CIÊNCIA e IMPRENSA A fusão a frio em jornais
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CIÊNCIA e IMPRENSA A fusão a frio em jornais
CIÊNCIA e IMPRENSA A fusão a frio em jornais brasileiros Roberto Pereira Medeiros Dissertação apresentada à Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo como exigência parcial do Curso de Pós-Graduação para obtenção do título de Mestre junto ao Departamento de Jornalismo e Editoração. Orientador: Profº Dr. Jair Borin São Paulo 1996 2 A Sonia, mulher admirável, a quem peço desculpa pelos momentos de azedume e a desarrumação permanente do escritório. A Bruno e Bernardo, meus filhos, por cederem graciosamente espaço na memória do computador, suficiente para arquivar material da dissertação. À memória de Quincas Jorge, bisavô paterno, um mestre-escola na Província do Rio de Janeiro. 3 “Na verdade, as coisas mais fundamentais da Ciência não são muito acessíveis, pois se o fossem não seriam fundamentais.” Mário Schenberg (1914-1990) in “Pensando a Física”, 1984, p. 29 4 Resumo Esta dissertação tem o objetivo de mostrar como a Ciência é colocada ao alcance do conhecimento do público leigo, por meio de textos jornalísticos veiculados na Imprensa escrita. Para realizar tal intento, partimos de um fato científico, ocorrido em 1989, que repercutiu em todo o mundo, provocando uma celeuma ainda não totalmente encerrada entre os cientistas: a anunciada fusão de núcleos de átomos em condições até então não usuais em laboratórios que buscam realizar este acontecimento no âmbito da Física. Buscamos verificar quais os argumentos utilizados pela Imprensa, em especial por quatro periódicos representativos no contexto brasileiro, os jornais Folha de S. Paulo, O Estado de S. Paulo, Jornal do Brasil e O Globo. A partir da identificação desses argumentos, verificamos até que ponto eles estão previstos em literatura que procura ditar os contornos de uma prática adequada de Jornalismo Científico. Também procuramos verificar se com a leitura do conjunto de textos publicados no período de 24 de março a 30 de junho de 1989 nos jornais mencionados, é possível ao leitor obter uma compreensão generalizada sobre o processo científico. Abstract This dissertation intends to demonstrate how Science is placed within the reach of the lay public by way of journalistic texts disseminated in the Press. To achieve this intent, we began with a scientific fact which ocurred in 1989 and caused repercussions in the entire world, provoking a commotion which is still not completely resolved among scientists: the announced fusion of the nuclei of atoms in conditions not yet used in laboratories attempting to achieve it in the ambit of Physics. We have tried to verify the arguments used by the Press, in particular four daily newspapers which are representative in the Brazilian context, Folha de S. Paulo, O Estado de S. Paulo, Jornal do Brasil and O Globo. After identifying these arguments, we have verified to what point they are foreseen in literature aiming to establish the contours of an adequate practice of Scientific Journalism. We have also tried to verify if, in reading all of the texts published between March 24 and June 30 of 1989 in the newspapers mentioned, it is possible for the reader to obtain a generalized comprehension of the scientific process. 5 Sumário PARTE 1 1. INTRODUÇÃO - 7 1.1 - Justificativas - 15 1.2 - O Contexto da Pesquisa - 16 1.3 - Metodologia - 20 1.4 - Corpus - 22 PARTE 2 CAPÍTULO 1 - CIÊNCIA E COMUNICAÇÃO 1.1 - Ciência e Sociedade - 40 1.2 - Valores, Normas e Práxis da Ciência - 41 1.3 - Comunicação Científica - 48 1.4 - Comunicação Pública da Ciência - 51 1.5 - Jornalismo e Jornalismo Científico - 58 1.6 - Conceitos do Jornalismo Científico - 60 1.7 - Críticas ao Jornalismo Científico - 65 CAPÍTULO 2 - UMA NOTÍCIA QUENTE 2.1 - Uma Entrevista Coletiva e seus Desdobramentos - 72 2.1.2 - Esforços para Reproduzir a Experiência - 78 2.1.3 - A Imprensa Amplificando o Fato - 80 2.1.4 - Um Tema Inquietante - 83 2.2 - Dos Gregos à Física Quântica - 84 2.3 - Os Acontecimentos em Seqüência Jornalística (Análise Descritiva)-92 CAPÍTULO 3 - A FUSÃO A FRIO NOS JORNAIS BRASILEIROS 3.1 - Comentários Necessários - 157 3.2 - Análise Qualitativa - 167 3.2.1 - Relação da Ciência com as Aplicações - 167 3.2.2 - Observância ao Ritual Científico - 174 3.2.3 - Contextualização do Fato - 181 3.2.4 - Analogias como Recurso - 186 3.2.5 - Descrições de Métodos e Processos - 187 3.3 - Conclusões 3.3.1 - Respostas para as Hipóteses - 191 3.3.2 - Comentários Pertinentes - 194 3.3.3 - Livre Reflexão - 197 BIBLIOGRAFIA GERAL - 199 ANEXOS 6 PARTE 1 1. INTRODUÇÃO Nesta dissertação estuda-se o comportamento da Imprensa diante de um fato científico que teve repercussão mundial, a possível realização de fusão de núcleos de átomos na Universidade de Utah, EUA, em torno do qual se estabeleceu uma longa controvérsia - ainda não encerrada - centrada no fato propriamente dito e, também, na participação ostensiva da Imprensa. A partir desse fato, coloca-se em análise o Jornalismo, e, mais especificamente, a cobertura de Ciência e Tecnologia. O recorte do universo jornalístico que lastreia a pesquisa desta dissertação é constituído por quatro jornais considerados como os de maior influência da imprensa brasileira: O Globo, Jornal do Brasil, Folha de S. Paulo e O Estado de S. Paulo. O período de estudo vai de 24 de março a 30 de junho de 1989, totalizando 222 matérias, sob forma de reportagens, notas, editoriais e artigos. Olhado em seu conjunto, o corpus de análise constitui um momento raro no Jornalismo Científico, pois todos os textos estão vinculados a um só tema, abordado sob os diferentes enfoques de uma história em construção. Esta característica é fundamental para empreender a busca por confrontações entre o Jornalismo Científico, que se acredita possível, e o Jornalismo Científico, que na prática se faz. O fato motivador da ampla cobertura jornalística ocorrida em 1989, no Brasil e em outros países, foi a entrevista concedida por dois pesquisadores vinculados a uma universidade americana. Nesta entrevista, os dois pesquisadores anunciaram ter conseguido fundir núcleos de átomos, num processo denominado “fusão a frio” (cold fusion). Isto é, os pesquisadores dizi- 7 am ter conseguido realizar fusão em temperatura ambiente, contrariando a linha tradicional de pesquisa nesta área, que utiliza temperatura na escala dos milhões de graus centígrados, para induzir a fusão dos núcleos atômicos. No dia 23 de março de 1989 - mediante a convocação para uma entrevista coletiva - jornalistas acorreram à Universidade de Utah1, no estado de mesmo nome, na região oeste central dos Estados Unidos, e ali ouviram Stanley Pons e Martin Fleischmann relatar que haviam conseguido dominar o processo de fusão de núcleos de átomos, por mecanismo diferente do que vem sendo tentado há mais de quatro décadas, por diversos grupos científicos. A Universidade de Utah, por meio do Serviço de Relações Públicas, preparou alentado release sobre o assunto, previamente distribuído com embargo para divulgação até a hora da entrevista coletiva. Nas semanas seguintes o tema "fusão a frio" passou a ter uma cobertura grandiosa da Imprensa, com desdobramentos pouco comuns para assuntos científicos, normalmente tratados longe dos olhos e ouvidos dos meios de comunicação. A repercussão se devia ao fato em si mesmo, que, se comprovado nos moldes anunciados por Fleischmann e Pons, abriria uma perspectiva de desenvolvimento tecnológico sem precedentes no setor energético. E, também, à polêmica surgida nos meios científicos, com questionamentos diversos ao trabalho dos cientistas da Universidade de Utah. A notícia oferecida por Fleischmann e Pons produziu efeito imediato em círculos científicos, motivando experimentos de igual teor, em diversos laboratórios, inclusive no Brasil, especialmente em instituições de pesquisa situadas no Rio de Janeiro e em São Paulo. 1 - The University of Utah, fundada em 1850. Não deve ser confundida com a Utah State University, fundada em 1888, e também situada em Salt Lake City, capital do estado americano de Utah. 8 Tal procedimento - buscar reproduzir uma experiência, visando comprovar ou refutar os resultados apresentados - é usualmente utilizado por grupos científicos, em especial nas Ciências Físicas. Neste caso específico, chamou a atenção o tratamento público da questão (não só no Brasil, mas também no Exterior), com o acompanhamento permanente da imprensa, lembrando, de certo modo, as coberturas jornalísticas de um campeonato desportivo ou de um rumoroso julgamento. Estas características - um fato científico de repercussão mundial e seu acompanhamento jornalístico - foram os vetores que deram origem a idéia de desenvolver esta dissertação como corolário dos estudos realizados na Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo visando obter o grau de Mestre em Comunicação. A dissertação abrange duas partes: A PARTE 1 compõe-se desta Introdução e mais quatro tópicos, a saber: a) Justificativas para o desenvolvimento do trabalho; b) Contexto da pesquisa, com um rápido panorama sobre os estudos acadêmicos que têm procurado enfocar questões de divulgação e jornalismo científico; c) Metodologia adotada para permitir a adequada análise do material em estudo; d) Corpus, com a descrição sumária dos textos para leitura e análise. A PARTE 2 da dissertação divide-se em três capítulos. O Capítulo 1 - Ciência e Comunicação - é formado por sub-temas nos quais se procura informes e contextualização para o vínculo entre a Ciência e a Sociedade e como a comunicação se torna parte intrínseca do processo de produção científica, quer em sua vertente orientada para a obrigatoriedade da informação destinada ao próprio estamento científico, quer em sua vertente orientada para o público leigo. No Capítulo 1 buscamos argumentar que as relações entre Ciência e Imprensa são, de certo modo, motivadas por interesses convergentes, originados em pelo menos dois diferentes vetores, em tempos distintos: a busca 9 por legitimação junto à Sociedade, e a necessidade (esta mais recente) de angariar simpatia e apoio para buscas de financiamento. O Capítulo 1 trata também das questões relacionadas ao fato de que o Jornalismo é apontado como uma das vertentes privilegiadas da divulgação científica. Deve-se, desde já, esclarecer que tal relação vem sendo há algum tempo objeto de análises em nível acadêmico. É falsa a idéia de que não há bibliografia sobre a questão, concepção errônea que leva em conta apenas o que se encontra disponível em língua portuguesa. Entretanto, quando se alarga a pesquisa em busca de novas fontes de referência encontra-se material bastante amplo, sobretudo em espanhol, francês e inglês. São tantas as possibilidades que se oferecem para trabalhar esta questão que uma das grandes angústias vividas para circunscrever esta dissertação foi a de não ceder à tentação de explorar vários caminhos que se colocavam diante de nós. Assim, optamos por trabalhar apenas aqueles aspectos que tenham alguma relação direta com a proposta de análise qualitativa que se empreende no Capítulo nº 3. Deve-se registrar, até mesmo por dever de justiça, que em 1995 completou dez anos que, na Escola de Comunicações e Artes da USP, Wilson da Costa Bueno apresentou tese de doutoramento enfocando o conceito e a prática do Jornalismo Científico.2 A tese de Bueno consolidou inúmeras informações que se encontravam em bibliografia esparsa e passou, desde então, a ser citada obrigatoriamente em trabalhos voltados para as questões da Divulgação Científica e do Jornalismo Científico. Pensamos que seria ocioso repetir algumas dessas informações (em especial se elas não contribuem para o desenvolvimento das respostas às hipóteses que foram arroladas nesta dissertação). 2 - BUENO, W. da COSTA - Jornalismo Científico, uma prática dependente. São Paulo: ECA/USP, 1985 (Tese de Doutoramento). 10 No Capítulo nº 2 - Uma notícia quente - tratamos de recuperar os bastidores da entrevista. Para realizar este objetivo buscamos informações na Universidade de Utah, tentando recompor o caminho percorrido pela informação a partir de sua fonte primária de emissão. É interessante verificar, pela análise desta documentação, como a Imprensa "compra" da fonte determinada informação, inclusive incorporando enfoques. Ainda no Capítulo nº 2, apresentamos, em seqüência cronológica, os textos publicados nos quatro jornais pesquisados, no período de 24 de março a 30 de junho de 1989, resumindo o conteúdo do noticiário sobre a fusão a frio. Este tópico acima mencionado (2.3 - Os acontecimentos em seqüência jornalística) é a análise descritiva, apresentada de maneira autônoma, separada da análise qualitativa, opção metodológica que julgamos mais adequada. Com relação a este aspecto, acreditamos ter seguido uma orientação proposta por LOPES3ao afirmar que “a descrição faz a ponte entre a fase de observação dos dados e a fase de interpretação e, por isso, combina igualmente em suas operações técnicas e métodos de análise”.4 Também no Capítulo nº 2 incluímos um resumo sobre a evolução do pensamento filosófico e científico, desde os gregos até a Física Quântica. Trata-se de um curto repositório, cuja intenção é apenas dar uma visão panorâmica sobre o desdobramento da Ciência, em especial na Química e Física. O Capítulo nº 3 - A Fusão a Frio nos Jornais Brasileiros - constitui o núcleo central da dissertação. Aqui está a análise do material e a busca dos elementos para subsidiar as respostas para as hipóteses formuladas (H1 e H2). 3 - LOPES, Maria Immacolata Vassalo. Pesquisa em Comunicação - formulação de um modelo metodológico. São Paulo: Loyola, s. d. p. 129 a 132. 4 - Opus cit. p. 129. 11 Esta foi, sem dúvida, uma longa busca neste trabalho: que ferramenta usar para empreender uma análise de conteúdo? O projeto de pesquisa submetido à ECA/USP como parte dos procedimentos para ingresso na pós-graduação deixou claro que não nos interessava simplesmente fazer uma análise quantitativa do material publicado e uma análise comparativa entre os quatro jornais. Julgamos que este tipo de estudo, de conformação essencialmente funcionalista, já cumpriu um papel desbravador em passado recente no contexto da pesquisa em comunicação e não oferece resultados satisfatórios como instrumento para entender certas questões. O que buscamos foi correlacionar a prática concreta do Jornalismo, no caso o jornalismo especializado em Ciência e Tecnologia, com referências pragmáticas que lhe dão os contornos de ordem específica, no sentido de orientar a produção de textos. Trata-se, portanto, de abordagem sobre uma base material concreta (os textos dos quatro jornais), estudados em confronto com uma base de normas aplicáveis que vem sendo construída por alguns autores que têm escrito sobre o Jornalismo Científico. Com relação à Hipótese 2, procuramos ver se os textos analisados abrangem aspectos de caráter mais geral, relacionados com o processo científico. Após o capítulo de Conclusões, juntamos um Anexo com amostragem do material analisado e o release da Universidade de Utah que deslanchou o processo de comunicação em nível mundial. Um curso de Mestrado com a conseqüente apresentação e defesa da dissertação é uma falsa aventura solitária. Amir Klink, o navegador-poeta, exemplifica bem esta situação, quando se sabe (e êle trata de esclarecer em seus livros) que muitas pessoas participam de maneira invisível de uma 12 aventura. A estas pessoas e instituições que, de alguma maneira, participaram desta minha aventura o meu melhor agradecimento: - Ao meu Orientador, Profº Dr. Jair Borin, por sua paciência em atender-me prontamente e alertar-me para impropriedades diversas, nas versões preliminares da dissertação. - Às bibliotecárias e documentalistas, em especial do Museu de Astronomia e Ciências Afins (MAST), no Rio de Janeiro, onde comecei a coletar material sobre o tema fusão a frio; da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, do Instituto Brasileiro de Informação Científica e Tecnológica (IBICT/CNPq); da Biblioteca Nacional, em especial da Divisão de Periódicos. Agradecimento especial à bibliotecária Margarida Maria Silva Abreu de Lima, do Laboratório Nacional de Luz Síncrotron (LNLS), onde trabalho, por seu apoio na obtenção de bibliografia e orientação na organização técnica. - Aos meus amigos do Museu de Astronomia e Ciências Afins (MAST), onde a partir de 1986 comecei a vivenciar mais cotidianamente as inquietações acadêmicas, assistindo gradativamente colegas concluírem mestrados e doutorados. Foi ali que ganhei o estímulo para começar um curso de pós-graduação. Obrigado especial ao Francisco Creso Franco Jr. pelo livro enviado da Inglaterra (Too Hot to Handle, de Frank Close, custo de 14.49 libras esterlinas nunca reembolsadas!). - A Diane Marie Petty, do LNLS, e Renata Machado da Fonseca, que me socorreram com traduções necessárias. - Ao Profº Dr. Cylon Gonçalves da Silva, diretor do LNLS, pelo apoio institucional e pessoal. - A inúmeras outras pessoas que, em algum momento, foram acionadas para ajudar: Martin Yriart, Angus Foster, Pamela Fogle, Oswaldo Frotta-Pessoa, Edvaldo Roberto Paiva da Fonseca, Ricardo Pereira Medeiros, 13 Gilson Ferreira, Jorge Pereira da Silva, Isabel Cristina de P. Fernandes Braga. - Aos pesquisadores Gerson Otto Ludwig, do INPE, e Rajena Saxendra, do IPEN, por entrevistas que ajudaram a entender aspectos sobre a participação de pesquisadores brasileiros no episódio da fusão a frio. - Aos funcionários das Secretarias do Departamento de Jornalismo e Editoração e do Curso de Pós-Graduação da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo. Deles nunca deixei de obter informações e orientações. 14 1.1 - Justificativas A partir de 1986, por força de vínculo profissional com o Museu de Astronomia e Ciências Afins (MAST), organismo de pesquisa e divulgação científica do CNPq localizado no Rio de Janeiro, passamos a acompanhar mais atentamente os temas correlacionados com o jornalismo especializado na cobertura da Ciência e da Tecnologia. Nosso interesse desde logo ampliou-se, deixando de ser apenas instrumental (no sentido de obter as condições necessárias para o bom desempenho profissional). Gradativamente, passamos a desenvolver o comportamento analítico, ao procurar compreender inúmeros aspectos subjacentes ao processo de interação da Ciência com a Sociedade. É deste contexto que nasceu o embrião da atitude permanentemente crítica e da observação constante, desdobradas com a formulação do projeto destinado ao curso de Mestrado na Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, agora finalizado com a apresentação desta dissertação. São tantas as vertentes possíveis de serem desbravadas no estudo do tema Jornalismo Científico que, durante muito tempo, ficamos indecisos sobre qual abordagem desenvolver. Foi um longo processo, amadurecido com a convivência universitária durante os períodos de créditos obrigatórios, que forneceu contribuição substantiva para a finalização do processo. Estamos convictos de que o resultado final está razoavelmente colocado dentro da boa técnica acadêmica e decorre de um sincero esforço para o desenvolvimento intelectual. Nosso estudo tem a ambição de ofertar uma contribuição para a análise da Imprensa, em especial da Imprensa especializada em Ciência e Tecnologia, calcada em princípios previamente esclarecidos, com os quais pro- 15 curamos evitar os casuísmos dos inúmeros debates nos quais não se exige o rigor da ortodoxia acadêmica. 1.2 - O Contexto da Pesquisa A literatura que tem o Jornalismo como tema central preocupa-se com aspectos de ordem geral, sob os mais variados ângulos de abordagem: históricos, sociológicos, técnicos, metodológicos. Quando a literatura enfoca áreas de especialização da cobertura jornalística, possivelmente a que mais tem recebido a atenção é aquela voltada para os assuntos de Ciência e Tecnologia, a qual se convencionou chamar de Jornalismo Científico. Se considerarmos que, de modo praticamente universal, o Jornalismo tem áreas consagradas de cobertura especializada em Economia, Política, Assuntos Policiais, Esportes, Moda, Literatura, Artes, e outras, constata-se que a literatura sobre o Jornalismo Científico tem freqüência bastante expressiva na pauta dos estudiosos. Em linhas gerais, tais estudos podem ser enquadrados nas seguintes vertentes: a) Estudos Quantitativos Os estudos elaborados sob o enfoque quantitativo se enquadram no contexto do Funcionalismo, com forte predominância no Brasil a partir dos anos 50. Invariavelmente, se fixam numa ótica restrita sobre o que seja Ciência e Tecnologia. Na delimitação do material a ser analisado, geralmente consideram aquelas rubricas específicas - sobretudo no caso dos jornais que abrigam material rotulado pela editoria específica. Desconsideram que informes sobre Ciência e Tecnologia, dependendo da angulação editorial, podem estar localizados em páginas de Economia, de Política ou mesmo de 16 Esportes. Outro aspecto observado é o de desconsiderar as Ciências Humanas como parte do universo a ser coberto pelo Jornalismo Científico. Como resultado praticamente constante, os estudos inclusos nesta classificação indicam que a Ciência e Tecnologia têm índices considerados baixos de freqüência, quando se compara a massa total de informações existentes no meio analisado. Oferecem, como conseqüência imediata, a argumentação preferida para os que advogam a necessidade de os meios de comunicação dedicarem mais atenção ao setor de Ciência e Tecnologia, valorizando, por extensão, a especialização Jornalismo Científico. b) Estudos Qualitativos Nesta vertente, há estudos que têm procurado extrair - sob a forma de análise de conteúdo - comprovações diversas, com ênfase evidente sobre a comparação entre a versão apresentada pela narrativa jornalística e aquela que, sob a ótica dos emissores originais (instituição, autor) seria a mais correta. Uma área que oferece amplas possibilidades para a análise qualitativa é a Lingüística, com seus instrumentais próprios, aplicáveis a estudos que tenham no texto de divulgação científica a matéria-prima para análise.5 Trata-se de uma área cujo ferramental teórico-metodológico é bastante complexo e à qual somente os especialistas têm-se aventurado. c) Teoria e Prática do Jornalismo Científico 5 - Cite-se, por exemplo, nesta linha, “Mecanismos de Tradução do Vocabulário Científi- co para o Discurso Cotidiano” (Anais do II Simpósio Latino-Americano de Terminologia e I Encontro Brasileiro de Terminologia Técnico-Científica, IBICT/CNPq, Brasília, 10-14 setembro, 1990), trabalho de Lilian M. Simões Zamboni, doutoranda da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), em fase de preparação da tese. 17 A literatura enquadrada nesta tipologia pode ser denominada “didática”, pois seu objetivo evidente é determinar como deve operar o Jornalismo Científico. Nesta linha, no Brasil, sem dúvida o maior expoente é José Reis, cuja produção iniciada nos anos 40 inclui inúmeros textos que transmitem a visão de um divulgador comprometido em fazer chegar aos leigos a leitura que considera ideal para o que todos possam entender a Ciência e a Tecnologia. Nesta mesma linha, Manuel Calvo Hernando também apresenta expressiva contribuição, em língua espanhola. Encontram-se, em língua inglesa, literatura desta ordem, que - bem ao estilo pragmático americano - formam verdadeiros manuais de referência profissional. Um denominador comum na literatura deste tipo é um certo distanciamento da realidade profissional. O Jornalismo Científico é, muitas vezes, apresentado como um tipo de jornalismo especial (e não especializado...), imune às pressões empresariais e que deveria ser executado por profissionais que estariam mais para cientistas sociais do que para jornalistas propriamente ditos. “A teoria formulada por quem não vive o cotidiano de uma redação de jornal ganha no aspecto ético, filosófico, ideológico, mas perde na percepção prática, no entendimento das mudanças que dependem da organização do trabalho dentro da empresa editora, da mentalidade dos que decidem, da formação dos profissionais e também das relações entre a empresa jornalística e seu ambiente sócio-econômico-cultural, que são as forças que o jornalismo exerce a as reações que recebe.”6 d) Estudos Críticos 6 - ADEOTADO, Sérgio. O conceito de jornalismo científico - teoria e prática. Trabalho apresentado no II Seminário Brasileiro de Divulgação Científica, 10º Congresso Intercom, Rio de Janeiro, 1987, p. 1 (xerox). 18 Sob esta rubrica identificamos estudos em duas vertentes distintas. d. 1 - Alguns autores têm encontrado nos meios de comunicação a paradoxilidade com a qual a divulgação científica tem que se defrontar. A exigüidade do espaço nos jornais - cada vez mais assemelhados à uma tela de tv impressa - ou a fragmentação excessiva no meio televisão - por exemplo, impediriam a realização de um jornalismo adequado à cobertura de Ciência e Tecnologia. Os autores encontrados neste segmento podem ser enquadrados na matriz teórica que se inicia nos anos 60, com os primeiros estudos críticos sobre a indústria cultural, cujos expoentes máximos fazem parte da chamada Escola de Frankfurt. Nesta vertente, podemos enquadrar, por exemplo, Philippe Roqueplo7, que coloca em discussão a Divulgação Científica (e, por extensão, o Jornalismo Científico) à luz de contradições internas, dentre elas o uso de artifícios que acabam contribuindo para ampliar o mito da cientificidade. d.2 - Na outra vertente de estudos críticos encontramos autores que para argumentação, pressupõem a crise dos paradigmas, isto é, a Ciência estaria mergulhada em profunda crise de identidade. Conseqüentemente, o Jornalismo Científico também encontra-se em crise. No Brasil, quem mais consistentemente vem trabalhando nesta linha é Cremilda Medina, coordenadora de um amplo projeto realizado desde 1990, a partir da Escola de Comunicações e Artes da USP, que já produziu três volumes, nos quais perpassam abordagens sobre o Jornalismo Científico.8 7 - ROQUEPLO, Philippe. El reparto del saber - Ciencia, cultura, divulgación. Buenos Aires: Gedisa, 1983, 195 p. (Colección Limites de la Ciencia). 8 - MEDINA, Cremilda (Org.). Anais do 1º Seminário Transdiciplinar A crise dos Para- digmas. São Paulo: ECA/USP, 1990-91. 205 p.; GRECO, Milton; MEDINA, Cremilda (Org.). 19 Uma integrante da equipe do projeto “O Discurso Fragmentalista da Ciência e a Crise dos Paradigmas”, coordenado por MEDINA, resume bem esta linha de trabalho acadêmico com o seguinte juízo sobre o Jornalismo Científico: “O que o Jornalismo Científico brasileiro ainda não aprendeu foi polemizar o produto da ciência e dos cientistas, porque transformou a primeira em espetáculo e os segundos em donos da verdade, esquecendo-se da postura crítica que a imprensa deve ter, assim como da postura dialógica diante do conhecimento e da ciência clássica, na tentativa de ampliar e contextualizar cada nova descoberta.”9 No contexto deste panorama, sumariamente relatado, cremos que é correto situar nossa pesquisa no âmbito da análise qualitativa, apoiada claramente na verificação do conteúdo do corpus (descrito em 1.4). 1.3 - Metodologia O problema central da nossa pesquisa é verificar como a atividade científica é apresentada ao público leigo, sob a forma de texto jornalístico publicado em jornal. Para dar conta desta tarefa, foi escolhido um fato composto dos ingredientes típicos do trabalho científico, acompanhado atentamente durante semanas pela Imprensa. Do Hemisfério Sol: projeto O discurso fragmentalista da Ciência. São Paulo: ECA/USP : CNPq, 1993, 174 p. (Novo Pacto da Ciência, 2); GRECO, Milton; MEDINA, Cremilda (Org.). Saber Plural: o discurso fragmentalista da ciência e a crise de paradigmas. São Paulo: ECA/USP : CNPq, 1994. 248 p. (Novo Pacto da Ciência, 3). 9 - SILVEIRA, Santa Maria N. Abalos na concepção racionalista. In: Saber Plural: o dis- curso fragmentalista da ciência e a crise de paradigmas. Organizado por Cremilda Medina. São Paulo: ECA/USP : CNPq, 1994. 248 p. (Novo Pacto da Ciência, 3). 20 A análise de conteúdo empreendida no Capítulo 3 - item 3.1 compõe-se da identificação dos diversos argumentos presentes em cada um dos textos publicados nos quatro jornais selecionados. A partir deste conhecimento sistematizado buscamos demonstrar se a Imprensa (ainda que inconscientemente...) vai ao encontro das recomendações defendidas para o Jornalismo Científico, identificadas em autores que têm procurado estabelecer a trilha pela qual deveria seguir este ramo de especialização jornalística. Nosso projeto inicial, aperfeiçoado em sucessivas revisões (produzidas à medida em que se agregavam novos informes provenientes de leituras e/ou realização de disciplinas), previa buscar respostas para várias hipóteses, posteriormente reduzidas a três, conforme expostas no Relatório destinado ao exame de qualificação, realizado dia 10 de outubro de 1995. Com as produtivas observações feitas por membros da banca examinadora, a partir daquela data consolidamos nossas hipóteses em duas, uma principal (H. 1) e uma secundária (H. 2). Nossa H. 1 tem a seguinte formulação: Os textos publicados no Brasil sobre o tema “fusão a frio” nos quatro jornais considerados representativos da grande imprensa correspondem às características modelares indicadas na literatura sobre o Jornalismo Científico. Como se vê, para encontrar respostas visando a corroborar ou contestar a Hipótese 1, é necessário primeiramente identificar as recomendações mais evidentes, sob a ótica de alguns autores, para a prática mais adequada do Jornalismo voltado para a Ciência e a Tecnologia. Isto é feito em 3.1 - Análise Qualitativa. Nossa H. 2, uma hipótese secundária, mas bastante instigante, tem a seguinte formulação: 21 Os textos jornalísticos são capazes de propiciar, em sentido geral, uma visão abrangente sobre o processo de desenvolvimento do trabalho científico. Deve-se considerar, desde já, uma peculiaridade do material analisado: ele compõe um núcleo temático único, desenvolvido ao longo de quase 100 dias. É de se supor que, diferentemente da abordagem jornalística mais ligeira, nas quais a suíte, quando existente, se limita a duas ou três seqüências, aqui tenha havido a oportunidade de o Jornalismo Científico materializar todas aquelas aspirações dos que esperam vê-lo cumprindo um papel social mais amplo. 1.4 - Corpus A matéria-prima para análise foi retirada de quatro jornais brasileiros: Folha de S. Paulo, O Estado de S. Paulo, Jornal do Brasil e O Globo. A escolha destes jornais originou-se dos seguintes fatores: Dois jornais têm sede no Rio de Janeiro (O Globo e Jornal do Brasil) e dois (Folha de S. Paulo e O Estado de S. Paulo) têm sede em São Paulo, estados nos quais mais ativamente se desenvolveram esforços para reproduzir o experimento da fusão a frio. Considerando o critério jornalístico de proximidade, era de se esperar que estes jornais se dedicassem a acompanhar o assunto, como de fato o fizeram. Os quatro jornais são unanimemente apontados como integrantes do primeiro time da imprensa diária no Brasil. São periódicos de larga influência, têm tiragens altas para os padrões brasileiros (entre 400 mil e 1 milhão de exemplares, considerando as tiragens dominicais) e em seus quadros encontram-se os melhores profissionais da Imprensa. Os quatro jornais dedicam espaço regular a assuntos de Ciência e Tecnologia. Na época em questão, março a junho de 1989, três deles manti- 22 nham editorias especializadas no assunto (Jornal do Brasil, O Estado de S. Paulo e Folha de S. Paulo). Este último, em 31 de março de 1989, lançou um caderno semanal dedicado à Ciência e Tecnologia, com circulação às sextas-feiras. Sintomaticamente, em texto publicado no dia 30 de março (p. A-4) - “Com três novos suplementos, a Folha avança para atender melhor o leitor” - a editora responsável pelo caderno Ciência, Laura Capriglione, afirmava: “A idéia é mostrar a aventura intelectual, a disputa das equipes de pesquisa para chegarem antes das outras, a concorrência”. Dos quatro jornais, O Globo era o único que não tinha uma editoria denominada especificamente de Ciência e Tecnologia. Mantinha um enclave vinculado à editoria Internacional, situação ainda hoje existente. Fixamo-nos neste tipo de meio impresso, deixando de lado o material jornalístico veiculado em televisão ou em revistas considerando que a análise e as conseqüentes conclusões estarão circunscritas a um dado meio (no caso jornais e, dentre estes, os quatro escolhidos), numa dada circunstância (um fato único, replicado em diversos textos num período de tempo). O material jornalístico que constitui o corpus principal de análise na dissertação encontra-se a seguir apresentado em ordem cronológica, no período de 24 de março a 30 de junho de 1989. Para definir este período, consideramos as indicações obtidas em exaustivo levantamento realizado na Divisão de Periódicos da Biblioteca Nacional, quando comprovamos que a partir de julho de 1989 o tema “fusão a frio” deixou de ter continuidade sistemática, reaparecendo apenas de modo espasmódico. O levantamento em cada edição constou de uma minuciosa varredura em todas as páginas, não se circunscrevendo apenas às páginas consagradas aos temas científicos. Isto possibilitou descobrir a presença do assunto fusão a frio, por exemplo, em seção dedicada a temas econômicos ou em editoriais, o que expressa a importância do mesmo, naquele momento. 23 O conjunto de textos se compõe da seguinte maneira: Folha de S. Paulo Foram identificados 68 textos, assim classificados: Chamada de 1ª página = 7 Matéria principal = 21 Retranca = 17 Ilustração = 4 Ilustração em 1ª página = 2 Editorial = 0 Artigos opinativos = 4 Pequena nota = 19 O Estado de S. Paulo Foram identificados 45 textos, assim classificados: Chamada de 1ª página = 2 Matéria principal = 29 Retranca = 12 Ilustração = 4 Ilustração em 1ª página = 0 Editorial = 1 Artigos opinativos = 1 Pequena nota = 0 Jornal do Brasil Foram identificados 56 textos, assim classificados: Chamada de 1ª página = 8 Matéria principal = 25 Retranca = 22 Ilustração = 5 24 Ilustração em 1ª página = 0 Editorial = 0 Artigos opinativos = 0 Pequena nota = 1 O Globo Foram identificados 55 textos, assim classificados: Chamada de 1ª página = 3 Matéria principal = 26 Retranca = 21 Ilustração = 2 Ilustração em 1ª página = 0 Editorial = 4 Artigos opinativos = 1 Pequena nota = 0 Considerando o objetivo da pesquisa, a análise de conteúdo será empreendida sobre todo o conjunto e não apenas sobre uma amostragem dos textos identificados, conforme se especifica no item “Metodologia”. A seqüência de apresentação dos textos obedece sempre à seguinte ordem de entrada: Folha de S. Paulo (FSP); O Estado de S. Paulo (OESP); Jornal do Brasil (JB) e O Globo. Títulos assinalados com (**) são aqueles editados em primeira página (da edição ou de caderno); (*) indica a matéria principal na edição; (#) refere-se a retrancas da matéria principal; (+) indica ilustrações com legendas explicativas; (++) indica ilustrações com legendas explicativas em chamadas de primeira página (da edição ou de caderno); (-) refere-se a editoriais; (=) são artigos opinativos ou interpretativos, assinados; (/) indica pequena nota. 25 Textos em ordem cronológica: 24.março.1989 OESP (p.9) * Cientistas anunciam fusão atômica barata + Sol de proveta O GLOBO (p.13) * Ciência aprisiona em proveta energia do Sol 25.março FSP (primeira página) ** Cientistas obtêm energia com fusão nuclear de baixo custo ++ O experimento de Utah (p. C-6) *Fusão nuclear em equipamento caseiro alvoroça cientistas # Experimento revoluciona a área # Pesquisadores usaram verba própria para pagar custos da experiência # Principal vantagem do método é a ausência de resíduos poluentes JB (p. 5) * Fusão nuclear barata é vista com ceticismo O GLOBO (p. 14) * Fusão nuclear em proveta divide cientistas # Num pequeno sótão, o sonho de reproduzir a energia solar 26.março FSP (p. C-7) * Informações sobre nova técnica de fusão omitem dados fundamentais OESP (p. 17) * Fusão nuclear barata recebida com descrença 29.março JB (p. 6) * Holanda repete experiência de fusão nuclear sem êxito # Uma energia não poluente e ilimitada 26 30.março FSP (p. C-5) * Cientista norte-americano contesta experiência da fusão nuclear barata # Vários tentam repetir 31.março FSP (p. G-6) / Fusão nuclear-1 (nota) / Fusão nuclear-2 (nota) 01.abril FSP (p. C-4) * USP quer água pesada argentina para repetir experimento de fusão OESP (p. 11) * Brasil tentará repetir fusão de núcleos a frio # Processo é o do sol e da bomba JB (p. 6) * Físico da USP propõe repetir experiência para a fusão nuclear # (sem título) 02.abril FSP (primeira página) ** Físicos húngaros obtêm sucesso na fusão atômica (p. A-20) * Cientistas na Hungria fazem fusão nuclear 03.abril O GLOBO (p. 10) * Fusão nuclear a frio é conseguida mais uma vez # Brasil pesquisará o novo processo de produção de energia 05.abril OESP (primeira página) ** São Paulo realizará fusão nuclear a frio 27 (p. 9) * Ipen começa a tentar fusão nuclear a frio # Da alquimia à mecânica quântica # A mágica de juntar átomos 06.abril OESP (p. 17) * Polônia repete a fusão a frio JB (primeira página) ** Fusão nuclear (p. 8) * Inpe tenta reproduzir pesquisa sobre a fusão nuclear a frio # Experiência é feita em 12 centros 07.abril FSP (primeira página) ** Nova fusão nuclear é um desafio para a física (p. G-1) * Pesquisadores caçam partículas para comprovar método de fusão nuclear # Água pesada já foi obtida até por contrabando # Artigo circula em uma cópia “clandestina” + Temperaturas máximas obtidas em laboratório OESP (p. 10) * Revista antecipa edição e desvenda fusão a frio # Falta verba para tentativa carioca 08.abril FSP (p. A-11) / Fusão (nota) OESP (p. 10) * Detector fará prova final de fusão nuclear 09.abril 28 OESP (p. 23) = Fusão a frio é tão boa que cientistas desconfiam JB (p.16) * Anúncio de fusão nuclear fria reforça tese de físicos do Rio # Italianos opinam com cautela # Tentativas começaram há 42 anos 11.abril FSP (p. A-10) * Texas anuncia ter conseguido fusão a frio OESP (p. 12) * Texas confirma fusão a frio + Como a matéria vira energia JB (primeira página) ** Cientistas repetem a fusão nuclear (p. 8) * Cientistas repetem com êxito fusão nuclear em laboratório # A energia nasce num copo d’água # É possível que tudo seja só um sonho + Reação química + Fissão nuclear + Fusão nuclear O GLOBO (p. 15) * Fusão a frio pode ter sido mera reação química 12.abril OESP (p. 12) * Geórgia acha o nêutron da fusão a frio JB (p. 12) * Evidência de fusão nuclear surge em nova experiência # Pesquisa brasileira já começou O GLOBO (p. 13) * Descobridor da fusão a frio some para pesquisar 13.abril 29 FSP (p. C-5) * Falta apenas um equipamento para USP conseguir a fusão a frio JB (p. 8) * Cientistas se reconciliam mas disputam paternidade da fusão # Pons e Jones atiçam velha rivalidade # Experiência será tentada no Rio # (sem título) O GLOBO (p. 15) * URSS repete com êxito a experiência de fusão a frio 14.abril FSP (p. G-6) / Fusão nuclear-1 (nota) / Fusão nuclear-2 (nota) / Fusão nuclear-3 (nota) / Fusão nuclear-4 (nota) JB (p. 7) ** MIT solicita patente de teoria da fusão a frio # Westinghouse faz contrato O GLOBO (p. 14) * Fusão a frio faz preço do paládio disparar # MIT requer patente de primeiro estudo 15.abril FSP (p. C-4) * Fusão a frio começa a ser tentada no Inpe OESP (p. 9) * Brasil entra na confusão a frio JB (p. 6) * Brasil começa segunda tentativa de repetir fusão nuclear a frio # Cientistas da Geórgia admitem novas dúvidas O GLOBO (primeira página) ** Inpe realiza experiência no Brasil de fusão a frio 30 (p. 6) * Brasil tenta fusão nuclear em temperatura ambiente # Uma importante alternativa para a produção de energia 16.abril OESP (p. 3) - O problema da fusão a frio (editorial) JB (primeira página) ** Fusão nuclear (p. 12) * Cientista acha que fusão fria pode subverter Física # Quinze mil anos sem crise de energia # Uso como arma começou em 1952 + A fusão a frio O GLOBO (p. 32) * Em todo o país, a busca da fusão a frio # Nos EUA, surpresa e incredulidade # Paládio, platina, água pesada e lítio. Aí começa a reação + O processo da fusão a frio 17.abril O GLOBO (p. 10) * Fusão a frio já atrai grandes empresas # URSS obtém êxito com novo método # Ciência apóia produção de água pesada - Revolução a caminho (mini-editorial) 18.abril FSP (p. C-5) * Experimento mostra os primeiros indícios de fusão nuclear a frio OESP (p. 10) * País pode ter fusão a frio amanhã JB (p. 7) * Falta de luz atrasa teste de fusão no Ipen # (sem título) 31 O GLOBO (p. 13) * Fusão a frio no Inpe começa a dar resultado # Produção de água pesada no Brasil surpreende EUA # Italianos realizaram com êxito a experiência # Americanos descrêem da descoberta 19.abril FSP (primeira página) ** USP reproduz fusão nuclear a frio ++ Como é a experiência (p. C-1) * USP e Ipen vencem corrida da fusão nuclear a frio no Hemisfério Sul # As dúvidas # Cientistas brigam pela autoria da descoberta # Italianos usam titânio para repetir a experiência OESP (primeira página) ** Brasileiros refazem fusão nuclear a frio (p. 9) * Brasil repete reação de fusão a frio # Utah anuncia fim da caça aos nêutrons # Inpe divulgará seu resultado 6a. Feira # Itália segue caminho original + Quem já fez a fusão a frio JB (primeira página) ** Cientistas obtêm fusão em São Paulo (p. 12) * Físicos da USP repetem fusão fria mas medem poucos nêutrons # Inpe está perto de obter sucesso # Italianos usam novo método O GLOBO (primeira página) ** Físicos de São Paulo conseguem fusão a frio (p. 15) * Ipen anuncia ter obtido fusão a frio # Experiência traz risco de explosão # Cientistas de 3 países repetem a experiência - Sem comparar (mini-editorial) 32 (p. 19) = A confusão nuclear (Joelmir Beting) 20.abril FSP (p. C-1) ** No Rio, equipe tenta avançar na fusão fria (p. C-3) * No Rio, cientistas tentam avançar na fusão nuclear fria OESP (p. 14) * Física de plasma está ameaçada # Alvo da caçada é agora o hélio-4 JB (primeira página) ** Stanford obtém evidência de fusão a frio (p. 6) * Stanford reforça a hipótese da fusão # Patente O GLOBO (p. 17) * Inpe passa a nova etapa da fusão nuclear # Nova experiência dissipa as dúvidas # Italianos combinam dois procedimentos 21.abril FSP (primeira página do Caderno Ciência) ** Fusão nuclear (p. G-3) * Instituto espacial consegue melhores dados de fusão nuclear # Dois picos de emissão # Depósito de lixo fornece material dos instrumentos # Revista ‘Nature’ exige correções para publicar artigo de dupla pioneira # Empresas particulares participam de construção de usina de água pesada # Utah planeja construção de reator # Como se obtém água pesada + Dez vezes mais nêutrons + Os principais laboratórios que fizeram o experimento 33 (p. C-4) * UFRJ também consegue obter a fusão nuclear OESP (p. 12) * Rio tem planos de inovar fusão a frio JB (primeira página) ** Fusão a frio (p. 15) * Pouca informação traz ceticismo sobre fusão # Experiência foi repetida no Rio O GLOBO (p. 14) * Rio consegue a fusão nuclear a frio # Na China, fracasso. E cientistas estão céticos # Índia também repete com êxito a experiência 22.abril FSP (p. C-3) * Brasil consegue prova de fusão nuclear a frio OESP (p. 10) * Brasil aprimora medidas da fusão JB (p. 6) * Cientistas do Inpe medem hélio-3 e comprovam fusão O GLOBO (p. 14) * Experiência põe em dúvida fusão a frio - Papai, compra paládio? (Mini-editorial) # Para alemães, químico descobriu a técnica em 1823 # PUC tenta repetir o modelo italiano # Pesquisadores brasileiros querem combinação de esforços 23.abril FSP (p. C-6) * Instituto aperfeiçoa medições para avaliar resultados da fusão a frio JB (primeira página) 34 ** Fusão limpa (p. 25) * Fusão não traz poluição O GLOBO (p. 31) * Revelado segredo da água pesada brasileira 25.abril O GLOBO (p. 15) * Brasil planeja reator que usará fusão a frio # Pioneiros tentarão produzir mais energia 27.abril FSP (p. A-12) * Pioneiros da fusão fria pedem US$25 milhões ao Congresso OESP (p. 12) * Utah anuncia uso comercial da fusão O GLOBO (p. 21) * Pioneiros da fusão a frio fazem novos testes para prova método 28.abril FSP (p. G-6) / Fusão nuclear-1 (nota) / Fusão nuclear-2 (nota) (p. G-4) = Físicos se comportam como galinhas (Rogério C. C. Leite) OESP (p. 9) * Linus Pauling duvida da fusão nuclear a frio # Jones diz que fusão ocorre naturalmente JB (p. 6) * Pauling sugere que energia da fusão fria é apenas sonho 29.abril 35 OESP (p.14) * Ciência dribla burocracia JB (p. 7) * Cientistas acham que fusão exige condições adequadas 2.maio FSP (primeira página) ** EUA fracassam ao tentar nova fusão nuclear a frio (p. A-10) * Pesquisadores dos EUA duvidam de fusão a frio O GLOBO (p. 14) * Cientistas do MIT rejeitam a teoria da fusão a frio + A técnica de Pons e Fleischmann 3.maio FSP (p. A-11) * Universidade pioneira acha ‘elitista’ crítica à fusão fria OESP (p. 12) * Físicos dos EUA contestam fusão a frio JB (p. 9) * Cientistas nos EUA acham que fusão a frio é perda de tempo # Utah vê interesse financeiro em críticas O GLOBO (p. 19) * Utah reage a cientistas que criticam fusão a frio 4.maio FSP (p. A-14) / Fusão a frio (nota) OESP (p. 16) * Físicos sepultam fusão a frio O GLOBO (p. 17) * Americanos consideram encerrada a experiência da fusão a frio 36 5.maio FSP (p. G-6) / Fusão nuclear-1 (nota) / Fusão nuclear-2 (nota) (p. G-3) = Conseqüências do cacarejo científico (Rogério C. C. Leite) 6.maio O GLOBO (p. 16) - Humildade (editorial) 7.maio JB (p. 13) * Ciência demora a aceitar novas idéias # Uma fusão de erros e enganos + Sem título 9.maio OESP (p. 10) * ‘Nature’ ganha prestígio ao duvidar da fusão a frio 10.maio JB (p. 9) * Fleischmann e Pons defendem a fusão fria O GLOBO (p. 19) * Criadores da fusão a frio rebatem críticas 11.maio O GLOBO (primeira página) ** Descobridor da fusão nuclear a frio admite que houve erro no gráfico que indicava emissões de nêutrons O GLOBO (p. 23) * Descobridor da fusão a frio admite erro 37 12.maio FSP (p. G-5) = Controvérsia na fusão fria é emocional e pouco científica (Pinguelli Rosa) + Duas fontes de energia (p. G-6) / Fusão nuclear (nota) OESP (p. 9) * Fleishmann admite que não mediu os nêutrons O GLOBO (p. 18) * Autores da fusão a frio farão teste de confirmação 13.maio OESP (p. 9) * Fusão foi química, diz Pauling 14.maio FSP (p. A-12) * Ganhador de prêmio Nobel nega que fusão fria seja reação nuclear # Carta de 1985 estava errada OESP (p. 27) * Fleischmann e Pons são gênios, mas sem cautela 19.maio FSP (p. G-6) / Fusão nuclear-1 (nota) / Fusão nuclear-2 (nota) (p. G-4) = Observações sobre a fusão a frio (Rogério C. C. Leite) 20.maio OESP (p. 10) * Autor diz que não crê mais em fusão a frio 24.maio 38 FSP (p. A-12) * Grupo do Texas confirma fusão fria em palestra JB (p. 14) * Fusão fria é debatida outra vez O GLOBO (p. 20) * Fusão a frio volta a ser debatida por cientistas 25.maio JB (p. 7) * Novos testes não confirmam fusão a frio O GLOBO (p. 15) * Descobridor admite que fusão a frio é ineficaz 27.maio FSP (p. A-12) / Fusão nuclear-1 (nota) / Fusão nuclear-2 (nota) JB (p. 7) / Fusão (nota) 4.junho FSP (p. A-12) * Físicos japoneses dizem ter feito a fusão a frio 5.junho JB (p. 13) * Japão repete a experiência da fusão nuclear 11.junho FSP (p. A-14) * Centro de pesquisa de Utah confirma fusão nuclear fria 39 15.junho OESP (p. 15) * Fusão a frio sofre novo revés 23.junho FSP (p. G-6) / Fusão fria (nota) 24.junho OESP (p. 24) * Europa lidera a fusão a sério # USP faz pesquisas básicas desde 79 28.junho OESP (p. 11) * Cientistas obtêm trítio em fusão a frio 30.junho FSP (p. G-6) / Fusão fria (nota) 40 PARTE 2 CAPÍTULO 1 CIÊNCIA E COMUNICAÇÃO 1.1 - Ciência e Sociedade As características predominantes da civilização do Ocidente a partir do século XVII apontam para a ascensão da burguesia comercial e o início do que se convencionou chamar “Ciência Moderna”, que tem em Galileu Galilei (1564-1642) e Isaac Newton (1642-1727) dois expoentes de referência obrigatória. No século XVII, a Ciência deixa de ser apenas filosófica e, em grande parte, praticada por amadores diletantes, para se transformar em força produtiva. A Ciência passa a se articular com interesses econômicos gerais e irá crescer e se consolidar simultaneamente com o Capitalismo. Os conhecimentos acumulados a partir da Baixa Idade Média, encontrariam do século XVII em diante as condições adequadas para seu aproveitamento e consolidação social e econômica. A navegação, a construção crescente de instrumentos óticos, o desenvolvimento da indústria de relógios, são apenas alguns dos itens da pauta econômica que iriam utilizar a Ciência para expandir-se e, simultaneamente, gerar novas demandas a serem correspondidas. Ben-David10diz que “o aspecto mais evidente da transformação que ocorreu no movimento científico no norte da Europa foi que, aí, a ciência se tornou um elemento central na concepção emergente de progresso.”11 10 - BEN-DAVID, Joseph. O papel do cientista na sociedade: um estudo comparativo. Trad. Dante Moreira Leite. São Paulo: Ed. Pioneira; Ed. da Universidade de São Paulo, 1974. 281p. 41 Desde então, a Ciência passa a ser uma atividade social, realizada de acordo com princípios, regras, fundamentos e leis que, gradativamente, seriam aceitos universalmente. Surgem instituições com o objetivo de reunir cientistas, originando as “comunidades científicas”, isto é, “grupo que tenta comportar-se como se seguisse um paradigma comumente aceito e estável”, conforme Ben-David.12 A primeira sociedade da Europa - a Accademia dei Lincei - foi criada em 1603, na Itália. Galileu foi um dos seus mais proeminentes membros, nela ingressando em 1611. A Royal Society, fundada em Londres em 28 de novembro de 1660, foi reconhecida oficialmente em 1662. A Academia de Ciências de Paris foi criada em 1666. A Academia de Berlim é de 1700. 1.2 - Valores, Normas e Práxis da Ciência Os cientistas se movem num complexo de valores e normas que constitui o ethos da Ciência. O termo é entendido como adequado para designar o caráter cultural e social de um grupo ou sociedade.13 MERTON14, em artigo de 1942, aponta quatro imperativos institucionais que formam o ethos da ciência moderna: universalismo, comunismo, desinteresse e ceticismo. O universalismo diz respeito ao “cânon de que as pretensões à verdade, quaisquer que sejam suas origens, têm que ser submetidas a critérios 11 - Opus cit. p. 97. 12 -Opus cit. p. 98. 13 - Conforme verbete Ethos: Dicionário de Ciências Sociais, FGV e MEC, Rio de Janei- ro: 1987. p. 433. 14 - MERTON, R. K - Os imperativos institucionais da Ciência. In: Jorge Dias de Deus (org.). A crítica da ciência: sociologia e ideologia da ciência. Rio de Janeiro : Zahar Editores, 1974, 240p. p. 38-52. 42 impessoais preestabelecidos (grifo do Autor): devem estar em consonância com a observação e com o conhecimento já previamente confirmado.”15 Por “comunismo” - no sentido não-técnico e amplo de propriedade comum dos bens - entende-se que “as descobertas substantivas da ciência são produtos da colaboração social e estão destinados à comunidade”.16 Outro elemento institucional básico que integra o ethos da Ciência é o desinteresse que, na prática, “é firmemente apoiada pela necessidade que os cientistas têm, mais cedo ou mais tarde, de prestar contas perante os seus colegas.”17 O quarto elemento apontado por MERTON é o “ceticismo organizado”, que se inter-relaciona de diversas maneiras com os outros elementos do ethos. “A ciência, que coloca questões de fato, incluídas as potencialidades, concernentes a todos os aspectos da natureza e da sociedade, pode entrar em conflito com outras atitudes em relação a esses mesmos dados que foram cristalizados e, amiúde, ritualizados por outras instituições.”18 A questão é abordada também por BUNGE19, ao afirmar que “o pesquisador científico autêntico e produtivo incorpora aos seus hábitos e atitudes valores e normas de comportamento - é o ethos científico.” De acordo com este Autor, integram o ethos científico os seguintes aspectos: a) O culto à busca de verdade 15 - Opus cit. p. 41. 16 - Opus cit. p. 45. 17 - Opus cit. p. 50. 18 - Opus cit. p. 51. 19 - BUNGE, Mário. Ciência e desenvolvimento. Trad. Cláudia Reis Junqueira. Belo Ho- rizonte : Ed. Itatiaia; S. Paulo : Ed. da Universidade de São Paulo, 1980 (Coleção o homem e a ciência, v. 11). 43 O cientista não está obrigado a se ater às (pretensas) verdades existentes, mas a buscar novas verdades. b) Preocupação com a comprovação É preciso testar empiricamente toda hipótese e teoria. BUNGE lembra que o leigo tende a apoiar-se na autoridade e não na experiência, ou na experiência comum, não crítica - à qual podemos chamar por senso comum - ao invés da experiência controlada. c) Independência de opinião A pesquisa científica é uma busca original, isto é, uma pesquisa de problemas não resolvidos. O cientista toma suas próprias decisões, desde a escolha do problema até a maneira de constatar a solução proposta e avaliar a perda ou ganho de informação que tal solução possa trazer ao conhecimento. BUNGE diz que “os submissos, os expositores e comentaristas [grifo nosso] só podem ser úteis como auxiliares.”20 d) Disposição para aceitar correções e, inclusive, sair em busca delas. Os cientistas sabem que toda idéia extremamente original é recebida com ceticismo e, às vezes, até com hostilidade aberta. e) Honestidade A comunidade científica é um sistema muito integrado, onde cada um examina com olho crítico os demais, pronto a aprender ou ensinar, cooperar ou competir. Os pesquisadores não são santos sem ambições, mas sabem que a fraude e o plágio são descobertos e punidos. Além desses aspectos éticos, na concepção de BUNGE uma filosofia da Ciência deve contemplar também uma Ontologia, ou teoria da realidade, e uma Gnosiologia, ou teoria do conhecimento. 20 - Opus cit. p. 100 e 101. 44 Com relação à Ontologia, para BUNGE os princípios básicos, ou conceitos, ou suposições ontológicas que motivam, justificam ou dirigem a pesquisa científica podem ser assim descritos: 1. Existe um mundo exterior para o sujeito que conhece. Por isto, tentamos descobrir o desconhecido além do eu. 2. O mundo é composto de coisas concretas. Daí as ciências (naturais ou sociais) estudam coisas, suas propriedades e mudanças. 3. As formas são propriedades das coisas. Toda propriedade é propriedade de alguma coisa. Examinando coisas, os cientistas estudam e modificam as propriedades. 4. As coisas se agrupam em sistemas; ou em grupos compostos por coisas que atuam entre si. Uma coisa é sempre componente de um sistema, exceto o universo, que é o sistema máximo. 5. Todo sistema, exceto o universo, interagem em alguns aspectos com outros sistemas e está isolado de outros, em outros aspectos. Se não houvesse esse isolamento relativo, os cientistas seriam forçados a conhecer o todo, antes de conhecer qualquer uma de suas partes. 6. Todas as coisas mudam. No decorrer das interações entre coisas, tuda muda, ou acaba mudando em algum aspecto. 7. Nada provém do nada e coisa alguma se reduz a nada. Isto é o que motiva o esforço científico para descobrir a origem de coisas novas e os vestígios deixados pelas que já não mais existem ou foram transformadas. 8. Todas as coisas obedecem a leis. As leis naturais ou sociais são relações invariáveis entre propriedades e são tão objetivas quanto elas. 9. Há diversos tipos de lei. Há leis predominante causais e leis estocásticas, assim como leis que reúnem esses dois modos. 10. Há diversos tipos de organização, como os níveis físico, químico, biológico, social, técnico etc. 45 Com referência à Gnosiologia inerente à pesquisa científica, BUNGE indica os seguintes aspectos: A) O conhecimento factual - isto é, de coisas concretas - é obtido combinando a experiência com a razão. A Ciência é o oposto da “ciência oculta”. Embora a maioria dos trabalhos científicos sejam entendidos só pelos especialistas, “em princípio qualquer pessoa que se interesse por eles poderá entendê-los, se puder obter os meios necessários em fontes acessíveis ao público.”21 B) Todo processo de conhecimento consiste em lidar com problemas. Os cientistas procuram problemas, apresentam e tentam resolvê-los com a ajuda do conhecimento existente ou mediante conhecimentos novos, mas sempre sob a luz da razão e da experiência. C) Toda solução proposta para um problema relativo ao conhecimento deveria poder ser comprovável de alguma maneira objetiva. A mera compatibilidade com as crenças existentes não é suficiente com o mecanismo de comprovação científica. D) O conhecimento factual pode ser obtido pela observação, medição ou experimentação. A condição fundamental é que cada uma dessas operações empíricas seja formulada e controlada, e não realizada de modo casual ou esporádica. E) Os processos mentais que ocorrem durante a execução de operações empíricas destinadas a obter conhecimento factual não exercem influência direta sobre nenhuma coisa externa, especialmente sobre os instrumentos de observação. Se isto ocorresse, os experimentos não valeriam nada, já que os experimentadores poderiam forçar os instrumentos a assinalar os valores que mais conviessem às suas hipóteses. 21 - Opus cit. p. 98. 46 F) O conhecimento factual é parcial ao invés de total, porém é possível de aperfeiçoamento. Em Ciência, a regra é a verdade parcial e temporária. Mesmo os dados mais exatos podem ser aperfeiçoados e as melhores teorias podem ser aprimoradas ou substituídas por outras melhores. G) O conhecimento factual pode progredir tanto gradualmente como aos saltos. O progresso do conhecimento, sempre temporário e sujeto a revisão, não é puramente acumulativo nem uma sucessão de revoluções, em que cada uma delas destrói o avanço anterior. H) O conhecimento científico, longe de ser direto e visual, é indireto e simbólico. Esta característica é fundamental quando se estuda a mediação jornalística interposta entre o acontecimento científico e os destinatários de sua mensagem. O jornalista irá sempre se basear em uma fonte explicativa (verbal ou documental, sendo esta em si mesma, normalmente, um texto de divulgação e não o texto científico propriamente dito) e não nos dados de registro e análise do cientista ou na experiência em si realizada. “As hipóteses e teorias científicas mais poderosas contêm conceitos não observáveis (tais como os de massa, campo, tensão, mutação genética, viabilidade, classe social e estabilidade política) e são formuladas em termos matemáticos (não necessariamente quantitativos). E os dados empíricos mais apurados contêm conceitos teóricos e são produzidos com a ajuda de teorias utilizadas na formulação e interpretação de medições e experimentos.”22 I) A meta final da pesquisa científica é descobrir as regras (leis) da realidade e utilizá-las para explicar, predizer ou relatar os fatos. 22 - Opus cit. p. 99. 47 Se a pesquisa se limitasse a registrar dados, não haveria necessidade de teorias. De outro lado, se não houvesse teorias, os dados seriam inexatos ou superficiais. Só as teorias permitem fazer observações, medições e experimentos capazes de produzir dados que ultrapassam a experiência rotineira. J) As melhores teorias científicas são as que combinam amplitude e profundidade, assim como verdade (aproximada) e compatibilidade com outras teorias em um mesmo campo de pesquisa ou em campos afins. Os melhores dados são os que servem para enriquecer ou pôr à prova as melhores teorias existentes, ou para estimular pesquisas que se proponham a produzir melhores teorias. Este quadro traçado por BUNGE não pode ser desvinculado do contexto no qual os atores da Ciência desenvolvem suas atividades. CHRÉTIEN adverte que “a Ciência não goza de nenhuma extraterritorialidade com relação à sociedade que a produz e a usa. Ela é uma entre outras atividades sociais, integrada ao funcionamento e ao equilíbrio da vida coletiva; ela é mesmo, (...) a expressão de um determinado tipo de sociedade, e seria no mínimo ingênuo confiná-la num gueto ideal, penhor de sua pureza.”23 Também de CHRÉTIEN é a seguinte observação: “...as pesquisas não são atividades puramente espirituais e desencarnadas, elas se inserem nas estruturas de financiamento e difusão, moldam-se nas formas da divisão do trabalho e da competição, curvam-se às normas de controle e produtividade, entram em concorrência e em relação com as outras atividades sociais, técnicas, econômicas, políticas, culturais, etc.”24 Para CHRÉTIEN, “Na realidade, como meio ambiente, a sociedade fornece aos pesquisadores o viveiro no qual eles vão se alimentar. Eles en23 - CHRÉTIEN, Claude. A ciência em ação: mitos e limites. Trad. Maria Lúcia Pereira. São Paulo: Papirus, 1994, p. 78. 24 - Opus cit. p. 78 e 79. 48 contram nela e em sua cultura suas regras, seu código, seus valores, as analogias que alimentam a invenção, as metáforas que sustentam a vulgarização, as imagens que dão inteligibilidade aos conceitos e modelos. A ciência acha-se assim investida pela ideologia [grifo do Autor], se entendermos, por esta palavra, os reflexos, dentro da ordem do conhecimento, de valores ou de princípios sociais.”25 Entendemos que o processo científico, no sentido que tem a expressão em nossa Hipótese nº 2, inclui todos esses aspectos salientados por Chrétien, sendo de se esperar que - pelo menos numa cobertura mais ampla de um fato científico - eles apareçam no noticiário. Sob este aspecto, cabe lembrar MELO26, quando registra três características funcionais do Jornalismo Científico, dentre elas a de, erroneamente, incorporar o mito da neutralidade científica, ao manejar fatos e não processos (grifos do Autor). 1.3 - Comunicação Científica A atividade científica encontra no registro documental sua expressão mais concreta e universal. Trata-se de um procedimento cujo símile anterior foram as célebres correspondências, copiadas de forma manuscrita, com o objetivo de permitir a um círculo restrito inteirar-se de determinada experiência ou observação. Atualmente, o registro documental não se faz mais somente na forma impressa convencional, mas também na forma eletrônica, que propicia ao artigo a possibilidade de mais rápida circulação entre seus destinatários. 25 - Opus cit. p. 79. 26 - MELO, José Marques de. Impasses do jornalismo científico - notas para o debate. In: Comunicação e Sociedade, ano IV, n. 7, p. 19-24. Março de 1982. 49 “Sem comunicação não há Ciência” é um axioma integrado à própria atividade científica, motivador da produção dos artigos científicos, a mais ambicionada forma de comunicação no mundo acadêmico. Diz CASTRO: Na maior parte das áreas do conhecimento, os artigos em periódicos científicos correspondem à maneira usual de comunicar resultados. Particularmente nas ciências naturais, quase tudo o que se pode considerar produção científica materializa-se em artigos.”27 Os artigos científicos constituem a matéria-prima essencial para a produção de periódicos científicos, de circulação restrita aos iniciados, segmentados por áreas de especialização científica, que não devem ser confundidos com os periódicos de divulgação científica, cuja função primordial, em tese, é atender ao não-iniciado. HERSCHMAN28afirma que o periódico científico tem três funções básicas: a) é um meio de registro oficial e público da informação; b) atual como meio de disseminação da informação; c) como instituição social, atribui prestígio e reconhecimento aos autores e demais pessoas envolvidas no processo de comunicação. BUNGE29alerta que “...é indispensável publicar os resultados das pesquisas”. As motivações para fazê-lo, segundo este cientista e historiador da Ciência, são: - uma maneira de controlar técnicas e resultados; - para manter os pesquisadores ativos, e; 27 - CASTRO, Cláudio de Moura. Há produção científica no Brasil? In: Ciência e Cultu- ra, São Paulo, v. 37, n. 7, 1985, p. 165-187. 28 - Citado por OLIVEIRA, Eloisa da Conceição Principe de. O apoio governamental às publicações periódicas científicas: o programa de apoio a revistas científicas do CNPq e da FINEP. Rio de Janeiro : UFRJ, 1989. (Dissertação de mestrado em Ciência da Comunicação). 29 - BUNGE, Mário. Ciência e desenvolvimento. Trad. Cláudia Reis Junqueira. Belo Ho- rizonte: Itatiaia; S. Paulo: Ed. da Universidade de São Paulo, 1980. p. 119. 50 - uma maneira de avaliar pesquisadores e projetos de pesquisa. Mas BUNGE30também lembra os efeitos colaterais negativos provocados pela ânsia de muitos pesquisadores em publicar artigos: a precipitação, a repetição, a redação desleixada e a desonestidade. Sobre este tópico, ZIMAN31diz que a decisão de escrever e publicar constitui um dos problemas com os quais se defronta o pesquisador. Alguns, com a mania da perfeição, nunca estão convencidos de que resolveram todas as questões pertinentes ao tema em estudo. Outros, ao contrário, têm pressa em “mandar imprimir os apontamentos das experiências feitas na véspera, pressupondo esperançosamente que todo mundo anseia por tomar conhecimento de suas assombrosas descobertas”.32 Na opinião de ZIMAN o pesquisador deve publicar algum trabalho quando julgar que ele atingiu uma razoável fase de amadurecimento e apresenta uma certa consistência e comedimento. De outro extremo, muitos cientistas ficam receosos quanto à primazia ou por exibirem em seus currículos quantidade de publicações que “imprimem uma enfiada de comunicações mal-alinhavadas ao invés de esperarem que o trabalho esteja completo e possa ser apresentado na íntegra.”33 Este tipo de comunicação aqui referido se enquadra perfeitamente na categoria “disseminação”, conforme conceituação de PASQUALI34. Ou seja, é uma comunicação feita com o uso de códigos especializados, destinados a um público seleto, formado por especialistas. Trata-se, concreta30 - Opus cit. p. 119. 31 - ZIMAN, John. Conhecimento Público. Trad. Regina Regis Junqueira. Belo Hori- zonte: Itatiaia ; São Paulo: Ed. da Universidade de São Paulo, 1979. 164p. (Coleção o homem e a ciência, v. 8). 32 - Opus cit. p. 110. 33 - Opus cit. p. 111. 51 mente, de uma comunicação científica, na qual se equivalem o emissor e o receptor. 1.4 - Comunicação Pública da Ciência Nesta dissertação interessa observar que a consolidação e legitimação da Ciência caminhou simultaneamente à expansão do processo de reprodução de originais. Isto equivale dizer que o modelo de legitimação da Ciência encontrou na Imprensa um aliado valioso. Os novos recursos da comunicação escrita iriam favorecer o florecimento e crescimento da comunidade científica, à medida que permitiria o registro e circulação de informações de maneira mais ampla do que a préexistente. De modo idêntico, os não-iniciados iriam ter oportunidade de ter contato com a Ciência, por meio dos periódicos que surgiriam mais tarde, pelos quais desde logo os cientistas devotariam consideração, à medida que obtinham compensações sociais - o reconhecimento público pelo trabalho que realizavam. SOLLA-PRICE registra: “O que libertou o saber científico do esquecimento (...) foi a invenção da imprensa e sua rápida disseminação pela Europa, a partir de 1470. Ocupa essa invenção importante lugar na história da tecnologia e se associa de forma clara à crescente ascenção dos tecnologistas durante a Idade Média.”35 34 - PASQUALI, Antonio. Conforme citação em BUENO, W. da Costa. Jornalismo cien- tífico no Brasil - os compromissos de uma prática dependente. São Paulo, 1985, ECA/USP, p. 13. 35 - SOLLA-PRICE, Derek de. A ciência desde a Babilônia. Trad. Leônidas Hegenberg e Octanny S. da Motta. Belo Horizonte: Itatiaia, 1976. p. 96. 52 Embora os tipos móveis tenham sido postos em uso a partir de 145036, as publicações periódicas esperariam ainda um século e meio para se difundirem e integrar os hábitos regulares da vida cotidiana. A atividade jornalística surgiu na Inglaterra em 1622; em Portugal, em 1641; na Itália, em 1645; na Espanha e na Polônia, em 1661. O aperfeiçoamento dos Correios impulsionou os jornais e o trânsito de notícias. No início do século XVIII surgiu o primeiro jornal diário, The Daily Courant. Em 1707 surge o primeiro jornal americano (Boston News Letter). O primeiro jornal brasileiro iria circular somente um século após, em 1808, após ter sido impresso na Inglaterra (Correio Braziliense). Embora seja factível supor que nesses jornais pioneiros fossem noticiados acontecimentos científicos, aceita-se como correto que o primeiro periódico inteiramente voltado aos assuntos científicos foi o Phil. Trans.37 A primeira edição data de 6 de março de 1665. O Journal de Sçavants38, surgido na França dois meses antes, é igualmente citado como o pioneiro em Jornalismo Científico, mas alguns atribuem-lhe o papel principal de periódico voltado a temas literários. 36 - Os tipos móveis começaram a ser utilizados pouco antes de 1450. Credita-se a Jo- hann Gutenberg (c. 1394-1468) a invenção do processo. O mais antigo livro que se conhece impresso na Europa com tipos é o fragmento de um almanaque de 1448. O primeiro livro completo em que aparece o ano de impressão data de 1457. 37 - Abreviatura de Philosophical Transactions: Giving some Accompt of the Present Undertakings, Studies, and Labours, of the Ingenious in many Considerable Parts of the World. A tradução mais fiel para tão longo título é: Transações Filosóficas: Relatando os esforços, estudos e trabalhos dos geniais em muitas partes consideráveis do mundo. 38 - De acordo com J. Reis (Comunicação entre cientistas. Ciência e Cultura, São Paulo, 27(12) : 1379-80, dez. 1975), o Journal de Sçavants surgiu em janeiro de 1665, com 20 páginas, 10 artigos, algumas cartas e notas. “Seu objetivo era informar sobre os livros publicados na Europa e resumir seu conteúdo, assim como tornar conhecidas as experiências realizadas nos campos da física, química e anatomia.” 53 Não foi por acaso que esses periódicos surgiram, respectivamente, na Inglaterra e na França. Os dois países disputavam a primazia por serem os centros de excelência da Ciência, nos séculos XVII a XIX. O objetivo do Phil. Trans. estava explicitado no seguinte editorial:39 “Considerando que não há nada mais necessário para promover o progresso das Questões filosóficas do que a comunicação, aos que aplicam os seus estudos e esforços nesse sentido, das coisas que são descobertas ou postas em prática por outros; julga-se portanto adequado utilizar a imprensa, como o meios mais próprio de recompensar aqueles cujo empenhamento em tais estudos, e gosto no progresso do saber e de descobertas proveitosas, lhes dá o direito ao conhecimento do que este reino, ou outras partes do Mundo, também, de tempos a tempos propicia, assim como do progresso dos estudos, labores e esforços dos curiosos e eruditos em coisas deste género, e das suas descobertas e realizações completas: com o propósito de que sendo tais criações clara e genuinamente comunicadas, possam ser mais alimentados os desejos de conhecimento sólido e útil, apreciados os esforços e os empreendimentos engenhosos, e convidados e encorajados a investigar, experimentar e descobrir novas coisas, comunicar o seu saber uns aos outros, e contribuir com o que puderem para o grande objectivo de melhorar o conhecimento natural, e aperfeiçoar todas as artes filosóficas, e todas as ciências. E tudo para a glória de Deus, a honra e o proveito destes reinos, e o bem universal da humanidade.” No século XIX, as trajetórias da Ciência e da Imprensa irão definitivamente convergir. 39 - Conforme tradução in: Os Descobridores - De como o homem procurou conhecer-se a si mesmo e ao mundo. Daniel J. Boorstin. Tradução de Fernanda Pinto Rodrigues. Civilização Brasileira, 1989, p. 358. Embora editado por editora brasileira, a edição contém texto traduzido do inglês para o português de Portugal. 54 Em crítica empreendida à influência do Positivismo sobre a Ciência e o Jornalismo, MEDINA faz o seguinte comentário: “A relação do Jornalismo com a ciência transitou por dois universos: por um lado, à medida em que a ciência se consagrava em várias especializações e se ressentia da falta de contato com a sociedade externa à comunidade científica, demandava um projeto de difusão; por outro lado, à medida em que o Jornalismo se estruturava como fenômeno da sociedade urbana e industrial, demandava sua própria especialização enquanto disciplina científica.”40 Quando se comunica com seus pares, o cientista está motivado por uma necessidade intrínseca da própria atividade científica e atende, com esta atitude, parte considerável dos preceitos aqui já aludidos referentes ao ethos científico. A comunicação destinada ao público leigo é motivada por outros vetores, relacionados ao desejável reconhecimento público, capaz de subsidiar decisões que não se encontram no âmbito estrito da Ciência, mas sim em organismos que integram o Estado. De certo modo, cientistas e instituições representativas da Ciência desde logo manifestaram preocupação com este tipo de comunicação. A obrigação de comunicar as descobertas pessoais ao público, para utilização e crítica já era considerada no período da institucionalização da Ciência na Inglaterra, no século XVII, razão talvez para que ali surgisse o periódico que é considerado precursor em Jornalismo Científico, já citado anteriormente. 40 - MEDINA, Cremilda. Epistemologia e saber plural. In: Saber plural: o discurso frag- mentalista da ciência e a crise de paradigmas. São Paulo: ECA/CJE/CNPq, 1994. (Novo pacto da ciência, 3). p. 177. 55 A atividade científica constitui-se em ação de larga repercussão e, portanto, é perfeitamente coerente o interesse da Imprensa pelos acontecimentos que se desenvolvem no chamado “mundo da ciência”. De igual modo, e no sentido oposto, como toda atividade social legítima, a Ciência - e, mais especificamente, seus personagens mais tangíveis, os cientistas - almeja o reconhecimento social. Isto implica em se voltar para públicos mais amplos, deixando os limites claramente definidos do que se convencionou denominar “comunidade científica”. Os cientistas estão inclusos na categoria de intelectuais “orgânicos”, de acordo com GRAMSCI41, colocados no mais alto grau, dentre os intelectuais. No mais baixo grau, ainda segundo o pensador e filósofo italiano, incluem-se os divulgadores mais modestos da riqueza intelectual já existente, tradicional, acumulada, dentre eles, os jornalistas. Grosso modo, podemos identificar as seguintes circunstâncias que contribuiram para aproximar os cientistas de diversos outros segmentos da sociedade: Circunstância A Do ponto-de-vista histórico, houve o desmantelamento da Aristrocracia e a gradativa democratização da atividade científica. Em outros termos: os cientistas passaram a não mais se originar exclusivamente das elites e sim das diferentes outras classes sociais. Analisando as relações entre Ciência e Sociedade, escreveu MERTON: 41 - GRAMSCI, Antonio. Os intelectuais e a organização da cultura. Trad. Carlos Nel- son Coutinho, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1979, p. 11-12. Conforme citação em FERNANDES, Ana Maria. A construção da ciência no Brasil e a SBPC. Brasília: UnB, ANPOCS e CNPq, 1979. 292 p. 56 “Três séculos atrás [refere-se ao século XVI], quando a instituição da ciência pouca justificação podia apresentar para conseguir o apoio da sociedade, os filósofos naturais eram levados assim mesmo a justificar a ciência como um meio válido para fins culturalmente válidos de utilidade econômica ou de glorificação de Deus. O cultivo da ciência não era então um valor evidente por si mesmo. Mas, com a interminável corrente de êxitos obtidos pela ciência, o instrumental se transformou em final, os meios de transformaram em fins. Assim fortalecido, o cientista chegou a considerar-se independente da sociedade e a encarar a ciência como empresa que se justifica por si mesma e que “está”na sociedade, mas não “faz parte” dela. Mas, em dado momento, começa a se alterar esta situação, na qual o cientista se colocava acima da Sociedade. “Depois de prolongado período de relativa segurança, durante o qual o culto à ciência e à difusão dos conhecimentos tinham chegado a uma posição de destaque, se não de primeiro plano, na escala de valores culturais, os cientistas se vêem obrigados a justificar os caminhos da ciência para os homens”.42 Circunstância B A crescente sofisticação das pesquisas que, em certas linhas de trabalho, exigem recursos financeiros agora não mais disponíveis como no passado, também contribuiu para aproximar a Ciência (em sua variante de aplicabilidade mais imediata, inclusive como parte intrínseca da Tecnologia) da Imprensa, ou, mais apropriadamente, da Sociedade. Num movimento pendular em que a Ciência impulsiona a Tecnologia e esta impulsiona a Ciência - há necessidade de desenvolver equipamentos 42 - MERTON, Robert M. Os imperativos institucionais da ciência. In: A crítica da ciên- cia, Jorge Dias de Deus (Org.). Rio de Janeiro: Zahar, 1979, p. 37-52. 57 que requer capitais que precisam ser arduamente negociados nos planos governamentais. Logo, em busca por reconhecimento, legitimação e apoio da sociedade, os cientistas se desajolam da torre de marfim em direção à planície, onde habitam os outros seres, que pensam apenas com o senso comum. A necessidade de comunicação para além dos muros erigidos em torno da comunidade científica aparece na formulação de objetivos institucionais de organismos brasileiros. A SBPC - Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência -, ao ser criada em 1948, incluiu nos Estatutos: “a) Justificação da ciência, mostrando ao público [grifo nosso] seus progressos, seus métodos de trabalho, suas aplicações e até mesmo suas limitações [idem], buscando criar em todas as classes, e consequentemente na administração pública, atitude de compreensão, apoio e respeito para as atividades de pesquisa (...)”.43 Escrevendo em Ciência e Cultura, publicação da SBPC, José Reis, ou simplesmente J. Reis como sempre preferiu assinar seus textos, registrou: “A vida e o progresso dos países passou a depender tanto da Ciência, e esta dos orçamentos nacionais, que se torna preciso incutir no público a idéia da necessidade desse gênero de trabalho para o desenvolvimento da nação, e não como divertimento ou gozo de alguns”.44 Cinco anos antes, na Revista Anhembi, J. Reis alinhava três pontos que fundamentavam a ação de divulgar a Ciência: A) “Divulga-se no interesse da própria Ciência, e por influência dos cientistas ou dos que compreendem o valor da Ciência no mundo moderno, para conseguir apoio cada vez maior para as atividades científicas.” 43 - Reproduzido em FERNANDES, Anamaria. A construção da ciência no Brasil e a SBPC, Brasília: UnB, ANPOCS e CNPq, p. 31. 44 - REIS, José. Divulgação científica. Ciência e Cultura, dezembro, 1967, p. 698. 58 B) “Divulga-se para atrair novos valores para a Ciência, para favorecer a formação de uma nova força de trabalho das mais valiosas na sociedade moderna.” C) “Divulga-se para satisfazer o desejo que alguns sentem, de partilhar com muitos outros o produto de sua experiência, adquirida seja diretamente no curso de seu próprio trabalho criador, seja mediante a absorção de informação colhida em fontes menos acessíveis ao grande público e o esforço de compreender essa informação, de situá-la dentro de um quadro geral e de analisar-lhe as possíveis implicações [grifo nosso].”45 1.5 - Jornalismo e Jornalismo Científico A atividade do profissional de Jornalismo, nas várias modalidades (impressa, radiofônica, televisiva) e segmentações por áreas (economia, política, esportes etc), ocorre mediante o uso de regras estabelecidas, aprendidas nos cursos de formação e complementadas na prática profissional. Como uma área de especialização do Jornalismo, o Jornalismo Científico deve, evidentemente, considerar as características determinadas por GROTH46, a saber: atualidade, universalidade, periodicidade, difusão. BUENO47 fez uma transposição destas características para aplicação no âmbito do Jornalismo Científico do seguinte modo: a característica de atualidade é preenchida pelos “fatos (eventos, descobertas) ou pessoas (cientistas, tecnólogos, pesquisadores) que estejam diretamente ou indiretamente relacionados com o momento presente”; ao abrigar “os diferentes 45 - REIS, José. Divulgação científica. Anhembi, julho, 1962, p. 228. 46 - GROTH, Otto. Citado in: BUENO, Wilson da Costa. Jornalismo científico no Brasil: aspectos teóricos e práticos. São Paulo: ECA/USP, 1988, p. 24. 47 - BUENO, Wilson da Costa. Jornalismo científico no Brasil - os compromissos de uma prática dependente. São Paulo: ECA/USP, 1985, p. 21-22. 59 ramos do conhecimento científico”, o Jornalismo Científico preenche a característica da universalidade; a periodicidade se dá pela manutenção do “ritmo das publicações ou matérias, certamente antes em conformidade com o desenvolvimento peculiar da ciência do que com o próprio ritmo de edição dos veículos jornalísticos (oportunidade, segundo Groth)”; a característica de difusão é preenchida pela circulação do material pela coletividade ao qual se destina. O Jornalismo Científico - expressão originada do inglês Scientific Journalism - é uma especialização da atividade jornalística, direcionada para os assuntos de Ciência e Tecnologia. Logo, não se pode desvinculá-lo em estudos e formulações de regras de aprimoramento - do vetor Jornalismo, em sua inteireza. HERNANDO48faz uma interessante observação sobre o termo “Jornalismo Científico”, colocando-o como o primeiro problema desta especialização. Segundo o autor espanhol esta é uma “expressão ambígua” que pode ser confundida com uma disciplina dedicada ao estudo do jornalismo como ciência ou como o conjunto de tecnologias que têm como objetivo final a informação. “Mas, não se trata disto, e sim de uma especialização informativa que consiste em divulgar a ciência e a tecnologia através dos meios de comunicação de massas.”49 A prática do Jornalismo Científico num país dependente, como o Brasil, “não pode alienar-se das condições de produção do Jornalismo (e dos meios de comunicação de massa em geral) e da Ciência e Tecnologia”, registra BUENO.50 48 - HERNANDO, M. Calvo. Ciencia y periodismo. Barcelona: CEFI, s. d. p. 30. 49 - Opus cit. p. 30. 50 - BUENO, Wilson da Costa. Jornalismo científico no Brasil: aspectos teóricos e práti- cos. São Paulo: USP/ECA/DJE, 1988. p. 5 (Comunicação Jornalística e Editorial - Série Pesquisa). 60 “Como sistemas dependentes, a Imprensa, a Ciência e a Tecnologia sofrem as influências do poder político e econômico altamente centralizado em nosso País e, portanto, com raras exceções, voltam-se para atender à sociedade como um todo”.51 1.6 - Conceitos do Jornalismo Científico O Jornalismo Científico é o ramo de especialização jornalística que mais constantemente tem-se procurado definir e estudar, comparativamente a outros ramos. Ao Jornalismo Científico tem sido atribuídas especificidades conformadoras de um status próprio. Estas especificidades procuram ser a base de sustentação para um estilo profissional de trabalho jornalístico. No fundo, o que se almeja é uma conduta similar àquela que se espera do cientista: rigor na manipulação dos dados; absoluta correção na linguagem; certeza completa quanto à informação transmitida; consciência de que se está produzindo algo de interesse da sociedade etc. As especificidades do Jornalismo Científico, podemos assim deduzir, constituem a orientação que os autores emitem e desejam como elementos modeladores desta sub-espécie do Jornalismo que, se desse modo não se faz, assim se deveria fazer. Vejamos, portanto, o que se espera dos meios de comunicação e dos jornalistas, sob a ótica de alguns estudiosos da questão. 51 - Opus cit. p. 5. 61 HERNANDO52, jornalista espanhol, há muitos anos presidente da Associação Íbero-Americana de Jornalismo Científico, com vasta bibliografia sobre o assunto, advoga três funções inerentes ao jornalista [grifo nosso] dedicado à abordagem dos temas de Ciência e Tecnologia: este deve ser divulgador, intérprete e controlador. - Na função de divulgador, transmite e torna compreensível o conteúdo, difícil e complexo, da Ciência. - Na função de intérprete, torna precisa a significação das descobertas individuais e explica o presente e o futuro da atividade científica e tecnológica. - Na função de controle, exerce vigilância para que as decisões políticas não menosprezem os descobrimentos científicos, nem os apliquem indevidamente, e para que tenham em conta as necessidades do indivíduo e da sociedade. Ao Jornalismo Científico [grifo nosso] o Autor atribui igualmente três funções: informar, ensinar e sensibilizar. Com relação à primeira função, diz HERNANDO: “Informar é a condição essencial do Jornalismo. Se trata, tão somente, de comunicar ao público, de modo inteligível, os progressos da Ciência e da Tecnologia.”53 Neste aspecto, trata-se de uma função básica, comum ao Jornalismo como um todo. Como instrumento de Ensino - ênfase bastante considerada em todos os países de língua espanhola, como se deduz de registros constantes em memórias de congressos íbero-americanos - “O Jornalismo contribui para saciar o homem de conhecimentos da humanidade. Estimula as mentes. 52 - HERNANDO, M. Calvo. Civilizacion tecnologica e informacion. El periodismo cien- tifico: misiones y objetivos. Barcelona: Editorial Mitre, s. d. p. 26. 53 - Opus cit. p. 42. 62 Deve oferecer ao público uma visão coerente do mundo que nos rodeia, todo ele conseqüência do progresso científico e tecnológico.”54 Ao Jornalismo Científico cabe, ainda, “contribuir para impedir que o saber seja um fator de desigualdade entre os homens e evitar que as comunidades, como os indivíduos, permaneçam à margem dos progressos do conhecimento e de seus efeitos e conseqüências na vida cotidiana.”55 É também papel do Jornalismo Científico “sensibilizar a sociedade sobre os grandes fenômenos do nosso tempo. O jornalista científico deve contribuir para criar uma consciência pública sobre o valor da Ciência e Tecnologia, colocados à serviço do desenvolvimento dos povos.”56 HERNANDO destaca que o Jornalismo Científico “deve ser capaz de demonstrar que a Ciência e a Tecnologia constituem uma esperança de solução dos problemas da humanidade e, ao mesmo tempo, um motivo de inquientação e preocupação. Somente o debate público e uma educação científica nos meios informativos podem evitar equívocos e mal entendidos.”57 Outro ponto enfatizado é quanto aos meios de comunicação. Estes, devem oferecer aos políticos, cientistas e técnicos um fórum de discussão pública sobre os temas que podem influenciar o indivíduo e a sociedade. “É fundamental que o grande público conheça os projetos e programas de Ciência e Tecnologia e o que a C&T é capaz de realizar”.58 Da extensa e ainda esparsa bibliografia produzida por José Reis, desde os anos 40, enfocando temas de Divulgação e Jornalismo Científi- 54 - Opus cit. p. 42. 55 - Opus cit. p. 42. 56 - Opus cit. p. 42. 57 - Opus cit. p. 43. 58 - Opus cit. p. 43. 63 co59apuramos as várias características que devem estar nítidas na produção de comunicação sobre assuntos de Ciência e Tecnologia. Estas características são a síntese do pensamento de um cientista que se tornou divulgador e escreveu livros, peças radiofônicas, milhares de artigos para o público não especializado e participou ativamente da criação da SBPC - Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência - e da ABJC Associação Brasileira de Jornalismo Científico. 1) “A divulgação da Ciência tem efeito emulador sobre a mocidade, estimulando interesses para essa carreira e fortalecendo nos adultos a compreensão do valor e do sentido da pesquisa científica.”60 2) “A linguagem deve ser entendível ao cidadão comum, procurandose evitar, muito em particular, as expressões científicas que possam ter, na interpretação do povo, um sentido diferente do verdadeiro.”61 O jargão científico deve ser evitado totalmente, procurando-se utilizar, tanto quanto possível, as palavras comuns da língua. “Convém buscar na técnica do Jornalismo as fórmulas que ensinam a prender a atenção e a dar ao leitor uma rápida noção do assunto que se vai desenvolver. É o lead dos norte-americanos.”62 3) “Cabe aos divulgadores sérios cercear ou corrigir, reduzindo a seus devidos termos, as notícias ruidosas que seus colegas, noticiaristas e 59 - a) Wilson da Costa Bueno, em tese de doutoramento, claramente apurou que J. Reis não distingue em seus escritos, a divulgação científica e o jornalismo científico. b) O autor desta dissertação vem preparando, há alguns anos, uma coletânea com os artigos de J. Reis especificamente voltados para os temas Divulgação Científica e Jornalismo Científico. 60 - REIS, J. Comunicação da ciência ao público. Anhembi, novembro, 1956, p. 620. 61 - REIS, J. Comunicação científica. Anhembi, agosto, 1957, p. 605. 62 - REIS, J. Divulgação científica. Anhembi, julho, 1962, p. 234. 64 repórteres, não dedicados especialmente à divulgação como atividade educativa, criam em torno de determinados fatos.”63 No mesmo artigo citado, REIS faz distinção entre o noticiário jornalístico comum e aquele “orientado pelos cientistas ou pelos divulgadores sérios.” O primeiro tipo de noticiário “é otimista e não raro colorido com tintas maravilhosas, quando não milagrosas.” O noticiário produzido com a orientação dos cientistas ou por divulgadores sérios, conforme expressão usada por REIS, é antes restritivo e crítico. O contexto no qual se produziu esta orientação, há quatro décadas, seguramente não era idêntico ao que se observa mais contemporaneamente na Imprensa. De fato, se consultarmos coleções de periódicos dos anos 40, 50 e 60, será fácil constatar que, em especial no noticiário sobre assuntos de Saúde, praticava-se um jornalismo por vezes absolutamente irresponsável. Ainda neste contexto e sobre a mesma questão, REIS escreveu: “O ideal seria que todos os jornais reduzissem o seu noticiário (sobre Ciência) ao segundo tipo de informação. As reportagens ruidosas podem fazer mal não só à coletividade mas, também, à própria Ciência e aos cientistas, que poderão acabar desacreditados diante do público.”64 4) Contextualizar a informação no panorama geral do conhecimento é outra recomendação de REIS, para quem a informação pura e simples adianta pouco. É preciso situar a informação, “relacioná-la, de modo que se possa compreender o seu sentido e o seu valor.”65 5) “O que interessa mostrar ao público são os métodos de trabalho dos cientistas, a atitude destes em face dos problemas, os princípios que eles descobrem, a maneira pela qual esses princípios se articulam com o 63 - REIS, J. Comunicação científica. Anhembi, agosto, 1957, p. 605. 64 - Opus cit. p. 605. 65 - REIS, J. Divulgação científica. Anhembi, julho, 1962, p. 232. 65 sistema geral do conhecimento e, é lógico, as conseqüências de toda ordem que deles decorrem.”66 6) “O trabalho de divulgação torna-se extremamente difícil. Exige senso crítico e boa formação da parte de quem escreve. Deve ser acompanhado pelo esforço educativo que deve mostrar sempre, de maneira indireta porém positiva, o papel da Ciência e do cienstista na sociedade.”67 7) “O divulgador deve procurar transmitir a seus leitores uma imagem exata do que fazem os cientistas e de como o fazem. Como se formam eles. Como trabalham. O que produzem.”68 8) A preocupação com o papel educativo do Jornalismo Científico é evidente em REIS que, no mesmo artigo referenciado no item nº 7, recomenda: “Sempre que possível partir de fatos do dia para ensinar [grifo nosso] os princípios da Ciência. Ou então procurar nos fatos cotidianos a sugestão para ensinar o oposto daquilo que esses fatos à primeira vista sugerem.”69 9) Concisão, precisão, simplicidade, correção gramatical. Para REIS estas qualidades devem ser comuns aos jornalistas e cientistas.70 10) “Artigo de divulgação não é capítulo de manual técnico, nem se destina a público homogêneo, especialmente preparado para acompanhar as sutilezas do assunto, o que obriga muitas vezes o divulgador a recorrer a analogias. Não comporta pormenores técnicos, para corroborar determinadas afirmações. Tem de ser quanto possível humano, deixando perceber a palpitação dos seres que se empenharam nas descobertas.”71 66 - REIS, J. Divulgação da ciência. Ciência e Cultura, junho, 1954, p. 58. 67 - Opus cit. p. 58. 68 - REIS, J. Divulgação científica. Ciência e Cultura, dezembro, 1967, p. 698. 69 - Opus cit. p. 700. 70 - REIS, J. Ciência e jornalismo. Ciência e Cultura, fevereiro, 1972. p. 134. 71 - Opus cit. p. 136. 66 1.7 - Críticas ao Jornalismo Científico O Jornalismo é um ramo de atividade profissional que seguramente mais críticas recebe, se o compararmos com outros setores de atividades sociais. Por que isto ocorre? Podemos encontrar uma explicação básica no fato de que o Jornalismo produz um bem (notícias) que é consumido avidamente pela população, em seus diversos formatos adequados aos meios pelos quais se propagam. É plausível que, em grande parte de nossas vidas, fiquemos imunes a um contato mais direto com a Medicina, com o Direito, com a Engenharia, e delas só esporadicamente tomamos conhecimento, pela via do noticiário que nos chega pelos jornais, televisão, rádios e revistas. O Jornalismo - e por conseqüência, os jornalistas - estão muito mais expostos à Sociedade como um todo, do que praticamente todas as outras categorias de atividades sociais, com seus respectivos profissionais. Imaginemos um cliente que tendo necessitado de um advogado, acaba descobrindo que foi mal orientado quanto aos procedimentos possíveis; ou que a documentação produzida pelo profissional contratado continha erros de técnica forense; ou que prazos legais foram perdidos por negligência. Situações como esta, evidentemente, não são mera especulação. Provavelmente acontecem rotineiramente. Entretanto, a menos que o tema mereça uma notícia, quem dele tomará conhecimento a não ser o lesado? O jornalista, ao contrário, é cotidianamente criticado, pela simples razão de que o resultado do seu trabalho é imediatamente tornado público. Co-autor de um produto simbólico - a narrativa sobre um dado fato - o jornalista tem a seu favor todos os argumentos possíveis para justificar a “qualidade” do seu trabalho, bem como os críticos sempre terão um imenso arsenal para desqualificá-lo. 67 Com justa razão, pode-se argumentar que esta é uma situação válida para qualquer outra atividade, ou, pelo menos, para algumas outras. Evidentemente, se um prédio em fase de construção desmorona, é quase certo que o engenheiro responsável pelos cálculos estruturais haverá de ter alguma responsabilidade. A evidência do erro, ainda que não deixe de haver aí inúmeros aspectos subjetivos a serem levados em conta, se torna mais tangível aos olhos da multidão. O médico se coloca, sob este aspecto, numa situação privilegiada, pois seu mister é de tal modo imbricado a tantas e diversas circunstâncias que um eventual erro só muito raramente consegue ser claramente definido como tal e, ainda assim, por meio de análise que é feita por profissionais habilitados na Medicina. Ao leigo, neste caso específico, resta muito pouco para especular. Este sentimento público sobre a Imprensa - de amor e ódio simultâneos - é que dá ao Jornalismo esta vitalidade e permanência na vida cotidiana dos que o produzem e dos que o consomem. Explica, em certa medida, como o Jornalismo é pauta permanente do estudo acadêmico, incluso, obviamente, em contexto mais abrangente, o da Indústria Cultural.72 Ao estudioso do Jornalismo Científico é interesse notar que outras áreas de especialização são mais ou menos susceptíveis da crítica leiga. Os Esportes, em suas várias modalidades, fornecem diariamente duas, três, quatro ou mais páginas do noticiário num jornal. Evidentemente, os atores envolvidos com as histórias narradas nas páginas de Esportes talvez façam críticas e reparos ao lerem textos nos 72 - Teixeira Coelho esclarece que é mais apropriado falar em Indústria Cultural, Meios de Comunicação de Massa e Cultura de Massa no contexto do fenômeno da industrialização e a ocorrência de uma sociedade de consumo; históricamente, isto pode ser alocado a partir da segunda metade do século XIX. COELHO, Teixeira. O que é indústria cultural. São Paulo: Nova Cultural e Editora Brasiliense, 1986. 109 p. (Coleção Primeiros Passos, 81). 68 quais eles próprios figuram, na qualidade de citados por terceiros ou na de fontes. Mas, e o leitor que tem apenas interesse em saber como está a preparação do seu time para o grande clássico de domingo? Provavelmente ele se contentará com a narrativa dos fatos e passará adiante, para o Caderno de Economia. E já que falamos no Caderno de Economia, estamos agora numa outra área de especialização, a do Jornalismo Econômico (terminologia igualmente ambígua, como é a de Jornalismo Científico). O que poderá suscitar no mesmo leitor o noticiário das páginas desta especialidade? Primeiramente, é evidente que tudo que está nas páginas do noticiário de Economia afeta, em maior ou menor grau, a vida cotidiana. Transações megatransnacionais de fusões e incorporações empresariais poderão resultar em diminuição de postos de trabalho; aumento das taxas de serviços bancários irão resultar em mais despesas para os clientes de bancos; retirada de modelo de veículo da linha de fabricação irá afetar o valor de revenda futura e o nosso leitor hipotético, por acaso, é proprietário de um automóvel nesta situação. Comparativamente, as notícias rotuladas como de Economia afetam muito mais a vida das pessoas, no sentido prático, do que aquelas de Esportes. É muito mais fácil ao leitor não profissional detectar erros, omissões, distorções, no noticiário de Economia do que no de Esportes. Isto porque, em suas operações cotidianas, é muito mais provável que o leitor utilize informações obtidas no noticiário de Economia do que no de Esportes. O noticiário sobre assuntos de Ciência e Tecnologia constitui-se em produto aceito por grande parcela dos consumidores de informação. No Brasil, especificamente, tal assertiva foi comprovada em pesquisa clássica, a única até hoje realizada com a abrangência necessária, comprovativa de que sete entre dez brasileiros, maiores de 21 anos, residentes em centros urba- 69 nos com mais de 100 mil habitantes, têm interesse por notícias de Ciência e Tecnologia.73 Evidentemente, se os meios de comunicação abrem espaço para o noticiário de Ciência e Tecnologia é porque há consumo, embora muitos desejem que estes espaços sejam mais generosos e ocupem lugar de mais destaque ou horários mais nobres. A grande maioria de consumidores deste produto simbólico chamado notícia não consegue compreender claramente as imbricações da Ciência e da Tecnologia na vida cotidiana (o que facilita, em muito, as atitudes governamentais que tratam a área de C&T com prioridade mínima, apesar da retórica contrária). Mas, paradoxalmente, é capaz de perceber que algumas coisas que estão diariamente no noticiário de Ciência e Tecnologia dizem respeito ao seu mundo, à sua vida, ao seu futuro. Afinal, o jornalista especializado em Ciência e Tecnologia escreve sobre medicamentos novos; doenças com proliferação recente e métodos de tratamento; aparatos tecnológicos que exploram o Universo; descobertas de novas galáxias e planetas; técnicas de plantio e colheita e muitas outras coisas que, de algum modo, nos dizem respeito. O noticiário sobre Ciência e Tecnologia, em larga medida, corresponderia a atender algumas das necessidades básicas inerentes ao ser humano, em especial as de sobrevivência, culturais e de conhecimento, conforme MASLOW.74 73 - O que o brasileiro pensa da Ciência e Tecnologia? (A imagem da Ciência e da Tec- nologia junto à população urbana brasileira). Rio de Janeiro: MAST/CNPq : GALLUP, 1ª ed. 1987, 95 p. 74 - MASLOW, Abraham. Citado em BURKET, Warren. Jornalismo científico - como escrever sobre ciência, medicina e alta tecnologia para os meios de comunicação. Trad. Antônio Trânsito, Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1990. p. 60-61. 70 Não compartilhamos a idéia de que o Jornalismo Científico é um jornalismo diferente das demais especializações. Os princípios basilares do Jornalismo são únicos, conforme se esboçou no entretítulo 1.5 - Jornalismo e Jornalismo Científico. O que é diferente no Jornalismo Científico (quando o comparamos com outras especializações) é seu campo de atuação específica, a abrangência do seu universo. O jornalista, aqui, tem que lidar com fatos na maioria das vezes intangíveis, que não raro têm por testemunhas poucas pessoas que, em geral, falam uma linguagem profissional de difícil compreensão para o não iniciado e obedecem a uma implacável lógica interna (da Ciência), nem sempre compreendida adequadamente pelo jornalista. Ao lidar com informações complexas o jornalista tem ampliada a sua responsabilidade, pois terá que reunir as habilidades necessárias para - sem se descuidar das regras gerais aplicáveis a qualquer área do Jornalismo, e incluso no mesmo modo de produção unívoco - elaborar um texto com as qualidades que se consideram adequadas. Se, de um lado, há esta complexidade permanente aguardando pelo jornalista, de outro há, dentre o contingente de leitores potenciais, aqueles que poderíamos designar como leitores capacitados, isto é, cientistas em geral. Os cientistas constituem uma classe profissional extremamente corporativista, no sentido que este termo tem, para o bem e para o mal. Como todo grupo específico, os cientistas obedecem determinados ritos, fiscalizam-se mutuamente, brigam por verbas para pesquisa (cabendo lembrar que os recursos para esta finalidade são quase totalmente públicos), e são extremamente críticos, em especial quando comentam a cobertura da Imprensa sobre os assuntos científicos e tecnológicos. Esta diatribe entre jornalistas e cientistas é por demais antiga, conhecida e bastante apreciada nos colóquios e motivo de inúmeros artigos e co- 71 mentários, produzidos por uns ou por outros, reveladores de um desconhecimento sobre o universo específico de cada setor: os cientistas, invariavelmente, não distiguem bem o atributo que cabe ao jornalista, em si, e à empresa jornalística para a qual o profissional trabalha, sob condições na maioria das vezes bastante desconfortáveis; os jornalistas também costumam ter visão equivocada sobre o cientista, baseados no mesmo princípio errôneo de confundir o cientista em si (com suas deficiências pessoais possíveis, como a de se comunicar mal) com a Ciência como um todo e os organismos nos quais ela se materializa, por meio de pesquisas e desenvolvimento de novos conhecimentos. Aqui, queremos apenas reter a idéia de que o trabalho do jornalista é diariamente visto por cientistas que, por circunstância da necessária formação intelectual aprimorada, constitui um segmento de público com mais possibilidades de formular críticas e apontar falhas e omissões. MOLES nos esclarece, quanto a esse dado, que “O produto (...) reencontra dois tipos de meio: a massa á qual é distribuído essencialmente, mas também o meio científico que lê, muito mais atentamente do que pensamos, as revistas de divulgação, com um olho crítico e por vezes com um contato direto com o autor...”75 Ainda segundo MOLES, (...) “os próprios cientistas fazem um emprego muito amplo, embora pudicamente refreado, dos principais sistemas de divulgação para se informarem superficialmente em seu próprio domínio, reconstituindo elementos ausentes.”76 No caso específico da fusão a frio tal apropriação de informação pelos cientistas, via Imprensa, ficou bastante evidenciado. Entrevistas que fizemos com alguns dos personagens envolvidos com o episódio, no Brasil, 75 - MOLES, A. Abraham. Sociodinâmica da cultura. São Paulo: Perspectiva, 1974. p. 76 - Opus cit. p. 215. 214. 72 confirmaram que o contato inicial com a informação ocorreu pela leitura do noticiário e não por via da comunicação no âmbito restrito dos cientistas. 73 CAPÍTULO 2 - UMA NOTÍCIA QUENTE 2.1 - Uma Entrevista Coletiva e seus Desdobramentos No dia 23 de março de 1989, numa entrevista coletiva convocada pela Universidade de Utah77, EUA, os químicos Martin Fleischmann, da Universidade de Southampton, Inglaterra, e Stanley Pons, da Universidade de Utah, fizeram um comunicado que desencadeou verdadeira euforia nos meios científicos, em todo o mundo. Os dois cientistas realizaram experiências de fusão nuclear, em temperatura ambiente, e afirmaram ter obtido energia maior do que a necessária para gerar o processo. Em síntese, eles diziam ter conseguido fundir núcleos de átomos, sem utilizar para isto temperatura na escala de milhões de graus centígrados, como ocorre nas estrelas. A afirmação de Pons e Fleischmann encontra respaldo teórico na Física, embora a possibilidade concreta de conseguir fundir núcleos de átomos com resultados satisfatórios, em particular pelo processo então anunciado, seja um desses sonhos científicos de improvável realização; ou teria sido, até aquele dia da entrevista em Utah. Fusão é a união de núcleos de dois átomos em novo elemento, seguida da liberação de energia. É o oposto da fissão, quando um núcleo pesado de um átomo é partido, gerando dois elementos mais leves. A fissão é o processo usado nas usinas nucleares. As pesquisas com fusão dividem-se em dois ramos. Há os grupos que conduzem experiências com enormes reatores capazes de produzir a elevada temperatura necessária para fundir os núcleos atômicos, reproduzindo o 74 mecanismo que ocorre no interior das estrelas. Pesquisas nesta área ocorrem desde os anos 40 e há registros de avanços importantes, obtidos em laboratórios europeus, americanos e japoneses, no sentido de produzir - por meio da fusão de núcleos atômicos - energia em quantidade superior à necessária para gerar o processo. Em novembro de 1991, no Joint European Torus (JET), um gigantesco reator instalado na Inglaterra, pesquisadores conseguiram por breves dois segundos obter 2 megawatts de energia, quantidade superior a que foi necessária para realizar o processo de fusão. A complexidade dos experimentos nesta área exige equipamentos de custos vultosos. Estima-se que somente por volta da metade o século XXI terão sido superadas todas as barreiras técnico-científicas que ainda impedem a utilização em escala econômica desta forma de gerar energia. Se tais barreiras não forem superadas, o princípio teórico e experimental terá apenas utilidade acadêmica e não se converterá numa tecnologia de uso prático. O outro ramo de pesquisas com fusão acredita nas possibilidades de realizar o processo em temperatura ambiente, ou mais precisamente, muito próxima desta. É a chamada fusão a frio78 , que a partir de 1989 ganhou novo impulso com as revelações surpreendentes de Pons e Fleischmann. De acordo com documentação coletada por LEWENSTEIN e BAUR79, o primeiro artigo científico sobre fusão em temperatura ambiente foi escrito em 1926 por dois cientistas alemães, Fritz Paneth e Kurt Peters. 77 - O nome da universidade remete para o nome deste Estado americano, localizado na região montahosa do Oeste central dos EUA. Capital: Salt Lake City. População do Estado (1990): 1.776.000 habitantes. 78 - Em inglês, “cold fusion”, cuja tradução literal é “fusão fria”. Termos correlatos, en- contrados no noticiário e na dissertação: fusão a frio e fusão em temperatura ambiente. 79 - LEWENSTEIN, Bruce V.; BAUR, W. A cold fusion chronology. In: Journal of Radi- oanalytical and Nuclear Chemistry, Articles, vol. 152, n. 1 (1991), p. 273-298. 75 Antes da estrondosa entrevista concedida por Fleischmann e Pons, em 1989, ainda segundo o levantamento citado, há registros de várias especulações de cientistas sobre a realização de fusão em temperatura ambiente, nos anos de 1934, 1947, 1948, 1951, 1956, 1977, 1982, 1985, 1986, 1987, 1988. A entrevista coletiva convocada pela Universidade de Utah foi precedida da distribuição de um release, com nota de embargo até a sua realização (13 horas de 23 de março de 1989). Em exatas 101 linhas contidas em cinco laudas, o release foi produzido pelo Departamento de Relações Públicas da Universidade de Utah. Ganhou o seguinte título: “Resultados de um ‘experimento simples’ com fusão sustentada em temperatura ambiente pela primeira vez”, complementado pelo subtítulo “Processo é potencialmente capaz de suprir uma fonte inesgotável de energia”.80 O release começa por afirmar que “dois cientistas criaram e mantiveram um bem sucedido sistema de reação de fusão nuclear à temperatura ambiente em um laboratório de química na Universidade de Utah. A descoberta significa que algum dia o mundo poderá confiar na fusão a frio como uma fonte limpa, virtual e inesgotável de energia.” Contrapondo-se, de certo modo, ao texto inicial, um dos responsáveis pelo trabalho, Martin Fleischmann, faz a seguinte declaração: “O que nós fizemos foi apenas abrir as portas para uma nova área de pesquisa.” Mas, em continuidade, parece reforçar inteiramente o texto de divulgação, ao afirmar: “As nossas indicações são de que esta descoberta será relativamente fácil de ser realizada mediante uma tecnologia útil para gerar calor e força; porém se faz necessário a continuidade do trabalho, primeiro para se 80 - O título original é ‘SIMPLE EXPERIMENT’ RESULTS IN SUSTAINED N-FUSION AT ROOM TEMPERATURE FOR FIRST TIME - Breakthrough process has potential to provide inexhaustible source of energy. O release está anexado à dissertação. 76 saber mais sobre esta ciência e, segundo, para determinar o valor desta para a economia de energia.” O release faz considerações sobre as vantagens comparativas da fusão nuclear com a fissão nuclear e com as fontes tradicionais de produzir energia. Informa, numa única linha, que os dois autores teriam a descoberta publicada na “literatura científica de maio.” A certeza de estava havendo fusão nuclear (e não uma reação química), segundo o release, adviria do fato de ter sido gerado calor de modo contínuo por longos períodos de tempo. Fleischmann acrescenta, entre aspas: “Além disso reações superficiais levam a geração de nêutrons e tritium os quais são esperados como sub-produtos da fusão nuclear.” O release apresenta um pouco da história do trabalho de Fleischmann e Pons especificamente no campo da fusão a frio, pensada pelo primeiro já no final dos anos 60. Mais tarde, o assunto foi retomado em parceria com Pons, até que resolveram conceber o experimento. “A estratégia do experimento foi concebida na cozinha da casa de Pons. A natureza da experiência era tão simples, disse Pons, que a primeira vez que esta foi realizada foi por pura diversão e satisfação da curiosidade científica.” Após realizar o experimento por curiosidade, os dois cientistas resolveram dedicar-se seriamente ao projeto, antes mesmo de tentar obter recursos financeiros da Universidade de Utah. Segundo Pons, no release, “Nós pensávamos que seríamos capazes de conseguir levantar qualquer soma em dinheiro para o projeto, desde que este funcionasse.” Segundo o release, “trabalhando no laboratório de Pons, na Universidade de Utah, até tarde da noite e mesmo nos finais de semana, os dois improvisaram e testaram os procedimentos por um período de cinco anos e meio.” 77 De acordo com Pamela W. Fogle81, diretora do Serviço de Relações Públicas da Universidade de Utah, 20 repórteres da imprensa local e nacional compareceram à entrevista no dia 23. Não há, na universidade, um tape completo (de áudio ou tv) desta entrevista, um registro que ajudaria a esclarecer aspectos desta história.82 Nas quatro semanas seguintes, ainda segundo Fogle, em especial da Europa, foram recebidas 1500 ligações telefônicas de jornalistas, cientistas, agentes literários, editores e outros interessados. Os telefonemas eram tantos e com diferentes propostas e indagações que uma jornalista especializada em Ciência (Barb Shelley) foi encarregada de cuidar do assunto e preparar resumos para análise pelo Vice-Reitor de Pesquisa da Universidade, James Brophy, e pelo Dr. Pons.83 Por razões diversas, dois jornais comunicaram o fato no dia 23 de março de 1989, quando ocorreu a entrevista coletiva: o Financial Times, da Inglaterra, e o Wall Street Journal, editado em Washington. No estilo contido característico, o jornal inglês noticiou em texto assinado pelo editor de Tecnologia, Clive Cookson, que "Dois cientistas anunciarão formalmente hoje que controlaram a fusão nuclear num tubo de ensaio. Se esta descoberta for confirmada, eles terão chegado muito perto de dominar as forças que impulsionam o sol e a bomba de hidrogênio. Com este processo essas forças poderiam fornecer, virtualmente, de maneira ilimitada, energia limpa e barata."84 81 - FOGLE, Pamela W. Cold Confusion. Currents, April 1991, p. 26-28. 82 - Conforme informação de Pamela W. Fogle em carta ao Autor desta Dissertação (March 6, 1995). 83 84 - Ibidem, idem. - Em inglês, "Two scientists will today formally announce that they have carried out controlled nuclear fusion in a test tube. If their discovery is confirmed, they will have gone a long way towards taming the forces powering the sun and the hydrogen bomb. These could provide virtually unlimited, clean and inexprensive energy." 78 É preciso ter bem claro que a realização de Pons e Fleischmann constitui apenas um passo - talvez decisivo, mas não o único - num longo processo de desenvolvimento científico e tecnológico. Colocada em termos rigorosos, a fusão de núcleos de átomos em temperatura ambiente - quando devidamente sedimentada - será a base de um promissor trabalho de engenharia científica que poderá significar um novo processo de gerar energia. Como bem lembrou o físico Carlo Rubbia, ganhador de um Prêmio Nobel em 1984, comentando o anúncio feito por Fleischmann e Pons, “a natureza 85 não permitiria uma solução tão simples para um problema tão complexo”. Ao participar da entrevista coletiva para anunciar fato de tamanha relevância científica, Pons e Fleischmann contrariaram uma praxe consagrada no mundo acadêmico. O usual, entre cientistas, é primeiro relatar a experiência e os resultados obtidos num periódico científico. Somente depois desta etapa, pela qual o trabalho ganha o aval de árbitros especializados, costuma-se fazer a divulgação para o público não especializado. O artigo original de Pons e Fleischmann foi enviado à Revista Nature, considerada um dos periódicos científicos mais importantes em todo o mundo, fundada em 1869, na Inglaterra. A revista, entretanto, exigiu dos autores informações mais detalhadas, recomendadas pelos árbitros, e o artigo acabou não sendo publicado. É interessante notar, neste episódio, um dado paradoxal: a ânsia por tornar pública a experiência, garantindo a paternidade intelectual, e, ao mesmo tempo, omitir dados fundamentais, em nome da proteção aplicável a uma dada invenção tecnológica ainda não patenteada. 85 - O Estado de S. Paulo, 26.3.89, p. 17 (Fusão nuclear barata recebida com descrença). 79 Em artigo86 que escreveria em abril de 1991, portanto dois anos após a entrevista, a diretora de Relações Públicas da Universidade de Utah, Pamela W. Fogle (responsável pela preparação do release distribuído à Imprensa) revelaria um pouco dos bastidores deste acontecimento. Fogle conta que a entrevista foi marcada para o dia 23 de março num prazo curto a contar do recebimento da informação pelo Serviço de Relações Públicas da Universidade - porque no dia seguinte um dos pesquisadores envolvidos, Fleischmann, retornaria à Inglaterra, onde ficaria vários meses. Outra revelação, esta de aspecto menos mundano, é que Fleischmann e Pons, que haviam dispendido cinco anos de trabalho no assunto, preferiam ainda ter mais dezoito meses para continuar as experiências. Entretanto, rumores que começaram a circular davam conta que o tema seria divulgado por outros e, então, os administradores da universidade e os cientistas resolveram antecipar-se para preservar-se com relação aos direitos intelectuais do trabalho. Fogle não conta em seu artigo, mas é bom lembrar que Steven Jones, pesquisador da Universidade Brigham Young, situada em Provo, a cerca de 150 quilômetros de Utah, trabalhava nesta linha e mantinha com Fleischmann e Pons um acordo de divulgarem os resultados em conjunto. Jones, como praticamente os pesquisadores, em todo o mundo, ficou sabendo do assunto pelos jornais. Fogle apresenta como argumento que justificou a liberação da informação o fato do Journal of Electroanalytical Chemistry ter aceito para publicação um artigo da dupla de pesquisadores, um sinal suficiente de que o trabalho experimental era sério, segundo a chefe do setor de Relações Públicas da Universidade de Utah. 86 - Cold confusion - an insider’s view. in: Currents, April 1991, Vol. XVII, N. 4. p. 24- 26. 80 2.1.2 - Esforços para Reproduzir a Experiência No âmbito científico rapidamente se estabeleceu uma frenética busca pela reprodução da experiência. Isto ocorreu em países com imensas diferenças sociais, econômicas e relevância científica. Grupos na Itália, Grécia, Japão, Inglaterra, Índia, na então União Soviética, Brasil, Hungria e Polônia, puseram-se imediatamente a montar experimentos em busca dos resultados anunciados na Universidade de Utah. Tal procedimento é coerente com o trabalho científico mas, neste caso, revestiu-se de ênfase especial, pelas seguintes e principais razões: a) Grupos que não trabalhavam nesta linha de pesquisa começaram a realizar experiências tentando obter resultados idênticos aos de Fleischmann e Pons; b) O trabalho de reprodução da experiência se desenvolveu sem que os cientistas tivessem dados suficientes para fazê-lo; Fleischmann e Pons não publicaram material com suficiente informação para permitir o confronto de opiniões; c) Os laboratórios foram escancarados à Imprensa, que acompanhou as experiências. No caso brasileiro, como se verá na dissertação, houve até mesmo noticiário antecipando os passos seguintes dos cientistas. No Brasil, também se desenvolveram esforços científicos para reproduzir a experiência de Pons e Fleischmann. Instituições de pesquisa situadas nos Estados do Rio de Janeiro e de São Paulo, os dois mais importantes da Federação, e onde se localizam as melhores universidades e centros de pesquisa, realizaram uma espécie de maratona em busca da primazia pela repetição da experiência. Envolveram-se diretamente no tema o Instituto de Física da Universidade de São Paulo (IFUSP) e o Instituto de Pesquisas Energéticas e Nu- 81 cleares de São Paulo (IPEN), em parceria; o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE), o Instituto de Física da Universidade do Rio de Janeiro (IF/UFRJ), a Coordenação de Programas de Pós-Graduação em Engenharia (COPPE) da Universidade Federal do Rio de Janeiro, em parceria. Também há registros da participação do Centro de Desenvolvimento de Tecnologia Nuclear (CDTN), situado em Belo Horizonte. No dia 6 de abril de 1989, o Jornal do Brasil informava: “...pelo menos 12 grandes laboratórios ao redor do mundo se empenham agora em repetir a experiência anunciada pelos eletroquímicos Stanley Pons e Martin Fleischmann, e tem havido anúncios de algum sucesso”. (p. 8, Lee Dye, Los Angeles Times). Já o jornal O Estado de S. Paulo, de 22 de abril, ironizando declaração de um pesquisador brasileiro que alegava primazia mundial, afirmava que “em pelo menos uma centena de laboratórios ao redor do mundo, muito mais equipados, estão realizando todas as medidas imagináveis...”. (p. 10). O episódio da fusão a frio pode ser enquadrado no contexto descrito por MERTON87, relacionado com reivindicações e disputas por prioridades em Ciência. Quando procuramos verificar a situação ocorrida no Brasil entre os grupos que se empenharam em reproduzir a experiência, fica evidente que - ainda que inconscientemente - estava em jogo o prestígio da instituição que conseguisse fazê-lo primeiro. 2.1.3 - A Imprensa Amplificando o Fato 87 - MERTON, Robert K. Priorites in scientific discovery: a chapter in the sociology of science. American Sociological Review, 22 (1957), 635; Singletons and multiples in scientific discovery, a chapter in the sociology of science. Proceedings of the American Philosophical Society, 105 (1961), 470. 82 A repercussão do comunicado feito na Universidade de Utah naquele 23 de março de 1989 também pode ser observada pelo intenso aproveitamento do assunto nos meios de comunicação. No exterior, por exemplo, há diversos exemplos que podem dar uma idéia da dimensão que o fato ganhou. O principal comentário do jornalista Dan Rather, no programa Evening News, da rede CBS, em 23 de março de 1989, foi dedicado ao assunto. A revista New Scientist, editada semanalmente na Inglaterra, nas quinze edições do período de 25 de março a 1 de julho de 1989 (números 1657 a 1671) publicou textos sobre o assunto em dez edições. No Brasil, a Imprensa passou também a dedicar atenção ao fato. Houve farto noticiário de origem internacional, abordando o desenrolar das experiências em vários laboratórios do Exterior e, igualmente, acompanhamento das experiências realizadas aqui mesmo. Para se ter uma dimensão, vejamos alguns dados sobre material jornalístico com o tema, em alguns periódicos brasileiros: a Revista Veja, semanal, dedicou espaços variáveis entre uma coluna a três páginas para a fusão a frio, nas edições de 12 de abril (p. 62), 19 de abril (p. 64-5), 26 de abril (p. 75) e 17 de maio (p. 94-5). Ainda em 1989, Veja voltaria a falar no assunto, nas edições de 10 de maio (p. 104-6) e de 29 de novembro (p. 137). Entre 24 de março e 30 de junho de 1989, período no qual se concentra o material de análise da dissertação, nos quatro jornais brasileiros que constituem a amostragem, foram identificados 222 textos pertinentes ao tema "fusão a frio". Também é indicativo da importância deste fato o surgimento de livros e arquivo especializados no assunto. Na Inglaterra, já em 1990, o físico Frank Close lançava o livro Too Hot to Handle: the race for cold fusion, dedicando inclusive um capítulo ao papel da mídia nos acontecimentos. 83 Na Cornell University, foi criado um arquivo sobre o assunto - Cornell Cold Fusion Archive - reunindo material de característica científica e de divulgação sobre fusão a frio. Este arquivo, em 1991, dispunha de cerca de mil artigos publicados em meios de comunicação de massa, 50 gravações de entrevistas com pesquisadores, administradores, assessores de comunicação e jornalistas envolvidos com a fusão a frio, e cerca de 5.500 páginas de material variado, tipo pré-prints. O Livro do Ano Barsa 1990 dedicou todo o verbete “Física” (páginas 233-235) ao assunto fusão a frio, abrindo com o seguinte texto: “O ano de 1989 será lembrado como o da fusão a frio. O conceito deu manchete em fins de maio [sic] e foi saudado como a solução para os problemas energéticos do mundo, mas ao fim do ano achava-se envolto em densas nuvens de incerteza. Sabia-se que a fusão nuclear pode ocorrer a temperaturas de milhões de graus centígrados, porém o anúncio de que poderia dar-se à temperatura ambiente pegou de surpresa toda a comunidade científica.” A Imprensa, que tanto se envolveu na fase inicial, de vez em quando retoma o tema. No material que temos coletado desde 1989 sobre este assunto, registramos, por exemplo, para além do período definido para análise, os seguintes títulos: - Depois de um ano, fusão a frio não esquenta o ânimo dos pesquisadores. Texto de Cláudio Csillag, página inteira de abertura do Caderno Ciência, da Folha de S. Paulo, 23 de março de 1990. - Utah leva fusão nuclear fria a júri de cientistas. Distribuído pela United Press International. Folha de S. Paulo, 9 de novembro de 1990. - Segue a todo vapor confusão em torno da fusão fria. Folha de S. Paulo, Caderno Ciência, 1 de fevereiro de 1991. - Empresas tentam reabilitar a fusão fria. Folha de S. Paulo, 27 de abril de 199l. 84 - Físicos revelam novos indícios de fusão a frio. O Estado de S. Paulo, 27 de abril de 1991. - Comitê procura causa da explosão num laboratório de fusão a frio. Folha de S. Paulo, Caderno Ciência, 7 de fevereiro de 1992. - Japão aposta no sucesso da fusão a frio. Texto de Cássio Leite Vieira. Folha de S. Paulo, 10 de julho de 1992. - Cientistas dos EUA e Japão dizem ter obtido energia com “fusão fria”. Distribuído pela Reuter. Folha de S. Paulo, 3 de novembro de 1992. - Japoneses esquentam debate sobre técnica de fusão fria. Traduzido do Libération. Folha de S. Paulo, 8 de novembro de 1992. - Japão ressuscita “pais” da fusão a frio. Folha de S. Paulo, 16 de novembro de 1992. Encontramos em 11 de abril de 1995 a seguinte notícia no jornal Folha de S. Paulo (p. 1-12) “Italianos afirmam ter realizado fusão fria. Físicos italianos acreditam ter observado fusão nuclear “fria” em experimentos com hidrogênio e níquel. Segundo eles, 15 gramas de níquel e 1 de hidrogênio produzem de 30 a 40 watts de energia, o suficiente para manter uma lâmpada por três meses. Anunciada em 1989 por americanos, a fusão fria nunca foi reproduzida com sucesso e caiu em descrédito. Seria uma fonte energética limpa e barata.” É interessante também observar que, volta e meia, embutida em textos sobre algum assunto científico, encontramos citação à fusão fria, como neste caso de Veja de 14 de abril de 1993, numa matéria sobre a pesquisa de um brasileiro publicada na Nature sobre o estouro do milho de pipoca. Num texto ambíguo, a revista usa como argumento a pesquisa da fusão fria “o caso mais escandaloso dos últimos tempos...”. (p. 43). A fusão a frio foi um tema marcante, a ponto de produzir situações como a que encontramos na Revista D’, encartada na edição da Folha de S. 85 Paulo de 2 de dezembro de 1990. Em “Notas pessoais”, o compositor Fausto Fawcett, em dez quesitos para notas de 0 a 10, atribuiu a nota máxima “para os cientistas que tentam obter a fusão nuclear, que nos livraria dos famigerados papos ecológicos”. 2.1.4 - Um Tema Inquietante O tema “fusão fria” ainda hoje continua despertando interesse. Mesmo após a fase de grande impacto, pesquisas são feitas neste campo. Entre 1990 e 1993 foram realizados quatro Congressos sobre o tema (International Conference on Cold Fusion). No último Congresso, realizado de 6 a 9 de dezembro de 1993, nos Estados Unidos, foram apresentados 53 trabalhos, incluindo-se alguns de Fleischmann e Pons, os dois principais protagonistas da entrevista de 23 de março de 1989. Isto evidencia que a fusão a frio não foi um acontecimento isolado no contexto científico, extinto após a controvérsia iniciada com a entrevista. Com relação aos grupos brasileiros que se envolveram com a questão, reproduzindo a experiência nos moldes anunciados em Utah, todos abandonaram o assunto, retomando outros trabalhos. Entrevistas que realizamos no Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (com o pesquisador Gerson Otto Ludwig) e no Instituto de Pesquisas Energéticas (com o pesquisador Rajendra Saxena), indicam que os grupos destas duas instituições resolveram fazer a experiência motivados por curiosidade, visto que a montagem da aparelhagem necessária era relativamente simples. Rastreamos fontes em busca de registros de artigos publicados, no Brasil ou no Exterior, sobre as experiências feitas por grupos brasileiros. A equipe do IPEN, que realizou experiências em conjunto com equipe do Instituto de Física da USP, relatou o assunto em periódico interno, cujo título é 86 “Pesquisa sobre Emissão de Nêutrons durante a Eletrólise de Água Pesada”88. Os pesquisadores concluem ter obtido evidências da emissão de nêutrons, característica de um processo de fusão nuclear. 2.2 - Dos Gregos à Física Quântica As especulações e tentativas experimentais que fazem parte da história do conhecimento produzido e acumulado pelo Homem, e consagrado sob o manto científico, têm origens na filosofia desenvolvida na Grécia Antiga. Quando nos deparamos com um acontecimento atual, fragmentado em seu momento presente, nem sempre nos ocorre que as raízes primevas, ainda que de ordem por vezes estritamente filosóficas, remontam a épocas longínquas, situadas há pelo menos 2.500 anos. “É muito interessante e estimulante estudar como certas idéias da ciência moderna se ligam a pensamentos antiqüíssimos, o que mostra que há uma certa continuidade na história do pensamento humano”, escreveu o físico Mário Schenberg.89 Para compreender os acontecimentos físicos ou químicos é necessário conhecer, ainda que de modo resumido, os principais contornos do conhecimento sobre as fascinantes partículas microscópicas que formam todos os seres e objetos do mundo: os átomos. Dois filósofos gregos - Leucipo (circa 440 a.C.) e Demócrito (circa 420 a.C.) foram os primeiros a formular a idéia de que todas as coisas eram 88 - Search for Neutron Emission during the Electrolysis of Heavy Water. Publicação IPEN 297, Março, 1990. Paulo R. P. Coelho; R. N. Saxena; Spero P. Morato; I. D. Goldman; A. G. de Pinho and I. C. Nascimento. 10 p. 89 - SCHENBERG, Mário. Pensando a Física. São Paulo, 3ª ed., 1988, Nova Stella, p. 29. 87 formadas por algo que se batizou de átomo, palavra grega que significa “indivisível”. As teorias sobre o átomo dos antigos gregos eram de caráter mais filosófico do que científico. Os filósofos dispunham de grande intuição, mas não contavam com meios para experimentar suas idéias. O átomo não é indivisível, como supunham, mas suas concepções, em geral, mostraram-se acertadas e constituem a base de contínuos estudos ao longo de séculos. A manutenção do termo é uma forma de homenagem àqueles precursores da antiga Grécia. Na Idade Média, os alquimistas - que podem ser considerados os precursores da moderna Química - avançaram em direção a conclusões mais sólidas do que as aventadas pelos gregos, mesmo porque já manipulavam os materiais com os quais especulavam. Personagens de um período histórico em que se mesclam magia, bruxaria, obscurantismo e charlatanice de toda espécie, os alquimistas ficaram mais conhecidos pelo lado místico da atividade, embora tenham contribuído para trazer luz ao conhecimento sobre a Natureza. A partir do século XVII, uma sucessão de eventos criou uma sólida base de conhecimentos sobre os átomos, sendo já apropriado nominar no plural, pois agora já se sabia que diferentes átomos formam tudo que conhecemos na Natureza. A Química e a Física, que começavam a ganhar o status de ramos especializados da Ciência, iriam buscar - e encontrar - respostas para as inquietações dos antigos gregos e oferecer às gerações futuras um imenso rol de conhecimentos que, vistos da perspectiva atual, são a base do mundo no qual vivemos. O conhecimento avançava em direção ao mundo microscópico, não perceptível pela visão humana e, também, em direção ao mundo macroscópico, assim podemos dizer, que igualmente despertava a curiosidade do 88 Homem desde as primeiras civilizações. Afinal, a visão humana capta a presença do Sol, da Lua, das estrelas no firmamento, dos eclipses solares e lunares, dos cometas etc. Não é por acaso que se considera a Astronomia como a mais antiga ciência. Do ponto de vista de concepção física, no século XVII surge a idéia de um Cosmos aberto, um Universo infinito, portanto antagônica à concepção de Aristóteles (384-322 d.C.), aceita desde a Grécia Antiga até fins da Idade Média. Aristóteles distinguia dois movimentos, o dos corpos terrestres e o dos corpos celestes. Fazia parte da concepção de Aristóteles a idéia de que a Terra estava imóvel no centro do Céu, formado de esferas concêntricas, sendo a Lua a de menor raio. Os corpos celestes (Mercúrio, Vênus, Sol, Marte, Júpiter e Saturno) teriam movimentos regulares, de acordo com a vontade divina. Para além das esferas destes corpos, haveria as estrelas fixas e, daí em diante, nada mais. Em seu último ano de vida, Nicolau Copérnico (1473-1543) afirmou que a Terra não era o centro do mundo. Mais de meio século depois, entre 1609 e 1619, Johannes Kepler (1571-1630) formulou leis explicativas do movimento dos corpos celestes. Kepler “mandou para o espaço” a concepção de Aristóteles - a da hierarquia de esferas regidas pela vontade divina. Galileu Galilei (1564-1642) inaugura uma nova fase na busca pelo conhecimento sistemático, ao aliar intuição à comprovação, e, de modo pioneiro, utilizar aparato tecnológico para definir conceitos e teorias, ao descobrir, em 1609, novos objetos celestes, utilizando uma incipiente luneta, construída com rudimentares conhecimentos óticos surgidos na Holanda. A partir de Galileu surge a concepção de um novo sistema de mundo. Termina a distinção entre movimentos e leis aplicáveis somente aos corpos celestes e a Terra. As leis físicas são universais. Evidentemente, a Igreja não 89 gostou nem um pouco desta concepção e são conhecidas as conseqüências, com a instauração do famoso processo contra Galileu. Com Galileu começa uma era de significativos progressos científicos, metodicamente sistematizados e que encontra em Isaac Newton (16421727) o grande formulador. Surge a Física Clássica, apoiada no conhecimento mecânico, que iria desembocar, já no século XX, na mecânica quântica. Também a partir do século XVII, a Química começa a oferecer explicações sobre a composição da matéria, confirmando concepções filosóficas oriundas da Grécia Antiga e refutando especulações que estiveram em voga na Idade Média com os alquimistas. Em 1661, Robert Boyle (1627-1691) apresentou as conhecidas leis sobre os gases (que ficaram conhecidas como Leis de Boyle), definindo um elemento como uma substância básica que pode ser combinada com outros elementos de modo a formar compostos e que, inversamente, não pode ser decomposta numa substância mais simples depois de ser isolada de um composto. No século XIX, com o químico John Dalton (1766-1844) é que a hipótese da constituição atômica da matéria começou a impor-se para a interpretação das reações químicas e de suas leis básicas (a lei de conservação da massa, a lei das proporções definidas, a lei das proporções múltiplas e a lei de Gay-Lussac). O conhecimento avançava e agora já se sabia que os átomos se combinam quimicamente para formar as moléculas e as reações químicas passam a ser descritas como resultado do intercâmbio de átomos entre as moléculas, em suas colisões. Ao final do século XIX, importantes descobertas iriam produzir impulso na Física. Em 1865, James Clerk Maxwell (1831-1879) sintetizou as leis do eletromagnetismo. Ele deduziu a existência de ondas eletromagnéticas, utilizando como linguagem matemática um sistema de equações. 90 Vinte anos depois, Heinrich Hertz (1857-1894) associou estas ondas com as ondas luminosas, de freqüências diferentes, mas igualmente capazes de serem refletidas por corpos metálicos (que conduzem eletricidade) e dielétricos (que não conduzem eletricidade) e de se propagarem no vácuo com idêntica velocidade. É notável a sucessão de descobertas ocorridas ao final do século XIX. Em 1879, William Crookes (1832-1919) descobriu os raios catódicos, princípio da válvula e do tubo de TV. Em 1887, Hertz descobriu o efeito fotoelétrico e demonstrou que a luz é formada por “pacotes”de energia, tópico sobre o qual Einstein trabalhou. Em 1895, W. Roentgen descobriu os raios X. Em 1896, Jean Becquerel (1878-1953) estudou os sais de urânio e descobriu que mesmo não expostos previamente aos raios solares, estes são fluorescentes, servindo para impressionar placas fotográficas. Em 1897, o físico Joseph John Thomson (1856-1940) - baseando-se em conhecimentos produzidos por outros físicos - demonstrou que os raios catódicos são formados por partículas com carga elétrica negativa, chamadas de “elétrons” em 1891 por G. Stoney. A comprovação da existência dos elétrons era a primeira evidência de que os átomos continham outras partículas ainda menores, contrariando a concepção herdada dos antigos gregos. H. A. Lorentz (1853-1928) desenvolveu a teoria clássica do elétron e, em 1904, nos albores do século XX, H. Nagaoka propôs que o átomo deveria ser constituído de elétrons girando numa órbita circular em torno de um núcleo central. O ano de 1905 é um marco, pois vêm à luz seis artigos de Albert Einstein (1879-1955), a saber:90 90 - Conforme PAIS, Abraham. “Sutil é o Senhor...”: a ciência e a vida de Albert Eins- tein. Trad. Fernando Parente e Viriato Esteves; revisão da tradução César Benjamin. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1995. p. 18. 91 1) “O quantum de luz e o efeito fotoelétrico”, concluído em 17 de março. Este artigo, escrito por Einstein antes da tese de Doutoramento, deulhe o Prêmio Nobel de Física em 1921. 2) “Uma nova determinação das dimensões moleculares”, terminado em 30 de abril. É a tese de Doutoramento de Einstein. 3) “O movimento browniano”, um trabalho derivado da tese. 4) O primeiro artigo sobre a “relatividade restrita”, recebido pelos editores de Annalen der Physik em 30 de junho. 5) O segundo artigo sobre a “relatividade restrita”, contendo a fórmula que se tornaria célebre (E = mc2, onde E significa energia, m é massa e c a velocidade da luz), recebido pelos editores de Annalen der Physik em 27 de setembro. 6) Um segundo artigo sobre o “movimento browniano”, recebido em 19 de dezembro. Segundo o físico Abraham Pais “Em toda a história da física nunca existiu um período de transição tão abrupto e de tamanha amplitude quanto o dos dez anos que separam 1895 e 1905. Em rápida sucessão, novos horizontes foram abertos pelas descobertas experimentais dos raios X (1895), do efeito Zeeman (1896), da radioatividade (1896) e do elétron (1897), além do alargamento da espectroscopia do infravermelho à região entre 3 µm e 60 µm [1 µm é igual a uma milionésima parte do metro]. Os nascimentos da teoria quântica (1900) e da teoria da relatividade (1905) marcaram o início de uma nova era em que se constatou que os próprios fundamentos da teoria física necessitavam de revisão.”91 A partir de 1924-25, a mecânica quântica iria trazer novas fundamentações para a teoria atômica. Na expressão de LOPES “é ela [a mecânica quântica] que explica a estabilidade da matéria e a identidade de átomos 91 - Opus cit. p. 29. 92 de um mesmo elemento, a única que descreve corretamente a matéria microscópica, as moléculas, os átomos, os núcleos, a física da matéria condensada, as interações entre a matéria e a energia, a supercondutividade, o magnetismo, a física de partículas elementares.”92 Historicamente, a mecânica quântica (ou física quântica) começa a surgir com Max Planck, em 1900. Este físico alemão sugeriu que a luz, os raios-X e outras ondas eletromagnéticas não são emitidos arbitrariamente como até então se supunha, mas em determinadas quantidades, que chamou de quanta (daí a origem do termo quântico). Plank previu que cada quantum teria uma certa cota de energia, tanto maior quanto mais alta a freqüência das ondas. Isto implicava em que a uma freqüência suficientemente alta, a emissão de um único quantum exigiria mais energia do que a disponível. Com o princípio da incerteza, formulado em 1926 por outro físico alemão, Werner Heinserberg (1901-1976), surge uma nova forma de percepção do mundo; cai por terra o modelo do universo completamente determinístico. No ano seguinte, com a mecânica quântica, E. Schrödinger (1877-1961) criou as condições para descrever a fórmula provável dos diferentes orbitais de elétrons. HAWKING explica: “Ainda que a luz seja formada por ondas, a hipótese quântica de Planck sustenta que, sob algumas formas, ela se comporta como se fosse composta de partículas: só pode ser emitida ou absorvida em quantidades ou quanta. Igualmente, o princípio da incerteza de Heisenberg implica que as partículas se comportem como ondas em algumas situações: não se localizam em posição definida mas estão espalhadas segundo determinada distribuição de probabilidade. (...) Existe na mecânica quântica, portanto, uma dualidade entre ondas e partículas: para alguns pro92 - LEITE LOPES, J. A estrutura quântica da matéria - do átomo pré-socrático às partí- culas elementares, p. 11-12. 93 pósitos é útil pensar nas partículas como ondas, e para outros, é melhor pensar nas ondas como partículas.”93 Esta dualidade - onda/partícula - trouxe nova visão à compreensão da estrutura dos átomos, “unidades básicas da química e da biologia, e blocos de construção de que nós, e tudo o que nos rodeia, somos feitos.”94 Até o início do século XX havia prevalecido a idéia de que os elétrons (partículas de eletricidade negativa) giravam em torno de um núcleo central (com eletricidade positiva), mantido em órbita estável por meio de força gravitacional. O ano de 1932 registra enormes conquistas no terreno do conhecimento sobre os átomos. J. Chadwick (1891-1974) descobre o nêutron. O pósitron, cuja existência já havia sido prevista em 1928, foi confirmado. O neutrino, cujas bases teóricas foram desenvolvidas em 1932, teria sua existência comprovada em 1956. Outra partícula, o méson - uma espécie de “cola intranuclear” - proposta pelo físico japonês Hidek Yukawa, iria ser comprovada em 1947, com as experiências realizadas pelo físico brasileiro César Lattes. Os sucessivos conhecimentos acumulados sobre as partículas que formam os átomos, e suas interações, abriram a trilha pela qual os cientistas chegaram à bomba de hidrogênio (bomba H), à bomba atômica e ao aproveitamento pacífico da energia por meio das usinas nucleares, com o domínio da fissão de núcleos de átomo. A fusão de núcleos do átomo, por outro lado, também assentada neste conhecimento cuja origem mais remota vem da antiga Grécia, é uma perspectiva com base teórica consistente, que se abre para duas vertentes experimentais: a clássica, iniciada nos anos 40 e aquela da qual os cientistas que 93 - HAWKING, Stephen W. Uma breve história do tempo. Do big bang aos buracos ne- gros. Rio de Janeiro: Ed. Rocco, 1988, 4ª ed. p. 89-91. 94 - Opus cit. p. 92. 94 concederam a entrevista coletiva de 23 de março de 1989, em Utah, EUA, mostram-se como os prováveis precursores, conforme explicamos no item 2.1 - Uma Coletiva e seus Desdobramentos. 2.3 - Os Acontecimentos em Seqüência Jornalística (Análise Descritiva). Na sexta-feira, 24 de março de 1989, dois dos quatro jornais que são analisados nesta dissertação, pela primeira vez abordaram o assunto “fusão a frio”. Sob a rubrica “Nacional”, na página 9, o jornal O Estado de S. Paulo, sob o título “Cientistas anunciam fusão atômica barata”, noticiou que “Uma descoberta que equivale a reproduzir num tubo de ensaio as reações nucleares que ocorrem descontroladamente no Sol e nas bombas de hidrogênio foi anunciada ontem em Londres pelo jornal especializado em finanças Financial Times.” O OESP adicionou à notícia uma ilustração - Sol de proveta - para demonstrar o processo de fusão. Também em 24 de março de 89, o jornal carioca O Globo, em sua editoria “O Mundo / Ciência e Vida”, na página 13, noticiou o assunto pela primeira vez. Sob o título “Ciência aprisiona em proveta energia do Sol”, o jornal registrou: “Por meio de uma técnica inédita que utiliza uma simples proveta, dois cientistas anunciaram ter obtido a fusão termonuclear, hoje possível apenas em reatores experimentais complexos como o Joint European Torus, instalado na Grã-Bretanha e avaliado em milhões de dólares. O resultado equivale a aprisionar o poder do Sol numa proveta, explicam o britânico Martin Fleischmann, da Universidade de Southampton, e o americano Stan [sic] Pons, da Universidade de Utah.” Em seguida, O Globo também acaba entregando a fonte do material, ao informar que “Num artigo publicado ontem no jornal ‘Financial Times’, os pesquisadores dizem ter desenvolvido nova técnica, com custo reduzido 95 para milhares de dólares...”. Como se vê, uma reportagem assinada por Clive Cookson, então editor de Tecnologia do jornal inglês, transforma-se, no texto de O Globo, num “artigo publicado ontem”, induzindo à idéia de que os dois cientistas escreveram o artigo. Destas duas notícias do dia 24 de março de 1989, apuradas diretamente de um jornal londrino (Financial Times) e sem qualquer repercussão junto à pesquisadores brasileiros, surgiria um conjunto de textos que, nas semanas seguintes, iria ocupar espaço significativo do noticiário sobre Ciência e Tecnologia nos quatro jornais considerados como mais importantes no Brasil: os já aludidos O Estado de S. Paulo e o Globo, e, também, a Folha de S. Paulo e o Jornal do Brasil, que começariam a abordar o assunto com 24 horas de atraso. No dia seguinte, 25 de março, a Folha de S. Paulo lançaria o assunto em primeira página, com destaque de três colunas, foto, ilustração e um texto assinado por Alcides Ferreira, correspondente em Washington. “Cientistas obtêm energia com fusão nuclear de baixo custo” foi o título escolhido para noticiar que “Cientistas da Universidade de Utah (EUA) e da Universidade de Southampton (Grã-Bretanha) anunciaram ter conseguido fusão nuclear - fonte de energia ‘limpa’- em um equipamento barato. No lugar dos instrumentos atuais - que custam centenas de milhões de dólares e têm até três andares - o dispositivo usa só um tipo de água (‘água pesada’) e eletricidade.” Da chamada de primeira página, a FSP remete o leitor para a editoria de Educação e Ciência, na página C-6, na qual titula: “Fusão nuclear em equipamento caseiro alvoroça cientistas.” Num texto que para os padrões atuais (1996) do jornal paulista parece bastante longo, o correspondente Alcides Ferreira procurava cobrir vários aspectos inerentes ao tema: fala do dispositivo usado por Fleischmann e Pons, comparando-o com aqueles que vêm sendo tentados por outros grupos 96 de pesquisa (que trabalham na linha da fusão convencional, sob alta temperatura); chama a atenção para a economicidade do processo, que produziria uma “energia barata”; repercute a notícia junto à especialistas, como o físico norte-americano Harold Furth, citado como principal especialista mundial em fusão, e Heinz Gebischer, um eletroquímico alemão-ocidental e citado como o mais respeitado especialista em reações que envolvem correntes elétricas. Este último tratou logo de jogar água na fervura, qualificando de “ilusório” o anúncio feito por Fleischmann e Pons. Por fim, o então correspondente da FSP relatava bastidores da entrevista coletiva e o comportamento da dupla de cientistas no dia seguinte, 24 de março, quando a informação jornalística, em todo o mundo, ganhava rapidamente o interesse dos editores. No mesmo material - ilustrado por uma foto em três colunas, de Fleishmann e Pons no momento da entrevista coletiva concedida nas dependências da Universidade de Utah, assinada pela Associated Press - a FSP publicou um box, de autoria da redação, assinado por um anônimo APJ, sob o título “Experimento revoluciona a área”. O texto, aberto com um prudente condicional - “Se confirmada, a descoberta de Pons e Fleischmann revoluciona o campo da fusão nuclear” - explica as formas de fusão que estão sendo pesquisadas. O dia 25 de março marca também a estréia do Jornal do Brasil no assunto. Na editoria Ciência/Meio Ambiente, na página 5 do caderno principal, o jornal carioca publicou o texto “Fusão nuclear barata é vista com ceticismo”. O texto, sem autoria declarada, tem origem em Roma e Londres e abre repercutindo uma declaração dada ao jornal italiano La Reppublica pelo físico Carlo Rubbia, ganhador em 1986 de um Prêmio Nobel em Física e então diretor do CERN - maior centro de pesquisas em física de todo o mundo, localizado na fronteiro da França com a Suiça, mantido por um 97 consórcio de países europeus, com uma equipe fixa da ordem de 7 mil pesquisadores. Demonstrando prudência, o físico italiano - segundo o lead do texto do JB - “afirmou ontem em Roma que pode ser um ovo de Colombo ou pura magia o experimento dos químicos Martin Fleischmann e Stanley Pons.” Mostrando ceticismo diante do que diziam Fleischmann e Pons, Rubbia resumiu quase de maneira poética a questão, ao dizer que “a natureza não é tão gentil de presentear o homem com uma solução tão simples para um problema tão complexo.” Depois, o JB conta um pouco da história da fusão de átomos - que teria começado em 1952, fala da fissão nuclear e bate na tecla da “energia barata, limpa e segura”, que seria proporcionada com o método anunciado dia 23 em Utah. E coloca um dado que ficou esquecido nesta história: Fleischmann e Pons teriam investido cem mil dólares para construir os equipamentos para o experimento, “nos últimos cinco anos”. Esse dado parece não ter despertado o menor interesse, pois o noticiário desconsiderou os antecedentes da pesquisa empreendida pelos dois cientistas, fazendo crer que tudo começou num simples “Eureka!” da dupla que, munida de alguns tubos, provetas e fios, mergulhados num aquário de água pesada, teria conseguido obter energia em quantidade maior do que a utilizada para produzila. No dia 25, O Globo - que estreara o assunto em sua edição anterior afirmava em manchete de alto da página 14 (O Mundo/Ciência e Vida): “Fusão nuclear em proveta divide cientistas”. Em material sem assinatura, proveniente de Nova York, o jornal começava assim: “Cientistas de todo o Mundo receberam com cauteloso otimismo ou incredulidade o anúncio da obtenção de fusão nuclear à temperatura ambiente a partir de água do mar, feito quinta-feira. O texto apresenta repercussões obtidas junto ao já citado Carlo Rubbia, Heniz Gerischer (sic), Bruno Coppi, do Instituto Tecnológico 98 de Massachusetts. Também apresenta duas opiniões favoráveis; a de Dennis Keefe, especialista em fusão nuclear do Laboratório Lawrence Berkley (sic), na Califórnia, e de Edward Teller, apresentado como criador da bomba de hidrogênio. Deste último, a declaração publicada é a seguinte: “Inicialmente, achei a reação impossível. Agora, vejo grande possibilidade de ter cometido grande equívoco, já que a experiência parece bastante promissora.” Num box de tamanho quase equivalente ao texto principal - “Num pequeno sótão, o sonho de reproduzir a energia solar” - o jornal carioca explica a técnica de Fleischmann e Pons, à exemplo do que já fizera a Folha de S. Paulo no dia anterior. Abre o texto com uma expressão condicional: “Se for comprovada a eficácia da nova técnica...”. No dia 26 de março, um domingo, ao contrário do que seria adequado imaginar, somente os dois jornais paulistas dedicaram espaço ao assunto “fusão fria”. Os jornais do Rio de Janeiro simplesmente nada pautaram sobre a questão. Prudência, falta de material, falta de planejamento editorial para a edição que, tradicionalmente, traz material mais bem elaborado e fundamentado em pesquisa? A FSP daquele domingo apresentou, pela primeira vez, a opinião de um brasileiro sobre o tema. Era do físico Rogério Cézar Cerqueira Leite, professor emérito da Universidade Estadual de Campinas, a Unicamp, e membro do Conselho Editorial do próprio jornal. Sob o título “Informações sobre nova técnica de fusão omitem dados fundamentais” e baseando-se na opinião de Cerqueira Leite o lead da FSP afirma que “A nova técnica de fusão nuclear desenvolvida pelos pesquisadores Stan [sic] Pons, da Universidade de Utah (EUA), e Martin Fleischmann, da Universidade de Southampton (Inglaterra), só poderá ser avaliada quando forem divulgados os detalhes do experimento.” Em seguida, 99 Cerqueira Leite declara que “todas as pesquisas de fusão nuclear adotam linhas totalmente diferentes da utilizada por esses pesquisadores.” Para Cerqueira Leite, a omissão de dados sobre a experiência, sob a alegação de preservar informações e conhecimento passíveis de patenteamento não era justificável: “Não se patenteia um experimento científico.” Neste texto, a FSP remete à Imprensa a responsabilidade pela repercussão mundial que o assunto alcançou após a entrevista concedida pelos dois pesquisadores na Universidade de Utah, no dia 23 de março. A FSP registra a contradição existente entre o material de divulgação produzido pela Universidade de Utah (veja, nos anexos desta dissertação, a reprodução deste release), afirmando “que o experimento produziu trítio (hidrogênio com dois nêutrons) e emitiu raios-gama. Nas versões divulgadas pela imprensa, após a entrevista coletiva concedida pelos pesquisadores na quintafeira em Utah, a reação indicada mostra a formação de hélio e não faz menção aos raios-gama.” A emissão de raios-gama é um vetor de importância para definir, com mais precisão, o tipo de reação observada por Fleischmann e Pons, pois caracterizaria a ocorrência de fusão nuclear. O OESP do dia 26 de março, na página 17, publicou um “pirulito” de cinco parágrafos, sob o título “Fusão nuclear barata recebida com descrença”. Com atraso, o jornal paulista repercute as declarações dos já citados Carlo Rubbia e Heinz Gerischer. Pela primeira vez em seu noticiário, introduz a presença de um brasileiro, o físico Giorgio Moscati, professor titular do Instituto de Física da Universidade de São Paulo, que declarou: “Nunca ouvi falar nessa linha de pesquisa.” O texto finaliza com uma comparação, de base aritmética, afirmando (ainda que no condicional): “Se forem confirmados os resultados dessa experiência, ainda não apresentados em publicações científicas, será possível extrair energia equivalente a dez toneladas de carvão queimado de 34 litros de água do mar.” 100 Somente no dia 29 de março, e apenas no Jornal do Brasil, o tema “fusão a frio” voltaria a ocupar espaço. Desta vez, para relatar a repetição da experiência. Esse mote - o da repetição da experiência de Fleischmann e Pons - iria produzir um conjunto de informações bastante atípicas na cobertura jornalística especializada em Ciência e Tecnologia, à medida que revelaria, praticamente em regime “on-line”, os desdobramentos de trabalho realizado por pesquisadores. Os cientistas normalmente se mostram avessos a este tipo de divulgação precipitada, preferindo percorrer um rito que inclui, antes de mais nada, a discussão e apresentação de resultados em regime fechado, direcionado exclusivamente para os membros da chamada “comunidade científica”. Resultados negativos não costumam ser objeto de apresentações, ainda mais ao público leigo, salvo se forem para contestar alguma teoria ou hipótese que se julgava válida. O material do JB, procedente de Haia, informava que especialistas de um laboratório situado na Holanda haviam tentado reproduzir a experiência de Fleischmann e Pons e não conseguiram. O texto diz que os dois “alegaram ter encontrado uma forma fácil e barata de obter energia nuclear pelo processo de fusão.” O texto foi complementado por um box, sob o título “Uma energia não poluente e ilimitada”. No dia 30 de março somente a FSP abordou o assunto. Surge em cena o cientista Steven Jones, com laboratório também situado no estado americano de Utah, na cidade de Provo, da Universidade Brigham Young. Jones havia trabalhado com a dupla nas pesquisas sobre fusão em temperatura ambiente e, por razões não suficientemente explicadas, foi alijado da fase final e surpreendido com a entrevista coletiva. Ele iria colocar em dúvida as conclusões divulgadas por Fleischmann e Pons, num artigo preparado para a conceituada revista científica Nature. 101 O material da FSP é complementado com um material produzido pela agência de notícias Reuter - “Vários tentam repetir” - informando que “cientistas de vários países estão tentando reproduzir a experiência de fusão nuclear, anunciada por Martin Fleischmann e Stanley Pons no último dia 23.” No dia 31 de março, a mesma FSP foi o único dos quatro jornais em análise que fez registro sobre o assunto, em duas pequenas notas publicadas na coluna “Síntese” do caderno Ciência, resumindo informações já conhecidas. O dia 1º de abril marcou a aparição do Brasil como país onde também iriam se repetir a experiência nos moldes apresentados pela dupla de Utah. Sob o título “USP quer água pesada argentina para repetir experimento de fusão”, a FSP publicou reportagem no Caderno Cidades relatando que o Instituto de Física da Universidade de São Paulo (IFUSP), então sob a direção do físico Ivan Cunha Nascimento, estava tentando obter água pesada, matéria-prima indispensável para realizar o experimento, junto a grupos de pesquisa na Argentina. A abundante matéria-prima - água pesada - na verdade não é tão abundante assim, pois necessita ser produzida em usinas especializadas, inexistentes ainda no Brasil. O próprio jornal, atribuindo a informação ao físico da USP, informa que “na natureza, para cada 6.000 litros de água comum existe um de água pesada.” O OESP também noticiou com grande destaque a intenção do IFUSP em repetir a experiência de fusão a frio, com texto assinado pelo repórter Wilson Marini, da editoria de Ciência e Tecnologia, publicado na página 11. O texto esclarece que “o resultado alcançado por Fleischmann e Pons colheu de surpresa a comunidade de plasma, admitiu o físico brasileiro, que agora não quer mais perder tempo.” 102 Os físicos que trabalham com plasma, como o próprio Nascimento, percorrem um caminho diferente daquele trilhado por Fleischmann e Pons e utilizam equipamentos sofisticados e caros para tentar obter altíssima temperatura capaz de produzir a fusão atômica. As pesquisas nesta linha já existem há pelo menos quatro décadas e produziram resultados promissores mas ainda considerados inadequados em termos de obtenção de energia significativa. O testo do OESP informava também que a Câmara dos Deputados do Estado de Utah começou a discutir a aprovação de uma dotação extraordinária de cinco milhões de dólares para a universidade local investir nas pesquisas de fusão a frio. O complemento veio num box - “Processo é o do Sol e da bomba” no qual se explica o processo e compara-o com os processos de fusão em alta temperatura e, também, de um terceiro processo, “conhecido por fusão catalítica muônica”. O Jornal do Brasil, também em 1º de abril, relata a intenção do IFUSP de iniciar a experiência. Atribui ao físico Nascimento a seguinte declaração: “Se comprovada a viabilidade econômica desta técnica, certamente está solucionado o problema energético da humanidade”. O JB também colocou um rodapé no material principal informando que o preço do paládio - metal utilizado na experiência - disparou no mercado de Londres. No dia 2 de abril, somente a FSP trabalhou o assunto, ao informar com direito a manchetinha na primeira página - que cientistas húngaros conseguiram fazer a fusão nuclear em temperatura ambiente. O Globo, no dia 3, noticiou em material proveniente de Nova York que “o pesquisador americano Steven Jones afirmou ter repetido com sucesso a controvertida experiência de fusão nuclear à temperatura ambiente, 103 anunciada na semana passada por dois outros cientistas.” Não foi exatamente na semana passada, mas tudo bem. Segundo o jornal, Jones teria medido a emissão de nêutrons durante a reação, o que caracterizaria um processo de fusão. O físico americano foi cauteloso, contudo, com relação a uma possível aplicação prática. Disse ele: “Serão necessários pelo menos vinte anos para desenvolvermos formas de exploração da fusão nuclear”. Com atraso de pelo menos dois dias em relação aos seus concorrentes, O Globo finalmente informou sobre a tentativa que seria iniciada no IFUSP, sob o título “Brasil pesquisará o novo processo de produção de energia”, uma retranca do material principal. Desde o início de abril o material jornalístico irá se caracterizar pelos seguintes enfoques: tentativas brasileiras de reproduzir a experiência de fusão nuclear em temperatura ambiente, nos moldes propostos por Fleischmann e Pons; e as tentativas realizadas por grupos de pesquisa, no Exterior. No dia 5 de abril, o OESP informa novamente, com direito a chamada em duas colunas na primeira página, a tentativa do IFUSP. A água pesada teria sido retirada de um “estoque estratégico do IPEN”. O referido IPEN é o Instituto de Pesquisas Energéticas, situado na própria USP, vinculado à Comissão Nacional de Energia Nuclear (CNEN). O repórter Wilson Marini, em texto que ocupou metade da página 9, com fotos e ilustrações, fez um completo relato dos procedimentos realizados para pôr em marcha a experiência uspiana. No dia 6, somente o OESP informou que “Polônia repete a fusão a frio”. No mesmo texto, o jornal informou sobre a incerteza quanto à publicação, pela revista Nature, do artigo original de Fleischmann e Pons. A revista também recebera um artigo de Steven Jones e estaria, segundo o jornal, decidindo o que fazer. 104 O JB, neste dia 6 de abril, preferiu abrir espaço para a experiência já em andamento no Instituto de Pesquisas Espaciais (INPE), em São José dos Campos, fazendo pequena chamada na primeira página. Na página 8, o JB informou que desde a segunda-feira, dia 3, físicos do INPE estavam tentando remontar a experiência de fusão a frio. “Estamos trabalhando num enorme quebra-cabeças porque não conhecemos detalhes do fenômeno” declarou ao jornal o físico Ricardo Galvão. Para ele, ainda segundo o jornal, “se a eficiência do fenômeno for comprovada, o problema de energia do mundo estará completamente resolvido”. Agregado ao material, o JB publicou um texto de Lee Dye, do Los Angeles Times, informando que “pelo menos 12 grandes laboratórios ao redor do mundo se empenham agora em repetir a experiência”. O articulista informou que Fleischmann e Pons haviam dito que “experimentaram o processo por mais de cinco anos e que o aperfeiçoaram a ponto de produzirem quatro vezes mais energia do que consomem [sic]”. No dia 7 de abril, no generoso espaço que havia sido criado com o lançamento do Caderno Ciência, a FSP continuava a acompanhar o assunto. Em chamada para o Caderno, na primeira página, o destaque era a “nova fusão nuclear”. O material, assinado pelo repórter Ricardo Bonalume Neto, especializado em Ciência e Tecnologia, tinha o seguinte título: “Pesquisadores caçam partículas para comprovar método de fusão nuclear”. A tônica do texto era a busca por comprovar a emissão de nêutrons, durante as experiências de fusão a frio, pois isto caracterizaria o processo como um acontecimento físico desta natureza. O texto faz uma introdução geral sobre o assunto, compilando informações já anteriormente publicadas e, bem ao estilo do jornal paulista, duas retrancas dão o tom diferenciador de enfoques que a FSP costuma adotar. 105 Primeiro, no texto “Água pesada já foi obtida até por contrabando”, o mesmo repórter relata que para obter a água pesada necessária na experiência os pesquisadores brasileiros talvez tivessem que apelar para um expediente já utilizado em outras circunstâncias: “o tradicional contrabando, prática comum entre pesquisadores, sejam físicos, biólogos moleculares ou meteorologistas”. O outro texto-retranca - sob o título “Artigo circula em uma cópia clandestina” - tratou de uma questão diretamente vinculada aos propósitos desta dissertação, ou seja, o fato de que a comunicação da experiência e seus resultados, por Fleischmann e Pons, se deu de maneira coletiva e unificada, isto é, para a sociedade em geral e para a comunidade especializada de pesquisadores. Reproduzindo trecho desse texto, também de autoria de Ricardo Bonalume Neto, observemos o seguinte: “Os editores da ‘Nature’ elogiaram a cobertura ‘alerta’ da imprensa não-especializada, mas disseram que há motivo de alarme ‘quando cientistas começam a ler sobre as descobertas de seus colegas em colunas de jornais’. Eles ficaram indignados com notícias de que os artigos dos dois grupos rivais de pesquisa em fusão deveriam sair em maio na revista que editam. A ‘Nature’ deu uma bronca elegante, sem citar nomes, quando disse que mesmo nas melhores condições não é possível levar menos de um mês entre a chegada e a publicação de um texto, e lembrou o caso da descoberta do pulsar na Supernova 1987A, cujo artigo tinha saído na edição anterior. Os responsáveis ‘conseguiram ficar quietos durante as semanas requeridas’”. O texto continuava - agora enfocando o fato que levou ao título - informando: “Mas a febre de divulgação atingiu também os cientistas. As máquinas de fac-símile possibilitaram a rápida difusão dos textos. Cópias do artigo de Jones para a ‘Nature’ relatando seus resultados foram enviadas para institutos de física em vários cantos do planeta. Também começaram a 106 circular os artigos que Pons e Fleischmann enviaram para a multidisciplinar ‘Nature’ e para a mais especializada “Journal of Electroanalytical Chemistry”. No dia 7 de abril, somente o OESP dedicaria atenção ao tema, informando que o “Journal of Electroanalytical Chemistry and Interfacial Electrochemistry está distribuindo antecipadamente sua edição do dia 10, que traz oito páginas sobre a experiência realizada pelos cientistas Stanley Pons e Martin Fleischmann”. O OESP dizia que “a enorme curiosidade da comunidade científica se deve ao fato de a dupla ter violado os rituais de publicação de obras originais - eles deram um resumo dos resultados no jornal financeiro britânico, Financial Times, em vez de usar as revistas científicas. Um sinal dos interesses em jogo é que o preço do paládio, metal básico para a experiência, subiu ontem na Bolsa de Londres para seu mais alto preço nos últimos 16 anos.” Reportando-se ao artigo que estava saindo na publicação científica da área de eletroquímica, o OESP coloca a afirmação, que estaria contida no referido artigo: “É inconcebível que isto tenha acontecido causado por outra coisa que não um processo nuclear”. Em box, o OESP informou que os cariocas do Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas (CBPF) e da Coordenação de Pós-Graduação em Engenharia Nuclear, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (COPPE) não dispunham de verba necessária para realizar a experiência, como gostariam. No dia 8 de abril, o OESP e a FSP fizeram registros distintos sobre o assunto, e o JB e o O Globo nada noticiaram sobre a fusão a frio. No dia 9, pela primeira vez, aparece na imprensa brasileira um artigo assinado com o peso e a responsabilidade de uma personalidade conhecida no mundo da Ciência. Em coluna que então era publicada no OESP, Isaac Asimov, seguindo linha didática voltada para público não iniciado, explica- 107 va o que produz a fusão atômica e concluía, de maneira cautelosa: “Há apenas um problema. Tudo parece ser tão bom, que os cientistas acabam ficando com a sensação de que isto não é verdade. Vamos esperar para ver.” O JB, no dia 9 de abril, motivado por pressão dos físicos que há anos tentam construir no Rio de Janeiro um laboratório de física de plasma, considerou em título que “Anúncio de fusão nuclear fria reforça tese de físicos do Rio”. Vale lembrar que os pesquisadores do Rio e os de São Paulo se envolveram numa disputa para privilegiar um ou outro estado com a localização do referido laboratório. O Rio de Janeiro já foi escolhido para sediar o empreendimento, mas o laboratório é um sonho que ainda não saiu do papel (1996). Neste laboratório também se contemplaria a linha de pesquisa com fusão em temperatura ambiente, advogada por pesquisadores vinculados ao CBPF. O anúncio de Fleischmann e Pons, portanto, viria reforçar o pensamento dos cariocas, em detrimento do que pensavam os pesquisadores paulistas ligados ao assunto, embora vários deles, inclusive o então diretor do IFUSP, Ivan Nascimento, tenham imediatamente iniciado procedimentos para reproduzir a experiência de fusão em temperatura ambiente. De Roma, o correspondente Araujo Netto, do mesmo JB, recuperou as declarações de Carlo Rubbia publicadas no La Reppublica em 24 de março e acrescentava material novo. O físico Rubbia havia conduzido em 31 de março, no CERN, uma sessão de informação científica na qual Fleischmann compareceu e falou para uma seleta platéia de 500 físicos. E Rubbia declarou: “As descobertas jamais nascem adultas. E essa de Fleischmann e Pons não é uma exceção à regra: deve obedecer à mecânica do conhecimento científico. A verdade é que sua experiência deverá ser repetida muitas vezes.” Segundo Araujo Netto, Fleischmann recebeu com bom humor e modéstia o comentário de Rubbia, “primeiro quando disse que sua experiência 108 apenas começou; e depois quando previu que para a sua aplicação prática o mundo deverá esperar pelo menos mais 20 anos.” O material do JB era complementado com um texto do repórter Evanildo Silveira, resumindo o desenvolvimento científico em busca do controle da fusão atômica, que teria, segundo o texto, se iniciado em 1947. No dia 11 de abril, os quatro jornais enfocados nesta dissertação trouxeram material sobre o assunto. A FSP, em material localizado na editoria de Exterior, comunicou que físicos da Universidade A&M, em College Station, no Texas, afirmaram ter reproduzido a fusão nuclear a frio. O OESP também registrou o comunicado oriundo de Houston, Texas. O JB destacou o assunto com chamada em primeira página. “Em caso positivo, o mundo entrará numa era de energia abundante e barata. O deutério, combustível da fusão nuclear, pode ser conseguido da água do mar. Um copo de água produziria tanta energia quanto o tanque cheio de gasolina de um automóvel. Usinas de fusão nuclear poderão substituir o petróleo e as hidrelétricas atuais”, publicou o jornal na primeira página, resumindo o texto da página 8, assinado por Rosental Calmon Alves, na época correspondente em Washington. Mas o JB demonstrou cautela, pois publicou também uma retranca sob o título “É possível que tudo seja só um sonho”, explicando que tudo o que Fleischmann e Pons tinham observado poderia ser apenas uma reação química. O material estava ilustrado com esquemas explicativos sobre o que é reação química, fissão nuclear e fusão nuclear. Esta hipótese da reação química predominou no material de O Globo na edição do dia 11 de abril, quando publicou material provindo do New York Times, reportando o comunicado dos cientistas da Universidade texa- 109 na, mas com a ressalva que fizeram quanto à possibilidade de tudo não passar de uma reação química. No dia 12, o OESP publicou que pesquisadores do Instituto de Tecnologia da Geórgia mediram a quantidade de nêutrons durante a experiência de fusão em temperatura ambiente. O JB também noticiou o fato e retomou o noticiário sobre grupos brasileiros, informando que o IPEN e o IFUSP haviam começado, no dia 11 de abril, a realizar experiência idêntica à de Fleischmann e Pons. “Segundo os cálculos de pesquisadores brasileiros, os primeiros resultados da experiência deverão ser conhecidos no início da próxima semana”, registrou o JB. Os pesquisadores, neste caso específico, estavam tornando público, dia a dia, o andamento do trabalho na bancada de laboratório. O Globo, no dia 12, preferiu valorizar o fato de que Fleischmann havia deixado a Inglaterra rumo a local ignorado, no qual pudesse trabalhar em paz. Registrou as notícias vindas da Geórgia e informou que o Comissariado para Energia Atômica, em Paris, anunciou que iria tentar repetir a experiência de fusão em temperatura ambiente. No dia 13 de abril, em inusitado exercício premonitório, a FSP proclamava na página C-5 do Caderno Cidades, em título ocupando três colunas, que “Falta apenas um equipamento para USP conseguir a fusão a frio”. O lead amenizava um pouco o título, pois tratava de esclarecer que os pesquisadores do IPEN e do IFUSP ainda dependiam de um calorímetro (equipamento para medir a temperatura) para ter “condições de realizar o experimento de fusão nuclear à temperatura ambiente...” No mesmo texto, mais uma experiência era comunicada, desta vez produzida na Faculdade de Física da Universidade de Moscou, conforme noticiara a agência Tass. O texto é arrematado com a informação de que Steven Jones, em um encontro sobre fusão na Sicília, Itália, teria acusado os colegas Fleischmann e Pons de romperem um acordo para que os três divul- 110 gassem simultaneamente o processo que desenvolveram de fusão em temperatura ambiente. Com mais detalhes, o correspondente Araujo Netto, do JB, relatou o encontro de Jones e Fleischmann ocorrido na Sicília, num colóquio científico organizado pelo Centro de Estudos Físicos Ettore Majorana. Em box complementar - “Pons e Jones atiçam velha rivalidade”- o JB traz ao público um pouco mais dos bastidores desta história. Eis o trecho final: “O acordo, diz Jones, era para que os dois grupos submetessem seus trabalhos à revista Nature no dia 24 de março. Pons e Fleischmann teriam quebrado o acordo, ao publicar seus trabalhos no Journal of Eletroanalytical Chemistry no dia 11 de março e no dia 21 de março a Universidade de Utah, que mantém uma antiga rivalidade com a Universidade de Brigham, decidiu divulgar a pesquisa na imprensa não especializada. Jones não foi informado da decisão - só ficou sabendo pelos jornais. Imediatamente apresentou seu trabalho à Nature, mas era tarde. Pons e Fleischmann já eram apontados como os pioneiros. Aos críticos que o acusam de estar querendo roubar a glória alheia, Jones mostra os registros do laboratório, revelando que desde 1986 sua equipe já estava buscando a fusão nuclear dentro de eletrodos de paládio.” Além de registrar que cientistas soviéticos haviam realizado experiência na Universidade de Moscou, o JB do dia 13 também informou que “pesquisadores de várias universidades e institutos do Rio de Janeiro vão reunir seus esforços para reproduzir a experiência de fusão nuclear fria.” Segundo o JB, já havia chegado do exterior “a receita completa para a experiência”. O GLOBO do dia 13 de abril informou sobre a experiência soviética e, também, o encontro de Jones e Fleischmann ocorrido na Sicília. No dia 14, o Caderno Ciência da FSP limitou-se a publicar quatro notas sobre o assunto. 111 Já o JB destacou na primeira página que o prestigiado Massachusetts Institute of Technology (MIT) anunciou ter desenvolvido uma explicação teórica para a fusão nuclear fria e já pedira patente para as possíveis aplicações comerciais da teoria. Na mesma chamada de primeira página, o JB informa que a Westinghouse, “um dos principais fabricantes de usinas nucleares do mundo”, assinou um contrato com a Universidade de Utah, para garantir acesso ao resultado das pesquisas. Reportando o assunto na página 7, em texto assinado por Rosental Calmon Alves, o JB registra: “O gerente de programas estratégicos da companhia, Robert Maxwell, advertiu, no entanto, que esse interesse não significa que a Westinghouse já esteja convencida da viabilidade comercial dessa forma revolucionária de criação de energia. ‘Fusão nuclear não é algo fácil. Mesmo se tudo der certo, eu diria que provavelmente levaria 20 ou 30 anos’ para que surgisse as primeiras usinas desse tipo para produção de eletricidade, disse Maxwell, ontem, numa entrevista coletiva em Pittsburgh, sede da Westinghouse.” O Globo do dia 14 de abril dá um enfoque econômico ao assunto, ao editar material proveniente de Londres informando sobre o crescimento da venda do paládio, cujo preço aumentou 27% desde que Fleischmann e Pons concederam a entrevista na Universidade de Utah. O jornal também registrou o pedido de patente feito pelo MIT. No dia 15 de abril, os jornais abriram espaço para os cientistas brasileiros. A FSP mandou o assunto para o Caderno Cidades: “Fusão a frio começa a ser tentada no Inpe”. O texto inclui também informações sobre a equipe conjunta do IPEN/IFUSP. O OESP ironizou no título: “Brasil entra na confusão a frio”. Matéria assinada por Moisés Rabinovici, correspondente em Washington em abril de 1989, abria assim: “Um misterioso empresário brasileiro assinou 112 quatro acordos de confidência com a Universidade de Utah, tornando-se um dos primeiros candidatos internacionais ao uso da fusão a frio, se e quando a descoberta for patenteada e licenciada.” O misterioso personagem brasileiro teria assinado quatro acordos, segundo informou ao jornal o departamento de transferência de tecnologia da Universidade de Utah. Foi a primeira e última vez que se falou neste empresário. A questão das medidas de nêutrons - importante para definir se realmente o processo constituía caso típico de fusão atômica - justificava o título jocoso de OESP: “Toda a confusão está nascendo justamente da precisão exigida nessa medida de nêutrons. Com detectores adaptados, a maioria dos cientistas que repetiram a experiência conseguiram registrar somente 600 nêutrons por hora. Teoricamente se espera que a reação produza algo como trilhões dessas partículas.” O JB do dia 15 de abril noticiou o trabalho dos pesquisadores do INPE, rotulado como “a segunda experiência brasileira para obtenção de energia através da fusão nuclear a frio, método ainda polêmico cuja descoberta foi anunciada pelos cientistas Martin Fleischmann e Stanley Pons.” A primeira experiência brasileira estaria em andamento desde o dia 13 de abril, comandada por físicos do IPEN e do IFUSP. Em retranca, o JB informou que os pesquisadores do Instituto de Tecnologia da Geórgia (que haviam referendado os resultados auspiciosos de Fleischmann e Pons) agora demonstravam ter dúvidas quanto à precisão dos instrumentos utilizados para medir a quantidade de nêutrons. No dia 15 de abril, o jornal O Globo chamou para a primeira página a experiência do INPE, que teria começado no dia anterior (sexta-feira). Para este jornal, tratava-se da “primeira experiência brasileira para a obtenção de fusão nuclear em temperatura ambiente.” 113 Em texto publicado na página 6, editoria de País, O Globo informa que “Nos próximos dias, o mesmo processo será testado por mais três equipes: a do Ipen, coordenada pelo físico Spero Morato; a da Coppe do Rio, com Luís Pinguelli Rosa; e a do Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas, no Rio, de Amos Tropper.” Um box recuperou um pouco da história das tentativas científicas para produzir energia pelo processo de fusão atômica. Em 16 de abril de 1989, domingo, surge o primeiro editorial dedicado ao tema. Sob o título “O problema da fusão a frio”, o OESP argumenta que a crise do petróleo (1973) despertou a humanidade para a importância da produção energética. Assim, uma notícia como a divulgada em Utah, dia 23 de março, justifica a grande atenção recebida em todo o mundo. Mas o editorial, em coerência com o título, termina de maneira pouco esperançosa: “É improvável, por isso, que se consiga extrair muita energia da fusão a ‘frio’, mesmo que ela seja teoricamente possível, e o tema parece condenado a se tornar uma curiosidade científica e não uma forma de resolver os problemas de energia do mundo moderno.” O JB de 16 de abril fez pequena chamada de primeira página, repercutindo opinião de físico do Instituto de Tecnologia da Califórnia, para o qual as leis da física nuclear teriam que ser revistas, na hipótese de se confirmar os resultados obtidos por Fleischmann e Pons. O texto editado na página 12 do JB, de Jorge Luiz Calife, registra que “As leis da Física Nuclear ensinam que, quando há uma fusão - isto é, quando os núcleos de dois átomos se juntam para formar um terceiro - sempre há liberação de energia e de mais alguma coisa: nêutrons, prótons e/ou raios-gama.” Perdidos num cipoal de incógnitas - que, aliás, o texto também não ajuda muito a esclarecer - os cientistas, dentre eles o pesquisador do Insti- 114 tuto de Tecnologia da Califórnia, dizem, segundo o JB, que estaria acontecendo algo não previsto nas Leis consagradas pela Física. O JB juntou uma retranca - “Quinze mil anos sem crise de energia” para citar um estudo do famoso MIT (Massachusetts Institute of Technology), estimando que, “usando-se um suprimento de deutério extraído de uma quantidade de água do mar equivalente à superfície do lago Michigan - algo como 14 vezes o lago da hidrelétrica brasileira de Sobradinho - a fusão nuclear poderia suprir toda a demanda de energia dos Estados Unidos nos próximos 15 mil anos.” Mas o JB esclareceu: “Mas nada disso é para amanhã. Humberto Brandi [citado apenas como físico, em trechos anteriores do material] calcula que serão necessários de 20 a 30 anos para desenvolver uma tecnologia baseada na fusão nuclear, mesmo que se comprove que a experiência de Fleischmann e Pons realmente envolve uma reação de fusão. O mundo da fusão nuclear não entrará no dia-a-dia do homem comum antes do ano 2010.” O JB juntou ainda um esquema (“A fusão a frio”) e um texto historiando a fusão nuclear, utilizada para fins militares, e a fissão nuclear, que também começou como instrumento bélico e, depois, passou a servir para fins pacíficos. Os bilhões de dólares gastos nas pesquisas para dominar a fusão nuclear ainda não produziram resultados esperados. “Não espanta, assim, que a primeira reação de muitos físicos tenha sido ridicularizar a experiência de Stanley Pons e Martin Fleischmann. Além de serem químicos e trabalharem em universidades pouco conhecidas, Utah e Southampton, eles desprezaram os rituais do mundo acadêmico, divulgando a notícia primeiro na imprensa leiga.” O Globo do dia 16 de abril resolveu fazer uma geral sobre as experiências brasileiras em andamento e perpretou o exagerado título: “Em todo o País, a busca da fusão a frio”. Em texto assinado por Hélio Hara, do Rio, e 115 José Eustáquio de Freitas, à época correspondente do jornal em São José dos Campos, onde fica o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE), o jornal informava: “Preparativos já foram iniciados no Rio, em São Paulo, em Minas Gerais, no Rio Grande do Sul e na Paraíba, onde cientistas esperam comprovar o revolucionário método, cuja potencialidade como fonte energética é teoricamente infinita.” De Washington, o correspondente do jornal, José Meirelles Passos, informava: “Há uma mistura de surpresa e incredulidade na comunidade científica internacional com a extraordinária descoberta de dois químicos: a fusão nuclear. Ou melhor, a criação em laboratório do mesmo processo que faz o Sol arder e, portanto, liberar energia. Há uma clara divisão hoje, três semanas após o anúncio feito pelo britânico Martin Fleishmann, da Universidade de Southampton e seu companheiro americano Stanley Pons, da Universidade de Utah.” O Globo publicou também, com ilustração, um texto que procura explicar o que é a fusão nuclear em temperatura ambiente. Na segunda-feira, 17 de abril, somente O Globo bateu na tecla da fusão a frio. O correspondente em Washington informava que “as grandes multinacionais já vem tratando de examinar o trabalho no sentido de tirar proveito dele. Ou seja: obter uma licença para aplicar na prática, e em escala maciça, a nova e barata fonte de energia.” Segundo o texto, trinta companhias já tinham assinado acordos com a Universidade de Utah para “dar uma olhada nos documentos confidenciais que a escola enviou ao serviço de patentes, para registrar o processo.” O texto também abordou a questão pelo ângulo das companhias petrolíferas, obviamente preocupadas com as eventuais conseqüências, caso a fusão viesse realmente a produzir energia em abundância. De Kharkov, na então União Soviética, o jornal carioca publicou a informação transmitida pela Agência Tass de que cientistas do Instituto de 116 Monocristais de Kharkov haviam conseguido obter a fusão nuclear à temperatura ambiente num processo diferente, embora semelhante ao feito - “e repetido em todo o Mundo”- pelos cientistas Stanley Pons (EUA) e Martin Fleischmann (Inglaterra)...” O material de O Globo do dia 17 inclui ainda texto proveniente de São Paulo, assinado por Milton F. da Rocha Filho, informando que “a comunidade científica defendeu ontem a construção da usina-piloto de água pesada... que entre outras aplicações poderá ser usada nas pesquisas sobre fusão nuclear.” Tem, por fim, um pequeno editorial - “Revolução a caminho” - aqui reproduzido na íntegra: “Há muito tempo se sabe que a fusão nuclear dará ao Mundo energia farta por séculos sem conta e a custo insignificante. Essa era, no entanto, uma perspectiva de longuíssimo prazo, porque só se sabia produzir a fusão em temperaturas altíssimas, que impossibilitam qualquer uso prático. A novidade da fusão a frio, embora ainda sujeita a comprovação definitiva, já mostrou que o prazo entre a teoria e a prática será consideravelmente encurtado. Em suma, vem aí uma revolução. Uma energia que não polui, de fonte quase inesgotável e baratíssima significará mudanças radicais em todos os países. Não é para depois de amanhã - mas haverá alguém no Governo brasileiro pensando no assunto? Até mesmo para bençãos e benesses é preciso preparar o terreno.” A partir de 18 de abril de 1989, portanto três semanas depois da entrevista coletiva em Utah, os quatro jornais estudados nesta dissertação Folha de S. Paulo, O Estado de S. Paulo, Jornal do Brasil e O Globo - enfatizaram mais ainda as experiências que então se realizavam no Brasil. 117 A leitura atenta deste material evidencia que se estabeleceu entre grupos do Rio de Janeiro e de São Paulo uma espécie inusitada de maratona, cujo objetivo mais relevante seria anunciar a conclusão da experiência e a obtenção, evidentemente, de resultados parecidos ou superiores àqueles divulgados pelos cientistas em Utah. Os pesquisadores, sempre tão céticos e prudentes, se mostraram, neste caso específico, extremamente acessíveis à Imprensa brasileira, não se furtando mesmo a posar para fotografias ao lado de equipamentos montados em bancada. A FSP de 18 de abril, sob o título “Experimento mostra os primeiros indícios de fusão nuclear a frio”, noticiou que, no INPE, a experiência já começava a dar resultados. Para o jornal, ali se realizava a “primeira experiência de fusão nuclear a frio no Brasil.” De onde vinham os alegados indícios? Segundo a Folha, do fato de que “está sendo registrada uma emissão de neutrons e de raios-gama acima do normal, e foi constatado um ganho de energia, com o aumento da temperatura da água.” Apesar da euforia, segundo o jornal, os pesquisadores do INPE mostravam-se cautelosos, pois as alterações observadas poderiam “não passar de ruído de fundo”, conforme explicou o líder do experimento, Gerson Otto Ludwig. O jornal OESP de 18 de abril preferiu um título antecipativo: “País pode ter fusão a frio amanhã”. O jornal se referia ao andamento dos trabalhos no INPE, e, em síntese, o texto segue a mesma trilha do concorrente FSP. A experiência em curso no IFUSP e IPEN também é noticiada. O OESP lembrou que “A tentativa dos brasileiros, bem como em dezenas de laboratórios no mundo inteiro, está sendo feita antes mesmo da divulgação oficial das pesquisas pelos autores, mas a pressa é justificada: se os resultados forem confirmados, trata-se de uma das maiores descobertas científicas do século e poderá revolucionar a produção de energia.” O JB deu cobertura ao experimento em curso no IPEN, atrapalhado por um inesperado imprevisto: faltou energia durante a madrugada, mas o 118 físico Spero Penha Morato se disse otimista com os primeiros resultados. O físico declarou também que foi escolhido o momento certo para se fazer o trabalho. Segundo ele, por causa do feriado (referia-se à Semana Santa) “não há oscilação nas redes elétricas.” Do exterior, o JB informou que em Frascati, perto de Roma, cientistas do Enea (Entidade Nacional para Energia Atômica Alternativa) (sic) obtiveram a fusão nuclear a frio. O Globo do dia 18, talvez antecipando a era da informação on-line, titulou: “Fusão a frio no Inpe começa a dar resultado”. O correspondente em São José dos Campos, José Eustáquio de Freitas, começou assim a matéria: “Os cientistas do Instituto de Pesquisas Espaciais (Inpe), que há três dias iniciaram a primeira experiência brasileira de fusão nuclear a temperatura ambiente, estão cautelosos quanto aos resultados, mas já não escondem certa euforia, pois todos os indicadores observados até agora mostram a possibilidade de conclusões relevantes do ponto de vista científico. A temperatura da água sobe lentamente, os detectores registram expressiva intensidade de radiações gama e já foram observadas emissões de nêutrons, o que constitui indícios suficientes para acreditar que será obtida a fusão. - Não é possível adiantar qualquer conclusão sobre a nossa experiência, pois as informações que temos até agora são brutas e irreais, contendo muita interferência do meio e do próprio laboratório - disse o pesquisador Gérson Otto Ludwig, coordenador da experiência.” O Globo também noticiou a experiência realizada pela Enea, agora batizada de Agência Nacional de Energia Alternativa. Incluiu, também, informação traduzida do New York Times, repercutindo opiniões de físicos norte-americanos que se mostravam descrentes dos resultados proclamados por Fleischmann e Pons. 119 O dia seguinte, 19 de abril, trouxe finalmente à glória almejada por tantos. A FSP ocupou quatro colunas do canto superior esquerdo da primeira página para noticiar que “USP reproduz fusão nuclear a frio.” Ilustrado com um diagrama mostrando como é a experiência e a foto de três sorridentes pesquisadores (Rajendra Saxena, Spero Morato e Paulo Rogério) o texto da primeira página dizia: “Cientistas da USP e do Instituto de Pesquisas Energéticas e Nucleares (Ipen) conseguiram repetir, pela primeira vez no hemisfério Sul, a fusão nuclear a frio. A USP venceu a corrida em que competiam o Instituto de Pesquisas Espaciais e a Universidade Federal de Minas Gerais”. Localizado no caderno Cidades, página C-1, o material da FSP ampliava o título para “USP e Ipen vencem corrida da fusão nuclear a frio no hemisfério Sul.” O físico Rajendra Saxena, chefe da Divisão de Física Nuclear do Ipen, afirmou, segundo o texto, que os dados obtidos não deixam dúvidas - existe fusão nuclear no processo. De acordo com a FSP “as equipes da Física e do Ipen detectaram duas vezes mais nêutrons (partículas sem carga dos núcleos dos átomos) saindo do experimento do que o nível habitual na atmosfera. Segundo Spero Penha Morato, chefe do Departamento de Processos Especiais do Ipen, só a fusão de átomos de deutério pode explicar o surgimento dos nêutrons.” Um box denominado “As dúvidas”, levanta alguns pontos polêmicos sobre a questão e lança um pouco de luz sobre como os cientistas vinham tratando isto junto à Imprensa (ou como a Imprensa vinha tratando isto junto aos cientistas). No tópico 3 - Reação misteriosa - está assim: “Nêutrons são outro subproduto da fusão. Fleischmann e Pons detectaram menos nêutrons do que se esperava a partir de cálculos teóricos. Isso levanta a hipótese de se tratar de uma reação misteriosa, envolvendo processos nucleares até agora desconhecidos. USP e Ipen não puderam ainda comentar esses resultados, uma vez que o número de nêutrons é função direta da energia produzi- 120 da e a energia não foi medida.” (grifo nosso). Mas não foi exatamente a detecção de nêutrons que levou os pesquisadores a afirmarem que se tratava de fusão nuclear? O material da FSP era complementado por notícia sobre a experiência realizada em Frascati (já noticiada no dia anterior pelos concorrentes) e pela disputa travada entre o grupo da Universidade de Utah (Fleischmann e Pons) e a Universidade Brigham Young, também situada no estado americano de Utah (Steven Jones). O OESP do dia 19 também levou para a primeira página, embora de maneira mais discreta que o rival FSP, o fato de brasileiros terem realizado a experiência nos moldes da anunciada por Fleischmann e Pons há menos de um mês. Sob o título “Brasileiros refazem fusão nuclear a frio”, o OESP colocou o seguinte texto: “Cientistas brasileiros anunciaram ontem ter repetido com sucesso a experiência da fusão nuclear a frio. O País é o primeiro do Terceiro Mundo a dominar a técnica, que poderá gerar energia barata e limpa. “Esse é um velho sonho da humanidade”, comemorou o físico Ivan Cunha Nascimento, da USP, autor da experiência, junto com o Instituto de Pesquisas de Energia Nuclear (Ipen).” O texto principal, na página 9, assinado pelo então editor de C&T do jornal, Flávio de Carvalho, informa que a experiência limitou-se a medir um dos indicadores de que a reação nuclear de fusão ocorria, ou seja, a produção de nêutrons. “A equipe brasileira não tentou medir a quantidade de calor liberada durante a reação, nem outros subprodutos, como o trítio, que também confirmam a ocorrência da fusão.” Segundo o OESP, “os resultados foram praticamente idênticos aos obtidos na Universidade de Utah. A experiência IFUSP/IPEN, para o físico Ivan Cunha Nascimento, teria chegado ao mesmo impasse da experiência realizada em Utah; sabe-se com grande probabilidade que houve fusão nu- 121 clear, mas ela está produzindo menos nêutrons que o esperado. O jornal informa também que as experiências foram repetidas quatro vezes antes do anúncio dos resultados. No dia 19 de abril, o OESP também noticiou o trabalho realizado em Frascati, Itália. Outro material relatava que o os pesquisadores do INPE haviam adiado para sexta-feira, dia 21, o anúncio dos resultados do experimento que realizavam. Ainda no OESP, a Universidade de Utah volta ao cenário, ao anunciar que, em uma nova série de experiências foi constatada a presença de hélio-4, uma comprovação de que o processo é de fusão, e não apenas uma reação química. A explicação, entretanto, não convenceu inteiramente, pois “parece ser boa e simples demais para ser verdadeira.” O OESP estampou uma foto em cinco colunas de três pesquisadores, com a seguinte legenda: “Coelho, Rajendra e Morato: provavelmente houve fusão, mas a experiência produziu menos nêutrons do que o esperado”. O JB também deu chamada em primeira página para o fato de uma equipe brasileira ter reproduzido a experiência no padrão Fleischmann e Pons. No texto editado à página 12, lê-se: “Os cientistas brasileiros constataram a emissão de um número de nêutrons pelo menos duas vezes maior que o encontrado normalmente no meio ambiente. Esse resultado, segundo os pesquisadores, comprova a existência de fusão entre os átomos e a liberação de nêutrons. ‘O que conseguimos foi verificar que existe um processo nuclear durante a experiência,’ afirmou ontem, cauteloso, o físico Ivan Cunha Nascimento, da USP.” A experiência em andamento no INPE também não foi esquecida pelo JB. O título dá a exata medida de como a obtenção de resultados positivos estava na ordem do dia: “Inpe está perto de obter sucesso”. O texto do JB começa assim: “Já está em fase conclusiva a experiência com fusão a frio realizada por pesquisadores do Instituto de Pesquisas 122 Espaciais (Inpe), em São José dos Campos, a 100 quilômetros de São Paulo. Até amanhã, os cientistas pretendem encerrar o experimento, iniciado na última sexta-feira. Desde já, porém, os pesquisadores apesar de se manterem bastante cautelosos, não conseguem esconder discreta alegria pelo sucesso da experiência. ‘Não dá para falar nada ainda, mas é certo que estamos medindo alguma coisa’, conta o engenheiro elétrico Ricardo Galvão, um dos coordenadores da pesquisa.” O JB também reportou o trabalho realizado em Belo Horizonte, pelo Centro de Desenvolvimento de Tecnologia Nuclear (subordinado à Comissão Nacional de Energia Nuclear), e os preparativos, no Rio de Janeiro, por grupos da Universidade Federal do Rio de Janeiro e da Pontifícia Universidade Católica. O material internacional no JB de 19 reúne informações sobre o Comissariado Nacional de Energia Atômica, da Itália, “cujos pesquisadores usaram titânio, em vez de paládio, e deutério gasoso, em vez de líquido, para obter uma reação semelhante à observada nos EUA pelos químicos Martin Fleischmann e Stanley Pons”; sobre a Universidade de Utah, na qual dois professores de química afirmaram ter repetido a experiência e observado fenômeno de natureza física, e não química; sobre a Universidade Comenius, da então Tchecoeslováquia, com um anúncio também positivo. O sucesso brasileiro também foi destacado em O Globo de 19 de abril, com chamada em primeira página. O material, na página 15, começa assim: “O processo de fusão nuclear à temperatura ambiente já não é mais um desafio para os brasileiros.” Em O Globo, a equipe mista IFUSP/IPEN fez oito tentativas para conseguir detectar nêutrons. “A liberação de nêutrons no eletrodo de paládio foi bastante grande, mas, ainda assim, Ivan Nascimento calculou que ficou um milhão de vezes menor que o necessário para a emissão de ener- 123 gia: como em Utah, verificaram dez mil nêutrons (sic), quando precisariam de um milhão.” O Globo publicou um pequeno editorial - “Sem comparar” - aqui reproduzido integralmente: “Em todo o Mundo, cientistas se empenham em produzir a fusão nuclear a frio, maravilha que libertará a Humanidade da servidão do combustível raro e caro. Na Suécia, enquanto isso, um pesquisador isolado apresenta o produto de seu engenho: um botão que dispensa agulha e linha. Comparar é tolice. Mas é de justiça guardar um pouco de nossa gratidão também para esses operários da inventividade a varejo, que gastam a vida para nos poupar de pequenas amolações.” O jornal também publicou texto traduzido do New York Times, de Hal Straus, tratando dos perigos que envolvem as experiências, que “não é algo para ser realizado por alunos de química do curso colegial”, nas palavras de um entrevistado. O texto narra acidentes ocorridos, inclusive com o pioneiro Stanley Pons. O material é complementado com as informações sobre novas e bem sucedidas experiências, inclusive a de dois professores de química da Universidade de Utah. O dia 19 de abril de 1989 também trouxe à cena o aspecto econômico. Joelmir Beting, que então tinha coluna fixa no jornal Folha de S. Paulo, escreveu “A confusão nuclear”. A coluna começa superada pelo noticiário do próprio dia, ao afirmar que “Cientistas brasileiros esperam alcançar a fusão nuclear a frio na manhã de hoje. Local da façanha: laboratório de física do plasma do Instituto de Pesquisas Espaciais (Inpe), em São José dos Campos. (...) A fusão nuclear, matriz da energia abundante, barata, limpa, segura e inesgotável, ainda está no campo da discussão acadêmica. O sol de proveta é bom demais para ser 124 verdade. (...) Os impactos da energia de sonho - se comercialmente viável transbordarão do científico para o econômico, passando pelo energético, com sobras para ecológico, o cultural e o político. As mudanças para o ótimo serão necessariamente penosas. Para o Brasil, desconfortáveis.” Joelmir continua: “Empresários europeus, abordados pelo colunista em Hannover, Londres e Paris, estão com a alma na mão. O êxito da fusão nuclear a frio produziria terríveis estragos na mineração do carvão, do urânio e do petróleo. As gigantes do petróleo, Petrobrás no meio, ficariam em apuros a médio prazo: o petróleo perderia o mercado da energia elétrica, que tem peso significativo nos países industrializados. Haveria encalhe do produto, com o barril despencando para menos de US$ 3 dólares. Nesse dia, estaria decretada a falência do carvão, da energia nuclear por fissão e da lavra de petróleo em águas profundas.” No dia 20 de abril, a FSP fez chamada de capa no Caderno Cidades, destacando a tentativa carioca. O material começa informando que “A Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC/RJ), os Institutos de Física, Química e Engenharia Nuclear e a Coordenação dos Programas de Pós-Graduação em Engenharia da Universidade do Rio de Janeiro (UFRJ) iniciaram na semana passada uma série de quatro experiências conjuntas em fusão nuclear fria, com o objetivo de realizar medições mais precisas da energia liberada no processo. Além disso, os grupos pretendem introduzir defeitos na estrutura cristalina do eletrodo de paládio para verificar seu efeito sobre a produção de energia.” A FSP inclui declaração do físico Fernando de Souza Barros, do Instituto de Física da UFRJ, para o qual os grupos do Rio não tinham pressa em reproduzir a experiência “pois almejamos algo mais que a simples confirmação da presença de nêutrons.” Da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), a FSP recolheu a informação prestada pelo físico Paulo Sakanaka, chefe do Laboratório de 125 Plasma: “O Brasil não dispõe de equipamentos suficientes para analisar adequadamente os dados de uma fusão nuclear fria e os grupos que estão tentando realizá-la só produzem sensacionalismo.” Era uma voz discordante e os jornais não pareciam muito interessados neste tipo de fonte, que, de certo modo, fazia também uma crítica velada aos próprios meios de comunicação. O OESP do dia 20 de abril abriu espaço para colocar em debate o destino da Física de plasma, isto é, o que aconteceria com as pesquisas de fusão com altíssimas temperaturas, na hipótese da fusão em temperatura ambiente ter sucesso. Uma palestra do diretor do IFUSP, Ivan Cunha Nascimento, estava marcada para o dia 27 de abril (quinta-feira seguinte), enfocando exatamente esta questão. Se a palestra ocorreu, nenhum dos jornais informou. Não faltou no OESP declaração do então reitor da USP, o físico José Goldemberg, para quem “as duas linhas de pesquisa vão correr paralelas durante muito tempo.” Já o físico José Leite Lopes, na época diretor do Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas (CBPF), com sede no Rio de Janeiro, não perdeu a oportunidade de ironizar: “O teto caiu sobre a cabeça dos físicos da USP”, declarou. Segundo o OESP, Leite Lopes sempre defendeu a realização de pesquisas de fusão em temperatura ambiente, embora por métodos que exigem aceleradores caríssimos, diferente, portanto, do utilizado pela dupla de Utah. O material do exterior enfocava o Hélio-4, que seria, na verdade, o produto da reação. No JB, o assunto fusão a frio continuava na primeira página, em 20 de abril: “Cientistas da Universidade de Stanford, nos EUA, a primeira das grandes universidades americanas a realizar a experiência, repetiram a fusão nuclear a frio e conseguiram eliminar qualquer possibilidade de que o calor produzido seja apenas uma reação química.” 126 No caso de Stanford, a novidade ficou por conta da utilização de água pesada e água comum, “(...) uma experiência comparativa, para assegurar que o calor produzido não vem de uma reação química. Todas as reações químicas concebíveis que poderiam ocorrer com a água pesada também aconteceriam na água comum...”. O noticiário do JB inclui, ainda, um box, sob o título “Patente”, dando conta de que, na Itália, seria pedida patente para o processo de fusão a frio desenvolvido pelo físico Francesco Scaramuzzi. Ele teria chegado ao mesmo resultado de Fleischmann e Pons por outro meio. O texto inclui a seguinte declaração de Scaramuzzi: “Quando controlei o registro do medidor de nêutrons na manhã do dia 8 de abril, senti o coração disparar: o instrumento tinha registrado grandes emissões de nêutrons. Era o primeiro sinal de que nossa aventura havia chegado a um final feliz.” Como se vê, os cientistas estavam vivendo dias de fortes emoções. O Globo, no dia 20 de abril, continuava a acompanhar a experiência em andamento no Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE), agora informando sobre “a segunda etapa” do trabalho. Os pesquisadores estavam “realizando espectrometrias para definir a concentração de deutério no eletrodo de paládio utilizado para realizar a eletrólise da água pesada.” “Com a espectrometria - continuava o texto - os cientistas esperam entender os processos físico-químicos ocorridos na superfície e no interior dos fios de paládio, uma vez que logo nas primeiras horas da experiência eles ficaram saturados de deutério.” Do correspondente em Washington, José Meirelles Passos, o jornal O Globo publicou relato sobre a experiência realizada por cientistas da Stanford University. “Eles confirmaram ontem que conseguiram produzir uma verdadeira reação nuclear, neutralizando, assim, a incredulidade de vários colegas que vinham dizendo que a experiência, feita originalmente 127 por Stanley Pons e Martin Fleischmann, não passava de uma reação química.” De Roma, vinha a informação dando conta de que os “Cientistas do Conselho Nacional de Pesquisas Científicas da Itália (CNR) informaram ontem ter chegado à fusão nuclear a frio em laboratórios de Frescati (sic), durante experiência que combinou procedimentos de dois métodos anteriores: o eletrolítico, de Stanley Pons e Martin Fleischmann, de Utah, e o da Agência Nacional de Energia Alternativa (Enea).” No dia 21 de abril, a FSP destacou a fusão a frio na primeira página do Caderno Ciência. E dedicou a página G-3 inteira para a fusão a frio e assuntos diretamente relacionados. Assinada por Álvaro Pereira Júnior, sob o título “Instituto espacial consegue melhores dados de fusão nuclear”, a reportagem predominante na página tinha o seguinte lead: “Físicos do Instituto de Pesquisas Espaciais (Inpe) obtiveram os números mais dramáticos registrados até o momento para a (sic) confirmar a fusão nuclear a frio - anunciada nos EUA há um mês e tida como possível fonte de energia inesgotável e de baixo custo. Em um experimento de cem horas, os técnicos do Inpe chegaram a detectar, por meia hora, dez vezes mais nêutrons do que o nível normal da atmosfera (a presença de nêutrons prova que existe fusão nuclear no processo). No Inpe, o estudo da fusão fria tem objetivo prático: usá-la como fonte de energia em missões espaciais.” A FSP relata o paradoxo vivido pelos pesquisadores do INPE, atribuindo ao pesquisador Gerson Otto Ludwig a seguinte declaração: “Não sabemos se torcemos para a fusão dar certo ou para dar errado.” O motivo para tal declaração - segundo o jornal - é que se comprovada a obtenção de energia pela fusão a frio, estaria decretada a falência dos métodos atuais de fusão, “e um deles - que faz os átomos se unirem sob a ação de fortes campos magnéticos - é justamente a especialidade da equipe do Inpe.” 128 O material da FSP é ilustrado com um gráfico demonstrativo da emissão de nêutrons. “O primeiro pico aconteceu com cerca de dez horas de experimento. Foram medidos 417 nêutrons em meia hora (dez vezes mais que o normal no ambiente). O segundo pico aconteceu com cerca de 35 horas - 157 nêutrons em meia hora. Nos outros períodos, o nível medido não foi significante.” Um texto preparado pela Sucursal da FSP no Vale do Paraíba (base em São José dos Campos, cidade onde o INPE tem sede), revelava: “Depósito de lixo fornece material dos instrumentos”. A leitura atenta do texto, entretanto, demonstra a prática comum de titulagem, na qual o responsável lê o lead (que, teoricamente, resume o conteúdo do texto) e daí extrai o título. O único exemplo citado foi “o calorímetro (instrumento para medir o calor liberado). Ele foi montado pelos cientistas em uma cuba acrílica que tinha sido ‘jogada no lixo’. Outros componentes para a montagem da bancada de testes foram conseguidos em diversos departamentos do próprio INPE. Outro texto publicado na página G-3 (assinado com as iniciais RBN, de Ricardo Bonalume Neto), informava que a Revista Nature só publicaria o artigo de Fleischmann e Pons caso estes fizessem modificações. Segundo o texto, a edição da Nature do dia 27 de abril (a revista é semanal), traria apenas o artigo de Steven Jones. A FSP publicou também uma ilustração registrando os principais laboratórios que fizeram o experimento. Também abordou a questão da construção, no Brasil, de uma usina de água pesada, elemento fundamental no processo de fusão em temperatura ambiente, que, obviamente, fornecia o mote para a retomada deste projeto, que encontra resistências internacionais, na medida em que se inclui no rol das tecnologias sensíveis, necessárias ao desenvolvimento nuclear. 129 Material das agências internacionais informava que “A Universidade de Utah - onde os químicos Stanley Pons e Martin Fleischmann fizeram o primeiro trabalho de fusão a frio - já tem estudos para projetar reatores à base do processo, em trabalho conjunto das faculdades de engenharia, mineração e geologia.” Neste material aparece uma lúcida declaração de David Pershing, diretor do Departamento de Engenharia Química da referida universidade, segundo o qual “O caminho da fusão sustentável, de um tubo de ensaio até usinas comercialmente viáveis, está lotado de desafios de engenharia, para ampliar a escala, assim como de química e física básicas.” O mesmo texto apresenta declarações de Stanley Pons, dizendo que 60 laboratórios de todo o mundo haviam-no contatado para comunicar a repetição do experimento. O cientista também declarou “que seu laboratório em Utah começou 19 novas experiências sobre fusão a frio.” A FSP arredondou a página com seis tópicos informando “Como se obtém água pesada”. Além do material publicado no Caderno Ciência, a página C-4, do Caderno Cidades, registrou que a Coordenação de Programas de PósGraduação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (Coppe) também obteve êxito na experiência de fusão nuclear em temperatura ambiente. O material de o OESP limitou-se a informar que o grupo da Coppe havia obtido indícios de fusão nuclear em temperatura ambiente e, numa fase já programada, pretendiam inovar, “avançando além do que já foi feito em São Paulo”. Eles iriam, segundo o jornal, adicionar trítio à água pesada, esperando obter reações mais fortes. No dia 21 de abril, o JB continuou a chamar o assunto para a primeira página, embora com menor destaque em relação aos dois dias anteriores. O material foi publicado na página 15, sob responsabilidade da editoria de Ciência, em duas retrancas. 130 Material procedente de Washington e assinado apenas com as iniciais MFB (provavelmente de Manuel Francisco Britto, alocado então como correspondente naquela cidade americana), resumia o ceticismo da comunidade científica, baseado na pouca informação ainda disponível sobre a experiência conduzida por Fleischmann e Pons. A negativa desses dois cientistas em atender às solicitações formuladas pela Nature, fazendo revisões no artigo enviado para análise, motivou o ceticismo. Esperava-se que o artigo, de caráter essencialmente científico e publicado na revista que tem imensa credibilidade no mundo acadêmico, pudesse aclarar alguns pontos obscuros do trabalho realizado em Utah. No texto, inclui-se a seguinte declaração, atribuída a Kevin Myles, pesquisador do Laboratório Nacional de Argone, em Chicago: “Vários pesquisadores acreditaram nos dois, mas agora eles têm a impressão de que estão apenas perdendo tempo. Pons e Fleischmann devem maiores explicações à ciência”. O JB relatou também a experiência realizada na Ilha do Fundão, na Universidade Federal do Rio de Janeiro, “a terceira do Brasil”. O texto informa: “Além da detecção de nêutrons, os pesquisadores registraram a temperatura e controlaram a emissão de gases, nessa que foi a primeira etapa de um programa de quatro fases destinado a estudar a fusão nuclear a frio. ‘Nosso objetivo não é reproduzir a experiência de Martin Fleishmann e Stanley Pons, mas montar um projeto de trabalho com vários desdobramentos’, explicou o diretor da Coppe, físico Luís Pinguelli Rosa. O projeto é tão empolgante que a física Solange de Barros, responsável pela contagem dos nêutrons, admite perder outras noites de sono e deixar de lado outros trabalhos para levá-lo adiante.” O Globo de 21 de abril destacou a experiência realizada por pesquisadores do Rio de Janeiro. Segundo o jornal , “o procedimento adotado no 131 Rio, de comparação da eletrólise em água pesada e água leve, foi semelhante ao da Universidade de Stanford, nos EUA.” O material internacional deste dia, em O Globo, ficou por conta das tentativas realizadas na China, onde todas fracassaram, segundo a agência de notícias Nova China. Da Universidade da Flórida, vinha a informação de que pesquisadores detectaram trítio, “forma radiativa do hidrogênio, numa experiência que utilizou o mesmo material de Utah. Embora tenham evitado falar em fusão a frio, eles dizem que a presença de trítio confirma pelo menos parcialmente o anúncio pioneiro de Pons e Fleischmann.” Da Universidade Técnica de Dresde (sic), na então Alemanha Oriental, registrou-se a obtenção de medidas de nêutrons, indício de que houve fusão nuclear na experiência ali realizada. Outra retranca traduzia material proveniente do jornal New York Times, informando que cientistas indianos anunciaram ter chegado à fusão nuclear em temperatura ambiente. “A diferença [em relação ao experimento original de Fleischmann e Pons] foi a substituição do eletrodo de paládio por outro de titânio e a adição de 0,2% de cloretos de níquel e paládio - ao invés de sais de lítio - à água pesada.” Um pequeno registro em 22 de abril, no Caderno Cidades, da FSP, informava que os cientistas do INPE haviam comunicado que obtiveram a evidência mais forte de que ocorre fusão nuclear no experimento realizado primeiramente na Universidade de Utah, ao detectarem átomos de hélio, “o produto esperado de uma reação de fusão.” O registro acrescentava que “até agora, nenhuma das muitas equipes que pesquisam fusão havia detectado átomos de hélio.” O mesmo assunto mereceu espaço mais generoso em o OESP, sob o título “Brasil aprimora medidas da fusão”. Eis o trecho inicial do material, publicado na página 10, sob responsabilidade da editoria de Ciência e Tecnologia: 132 “Físicos do Instituto de Pesquisas Espaciais (Inpe), de São José dos Campos, garantiram ontem, que pela primeira vez um instituto de pesquisa comprovou científicamente a possibilidade de fusão nuclear a frio. ‘Outros centros, mesmo os internacionais, preocuparam-se apenas em medir a emissão de nêutrons, o que, não é, necessariamente, uma fusão nuclear’, afirmou o chefe do departamento de plasmas do Inpe, Gerson Otto Ludwig, coordenador da experiência, que contou também com a colaboração de cientistas do Centro Técnico Aeroespacial (CTA), também de São José dos Campos.” O jornal não perdoou a ousadia do pesquisador, e continuou o texto assim: “Descontando o exagero - pelo menos uma centena de laboratórios ao redor do mundo, muito mais equipados, estão realizando todas as medidas imagináveis - o Inpe parece ter realizado medidas originais que abrem novos caminhos para a explicação do fenômeno.” O pessoal do IFUSP e IPEN também tinha novidades, comunicadas no mesmo texto de 22 de abril de o OESP. Eles haviam detectado átomos de hélio-3 em seus experimentos, “outra prova de que a reação é de origem nuclear. O hélio 3 é um gás muito raro e foi detectado pelo físico Oscar Vega Bustillos com um espectrômetro de massa.” Uma legenda de foto publicada na edição do jornal OESP resumia bem o problema com o qual os jornalistas vinham trabalhando há um mês: “Fusão no Inpe: experiência simples, medidas complicadas”. O JB valorizou bastante o noticiário vindo de São José dos Campos, sob o título “Cientistas do Inpe medem hélio3 e comprovam fusão”. O resultado alcançado no Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais, segundo o JB, era inédito entre as pesquisas já divulgadas em todo o mundo, atribuindo ao pesquisador Ricardo Galvão a seguinte declaração: “A emissão de nêutrons, que tem sido constatada em outros experimentos, é suficiente para comprovar a existência de uma reação nuclear, mas não necessariamente 133 uma fusão. Já a ocorrência do hélio-3 só pode surgir de uma fusão, é a prova cabal de que ela ocorreu.” Depois de descrever a experiência realizada no INPE, o JB também informa que a intenção naquele instituto é dar continuidade, em busca da obtenção de energia significativa, extraída do processo. O então diretor de Pesquisa e Desenvolvimento do INPE, Múcio Dias, também lançou a idéia de reunir, sob os auspícios da Comissão Nacional de Energia Nuclear, todos os grupos envolvidos com o assunto, para que haja, segundo o jornal, “uma coordenação nacional de experimentos.” O JB arrematou o texto com a seguinte informação: “Os pesquisadores do Inpe, por enquanto, se mostram extremamente satisfeitos com seus resultados e já começaram a escrever um artigo para publicação em revistas científicas internacionais. ‘Nós estamos emocionados’, disse ontem o físico José Leonardo Ferreira, que também esteve ligado ao projeto. ‘Conseguimos colocar mais um tijolo no edifício do conhecimento e sabemos que não se trata de um tijolinho qualquer’”. Em O Globo de 22 de abril de 1989, a editoria de O Mundo/Ciência e Vida resolveu ignorar o comunicado feito pelos pesquisadores do INPE, embora o jornal, na época, mantivesse um correspondente em São José dos Campos, José Eustáquio de Freitas, que, diariamente, acompanhava o assunto naquele instituto de pesquisas. Ao contrário dos concorrentes FSP, OESP e JB, o jornal O Globo registrou apenas que o INPE iria propor a realização de uma reunião com todos os cientistas e representantes de centros de pesquisa envolvidos com a fusão a frio. O material de O Globo tinha, por título principal, “Experiência põe em dúvida fusão a frio” e reportava informação proveniente da Filadélfia, estado da Pensilvânia, no qual dois pesquisadores da Universidade de Drexel afirmaram “ter obtido a mesma quantidade de calor em experiência com 134 água pesada e leve, resultado oposto ao obtido em Stanford, onde não houve produção de calor excedente na eletrólise em água leve”. Outra nota de ceticismo vinha dos Estados Unidos e da França, “onde a inexistência de provas irrefutáveis detectadas por equipamentos ultrasensíveis levam cientistas a por em dúvida a experiência. Kenneth Fowler, do Laboratório Lawrence Livermore, na Califórnia, disse que se a reação realmente tivesse acontecido, dez bilhões a mais de nêutrons deveriam ter sido produzidos”. Da Universidade de Norwich, na Inglaterra, outro cientistas chamava a atenção para a possibilidade de estar ocorrendo “uma combinação de fissão nuclear com reação química”, segundo o jornal. O Globo reproduziu também no dia 22 de abril texto de Charles Petit, do New York Times. Cientistas alemães acusavam Fleischmann e Pons de “apenas copiarem o que o químico alemão Johann Wolgang Dobereiner inventou em 1823: a oxidação catalítica espontânea do hidrogênio, ou seja, um isqueiro rudimentar chamado feuerzeug, para acender cigarros e charutos.” O Globo noticiou também o desdobramento do trabalho realizado no Rio de Janeiro, reunindo equipes da Coppe, PUC, Instituto de Física da UFRJ e Instituto de Energia Nuclear, no qual o modelo a ser seguido, agora, seria o italiano, “que substitui deutério líquido por gasoso à baixíssima temperatura”. Não faltou em O Globo, com destaque na paginação, o editorial, aqui reproduzido na íntegra: “Papai, compra paládio? O Natal está distante para as crianças, mas os fabricantes de brinquedos trabalham de véspera. É extremamente provável que já esteja entrando na linha de produção de algum deles a sensação de dezembro que vem ‘O Pequeno Químico’: kit completo para a fusão nuclear a frio. 135 Pelo menos, a facilidade com que em toda parte se está repetindo a experiência pioneira indica que, uma vez conhecido o processo, repeti-lo é mesmo coisa de criança. Não vai nisso desdouro para os copiadores da descoberta. Mas vale um alerta para leigos: mesmo que produzir a fusão em laboratório seja um clássico ovo de Colombo, o caminho até a aplicação prática - ou seja, até que a dona de casa possa cozinhar outros ovos com a energia da fusão ainda é longo e de traçado desconhecido. O que falta descobrir certamente não é brinquedo.” Em 23 de abril, o assunto fusão a frio continuava presente nos quatro jornais estudados nesta dissertação. A FSP tratou o tema no Caderno Cidades, noticiando que o Instituto de Pesquisas Energéticas e Nucleares (IPEN) agora iria se dedicar a aperfeiçoar as medições para tentar esclarecer a fusão a frio. Spero Penha Morato, chefe do Departamento de Processos Especiais do IPEN declarou: “Isto é uma corrida. (...) Sinto que estamos junto (sic) com outros centros do mundo.” O OESP, em 23 de abril, trabalhou o assunto em espaço generoso na editoria de Ciência e Tecnologia. Era domingo, completava-se um mês redondo do anúncio feito em Utah por Fleischmann e Pons, e o jornal foi o único dos quatro aqui estudados que pegou o gancho. Sob o título “Fusão nuclear a frio esquenta Ciência”, o então editor de C&T, Flávio Carvalho, assina o texto, que começa assim: “Nunca, em tão curto espaço de tempo, a confraria dos cientistas se expôs tanto (e tão claramente), com todas suas grandezas e mazelas, como nesses trinta dias, depois que os químicos Stanley Pons e Martin Fleischmann anunciaram a redescoberta do fogo, com a reação de fusão nuclear a frio e a promessa da energia solar dominada dentro de um simples tubo de ensaio com a ajuda de uma bateria elétrica comum. 136 Neste mês, que se completa hoje, eles alteraram momentos de vigília sofrida em laboratórios, à espera da confirmação de suas pesquisas com bate-bocas e rasteiras profissionais tão comuns às outras profissões. Desceram da torre de marfim onde são colocados pelas pessoas comuns para disputar a vitória na corrida em que quem publica primeiro seus resultados é que leva a fama e, de passagem, um possível Prêmio Nobel e a eternidade intelectual.” A ênfase do texto recai na dinâmica que se estabeleceu a partir do anúncio em Utah, procurando mostrar que os cientistas são uma categoria profissional como outras: embora não esteja explicitamente no texto, o leitor atento deduzirá que as intrigas, ciúmes, jogo sujo, busca pela notoriedade, ganhos econômicos, também fazem parte da vida destes profissionais. A principal retranca de OESP foi titulado por “Imitação do Sol cai de moda” e explicava que a entrada em cena da fusão nuclear em temperatura ambiente veio se contrapor ao processo que sempre se baseou em uso de equipamentos para produzir temperatura elevada para tentar fundir núcleos de átomos e produzir energia. Do Los Angeles Times, o OESP reproduziu um texto, assinado por Paul Ciotti, colocando a discussão sob o enfoque de utilidade social. O biólogo Paul Ehrlich, de Stanford, opinou que “o poder da energia inexaurível e barata pode ser como dar uma metralhadora para uma criança retardada”, reproduzindo o texto do jornal. O biólogo opinou também que a descoberta anunciada em Utah estava sendo encarada como uma panacéia, declarando: “Os principais problemas da maior parte da população do mundo são sociais, políticos ou econômicos, e não tecnológicos. A crença de que se podem resolver dilemas humanos com uma única descoberta é demasiadamente simplista.” O ativista ecológico Jeremy Rifkin, “famoso por estar tentando embargar, na Justiça, as experiências de engenharia genética com seres huma- 137 nos”, declarou que a fusão anunciada só serviria para elevar ao infinito a habilidade humana de exaurir os recursos naturais do planeta, destruir o frágil equilíbrio ecológico e criar um vasto e inadministrável lixo industrial, sem paralelo na história. A antropóloga Laura Nader, da Universidade de Berkeley, Califórnia, também opinou que não há evidências de que o barateamento do curso da energia iria melhorar a qualidade de vida das pessoas. “Entre 1950 e 1970 a humanidade dobrou o uso de energia, mas todos os indicadores de qualidade de vida caíram”, declarou a antropóloga. O JB de 23 de abril chamou novamente o assunto para a primeira página, com manchetinha denominada “Fusão limpa”, aqui reproduzida: “Nova teoria sobre a fusão indica que o processo pode ser ainda mais limpo do que se imaginava. Para o químico americano Chevis Walling, a fusão fria não produzirá radiação nem gases tóxicos, o que tranquiliza os ecologistas”. O texto referenciado na chamada é assinado por Jorge Luiz Calife, na época repórter da editoria de Ciência do JB, e procura resposta para a preocupação já manifestada por ecologistas norte-americanos: “Até que ponto, eles perguntam, a fusão nuclear realmente seria uma fonte de energia limpa. Afinal, sabe-se que o processo de fusão dos átomos de deutério produz emissões de nêutrons, que são mortais e, em certas circunstâncias, o trítio que é venenoso.” A resposta veio por intermédio de um pesquisador da Coppe, Aquilino Senra Martinez, explicando que, mesmo com os nêutrons e o trítio, uma usina de fusão nuclear seria muito mais limpa do que as atuais usinas de fissão nuclear. Para os nêutrons seria necessário uma blindagem adequada e a quantidade de trítio produzida seria pequena demais para causar qualquer alteração ambiental. 138 A justificativa para o texto colocado na primeira página aparece no JB sem explicações mais detalhadas: “Nos laboratórios onde a experiência tem sido repetida, observa-se a produção de muito poucos nêutrons e trítio. Na experiência do Instituto de Pesquisas Espaciais, Inpe, observou-se a produção de hélio 3 e não de trítio”. No dia 25 de abril, somente o jornal O Globo manteve o assunto em pauta, ao anunciar que “A Marinha brasileira está esperando apenas uma comprovação científica da eficácia da fusão a frio para iniciar, em conjunto com a Comissão Nacional de Energia Nuclear (Cnen), o projeto de um reator especial capaz de gerar energia utilizando esta técnica”. De Nova York o jornal publicou a informação dando conta de que Fleischmann e Pons estavam projetando instrumentos diferentes dos usados na experiência original, com o objetivo de obter maior quantidade de energia com o processo. No dia 27 de abril, a FSP repercutiu a presença de Fleischmann e Pons na Comissão de Ciência, Espaço e Tecnologia da Câmara dos Deputados dos Estados Unidos, onde foram pedir US$25 milhões para prosseguir com as pesquisas. Segundo o jornal, a Comissão aprovou a proposta. Para reforçar o lobbye junto aos congressistas, a dupla levou uma réplica da bancada de experiência, a julgar pelo foto publicada, assinada pela agência France Press. O texto informa: “A comunidade científica reagiu mal ao fato de os pesquisadores terem apresentado resultados preliminares à imprensa antes de fazê-lo em publicações especializadas, o procedimento normal”. O OESP de 27 de abril também noticiou a presença da dupla de Utah no Congresso norte-americano, incluindo fotografia mostrando os dois diante de um equipamento, observados por dois possíveis deputados. O texto é traduzido do jornal The New York Times, e inclui o seguinte trecho: “Embora essa pressão de cientistas [referindo-se ao pleito feito aos deputa- 139 dos] não seja novidade, ela está sendo considerada um tanto deselegante, já que os resultados do experimento dos eletroquímicos Stanley Pons e Martin Fleischmann - patrocinado pela Universidade de Utah - não foram sequer publicados.” O texto traz também a informação de que o Instituto de Tecnologia da Geórgia havia convocado uma entrevista coletiva para retificar o anúncio feito em 11 de abril, quando afirmara que pesquisadores haviam repetido, com sucesso, o experimento de Fleischmann e Pons. Agora, voltavam atrás. Outra informação é sobre o trabalho realizado na França, país onde “nenhuma das dezenas de equipes que tentou repetir a fusão a frio obteve sucesso”. Do correspondente em Washington, O Globo publicou também a informação colhida durante a presença de Fleischmann e Pons no Congresso americano, enfatizando que eles estavam “iniciando uma nova série de experiências para demonstrar, de uma vez por todas, que podem produzir a fusão nuclear num tubo de ensaio e à temperatura ambiente.” Segundo o jornal, Fleischmann afirmou com visível orgulho: “A descoberta que fizemos sem dúvida tem grandes e profundas implicações sociais, já que poderá levar o Mundo a ter uma fonte praticamente ilimitada de energia, já que ele (sic) é feita à base de deutério, que é um elemento encontrado nos oceanos e nos lagos”. No dia 28 de abril, a FSP fez dois pequenos registros, na coluna Síntese, do Caderno Ciência, mas a coluna fixa do físico Rogério Cezar de Cerqueira Leite (aliás publicada com a rubrica Periscópio, na verdade da coluna fixa ao lado, de J. Reis) abordava o assunto. O título já antevia o que o texto abordava: “Físicos se comportam como galinhas”. E começava assim: “São mesmo geniais esses cientistas brasileiros. Em poucos dias, uma semana em um dos casos, os brasileiros conseguiram fazer a mesma experiência que dois grupos norte-americanos constituídos 140 por verdadeiros especialistas levaram anos. Não é sensacional? E ainda existem aqueles que reclamam que a ciência brasileira está atrasada, que não há recursos financeiros!” A crítica de Cerqueira Leite batia fundo nos grupos que haviam alardeado a obtenção de resultados considerados satisfatórios e, de quebra, na própria imprensa, sobrando farpas inclusive para a Folha de S. Paulo, da qual o cientista é membro do Conselho Editorial, ao ironizar a manchete “O Brasil ganha a corrida no hemisfério sul” (publicada em 19 de abril, divulgando o êxito do IFUSP e o IPEN em reproduzir a experiência nos moldes preconizados por Fleischmann e Pons. Cerqueira Leite afirma que “Não restam dúvidas de que seria altamente desejável para o Brasil que grupos de pesquisas desenvolvessem uma competência adequada em cerâmicas supercondutoras e em fusão a frio igualmente. O que é, entretanto, puro desperdício é esse borboleteamento atrás de confirmações provincianamente espetaculares”. E conclui, “O deprimente espetáculo de exibicionismo e antiprofissionalismo, estimulado pelo provincianismo que comanda as administrações acadêmicas nacionais, testemunham antes o atraso de nosso desenvolvimento científico e tecnológico e de sua mínima repercussão cultural do que o nosso progresso”. Não se registrou o envio de cartas ao jornal, pró ou contra o artigo de Cerqueira Leite. O OESP de 28 de abril deu vez a Linus Pauling, Prêmio Nobel em Química, em 1954, que enviou carta à Revista Nature afirmando que a energia liberada durante a fusão a frio, deve ter sido produzida por uma ligação atômica convencional. Pauling questionou vários pontos do trabalho de Fleischmann e Pons e, com o peso de sua autoridade no mundo acadêmico, suas declarações não passaram despercebidas. Ao lado, o OESP parece ter descoberto Steven Jones, a julgar pelo texto que começa assim: “Um jovem cientista da Universidade de Brigham, 141 que diz ter conseguido realizar a fusão a frio ao mesmo tempo que a equipe de Utah, afirmou ontem que o mesmo processo pode estar ocorrendo naturalmente na Terra e em outros planetas. (...) Para ele, uma prova de que a fusão a frio ocorre na natureza talvez possa estar em Júpiter. O planeta irradia quase duas vezes mais calor do que recebe do Sol e apresenta metais que contêm alta concentração de hidrogênio radioativo.” O JB de 28 de abril também deu espaço para a opinião de Linus Pauling. Informou também que pesquisadores da Universidade de Colorado não conseguiram reproduzir a experiência nos moldes de Fleischmann e Pons. E inclui a notícia sobre as declarações de Steven Jones. Encerrando o mês de abril, no dia 29, somente o JB falou sobre o assunto. “Cientistas acham que fusão exige condições adequadas”, era o título do material, procedente de San Diego, EUA. Em síntese, o texto relatava a opinião de pesquisadores sobre a influência do meio ambiente e dos próprios equipamentos nos resultados até então obtidos em experiências sobre fusão a frio. Em 2 de maio, o assunto fusão a frio reapareceu. Na FSP ganhou chamada discreta na primeira página. Cientistas de dois renomados centros de pesquisa americanos - o Instituto de Tecnologia da Califórnia (Caltech) e o Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT) “afirmaram ontem que falharam em suas tentativas de reproduzir a fusão nuclear a frio”. O jornal publica declaração de Nathan Lewis, do Caltech: “Uma das coisas que aprendemos durantes (sic) a experiência foi como é fácil se autoenganar, pensando haver um efeito onde não existe nada.” Ronaldo Parker, diretor do centro de fusão do MIT, usou a expressão “mal interpretados”, referindo-se aos dados obtidos por Fleischmann e Pons. O jornal O Globo de 2 de maio também abordou a questão, sob o ponto de vista dos cientistas do Caltech e do MIT. Eis um trecho da reportagem: “ - Acreditamos que os dados apresentados foram, na verdade, mal 142 interpretados por Fleischmann e Pons. A alegação de registro de nêutrons não tem fundamento e a prova científica apresentada não apóia essa alegação - disse o Diretor do Centro de Fusão de Plasma do MIT, Ronald Parker.” O material foi ilustrado com um diagrama mostrando a técnica de Pons e Fleischmann. No dia 3 de maio, o material da FSP sobre o assunto fusão a frio abordava a reação da Universidade de Utah às críticas que se avolumavam contra os pesquisadores Fleischmann e Pons. Um físico da Universidade, James Brophy, e o Governador do Estado de Utah, Norme Bangerter, classificaram as críticas como “elitismo da costa leste”. O Estado de Utah fica na região oeste dos Estados Unidos. O físico Brophy alegou que Fleischmann e Pons passaram cinco anos pesquisando (dado que, pela segunda vez, foi encontrado no noticiário) e “agora pessoas que gastaram quatro semanas com experimentos grosseiros tratam de criticá-los.” Já o Governador Bangerter, segundo o material da FSP, opinou que a crítica tinha raiz na disputa por verbas governamentais para o setor de pesquisa: “São de US$400 milhões a US$500 milhões que eles recebem anualmente para pesquisar fusão e eles odeiam só em pensar que a quantia pode vir para nós.” A FSP também noticiou o encontro mantido por físicos, em Brasília, com o então Secretário Especial de Ciência e Tecnologia, Décio Leal de Zagottis. Segundo o jornal um comunicado foi divulgado pela Secretaria, afirmando que os resultados das experiências foram considerados “inconclusivos quanto à produção de energia e ao entendimento dos mecanismos envolvidos no processo.” Teriam os pesquisadores - que não são citados no texto - voltado atrás? Sob o título “Físicos dos EUA contestam fusão a frio”, o OESP de 3 de maio resumiu a opinião que teria predominado durante reunião da Socie- 143 dade Americana de Física que “tranformou-se ontem num palco de devastadoras dúvidas sobre a veracidade dos experimentos de Pons e Fleischmann.” O JB de 3 de maio também ecoou as críticas feitas na reunião promovida pela Sociedade Americana de Física. Não faltou, inclusive, a acusação grave, feita pelo físico Walter Meyerhoff, da Universidade de Stanford, segundo a qual “Eles [referindo-se a Pons e Fleischmann] devem ter colocado o termômetro no ponto mais quente do frasco para terem conseguido a temperatura que dizem ter registrado.” Já o físico Moshe Gai, da Universidade de Yale, classificou a fusão a frio como “uma idéia morta”. E alfinetou os químicos, ao dizer que a parte de física nuclear da experiência foi mal feita, “... o que deve servir como advertência aos cientistas para que não façam aquilo que não compreendem.” A comunidade de físicos nunca aceitou muito bem o fato de dois químicos terem assumido a paternidade de uma experiência que deveria ser da competência da Física. Embora tenham sido convidados para a reunião, realizada em Baltimore, Fleischmann e Pons não compareceram, segundo o material da FSP. Presente na reunião, o físico brasileiro Jacques Danon, na época Diretor do Observatório Nacional, informou que pesquisadores do Centre National des Recherches Scientifiques (CNRS) repetiram a experiência mas os resultados foram negativos, apesar de disporem de detectores de nêutrons de altíssima sensibilidade. O material do JB incluiu uma retranca - “Utah vê interesse financeiro em críticas” - reproduzindo as já aludidas críticas de físicos e do Governador do Estado de Utah. O jornal O Globo também aproveitou o material vindo do Exterior reportando a reação de Utah às críticas destinadas a Fleischmann e Pons. 144 Somente no dia 4 de maio a FSP citou, em nota de exatas seis linhas, as críticas feitas durante reunião da Sociedade Americana de Física, aspeando três palavras: “erros de amadores”. O OESP do dia 4 de maio titulou o texto sobre o assunto da seguinte maneira: “Físicos sepultam fusão a frio”, uma alusão às críticas feitas durante a reunião da Sociedade Americana de Física. Mas, de maneira surpreendente, começa o texto com informação obtida aqui mesmo, em São José dos Campos: “Cientistas do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais, de São José dos Campos, que haviam anunciado ter reproduzido a reação de fusão a frio, estão agora ‘confusos’ e se preparam para repetir a experiência ‘com métodos mais refinados e cuidadosos’, diz o físico Gerson Ludwig. ‘Estamos muito céticos quanto às medidas de calor na reação. Vamos começar hoje nova experiência com medidores mais sensíveis’, diz Gerson.” É fácil perceber que, depois de terem pisado fundo no pedal do acelerador, os brasileiros agora começavam a procurar o pedal de breque, quem sabe influenciados pelos colegas reunidos em Baltimore, na reunião da Sociedade Americana de Física. No mesmo texto de o OESP lê-se declaração do físico Luiz Pinguelli Rosa, que havia anunciado, no Rio de Janeiro (JB e o Globo de 21 de abril) uma reação nuclear bem sucedida: “Agora, há tanta euforia para enterrar a experiência de fusão a frio, como havia para repeti-la alguns dias antes”. O material do jornal OESP informa que 1500 cientistas presentes na reunião de Baltimore “aplaudiram de pé o pesquisador Steven Koonin, do Instituto de Tecnologia da Califórnia, quando ele passou como um trator sobre os resultados da reação de fusão a frio anunciada em 23 de março pelos químicos Martin Fleischmann e Stanley Pons. ‘A experiência estava errada, cheia de incompetências e alucinações de Pons e Fleischmann’, disse Koonin”. 145 O jornal traz ainda a seguinte informação: “Pelo menos em 40 trabalhos apresentados foram apontadas falhas na experiência de Pons e Fleischmann. O calor da reação, segundo os físicos, teria vindo simplesmente do erro na colocação do termômetro. A detecção de nêutrons, que confirmaria a ocorrência de reação de fusão, seria na verdade medida de gás radônio. Quanto ao hélio, que teria sido o produto final da reação de dois átomos de hidrogênio pesados, Koonin também tem uma explicação: é que existem muitos aparelhos nos laboratórios que usam esse gás para refrigeração, e os níveis de contaminação costumam ser dez vezes maiores que ao ar livre”. O Globo de 4 de maio publicou texto assinado por Malcom F. Browne, correspondente em Washington. Possivelmente referindo-se à reunião promovida pela Sociedade Americana de Física - não citada em parte alguma do texto - o correspondente informa que “A comunidade científica americana parece ter colocado uma pá de cal na experiência de fusão nuclear a frio dos colegas Stanley Pons e Martin Fleischmann, definida como um ‘enorme blefe’”. O texto inclui a defesa feita por James Brophy, Diretor de Pesquisas da Universidade de Utah, incluindo o seguinte argumento: “Qualquer cientista pode errar, por pouco ou por muito - disse ele - e se os drs. Pons e Fleischmann cometeram erros, eles mesmos irão reconhecê-los. Mas até agora, nenhum dos seus críticos publicou suas próprias conclusões, e estão conduzindo um assunto científico através de entrevistas à imprensa.” A leitura atenta do noticiário sobre a fusão em temperatura ambiente evidencia que a partir da reunião da Sociedade Americana de Física o noticiário começa a tomar um novo rumo. Os jornais brasileiros pesquisados nesta dissertação buscam fórmulas que ajudem, de certo modo, o mea culpa que parecem resignados a fazer. Idêntica atitude começam a tomar os pesquisadores brasileiros que, há menos de uma semana, não pareciam ter dú- 146 vida alguma sobre os resultados que estavam obtendo com suas experiências. A FSP de 5 de maio fez somente dois pequenos registros sobre o assunto, um sobre as críticas contra Utah, outro sobre a resposta daquela universidade americana. Mas na FSP de 5 de maio, novamente o físico Rogério Cezar de Cerqueira Leite retoma o assunto, titulado por “Conseqüências do cacarejo científico”. No seu estilo peculiar, no qual a ironia tem lugar garantido, Cerqueira Leite empreende uma crítica sobre a prática do cacarejamento, definindo-o como “o anúncio autoglorificador, prematuro e desproporcional, de uma realização intelectual, ou material, que pode ser uma descoberta científica, a consecução de uma obra de arte, um triunfo econômico, uma inovação tecnológica, um achado histórico etc.” O articulista propõe analisar o custo/benefício da prática do cacarejamento. E começa pelos benefícios, dos quais, o primeiro, seria gerar o mito da competência nacional. “E mitos são úteis”, diz ele. O exemplo escolhido é o da descoberta realizada em 1947, pelo brasileiro César Lattes e colaboradores, da partícula píon, “essencial para a compreensão de toda a física”. Neste caso, segundo Cerqueira Leite, não houve cacarejamento. Outro benefício é que os cacarejamentos acabam gerando, ainda que provisoriamente, “condições propícias para a obtenção de recursos financeiros.” Foi assim, por exemplo, com as réplicas brasileiras das experiências no campo da supercondutividade, ocorridas em 1986, fato com muitas semelhanças ao episódio da fusão a frio e, casualmente, com alguns personagens envolvidos em ambas. Cerqueira Leite também considera que o cacarejamento acaba chamando a atenção para campos emergentes, e produzem interesse de novos talentos. “Do ponto de vista estritamente pragmático há, portanto, algumas 147 vantagens para a sociedade em geral, e para instituições específicas, na prática do cacarejamento”. Neste ponto do seu artigo na FSP, Cerqueira Leite passa a analisar a coluna dos custos. O primeiro perigo citado é a relação cacarejo/incompetência, ou seja, “os que mais cacarejam são quase sempre os menos competentes. (...) São os profissionais do cacarejo. E isto pode provocar nos jovens cientistas visões distorcidas da ciência”. Cerqueira Leite chama a atenção para outro perigo na prática do cacarejamento. Os governos, cedo ou tarde, acabam percebendo a farsa e podem ampliar o julgamento para todos os segmentos sérios da ciência brasileira. Depois destas considerações, Cerqueira Leite conclui seu artigo com um comentário sobre a omissão proposital de informações sobre as quantidades necessárias de matérias primas para, em escala industrial, obter resultados de produção compensadores. No fundo, a intenção aqui, parece ser a de chamar a atenção para os monumentais problemas de engenharia científica a serem enfrentados caso a hipótese da fusão a frio se mostrar, realmente, promissora. No dia 6 de maio de 1989, somente em O Globo encontramos o tema fusão a frio tratado isoladamente num editorial de cinco parágrafos, sob o título “Humildade”, e aqui reproduzido na íntegra: “Já é praticamente consensual na comunidade científica internacional: a fusão nuclear a frio, supostamente realizada por dois pesquisadores da Universidade de Utah, nos Estados Unidos, não aconteceu. E o debate baixou de nível. Discute-se agora se a dupla foi apressada, incompetente ou desonesta. Qualquer das três explicações é reforçada pelo açodamento com que a Universidade pediu ao Congresso americano US$ 25 milhões para continuar as pesquisas. 148 Ainda não está certo exatamente que tipo de reação - talvez química e não nuclear - foi produzida no laboratório de Utah e reproduzida pelo Mundo afora. Segundo alguns cientistas, foi algo parecido com as experiências realizadas em 1823 por um químico alemão, que nelas se baseou para criar uma engenhoca chamada “Feuerzeug”- um acendedor de charutos. [Já lembrado no próprio jornal, em 22 de abril]. É uma lição de humildade. Por um momento, a Humanidade pensou ter encontrado a fórmula barata e segura de produzir energia ilimitada. Pois vai ter de se contentar com um obsoleto isqueiro alemão.” No domingo, 7 de maio de 1989, o JB publicou um longo material, começando por um texto assinado por Jorge Luiz Calife, sob o título “Ciência demora a aceitar novas idéias”. A principal argumentação, sem dúvida a motivadora do desenvolvimento da pauta, vinha logo na primeira linha: “Uma descoberta científica raramente é aceita ou rejeitada pela comunidade científica imediatamente”. Calife garimpou exemplos para ilustrar a matéria. Na década de 20, Roberto Goddard, o pioneiro americano dos foguetes, enfrentou a descrença generalizada em suas idéias, inclusive da revista científica Nature. Outro pioneiro, William Crookes, em 1873, primeiro deixou perplexa a comunidade científica de então, com um aparelho chamado radiômetro, destinado a provar que a luz era formado por corpúsculos e se propagava no vácuo. Embora o invento de Crookes produzisse um falso resultado, conforme demonstrou, em 1879, o físico James Clerk Maxwell, suas idéias não eram completamente erradas. A quebra do protocolo comumente aceito no mundo científico, de só divulgar publicamente um assunto depois de submetê-lo ao crivo dos pares, por meio de fóruns adequados, como as revistas científicas, tem antecedentes famosos. Calife cita o caso de Wilhelm Röntgen, descobridor do raio X, 149 ganhador do Prêmio Nobel de Física em 1901. Röntgen não recebeu a devida atenção da pequena comunidade científica da província onde vivia e resolveu espalhar a boa nova. Foi um sucesso. Depois, quando Ernest Rutherford apresentou um trabalho afirmando que os elementos radioativos se desintegravam, criando outros elementos, só recebeu a descrença como resposta. Mas ele estava certo e foram necessários 45 anos para que a tecnologia da fissão nuclear fosse desenvolvida. O material do JB do dia 7 de maio apresenta também um segundo texto - “Uma fusão de erros e enganos”. Aqui, o enfoque é sobre as fraudes científicas “apoiadas pelo governo e de erros de laboratório que provocaram sensação, seguida de desapontamento”. O primeiro caso lembrado é o lendário episódio envolvendo Perón e seu governo, na Argentina dos anos 50. Um físico trazido da Áustria para desenvolver um sistema de propulsão atômica para aviões convenceu o presidente argentino a investir alguns milhões de dólares na montagem de um laboratório destinado a produzir energia por meio de fusão nuclear usando matérias-primas baratas. O instituto de pesquisas foi erguido em Bariloche, milhões de dólares foram gastos e a fraude acabou sendo descoberta. Outro exemplo citado no texto do JB (possivelmente, do mesmo Jorge Luiz Calife) é o caso da poli-água, um novo estado da água, anunciado pelo Instituto de Química e Física de Moscou em 1969. Até 1973, quando os descobridores da poli-água se retrataram publicamente em Moscou, muitos debates e estudos foram realizados por gente e instituições sérias. “A poli-água não existia. Fora um engano provocado pela contaminação de água normal por sujeira que escapara de um equipamento de teste”. O último exemplo citado no texto, tipificado no rol das fraudes, foi citado na revista Time “da semana passada”, maneira pouco adequada de referenciar uma fonte, mesmo num texto jornalístico, rotineiramente utilizada. O fato citado “aconteceu em 1926, quando dois cientistas alemães, Fritz 150 Paneth e Kurt Peters, anunciaram ter conseguido fusão nuclear usando paládio, o mesmo material usado por Fleishmann e Pons. Menos de um ano depois os dois pesquisadores admitiram ter cometido erros. A fusão era uma ilusão. Se a mesma coisa acontecer com Pons e Fleischmann, o governador de Utah [que saiu em defesa da dupla] pode ter o consolo de não ser o primeiro a cair no conto da fusão. Até Perón já entrou nessa.” O jornal OESP de 9 de maio de 1989 publicou uma matéria assinada por José Carlos Santana, correspondente em Londres, baseada em entrevista feita com Laura Garwin, apresentada como editora de assuntos científicos da Nature, que explicou um pouco dos bastidores da tramitação do artigo enviado por Fleischmann e Pons que a revista acabou não publicando, pois os referees exigiram algumas respostas que os dois não quiseram, ou não puderam dar. Sob a ótica da matéria, a recusa da Nature indicou para a comunidade científica que havia algo de errado com a experiência realizada na Universidade de Utah. No dia 10 de maio, o JB deu continuidade à cobertura do assunto, desta vez para dar também vez aos citados Fleischmann e Pons. Em palestra na Conferência da Sociedade de Eletroquímica, em Los Angeles, eles continuaram defendendo seu experimento. Referindo à possibilidade de estar enganado, Fleischmann disse: “Se houver erro, serei o primeiro a admitir”. Encerrando a primeira parte da reportagem, há o seguinte texto: “Fleischmann e seu colega reconhecem que não têm resultados conclusivos quanto à emissão de nêutrons, hélio ou trítio pelo seu aparelho. Esses são os subprodutos de uma reação de fusão nuclear, cuja detecção indicaria que a experiência envolve mesmo uma reação física. Os dois pesquisadores só mediram até agora a produção de calor, que tem sido quatro vezes maior do que a consumida para decompor eletricamente a água pesada”. 151 O Globo de 10 de maio também também reporta a conferência da Sociedade Eletroquímica dos Estados Unidos, na qual “Fleischmann e Pons constestaram críticas feitas à experiência, reafirmando a produção de energia maior do que a utilizada, o que comprovaria a eficácia do método.” Os dois cientistas atribuíram ao tamanho inadequado do eletrodo de paládio o fato de o Instituto Tecnológico de Massachusetts (MIT) e o Instituto Tecnológico da Califórnia (Caltech) - instituições bem reputadas no mundo acadêmico - não terem conseguido repetir satisfatoriamente a experiência de fusão a frio. Com relação às críticas enfocando a não emissão de raios gama, o texto de O Globo contém o seguinte trecho: “Fleischmann admitiu, embora tivesse medido a radiação, que esse foi o aspecto menos satisfatório da experiência, e que novas medições com equipamento mais preciso já haviam sido iniciadas.” No dia seguinte, 11 de maio, somente em O Globo encontramos noticiário sobre a fusão a frio, com chamada em primeira página: “Descobridor da fusão nuclear a frio admite que houve erro no gráfico que indicava emissões de nêutrons”. O interessante é que a revelação foi feita, segundo o correspondente do jornal em Washington, José Meirelles Passos, na aludida reunião de Los Angeles, no dia 9 de maio, já reportada na edição do dia 10. Eis um trecho extraído do material de O Globo: “Ele admitiu [referese a Fleischmann] em Los Angeles, perante centenas de membros da Sociedade Eletroquímica, que havia um erro grave no documento que divulgaram há dois meses. A questão é que se trata de um equívoco essencial na alegação de que a experiência teve sucesso. E ele só apareceu quando um cientista do Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT), Stanley Luckhardt, perguntou aos dois colegas se tinham sido produzidos nêutrons na reação - fenômeno que era de se esperar, de acordo com a conhecida teoria da fusão. 152 Para surpresa da platéia, Fleischmann então respondeu que não sabia se isso acontecera, embora os papéis divulgados por ele próprio digam o contrário.” A declaração de Fleischmann, reproduzida em seguida, é absolutamente incrível, se considerarmos que o trabalho sobre fusão a frio vinha se desenvolvendo aparentemente há cinco anos. Em Globo está assim: “- Na verdade, o gráfico publicado, e que indica a criação de nêutrons, tem um erro. Não podemos garantir que isso aconteceu porque o nosso detector de nêutrons apresentou falhas no momento da experiência - revelou Fleischmann. - Mas nós já conseguimos um novo equipamento e ele será usado em novos testes que estamos realizando - disse ele.” No dia 12 de maio, o Caderno Ciência, da FSP, dedicou uma página ao tema nuclear e a parte superior foi ocupada com a questão da fusão a frio. O físico Luiz Pinguelli Rosa, da Coppe/UFRJ, que em 21 de abril afirmara ter repetido, com seu grupo, no Rio de Janeiro, a experiência de fusão a frio, escreveu um artigo, denominado “Controvérsia na fusão fria é emocional e pouco científica”. Deste artigo, interessa reter os dois parágrafos finais, assim escritos: “Tal como a euforia inicial, a negativa categórica da observação, reproduzida em vários laboratórios, inclusive no Brasil, é emocional e pouco científica. Não é claro o que está ocorrendo, merecendo estudo mais cuidadoso e apurado. Já houve casos em que observações revolucionárias anunciadas foram depois negadas... [seguem-se dois exemplos]. Mas é precipitado dar uma palavra final sobre o presente caso antes de se formar um consenso na comunidade científica. Os nêutrons não são produzidos quando se faz eletrólise e é preciso dar uma explicação plausível para sua presença quando se usa água pesada”. Ainda na mesma edição, na página G-6, há um pequeno registro sobre a conferência em Los Angeles, na qual “a dupla não conseguiu convencer os cientistas presentes”. 153 Somente no dia 12 de maio, o jornal OESP noticiou que “Fleischmann admite que não mediu os nêutrons”. Em texto não assinado, com procedência de Los Angeles, o OESP publica: “Complica-se cada vez mais a situação dos químicos Stanley Pons e Martin Fleischmann, descobridores de uma suposta fusão nuclear à temperatura ambiente (...). Ontem Fleischmann anunciou ante 1.500 membros de uma sociedade eletroquímica reunida em congresso anual em Los Angeles que tinha enviado para análise as amostras de um dos eletrodos usados na experiência para a detecção de hélio-4 - o que seria uma prova irrefutável da ocorrência de uma reação nuclear à temperatura ambiente. O hélio-4, se detectado, poderia ter aparecido de uma fusão de dois átomos de hidrogênio. O anúncio causou algum constrangimento, porque Fleischmann já havia feito tal afirmação no dia 12 de abril e, para os especialistas, não são necessários mais que três dias para se obterem os resultados da presença de hélio-4”. Bom, e os nêutrons do título? Era uma referência ao que, no dia anterior, Fleischmann havia declarado, em outra sessão da reunião, em Los Angeles, assunto somente reportado pelo jornal O Globo. Eis a declaração de Fleischmann publicada em o OESP do dia 12 de maio: “Eu estava a par de que o pico (no gráfico) estava errado. Isso me perturbou bastante”. O Globo de 12 de maio limitou-se a fazer um registro sobre a intenção de Fleischmann e Pons em submeter o eletrodo de paládio que usaram a testes de detecção de hélio-4. Vestígios deste elemento indicariam que a hipótese da dupla era consistente. O material jornalístico dos dias 11 e 12 de maio, encontrado apenas em dois dos quatro jornais analisados nesta dissertação, de certa maneira é revelador do desconhecimento dos responsáveis pela seleção e edição de material. A reunião da Sociedade Americana que reúne os eletroquímicos e a presença de Fleischmann e Pons em pelo menos duas sessões - fato que se 154 deduz pela leitura do OESP - e, sobretudo, o teor das declarações ali feitas por Fleischmann, não poderiam passar despercebidos pelos que, há quase dois meses, acompanhavam o assunto. No dia 13 de maio, somente o jornal OESP deu continuidade ao tema fusão a frio, publicando a informação de que Linus Pauling, ganhador do Prêmio Nobel na categoria Química em 1954, havia enviado uma carta à Revista Nature lembrando um artigo que publicara em 1938 na Physical Review Letter, abordando um tema que explicaria o que Fleischmann e Pons agora achavam ser uma reação nuclear. No dia seguinte, 14 de maio, a carta de Pauling à Nature seria motivo de texto publicado na FSP. O OESP de 14 de maio publicou um texto traduzido do The New York Times, denominado “Fleischmann e Pons são gênios, mas sem cautela”, um perfil sobre os dois personagens que, desde 23 de março estavam com a reputação profissional em jogo. Registre-se que foi o primeiro e único perfil encontrado em todo o material pesquisado para a dissertação, nas edições de FSP, OESP, JB e O Globo, no período de 23 de março a 30 de junho de 1989. O texto que procura revelar a personalidade de cada um dos pesquisadores, é um desses exemplos do jornalismo feito com base em vagas declarações e fontes nem sempre claramente identificadas, que levam a afirmações cuja veracidade é sempre discutível. O objetivo declarado no lead é que “Conhecer mais de perto o clima que envolve as relações entre os dois químicos Martin Fleischmann e Stanley Pons, que anunciaram ter conseguido a fusão de átomos a frio, talvez explique por que eles fizeram um anúncio tão apressado, cheio de lacuna e sem as devidas confirmações.” Eis um resumo sobre os dois, conforme o perfil traduzido no OESP: - Os colaboradores de Fleischmann e Pons dizem que a dupla é considerada brilhante e produtora de um volume extraordinário de idéias inova- 155 doras, que com freqüência se mostram realizáveis. São, igualmente, excessivamente entusiasmados com as idéias que têm. - Pons e Fleischmann podem ser tudo, menos incompetentes. Os dois têm créditos acadêmicos que lhes dão o direito de pertencer à comunidade científica. Em 1989 Fleischmann contava 62 anos e Pons 46. Aos 30 anos, Pons provocara controvérsia com uma tese sobre as reações químicas na superfície do paládio. Um colaborador, Harry Mark, diz que “depois de dois anos, a comunidade científica concordou com os resultados”. - O encontro entre os dois ocorreu em 1975. Os dois já publicaram juntos dezenas de estudos. - No caso da fusão a frio, teria cabido a Fleischmann as “teorias criativas” enquanto Pons teria fornecido “a base experimental e financeira”. A questão teria começado em 1984 (referência que teria levado a um defensor da dupla, Brophy, de Utah, a afirmar que os dois trabalhavam há cinco anos antes de anunciar a obtenção de resultados que comprovariam a fusão em temperatura ambiente). A experiência teria custado US$100 mil. - Fleischmann, britânico de nascimento, parece ter um tipo de humor refinado. O perfil reproduz a seguinte pergunta que ele costuma fazer aos colegas: “Vamos lá, qual cientista seria capaz de garantir que suas teorias são 100% corretas?” Depois de quatro dias sem uma única referência sobre o tema, em 19 de maio o Caderno Ciência da FSP publicou duas pequenas notas, sobre a opinião de Linus Pauling e sobre o envio, “a três laboratórios”, de amostras do eletrodo de paládio usado na experiência em Utah. Na mesma edição, pela terceira vez o físico Rogério Cezar Cerqueira Leite volta a escrever sobre o assunto, desta vez sob um título absolutamente neutro: “Observações sobre a fusão a frio”. Depois de resumir, com exemplos, o que tinha acontecido desde que Fleischmann, Pons e, também, Steven Jones, haviam declarado sobre a 156 ocorrência de fusão nuclear em temperatura ambiente, Cerqueira Leite registra que “alguns laboratórios pouco conhecidos afirmam ter observado a fusão a frio enquanto os centros de maior prestígio insistem em que o fenômeno não existe.” A partir daí, vem a opinião do articulista, que afirma ter revisto os dados apresentados por Fleischmann e Pons e concluído que a presença de raios gama detectada exige uma explicação. Cerqueira Leite descarta a hipótese de fraude científica, tanto a conscientemente cometida como a inconscientemente, provocada pela ânsia em buscar dados que confirme determinada hipótese. O caso híbrido - “que começa com algum erro involuntário, mas que, após uma publicação inicial precipitada, impele o autor a sustentar seus resultados ou interpretação com ações conscientes (sic) fraudulentas, chegando ao forjamento de dados”- também é descartado. Cerqueira Leite diz que, se confirmada, a fusão a frio teria um potencial econômico tão compensador que “é cedo demais para ser totalmente abandonada. Mas certamente não merece um esforço econômico de grandes proporções.” No dia 20 de maio o OESP noticía que Steven Jones - “um dos inventores da fusão nuclear a frio junto com os químicos Stanley Pons e Martin Fleischmann, anunciou ontem que também não acredita no resultado de seus dois outros colegas.” A FSP de 24 de maio faz um pequeno registro, na Editoria de Exterior, sobre um novo anúncio positivo, feito por pesquisadores da Universidade A&M, do Texas, EUA. O JB, que desde o dia 10 de maio não tocava no assunto, informa, sob o título “Fusão fria é debatida outra vez”, que, em reunião organizada pelo Departamento de Energia dos Estados Unidos e pelo Laboratório Nacional de Los Alamos, “cientistas do mundo inteiro” iriam examinar as úl- 157 timas evidências sobre a alegada realização de fusão nuclear em temperatura ambiente. O Globo de 24 de maio também reporta a reunião americana, informa sobre o anúncio feito por pesquisadores da Universidade A&M e a declaração de Steven Jones, desacreditando da eficácia do método. No dia 25 de maio o JB continuou a publicar material sobre a reunião científica do Texas. Segundo o texto, as análises realizadas nos eletrodos de paládio, feitas por cientistas da Universidade A&M e da empresa Rocketdyne, de Los Angeles, não confirmaram a presença de hélio ou trítio, “que deveriam aparecer se tivesse ocorrido uma reação de fusão nuclear.” O Globo de 25 de maio publicou, sob o título “Descobridor admite que fusão a frio é ineficaz”, declarações de Steven Jones feitas na reunião científica realizada em Santa Fé. Mas, na verdade, o título é apenas parcialmente verdadeiro, porque Jones apenas não acredita que a fusão a frio servirá para gerar energia aproveitável em escala. “- Devemos ser mais quantitativos. Acho que as baixas taxas de nêutrons desafiam a idéia de que o excesso de calor observado por Pons e Fleischmann são conseqüentes da fusão, que, continuo a acreditar, existe.” Em 27 de maio, a FSP fez dois pequenos registros sobre o assunto, dando conta que a reunião ocorrida em Santa Fé chegara ao final sem um consenso sobre as bases físicas do fenômeno (fusão em temperatura ambiente) e a declaração atribuída a um físico sobre a possibilidade de haver fusão, mas sem fornecimento de energia para uso comercial. A nota publicada pelo JB de 27 de maio também afirma que não houve consenso na aludida reunião. No mês de junho, a primeira informação sobre fusão a frio foi publicada no dia 4, quando a FSP noticiou que a rede de televisão NHK, do Japão, havia anunciado que físicos do Departamento de Engenharia Atômica 158 da Universidade de Hokkaido reproduziram a fusão em temperatura ambiente. Somente no dia 5 de junho, o JB noticiou que no Japão havia se reproduzido, com sucesso, o experimento nos moldes Fleischmann e Pons. O JB noticia também: “Nos Estados Unidos é grande a descrença quanto aos resultados apresentados por Fleischmann e Pons. Uma análise dos eletrodos de paládio, usados na experiência original, não revelou nenhum subproduto de fusão nuclear. Para a maioria dos cientistas americanos o calor produzido é resultado de algum processo químico e as medidas de nêutrons ainda não puderam ser feitas com a precisão necessária.” No dia 11 de junho a FSP publicou informação proveniente da United Press International, segundo a qual um até então desconhecido “Fusion Information Center Inc., centro de pesquisa independente de Utah”, por meio do seu presidente, Hal Fox, declarou que “o experimento de Pons e Fleischmann envolve reações de fusão controláveis.” O OESP de 15 de junho noticiou que um novo revés atingiu a fusão a frio. O Laboratório Nacional de Los Alamos desistiu de um acordo a ser firmado com a Universidade de Utah para investigar os resultados anunciados por Fleischmann e Pons. “A colaboração do laboratório de Los Alamos, um centro de pesquisa de alta reputação, era vista como um quase endosso da possibilidade de tal reação ser realizada”. A causa para a desistência seria o excessivo zelo dos advogados da Universidade de Utah, preocupados com vazamentos de informações prejudiciais a pedidos de patentes. O vice-reitor para pesquisas da Universidade de Utah, James Brophy, declarou: “Cientistas querem sair contando tudo, mas um advogado de patentes tem de dizer para ninguém falar nada”. No dia 23 de junho, os leitores da FSP ficaram sabendo, por meio de um pequeno registro, que no Instituto de Estudos Avançados do Centro Técnico Aeroespacial, em São José dos Campos, desde a segunda-feira, 19, 159 uma nova experiência de fusão a frio estava em andamento, usando o mesmo equipamento que o INPE usara. No dia 24 de junho, o OESP publicou um texto proveniente de Nova York, sob o título “Europa lidera a fusão a sério”, secundado por manchetinha “Passado o fiasco da fusão a frio, físicos retomam um caminho difícil, mas seguro”. O texto faz um apanhado sobre o desenvolvimento das pesquisas realizadas por franceses, alemães, japoneses e americanos que percorrem a trilha iniciada nos anos 40 voltada para a fusão em altíssima temperatura. O material do OESP inclui um box sobre este tipo de pesquisa no Brasil, mais especificamente no Instituto de Física da Universidade de São Paulo, que dispunha, em 1989, de um equipamento - tokamak - destinado a confinamento de plasma, uma espécie de gás formado por partículas de deutério e de trítio. O IFUSP estava buscando obter 5 milhões de dólares para dar início à montagem de um equipamento de maior porte. No dia 28 de junho, pequena nota em o OESP informava que cientistas do Laboratório Nacional de Los Alamos anunciaram ter encontrado evidências da presença de trítio, um subproduto da fusão, durante experiências de fusão nuclear a baixa temperatura. Com o mesmo teor, a FSP de 30 de junho também publicou nota. A fusão a frio, a partir daquela data, foi se tornando tema cada vez mais rarefeito nos jornais brasileiros, embora, desde então, de maneira esparsa, volta e meia torne a ocupar espaços, com a informação sempre originada do Exterior. 160 CAPÍTULO 3 A FUSÃO A FRIO NOS JORNAIS BRASILEIROS 3.1 - Comentários Necessários Nos textos dos jornais Folha de S. Paulo, O Estado de S. Paulo, Jornal do Brasil e O Globo, no período de 24 de março a 30 de junho de 1989, identificamos os diversos argumentos com os quais a Imprensa (em particular os quatro jornais citados) construiu a história do acontecimento científico rotulado por fusão a frio. Quatro desses argumentos representam recomendações feitas por Autores que têm procurado estabelecer regras gerais a serem observadas no Jornalismo Científico, como José Reis, Manuel Calvo Hernando e Warren Burkett. Um quinto argumento, embora não suficientemente previsto nestes autores, foi claramente identificado durante a análise dos textos. À rigor, não há um ideário pronto e acabado na literatura produzida pelos Autores citados, conforme se comprovou com a elaboração da dissertação. Como decorrência mesmo da leitura empreendida para buscar os aspectos recomendados ao Jornalismo Científico, deve-se reconhecer que a literatura é fragmentária e, em certos aspectos, apresenta situações contraditórias entre si, como se tentará demonstrar na seqüência. Algumas recomendações deixaram de ser objeto de verificação, no sentido explicitado na Hipótese nº 1, isto porque não as consideramos como aplicáveis especificamente ao Jornalismo Científico. Destacamos, em particular, as recomendações de clareza, concisão e correção gramatical, atributos de qualidade do texto jornalístico em qualquer ramo de especialização, obviamente também aplicável no Jornalismo Científico. 161 Com a atitude metodológica aqui explicitada a intenção é possibilitar um julgamento mais acurado sobre a Imprensa, por meio da compreensão dos argumentos com os quais busca transmitir ao leitor os predicados inerentes à atividade científica. Julgamos dispensável deixar de indicar a freqüência com que os argumentos aparecem no total dos textos analisados. Quando cabe, fazemos apenas as referências obrigatórias com relação à ênfase que o argumento tem nos textos jornalísticos analisados. Apoiamo-nos, em quase totalidade, nos escritos esparsos produzidos a partir dos anos 40 por José Reis, em especial naqueles que especificamente têm por tema central a questão da divulgação da Ciência e o Jornalismo Científico. José Reis, que no momento de conclusão da dissertação (março de 96) continua em atividade regular, mantendo uma coluna semanal no jornal Folha de S. Paulo (Periscópio), publicada aos domingos, é o autor brasileiro que mais consistentemente tem oferecido os elementos que tentam conformar a prática do Jornalismo Científico, simultaneamente ao seu mister de divulgador da Ciência, iniciado nos anos 40. O idealismo de um Jornalismo Científico sem máculas, capaz de preencher objetivos nobres de obter apoio para a Ciência, atrair novos valores humanos e ser o instrumento de partilha entre o conhecimento dos cientistas e a sociedade95são parte do ideário recomendado mas o próprio J. Reis coloca em discussão outros aspectos. “Bem poderíamos agora virar o que dissemos e procurar ver de ângulo totalmente diverso, menos idealista e aparentemente mais racional, [grifo nosso] essa questão do porquê da divulgação. Um cético poria de lado todos os argumentos acima expedidos e pintaria este outro quadro: à medida 95 - REIS, J. Divulgação científica. Anhembi, julho, 1962. 162 que a sociedade progride, e que o faz naturalmente à custa do esforço científico (ainda que nem sempre percebido de maneira clara), desenvolve-se a necessidade de comunicação científica, porque os fatos da ciência passam a ser os que mais freqüentemente se deparam aos cidadãos e entram a condicionar-lhes o comportamento e a exigir-lhes decisões.”96 Assim, a crescente divulgação da Ciência teria outro eixo motivador: a própria sociedade, exigindo constantemente explicações para tentar entender o mundo cada vez mais complexo. Continua José Reis: “Quer se aceite esta última interpretação, baseada por assim dizer nos instintos e no desenvolvimento normal das necessidades da coletividade, quer se prefiram as primeiras explicações por assim dizer idealistas, em que se admite que as coisas se fazem premeditadamente para atender a um certo fim, em que se reconhecem objetivos e se procura acudir a eles, ou mesmo criá-los tendo em vista determinados bens, que ainda não se patentearam, não será difícil conciliar todas elas...[grifo nosso]”97 Como se vê, há aqui duas posições antagônicas, porém não irreconciliáveis, como deduz José Reis. De um lado, os defensores da Ciência e da Tecnologia - muito próximos, por sinal, de uma atitude que poderia ser considerada Positivista - entendem que a divulgação deve se fazer a partir de uma visão interior (interesse próprio, formação de novos recursos humanos e desejo de partilhar conhecimentos). De outro, a própria sociedade vê-se na contingência de exigir informação em face de a Ciência ser cada vez mais a condicionadora do comportamento coletivo e importante para a tomada de decisões. Tais aspectos, contudo, não nos oferecem ainda a condição de verificar, nos textos publicados, a eventual correspondência aludida em nossa 96 - Opus cit. p. 229. 163 Hipótese nº 1. Entretanto, eles nos alertam para a necessidade de abandonar uma visão de certo modo predominante nas análises sobre o Jornalismo Científico - excessivamente motivada por um exagerado purismo, fundamentado em pelo menos três vetores, a saber: 1) Visão predominantemente utilitarista da Ciência, à qual caberia dar respostas para todos os questionamentos e angústias humanas; 2) Visão excessivamente idílica dos cientistas, idealizados como seres superiores, desprovidos da emoção humana, incapazes de se meter nas mazelas cotidianas quando imersos em suas pesquisas; 3) Visão de que a Ciência corresponde ao ideal de certeza absoluta, correspondente ao ideário Positivista, não se admitindo o improvável e o discurso claudicante. Ora, o noticiário sobre a fusão a frio rompe com tudo isto, à medida em que coloca publicamente aspectos que - de fato - ocorrem no mundo acadêmico, movimentado por homens iguais aos seus semelhantes, investidos de regras, métodos, conhecimentos, técnicas, criatividade, recursos, mas também acossados por ciúmes, dúvidas, angústias, pressões de todo tipo (eventualmente vindas da própria Imprensa...). Nesse sentido, uma leitura menos apaixonada e mais atenta da literatura que tenta estabelecer os contornos da prática do Jornalismo Científico dará as pistas fundamentais para tentar verificar quais argumentos foram utilizados na divulgação pública do episódio da fusão a frio, em 1989. Em outros termos, acreditamos que uma crítica mais fundamentada ao Jornalismo Científico não pode abstrair, pelo menos, o modo como se produz Jornalismo e o fato de que, no caso específico do Jornalismo Científico, há a agregação de algumas recomendações específicas. 97 - Opus cit. p. 229. 164 Os argumentos identificados nos textos analisados serão apresentados sem uma ordem de precedência que lhes daria, por assim dizer, maior importância dentre os demais. Eles foram garimpados na leitura necessária à pesquisa e, a partir da identificação e compreensão, buscamos comprovar sua aceitação, representada pelo uso concreto na formatação do texto jornalístico. Além de José Reis, fonte obrigatória de consulta para estudos sobre Jornalismo Científico no Brasil, buscamos referências em pelo menos dois outros autores: Manuel Calvo Hernando, já mencionado nesta dissertação, e Warren Burkett. Tais escolhas não são aleatórias. José Reis, como já dissemos, é o autor brasileiro de referência obrigatória na área, mercê do trabalho que empreende há quase meio século; Calvo Hernando, em língua espanhola, tem produzido sistematicamente informações que procuram refletir sobre o Jornalismo Científico; Warren Burkett98 produziu um livro típico de orientação para o trabalho, que oferece bastante material de reflexão para jornalistas especializados na cobertura de Ciência e Tecnologia. As citações textuais, estas sim, se apresentam sempre em caráter cronológico, a partir de 24 de março e encerrando-se em 30 de junho. Esta datação visa a oferecer a possibilidade de compreender quando determinados argumentos surgem no noticiário. Mas, do ponto de vista de nosso trabalho, tal aspecto não tem significação especial. A razão está no fato de que estamos observando um conjunto de matérias jornalísticas, publicadas num dado tempo, condição fundamental para 98 - O livro de Burkett ganhou importância, além do seu conteúdo pragmático, pelo fato de ter sido colocado à disposição em língua portuguesa (fato raro em se tratando de literatura especializada em Jornalismo Científico, filão que ainda não mereceu a devida atenção dos editores brasileiros), mas, infelizmente, a edição é bastante descuidada, com evidentes tropeços de tradução e editoração. 165 permitir eventualmente o preenchimento daqueles requisitos colocados como inerentes ao Jornalismo Científico. Sobre isto, compartilhamos plenamente da seguinte tese: “Dada a escassez de tempo real [grifo do Autor] - período do tempo absoluto dedicado ao programa jornalístico menos as manchetes, a redundância pleonástica (aquela que ultrapassa as necessidades dos efeitos de memorização da fala) e o consumido pelas inserções de propaganda e publicidade - a notícia é divulgada de forma a conter apenas indicações incompletas do fato, que só se aclara para o grande público após sucessivas versões. [grifo nosso]”99 Obviamente, quem apenas leu as notícias do dia 24 de março de 1989 sobre a fusão a frio terá uma referência incompleta sobre o fato, em todos os seus desdobramentos que irão aparecer somente nos dias subseqüentes, neste processo de “informação a conta-gotas”100, que gera uma crítica muito recorrente na análise sobre o Jornalismo e, em especial sobre o Jornalismo Científico, isto é, a fragmentação em excesso do fato reportado. Indo mais adiante neste aspecto, que julgamos relevante para a compreensão do nosso estudo e das suas conseqüentes conclusões, recorremos ainda a BORIN e “à hipótese de que a verdade objetiva dos fatos não chega ao grande público de forma transparente, logo nas primeiras versões do evento noticiado. Pelo contrário, sua clareza só aparece para esse público após sucessivas versões, boatos e análises parciais.”101 Ainda segundo este Autor, “Essas versões vão se complementando de acordo com a dimensão do evento coberto ou conforme o grau de interesse 99 - BORIN, Jair. A notícia e suas versões, no espaço e no tempo dos grupos de pressão (de rabo preso com a classe dominante). São Paulo: ECA/USP, novembro de 1987, 246 p. (Tese de Doutoramento). 100 - Opus cit. p. 29. 101 - Opus cit. p. 30. 166 suscitado. E só ao final de um determinado período, quando, se não todas, pelo menos grande parte das fontes envolvidas na questão apresentam suas versões, tem-se um quadro mais próximo da verdade objetiva do acontecimento.”102 A fusão a frio, episódio essencialmente científico tratado escancaradamente diante do público tendo a Imprensa como mediadora, reveste-se de tantas e intricadas características correspondentes a outro aspecto para o qual BORIN chama a atenção: “Na realidade, quanto mais complexo o assunto abrangido pelo noticiário, mais versões e maior número de interpretações ele gera, de modo que a transparência sobre o assunto noticiado só chega ao grande público após um certo número de versões.”103 Circunstancialmente, anotamos uma observação encontrada num dos textos produzidos por REIS, nos quais buscávamos os informes para identificar os contornos da prática recomendada ao Jornalismo Científico: “(...) É que no periódico popular o erro se corrige no dia imediato, logo esquecendo o público, hoje, com a nova leva de informação, o que leu ontem.”104 Consideramos importante, igualmente, que a manchete é altamente indutiva à formação de um juízo por parte do leitor mais apressado. Ocupando um lugar claramente demarcado no texto jornalístico, a manchete, juntamente com o lead, “funcionam juntos como um sumário do discurso da notícia”105. BORIN também chama a atenção para a importância da manchete ao dizer que “Cumpre destacar que a manchete do fato acaba se tornando sua 102 - Opus cit. p. 64. 103 - Opus cit. p. 135. 104 - REIS, José. Ciência e jornalismo. Ciência e Cultura, fevereiro, 1972, p. 137. 105 - DIJK, Teun A. van. Cognição, discurso e interação. São Paulo: Contexto, 1992, p 146. 167 parte substantiva, daí a importância que ela tem como instrumento de informação. Por isso ela é tão manipulada, ocorrendo, não raro, contradições marcantes entre o que ela afirma e o texto da notícia.”106 De fato, se considerarmos apenas as manchetes relacionadas com a narrativa do episódio da fusão a frio e abstrairmos por completo os relatos jornalísticos que lhe dão continuidade, poderemos ter uma impressão bastante equivocada dos acontecimentos. Antes de prosseguirmos em direção à análise propriamente dita consideramos oportuno comentar as eventuais semelhanças entre nossa proposta de pesquisa e dois trabalhos anteriores (BUENO, 1985; ADEODATO, 1987). O primeiro comentário é sobre a tese de Doutoramento de BUENO107, já referenciada nesta dissertação, cuja intenção está claramente explicitada na página 3, da seguinte forma: “Nosso trabalho tem como proposta básica avaliar a teoria e a prática do Jornalismo Científico em nosso País...” Este intento irá se concretizar, primeiro com a tentativa de conceituação [grifo nosso] do Jornalismo Científico e a conseqüente intervenção do Autor nesta operação, pois “a tarefa não se mostrou fácil, visto que a bibliografia brasileira e internacional nesta área está orientada antes para aspectos técnico-operacionais do que para a dimensão taxionômica.”108 O confronto entre a teoria e a prática feita por BUENO ocorreu mediante a análise de material localizado em três situações distintas: “1º) análise extensiva da divulgação de ciência e tecnologia pela imprensa; 2º) análise da cobertura dada pelos jornais à reunião anual da Sociedade Brasileira 106 - BORIN, Jair. Opus cit. p. 30. 107 - BUENO, Wilson da Costa. Jornalismo científico no Brasil - os compromissos de uma prática dependente. São Paulo: ECA/USP, 1985. 108 - Opus cit. p. 3. 168 para o Progresso da Ciência, com certeza o nosso mais importante evento científico; e 3º) análise da cobertura de alguns fatos científicos ocorridos no período em que se efetuou a pesquisa.” Está evidente, portanto, que a observação de correspondência almejada na tese mencionada tinha propósito de correlacionar prática (concretizada em material publicado em jornais e revistas) com teoria, integrada por conceitos. Em nosso entendimento, no caso da tese de BUENO a palavra-chave é conceito, uma categoria que o Autor irá procurar construir, como admite, e a partir da qual, nos textos que analisou, irá verificar até que ponto, em suas múltiplas vertentes, o mesmo se encontra manifestado. ADEODATO109também desenvolve uma “proposta de analisar o conceito [grifo nosso] de Jornalismo Científico comparando os enunciados teóricos com a realidade prática.” Em trabalho destinado a apresentação no II Seminário Brasileiro de Divulgação Científica, incluso no 10º Congresso da INTERCOM, em 1987, diz o Autor: “A tarefa de conceituar Jornalismo Científico transcende à análise das características e questões internas do jornalismo. Para se entender de forma mais real, abrangente e perspectiva o que é Jornalismo Científico, torna-se necessário relacionar suas características essenciais, sua metodologia de trabalho e suas funções com o ambiente sócio-econômico-cultural no qual ele está inserido.”110 A intenção do estudo de ADEODATO é de certo modo idêntica a de BUENO, e o recurso para análise é o mesmo: textos jornalísticos publicados em jornal, nos quais se busca encontrar ressonância com os conceitos do Jornalismo Científico. 109 - ADEODATO, Sérgio. O conceito de Jornalismo Científico - teoria e prática. Rio de Janeiro: 1987. 71 p. (mim.). 110 - Opus cit. p. 3. 169 Em nossa dissertação, observe-se que estabelecemos como ponto fulcral a expressão “práxis”, no sentido etimológico que esta tem, a saber: “Etimologicamente (do grego praksis [práxis], do verbo prasso, atuar), a palavra prática (originalmente adjetivo de práxis) significa toda atividade humana concreta, e tem por antônimo o termo teoria, que exprime uma ausência de atividade, i. e., uma abstração.”111 Entendemos, pois, que nossa busca é diferente da empreendida pelos dois Autores aqui mencionados. As recomendações que extraímos da literatura como adequadas ao Jornalismo Científico estão, por pressuposto, inclusas num sistema conceitual ou teórico que procuraria dar conta das funções desta área do Jornalismo. Estamos essencialmente preocupados em verificar o fazer jornalístico. Em nossa visão, a práxis - que encontra respaldo na correta aplicação do termo, como se demonstra com a explicação etimológica - corresponde a uma atitude concreta do que poderíamos chamar, se quiséssemos, normas gerais aplicáveis ao Jornalismo Científico. Evidentemente, a simples aplicação de uma norma não significa que está sanado o problema eventual de uma elaboração inadequada de texto, com as conseqüências daí provenientes. Se fosse intenção, nesta dissertação, empreender outro tipo de análise, certamente constataríamos impropriedades cometidas na elaboração dos textos que, aos olhos de certa linha de crítica, maculam o Jornalismo Científico. De qualquer modo, se considerarmos as normas recomendadas como um parâmetro efetivo para formar um juízo calcado em pressuposto adredemente informado, sem dúvida estamos diante de um modelo experimental que julgamos válido para refletir sobre o comprometimento ou não do Jornalismo Científico com a base de sustentação que lhe dá contornos específi111 - Dicionário de Ciências Sociais. Rio de Janeiro: FGV e MEC, 1987. p. 957, verbete Práxis (Praxis). 170 cos e diferenciados perante outras áreas de especialização jornalística. Neste sentido, parece-nos que a reflexão repousa numa base criteriosa, e abre perspectiva para um aprofundamento, no sentido de criar as condições mais condizentes para o aprimoramento da atividade jornalística direcionada para a cobertura de fatos científicos. 3.2 - Análise Qualitativa Tendo em conta todos os pressupostos enunciados, em seguida damos consecução ao objetivo de tentar encontrar os argumentos utilizados na prática jornalística voltada para a cobertura de Ciência e Tecnologia e sua eventual utilização em textos publicados nos jornais já aludidos. Foram identificados quatro referências, recomendadas como adequadas na elaboração de textos jornalísticos voltados para assuntos de Ciência e Tecnologia, consolidadas a partir da literatura consultada, e que denominados de argumentos. Pela ordem em que serão comentados, são os seguintes: 3.2.1 - Relação Ciência / Aplicação 3.2.2 - Observância ao Ritual Científico 3.2.3 - Contextualização do Fato 3.2.4 - Uso de Analogias Além dessas recomendações, para as quais, concretamente, encontramos referências explícitas nos Autores que delineiam a prática do Jornalismo Científico, identificamos mais um (3.2.5 - Descrições de Métodos e Processos) que, somado àqueles quatro anteriormente citados, formam o conjunto de argumentos com os quais o fato científico “fusão a frio” foi 171 exaustivamente mostrado ao público leigo, nas sucessivas edições dos quatro jornais brasileiros estudados. Em nível detalhado, vejamos como este argumentos são utilizados nos textos sobre fusão a frio encontrados no período de 24 de março a 30 de junho de 1989. 3.2.1. Relação da Ciência com as Aplicações Uma das características da cobertura jornalística é que a atividade científica só passa a interessar mais concretamente se for associada uma utilidade prática, de alcance previsível (quando não imediato...) para a sociedade. É clássica a pergunta “Para que serve isto?”, feita pelos repórteres sempre que estão diante de um entrevistado num centro de pesquisas. Não é de estranhar, no episódio da fusão a frio, que o próprio release inicial produzido pela Universidade de Utah tenha, já na manchete, feito esta vinculação, imediatamente incorporada ao noticiário, em todo o mundo, despertando o interesse por parte da Imprensa. Registre-se que Pons e Fleischmann, os dois “pais” da proposta, trabalhavam no tema há pelo menos cinco anos e não se conhece registro de algum interesse precedente pelo trabalho da dupla neste ramo de pesquisa, antes que o assunto eclodisse nos moldes verificados, quando o vínculo entre o conhecimento e sua utilidade foi o mote adotado universalmente. A vinculação entre conhecimento acumulado com base nos cânones aceitos pela Ciência e sua eventual aplicação para o desenvolvimento de tecnologias relacionadas ao bem estar é, sem dúvida, a forma pela qual se procura justificar porque enormes somas de recursos financeiros devem ser aplicadas para a manutenção de organismos de pesquisa. Esta vinculação - Ciência / Aplicação - é uma das recomendações recorrentes indicadas para a elaboração do texto jornalístico. REIS propõe: “A 172 informação pura e simples adianta pouco; torna-se preciso situá-la, relacioná-la, de modo que se possa compreender o seu sentido e o seu valor. [grifo nosso]”112 Esta é uma tarefa complicada, pois segundo ainda REIS, “É difícil dar ao público uma noção profunda das muitas conexões entre os fatos científicos e as aplicações desses fatos.”113 Dez anos depois, em outro artigo, REIS bate na mesma tecla ao escrever: “Impossível é dissociar da informação científica a preocupação com suas possíveis implicações de toda ordem, o que justifica o empenho do divulgador em ventilar questões que digam respeito à comunidade servida pelo jornal. [grifo nosso]”114 Em HERNANDO também encontramos indicações de que o vínculo entre a pesquisa e sua utilização deve se constituir numa das preocupações do Jornalismo Científico. “Para a reportagem aprofundada [em contraposição à reportagem superficial, na ótica do Autor] é necessário (...) explorar o que poderá resultar deles no futuro...”115 Ainda segundo o pesquisador espanhol “(...) É forçoso que [o jornalismo] explique, que precise, que aclare, o sentido e os antecedentes e as conseqüências de uma descoberta. [grifo nosso]”116 BURKETT dá a seguinte orientação: “...escreva explicitamente, dê exemplos de aplicações práticas...”117 112 - REIS, José. Divulgação científica. Anhembi, julho, 1962, p. 232. 113 - REIS, José. Limitações da divulgação científica. Anhembi, maio, 1957, p. 606. 114 - REIS, José. Divulgação científica. Ciência e Cultura, dezembro, 1967, p. 698. 115 - HERNANDO, M. Calvo. El periodismo científico; misiones y objetivos. Barcelona: Ed. Mitre, 1982. p. 89. 116 - HERNANDO, M. Calvo. Ciência y periodismo. Barcelona: CEFI, 1990, p. 127. 173 Como já vimos, a partir do mote incluído no próprio release da Universidade de Utah, a Imprensa rapidamente incorporou o vínculo da pesquisa de Fleischmann e Pons com a possibilidade de a mesma vir a significar uma alternativa para pôr fim ao tormento da escassez de recursos energéticos. Energia é a palavra-chave, e não poderia haver apelo maior. Sem energia, não haveria a vida na Terra. O Sol, a estrela mais próxima dos seres humanos, sempre foi reverenciado, sob diversas formas simbólicas, desde antigas civilizações até os tempos hodiernos, exatamente por ser a fonte de vida na Terra. Por outro lado, não há nenhum embuste nesta associação. De fato, as pesquisas convencionais com fusão nuclear, que usam reatores visando criar as pressões e as temperaturas necessárias para reproduzir o mesmo processo que ocorre no interior das estrelas, têm a ambição de obter energia para aplicação. Em entrevistas que realizamos com pesquisadores, em busca de subsídios para a dissertação, evidenciou-se que esta motivação impulsionou a realização da experiência e, de certo modo, a justificou. Os textos que analisamos mostram que o vínculo da pesquisa com sua utilidade prática foi exaustivamente utilizado, com as seguintes características: A) Primeiro, esta possível utilização é colocada no condicional. No Jornalismo, o uso do verbo no condicional não é exatamente o mais usual. O comum é a forma imperativa, sobretudo nas manchetes. 117 - BURKETT, Warren. Jornalismo Científico - Como escrever sobre ciência, medicina e alta tecnologia para os meios de comunicação. Rio de Janeiro: Forense Universitária, s. d. p.123. 174 Exemplos desta situação confirmam que, desde o primeiro momento houve cautela, quer seja por parte do texto de responsabilidade do jornal, em si, ou por parte de fontes ouvidas sobre o assunto. (Se confirmada, a descoberta de Pons e Fleischmann revoluciona o campo da fusão nuclear) - FSP, 25.março. (A fusão [a frio] abriria caminho, por exemplo, para a transformação de água em combustível, criando assim uma energia barata, limpa e segura.) - JB, 25.março. (Se os resultados forem confirmados, uma nova era de produção de energia elétrica barata estará começando...) - FSP, 1.abril. (Esse resultado, se confirmado, é um extraordinário avanço.) OESP, 1.abril. (Se for verdadeira, a descoberta poderá dar toda a energia de que a humanidade precisa.) - OESP, 9.abril. (Se for confirmada a fusão nuclear a frio, poderá estar mais próxima a conquista de uma fonte limpa e inesgotável de energia.) - FSP, 18.abril. (...se os resultados forem confirmados, trata-se de uma das maiores descobertas científicas do século e poderá revolucionar a produção de energia.) - OESP, 18.abril. Evidenciando que a cautela não é uma regra seguida com precisão, encontramos também textos como o seguinte: (A chamada fusão nuclear a frio é uma forma limpa de gerar energia que, ao contrário da fusão nuclear, não provoca poluição nem apresenta riscos.) - O Globo, 15.abril. O texto avança ao usar o verbo de forma afirmativa e, por conseguinte, foge ao tom geral que o noticiário vinha mantendo sobre o assunto, inclusive o jornal mencionado. 175 B) O vínculo da pesquisa com sua aplicação realçou as vantagens comparativas entre esta linha de pesquisa, cujos expoentes passaram a ser Fleischmann e Pons, e a outra, que já conta com pelo menos quatro décadas de trabalho, a da fusão nuclear controlada provocada por pressão e alta temperatura. A comparação ocorrerá, de igual forma, com fontes convencionais de geração de energia, em especial aquelas que produzem rejeitos indesejáveis ao meio ambiente, como é o caso, por exemplo, das usinas nucleares que produzem energia mediante fissão. (“Se essa fusão a frio funcionar, teremos então uma fonte de energia limpa, que pode, sozinha, substituir todas as outras, acabando com o efeito estufa, a poluição do ar e o smog, além de baratear os custos em geral”) Isaac Asimov. OESP, 9.abril. (Ainda há dúvidas sobre o real valor prático da experiência de Fleischmann e Pons. Mas, se isto se confirmar, significará a redenção energética do mundo - pois será possível obter energia de uma fonte praticamente inesgotável (a água do mar, por exemplo), sem a radioatividade das usinas nucleares convencionais.) - JB, 9.abril. (A experiência de Utah repercutiu muito - usa água como matériaprima - o que significaria a solução para o abastecimento energético do planeta.) - FSP, 11.abril. (Ao contrário do sistema de fissão usado nas centrais atômicas de hoje em dia, o novo processo não causaria radioatividade ou qualquer forma de poluição e teria custos baixíssimos, tornando-se uma fonte inesgotável de energia.) - JB, 11.abril. (A “fusão fria” provocou tanto interesse porque a eletrólise (decomposição por corrente elétrica) da água pesada seria uma fonte inesgotável e limpa de energia (há uma parte de água pesada em cada seis mil partes de água do mar)) - FSP, 15.abril. 176 Os dois textos sublinhados, respectivamente da FSP de 11 e 15 de abril, tipificam exatamente a situação comentada em trecho anterior desta dissertação, conforme BORIN. O leitor que fez apenas a primeira leitura poderá deduzir que, tal como se apresenta na natureza, a água é uma das matérias-primas necessárias à fusão nos termos anunciados por Fleischmann e Pons. Na verdade, somente com a leitura continuada o leitor ficará sabendo que o primeiro texto, na verdade, simplifica ao extremo, ao afirmar o aproveitamento da água como matéria-prima. Trata-se de uma verdade parcial, pois a transformação da água em água pesada (na qual, em vez de hidrogênio, há a substituição por deutério) requer tecnologia especial, motivo inclusive de embargos internacionais, visto que a mesma é necessária para desenvolvimentos nucleares de interesse militar. O argumento é válido, mas a simplificação aqui demonstrada evidencia um tipo de reducionismo ou fragmentação muito comum na Imprensa, em que se toma o todo como a parte efetivamente útil ao processo de fusão em temperatura ambiente. Esta redução acaba fortalecendo a idéia de simplicidade que não corresponde, efetivamente, à complexidade do processo e corrobora a crença na capacidade científica e tecnológica de produzir soluções rápidas e descomplicadas. (A fusão nuclear permitiria motores muito mais compactos do que os existentes atualmente e não produziria nenhum tipo de poluição - seja a fumaça das usinas termelétricas a carvão, seja o lixo radiativo das usinas nucleares convencionais.) - JB, 16.abril. (Um estudo do Massachusetts Institute of Technology estima que, usando-se um suprimento de deutério extraído de uma quantidade de água do mar equivalente à superfície do lago Michigan - algo como 14 vezes o lago da hidrelétrica brasileira de Sobradinho - a fusão nuclear poderia suprir toda a demanda de energia dos Estados Unidos nos próximos 15 mil anos.) JB, 16.abril. 177 (Se a fusão puder ser aproveitada comercialmente acredita-se que o processo um dia poderá acabar com o uso de combustíveis fósseis e também com a fissão nuclear, a qual é derivada do fracionamento de átomos de urânio ou de plutônio.) - O Globo, 18.abril. (- A descoberta que fizemos sem dúvida tem grandes e profundas implicações sociais, já que poderá levar o Mundo a ter uma fonte praticamente ilimitada de energia, já que ele [sic] é feita à base de deutério, que é um elemento encontrado nos oceanos e nos lagos - frisou Fleischmann, com visível orgulho.) - O Globo, 27.abril. Esta declaração de Fleischmann ocorreu numa audiência pública no Congresso norte-americano, no contexto da pressão feita pela Universidade de Utah para levantar verbas destinadas à pesquisa nesta área. Quando comparada com a declaração do mesmo Fleischmann contida no release distribuído na entrevista de 23 de março, mostra indícios de que o cientista usou um tom mais adequado ao público-alvo, no ambiente político. No release, Fleischmann assim se expressa: “O que nós fizemos foi apenas abrir as portas para uma nova área de pesquisa”. C) Encontramos também um terceiro tipo de citação que procura estabelecer vínculo entre a experiência em bancada de teste e a aplicação futura, feita com base num critério de cautela mais apropriado, como nos seguintes exemplos: (“As aplicações econômicas ainda estão muito distantes. Muitos mecanismos químicos e físicos do processo ainda precisam ser esclarecidos”, afirmou [o pesquisador Runar Kuzmin, da Faculdade de Física da Universidade de Moscou].) - FSP, 13.abril. (Mas nada disso é para amanhã. Humberto Brandi calcula que serão necessários de 20 a 30 anos para desenvolver uma tecnologia baseada na fusão nuclear, mesmo que se comprove que a experiência de Fleischmann e 178 Pons realmente envolve uma reação de fusão. O mundo da fusão nuclear não entrará no dia-a-dia do homem comum antes do ano 2010.) - JB, 16.abril. (“O caminho da fusão sustentável, de um tubo de ensaio até usinas comercialmente viáveis, está lotado de desafios de engenharia, para ampliar a escala, assim como de química e física básicas”, afirmou [David] Pershing [Diretor do Departamento de Engenharia Química da Universidade de Utah].) - FSP, 21.abril. 3.2.2. Observância ao Ritual Científico Conforme abordamos no Capítulo 1, entretítulo 1.3 - Comunicação Científica, constitui parte intrínseca da atividade científica a produção documental, com vistas à apreciação interna pela comunidade científica. A produção e a citação de papers é ainda um dos instrumentos para aferir a produtividade do pesquisador em todo o mundo. O episódio da fusão a frio provocou perplexidade na comunidade científica também pelo inusitado modo escolhido para a comunicação oficial da pesquisa: uma entrevista coletiva à Imprensa, adredemente preparada com a convocação dos repórteres e a redação de um release. Em suma, foi por meio da Imprensa que os cientistas souberam da novidade e isto provocou comentários como o da Revista Nature, na edição de 13 de abril de 1989, quando reprova que assuntos científicos estivessem sendo tratados pela imprensa leiga. Essa peculiaridade iria ser motivo de comentários trazidos ao conhecimento público, reveladores de um aspecto dos bastidores da Ciência, como se observa, por exemplo, nos seguintes textos: (O físico Bruno Coppi, professor do Massachussets Institute of Technology, estranhou que os químicos tenham divulgado seus estudos pri- 179 meiro na imprensa leiga, antes de submetê-los ao exame da comunidade acadêmica.) - JB, 25.março. (O alvoroço causado na Comunidade de físicos pelo anúncio da descoberta da “fusão fria”controlada foi tamanho que atropelou o método tradicional de divulgação de novidades científicas, os artigos (papers) em revistas especializadas. Houve mesmo quebra de etiquetas. A praxe dos pesquisadores é só comentar os resultados depois da publicação.) - FSP, 7.abril. (Os editores da Nature elogiaram a cobertura “alerta”da imprensa não especializada, mas disseram que há motivo de alarme ‘quando cientistas começam a ler sobre as descobertas de seus colegas em colunas de jornais.) - FSP, 7.abril. (A enorme curiosidade da comunidade científica se deve ao fato de a dupla ter violado os rituais de publicação de obras originais - eles deram um resumo dos resultados no jornal financeiro britânico, Financial Times, em vez de usar as revistas científicas.) - OESP, 7.abril. (Não espanta, assim, que a primeira reação de muitos físicos tenha sido ridicularizar a experiência de Stanley Pons e Martin Fleischmann. Além de serem químicos e trabalharem em universidades pouco conhecidas, Utah e Southampton, eles desprezaram os rituais do mundo acadêmico, divulgando a notícia primeiro na imprensa leiga.) - JB, 16.abril. (O fato de eles terem revelado a novidade através da uma entrevista coletiva à imprensa e não, como é praxe, através dos canais acadêmicos, é outro fator que reforça a incredulidade.) - O Globo, 16.abril. (A comunidade científica reagiu mal ao fato de os pesquisadores terem apresentado resultados preliminares à imprensa antes de fazê-lo em publicações especializadas, o procedimento normal.) - FSP, 27.abril. Defendendo-se de terem sido precipitados, os promotores da entrevista coletiva alegaram que Fleischmann e Pons haviam enviado um artigo 180 para o Journal of Electroanalitical Chemistry118 e que isto era suficiente para liberar o assunto de maneira pública. Em artigo que escreveu dois anos após o episódio, a responsável pelo Serviço de Relações Públicas da Universidade de Utah, Pamela Fogle, utiliza este argumento, dentre outros, para justificar a convocação da entrevista coletiva. Ela não cita a Revista Nature, à qual os pesquisadores também teriam enviado um outro artigo.119 A questão é que o envio de um artigo a um periódico científico não significa, automaticamente, a aceitação e a posterior publicação, que caracterizam o atestado inequívoco reconhecido universalmente pela comunidade científica. Se para os cientistas diminui-se o valor da informação pela circunstância dela ter sido veiculada na Imprensa leiga, sob o ponto de vista de REIS os próprios jornalistas deveriam ter redobrada cautela ao tomarem conhecimento de um fato científico que ainda não obteve o nihil obstat, com a publicação em periódico especializado. Esse tópico - divulgação ou não antes da publicação científica - aparece em 1958, num texto no qual se debate a divulgação de uma notícia sobre a cura do câncer. Escreveu REIS: “Há um ponto fraco em toda essa história: é a divulgação dos resultados, em termos um tanto vagos, pela imprensa leiga antes de terem as experiências sido submetidas à crítica dos especialistas.”120 Esta mesma questão aparece alguns meses depois, em outro artigo de REIS: “Certos jornais fazem de experiências ainda mal apuradas assunto 118 - O artigo foi publicado como Nota Preliminar (Preliminary note) em J. Electroanal. Chem., 261 (1989) 301-308, sob o título “Electrochemically induced nuclear fusion of deuterium. Foi recebido em 13 de março de 1989 e revisado em 22 de março. 119 - FOGLE, Pamela. Cold Confusion. Currents, p. 24-27. April 1991. 120 - Publicidade em torno do câncer. Anhembi, janeiro, 1958, p. 369. O texto é de J. Reis mas não tem assinatura. 181 para manchete, projetando muitas vezes de maneira inoportuna resultados que não são verdadeiros...”121 Quebrar a praxe universalmente aceita pelos cientistas não é uma novidade. Pons e Fleischmann não foram pioneiros nesta situação. Em texto escrito por REIS encontramos: “Provocou celeuma nos Estados Unidos a larga divulgação, por eminente biologista molecular, de importantes descobertas antes de comunicadas aos círculos especializados. Neste caso, a atitude do cientista tinha o propósito de ganhar a atenção dos responsáveis pelo orçamento público para o apoio à ciência pura, ameaçada, segundo muitos, pelo desvio de verbas para projetos de estrito interesse tecnológico militar.”122 Estaríamos aqui diante de um caso típico em que os fins justificam os meios. Essa regra universal parece interessar unicamente aos cientistas, que dão continuidade a uma tradição incorporada ao status da própria Ciência, do que aos jornalistas. Não serão estes que deixarão de divulgar um fato relevante apenas porque o mesmo ainda não foi oficialmente comunicado sob a forma de um texto científico. A exigência de tal requisito seria no mínimo autoritária e cerceadora de direito à informação, contrariando um princípio basilar da Imprensa. Por outro lado, sujeita a própria Imprensa a cercar-se de maior rigor na apuração. Podemos, axiomaticamente, aceitar que se é verdade que a submissão, aprovação e publicação de um trabalho científico não é garantia absoluta de que ele está correto (quer em sua formulação, quer em suas conclusões), também é verdade que um cientista inescrupuloso, visando determinados fins, pode mais facilmente convencer a Imprensa com seus argumentos do que aos seus próprios pares. 121 - REIS, J. Imprensa e ciência. Anhembi, junho, 1958. p. 164. 122 - REIS, J. Ciência e jornalismo. Ciência e Cultura, fevereiro, 1972. p. 131. 182 À rigor, sobre esta questão não há objetivamente uma recomendação única quanto ao que se considera como comportamento adequado à Imprensa. Vejamos, por oportuno, duas opiniões de REIS, que julgamos contraditórias. Em 1954, na revista Ciência e Cultura, encontramos o seguinte texto: “Quando o jornalista divulga com alarde, e como se estivessem plenamente comprovados, espetaculares resultados de experiências ainda não suficientemente controladas, ou teorias sem base, que mais tarde se esboroam como castelos de cartas está sem dúvida contribuindo para confundir, na inteligência do público, a ciência com as muitas manifestações da meiaciência.”123 Treze anos depois, na mesma revista, outro artigo de REIS faz a seguinte consideração: “A divulgação científica procura familiarizar o leitor com o espírito da ciência. Um dos meios para isto é a explicação, em linguagem acessível ao grande público, dos fatos da ciência à proporção que eles são obtidos [grifo nosso]; assim o leitor aprecia a ciência como processo pelo qual se produz o conhecimento, a ciência em seu sentido dinâmico e não como disciplina estática.”124 O tópico aparece novamente num artigo de 1972. Fazendo a distinção entre Ciência e Jornalismo, REIS explica que este último, diferentemente do primeiro, busca o sensacional, ainda que perfeitamente documentado. A seu favor, o jornal pode, na edição seguinte, corrigir um eventual erro cometido na edição anterior. Nesta linha de argumentação, REIS declara: “O sensacional e o atualíssimo, salvo raríssimas exceções, já referidas [isto é, quando os fins, nobres, justificam os meios nem sempre mais adequados, como no exemplo citado do biologista molecular] jamais autorizaria o afrouxamento da ética 123 - REIS, J. Divulgação da ciência. Ciência e Cultura, junho, 1954. p. 60. 183 científica, adiantando, como verdadeiros, dados sabidamente discutíveis ou não comunicados antes às sociedades científicas.”125 Tentando estabelecer normas a serem observadas pelo Jornalismo Científico, HERNANDO igualmente aborda este tópico, ao comentar: “Os meios de comunicação se nutrem de notícias. Isto significa dizer que se nutrem de fatos extraordinários, anormais, insólitos, fora do habitual. Neste sentido, uma descoberta científica é uma notícia e nada vale pedir aos meios de comunicação que, ante estes fatos, observem uma conduta diferente da que observariam diante de uma catástrofe ou diante da morte de uma personalidade célebre.”126 É importante verificar que HERNANDO é mais explícito sobre este tópico, admitindo que o jornalista (provavelmente cumprindo a função de controle, conforme sua expressão, uma das três que atribui ao profissional de comunicação na área de Ciência e Tecnologia) tem a obrigação de antecipar-se diante de um fato auspicioso. Citando TUCHMAN, escreve HERNANDO: “A notícia coordena as atividades no interior de uma sociedade complexa ao tornar disponível a todos a informação que, de outra maneira, seria inacessível.”127 E continua o jornalista espanhol, apoiado em TUCHMAN: “Neste sentido, aplica-se o conceito de notícia como conhecimento, como construção social da realidade128, tendo em conta que o conhecimento sempre é 124 - REIS, J. Divulgação científica. Ciência e Cultura, dezembro, 1967. p. 698. 125 - REIS, José. Ciência e jornalismo. Ciência e Cultura, fevereiro, 1972. p. 137. 126 - HERNANDO, M. Calvo. El periodismo científico: misiones y objetivos. Barcelona: Editorial Mitre, 1982. p. 75. 127 - HERNANDO, M. Calvo. Ciência y periodismo. Barcelona: CEFI, s.d. p. 97-8. A ci- tação a TUCHMAN é a seguinte: Tuchman, G.: “La producción de la noticia”. Gustavo Gili. Barcelona, 1983. 128 - Sobre esta questão - a do jornalismo como forma de conhecimento - recomenda-se a leitura de O Segredo da Pirâmide: para uma teoria marxista do jornalismo, de Adelmo Genro 184 construído socialmente. Fonte de conhecimento, fonte de poder, a notícia é uma janela para o mundo.”129 Nesta linha de argumentação, HERNANDO coloca o Jornalismo em posição privilegiada ao admitir: “A notícia científica antecipa o conteúdo do documento, da conferência ou do livro, em um novo jornalismo não só de fatos, mas também de idéias e conceitos, através de sistemas de informação que comunicam as novas hipóteses ou as provas recentes, enquanto se produzem [grifo nosso].”130 Neste caso específico da fusão a frio, a inexistência do argumento favorável - o nihil obstat de uma publicação científica - que provavelmente induziria a Imprensa em direção a uma atitude mais condizente com os padrões usuais do Jornalismo Científico idealista e do agrado dos próprios cientistas, levou-a a adotar postura de cautela e a transformar esta situação (a não publicação dos resultados em periódico científico) num episódio subjacente ao episódio central. BURKETT131 coloca que é desejável saber do cientista se ele já produziu um artigo sobre o tópico que está sendo divulgado, se já enviou para publicação, se já foi aceito etc. E recomenda que os jornalistas façam referência explícita a isto nos textos. Sob este aspecto, o leitor não foi iludido no episódio da fusão a frio, pois várias referências sobre a situação da publicação em periódico científico foram encontradas nos textos analisados, como se demonstrou. 3.2.3. Contextualização do Fato Filho (Porto Alegre, Ed. Tchê, 1987) e O conhecimento do jornalismo, de Eduardo Meditsch, Florianópolis, Editora da UFSC, 1992, que exploram especificamente este tema. 129 - HERNANDO, M. Calvo. Opus cit. p. 97-98. 130 - HERNANDO, M. Calvo. Opus cit. p. 98. 131 - BURKETT, Warren. Opus cit. p. 95. 185 Uma das críticas comuns ao Jornalismo é a excessiva fragmentação das informações, desvinculando-as de um contexto mais amplo no qual devem ser alocadas para uma compreensão mais adequada. O Jornalismo Científico também é alvo deste tipo de crítica porque, ao proceder desta maneira reducionista - e, em especial quando o assunto não tem continuidade produz uma informação que seria parcialmente verdadeira. Ao deslocar a informação de um progresso significativo em determinada área científica do contexto no qual ele está ocorrendo, o texto jornalístico pode estar contribuindo para dar ao público uma idéia errônea da atividade científica. No caso específico da fusão a frio, por exemplo, não se tocou na questão da sustentação teórica que prevê a possibilidade de dois núcleos de átomos se fundirem, num processo conhecido pelos físicos como “tunelamento”. Ou seja, o que Fleischmann e Pons empreenderam, em nível experimental, tem respaldo na Física Teórica, aspecto que o noticiário ignorou. Fazer a contextualização não é tarefa trivial. Imagine-se que ao iniciar o relato de um jogo de futebol, queira o redator fazer a contextualização da partida. Bastará ele começar, por exemplo, da seguinte maneira: “Em partida válida pelo campeonato brasileiro, Santos e Palmeiras jogaram ontem à noite no Morumbi debaixo de forte chuva que prejudicou o gramado.” Pronto, está resolvido o problema. Agora façamos um esforço para tentar o mesmo relatando um acontecimento como o da fusão a frio com exíguas palavras, como no exemplo acima dado. Vejamos: “Dois cientistas anunciaram ontem, na Universidade de Utah, Estados Unidos, que conseguiram realizar em laboratório, sem usar temperatura elevada, a fusão de núcleos de átomos. O novo tipo de fusão gerou energia maior do que a necessária para pôr o processo em andamento e isto é indicativo de que, no futuro, este tipo de energia poderá 186 ter aproveitamento prático. A pesquisa agora revelada, dos cientistas Martin Fleischmann e Stanley Pons, faz parte de um esforço que vem sendo realizado desde os anos 50, para dominar a fusão nuclear controlada. Entretanto, é uma nova linha de trabalho científico, pois as pesquisas têm se concentrado na busca de mecanismos capazes de reproduzir o que ocorre no interior das estrelas, mediante a existência de temperaturas na escala dos milhões de graus centígrados e elevada pressão atmosférica. A pesquisa anunciada ontem em Utah propõe a realização da fusão nuclear na temperatura ambiente, teoricamente possível, porém nunca tentada nos moldes que Fleischmann e Pons dizem ter adotado.” Não é impossível, como se vê, mas exige um pouco mais de espaço ou tempo e, em especial, necessita de um conhecimento adicional por parte do jornalista encarregado de reportar o tema. Como ele saberá o contexto da pesquisa? Em que fonte beberá para obter esta informação? Seu(s) interlocutor(es) farão esta observação durante a entrevista? Terá ele a noção de que, em Jornalismo Científico, é recomendável fazer esta contextualização? Abrirá o editor o espaço ou tempo necessários para a contextualização, por julgá-la importante? REIS alerta para a importância da contextualização e aponta duas vertentes: uma delas já abordamos no sub-item nº 3.2.1 (Relação Ciência / Aplicação) e diz respeito ao contexto de natureza digamos utilitária; a outra vertente é a que agora nos interessa, ou seja, “a de enquadrar no panorama geral do conhecimento a informação que se transmite.”132 Esta recomendação, incluída entre as que devem fazer parte da técnica de abordagem do Jornalismo Científico, aparece em outro texto de REIS, ao afirmar: “O que interessa mostrar ao público (...) os princípios que eles 132 - REIS, José. Divulgação científica. Anhembi, julho, 1962. p. 232. 187 [os cientistas] descobrem, a maneira pela qual esses princípios se articulam com o sistema geral do conhecimento...”133 HERNANDO coloca o tema em pauta, ao afirmar que o divulgador deve “situar o fato dentro do quadro geral da civilização.”134 Este Autor propõe que na “reportagem aprofundada [em contraposição à reportagem superficial], é necessário interpretar as notícias já apresentadas, com o objetivo de dar ao leitor antecedentes completos dos fatos...”135 BURKETT considera que “sem ao menos alguma informação histórica na matéria, os textos sobre Ciência podem deixar os leitores sem uma perspectiva da importância do que está sendo relatado”.136 O Autor informa que a ausência do contexto nem sempre é culpa exclusiva dos jornalistas, pois os próprios pesquisadores não sabem, em muitas situações, esclarecer esta questão quando estão abordando exclusivamente a sua pesquisa. Num texto publicado em 1957, referenciando comentários feitos pela revista Endeavour, REIS cita a seguinte observação: “Muitos cientistas não têm, êles próprios, idéia do terreno cultivado por seus vizinhos de ciência e do sentido das pesquisas que realizam.”137 A leitura do material coletado na FSP, OESP, JB e O Globo mostra que, já a partir de 25 de março, aparecem textos que correspondem a esta característica da contextualização, recomendada como necessária em textos de Jornalismo Científico. 133 - REIS, José. Divulgação da ciência. Ciência e Cultura, junho, 1954, p. 58. 134 - HERNANDO, M. Calvo. El periodismo científico: misiones y objetivos. Barcelona: CEFI, s. d. p. 89. 135 - Opus cit. p. 89. 136 - BURKETT, Warren. Opus cit. p. 97. 137 - REIS, José. Limitações da divulgação científica. Anhembi, maio, 1957. p. 606. 188 (Desde pelo menos 1952, os cientistas tentam o controle da fusão do hidrogênio através de aparelhos que podem suportar temperaturas e pressões extremamente altas, necessárias, pelas teorias até hoje aceitas, para conseguir a fusão.) - JB, 25.março. (Tentativas começaram há 42 anos - As experiências de Stanley Pons e Martin Fleischmann são mais um elo na inesgotável cadeia de curiosidade e criatividade que possibilita o avanço científico e o progresso da humanidade. A primeira idéia de se fundir dois núcleos atômicos surgiu em 1947 sem que se pensasse em produzir energia com isso. (...) Desde então, todas as experiências de fusão nuclear a frio baseavam-se nesse princípio, a chamada fusão catalizadora por múons. Pons e Fleischmann anunciaram ter conseguido aproximar e fundir os núcleos dos átomos de uma outra forma.) - JB, 9.abril. (No mundo frio da Terra, a fusão nuclear só começou a ocorrer em 1952. Naquele ano cientistas americanos detonaram a primeira bomba de hidrogênio sobre a ilha de Engelab, no Oceano Pacífico. Foi como se um pedaço do Sol tivesse caído na Terra - a ilha desapareceu do mapa. De lá para cá, muitos outros sóis nucleares brilharam sobre ilhotas do Pacífico e em regiões remotas da Sibéria, para desespero de pacifistas e ecologistas. A fusão nuclear está seguindo, assim, o mesmo caminho da fissão, usada nas usinas nucleares convencionais, que só passou a servir para produzir energia para fins civis depois de ter sido usada nas bombas atômicas jogadas sobre Hiroshima e Nagasaki.) - JB, 16.abril. Não encontramos nos três Autores citados referências explícitas, mas consideramos pertinente enquadrar como contextualização, a indicação do tempo dispendido no trabalho cujo resultado, naquele momento, é alvo da reportagem. O fato de Fleischmann e Pons terem dedicado pelo menos cinco anos ao estudo da fusão em temperatura ambiente foi minimizado inclusive no 189 release produzido pelo Serviço de Relações Públicas da Universidade de Utah. A informação dando conta que os dois pesquisadores “improvisaram e testaram os procedimentos por um período de cinco anos e meio” está somente na página 4 do release (com total de 5 páginas). Este tipo de contextualização apareceu tardiamente nos jornais, colaborando para que o leitor ficasse com a impressão de que o trabalho de Fleischmann e Pons era apressado. Na verdade, a informação foi resgatada no momento em que as críticas aos dois pesquisadores ficavam mais contundentes. Vejamos os exemplos encontrados: (A história das pesquisas de Pons é antiga. Ele repetiu o teste mais de 50 vezes nos últimos anos. Mas reconheceu que só recentemente os resultados se mostraram mais promissores. Explicou que o avanço maior se deu quando ele e Fleischmann trocaram lâminas, folhas e cubos de paládio por um bastão, que permitiu maior condutividade.) - O Globo, 16.abril. (Para Brophy [Diretor de Pesquisas da Universidade de Utah], a dupla passou cinco anos pesquisando e “agora pessoas que gastaram quatro semanas com experimentos grosseiros tratam de criticá-los”.) - FSP, 3.maio. (James Brophy, Diretor de Pesquisa Universidade de Utah, disse “ser difícil acreditar que, depois de cinco anos de experiências, os drs. Pons e Fleischmann tenham cometido alguns dos muitos erros de que foram acusados”.) - O Globo, 4.maio. 3.2.4. Analogias como Recurso A analogia constitui recurso largamente utilizado em Jornalismo Científico com o objetivo de tornar acessível e compreensível uma determinada informação. Os próprios cientistas se valem de analogias quando fazem palestras para leigos ou escrevem artigos com fins de divulgação científica. 190 O recurso da analogia visa atender a uma recomendação relativa à necessidade de colocar o texto ao alcance do leitor. REIS recomenda: “Deve-se evitar de maneira total o jargão científico, procurando-se utilizar tanto quanto possível as palavras comuns da língua. Convém buscar na técnica do jornalismo as fórmulas que ensinam a prender a atenção e a dar ao leitor uma rápida noção do assunto que se vai desenvolver. É o “lead” dos norte-americanos.”138 Ainda sobre este tópico, encontramos também a seguinte orientação: “Artigo de divulgação não é capítulo de manual técnico, nem se destina a público homogêneo, especialmente preparado para acompanhar as sutilezas do assunto, o que obriga muitas vezes o divulgador a recorrer a analogias. [grifo nosso]. Não comporta pormenores técnicos, para corroborar determinadas afirmações...”139 Também de REIS é a seguinte opinião: “Importa, em primeiro lugar, um pouco de coragem para dispensar a precisão exigida de texto científico preparado para especialistas, e apelar para analogias [grifo nosso], generalizações e aproximações.”140 A analogia é um dos recursos literários recomendados por BURKETT141 como adequados para fazer o invisível se tornar visível para os leitores, espectadores ou ouvintes. Na análise do material sobre a fusão a frio evidenciou-se que o recurso da analogia é usado rotineiramente. Na matéria inicial da série sobre a 138 - REIS, José. Divulgação científica. Anhembi, julho, 1962. p. 234. 139 - REIS, José. Ciência e jornalismo. Ciência e Cultura, fevereiro, 1972. p. 136 140 - Ciência e Cultura, junho, 1982, p. 800-816. Reproduzido por Nair Lemos Gonçalves em apostila de curso realizado de 19 a 21 de julho de 1994 sobre a obra de J. Reis, sem indicação precisa da página. 141 - BURKETT, Warren. Opus. cit. p. 126. 191 fusão a frio publicada no jornal O Estado de S. Paulo, o lead utiliza exatamente este recurso: (Uma descoberta que equivale a reproduzir num tubo de ensaio as reações nucleares que ocorrem descontroladamente no Sol e nas bombas de hidrogênio foi anunciada ontem...) - OESP, 24.março. Vejamos outros exemplos de analogias: (Em uma comparação, para acender um fósforo era necessário queimar toda a caixa) - FSP, 25.março. (...conseguiram obter a fusão nuclear a temperatura ambiente - isto é, reproduziram na Terra as reações que geram a energia do Sol, sem precisarem dos milhões de graus centígrados daquela estrela.) - JB, 9.abril. (A energia de fusão é a mesma que a produzida pelo Sol e as bombas de hidrogênio...) - OESP, 11.abril. (No deutério contido em um copo de água existe o mesmo potencial de energia de um tanque de gasolina de automóvel.) - JB, 11.abril. 3.2.5. Descrições de Métodos e Processos Além dos quatro argumentos referenciados, foi detectado no material publicado mais um que consideramos relevante, não explicitamente encontrado como parte das recomendações feitas por REIS, HERNANDO ou BURKETT. Trata-se da descrição de métodos e processos relacionados com a experiência realizada por Fleischmann e Pons. A descrição constitui uma forma recorrente nos textos, com a qual procura-se passar ao leitor o modus operandi da experiência, que, no caso da fusão a frio, sempre foi considerada como simples, do ponto-de-vista técnico, ajudando a construir a idéia (falsa) de que a eventual geração de energia aproveitável economicamente ocorreria em iguais circunstâncias. 192 Esse tópico mereceu um comentário solitário de um físico brasileiro, Rogério Cézar de Cerqueira Leite, em 5 de maio de 1989. Diz ele: “(...) têm os interessados omitido algumas informações e reflexões relevantes. Dos dados da Universidade de Utah é possível calcular algumas conseqüências. Por exemplo, para construir uma usina com potência igual à de Itaipu e com as características de performance e a organização do espaço das experiências de Utah, seria necessária, para cubas eletrolíticas justapostas horizontalmente, a mesma área que o Estado do Maranhão. (...) Toda a reserva de paládio do mundo seria insuficiente para uma usina deste porte. E a quantidade de água pesada necessária para essa usina seria da ordem de 100 bilhões de toneladas. E para produzir essa quantidade de água pesada em um ano seriam necessárias 40 usinas com as dimensões da primeira. Ou seja, todo o Brasil seria coberto por cubas eletrolíticas. É claro que em outras ocasiões o homem já encontrou inesperadas soluções para problemas semelhantes de compactação e que materiais abundantes no Brasil como o titânio, o nióbio e outros apresentam propriedades semelhantes àquelas do paládio. Essa forma de fusão a frio não deve pois ser considerada senão como uma promissora hipótese.”142 Eis exemplos colhidos no noticiário, de descrição de métodos e processos utilizados por Fleischmann e Pons: (Em uma proveta blindada que contém deutério, variante mais pesada do hidrogênio, submergem um eletrodo de platina e outro de paládio. Ao fazer circular uma corrente entre os metais, os átomos de deutério se concentram no eletrodo de paládio. A intensidade do campo elétrico é suficiente para aproximar os átomos, até que se produza a reação de fusão entre os átomos de deutério) - O Globo, 24.março. 142 - CERQUEIRA LEITE, Rogério C. Conseqüências do cacarejo científico. In: Folha de S. Paulo, 5.maio.1989, p. G-3 (Caderno Ciência). 193 (Na fusão, núcleos de átomos leves unem-se e liberam energia. O problema com os métodos atuais de fusão é gastar mais energia do que produzem. Servem para pesquisa acadêmica, mas não têm viabilidade econômica. A experiência de Utah usa a passagem de corrente elétrica pela água pesada (variedade de água que tem deutério e oxigênio, em vez de hidrogênio e oxigênio como a água comum). No pólo negativo, segundo a tese de Fleischmann e Pons, átomos de deutério se comprimem até fundir.) - FSP, 11.abril. (O átomo é formado por partículas menores, os prótons, nêutrons e elétrons. (...) Nas reações nucleares de fissão e fusão, porém, o núcleo atômico se altera e parte de sua massa é convertida em energia. (...) Na fissão nuclear o núcleo de átomos de urânio é dividido pelo impacto de nêutrons e uma parte da massa se converte em energia. (...) Na fusão nuclear dois núcleos de átomos leves de deutério se unem produzindo um átomo mais pesado de Hélio 3.) - JB, 11.abril. (Trata-se de uma experiência simples. Sobre a mesa de um laboratório, numa vasilha com água pesada - um tipo de água em que o hidrogênio é substituído por seu isótopo mais pesado, o deutério - foi esquentada por um sistema elétrico. O resultado foi a produção de quatro vezes mais energia (calor) do que a usada para aquecer a água.) - JB, 14.abril. (A água pesada é colocada num recipiente, com uma porção de lítio e, nela, é imerso um terminal elétrico de paládio. A corrente elétrica produzida pelas fontes instaladas provocará a separação dos átomos de deutério da água pesada e os atrairá para o eletrodo do paládio. Quando essa concentração for elevada, haverá a fusão dos átomos - uma combinação de hélio com nêutrons ou de trítio com prótons - liberando grande quantidade de energia em forma de calor. Essa energia aquecerá a água num recipiente maior, em torno da experiência. Quando se consumar a fusão atômica a frio, os sensores detectarão seus sinais: um calorímetro registrará a temperatura 194 da água, um detector de nêutrons medirá sua intensidade e outro registrará as radiações gama provocadas pela presença de nêutrons na água do recipiente da experiência.) - O Globo, 15.abril. 195 3.3 - Conclusões As Conclusões encontram-se desmembradas em três seções. Na primeira (3.3.1), de maneira objetiva, buscamos dar respostas para as duas hipóteses formuladas. Na segunda seção (3.3.2), desenvolvemos comentários para além das respostas às hipóteses, mas de certo modo a elas vinculados. A terceira (3.3.3) seção é inteiramente livre e contêm reflexões gerais sobre tópicos que permearam o trabalho de pesquisa. 3.3.1 - Respostas para as Hipóteses (H. 1) - Os textos publicados no Brasil sobre o tema “fusão a frio” nos quatro jornais considerados representativos da grande imprensa correspondem às características modelares indicadas na literatura sobre o Jornalismo Científico. Nossa pesquisa na literatura selecionada levou-nos a identificar quatro recomendações para a prática do Jornalismo Científico, às quais foram correspondidas nos textos publicados no período de 24 de março a 30 de junho de 1989, nos jornais Folha de S. Paulo, O Estado de S. Paulo, Jornal do Brasil e O Globo, todos enfocando um mesmo tema científico - a fusão a frio - e seus diversos desdobramentos. Para além destas recomendações, a saber - Relação da Ciência com a Aplicação; Observância ao Ritual Científico; Contextualização do Fato e Uso de Analogias - identificamos também a Descrição de Métodos e Processos, que somada àquelas quatro anteriores, indicam o conjunto de argumentos com os quais a Imprensa escrita colocou a Ciência perante o público leigo, a partir de um fato concreto e narrado em sucessivas edições. A utilização destes argumentos mencionados, entretanto, não dão a certeza de que estas sejam regras universalmente aceitas pelos jornalistas 196 especializados em Ciência e Tecnologia, nem que sejam intencionalmente aplicadas, aspectos que constituem hipóteses não contempladas em nosso trabalho, e que exigiria um estudo pormenorizado, cujo ponto de partida, sem dúvida, seria a orientação de pauta. Pelo menos um desdobramento do episódio nunca foi abordado pela Imprensa, o que - caso tivesse ocorrido - corroboraria a idéia de que o Jornalismo Científico mantêm uma visão atenta sobre o ciclo completo da atividade científica. Referimo-nos ao fato de que não encontramos, na garimpagem sobre o tema empreendida para além de 30 de junho de 1989, qualquer nota sobre o envio de relatos das experiências brasileiras à publicações científicas, no Brasil ou no Exterior. Isto evidencia, pelo menos, o seguinte: os editores de Ciência e Tecnologia não acompanham sistematicamente o ciclo completo de um episódio científico; provavelmente ocorreria registro desta natureza se - havendo a publicação de relatos em periódicos - tivesse a Imprensa sido notificada. Em linhas gerais, podemos afirmar que nossa hipótese central se mostrou correspondida nas matérias coletadas e analisadas, na medida em que as recomendações explicitadas pelos três autores (Reis, Hernando e Burkett) foram amplamente encontradas. Evidentemente, um fator decisivo para que houvesse a possibilidade de abranger tantos aspectos foi a publicação continuada de noticiário sobre o tema “fusão a frio”. (H. 2) - Os textos jornalísticos são capazes de propiciar, em sentido geral, uma visão abrangente sobre o processo de desenvolvimento do trabalho científico. Como se evidencia nesta dissertação, a atividade científica não pode ser vista isolada do contexto social. Isto implica em dizer que paralelamente a um fato exponencial em si - no caso em tela “uma descoberta” efetuada 197 por dois físicos - muitos acontecimentos se desenrolam, na maioria das vezes de maneira silenciosa, sem que a sociedade os perceba claramente. O noticiário sobre a fusão a frio, nos quatro jornais estudados, mostrou diversas imbricações de ordem econômica, política e social. Eis alguns exemplos de títulos de matéria que confirmam esta abrangência: (Pesquisadores usaram verba própria para pagar custos da experiência) - FSP, 25.março. (Fusão nuclear em proveta divide cientistas) - O Globo, 25.março. (USP quer água pesada argentina para repetir experimento de fusão) FSP, 1.abril. (Água pesada já foi obtida até por contrabando) - FSP, 7.abril. (Falta verba para tentativa carioca) - OESP, 7.abril. (MIT solicita patente de teoria da fusão a frio) - JB, 14.abril. (Westinghouse faz contrato) - JB, 14.abril. (Fusão a frio faz preço do paládio disparar) - O Globo, 14.abril. (Fusão a frio já atrai grandes empresas) - O Globo, 17.abril. (Produção de água pesada no Brasil surpreende EUA) - O Globo, 18.abril. (Cientistas brigam pela autoria da descoberta) - FSP, 19.abril. (Física de plasma está ameaçada) - OESP, 20.abril. (Revelado segredo da água pesada brasileira) - O Globo, 23.abril. (Pioneiros da fusão fria pedem US$25 milhões ao Congresso) - FSP, 27.abril. (Utah anuncia uso comercial da fusão) - OESP, 27.abril. De outro lado, é necessário reconhecer que - de um ponto-de-vista mais restrito - falta ao noticiário um certo didatismo capaz de colocar o lei- 198 tor em contato com os aspectos teóricos que envolvem todo o trabalho experimental. Em outras palavras: os desdobramentos deste foram incorporados ao noticiário, mas é praticamente nula a informação sobre o arcabouço teórico que sustenta a experimentação, sempre vista por um ângulo tecnicista, enfatizador dos mecanismos e materiais necessários a produzir a fusão de núcleos atômicos. 3.3.2 - Comentários Pertinentes O episódio científico “fusão a frio” foi fortemente alavancado no meio científico graças à participação ativa e atípica da Imprensa, desde o momento inicial, com a entrevista coletiva em Utah. Diferentemente do que ocorre em circunstâncias normais, os cientistas ficaram sabendo da novidade por intermédio da imprensa leiga e não pelos periódicos científicos, os veículos considerados como adequados. A permanência do tema em pauta permitiu ao leitor ter acesso à uma gama de informações que não são comuns no Jornalismo Científico. A Ciência foi despida do seu manto de integridade e perfeição e mostrada como um ramo de atividade profissional no qual não faltam os ingredientes da cobiça, da intriga, da incredulidade, da incerteza, da pressão. Nesse sentido, podemos considerar que o noticiário sobre a fusão a frio colaborou para desmitificar a Ciência como terreno das certezas absolutas. Os textos analisados evidenciam que o Jornalismo Científico também incorpora uma prática que toma conta da Imprensa em geral, no Brasil: não costuma ouvir versões diferentes sobre um mesmo fato. É interessante notar que o material proveniente do Exterior desde o primeiro instante continha opiniões discordantes da versão apresentada em Utah pelos pesquisadores Martin Fleischmann e Stanley Pons. 199 No caso do material produzido no Brasil, enfocando as experiências que seriam realizadas, o aspecto da discordância restringe-se praticamente a uma breve referência, a saber: Em 20 de abril, o físico Paulo Sakanaka, chefe do Laboratório de Plasma da Universidade Estadual de Campinas, declarou à Folha de S. Paulo “que a Unicamp não tem, no momento, condições de realizar a fusão nuclear fria. ‘O Brasil não dispõe de equipamentos suficientes para analisar adequadamente os dados de uma fusão nuclear fria e os grupos que estão tentando realizá-la só produzem sensacionalismo’, disse.”143 Não deixa de ser sintomático verificar que José Reis, Calvo Hernando e Warren Burkett omitem-se com relação a inclusão de opiniões gerais como regra geral aconselhável também na prática do Jornalismo Científico. Em nossa opinião, isto reforça a idéia de que o Jornalismo Científico tende a ser, perante a sociedade, um mecanismo de afirmação unívoca, que encampa a opinião autoral, assentada no pressuposto de que se é uma afirmação científica, nada mais há a fazer senão aceitá-la sem restrições. Mesmo quando os jornais brasileiros começaram a diminuir o espaço para o tema fusão a frio, parecem tê-lo feito exclusivamente por uma motivação operacional: do exterior minguavam os informes sobre o tema, conseqüência aliás natural do esgotamento, naquele momento, de uma história que percorreu um ciclo bastante amplo. Os grupos de pesquisa brasileiros sumiram repentinamente do noticiário, com a mesma rapidez com que entraram. As recomendações produzidas por José Reis, Calvo Hernando e Warren Burkett evidenciam uma excessiva preocupação com as Ciências Exatas, em especial a Física, a Química, a Biologia. Recorrem, com certa freqüência, a exemplificações aplicadas exclusivamente ao trabalho de expe143 - In: Folha de S. Paulo. No Rio, cientistas tentam avançar na fusão nuclear fria. 20.abri.1989, p. C-3 (Cidades). 200 rimentação em laboratório. As Ciências Sociais têm outro estilo de verificação e outros métodos de abordar e propor soluções de problemas, mas devem, igualmente, fazer pauta do Jornalismo Científico. O noticiário da fusão a frio evidencia que a Imprensa comprou desde o primeiro momento as argumentações oferecidas pela Universidade de Utah em release distribuído na entrevista coletiva. Na verdade, ao percorrer o caminho da notícia desde a fonte primária de emissão, verificamos que as argumentações contidas no release, foram imediatamente aceitas pelos 20 repórteres que compareceram à coletiva, alguns deles certamente de agências noticiosas. Sob este aspecto, chama a atenção a imediata incorporação - inclusive nos títulos - do conceito de “custos baixíssimos” como forte argumentação de vantagem comparativa a outros processos de produzir energia ou de realizar experiências pelo processo de fusão com temperatura elevada. Tal argumento, restrito obviamente ao custo da experiência de laboratório, na qual Fleischmann e Pons teriam investido do próprio bolso algo em torno de 100 mil dólares, foi transplantado para o custo de produção, em escala comercial, o que é absolutamente incorreto. No presente caso estudado, fica evidenciada a ação passiva por parte da Imprensa. O processo de divulgação foi deliberadamente iniciado pela vontade da Universidade de Utah. Mesmo o material publicado no dia da entrevista coletiva, em 24 de março de 1989, pelos jornais Wall Street Journal (de Washington), e Financial Times (de Londres), não foi um “furo” desses jornais, pois a informação lhes foi passada propositadamente e não ocorreu mediante investigação ou suspeita dos respectivos editores ou repórteres. Esta passividade é indicativa de que mesmo os editores experientes de Ciência e Tecnologia (no Brasil ou no Exterior) não parecem manter-se suficientemente antenados com linhas de pesquisa potencialmente promis- 201 soras. Pode-se contra-argumentar, a favor dos jornalistas, com o fato de que Fleischmann e Pons tinham conseguido, nos cinco anos precedentes, manter sigilo sobre as experiências. A passividade - com a aceitação plena do release de Utah - evidenciase com a ausência de informações que somente estariam presentes caso os jornalistas tivessem feito perguntas que, aparentemente, não fizeram. 3.3.3 - Livre Reflexão Desde 1990, quando iniciamos os procedimentos que culminariam com esta dissertação, temos escutado de pessoas com formação universitária certas colocações que poderíamos sintetizar como representativas de um senso comum dominante quando se trata de fazer um juízo da Imprensa: a fusão a frio foi uma invenção de dois pesquisadores inescrupulosos à qual a Imprensa deu ouvidos e com isto, diminuiu ainda mais suas credenciais para divulgar a Ciência e a Tecnologia. O que este senso comum escamoteia e, paradoxalmente, acaba por revelar? O público mais esclarecido sabe que a Ciência é um terreno minado de incertezas - é a ignorância sobre determinado tópico que impulsiona a mente criativa dos cientistas - mas, simultaneamente, ainda é muito arraigada a idéia de que estas incertezas não devem ultrapassar a fortaleza em direção à planície, lugar dos leigos. Essa transposição deveria ser feita somente nos momentos oportunos, quando as incertezas (de conhecimento interno, dos cientistas) estivessem superadas e restasse somente mostrar que, mais uma vez, prevaleceu o triunfo da razão. Nesse sentido, a Imprensa deveria ser um mero repositório de informações seguras, objetivas, incontestes. Obviamente, o material sobre a fusão a frio contrapôs-se a este senso comum, ao trazer a tona diversos episódios que, em circunstâncias normais, 202 tenderiam a ficar imersos e longe do conhecimento público. Do ponto-devista do direito à informação, é evidente que o leitor foi beneficiário da decisão da Imprensa em dar continuidade aos inúmeros e controversos aspectos que permearam o episódio da fusão a frio. Os textos coletados no período de 24 de março a 30 de junho de 1989 nos jornais Folha de S. Paulo, O Estado de S. Paulo, Jornal do Brasil e O Globo, contêm alguns equívocos típicos do despreparo dos jornalistas frente à complexidade do tema (que, diga-se a favor dos jornalistas, é juízo também aplicável à maioria dos cientistas - mesmo os químicos e físicos). Vale lembrar que os repórteres que cobriram o episódio seguiram a clássica receita de ouvir fontes consideradas credenciadas, no âmbito acadêmico, dispondo de escassos recursos referenciais capazes de lhes propiciar uma mais adequada contestação a certas afirmações feitas pelas fontes. Mas, em nossa opinião, os textos analisados mostram que o Jornalismo Científico pode ir muito além de seus contornos habituais, na medida em que se manifestou por meio de gêneros pouco usuais nesta área - em especial na prática cotidiana da Imprensa brasileira - ao recorrer, para além da informação factual, ao texto de opinião e interpretação. 203 Bibliografia Geral Livros A crítica da ciência. Sociologia e ideologia da ciência. Organização e Introdução Jorge Dias de Deus. Rio de Janeiro: Zahar, 1974, 240p. ASIMOV, Isaac. O universo da ciência. Lisboa: Editorial Presença, 1987. 318 p. Vol. 2. BEN-DAVID, Joseph. O papel do cientista na sociedade: um estudo comparativo. Trad. Dante Moreira Leite. São Paulo: Ed. da Universidade de São Paulo, 1974. 281 p. BERNAL, J. D. Ciência na história. Trad. Antônio Neves Pedro. Lisboa: Ed. Livros Horizonte, s.d. (Coleção Movimento, 11, vol. VII). BOORSTIN, Daniel J. Os descobridores: de como o homem procurou conhecer-se a si mesmo e ao mundo. Trad. 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Release da Universidade de Utah. (Não disponível na versão eletrônica) -----------FIM------------ 211