1 O que o esporte realmente faz? Desenvolvimento pelo esporte
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1 O que o esporte realmente faz? Desenvolvimento pelo esporte
O que o esporte realmente faz? Desenvolvimento pelo esporte: pensando criticamente e positivamente.1 Andrew M. Guest (PhD) Universidade de Portland (EUA) A idéia de utilizar o esporte como ferramenta para a melhoria geral de indivíduos e comunidades parece ter apelo em todo o mundo, se levarmos em conta o número crescente de programas e organizações que promovem o desenvolvimento pelo esporte. Entendo que este fato tanto é intelectualmente fascinante como pleno de potencial prático. Assim, tenho devotado os últimos dez anos da minha vida ao trabalho com o esporte e ao estudo de uma variedade de formas de desenvolvimento que acontecem por meio de iniciativas com esporte. Depois de obter o meu diploma de mestrado em estudos esportivos, passei dois anos na República do Malawi, trabalhando pelo US Peace Corps2, como especialista em educação física e esporte escolar no Instituto de Educação do Malawi; nos Estados Unidos trabalhei com futebol e programas de esportes, com foco em jovens em situação de risco, em projetos de moradia popular em Detroit e Chicago, duas cidades americanas famosas por suas áreas centrais decadentes, pobres e urbanisticamente degradadas; em Angola coordenei um projeto que utilizava o esporte para facilitar o desenvolvimento de crianças refugiadas e, mais recentemente, obtive o título de PhD em desenvolvimento humano pela Universidade de Chicago, quando estudei e refleti, com todo o instrumental das Ciências Humanas, sobre o desenvolvimento por meio de Programas de Esportes. Entretanto, e de uma forma talvez irônica, minhas experiências e minha crença no potencial do desenvolvimento pelo esporte me levaram a uma perspectiva mais crítica sobre o tema: encontro-me, hoje, resistindo aos grandes apelos entusiasmados e às boas intenções das pessoas que promovem a idéia do desenvolvimento pelo esporte. Se olhar de relance para a retórica promocional do desenvolvimento por meio de Programas de Esporte, identifico organizações ambiciosas argumentando que o esporte ensina as pessoas como viver uma “vida positiva”; que o esporte coloca as crianças no estágio de “desenvolvimento saudável”; que o esporte ensina “habilidades de vida”3; que o esporte melhora a saúde, a educação, as economias; que o esporte cria valores como justiça, paz, honestidade e muito mais. O esporte é apresentado como uma panacéia; a mais moderna ferramenta para melhorar vidas. Neste artigo gostaria de sugerir que estas pretensões 1 NT.: Artigo originalmente publicado em http://www.sportanddev.org/en/articles/thinking-bothcritically-and-positively-about-development-through-sport/index.htm . Tradução livre: Marta Litwinczik Sinoti. 2 NT.: Agência do governo norte-americana que incentiva o trabalho voluntário em países em desenvolvimento.http://www.peacecorps.gov/ 3 NT.: Em inglês “life-skills” - O Compromisso Mundial Educação para todos estabelece que a Educação deve desenvolver, entre crianças, jovens e adultos, as habilidades necessárias à vida. Essas habilidades incluem tanto a aquisição de conhecimento, quanto o desenvolvimento de habilidades inatas (psicossociais). Uma abordagem aproximada seria com a proposta dos cinco pilares da educação, delineados por Jacques Dellors. (ver http://portal.unesco.org/education/en/ev.phpURL_ID=47066&URL_DO=DO_TOPIC&URL_SECTION=201.html_) 1 foram longe demais. Eu sou um fã de esportes e acredito no substantivo esforço de desenvolvimento pelo esporte, mas não existe panacéia para o desenvolvimento. Apresentar o esporte como tal, pode, de fato, ser contra-produtivo. Apresentar o esporte como a ferramenta perfeita para o desenvolvimento implica, potencialmente, tanto em estabelecer expectativas irreais, quanto cegar as pessoas para o intenso desafio de realmente utilizar bem o esporte. O que o esporte realmente faz? No imaginário popular o esporte é um tema que polariza as discussões. Em um dos pólos estão as pessoas que amam o esporte, que o vêem como a típica panacéia mencionada anteriormente; pessoas como o professor da escola de barro e lata na escola para refugiados, em Angola, que acredita tão profunda e inspiradamente no esporte, que gasta suas preciosas horas-livres voluntariando-se para organizar programas esportivos para as crianças no campo de refugiados; pessoas como os entusiasmados administradores das cidades americanas, que treinam, recrutam e encorajam outras pessoas a envolverem-se com o seu desenvolvimento pelo esporte. No outro pólo, entretanto, estão as pessoas que compreendem o esporte como algo absolutamente frívolo; pessoas como a mãe do bairro decadente que não vê com bons olhos o tempo que sua filha “mata” no basquete, pois acredita que isto a impede de empenhar-se em atividades que são realmente interessantes para o seu futuro (como a escola); pessoas como os criadores do site Clube Internacional Eu Odeio Esportes (http://www.sportssuck.org/), que entre outras coisas, dizem que “fãs de esporte devem ter mingau no lugar do cérebro”. Confrontando-se estes pólos opostos, chegamos a uma questão interessante: como pode existir uma dicotomia tão grande sobre a compreensão de uma coisa que é, fundamentalmente, a mesma? A resposta que mais me parece fazer sentido - emprestada do antropólogo Olímpico John MacAloon - é compreender o esporte como uma forma cultural vazia. Enquanto as representações populares sobre o esporte quase sempre, e implicitamente, assumem que ele tenha uma natureza intrínseca (seja ela boa ou má), o esporte é, na verdade e em si mesmo, uma prática neutra ou vazia que é preenchida com significados, valores e idéias da cultura onde ocorre e pelos indivíduos que o praticam (crianças, professores, escolas, organizações, atletas, treinadores, torcedores, patrocinadores, fãs etc). Esta idéia tem duas implicações para os programas de desenvolvimento que utilizam o esporte. Uma delas é a de que a utilidade do esporte para o desenvolvimento depende inteiramente da maneira pela qual o esporte é empregado. A outra é que a compreensão sobre o esporte, empregada por aqueles que o utilizam para fins de desenvolvimento, pode ser bastante diferenciada da compreensão e dos significados que o esporte tem para as pessoas-alvo dos mesmos programas de desenvolvimento. Estas questões tornam-se essenciais se o desenvolvimento pelo esporte realmente acontecer e criticamente avaliar as formas específicas por meio das quais os programas de esporte entendem seus esforços. Em minhas experiências e meus estudos, tenho, muito freqüentemente, deparado com quatro interpretações importantes: a noção de que “o esporte constrói o caráter” (em outras palavras: o esporte desenvolve características psicossociais particulares como confiança, trabalho em equipe, liderança etc); a noção de que o esporte provê distração instrumental de atividades tidas como desviantes e 2 perigosas; a promessa do esporte como gancho para as pessoas envolverem-se em atividades produtivas de desenvolvimento e a visão do esporte como capaz de construir relações comunitárias e positivas que favorecerão o desenvolvimento4. Estou certo que existem outras interpretações (inclusive a idéia de que o esporte produz saúde física). Mas, parece-me que essas quatro interpretações são as mais relevantes no contexto do desenvolvimento pelo esporte. Partindo-se do pressuposto que este é o caso, algumas considerações sobre cada uma delas fazem sentido. O esporte constrói o caráter? Recentemente as Nações Unidas classificaram estatisticamente Angola como o pior lugar do mundo para ser uma criança. Trabalhando em um programa de desenvolvimento pelo esporte em campos de refugiados desse país, e assumindo que não fica muito pior ter que ser um refugiado no pior lugar do mundo para ser uma criança, uma conclusão simples é que as crianças deveriam estar nas mais terríveis condições psicológicas. Entretanto, pessoas surpreenderam-se quando contei a elas que as crianças com quem trabalhei, em sua maioria na faixa-etária dos cinco aos doze anos de idade, demonstraram ter, em sua maioria, perspectivas psicológicas notadamente positivas. Nunca esquecerei o entusiasmo, o vigor e a força com as quais crianças que viviam em barracas de lona e casas de gravetos, num campo sujo e duro, entre a escola rural e uma pequena estação elétrica, empenhavam-se em apreender frisbee5 – uma atividade que eu inicialmente me sentia constrangido em lhes ensinar em função de parecer incongruente com a sua realidade. De uma forma geral, tanto nas pesquisas formais quanto nas observações informais que realizei, as crianças refugiadas com as quais trabalhei demonstraram níveis razoáveis de competência psicossocial no meio em que viviam. As crianças, em todas as comunidades, têm uma incrível capacidade em se adaptar. Admito que as crianças com as quais trabalhei não tinham tido a experiência direta do trauma do combate (a maioria das famílias tinha simplesmente morado numa área perigosa e tinham sido forçados a se mudar) e as pessoas estavam justificadamente infelizes com as circunstâncias em que suas vidas se encontravam. Não há questionamento de que a desigualdade é um problema que urge e que vivências temporárias em situação de pobreza geram sérios desafios psicológicos. Porém, minhas experiências sugerem que partir do princípio de que a pobreza estrutural automaticamente equivale à disfunções é, no mínimo, desleal, e, na pior das hipóteses, injusto. Quando programas de desenvolvimento pelo esporte partem do princípio que eles têm um conjunto de características psicossociais - como auto-estima, trabalho em equipe, resiliência e liderança - que precisam garantir às crianças, estes programas implicitamente negam uma série de fatos importantes. Eles negam, por exemplo, que as crianças, até mesmo sem praticar esporte, envolvem-se em sua vida cotidiana, de maneira que forjam características psicossociais adaptativas a partir dos contextos onde vivem suas vidas. E, também negam que o esporte, como uma forma cultural vazia, não tem uma habilidade especial ou única de forjar o caráter psicossocial. 4 As primeiras três interpretações foram emprestadas das análises sociológicas de Douglas Hartman sobre os programas americanos de basquete à meia-noite e o que ele denomina “esporte como indústria do serviço social”. 5 NT.: Popular jogo americano praticado especialmente na praia, conhecido, no Brasil, como disco. 3 A noção de que o esporte cumpre a função de socialização direta de características particulares - o que historicamente é discutido como “o esporte constrói o caráter” e vem sendo correntemente discutido como “o esporte promove o desenvolvimento de habilidades de vida”, tanto é bastante popular quanto é bastante difícil de provar com dados empíricos. Um grande corpo de pesquisas deixa claro que a participação no esporte, por ela mesma, não conduz à formação de nenhuma personalidade específica ou estabelece características psicossociais. Até mesmo a observação de atletas de alto-desempenho deixa claro que o seu caráter é tão diverso quanto o caráter da população em geral. Para cada atleta com auto-estima em alta, boas habilidades de cooperação e o caráter de um líder, há outro atleta que tem depressão, é arrogante, está envolvido com drogas ou que trapaceia para levar vantagem. Assumir que o esporte automaticamente constrói caráter, sem levar em conta a experiência pessoal de cada criança, cria um risco de atividades esportivas que, na verdade, não oferecem direcionamento nenhum às crianças. Qualquer uma das características que são desenvolvidas pelo esporte acontecem por meio do processo de interatividade com treinadores, lideranças, colegas de time, pais, amigos e organizações. Todos eles podem ser influências positivas ou negativas e todos eles estão presentes durante a vida das crianças. Para que o desenvolvimento pelo esporte aconteça, todos estes sujeitos e organizações precisam estar conscientes de que eles, e não o esporte, em si mesmo, estão sempre construindo o caráter e as habilidades de vida, na interação com as crianças, ao permitirem que elas se expressem e interajam com a realidade da sua experiência diária. O esporte promove o lazer positivo? A idéia de que o esporte garante a oportunidade das pessoas fazerem algo positivo com o tempo-livre que dispõem e que poderia ser empregado em coisas negativas é facilmente compreensível e está incrivelmente popularizada. Particularmente nas minhas pesquisas com as comunidades de bairros pobres das cidades americanas, os coordenadores dos programas e a população em geral identificam a ameaça das drogas e da violência como algo muito presente e que, então, qualquer atividade que promova ocupação das crianças é considerada saudável e útil. Identifiquei que esta interpretação também está extremamente popularizada entre os próprios habitantes das comunidades dos bairros pobres. No meu trabalho em Chicago e Detroit inúmeros pais e jovens diziam-me que o esporte os mantinha ocupados. Até mesmo fora dos Estados Unidos, numa entrevista memorável que realizei com um jogador de futebol bem sucedido da República do Malawi, fui informado por ele que o esporte garantiu que ele ficasse afastado de “muitas coisas ruins”. Esta concepção já esteve mais evidente, até mesmo, em políticas públicas que embasaram programas de “basquetebol à meia-noite” como uma forma de tirar as crianças e jovens das ruas em horários de pico de crimes. Estatisticamente alguns dados sugerem que este tipo de programa funciona: o crime realmente parece ter diminuído quando os indivíduos se engajam nas atividades esportivas. Mas, no mínimo duas críticas importantes devem ser consideradas: que distrair as pessoas desta forma simplesmente garante um remendo temporário que não leva ao desenvolvimento real; e que, a promoção da “necessidade da distração” para jovens em “situação de risco” gera a criação de uma identidade para estes jovens como 4 perigosos e impulsivos – ela leva ao pressuposto implícito de que as pessoas alvo da ajuda não teriam, por sua vez, a capacidade para evitar, por si mesmas, as situações desviantes. Enfatizar a utilidade do esporte como distração, novamente exige assumir que o esporte tem um efeito diretamente socializante. Como mencionei anteriormente, esse pressuposto parece injustificado. Em minha experiência, quando o esporte é pensado como distração as pessoas tendem a estarem mais aptas a cometer o erro de reconhecer que ele, automaticamente, promove ganhos. Quando meu amigo do Malawi apresentou o esporte como meio que garantiu que ele ficasse afastado de “coisas erradas”, ele não entendeu o esporte como capaz de produzir resultados positivos de desenvolvimento. É como se alguém pensasse o esporte como responsável por produzir cinco unidades de produtos de desenvolvimento, as quais, dependendo de como foram pensadas, podem tanto levar uma pessoa da escala de zero a mais cinco (como na noção de que o esporte constrói o caráter), ou do cinco negativo ao zero (como na noção do esporte como uma distração instrumental). Entretanto, como anteriormente falei, o esporte intrinsecamente não cria alguma coisa positiva. Nós todos conhecemos casos de pessoas que se desenvolveram na direção errada – trapaceando, usando drogas, sendo violentos e arrogantes, e, até mesmo coisa pior. Enfatizando-se a utilidade do esporte como uma distração implica o pressuposto de que as pessoas que são alvo de desenvolvimento por meio de programas de esporte precisam de ajuda externa para serem dissuadidas de se envolver em problemas. Em outras palavras, isso reforça os estereótipos e as identidades de que as pessoas que vivem em comunidades marginalizadas são perigosas e amaldiçoadas. Os pesquisadores da área de Psicologia regularmente problematizam estas identidades como produtoras de “profecias auto-indutivas” e de “estereótipos ameaçadores”, de tal forma que estas pessoas nunca conseguirão superar esses estereótipos negativos a elas associados. Quando as crianças de conjuntos habitacionais populares, que já se identificam detrativamente como “crianças de gueto”, aprendem que eles precisam ser distraídos para não cometerem crimes, estas crianças desenvolvem um conceito sobre si mesmas em que se vêem como uma ameaça. O desenvolvimento por meio do conceito do esporte quase sempre, não intencionalmente e desnecessariamente, reforça esse auto-conceito. O esporte é um gancho atraente? Nenhuma análise sobre o esporte pode negar que ele é imensamente popular em todos os lugares do planeta. Mover-nos do fato para a concepção de que o esporte é uma isca atraente para que outras oportunidades e mensagens possam ser veiculadas é uma conexão lógica fácil. Desde grupos missionários religiosos até partidos políticos regularmente utilizam o esporte com um veículo para suas mensagens, programas e construção de sua popularidade. Da mesma forma, muitas iniciativas de desenvolvimento pelo esporte o identificam, meramente, como uma oportunidade de chamar a atenção para objetivos de desenvolvimento não relacionados ao esporte. Conheci muitas crianças bastante conscientes desse processo de “fisgamento”. Tanto nos Estados Unidos quanto na África a popularidade das iniciativas que usam o esporte como uma isca regularmente tem criado atitudes de expectativa em relação ao esporte. Quando trabalhei nos bairros pobres de Chicago, tive um bate-papo inocente com 5 uma menina de onze anos que participava de um programa com futebol e perguntava a ela se ela iria participar da programação “final de semana esportivo”. Cansada do número de atividades em que estava participando pelo programa, ela me respondeu: “eu faço muito para este programa de futebol, quando é que vocês farão alguma coisa por mim?”. Em Angola, jovens jogadores de futebol, que pareciam passar a maior parte de seu tempo livre jogando com uniformes sujos e esfarrapados em “peladas” de basquete, abandonaram uma liga organizada por uma instituição de fora simplesmente porque não foi permitido a eles manter esses uniformes. Em Detroit uma angelical menina de seis anos de idade, que fez uma cesta, virou-se imediatamente para mim com um imenso sorriso para perguntar “quanta grana eu levo nisto?”. Não importa quão honestas forem as intenções de desenvolvimento, dispor do esporte para veicular mensagens, plataformas e recompensas, regularmente cria a expectativa de que o esporte é alguma coisa para ser realizada em função de motivações extrínsecas e despropositadas. Ironicamente, é claro, o apelo inicial e intuitivo do esporte é que ele deve ser divertido por ele mesmo. E ele pode ser. Em minha experiência, quando as crianças se envolvem em atividades esportivas e temporariamente esquecem as iscas que vêm agregadas às atividades de desenvolvimento pelo esporte, não importa qual agenda esteja sendo promovida, elas regularmente experimentam a imensa alegria que muitos de nós valorizamos no esporte. E, esta alegria quase sempre as leva para outras coisas. Mas, o esforço para fisgar as crianças pelo esporte igualmente produz um produto de desenvolvimento não intencional: a expectativa de que o esporte deve apenas ser praticado quando existe um retorno tangível imediato. O esporte cria laços comunitários? Do tempo em que trabalhei na República do Malawi tenho a lembrança clara de dirigir um ônibus na desorganizada capital do país, Lilongwe, de onde podia ver uma bandeira tremulando sobre a estrada empoeirada e de ficar chocado com a mensagem de um torneio escolar nacional de futebol que era “reduzindo a delinqüência juvenil pelo esporte”. O choque aconteceu porque eu havia passado um mês inteiro lendo e debatendo sobre os vários conflitos e brigas entre as escolas e as comunidades que estavam disputando aquele torneio. Muito longe de estar “reduzindo a delinqüência juvenil”, muitos malauianos que conheci discutiam se o torneio poderia continuar em meio à animosidade criada pelo próprio torneio. A intensa competição, em todas as partes do mundo, parece produzir um resultado similar. Quando as emoções estão altas e a competição é apaixonada, a agressão e o conflito raramente ficam para trás. Se considerarmos estes ingredientes, este resultado não pode ser uma surpresa. Neste quadro a única surpresa viria da freqüência com que o esporte é citado como promotor da paz. Existe um admirável ideal Olímpico sobre as pessoas colocando suas divergências de lado em nome do respeito pela competição. Mas também existe a realidade do esporte, da competição e da violência. O número de guerras que se iniciaram com o esporte é o mesmo que número de guerras que foram finalizadas com ele. Entretanto, quando figuras com a inteligência e dignidade de Kofi Annan e Nelson Mandela defendem que o esporte congrega as pessoas, eles não podem estar completamente errados. O esporte pode claramente servir para criar um objetivo comum 6 que permita a indivíduos que pertencem a uma comunidade unirem-se, como no caso da África do Sul depois do final do apartheid. Mas o esporte pode, simultaneamente, servir para criar uma inimizade fácil entre comunidades, como é o caso das recorrentes notícias de brigas que vemos entre torcedores de clubes rivais do futebol europeu. O ponto essencial em relação ao desenvolvimento pelo esporte é reconhecer que a habilidade que o esporte tem de agregar as pessoas e forjar experiências positivas de desenvolvimento está longe de ser uma coisa automática. As experiências com o esporte têm o potencial para antagonismo ou afeição; esta escolha sempre depende da natureza da competição e do cuidado com que cada programa é desenhado. Então, o que há de positivo sobre o desenvolvimento pelo esporte? Uma das minhas grandes motivações para meu interesse pelo desenvolvimento por meio de programas de esporte é a memória de sentar nos bancos escolares da universidade e ler e debater pontos de vista extraordinariamente críticos sobre o papel do esporte na nossa sociedade. Eu sentia que a visão crítica sobre o esporte sobre a qual líamos e debatíamos, uma visão do esporte como uma prática social impregnada de desigualdade e injustiças, não tinha nada a ver com minhas experiências pessoais e extremamente positivas no esporte. Assim, eu me sentia compelido a modificar esta visão para redimir o esporte perante os olhos de acadêmicos e cientistas sociais, estudando, então, como o desenvolvimento pelo esporte poderia acontecer. Agora que sou um cientista social, olho para esta minha resistência juvenil como algo tolo, mas não completamente equivocado. Se, por um lado, eu permaneço um fã de esportes, por outro lado eu me tornei uma espécie de intelectual pragmático. A popularidade do esporte faz com que ele seja alguma coisa que inevitavelmente será utilizada para objetivos de desenvolvimento. A forma como o esporte é utilizado o transforma em uma coisa que será inevitavelmente criticada pelos objetivos acadêmicos. E, a combinação dessas duas coisas faz do esporte uma coisa mais útil quando criticamente respeitado pela complexidade que ele traz em si como uma forma cultural vazia. Enfim, a má notícia sobre a compreensão do esporte como uma forma cultural vazia é que ele pode não ser a panacéia do desenvolvimento que algumas organizações e indivíduos gostariam de acreditar que ele fosse. Mas, a boa notícia é que assumir uma perspectiva crítica sobre a idéia do desenvolvimento pelo esporte pode permitir que a popularidade do esporte não seja uma coisa garantida. Enquanto o esporte não for uma panacéia, eu permanecerei convicto de que quando empregado de forma inteligente ele pode servir como influência de desenvolvimento positiva. Os milhares de sorrisos que eu tenho visto nos rostos das crianças que jogam e praticam o esporte, nas diversas e diferentes comunidades, não importa o quão complicadas sejam, dizem isto. 7