mozart - Insight Comunicação

Transcrição

mozart - Insight Comunicação
MOZART
DON
GIOVANNI
MOZART
Álbum de família/1991
Mario Henrique Simonsen
DON
GIOVANNI
D
on Giovanni é a segunda ópera de Mozart
com libreto de Lorenzo Da Ponte, tendo
sido estreada em Praga em 1787, um ano
após a estreia de As Bodas de Fígaro, em Viena. O enredo, baseado nas obras de Tirso de Molina e de Molière, descreve as aventuras do lendário Don Juan e a
sua morte trágica devorado pelas chamas do inferno.
Pelos lances cômicos em torno de uma espinha dorsal trágica, Da Ponte e Mozart classificaram a ópera
como dramma giocoso. Este se desenrola em torno
de oito personagens: Don Giovanni, jovem cavalheiro
extremamente licencioso (baixo); Leporello, seu criado (buffo); o duque Ottavio (tenor); Donna Anna, sua
noiva (soprano); o Comendador Don Pedro, pai de
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Donna Anna (baixo); Donna Elvira, dama de Burgos
e ex-esposa de Don Giovanni (soprano); Zerlina, uma
camponesa (soprano); e seu noivo Masetto (baixo). As
características psicológicas desses personagens serão
analisadas em pormenores no estudo que se segue: “O
enigma de Donna Anna”.
Em matéria de fusão da palavra à música, Don
Giovanni avança muitos passos além de Le Nozze di
Figaro. Isso porque, com um libreto muito mais curto, Mozart pôde condensar os recitativos, conseguindo
agora que a ação se desenrolasse principalmente durante os números musicais. Esse aspecto será discutido
no estudo anexo sobre a continuidade musical no Don
Giovanni.
Vejamos o resumo da ópera.
1º ato
Após uma abertura magnífica, cuja primeira parte
prenuncia o encontro final Don Giovanni-Estátua do
Comendador, e cuja segunda parte descreve as aventuras do libertino, inicia-se a primeira cena: um jardim, à
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noite. Leporello está à espera do patrão, que fora tentar seduzir Donna Anna. A ária Notte e giorno fati-
car (Fatigar-me dia e noite) narra as suas desventuras
como criado de um patrão tão estabanado, que, enquanto ama a bela, o deixa de sentinela. Entram Donna Anna e Don Giovanni, a primeira querendo impedir a fuga do sedutor que ela não consegue reconhecer.
O Comendador Don Pedro entra em defesa da filha, e
desafia o libertino para um duelo. Anna sai para buscar
socorro e Don Giovanni inicialmente se recusa a duelar com o velho. Mas, acuado, não vê alternativa senão
trucidar o Comendador, ainda que muito a contragosto. O libertino e seu criado escapam. Chegam Donna
Anna e Don Ottavio para socorrer Don Pedro, mas o
encontram morto. Anna pede vingança, Ottavio tenta
consolá-la.
A cena seguinte se passa numa rua, de madrugada.
Don Giovanni, acompanhado por Leporello, fala de
seu próximo projeto de conquista amorosa. Nisso entra
uma jovem dama, coberta por um véu, lamuriando-se
por ter sido traída e abandonada pelo seu amado. Don
Giovanni se aproxima para conquistá-la. Quando a
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dama levanta o véu, ele reconhece ninguém menos do
que Donna Elvira, a esposa que ele próprio havia abandonado. O libertino confia a Leporello a tarefa de contar as razões que o levaram a abandoná-la. Na célebre
ária Madamina, il catalogo è questo (Minha senhora,
este é o catálogo), Leporello explica tudo a Elvira: ela
não foi a primeira nem a última dos amores do cavalheiro. No seu registro há nada menos do que 640 na
Itália, 231 na Alemanha, 100 na França, 91 na Turquia
e 1.003 na Espanha, de todas as idades e categorias sociais. Sua paixão predominante é a jovem principiante,
mas também conquista velhas só pelo prazer de colocá-las na estatística.
Elvira se retira revoltada, e o palco é tomado por
um grupo de camponeses que estão para festejar o casamento de dois deles, Masetto e Zerlina. Pouco depois chegam Don Giovanni e Leporello, e o libertino simplesmente se decide a conquistar a noiva. Para
tanto, insinua-se como protetor do casal, e ordena a
Leporello que mostre a todos, particularmente a Masetto, o seu castelo, servindo-lhes café, chocolate, vinho, presunto, e tudo mais que for necessário para que
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o deixem a sós com Zerlina. Quando Masetto protesta
que Zerlina não pode ficar longe dele, Don Giovanni
lembra que nas mãos de um cavalheiro ela não corre
perigo. E, no mais, ameaça Masetto com sua espada.
A sós com Zerlina, Don Giovanni promete com
ela casar-se no dueto Là ci darem la mano (Ali daremos as mãos). A jovem camponesa está para ceder
aos desejos do libertino quando Elvira interrompe o
idílio, dizendo a Zerlina quem é Don Giovanni, que
foge mais uma vez.
Don Giovanni volta à cena após a saída de Elvira
e Zerlina, refletindo sobre os azares do dia em matéria de conquistas amorosas. Chegam Anna e Ottavio,
pedindo-lhe ajuda para encontrar o assassino do Comendador. O cavalheiro se prontifica a lhes dar toda
a assistência, quando mais uma vez é apanhado por
Donna Elvira, que adverte Donna Anna para não confiar no traidor. Don Giovanni, no quarteto Non ti fi-
dar, o misera (Não te fies, infeliz), ao mesmo tempo
em que tenta aplacar a fúria de Elvira, diz a Ottavio e
a Anna que se trata de uma louca.
Don Giovanni e Donna Elvira saem de cena, e
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Donna Anna revela que, pela voz, descobriu que o
cavalheiro era o assassino de seu pai. Narra então o
que se passou na noite da tragédia: um homem, que ela
primeiro imaginou ser Don Ottavio, penetrou em seus
aposentos. Aí, sem ser reconhecido, tentou seduzi-la
à força. Ela conseguiu reagir, pondo-o em fuga e tentando identificá-lo. O pai tentou socorrê-la, mas o libertino, muito mais forte do que o velho, matou-o (a
veracidade dessa narrativa é um ponto crítico da ópera,
como se comentará mais adiante). Na ária Or sai chi
l’onore (Conhece agora quem), Anna pede a Ottavio
que vingue a morte de seu pai. A reação do duque após
a saída de Donna Anna, na ária Dalla sua pace (Da
sua paz), retrata a fraqueza do noivo, que como bom
cavalheiro espanhol deveria desafiar Don Giovanni em
duelo, em vez de consolar a amada.
Voltam Don Giovanni e Leporello. O criado conta
ao patrão o que conseguiu levando Masetto e os camponeses ao seu castelo. Quando todos se divertiam, aparece
Zerlina, acompanhada de Donna Elvira, que acabou a
festa dizendo tudo o que lhe passava pela cabeça. Don
Giovanni não desanima, e manda que Leporello organi10
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ze uma estupenda festa em seu castelo, em homenagem
aos camponeses e a todas as mulheres que encontrar.
Zerlina e Masetto se reencontram. O campônio
está revoltado com a noiva, que o abandonou no dia
fixado para as núpcias. Zerlina se desculpa, alegando
que Don Giovanni não lhe tocou nem a ponta dos dedos. E se oferece em holocausto para uma bela surra, na
deliciosa ária Batti, batti, o bel Masetto. Masetto se dá
por vencido, quando se ouve a voz de Don Giovanni.
Inicia-se aí o final do primeiro ato, Presto presto, pria
ch’ei venga. Masetto se esconde para pegar Zerlina e o
libertino em flagrante. Este chega, tenta levar Zerlina
para um esconderijo, só que topa com o campônio.
Numa passagem de extraordinária ironia musical, o libertino pergunta por que Masetto se escondeu de Zerlina, que não suporta ficar longe dele. E imediatamente
os deslumbra com o convite para a festa.
Chegam mascarados Ottavio, Anna e Elvira, e que
imediatamente são convidados para o baile por Don
Giovanni. No admirável trio Protegga il giusto cielo
lo zelo del mio cor!, eles refletem sobre seu plano de
desmascarar o libertino.
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A cena final é a festa na casa de Don Giovanni.
Após as apresentações iniciais, o libertino convence
Leporello a desviar as atenções de Masetto, enquanto
ele afasta Zerlina para seduzi-la. Esta última reage,
aos gritos, e os presentes arrombam a porta do quarto onde Don Giovanni se escondera com a camponesa. Don Giovanni tenta culpar Leporello como o
agressor da jovem, mas Ottavio, Elvira e Anna retiram as máscaras para identificar o verdadeiro vilão da história. Ottavio, inclusive, chega a ameaçar o
conquistador com uma pistola. Só que à sua fraqueza opõe-se a energia do conquistador, que, após um
momento de perplexidade, resolve a situação empunhando a espada e abrindo alas para fugir da multidão de convidados.
2º ato
A cena inicial se passa numa rua próxima às casas
de Donna Elvira e de Donna Anna. Leporello quer se
demitir do emprego, depois da peça que Don Giovanni lhe pregou, ameaçando matá-lo como o sedutor de
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Zerlina. Don Giovanni o dissuade com uma boa propina, e conta que está apaixonado pela camareira de
Donna Elvira. Só que, para seduzi-la, a sua nobreza é
uma credencial da pior qualidade. Ele se daria muito
melhor se se apresentasse como Leporello, convencendo o criado a trocar de roupas com ele. Elvira aparece
na varanda de sua casa, iniciando o admirável trio Ah!
taci, ingiusto core. Don Giovanni jura arrependimento
e fidelidade, e, quando Elvira desce, convence Leporello a assumir a sua identidade.
O falso Don Giovanni afasta Donna Elvira prometendo-lhe fidelidade. A sós, o verdadeiro libertino,
fantasiado de Leporello, tenta trazer à janela a camareira de Donna Elvira, cantando a admirável serenata
Deh, vieni ala finestra. Em vez da camareira, chegam
Masetto e um bando de homens armados para trucidar Don Giovanni. Este, vestido de Leporello, finge
querer juntar-se ao grupo para liquidar o patrão. Para
isso dispersa o grupo em duas partes, com o objetivo
de cercar o libertino, ficando a sós com Masetto (ária:
Metà di voi qua vadano, Metade vá por aqui). Depois
de desarmá-lo, pespega-lhe uma surra monumental.
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Masetto, certo de que foi espancado por Leporello,
é consolado por Zerlina na ária Vedrai, carino (Verá,
querido), em que a camponesa promete curá-lo com
um remédio natural, os seus carinhos.
No meio tempo, Elvira e o falso Don Giovanni,
após vagarem pelo escuro, vão parar no átrio da casa
de Donna Anna, para onde também se dirigiam Masetto e Zerlina. Leporello tenta fugir, mas é impedido
pelos camponeses, além de Anna e Ottavio. A princípio, os quatro imaginam que apanharam Don Giovanni. Quase aos prantos, Leporello revela sua verdadeira
identidade: não foi ele quem surrou Masetto, como
Elvira bem pode atestar. E, depois de muito tergiversar, consegue fugir. Don Ottavio, após anunciar que
denunciará Don Giovanni à polícia, convida Elvira,
Masetto e Zerlina a consolarem Anna, na ária Il mio
tesoro intanto. Elvira, a seguir, reflete sobre as traições
do marido no recitativo In quali eccessi, o Numi, seguido pela ária Mi tradì quell’alma ingrata.
A cena seguinte se passa num cemitério onde se
destaca o túmulo do Comendador com sua estátua
equestre. Don Giovanni, para escapar de mais uma
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de suas trapalhadas, refugia-se no cemitério. Lá encontra Leporello, e lhe conta a última novidade: uma
jovem galante, confundindo-o com o criado, começou a acariciá-lo. Ele estava prestes a se aproveitar da
confusão, quando foi reconhecido, e, para escapar da
jovem e da multidão que o perseguia, escondeu-se
no cemitério. E se fosse minha mulher?, indaga Leporello. Melhor ainda, responde Don Giovanni com
uma sonora gargalhada. Nesse momento uma voz de
além-túmulo profetiza solenemente que o libertino
deixará de rir antes da aurora. A voz, segundo Leporello, é da Estátua do Comendador. Segundo Don
Giovanni, de alguém que lhes quer pregar uma peça.
Numa bravata suprema, Don Giovanni ordena a Leporello que convide a Estátua para cear com ele. Apavorado, Leporello se desincumbe da missão no dueto
O statua gentilissima. Para seu horror e surpresa de
Don Giovanni, a Estátua aceita o convite inclinando
a cabeça e dizendo “sim”.
Em seguida, a cena nos traz de volta à casa de Donna Anna. Ottavio tenta consolar a noiva e apressar
o seu casamento. Anna, na grande ária Non mi dir,
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bell’idol mio (Não me diga, meu adorado), pede um
período de luto.
E a cena final se passa na casa de Don Giovanni, que
organizou um estupendo jantar com um belo concerto,
em que se tocam trechos de óperas famosas no século
XVIII, Cosa rara, I due litiganti e Le Nozze di Figaro.
Enquanto Don Giovanni se alimenta fartamente, Leporello belisca um peito de faisão, no momento em
que serve o patrão. Entra Elvira, desesperada, pedindo ao libertino que mude de vida. Este, simplesmente,
convida-a a juntar-se a ele na comezaina e num brinde
ao vinho e às mulheres. Elvira sai desesperada, e solta
um grito. Don Giovanni ordena a Leporello que examine o que aconteceu. A resposta é que chegou para
o jantar a Estátua do Comendador, que bate violentamente à porta. Diante do pavor do criado, o próprio
Don Giovanni resolve abrir a porta.
Inicia-se aí o confronto mais trágico de toda a história da ópera. A Estátua anuncia que cumpriu a sua promessa de aceitar o convite de Don Giovanni. Em troca,
pergunta se o libertino aceitará o seu convite para com
ela cear. Não obstante os protestos de Leporello, Don
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Giovanni não só aceita como impõe a sua dignidade
de cavalheiro espanhol, ainda que não restem dúvidas:
o convite é um passaporte para o outro mundo. Para
selar o compromisso, Don Giovanni dá sua mão à Estátua, e nela fica preso por uma força sobrenatural. A
Estátua ordena que Don Giovanni se arrependa: é a sua
última oportunidade, no último momento. Don Giovanni se recusa ao arrependimento, e num grito final
consegue se desvencilhar da Estátua. Nesse momento,
é tragado pelas chamas do inferno, sob a vista de um
Leporello aterrorizado.
Entram Anna, Ottavio, Zerlina, Masetto e Elvira,
prontos para prender Don Giovanni e entregá-lo à
Justiça. Leporello narra-lhes o que aconteceu. Ottavio
pede a Anna que marque imediatamente o casamento, agora que todos estão vingados. Donna Anna, no
entanto, pede mais um ano de luto. Zerlina e Masetto anunciam que vão jantar em casa, Elvira que se recolherá a um convento e Leporello que irá procurar
um patrão melhor. A lição de moral, o castigo de Don
Giovanni, é explicitada no sexteto final Questo è il fin
di chi fa mal.
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O ENIGMA DE DONNA ANNA
O libreto de Lorenzo Da Ponte caracteriza estupendamente as personagens de Don Giovanni, salvo
em dois pontos. Um, bastante explícito, é a poltronice de Don Ottavio. Outro, totalmente enigmático, é o
que Donna Anna realmente sente por Don Giovanni.
Don Giovanni não é simplesmente um conquistador compulsivo. É também um típico cavaleiro espanhol em seus conceitos de honra: não recua um milímetro de seus princípios, nem quando enfrentado pela
morte. A sua filosofia do amor se descreve admiravelmente no seu diálogo com Leporello no início do segundo ato, pouco antes do trio Ah! taci, ingiusto core.
O criado sugere ao patrão que deixe as mulheres, obtendo como resposta:
D.G. – Lasciar le donne?
D.G. – Deixar as mulheres?
Pazzo! Sai ch’elle per me Louco! Saiba que para mim
son necessarie più elas são mais necessárias do
del pan che mangio più que o pão que me alimenta,
dell’aria che spiro!
do que o ar que respiro!
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L. – E avete core L. – E tem coragem para
d’ingannarle poi tutte?
enganar a todas?
D.G. – È tutto amore! D.G. – É tudo amor!
Chi a una sola è fedele Quem é fiel a uma mulher
Verso l’altre è crudele.
apenas, é cruel para com
todas as outras.
Ou, mais adiante, no último apelo de Donna Elvira
antes da chegada da Estátua do Comendador:
D.G. – Vivan le femmine, D.G. – Vivam as mulheres,
viva il buon vino! viva o bom vinho!
Sostegno e gloria Suporte e glória
D’umanità!
da humanidade!
Em suma, a infidelidade é para Don Giovanni um
ato de amor, e essa a sua filosofia de vida, da qual não
abre mão nem diante da morte.
Don Pedro, o Comendador, é a pedra no caminho
de Don Giovanni. Este faz o possível para evitar o
duelo no primeiro ato, até o ponto em que não lhe
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resta alternativa a não ser matar o velho pai de Donna Anna. O reencontro se dá na cena do cemitério,
quando Don Giovanni convida para cear a Estátua do
Comendador, crente que não obterá nenhuma resposta. No confronto final, que já foi classificado como a
mais trágica cena da história da ópera, Don Giovanni
responde ao convidado de pedra com a dignidade de
um cavaleiro espanhol diante da morte:
A torto di viltade Nunca serei acusado
tacciato mai sarò!
de covardia!
negando-se a mudar de vida até ser engolido pelas chamas do inferno.
Leporello é geralmente considerado o tempero cômico da ópera, pelo seu desabafo no Notte e giorno
faticar, pela ária do catálogo (Madamina) e pela sua
dança com Masetto no final do primeiro ato. Na realidade é um pobre coitado, que aceita a cumplicidade
em algumas patifarias para sobreviver, como no início
do segundo ato, quando se fantasia de Don Giovanni para tirar Elvira de cena. Vez por outra, assume as
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feições de um Sancho Pança, como no trio Ah! chi mi
dice mai (Ah, quem saberá dizer-me) do primeiro ato:
D.G. – Cerchiam di D.G. – Procuremos
consolare il suo consolar a sua aflição.
tormento.
L. – Così ne consolò
L. – Assim já consolou
mille e ottocento!
mil e oitocentas!
Nas três cenas em que Don Giovanni enfrenta o
Comendador, a postura de Leporello é tudo, menos a
de um comediante. Na primeira, a do duelo do primeiro ato, a reação é de medo. Nas duas últimas, de
pressentimento da tragédia e, finalmente, de terror.
Mais que uma figura cômica, Leporello se autodefine
na ária Ah, pietà, signori miei do segundo ato:
Il padron Meu patrão com
con prepotenza
prepotência roubou
l’innocenza mi rubò.
a minha inocência.
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Acabando a ópera desempregado com o comentário:
Ed io vado all’ osteria a E eu vou para a taberna e
trovar padron miglior.
procurar um patrão melhor.
Masetto é o cérebro mais simples da ópera. Trata-se
pura e simplesmente de um camponês, cujo maior ativo
é ter em Zerlina uma bela mulher, ainda que de fidelidade duvidosa. Já Don Ottavio, o noivo de Donna Anna,
distingue-se por sua covardia. No momento em que se
esclarece que Don Giovanni fora o assassino do Comendador, e que atentara contra a honra de sua noiva, a única atitude digna de um nobre espanhol seria desafiar o
conquistador em duelo. Das duas, uma: ou Don Ottavio
morreria, ou desempenharia o papel que a ópera reserva
à estátua de pedra. Em vez disso, Don Ottavio se limita
a consolar a noiva, a recorrer à Justiça e, no seu momento de máxima coragem, tentar surrar Leporello com a
ajuda de Masetto, Zerlina e Donna Elvira!
Das personagens femininas, Donna Elvira é a mais
linear, apaixonada por Don Giovanni do princípio ao
fim da ópera, e que no final resolve terminar seus dias
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num convento. Zerlina mistura o bom senso rústico
ao seu deslumbramento pela nobreza, obviamente sem
nenhum freio moral, e que se expressa claramente na
sua réplica ao Là ci darem la mano:
Z. – Vorrei e
Z. – Gostaria e não
non vorrei mi trema
gostaria, meu coração está
um poco il cor.
um pouco balançado.
Felice, è ver, sarei Eu seria feliz, na verdade,
Ma può burlami ancor.
mas ele pode estar
a me enganar.
Sem o mínimo pudor aceita ser cortejada por Don
Giovanni no dia de seu casamento, despachando o noivo com a famosa frase: Va, non temer! Nelle mani son
io d’un cavaliere. Seus antecedentes não devem ser dos
melhores, como insinua Masetto na sua ária Ho capito,
signor, sì!
Bricconaccia, malandrina! Velhaca! Malandra!
Fosti ognor la mia ruina!
Sempre foste a minha
perdição!
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Para prever o desfecho:
Faccia il nostro cavaliere Nosso cavalheiro
cavaliera ancora te!
ainda te fará “cavalheira”!
De fato, no Là ci darem la mano, Zerlina se entrega
virtualmente ao cavaleiro, e, se a aventura não se consuma, isso se deve exclusivamente à interferência de Donna
Elvira. A camponesa, aliás, não esconde a sua leviandade.
Instigada pelo noivo, limita-se a dizer que a brincadeira
em nada resultou, e em oferecer-se em holocausto para
uma merecida surra, na deliciosa ária Batti, batti, o bel
Masetto. Mal acaba de desmontar a fúria do camponês,
estremece ao ouvir a voz de Don Giovanni. O trio que se
segue (de fato, o início do final do primeiro ato) é um dos
primores da ópera. Masetto se esconde, e o cavaleiro volta a cortejar Zerlina, que não lhe opõe maior resistência:
D.G. – Sì, ben mio, son D.G. – Sim, meu bem, sou
tutto amore; vieni un todo amor. Vem um
poco in questo loco! pouco para aqui!
Fortunata io ti vo far!
Quero fazer-te feliz!
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Só que ambos vão parar exatamente no esconderijo
de Masetto. Don Giovanni, obviamente acostumado a
essas situações, não perde a presença de espírito:
D.G. – Masetto?
D.G. – Masetto?
M. – Sì, Masetto.
M. – Sim, Masetto.
D.G. – E chiuso là,
D.G. – Aí escondido
perchè? La bella por quê? A tua bela Zerlina
tua Zerlina non può,
já não aguenta,
la poverina,
a pobrezinha, estar
più star senza di te!
um momento sem ti!
Frase cujo acompanhamento orquestral comentaremos mais adiante. No mais, os dois camponeses são
comprados pelo convite para o baile na casa de Don
Giovanni.
Por que Zerlina resolve, nesse ponto, dar um basta na sua aventura, e provocar o escândalo do baile,
quando Don Giovanni tenta seduzi-la, não é difícil de
explicar. A camponesa não é nenhuma Donna Elvira,
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e em nenhum momento realmente se apaixona pelo
conquistador. Deslumbra-se apenas com o que ele lhe
pode dar, prestígio e dinheiro, e a essa altura suas ilusões foram desfeitas pelo bom senso. Tanto que, no
segundo ato, se transforma em esposa modelar, oferecendo ao marido surrado a compensação de “um belo
remédio natural”, na ária Vedrai, carino.
Resta Donna Anna. Numa leitura superficial do libreto e da partitura, trata-se de personagem linear e
que serve de contraponto a Donna Elvira: o que há
de amor nesta última, há de ódio e desejo de vingança
na primeira. Don Giovanni, além de tentar seduzi-la,
mata seu pai, e isso basta para justificar seu ódio.
O enigma é se Don Giovanni apenas tentou, ou se
realmente conseguiu seduzir Donna Anna. Mais ainda,
se nessa sedução, se é que realmente ocorreu, Don Giovanni não despertou brutal paixão carnal em Donna
Anna. Essa conjectura só pode ser reconciliada com o
libreto mediante uma hipótese: ao narrar a tentativa de
sedução no recitativo Don Ottavio, son morta!, Donna
Anna mente. Há, porém, no libreto e na partitura, insinuações que apoiam essa conjectura. A qual, aliás,
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DON
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descreve o que se passa em outras versões da lenda do
Don Juan, que não a de Lorenzo Da Ponte.
A primeira insinuação surge no trio Non sperar,
se non m’uccidi ch’io ti lasci fuggir mai, logo após o
Notte e giorno faticar. Conforme Donna Anna conta a Don Ottavio, às altas horas da noite um homem
entrou em seu quarto. A jovem primeiro pensou que
se tratava do noivo, mas logo percebeu seu engano.
O intruso tentou seduzi-la, mas ela conseguiu desvencilhar-se e pô-lo em fuga. Nesse ponto, recobrando
suas forças, transformou-se de assaltada em assaltante,
tentando reconhecê-lo. Até que o pai veio em seu socorro, mas foi morto pelo sedutor, mais jovem e mais
forte.
Nada há de muito estranho nessa narrativa. Donna
Anna, após pôr em fuga o sedutor, não precisava continuar o perseguindo, mas essa prudência não necessariamente seria parte do sangue de uma nobre espanhola. Fica apenas esclarecido que Don Ottavio costumava
frequentar os aposentos de Donna Anna às altas horas
da noite. Razão pela qual a jovem deveria estar ansiosa
por apressar seu casamento com o noivo.
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O estranho é o ambiente musical. A entrada de
Donna Anna e Don Giovanni, logo após o Notte e
giorno faticar do Leporello, por uma modulação de
Fá maior para Si bemol maior, lança um arco melódico absolutamente apaixonado, o Non sperar, se non
m’uccidi ch’io ti lasci fuggir mai. A música sugere, no
que diz respeito a Donna Anna, algum desespero e
muita paixão. Já mais adiante, na narrativa Don Otta-
vio, son morta!, Mozart comete outra indiscrição. No
recitativo com acompanhamento orquestral, Donna
Anna conta a cena de tentativa de sedução. A música evolui em voltagem crescente até o ponto em que
quase cai no vazio, quando a jovem narra como conseguiu se desvencilhar do sedutor. O comentário de Don
Ottavio, no Ohimè, respiro, é um fantástico anticlímax. Daí por diante o recitativo retoma o seu pulso
crescente até desembocar na famosa ária Or sai chi
l’onore. O que a queda de voltagem no meio do recitativo sugere é simples: Donna Anna está mentindo.
Igualmente estranha é a recusa de Donna Anna a
apressar o casamento com Don Ottavio, que, afinal,
frequentava seu quarto às noites. No Non mi dir,
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DON
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bell’idol mio há uma aparente desculpa, Don Giovanni
ainda não foi punido. Mas no final, depois de a Estátua
do Comendador o ter carregado para o inferno, o pedido de um ano de luto é bastante surpreendente:
Lascia, o caro, Deixa, meu querido,
un anno ancora passar mais um ano para
Allo sfogo del mio cor.
eu aliviar o meu coração.
Luto por quem, pelo Comendador ou por Don
Giovanni?
O enigma de Donna Anna é um dos mistérios fascinantes de Don Giovanni, e que pode ser resolvido de
diferentes maneiras pelos diretores de cena e pela intérprete do papel. Lorenzo Da Ponte tinha razões de sobra para suavizar a história do conquistador sem uma
sedução explícita. Só que, na ópera, Don Giovanni,
não obstante as façanhas passadas listadas no catálogo de Leporello, é um conquistador frustrado: tenta,
e não consegue, Donna Anna, Zerlina, a camareira de
Donna Elvira e a presumida mulher de Leporello. Algumas passagens do libreto e, sobretudo o clima mu29
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sical, sugerem que a primeira conquista, a mais trágica
de todas, realmente se consumou.
A CONTINUIDADE MUSICAL
EM DON GIOVANNI
Don Giovanni é uma ópera de números recitativos,
árias, duetos, trios, finais, composta segundo as regras
da estética diatônica dominante no século XVIII. A
lógica da segmentação de cada ato em números era a
mesma da divisão dos livros em capítulos: não abusar
do fôlego do espectador. Além do mais, os números
recompensavam os cantores com árias e duetos em que
podiam exibir seu virtuosismo, e serem apresentados
como peças isoladas em salas de concerto. Para tanto, as regras da harmonia exigiam uma definição tonal
para cada número (salvo os recitativos): a tonalidade
deveria se estabelecer no primeiro acorde e fechar o
número. Modulações transitórias eram aceitas naturalmente, sobretudo em trechos longos, desde que se
voltasse à base. Quanto aos recitativos, eles se encarregavam de dar agilidade à ação dramática, já que pouca
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DON
GIOVANNI
coisa costumava acontecer durante uma ária ou um
dueto convencional. Na realidade, mesmo depois da
reforma da ópera por Gluck, a maior parte da ação nas
óperas do século XVIII se passa durante os recitativos.
Mozart não tinha razão, muito menos ambiente
para se opor a essas convenções. Só que seu instinto dramático o levou a se antecipar à visão da ópera
como Gesamtkunstwerk, ou seja, como fusão da palavra à música. Isto posto, quando a ação dramática
não devesse ser interrompida, os números deveriam
ser encadeados. Para isso, Don Giovanni trouxe duas
inovações.
A primeira foi o encurtamento dos recitativos,
muito mais breves em Don Giovanni do que nas óperas anteriores de Mozart, inclusive nas Bodas de Fí-
garo. O grosso da ação dramática de Don Giovanni
flui durante os números musicais. Isso permite que, em
muitas circunstâncias, o papel do recitativo se inverta,
com extraordinário impacto sobre o ouvinte: em vez
de levar adiante, ele simplesmente comenta o que se
passou no número musical precedente.
O exemplo mais notável é o diálogo Leporello,
31
DON
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ove sei? entre Don Giovanni e Leporello, logo após a
morte do Comendador. Não há aí espaço para o canto
melódico, simplesmente o conquistador quer fugir da
enrascada em que se meteu, o que se resolve com meio
minuto de recitativo. No reverso da medalha, Mozart
também descobriu o impacto dramático que uma intervenção temporária da orquestra pode causar no curso de um recitativo. Esse efeito extraordinário surge na
cena do cemitério, quando a Estátua do Comendador,
suportada por trombones, clarinetes e fagotes, interrompe um longo colóquio fútil com o Di rider finirai
pria dell’aurora, e logo depois com o Ribaldo, audace, lascia a’ morti la pace. O impacto dramático decorre fundamentalmente do contraste entre o suporte
orquestral à Estátua e o clavicórdio que acompanha a
tagarelice de Don Giovanni e Leporello.
A segunda inovação, ainda mais revolucionária, é
a conclusão de números sem resolução tonal. Ou seja,
os números só se encerram no libreto e nas barras da
partitura, mas não nos ouvidos habituados à harmonia diatônica, encadeando-se automaticamente com o
número seguinte. O exemplo mais flagrante é o for32
DON
GIOVANNI
necido pelos quatro primeiros números da ópera: a)
a sinfonia; b) a introdução (do Notte e giorno faticar
até a morte do Comendador; c) o recitativo secco; d) o
recitativo e o dueto entre Donna Anna e Don Ottavio.
Esses quatro números, na realidade, compõem uma
unidade musical, pois os três primeiros não se resolvem harmonicamente.
Tomemos a sinfonia. Ela se inicia com um acorde em fortíssimo em ré menor e seus trinta primeiros
compassos descrevem o confronto final entre Don
Giovanni e a Estátua do Comendador. No trigésimo
primeiro compasso, começa o allegro molto em Ré
maior, alusivo às aventuras do conquistador. Mozart
usa aí a sua incrível criatividade harmônica para
descrever essas aventuras por uma série de modulações
transitórias e que sugerem as correrias do nobre e de
seu criado. No final, a música volta para Ré maior e
há um fecho nessa tonalidade para a apresentação da
sinfonia como peça isolada em salas de concerto. Só
que, na ópera, Mozart prefere substituir esse fecho
por uma modulação para Fá maior, a tonalidade em
que se inicia a introdução. O acorde final da sinfonia
33
DON
GIOVANNI
(dó – sol – dó – mi – dó), na tonalidade de Fá maior,
não convida nenhum ouvinte a interrompê-la com
aplausos, e a ação prossegue continuamente. Ou seja, a
famosa irresolução tonal do prelúdio de Tristão e Isol-
da já se encontra em Don Giovanni, ainda que com
recursos estritamente diatônicos.
A introdução também não se resolve tonalmente:
começa em Fá maior, com o Notte e giorno faticar
de Leporello, evolui para Si bemol maior na entrada
de Donna Anna e Don Giovanni, volta por um círculo de modulações para ré menor, após a chegada
do Comendador, mas, mais uma vez, não se resolve
harmonicamente, encadeando-se com o recitativo Le-
porello, ove sei? A resolução em ré menor, a mesma
tonalidade que iniciara a sinfonia, só se completa no
dueto Fuggi, crudele, fuggi! (afasta-te, cruel, afasta-te!)
entre Donna Anna e Don Ottavio.
Há inúmeros outros exemplos de continuidade
pelo encadeamento de números. O trio Ah! chi mi
dice mai Elvira-Don Giovanni-Leporello leva diretamente ao recitativo subsequente que conduz à famosa
ária do catálogo. O dueto Là ci darem la mano se ini34
DON
GIOVANNI
cia sem preparo orquestral, e se encerra com acordes
suficientemente ambíguos para pedirem continuação
da ação dramática, e assim por diante.
Um ponto deve ficar claro: Mozart encadeia harmonicamente os números de Don Giovanni quando a
continuidade musical é pedida pela da ação dramática,
mas não por preconceito teórico. O conceito wagneriano de que cada ato deve constituir uma unidade musical contínua não caberia em Don Giovanni, por uma
razão muito simples: as cenas de cada ato não se sucedem em cadeia. Não há nenhum elo dramático natural
entre o final do dueto Anna-Ottavio e a cena seguinte,
o recitativo Orsù, spicciati presto... cosa vuoi? e o trio
Ah! chi mi dice mai. Na realidade, é como se fossem
atos diferentes. Como tal, seria esteticamente absurdo
construir qualquer ponto musical entre as duas cenas.
Como também não caberia nenhuma ponte entre a
Madamina de Leporello e a entrada de Zerlina e Masetto no Giovinette che fate all’amore (Mocinhas dadas ao amor).
A crítica que se pode fazer a Don Giovanni não se
dirige a Mozart, nem a Lorenzo Da Ponte: ao contrá35
DON
GIOVANNI
rio do que ocorre nas Bodas de Fígaro, cada ato não é
uma unidade dramática, e como tal não pode ser uma
unidade musical. Em pelo menos três momentos da
ópera, sente-se essa falta de continuidade. Primeiro, na
ária Dalla sua pace la mia dipende de Don Ottavio, um
anticlímax após a eletrizante ária de Donna Anna, Or
sai chi l’onore. Segundo, no recitativo In quali eccessi,
o Numi seguido pela ária Mi tradi quell’alma ingrata
de Donna Elvira, logo após o Il mio tesoro intanto de
Don Ottavio. Terceiro, na cena Anna-Ottavio do Non
mi dir, bell’idol mio, entre a cena do cemitério e o final.
Que esses três números, apesar da beleza musical,
baixam a voltagem dramática da ópera é evidente. Só
que Mozart tem muito pouca culpa no cartório. O
Dalla sua pace foi composto para a estreia da ópera
em Viena, quando o tenor encarregado do papel do
Don Ottavio não aguentava as dificuldades do Il mio
tesoro. Ou seja, a ária não seria cantada após o Or sai
chi l’onore, mas depois da fuga de Leporello no segundo ato. O mi tradi quell’alma ingrata foi composto a
pedido do soprano que interpretaria a Donna Elvira
em Viena, e faria sentido dramático após a Madamina.
36
DON
GIOVANNI
O problema é que, com os tenores resolvendo cantar
as duas árias, em vez de uma só, o Mi tradi foi deslocado para depois do Il mio tesoro, em que, realmente,
a aparição de Donna Elvira é bastante estranha: após o
apelo de Don Ottavio, o máximo que dela se poderia
esperar é que estivesse consolando Donna Anna, enxugando suas lágrimas.
Quanto à cena do Non mi dir, bell’idol mio, é imediato que ela quebra a tensão entre o desafio à Estátua
no cemitério e a ceia de Don Giovanni. Como essa
cena se incluiu na estreia da ópera em Praga, Mozart
estava consciente do seu significado estético. Para
isso há três explicações possíveis. A primeira, extremamente pedestre, mas comum nas óperas do século
XVIII, era dar mais uma oportunidade à intérprete
de Donna Anna. A segunda, bastante prática, era dar
tempo para a mudança do cenário do cemitério para
o palácio de Don Giovanni. A terceira, mais sutil, era
criar um repouso aural entre duas cenas de altíssima
voltagem dramática.
Pelo menos por essa terceira razão, o Non mi dir
desempenha importante função na ópera. Quanto ao
37
DON
GIOVANNI
Dalla sua pace e ao Mi tradi quell’alma ingrata, o
problema é o mesmo da inserção da abertura Leo­
nora 3 no Fidélio (Beethoven). Dramaticamente, a
melhor solução talvez seja omiti-las. Só que é penoso
omitir joias musicais apenas por convenções de continuidade dramática.
O TEMPO EM DON GIOVANNI
Quanto tempo se passa entre o princípio e o fim de
Don Giovanni, eis um ponto não esclarecido por Lorenzo Da Ponte e que dá margem a muitas interpretações diferentes pelos diretores de cena. Essa ambiguidade não existe nas Bodas de Fígaro, em que toda a ação
se passa em vinte e quatro horas. Acontece que Beau­
marchais escreveu Le Marriage de Figaro, ou La folle
journée, de acordo com o princípio das três unidades
do teatro setecentista, as de ação, tempo e lugar, e que
exigiam que toda a peça se desenrolasse em um único
dia. As peças de Tirso de Molina ou de Molière não se
amarravam a essa restrição temporal e tudo indica que
Da Ponte não se preocupou seriamente com o assunto.
38
DON
GIOVANNI
A importância da definição do tempo é que ela afeta a descrição psicológica do conquistador de Sevilha e
como tal o clima cênico e musical de toda a ópera, em
particular no que diz respeito à caracterização do Don
Giovanni. Tomemos um exemplo específico: quanto
tempo decorre entre a morte do Comendador e a cena
do encontro Don Giovanni-Leporello-Donna Elvira,
que se inicia com o recitativo Orsù, spicciati presto, seguido pelo trio Ah! chi mi dice mai. Para alguns diretores, as cenas se seguem com poucas horas de intervalo,
para outros com semanas ou meses. A primeira versão
leva a um retrato muito mais cruel e psicopático do Don
Giovanni. Isso exige inteira adaptação das inflexões vocais, a começar pelo recitativo Orsù, spicciati presto.
Em menor escala, Leporello também é diferente, numa
versão e na outra, o que deve se refletir na Madamina.
Na realidade, há três intervalos de tempo não definidos no libreto e na partitura da ópera:
a) entre a cena inicial, que se encerra com o dueto
Anna-Ottavio e o reencontro com Donna Elvira;
b) entre o final do primeiro ato e o início do segundo;
39
DON
GIOVANNI
c) entre a conclusão da cena na casa de Donna Anna
(usualmente com as árias Il Mio tesoro, e In quali eccessi,
o Numi, de Ottavio e Elvira, respectivamente) e a cena
do cemitério.
Essa indefinição sugere que, de fato, Don Giovanni deveria ter sido construído como uma ópera em
quatro atos, e não em dois, e sem qualquer vínculo
com as três unidades do teatro setecentista, pelo menos, a de tempo. Com efeito, por mais imaginativo
que seja um diretor de cena, é preciso fazer das tripas
coração para condensar em vinte e quatro horas a
ação de Don Giovanni.
O tempo mínimo da ópera, logicamente, é o necessário para esculpir a Estátua do Comendador. Alguns
diretores de cena tentam fugir a esse problema, seja encarando a Estátua como um fantasma, seja supondo que
ela já houvesse sido esculpida antes, com o Comendador vivo, e simplesmente transladada para seu túmulo.
Nenhuma dessas hipóteses é muito convincente, mas,
como a cena final de Don Giovanni entra no domínio
do sobrenatural, tudo é possível, o melhor talvez sendo
a versão fantasmagórica do Uomo di Sasso.
40
DON
GIOVANNI
A verdade é que Lorenzo Da Ponte não parece ter
pensado a fundo no problema de consistência temporal de Don Giovanni. A proposta de alguns diretores
de cena que situam o encontro Elvira-Giovanni-Leporello poucas horas após a morte do Comendador se
baseia em duas frases do conquistador: primeiro, no
recitativo Orsù, spicciati presto, quando o Cavaleiro
aceita que o criado lhe diga o que quiser, desde que
não fale do Comendador; segundo, no recitativo Mi
par ch’oggi il demonio si diverta d’opporsi a’miei piacevoli progressi; vanno mal tutti quanti! (Parece que
hoje o demônio se diverte opondo-se às minhas proezas amorosas; todas vão mal!).
Don Giovanni fracassara na conquista de Donna
Anna, topara com Donna Elvira, que lhe atrapalhara a
sedução de Zerlina. Sucede que, durante esse último recitativo, entram em cena Anna e Ottavio, que na manhã
seguinte à da morte do Comendador deveriam estar ocupados com o seu funeral. Esse é um argumento bastante
forte para que se rejeite a hipótese de que todo o primeiro ato se passe num intervalo de vinte e quatro horas.
Isto posto, quanto tempo decorre entre as duas partes,
41
DON
GIOVANNI
dias, semanas, ou meses, é uma questão em aberto.
Entre o fim do primeiro ato e o início do segundo,
a questão é mais complicada, pois envolve duas indicações explícitas e ao mesmo tempo contraditórias.
O pedido de demissão de Leporello no dueto Eh via,
buffone, non mi secar! (Já chega, bobo, não me aborreças!) insinua que o segundo ato começa poucas horas
após o primeiro, quando Leporello quase foi morto
por causa das trapalhadas de seu patrão na festa para
Zerlina. Por outro lado, no meio tempo, Don Giovanni não apenas conseguiu descobrir um novo alvo,
a camareira de Donna Elvira. Mas a dama deixou de
lado todo o furor do final do primeiro ato para aceitar
as promessas de arrependimento de seu ex-marido, no
trio Ah! taci, ingiusto core! (Ah, cala-te, injusto coração!) e no recitativo que se segue. Por mais crédula e
apaixonada que fosse Elvira, é difícil engolir que essa
transformação se operasse em poucas horas.
Outra questão em aberto é quanto tempo se passa
entre o final da cena na casa de Donna Anna, com Il
mio tesoro e o Mi tradi quell’alma ingrata, e a cena do
cemitério. Em princípio o intervalo deveria ser de pou42
DON
GIOVANNI
cas horas: Don Giovanni e Leporello se separam pouco
antes do Deh, vieni alla finestra, o mio tesoro e se reencontram no cemitério. Dois fatos que levam a crer que
muito mais tempo se passou. Primeiro, Don Giovanni
se refere a uma série de peripécias amorosas, inclusive
com uma namorada (ou talvez a própria mulher) de
Leporello. Segundo, um cemitério não é um ponto natural de encontro, a menos que houvesse alguma combinação prévia, inexistente na ópera. De fato, para tornar convincente esse reencontro, é preciso supor que o
Comendador tivesse sido sepultado num cemitério de
família, dentro de sua propriedade, o que explica a fuga
de Leporello pelo cemitério. Só que, no caso, por que
é Don Giovanni, que tantas fez no meio tempo, e não
Leporello o primeiro a chegar ao cemitério?
Não há respostas absolutamente convincentes para
essas perguntas, por uma razão simples: Da Ponte não
parece ter pensado no assunto. O libreto de Don Giovanni é admirável pela verve, mas bastante duvidoso
em matéria de consistência temporal. Fica a cargo dos
diretores de cena resolver o problema da melhor maneira possível.
43
DON
GIOVANNI
OS TESOUROS MUSICAIS
DE DON GIOVANNI
Há tanta riqueza musical em Don Giovanni que
se torna cansativo inventariá-la por escrito. Melodias
lindas em profusão, como o Là ci darem la mano (Ali
daremos as mãos), o Batti, batti, o bel Masetto (Bate,
bate, ó belo Masetto), o Deh vieni alla finestra (Vem
à janela), o Il mio tesoro intanto, os dois trios Elvira-Don Giovanni-Leporello, e assim por diante; árias de
rara nobreza de expressão, como o Or sai chi l’onore
(Conhece agora quem) de Donna Anna; uma das mais
célebres árias cômicas de todos os tempos, a Madamina
de Leporello; cenas trágicas de extraordinário impacto, como a morte do Comendador, no primeiro ato, a
do cemitério no segundo, culminando com a chegada
do Comendador na ceia de Don Giovanni.
O milagre da invenção melódica de Mozart não é
para ser comentado, mas para ser ouvido. Mas Don
Giovanni é muito mais do que uma coleção de lindas
melodias. É também um tratado prático de harmonia
e de orquestração. E, mais do que tudo, um modelo
44
DON
GIOVANNI
de perfeita fusão da palavra à música, o que viria ser o
ideal do Gesamtkunstwerk wagneriano.
Do ponto de vista harmônico, a maior parte de Don
Giovanni segue os princípios da estética diatônica consagrada no século XVIII. Há longos trechos da partitura
sem qualquer sustenido ou bemol fora das chaves tonais.
Só que Mozart sabia quando, como e em que dose usar
os ornamentos cromáticos. Tomem-se, por exemplo, os
trinta primeiros compassos da sinfonia e que resumem
o confronto final entre Don Giovanni e a Estátua do
Comendador (exemplo 1). A tonalidade é ré menor,
mas uma simples observação da partitura mostra que
estamos na fronteira do cromatismo. Pela estrutura
harmônica e pela linha melódica sincopada a partir
do décimo primeiro compasso, muitos melômanos
principiantes imaginam tratar-se de alguma obra de
Beethoven. Na realidade é uma invenção mozartiana
de 1787, e que se reproduz em algumas outras obras,
como na introdução à Sinfonia nº 39.
Só que esse uso abundante de enriquecimentos cromáticos, para os padrões do século XVIII, não é um
capricho teórico de Mozart, mas simplesmente a bus45
DON
GIOVANNI
ca da melhor expressão para o confronto entre Don
Giovanni e a Estátua do Comendador. Tanto que, na
segunda seção da sinfonia, a partir do trigésimo primeiro compasso, a construção harmônica muda radicalmente. Trata-se agora de descrever as estripulias
do Cavaleiro, o que Mozart consegue combinando um
tema heroico (exemplo 2), com uma linha descendente,
que alguns comentaristas associam a Leporello (exemplo 3). Essa linha serve de pivô para várias modulações
transitórias, que agora sugerem agitação e instabilidade, mas sem qualquer conotação de tragédia.
O uso de modulações para aquecer a temperatura musical é um dos segredos da vivacidade de Don
Giovanni. A ópera se inicia com o Notte e giorno fa-
ticar de Leporello, uma peça deliciosa em Fá maior
e praticamente sem qualquer ornamento cromático.
Com isso, após alguns minutos de estabilidade aural,
o ouvinte é surpreendido com a admirável modulação
para Si bemol maior na entrada de Donna Anna e Don
Giovanni.
Um outro exemplo notável é o do trio Ah! chi mi
dice mai entre Donna Elvira, Don Giovanni e Lepo46
DON
GIOVANNI
rello. A orquestra e Elvira entram numa belíssima
linha melódica em Mi bemol maior por trinta e seis
compassos. Até que Don Giovanni aparece no Udis-
ti? qualche bella dal vago abbandonata (Ouviu? Uma
beldade abandonada por um vagabundo), aparentemente em Si bemol maior, e, logo após, no Poverina
em Sol maior. A ideia de inserir as breves intervenções
de Don Giovanni numa tonalidade diferente da linha
melódica de Elvira é um lance do gênio mozartiano
para exprimir o diferente mundo emocional dos dois
personagens.
A mesma técnica reaparece no trio do segundo
ato com os três mesmos personagens, o Ah! taci, in-
giusto core, em Lá maior. No momento essencial da
conquista, o Discendi, o gioia bella, e que antecipa a
música da serenata Deh, vieni alla finestra, uma estupenda modulação faz Don Giovanni migrar para Dó
maior.
Há inúmeros outros exemplos na ópera sobre o uso
dos recursos harmônicos para enriquecer a expressão
dramática e, mais uma vez, a sua enumeração extensiva
seria tediosa. Vale a pena uma menção adicional: após
47
DON
GIOVANNI
o confronto entre a Estátua do Comendador e Don
Giovanni, todo ele em ré menor, a cena termina com
um acorde em Ré maior! O que significa que a ópera
não acabou, pedindo como complemento o sexteto
final.
Em matéria de orquestração, Mozart sempre revelou um bom gosto insuperável. A orquestra de Mozart
é a do final do século XVIII, cordas, sopros de madeira, trompas, trompetes, tímpanos e um clavicórdio
para acompanhar os recitativos. Em Don Giovanni,
fora o bandolim para acompanhar a sua serenata, surgem os trombones na cena do cemitério, sustentando
as advertências lúgubres do Comendador.
Nas óperas de Mozart, a orquestra sempre desempenha um papel fundamental, não como suporte das
vozes, mas exatamente para complementar o que a
palavra não diz. Em Don Giovanni, a riqueza do comentário orquestral provavelmente alcança o seu ponto supremo na obra mozartiana (embora não se possa
perder de vista As Bodas de Fígaro). Em alguns momentos, como na entrada dos trombones na cena do
cemitério, o anúncio é de tragédia. Noutros, porém,
48
DON
GIOVANNI
Mozart chega a explorar a orquestra para insinuar situações jocosas.
Na ária de Fígaro do quarto ato de Le Nozze, o
aprite un po’quegl’occhi, Mozart inventou uma associação jocosa entre trompas e maridos traídos, que
acompanham a frase final da ária, Già ognuno lo sa.
Afinal, trompas e cornos são sinônimos em português,
e a mesma palavra em italiano. Assim, no primeiro ato
de Don Giovanni, Masetto vive perseguido pelas insinuações das trompas. Num ponto culminante, em que
Don Giovanni tenta levar Zerlina para um esconderijo
e lá encontra Masetto:
D.G. – Masetto?
D.G. – Masetto?
M. – Sì, Masetto.
M. – Sim, Masetto.
D.G. – E chiuso là,
D.G. – Aí escondido
perchè? La bella por quê? A tua bela Zerlina
tua Zerlina non può,
já não aguenta,
la poverina,
a pobrezinha, estar
più star senza di te!
um momento sem ti!
49
DON
GIOVANNI
Mozart usa o seu gênio harmônico e orquestral
para descrever a situação (Exemplo 4). Primeiro, mais
uma modulação para Dó maior na entrada do verso
La bella tua Zerlina. Segundo, uma gostosa risada dos
violinos. Terceiro (omitida na redução da partitura
para piano, mas que se ouve claramente na orquestra),
a alusão das trompas aos chifres de Masetto.
O que revela o extraordinário instinto dramático
de Mozart é que ele consegue encontrar uma expressão
musical diferente para cada uma das oito personagens
da ópera. A música de Donna Anna é diferente da de
Donna Elvira, que, por sua vez, é muito diferente da
de Zerlina. A de Don Giovanni muito distinta da de
Leporello, a deste último bem menos rústica do que a
de Masetto. O Comendador se situa num outro plano
de pura tragédia, e Don Ottavio é contemplado com
melodias admiravelmente inspiradas, mas que insi­
nuam a fragilidade de seu caráter. Tecnicamente, essas
diferenças de caracterização musical se conseguem pela
diferenciação das estruturas harmônicas e rítmicas associadas a cada personagem. Essa técnica pode ser ensinada a qualquer estudante de música e até a um com50
DON
GIOVANNI
putador. Para que o resultado seja um Don Giovanni, é
preciso algo que escape à análise: a centelha do gênio.
Num ponto, apenas, duas personagens parecem
identificar-se musicalmente: Donna Anna, no trio
inicial Non sperar, se non m’uccidi ch’io ti lasci fug-
gir mai, e Donna Elvira, no trio final L’ultima prova
dell’amor mio ancor vogl’io fare con te. Em ambos os
trios, os sopranos discutem com Don Giovanni, sob
os comentários de Leporello. Ambos também precedem as duas maiores cenas trágicas da ópera. Não há
nenhuma coincidência melódica entre os dois trios,
até porque Mozart jamais usou a técnica dos leitmo-
tivs (frase melódica que se repete e se transforma ao
longo da ópera, evocando certa personagem, certo
acontecimento ou determinado estado de espírito). Só
que a temperatura musical, resultante dos arcos melódicos e das estruturas harmônicas, sugere certa semelhança entre as duas cenas. Em síntese, em ambas
as cenas, a música sugere alguma paixão desesperada
da heroína pelo conquistador compulsivo. No caso
de Donna Elvira, as razões são óbvias. No de Donna
Anna, leva ao já discutido enigma.
51
DON
GIOVANNI
PROBLEMAS DE ENCENAÇÃO
DE DON GIOVANNI
Paradoxalmente, um dos principais problemas para
uma boa produção de Don Giovanni é que Mozart pouco exige em matéria de extensão vocal dos cantores. Em
particular, do protagonista, pede apenas que sua voz se
estenda do si bemol da segunda linha da clave de fá ao
mi natural uma oitava e meia acima. Registro acessível a
qualquer barítono grave ou agudo, assim como à maioria dos baixos. Leporello e Masetto cantam numa linha
um pouco mais grave, agora compatível com todos os
baixos e a maioria dos barítonos dramáticos. Qualquer
das três personagens femininas pode ser cantada tanto
por um soprano ligeiro quanto por um meio-soprano
agudo. O Comendador deve ser um baixo profundo
por razões dramáticas, ainda que não necessariamente
musicais: é preciso que sua voz se imponha sobre a de
Don Giovanni na cena da ceia. Quanto a Don Ottavio,
a partitura pede um tenor lírico ou ligeiro, com a necessária sustentação de diafragma para enfrentar o cercate
di asciugar da ária Il mio tesoro intanto.
52
DON
GIOVANNI
Por outro lado, se Mozart nem pede vozes estentóricas nem muito extensas, as linhas de canto precisam ser impecáveis, na dicção, no legato e no respeito
aos valores musicais. E temperadas com as necessárias
inflexões para comunicar o andamento dramático da
ópera. Isso obriga os cantores a se equilibrarem no fio
da navalha, nem caindo na precisão inexpressiva dos
autômatos, nem tomando liberdades que mutilem a
partitura. Na realidade, uma única desobediência à
partitura é aceitável. No final do confronto do segundo
ato entre Don Giovanni e o Comendador, o Cavaleiro
se desprende da Estátua com a palavra No, um lá natural na última linha da clave de fá. Alguns barítonos
transpõem esse lá natural uma oitava acima, emitindo
um superagudo de efeito dramático eletrizante. Por
que Mozart não colocou esse superagudo na partitura
é óbvio: a ópera não seria representada por falta de
candidatos ao papel-título. E, na realidade, o impacto
dramático depende de um lá natural estentórico, que
muitos barítonos tentam com resultados medíocres
(inclusive Dietrich Fischer-Dieskau na gravação da década de 1960 regida por Karl Böhm).
53
DON
GIOVANNI
O primeiro problema na encenação de um Don
Giovanni é a busca do equilíbrio das vozes. Donna
Anna pode ser um soprano coloratura (mais agudo)
como Joan Sutherland, ou um soprano dramático
como Birgit Nilsson; Donna Elvira, um soprano lírico como Kiri Te Kanawa, ou um meio-soprano como
Christa Ludwig; Zerlina, um soprano lírico-ligeiro
como Reri Grist, ou um meio-soprano agudo, como
Teresa Berganza; Don Giovanni, um barítono agudo
como Sherrill Milnes, ou um baixo grave como Cesare Siepi; Leporello, um barítono dramático como
Giuseppe Taddei, ou um verdadeiro baixo como Otto
Edelmann (note-se que todos os cantores citados participaram de gravações integrais da ópera).
Só que as vozes precisam ser proporcionais. Don
Giovanni e Leporello devem se nivelar em potência
vocal, mas é indispensável que os timbres sejam perfeitamente distintos, e que Leporello se sinta à vontade
cantando num registro mais grave do que o seu patrão. Masetto não precisa competir com nenhum dos
dois, mas é preciso que sua voz não se deixe abafar nos
conjuntos. Quanto ao Comendador, é indispensável
54
DON
GIOVANNI
que ele se imponha sobre o conquistador na cena da
Ceia, problema de difícil solução quando o intérprete
de Don Giovanni é um baixo de grande envergadura,
como foram Ezio Pinza, Cesare Siepi e Nicolai Ghiaurov. As personagens femininas devem corresponder
vocalmente às masculinas: se Don Giovanni é um barítono leve, nem Donna Anna nem Donna Elvira podem
ser candidatas a Isolda. Por outro lado, as três vozes
devem manter as devidas proporções entre si. Donna
Anna e Donna Elvira não precisam ser muito diferentes nem em volume nem em registro vocal. Mas os
timbres devem ser claramente distintos, Donna Elvira
comunicando a ternura ausente na música de Donna
Anna.
Dois papéis, em particular, requerem especiais cuidados: Leporello e Don Ottavio. A partitura qualifica
o criado de Don Giovanni como buffo, ou seja, um
baixo cômico. Só que Leporello está muito longe de
ser um simples comediante, e muito menos um personagem ridículo (como o Don Bartolo do Barbeiro de
Sevilha). Leporello é simplesmente o Sancho Pança do
conquistador, e que se submete a seus caprichos para
55
DON
GIOVANNI
ganhar a vida, e para isso cometendo suas indignidades, como dançar com Masetto no fim do primeiro
ato e se fantasiar de Don Giovanni para afastar Elvira
de cena no princípio do segundo ato. A convivência
com Don Giovanni o transforma num cínico. Mas um
cínico com os pés na terra, e que pressente a tragédia que se arma na cena do cemitério. O intérprete do
papel deve ser capaz de comunicar esses sentimentos
nas suas inflexões vocais, que não são exatamente as de
um buffo. Ou seja, o intérprete de Leporello deve se
abster de palhaçadas. Mas também não pode se comportar como um nobre ou um aristocrata. Afinal, um
nobre, ainda que decaído, jamais roubaria um pedaço
de faisão da ceia que serve ao patrão. São essas características psicológicas que Leporello precisa conseguir
transmitir.
No caso de Don Ottavio, o problema é explicar sua
poltronice. O tenor passa a ópera tentando consolar
Donna Anna em vez de desafiar Don Giovanni em
duelo, como faria qualquer nobre espanhol na época.
Em matéria de inflexões vocais, o tenor pouco pode
fazer. O melhor é caracterizá-lo como um duque bem
56
DON
GIOVANNI
mais velho do que Donna Anna, apaixonado unilateralmente por uma noiva à busca de ascensão financeira
ou social.
Na estreia da ópera em Praga, um mesmo cantor
acumulou os papéis de Masetto e do Comendador.
Essa é uma economia incompatível com uma encenação satisfatória de Don Giovanni. Todo timbre vocal
tem sua individualidade, e não há personagens mais
díspares do que o noivo de Zerlina e o pai de Donna
Anna.
Equacionado o problema das vozes, vem o da orquestra e o do regente. O tamanho da orquestra é bastante elástico, na faixa de quarenta a setenta músicos,
dependendo das dimensões e da acústica da sala de
espetáculos e da potência vocal dos cantores. O que
é indispensável é manter o equilíbrio entre cordas e
sopros, sobretudo os de madeira, que Mozart maneja
com incomparável maestria. Mais ainda, a agilidade do
comentário orquestral demanda extraordinária precisão nas entradas e nos tempos. Ou seja, na orquestra
mozartiana, quantidade não é um substituto para qualidade. O ideal é um conjunto médio, em que não seja
57
DON
GIOVANNI
necessário dobrar os sopros de madeira, mas no qual
os professores realmente saibam extrair a melhor sonoridade de seus instrumentos.
Quanto ao regente, o seu trabalho é imenso. Supondo que ele assuma integralmente as funções de
um diretor musical, cabe-lhe inicialmente escolher
(ou pelo menos vetar) os cantores e os instrumentistas, obviamente dentro dos limites das possibilidades
práticas. Só que consciente de que uma apresentação
desastrada de Don Giovanni lhe custará muitos pontos
em matéria de reputação e prestígio. Isto posto, sua
responsabilidade é ensaiar o conjunto, quantas vezes
for necessário, pois em Mozart o todo é sempre muito
maior do que a soma das partes. Por último, quando
se trata de um regente genial, tentar imprimir sua personalidade própria à partitura sem se desviar do estilo
mozartiano. Esse é um grande desafio e que já derrubou muitos regentes geniais noutras partituras.
No que tange à direção cênica, há um primeiro
problema a solucionar: quanto tempo se passa entre
a morte do Comendador na cena inicial e a vingança
da Estátua na final? Nem Mozart nem Da Ponte dei58
DON
GIOVANNI
xam qualquer indicação clara nesse sentido. Muitos
diretores de cena tentam ajustar Don Giovanni às três
unidades do teatro clássico, a de ação, tempo e lugar,
a segunda exigindo que toda a ação se passe em vinte
e quatro horas. As Bodas de Fígaro, subtituladas por
Beaumarchais como La folle journée, certamente respeitam essas três unidades. Por analogia, estendem o
mesmo princípio a Don Giovanni, que passa a se representar como as últimas vinte e quatro horas do Dis-
soluto Punito.
As razões para se rejeitar essa proposta foram já explicadas. O problema da consistência temporal de Don
Giovanni é um enigma que Da Ponte não se preocupou
em solucionar. Cada diretor de cena tem o direito de
inventar o que quiser, mas é difícil condensar a ação da
ópera em vinte e quatro horas, por mais artifícios que
se inventem. O melhor, provavelmente, é não tentar ser
muito explícito em matéria de tempo.
Um segundo problema é como administrar as sucessivas mudanças de cenários; as três casas, a de Donna
Anna, a de Donna Elvira e a de Don Giovanni, as ruas e
praças, o cemitério. Os ambientes se alternam com ex59
DON
GIOVANNI
trema frequência, e a música não pode parar enquanto
se mudam cenários dentro do mesmo ato. No cinema é
possível aproveitar maravilhosamente essa diversidade,
como no clássico filme de Joseph Losey. No teatro, não
há como fugir a algumas estruturas básicas, geralmente
o modelo das duas casas, em torno do qual se adaptam
os vários ambientes. Usando frequentemente uma cortina à frente da qual se cantam certas árias de transição,
como o Il mio tesoro, o Mi tradi quell’alma ingrata e
o Non mi dir, bell’idol mio para preparar as mudanças
mais complicadas de ambiente na retaguarda.
Por último, na cena final do confronto de Don
Giovanni com a Estátua do Comendador, assim como
em boa parte da cena do cemitério, a ópera ingressa
no domínio do sobrenatural. O diretor de cena aí tem
amplas oportunidades de se libertar das convenções de
espaço e tempo. Mas é preciso explorá-las com extremo senso de propriedade e bom gosto.
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Original de Mario Henrique Simonsen sobre “Don Giovanni”
Mario Henrique Simonsen’s original on “Don Giovanni”
ISBN 978-85-98831-19-0
9 788 598 831190