desejos são responsáveis por essas atitudes? Finalmente, a fotografia também foi analisada nesta pesquisa de uma forma em que ela é equiparada à memória. O fato de “algumas pessoas não se lembrarem do que aconteceu, mas do retrato do que aconteceu” foi observado por Leite22 em sua pesquisa com fotografias de família, e também foi recorrente nesta pesquisa. Desse modo, podemos pensar que a memória da imagem, não só difere da memória da palavra como chega, em alguns casos, a substituir a própria memória. Na utilização das fotografias como desencadeadoras da memória dos retratados podemos perceber que a fotografia evoca outras imagens próximas, semelhantes ou associadas, funcionando como instrumento revelador ou indicador dos sentidos das imagens 18 Umberto Eco, Ana Maria Mauad Essus (1990), Antônio Oliveira Júnior (1994) LEITE, Miriam Moreira Leite. Retratos de família. São Paulo: Edusp, 1993. P.19 20 Ver Miriam Moreira Leite. Retratos de família. São Paulo: Edusp, 1993. P.19 -20 21 CARVALHO, Marta Maria Chagas, NUNES Clarice. Historiografia da educação e fontes . Cadernos da Anpd . Porto Alegre, n5. 1993. P. 33 22 LEITE, Miriam Moreira. Retratos de família. São Paulo: Edusp, 1993. p.18 19 56 fotográficas apresentadas, procedimento que se aproxima da “doutrina da semelhança” de Benjamim. Se considerarmos que o instrumento socializador da memória é a linguagem que “reduz, unifica e aproxima no mesmo espaço histórico e cultural a imagem do sonho, a imagem lembrada e as imagens da vigília atual”23, podemos pensar na fotografia como um “tipo de linguagem que, ao mesmo tempo, reduz a história vivida, unifica-a através do quadro espacial recortado pelo fotógrafo e aproxima o olhar sobre determinados aspectos da experiência humana”24. A fotografia atua, portanto, como um instrumento da memória de indivíduos, grupos e instituições. Os métodos e abordagens aqui propostos, que aparecem como metodologias de pesquisa desconectadas uma das outras, na prática fundem-se num processo orgânico e indivisível. Conclusão Ao mesmo tempo que a fotografia é portadora de modos de ver particularizados pelo contexto histórico na qual foi produzida, ela possibilita a transmissão direta de informações contidas em sua materialidade enquanto artefato. É a partir dessa dupla caracterização que utilizo o registro fotográfico na investigação das práticas de socialização da infância produzidas no espaço familiar da década de 50. São as filtragens de todos os sujeitos, ou seja, o lado subjetivo na construção da imagem que atua de maneira favorável, que fornece indícios seguros de como esses protagonistas dos eventos passados se deixavam ver, e também de que forma viam fotograficamente as imagens fragmentadas de seu próprio tempo e espaço. O estudo da imagem fotográfica não deve perder de vista a sua natureza dual, fonte que contém em si mesma, de maneira concomitante e complementar, informações denotadas e conotadas. Portanto, a fotografia deve ser encarada em todos os seus níveis de complexidade, abordando a imagem fotográfica como algo que é , simultaneamente, objetivo e subjetivo. 23 24 BOSI, Ecléia. Lembranças de velhos. São Paulo: Queroz. 1993. p.17-8 CIAVATTA, Maria. O mundo do trabalho em imagens. Programa de Pós-graduação em Educação UFF. Mimeo p.23.