livro pôsteres e relatos de experiência

Transcrição

livro pôsteres e relatos de experiência
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Dados Internacionais de Catalogação-na-Publicação (CIP) –
Biblioteca do ILC/ UFPA-Belém-PA
________________________________________________________________
Congresso Internacional de Estudos Linguísticos e Literários (4.: 2013: Belém, PA)
[Anais do] IV Congresso Internacional de Estudos Linguísticos e Literários
[recurso eletrônico] / Organização: Germana Sales, [et al.]. ---- Belém: Programa de
Pós-Graduação em Letras da UFPA, 2013.
658p. : il.
Modo de acesso: <http://www.ufpa.br/ciella/>
Congresso realizado na Cidade Universitária Professor José da Silveira Netto da
Universidade Federal do Pará, no período de 24 a 27 de abril de 2013.
ISBN: 978-85-67747-01-9
1. Lingüística – Discursos, ensaios e conferências. 2. Literatura – Discursos, ensaios
e conferências. I. Sales, Germana, org. II. Título.
CDD -22. ed. 410
___________________________________________________________________
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COMISSÃO ORGANIZADORA
Dra. Marília de Nazaré de Oliveira Ferreira
Presidente da comissão organizadora
Docente do Programa de Pós-Graduação em Letras
Coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Letras
Dra. Germana Maria Araújo Sales
Docente do Programa de Pós-Graduação em Letras
Vice-Coordenadora doPrograma de Pós-Graduação em Letras
Ma. Cinthia de Lima Neves
Discente do Programa de Pós-Graduação em Letras (Estudos Linguísticos)
Ma.Alinnie Oliveira Andrade Santos (UFPA)
Discente do Programa de Pós-Graduação em Letras
Msc. Edvaldo Santos Pereira (UFPA)
Ma. Eliane Costa (UFPA) Discente do Programa de Pós-Graduação em Letras (Estudos
Linguísticos)
Ma.Izenete Nobre (UFPA/UNICAMP)
Jaqueline de Andrade Reis (UFPA)
Juliana Yeska (UFPA)
Discente da Faculdade de Letras
Márcia Pinheiro (UFPA)
Discente da Faculdade de Letras
Ma. Marília Freitas (UFPA)
Discente do Programa de Pós-Graduação em Letras (Estudos Linguísticos)
Sara Ferreira (UFPA)
Discente da Faculdade de Letras
Ma.Silvia Benchimol (UFPA/Campus de Bragança)
Ma. Simone Negrão
Discente do Programa de Pós-Graduação em Letras (Estudos Linguísticos)
Thais Fiel (UFPA)
Discente da Faculdade de Letras
Thiago Gonçalves (UFPA/UERJ)
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Veridiana Valente Pinheiro (UFPA)
Discente do Programa de Pós-Graduação em Letras (Estudos Literários)
Wanessa Regina Paiva da Silva (UFPA/UERJ)
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COMISSÃO CIENTÍFICA
Prof. Dr. Abdelhak Razky (UFPA)
Prof. Dr. Álvaro Santos Simões Junior (UNESP)
Profa. Dra. Ana Cristina Marinho (UFPB)
Profa. Dra. Andréia Guerini (UFSC)
Profa. Dra. Antônia Alves Pereira (UFPA/Altamira)
Profa. Dra. Aurea Suely Zavam (UFC)
Prof. Dr. Benjamin Abdala Júnior (USP)
Profa. Dra. Carmem Lúcia Figueiredo (UERJ)
Prof. Dr. Daniel Serravalle de Sá (UFPA/Marabá)
Prof. Dr. Dante Eustachio Lucchesi Ramacciotti (UFBA)
Prof. Dr. Eduardo de Faria Coutinho (UFRJ)
Profa. Dra. Fernanda Maria Abreu Coutinho (UFC)
Profa. Dra. Franceli Aparecida da Silva Mello (UFMT)
Profa. Dra. Gláucia Vieira Cândido (UFG)
Prof. Dr. Hélio Seixas Guimarães (USP)
Prof. Dr. Humberto Hermenegildo de Araújo (UFRN)
Prof. Dr. José Carlos Chaves da Cunha (UFPA)
Prof. Dr. José Horta Nunes (UNICAMP)
Prof. Dr. José Sueli Magalhães (UFU)
Profa. Dra. Josebel Akel Fares (UEPA)
Profa. Dra. Juliana Maia de Queiroz (UNESP)
Prof. Dr. Lucrécio Araújo de Sá Júnior (UFRN)
Prof. Dr. Marco Antonio Martins (UFRN)
Profa. Dra. Maria da Glória Corrêa Di Fanti ( PUC-RS)
Profa. Dra. Maria de Fátima do Nascimento (UFPA)
Profa. Dra. Maria Elvira Brito Campos (UFPI)
Profa. Dra. Mariângela Rios de Oliveira (UFF)
Profa. Dra. Marly Amarilha (UFRN)
Profa. Dra. Milena Ribeiro Martins (UFPR)
Profa. Dra. Odalice de Castro Silva ( UFC)
Prof. Dr. Otávio Rios Portela (UEA)
Prof. Dr. Rauer Rodrigues Ribeiro (UFMT)
Prof. Dr. Ricardo Pinto de Souza (UFRJ)
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Profa. Dra. Rosana Cristina Zanelatto Santos (UFMS)
Profa. Dra. Rosângela Hammes Rodrigues (UFSC)
Profa. Dra. Silvia Lucia Bijongal Braggio (UFG)
Profa. Dra. Simone Cristina Mendonça (UFPA/ Marabá)
Profa. Dra. Socorro Pacífico Barbosa (UFPB)
Profa. Dra. Soélis Teixeira do Prado Mendes (UFPA/ Marabá)
Profa. Dra. Solange Mittmann (UFRGS)
Profa. Dra. Stella Virginia telles de Araújo Pereira Lima (UFPE)
Profa. Dra. Sulemi Fabiano Campos (UFRN)
Profa. Dra.Tânia Regina Oliveira Ramos (UFSC)
Profa. Dra. Teresa Cristina Wachowicz (UFPR)
Profa. Dra. Walkyria Alydia Grahl Passos Magno e Silva (UFPA)
Profa. Dra. Vanderci de Andrade Aguilera (UEL)
Profa. Dra. Regina Celi Mendes Pereira da Silva (UFPB/CNPq
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UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARÁ
Prof. Dr. Carlos Edilson de Almeida Maneschy
Reitor
Prof. Dr. Horácio Schneider
Vice-Reitor
Profa. Dra. Marlene Rodrigues Medeiros Freitas
Pró-Reitoria de Ensino e Graduação
Prof. Dr.Emmanuel ZaguryTourinho
Pró-Reitoria de Pesquisa e Pós-Graduação
Prof. Dr. Fernando Arthur de FreitasNeves
Pró-Reitoria de Extensão
Prof. MSc. Edson Ortiz de Matos
Pró-Reitoria de Administração
João Cauby de Almeida Júnior
Pró-Reitoria de Desenvolvimento e Gestão de Pessoal
Prof. Dr. Erick NeloPedreira
Pró-Reitoria de Planejamento
INSTITUTO DE LETRAS E COMUNICAÇÃO
Dr. OtacílioAmaralFilhoDiretorGeral
Dra. Fátima Pessoa DiretoraAdjunta
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS
Dra. Germana Maria Araújo Sales
Coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Letras
Dra.Marília de N. de Oliveira Ferreira
Vice-Coordenadora doPrograma de Pós-Graduação em Letras
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Universidade Federal doPará
Instituto de Letras e Comunicação
Programa de Pós-Graduação em Letras
CidadeUniversitária Professor José da SilveiraNeto
Rua Augusto Corrêa, 01, Guamá.
CEP 66075-900, Belém-PA
Fone-Fax: (91) 3201-7499
E-mail: [email protected] Site: www.ufpa.br/mletras
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APRESENTAÇÃO IV CIELLA
É com imensa satisfação que publicamos os textos dos participantes do Congresso
Internacional de Estudos Linguísticos e Literários na Amazônia (CIELLA) em sua quarta
edição. A primeira versão do evento ocorreu em 2006, no então Curso de Mestrado em Letras (CML).
O evento consolidou-se, em edição bianual, e hoje, iniciado pelo Programa de Pós-Graduação em
Letras da Universidade Federal do Pará, tem como objetivo principal reunir estudiosos das áreas de
Linguística e Literatura e de áreas afins para discutir e partilhar os resultados de suas pesquisas e dos
trabalhos desenvolvidos, no âmbito de seus programas de pós-graduação e faculdades de letras,
envolvendo estudantes de graduação e de pós-graduação. O caráter transversal e interdisciplinar do
CIELLA está circunscrito à apresentação de trabalhos e debates nas áreas de Linguagem, Línguas,
Literaturas, Culturas e Educação sob vários aspectos. Em 2013, o IV Congresso Internacional de
Estudos Linguísticos e Literários na Amazônia (IV CIELLA), ocorreu no período de 23 a 26 de
abril de 2013, sob o tema FRONTEIRAS LINGUÍSTICAS E LITERÁRIAS NA AMÉRICA
LATINA. Nessa edição, o evento coroa a criação recente do nosso Curso de Doutorado e superamos
todas as expectativas, quando a comissão organizadora do evento recebeu um público aproximado de
1200 pessoas, entre estudantes de graduação, de pós-graduação, professores e pesquisadores de
instituições locais, nacionais e internacionais, professores da Educação Básica (Ensino Médio e Ensino
Fundamental) e profissionais de áreas afins.
O Congresso contou com renomados convidados internacionais, considerados referência em
suas especialidades, e convidados nacionais e locais que contribuíram para que o evento fosse bem
sucedido. O sucesso do evento deveu-se, também, à programação científica que reuniu cerca de
oitocentos trabalhos da área de Letras e Linguística, em várias modalidades – Conferências, Mesas
Redondas, Minicursos, Simpósios, Sessões de Comunicação, Pôsteres, e Relatos de experiência.
A presente publicação, que reúne os trabalhos oriundos do IV CIELLA, conta com 268 textos de
docentes e de alunos de graduação e de pós-graduação brasileiros. São 109 textos de Estudos Linguísticos e 159
textos de Estudos Literários, resultantes de pesquisas em desenvolvimento na área de L&L.
A aquiescência do Congresso pela comunidade acadêmica levou-nos a organizar um evento de grande
envergadura para as áreas de Letras e de Linguística e, nesta quarta edição consolidamos a internacionalização do
evento, que contou com nomes de grande vulto, como Inocência Matta, Inocência Mata (Portugal); Rosário
Alvarez (Espanha); Rebecca Martinez (Estados Unidos); Enrique Hamel (México); Christine Sims (Estados
Unidos); Pilar Valenzuela (Estados Unidos); Rubem Chababo (Argentina); Alicia Salomone (Chile) e Host
Nitchack (Chile).
Para a concretização do evento, agradecemos o fomento recebido da CAPES e CNPq, além do apoio
irrestrito da Pró-Reitoria de Pesquisa e Pós-Graduação, na figura do Pró-Reitor, Prof. Dr. Emmanuel Zagury
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Tourinho; do Instituto de Letras e Comunicação, na pessoa do Diretor Otacílio Amaral Filho, a quem devemos
infindos agradecimentos.
A concretização do evendo deveu-se, certamente, ao apoio financeiro, mas ressaltamos a efetiva
participação da secretaria, formada por alunos de graduação e de pós-graduação, que cuidaram com esmero para
a ocorrência do IV CIELLA. Nosso agradecimento especial aos alunos que conduziram com eficiência a
secretaria: Eliane Costa, Márcia Pinheiro, Alinnie Santos, Cinthia Neves, Thais Fiel, Sara Vasconcelos, Wanessa
Paiva, Veridiana Valente, Edvaldo Pereira e Jaqueline Reis.
Também aos professores do PPGL, alunos e monitores do evento nosso muito obrigada!
O CIELLA foi um momento de congregar forças, mas também se configurou como espaço de
apresentação não só da quantidade de trabalhos na área de Letras & Linguística, mas da qualidade desses
trabalhos, que aqui estão reunidos.
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SUMÁRIO
TRANSDUÇÃO: A PROPAGAÇÃO GRADUAL E AFETIVA - IMAGEM NA
CANÇÃO DO EXÍLIO
Edi Rodrigues
A INCURSÃO DE TEMAS MEDIEVAIS EUROPEUS EM NARRATIVAS ORAIS
DA AMAZÔNIA PARAENSE
Priscila Oliveira Ramos
POEMÁTICA: UMA ABERTURA DE HORIZONTES
Alana Oliveira de Sousa
Lucélio Silva de Barros
Nayana de Sousa Silva
Edi Rodrigues
CONHECER A SI MESMO ATRAVÉS DA MEMÓRIA: O RELATO DE UMA
EXPERIÊNCIA
Amanda Gazola Tartuci
Dylia Lysardo-Dias
A PSEUDO -RELIGIOSIDADE NA OBRA MEMORIAL DO CONVENTO
Ana Cláudia Medeiros da Silva
Francinara Silva Ferreira
Zair Henrique Santos
A (UMA) LINGUAGEM ABJETA E (OU) GROTESCA (?)
Anna Mônica da Silva Aleixo
Tânia Sarmento-Pantoja
A DESCOBERTA DO FRIO: UMA ESCRITA AFRO-BRASILEIRA
Auliam da SILVA
Sérgio Afonso Gonçalves Alves
CORRELAÇÕES EXISTENCIAIS E SOCIAIS NAS OBRAS DE FARIAS DE
CARVALHO: UM DIÁLOGO ENTRE A INEVITABILIDADE DA VIDA E O
ENGAJAMENTO POLÍTICO
Carolina Alves Ferreira de Abreu
Rita do Perpétuo Socorro Barbosa de Oliveira
BRUNO DE MENEZES: NOVOS FORMATOS NO SÉCULO XXI
Carolina Menezes
Lilia Silvestre Chaves
FANZINES EM MANAUS E LITERATURA MARGINAL NO BRASIL: um estudo
comparado entre fenômenos marginais
PINAGE, C.A.C
DE OLIVEIRA, R.P.S
COISAS ESPANTOSAS NO DIÁRIO DO GRAM-PARÁ
Cláudia Gizelle Teles Paiva
CONTOS DE MACHADO DE ASSIS N‘A FOLHA DO NORTE
Daniele Santos da Silva
Germana Maria Araújo Sales
ANÁLISE SEMÂNTICO-DISCURSIVA DE POEMAS: A LITERATURA COMO
FENÔMENO DE CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE CULTURAL AMAPAENSE
Danielle Marques Gomes
Francesco Marino
16
23
32
39
46
54
64
74
80
90
98
107
114
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―NEGRINHA‖ NO ABANDONO DA FÉ: O ANTAGONISMO E A
RELIGIOSIDADE CAMUFLADA DE ―DONA INÁCIA‖ NO CONTO
NEGRINHA DE MONTEIRO LOBATO
Fernando Batista Chicuta da Rocha
Herbert Nunes de Almeida Santos
A REPRESENTAÇÃO FEMININA NA OBRA AUTO DA BARCA DO INFERNO,
DE GIL VICENTE
Isabela Santos Braga
Nikolas Paolo Alves Dias
Silvia Sueli Santos da Silva
AMOR POR ANEXINS: ANÁLISE PAREMIOLÓGICA
NO TEXTO DRAMÁTICO
Juliana Costa da Silva
Mary Cristina Rodrigues Diniz
Lucimar Ribeiro Soares
O LEITOR E CRÍTICO LITERÁRIO DALCÍDIO JURANDIR NA IMPRENSA:
1930/1960
Juliana Gomes dos Santos
Marlí Tereza Furtado
PROSA DE FICÇÃO NO JORNAL DO PARÁ
Juliana Yeska Torres Mendes
Germana Maria Araújo Sales
UMA INVESTIGAÇÃO SOBRE OS DESTINADORES DE PREFÁCIOS EM
EXEMPLARES DA PROSA DE FICÇÃO PORTUGUESA DO SÉCULO XIX
Lorena Mena Barreto Rodrigues
Valéria Augusti
A SAGA AMAZÔNICA DA BORRACHA EM TRÊS CASAS E UM RIO, DE
DALCÍDIO JURANDIR E EM A SELVA, DE FERREIRA DE CASTRO
Luciana Moraes dos Santos
Marlí Furtado
O MÉDICO DOS POBRES: CIRCULAÇÃO DE ENREDO FRANCÊSES EM O
LIBERAL DO PARÁ
Márcia do Socorro da Silva Pinheiro
Germana Maria Araújo Sales
METÁFORA NA POESIA: UM ESTUDO DAS CONCEPTUALIZAÇÕES
METAFÓRICAS DA VIDA NA POESIA DE PATATIVA DO ASSARÉ
Marcos Helam Alves da Silva
PREFÁCIOS AUTORAIS, ALÓGRAFOS E ACTORAIS DE ROMANCES
FRANCESES DO SÉCULO XIX
Maria Gabriella Flores Severo
Valéria Augusti
SINFONIA PASTORAL –MEHR AUSDRUCK DER EMPFINDUNG ALS
MALEREI:ANTES EXPRESSÃO DO SENTIMENTO QUE PINTURA
Olivânia Maria Lima Rocha
Alcione Corrêa Alves
AS TENSÕES DA CARNE NO PINHÉM: UMA LEITURA DO EROTISMO EM ―A
ESTÓRIA DE LÉLIO E LINA‖
Pablo Rossini Pinho Ramos
Sílvio Augusto de Oliveira Holanda
SANTO E HERÓI: ENTRE AS FLECHAS E SACRIFÍCIOS
Pâmela P. Souza Neri
Alessandra F. Conde as Silva
A MUHURAIDA: UM POEMA DESCONHECIDO DA LITERATURA
133
139
147
156
164
172
182
189
197
207
216
224
233
241
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BRASILEIRA
Sales Maciel de Góis
Thacísio Santiago Cruz
AUTORES E OBRAS PORTUGUESAS NO JORNAL A PROVÍNCIA DO PARÁ
SARA VASCONCELOS FERREIRA
GERMANA MARIA ARAÚJO SALES
ESTILOMETRIA INFORMÁTICA: ESTILO LITERÁRIO A PARTIR DO USO DO
ARTIGO DEFINIDO ―THE‖
Shisleny Machado Lopes
Saulo da Cunha de Serpa Brandão
A RELAÇÃO ENTRE CORPO E PODER EM ―A ESTÓRIA DE LÉLIO E LINA‖,
DE GUIMARÃES ROSA
Wellington Diogo Leite Rocha
Sílvio Augusto de Oliveira Holanda
VISITA DE ALUNOS DO CURSO DE LETRAS DA UFOPA À COMUNIDADE
INDÍGENA ARAÇAZAL
Almira Vieira da Silva
Naelson Sarmento Barbosa
Maria Luiza Fernandes da Silva Pimentel
Nilton Varela Hitotuzi
CONHECER A SI MESMO ATRAVÉS DA MEMÓRIA: O RELATO DE UMA
EXPERIÊNCIA
Amanda Gazola Tartuci
Dylia Lysardo-Dias
PROPOSTA DE TRABALHO EM NOVAS TECNOLOGIAS E LETRAMENTO:
PRAXIS VOLTADA PARA UMA PERSPECTIVA SOCIOAMBIENTAL COM A
EDUCAÇÃO INFANTIL
Ana Cláudia Cunha D‘Assunção
Ana Flávia Florentino de Freitas
Georgina Alves da Fonseca
Ednildon Ramalho Fideles Júnior
HABILIDADES, APTIDÕES E IDENTIDADE: UM RELATO DE EXPERIÊNCIA
DAS ATIVIDADES DE ENSINO E PESQUISA NO PIBID LETRAS
IFPA/CAMPUS BELÉM
Ana Paula Santos Sarmanho
Leila Telma Lopes Sodré
FOLHINHA APLICADA: UM EXERCÍCIO DIALÓGICO
Andrea Alves da Silva Souza
Maria Alice de Sousa Carvalho
Telma Maria Santos Faria Mota
O DISCURSO PUBLICITÁRIO NAS PROPAGANDAS DAS OPERADORAS DE
TELEFONIA CELULAR E OS PROCESSOS DE IDENTIFICAÇÃO E
ALTERIDADE EM MICHEL PÊCHEUX
Cássia Priscilla Silva Aleixo1
GLOSSÁRIO PORTUGUÊS-PARAKANÃ PARA USO NA EDUCAÇÃO
BILÍNGÜE E NA SAÚDE: PRODUÇÃO, UTILIZAÇÃO E POSSIBILIDADES
Claudio Emidio-Silva
Rita de Cássia Almeida-Silva
MUSEU PARA LER E ESCREVER: RELATO DE UMA EXPERIÊNCIA
DIDÁTICA
Elenilda do R. Costa
Alessandra F. Conde da Silva
AS CANÇÕES DA MPB ANALISADAS A LUZ DA TEORIA BAKHTINIANA DA
250
258
267
276
285
294
304
312
320
328
336
345
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CARNAVALIZAÇÃO
Elielder de Oliveira Lima
João Batista Costa Gonçalves
A FORMAÇÃO DOCENTE E O PROCESSO DE ENSINO APRENDIZAGEM DE
LÍNGUA INGLESA NO ESTADO DO TOCANTINS
Jaqueline Costa Rodrigues Nogueira
AS MARCAS DO SUJEITO NA LÍNGUA: UMA ANÁLISE DA CATEGORIA DE
PESSOA E NÃO PESSOA DE ÉMILE BENVENISTE
Joelina Luzia Rodrigues Pereira
Rosana Siqueira de Carvalho do Vale
ARTICULANDO O ESTUDO DE LÍNGUA INGLESA COM A CULTURA DE
ARAÇAZAL
Katiana Farias
Marlison Soares Gomes
Sílvia Letícia Soares
Nilton Varela Hitotuzi
A PRODUÇÃO DO BEIJU COMO OBJETO MOTIVADOR NO ENSINO
TRANSDISCIPLINAR
Ocineide Guimarães Ferreira
Nelcivane dos Anjos da Silva
Nilton Varela Hitotuzi
Ana Claudia Medeiros da Silva
GUAMÁ: BILINGÜE PESQUISA, EXTENSIÓN Y ENSEÑANZA DE ESPAÑOL
A TRAVÉS DE ANALOGÍAS PARA ALUMNOS EN RIESGO SOCIAL
Rita de CássiaPaiva
Anna MargridaMendes Leal
O USO DA LÍNGUA GUAJÁ ESCRITA NAS DEMANDAS SOCIAIS DO POVO
Rosana de Jesus Diniz Santos
Maria Madalena Borges Pinheiro
DO PRESENTE AO PASSADO: O PROJETO HISTÓRIA SOCIAL E
LINGUÍSTICA DO PORTUGUÊS DO OESTE PARAENSE
Sérgio da Silva Pereira
Tiago Aquino Silva de Santana
Maria Sandy Nunes de Oliveira
E.P.F
PARA GOSTAR DE LER... É PRECISO VIVENCIAR!
Vera Lúcia Gomes Travassos
Maricilda Nazaré Raposo de Barros
Eliene da Rocha Pontes
UM ESTUDO COM OS INTERNOS EM UMA FUNDAÇÃO DE SAÚDE DA
ZONA DA MATA MINEIRA A RESPEITO DA IMPORTÂNCIA DA
COMUNICAÇÃO PARA QUE A HUMANIZAÇÃO OCORRA NO TRABALHO
DO ENFERMEIRO
Vera Lúcia Villares Nogueira
Bruna Batista Zanetti Lemos
Andréia Almeida Mendes
LÉXICO DA MADEIRA: PROCESSOS DE FORMAÇÃO TERMINOLÓGICA
Alcides Fernandes de Lima
Davi Pereira de Souza
Francisca Imaculada Santos Oliveira
O VOTO NO BIG BROTHER BRASIL: UM GÊNERO ENTRE O JOGO E A CASA
Arthur Ribeiro
354
363
371
380
388
396
405
415
425
434
445
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Samuel Pereira Campos
ASPECTOS DO ECOSSISTEMA LINGUISTICO DA RESERVA EXTRATIVISTA
RIO OURO PRETO: UM ESTUDO LEXICAL
Bethânia Moreira da Silva
Auxiliadora dos Santos Pinto
VARIAÇÃO, MUDANÇAS E O ―DUPLO VOCABULÁRIO‖ DE FAUNA E FLORA
APURINÃ (ARUÁK)
Bruna Lima
Sidi Facundes
O ENSINO DE LÍNGUA PORTUGUESA NA EDUCAÇÃO INDÍGENA: UMA
ANÁLISE TEÓRICA /PRÁTICA
Byron Bruno Braga Brasil
Kárytha de Paula Nascimento
Paulo Arthur Pantoja de Moraes Franco
Débora Cristina do N. Ferreira
ANÁLISE SEMÂNTICO-DISCURSIVA DE POEMAS: A LITERATURA COMO
FENÔMENO DE CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE CULTURAL AMAPAENSE
Danielle Marques
Francesco Marino
APRENDIZAJE SIGNIFICATIVO: UN ENFOQUE POSIBLE EN LA
ENSEÑANZA DE ESPAÑOL PARA ALUMNOS EN RIESGO SOCIAL EN EL
BARRIO DEL GUAMÁ
Débora Dias de Souza
Rita de Cássia Paiva
VÍCIOS DE LINGUAGEM: UMA ANÁLISE DOS DESVIOS EM ANÚNCIOS
PUBLICITÁRIOS
Diany Carla Serra Reis
Irlane Raissa Alves Marques
Silmayra Pinto Lima
Priscila da Conceição Viégas
TUPINISMO NO PORTUGUÊS FALADO NO MARANHÃO: ELEMENTOS
AGROPASTORIS
Edson Lemos Pereira
Conceição de Maria de Araújo Ramos
UMA PROPOSTA DE TRANSCRIÇÃO E CONTEXTUALIZAÇÃO DE UM
DICIONÁRIO EM LÍNGUA GERAL DE 1756
Gabriel de Cássio Pinheiro Prudente
Cândida Barros
Karl Heinz Arenz
GENTÍLICOS DO BRASIL: UMA INVESTIGAÇÃO DISCURSIVA
Giulia Almeida
Vanise Medeiros
ASPECTOS DA GRAMATICALIZAÇÃO DO VERBO QUERER: ABORDAGEM
FUNCIONALISTA
Jarlisom da Silva Garcia
Leydiane Sousa Lima
Ediene Pena Ferreira
ENUNCIADOS DE CAMINHÃO: A AMBIGUIDADE
Jéssica Rayany dos Santos Damas
Maria Auxiliadora Gonçalves Cunha
O USO DA METALINGUAGEM NAS PRÁTICAS DE ENSINO DE
LÍNGUA/CULTURA ESTRANGEIRA EM TURMAS HETEROGÊNEAS DO
PONTO DE VISTA DAS LÍNGUAS/CULTURAS DOS ALUNOS
454
465
475
484
494
504
514
524
533
543
553
563
16
Jorge Luiz Laurênço de Oliveira
José Carlos Chaves da Cunha
REFLEXÕES SOBRE O ENSINO-APREDIZAGEM DE LÍGUA INGLESA EM
ESCOLAS PÚBLICAS DE TERESINA: O DESENVOLVIMENTO DA
COMPETÊNCIA LEITORA
Laiane Gonçalves Barbosa
582
Yolanda Franco Pacheco Sampaio
Beatriz Gama Rodrigues
ESTRATEGIAS MOTIVACIONALES EN EL APRENDIZAJE DE E/LE
Larissa Gabriela Souza Almeida
Rita de Cássia Paiva
COMPARAÇÃOLEXICALENTREITENSDASFAUNASPARKATÊJÊEKYIKATÊJÊ
Luciana Renata dos Santos Vieira
Marília de Nazaré de Oliveira Ferreira
A METÁFORA NA POESIA: UM ESTUDO DAS CONCEPTUALIZAÇÕES
METAFÓRICAS DA VIDA NA POESIA DE PATATIVA DO ASSARÉ
Marcos Helam Alves da Silva
A DIVERSIDADE NO ESPAÇO DA SALA DE AULA: AS PRIMEIRAS
EXPLORAÇÕES
Milene das Merces Alcantara
Fatima Cristina Pessoa
ESTUDOS
GEOSSOCIOLINGUÍSTICOS:
PROCEDIMENTOS
METODOLÓGICOS DE UM ATLAS LINGUÍSTICO DO AMAPÁ
Romário Duarte Sanches
ESTILOMETRIA INFORMÁTICA: ESTILO LITERÁRIO A PARTIR DO USO DO
ARTIGO DEFINIDO ―THE‖
Shisleny Machado Lopes
Saulo da Cunha de Serpa Brandão
ANÁLISE LINGUÍSTICA: UM ESTUDO DAS VÁRIAS FORMAS DE SENTIDO
DO TEXTO HUMORÍSTICO
Irlane Raissa Alves Marques
Silmayra Pinto Lima
Diany Carla Serra Reis
Mary Joice Paranaguá Rios
DUAS ESCOLAS PARA SURDOS EM BELÉM: ASPECTOS GERAIS
Sindy Rayane de Souza Ferreira
Marília de Nazaré de Oliveira Ferreira
FORMAÇÃO DE NOVOS ITENS LEXICAIS EM PARKATÊJÊ
Tereza Tayná Coutinho Lopes
Marília de Nazaré de Oliveira Ferreira
O DEBATE REGRADO EM AMBIENTE ESCOLAR: O CASO DE SUPOSTO
RACISMO EM UMA UNIVERSIDADE
Tiago Sousa Santos
Alessandro Fernandes Barbosa
Prof. Dr. José Anchieta de Oliveira Bentes
572
590
598
606
616
626
636
645
655
664
672
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TRANSDUÇÃO: A PROPAGAÇÃO GRADUAL E AFETIVA - IMAGEM NA
CANÇÃO DO EXÍLIO
Edi Rodrigues1
RESUMO:Este trabalho, uma experiência realizada nas aulas de literatura, na Universidade Federal do
Maranhão – UFMA, programa PARFOR, tem o objetivo de ser uma reflexão intertextual, M. Bakhtin
(1997) uma polifonia teórica, ou melhor, um hipertexto – um conjunto de nós ligados por conexões.
Os nós podem ser palavras, páginas, imagens, gráficos ou partes de gráficos, sequências sonoras,
documentos complexos, que podem eles mesmos ser hipertextos. Lévy (1993, 33). O que já define a
metodologia investigativa. A reflexão intertextual é o texto poético, Canção do Exílio, de Gonçalves
Dias (Coimbra, julho, 1843) e Imagem em Simondon, (Imagination et invention (2008)), numa
percepção no campo da arte, (obra-humano-meio). O texto Canção do Exílio desperta em muitos
escritores, posteriores a ele, Gonçalves Dias, as imagens de terra-cidade, interior; ao depois, estadonação – a topofilia, Hifi Tuan (1999), termo desenvolvido na geografia para demonstrar que as imagens
– do lugar, da casa, dos objetos, do espaço físico, símbolos para G. Bachelard (2002), da infância, –
despertam sentimentos no ser: poeta/leitor, através do imaginário poético, ou o horizonte ético do
fazer literário Durant (1998). À busca do ciclo reinventivo da imagem. Confirmando Marisa Lajolo – ou
o texto dá um sentido à vida, ou ele não tem sentido algum.
Palavras-chave: Arte, linguagem e imaginário.
ABASTRACT:This work realized on the literature classes at the Federal University of Maranhão UFMA, PARFOR program, aims to be a reflection intertextual, M. Bakhtin (1997) a polyphony theory,
or a hypertext - a set of nodes connected by links. Nodes can be words, pages, pictures, graphics or
parts of graphics, sound sequences, complex documents, which may themselves be hypertexts. Lévy
(1993, 33). What defines aninvestigate methodology. The intertextual reflection is the poetic text, Song
of the Exile by Gonçalves Dias (Coimbra, July, 1843) and picture in Simondon, (Imagination et
Invention (2008)), at perception in the art field, (work-human-enviroment). The Song of the Exile text
provokes in many writers, subsequent as Gonçalves Dias, images of land-city, small cities, nation-state the topophilia, Hifi Tuan (1999), the geography term developed to demonstrate that the pictures - the
place, the house, objects, physical space, symbols to G. Bachelard (2002), Childhood, - arouse feelings
in be human: poet / reader through poetic imagery, or the ethical horizon of literary Durant (1998).
The search of the cycle reinventedby image.Makes sure Marisa Lajolo - or the text gives a meaning to
life, or it is meaningless.
Keywords: Art, language and imagery.
1. TRANSFORMANDO INFORMAÇÃO EM CONHECIMENTO
1
Edi Rodrigues – pseudônimo de Edmilson Moreira Rodrigues Mestre em políticas públicas/UFMA, Especialista em
Comunicação e Mobilização Social /UnB, em Metodologia do Ensino Superior/UFMA e Perspectiva Crítica da Literatura
brasileira contemporânea /UEMA – professor da Universidade Federal do Maranhão, Campus São Bernardo, Curso de
Linguagens e Códigos, ex-professor do Estado e também do Município de São Luís, sua cidade-nação. Ex- votante dos
prêmios de Literatura infanto-juvenilda FNLIJ, membro do .NUPETS (Núcleo de Pesquisa em Tecnologia Simbólica/
DELER/UFMA), Coordenador do Projeto POEMÀTICA.
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Este texto tem o objetivo de ser uma reflexão intertextual, uma polifonia teórica, ou melhor, um
hipertexto – um conjunto de nós ligados por conexões. ―Os nós podem ser palavras, páginas, imagens,
gráficos ou partes de gráficos, sequências sonoras, documentos complexos, que podem eles mesmos ser
hipertextos‖. Lévy (1993, 33).
A reflexão intertextual é o texto poético, Canção do Exílio, de Gonçalves Dias (Coimbra, julho,
1843) e a concepção de Imagem em Simondon, numa percepção no campo da arte literária e da
psicologia: (obra-humano-meio). O texto Canção do Exílio, desperta em muitos escritores, posteriores
a ele, Gonçalves Dias, as imagens de terra-cidade: interior; ao depois, estado, espaço de nascimento e,
por fim – a topofilia Hi fu Tuan, termo desenvolvido na geografia para demonstrar que as imagens –
do lugar, da casa, dos objetos, do espaço físico, (símbolos para G. Bachelard (2001), da infância, –
despertam sentimentos no ser: poeta/ leitor. Confirmando Marisa Lajolo (1998)– ―ou o texto dá um
sentido à vida, ou ele não tem sentido algum‖. E aqui o sentido é da transdução: operação pela qual
uma atividade se propaga gradual e progressivamente no interior de certo domínio.
O domínio é a imagem cedida do texto literário, detentor, das imagens de exílio e saudade, ou o
que Simondon chama de Imagem intra-perceptiva, a praesenti.
É a atividade perceptiva, do ser poeta, Gonçalves Dias, propagando a mesma imagem nos
demais poetas, revisitando-os: paródia, carnavalização, intertexto, estilização, paráfrase, confirmando
assim, o ciclo inventivo da imagem, Kastrup (2007), na poesia, gerado por uma democracia cognitiva, Morin
(2001), ou as muitas das possibilidades interpretativas do texto literário, Candido (1985) ou, ainda, a
percepção no campo da arte. Simondon ( 2008).
Numa relação de sentido com o texto, de pertença, vamos evocar Antonio Candido, Literatura
e Sociedade (1985), posto ser a citação um ―documento complexo‖ que nos direciona a vários saberes,
sendo, portanto, o ―fio condutor de nossa percepção‖.
―Com efeito, entendemos como literatura, neste contexto, fatos eminentemente associativos;
obras e atitudes que exprimem certas relações dos homens entre si, e que, tomadas em conjunto,
representam uma socialização dos seus impulsos íntimos. Toda obra é pessoal, única e insubistituível, na
medida em que brota de uma confidência, um esforço de pensamento, um assomo de intuição,
tornando-se uma "expressão". A literatura, porém, é coletiva, na medida em que requer uma certa
comunhão de meios expressivos (a palavra, a imagem) e mobiliza afinidades profundas que congregam
os homens de um lugar e de um momento, - para chegar a uma "comunicação"‖. Candido (1985,139).
Como num poder de síntese dedutiva aquela citação poderia ser assim plasmada – a obra de arte
pertence a um meio associado, a obra é um objeto técnico-estético produzido por uma tecnologia e
aporta tecnicidades, e a obra somente pode ser entendida a partir do sistema metaestável: obrahumano-meio. Simondon (2008).
19
Eis a representação dos impulsos íntimos do ser poeta, que a doa – a representação – a um
meio associado: sociedade leitora cúmplice dos impulsos íntimos do escritor que se projeta para além
do mundo que o recepciona pela vez primeira.
Vivemos em um mundo de conhecimentos variados, redirecionados, transformados e
questionados. Há, portanto, uma chuva de informações que caem num campo fértil, mas nos falta a
capacidade de transformar a enxurrada de informações em conhecimentos. Em vista disso, nosso texto,
também refletirá essa avalanche de informação, com um único intuito, copilar informações das letras e
da psicologia e transformá-los em conhecimentos que sejam socializados. Cruzando, tecendo,
dialogando, destruindo-os, os textos nossos e os dos autores, para ressurgir mais vivo e expressivo
Coelho (1989 ) na linha seguinte, ela mesma, elemento de equilíbrio e discussão histórica (Codificações
lineares e não lineares da realidade Lee/Graves (2001)) da matemática à cibercultura - the line. Fio
condutor das nossas imagens, fornecidas pela Canção do Exílio.
2. ONIPRESENÇA E ONIPOTÊNCIA – IMAGEM
Seguindo o fio condutor, melhor, a linha de Ariadne, ou de T. Nelson (1991), numa tentativa de
organizar o mundo visível e as metáforas, o lugar e o momento, das imagens do texto – Canção do Exílio
foram a Portugal e o século XIX, respectivamente, despertando a percepção segundo uma imagem de
pátria na individualidade do poeta, pelo viés da imagem da Caxias do interior do Maranhão, sua cidade;
ao depois, a percepção, tornou-se coletiva e social, – a obra de arte pertence a um meio associado – na ideia de
terra e infância, dos poetas do romantismo, à contemporaneidade.
E o meio ainda continua sendo, para alguns, apenas o texto no papel, com suas manchas
gráficas, mas como podemos perceber, há outros meios na atual sociedade da informação, pelo qual,
novos criadores se associam às imagens do texto do poeta maranhense, para que ele agora, revisitado,
pertença a um novo horizonte, a novas possibilidades de leitura e recriação, a rede de Lévy (1993), na
página, no espaço da tela que o redimensiona e o torna vivo, metaforizando as imagens impregnadas do
original.
Quais sejam – terra = pátria; Sabiá, fauna, poeta, cantor. Muitos outros ciclos reinventivos,
seriam viáveis: terra e sabiá, irmão e casa, cantor e ouvinte, morada e arte, poesia e poeta...
Voltando ao texto, quer seja ele, num ou noutro meio, hoje, quando se diz ―Minha terra tem
palmeiras,/ Onde canta o sabiá;‖, o excerto não remete mais apenas a Caxias, a São Luís, ao Maranhão,
ao Brasil, mas ao ―lugar‖ donde nascemos, ou geramos os nossos sentimentos, – a imagem-lembrança
(Simondon, Imagination et invention 2008) – a imagem topofílica do ser social, poderíamos
acrescentar, confirmando: a literatura é coletiva na medida em que requer uma certa comunhão de meios. A
imagem, a mesma que Simondon chama de Imagem mental e imagem material e que Ferdinad Saussure,
respectivamente, noutro nó deste hipertexto, em seu Cours de Linguistique Génélare (1973, 97) chama
20
de Significante = imagem acústica, e Significado = conceito.
Partes indissociáveis de um todo,
formando o Signo, que, por sua vez, remete ao código. (Santaella).
Na Canção do Exilio, há fatos eminentemente associativos, ―As aves, que aqui gorjeiam,/ Não
gorjeiam como lá,/. É a imagem afetivo-emotiva de Simondon, onde repousa a lembrança, os desejos,
os símbolos. Os advérbios toponímicos, para além do que podem distanciar, criam, mesmo pela
presença do mar, uma proximidade sentimental e barrista; depauperando a fauna donde se encontrava o
poeta, e elevando a sua, para a condição do Éden, ou a imagem aprazível.
Para Gonçalves Dias o símbolo do canto que ressoa do Sabiá, lembra a sua terra e, para os
outros poetas, o sabiá, generalização do ser poeta, de cantor, e da poesia – ―Poeta cantor de rua/ que
na cidade nasceu/ cante a cidade que é sua/ que eu canto o sertão que é meu/‖ (Patativa do Assaré).
―Sabiá já cantou seu canto./ Fez tremer quem foi? Foi Maracanã‖ (...) (Humberto). Objeto
personificado e personificador de quem canta a saudade, – palmeiras – que, por sua vez, foi copilado da
imagem das laranjeiras da balada Mignon de Goethe. Ressonâncias de uma outra arte, nas duas obras –
a música: canção e balada. O ciclo da imagem, no processo de transdução, ou olhando para as citações
de Candido e Simondon – o sistema metaestável: obra-humano-meio, a mediatização entre texto-autorleitor, Carpenter ( ).
―Em cismar, sòzinho, à noite,‖/ à busca da inspiração, evocamos, do criar, ou, o alumbramento,
(Bandeira), o espanto, o estranhamento (D´Onofre) – E na citação - O assomo de intuição é o que
Simondon chama de invenção, o processo último do ciclo de gênese da imagem, dividida em quatro
momentos, para o psicólogo francês – imagem motora (A priori), imagem perceptiva (A praesenti),
imagem afetivo-emotiva (onde se incluem as lembranças (A posteriori)) e imagem invenção.
E as obras e atitudes que exprimem certas relações dos homens entre si, no mesmo fio condutor, é o que
estamos fazendo, inventando, experienciando relações de sentido, dialogando com os autores a partir do
texto poético literário, plugados em linguagens: simbólica, icônica, verbal e sonora (pelo que guardamos
das leituras e nos reouvimos), na escrita, pois segundo R. Barthes – todo sistema semiológico se
impregna de linguagem, filtrada da memória e das imagens-lembrança. ―Nosso céu tem mais estrêlas,/
Nossas várzeas têm mais flôres./ Nossos bosques têm mais vida,/ Nossa vida mais amôres.//‖. Eis a
invenção, o processo psicológico responsável pela materialização da imagem. Aqui, as míticas – Éden,
Utopus bíblica que para Austin Warren é literária – Eu vos levarei a um lugar donde jorra leite e mel. Nossas
várzeas têm mais flores./, logo, mais frutos e mais vida. Leite – vida; mel – nécta da flor, reservatório
da fruta. Inegável seria portanto, dizer que o peta se inspirara noutro, confirmando a imagem afetivoemotiva, carreada de lembranças de ambos: a Balada de Mignon e as imagens da flora e fauna da terra
natal do poeta tropical.
3. A VALÊNCIA AFETIVO-EMOTIVA: MEMÓRIA
21
Canção do Exílio
Gonçalves Dias (Coimbra, julho, 1843)2
Minha terra tem palmeiras, /Onde canta o Sabiá; /As aves, que aqui gorjeiam, /Não gorjeiam
como lá.// Nosso céu tem mais estrêlas,/ Nossas várzeas têm mais flôres./ Nossos bosques têm mais
vida,/ Nossa vida mais amôres.// Em cismar, sòzinho, à noite,/ Mais prazer encontro eu lá;/ Minha
terra tem palmeiras,/ Onde canta o Sabiá.// Minha terra tem primores,/ Que tais não encontro eu cá;/
Em cismar - sòzinho, à noite -/ Mais prazer encontro eu lá;/ Minha terra tem palmeiras,/ Onde canta
o Sabiá.// Não permita Deus que eu morra,/ Sem que eu volte para lá;/ Sem que desfrute os
primores/ Que não encontro por cá;/ Sem qu`inda aviste as palmeiras,/Onde canta o Sabiá.
Respeitando a grafia, e conservando os recursos da poemática, no texto do século XIX,
confirmamos, linguisticamente, uma característica essencial: a mutabilidade do signo linguístico. Para F.
Saussure o tempo, que assegura a continuidade da língua, possui outro efeito, em aparência
contraditória: o de alterar os signos linguísticos (Dubois).
4. O CICLO REINVENTIVO DA IMAGEM
O Ciclo da imagem é composto por quatro fases: imagem motora, imagem perceptiva, imagem
afetivo-emotiva, mental (onde se incluem as imagens-lembrança e os símbolos) e a imagem invenção.
A PRIMEIRA fase é a imagem motora. Para Simondon, a percepção é precedida, e mesmo
possibilitada, por imagens motoras, que são antecipações do objeto. Como essas imagens condicionam
a própria experiência, são chamadas de imagens a priori. A imagem motora não é simples movimento
corporal, mas o esquema de ação, espontâneo e regular, que antecipa o objeto.
4.1. DIGRESSÃO GONÇALVINA – a priori
O esquema de ação – cantar numa espécie de roteiro da pátria, os elementos simbólico-imagísticos
da espontaneidade da terra – pátria: A terra que tem palmeiras, onde canta o sabiá, não quaisquer terra,
ou sabiá, mas a imagem que as antecipa, na individuação, que, ao depois, se pluraliza no canto de todos
os pássaros e poetas.
Antecipações do objeto – outro trabalho seria possível só sobre o que antecipou Gonçalves Dias, na
Canção que é uma litania sempre revisitada, como fenômeno ideológico, Bakhtin (1997), ou as imagens
2Nota:
para cada barra (/) uma linha de verso; e, no caso de duas, (//), separação de estrofes. Citação incompleta da
primeira estrofe da balada Mignon, "Conheces o país/ Onde florescem as laranjeiras?/ Ardem na escura fronde/ Os frutos
de ouro.../ Conhecê-lo?/ Para lá, para lá, quisera eu ir/".
22
condicionando a própria experiência: imitação Nitrini (2000), literatura comparada, tendo o texto dele,
G. Dias, como eixo fulcral.
A SEGUNDA fase é a imagem perceptiva. Imagens intra-perceptivas, ou imagens a praesenti,
tais imagens relacionam-se diretamente com a atividade perceptiva, mas não podem ser explicadas por
ela. Pelo contrário, é a percepção que deve ser explicada pela atividade endógena das imagens intraperceptivas. Deste modo, não é certo afirmar que percebemos imagens, mas sim que percebemos
segundo uma imagem.
O trabalho perceptivo de identificação de objetos supõe a presença de uma imagem que lhe é
auxiliar. (imagem perceptiva).
4.2. DIGRESSÃO GONÇALVINA – a praesenti
A presença de uma imagem que lhe é auxiliar – quando no exílio, involuntário, na Portugal,
irmã das nações, berço da imprensa e guardiã do livro, respectivamente, Alemanha e França, seria óbvio
o poeta se alagar de imagens de seus escritores. Foi o que demonstrou – Gonçalves Dias – ao epigrafar
sua canção com excerto, da primeira estrofe, da balada de Mignon, do poeta Goethe. A imagem
auxiliar: a saudade das laranjeiras da cidade natal desse, alumbrando as imagens das palmeiras de babaçu
naquele.
A TERCEIRA fase é a imagem mental ou Imagens afetivo-emotivas, ou seja, as imagens, a
posteriori, isto é, as imagens que ocorrem após a experiência perceptiva. O domínio psicológico das
imagens propriamente mentais: pós-imagens, lembranças, volições, sonhos... Como o processo de
gênese é transdutivo, as fases anteriores à imagem mental são sua condição. A imagem-lembrança e a
imagem-símbolo consistiriam em transformações de experiências perceptivas e também em seu
ultrapassamento. A primeira das imagens a posteriori é a imagem consecutiva, isto é a pós-imagem, e que
se forma por saturação ou adaptação do sistema produtivo.
4.3. DIGRESSÃO GONÇALVINA – a posteriori
A adaptação do sistema produtivo – o texto Canção do Exílio, mais que qualquer outro da
literatura brasileira, é o mais parodiado e parafraseado, no todo ou em parte. A conexão é enorme, dos
românticos aos contemporâneos – de poetas (poiesis) a aedos televisivos, (bobos da corte moderna).
Alguns como exemplos:
A QUARTA fase do ciclo da imagem: invenção. É a materialização de imagens na forma de
objetos separados ou obras com existência independente, que são transmissíveis e sujeitos à
participação coletiva. Os dispositivos técnicos, as obras de arte são invenções. Segundo Simondon
(2008), quase todos os objetos produzidos pelo homem são objetos-imagem, posto que são portadores
de significações latentes. Fala da invenção stricto sensu e Chateau chama de invenção propriamente dita.
23
A invenção, para Simondon, remonta ao papel da motricidade. A invenção, entendida como um
processo de enfrentamento e solução de problemas, quando obstáculos se interpõem entre o
organismo e a meta ser atingida.
4.4. DIGRESSÃO GONÇALVINA – a materialização
Um processo de enfrentamento – o exílio involuntário, causado pela necessidade história da
busca de conhecimento: o saber com o sabor da saudade – a assimilação do conhecimento é um
processo doloroso. (Postigo).
Solução de problemas – a literatura não é copia do real, mas um simulacro dela: ―o poeta é um
fingidor‖, ou, um visionário, um Tirésias, (Sófocles): ―O novo homem será feito em laboratório‖, ―Lá
tem telefone automático. Tem alcaloide à vontade‖; ou segundo Vinicius de Moraes ―mas quando foi
pergunta o operário disse – Não! Não podes dar-me o que é meu‖; ―Quem construiu a Tebas das sete
portas?‖ (Brecht). Cantam, através do texto poético, o ser menoscabado no ter E. Froom (1998), à
busca das necessidades humanas Potyara (2002), numa sempre repetida Canção do Exílio dos direitos
sociais Bobbio (1992).
Obstáculos que se interpõem – o isolamento, a distância entre Portugal e Brasil, e o símboloimagem deste isolamento: o mar.
A noção de invenção como ―ponto triplo‖ – imagem motora, imagem perceptiva, imagem
afetivo-emotiva, lembra-nos que mesmo as imagens mentais que parecem mais íntimas e pessoais
contêm algo de social, o ser histórico e social, considerado por Simondon (2008).
A invenção produz novas imagens, e o ciclo não se fecha sobre si mesmo. E o texto literário,
obra aberta, e por ser polissêmico, idem.
5. A IRREVERSIBILIDADE – ONTOLOGIA CONCLUSIVA
Aqui o ciclo inventivo, ou melhor, inventocriativo, só para não dizer que não falamos dos
neologismos, à luz dos criados pelas TCI, tende a se encerrar, posto que o hipertexto, foi pretexto
didático e como tal, carece de conclusão. Mobilizamos afinidades profundas – palavras, em imagens e
imagens em palavras – que congregaram homens de um lugar e de um momento, - para chegar a uma
"comunicação". Assim, o ciclo inventivo deste foi uma conexão de diálogo com: O ciclo inventivo da
imagem, (Informática na educação – teoria & prática, Porto Alegre, v. 15 n. 1 jan./jun. 2012) de
Virginia Kastrup, Maria Clara de Almeida, Filipe Herkenhoff Carijó, autores que, por sua vez, dialogam
com Jean Yves e Gilbert Simondon, desse, a teoria da imagem à luz da noção de invenção e, ao mesmo
tempo, uma teoria da invenção à luz da noção de imagem. E o objeto-imagem: Canção do Exílio. O
que pra nós foi gratificador: um presente, transformar a informação do texto, em conhecimento; não
24
conhecimento verdadeiro, pois conhecer e pensar não significa chegar a verdade absolutamente certa,
mas dialogar com a incerteza. Morin (2001, 76).
Este diálogo refletiu a transversalização das diferentes disciplinas, (Kastrup/ Carijó/ Almeida),
Psicologia, Educação, Letras e Informática. O que a pedagogia patinou de transdisciplinaridade, numa
mediação e contradição dos conhecimentos (Marx) pautados na nova cultura da aprendizagem Pozo /
Echeverria (2006) Assim, o nosso texto, de forma estrelar, conectou autores variados, os quais surgiram
ao longo do mesmo, demarcando o posicionamento teórico metodológico, o qual é sempre cambiável,
posto que dialeticamente, tem suas contradições, e se propaga, gradual e progressiva, ressoando em
nossa mente. Possibilitando outros itinerários.
Lembramos que o nó: Transdução: a propagação gradual e afetiva – imagem na canção do
Exílio – foi uma investigação apoiada na escuta e na memória referencial e respeitosa (Chartier 1988) das obras
da revista e nossa história de leitor inventivo Simondon (2008).
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25
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26
A INCURSÃO DE TEMAS MEDIEVAIS EUROPEUS EM NARRATIVAS
ORAIS DA AMAZÔNIA PARAENSE
Priscila Oliveira Ramos 3 (UFPA)
RESUMO: O corpus do projeto IFNOPAP possui um acervo extremamente rico de narrativas orais
caracterizando o que Socorro Simões afirma ser um ―modo supremo da experiência de vida‖ no qual se
vê homens dividindo sua vida entre o rio e a floresta, transmigrando para mundos nos quais existem
seres encantados com quem também dividem sua vida e suas experiências. Nesse sentido, Simões
afirma ser―indispensável que se lembre da herança recebida, pela narrativa escrita, das formas de
produção oral da Grécia antiga e o do Norte da Europa‖ ressaltando-se que se trata de uma arte verbal,
que, umas vezes, se revela na sua forma oral e outras, na sua feição escrita. Vale ressaltar que essas
produções oraisse apresentam também como um depoimento vivo da presença do colonizador dentro
do Estado do Pará. Dessa forma, tendo-se um contato mais aprofundado com as narrativas desse
corpus, percebe-se, dentre outros aspectos, o quão são recorrentes ressonâncias medievais europeias
nas ―narrativas orais paraenses‖.
PALAVRAS-CHAVE: Narrativas; Medievalismo Europeu; Tema.
SUMMARY: The corpus of
the
project IFNOPAP has
a very
rich collection of
oral
narratives featuring Relief Simões that claims to be a "supreme mode of life experience‖ in
which man finds himself dividing his life between the river and forest, to transmigrating worlds in
which there are also enchanted beings who share their lives and experiences. In this sense, Slater claims
to be "essential to remember the inheritance received by the written narrative, forms of oral
production of ancient Greece and Northern Europe‖ emphasizing that it is a verbal art, which,
sometimes, if reveals in its oral form, and others, in written form thereof. It is noteworthy
that these utterances are also present as aliving testimony of the presence of the colonizer within the
State of Pará Thus, having a deeper contact with the narratives of this corpus, we find, among other
things, how are resonances in medieval European applicants ―oral histories in Pará‖.
KEYWORDS: Narratives; Medievalism; European theme.
1. Da pesquisa científica...
O primeiro contato que desencadeou um trabalho pleno com narrativas orais ocorreu no ano de
2009, cujo órgão Pibic/ CNPq promoveu o projeto intitulado ―Temas e tipologia em narrativas, do
acervo IFNOPAP, recolhidas no campus de Abaetetuba e Bragança‖.Neste trabalho, foi realizado um
levantamento dos temas e da tipologia das narrativas orais populares, recolhidas especificamente no
campus de Bragança e Abaetetuba, com vistas à verificação da memória e da tradição em narrativas orais
da Amazônia paraense.
3
Graduada em letras – habilitação em língua portuguesa pela Universidade Federal do Pará. Atualmente é professora de
língua portuguesa pela prefeitura de Belém.
27
De posse dessas informações fez-se imprescindível a apreciação de conceitos importantes, na
área, que serviram de base para o bom andamento da pesquisa. Tais conceitos são: narrativas, as quais
são construções verbais de acontecimentos reais ou imaginários, encadeados por meio de palavras ou
imagens, ressaltando-se, inclusive, a importância do papel do contador de histórias como aquele que,
por meio da voz e do desempenho no ato do contar, dá vida às nossas narrativas orais populares; tema,
que para Tomachevski (1973), formalista russo, é a unidade constituída pelas significações dos
elementos particulares da obra, ou seja, aquilo de que se fala, em outras palavras, tema é um elemento
que dá conta da estrutura mais profunda e significativa do texto; memória, uma competência cognitiva
importantíssima por se configurar enquanto uma espécie de elemento chave para a aprendizagem, uma
vez que, armazena na mente as representações do passado fazendo nascer, assim, a experiência; e
tradição, uma forma de exercício de cultura, que passa de geração em geração, com dimensão e força
capazes de propiciar, às comunidades, a oportunidade de descobrir e explicar o mundo com sabedoria e
competência.
Com esses conhecimentos, procedeu-se, primeiramente,ao trabalho de leitura das narrativas de
Bragança com a inserção de títulos e epígrafes. A princípio, foram selecionadas 130 narrativas desse
campus, mas esse total diminuiu para 118 por aparecerem algumas repetidas ou então incompletas.
Dessa seleção foram identificados, primariamente, os seguintes temas: seres estranhos, transformações
ou animalizações de pessoas (matinta pereira, lobisomem etc.), escárnio, materializações do fogo,
sobrenatural (visagem, assombração, fantasmas, corpos mortos com atitudes humanas), seres do rio e
da floresta (curupira, animais, caboclinho misterioso etc.) acontecimentos atípicos, seres encantados,
vigarice, de enterro, mal entendido, drama familiar, teimosia, cotidiano, proteção (anjo da guarda),
ladroagem, aventura, mistério, assassinato, bestialidade e nacionalismo. Dentre esses temas, foram
identificados os seguintes tipos: lendas, narrativas em verso, fábulas e conto. Segundo Tomachevski
(1973), a escolha do tema ―depende estreitamente da aceitação que encontra junto ao leitor‖, é por isso
que nesse momento da pesquisa a escolha dos temas das narrativas foi feita conforme as impressões
dadas na leitura.
Foi possível notar em algumas dessas contações marcas de outras culturas, algumas de
influência europeia como a história de João e Maria e as que aparecem reis e princesas. Além de outras que
lembram o conto do Ali Baba e os 40 ladrões pertencentes ao livro das Mil e Uma Noites. Vale lembrar que
essas ressonâncias acabam se aglutinando com elementos da cultura amazônica e os resultados são
interessantes histórias como uma do Sarambuí, um ser da floresta, típico de Bragança. Sendo que, em
uma narrativa, ele foi alvo de captura da guarda de um rei após devorar um homem que insistiu em ir
caçar no domingo, dia santo de descanso. Essas ressonâncias caracterizam traços de memória em
relação a outros povos que aqui se alocaram e fizeram das mesmas, parte da tradição amazônica.
28
Nessa história, assim como em outras, fica evidente a existência de uma tradição de inspiração
bíblica: o respeito aos dias santos que no caso da tradição cristã é o domingo, dia da ressurreição de
Jesus. Sendo assim, geralmente quem desrespeita esses dias acaba sofrendo penalidades como se pôde
notar na história do Sarambuí. Além desse, há outro ser da floresta típico de Bragança: o Ataíde, uma
crença popular, principalmente em comunidades de beira de praia com Ajuruteua. Acredita-se que vive
no mangal e ataca principalmente mulheres.
Vale ressaltar ainda que, em várias contações, ocorrem uma espécie de motivação realista a qual
é, segundo Tomachevski, uma exigência de verossimilhança ao se introduzir na história elementos que
façam correspondência com a realidade. Esses elementos acabam dando uma impressão de ―verdade‖
às contações. Isso pode ser constatado quando o contador afirma que a história ocorreu com algum
parente, conhecido, ou até consigo mesmo, usando expressões como: ―isso é verdade, aconteceu
mesmo‖. Nesse sentido, Celso Sisto (2005) ressalta que as melhores histórias são aquelas contadas
espontaneamente e que é muito importante o contador acreditar naquilo que estiver contando.
Segundo o formalista russo, a motivação realista não impede que se desenvolva a significação
fantástica, ou seja, os motivos que oferecem a possibilidade de uma dupla interpretação como o sonho,
o delírio, a ilusão visual ou outras. Nesse sentido, há narrativas nas quais se encontram possibilidades de
interpretações tanto naturais quanto sobrenaturais como, por exemplo, uma narrativa sobre um rapaz
que matou um homem e depois passou a ser perseguido por visões até morrer. Nessa história não há
como saber se o rapaz realmente era perseguido pelo fantasma do homem que ele matou ou se eram,
apenas, alucinações.
Com exceção do Sarambuí e do Ataíde, constatou-se que os outros seres encantados da floresta,
apresentados em Bragança, são os que a maioria dos amazônidas paraenses já conhecem: a matinta
pereira, o curupira, o boto, a cobra grande entre outros e alguns seres misteriosos que fazem mal a
pessoas perdidas na floresta ou que resolvem morar sozinhas, além de narrativas de metamorfoses de
pessoas em animais, como as de lobisomens, por exemplo. Há também histórias do cotidiano, de
cobras que não são encantadas, de anjos da guarda, de humor, dentre outras nas quais certas pessoas
sofrem castigos por não honrarem promessas feitas a seres encantados. Além disso, pode-se perceber o
quão é grande a criatividade de certos contadores com suas histórias em versos, sobre acontecimentos
históricos ou suas próprias memórias de contador. Enfim, como se pôde observar Bragança guarda
uma gama imensa de temas.
Em relação às narrativas de Abaetetuba, procedeu-se também a inserção de títulos e epígrafes
nas quais foram selecionadas, a princípio 65 narrativas, mas no final da leitura esse total diminuiu para
45, em virtude de existirem algumas repetidas ou incompletas. Dessa seleção foram identificados os
seguintes temas: seres do rio e da floresta, drama familiar, morte misteriosa, sobrenatural, desobediência
a dia santo, transformações, ladroagem, mistério, desentendimento, vigarice, celibato clerical. Dentre
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esses temas identificou-se um tipo: as lendas locais das quais se destacam a lenda do monstro do
trapiche, a da folia de São João da Cachoeira, da praga rogada pelo padre expulso de Abaetetuba, da
moça do poço e a do padre e o cavalo sem cabeça.
Em relação aos elementos particulares, referentes ao imaginário dos campi pesquisados, foram
observadas histórias sobre seres da floresta típicos de Bragança (Sarambuí e Ataíde) e lendas próprias
de Abaetetuba. Dentre essas lendas há duas sobre padres, porém com temáticas diferentes: uma trata de
celibato clerical e a outra é mais sobrenatural, uma vez que é sobre os passeios noturnos nas sextasfeiras de um padre em um cavalo sem cabeça enquanto ainda não havia luz elétrica na cidade de
Abaetetuba. Percebe-se, nessa história, que a existência dessa lenda está diretamente ligada ao ambiente
rural, pois com a chegada da modernidade, representada pelo surgimento da luz elétrica, o padre e o
cavalo sem cabeça acabam desaparecendo. Vale ressaltar, ainda, o tema do mistério, que caracteriza
histórias nas quais ocorrem acontecimentos estranhos, sem explicação como o surgimento de luzes
misteriosas, mortes inexplicáveis entre outras coisas. Com exceção dessas histórias, os outros temas de
Abaetetuba são os mesmos presentes em Bragança.
2. ...ao trabalho particular com os temas medievais europeus.
Diante dessa gama de temas, surgiu a necessidade de se investigar a permanência de temas
europeus em narrativas orais da Amazônia paraense. Nos primeiros resultados desse enfoque, foram
destacadas principalmente narrativas de Bragança, como a do Sarambuí que tem o enredo de um
homem que resolve caçar num domingo com seu filho o qual aconselha o pai a descansar e este
responde dizendo: ―he, domingo também se come‖, porém ele acaba sendo surpreendido por um ser
estranho – o Sarambuí – proferindo essas mesmas palavras e depois devorando-o. O filho tenta salvar o
pai, mas não consegue e foge para ir pedir ajuda ao rei o qual ordena aos seus soldados que matem a
criatura e a partir daí inicia-se um combate sangrento no qual, muitas vidas são ceifadas por este
estranho ser.
Um dado que merece destaque, é o fato do caçador não ter respeitado o domingo, dia sagrado
para o cristianismo por simbolizar a data na qual Cristo ressuscitou: a páscoa a qual nas palavras do
apóstolo representa o tempo favorável, o dia da salvação. Vale lembrar que antes da chegada de Cristo
o dia que era considerado santo para os hebreus era o sábado por simbolizar o descanso de Deus na
teoria criacionista. Sabe-se que o medievalismo, representou um forte período de dominação da igreja
católica no pensamento das pessoas e que muitas coisas eram motivo de pecado, de preocupação com
entrada ou não no reino dos céus. Uma das orientações dadas aos fiéis dizia respeito a certas datas nas
quais não se podiam tomar algumas atitudes como, por exemplo, a sexta-feira santa, nesse dia não era
recomendável que se pegasse em facas, que se fizesse barulho entre outras coisas; esses costumes
duram até hoje. Assim como nessa história do Sarambuí, pode-se também observar em algumas
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narrativas de Abaetetuba essa mesma situação em relação aos dias santos: lembrando alguns elementos
referidos por Propp (1928) em relação à estrutura narrativa, nota-se, nessas contações um personagem
que transgride certa interdição e que acaba sendo punido por sua desobediência, nas narrativas de
Abaetetuba os personagens transgressores acabavam sendo soterrados por não respeitarem o dia santo
e na do Sarambuí o personagem é devorado.
Além dele, identificou-se outra personagem tipicamente amazônica que possui um estereótipo
medieval: a Matinta Pereira, em uma das contações da região de Bragança intitulada As lendas o
informante afirma que a Matinta Pereira provém de espírito maligno podendo ser igual à Satanás,
vindo, também, de criaturas chamadas feiticeiras. Esse ser da floresta amazônica assemelha-se à bruxa
da era medieval a qual significa em sânscrito ―mulher sábia‖. Nessa época, as bruxas eram mulheres que
tinham, além de grande poder espiritual, conhecimentos sobre ervas medicinais; porém, na era
medieval, elas eram vistas como uma ameaça para a classe médica, que as considerava como uma forte
concorrência, e pela igreja que passou a considerá-las como mulheres dominadas por instintos
inferiores.
Como o cristianismo defendia uma cultura, predominantemente, patriarcal, as mulheres eram
colocadas em segundo plano, e as bruxas eram tidas como objeto de pecado pelo diabo. Por esse
motivo, tornaram-se alvo do tribunal da santa inquisição sendo que a maioria das acusações era
referente a malefícios contra a vida, a propriedade, a saúde e pactos com o diabo. Acredita-se que a
matinta pereira também faz esse tipo de pacto. Nas narrativas ela pode aparecer de três formas,
segundo Josebel Akel Fares, dentre as quais a que nos interessa é a que se refere às feições diversas que
podem ser assumida pela Matinta pereira, dentre elas a da bruxa construída pelo imaginário medieval,
apesar de as matintas não possuírem vassouras, há algumas narrativas que as mostram fazendo práticas,
aparentemente demológicas como na seguinte passagem da contação intitulada A hóspede: ―lá no quintal
ela olhou, ela viu a velha, ela estava rolando com uma saia grandona, no corpo né? com um casacão,
rolando na terra, no meio daquelas folhas‖.
Ideia semelhante pode ser notada na seguinte passagem de O Martelo das Feiticeiras, escrito em
1484, pelos inquisidores Kramer e Sprenger – no qual aparece algo que eles interpretaram como sendo
a correlação entre bruxas e demônios:
As bruxas têm sido vistas muitas vezes deitadas de costas, nos campos e nos bosques,
nuas até o umbigo; e, pela disposição de seus órgãos próprios ao ato venéreo e ao
orgasmo, e também pela disposição das pernas e das coxas, é óbvio que estão a
copular com um Íncubo.
(SPRENGER e KRAMER, 1991, p. 240)
Em ambas as passagens, as mulheres encontram-se em um ambiente campestre em situações,
aparentemente, de transformação e cópula. Além disso, nota-se que o caráter misterioso dessas
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personagens femininas lhes confere o estigma de feiticeiras, propagadoras do pecado e dos males, um
pensamento de raiz medieval que permanece no imaginário amazônico.
Pode-se observar em todas as narrativas exemplificadas no presente trabalho o aparecimento do
fantástico permeando no imaginário do amazônida paraense por meio de histórias nas quais vêm à tona
elementos misteriosos, mágicos e, até mesmo, aterrorizantes repassados na sua feição oral de geração
em geração. Para Todovov (1979), o fantástico seria uma integração do leitor no mundo do
personagem, definida por sua identificação com o mesmo e por sua percepção ambígua dos
acontecimentos narrados. Percebe-se isso nas referidas narrativas.
Além dos temas de caráter fantástico, há também contações de caráter lírico-amoroso como
uma que foi coletada em Belém no bairro do Jurunas titulada: Juliana e Dom Jorge. Semelhante às cantigas
medievais, essa narrativa versa a respeito do colóquio amoroso entre um casal de primos – Juliana e
Dom Jorge – os quais se vêem impossibilitados de viver esse amor por conta de seu parentesco e por
Dom Jorge está comprometido com outra moça. Observam-se também referências à religiosidade
quando a jovem clama a Deus para contornar sua situação amorosa frustrada, mostrando, além disso,
valores enraizados como o não relacionamento amoroso entre parentes. Porém, diferente das cantigas
de amor, nas quais se observavam um eu lírico masculino se lamentando por se ver impossibilitado em
concretizar seu amor por uma dama que, geralmente, pertencia a uma camada social superior, vê-se
nessa narrativa uma moça vivendo tal impossibilidade, chegando ao ponto de cometer um crime
passional contra seu amado como se pode perceber na seguinte passagem: ―-Acabou-se, acabou-se,
acabou-se já deu fim/Meu D. Jorge subiu ao céu,/parece um anjo Serafim‖. Assim como as cantigas
medievais, a presente narrativa também pertence a uma tradição oral cantada e isso é perceptivelmente
enfatizado pelo informante nas palavras: ―e ela cantou...‖. Com isso, nota-se que em pleno século XXI
continuam sendo mostradas para as atuais gerações valores que atravessaram o tempo e o espaço e que
fazem parte da memória e da tradição do povo singular da Amazônia.
Além dessas primeiras constatações, foram descobertas outras correlações que junto com a
analogia entre a Matinta Pereira e a Bruxa acabaram servindo de base para um trabalho específico ao
nível de TCC. Tais conexões foram: uma analogia entre o Íncubo e o boto; e a cobra grande e o dragão.
Isso resultou em três vieses comparativos diferenciados que foram: a sexualidade, o simbólico-religioso
e as representações estigmatizadas da mulher.
Em relação à comparação entre o Íncubo e o Boto, observaram-se pontos de semelhança nas
atitudes de um boto em Óbidos e de um demônio da Idade Média chamado de íncubo. Percebem-se,
nessa comparação, indícios de memória que aludem a figuras masculinas que se aproveitam da
fragilidade feminina, dialogando, ao mesmo tempo com marcas tradicionais que apontam o pai, como
provedor ou chefe da família, uma espécie de juiz supremo que decide o que é o melhor para a sua
linhagem. Nesse sentido, vê-se, mesmo que de maneira não muito explícita, uma apologia ao modelo de
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família aceito segundo a lógica das sociedades patriarcais dentre as quais se destacam as que
vivenciaram a Idade Média.
Na análise feita entre a cobra grande e o dragão, pode-se perceber que essas duas figuras são
tradicionalmente descritas como símbolos do mal e geralmente estão em ambientes subterrâneos tanto
em uma narrativa medieval como em uma narrativa amazônica, sendo que em ambas foram dadas
explicações de cunho sobrenatural a fenômenos da natureza que podem ser interpretados como abalos
sísmicos. Pode-se considerar essa interpretação sobrenatural como uma marca memorial de
superstições, nas quais se atribui a seres míticos a causa para determinados fenômenos naturais. Outro
fator destacado nas análises são os valores que são representados tanto na estória medieval do dragão
como em uma das lendas da cobra Honorato adaptada por Morbach.
Nas duas estórias, observa-se a luta do bem contra o mal, sendo que ambas trazem a mensagem
idealizada de que quem é generoso, compassivo acaba vencendo os desafios que lhe são impostos por
ter a bondade no coração e aquele que escolhe a maldade acaba sofrendo as consequências pagando
com a própria vida para que seja restituída a paz aos habitantes da região na qual a estória se desenlaça.
Pode-se considerar a estória da cobra Norato como uma representação do pensamento patriarcal que
considera o homem como o centro das decisões e da dominação, pois se observa em narrativas, como
as de Abaetetuba, que Honorato podia fazer tudo o que queria como sair para lugares distantes, ficar
vários dias fora, enquanto que sua irmã deveria ficar esperando por ele. No momento em que a irmã de
Honorato desobedeceu a suas ordens acabou pagando com a própria vida.
Nota-se nessas três analogias, a marca viva do sincretismo cultural, em personagens da cultura
amazônica com atitudes e características muitas semelhantes aos personagens da cultura medieval,
porém com especificidades que denunciam a sua configuração amazônica como a Matinta Pereira,
denominada a ―Bruxa da Amazônia‖. Outras marcas memoriais são a existência de um ser ao qual,
moças solteiras atribuem a culpa de serem pais dos filhos que esperam, visto que a tradição assevera
que as mulheres não devem manter relações sexuais antes do casamento. Nesse sentido, pode-se dizer
que na Idade Média esse ser era o íncubo e para a nossa realidade amazônica, é o boto. Com isso,
percebe-se o quanto o pensamento cristão, que teve grande proeminência na Idade Média, continua
vivo, nas referidas regiões.
Considerando o fato de várias narrativas remontarem à figura da matinta pereira como uma
imagem estigmatizada de mulher, vê-se a importância do prosseguimento desse viés de pesquisa em
cunho strictu sensu, cujo foco é a investigação do tema da repressão impetrada pela sociedade patriarcal à
figura feminina representada pela Bruxa e pela Matinta perera como símbolos do poder misterioso da
mulher que um dia fora cultuada em sociedades matriarcais.
Diante do exposto, vale ressaltar que, para Simões, é―indispensável que se lembre da herança
recebida, pela narrativa escrita, das formas de produção oral da Grécia antiga e o do Norte da Europa‖
33
ressaltando-se que se trata de uma arte verbal, que, umas vezes, se revela na sua forma oral e outras, na
sua feição escrita. Sendo assim, essas produções oraisse apresentam também como um depoimento
vivo da presença do colonizador dentro do estado do Pará. Dessa forma, tendo-se um contato mais
aprofundado com as narrativas desse corpus é impossível não se notar ressonâncias medievais nas
―narrativas orais paraenses‖, como foi visto. Ressaltando-se que essas convergências não são
exatamente influências diretas desses povos, mas sim marcas memoriais que foram sendo passadas de
geração em geração e sobrevivem ainda hoje nas localidades pesquisadas.
REFERÊNCIAS
FARES, Josebel Akel. Imagens da Matinta Perera em Contexto Amazônico. Disponível em:
http://www2.uel.br/revistas/boitata/n%FAmero-3-2007/artigo%20Bel%20OK.pdf.
KRAMER, Heirich e SPRENGER, James.O Martelo das Bruxas. 5º ed. Rosa dos Tempos:
19--. [Título original : Malleus Maleficarum,1484 ]
PROPP, Vladimir Iakovlevich. Morfologia do conto maravilhoso. Rio de Janeiro: Forense - Universitária,
1984.
SIMÕES, Maria do Socorro. Memória lusitana e narrativas amazônicas. Disponível em:
http://www.geocities.com/ail_br/memorialusitanaenarrativas.html
SISTO, Celso. Contando a gente acredita In: SISTO, Celso. Textos e pretextos sobre a arte de
contar histórias (2ª ed. revista e ampliada). Curitiba, Positivo, 2005. p.19-24
TODOROV, Tzvetan. (1979). As estruturas narrativas. (tradução de Leyla Perrone-Moisés). São Paulo:
Editora Perspectiva. Série Debates.
TOMACHEVSKI, Boris. A vida dos procedimentos da trama. In: ____ et alii. Teoria da
Literatura, formalistas russos. Porto
34
Textos – Pôster – Estudos
Literários
35
POEMÁTICA: UMA ABERTURA DE HORIZONTES
Alana Oliveira de Sousa4
Lucélio Silva de Barros5
Nayana de Sousa Silva6
Edi Rodrigues7
Resumo: Este trabalho surgiu a partir de experiências vivenciadas no Projeto Poemática da Universidade
Federal do Maranhão, Campus São Bernardo, cujo objetivo é despertar o prazer pela literatura, através da leitura
do texto poético. Possibilitando aos alunos dessa instituição, contatos com textos variados, levando-os a
ultrapassar o significado literal dos textos e alcançar em maior profundidade sua significação artística e humana.
O direcionamento do nosso eixo metodológico: pesquisa bio e bibliográfica de autores, estilos, períodos, gêneros
e movimentos literários, sendo que o trabalho é concentrado em leituras de poesia, por entendermos que a
poesia – como diz Antônio Cândido (1984) – é síntese, e, como síntese, resume o que muitos autores diriam em
prosa, facilitando, assim, a leitura compacta, o que demanda leituras breves e rápidas, a um leitor pouco
familiarizado. O clímax de tal trabalho se estabelece em declamações de poesias, cujo alcance repercute nas
comunidades e escolas estaduais e municipais e ainda em oficinas realizadas em congressos e seminários
nacionais e internacionais.
Palavras-chave: literatura; arte; linguagem.
Abstract: This work arose from experiences in Poemática Project of the Federal University of Maranhão, São
Bernardo Campus, whose aim is to awaken the pleasure of literature, by reading the poetic text. Where the
students this institution gets contacts by different texts, leading them to overcome the literal meaning of the texts
and reach more deathly in its artistic significance and human. The direction methodological axis is: biography
and bibliography research of authors, styles, periods, genres and literary movements, and the work is
4Aluna
da Universidade Federal do Maranhão, graduanda do curso de Linguagens e Códigos, campus São Bernardo.
E-mail – [email protected]
5Aluno da Universidade Federal do Maranhão, graduando do curso de Linguagens e Códigos, campus São Bernardo.
E-mail - [email protected]
6Aluna da Universidade Federal do Maranhão, graduanda do curso de Linguagens e Códigos, campus São Bernardo.
E-mail – [email protected]
7Edi Rodrigues – pseudônimo de Edmilson Moreira Rodrigues Mestre em políticas públicas/UFMA, Especialista em
Comunicação e Mobilização Social /UnB, em Metodologia do Ensino Superior/UFMA e Perspectiva Crítica da Literatura
brasileira contemporânea /UEMA – professor da Universidade Federal do Maranhão, Campus São Bernardo, Curso de
Linguagens e Códigos, ex-professor do Estado e também do Município de São Luís, sua cidade-nação. Ex- votante dos
prêmios de Literatura infanto-juvenil da FNLIJ, membro do NUPETS (Núcleo de Pesquisa em Tecnologia Simbólica/
DELER/UFMA), Coordenador do Projeto POEMÀTICA. E-mail: [email protected]
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concentrated on poetry readings, because we know that poetry - as says Antonio Cândido (1984) - is synthesis
and, as a synthesis, summarizes what many authors would argue in prose, easing the reading compact, which
demands quick and short readings, a reader unfamiliar. The essence of this job is established in declamations of
poetry, whose range has repercussions on communities and state and municipal schools and even in workshops,
conferences and seminars nationally and internationally.
Keywords:art; literature; language.
Introdução
O Projeto Poemática nasceu da necessidade dos alunos, de Linguagens e Códigos, do campus São
Bernardo da Universidade Federal do Maranhão – UFMA, de dominarem a leitura, e mais restritamente, a leitura
do texto literário poético, pois sabemos da significação que a arte tem para a vida integral do homem, e que uma
de suas funções mais atuantes é alimentar a necessidade que todos temos de distração, de certa dose de sonhos,
de beleza, de fantasia e de imaginação.
E o texto poético é a expressão que melhor pode funcionar como modelo de texto elaborado,
destruído, reconstruído e edificado segundo os cânones temporais, sociais, e históricos. E também, por ser o
texto literário, poético, um exemplo de texto conciso, breve, fantasioso e criativo. O que desperta para o poder
de criação, e leitura, mais apuradas, à sociedade atual, que requer a leitura rápida e precisa, patinada mais na
imagem que na palavra. E a poesia apresenta os dois elementos em um só, o imagístico através da palavra e a
palavra como elemento imprescindível do imaginário.
Posto que a arte literária destina-se, acima de tudo, a fazer nos ver e dizer, como aduz Coelho (1987).
Visto que a linguagem é uma extensão de poder ver melhor o mundo. E no caso do texto literário, nos faz ver o
inusitado e reelaborar o visível e o invisível através da arte, e, mais especificamente, através da leitura do texto
poético, que por si só exige sensibilidade e conhecimentos acadêmicos, mas principalmente de mundo.
Conhecimento forjado na vida cotidiana, reelaborado e dimensionado na leitura e interpretação do texto poético.
Assim a literatura, além de ser um grande meio de prazer e distração, é um dos veículos que melhor nos
permite conhecer os homens, as coisas e a vida; e o que é mais importante, conhecermos melhor a nós mesmos.
Posto que, compreendemos que a literatura é a expressão verbal artística de uma experiência humana, e como tal,
se apresenta revestida de história, filosofia, sociologia e arte.
Todo projeto deve primar pelo resgate do cidadão, umedecido de tais conhecimentos, para que se sinta
participante e engajado nos projetos políticos, sociais e educativos. Tais projetos devem ser capazes de libertar o
ser social coisificado pelo lugar comum, e inseri-lo como ser pensante dessa sociedade, cada vez mais carentes de
homens reflexivos de sua condição social. E a leitura é o passaporte para tal universo, cujo itinerário paira, acima
de tudo, nas instituições de educação comprometidas com a formação de tal ser. Pois, como diz Véras (2007):
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Leitura é, portanto, a possibilidade própria que cada pessoa tem de dotar de sentidos e
de significados textos escritos, imagens, comportamentos, expressões, etc. Ler traduzse numa experiência única, em que exige o estabelecimento de uma relação de prazer,
implicando treino, esforço, capacitação, identificação, interesse e principalmente
cumulação.
Ou seja, a leitura é o melhor veículo para nos transportar para além de nossa realidade cotidiana, a
mesma pode nos levar mais adiante daquilo que a nossa razão espera. Enfim, além do que as nossas mãos podem
alcançar.
1. Projeto Poemática
O Projeto POEMÁTICA é uma atividade de extensão da Universidade Federal do Maranhão, Campus
São Bernardo, elaborado pelo professor Me. Edmilson Moreira Rodrigues. O objetivo do projeto é sensibilizar
os universitários sobre a leitura do texto poético; preparar a sensibilidade estética de apreciação da obra literária;
reconhecer para produzir as tipologias poéticas; amalgamar o sentimento da poesia; familiarizando, através da
leitura, o aluno com a estrutura poemática e o estilo de diferentes obras literárias, levando-o a ultrapassar o
significado literal dos textos e alcançar, em maior profundidade, sua significação artística e humana. Pois como
diz Kleiman e Moraes, (2003) a leitura é uma ―atividade cognitiva por excelência pelo fato de envolver todos os
processos mentais‖, ou seja, o ato de ler é uma apropriação natural do saber; é um meio pelo qual os seres sociais
se apropriam e interagem com o conhecimento social.
No projeto POEMÁTICA o trabalho é concentrado em leituras de poesia, por entendermos que a
poesia – como diz Antônio Cândido, (1984) – é síntese, e, como síntese, resume o que muitos autores diriam em
prosa, facilitando, assim, a leitura compacta, o que demanda leituras breves e rápidas, a um leitor pouco
familiarizado. O que possibilita conhecimentos mais rápidos e de maior reflexão, posto que ela, a poesia, se
completa com o conhecimento linguístico e extralinguístico do leitor. Assim, após a leitura, ele, o texto poético,
completar-se-á com debates, ilustrações, deduções, comentários e trocas de informações compartilhadas,
dedutivas e indutivas, com aqueles que têm maiores saberes e contatos prévios, de e sobre o texto poético e suas
tipologias.
O nosso veio metodológico se direciona para: pesquisa bio e bibliográfica de autores, estilos, períodos,
gêneros e movimentos literários. Pois como é de conhecimento de todos, a leitura de poesias exige leitores
assíduos e capacitados na teoria do texto poético, da teoria da literatura, da história e do universo da leitura,
posto que, ler é não só decodificar o que o autor escreveu, mas preencher as lacunas, com os conhecimentos
amplos provocados pelo texto poético, quer sejam eles clássicos ou modernos; e suas tipologias variando de
odes, canções, bucólicas, nênias ou quaisquer outras. E mais, a poesia, como todas as artes, está sujeita a certos
princípios que se podem reduzir, de modo geral, a três essenciais – a imitação, a expressão e a criação. E como a
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arte literária é arte de compor obras de espirito, seu fim é concretizar, em forma estética, ideias e pensamentos,
por meio da palavra escrita ou falada.
E em tal projeto, a imitação é realizada pelos alunos bolsistas voluntários que se capacitaram acerca da
teoria do texto poético e dos processos dramáticos que envolvem a recitação 8, o que culmina noutro campo de
trabalho, a expressão, a qual desperta o sentimento daqueles que leem a poesia a se expressar melhor, lançandoos ao universo do ser partícipe e ativo.
Culmina tudo isto, naquilo que pomos acima, a arte literária é arte de compor obras de espírito,
ficcionais ou não, a manifestação do texto escrito dos alunos, por exemplo. Mas é bom não olvidar que,
enquanto o filósofo lança mão do pensamento especulativo e o cientista se apoia na observação sobre os
fenômenos da natureza, o artista recorre à imaginação e à fantasia para compreender o mundo. Fictício não
significa falso, mas apenas historicamente inexistente. Logo, compreendemos que toda grande poesia é um ato
de perplexidade.
Oliveira (2001), nutre-se do espanto, centra-se no assombro – do espanto do homem diante dos enigmas
que o universo lhe propõe; no assombro ante as desarticulações do mundo nas quais ele é lançado: arremessado
nos avessos da vida. É esse espanto que aproxima literatura e filosofia, e o ato de perplexidade traça a mesma
direção à poesia e à arte; são as desarticulações que aproximam poesia e sociologia rumo ao desvelar de sentidos
do homem moderno: escravo da matéria anunciada; os avessos da vida estão prensados no fetiche do capital que
o transforma em homem outdoor ambulante, com sua máquina de produzir mais miséria que cultura. Posto isto,
podemos observar que a literatura, e aquilo que estudamos no projeto – a poesia – assume os sentimentos do
espanto, não adultera a vida, funda-a; não a obscurece, ilumina sua existência.
Mas para isso, é necessário um conhecimento aprofundado, para que a poesia não pareça bordada de
palavras, ou arte verbal sem com o historicamente constituído. Mas algo que aponta à criação e, como tal,
demanda conhecimentos teóricos, saberes compartilhados esteticamente.
Desse modo, o estudo da literatura exige da parte daquele que se lhe dedica certos dotes teóricos. Sem a
faculdade de apreender, como ilustra Kayser (1963), os problemas teóricos como tais, de compreender os
métodos científicos com os quais se alcançou a sua solução, e ainda sem a possibilidade de por si próprios os
aplicar na resolução de novas questões, fica para sempre vedado o acesso da ciência da literatura e
consequentemente da vida, posto que a literatura é expressão verbal artística de uma experiência humana. Pois
cabe ao literato revelar, subjetivamente, transfigurando em arte, o que os homens de cada época quiseram fazer
ou quiseram ser, enquanto que a história registra o que foram e fizeram, objetivamente.
Baseado em tais perspectivas, este projeto trabalha com os alunos da Universidade Federal do
Maranhão, campus São Bernardo, os elementos que compõem o texto literário, conhecendo suas particularidades
teóricas, suas tipologias, escolas literárias e principais movimentos históricos e sociais que o acolheram; para que
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A recitação é uma das principais atividades desenvolvida no projeto POEMÁTICA, uma vez que, os alunos bolsistas se
apropriam do texto poético e o memorizam para apresentações que ocorreram e ocorrem em eventos desenvolvidos na
própria UFMA, Campus São Bernardo ou em outros congressos nacionais e internacionais.
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ao depois, os alunos, possam observar de perto a linguagem poética, em todas as suas particularidades e
significações, quando pretendemos ler em profundidade. Mostrando ainda que, na fase da análise (COELHO,
1987), quebramos a beleza do texto, pois o retalhamos, o desmontamos; porém, no final, quando reajuntarmos
as partes e voltarmos a ter o todo, este se apresentará em toda a sua plenitude, significação e beleza.
2. Uma abertura de horizontes
Compreendemos o Projeto POEMÁTICA, como uma abertura de horizontes, por sermos testemunhas
participantes desse grande promovedor de conhecimento. Uma vez que, abrir horizontes é mostrar, ofertar
aquilo que para muitos pode estar distante ou, mais ainda, que pode às vezes ser considerado impossível de ser
alcançado.
No mundo literário, a abertura de horizonte ultrapassa os limites impostos pelas condições sociais do
mundo em que habitamos, sejam elas, econômicas, raciais, políticas ou entre outras. Pois na literatura, tudo
parece mais próximo ao nosso alcance, todo problema possui uma solução, tudo aquilo que sonhamos parece se
realizar, ou seja, no texto literário a imaginação é o que rege os acontecimentos e o conhecimento. No entanto,
tal conhecimento só é possível com a colaboração de um fator – que já citamos anteriormente – que
consideramos fundamental para a obtenção do saber, isto é, a leitura. Pois como diz Lajolo e Zilberman (1996, p.
14): ―Ser leitor, papel que, enquanto pessoa física, exercemos, é função social, para a qual se canalizam ações
individuais, esforços coletivos e necessidades econômicas‖. Ou seja, ler não é apenas uma apropriação de
conhecimento, mas também, uma necessidade social.
Ao nos referirmos sobre leitura, podemos afirmar que desde a nossa entrada nesse projeto de extensão,
os nossos conhecimentos se multiplicaram e se expandiram para além de um saber superficial. Pois através do
mesmo, tivemos contato, a partir da leitura, com autores e textos variados, sendo estes na sua grande maioria,
poéticos.
Referimo-nos a expansão de nosso conhecimento como algo além de um saber superficial, por
aprendermos através das leituras dos textos poéticos, que a reflexão e compreensão de certos conteúdos não se
apresentam de forma simples e visível num primeiro contato. Pois o verdadeiro sentido de algumas mensagens
pode está contido nos seus interstícios, nas suas lacunas e na maioria das vezes só pode ser compreendido a
partir de nossa bagagem, isto é, a partir de nosso conhecimento de mundo e consequentemente, de nossas
leituras.
Enfim, aqui intitulamos o Projeto POEMÁTICA como uma abertura de horizontes porque o mesmo nos
possibilitou a oportunidade de conhecer, compreender, refletir e interagir com o novo, ou seja, com o
conhecimento. Esse projeto nos estimulou, entre algumas beneficências, a sensibilidade e o gosto pela leitura.
Aprendemos a gostar do ato de ler por percebermos através dos textos poéticos que a leitura tem suas inúmeras
possibilidades de compreensão, logo, a mesma depende da sensibilidade de cada leitor.
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Considerações finais
Aqui buscamos mostrar um pouco do trabalho desenvolvido no Projeto POEMÁTICA, ainda que, de
modo superficial. Procuramos salientar a importância desse projeto para os seus participantes, por
compreendermos que as atividades desenvolvidas no mesmo foram e são de grande valor para o
desencadeamento do gosto literário, uma vez que, a leitura do texto poético culmina grande parte das ações que
nele são cultivadas.
Logo, voltamos mais uma vez para a importância da leitura enquanto instrumento prático para a
obtenção do conhecimento, uma vez que, ao tratarmos do saber, nos referimos a tudo aquilo que abastece de
novidades o intelecto de qualquer homem de nossa sociedade. Todavia, para tal abastecimento é necessário algo
a mais, isto é, outro componente pertencente às atividades aperfeiçoadas nesse projeto de extensão – a
sensibilidade.
Ser sensível, pois, é está aberto ás novidades, é perceber os fatos além do que os nossos olhos podem
enxergar, é está disposto a encarar a realidade com certa desconfiança, ou seja, tendo a curiosidade de uma
criança, pois toda criança procura investigar os fatos através dos seus porquês e não aceita as coisas apenas como
elas são.
Voltando ao Projeto POEMÁTICA, a sensibilidade é um componente que é desenvolvido
especialmente para a obtenção da capacidade de percebermos aquilo que os poemas realmente querem
transmitir, pois a partir da leitura, procuramos repassar através de outra vertente do projeto, isto é, a
memorização e, consequentemente, a recitação, toda a emoção e encantamento do conteúdo poético.
Enfim, participar do Projeto POEMÁTICA é está diretamente aguçado pelo gosto da leitura,
principalmente, a poética; é conviver diariamente com a poesia; e de modo especial é está aberto e sensível ao
conhecimento, pois para obtermos o saber é necessário que estejamos abertos para refletirmos, compreendermos
e nos interagirmos com o novo.
Referências Bibliográficas
BOSI, Alfredo. O ser e o tempo da poesia. 6ª ed. São Paulo : Companhia das Letras, 2000.
BOURDIEU, Pierre, Práticas da leitura. São Paulo: Estação Liberdade, 1996.
CÂNDIDO, Antônio. Análise e interpretação de poesia. São Paulo: Edusp, 1984.
COELHO, Nelly Novaes. Ensino de literatura. São Paulo: Quirion, 1987.
41
KLEIMAN Ângela e MORAES, Silvia E. Leitura e interdisciplinaridade: Tecendo redes nos projetos da escola. São Paulo :
Mercado das Letras, 2003.
KAYSER, Wolfgan. Fundamentos da análise literária. México : Fondo de cultura, 1963.
LAJOLO, Marisa; ZILBERMAN, Regina. A formação da leitura no Brasil. ed. 58. São Paulo : Editora Ática, 1996.
372 p.
PEDROSA, Célia (org.) et al. Mais poesia hoje. Rio de Janeiro : Viveiros de Castro, 2000.
SARTRE, Jean-Paul. Que é a literatura? São Paulo : Ática, 1989
VÉRAS, Ana Flávia Teixeira et al. O papel da poesia na formação de leitores. In: Anais do 16º Congresso
de
Leitura
do
Brasil.
Campinas:
Unicamp,
2007.
Disponível
em:
<http://www.alb.com.br/anais16/sem08pdf/sm08ss0103.pdf> Acessado em: 16/01/2013
42
CONHECER A SI MESMO ATRAVÉS DA MEMÓRIA: O RELATO DE UMA
EXPERIÊNCIA
Amanda Gazola Tartuci9
Profª. Drª Dylia Lysardo-Dias (Orientadora)10
Resumo: O presente trabalho apresenta um relato de experiências no qual se analisa uma oficina ministrada para
alunos do sétimo ano de uma escola estadual de uma cidade do interior de Minas Gerais no âmbito do
subprojeto Letras do Programa Institucional de Bolsa de Iniciação à Docência, PIBID, da UFSJ. A oficina teve
como tema a ―Memória‖ e objetivou fazer com que os alunos refletissem, através de suas próprias histórias,
sobre a memória como chave importante para o sujeito se conhecer e de se reconhecer como parte de um grupo.
Muitas vezes, os alunos usaram a voz do outro para ―construírem‖ sua própria memória. A oficina baseou-se na
importância do processo de interação social e no entendimento dos quadros sociais que compõem a memória e
utilizou a construção oral e escrita de narrativas. O ponto de partida do trabalho foi a escolha e a descrição de
um objeto significativo pessoal, a partir do qual cada um contou a sua história e depois registrou-a por escrito.
Percebemos aqui que a memória individual está intrinsecamente ligada à coletiva: é a relação do eu e do outro.
Ao se conhecerem, os alunos se reconhecem como parte de um grupo, de uma coletividade, e, principalmente na
idade em que estão, o grupo ajuda-os na construção da identidade social atuando como elemento de coesão.
Palavras-chave: Memória; Produção textual; Identidade.
Abstract:The present work is an account of experiences: it presents and analyzes a class held for the seventh
year (sixth grade) of a public school in the countryside of Minas Gerais, in the subproject entitled Language from
Institutional Scholarship Program Initiation to Teaching, PIBID/ UFSJ. The class had as its theme "Memory"
aimed to make students reflect, through their own stories, how memory is an important key promoting self
knowledge and recognition about themselves as part of a group. Often, students used a third party voice to
"build" their own memory. The class was based on the importance of the process in social interaction and in
understanding the social frameworks that make up the memory used and the construction of oral and written
narratives. The starting point for the study was to choose and describe an object that was personal, from which
each told their story. This story was listened by all of the students and registered. Here we see that individual
memory is inextricably linked to the collective: the relationship of self and other. When knowing themselves,
students recognize each other as a part of a group, and thus, construct their own identity in speeches socially
imposed by other individuals. When they meet, students recognize themselves as part of a group, a community,
and especially in the age that they are, the group helps them in the construction of social identity acting as a
cohesive element.
Keywords: Memory; Text production; Identity.
Introdução
Narrativas fazem parte do nosso cotidiano, é através delas que compartilhamos histórias,
experiências e conhecimento. Elas são tão arraigadas ao nosso modo de viver que ―são nessas
Graduanda em Letras na Universidade Federal de São João del – Rei. Bolsista CAPES. E-mail: [email protected]
Professora do Programa de Pós Graduação em Letras da Universidade Federal de São João del – Rei. E-mail:
[email protected]
9
10
43
narrativas que as identidades sociais são projetadas‖ (Hoffnagel, 2010, p.63), o que aponta para a
importância e a funcionalidade das narrativas, sobre quando se trata de uma narrativa na qual os
sujeitos retomam sua própria história.
O projeto que desenvolvemos com esses alunos faz parte do PIBID/UFSJ, subprojeto Letras.
Nossa ênfase na atuação escolar priorizou a leitura e produção de texto, na tentativa de dar um suporte
à escola, que encontra inúmeros desafios no que se refere às práticas de letramento. No intuito de
alcançarmos esse objetivo, escolhemos o tema ―memória‖ para desenvolvermos com os alunos em seis
oficinas ministradas em duplas pelos bolsistas11, tema relacionado a um projeto maior sobre biografias.
Nesse artigo, vamos apresentar uma oficina trabalhada no sétimo ano e elaborada por mim e
por outro bolsista que articulou narrativa oral, memória e produção escrita, sem perder de vista a
questão da identidade. As atividades propostas contemplaram a expressão oral, aspecto pouco
trabalhado em sala de aula, dando voz aos alunos nas suas vivências de sujeito.
O objetivo do presente artigo é mostrar a importância dos alunos contarem suas histórias,
elaborando narrativas orais e escritas, tendo em vista que ―as identidades são forjadas dentro do
discurso, mais especificamente dentro de práticas discursivas social e institucionalmente situadas‖
(GOMES, 2011, p.289).
Na primeira seção deste trabalho, apresentamos alguns aspectos da linguagem com base nas
formulações de Vygotsky (1998) e Bakhtin (1992) e sua relação com os quadros sociais que compõem a
memória, baseando-nos nos estudos de Halbwachs (2006). Compreendemos ainda, a partir de Bakhtin
(1992), que é na interação pela linguagem que o ―eu‖ e o ―outro‖ se instituem, já que o sujeito toma
consciência do ―eu‖ a partir do momento em que interage com o ―outro‖. Todas essas formulações
podem contribuir para nossa prática pedagógica tendo em vista a instrumentalidade didática de
atividades que abordem a memória.
Referencial Teórico
A análise das formulações de Vygotsky (1998) e Bakhtin (1992) em relação ao processo de interação
social permite-nos entender que, para eles, o sentido das coisas é dado ao homem pela linguagem. O
sujeito e o outro estão sempre presentes na linguagem e na interação, para Bakhtin ―a enunciação é o
produto da interação de dois indivíduos socialmente organizados‖ (BAKHTIN, 1992 apud
RADAELLI, 2011, p.8). Vygotsky defende, desenvolvendo sua teoria da aprendizagem, que o homem
constitui-se e desenvolve-se como sujeito através de suas relações sociais e da linguagem, o homem
visto como um ser histórico. O aluno passa a ser visto então, como sujeito do ato educativo em
11
As oficinas aqui analisadas são de minha autoria juntamente com meu colega de trabalho Márcio Rodrigues, a quem eu
agradeço por ter cedido seus direitos autorais.
44
interação com o objeto, que é a linguagem. Essas abordagens contemplam a natureza social à linguagem
e à educação como prática social e se constitui como forma concreta da relação entre classes.
Na perspectiva da internalização de Vygotsky, que demonstra o trajeto social para o individual,
mediado pelo signo e pelo outro: ―a linguagem e a consciência deixam de serem vistas como faculdades
naturais humanas, para se constituírem em produtos de ação coletiva dos homens, desenvolvidos ao
longo da história‖ (RADAELLI, 2011, p.2). Todavia, as ideias de Vygotsky, propondo a intervenção
do professor para possibilitar o aprendizado, não podem ser entendidas como um processo
direcionador e autoritário. A questão refere-se à interação como forma de participação dialógica na qual
todos os sujeitos têm direito à voz e são efetivamente ouvidos. .Nesse sentido, Garcez afirma que ―o
papel do professor ultrapassa o de suporte ou andaime estático, pois tem um caráter mobilizador,
encorajador, impulsionador e construtor muito claro‖ (1998, p.39). Dessa forma, ainda de acordo com
Garcez, professores de produção textual devem policiar suas ações pedagógicas para não:
a)
b)
c)
d)
e)
f)
g)
―falar mais que o aluno;
tentar direcionar o redator para o que interessa apenas ao professor;
tentar interessá-lo por assuntos moralmente aceitos;
ignorar o que há no papel;
ignorar as razões originais do redator para a redação;
tentar ensinar habilidades que estão longe demais do alcance do aluno;
propor sua própria linguagem ao redator (frases, palavras, expressões,
exemplos);
h) perguntar coisas que já sabe e que o redator ainda não pode responder‖.
(GARCEZ, 1998, p.39)
A prática, portanto, é orientada pelo professor, mas o aluno deve trabalhar ativamente, atuando em um
processo de co-construção. A presença de mediadores como a fala, a oralidade e a comunicação é muito
importante e Vygotsky (1998) defende que a intervenção deve ser de forma deliberada e organizada, pois a
relação do homem com o mundo não é uma relação direta e sim uma relação mediada.
Ainda com ênfase na ação interativa na linguagem, Bakhtin (1992) considera que:
A verdadeira substância da língua não é construída por um sistema abstrato de formas
linguísticas nem pela enunciação monológica isolada, nem pelo ato psicofisiológico de
sua produção, mas pelo fenômeno social da interação verbal, realizada através da
enunciação ou das enunciações. A interação verbal constitui assim a realidade
fundamental da língua. (BAKHTIN, 1992, p.123).
Para Vygotsky (1998) e Bakhtin (1992), o desenvolvimento das funções mentais superiores dá-se em dois
momentos: o primeiro, social, e o segundo, individual (internalização para Vygotsky e monologização da
consciência para Bakhtin). Entretanto, nesses dois momentos, utilizamos os recursos de mediação, que são a
experiência sociocultural e o signo. O discurso interno de uma criança, portanto, e, mais tarde, o pensamento,
desenvolvem-se pelos instrumentos linguísticos do pensamento e pela experiência sociocultural da criança.
45
Entramos então na relação da memória com a sóciointeração da linguagem. A concepção de memória
aqui adotada se trata de uma constituição no presente daquilo que vivemos e/ou experenciamos no passado. Os
estudos de Halbwachs (2006) contribuíram para o entendimento dos quadros sociais que compõem a memória,
para ele o indivíduo carrega em si a lembrança, mas está sempre interagindo com a sociedade, ou seja, a
lembrança aparentemente mais particular remete a um grupo. A memória é entendida, pelo autor, como um
trabalho de reconhecimento e reconstrução que atualiza os ―quadros sociais‖ nos quais as lembranças podem
permanecer e, então, articular-se entre si. Portanto, as memórias individuais são sempre construídas a partir de
sua relação de pertencimento a um grupo.
O sociólogo Pollak (1992, p.5) diz que se a memória é um fenômeno construído social e
individualmente: ―podemos também dizer que há uma ligação fenomenológica muito estreita entre a memória e
o sentimento de identidade‖. Veremos na análise das oficinas como acontece essa ligação entre memória e
identidade nos alunos do sétimo ano da escola em que trabalhamos.
A oficina
Os alunos do sétimo ano têm entre doze e treze anos e estão entrando na adolescência, fase da vida em
que a relação com o grupo e sua relação de pertencimento é supervalorizada. As oficinas de produção de texto
com o tema memória, de início, não despertou muito interesse nos alunos. Essa resistência inicial foi diminuindo
à medida que a atividade se desenrolava.
Sendo a narrativa um fato cotidiano, como já dito, as estórias que contamos sobre nossas próprias vidas
e sobre a vida de outras pessoas são uma forma de texto no qual construímos, interpretamos e compartilhamos
experiências. Todos os alunos, nas oficinas, tiveram histórias para contar e eles as compartilhavam com prazer,
alguns tímidos no início, mas outros que tinham uma necessidade extrema em se expressarem não houve espaço
para timidez. Dessa forma, as identidades sociais dos alunos são construídas através de sua própria memória.
A oficina foi assim proposta:
Oficina“Conhecendo a si mesmo através da memória”
Público alvo: Alunos do sétimo ano do Ensino Fundamental.
Duração: 50 minutos.
Objetivo: Refletir com os alunos, através de suas próprias histórias
como a memória é chave importante para o indivíduo se conhecer e se
reconhecer como parte de um grupo.
Descrição das atividades:
Professor – contar a história de um objeto significativo para ele.
Com o modelo do professor, abrir para todos os alunos contarem a sua
história.
46
Essa oficina foi elaborada pensando na importância da elaboração oral de narrativas pelos alunos e foi
através de um objeto significativo pessoal que eles contaram suas histórias. Nessa oficina eu e meu colega de
projeto também participamos: cada um tinha que levar um objeto pessoal, sobre o qual faria uma narrativa.
Consideramos que a nossa memória precisa de, muitas vezes, algumas referências para construir lembranças.
Shmidt (1993, p.288) explicando Halbwachs disse: ―Para Halbwachs o indivíduo que lembra é sempre um
indivíduo inserido e habitado por grupos de referência; a memória é sempre construída em grupo, mas é
também, sempre, um trabalho do sujeito‖.
Para contarmos nossas histórias, tivemos que pesquisar em nossas casas e até mesmo em nossas
lembranças algum objeto de importância em nossa infância, que nos remetessem a momentos significativos.
Alguns de nós levamos objetos como agenda, violão, boneca, ou seja, objetos que tiveram uma utilidade num
determinado período de nossas vidas e os demais, a maioria, levaram objetos como fotos e roupas do batizado,
fotos do aniversário de um ano, enfim, coisas que remetem à aos primeiros anos de vida, sem que
necessariamente eles se lembrassem delas.
No início da oficina, o outro bolsista contou a história do objeto que escolheu para levar demonstrando
para os alunos que eles deveriam elaborar uma pequena narrativa oral que constasse o porquê daquele objeto ter
sido escolhido e a história do mesmo. Assim, os alunos foram um a um para a frente da sala, fizeram sua
pequena narrativa oral e mostraram para os colegas o objeto de escolha. Eles participaram de forma interativa
uns com os outros e conosco também, mudando a reação negativa que eles tiveram a respeito do tema proposto
no início do projeto. Encerrei o momento de narração com a história do meu objeto e depois conversamos com
os alunos sobre o que as histórias tinham em comum e se eles achavam que elas eram importantes para a
formação deles como sujeitos.
Os alunos, então, perceberam que todos falaram, em alguma parte da história, sobre o círculo social que
os rodeia. Alguns chegaram a afirmar que não precisavam de ninguém, mas, posteriormente, pelos argumentos
dos próprios colegas, concluíram que o outro é necessário na construção de sua identidade e memória. A
afetividade a uma comunidade, para Halbwachs (2006), dá consistência às lembranças, pois elas são sempre o
produto de um processo coletivo, sendo que nenhuma lembrança dos alunos, principalmente da infância, foi sem
a presença do outro. Entendemos que os alunos perceberam que o que era significativo era a lembrança da qual
nem eles mesmos lembravam, mas uma lembrança que eles construíram através do depoimento de seus
familiares e amigos.
As narrativas foram produzidas oralmente e em seguida escritas pelos alunos. O importante foi que os
alunos se expuseram e essas narrativas são parte de um processo de construção de suas identidades, sendo
sujeitos ativos em interação com a linguagem.
Hoffnagel (2010) diz que identidade é a realização interacional, negociada e alcançada por membros de
uma interação no curso de eventos comuns, como traços constitutivos de seus encontros sociais. Por isso
consideramos as oficinas enriquecedoras para os alunos, porque, além de produzirem textos orais e escritos,
puderam, através delas, refletir sobre suas identidades.
47
É indiscutível a importância da produção textual escrita e oral para a formação educacional dos alunos,
entretanto, é necessário conduzir o aluno à ―transposição‖ do oral para o escrito, sem traumas e respeitando o
ritmo de aprendizagem de cada um. Também se faz necessário que eles sejam capazes de realizar uma leitura
hábil de seu contexto e da diversidade que o compõe, logo, irão não só compreender o passado, como também
poderão estabelecer relações entre o futuro e o presente. As produções dos alunos nos fizeram compreender que
a importância destes reavivarem o passado para compreender o presente e/ou também o futuro, faz com que
eles se reconheçam como sujeitos ativos e transformadores de seu próprio meio, pois a memória coletiva dá a
eles um sentimento de pertencimento. Dessa forma, eles irão se importar mais com a realidade que os cerca, com
a comunidade, com a escola e com sua formação e serão impulsionados a agir como cidadãos conscientes de seus
deveres e direitos.
Considerações finais:
No presente artigo apontamos para o aspecto sóciointeracionista da linguagem e da memória na
produção textual com alunos do ensino fundamental. Como Bakhtin (1992) ressalta a importância da
interação verbal no ato educativo, da interação com o ―outro‖, buscamos explorar essa interação
durante todo o trabalho. Além da importância da interação verbal, ressaltamos aqui a produção escrita
dos alunos, pois tentamos fazer essa transposição do oral para o escrito de forma a contribuir para o
letramento dos alunos. Sobre isso, Garcez (1998) relata que:
A pesquisa científica sobre a escrita tem evoluído de uma visão centrada no produto
para o enfoque dos processos individuais do sujeito cognitivo que produz o texto e,
mais recentemente, para o caráter interativo da produção de texto, ou seja, para os
modos de participação do outro nessa produção. (GARCEZ, 1998, p.23)
Entendemos que a oficina foi proveitosa para os alunos porque, mesmo que no início eles não
aprovassem o tema, posteriormente eles demonstraram prazer em compartilhar suas narrativas orais e o
texto escrito foi feito sem dificuldades e sem nenhum tipo de resistência.
Também ressaltamos aqui a importância da memória para os alunos refletirem sobre a língua,
construírem sua identidade, conhecerem e reconhecerem a própria história e de se situarem como
sujeitos na sociedade em que vivem. A linguagem é um dos elementos mais importantes que afirmam o
caráter social da memória, pois as trocas entre os membros de um grupo se fazem por meio da
linguagem e narrar e lembrar fazem parte desta.
Sendo assim, as oficinas podem ser de grande valia para alunos da educação básica e para
professores também, pois poderão repensar suas práticas, através da memória, e, consequentemente,
seu fazer pedagógico. A interação oral proporcionará uma reflexão pela própria língua e fará parte da
produção escrita, sendo essa entendida como um processo e não apenas como produto final. Por fim,
as práticas pedagógicas devem ser constantemente reavaliadas, pois a memória permite esse olhar de
48
reconstrução e de reavaliação do trabalho realizado, para que as práticas não se tornem obsoletas e
apenas cumpridoras de metas.
REFERÊNCIAS:
BAKHTIN, M (V.N. Volochinov) Marxismo e filosofia da linguagem. Tradução de Michel Lauch e Iara
Frateschi Vieira. 6.ed. São Paulo: Editora Huritec 1992.
CARINO, Jonaedson. A biografia e sua instrumentalidade educativa. Educação e Sociedade, Ano XX, Campinas,
SP: Cedes, 1999.
GARCEZ, Lucília Helena do C. A escrita e o outro: Os modos de participação na construção do texto. 1ª Ed.
Brasília: Universidade de Brasília, 1998.
HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva / Maurice Halbwachs ; tradução de Beatriz Sidou. – São Paulo:
Centauro, 2006.
HOFFNAGEL, Judith C. A narrativa como lugar da expressão de identidade social. In: TEMAS EM
ANTROPOLOGIA E LINGUÍSTICA. Recife: Edições Bagaço, 2010.
GOMES, M.C.A., CATALDI, C., MELO, M.S.S. (Orgs.). Estudos discursivos em foco: páraticas de pesquisa sob
múltiplos olhares. Viçosa, MG: Ed. UFV, 2011.
RADAELLI, Maria Eunice. Contribuições de Vygotsky e Bakhtin para a linguagem: Interação no processo de
alfabetização.Thêma et Scientia – Vol. 1, nº1, jan/jun 2011.
49
A PSEUDO-RELIGIOSIDADE NA OBRA MEMORIAL DO CONVENTO
Ana Cláudia Medeiros da Silva12
Francinara Silva Ferreira13
Zair Henrique Santos14
Resumo: A obra Memorial do Convento, de José Saramago, publicada em 1982, em Portugal, tem como tema
central a construção do Convento de Mafra, erguido por causa de uma promessa feita pelo rei D. João V ao
bispo D. Nuno da Cunha, para que a rainha D. Maria Ana Josefa engravidasse, dando assim um herdeiro à coroa
portuguesa. Entre narrativas históricas o autor entrelaça a ficção, essa combinação dá vida a personagens de
magia e fantasia, tem-se como exemplo as personagens Baltazar e Blimunda, que surgem como linha condutora
da obra. No romance há a coexistência de vários conflitos que se cruzam e por meio do texto manifestam e
revelam a realidade e os problemas do ser humano. José Saramago ao retratar a vida incoerente da sociedade
portuguesa no século XVIII, enfatiza a questão da suposta ―religiosidade‖ na narrativa, fortalecendo assim a
crítica à religião. Deste modo, objetivamos verificar e analisar a pseudo-religiosidade na obra, por meio de críticas
feitas pelo autor a atitudes da sociedade. A coleta de dados deu-se através da leitura e transcrição de fragmentos
da obra Memorial do Convento que serviram de corpus para a análise. No decorrer da narrativa percebe-se a falsa
benevolência a Deus, manifestada pelas atitudes da sociedade. Ao final da análise, nota-se que predomina na obra
a falsa religiosidade, visto que há um mascaramento de atitudes contrárias a religião.
Palavras-chave: José Saramago; Memorial do Convento; Pseudo-Religiosidade.
Abstract: The work Memorial do Convent, by José Saramago, published in 1982, in Portugal, is focused on the
construction of Mafra Convent, built because of a promise made by King To Bishop John V Nuno da Cunha,
for the Queen Maria Ana Josefa got pregnant, thus giving an heir to the Portuguese crown. Among the author
interweaves historical narrative fiction, this combination gives life to characters of magic and fantasy, has the
characters such as Balthazar and Blimunda, arising as conductive line of work. In the novel there is the
coexistence of several conflicts that cross through text and manifest and reveal the reality and the problems of
the human being. José Saramago portraying the life of incoherent Portuguese society in the eighteenth century
emphasizes the issue of alleged "religion" in the narrative, thereby strengthening the criticism of religion. Thus,
we aimed to verify and analyze the pseudo-religiosity in the work through criticism by the author attitudes of
society. Data collection took place through reading and transcribing fragments Memorial do Convent work that
served as the corpus for analysis. Throughout the narrative perceives the false benevolence of God, manifested
by the attitudes of society. After the analysis, we note that predominates in the work false religiosity, since there
is a masking attitudes contrary to religion.
Keywords: José Saramago; Memorial of the Convent; Pseudo-Religiosity.
Acadêmica do Curso de Licenciatura Plena em Letras com habilitação em Língua Portuguesa da Universidade Federal do
Oeste do Pará. Bolsista do Projeto PIBID - CAPES. E-mail: [email protected]
13 Licenciada em Letras com Habilitação em Língua Portuguesa pela Universidade Federal do Pará – UFPA. Pesquisadora
do Grupo de Estudos Linguísticos do Oeste do Pará – GELOPA. E-mail: [email protected]
14 Mestre em Letras pela Universidade Federal do Pará. Professor Titular da Universidade Federal do Oeste do Pará. E-mail:
[email protected]
12
50
1. Introdução
José Saramago é um escritor português que apresenta em suas obras características peculiares, desde a
escrita passando pela magnífica sabedoria em misturar o real e imaginário. Em suas obras, ele busca fazer uma
junção de personagens que historicamente existiram com personagens surgidos do seu imaginário e passados ao
papel. Assim, expõe não apenas uma reconstituição de acontecimentos históricos, mas entrelaça às narrativas - a
ficção, além disso, consegue usar símbolos que trazem consigo uma grande carga de críticas. Por esse motivo
suas obras apresentam uma gama de mensagens e personagens utilizadas com a intenção de fazer alguma crítica
aos fatos, que na sua visão, merecem destaque.
Por conseguinte, a obra ―Memorial do Convento‖, publicada em 1982, tem como tema central a
construção do Convento de Mafra, porém há outras narrativas encaixadas que revelam conflitos do ser humano
em um mundo rodeado de corrupção e desarmonia. Caracteriza-se como uma obra Pós-moderna, porque
destaca um confronto entre o ser humano e a ―verdade absoluta‖ ligada à existência. O romance pós-moderno,
apresenta características marcantes com fortes críticas a grupos sociais. Nele nota-se forte crítica a religião.
É característica de Saramago a antirreligiosidade, por isso em algumas de suas obras tece críticas à
religião, tida pelo clero como ―verdade absoluta‖. No decorrer da narrativa as críticas são reiteradas em atitudes
de personagens como o rei D. João V, D. Maria Ana, o próprio Clero, o povo, entre outros. O autor reveste com
total clareza a sua aversão a igreja, pois age de maneira enfática ao debater sobre a inquisição e a corrupção do
clero. Acentua questões que afrontam os dogmas da igreja, como o caso de adultério do rei. Todos esses fatores
refletem a dessacralização da imagem de Deus na obra.
O presente trabalho abordará tais questões com o intuito de fomentar uma visão mais ampla sobre a
religiosidade dissimulada das personagens reais e ficcionais, adotadas pelo brilhante escritor português José
Saramago.
2. Contextualizando - Autor e Obra
51
Disponível em: <http://www.josesaramago.org>
José Saramago
1922-2010
"Mas não subiu para as estrelas,
se à terra pertencia"
Memorial do Convento
José Saramago repousará no Campo das Cebolas, após remodelação no local, em
frente à Casa dos Bicos, sede da Fundação José Saramago, à sombra de uma oliveira
centenária que será transplantada da sua aldeia natal, Azinhaga, para Lisboa. A frase
do "Memorial do Convento" estará inscrita em pedra de Pero Pinheiro. Um banco de
jardim possibilitará que os seus amigos leiam fragmentos da sua obra ou observem a
paisagem que o Escritor teria da sua janela.
José Saramago está em Lisboa, nos seus livros, mas, sobretudo, nos nossos corações.
A Fundação
A presença de José Saramago é sempre marcante por proporcionar ao leitor temas de política e religião
que trazem grande interesse, vê-se ao ser ler suas obras sua importância para a literatura, pois ao mesmo tempo
em que a enriquece, possibilita a reflexão ao abordar temas ligados à realidade do ser humano. Esse escritor
português de reputação exemplar nasceu na vila de Azinhaga no concelho da Golegã, em 16 de dezembro de
1932, no seio de uma família de trabalhadores rurais. Veio para Lisboa muito novo, onde fez o curso secundário.
Foi diretor literário numa editora, colaborou na revista Seara Nova, no vespertino Diário de Lisboa e foi diretoradjunto do matutino Diário de Noticias (de Abril a Novembro de 1975).
A partir de 1976, Saramago dedicou-se completamente à literatura. Algumas de suas obras são: Terra do
Pecado (1947); O Ano da Morte de Ricardo Reis (1984); Memorial do Convento (1982); A Jangada de Pedra (1986); História
do Cerco de Lisboa (1989); e O Evangelho Segundo Jesus Cristo (1991). Trouxe a tona temas polêmicos como no livro O
Evangelho Segundo Jesus Cristo (1991), que o levou a ser expulso de Portugal, por ferir a igreja com suas críticas. Os
52
seus romances têm sido publicados no Brasil, Espanha, Itália, Alemanha, Rússia, França, etc. Principais prêmios
recebidos: Levantado do Chão (1980), Prêmio Cidade de Lisboa; Memorial do Convento (1982), Prêmio Literário Município de
Lisboa; Ano da Morte de Ricardo Reis (1984), Prêmio Pen Club Português, Prêmio Nobel de Literatura (1998). É casado
desde 1988 com a jornalista Pilar del Rio, vivendo com ela na ilha de Lanzarote, nas Canárias.
Saramago faleceu no dia 18 de Junho de 2010, aos 87 anos de idade, na sua casa em Lanzarote onde
residia com a mulher Pilar del Rio, vítima de leucemia crônica. O escritor estava doente há algum tempo e o seu
estado de saúde agravou-se na sua última semana de vida.
O seu funeral teve Honras de Estado, tendo o seu corpo sido cremado em Lisboa, a marca que ficará na
mente e coração do Povo Português será o legado que José Saramago deixará e isso compete à história decidir.
Na obra Memorial do Convento que será análisada a seguir, Saramago demonstra sua grandiosidade, em
preocupar-se com o povo português. Estabelece-se uma sinopse da obra como prévia a análise.
Convento de Mafra
Disponível em: <http://commons.wikimedia.org/wiki/File:Passarola.png>
Era uma vez um rei que fez promessa de levantar um convento de Mafra. Era uma vez a gente que construiu
esse convento. Era uma vez um soldado maneta e uma mulher que tinha poderes. Era uma vez um padre que
queria voar e morreu doido. Era uma vez.
— Memorial do Convento, José Saramago.
O romance foi publicado em 1982, a ação decorre no início do século XVIII, durante o
reinado de D. João V e da Inquisição. Este reiabsolutista possui uma enorme quantidade de ouro e de
diamantes vindos do Brasil e mandou construir o Convento de Mafra, em resultado de uma promessa
que fez para garantir a sucessão do trono.
O romance está dividido em 25 capítulos não denominados, sem numeração alguma também,
estabelecendo-se como divisão apenas os espaços em branco entre os textos que compõem a obra.
53
Através da íntima relação entre a narração ficcional e a histórica, o romance critica a exploração dos
pobres pelos ricos – e a corrupção pertencente à natureza humana - com ênfase à corrupção religiosa. Revela
igualmente o tema do solitário que luta contra a autoridade, recorrente nas obras de Saramago.
Deste modo, ver e não ver são as chaves simbólicas do romance, Baltasar tem a alcunha de Sete-Sóis,
porque apenas consegue ver à luz, enquanto que Blimunda é chamada por Sete-Luas, porque consegue ver no
escuro, com o recurso do seu dom. Os dois conhecem um padre, Bartolomeu de Gusmão, que entrou na história
como pioneiro da aviação. O trio inicia a construção de um aparelho
voador, a Passarola, que sobe em direção ao Sol, sendo que este atrai as ―vontades‖, que estão presas dentro da
Passarola. Blimunda, ao ver o interior das pessoas, recolhe as suas vontades, descritas pelo autor como nuvens
abertas ou nuvens fechadas.
Após um dos voos da Passarola, Bartolomeu foge para a Espanha, perseguido pela Inquisição. Blimunda e
Baltasar vão tratando de esconder e fazer a manutenção à passarola, que estava escondida num monte. Um dia,
Baltasar ficou preso à Passarola, enquanto fazia a sua manutenção, e os cabos que impediam esta última de se
elevar nos céus rompem, e Baltasar foi levado pelos ares. A aeronave cai e Baltasar é capturado pela Inquisição
por bruxaria. No fim do livro, Blimunda, recolhe a vontade de Baltasar, enquanto este morre, condenado à
fogueira.
Memorial do Convento é a união da realidade com o imaginário, e também um romance recheado de
críticas feitas por José Saramago.
3. ANÁLISE DA OBRA: A PSEUDO-RELIGIOSIDADE PRESENTE NA NARRATIVA
Na contemporaneidade da Literatura Portuguesa, José Saramago demonstra sua filiação estética vinda do
Pós-modernismo, essa influência percebida em seus livros reflete a caracterização das tensões do mundo atual.
Nessa perspectiva crítica da realidade, a obra Memorial do Convento, contempla a existência de paradoxos na vida
da sociedade portuguesa. Dentre eles, a questão da transgressão do sagrado, que balança entre o sagrado e o
profano.
Essa transgressão ligada à religiosidade pode ser percebida no discurso dos seguintes personagens
focalizados na análise da narrativa: rei D. João V, D. Maria Ana, o clero, e o povo.
O rei D. João V, possui características que confrontam a essência dos valores cristãos, pois é vaidoso,
egocêntrico, e governa consoante os seus desejos e sonhos, em que os meios justificam o fim, desprezando assim
a miséria dos pobres e sacrificando o povo e a riqueza do país em nome da concretização do seu sonho maior,
exaltar e ―santificar‖ seu poder. Almeja a construção grandiosa do Convento de Mafra, paraalém de pagar a
promessa feita ao clero, alimentar sua vaidade. Como observa-se no fragmento abaixo:
54
Enfim o rei bate na testa, resplandece-lhe a fronte, rodeia-a o nimbo da inspiração, E
se aumentássemos para duzentos frades o convento de Mafra, quem diz duzentos, diz
quinhentos, diz mil, estou que seria uma ação de não menor grandeza que a basílica
que não pode haver.
O autor crítica às relações da família real, consequentes traições e também as expectativas exageradas
que toda a população depositava em Deus. D. João V e D. Maria Ana, mostravam-se religiosos faziam orações e
promessas, diziam confiar em Deus, no entanto cometiam atos que entravam em conflito com a religião. Como
no caso do rei, que cometia adultério ao se relacionar com freiras do convento, com quem possivelmente teria
filhos bastardos. Enquanto a rainha sonhava com o cunhado, como seu amante. Ou seja, ambos demonstravam
uma falsa religiosidade.
D. João, quinto do nome na tabela real, irá esta noite ao quarto de sua mulher, D.
Maria Ana Josefa, que chegou há mais de dois anos da Áustria para dar infantes à
coroa portuguesa e até hoje ainda não emprenhou.…que caiba a culpa ao rei, nem
pensar, primeiro porque a esterilidade não é mal dos homens, das mulheres sim, por
isso são repudiadas tantas vezes, e segundo, material prova, se necessária ela fosse,
porque abundam no reino bastardos da real semente e ainda agora a procissão vai na
praça... Mas Deus é grande (p.11 e 12).
D. João V prometeu elevar um convento de franciscanos em Mafra, se Deus lhe desse sucessão. Essa
promessa foi feita a D. Nuno da Cunha, bispo inquisidor, dá a entender ao rei que se der algo a Deus, Ele
retribuirá o favor. Dessa forma, a atitude dissimulada do bispo, é criticada por Saramago que enfatiza a
corrupção do clero. Caracterizando a religiosidade deturpada motivada pela ações da própria igreja.
Mas vem agora entrando D. Nuno da Cunha… e este diz, Aquele que além está é frei
António de S. José, a quem, falando-lhe eu sobre a tristeza de vossa majestade por lhe
não dar filhos a rainha nossa senhora, pedi que encomendasse vossa majestade a Deus
para que lhe desse sucessão, e ele me respondeu que vossa majestade terá filhos se
quiser, e então perguntei-lhe que queria ele significar com tão obscuras palavras,
porquanto é sabido que filhos quer vossa majestade ter, e ele respondeu-me, palavras
enfim muito claras, que se vossa majestade prometesse levantar um convento na vila
de Mafra, Deus lhe daria sucessão... Então D. João, o quinto do seu nome, assim
assegurado sobre o mérito do empenho, levantou a voz... Prometo, pela minha palavra
real, que farei construir um convento de franciscanos na vila de Mafra se a rainha me
der um filho... (p.13 e 14).
No decorrer da narrativa a religiosidade aparece de maneira contraditória, o povo mostra reverência a
Deus, porém em certos momentos verifica-se um desvio dessa atitude. No momento da procissão a alma se
purifica, enquanto a mente e o corpo permanecem no pecado. Essa manifestação de religiosidade surge com um
disfarce para os falsos religiosos e também para a igreja que dissimulava seus atos.
55
Passa a procissão entre filas de povo, e quando passa rojam-se pelo chão homens e
mulheres, arranham a cara uns, arrepelam-se outros, dão-se bofetões todos, e o bispo
vai fazendo sinaizinhos da cruz para este lado e para aquele, enquanto uma cólito
balouça o incensório. Lisboa cheira mal, cheira a podridão, o incenso dá um sentido à
fetidez, o mal é dos corpos, que a alma, essa, é perfumada (p.15).
Além dos pontos já expostos, Saramago levanta ainda os seguintes referentes à transgressão religiosa:
Suntuosidade do convento vsa simplicidade e a humildade (essência dos valores cristãos); em
relação a vaidade do rei.
A castidade vs as relações sexuais nos conventos;
As estátuas dos santos vs a santidade humana;
Missa, espaço de vivência espiritual vs missa, espaço de namoros e de encontros clandestinos;
Em suma, José Saramago utiliza-se de muitos recursos para criticar a religião. Desvendando seus
contrários, os quais atuam fortemente em Memorial do convento, que sugere as memórias evocativas do passado
e revela à fé religiosa avessa a realidade.
4. CONSIDERAÇÕES FINAIS
José Saramago é um autor memorável, que merece total destaque na Literatura. A sua capacidade de
entrelaçar história e ficção, fazendo com que o leitor não dissocie a realidade do imaginário, é fantástica, daí o
brilhantismo de suas obras.
Em Memorial do Convento, Saramago afirma o seu brilhantismo, ao discutir temas controversos, como
a religião, tema abordado no presente trabalho. A narrativa privilegia relações em que se abona a religiosidade
dissimulada. No decorrer das analises procurou-se demonstrar essas relações na figura das personagens de poder
como o rei e a rainha, o clero, e em oposição o povo.
Notou-se ao finalizar a pesquisa que o romance é uma obra rica, e através da exposição de personagens
variadas, ficcionais e reais, símbolos e críticas diversas, o autor prende a atenção do leitor e o leva a reflexão. E
em relação à questão da religiosidade, há a predominância da pseudo-religiosidade, visto que as personagens
mascaram seus atos, fingem que seguem plenamente os valores religiosos e ocultam atitudes incoerentes com a
realidade.
REFERÊNCIAS
BERRINI, Beatriz (org.). José Saramago: uma homenagem. São Paulo: EDUC, 1999.
56
BIBLIOTECA
DANIEL
DE
MATOS.
Disponível
em:
http://www.aepoiares.edu.pt/Biblioteca/TrabalhosAlunos/MemorialdoConvento.pdf . Acesso em 05 de Agosto
de 2010.
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julho 2010.
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de 2010.
JAMESON, Fredric. Pós-modernismo: a lógica cultural do capitalismo tardio. São Paulo: Ática, 1997.
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MARTINS, Carlos B. O que é sociologia? . 9a Ed. Brasiliense: São Paulo, 1985. (Primeiros Passos).
Memorial do Convento. Disponível em <http://pt.wikipedia.org/wiki/Memorial_do_Convento>. Acesso em:
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MOISÉS, Massaud. Modernismo (1915 – Atualidade). In.: _____________: A Literatura Portuguesa. 32a Ed.
Cultrix: São Paulo, 2003.
_______________. A Literatura Portuguesa Através dos Textos. 25a Ed. São Paulo: Cultrix, 1997.
MOISÉS, Massaud. Presença da Literatura Portuguesa – Modernismo. 4ª Ed. São Paulo: DIFEL, 1983.
SARAMAGO, José. Memorial do Convento: romance. 26a Ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2001.
57
A (UMA) LINGUAGEM ABJETA E (OU) GROTESCA (?)
Anna Mônica da Silva Aleixo15
Profa. Dra. Tânia Sarmento-Pantoja 16
Resumo:O presente artigo tem por objetivo a investigação da linguagem apresentada no conto O leite
em pó da bondade humana do escritor paraense Haroldo Maranhão. O trabalho é norteado por perguntas
que, dentre as quais, podemos destacar: A linguagem utilizada no conto apresenta uma ―linguagem
grotesco-abjeta‖ ou uma linguagem ora grotesca ora abjeta? Com base na análise do conto e nas
assertivas de alguns teóricos e estudiosos das categorias em questão, podemos dizer que a linguagem
apresentada possui características de ambas. Pois, foi percebido, no conto, que a aparição de uma
categoria se faz presente na apropriação da outra e as duas surgem e se auxiliam como forma de
potencializar o asco e o repúdio. Uma vez que, em O leite em pó da bondade humana, o abjeto adquire
potência ao se apropriar de alguns elementos do realismo grotesco; este só surge na necessidade daquele.
Para essa investigação, são usadas as conjecturas deVictor Hugo (1988), Bakhtin(1987; 2010; 2011),
Kayser (1986), Seligmann-Silva (2005), Kristeva (1982) e Pereira (2009).
Palavras-chave:Linguagem; Abjeto; Grotesco; Literatura.
Resumen: El presente artículo tiene por objetivo la investigación del lenguaje observado en el cuento
O leite em pó da bondade humana, del escritor paraense Haroldo Maranhão. Este trabajo es norteado por
preguntas que, entre las cuales, podemos destacar: el lenguaje utilizado en el cuento presenta un
―lenguaje grotesco-abyecto‖ o un lenguaje ora grotesco ora abyecto? Basado en un análisis del cuento y
en las afirmativas de algunos teóricos y estudiosos de las categorías en cuestión, podemos decir que el
lenguaje presentado posee características de ambos. Pues, fue observado, en el cuento, que la muestra
de una categoría está presente en el apoderamiento de otra y las dos emergen y se auxilian como
manera de potenciar el asco y el repudio. Una vez que, en O leite em pó da bondade humana, el abyecto
adquiere potencia al apropiarse de algunos elementos del realismo grotesco; éste sólo emerge en la
necesidad de aquél. Para esa investigación, son utilizadas las ideas deVictor Hugo (1988), Bakhtin(1987;
2010; 2011), Kayser (1986), Seligmann-Silva (2005), Kristeva (1982) y Pereira (2009).
Palabras clave: Lenguaje; Abyecto; Grotesco; Literatura.
Introdução
Segundo Habert (2011), a década de 70 foi um período que ficou conhecido como a década mais cruel
da ditadura militar instaurada desde 1964. Nessa fase histórica do Brasil, ser preso por determinados órgãos17
significava, sem dúvida, a tortura (em muitos casos até a morte). Os ―atropelamentos‖ ou ―morte em tiroteios‖
eram divulgados pelos meios de comunicações para que fossem acobertados os assassinatos. As negações às
prisões, também, eram feitas para que os culpados saíssem ilesos.
Graduanda de Letras – Habilitação em Língua Portuguesa pela Universidade Federal do Pará (UFPA/Castanhal). E-mail:
[email protected]
16 Professora do Programa de Pós Graduação em Letras da Universidade Federal do Pará (UFPA). E-mail: [email protected]
17 DOI – DODIS (Departamento de Operação Interna – Centro de Operações de defesa Interna).
15
58
Existiam censores da Política Federal nas redações de revistas e jornais, nas emissoras de televisão e de
rádio. As notícias e as novelas passavam por uma espécie de ―filtro‖ e eram mascaradas com imagens de ―paz,
prosperidade e tranquilidade social‖.
Assim como os meios de comunicação sofreram com a repressão imposta pela ditadura militar, a criação
artística também sofreu, pois era vista como ameaça ao regime. Peças teatrais, filmes, músicas, livros eram
obstruídos; muitos artistas e professores sofreram pressões, prisões e processos; o exílio também foi um fator
bastante presente nesse período;
Compositores como Caetano Veloso, Gilberto Gil, Chico Buarque de Holanda,
Geraldo Vandré; autores e diretores de teatro como José Celso e Augusto Boal; poetas
como Ferreira Gullar; cineastas como Glauber Rocha; professores e cientistas como
Florestan Fernandes, Fernando Henrique Cardoso, Marcio Schemberg, entre outros
(HABERT, 2011, p. 30).
É justamente a essa fase histórica que a estória da narrativa deste trabalho busca tratar/denunciar. A
ditadura cívica militar é o ―pano de fundo‖ de O leite em pó da bondade Humana, de Haroldo Maranhão. Essa
narrativa apresenta uma linguagem impudente que no ímpeto de narrar as atrocidades (cometidas durante as
sessões de torturas) mostram os efeitos de abjeção provocados nos protagonistas das narrativas. Com base nisso,
acreditamos que é esta linguagem o fator que justifica este trabalho, pois esta narrativa nos proporciona conhecer
(ou pensar sobre) uma linguagem que tem o poder de causar um efeito de abjeção. Foi baseado nas aplicações
das ideias dos teóricos estudados às análises das narrativas que conseguimos perceber com mais clareza o que
apenas a teoria não é capaz de mostrar sobre a linguagem abjeta, como por exemplo: movimentação de outras
categorias estéticas, os efeitos de abjeção causados no narrador-personagem, etc.
Os procedimentos metodológicos envolveram um levantamento bibliográfico sobre abjeto e a seleção de
um corpus para realização de análise, a partir de uma coletânea de contos: As peles frias, de Haroldo Maranhão.
Consistiu a seleção em um conto com vista o estudo de caso: O leite em pó da bondade humana, de Haroldo
Maranhão. Como forma de categorizar algumas palavras e expressões utilizadas nas narrativas, dividimos este
trabalho em três capítulos, sendo que o primeiro são as considerações iniciais, no segundo (dividido em duas
subseções) fazemos uma teorização sobre as categorias estéticas aqui analisadas e no terceiro fazemos um
levantamento lexical do objeto tratado, tentando discorrer sobre dois aspectos (orebaixamento e a ambivalência) que
jugamos serem próprios das características desse tipo de linguagem, uma vez que, possuem grande relevância no
que concerne a condição abjeta. Este trabalho possui uma pesquisa bibliográfica fundamentada na teoria da
estética do abjeto e do grotesco. Apresenta os resultados de um estudo sobre o abjeto em uma produção literária
que tem a tortura como tema expressivo.
Este artigo tem por intuito refletir e discorrer sobre a composição da linguagem utilizada no conto O leite
em pó da bondade humana,de Haroldo Maranhão. Ou seja, pensar em uma ―linguagem abjeta‖ que contém suas
características e especificidades.
59
1.
Breves considerações sobre o abjeto e o grotesco
Passemos então, a categoria do abjeto e do grotesco e depois, no segundo capítulo, para a linguagem
abjeto-grotesca a partir da análise de algumas possíveis características levantadas sobre ela.
O abjeto
A categorização sobre o abjeto neste trabalho se dá a partir dos seguintes estudiosos: Júlia Kristeva18 e
Seligmann-Silva. Inicialmente iremos apresentar uma síntese dos textos que permitiram a categorização sobre o
abjeto e o sublime, uma vez que ambos estão interligados, e para se entender um, faz-se necessário saber o
conceito do outro.
Começamos dizendo que embora o abjeto se manifeste por meio da realidade bruta e radical e o
sublime de forma ―maquiada e mascarada‖, ―o abjeto está sempre prestes a irromper no sublime e espedaçar o
equilíbrio que este proporciona‖ (ARCURI, 2011). Pois, o abjeto possui o poder de causar repúdio e, ao mesmo
tempo, atração.
Causa deleite em momentos que deveria causar repugnância, tranquiliza quando deveria
ameaçar, provoca asco e prazer simultaneamente, atrai com a aversão. Tem gozo com o desgosto, arrebata,
fascina e satisfaz com o desagradável.
Conforme Júlia Kristeva (1982, apud MORAES, 2011) o abjeto é o que se conhece como o rejeitado,
aquilo que traz repulsa, que produz asco, que se manifesta de forma ameaçadora, inquietante, que desperta
fascínio e desejo: ―(...) ele é a poluição fundamental, pois se trata de um corpo sem alma‖. Segundo Kristeva
(1988, apud SOUZA e FERREIRA) o abjeto fragiliza nossas fronteiras, problematizando tanto a individualização
dos seres quanto os significados estabelecidos por sua cultura, por isso, não é estranho que os artistas sintam
certo deleite em representar em sua arte o mau desempenho e desequilíbrio dos sujeitos e da sociedade.
De acordo com Seligmann-Silva, no período19 em que o domínio do paradigma baseado na tríade
verdade - bom - belo começou ser posto em questão nas artes, foi abalada também a crença renascentista acerca
da beleza. Mas, ressalta o ensaísta brasileiro, a crise de um determinado protótipo do Belo não aconteceu de uma
hora para outra, ela ocorreu em um longo período que se desenvolveu no final do século XVII até quando se
tornaram estáveis as doutrinas estéticas românticas, ou seja, final do século seguinte. E ―fenômenos como o
prazer que advém da contemplação de aparições asquerosas do feio e de seres monstruosos passam a serem
objetos de intensos debates‖ (SELIGMANN-SILVA, 2005, p.32).
O abjeto pode ser considerado como aquele que abala estruturas das regras desordenando-as.
Encontrado em meio às fronteiras e múltiplas representações, ―[é] o que perturba identidade, sistema, ordem. O
que não respeita fronteiras, posições, regras. O meio-termo, o ambíguo, o composto (...)‖ (KRISTEVA apud
ARAUJO, 2009, p.88). A ambivalência é, também, um efeito do abjeto, pois explica a sensação de ―atraçãoEm virtude do texto de Kristeva The Powers of Horror que discute o abjeto não se encontrar em língua portuguesa,
utilizamos as ideias de Kristeva a partir da visão de alguns estudiosos que fazem a leitura deste texto e discutem sobre a
categoria do abjeto.
19 Trata-se do Iluminismo.
18
60
repulsão‖. ―É imoral, sinistra, calculista e obscura: um terror que desagrada, um ódio que sorri‖ (ibidem, p.88).
Sensação paradoxal que é base da condição abjeta, pois se repele e recalca – em prol da regra e da ordem – aquilo
que se atrai.
Fiorella Araújo (2009) nos diz que o abjeto não pode ser entendido como uma qualidade, mas uma
ligação de fronteira que pode representar uma margem que foi atirada para além da fronteira, ameaçando assim, a
identidade, pois o abjeto não é a ausência de limpeza, mas o que deixa a identidade perturbada, sem limites e sem
regras.
Depois das discussões teóricas sobre a linguagem e o abjeto, passemos para outra parte do trabalho
que é uma breve discussão sobre o grotesco. Pois acreditamos que os apontamentos apresentados sobre esta
ultima categoria são essenciais neste trabalho, uma vez que para se entender algumas instalações do abjeto nos
contos selecionados, precisamos entender alguns elementos que compõem as características do grotesco.
O grotesco
Na contemporaneidade o termo ―grotesco‖ é usado para adjetivar aquilo que suscita o riso, o escárnio e
oridículo. Porém, pouco se sabe que desde o seu descobrimento até a atualidade, o vocábulo ―grotesco‖ passou
por diversas conceituações, a primeira conceituação desta categoria foi dada aos ornamentos encontrados nas
escavações feitas primeiramente em Roma e depois em outras regiões da Itália, no final do séc. XV. Entretanto,
pelo fato de nossa pesquisa não ter como foco um estudo mais detalhado sobre o grotesco, trouxemos apenas
algumas tentativas de conceituações de seus principais teóricos, são eles: Victor Hugo (1988), Kayser (1986) e
Bakhtin (1987).
Victor Hugo (1988) mostra-nos a diferença entre grotesco e sublime, a interdependência de um na
existência do outro. Deixa claro que para se definir um, faz-se necessário entender, ou melhor, ao menos
conhecer o outro. Pois, compreendeu-se que no mundo, nem tudo é belo, bom, gracioso e sublime. Que ao lado
de um universo aparentemente sem falhas, harmonioso e completo, existe o seu avesso, ou seja, o grotesco que
ao se rebaixar transporta o sublime à perfeição. Pois, para a exaltação do sublime, foi necessário o rebaixamento
do grotesco à condição de inferior. E é mais uma vez em Hugo que nos valemos para fazer essa afirmação, ―O
sublime sobre o sublime dificilmente produz contraste, e tem-se necessidade de descansar de tudo, até do belo‖
(1988, p.31). Existe uma necessidade de rebaixamento, para assim, vir à tona a glorificação, por isso, quando se
tem a imagem do disforme, o sublime torna-se mais puro.
Kayser mostra-nos que o conceito desta categoria estética no início de sua propagação, era divulgado
como uma arte de mau gosto, subclasse do cômico. ―O exagero das formas‖ era mau visto por muitos do séc.
XVI, pois, os que ainda estavam presos à antiga estética, não aceitavam a deformação que mostrava a verdadeira
face do mundo. E com isso, ignoravam a nova arte que fazia surgir uma estética não presa às regras e mostrava o
outro lado encoberto.
61
Na análise que faz das obras de François Rabelais, Bakhtin mostra-nos a distinção de duas categorias de
grotesco realismo grotesco e grotesco romântico, a primeira abrangendo a Idade Média e o Renascimento, e conforme o
diagnóstico de Bakhtin, o aspecto de maior importância nessa primeira fase ―é o rebaixamento, isto é, a
transferência ao material e corporal, o da terra e do corpo na sua indissolúvel unidade, de tudo que é elevado,
espiritual, ideal e abstrato‖ (BAKHTIN, 1987, p.17). Aqui entram em cena as partes do corpo (o baixo-corporal),
as excrescências, os orifícios e as ações que não eram permitidas aparições devido as regras e tabus, tais como, o
coito, o parto etc. Outro ângulo de suma importância ainda nessa primeira categoria é o trono – destrono, ou seja,
aquilo que está no ápice da glória pode ser rebaixado para a desonra do destronado. A segunda fase teve início
no século XVII e estendeu-se até meados do século XVIII, nesse período se tem o nascimento de outra
concepção de grotesco, conhecida como grotesco romântico. Nessa nova categoria do grotesco tem-se o desejo de
descaracterizar o caráter cômico popular, tentavam-se banir as palavras de baixo calão, referências aos órgãos
genitais e excrementos.
Bakhtin (1987) nos fala sobre as características do grotesco no prefácio de Cromwell de Victor Hugo. A
seu ver, Victor Hugo discorre sobre o termo de maneira interessante. Pois, Bakhtin concorda que a característica
do grotesco, por excelência, é a deformação. Entretanto, considera que Hugo, ao mostrar o contraste, para assim,
exaltar o sublime, está enfraquecendo o valor isolado do grotesco.
Sobre a obra de Kayser O grotesco na pintura e na literatura, Bakhtin nos diz que essa obra é, até o
momento, a única teoria consagrada sobre o grotesco. Uma vez que esse estudo possui uma enorme quantidade
de observações importantes e análises arguciosas. Contudo, nos alerta que não podemos tomar como verdade
toda concepção de Kayser, pois sua teoria é ―absolutamente inaplicável aos milênios da evolução anterior ao
Romantismo‖ (1986, p. 41). Ao ler as definições de Kayser, Bakhtin fica surpreendido pelo tom lúgubre, terrível
e espantoso do universo grotesco, o qual é possível apenas ser captado por um universo dominado pelo medo. E
para Bakhtin, esse mesmo medo é considerado uma expressão unilateral e tola, pois, o verdadeiro grotesco e sua
liberdade em manifestar-se não podem sobreviver em meio um mundo em que o medo domina.
Bakhtin enfatiza que a teoria do grotesco de Kayser pode servir como fundamento teórico sobre certos
aspectos do grotesco no romantismo, entretanto, acredita ser inadmissível o emprego de seu termo às outras
fases de desenvolvimento do grotesco. Pois, acredita que a essência estética do termo, só poderá ser
corretamente analisada, se estiver no ―âmbito da cultura popular da Idade Média e da literatura do
Renascimento‖ (1987, p. 45) e para compreender as diversas significações dos termos referentes ao grotesco, é
preciso olhá-lo pelo prisma da cultura popular e da visão carnavalesca do mundo, pois, fora desse aspecto, o
grotesco torna-se ―unilateral, débeis e anódinas‖ (ibidem, p. 45).
Apesar de mostrarmos todo um apanhado do grotesco a partir das ideias de seus principais teóricos,
acreditamos que para o desenvolvimento deste trabalho e analise das narrativas escolhidas, as ideias de Bakhtin
(1987) sejam mais válidas, embora, não acreditemos que só se possa ter uma visão de grotesco a partir do caráter
carnavalesco e/ou da cultura popular. Mas o que nos interessa da análise de Bakhtin sobre as obras de François
Rabelais, é um dos elementos característicos que o autor atribui ao realismo grotesco, ou seja, o rebaixamento (o Trono-
62
destrono, a referência ao ―baixo‖ corporal e a ambivalência). Pois, segundo esse teórico, podemos perceber que os
rebaixamentos grotescos sempre fizeram alusão ao ―baixo‖ corporal, ou seja, à zona dos órgãos genitais. Por isso,
acreditamos que a ambivalência (com seu alto e baixo) entra nesse circuito da linguagem abjeta, para proporcionar
àquele20 que está sendo elevado o seu destronamento. Um exemplo bem claro sobre esse rebaixamento é a figura de
Jesus Cristo, pois tentaram rebaixá-lo por meio do destronamento, atribuindo-lhe, por ironia, uma coroa de espinhos,
fazendo-o experimentar o Trono-Destrono.
Após destas discussões sobre a categoria do abjeto e do grotesco, passemos para a segunda parte deste
trabalho: a verificação das categorias na narrativa de Haroldo Maranhão.
2. Levantamento lexical e a linguagem abjeta em o leite em pó da bondade humana
Narrado unicamente em primeira pessoa, o conto é descrito em meio a lembranças não lineares que mais
parecem sonhos que reminiscências.
A estrutura composicional da narrativa traz, em grande parte dos
parágrafos, os sonhos, como forma de refúgio, entremeadas à situação dolorosa do presente (cenas de tortura), e
também, o diálogo entre o narrador-personagem e seu inconsciente.
As palavra e expressões de ―baixo‖
21
calão são apresentadas em quase todas as onze páginas que
compõem o conto. Destaca-se que o primeiro período do conto, inicia com a seguinte expressão: ―O FILHO da
puta‖ (MARANHÃO, 1983, p.11). E nas outras páginas, aparecem as seguintes: ―os putos‖; ―Os filhos da puta‖;
―cu‖; ―putas que os cagaram‖; ―porra‖; ―caralho‖; ―O puto‖ ; ―fodido‖; ―Fi-lhos-da-pu-ta‖; ― foda-se! Foda-se,
velho escroto!‖ (MARANHÃO, 1983, p.12-21).
A comparação de teor negativo também compõe a narrativa. Essa figura de linguagem surge como
recurso linguístico para despertar no leitor uma sensação de revolta e compaixão. Como podemos perceber nos
trechos a seguir: ―eu resfolegava feito um bicho morrendo‖ (1983,p.11); ―como se meu sexo lhe fosse
insuportável, como se precisassem estragar-me aí justamente (...)‖ (1983, p.15); ―a cabeça tombou como a de um
morto‖ (1983, p.21). É possível observarmos, também, trechos que apresentam as comparações com traços
hiperbólicos que – na tentativa de buscar através do comparar – conseguem o excesso de dor: ―como se vendálos me encapsulasse em esfera de aço, que força alguma romperia‖ (1983, p. 11); ―como se me esmigalhasse as
têmporas em roda de ferro, pesada, pesada roda de ferro, tudo pesado, pernas, mãos, o ato mesmo de pensar
doía‖ (1983, p. 14).
Em outros momentos da narrativa, a hipérbole não aparece somente acoplada à comparação, ela é
encaixada sem o recurso de outra figura de linguagem como apoio, pois, sozinha é capaz de despertar – sem
querer parecer, ou comparar – mais veracidade no sofrimento demasiado. Como podemos perceber nos
fragmentos a seguir: ―Não grito. Os filhos da puta podem me estourar que não grito‖ (Ibidem, p.12); ―quase
Estamos nos referindo a qualquer pessoa ou objeto.
Estamos empregando a palavra baixo entre aspas, pois o Bakhtin em seu livro A cultura popular na Idade Média e no
Renascimento: o contexto de François Rabelais, assim o usa.
20
21
63
rompendo-me a carne‖ (Ibidem, p.13); ―Tenho certeza de que meu urro foi pavoroso e carregava o ódio do
mundo, todo ódio do mundo‖ ( Ibidem, p.21). Nota-se que todas as citações acima são em primeira pessoa do
singular e plural, uma vez que são frases ou pensamentos do narrador-personagem, característica que se
diferencia da de Emediato. Passemos, então, para a narrativa deste escritor.
Apropriação de elementos do “baixo” corporal e a ambivalência
Como foi perceptível acima, a narrativa contada pelo prisma do protagonista mostram uma linguagem
carregada de apropriações de elementos do ―baixo‖ corporal. Pois, segundo Bakhtin (1987), para aquele que se
encontra em estado de rebaixamento a destruição é sinônimo de túmulo. Entretanto todos os sinais relacionados a
essa natureza são ambivalentes, onde a sepultura cavada é a sepultura corporal e o ―baixo‖ é a zona dos órgãos
genitais que pode ser entendido como o que fecunda e dá à luz. Por isso, as imagens relacionadas aos
excrementos conservam uma relação simultânea com o nascimento, fecundidade, renovação, e o bem-estar.
Através do levantamento lexical nos contos mostrado na seção anterior, é possível observarmos
determinadas cenas de torturas, que narradas – sem eufemismo, sem preocupação de mascarar ou/e chocar –
trazem uma narração repleta de palavras que, segundo Bakhtin (1987), são próprias do realismo grotesco. Pois,
percebermos um rebaixamento explícito, visto que as vítimas são inferiorizadas por meio de agressões verbais
repletas de referências a elementos do ―baixo‖ corporal e que, em muitas delas, podemos perceber uma
ambivalência.
Como observamos no trecho que segue a ambivalência não é percebida pela figura dos excrementos,
mas pela presença do sangue, pois este é o responsável pela vida e ao mesmo tempo, sob outro enfoque, o
provocador o efeito de abjeção:
O sangue vazava do nariz e invadia-me a boca. Eu resfolegava feito um bicho
morrendo, e quando aspirava, entravam golfadas mornas, que em seguida refluíam
ensopando e tingindo a camisa (MARANHÃO, 1989, p.11).
O sangue, demonstrado na citação acima, é levado a outro patamar, pois, enquanto é um dos
responsáveis pela vida de um corpo, tem um caráter positivo. Entretanto, quando se obriga a entrar em contado,
mais precisamente para quem é obrigado a ingeri-lo a força. Por isso, o sangue, observado na narrativa, está
enquadrado em uma escrita ambivalente.
Como foi percebida nas seções anteriores, a narrativa é descrita, por excelência, em uma linguagem que
faz referência a elementos do ―baixo‖ corporal, pois dessa forma, os torturadores poderiam provocar mais
revolta e humilhação na vítima. É graças a essa linguagem do ―baixo‖ que o abjeto ganha potência enquanto
efeito, uma vez que é descrito sem refinamentos.
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Ainda segundo Bakhtin (1987), podemos dizer que assim como as imagens do ―baixo‖ corporal e
material são ambivalentes, as imagens dos excrementos também são, pois ao mesmo tempo são rebaixadas e
elevadas, ou seja, dão a morte e a luz simultaneamente. O mesmo acontece com elementos que se encontram na
linguagem popular como: os juramentos, as grosserias que eram permitidas na praça pública, uma vez que
penetravam facilmente nos gêneros festivos que existiam ao seu redor.
Essa ambivalência faz parte do realismo grotesco, pois trabalha com ―essa dupla significação, por assim
dizer no alto e no baixo do termo‖ (1987,p.140) que em muitos momentos é o responsável pela morte e ao
mesmo tempo o motivo pelo que se vive. Os dejetos possuíam na antiga Medicina uma relação de grande
importância com a vida e a morte.
Assim como Bakhtin (1987) nos fala sobre a vida não oficial assumida durante os festejos nas praças
públicas, a linguagem também possui seus elementos não oficiais, ou seja, aqueles que são considerados uma
violação às conversões verbais: ―etiquetas, cortesia, piedade, consideração, respeito da hierarquia, etc.‖ (1987, p.
162). Essa linguagem escapa as conversões verbais, ou seja, liberta das regras, ―da hierarquia e das interdições da
língua comum, transforma-se numa língua especial, uma espécie de jargão‖ (1987, p.162).
Como podemos perceber nas discussões de Bakhtin (1987) e na verificação do tipo de linguagem
utilizado na narrativa, as palavras de ―baixo‖ calão e o rebaixamento (―baixo‖ corporal e ambivalência) são de
grande importância como elemento composicional estético para uma escrita abjeta. Pois é através desta
linguagem – mais precisamente a seleção de determinados elementos da língua – que o abjeto consegue se
propagar e alcançar seus efeitos desejados.
Considerações finais
Neste trabalho tentamos fazer uma pesquisa sobre a linguagem empregada no conto O leite em pó da
bondade humana, de Haroldo Maranhão. Entretanto, não tentamos apenas discorrer sobre a linguagem,
procuramos, também, observá-la na categoria estética do abjeto (e todo seu entrelaçamento com outra categoria,
tal como o grotesco.).
Embasadas na teoria de Bakhtin (1987) sobre a linguagem, tentamos buscar e focalizar a linguagem
enquanto material artístico que propaga a expressão, e todo o efeito que ela pode provocar. Visto que o abjeto,
como foi percebido na análise, um efeito decorrente das sessões de tortura. Percebemos, também, que o abjeto,
por excelência, aparece na narração do protagonista, uma vez que foi ele o sofredor de tal efeito. Com a análise
da narrativa, podemos verificar que o efeito de abjeção é oriundo de determinadas aplicações de estratégias de
torturas e que o leitor pode compartilhar desses mesmos efeitos por meio da narração que o próprio
protagonista faz.
Portanto, além de destacarmos alguns aspectos que foram de maior importância para elaboração desta
pesquisa, tentamos focar na apropriação/movimentação que o abjeto faz do grotesco. Nesse sentido,
conseguimos perceber que o grotesco entra no circuito da linguagem abjeta para potencializar o asco, pois no
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momento da tortura, são descritas cenas em que são utilizadas palavras de ―baixo‖ calão e referências a
elementos do ―baixo‖ corporal e material, uma vez que essas formas de rebaixamentos são próprias do realismo
grotesco, que como forma de composição estética, entram no circuito da linguagem como complemento em um
despertar para o efeito de abjeção. Consideramos a categoria do grotesco de suma importância para a realização
de uma linguagem abjeta, pois, verificamos que o efeito de abjeção não precisa, necessariamente, de outra
categoria para poder vir à tona. Entretanto, quando se fala em uma escrita abjeta, como foi percebido na análise,
é necessária a movimentação/apropriação de outra categoria. Por isso, em O leite em pó da bondade humana, de
Haroldo Maranhão, podemos perceber uma linguagem ―abjeto-grotesca‖ que atrai, repele, enoja, horroriza e
indigna.
Referências
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clássicas e vernáculas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2009.
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<http://www.ucp.br/html/joomlaBR/images/VOL8_VERNACULUM/uma%20breve%20trajet%C3%B3ria
%20do%20feio%20na%20literatura%20portuguesa.pdf>. Acesso em: 20 de out. de 2011.
BAKHTIN, Mikhail. A Cultura Popular na Idade Média e no Renascimento: O Contexto de François
Rabelais. São Paulo: HUCITEC; Brasília: Editora da Universidade de Brasília, 1987.
HABERT, Nadine, A década de 70: Apogeu e crise da ditadura militar brasileira. São Paulo: Áticas (Séries
Princípios), 2011.
HUGO, Victor. Do Sublime e do Grotesco. São Paulo: Perspectiva, 1988.
KAYSER, Wolfgang. O grotesco. São Paulo: Perspectiva, 1986.
MARANHÃO, Haroldo. O Leite em Pó da Bondade Humana. Maranhão, Haroldo. In: As peles frias. Rio de
Janeiro: F. Alves, 1983.
MORAES, Marcelo Rodrigues de. Estética e horror: o monstro, o estranho e o abjeto. Disponível em:
<http://w3.ufsm.br/grpesqla/revista/dossie/art_11.php>. Acesso em: 29 de set. de 2011.
66
SOUZA, Edson Luiz André de; FERREIRA, Silvia. Marcas do abjeto na arte contemporânea. Disponível
em:<http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?pid=S0101-48382010000100004 &script=sci_arttext&tlng=en >.
Acesso: 19 de out. de 2011.
SELIGMANN-SILVA, Márcio. Do delicioso horror sublime ao abjeto e à escritura do corpo. Seligmann-Silva,
Márcio. In: O local da diferença. 2005. São Paulo: Editora 34, p. 31-44.
67
A DESCOBERTA DO FRIO: UMA ESCRITA AFRO-BRASILEIRA
Auliam da SILVA (UFPA)22
Orientador: Dr. Sérgio Afonso Gonçalves ALVES (UFPA)23
RESUMO: Nas últimas décadas, mais precisamente desde os anos 80 do século XX, aumentou-se o número de
estudiosos que discutem a existência de uma vertente ―negra‖ na Literatura Brasileira. Pesquisadores como Zilá
Bernd, Cuti [Luiz Silva], Luíza Lobo, Eduardo Duarte, Florentina Souza, Maria Nazareth Fonseca, entre outros,
vêm discutindo conceitos como ―Literatura Negro-Brasileira‖, ―Literatura Afrodescendente‖, ―Literatura Negra‖,
ou ―Literatura Afro-Brasileira‖. Para o estudioso Eduardo Duarte (2008), há um conjunto de ―constantes
discursivas‖ – ―temática‖, ―autoria‖, ―ponto de vista‖, ―linguagem‖ e ―público leitor‖ – que nos possibilitam
pensar nessa vertente literária, a qual ele denomina de ―Literatura Afro-Brasileira‖. Seguindo essa linha de
pensamento, buscamos compreender a novela A descoberta do frio (2011), do escritor afrodescendente Oswaldo de
Camargo, como uma obra pertencente à ―Literatura Afro-Brasileira‖, por meio das ―constantes discursivas‖
propostas por Eduardo Duarte (2008). Como arcabouço teórico, utilizamos as ideias de Eduardo Duarte (2005;
2008), Zilá Bernd (1988) e Florentina Souza (2006).
Palavras-chave: Oswaldo de Camargo; Literatura Afro-Brasileira; Constantes Discursivas
ABSTRACT: In recent decades, more precisely since the 80sof the twentieth century, increasedthe numberof
scholarsarguethatthe existence ofa strand"black"inBrazilian Literature. Researchers likeBerndZillah, Cuti[Luiz
Silva], LuizaLobo, EduardoDuarte, FlorentinaSouza, MariaNazarethSoaresFonseca, among others, have been
discussing concepts like"Black-Brazilian Literature," "Literature Afrodescendant", "Black Literature", or"AfroBrazilian Literature." To the scholarsEduardoDuarte(2008), there is aset of"constant discursive" -"thematic",
"authorship", "viewpoint", "language" and"readership" -thatallow us tothink of thisstrandof literature, thewhich
hecalls "Afro-Brazilian Literature." Following this strandof thought, we understand the novelThe discovery
ofcold(2011), from Oswaldo deCamargo Afrodescendant writer, as a workbelonging to the"Afro-Brazilian
Literature," by means of"constant discursive" proposed byEduardoDuarte(2008).As atheoretical framework, we
use the ideasofEduardoDuarte(2005, 2008), ZillahBernd(1988) andFlorentinaSouza(2006).
Keywords: Oswaldo deCamargo; Afro-Brazilian Literature; ConstantsDiscursive
Muitos críticos e estudiosos questionam a existência da Literatura Afro-Brasileira como uma vertente da
Literatura Brasileira. Para Eduardo Duarte (2008), essa literatura existe desde a Era Colonial, isto é, está presente
desde o início das nossas letras nacionais. Entretanto, essa escrita afro-brasileira constitui-se de elementos que a
diferenciam do conjunto de obras nacionais. E é exatamente essa questão que Eduardo Duarte propõe no ensaio
Literatura Afro-Brasileira: um conceito em construção (2008). Para esse professor, há algumas ―constantes discursivas‖
22
23
E-mail: [email protected];
E-mail: [email protected].
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que têm servido como pressupostos para a configuração dessa vertente literária, a saber: ―temática‖, ―autoria‖,
―ponto de vista‖, ―linguagem‖ e ―público leitor‖.
Essas ―constantes discursivas‖, elencados por Duarte (2008), são os elementos que nos possibilitam
compreender determinada obra como pertencente à Literatura Afro-Brasileira. Contudo, esse estudioso ressalta
ainda que ―nenhum desses elementos isolados propicia o pertencimento à Literatura Afro-Brasileira, mas sim a
sua interação. Isoladamente, tanto o tema, como a linguagem e, mesmo, a autoria, o ponto de vista, e até o
direcionamento recepcional são insuficientes‖ (ibidem, p. 12). Portanto, ao analisarmos A descoberta do frio, iremos
levar em consideração a ―temática‖, ―autoria‖, o ―ponto de vista‖, a ―linguagem‖ e o ―público leitor‖ para, a
partir da conjuntura desses aspectos, entendê-la como Literatura Afro-Brasileira.
Com relação ao primeiro fator, a―temática‖, Duarte (2008) assinala que ela pode estar relacionada à
reconstituição histórica do povo negro na diáspora brasileira, à delação do escravismo e suas consequências até a
exaltação de heróis como Zumbi dos Palmares e Ganga Zumba. Ao citar as obras Úrsula (1859), de Maria
Firmino dos Reis, Canto dos Palmares (1961), de Solano Trindade, e Dionísio Esfacelado (1984), de Domício Proença
Filho, esse estudioso nos informa que essas obras são oportunas para repensarmos a Literatura Brasileira, pois
―(...) tais textos polemizam com o discurso colonial que, conforme Fanon (1983), trabalha pelo apagamento da
história, cultura e civilização existentes para aquém ou além dos limites da sociedade branca dominante‖ (2008, p.
13).
A ―temática‖ não se circunscreve apenas em questões históricas ou políticas sobre os afrodescendentes,
mas também discute as raízes culturais e religiosas da África que foram transladadas para o Brasil, ―(...)
destacando a riqueza dos mitos, lendas e de todo um imaginário circunscrito muitas vezes à oralidade‖ (ibidem, p.
13). Com relação à reconstrução da multifacetada memória ancestral, Eduardo Duarte (2008), destaca as
narrativas de Caroço de Dendê, Histórias que minha avó contava e Contos crioulos da Bahia, respectivamente dos autores
Mãe Beata de Yemonjá e Mestre Didi, além dos poemas de Abdias Nascimento e Hermógenes de Almeida.
Achamos oportuno acrescentar que em várias obras da Literatura Brasileira há a presença de
personagens afrodescendentes, contudo é importante salientar que a imagem criada, geralmente, é estereotipada
– o homem negro propenso à criminalidade ou à ociosidade e a mulher negra libidinosa, compreendida muitas
vezes como objeto sexual. Cuti (2010) nos informa sobre a existência de obras da Literatura Brasileira que são
influenciadas por teorias racistas. De acordo com esse estudioso, podemos perceber um velado código de
princípios que ―eliminam‖ as personagens negras. Ou elas morrem24 ou essas personagens sofrem um processo
de ―branqueamento‖ 25.
Duarte (2008) assinala ainda que o fator da temática negra não é único e obrigatório aos escritores
afrodescendentes, pois caso isso ocorresse, ―amarrados‖ em uma ―camisa de força‖, eles produziriam obras
visivelmente empobrecidas. Portanto nada impede os escritores brancos de utilizarem a matéria ou o assunto
Como, por exemplo, em O Mulato, de Aluísio Azevedo, Bom Crioulo, de Adolfo Caminha e Negro Leo, de Chico Anísio
(CUTI, 2010).
25 Como, por exemplo, em Os tambores de São Luís, de Josué Montelho, Viva o Povo Brasileiro, de João Ubaldo Ribeiro; além de
O Presidente Negro, de Monteiro Lobato, no qual toda a população negra – nos Estados Unidos – é esterilizada (ibidem).
24
69
negro em suas produções. Como enfatiza desde o início do ensaio, esse estudioso alerta que a temática ―afro‖
não pode ser considerada isoladamente, mas sim com outros fatores (principalmente com a ―autoria‖ e ―ponto
de vista‖).
A temática em A descoberta do frio diz respeito à existência do racismo na sociedade brasileira
contemporânea. A narrativa busca evidenciar a presença desse estigma que, mesmo depois da ―abolição da
escravatura‖, ainda mantém-se diligente e operante em pleno final de século XX.Contudo, é interessante destacar
que essa novela não trata o racismo de forma ―panfletária‖. Oswaldo de Camargo tem a acuidade de reelaborar,
esteticamente, esse estigma através de uma metáfora, o ―frio‖; um mal que assola apenas a população
afrodescendente. Com relação a esse ―frio‖, no fragmento a seguir, podemos perceber a presença dessa ―doença‖
e os males que ela traz para os afrodescendentes:
(...) o negro vem encarando há muito tempo um mal que, em milhões de casos o tem
levado à dor e ao desaparecimento. E ele, concreto, sopesável, já percorre alguns
recantos dessa cidade. Quantos já – interrogou-se Zé Antunes – não andarão sumidos,
após o ataque do frio e seus vergonhosos sintomas? (CAMARGO, 2011, p. 66).
Acreditamos que uma das propostas da obra de Oswaldo de Camargoé evidenciar a presença do racismo
na sociedade brasileira, utilizando-se para isso de uma metáfora muito oportuna, o ―frio‖. ―Doença‖ essa que
atinge somente os(as) negros(as), fazendo-os desaparecer sem alguma explicação lógica. Portanto, pelo fato de
trazer para o palco das discussões a questão do racismo, acreditamos que a temática de A descoberta do frio pode
ser compreendida como afro-brasileira.
O segundo fator para a configuração da Literatura Afro-Brasileira é a ―autoria‖. Contudo, entendemos
esse elemento como uma questão complexa, pois sabemos da existência de escritores que negam ser rotulados
em ―afrodescendentes‖, ―indígenas‖, ―feministas‖, ―homossexuais‖ etc. Preocupados com a recepção de seus
textos, esses artistas entendem que os ―rótulos‖ limitam a dimensão de suas obras e, possivelmente, seu público
leitor.
Todavia, se há escritores que renegam ―rótulos‖, há aqueles que reivindicam para si e para sua produção
literária tais denominações. Assim também ocorre com vários escritores afrodescendentes que buscam
denominar suas obras como ―literatura negra‖ ou ―afro-brasileira‖. Diversas coletâneas nos evidenciam isso,
como Antologia contemporânea de poesia negra brasileira (1982), organizada por Paulo Colina; Quilombo das palavras: a
poesia dos afrodescendentes (2000), organizada por Jônatas Conceição e Lidinalva Barbosa; A razão da chama: antologia
de poetas negros contemporâneos (1986), organizado e selecionado por Oswaldo de Camargo; Cadernos Negros, que
desde 1978 têm produzido anualmente um volume de contos e outro de poemas, sob a organização, desde 1980,
do grupo Quilombhoje.
Eduardo Duarte (2008) entende a ―autoria‖ como um fator importante para a configuração da Literatura
Afro-Brasileira. Entretanto, esse estudioso nos alerta que ―(...) a autoria há que estar conjugada intimamente ao
ponto de vista. Literatura é discursividade e a cor da pele será importante enquanto tradução textual de uma
história coletiva e/ou individual‖ (ibidem, p. 15). Portanto, somente a cor da pele não pode ser o elemento
70
decisivo, visto que há escritores negros que não assumem(iram) um ―ponto de vista‖ afrodescendente. É por
meio dessa ideia que não podemos compreender a obra do Castro Alves como pertencente à Literatura AfroBrasileira, pois mesmo ele sendo afrodescendente e abordando uma temática sobre os negros, faltou-lhe o
―ponto de vista‖26.
O fato de Castro Alves abordar os negros escravizados apenas como um segmento da população que
sofria com os maus tratos e péssimas condições (sobretudo quando eram transportados nos navios negreiros),
sem possibilidade de terem voz e muito menos de reagirem ao jugo opressor do branco, nos evidencia a falta do
―ponto de vista‖ afrodescendente nesse autor. Não estamos questionando a contribuição de Castro Alves para a
Literatura Brasileira, sobretudo de um poeta canonizado pela crítica e requerido em várias ―leituras obrigatórias‖
das universidades de todo país. A questão centraliza-se no fato de a cor da pele não ser, isoladamente,
determinante para a configuração da Literatura Afro-Brasileira. Duarte (2008) entende que não podemos
caracterizar as obras somente por meio da cor da pele e/ou da condição social do escritor, pois cairíamos assim
em um reducionismo sociológico das obras.
Eduardo Duarte (2008) entende que a ―autoria‖ é um elemento importante, mas traz consigo algumas
dificuldades. De um lado há a problemática de se definir ―o que é ser negro no Brasil‖, país sobretudo
miscigenado. De outro, há o posicionamento de estudiosos que defendem a ideia de uma ―literatura negra de
autoria branca‖, como a professora Benedita Gouveia Damasceno. Com relação ao posicionamento dessa
professora, Duarte nos alerta sobre os perigos desse prisma, pois ―(...) corre-se o risco de redução da Literatura
Afro-Brasileira ao negrismo, entendido enquanto mera utilização da temática, como no caso dos Poemas Negros, de
Jorge de Lima‖ (ibidem, p. 14).
A par da problemática de definir a Literatura Afro-Brasileira a partir da ―autoria‖, isto é, questões
biográficas e fenotípicas, Duarte (2008) afirma que esse elemento deve estar intimamente relacionado com as
outras ―constantes discursivas‖, principalmente com o ―ponto de vista‖.
Sobre a questão da autoria de A descoberta do frio, informamos que Oswaldo de Camargo é a
afrodescendente e um intelectual a par das vicissitudes enfrentadas pelos(as) negros(as) na sociedade brasileira.
Por conta disso, esse autor busca transpor para o plano literário (atento também com relação à construção
estética de suas obras) o drama de sua camada étnico-racial. Para frisar isso, acreditamos ser conveniente citar
alguns comentários feitos por Clóvis Moura no prefácio de A descoberta do frio:
(...) ele [Oswaldo de Camargo] é um escritor negro não apenas de cor, mas,
fundamentalmente, pela posição em que se coloca diante dos problemas do Homem e
do Mundo. (...) Oswaldo de Camargo, como negro, captou a realidade conflitante que
existe (e o atinge) e, a partir daí, começou a decantar a sua criação literária. Vindo da
poesia – é um ótimo poeta –, passando pelo conto, o autor entra na novela,
procurando, desta forma, encontrar novas maneiras de expressão para a sua
mensagem (MOURA, 2011, p. 12).
26
O terceiro fator, discutido por Duarte (2008), para a configuração da Literatura Afro-Brasileira.
71
Para Clóvis Moura, o escritor Oswaldo de Camargo é um intelectual negro preocupado em discutir os
problemas vividos por sua camada étnico-racial. Isso nos evidencia que além de uma ―temática‖, a novela A
descoberta do frio possui uma ―autoria‖ afro-brasileira. Entretanto, como bem nos informa Eduardo Duarte (2008),
para compreendermos essa narrativa como pertencente à Literatura Afro-Brasileira faz-se necessário que aquelas
duas estejam relacionadas com as outras três ―constantes discursivas‖, principalmente com o ―ponto de vista‖. E
este é exatamente o próximo aspecto que iremos discutir.
O ―ponto de vista‖ é o terceiro elemento discutido por Eduardo Duarte (2008). Para esse estudioso, o
―ponto de vista‖ está estreitamente relacionado com a visão de mundo do autor e também com um ―universo
axiológico‖, isto é, um conjunto de valores morais e ideológicos presentes no texto. Esse professor ressalta ainda
que o ―ponto de vista‖ afro-brasileiro diz respeito a
(...) uma visão de mundo própria e distinta do branco, sobretudo do branco racista,
como superação de modelos europeus e de toda a assimilação cultural imposta como
única via de expressão. Ao superar o discurso do colonizador em seus matizes
passados e presentes, tal perspectiva configura-se enquanto discurso de diferença e atua
como elo importante dessa cadeia discursiva que irá configurar a afrodescendência na
literatura brasileira (ibidem, p. 18).
Podemos compreender esse ―discurso da diferença‖ como um posicionamento contrário ao de um
grupo hegemônico. O ―ponto de vista‖ afro-brasileiro consiste em ir de encontro ao conjunto de valores
ideológicos que depreciam, menosprezam e estigmatizam a imagem dos afrodescendentes, além de denunciar e
questionar problemas socioeconômicos, políticos e culturais enfrentados por essa camada étnico/racial.
Como exemplo de obras com esse ―ponto de vista‖, Duarte (2008) tece alguns comentários sobre as
Trovas Burlescas (1859) de Luís Gama. Para esse estudioso, os poemas da coletânea acima citada nos evidenciam
explicitamente a afrodescendência, na medida em que o eu-lírico, autoproclamado ―Orfeu de Carapinha‖, apela à
―Musa da Guiné‖ e à ―Musa de Azeviche‖, para logo em seguida empreender uma carnavalização das elites do
período. Em meio a essa análise do professor Duarte, notamos ainda que Luís Gama publica sua obra em um
período de pleno auge do Romantismo Brasileiro, apropriando-se desse estilo histórico, mas transfigurando-o de
acordo com seu ―ponto de vista‖ afro-brasileiro. Acreditamos nisso, pois o eu-lírico traz como musas mulheres
negras, o que não era comumente feito naquele estilo histórico, visto que as musas eram predominantemente
mulheres brancas. Além dessa proposta subversiva de Luís Gama, temos um eu-lírico que se identifica como
Orfeu, mas com traços fenotípicos da afrodescendência, ou seja, com um cabelo crespo.
Esse ―ponto de vista‖, discutido por Eduardo Duarte (2008) se aproxima da ideia de ―sujeitoenunciação‖, proposta por Zilá Bernd em Introdução à Literatura Negra (1988). Essa estudiosa afirma que o tema
do negro sempre esteve presente na Literatura Brasileira, seja nos poemas de Gregório de Matos, na poética
abolicionista de Castro Alves e até nas obras de Jorge Amado. Contudo, há um ―divisor de águas‖, isto é, um
demarcador de fronteiras que nos possibilita conjecturar a ideia de Literatura Negra. As obras dos escritores
acima referidos (e tantos outros) não podem ser compreendidos como Literatura Negra, pois falta-lhes o aspecto
72
central: um ―sujeito-enunciação‖ que se identifica como negro. Esse é o ―demarcador de fronteiras‖, o que nos
possibilita pensar nessa ―vertente‖ da Literatura Brasileira. Para Zilá Bernd esse ―sujeito-enunciação‖ é um
(...) eu lírico em busca de uma identidade negra [o qual] instaura um novo discurso –
uma semântica do protesto – ao inverter um esquema onde ele era o Outro: aquele de
quem se condoíam ou a quem criticavam. Passando de outroa eu, o negro assume na
poesia sua própria fala e conta a história de seu ponto de vista. Em outras palavras:
esse eu representa uma tentativa de dar voz ao marginal, de contrapor-se aos
estereótipos (negativos e positivos) de uma literatura brasileira legitimada pelas
instâncias de consagração (BERND, 1988, p. 50).
Para a obra (seja em prosa ou em verso) ser compreendida como Literatura Negra é necessário que haja
esse ―sujeito-enunciação‖ negro do qual nos evidencia Bernd. Para tornar mais claro essa questão, essa estudiosa
nos traz algumas considerações sobre Luís Gama (1830-1882), poeta afrodescendente que somente nas últimas
décadas teve seu devido reconhecimento:
(...) na poesia de Luís Gama o poeta assume-se como outro, como aquele que é
mantido pelo grupo majoritário branco numa situação de estranheza. E é este assumirse outro – que vai determinar uma mudança de ótica na literatura brasileira – que se
constitui no novo e que irá funcionar como divisor de águas para a conceituação de uma
literatura negra (BERND, 1988, p. 56).
Podemos compreender a poesia de Luís Gama como Literatura Negra, pois, enquanto Castro Alves
pertence a uma poética que escolheu como temática o negro e sua desafortunada condição na América, a qual
criticava as ―regras do jogo‖ que permitiam a escravidão, Luís Gama ultrapassa esse posicionamento ao ponto de
questionar o ―falso humanitarismo‖ do período, visto que a abolição foi realizada, principalmente, porque a
escravidão tinha deixado de ser vantajoso economicamente para aqueles que estavam no poder (BERND, 1988).
Focalizando o ―ponto de vista‖ em A descoberta do frio (2011), acreditamos que a afrodescendência dessa
―constante discursiva‖ está representada, principalmente, na figura de Zé Antunes, o protagonista da narrativa.
Essa personagem, ―(...) [um] negro magro, alto, pixaim embaraçado por onde nunca andava pente.‖
(CAMARGO, 2011, p. 23), sabia da existência do ―frio‖ e já havia tentado difundir a ameaça que pairava sobre
os afrodescendentes. Contudo, seus interlocutores não atentaram para seu aviso, como podemos perceber no
seguinte trecho da narrativa:
(...) quando Zé Antunes apareceu na cidade, afirmando que no País soprava um frio
que só os negros sentiam e que, tinha certeza, tal frialdade, com seu gélido sopro, já
fizera desaparecer um incalculável número deles, quase todos os que souberam de tal
descoberta riram muito com a notícia e do seu divulgador.
Zé Antunes, porém, não recuou, mas respondeu, num desafio:
– Provo a quem quiser a existência do frio! (ibidem, p. 23).
Mesmo com o descrédito que muitos lhe davam, Zé Antunes permaneceu firme com o seguinte
pensamento: o ―frio‖ existe e é preciso provar sua existência para a comunidade. E este pensamento se
73
fortaleceu ainda mais quando se soube que um caso de ―frio‖ tinha aparecido. Era Josué Estevão, um garoto
morador de rua. Após essa aparição, Zé Antunes inicia uma jornada em busca de evidências que provassem a
existência dessa ―doença‖ que afligi os(as) negros(as).
Portanto, acreditamos que há um ―ponto de vista‖ afrodescendente em A descoberta do frio, visto que Zé
Antunes – ciente dos padecimentos que os(as) negros(as) sofrem por causa do ―frio‖ – busca meios para provar
a existência do ―frio‖ e, por conseguinte, conscientizar a comunidade em que vive.
O quarto fator determinante para a configuração da Literatura Afro-Brasileira é a linguagem. Eduardo
Duarte (2008) a compreende como uma discursividade específica que contempla: a reelaboração ideológica de
signos linguísticos estereotipados pelo ―discurso do colonizador‖, a valorização de vocábulos oriundos do
continente africano, e uma expressividade rítmica – exposta através de aliterações e assonâncias.
Como exemplo dessa linguagem marcada pelo ―afro‖, Duarte (2008) comenta dois poemas, um de
Henrique Cunha Júnior e o outro de Bélsiva, ambos inseridos na primeira publicação de poemas dos Cadernos
Negros, em 1978. O primeiro empreende uma reversão de valores na medida em que traz em sua obra um elogio
aos cabelos crespos, brincando com as palavras ―enroladinhos‖, ―caracóis pequeninos‖, ―cabelos que a natureza
se de ao luxo de trabalhá-los‖. O cabelo crespo visto com um olhar de inferioridade é visualizado de forma
positiva a ponto de a natureza ter tido o cuidado de enrolá-los assim como faz com os caracóis. Bélsiva por sua
vez, através do ritmo e da entonação, faz de seu poema um instrumento musical africano: ―Irmão, bate os
atabaques / bate, bate, bate forte / bate que a arte é nossa‖. A partir de um jogo de aliteração com o fonema /b/
o poeta nos traz um ritual coletivo tendo em vista a libertação dos afrodescendentes. Tendo em vista essas
propostas da ―linguagem‖, Eduardo Duarte entende que
(...) a afro-brasilidade tornar-se-á visível já a partir de uma discursividade que ressalta
ritmos, entonação, opções vocabulares e, mesmo, toda uma semântica própria,
empenhada muitas vezes num trabalho de ressignificação que contraria sentidos
hegemônicos na língua. Isto porque, bem o sabemos, não há linguagem inocente, nem
signo sem ideologia. Termos como negro, negra, crioulo ou mulata, para ficarmos nos
exemplos mais evidentes, circulam no Brasil carregados de sentidos pejorativos e
tornam-se verdadeiros tabus linguísticos no âmbito da ―cordialidade‖ que caracteriza o
racismo à brasileira (ibidem, p. 18).
Acreditamos que a ―linguagem‖ é um elemento importante para a Literatura Afro-Brasileira. Entretanto,
faz-se necessário que tudo isso seja construído e elaborado artisticamente, pois no intuito de combater o
preconceito racial e o eurocentrismo, muitos escritores podem, inconscientemente, deixar de produzir literatura
em detrimento de outro tipo de texto: o panfleto, de cunho social e político.
No que diz respeito à linguagem em A descoberta do frio, notamos uma preocupação com a construção
estética da narrativa, visto que o autor transveste o racismo a partir de uma metáfora bem elaborada, o ―frio‖.
Com relação aos étimos de origem africana, eles estão presentes na novela. Contudo, pela dificuldade de
encontrar registros que nos respaldassem sobre a etimologia dos vocábulos, destacamos apenas cinco termos, a
74
saber: malungo27, banzo28, zabumba29, ainhum30 e subiá31. Ressaltamos esses dois últimos vocábulos pelo fato de
serem algumas das doenças que o narrador relaciona com o ―frio‖:
A suifa, o ainhum, o subiá, o dracúnculo deceparam dedos de escravo, roeram-lhe os
lábios, derrotaram, em muitos, a pretidão da pele, tornada esbranquiçada e morta pela
molestação.
Agora, é o frio, grudento no corpo e na alma de um garoto, sob tutela do silêncio e da
inteira obscuridade (CAMARGO, 2011, p. 49, grifo nosso).
Para o narrador, assim como a suifa, o ainhum, o subiá e o dracúnculo tinham fustigado os
afrodescendentes escravizados, desta vez era o ―frio‖ que estava a flagelar essa camada étnico/racial. É
interessante como a narrativa se apropria daquelas doenças – um aspecto real – transformando-as em um adendo
para a sua construção ficcional. Portanto, acreditamos que A descoberta do frio, ao inserir no tecido da narrativa
étimos de origem africana e ao discutir o racismo por meio do ―frio‖, apresenta uma ―linguagem‖ afro-brasileira.
O último elemento discutido em Literatura Afro-Brasileira: um conceito em construção é o ―público leitor‖.
Com relação a esse elemento, Eduardo Duarte (2008) afirma que aos afrodescendentes:
(...) duas tarefas se impõe: primeiro, a de levar ao público a literatura afro-brasileira,
fazendo com que o leitor, tome contato não apenas com a diversidade dessa
produção, mas também com novos modelos identitários propostos para a população
afrodescendente; e, segundo, o desafio de dialogar com o horizonte de expectativas do
leitor, combatendo o preconceito e inibindo a discriminação sem cair no simplismo
muitas vezes maniqueísta do panfleto (ibidem, p. 21).
Duarte (2008) afirma que a formação de um público afrodescendente, com vistas a uma afirmação
identitária, já se faz presente no Teatro Experimental do Negro (TEN) de Abdias Nascimento, nos textos de
Solano Trindade, Oswaldo de Camargo e de tantos outros escritores afro-brasileiros. Essa proposta baseia-se no
fato de que o artista constrói seu texto não apenas para atingir um grupo específico da população, mas também
―[De quimbundo ma ‗luga, ‗camarada, companheiro‘ ou do quicongo ma lungo, ‗no mesmo navio‘]. 1. Camarada,
companheiro; 2. Título que os escravos africanos davam àqueles que tinham vindo da África no mesmo navio; 3. Bras.
Irmão colaço ou irmão de criação‖ (FERREIRA, 2009, p. 1258).
27
―(Derivação de banzar – do quimbundo kubanza): Nostalgia mortal que atacava os negros trazidos escravizados da África‖
(ibidem, p. 264).
29 ―S.m.: Bombo. Etim.: termo africano cujo radical parece ser o conguês bumba, bater. G. Viana aproxima do espanhol zambomba (Apost.,
I, p. 157). É termo popular e muito usado na roça onde o Carnaval se caracteriza pelo zabumba‖ (MENDONÇA, 2012, p. 172-173).
28
―[Do iorubá = ‗serrar‘]. Bras. Med. Doença originária da África, muito frequente nos antigos escravos, caracterizada pelo
espessamento progressivo da pele e consequentemente formação, à volta da base de um ou mais dedos do pé, dum anel
fibroso, que termina decepando-os‖ (FERREIRA, 2009, p. 78).
30
Segundo o médico Octávio Freitas (1935), o subiá era a forma como os negros, especificamente aqueles situados em
Minas Gerais, denominavam a dracunculose, conhecida popularmente no Brasil como ―Bicho das Costas‖. Segundo esse
estudioso, ―tão flagrantes, tão concisos, tão exatos são os documentos que exibem aqueles que têm tomado o Bicho da
Costa para o estudo que não pode haver controvérsia de espécie alguma sobre este ponto: – A dracunculose é doença
genuinamente africana‖ (FREITAS, 1935, p. 116).
31
75
porque ele, enquanto escritor, se identifica como ―porta voz‖ de um determinado segmento da sociedade. Por
conta disso, os escritores afro-brasileiros se lançam a reverter valores e combater estereótipos na medida em que
eles compreendem o papel social da literatura na ―(...) construção da autoestima dos afrodescendentes‖ (ibidem, p.
20).
Com relação à obra de Oswaldo de Camargo, A descoberta do frio, acreditamos que a narrativa se apresenta
para um público em geral, mas também para um público leitor específico – os afrodescendentes. Acreditamos
nisso, pois a narrativa busca conscientizar o leitor sobre a existência de um ―racismo velado‖ presente na
sociedade brasileira contemporânea.
Além de discutir as discriminações e os preconceitos, caracterizados como um ―frio‖, a obra de Camargo
alerta também sobre o pensamento que nega a existência dessa ―ameaça glacial‖. A narrativa nos evidencia que
essa ―concepção ingênua‖ é compartilhada não apenas pela ―população branca‖, mas também pela ―população
negra‖. Podemos perceber isso na fala de vários personagens afrodescendentes. Citamos uma delas, José
Leopoldino:
– Excelência Reverendíssima! Não existe o frio! Não existem os casos de frio! Zé
Antunes impressionou alguns, falou aos jornais, abriu os braços nas praças, nas ruas,
empurrando a voz até os ouvidos da cidade. Apareceu, então, o primeiro caso de frio
(ibidem, p. 100).
Os integrantes do Movimento Participação Negra, juntamente com Pe Jubileu e Dom Geraldo,
marcaram uma reunião para discutir a presença do ―frio‖ na cidade. Nesse encontro, José Leopoldino, integrante
daquele grupo, prontificou-se a afirmar que não existia o ―frio‖. Para essa personagem essa ameaça só existia no
discurso de Zé Antunes. Portanto, ao apresentar personagens afrodescendentes que desconhecem a existência do
―frio‖ ou que negam essa situação na sociedade em que vivem, acreditamos ser A descoberta do frio uma obra
endereçada a um público em específico: negros(as) que se encontram em igual situação daquelas personagens
afrodescendentes.
Portanto, ao analisarmos a novela A descoberta do frio, por meio das ―constantes discursivas‖ propostas
por Eduardo Duarte (2008) – ―temática‖, ―autoria‖, ―ponto de vista‖, ―linguagem‖ e ―público leitor‖ –,
percebemos não somente a presença desses aspectos na narrativa, mas também uma interação entre eles, o que
nos possibilita afirmar que a narrativa está inserida na vertente ―Literatura Afro-Brasileira‖.
REFERÊNCIAS
DUARTE, Eduardo de Assis. Literatura e Afrodescendência.In: _______. Literatura, política, identidades.Belo
Horizonte: FALE-UFMG: 2005, p. 113-131. Disponível em: <http://www.letras.ufmg.br/literafro/>. Acesso
em 13 de nov. de 2012.
76
_______. Literatura Afro-Brasileira: um conceito em construção. In: Estudos de Literatura Brasileira Contemporânea,
n° 31. Brasília, janeiro-junho de 2008, p. 11-23.
BERND, Zilá. Introdução à Literatura Negra. São Paulo: Brasiliense, 1988.
CUTI [Luiz Silva]. Literatura Negro-Brasileira. São Paulo: Selo Negro, 2010.
FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo dicionário Aurélio da língua portuguesa. 4 ed. Curitiba: Ed. Positivo,
2009.
FREITAS, Octavio. Doenças Africanas no Brasil.São Paulo: Companhia Editorial Nacional, 1935. Disponível em
<http://www.brasiliana.com.br/obras/doencas-africanas-no-brasil>. Acesso em 12 de fev. de 2013.
MENDONÇA, Renato. A influência africana no português do Brasil. Brasília: FUNAG, 2012.Disponível em
<http://www.funag.gov.br/biblioteca/index.php?option=com_docman&task=doc_download&gid=592&Itemi
d=41>. Acesso em 24 de fev. de 2013.
MOURA, Clóvis. Prefácio. In: CAMARGO, Oswaldo. A descoberta do frio. São Paulo, Cotia: Ateliê Editorial,
2011, p. 11-17.
SOUZA, Florentina da Silva. Afrodescendência em Cadernos Negros e Jornal do MNU. Belo Horizonte: Autêntica,
2006.
77
CORRELAÇÕES EXISTENCIAIS E SOCIAIS NAS OBRAS DE FARIAS DE
CARVALHO: UM DIÁLOGO ENTRE A INEVITABILIDADE DA VIDA E O
ENGAJAMENTO POLÍTICO
DE ABREU, C.A.F32
DE OLIVEIRA, R.P.S33
RESUMO
Neste banner, objetivamos fazer um estudo direcionado às obras Pássaro de Cinza e Cartilha do Bem Sofrer com Lições
de Bem Amar, do poeta Farias de Carvalho,únicas e publicadas em 1957 e 1965, respectivamente. Esta proposta,
na primeira obra, tem como finalidade abordar o ponto de vista das imagens positivas da infância em
contraponto com as imagens angustiantes do presente, marcadas pelos acontecimentos pós-guerra ou de uma
premência futura da mesma. Existe uma vasta conotação subjetiva. Empregamos como quadro teórico as ideais
de Theodor Adorno em Discurso Sobre Lírica e Sociedade e alguns estudos literários a respeito do poeta. O pôster
apresenta, ainda, o resultado desta investigação no Projeto Fio de Linho da Palavra, vinculado ao GEPELIP Grupo de Estudos e Pesquisas em Literaturas de Língua Portuguesa do Departamento de Língua e Literatura
Portuguesa, credenciado no Diretório de Pesquisa do CNPq e executado na Universidade Federal do Amazonas,
na qual analisamos poemas como Prólogo, Baú Velho, Sonetos da Infância, nos quais o poeta revela dentre estas
aflições, sua agonia diante da fatalidade da vida. Na segunda, o apontamento se faz em um aspecto mais engajado
e político, em combate aos agitados anos 60 da ditadura militar. Farias de Carvalho direciona seu discurso
poético, neste momento, à literatura social, sem abandonar os fundamentos.
Palavras - Chave: Farias de Carvalho, Pássaro de Cinza, Cartilha do Bem Sofrer com Lições de Bem
Amar.
OBJETIVOS
Tem como objetivo geral avaliar as relações positivas da infância em contraponto com as imagens angustiantes
do presente, marcadas pela modernidade desenfreada que faz sucumbir rapidamente o espírito puro do ser
humano, como também o aspecto mais engajado e político, que tratam da liberdade perdida pela ditadura militar.
METODOLOGIA
Os procedimentos de investigação consistem na compilação, seleção e análise das Obras Pássaro de Cinza e
Cartilha do bem sofrer com lições de bem amar, das quais foram apreendidos relações existenciais e sociais apresentadas
nos poemas ―Prólogo‖, ―Baú Velho‖, ―Adenda n.º 1 aos Estatutos do Homem‖ e ―Ciclos da Poesia‖. A pesquisa
32Carolina
Alves Ferreira de Abreu é aluna graduanda do quarto período no curso de Letras – Língua e Literatura
Portuguesa; Discente voluntária do Projeto Fio de Linho da Palavra – UFAM, Manaus. E-mail: [email protected]
33 Rita do Perpétuo Socorro Barbosa de Oliveira é orientadora do Projeto Fio de Linho da Palavra; Professora Dr.ª de
Literaturas em Língua Portuguesa do DLLP e do Programa de Pós-Graduação em Letras – UFAM, Manaus.
78
é bibliográfica e qualitativa, tendo por texto-base os livros já mencionados do poeta, Notas de Literatura I,
especificamente no tópico Palestra sobre lírica e sociedade, de Theodor Adorno e A Crise do Século XX, do ensaísta
Gilberto de Mello Kujawski.
INTRODUÇÃO
Poeta amazonense, Farias de Carvalho nasceu em Manaus, em 1930, pertenceu à União Brasileira de
Escritores do Amazonas e foi membro fundador do Clube da Madrugada. Direcionou sua vida entre a política, a
poesia e o jornalismo, tendo enveredado e atuadopor estes caminhos. Sua produção poética resume-se em duas
obras: Pássaro de Cinza (1957) e Cartilha do Bem Amar com Lições de Bem Sofrer (1965). Na primeira, existe um teor de
influência do Clube da Madrugada, de cunho neo-simbolista que dialoga com a questão da memória, dos
fragmentos da infância capazes de neutralizar o contato com o mundo numa época extremamente caótica.
Conceituado por Tenório Telles, o lirismo do poeta tem se destinado como uma das inspirações poéticas mais
humanas da moderna literatura amazonense. Na segunda, o eu lírico fundamenta-se à realidade, à luta pela
liberdade num engajamento político e poético nos arredores de uma época de acontecimentos e mudanças
trazidas ao espírito humano de forma desordenada e inquietante.
RESULTADOS
Ao se proceder à análise dos versos de Farias de Carvalho, complementemo-nos dentro de um
arcabouço poético tanto nas motivações existenciais, tanto na luta contra a repressão de um modelo de sociedade
totalitária e repressiva. Os anos de chumbo da ditadura, a era moderna sucumbindo o espírito humano e
tornando-o meramente um produto sem vitalidade. É assim que o poeta amazonense torna seu enredo um
embate à materialização da humanidade, em Pássaro de Cinza, enquanto em Cartilha do Bem Amar com Lições de Bem
Sofrer seu teor de condicionamento social se faz de forma não menos lírica. Dentro deste aspecto, Adorno fala a
respeito da compreensão do poema que se faz ou se percebe na solidão do mesmo, na voz que emana a
humanidade. O individual, na palavra lírica, pertence ao que está prefigurado pela sociedade. Farias de Carvalho
não abandona tal força lírica; complementa-a e foge do âmbito social, ao mesmo tempo em que se distanciar dele
já é sê-lo. O sujeito lírico representa o todo, mas através a subjetividade, dono de sua própria linguagem.
É neste tempo abatido e propício à ruína que o Pássaro de Cinza se ambienta e sobrevoa, num estado
consternado de liberdade tomada, na eclosão da modernidade que: ―O enriquecimento desperta em cada homem
sua individualidade adormecida. Modernidade implica individualidade.‖ (KUJAWSKI, 1991, p.20). Partindo desta
nuança, o poeta tem a convicção de que é inútil resistir ao tempo as suas incansáveis e propícias mudanças, como
no poema ―Prólogo‖:
―Desses mortos ocasos esquecidos
chega-me agora o pássaro de cinzas;
79
de ontem são suas asas, de silêncio
o seu bico pousado sobre a ponte
entre o vencido vale e o bosque a entrar,
bica-me o peito onde marés antigas
jogam restos de mastros e fantasmas
desses velhos piratas que ficaram
tatuados na penumbra de olhos idos. (...) ―
(DE CARVALHO, 2005, p.31)
Dentro desta concepção existencial, a obra Pássaro de Cinza vai se modelando, condicionando o lirismo a
detalhes do ser e do tempo, ou ainda do próprio poeta e do sentimento desta figura perante a inevitabilidade da
vida. O apelo de lembranças da infância se dá como uma fuga do novo mundo, no qual a aceleração do
progresso transforma a civilização que propicia seu rumo a uma instabilidade tanto no plano coletivo, tanto no
plano da existência individual. Este progresso desenfreado acaba por se autoconsumir, quando deveria solucionar
os males humanos, ou quem sabe melhorá-los: ―aquilo que deveria ser a solução de nossos males - o progresso –
degenera
no
pior
problema
e
no
pior
dos
males.‖
(KUJAWSKI,
1991,
p.24).
O poeta usa do poema e da própria relação poesia-mundo do estado lírico uma antipatia à materialização da vida
sob a dominação pelo sistema:
―A idiossincrasia do espírito lírico contra a prepotência das coisas é uma forma de
reação à coisificação do mundo, à dominação das mercadorias sobre os homens, que
se propagou desde o início da Era Moderna e que, desde a Revolução Industrial,
desdobrou-se em força dominante da vida.‖ (ADORNO, p.69, 2003).
No poema ―Baú Velho‖, há este aspecto da realidade infantil como um refúgio em um passado belo e nostálgico:
―No baú velho do inconsciente
mexendo papéis antigos
achei um mapa de sonhos.
Pedi emprestado ao tempo
as minhas mãos de menino,
sentei num chão de memórias
cruzei as pernas cansadas
abri a caixa de armar
falei de novo com o tempo
pedi as pedras esparsas
juntei o quebra-cabeça
bati o pó e a saudade
e comecei a jogar.
(DE CARVALHO, 2005, p.35)‖
80
Tendo um aspecto de íntima relação com a dimensão humana, o poeta assinala sua poesia existencial
nesta obra como uma experiência profunda do ser realmente humano, dialogando com a memória em uma
espécie de descoberta ou redescoberta dos fascínios da infância. Como bem salienta Tenório Telles: ―Na sua
poesia convém assinalar períodos de fuga, de transfiguração, que se traduzem em termos de compromissada
mensagem, e um espírito eminentemente humanista.‖ (DE CARVALHO, 2005, p.19).
Em Cartilha do Bem Sofrer com Lições de Bem Amar, comunica seu teor lírico junto a um engajamento
político vivenciado nos anos 60, sob a vertente dos famosos anos de chumbo, o que desemboca no surgimento
da literatura engajada, poesia ornamentava de artifícios dentro da linguagem para criar uma conotação política e
social de apelo às desconstruções dessa nova era. Em ―Adenda n.º 1 aos Estatutos do Homem‖, um poema
destinado ao poeta Thiago de Mello, evidencia-se este lugar permeado de consternações e nítidas premências de
liberdade retirada. Para Adorno, as formações líricas mais elevadas são aquelas que o eu atinge na linguagem até
que esta se torne compreensível. O poeta funde as relações intimistas às sociais, buscando na própria relação da
linguagem poética o valor de conseguir envolver essas duas proporções de forma cabível e harmônica:
―Aqui,
nesta praça de mundo,
onde só acontecia a liberdade
num gesto aflito de alucinações
para cantar, à guarda dos fuzis,
louvor ao sabre e loas aos canhões; (...)‖
(DE CARVALHO, 1967, p.87)
Embora haja este direcionamento do tempo, espaço e ser na roda do mundo como objetos ou
indivíduos à margem da liberdade que pertence a tais, o poeta complementa o poema elevando o espírito
opressor à necessidade de luta pela esperança de um mundo fiel à capacidade humana de ser, junto com os
demais:
―Aqui,
nesta praça de mundo,
onde ser, era morrer,
pelo crime nefando de querer
almar de amor o Ser;
fica criado o REINO DA AMPLIDÃO
onde todos (mas todos)
reinarão coroados de azul e madrugada;
onde as crianças nunca mais serão
esperanças de amanhãs
mas, mandamentos de hoje, (...)‖
(DE CARVALHO, 1967, p.88)
81
É o sentimento do poeta diante da fugacidade da vida, das intempéries prementes de um novo caos, ou
do medo das consequências formidáveis das grandes Guerras ou da premência de futuras. Este sentimento
proposto pela modernidade subjaz uma fuga precisa de um tempo que sucumbe, mas não eterniza a vida. Mas
domina, prende e projeta o espírito humano a ver seu enriquecimento em constante relação material e
individualista. Farias de Carvalho mostra, em ―Ciclo da Poesia‖, seu compromisso com a liberdade, em um olhar
nítido e sensível de um poeta vivendo sob o voo poético do Pássaro de Cinza:
―O poeta caminheiro olha as coisas da vida
e canta a poesia pura que há nas coisas
- pedra, poste, varanda, esterco fumegante,
éguas em fim de tarde, baús cheios de infância,
vigília – passo de tempo e de memória,
rima pão com bigornas e martelos,
suor com sangue e com revoluções.‖
(DE CARVALHO, 2005, p.54)
CONCLUSÃO
A poesia de Farias de Carvalho nos direciona a um universo particular e ao mesmo tempo de todos, com
uma força lírica que nos eleva a compreendê-lo como um nítido poeta de olhar atento ao mundo do qual
pertence. Ele intercala com o novo mundo em ruínas as memórias da infância como um ato poético e
revigorante no espírito do poeta e da sua criação. Este é um ser vagando com olhos sempre abertos a ver
estrelas, e Farias de Carvalho não é diferente. Dentro de uma criação literária ora engajada, ora subjetiva, vê o ser
humano como um elemento capaz, que precisa enxergar-se e acima de tudo combater à repressão que aniquila a
existência.
A respeito do próprio poema e de sua linguagem na obra, Adorno salienta a importância da
transcendência do individual e no mergulho desta condição que propicia uma expressão no universal. Esta
proposta corresponde ao duplo caráter da linguagem lírica: o aprofundamento do individual que desemboca ao
coletivo. Mas se esta caracterização do ar lírico se direciona à contraposição da linguagem comunicativa, por
outro lado assegura que quanto maior o domínio social sobre o sujeito, mais precária se dá a condição lírica. O
social (a modernidade) dá-se, pois, no espaço e no tempo em que se ambienta, como o antilírico. Farias de
Carvalho eleva sua obra sob um aspecto semelhante: O fazer poético sob a égide do individual, partindo das
conotações existenciais, que proporcionam uma compreensão acerca da realidade social do qual o ser está
envolvido. O poeta motiva-se ao combate da nova realidade do mundo em contraposição com os artifícios da
infância, e faz um aparato da importância de não perder o alicerce humano, a sensibilidade perante uma era de
consumo fria e feroz. O lírico é um estado que ignora qualquer gesto que retire as sensações simples e generosas,
é uma íntima relação com o espaço social, e o poeta usa desta dimensão como uma finalidade crucial no
desenvolvimento do ser humano em uma época que se dilui tal sensação de pureza, com a proposta de revivê-la.
A poesia era o caminho para fazê-la.
82
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ADORNO, T. Notas de Literatura I (Edição brasileira). São Paulo, Editora 34, 2003.
DE CARVALHO, F. Cartilha do bem sofrer com lições de bem amar. Manaus, Editora Sergio Cardoso, 1967.
DE CARVALHO, F. Pássaro de Cinza. Manaus, Editora Valer, 2005.
KUJAWSKI, G. de M. A Crise do Século XX. 2ª ed. São Paulo, Editora Ática, 1991.
83
BRUNO DE MENEZES: NOVOS FORMATOS NO SÉCULO XXI
Carolina Menezes34
Prof.ª Dr.ª Lilia Silvestre Chaves35
Resumo: Baseado em Bahktin (e a multiplicidade de identidades do sujeito, especialmente no século XXI), em
Derrida (e a construção de arquivos de memória) e na proposta de Eneida Maria de Souza de fazer uma nova
crítica literária através de biografias, este pôster tem como objetivo apresentar um breve relato sobre os anos
iniciais de Bruno de Menezes, o contexto histórico em que se inseria e sobre como o poeta paraense é
evidenciado na era da internet. Vinculado ao projeto ―Ler e escrever na era da internet‖, neste trabalho também
se enfatiza a importância da biografia deste poeta paraense, uma vez que Bruno de Menezes é autor de diversas
obras, entre romances, novelas e contos. No entanto, foi a sua poesia que se tornou mais conhecida pela
população em geral, motivo de estudos tanto de críticos paraenses, quanto de outros estados brasileiros. A
metodologia empregada é a pesquisa ―web-bibliografia‖, ou seja, a busca, não apenas em impressos – teses,
dissertações, livros e revistas –, mas também em diversos meios eletrônicos, inclusive nas redes sociais – Orkut e
facebook – além da realização de entrevistas (devidamente registradas em vídeos, visando futuros
documentários). Observa-se que Bruno de Menezes aparece ligado, principalmente, à expressão da cultura negra,
sendo um dos ícones de representação deste tema, na poesia: isto devido à sua obra de maior destaque, Batuque
(1931), que inaugurou o movimento modernista no Estado do Pará. Portanto, ressalta-se a importância do
estudo crítico-biográfico deste autor para a história da literatura paraense.
Palavras-chave: Bruno de Menezes. Crítica-biográfica.Poesia.
Abstract: Based on Bahktin (and the multiple identities of the subject, especially in the twenty-first century), in
Derrida (and the construction of memory files) and the proposed Eneida Maria de Souza making a new literary
criticism through biographies, this poster aims present a brief account of the early years of Bruno de Menezes,
the historical context in which it took and how the poet Para is evidenced in the internet age. Linked to the
project "Reading and writing in the Internet age", this work also emphasizes the importance of this poet's
biography Para since Bruno Menezes is the author of several works, including novels, novellas and short stories.
However, it was his poetry that became more known by the general population, studies why both critics Pará, as
other states. The methodology is the search for "web-bibliography", ie the search, not only in print - theses,
dissertations, books and magazines - but also in various electronic media including social networks - Orkut and
facebook - beyond interviews (duly recorded in videos, documentaries seeking futures). Observe that Bruno de
Menezes was linked mainly to the expression of black culture, being one of the iconic representation of this
theme in poetry: that due to his work most noteworthy, Batuque (1931), who inaugurated the modernist
movement in State of Pará. Therefore, it emphasizes the importance of critical-biographical study of this author
to the history of literature Para.
Keywords: Bruno de Menezes. Critical-biographical. Poetry.
Introdução
Graduanda em Licenciatura em Letras com habilitação em Língua Portuguesa pela Universidade Federal do Pará (UFPA).
Professora do Programa de Pós Graduação em Letras da Universidade Federal do Pará (UFPA).
34
35
84
―Estava sempre presente‖, era o que eu pensava nas festas de aniversário, costumeiramente na Rua João
Diogo, 26. Aquele homem, poeta do povo e pai de sete filhos, estava ali pela sua poesia, enaltecida pelas futuras
gerações de sobrinhos e netos. ―Teu avô Bruno que escreveu estes lindos versos, Carolina‖, minhas tias-avós,
Belém e Ruth, e minha avó, Lenora, diziam. Falavam-me sobre as poesias que o pai escrevera para elas. Eu,
criança, ainda não entendia muito bem a ―Bruxinha Baiana‖, poema dedicado para minha tia Marília e minha avó.
Mas reconhecia que era muito bonito e despertou minha vontade de também ter uma bruxinha. Vovó sempre
contava que os irmãos Haroldo e Stéleo tomavam-na das mãos das garotas apenas apara atazaná-las. A imagem
me fazia ter pena da boneca.
Foi a partir desses pequenos momentos familiares que a ideia de escrever uma biografia de Bruno de
Menezes me ocorreu. Mas, afinal, pode-se escrever a vida de um indivíduo? Parafraseando o filósofo Levi, me
deparei com os problemas que um biógrafo enfrenta quando seu objeto, o biografado, já partira para o Ideal. A
falta de fontes me induziu a pensar que este trabalho não seria possível. Eu estava enganada. Esta não seria a
única dificuldade.
Naquele momento travei uma batalha com o tempo: pesquisar em documentos, fazer entrevistas com os
filhos, fazer o inventário de tudo que eu possuía do poeta Bruno de Menezes... Foram meses de trabalho árduo e,
ao mesmo tempo, prazeroso. Vivi em ―vários começos‖, como aprendi com minha querida orientadora, Lilia
Chaves, com a qual tive o prazer de desenvolver este trabalho. O resultado prévio eu apresento aqui. Sendo
assim, comecemos pelo início da linha do tempo.
1.
Antecedentes históricos: a Belém parisiense ou a Belle Époque de Belém
Louças, brinquedos, livros, perfumes. Férias na Europa, lavagem de roupa em Londres. As últimas
décadas do século XIX e a primeira do século XX (entre 1870 e 1910) foram marcadas por requintes da mais alta
qualidade.
Durante o boom da borracha, no final do século XIX, Belém, sendo uma grande
cidade portuária, dominou a vida comercial e cultural da região norte do Brasil. Os
cofres públicos abastecidos com os impostos da comercialização do látex favoreceram
ao governo a criação de um espaço urbano condizente com a comodidade da vida
moderna, tão apreciadas por seus habitantes de classes média e alta (COELHO, 2005,
p. 24).
Belém tinha se tornado a mais nova queridinha do Brasil, ganhando popularidade em relação à capital
federal e o grande porto de Santos. O ciclo da borracha rendeu fama à cidade, que atraiu muitos turistas para
conhecer a princesinha amazônica. ―Belém civilizava-se com os motivos mundanos, políticos e sociais‖
(COELHO, 2005, p. 25).
A visão do espaço era rica; Belém passava por um período de suntuosidade arquitetônica bem elevado,
com as ruas bem cuidadas, a população de baixa renda fora tirada da vista dos (muitos) turistas e ―barões‖ que
85
frequentavam a ―Princesinha do Norte‖, os pontos turísticos e boutiques tornaram-se europeizados, atraindo a
mais alta estirpe da sociedade paraense.
No fim de 1894, o Pará (leia-se Belém) era uma cidade com área igual a Madri, cortada
por amplas avenidas e grandes estradas direcionadas para os novos bairros que
recebiam as famílias em processo de elevação social. Praças ajardinadas, edifícios da
administração pública, várias escolas, hospitais, asilos e cadeia compunham as
instituições de controle e reprodução social. Completavam o conjunto urbano, com
seus serviços e numerosas atividades, os estabelecimentos industriais, casas bancárias e
firmas seguradoras, e ainda as companhias de serviços urbanos: telégrafos, telefonia,
linhas de bonde e estrada de ferro. As quase 100.000 pessoas que viviam em Belém
dispunham ainda de instituições culturais e recreativas, religiosas e laicas (DAOU,
2004, p. 29).
O palacete Bolonha, um dos exemplos de arquitetura mais admiráveis em Belém, exibia o gosto
aristocrático da sociedade burguesa. Luxuoso, durante anos foi moradia de Francisco Bolonha, engenheiro que o
construiu, tornando-se, depois, patrimônio histórico da cidade. Na vila ao redor do monumento, igualmente
ostensiva e também construída por Francisco, morava a família do engenheiro e de sua esposa. O monumento é
a prova de que o ciclo da borracha rendeu lucros altos a Belém. No entorno da cidade, chácaras, sítios e
pousadas requintadas da alta sociedade burguesa exibiam os traços parisienses, deixando os arredores de Belém
com um ar interiorano propíciopara os ―barões‖ reunirem-se e papearem nos pic-nics. Marinilce Coelho, em seu
livro O Grupo dos Novos (2005, p. 26-27), também comenta sobre a construção do prédio luxuoso Paris
N‘América, até hoje um dos mais frequentados pontos turísticos da cidade.
Nesse momento [de auge gomífero], construiram-se novos prédios comerciais: entre
eles, o ‗belo edifício de mármore português Paris N‘América, majestoso, repleto de
voilles suíços, nas mais belas e finas padronagens‘ ‒importante loja de tecidos e
enfeites, onde se vendia tafetá, organdi, casimira, [...] tudo para agradar as madames e
os cavalheiros da sociedade belenense. A rua onde se localiza esse prédio, a Santo
Antônio, achava-se entrecortada pelos trilhos dos bondes. São os comerciantes,
seringalistas e funcionários públicos que surgem nas passarelas da cidade.
De dia, tanto os ―barões‖, quanto às outras parcelas da população, jornalistas, poetas, escritores, artistas
e apreciadores da literatura reuniam-se em cafés, bares, bibliotecas. Próximo ao suntuoso Theatro da Paz, nos
arredores na Praça da República, a arte e a literatura aconteciam através do que chegava de melhor à capital
paraense; moda, artistas, livros, companhias de balé e mesmo de ópera, vindos da Europa, trazendo aquele frisson
nouveau necessário à expansão cultural. O período da Belle Époque permitiu a criação de revistas e jornais,
ampliando o espaço da literatura, em ―um extraordinário convívio espiritual nos cafés e teatros, nas residências e
até mesmo nos bondes‖ (COELHO, 2005, p. 30).
Apesar de todo o contexto favorável à Belém, o apogeu da borracha estava próximo do fim. Era visível a
contradição social nos lugares da cidade. O Mercado do Ver-o-Peso, descrito como ponto turístico central da
cidade morena apresentava sinais de decadência; a boemia e a prostituição eram latentes às margens da Baía do
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Guajará, destoando da beleza afrancesada da aristocracia da Belle Époque. O escritor Márcio Souza descreve em
seu livro Galvez, imperador do Acre, as manhãs de suntuosidade dos costumes franceses em Belém, com elementos
característicos da época, como candelabros, roupas elegantes e passeios, costumes importados do estrangeiro. A
―vida farta‖ era esbanjada de dia pela alta sociedade da Belle Époque enquanto, à noite, a visão do espaço se
transformava no cenário que a sociedade mais condenava. Os costumes noturnos faziam transparecer um lado
escondido da ―princesinha do Norte‖: a falta de saneamento obrigava a todos que frequentavam o espaço a
conviver em situações precárias, sem nenhuma estrutura. E isso importava? A festa era a dança, a música, a
miscigenação de cheiros presentes no mercado de peixes. Ali se encontravam gentes de todo tipo: índios, negros,
ex-escravos, nordestinos, seringalistas, prostitutas, boêmios. Talvez fosse a reunião de vivências individuais que
tornava as noites mais belas à luz do luar.
2.
O novo período: vinte anos depois
Nossa história deveria começar realmente em 1893, ano do nascimento de Bruno de Menezes, mas nos
valemos desse vaivém no tempo, permitido ao narrador que – situado no aqui e no agora da Belém do início do
século XX – fala de acontecimentos ocorridos em vários momentos do passado, olhando na direção inversa à do
movimento cronológico da vida. Para descrever o momento histórico que o biografado conheceu na juventude e,
como não se trata de um homem comum, e sim de um poeta, parece interessante nos guiarmos, não apenas
pelos fatos que marcaram a economia, o desenvolvimento e, posteriormente, a estagnação dos sonhos dessa
cidade do norte do Brasil em que Bruno de Menezes nasceu, viveu e escreveu textos em poesia e prosa que o
tornaram imortal, como também pela história da literatura, que, pelo distanciamento dos estados do centro do
país, onde tudo acontecia, recebia ecos dos movimentos importantes das artes.
No final do século XIX, era visível a diferença entre o que se via e o que um dia fora: a beleza e o
prestígio da Belle Époque deixou a cidade morena desamparada. Tínhamos perdido o mercado da borracha para a
Malásia, os investimentos em nossos belos seringais haviam cessado devido às competições entre os países
produtores da borracha. A crise financeira afetou o setor socioeconômico e a população sentiu no bolso ‒ e na
alma ‒ a cidade perder o encanto do ciclo responsável por tantos títulos que Belém do Grão-Pará havia recebido
nesse último século. Estagnada, sobreviveu de verbas governamentais; ainda assim, os belenenses viam e viviam
a situação precária em que se encontravam (COELHO, 2005). A arte estava parecia em crise. A própria literatura
ansiava por mudança. As escolas simbolista e modernista estavam decaindo no final do século XIX. O contexto
era outro: um novo momento, o movimento moderno.
Na capital do Pará, a viragem intelectual é intensa. O Theatro da Paz, que ―viveu vida gloriosa nos
tempos áureos da borracha, vida medíocre nos tempos das vacas magras‖ conhece, em 1918, um ―momento de
raro esplendor: a temporada da companhia de balé de Anna Pávlova. A célebre bailarina deixou marcas
profundas‖ nos paraenses amantes da dança (SALLES, 2011). Em 1919, funda-se, em Belém, a revista A
Guajarina, que colaborou com o amadurecimento das metamorfoses culturais. Em setembro de 1923, em Belém,
foi lançada a revista Belém Nova que apontava novos rumos à literatura. Sob a direção de Bruno de Menezes, a
revista, segundo Alonso Rocha (1996, p. 42-43) ―fez eco em nossa terra do movimento literário de vanguarda
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que empolgou o Brasil‖. A revista acolheu a ‗nova geração‘ do momento. Apesar das influências e do entusiasmo
pela arte nova da maioria de seus fundadores, colaboravam com a revista homens de letras de todos os credos
estéticos. Em 1920, Bruno de Menezes publicou seu primeiro livro de poesia, Crucifixo.
Foi nessa época que o Pará tornou-se, então, uma espécie de precursor de um Modernismo paraense,
voltado para aspectos antes ignorados pela sociedade dos barões da borracha, como a condição da classe
operária. O Modernismo veio quebrar os paradigmas impostos pela situação da princesinha do Norte. O
movimento de 1922, de São Paulo, com seus novos artistas e perspectivas do que seria um período moderno,
direta ou indiretamente, proporcionou ao Pará uma nova visão, não somente voltada para a arte e literatura e
também para a denúncia da condição social da população paraense.
Joaquim Inojosa, escritor pernambucano e um dos precursores do Modernismo no nordeste do país,
proferiu as seguintes palavras em discurso na Festa Paraense do Livro:
Estava-se, contudo, em 1921, quando um sentimento parecia predominar nos espíritos
dos jovens: o do nacionalismo. Vinte ou mais dentre eles, numa espécie de academia
ao ar livre, era a quantos [sic] por vezes atingiam aquelas tertúlias. Delas participavam
Abgar, De Campos Ribeiro, Bruno de Menezes, Raul Bopp, Clóvis de Gusmão,
Santana Marques, Nunes Pereira, Paulo Oliveira, Severino Silva. Cenáculo de ―fatos
correntes, fofocas e anedotas‖, comentaria Bopp, em que também se agitavam
opiniões, notadamente no campo literário‖, mas de ―intelectualismo sem direção‖ e de
―efeitos estéreis‖ (INOJOSA apud PACHECO, 2003, p. 165-166).
O período modernista queria renovar as escolas literárias para uma visão menos presa às regras de
versificação e temas poéticos, delimitadas por parnasianos e simbolistas como Olavo Bilac e Cruz e Souza. O
Modernismo veio mostrar as diversas faces da arte e da literatura como inovadoras, assimétricas, com temas
contemporâneos de caráter social. A tendência da época era o urbano; o crescimento das indústrias após o
período do café permitiu que muitos intelectuais escrevessem sobre a atual realidade do Brasil.
Do quadro emergem ideologias em conflito: o tradicionalismo agrário ajusta-se mal à
mente inquieta dos centros urbanos, permeável aos influxos europeus e norteamericanos em sua faixa burguesa, e rica de fermentos radicais nas suas camadas
média e operária (BOSI, 2006, p.324).
No âmbito literário, o Modernismo trouxe
o verso livre, a incorporação da fala coloquial, (e até de realizações incultas da língua),
a valorização de aspectos do cotidiano, além da aproximação entre a linguagem da
poesia e a da prosa, a metalinguagem e o quase abandono das formas fixas como o
soneto, podem figurar como aspectos fundamentais do novo ideário. Dessa forma, o
caminho sinalizado não mais casava com aquele trilhado pelos parnasianos brasileiros,
já o culto exagerado da forma e a descrição objetiva da realidade ‒ características deste
movimento ‒, já não se faziam sentir com o mesmo rigor em obras escritas nessa
época pelos poetas mais novos no Pará (MAUÉS, 2002, p. 13).
É neste contexto social e literário que damos continuidade à nossa linha do tempo.
88
3.
Um pouco de teoria
Não há arquivo sem um lugar de consignação, sem uma técnica de repetição e
sem uma certa exterioridade. Não há arquivo sem exterior.
Derrida
Escolhi esta epígrafe como forma de lembrar ao leitor (e a mim mesma, como biógrafa) a necessidade da
existência de um arquivo. Derrida (2001, p. 12) afirma que ―o sentido de ‗arquivo‘, seu único sentido, vem para
ele do arkheîon grego: inicialmente uma casa, um domicílio, um endereço‖. Imediatamente me veio à mente a Rua
João Diogo, 26, campo da minha pesquisa. Retratos, notícias, os ambientes da casa. O arquivo estava lá. O
arquivo era aquela casa. Foi a partir daquele endereço marcante nas gerações da Família Menezes que o rufar dos
tambores, as missas na Igreja de São João ‒ carinhosamente ―São Joãozinho‖‒, o luar e seu desvendar exibiam
cenários compostos com dedicação, aflorando a imaginação do mais novo poeta na geração de 1920. ―Foi assim,
esta domicialização, que os arquivos nasceram‖.
No entanto, Derrida escreve em seu texto a própria dificuldade em se desvencilhar o arquivo do
mecanismo de memória, uma vez que ambos estão atrelados.
É bem verdade que o conceito de arquivo abriga em si mesmo esta memória do nome
arkhê. Mas também se conserva ao abrigo desta memória que ele abriga: é o mesmo
que dizer que a esquece. [...]. Com efeito, ao contrário daquilo que geralmente se
imagina, tal conceito não é fácil de arquivar. Temos dificuldade, e por razões
essenciais, em estabelecê-lo e interpretá-lo no documento que nos entrega; aqui, no
nome que o nomeia, a saber, o ―arquivo‖. De certa maneira, o arquivo remete
bastante bem, como temos razões de acreditar, ao arkhê no sentido físico, histórico ou
ontológico; isto é, ao originário, o primeiro, ao principal, ao primitivo em suma, ao
começo (DERRIDA, 2001, p. 12).
Quanto aos arquivos, ―os arcontes foram os seus primeiros guardiões. Não eram responsáveis apenas
pela segurança física do depósito e do suporte. Cabiam-lhes também o direito e a competência hermenêuticos.
Tinham o poder de interpretar os arquivos‖ (DERRIDA, 2001, p. 12-13). Agora, isto também era possível ao
pesquisador. E foi o que aconteceu comigo. A aventura de adentrar no espectro da casa na João Diogo, repleta
de estantes fechadas, a alta escada que nos levava à sala de estar, onde os tesouros poéticos eram guardados
despertou minha curiosidade em pesquisar sobre a vida de meu bisavô; ali, os guardiões do arquivo de Bruno de
Menezes detinham o tesouro, pronto para ser exposto; naquela casa, e no que ela guardava, visualizei a vida de
um grande poeta.
4.
Quero é que os corações sintam, sem pausa.
A folhinha marcava 21 de março de 1893, dia de São Bento. Seu Dionísio, pedreiro e, às vezes, escultor
(talhou uma cabeça de pedra para um açougue próximo ao bairro de Batista Campos) foi chamado às pressas em
sua casa. Sua esposa estava dando à luz; um tanto inesperado, o primeiro filho do casal viera de sete meses, ―já
89
revolucionário‖ (ROCHA, 2010, p. 4). Sem recursos, não podiam ir ao hospital, nascendo o menino em casa.
Tão pequeno... a mãe o colocava nos seios e ia cuidar dos afazeres domésticos! Foi o aconchego e o leite rico de
Dona Balbina que o alimentaram saudavelmente.
O primeiro filho do casal ganhara importante homenagem; viera ao mundo Bento Menezes Costa, filho
de Dionísio Cavalcante de Menezes e Maria Balbina da Conceição, residentes em uma humilde casa no bairro do
Jurunas, em Belém do Pará. Como costume na época, Bento foi batizado com o sobrenome do padrinho: Costa.
Era tradição adotar o nome do compadre para os filhos homens.
A infância passou-a na estância coletiva ‗A Jaqueira‘ [...], livre e solto, admirando os seus
valentes desordeiros, os capoeiras, os manejadores de navalha, os embarcadiços, as mulatas
carnudas e trescalantes; acompanhando nos ombros de seu pai o Círio de Nazaré, gola azul,
gorro de marinheiro de fitas pretas e letras douradas; pisoteando, adolescente, nas saídas
festivas do boi bumbáde seu padrinho Miguel Arcanjo, sob os olhares carinhosos de sua mão
Balbina e a proteção de João Golemada, maranhense valente na defesa de seu bando, quando a
polícia ainda não havia proibido os bois saírem de seus currais para os tradicionais encontros
(ROCHA, 1993, p. 9).
Dona Balbina, preocupada com a educação do filho, logo tratou de providenciar seus estudos. Primeiro
em uma escola particular para ―desemburrar‖, graças à palmatória de acapu de professora Gregória Leão de
Matos; depois de alfabetizado, matriculou-o na escola estadual Grupo Escolar José Veríssimo, próximo à
estância onde o pai trabalhava. Lá, Bento completou seus estudos primários, aos onze anos de idade.
Bento fazia serviços dentro e fora da oficina, trabalhando como menino de recados e de encomendas
para o patrão nos arredores do local. Ali, era rápido ir de bonde ao mercado do Ver-o-Peso para dar recados e
comprar material para o negócio do chefe. É provável que boa parte da inspiração para sua obra literária tenha
surgido dessas inúmeras viagens feitas ao centro comercial de Belém do Pará. Talvez nessa época tenha surgido
seu amor pelo local turístico e a inspiração para suas obras. A sinestesia presente em seus versos e em sua prosa;
a mescla dos cheiros, das cores, frutas e pessoas, o próprio local, os ditos populares... tudo isso contribuiu para o
enriquecimento de sua obra literária. São Benedito da Praia seria, então, fruto das riquezas paraenses?
5.
Não seria Bruno?
Mas, afinal, até este momento falou-se em ―Bento‖ para definir o poeta negro. Então de onde surgiu o
nome ―Bruno‖? ―Bruno‖ é um de seus pseudônimos. Em um estudo sobre seu livro Batuque, referência na poesia
sobre a cultura africana e uma das principais obras que o enalteceu como um dos consagrados poetas paraenses,
foi discutido que Bruno significa ―escuro‖, daí a importância de incluí-lo como parte de seu nome, retomando a
igualdade social por que lutava. Além de ―Bruno‖, outros pseudônimos foram adotados: Karolo, Karolo Júnior e
João Bocó fizeram parte da vida literária do poeta.
O que não se descobriu, ao longo desta pesquisa biográfica, nos relatos dos filhos, ensaios, notícias e
reportagens que mencionam a vida e obra do poeta, foi a partir de que momento Bento passou a incluir em seus
documentos oficiais o nome ―Bruno‖. Para a família, não há especificação de tempo, dando margem a essa
90
interpretação a que nos referimos anteriormente de que a inserção do novo nome foi devida ao seu significado
em um dialeto africano.
6.
Todo Poeta é o Homem-Deus,incompreendido.
Estamos em 1920. Os jovens poetas possuíam o ideal revolucionário e desejavam uma renovação da
literatura e da conjuntura social que viviam. Era preciso mudança do espectro deixado pela Belle Époque. Então,
naquele ano, assalariados e estudantes uniram-se a favor da Arte, denominando o grupo de Associação dos
Estreantes, mais tarde chamada de Associação dos Novos. Entusiastas da literatura, música e artes plásticas
interessavam-se em dividir experiências e conhecimentos, publicando-os em jornais revolucionários que
divulgassem as novas tendências artísticas e também denúncias de descaso com a população. Compunham a
Associação: Rocha Junior (pai de Alonso Rocha), Ernani Vieira, De Campos Ribeiro, Paulo de Oliveira, Jacques
Flores, Gabriel Lage, Wenceslau Cosa e outros jovens idealistas. Entre eles, o poeta objeto deste trabalho, Bruno
de Menezes.
Bruno estava com dezessete anos. Crucifixo é composto claramente por versos simbolistas. Riquíssimo
em valores religiosos, o livro tem como tema principal o período da Quaresma, o momento mais solene da Igreja
Católica. Quando menino, Bruno era levado pela bondosa madrinha Binca até a Catedral da Sé para assistir às
solenidades da Semana Santa. Ia à missa toda semana, e no período de Quaresma, Bruno também participava
levando velas e acompanhava a madrinha em suas orações de perdão e comunhão com a Igreja. Na cerimônia
solene da Catedral, as velas iam-se apagando uma a uma, até a saída dos cristãos da igreja.
Leituras litúrgicas, ambiente sepulcral, sombrio, velas dando destaque somente a Nosso Senhor Morto,
crucificado, ensanguentado. Estes foram elementos determinantes para a escrita de Crucifixo. ―O Crucifixo é um
símbolo.../ Jesus, o Sofrimento na Paixão humana‖. A estola púrpura dos padres, rezando e pedindo perdão
pelos pecados dos homens, a dor, o sacrifício, o temor a Deus. Tudo isso adentrou a mente do então menino,
repercutindo nos seus primeiros versos em livro, quando jovem. Incutindo seu trejeito de poeta, Bruno se imersa
o Ideal e a Perfeição em seus versos, assim como a figura de Deus.
Crucifixo foi impresso pela Livraria Moderna, em dezembro de 1920, pelo próprio Bruno e o amigo
Jacques Flores. Composto por quarenta páginas, o livro contém dezenove poemas, incluindo o primeiro soneto
do livro, sem título atribuído. São eles, titulados: ―Idealidade‖. ―Missão Bendita‖, ―O Símbolo da fé‖, ―A Cruz
das Cruzes‖, ―Ideal Perfeito‖, ―Crucifixo Astral‖, ―Intangível‖, ―Saudade‖, ―Paisagem Triste‖, ―Olhos mortiços‖,
―Canção Dolente‖, ―Avé, Maio‖, ―Na praia do Cruzeiro‖, ―Genuflexo‖, ―Domingo de Ramos‖, ―A Eterna
Cruz‖, ―O Divino Sudário‖, ―Crucificado‖ e ―Consummatum‖.
Crucifixo foi, inevitavelmente, um marco na vida de Bruno de Menezes, o início de sua carreira como
poeta. Toda a sua vida e obra, e suas lutas sociais refletiram na criação desta obra parnasiano-simbolista, de
caráter claramente religioso, e, por vezes, desejosa do Ideal e da Perfeição.
E é no mesmo ano de 1920 que Bruno encontra seu Ideal.
91
Em uma tertúlia literária na casa do maçon Joaquim Maia ‒ que o ajudou na edição do
livro na rua São Mateus, hoje Padre Eutíquio, Bruno conheceu uma jovem professora
que declamara alguns versos de Olegario Mariano. O encanto foi imediato e
avassalador: Cupido acertara seu dardo de fogo no rebelde coração do poeta. E para
toda a vida... (ROCHA, 2010, p. 10).
Francisca Salles Santos conheceu-o naquele sarau literário. Ali, os dois trocaram olhares e Bruno logo
ficou encantado com a récita de poemas feita pela moça. Francisca também havia reparado no bonito e viçoso
jovem poeta. Já o admirava por algumas de suas publicações, como na revista Jornal das Moças, mas ainda não
conhecia pessoalmente o rapaz que logo despertou sua atenção.
No ano seguinte, em 16 de julho de 1921, a moça passou a se chamar Francisca Menezes, esposa de
Bruno de Menezes, poeta ascendente na comunidade literária paraense.
E a essa fiel, amorosa, sublime e heroica mulher, de tolerante compreensão, deve o
poeta boêmio a realização de sua vida intelectual e, muito mais, a imensurável fortuna
de haver legado à sociedade a extraordinária herança de uma família exemplarmente
cristã e inabalável de conceito moral (ROCHA, 2010, p. 10-11).
Estas palavras foram proferidas pelo Príncipe dos Poetas, Alonso Rocha, que era bastante próximo de
Bruno e, depois, de Francisca também.
Conclusão
O foco principal deste artigo foi a relação entre vida e obra dos primeiros vinte e oito anos do poeta
Bruno de Menezes. Este é um aspecto fundamental para a construção deste breve relato, que possivelmente, no
futuro, se transformará em uma biografia do poeta paraense. Foi constatada, em documentos, a elogiavam e
criticavam sua obra literária e dados pessoais da vida do poeta. Imagens que permearam a mente do leitor,
levando-o à realidade da época.
Bruno de Menezes é um ícone da literatura paraense. Suas obras publicadas abordam desde a luta social
travada pelo poeta com o sistema capitalista explorador da época, até o eu amor pela ―Cidade Morena‖ e seus
gracejos culinários e artísticos. As novas influências estéticas difundidas por ele e seus confrades trouxeram a
Belém uma nova perspectiva social e literária. O aparato histórico mostra ao leitor o contexto em que Bruno
integração de ―Bruno‖ ao seu nome de batismo, Bento de Menezes Costa, reportagens que estava inserido antes
do nascimento. Como Belém se organizava? Quais eram os costumes da população paraense? A estas perguntas
procurou-se responder organizando esta monografia em: contexto, vida, e obra. Este conjunto do poeta foi
abordado baseado na história do Pará e em teóricos que tratam a crítica-biográfica como algo atual, e, ao mesmo
tempo, executada desde o século XIX.
92
REFERÊNCIAS:
BOSI, Alfredo. História concisa da literatura brasileira. São Paulo: Cultrix, 2006.
COELHO, Marinilce Oliveira. O grupo dos novos: memórias literárias de Belém do Pará. Belém: Editora da
UFPA, 2005.
MAUÉS, Júlia. A modernidade literária no Estado do Pará: o suplemento literário da Folha do Norte. Belém:
UNAMA, 2002.
MENEZES, Bruno. Crucifixo (obra original). Belém: Livraria Moderna, 1920.
PACHECO, Terezinha de Jesus Dias. Bruno de Menezes e o modernismo no Pará. Em Tese. Belo Horizonte,
v.6, pp. 165-172, mar. 2003.
ROCHA, Alonso. ―Bruno de Menezes‖. Asas da palavra. Universidade da Amazônia, Centro de Ciências
humanas e educação. Belém, 1996.
_________. 90 anos da publicação de Crucifixo; 50 anos da premiação de Onze Sonetos. Belém, Pará, 25
de nov. 2010. Discurso proferido em momento solene na Academia Paraense de Letras, em razão do lançamento
da edição comemorativa do livro Onze Sonetos, de Bruno de Menezes.
SALLES,
Vicente.
Theatro
da
Paz:
Tempo
e
Gente.
Disponível
em:
<http://theatrodapaz.com.br/web/index.php?option=com_content&task=view&id=20&Itemid=36>. Acesso
em: 15 abr. 2011.
_________. Bruno de Menezes ou a sutileza da transição: ensaios. Belém: CEJUP, Universidade Federal do
Pará, 1993.
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FANZINES EM MANAUS E LITERATURA MARGINAL NO BRASIL: um
estudo comparado entre fenômenos marginais
PINAGE, C.A.C36
DE OLIVEIRA, R.P.S37
RESUMO
Este estudo traça um paralelo entre as características do processo produtivo de fanzines na cidade de Manaus e
do movimento intitulado ―Literatura Marginal‖ no Brasil. Esta última é dividida em dois movimentos, sendo
estes demarcados entre as décadas de 70 e 90. O movimento marginal setentista, distinto pelo processo
independente de produção e circulação de obras, inicia a movimentação do fenômeno marginal, que tem em sua
segunda geração, a voz de escritores originários das periferias urbanas, ou que se encontravam à margem da
sociedade. Concomitantemente, a produção fanzinesca se configura com de independência na confecção e
distribuição, temática livre e escritores oriundos de todas as classes. Com isso, a pesquisa visa demonstrar como
a produção fanzinesca apresenta-se como uma modalidade integrante na literatura marginal, em detrimento dos
elementos que a constitui. Como referencial teórico foram utilizadas as análises de críticos que versam sobre a
literatura marginal como Glauco Mattoso, Heloísa Buarque de Hollanda, Carlos Alberto Messeder Pereira e Érica
Peçanha do Nascimento, bem como os estudiosos da temática fanzinesca como Henrique Magalhães, Edgar
Guimarães e Sebastião Alves de Oliveira Filho. Este pôster resulta de um projeto em andamento intitulado Fio
de Linha da Palavra, vinculado ao DLLP/UFAM.
Palavras - Chave:Literatura Marginal; Fanzines; Zines em Manaus, Análise literária.
OBJETIVOS
•
Traçar um paralelo entre as características do processo produtivo de fanzines na cidade de Manaus e do
movimento intitulado ―Literatura Marginal‖ no Brasil;
•
Identificar as semelhanças e as disparidades entre os dois fenômenos;
•
Perceber como o marginal do processo fanzinesco se apropria de elementos dos dois movimentos da
Literatura Marginal brasileira.
36Graduando
em Letras, Língua e Literatura Portuguesa pela Universidade Federal do Amazonas – UFAM; Graduada em
Comunicação Social – habitação em Jornalismo - pelo Centro Universitário do Norte - Uninorte; e aluna finalista do curso
de Pós-Graduação em Jornalismo Digital pela Faculdade Internacional de Curitiba – Facinter. Manaus – Amazonas – Brasil.
Contato: [email protected]
37 Rita do Perpétuo Socorro Barbosa de Oliveira é orientadora do Projeto Fio de Linho da Palavra; Professora Dr.ª de
Literaturas em Língua Portuguesa do DLLP e do Programa de Pós-Graduação em Letras – UFAM, Manaus.
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METODOLOGIA
Serão ressaltados elementos de ambos os processos produtivos para se que possa identificar as semelhanças e
distinções entre os dois fenômenos. Ao se observar esses dados característicos far-se-á a comparação entre os
dois movimentos. Serão destacados principalmente elementos como processo de confecção, impressão,
circulação, temas abordados e perfil dos escritores. A pesquisa é bibliográfica e qualitativa, tendo por texto-base
os livros já mencionados do poeta, O que é Poesia Marginal, de Glauco Mattoso e Vozes Marginais na Literatura, da
pesquisadora Érica Peçanha do Nascimento. A principal fonte para embasar a pesquisa sobre fanzines foi a
monografia intitulada Fanzine e Rock´n´roll: análise histórica dos fanzines em Manaus, de Sebastião Alves de Oliveira
Filho.
INTRODUÇÃO
É a partir da integração desse novo ―marginal‖, alternativo e independente ao campo da literatura
contemporânea, com início entre os anos 60 e 70, que se inicia a trajetória do movimento intitulado ―marginal‖
no Brasil, com certas características que retomam ao Modernismo de 1922, mas que sempre se manteve
àmargem ora do mercado editorial ora em periferias urbanas como nos anos 90. Por isso, a Literatura Marginal
no Brasil é dividida em dois movimentos, dos setentistas e dos escritores de 90.
Em paralelo, outro movimento, com características semelhantes, começa a ganhar corpo no país, a
produção e circulação de fanzines. O termo é de origem americana e surge a partir das abreviações das palavras
―fanatic‖ e ―magazine‖ com tradução conhecida como ―revista de fã‖. Hoje, a palavra tem um sentido mais
amplo, sendo
não só veículos de grupos de fãs, mas também de grupos que não possuem acesso à
grande imprensa. Os novos autores de quadrinhos têm nos fanzines praticamente o
único espaço para publicação de sua obra, visto que o mercado não disponibiliza
veículos que dêem vazão ao fluxo da produção dos autores nacionais, muito menos os
trabalhos dos novos artistas. A concentração da indústria cultural, em particular das
grandes editoras, no eixo Rio de Janeiro/São Paulo é mais um agravante para a
veiculação de expressões regionais. Dessa forma, os fanzines são frutos também de
grupos marginalizados cultural e geograficamente, bem como porta-vozes de um tipo
de contracultura que denominamos genericamente de underground, alternativa ou
independente (MAGALHÃES, 2003, p. 3).
RESULTADOS
Os poetas setentista adquiriram um caráter autônomo na produção, edição e impressão de suas obras,
em formato artesanal ou mimeografado, sendo a venda feita de mão em mão pelos mesmos. Esta circulação
independente concentrou-se com maior evidência no estado Rio de Janeiro, sem o patrocínio de editoras, o que
representa, sem dúvida, uma das características principais, neste primeiro momento, do termo marginal, ou seja, à
margem das grandes empresas editoriais.
A única característica comum, a identificar a coisa toda, está no fato de ser um
produto extra-comercial. É a isso que alguns poetas marginais se referem quando
responderam que "marginal quer dizer marginal à editora, à grande editora, ao grande
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sistema; marginal que eu vejo, pra mim é isso" e que "eu acho que o único sentido em
que a palavra marginal se justifica é que ela (a produção) está fora do circuito da
comercialização‖ (MATTOSO, 1981, p. 25).
Os poetas setentistas tinham como questão ideológica permanecerem fora do circuito editorial, pois
viam neste ato uma forma de burlar o sistema e se posicionar contrários aos padrões estabelecidos, bem como, se
opor às exigências das grandes empresas em alterarem os textos a fim de enquadrá-los às regras do jogo.
Enquanto que os escritores da geração de 90 não se mostram resistentes à inserção de suas obras no mercado
editorial, enxergando neste um meio de ampliar a divulgação e o reconhecimento de seus trabalhos, bem como
uma forma de sobreviverem economicamente por meio desse mercado.
Enquanto os poetas dos anos 1970 se opunham ao circuito oficial de editoração, os
escritores da periferia (tanto aqueles que ainda não lançaram nenhuma obra como os
que já publicaram de maneira independente) anseiam fazer parte do rol de uma grande
editora, até mesmo como uma forma de reconhecimento das suas expressões
narrativas (NASCIMENTO, 2009, p. 49).
A produção e a circulação de fanzines são semelhantes aos dois movimentos da Literatura Marginal no
Brasil, pois são feitas de forma artesanal, com a possibilidade do artista aliar essa técnica manual aos recursos
tecnológicos, como diagramação digital, impressões em offset, entre outros.
Os primeiros fanzines brasileiros foram editados em mimeógrafos à tinta e a álcool,
instrumentos mecânicos simples mas que viabilizavam as pequenas tiragens com baixo
custo.
O desenvolvimento das fotocopiadoras provocou uma verdadeira revolução na
produção dos fanzines, abrindo a possibilidade da execução de projetos gráficos mais
bem acabados, incluindo amplamente o uso de ilustrações. Este fator tecnológico
favoreceu o surgimento de inúmeros fanzines de quadrinhos, abrindo espaço para a
edição de publicações autorais erevistas especializadas - com ensaios, críticas e
matérias noticiosas (MAGALHÃES, 2003, p.3).
Tanto há fanzineiros em Manaus que se mantém fora do circuito editorial por questões ideológicas, por
serem contrários ao sistema capitalista, como há escritores que não conseguem adentrar ou se encaixar nos
padrões impostos pelas grandes empresas, mas que almejam chegar a este mercado. Isso mostra como os
escritores de fanzines podem se assemelhar aos escritores dos dois movimentos da literatura marginal, tanto pelo
afastamento ideológico da circulação comercial, como por enxergar na publicação independente um meio para
começar seu trabalho, visando uma posterior expansão por meio da inserção no mercado editorial.
Com base nas análises dos pesquisadores desta temática, as abordagens escolhidas pelos fanzineiros para
discorrer em suas obras são diversas. Não há delimitação do que se deve falar e como se deve tratar os temas,
visto o fanzine ser encarado como um laboratório experimental por parte de quem o utiliza.
96
Dentro da diversidade temática, as formas de composição textual variam entre relatos
pessoais, desabafos íntimos, textos impessoais, denúncias, críticas, apelos, etc
(LOURENÇO, 2006, p. 9).
No momento da criação não existe qualquer regra estabelecida para a execução de seu
trabalho. (...) as normas de diagramação são deixadas de lado, o que possibilita um
estado livre para criar, determinando novos conceitos estéticos (FILHO, 1998, p. 19).
A variedade temática é a marca desse processo criativo, no qual o editor pode conceber o conteúdo de
seu livreto compondo textos autorais a partir de suas experiências vividas, ou utilizar-se de recortes detextos já
publicados para montar um novo material, que é feito comumente por meio de colagens, montagens, recortes,
cópia, plágio, a reconstrução do texto, o nonsense.
Em ambas as fases da literatura marginal pode-se verificar o uso de linguagem coloquial, ruptura com as
regras gramaticais, estética e temática livres, uso do palavrão, utilização do apelo visual por meio de desenhos,
fotos, quadrinhos. A inserção da informação visual tem relevante papel nas produções marginais, visto esta
complementar e compor grande parte das obras. Destaca-se uma distinção entre os dois fenômenos marginais
brasileiros quanto ao uso do conteúdo iconográfico, sendo que nos anos 90 há marcante utilização do grafite nas
obras, material comum nas manifestações artísticas da periferia.
Os textos eram marcados pelo tom irônico, pelo uso da linguagem coloquial e do
palavrão; e versavam sobre sexo, tóxicos e, principalmente, cotidiano das classes
privilegiadas. Os livros produzidos nas cooperativas ligadas aos próprios grupos
tinham, intencionalmente, características gráficas precárias: eram impressos em papel
de qualidade inferior e apresentavam borrões e falhas nas impressões
(NASCIMENTO apud Pereira, 1981).
CONCLUSÃO
O fanzine é, antes de tudo, um fenômeno cultural, que se realiza cotidianamente nos espaços urbanos, e
permite ecoar a voz de membros de todas as camadas sociais. Este fenômeno adentra o campo literário quando o
trabalho produzido versa sobre poesia e/ou prosa, o que se pode constatar ser uma constante em tais
publicações independentes. Destaca-se o valor que a literatura marginal e a produção de fanzines têm em
expandir a arte em contato direto com as pessoas pelas ruas da cidade. Esse contato permanente de artistas que
circulam e expõem seus trabalhos nos espaços urbanos, reativa ao campo da literatura o sentido de relação
humana direta entre escritor-leitor, a ―desierarquização‖ da poesia e/ou literatura, antes acessada apenas pela
classe privilegiada e culta. Isto propicia a disseminação da expressão artística escrita, assim como das demais
manifestações em espaços da urbis onde o artista não espera mais pelo público, mas sim, toma a frente e vai em
busca deste.
Trata-se de movimentos que se completam ou se agregam em um mesmo contexto social, ambos
construídos para expressar o meio externo ou refletir sobre o mesmo, pois se configuram a partir de exclusões
que o próprio Sistema estabelece. Enfim, este estudo inicial destaca a possibilidade de novas análises em
97
publicações de fanzineiros marginais que versam pelas temáticas poética ou prosaica na cidade de Manaus, e
vislumbra nessa modalidade um amplo campo de estudos.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
FILHO, Sebastião Alves de Oliveira. Fanzine e Rock’n’roll: análise histórica dos fanzines produzidos em
Manaus no período de 1987 a 1996. Manaus: UFAM, 1998. Monografia (Graduação em Comunicação Social) –
Universidade Federal do Amazonas.
GUIMARÃES, Edgard. Fanzine. Brasópolis, MG: edição do autor, 2000.
__________________. Algo sobre Fanzines. Minas Gerais, 2000. Disponível em:
<http://kplus.cosmo.com.br/materia.asp?co=41&rv=Literatura–>. Acessado em: 10 mar. 2011.
HOLLANDA, Heloísa Buarque de. 26 Poetas Hoje. Rio de Janeiro: Aeroplano Editora, 6ª Ed., 2007.
___________________________. Impressões de Viagem: CPC, vanguarda e desbunde: 1960/70. Rio de
Janeiro: Aeroplano Editora, 2004.
LOURENÇO, Denise. Fanzine: Procedimentos construtivos em mídia tática impressa. Dissertação (Mestrado
em Comunicação e Semiótica) – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo PUC/SP, São Paulo, 2006.
Disponível
em:
<http://www.dominiopublico.gov.br/pesquisa/DetalheObraForm.do?select_action=&co_obra=68031>.
Acessado em: 15 dez. 2012.
MATTOSO, Glauco. O Que É Poesia Marginal. Rio de Janeiro: Brasiliense. Coleção Primeiros Passos, 1981.
MENDONÇA, Antônio Sérgio. Poesia de vanguarda no Brasil. Rio de Janeiro: Vozes Limitada, 1970.
NASCIMENTO, Érica Peçanha do. Vozes Marginais na Literatura. São Paulo: Petrobras, 2009.
____________________________. Por uma interpretação socioantropológica da nova literatura
marginal.São
Paulo,
2005.
Disponível
em:
<http://www.fflch.usp.br/ds/plural/edicoes/12/artigo_2_Plural_12.pdf>. Acessado em: 3 abr. 2012.
TAVARES, Hênio Último da Cunha. Teoria Literária. Belo Horinzonte, MG: Itatiaia, 2002.
98
COISAS ESPANTOSAS NO DIÁRIO DO GRAM-PARÁ
Cláudia Gizelle Teles Paiva38
Prof. Dra. Germana Maria Araújo Sales (orientadora) 39
Resumo: A obra Coisas Espantosas, do autor lusitano Camilo Castelo Branco, foi publicada no ano de
1862, em Lisboa, pela livraria de Antonio Maria Pereira, após um ano, ela aportou em terras paraenses
sendo veiculada no rodapé das páginas do jornal Diário do Gram-Pará, na seção Folhetim, nos dias 4, 5,
6 e 12 de setembro, além de ter circulado em outros espaços destinados a leitura, como Grêmio Literário
Português, que comporta em seu acervo, denominado Camilliana, oito edições da obra. Devido a grande
circulação da obra no Pará oitocentista, percebemos o seu grande valor e importância literária, bem
como o de seu autor. Portanto, este trabalho, proveniente do projeto de pesquisa “Trajetória literária:
a constituição da história cultural em Belém do século XIX”, coordenado pela Profa. Dra.
Germana Maria Araújo Sales, tem como objetivo restituir ás pesquisas atuais o romance Coisas
Espantosas. Para tanto, serão apresentadas os resultados provenientes de cada etapa da pesquisa, que
consistiu: na análise da obra; circulação do romance em Belém do Pará e história editorial.
Compreendemos, desse modo, que reestabelecer a leitura do romance é de grande valia, principalmente,
porque considerar-se-á um texto de pouca relevância entre os estudiosos, sobressaltando a circulação
dessa narrativa na cidade de Belém, durante o século XIX.
.
Palavras-chave: Coisas Espantosas; Camilo Castelo Branco; Século XIX
Abstract: The work Espantosas Things, the author lusitano Camilo Castelo Branco, was published in
1862, in Lisbon, Bookstore Antonio Maria Pereira, after a year, she landed in Pará lands being
conveyed in the footer of the pages of the newspaper's Daily Gram Pará, in the section Folhetim on
days 4, 5, 6 and 12 September, and have moved into other spaces for reading, as Grêmio Literário
Português, which includes in its collection, called Camilliana, eight editions of the work. Due to the
large volume of work in Para nineteenth century, realized its great value and literary importance as well
as its author. Therefore, this paper, from the research project "literary trajectory: the establishment of
cultural history in Bethlehem XIX century", coordinated by Prof. Dr. Maria Germana Araújo Sales,
aims to restore the Ace current research novel Things Espantosas. Therefore, the results will be
presented from each stage of the research, which consisted of: the analysis of the work; circulation of
romance in Belem and publishing history. We understand, therefore, that restore the reading of the
novel is valuable primarily because it will consider a text of little relevance among scholars, startling
movement of this narrative in Bethlehem, during the XIX century.
Keywords: Espantosas Things; Camilo Castelo Branco; XIX century.
3. Introdução
38
Aluna de Graduação do Curso de Letras. Língua Portuguesa na Universidade Federal do Pará (UFPA). Bolsista CAPES.
E-mail: [email protected]
39 Professora do Programa de Pós Graduação em Letras da Universidade Federal do Pará (UFPA).
E-mail: [email protected]
99
A chegada da família Real ao Brasil, em 1808, traz uma série de mudanças, principalmente no
que diz respeito à cultura livreira, pois com a instalação da Impressão Régia, que imprimia além dos
atos do Rei de Portugal, obras várias, as narrativas literárias ganharam maior divulgação, tal como
afirma Santos (2010, p.13):
a narrativa ficcional conquistava espaço, constituindo-se uma das preferências
de leitura do público oitocentista. Destaca-se neste quadro a incorporação e
solidificação do romance em solo brasileiro, além do cultivo à novela, e às
novas formas narrativas [...]
Além deste incentivo a cultura livreira, surge também, após a chegada da Família real, a
imprensa. Deste modo, os jornais, conforme aponta Sales (2007) passaram a fazer parte do cotidiano
das pessoas, eles traziam, além de noticias sobre política, cultura, etc., um espaço destinado ao
entretenimento chamado Folhetim, que ocupava o rodapé das páginas dos jornais, neste espaço eram
veiculados, dentre outros gêneros literários, o romance, conhecido como romance-folhetim, que em
pouco tempo, virou febre nacional, muito por causa da cumplicidade criada entre folhetim-leitor, com
o ―uso da fórmula do continua amanhã...‖ (SALES, 2007, p.47).
É nesse contexto de extrema propagação cultural que as obras do autor Camilo Castelo Branco
aparecem em solo brasileiro, ocupando espaços destinados a leitura, como o Grêmio Literário
Português, que abriga uma vasta coleção de obras deste autor, denominada Camilliana e os rodapés das
páginas dos jornais, como o Jornal Diário do Gram-Pará, local onde foi veiculado, dentre outras obras
camilianas, o romance Coisas Espantosas, que é o foco de nossa análise.
O romance Coisas Espantosas foi escrito em 1862, mesmo ano em que o autor escreveu seu
romance mais conhecido, Amor de Perdição, no entanto, diferentemente desta, aquela permanece hoje a
margem de outras obras do referido autor. Entretanto, o fato desta obra ter circulado na Belém
oitocentista, é de grande relevância para recuperação e restituição dela, principalmente porque aqui
considerar-se-á um texto de pouco relevância entre os estudiosos, sobressaltando a circulação dessa
narrativa na cidade de Belém, durante o século XIX.
4. Análise da Obra
Segundo Muniz (1999) as novelas de Camilo Castelo Branco são, consoante José Prado Coelho
(2001), divididas em novelas históricas, novelas satíricas, novelas passionais, novelas de cunho realista e novelas de
mistérios, não necessariamente obedecendo a uma ordem de produção:
Tal produção, no entanto, não se deu de modo linear e cronológico [...] novelas
históricas, góticas, passionais e satíricas são produzidas simultaneamente, de acordo
com o gosto do público e as exigências do editor e as necessidades do autor. Desta
forma é que, em 1862, além de produzir um livro de caráter memorialista, Memórias do
cárcere, em 2 vol., e uma novela de mistério, Coisas espantosas, Camilo escreve sua
100
mais conhecida novela passional, Amor de perdição, e a novela satírica [...] Coração, cabeça
e estômago. (MUNIZ, 1999, p.2, grifo nosso)
Tendo conhecimento que a novela Coisas Espantosas se envereda pelas produções que envolvem
mistérios, buscou-se, neste trabalho, adentrar por este mundo enigmático criado nesta obra, em que o
leitor sente-se um viajante rumo ao inexplicável, ao oculto, ao secreto, até o então desfecho
surpreendente.
A obra apresenta a história de Augusto Botelho, desde a perda de seus pais até o momento em
que se depara com a descoberta de um amor inaudito por convenções sociais e por motivos que a
―razão explica e o amor desconhece‖. A descoberta desse amor é uma surpresa não só para Augusto,
mas para o próprio leitor, que se sente espantado diante de tal situação. Talvez porque o leitor também
esteja impregnado pelas convenções que norteiam a sociedade.
Os primeiros capítulos apresentam os personagens principais da obra: Augusto Botelho, Carlota
Reis, Manuel de Castro e Gregório Redondela. As tramas, ―as narrações de aventuras terrificantes,
roubos, assassínios, perseguições e encontros surpreendentes‖(COELHO, 2001, p.189) perpassam por
estas personagens.
A obra, desde seus primeiros capítulos, apresenta situações espantosas, as quais acabam por
justificar o título dado ao livro: Coisas Espantosas. O leitor, quando pensa que as intrigas já foram
reveladas, depara-se diante de outro mistério, ainda mais impactante que o anterior, o que comprava o
dito por Silva(1862, p. 456):
Alli succeden-se a cada instante os acontecimentos, complica-se a cada página
as situações, renovam-se a cada capítulo os incidentes dramáticos. O interesse
nunca esmorece; a curiosidade prolonga-se em sobressalto até o desenlace [...]
Destacamos, dentre as situações expostos no livro, a revelação de um romance que foge do
convencional, segundo Lopes (1984, p 53), em várias novelas de Camilo, ―[...] Trata-se,
fundamentalmente, de um jovem e de uma jovem que se entreapaixonam da maneira mais intensa e
angélica possível [...]‖, entretanto nesta narrativa o que ocorre vai muito além desta perspectiva de
romance, uma vez que Augusto Botelho se apaixonará por sua madrasta, Carlota Reis. Um dos pontos
interessantes neste momento é a forma como o narrador se utilizou para explicar o romance
―espantoso‖, pois ele criou a voz do leitor, como acusador do romance que se estabeleceu, e o narrador
como o defensor:
Conversemos, leitor.
- Que lhe parece isto a vossa excelência?
- Parece-me um escândalo inaudito! [...] a minha bondade repugna escusar que estas duas
pessoas se amem [...]
[...]
101
- Então vossa excelência não sabe nada do coração humano, nem da história, [...] trata-se de
uma mulher formosa, e de um moço de vinte e um anos que amava pela primeira vez.
[...](CASTELO BRANCO, 1946, p.230)
A descrição adianta as impressões ao leitor acerca da descoberta deste romance, na tentativa,
talvez, de convencê-lo de que não é algo repugnante, mas sim algo explicado pelo amor. O fato é que
Carlota Reis, se sentindo impura e indigna, não vive tal romance, e como solução para purificação de
sua alma, encontra a morte, mas deixa em sinal de despedida uma carta para Augusto:
Eu só podia ser sua esposa no céu, onde a alma está pura das nódoas do corpo [...] a terra do
sepulcro é um crisol de purificação.
[...]
Agora lhe digo que o amei até morrer, e morri porque Deus não quis que dos meus olhos se
afastasse o negro quadro do meu passado. As maiores desgraçadas são aquelas que a si
próprio não podem perdoar. Adeus, Augusto. [...] O seu retrato vai na minha mortalha.
Adeus.( CASTELO BRANCO, 1946, p.251)
Sabe-se que após alguns anos Augusto morreu, pois o narrador para elucidar dúvidas, resolveu
procurar Augusto Botelho, mas este já se encontrava morto, e em sua lápide estava escrito: ―VELUT
UMBRA‖, que quer dizer: ―SEMELHANTE À SOMBRA‖
A obra apresenta um emaranhado de situações e ações que se desdobram e se revelam para o
leitor. O narrador, que muitas vezes se mostra como um narrador ―intruso‖ cria uma relação de
interação com o leitor, que se sente um dos personagens da história, já que esse ganha voz, no sentido
de poder refletir junto com o narrador sobre as ações da narrativa, o que a torna ainda mais
interessante.
As temáticas mais pertinentes na obra são: o amor; o amor que a ―tanto obrigas‖, o amor que
enlouquece, que regenera, que causa espanto; a questão dos títulos de nobreza, muito em voga no tempo,
que é presente nas atitudes de algumas personagens que abandonam suas castas, como Manuel de
Castro que se torna barão e Carlota que se torna viscondessa, e em outras que não cedem aos
benefícios de uma classe, como Gregório Redondela e Inácio Botelho; e a ganância, que move o ser
capitalista.
2.1 Elementos da Narrativa
a) Personagens: A narrativa apresenta um total de vinte e seis personagens, sendo que seis
são os personagens principais e os outros vinte são os secundários, tal como mostra a
tabela abaixo:
102
TABELA 1- Personagens da obra Coisas Espantosas
*Protagonistas
b) Tempo: A narração não segue um tempo cronológico, dependendo de sua intenção, ele
recorre a digressões para elucidar os atos da narrativa. O trecho extraído do capítulo
XXV comprova o posto: ―Tenha leitor a condescendência de ir comigo a uma época,
trinta anos anterior àquela em que deixamos os viajantes em Genebra‖ (CASTELO
BRANCO, 1946, p.21) Desta forma, o tempo da narrativa se configura como
Personagens Principais
Personagens Secundários
Augusto Botelho*
Inácio Botelho (Pai de Augusto)
Barbeiro
Carlota dos Reis *
Balbina Fernandes (Mãe de Augusto)
Tiago (primo de Gregório)
Manuel de Castro*
Severo de Castro (Pai de Manuel de João Torto (um dos patrões do menino
Castro)
Augusto)
Mãe de Manuel de Castro
Chapeleiro (um dos patrões do menino
Augusto)
Gregório Redondela*
Matilde Valdez (Esposa de Manuel de Eduardo Pinto (Pai de Carlota)
Castro)
Cozinheira Joana
Sra. Rosa (Esposa
Redondela)
Nogueira Gandra (Dono da Tipografia)
de
Gregório D. Leonor (Tia de Augusto Botelho)
Ex-Juiz de Fora de Chaves
( Marido de D. Leonor)
Capitão de Navios
Francisco Valdez (Pai de Matilde)
Cassilda Valdez (Irmã de Matilde)
Felícia (Criada de Severo de Castro)
Duque (Protetor de Francisco Valdez)
Mesário da Santa Casa de Carolina Amélia (Mãe de Carlota)
Misericórdia (Benfeitor do menino
Augusto)
psicológico.
c) Espaço: A narrativa começa em Lisboa, mas ao longo dos capítulos os personagens
visitam ou vão morar em outros países, como: França, África, Suíça e Genebra.
d) Narrador: O narrador se apresenta como narrador observador, mais especificamente,
narrador onipresente, uma das especificações deste tipo de narrador é o ―narrador intruso‖,
variante esta que também se aplica na obra. A citação abaixo confirma o posto:
103
Se o leitor me perguntar de quem pude eu saber o facto, se de inspiração divina, se da
consciência dele, mais tarde verão que a gente pode saber muitas coisas sem conversar com o
Espírito Santo, nem com a consciência dos criminosos, nem com a polícia, que sabe menos
que os romancistas (CASTELO BRANCO, 1946, p. 9)
3. Circulação da obra no Jornal Diário do Gram-Pará
A obra Coisas Espantosas, de Camilo Castelo Branco, foi publicada na seção folhetim do Jornal
Diário do GRAM-PARÁ, no ano de 1863. Neste ano, só foram microfilmados os jornais do mês de
setembro a dezembro (visualizar imagem abaixo), o que acarretou na falta dos 18 capítulos anteriores
da obra, já que no mês de setembro a publicação já aparece a partir do capítulo XIX, resultando, assim,
na perca de toda a inicial trama do livro, em que se tem a narração dos fatos que enlaçam os principais
personagens.
Imagem 1: retirada da parte interna do catálogo
disponível no CENTUR
Tivemos acesso, portanto, as publicações de apenas alguns capítulos disponíveis no mês de
setembro, nos dias 4, 5, 6 e 12. No dia 4, tem-se a publicação, do capítulo XIX, XX e XXI, no dia 05
de setembro a ordem foi mantida e, portanto, publicaram os capítulos XXII e XXIII, no dia seguinte,
06 de setembro, publicaram os capítulos XXIV, XXV e XXVI. Após estas publicações, há uma
supressão de três capítulos, pois o jornal de número 204, de setembro, também não foi microfilmado.
A imagem abaixo mostra as FALTAS, presentes na microfilmagem de setembro a dezembro.
104
Imagem 2: microfilme do Jornal Diário do Gram-Pará
No dia 12 de setembro, no jornal de número 205, a obra aparece novamente, a partir dos
capítulos XXX, XXXI e XXXII. O jornal de número 206, também consta na lista de FALTAS, logo
não se obteve os capítulos finais, que seriam os de XXXIII a XXXVI, sendo que este é intitulado
Conclusão.
Constatamos, deste modo, que estão disponíveis apenas onze capítulos dos trinta e seis
contidos na obra Coisas Espantosos, ficando de fora um total de vinte e quatro capítulos. Desta forma,
não podemos concluir se a obra foi publicada integralmente no Jornal Diário do Gram-Pará,
entretanto, podemos afirmar que ela circulou na Belém do Pará do século XIX.
TABELA 2: capítulos disponíveis no Diário do Gram-Pará
Edição Jornal
Data
Nº 200
Edição
Nº 201
Nº 202
Nº 203
Nº 204
Nº 205
Nº 206
04/09 (sexta-feira)
Ano
05/09 (sabbado)
06/09 (domingo)
10/09 (quinta-feira)
Capítulos
XIX,XX, XXI
Editora
XXII, XXIII
XXIV, XXV, XXVI
Veio sem a seção folhetim
---------------------FALTA
12/09 ( sabbado)
XXX, XXXI, XXXII
---------------------FALTA
Além da circulação no Diário do Gram-Pará, a obra se fez presente em outros espaços destinados
a leitura, como o Grêmio Literário Português, que tem em seu acervo oito edições da obra Coisas
Espantosas.
4. História Editorial da obra
As edições da obra Coisas Espantosas, como ilustra a tabela abaixo, foram em sua maioria,
editadas pela livraria de Antônio Maria Pereira, no ano de 1862 veio a baila a 1º edição, no suporte
livro, contendo 224 páginas; a 2º edição ocorreu em 1864 com 254 páginas; a 3º , 4º, 5º, 6º, 7º, 8º e 9ª
edição, foram publicadas, respectivamente, nos anos de 1902, 1904, 1911, 1917, 1923, 1946 e 1969. Há
também, uma reimpressão, na versão inglesa da obra, feita no ano de 2009, editada pela BIBLIOLIFE,
LLC, contendo 256 páginas.
Tabela 3 - Edições da Obra Coisas Espantosas
105
1º
Livraria
de Antônio
Imagem 3: retirada1862
no Grêmio Literário
Português
Maria Pereira
2º( duas edições)
1864
Livraria de Antônio Maria Pereira
3º
1902
Parceria Antônio Maria Pereira
4º
1904
Parceria Antônio Maria Pereira
5º
1911
Parceria Antônio Maria Pereira
6º
1917
Parceria Antônio Maria Pereira
7º
1923
Parceria Antônio Maria Pereira
8º
1946
Parceria Antônio Maria Pereira
9º
1969
Parceria Antônio Maria Pereira
Reimpressão
2009
BIBLIOLIFE, LLC
Oito dessas nove edições estão disponíveis na Biblioteca do Grêmio Literário Português, sendo
que da 2º edição existem dois exemplares com capas diferentes. A 9º edição, assim como a edição
inglesa estão disponíveis na internet. A imagem abaixo mostra as edições disponíveis no Grêmio
Literário Português em ordem crescente e a edição inglesa.
Imagem 4: edição inglesa retirada do Google imagens
106
Conclusão
A partir do exposto, percebemos que a obra Coisas Espantosas fez parte do rol de obras literárias
que estiveram a disposição dos leitores belenenses do século XIX, uma vez que o romance foi
veiculado no Jornal Diário do Gram-Pará, além de compor o acervo da biblioteca do Grêmio Literário
Português , o que comprova a circulação do romance em terras paraenses e justifica a relevância do
estudo e recuperação desta obra para contribuição da história cultural do século XIX.
Destarte o trabalho se justifica por reestabelecer e contribuir com os estudos camilianos no
Brasil, especialmente no estado do Pará, pois mesmo após mais de um século do início da carreira
literária do referido escritor, os estudos em torno de suas obras permanecem.
Referências:
CASTELO BRANCO, Camilo. Coisas Espantosas. 8. ed. Lisboa: Parceria António Maria Pereira, 1946.
COELHO, Jacinto do Prado. Introdução ao Estudo da Novela Camiliana. 3 ed. Lisboa: Imprensa
Nacional -Casa da Moeda, 2001.
GANDRA, Jane Adriane. A produção literária no século XIX sob o olhar camiliano. 2006. Disponível em:
http://www.fflch.usp.br/dlcv/revistas/crioula/edicao/01/Artigos/07.pdf>. Acesso em: 15/04/12.
LOPES, Óscar. Concepções de vida na ficção camiliana. In: Albúm de família. Lisboa: Caminho, 1984.
MUNIZ, Márcio Ricardo Coelho. Amor e Ironia Romântica em Camilo Castelo Branco.Texto
publicado na Revista UNIB, São Paulo, p. 133-172, 1999.
SALES, Germana Maria Araújo. Folhetins: uma prática de leitura no século XIX, in Revista Entrelac,
2007.
SANTOS, Vanessa Suzane G. dos. As Camilianas: uma história do livro no grêmio literário
português. 2010. 64f. Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação)-Faculdade de Letras, UFPA,
Belém, 2010, p. 10.
SILVA, Innoccencio Francisco. Revista Contemporânea de Portugal e Brazil, v.4 .Lisboa: Escriptorio
da Revista de Portugal e Brazil, 1862.
VECHI, Carlos Alberto. Preliminares. In: A literatura Portuguesa em Perspectiva: Romantismo/Realismo.
São Paulo: Atlas, 1994, v. 3, p. 11.
107
CONTOS DE MACHADO DE ASSIS N’A FOLHA DO NORTE
Daniele Santos da Silva40
Profª. Dr. Germana Maria Araújo Sales 41
Resumo:Este trabalho tem por objetivo fazer um levantamento dos contos de autoria de Machado de Assis
publicados no jornal A Folha do Norte, durante o século XIX. Dentre os contos publicados selecionamos ―Uma
Carta‖, publicado no ano de 1896, para analisarmos a trajetória editorial desse texto, até chegar à divulgação no
periódico pararora. O inventário dessas publicações no periódico supracitado traz à tona o universo da cultura
letrada na Belém oitocentista e permite identificar, entre as publicações e divulgações, o grande acervo de títulos,
tanto de escritores notabilizados, como aqueles não considerados pelas histórias literárias. Portanto, objetiva-se
recuperar esse acervo de contos, em suas fontes primárias, para assim, analisar-se sua trajetória literária. Por meio
da averiguação dos periódicos é possível entender a história da literatura nacional a partir de um contexto local,
podendo assim, verificar os desdobramentos desse tipo de circulação nos jornais diários da época, como o n‘A
Folha do Norte.
Palavras-chave: Conto, Machado de Assis, Século XIX.
Abstract:This research aims to investigate which short stories written by Machado de Assis were
published in the newspaper ―A Folha do Norte‖ during the 19th century. Among these short stories, it
was selected ―Uma Carta‖ published in the newspaper in 1896, to analyze the editorial trajectory it
followed before the publication into the periodic in Pará. This corpus calls forth the lettered culture
universe in a typical Belém from the 19th century and allows identifying, within the publications and
divulgation, the big acquis of texts, produced by notable writers and by others who were not so well
recognized by the literary history. Therefore, it is aimed to recover this collection stories from the
primary sources, and thus, analyze it using the publication in edition perspective. Through this
investigation it is possible to understand the history of the national literature starting from a local
context, to verify the idiosyncrasies of this kind of circulation in the diary newspapers from the epoch
like in ―A Folha do Norte‖
Key-words: Short story; Machado de Assis; 19th century.
1. Relação entre Literatura e Imprensa
Sobre as pesquisas literárias em jornais, é importante ressaltar a estreita relação entre imprensa e
literatura no século XIX. Vale destacar que entre os vários papéis desempenhados pelos periódicos brasileiros,
tem-se a difusão da literatura, que contou com a propagação de determinados gêneros, como por exemplo, os
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Aluna de graduação em Letras, habilitação em Língua Portuguesa, na Universidade Federal do Pará (UFPA). Atualmente
faz parte do grupo PET- LETRAS (SESu/MEC). E-mail: [email protected]
41 Doutora em Teoria e História Literária pela Universidade Estadual de Campinas e Professora associada da Universidade
Federal do Pará (UFPA).
E-mail: [email protected]
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próprios contos brasileiros. Como afirma Socorro Pacífico Barbosa, em seu livro ―Jornal e Literatura: a imprensa
brasileira no século XIX‖ :
É também de responsabilidade deste suporte a disseminação do gosto pela leitura de
romances e folhetins proporcionada por algumas estratégias, entre as quais estão a
adaptação, tradução, a cópia e a imitação de textos estrangeiros (...). (BARBOSA,
2007.p. 47).
A partir dos estudos da autora, pode-se perceber a importância do que a imprensa produzia em termos
literários para o leitor da época, bem como situar o leitor contemporâneo sobre como se dava a circulação dos
periódicos.
As pesquisas em jornais trazem à tona as práticas de leitura mais próximas daquilo que foram no
passado, o que acaba por revelar toda a riqueza e peculiaridades presentes nestes arquivos. Deve-se chamar
atenção para o fato de que a pesquisa literária nos periódicos não se limita aos jornais ditos literários, mas eles, de
fato, nos dão grandes contribuições no que diz respeito à literatura brasileira, bem como a local, na qual vamos
nos ater nas próximas páginas.
A partir dos dados disponibilizados pela consulta ao acervo de microfilmes da Biblioteca Arthur
Vianna42, foi possível a realização dessa pesquisa que recupera as publicações de Machado de Assis no periódico
paraense Folha do Norte, nos anos de 1896, 1897, 1899 e 1900. Dentre os contos do escritor Machado de Assis
publicados na Folha do Norte, selecionamos e analisamos a trajetória editorial do conto ―Uma Carta‖, do ano
de1896, até sua divulgação no periódico paraorara.
2. A trajetória do Jornal Folha do Norte
O jornal Folha do Norte circulou em Belém, capital do Estado do Pará, com o primeiro número lançado em 1º
de janeiro de 1896. Teve como fundador e primeiro diretor o Dr. Enéas Martins, que liderava o grupo composto,
entre outros, de Elálio Lima, Firmo Braga, Barbosa Rodrigues, Ildefonso Tavares, Eustáchio de Azevedo,
Alfredo Souza e João de Deus do Rêgo, este último era secretário de redação. A parte redacional e as oficinas
eram localizadas, inicialmente, à Av. Independência (hoje Av. Portugal), custando o exemplar a quantiade100
réis.
Para compor a redação de seu jornal, Enéas Martins foi buscar em Marapanim, um professor que já
havia tido experiência em outros jornais: João Paulo de Albuquerque Maranhão. Todavia, por conta de
perseguições políticas, Enéas Martins teve de se transferir para Manaus, passando, na ocasião, a direção da Folha
do Norte a Cipriano Santos, médico e político paraense.
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Localizada na Avenida Gentil Bittencourt, nº 650, Bairro de Nazaré, Belém. Abriga em suas dependências o setor de
microfilmagens que tem como missão higienizar, restaurar e microfilmar periódicos editados no Pará nos séculos XIX e XX
e obras raras, tornando-os disponíveis para consulta.
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De acordo com Rocque (1968), no início do século XIX, o jornal A Folha do Norte, começou, de fato, sua
primeira grande campanha: A vida política do Pará. E esta etapa era dividida em duas correntes: lemismo (que
apoiava o Intendente Antônio Lemos, senhor todo poderoso) e laurismo (que apoiava o ex. Governador Lauro
Sodré). As brigas políticas eram frequentes e se refletiam nas folhas do jornal, o que pode ser ratificado no trecho
a seguir, retirado da Grande Enciclopédia da Amazônia, de Carlos Rocque:
Governava o Estado o dr. Paes de Carvalho, sucedido pelo dr. Augusto Montenegro,
que administrou o Pará 8 anos consecutivos. A oposição que lhe fêz a Fôlha foi
cerrada: seus redatores eram espancados, suas edições eram apreendidas pela polícia.
Não havia garantia nenhuma, tanto que Paulo Maranhão, vítima de covarde agressão,
ficou durante todo o período de lutas, por anos a fios, nos altos do prédio do jornal,
pois caso contrário seria silenciada pelos capangas do lemismo. (ROCQUE, 1968 p.
729).
O editorialista Paulo Maranhão era perseguido, pois em sua coluna diária denominada Gazetilha, fazia
críticas às duas políticas (lemismo e laurismo). O que se nota, até então, é que o jornal Folha do Nortefoipalco de
grandes embates políticos tendo como um de seus objetivos o combate à política de Antônio Lemos. Lauro
Sodré chegara a Belém como candidato da oposição do Governo. Era o fim do lemismo. Depois de tanto
trabalhar e escrever matérias na Folha do Norte, a respeito da situação política em que o Pará estava inserido, em
abril de 1966 falecia o velho jornalista Paulo Maranhão, que dedicou 71 anos de sua vida ao jornal. Segundo os
estudos de Rocque (1968), com a morte de Paulo Maranhão, assumiu a direção do jornal seu filho Clóvis
Maranhão.
Apesar de os redatores do Jornal Folha do Norte retratarem na maioria de suas matérias, como foi visto
acima, o contexto político-social nas páginas do periódico, existiam também outras seções, que tratavam dos
demais assuntos da cidade. Em todas as edições publicadas o jornal fazia questão de mencionar sua recepção
com os diversos tipos de notícias: ―Absolutamente imparcial, a Folha do Norte recebe e publica todos e
quaisquer artigos, notícias e informações, comtanto que lançados em termos convenientes. (NORTE,
1896,s./p).‖
Circulavam no jornal as mais variadas notícias, nacionais, locais, também textos de cunho literário dos
mais variados estilos, como poesias, crônicas e prosas de ficção e, dentre essas, as diversas publicações do
escritor Machado de Assis, como veremos a seguir.
3. Machado de Assis nos periódicos
A produção literária de Machado de Assis, inclui, além de romances, contos, crônicas e textos
ensaísticos. Entre os contos, grande parte foi publicada em periódicos, antes da sua edição em livro. A exemplo
do conto ―Uma Carta‖, que foi publicado no Rio de Janeiro na Revista B.L Guarnier no ano de 1870, Esse
periódico foi de fundamental importância para esse início de carreira de Machado de Assis como contista. E,
110
neste mesmo periódico, o conto foi traduzido para o Italiano e Espanhol, bem como também foi publicado em
forma de peça teatral. Ou seja, antes de ser publicado no jornal Folha do Norte em 1896,―Uma Carta‖ já havia
circulado na cidade do Rio de Janeiro, tanto em periódicos, quanto na edição em livro, a primeira coletânea de
contos de autoria de Machado de Assis, Contos Fluminenses,obra composta por oito contos, lançada em 1870.
O conto ―Uma Carta‖ parte da obra ―Contos Fluminenses‖ (1870), teve as seguintes publicações durante o
século XIX:
Cidade
Editora
Ano
Rio de Janeiro
B.L Garnier
1870
Belém
Folha do Norte
1896
Rio de Janeiro
B.L Garnier
1899
Rio de Janeiro
B.L Garnier
1920
Rio de Janeiro
B.L Garnier
1924
Rio de Janeiro
W.M Jackson
1937
Rio de Janeiro
W.M Jackson Inc. Editores
1942
Rio de Janeiro
W.M Jackson Inc. Editores
1944
Rio de Janeiro
W.M Jackson Inc. Editores
1950
Rio de Janeiro
W.M Jackson Inc. Editores
1952
Outras edições dos Contos Fluminenses (1870), a partir do século XX:
Cidade
Editora
Ano
Rio de Janeiro
L&MP Editores
1990
Rio de Janeiro
ATICA
1997
Rio de Janeiro IBEP NACIONAL
2004
Rio de Janeiro
2006
DCL
Rio de Janeiro WMF Martins Fontes
2006
Rio de Janeiro GLOBUS EDITORA
2009
Rio de Janeiro
2012
Martin Claret
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A Folha do Norte dividia suas páginas em várias seções como: ―Jornalzinho de Domingo‖, ―Gargalhadas‖,
―Telegramas‖, ―Notas Artísticas‖, ―Boletim do Commercio‖, ―Venda‖, etc. E, também, mantinha contato com o
noticiário de outras regiões e com outros jornais. Quando o jornal publicava contos, não havia necessariamente
uma seção específica para a publicação dos mesmos. Geralmente encontravam-se no final da primeira página, do
jornal, em meio às seções que traziam ao leitor notícias locais e nacionais.
O conto ―Uma Carta‖ foi publicado em 17 de março de 1896. A história é narrada em terceira pessoa,
tendo como personagem principal, Celestina, uma mulher de 38 anos que vivia com Joaninha, sua irmã mais
nova, e a mãe. A protagonista da trama alimenta profunda melancolia por nunca ter encontrado um pretendente
que quisesse desposá-la. Contudo, essa condição se modifica quando ela encontra uma carta cujo conteúdo era
extremamente romântico, e denunciava um amor não correspondido, como se pode ver no trecho a seguir:
Meu anjo adorado: − Perdôe-me esta audácia, mas não posso mais resistir ao desejo
de lhe abrir o meu coração e dizer que a adoro com tôdas as forças da minha alma.
Mais de uma vez
tenho pela rua, sem que a senhora me dê a esmola de um olhar, e
há muito tempo que suspiro por lhe dizer isto e lhe dizer isto e pedir-lhe que me faça
o ente mais feliz do mundo. (ASSIS, 1896).
Por estar sem remetente, Celestina imaginou que a missiva lhe pertencia, e tomou-a para si. Emocionada
com o achado, a personagem tentou dividir o conteúdo da carta com a irmã mais nova, mas desistiu do intento
por vergonha. Conforme iam passando os dias, Celestina fazia planos, sonhava acordada com seu pretendente
misterioso. Seu desejo era que ele a tomasse em casamento, porém não isso não aconteceu.
Certo dia, quando Celestina encontrava-se entre seus sonhos de casamento e suas ocupações, a
empregada entra no quarto, apressada, e pergunta se ela viu a carta escondida em sua cesta, e Celestina diz que
sim. Seus sonhos se frustraram quando a criada revelou para quem a carta fora enviada: sua irmã mais nova.
Desapontada, a mulher chora e afirma que aquela seria a última lágrima que o amor lhe arrancara.
A história se passa no Rio de Janeiro entre 1860 e 1862. No conto referido, notam-se quatro
personagens distintas socialmente na trama: a solteirona que se preocupa por estar velha e não ter casado, a irmã
mais nova Joanninha, a criada, que é negra, portanto, desprovida de status social, entretanto, apresenta papel
fundamental na narrativa por ser uma confidente amorosa de Celestina. E a mãe, que por estar cega, acaba tendo
como destino ficar na janela de sua casa para ter conhecimento de quem está circulando, e assim, sua vida segue.
Existe também na história, um pretendente, mas ele não aparece fisicamente, apenas como redator da carta que
Celestina encontra.
Como a história se passa na cidade do Rio de Janeiro, o escritor Machado de Assis se vale de suas
personagens como Celestina para representar as convenções que estabeleciam o lugar da mulher na
sociedadenaquela época. As mulheres deveriam pensar em casamento antes mesmo de entrarem na adolescência,
tinham que ter em mente suas obrigações como esposas que deveriam servir bem a seu marido. Como consta na
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passagem a seguir: ―A ideia de casar entrou na cabeça de Celestina, desde os treze annos, e alli se conservou até
os trinta e oito; mas ultimamente Ella a perdera de todo, e só se enfeitava para desafiar o destino. (Assis, 1896)”.
Machado de Assis, em seu conto, de certa maneira vai contra os preceitos impostos às mulheres, pois
mostra que, por mais que a mulher queira casar, ter filhos, cuidar dos afazeres domésticos, nem sempre é esse
seu destino. As mulheres podem não casar, não ter pretendentes não serem amadas, e viverem normalmente sem
constituir família.
Por ser realista, Machado de Assis rompe com os preceitos do romantismo ao descrever suas
personagens, no caso de Celestina, poderia ser uma mulher robusta, nova, elegante, bonita, mas era justamente o
contrário: ―Não era bonita, mas a carta deu-lhe uma alta ideia de suas graças. Contava então trinta e nove annos,
parece mesmo que mais um;‖ (ASSIS, 1896).
A narrativa rompe com o famoso ―final feliz‖. Celestina poderia ter sido a destinatária da carta de amor,
o que justamente era isso que o leitor poderia imaginar. Fato que não acontece. Celestina é traída por seu sonho,
acorda e se vê na mesma condição de solteira e sem esperança de casamento. Assis foi o diálogo da descoberta
de Celestina com sua escrava:
− Nhã Titina
− Que é?
A preta hesitou.
− Falla, fala.
−Nhã Titina achou na sua cesta uma carta?
− Achei.
− Vosmecê me perdôe, mas a carta era para Nhã Joanninha.... (ASSIS, 1896).
Sendo assim, as obras de Machado de Assis como contista estiveram intimamente ligadas à imprensa
periódica, e que em determinada época, foram destinados a leitores e leitoras de Belém. Dessa maneira,
possibilitando que o público paraense mantivesse contato com um dos maiores escritores da Literatura Nacional.
4. Conclusão
A relação que se estabeleceu entre Literatura e Imprensa serviu como ponte difusora para a circulação dos
contos de Machado de Assis nos periódicos, como aconteceu em Belém, no jornal Folha do Norte. O estudo dos
periódicos possibilita visibilizar o que de termos literários circulava na época oitocentista. Este trabalho buscou
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divulgar os contos de Machado de Assis publicados no periódico paraense, e, assim como outras pesquisas no
ramo, objetivou trazer à tona as práticas de leitura que ocorriam no passado.
É possível observar no conto ―Uma Carta‖, a crítica social que, na maioria das vezes, está presente nas
obras de Machado de Assis, e no texto em questão não foi diferente. O escritor critica a sociedade que insere no
pensamento feminino o desejo de casar, ter filhos e servir ao marido. A desilusão amorosa que se nota no conto
do escritor serve para mostrar que o destino imposto pela sociedade às mulheres nem sempre é possível que se
consume.
Por fim, seja qual for o suporte, jornal ou livro, as pesquisas não se esgotam. As novas informações estão
por aparecer nestes arquivos. E com esse tipo de acervo pode-se notar a grande importância, não só, de um
ponto de vista histórico, mas também sob o olhar que muitas vezes só um escritor sabe representar.
5. Referências
BARBOSA, Socorro de Fátima Pacífico. Jornal e Literatura: a imprensa brasileira no século XIX. Porto Alegre:
Nova Prova, 2007.
ROCQUE, Carlos. Grande Enciclopédia da Amazônia. Copyright, 1968.
Machado de Assis na ABL. Disponível em: www.machadodeassis.org.br. Acesso em: 29 abr.2013.
ASSIS, Machado de. Contos Fluminenses. W. M Jackson. Rio de Janeiro, 1952.
114
ANÁLISE SEMÂNTICO-DISCURSIVA DE POEMAS: A LITERATURA
COMO FENÔMENO DE CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE CULTURAL
AMAPAENSE
Danielle Marques GOMES (UEAP) 43
Orientador: Francesco MARINO44
Resumo:O presente estudotem como objeto de análise a literatura amapaense, a qual constitui-se de um fazer
literário peculiar, que resulta em textos refletores de cultura. A metodologia utilizada foi a análise de textos
principalmente da obra ―Coletânea de poetas, contistas e crônicas do meio do mundo‖. O artigo está dividido em quatro
seções fundamentais: inicialmente ocorre a introdução ao tema, posteriormente nos capítulos dois e três as
principais temáticas são abordadas, por último há o encerramento com a conclusão que retoma as ideias,
fortalecendo o embasamento do estudo.
Palavras-chave: Construção poética; Cultura nortista; Formação discursiva.
Abstract:The present study has as its object of analysis literature Amapá, which constitutes a peculiar literary do,
which results in texts reflectors culture. The methodology used was the analysis of texts mainly the work "A
collection of poets, storytellers and chronic middle of the world." The article is divided into four key sections:
first is the introduction to the topic later in chapters two three major themes are addressed, there is finally
closing with the conclusion that reproduces the ideas, strengthening the foundation of the study.
Keywords: Construction poetic; Culture northerner; Discursive formation.
Introdução
Esta pesquisa tem como área investigativa a literatura, contudo os estudos serão embasados em teorias
semânticas e discursivas as quais serão fundamentais para a explanação e analise de textos que representam a
cultura amapaense. Revelando a importância que há na utilização destas duas ciências para que seja possível
analises literárias que possuam um estudo amplo e investigativo que ratifiquem a importância da construção
literária.
Graduanda em Licenciatura em Letras com habilitação em Língua Inglesa–UEAP. E-mail:
[email protected]
43
MESTRE em Letras (Classe: Filologia Moderna, Esp. Literatura Portuguesa e Brasileira)- Università degli Studi di Padova.
Professor de Literatura (UEAP)- Orientador. E-mail: [email protected]
44
115
Por meio de embasamentos teóricos das áreas literárias, discursivas, semânticas e demais estudos que
possam ser deste interesse investigativo, este artigo irá fazer uma interação dialógica entre literatura e construção
discursiva; e principalmente entre literatura e cultura, mais especificamente a amapaense.
Desse modo, será feita uma abordagem analítica de poemas e contos da obra ―Coletânea de poetas,
contistas e cronistas do meio do mundo‖, elucidando a construção poética e discursiva dos textos de autores
como Carla Nobre, Ricardo Pontes e Osvaldo Simões. O fazer poético destes escritores baseiam-se em uma
representação simbólica que contribui de forma significante para a divulgação da cultura nortista.
A pesquisa é bibliográfica e tem como objetivo caracterizar a construção literária, evidenciando as
manifestações culturais. Como principais bases teóricas para a análise do objeto de estudo (a obra ―Coletânea de
poetas contistas e cronistas do meio do mundo‖) usou-se os livros ―O estudo analítico do poema‖ de Antônio
Candido (1996), ―A Semântica‖ de Irène Tamba- Mecz (2006) e ―Análise de textos de comunicação‖ de
Dominique Maingueneau. Este embasamento justifica-se pela necessidade em abordar, de maneira interativa e
diversificada, a formação discursiva e poética.
A investigação literária em questão apresenta relevância, pois além de definir com bases teóricas e
metodológicas a representatividade cultural e discursiva dos poemas e contos, também fundamentará outros
estudos analíticos de textos literários. Com o presente estudo, o qual está vinculado ao Grupo de pesquisa
linguística e literatura-UEAP, espera-se que os resultados expostos sejam esclarecedores e estimulem aos
interessados e estudiosos da linguagem e literatura a intensificar as investigações literárias regionais.
1. A construção da identidade cultural na literatura
A literatura proporciona aos estudiosos analises referente aos elementos intrínsecos e extrínsecos que a
englobam, partindo deste pressuposto, é necessário que haja estudos como este que abordem os elementos
culturais presentes na literatura.
Na obra Coletânea de poetas, contistas e cronistas do meio do mundo é possível observar um fazer literário de
escritores locais do estado do Amapá, no qual são descritos elementos típicos da cultura e vida.
Personagens fictícios ou não, urbanos ou interioranos movimentam-se e dão vida aos
temas escolhidos pelos autores, no intuito da literatura amazônida. Fica o leitor
convidado a participar desta viagem inaugural pelos caminhos poeirentos, alagados,
aéreos e subjetivos. (CORRÊA, 2010, p.8)
Esta construção literária, na obra já citada, faz com que o leitor sinta-se convidado e induzido a conhecer
a cultura de um povo por meio de representações simbólicas que são mostradas ao transcorrer de determinado
texto que serão analisados ainda neste artigo.. A diversidade cultural é algo que integra determinados contextos
históricos marcados e registrados pela ficção literária, interpretar o sentido de textos e observar os discursos
presentes no mesmo significa conhecer o funcionamento da sociedade no qual se vive.
116
A cultura é um elemento primordial da sociedade, pois caracteriza e representa a vida, além de ser a
teoria base do fenômeno de construção da identidade.
As discussões teóricas sobre cultura sinalizam, assim, nitidamente, uma tendência a
entendê-la como saber coletivo produzido por processos cognitivos e comunicativos
heterogêneos, em função dos quais os indivíduos definem as suas esferas de realidade.
Essa situação reflete-se de forma potencializada nos diálogos com uma dimensão
igualmente complexa: a literatura. (OLINTO, 2007, p. 8)
Dessa forma, nota-se que a literatura evidentemente proporciona um diálogo significativo quando tende
a comunicar questões que representam, mesmo não necessariamente sendo verdadeira, a realidade por meio de
narrativas ou mesmo pelo que pode-se chamar de ficção real..
2. Teorias de estudos: analise semântico-discursiva:
As compreensões de textos precisam ser fundamentadas em teorias que sejam explicativas, para que
desse modo os investigadores não façam deduções pessoais no lugar de mostrar o que o texto realmente diz ou
expõe. Assim, neste trabalho far-se-á uma abordagem bidimensional que trate tanto dodiscurso quando da
construção simbólica do texto.
Relacionar os estudos discursivos à literatura ou mesmo utiliza-los para compreende-la deve ser feita de
maneira cautelosa para que o leitor-pesquisador compreenda além de questões interpretativas simples.
A análise de discurso ocupa assim esse lugar em que reconhece a impossibilidade de
um acesso direto ao sentido e que tem como característica considerar a interpretação
como objeto de reflexão. Ela se apresenta como uma teoria da interpretação no sentido
forte. Isto significa que a análise de discurso coloca a questão da interpretação, ou,
melhor, a interpretação é posta em questão pela análise do discurso. (PÊCHEUX,
2009, p. 58)
Conforme este conceito nota-se que a Análise do discurso contribui verdadeiramente para a
compreensão de textos, sendo assim uma ferramenta a qual modifica análise simples, tornando-a mais embasada
e satisfatória.
As questões discursivas de um texto literário contribuem para a compreensão da maneira que o
determinado texto formula sentido. Esta estruturação simbólica pode está acompanhada de ideologias por isso é
necessário a compreensão analítico do conteúdo pois:
Na medida em que a análise de discurso trabalha o efeito ideológico, ela toma posição
face a um conjunto de questões colocadas em relação `a significação e à história. Na
construção de seu dispositivo, ela teoriza sobre o fato da interpretação.
(ORLANDI,2001, p.38)
117
Dessa forma, o texto é descrito e o leitor compreende verdadeiramente o funcionamento da produção
que envolve a significação e o significado.
Outro aspecto relevante neste estudo, é a necessidade de compreender o texto de forma integra na
expressividade literária, isto colabora para os estudos referentes a literatura
O estudo do texto importa em considerá-lo da maneira mais íntegra possível, como
comunicação, mas ao mesmo tempo, e sobretudo, como expressão. O que o artista
tem a comunicar, ele o faz na medida em que se exprime. A expressão é o aspecto
fundamental da arte e portanto da literatura.(CANDIDO, p.17)
Essa estratégia de pesquisa proporciona à literatura amapaense a ampliação do conhecimento expressivo
da arte literária da região amazônica.
3.1. Análise de poemas
O objeto de estudo deste artigo são os textos contidos na Coletânea de poetas, contistas e cronistas do meio do
mundo (poesias), é válido enfatizar que há duas obras que possuem este título, um é de crônicas e contos,
outro(este que é o objeto deste artigo) possui poesias. A coletânea de crônicas, assim coma de poesias, possui
trechos narrativos que contam de maneira ficcional alguns momentos históricos do estado do Amapá ou mesmo
expõem questões da vida (dia-a-dia) de pessoas que residem-no estado.
O livro possui o total de 82(oitenta e dois) poemas, sendo que 52(cinquenta e dois) destes não abordam
temáticas relacionadas a cultura ou vida amapaense, restando a quantia de 28(vinte e oito), desta quantidade
15(quinse) citam em algumas estrofes questões que referem-se a cultura amapaense, contudo apenas fazendo
uma relação com as demais temáticas que estão presentes, assim pode-se dizer que 13(treze) dos poemas
abordam diretamente a temática cultural ou demais representações simbólicas referentes ao Amapá.
Abaixo, por meio da análise, é possivel identificar os poemas semanticamente e discursivamente:
PADROEIRO
Bem distante lá se vem o barco
No balanço das águas do rio,
Na vista da cidade e benção me protege,
A pedra branca no auto das águas,
Olha para dentro de mim.
118
Ao gorjeto da fortaleza,
Nada mais que tantos passos da romaria,
Lá se vai à procissão,
Traz na frente o pagador de promessas,
Entoiando as mais belas canções
No arraial tinha marabaixo,
Nos olhos do santo brilha a felicidade
E tuas mãos abençoam esta cidade,
Na corrente das águas do rio Amazonas,
Lá na beira mar. Vejo mansamente.
Meu São José de Macapá
(RICARDO PONTES)
Semanticamente ocorre manifestações culturais por meio das palavras que demonstram e evidenciam a
construção simbólica que há em tordo dos elementos contidos no poema, as palavras ―barco‖, ―água‖, ―rio‖
representam elementos naturais.Na primeira estrofe há a descrição de um barco que navega no rio
(possivelmente o Amazonas) e repentinamente quem está nele avista a pedra branca e em seguida ao ver a cidade
começa a perceber algo, possivelmente lembranças culturais que estão em suas memórias. A segundo estrofe
mostra elementos religiosos como a romaria, procissão e promessas. Neste mesmo trecho nota-se uma persuasão
ao definir as canções religiosas (católicas, já que são cantadas em romarias) que ele define como belas. Em todos
os versos que seguem, há uma continua retomada a temática religiosa, representada pela devoção ao padroeiro de
Macapá, São José.
MACAPARAENSE
Coisa gostosa cheia de calor
Eu só encontro no meu aconchego.
No equador tem canto tem canto de sereias
Deitadas nos seios das águas dos rios.
Ele é a porta da felicidade
Pra muita gentedo lado de lá
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É uma vai e vem de gente maravilhadas
Nos rios da Amazônia Macapá-Pará
No norte tem São José e São Paulo
Tem Rio de Janeiro
também rios de todos os meses
que permitem de navegar e
Viajar com os santos do meu lugar
Cheio cheiroso perfume gostoso
Morena açucena gosto de açaí
Ferro danado antes venenoso
Agora entra(gostoso) macio
No sul do país
Eu sou macaparaense
Macaparaense eu sou
O meu coração balança
Entre dois amores que me fazem feliz
(JÔ MASSAN)
Fazendo a análise literária do poema acima, nota-se a literariedade por meio da construção de sentido
das palavras. No primeiro verso, a ―coisa gostosa‖, a qual o eu-lírico expõe, representa a cidade, neste caso
Macapá.
Quando se analisa um texto, observa-se a construção simbólica que ocorre em torno dele, desse modo
nota-se que:
O sentido é um dado tão imediato e fundamental em experiência cotidiana da
linguagem que não é de admirar reações de espanto diante do surgimento tardio e do
estatuto controverso e ainda incerto da ―ciência‖ chamada semântica, que faz do
sentido seu campo de estudos. (MECZ, 2006, p.8)
120
Ao analisar o título nota-se a apresentação da temática do poema por meio de um neologismo formado
pela união das palavras macapaense e paraense, este termo faz com que o leitor perceba que o eu-poético possui
uma relação de intimidade possivelmente com as duas culturas, isto é, da cidade de Macapá (capital do estado do
Amapá) e do estado do Pará. Em o verso terceiro, quando é falado no ―canto de sereias‖ percebe-se o uso de
questões lendárias típicas da região norte e amazônica, que neste caso faz referencia a lenda de sereias.
Ainda abordando a representação semiótica das palavras neste poema, avalia-se que a parte ―Ele é a
porta da felicidade‖ o pronome ―Ele‖ refere-se ao rio que mesmo sendo um elemento da natureza,
historicamente tornou-se ou foi tornado- já que o homem que induziu a esta transformação-via de acesso onde
por meio de barcos, canoas, navios, ocorre o trafego de pessoas do Amapá para o Pará e vice-versa.
Na terceira estrofe, são citados dois nomes desantos o primeiro é padroeiro da cidade de Macapá e o
outro é da cidade de São Paulo, isso demonstra. Quando é dito ―tem Rio de janeiro‖ mesmo o nome sendo
escrito comletras maiúscula, ele não refere-se essencialmente ao do Rio de Janeiro, mas sim primordialmente faz
referencia ao elemento da natureza que é o rio, mostrando que ele cotidianamente está presente na vida dos
habitantes da região.
No penúltimo verso o autor exalta a beleza das mulheres quando diz ―Morena açucena‖, há um
elementometafórico quando a mulher é comparada a uma fruta típica da região. Além disso, ocorre nos últimos
versos um retorno ao título, pois há o engrandecimento do ato dele se macaparaense, o qual alegra o coração por
ele possuir carinho tanto pelo Pará quando Macapá, inclusive por ele se sentir como macapaense eparaense ao
mesmo tempo.
RUFANDO OS TAMBORES
Ao som dos tambores
Tu danças, cantando os ladrões
De versos bonitos e encantadores
Que retratam o nosso passado e presente de flores.
Cantando e dançando
Com a toalha no ombro me chamas atenção
Negra bonita de bom coração
És a figura que marca a nação.
Retratas tão bem a nossa cultura
121
E preservas as raízes do nosso Amapá.
Ó moça de pele macia!
Teus pés delicados levantam poeira
De rosto franzido. Negra formosa,
Teu corpo rebola a dança daqui.
És extrovertida e muito charmosa
E a gengibirra é a bebida pra ti.
Da dança folclórica é a mensageira
Que levas adiante o marabaixo
(de cabeça amarrada) cantando e dançando
Olhando pra todos diante do mastro
Ao redor dos tocadores, cantando bem alto
Da saia longa levantas a barra
Em coreografia e círculo aramado
Deixas o povo maravilhado
(JOÃO BARBOSA)
Discursivamente, é observado que o título refere-se ao som dos tambores que rufam, entoando músicas.
A utilização do gerúndio non verbo presente no texto evidencia uma atitude contínua isto é, algo que por está
ocorrendo desperta várias sensações como serão demonstradas a seguir.
O discurso é construído em torno de elementos típicos do marabaixo- dança típica que há no estado do Amapáisto demonstra uma manifestação que mantém tradições inerentes do Amapá, além de refletir elementos da
dança, há a manifestação religiosa e musical.
122
Conclusão
Nesta pesquisa foi possível detectar como é feita a construção literária amapaense pois, enfatizou-se o
estudos dos elementos semióticos e a representação discursiva das palavras. Desse modo foi feito a análise
criteriosa das manifestações dos elementos regionais, elas ocorrem englobando os eixos socioculturais da religião,
dança e música.
Espera-se que os leitores deste artigo possam sentir-se induzidos a conhecer a cultura nortista e as
diversificadas manifestações que a envolve, principalmente ao que se refere a literatura.
REFERÊNCIAS:
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OLINTO, Heidrun Krieger. Literatura e cultura. 14.ed.-Petrópolis, Rio de Janeiro: PUC, 2007
ORLANDI, Eni P. Discurso e texto: formulação e circulação dos sentidos. Campinas: Pontes, 2001.
PECHEUX, Michel. Semântica e discurso. São Paulo: Unicamp, 200
123
TESSITURA FEMININA
Denise Araújo Lobato45
Profa.: Drª Germana Maria Araújo Sales (orientadora)46
Resumo: Assinada pela escritora brasileira Inês Sabino, o romance Lutas do coração, publicado em 1898,
constituiu o objeto de estudo deste trabalho, para tanto, lê-lo e analisá-lo levou-nos a depreender que a autora
analisa a psicologia das três personagens femininas principais do romance, em vistas a refletir sobre a própria
condição da mulher brasileira dos fins do século XIX, levando o leitor a elucubrar acerca dos direitos políticos,
econômicos e sociais da mulher. Desta forma, esta pesquisa pretende ler e analisar a obra Lutas do coração, bem
como verificar sua inserção na historia literária brasileira
Palavras-chave: Romance feminino; Inês Sabino; Século XIX
Abstract: Signed by Brazilian writer Inês Sabino, romance Fights Heart, published in 1898, was the object of this
paper, therefore, read it and analyze it led us to conclude that the author analyzes the psychology of the three
female characters major romance in order to reflect on the very nature of Brazilian women of the late XIX
century, leading the reader to reflect about the political, economic and social woman. Thus, this research aims to
read and analyze the work of the heart struggles as well as check their insertion in Brazilian literary history.
Keywords: Romance feminine; Inês Sabino; XIX century.
1. Introdução
As páginas de escrita no Brasil registraram muitos nomes de mulheres que subverteram o ordenamento
vigente, pois enquanto lhes era negado o acesso ao ―mundo intelectual‖, ao mundo das letras, muitas foram as
que escreveram seus nomes como produtoras de romances, mesmo num período no qual ―à mulher é negada a
autonomia, a subjetividade necessária à criação‖ (TELLES, 2000, p. 403).
Depreende-se do estudo que se faz da escrita feminina que esse ofício era mais um dos territórios
impróprios às mulheres, sobretudo porque a muitas era sequer permitido estudar, quando muito aprendiam a ler,
havia proibições mil acerca de quais leituras eram ou não admitidas: ―Mulheres leitoras eram um perigo. Maior
45Aluna
de graduação do curso de Letras. Habilitação em Língua Portuguesa da Universidade Federal do Pará (UFPA).
Bolsista PIBID-CAPES. E-mail [email protected]
46Professora
do Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal do Pará (UFPA). E-mail:
[email protected]
124
perigo ainda eram mulheres leitoras de romances‖ (ABREU, 2006, p. 43). Se estas eram um perigo, o que seriam
as produtoras de romance? Uma verdadeira heresia, por certo!
No entanto, o que seria uma heresia no julgo masculino, para elas era como asas se desatando de prisões,
verdadeira libertação clandestina. Seus imaginários fecundos e criadores eram um território de refúgio. Literatura
para elas não se tratava de transgressão simplesmente, era ―saída secreta da clausura da linguagem e de um
pensamento masculino que as pensava e descrevia in absentia‖ (FREITAS, 2002, p. 116).
Dentro dessa conjuntura, é valido sublinhar que o XIX, é considerado o século do romance, e que é ele
o responsável por diversas transformações na estrutura social, provocando uma efervescência cultural e literária
que teve grande participação feminina. E de acordo com Norma Teles:
[...] foi a partir dessa época que um grande número de mulheres começou a escrever e
publicar, tanto na Europa quanto nas Américas. Tiveram primeiro de aceder á palavra
escrita, difícil numa época em que se valoriza a erudição, mas lhes era negada
educação superior, ou mesmo qualquer educação a não ser a das prendas domésticas;
tiveram de ler o que sobre ela se escreveu, tanto nos romances quanto nos livros de
moral, etiqueta ou catecismo. A seguir, de um modo ou de outro, tiveram de rever o
que se dizia e rever a própria socialização. Tudo isso tornava difícil a formulação do
eu, necessária e anterior à expressão ficcional (TELLES, 2000, p. 402).
Não obstante, muito antes do século XIX, as mulheres já escreviam e publicavam, como se verifica no
livro Mulheres Ilustres do Brasil47 (SABINO,1996), no qual a autora faz um resgate de mulheres48 que foram
esquecidas, mas que de uma forma ou de outra escreveram a história, pois deixaram a força quase indomável de
ser mulher multifacetada e vigorosa, sair do jardim fechado que é o seu interior, para dá vida, beleza ao mundo
no qual quem exercia sua força era o homem.
Dentre as questões que cingem a prosa de ficção feminina, é cerne que grande parte dessas escritoras
não faz parte do cânone literário brasileiro. E como escreve SALES (2003), surge a curiosidade de se saber quem
são essas mulheres que ficaram esquecidas, que tiveram suas imagens delidas do quadro que comporia, na sua
totalidade, a literatura brasileira. A referida autora registra ainda que:
47.
Figuram nesta obra, mulheres de força e coragem, mulheres de fé, religiosas, mulheres de zelo e cuidado, de luta,
mulheres de maternal afeto, de fraternais atitudes, mulheres escritoras, tradutoras, políticas, filósofas, mesmo num meio
social em que eram raras as mulheres letradas, como muito bem se evidencia no seguinte excerto: ―A mulher colonial vivia
nas trevas da ignorância, raríssima era a que tinha educação mais apurada, e no que diz respeito à literatura, completa
ausência de meio e de professores‖. (p. 71-72). Neste jardim de valiosas flores, Sabino descreve aquelas mulheres que foram
as primeiras mentes femininas a desabrochar para a arte das letras. Consta nesta obra o nome de D. Joanna de Souza como a
primeira mulher instruída no Brasil. Ainda segundo os registros da autora, Angela do Amaral foi a primeira poetiza brasileira.
Sendo válido frisar que ela era cega de nascença e pobre.
Dentre as mulheres que Inês Sabino arrola na referida obra, destaco: Nizia Floresta, Anna Lossio Seiblitz, Baroneza de
Mamanguape, D. Maria Ribeiro, Delfina da Cunha. D. Corina Coaracy, D. Rosa da Fonseca, D. Revocata dos Passos e Mello, D. Amalia
Figuerôa, Laura Carolina e D. Maria Helena da Camara Andrade Pinto,Beatriz Brandão, Délia etc foram as nossas primeiras
escritoras
48
125
As histórias literárias deixaram de incluir entre Macedo, Alencar e Machado,
romancistas que ilustram a história do romance brasileiro, deixaram de fora do
contexto os nomes femininos que somaram na produção de prosa de ficção e que
ficaram à margem. As mulheres, no século XIX, surgem como representações
literárias não só de leitoras, mas, também de escritoras de romances. Comprovar a
existência de escritura em prosa de ficção com autoria feminina
é um contraponto aos implacáveis historiadores e críticos da literatura que omitiram
páginas fundamentais da nossa formação seja como leitores, professores,
pesquisadores ou educadores. (SALES, 2003, p. 89)
Essa ausência de nomes femininos no cânone pode ser justificada, com a proposição de Luiz Ruffato
(2009), pois segundo ele ―o tribunal que julga quem deve participar do cânone literário sempre se formou por
homens‖. Entretanto, essa omissão, começa a ser revista a partir do momento em que pesquisadoras (es) passam
a se dedicar ao estudo de resgate dessas escritoras que contribuíram na formação da literatura brasileira.
2. A tessitura romanesca de Inês Sabino
Notabilizando o espaço das mulheres nas escritas de páginas de romance no Brasil, Inês Sabino
apresenta ao leitor Lutas do coração, que apresenta 279 páginas de romance, distribuídas em 49 capítulos, e 56
páginas que se prestam à introdução e ao prefácio.
Segundo Araújo (2008, p. 242) é com o romance Lutas do Coração que Inês principia como romancista.
Afirma ainda que quando este livro foi publicado, ela já era escritora conhecida em Portugal, tendo a recepção ao
livro publicada num periódico de Lisboa, na secção ―Publicações recebidas‖.
Nas primeiras 56 páginas da obra, o leitor tem uma apresentação de Susan Canty Quinlan, que ambienta,
situa e antecipa muito do que é a narrativa, ao sintetizar o enredo dela, e suas personagens principais, bem como
a composição destas, sem é claro deixar de imprimir aquelas páginas suas impressões de leitora e de crítica. Temse ainda, seguida desta apresentação, o prefácio de Alberto Pimentel que também falará do romance em questão,
da biografia de Inês Sabino, de sua produção literária, de sua contribuição às letras.
Em Lutas do Coração, tem-se uma narradora, e não um narrador, o que é constatado no trecho: ―[...]
nós, leitora amada, que temos ocupações de outro gênero [...]‖ (SABINO, 1999, p.62)49. E esta narradora é
onisciente e onipresente, além de em algumas passagens ser também intrusa, pois fala com a leitora, como na
passagem supracitada, e nesta: ―Vamos, leitora amiga, saber alguma coisa acerca da família com quem tanto nos
temos familiarizado [...]‖ (SABINO, 1999, p. 193).
49Nesta
passagem, a narradora, ao referir-se a ―outro gênero‖, faz referência às questões do gênero feminino.
126
No primeiro capítulo, Sabino nos apresenta a personagem de Hermano Guimarães, rapaz solteiro,
engenheiro civil, que vivera 22 anos na Europa e que de regresso estava ao Brasil. Figuram ainda o tio dele (o
barão de Santa Júlia) e o seu amigo Dr. Mendonça. É interessante frisar como a autora vai apresentando a ação
das personagens e entrecruzando-a com descrições da geografia do Brasil (mais em especial a do Rio de Janeiro,
onde é ambientado o romance), conferindo-nos sua sensibilidade, sua percepção e seu conhecimento do espaço
físico do seu país.
Atendo-se a isto, destaca-se quando ela descreve a paisagem da cidade carioca, apresentando-nos um
belo retrato do Brasil nos fins do século XIX, como na passagem abaixo, extraída do capítulo II:
O sol derramava os seus raios de prata, deixando o ambiente como que envolto em
tênue escumilha prateada, que, na transparência de seu brilho, espargia ondulações
sobre as vagas da lindíssima Baía de Guanabara, semeada de ilhotas, em cuja
configuração, apresentando o verde-negro dos morros alcantilhados que a cercam, dão
à nossa natureza o aspecto de um quadro único e original (SABINO, 1999, p. 69 ).
A importância de se destacar isto na escrita de Sabino, em Lutas do Coração, é o fato de que as descrições
que ela faz do espaço geográfico brasileiro tantas vezes parece conjugar-se ao cenário interior das personagens;
outras vezes se percebe que é só uma bela pintura do seu nacionalismo que se desenha nas páginas da narrativa,
que aflora em seu íntimo e como uma Tarsila do Amaral faz com que as cores vibrantes do seu país se esparjam
numa aquarela caleidoscópica de belezas. O fato é que essas descrições minuciosas e prolongadas dão um tom
poético à prosa.
Com relação às personagens da obra, segue a baixo quadro esquemático com os nomes, para tanto,
dividimos as personagens femininas das masculinas.
Quadro esquemático I: personagens
Ofélia (PP*)
Angelina (PP*)
Matilde (PP*)
Madame Hardington: inglesa que se torna amiga de Ofélia e a ajuda
Personagens
Amélia : ama de Ofélia
Femininas
Vera
Baronesa de Santa Júlia: Mãe de Angelina
127
Mãe de Matilde
Cartomante Mª Rosa
Laura de Freitas:amiga de Matilde que indica-lhe a cartomante
Hermano (PP*)
Dr. Mendonça: amigo De Hermano
Barão de Santa Júlia: pai de Angelina
Personagens
Masculinas
Comendador Bernardes: homem com o qual Ofélia se casa por convenções sociais
Mister Hardington: homem com quem Ofélia tem uma relação e quem deixa toda
sua fortuna à ela
Comendador Rebouças: amigo da família Santa Júlia.
Dr. Alencastro: médico, irmão adotivo de Matilde e seu esposo
Conselheiro Tibúrcio: pai de Vera
PP*: Personagens principais, também denominados Personagens redondos segundo Gancho (2002), em oposição aos
personagens planos, que são menos complexos que aqueles.
Nesta obra, Sabino apresenta a psicologia de três mulheres que são expostas após descrição da
personagem de Hermano. Neste sentido é salutar a pergunta: por que iniciar a narrativa que pretende analisar a
psique da mulher, estudar a situação feminina perante a sociedade brasileira, com as ações da personagem
masculina?
É no estudo de Pimentel que a possível resposta para essa interrogação se mostra, quando o autor afirma
que a ação torna-se um mero pretexto para os romances psicológicos, e revela ainda que: ―(...) Por isso, em Lutas
do Coração, esse pretexto é fornecido pelo regresso do engenheiro Hermano Guimarães à capital brasileira‖
(SABINO, 1999, p. 50). Daí depreende-se a motivação de tal escolha.
De todo modo, no plano da narrativa, a personagem de Hermano é como o fio condutor do romance
como um todo, haja vista que as personagens Angelina, Matilde e Ofélia acabam entrecruzando suas vidas com a
dele, através das ―cordas‖ dos seus corações, nas quais Sabino adentra para fazer a análise psicológica dessas
mulheres diferentes entre si, mas que se inserem na mesma sociedade classista, repleta de convenções sociais,
carregada de preconceitos, de regras que regem a vida cívica.
128
A mulher que reúne os caracteres daquela que foi educada para ser uma boa dona de casa, subserviente e
amável ao marido, é a primeira a ser apresentada ao leitor: a jovem Angelina; prima do recém chegado da Europa
é retratada pela narradora como moça de feições delicadas, perfeitas, singelas. O próprio nome remete a algo
angélico, bem a contento de suas características.
A personagem Matilde, é apresentada por Inês como uma mulher linda, com fortes talentos musicais,
que poderiam lhe render frutos se seguisse carreira, no entanto isto não lhe é permitido pelos pais, por se tratar
de uma filha mulher. Assim, como alternativa última a ser vislumbrada, casa-se com o seu irmão adotivo, o qual
nutre forte amor por ela, o Dr.Alencastro.
Ao revelar as características de Matilde: ―vaidosa, cheia de si, enamorada da sua pessoa, da sua voz,
egoísta, julgava todas as outras pessoas abaixo dos seus merecimentos.‖ (SABINO, 1999, p. 127), a romancista
retrata uma mulher que nas lutas do seu coração não se dedica a nada de substancial, que não se relaciona
intimamente nem com o seu casamento, posto que nem a maternidade lhe agrada, nem tão pouco a inclinação
vocacional, que poderia preencher a sua vida.
A melodramática cena da morte de Matilde encaixa-se no esquema aristotélico da tragédia, do mesmo
modo que acontece com diversas novelas sentimentais, como nos revela Óscar Lopes (1984, p. 448), ao analisar a
personagem de Simão Botelho, da novela passional Amor de Perdição, de Camilo Castelo Branco.
Mesmo tendo posses, mesmo sendo jovem, mesmo sendo bela, mesmo sendo amada, nada lhe apraz;
não sabe a quem amar, como amar; pior ainda: não sabe o que é o amor, haja vista que não ama nem a si mesma;
a mesquinhez humana lhe governa: a inveja, a futilidade, a vingança. Matilde é a sua vilã, ela é o seu próprio
algoz, pois é vítima do seu eu, do seu modo de ser, sendo a desencadeadora do seu final trágico.
Já a personagem Ofélia é desvelada pela narradora de um modo muito mais interessante, ainda que ela a
caracterize como uma mulher de pouca beleza física, a envolve de uma aura elegante, atraente, de educação
refinada, que aprendeu a ser forte e a gerir o rumo da sua vida.
Do capítulo VII ao capítulo IX, Sabino se dedica a narrar à história de Ofélia: o seu casamento com o
comendador Bernardes fora aceito por imposições familiares: ―Ao dar o sim sacramental, chorou. Casava sem
amor, somente para satisfazer a família‖ (SABINO, 1999, p.101). Este enlace é descrito de forma a deixar
transparecer bem nitidamente que ele não alegrava em nada ao coração de Ofélia. Vale mencionar que muito
inteligentemente o faz mesclando o traçado da paisagem com o estado de alma da personagem:
Quase fora um dia sem manhã [...];
[...] o semblante moreno e simpático da desposada esboçou um sorriso pálido, e nos
seus olhos castanhos e vivos transparecia o ar bondoso que se nota nas almas
dispostas a grandes cometimentos morais. (SABINO, 1999, p. 99 - 100)
129
A despeito deste casamento realizado por imposição, é inteiramente importante notar como Sabino
mostra o que se passa no âmago de Ofélia: ―E a alma, ao mando do império psicológico, emudeceria, em razão
da responsabilidade assumida ao ceder às leis das exigências sociais, calando-se, empedernindo-se, sepultando-se
no pélago das conveniências[...]‖ (SABINO, 1999, p. 101).
Contudo, ainda com pouco tempo de casada, Ofélia, vê-se grávida e abandonada pelo marido, que
fugira, deixando-a sem recursos para se manter. Deste modo, passou a lecionar por algum tempo para se
sustentar, momento em que conhecera uma família de ingleses, os Hardington, e estes passam a ajudá-la. Como
que numa sucessão de más sortes, perde a amiga, e em seguida sua filha para a morte, restando-lhe resignar-se ao
filho da inglesa que despertou por ela sentimentos amorosos. É este homem que ao morrer a deixa herdeira sua,
tornando-a rica.
Ler a história de Ofélia, pede-se que se tenha fôlego, posto que é um acontecimento atrás do outro,
decorridos em pouco tempo. Todos tão intensos, com perdas tão abruptas, mas que são os grilhões que vão
constituir a nova mulher que de Antonieta torna-se Ofélia, e ainda resolve abominar os homens.
No entanto, o coração não mensura o que grita a razão, o que sofreu a carne, por isso ele entra no
campo de batalha e as lutas dele se travam. Assim se percebe com Ofélia, que mesmo querendo não se relacionar
amorosamente novamente, apaixona-se por Hermano e é correspondida com igual amor.
O conflito que se instaura na relação de Hermano e Ofélia é desencadeado pelo desejo de Angelina em
desposá-lo. Destarte, aquele começa a sentir a pressão social proveniente da prima, que faz chantagens
emocionais para atraí-lo, do tio e de amigos que fazem questão de discorrer sobre as vantagens do casamento
com a prima ―histérica‖, mas possuidora de jovialidade, riqueza e de beleza angélica.
Ao descobrir o interesse da prima por seu amado, Ofélia sente o seu chão cambiar; isola-se em si, a
pensar na sua situação com o engenheiro, que sempre seria vista como imprópria e imoral, que não teria como
ser legalizada diante à sociedade. Uma relação que só estaria legalizada na unicidade do sentimento de ambos.
Que só é sacramentada com a reciprocidade do amor deles.
Hermano, ao imaginar-se casando com Angelina, só pensa no seu amor por Ofélia. E, em diálogo com o
comendador, no capítulo XXXIV, confessa o engenheiro amar outra mulher, e fala do casamento sem amor:
[...] para efetuar esse consórcio, a consciência me convenceria que o casamento sem
amor, sem paz, sem fidelidade, sem dedicação, é o suicídio da vida, é a morte moral,
que lentamente acabrunha o espírito, inutilizando-o para as grandes crises da vida
(SABINO, 1999, p. 245).
Neste trecho, é de suma importância destacar quando ele fala que casar sem amor, é suicidar a vida e a
moral, o que não deixa de ser uma bela crítica da autora a este tipo de consórcio e uma verdade excruciante, além
de denotar o desenho da personagem Hermano, que possui algum caráter, algo de nobre.
130
Entretanto, ele acaba cedendo ao poder de chefia que as normas sociais impõem e aceita desposar a
prima. Ao decidir por isso, Hermano se esquece de Ofélia, dos sentimentos dela. Alegra a vida de Angelina e
entristece a da mulher que então se encontrava grávida dele.
Surpreende o leitor, quando Hermano propõe à Ofélia que eles continuem a se encontrar mesmo ele
estando noivo. Espanta porquanto a autora se dedica a apresentar um Guimarães cheio de qualidade que chega a
ser alma irmã de sua amante, como diz a narradora. Sabino deixa claro que mesmo para um homem que ama,
que tem atributos de honesto e nobre, há algo intrínseco neste homem, como um desvio de caráter, que o impele
a fazer tamanha proposta.
Esta proposta indigna Ofélia e a entristece, já que ela repugna a ideia de fazer uma mulher sofrer por ter
o seu marido uma amante, e, é claro, de se vê numa condição que não lhe agradara. Desde modo, decide, com
dor e sofreguidão que o melhor é ir embora, mesmo carregando em seu ventre um filho do seu amante; ir para
outro país, no qual poderia dar todo o amor, carinho e educação devidos ao seu filho.
A narradora a despede do leitor de modo muito particular, pois quando se espera que se diga algo mais
sobre ela, sobre sua chegada à Suíça, sobre o seu filho, nada disso acontece. Simplesmente a despede com a
escrita da carta ao pai de seu filho, que só chega a Hermano quando ela já não está no Brasil.
A atitude desta personagem permite inferir que ela representa a mulher que se ama antes de qualquer
coisa, que sabe até onde pode ir com os jogos das paixões impostas pela vida, que monta o palco das suas ações
e que joga conforme as lutas leais e racionais do coração, não mais permitindo que a façam um joguete de
subserviência. Destarte, com o caminho ―livre‖ para o enlace com Angelina, Sabino dedica as últimas páginas ao
casamento entre os primos e o esmero que a jovem moça dos olhos azuis começa a dedicar ao primo, para
conquistar o seu amor.
Decerto, o ponto alto do livro é a relação de Ofélia e Hermano, com todas as nuances do amor que eles
sentem um pelo outro a se entremear aos dogmas e leis sociais burlescas que lhes circundam, ainda é claro, que o
cerne do romance seja a análise psicológica destas três mulheres, e, assevera-se que o é, é desta relação que se
pode ter a minúcia da psique da mulher que ultrapassa as barreiras impostas pelas Lutas do Coração, mesmo
naquela sociedade do século XIX.
No último capítulo, o longo diálogo quase monologado entre Angelina e a baronesa sua mãe, chama a
atenção. Nele, a baronesa lhe diz em tom amoroso como é a vida de casado, como deve se portar a mulher com
seu esposo, com as coisas do lar. Uma espécie de ―manual da boa esposa‖. Neste diálogo, saliento a passagem
em que ela fez menção ao ideal de mulher que Sabino parece levantar bandeira e que além de descrever Ofélia,
faz lembrá-la nestas últimas páginas do romance: ―[...] A mulher forte é aquela que encara as paixões e sabe
livrar-se delas sem quebra da própria dignidade‖ (SABINO, 1999, p. 322).
O tema que absorve as análises psicológicas de Angelina, Matilde e Ofélia são, deveras, as Lutas do
Coração: as que emanam dele e deságuam nele. As que são peculiares em cada uma dessas mulheres.
131
Conclusão
Este estudo nos possibilitou conhecer a obra Lutas do coração, da escritora brasileira Inês Sabino. E,
por intermédio da bibliografia sobre a autora e suas produções, entrar em contato com o universo que constituiu
a sua produção literária, que circulou por diversas capitais brasileiras.
O referido estudo nos fez remeter ao cânone literário brasileiro, no qual se avultam aos montes nomes
de autores masculinos, e que compõem, ainda, uma lista indelével de prestígio. Perguntamo-nos, e reverberações
permanecem, por que aquelas mulheres que tanto publicaram, a exemplo de Inês Sabino, estão fora do cânon
brasileiro? Eis uma das questões mais preponderante que surgiu ao longo da pesquisa, e que através do estudo de
―resgate‖ desse nome, e dessa obra, permitiu que evidenciássemos que não fora a inexistência de escritoras e sim
um grupo, formado por homens, que decidia, decide quem entra no cânone ou não formado por homens.
Para além disso, percebemos que a intencionalidade da escritora, ao propor o estudo psicológico
daquelas três mulheres, demarca a sua sensibilidade ao adentrar no interior feminino e apresentar um romance
que é permeado por imagens femininas ultrajadas e estereotipadas por uma sociedade majoritariamente
masculina, mas que deixa claro que o coração feminino pulsava na ânsia ao menos de que as ―lutas do coração‖
fossem mais leais e menos sufocantes.
Em suma, escritoras como Inês Sabino tiveram que conquistar o seu espaço. Páginas e páginas de escrita
feminina foram sim escritas, a exemplo de Lutas do coração. Mas esses nomes, que outrora ficaram esquecidos,
são restituídos por meio de pesquisas como esta.
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133
“NEGRINHA” NO ABANDONO DA FÉ: O ANTAGONISMO E A
RELIGIOSIDADE CAMUFLADA DE “DONA INÁCIA” NO CONTO
NEGRINHA DE MONTEIRO LOBATO
Fernando Batista Chicuta da Rocha50
Prof. Dr. Herbert Nunes de Almeida Santos (Orientador) 51
Resumo: A pesquisa analisará, ancorada na linha investigativa dos Estudos Culturais e da Literatura Comparada,
uma análise do conto ―Negrinha‖, do escritor brasileiro Monteiro Lobato. Observaremos como a falsa
religiosidade que camufla a personagem ―Dona Inácia‖ no conto, empreende uma visão de submissão
sociocultural imposta aos negros ocorrida à época da escravidão. O autor, mediado pela ficcionalidade literária,
apresenta a posição irônica da histórica austeridade social branca quando do tratamento desumano aplicado à
personagem ―Negrinha‖. Em um período do pós-escravidão, a personagem aloca-se em um ambiente inóspito
que a direciona a todo tempo as incitações e constrangimentos morais e físicos impostos à época dos açoites.
Através de uma fé, vista na análise como praticada às avessas, a personagem ―Dona Inácia‖ realiza seus desejos
mais íntimos, atos esses motivados pela não aceitação da abolição. Teceremos um diálogo com teorias de críticos
como Edimilson Pereira (2010) e Fernando Machado (2009), que observaram em seus estudos como se deu esse
tratamento irônico da fé, por exemplo, nos séculos XIX e XX. Com isso, mostraremos que a literatura se porta,
muitas vezes, como um forte aparato de denúncias sociais, e, que, historicamente, tem permeado as obras de
autores mais atentos a essas causas como foi o caso do escritor brasileiro Monteiro Lobato.
Palavras-chave: Religiosidade; Ironia; Negro.
Abstract:This paper aims, focused in Cultural Studies research‘s line and Comparative Literature, an analysis
about the novella "Negrinha", from brazilian writer Monteiro Lobato. We observe how the misrepresentation of
religiosity that whitewashes ―Dona Inácia‖, one of character‘s novella, still undertakes a vision of sociocultural
submission imposed on negros that occurred at the slavery time. The author, mediated by literary fictionality,
presents the ironic position historic white social austerity while the cutthroat treatment applied to the character
"Negrinha". In a post-slavery period, the character situated in an inhospitable environment that directs all the
time, incitement and moral and physical duress taxes in a flagellum ‗s time. Through faith, a view in analysis how
to practices was inverted, the character "Dona Inácia" accomplishes her most intimate desires motivated by nonacceptance of abolition. We will construct a dialog with critical theorists as Edimilson Pereira (2010) and
Fernando Machado (2009), who observed in their studies as if gave this ironic treatment of faith, for example, in
the nineteenth and twentieth centuries. From this, we will present that literature in many times, is a strong
apparatus of social complaints, and, that, historically, has permeated works of more attentive authors about this
causes like Brazilian writer Monteiro Lobato was made.
Acadêmico do VI Período do Curso de Letras UAB / IFAL. E-mail: [email protected]
Professor do curso de licenciatura e da Pós-graduação em Letras do Instituto Federal de Alagoas (IFAL).
E-mail: [email protected]
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Keywords: Religion; Irony; Negro.
Quando versamos da religiosidade, imaginamo-la unicamente na fé de alguns, no sacro, na Igreja. No Brasil
diversos autores, dentre esses, Padre Antônio Vieira, Machado de Assis, Monteiro Lobato, Guimarães Rosa e
Jorge Amado abordaram esse tema em seus contos, poemas, romances, etc. Alguns povoaram o campo da ironia,
outros, o espaço da própria fé, e/ou das tradições vividas nos espaços e nas experiências dos índios, negros
―escravos‖, burgueses, situados em suas mais distintas épocas. Filho (2010, p. 43) lembra que ―a matéria negra
embora só ganhe presença mais significativa a partir do século XIX, versa tematicamente na literatura desde o
século XVII‖.
E é a temática do negro em Monteiro Lobato que tem nos despertado o interesse em observar a posição da
personagem Negrinha, frente à fé ―camuflada‖ da personagem ―Dona Inácia‖ no conto. A leitura nos tem
despertado certa inquietude, principalmente pela percepção da postura antagônica dada à personagem. Mesmo
após três décadas do fim da escravatura no Brasil, observamos a construção crítica e denunciativa com que
Monteiro constrói o conto, trazendo para o leitor a percepção de que o tempo nos distancia, e nos aproxima
tematicamente.
Monteiro Lobato, nesse tecer crítico, irônico: senhoras ―gordas, ricas, religiosas‖ posta os vestígios ainda
presentes, dessa necessidade da não exibição das mazelas praticadas em um período histórico tão desigual . Os
chicotes deveriam perdurar por mais tempo, tendo como justificativa a necessidade infame de castigo e tortura
aos subalternos, como era o caso de Negrinha que, assim como os cachorros, ―vivera-os pelos cantos escuros da
cozinha, sobre velha esteira e trapos imundos‖ na Casa grande52.
Negrinha, como se desprovida das virtudes, se posta como ―pequena, magrinha, maltrapida, explorada física e
psicologicamente‖ nada demais segundo Lucena (2008 p.40), que reconhece que ―Negrinha‖ está sendo mostrada
sem nenhuma idealização nem camuflagens, ou seja, em seu estado mais real e desprovido de qualquer forma de
embelezamento‖. E quem poderia ver embelezamento em uma pequena órfã que povoava o canto resguardado
da cozinha. ―Dona Inácia‖, patroa, gorda, rica, religiosa, era a responsável por sua custódia e estadia. Para o Padre
que tanto a elogiava, ―Dona Inácia‖ era cheia de ―fé‖, de ―santidade‖ mulher imácula e praticante dos princípios
religiosos cultuados pela Igreja.
Essa apresentação não é feita de forma deslocada por Lobato. Há participação irônica e ativa do autor nessa
construção, seguindo, talvez, o que Lucena (2008) destaca como:
52A
Casa-grande foi casa de morada, vivenda ou residência do senhorio nas propriedades rurais do Brasil - colônia a partir
do século XVI. Tudo no engenho girava em torno da Casa-grande, sendo ela uma espécie de centro de organização social,
política e econômica local. No Brasil colonial, a Casa-grande era estrategicamente construída próxima ao engenho
propriamente dito (fábrica), a senzala, a casa de farinha e a capela. C.f. http://basilio.fundaj.gov.br/pesquisaescolar/ acesso
em 02 de março de 2013 à 14:00h.
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A apresentação da personagem por um narrador que esta fora da história é um recurso
muito antigo e muito eficaz, dependendo da habilidade do escritor que o maneja. (...)
Uma manifestação quase espontânea da tentativa de criar uma história que deve
ganhar a credibilidade do leitor. (BRAIT apud LUCENA 2008, p.42).
Pura camuflagem, esse é o adjetivo mais plausível para alocar a antagonista do conto Negrinha.
Principalmente, quando a religiosidade de ―Dona Inácia‖ é evidenciada de forma duvidosa pelo narrador durante
o conto, opondo a suposta bondade em detrimento da boa fé ―Excelente senhora, amimada dos padres, com lugar certo
na igreja e camarote de luxo reservado no céu‖ com a forma hostil e perversa com que tratara Negrinha ―A excelente dona
Inácia era mestra na arte de judiar de crianças‖. O ―camarote social‖ em que se posiciona ―Dona Inácia‖ a direciona
para seu teatro particular onde são cometidos os atos de uma peça que, apenas ela, suporta assistir. Esse é o
camarote religioso que a camufla e lhe dá visão privilegiada e que, na holística do narrador, seria o céu seu
assento estofado, visão de destaque e separado dos demais, especialmente os pobres ―escravos‖ e
marginalizados.
O narrador, ironicamente, apresenta constantemente uma ―Dona Inácia‖ que se contradiz diante da figura de
boa cristã com suas atitudes insanas e desumanas. Isso acontece, pois a imagem dessa antagonista surge para
explicar a própria contradição religiosa resultante do não entendimento dos preceitos bíblicos cultuados pela
Igreja a qual ela se fazia tão devota. Os ricos como Dona Inácia, sempre tiveram espaços privilegiados na Igreja,
principalmente pelas ―gordas‖, e significativas contribuições para ―santa sé‖, obviamente as tornando ―animadas
dos padres‖. O Padre a visitava sempre, afirmando que ela era ―Uma virtuosa senhora em suma — dama de grandes
virtudes apostólicas, esteio da religião e da moral‖. Esse narrador, ironicamente, afirma que ―Dona Inácia‖ dava
―audiência53‖ para discutir o tempo; este termo é bastante usado quando os ―Papas‖ homens considerados
―santos‖ pela Igreja e pelos cristãos nestas audiências recebem autoridades ou fiéis. Na verdade, ―Dona Inácia‖
era uma espécie de conselheira; e pessoas como ela tinham na visão da Igreja, excetuações de pecados ou
maldades. Comparamos ―Dona Inácia‖ com ―Dona Doroteia‖54, ―toda em negro de virginal virtude, atrevia-se a
murmurar em santa exaltação‖, senhora que prezava o bom e santo costume da Igreja e da família, entretanto,
escondida em um passado de prostituição, e, que, na verdade, criara uma máscara através da fé para esconder-se
de seu passado. Percebe-se que as duas personagens prezam pelos bons costumes da fé, contudo, são pessoas
rancorosas, prontas a fazer qualquer maldade, inclusive, maltratar, para defender seus interesses e o ―bem estar‖
da fé e da honra.
Negrinha nesse abandono da fé, assim como nas crianças citadas por Castro Alves em O Navio negreiro 55
quando ―Magras, cujas bocas pretas regam o sangue das mães [...] Ouvem-se gritos [...] o chicote estala‖ representa o mais
53Recepção
dada por uma autoridade a pessoas que lhe pretendem falar no caso em questão citamos os PAPAS.
de Gabriela, Cravo e Canela um dos mais célebres romances do escritor brasileiroJorge Amado, publicado em
54Personagem
1958.
55Foi escrito em São Paulo, no ano de 1869, quando Castro Alves tinha vinte e dois anos de idade, e quase vinte anos depois
da promulgação da Lei Eusébio de Queirós, que proibiu o tráfico de escravos, em 4 de setembro de 1850. O navio negreiro
é composto de seis partes, e alterna métricas variadas para obter o efeito rítmico mais adequado a cada situação retratada no
poema. C.f. http://www.culturabrasil.pro.br/navionegreiro.htmacesso em 10 de março de 2013 às 23h55minh.
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puro ardor de justiça e grito pela desigualdade imposta por uma classe social elitista. Castro Alves, assim como
Lobato, é denunciativo, direto, e sem os rodeios poéticos que, às vezes, camufla mais que denuncia. Quando
Castro Alves lembra sem rodeios que o negro é chicoteado e que seu sangue está exposto o faz pela discordância
e se usa da mesma ironia de Monteiro Lobato. Porém, o chicote em Lobato está posicionado por uma Inácia que
muito mais que chicotear um corpo chicoteia a alma de Negrinha. A fé de ―Dona Inácia‖ não permitia ver e nem
ouvir. Mediada por um fanatismo religioso, silencia a negra alocada em sua cozinha; brincar, ato ingênuo, traria,
por exemplo, barulho provocativo e desconcertante durante as preces. Preces essas que se contradiziam com os
excessos insanos quando das adjetivações negativas impostas. Aquela ―bubônica‖56, talvez, tenha representado o
que havia de pior. A cor fosca da pobre órfã a comparava, propositadamente, com outro fato de infortúnio
social, ou seja, a praga que assolou o mundo no século XIX; e, que, transmitida pela espécie preta do rato,
causou o assombro da peste negra. Há no conto uma pretensão de, por intervenção de um riso derrisivo,
construir um efeito cômico de ―reforma‖ social, ou seja, da praga negra que deveria ser extirpada da sociedade.
Essa relação é discutida no século XX, por exemplo, por Henri Bergson (1987, p. 2-3) quando observa certa
relação de comicidade imposta aos textos quando do tipo de comparação evocada por Inácia. Ele diz: ―Não pode
haver comicidade fora daquilo que é propriamente humano‖. E completa:
Uma paisagem poderá ser bela, graciosa, sublime, insignificante ou feia; nunca será
risível. Rimos de um animal, mas por termos surpreendido nele uma atitude humana
ou uma expressão humana. Rimos de um chapéu; mas então não estamos gracejando
com o pedaço de feltro ou de palha, mas com a forma que os homens lhe deram,
com capricho humano que lhe serviu de molde (BERGSON, 1987, p. 4).
Esse ―capricho humano que serviu de molde‖ no século XIX, serve-se da imagem do negro refletida
pejorativamente em um rato. A comparação foi proposital, maldosa, atenuada, apenas, da percepção de Dona
Inácia quando vira no rosto da inocente um riso ignorante na titulação do adjetivo. Ironicamente, quando
percebida a aceitação por uma Negrinha ingênua, a infeliz intitulação não sortia o efeito real pretendido.
Dona Inácia, talvez, seja mais uma vítima de uma sociedade que cresceu separatista. Quando o narrador
relata que ―O corpo de ―negrinha‖ era tatuado de sinais, cicatrizes, vergões e que Batiam nele os da casa todos os dias, houvesse ou
não houvesse motivo‖, ele bate e castiga as atitudes morais e as mazelas sociais impostas, sobretudo ao negro. A
escravidão acaba, mas a necessidade hierárquica branca permanece. Não foram só os desenhos no corpo, ou os
beliscões e os croques que o narrador pretendia evidenciar quando da criação de seu conto. Mas o que realmente se
marca é a ignorância sem limites e certa intolerância advinda de uma mulher tão devota e propagadora da fé
cristã. ―Dona Inácia‖ não só era advinda da escravidão, mas como autêntica senhora de escravos, nunca se
afizera ao regime novo, muito menos dessa indecência de negro igual a branco. E quando a fé é posta em ―Dona
56A
peste bubônica, também chamada simplesmente de peste, é uma doençapulmonar ou septicêmica, infectocontagiosa,
provocada pela bactériaYersinia pestis, que é transmitida ao homem pela pulga através do Rato-preto. A pandemia mais
conhecida da doença ocorreu no fim da Idade Média, ficando conhecida como Peste Negra, quando dizimou 1/3 da
população europeia na época. C.f. http://www.fiocruz.br/ccs/cgi/cgilua.exe/sys/start.htm?infoid=303&sid=6 acesso em
21 de fevereiro de 2013 `s 19:45h
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Inácia‖ imaginamo-la em oração nas novenas cristãs. O autor afirma ironicamente que ela era uma verdadeira
tirana, pois quem resolvesse desafiá-la recebia nada menos que ―uma novena de relho‖.
A religiosidade de Dona Inácia faz com que lhe seja retirada, apenas, ―o azorrague, mas não lhe tira da alma a
gana‖, a imposição histórica aplicada às sub-raças. O chicote saiu de suas mãos, mas o ódio, o rancor e o desamor
pelos negros, e, em especial, por ―Negrinha‖, jamais sairia de seu coração. Para ―Dona Inácia‖, bater era
espiritualizar-se, era um momento de se divertir, de sair dos pensamentos e alucinar-se aos tempos de hierarquia.
Na verdade, ―Negrinha‖ era o que sustentava esse desejo sentido nos tempos do Rei. Lembremo-nos de
Machado de Assis quando no conto ―Pai contra Mãe‖, usa-se das construções semelhantes para também
denunciar tais posturas. Machado lembra que, naquela sociedade, ―a escravidão levou consigo ofícios e aparelhos,
como terá sucedido a outras instituições sociais‖. Duarte (2010) discute que
A leitura das crônicas Machadianas revela o cidadão empenhado em denunciar a
crueldade do sistema e a hipocrisia dos escravocratas [...] tais recursos muitas vezes
valem-se da narrativa de ficção para fazer a sátira aos senhores. (DUARTE, 2010
p.79).
Essa religiosidade disfarçada da ―Santa Inácia‖ concretiza-se, principalmente da não permissão de
contato entre suas enteadas loiras, adjetivadas pelo narrador como dois anjos do céu e uma marca de superioridade
religiosa, com a pobre negra, o que intensifica, assim, o tom de desigualdade em Dona Inácia. Campos (2010)
nos lembra que
Para vencer a batalha contra a histórica desigualdade humana, exclusão e
marginalização da população afro-brasileira, causadas pelo racismo, é necessário que a
nação como um todo seja mobilizada em favor da construção de uma efetiva
igualdade cidadã. Chegar-se a uma sociedade racialmente igualitária supõe um
conjunto de transformações que concernem a todos os seus segmentos. (CAMPOS,
2010 p. 265).
A mistura não foi permitida a ―Negrinha‖, além dos croques, beliscõesque a faziam sofrer, ela deveria
experimentar da humilhação moral advinda, sobretudo da caridade em criá-la. Para ―Santa Inácia‖, ―Negrinha‖
valia o mesmo que um animal; bater-lhe era sinal de educação. Agora o narradora chama de martirzinha57. Na
verdade, fora uma mártir da inocência, da ingenuidade do ser criança, e de nunca ter podido brincar. Admiradora
dos brinquedos que nunca havia visto, e do encantamento ―fantástico‖ diante de bonecas loiras. Resta-lhe,
então, o que aos mártires acontece: a morte. ―Morreu na esteirinha rota, abandonada de todos, como um gato sem dono.
Jamais, entretanto, ninguém morreu com maior beleza. O delírio rodeou-a de bonecas, todas louras, de olhos azuis. E de anjos... E
bonecas e anjos remoinhavam-lhe em torno, numa farândola do céu. Sentia-se agarrada por aquelas mãozinhas de louça —
abraçada, rodopiada‖. Com isso, tudo deve mudar, a vida já não é a mesma nem para Negrinha muito menos para
―DonaInácia‖. E agora depois de ser enterrada em uma vala comum, fica apenas na lembrança de uma ―Inácia‖ que em
Aquele que preferiu morrer a renunciar à fé, à sua crença. Aquele que sofre muito. C.f. http://www.dicio.com.br acesso em 16 de
março de 2013 às 18h14minh.
57
138
ato fúnebre e estado de ―luto‖s deve proferir como último ato a observação de que ―nem todas as crianças
vigam‖.
Monteiro Lobato possibilitou-nos não apenas apreciar uma obra literária atrativa e crítica, mas nos
permite refletir acerca dos preconceitos da hipocrisia e descaso que assola a sociedade desde o tempo da
abolição, o que o torna um escritor atual. A hipocrisia embutida na religião é um questionamento secular na
literatura, por isso sempre atrativa para os que leem. Nesse sentido, e diante de ações cruéis como as da
personagem ―Dona Inácia‖, nos dá o tom da verossimilhança presente na obra literária.
Com isso, sua
polemicidade traz a reflexão sócio-literária necessária para a compreensão de temáticas que vão além da
ficcionalidade, tornando-o, assim, um observador astuto de causas sociais brasileiras58.
REFERÊNCIAS:
AMADO, Jorge. Gabriela, cravo e canela. 85. ed. Rio de Janeiro: Record, 2001. 363p.
BERGSON, Henri. O riso. 2. ed. Trad. Ivone Castilho Benedetti. São Paulo: M. Fontes, 2007.
LOBATO, Monteiro. Negrinha. São Paulo: Globo, 2008.
LUCENA, Raquel Brito de. Entre boneca, rosas e retalhos da vida: recepção de Lobato na sala
de aula / Raquel Brito de Lucena. ─ Campina Grande, 2008.
PROENÇA FILHO, Domingos. A trajetória do negro na literatura brasileira In: PEREIRA,
Edmilson de Almeida. Um tigre na floresta de signos. Belo Horizonte: Mazza, 2010.
BRUM, Fernando Machado. Literatura e Religião – Estudo das referências religiosas na obra de
Machado de Assis. Fernando Machado Brum- Porto Alegre, 2009.
SANTOS, Marcos Roberto Brito dos. Os missionários do campo e a caminhada dos pobres no
nordeste – Salvador 2007.
58
O texto parte de uma análise ainda em andamento. A camuflagem religiosa de Dona Inácia e o sofrimento de Negrinha
são temas que ainda estão sobre uma holística que tem nos despertado viesses atrativos e que serão intensificados mais à
frente.
139
A REPRESENTAÇÃO FEMININA NA OBRA AUTO DA BARCA DO
INFERNO, DE GIL VICENTE
Isabela Santos Braga59
Nikolas Paolo Alves Dias60
Prof. Drª. Silvia Sueli Santos da Silva (Orientadora)61
Resumo: O presente texto apresenta a pesquisa realizada a partir das atividades regulares desenvolvidas
no Programa Institucional de Iniciação à Docência (PIBID), especificamente no projeto ―Arte e
Literatura‖, desenvolvido no Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Pará (IFPA). O
texto objetiva analisar o modo como Gil Vicente (século XVI) autor medieval, retrata a imagem
feminina em sua obra Autoda Barca do Inferno, representada pela primeira vez em 1517, na câmara da
rainha D. Maria de Castela (Portugal). A metodologia utilizada na referida pesquisa foi o levantamento
bibliográfico e análise de personagens da obra, seguindo a reflexão teórica de Bakhtin (1987);
Berardinelli (1985); Le Goff (1995). Nessa farsa a principal representante feminina é a alcoviteira
(intercessora em relações amorosas) e feiticeira, que tem por nome Brizida Vaz. A personagem, assim
como as demais (Fidalgo, onzeneiro, parvo, sapateiro, entre outros), procura corroborar sua inocência,
para então ―conquistar‖ seu lugar ao céu. Justamente por Gil Vicente ter vivido em um período de
transição entre o medievo e o humanismo, ele revela em seus personagens características marcantes. O
autor enfatiza a mediocridade da mulher em vista, algo que se contradiz com a visão dominante que se
tem sobre as mulheres medievais, puras, inocentes, idealizadas. Brizida Vaz, após todo seu discurso
buscando convencer tanto anjo como diabo, de adentrar na barca celeste, é condenada à barca do
inferno por praticar a feitiçaria, a prostituição e a alcovitagem.
Palavras-chaves: Gil Vicente; Auto da Barca; Alcoviteira.
Abstract:The present text presents the research realized from de regular activities developed in the Programa
Institucional de Iniciação à Docencia, specifically in the ―Arte e Literatura‖ project, developed at Instituto
Federal de Educação, Ciencia e Tecnologia do Pará (IFPA). The text aims analyze the way which Gil Vicente
(century XVI) medieval author, portrays the female image in his work Hell‘s Barge Auto, represented for the first
time on 1517, at the queen D. Maria de Castela‘s chamber (Portugal). The methodology used in the referred
research was the bibliographic making and character‘s analysis on the work, following the Bakhtin‘s theoretical
reflection (1987); Berardinelli (1985); Le Goff (1995). In that farce the main female representative is the bawd
(intercessor in amorous relationships) and witch, who is called Brizida Vaz. The character, as well the others
(Nobleman, userer, chucklehead, shoemaker, and the others), demand corroborates her innocence, and then
―conquer‖ her place in the heaven. Justly by Gil Vicente has livedin a transition period between medieval and the
humanism, he exposes reveals in his characters outstanding characteristics. The author emphasizes the woman‘s
mediocrity, something which contradicts itself with the dominant view which we have about medieval women,
pure, innocent, idealized. Brizida Vaz, after all her discourse seeking to convince both angel like devil, to get the
celestial barge, is condemned to the hell‘s barge by practicing witchcraft, prostitution and panderism.
Keywords: Gil Vicente; Barge Auto; bawd.
Graduanda do 4º semestre do curso de Licenciatura Plena em Letras do Instituto Federal de Educação, Ciência e
Tecnologia do Pará (IFPA). E-mail: [email protected]
60 Graduando do 4º semestre do curso de Licenciatura Plena em Letras do Instituto Federal de Educação, Ciência e
Tecnologia do Pará (IFPA). E-mail: [email protected]
61 Doutora em Cultura pela Universidade Federal do Pará (UFPA). E-mail: [email protected]
59
140
Considerações Iniciais
O presente artigo propõe-se analisar de maneira sucinta a representação feminina na obra O Auto da
Barca do Inferno do autor medieval português Gil Vicente (século XVI), através da personagem feminina de caráter
expressivo, Brizida Vaz, mais conhecida na obra por Alcoviteira. Tal trabalho foi iniciado em uma das
pesquisadas realizadas no grupo temático ―Épicos e Clássicos da Literatura Universal‖dento do subprojeto ―Arte
e Literatura‖ do Programa Institucional de Bolsa de Iniciação à Docência (PIBID), no Instituto Federal de
Educação, Ciência e Tecnologia do Pará (IFPA). Além da análise da personagem, pretende-se mostrar também o
modo como as mulheres - mãe, filha, tia, solteira, casada, prostituta - eram tratadas no período do medievo.
Para tal intento foram utilizadas as metodologias: levantamentos bibliográficos e a análise de
personagem, nesse caso, a Brizida Vaz.
Como principais referenciais teóricos foram estudados os autores Bakhtin (1987), Berardinelli (1985), Le
Goff (1995), por tratarem de temáticas pertinentes ao estudo.
O texto foi desenvolvido desta forma: Os Aportes Teóricos, que irá discorrer sobre os autores que foram
citados acima e suas relações de estudo com o ―mundo‖ medieval (um período da História da Europa do século
V ao século XV); A Mulher na Idade Média, que fará uma breve explanação sobre o modo como as mulheres eram
modeladas em tal época; O Auto da Barca do Inferno e a Alcoviteira, que apresentará breve explanação da obra O
Auto da Barca do Inferno e analisará a personagem Brizida Vaz, a alcoviteira.
A Mulher há décadas tem um papel secundário na sociedade, principalmente na Idade Média – século V
ao XV, aproximadamente. Sendo assim, em tal período se uma mulher desviasse seu comportamento daquele já
estabelecido, esta era ―renegada‖ pela sociedade e até pela própria família, sem ter o direito de viver da forma que
tivesse vontade. A partir disto, surgem as seguintes indagações: Como eram os comportamentos estabelecidos
para as mulheres desse período? O que vai caracterizar Brizida Vaz como uma mulher a frente de sua época?
Qual será a punição de Brizida Vaz, por desviar seu comportamento? Tais questionamentos serão, na medida do
possível, respondidos ao longo do artigo.
Aportes Teóricos
A obra A cultura popular na Idade Média e na Renascença: o contexto de François Rabelais de Mikail Bakhtin tratase de um estudo sobre o autor François Rabelais e de suas influências na época do medievo e até atualmente, no
entanto, nosso maior interesse nessa obra não é a vida, os estudos e as influências de Rabelais, mas sim a cultura
popular na Idade Média, além da possível influência que esta pode ter na escrita da personagem Brizida Vaz, haja
vista que o criador desta é Gil Vicente, autor desta época.
Jacques Le Goff é considerado um dos maiores medievalistas do mundo, sua obra A civilização do ocidente
medieval realiza um apanhado social, cultural e econômico sobre o período medieval. Tal obra foi de considerável
importância para este estudo aqui construído, pois além de trazer todos estes aspectos da época, ela também trata
e afirma que nesse período surgiu a palavra purgatório na religião, logo, na sociedade vigente.
141
Cleonice Berardinelli é considerada a maior especialista em estudos literários portugueses no Brasil, em
sua obra Estudos de Literatura Portuguesa, especificamente no capítulo intituladoO teatro Vicentino em Portugal, a
autora faz um resgate sobre os teatros/autos que o autor Gil Vicente produzia, estes considerados grandes
críticas satíricas ao comportamento social daquela época. Assim, pode-se perceber como Gil, na maioria de seus
escritos, apresenta uma linguagem enriquecida de particularidades, o que no período era um tanto incomum.
1. Mulher medieval
Pelo que se compreende por Mulher na Idade Média podemos apresentar diversos papeis
sociais desenvolvidos por elas, no qual, em grande parte, sua imagem predominante não se desprende
da sombra de seus maridos, pais, filhos ou primos, numa situação culturalmente desfavorável, submissa
e controladora de seus limitados futuros; cuidar da casa, fazer o artesanato ou trabalho no campo, ter
filhos saudáveis, preferencialmente, homens. Ao que tudo indica por razões essas, também fortalecidas
pelo processo de dominação social que a Igreja Católica Romana possibilitou com o emprego de alguns
discursos, autoritários, incontestáveis, através da pregação. Porém, Sendo a Idade Média um período
extenso, não teríamos condições próprias de abranger todas as possibilidades de constituição da
imagem feminina, levamos em consideração que muitas mulheres fugiam desse padrão, mas nem
sempre isso representou algo positivo.
―Durante a Idade Média os papéis masculinos e femininos passaram a ser construídos e
determinados pela religião‖ (LE GOFF, 1989, p.25). Logo, se a mulher estava em situação de risco e de
indiferença perante uma sociedade patriarcal, masculinizada, não caberia a ela mesma rebelar-se, nem
mesmo aos homens que exerciam com fé, a palavra da Igreja, sendo essa, representação da vontade de
Deus.
A justificativa da Igreja, como tantas outras está na Bíblia, o livro dos livros, em que seria a
mulher, como representante, Eva, causadora de todo o mal terreno, com seu pecado original que
conduziu o homem a cair no desejo da carne e ser expulso do paraíso, na terra, Éden. ―E à mulher
disse: multiplicarei sobremodo os sofrimentos da tua gravidez; em meio de dores darás à luz filhos, o
teu desejo será para o teu marido‖ (GÊNESIS). Em cada mulher haveria uma Eva e caberia ao homem
e a ela mesma, controla-la, disso que por natureza (bíblica) simbolizava a representação do pecado, do
desejo, da maldade e da rebeldia perante a ordem do criador.
A mulher controlada e oprimida por uma imagem de inferioridade, sujeita ao controle religioso,
após seu arrependimento estabelece e alcança na Virgem Maria, mãe de Jesus, o estereótipo ideal de
mulher que se desvincularia de todas as características de Eva, a pecadora original. ―Então disse Maria
ao anjo: como será isto, pois não tenho relação com homem algum?. Respondeu-lhe o anjo: descerá
sobre ti o Espirito Santo e o poder do Altíssimo te envolverá com a sua sombra‖ (LUCAS). Maria é a
eloquência terrena do milagre divino, personificado em uma gestação concebida pelo próprio espirito
142
santo, havendo ―ausência total de ato carnal‖, simbolizando a pureza que jamais fora perdida, a
obediência máxima das escrituras divinas e o contraste dualístico do mundano versus divino, espirito
versus corpo, pecado versus purificação.
Muitas mulheres na Idade Média entregavam-se ao refúgio sacerdotal, em contrapartida ao
convívio social normal, ou por razões econômicas, quando o dote da mulher era muito alto a demanda
de maridos e praticamente apenas a família dele sairia vitoriosa, nessa que seria uma negociação de
interesses, era mais lucrativo para ela viver em reclusão, mantendo a fortuna de sua família, mesmo que
isso jamais significasse que algum dia ela seria herdeira de tal fortuna ou por razões de devoção a
imagem de Virgem Maria, que mesmo na Igreja, a mulher também nem sempre teve acesso ou igual
valor religioso.
2. Auto da barca do inferno
Primeiramente, com caráter religioso, Auto era uma pequena peça teatral; com Gil Vicente tornou-se
popular, em Portugal para distração do povo.
O Auto da Barca do Inferno (c. 1517) representa o juízo final católico com forte denuncia moral, de forma
satírica, através do riso, seguindo assim a máxima latina ―ridendo castigat mores‖, que significa ―rindo castigam-se os
costumes‖. Tudo se passa em um porto, ponto de transição entre a morte e depois da morte, havendo lá duas
barcas: uma que conduz ao inferno, comandada pelo Diabo e outra ao paraíso, comandada pelo Anjo, que
aguardam as almas para dar-lhes fiel recompensa.
As almas que chegam em busca sempre de salvação, são representantes sociais da época, nunca
representados por nome e sim por funções, do mais alto valor Moral; Fidalgo, funcionários da Justiça,
Econômico; onzeneiro ou Religioso; frade, assim como também dos mais baixos, representado em pessoas
marginalizadas; sapateiro, o judeu, o parvo sempre ingênuo e a alcoviteira, que sobrevive de prostituição de
moças virgens.
Através de um diálogo sempre de inocência ou negociação, com o diabo ou com o anjo, cada
personagem busca sua salvação, alegando ter levado uma vida justa, ter moral suficiente ou ser a própria
representação de Deus, sempre se julgando merecedor da barca do céu.
Entre idas e vindas das duas barcas, a maioria das personagens se mostra tão inferiores quanto
aquelas que sempre renegaram sua representação social, dessa forma o importante do Auto, é também
desmascarar, sempre de forma cômica, humorística, os valores divinos perdidos em condutas falsas.
No entanto, a personagem Brízida Vaz é a representação feminina no auto. E esta através da
sua ―lábia‖ conduz a conversa da seguinte forma:
BRÍZIDA : - Seiscentos virgos postiços
e três arcas de feitiços
que nom podem mais levar.
143
Três almários de mentir,
e cinco cofres de enlheos,
e alguns furtos alheos,
assi em jóias de vestir,
guarda-roupa d'encobrir,
enfim - casa movediça;
um estrado de cortiça
com dous coxins d'encobrir.
A mor cárrega que é:
essas moças que vendia.
Daquestra mercadoria
Trago eu muita, à bofé!
(GIL VICENTE, 1974)
Ao ser convidada a entrar na barca do inferno, Brizida exibe suas posses, sua conduta e seu trabalho,
indo contrariamente ao modelo predominante da mulher medieval, que não possuía espaço para desenvolver
uma atividade remunerada. Na sua fala, ela diz:―Seiscentos virgos postiços", virgo significa hímen, representa a
virgindade. Compreendemos que essa mulher prostituiu muitas meninas virgens, e "postiço" nos faz acreditar
que enganara seiscentos homens, dizendo que tais meninas eram virgens. Ganhava a vida desta forma,
enganando.
Gil Vicente também anuncia em Brizída vaz a transição da Idade medieval para a idade moderna, que de
alguma forma negativa ou positiva perante os olhos da sociedade busca uma valorização do ser humano, sendo
este livre, o Autor declaradamente transita entre a valorização do ser humano e de Deus, característica tanto da
Idade medieval quanto da Idade moderna. Ao mesmo tempo que, condena a postura social, também julga
religiosamente seus personagens. No segundo momento com o Diabo:
BRÍZIDA: - Lá hei-de ir desta maré.
Eu sô üa mártela tal!...
Açoutes tenho levados
e tormentos suportados
144
que ninguém me foi igual.
Se fosse ò fogo infernal,
lá iria todo o mundo!
A estoutra barca, cá fundo,
me vou, que é mais real.
(GIL VICENTE, 1974)
A alcoviteira se mostra como uma mulher merecedora da paz do céu, pois em vida, sua atividade não lhe
redeu tantos frutos, já que a sociedade não aceita tal postura como necessária, embora seja uma grande ironia
colocar esta função, alcovitagem, dentre as funções sociais de cada personagem, já que cada uma tem um valor
social. Seu passado arde de dor em sua memória, busca convencer o diabo que ali não entrará, e segue para a
barca do céu, Chegando à Barca da Glória diz ao Anjo:
BRÍZIDA: Peço-vo-lo de giolhos!
Cuidais que trago piolhos,
anjo de Deos, minha rosa?
Eu sô aquela preciosa
que dava as moças a molhos,
a que criava as meninas
pera os cónegos da Sé...
Passai-me, por vossa fé,
meu amor, minhas boninas,
olho de perlinhas finas!
E eu som apostolada,
angelada e martelada,
e fiz cousas mui divinas.
(GIL VICENTE, 1974)
Por seus feitos caridosos a muitas meninas que criou e belos rapazes lhes arranjou, tenta convencer o
Anjo a entrar na barca do céu, em vão.
DIABO: - Ora entrai, minha senhora,
145
e sereis bem recebida;
se vivestes santa vida,
vós o sentirês agora...
(GIL VICENTE, 1974)
Já quando retorna a barca do inferno, o Diabo ironiza quão insignificante foi sua tentativa de buscar
formas ilícitas de viver com recompensas boas para merecer, ela também é tratada por senhora, o que enfatiza
sendo esta uma pessoa com grande experiência profissional no ramo que atua, Alcovitaria.
Na maioria dos momentos os diálogos são curtos e Brizída Vaz aceita seu destino, barca do Diabo, que
levará ao inferno. Não deixa de ser uma forma representativa de uma mulher rebelde, que o autor faz questão de
mostrar que também sofrerá punição, tão voraz quanto os demais personagens em totalidade homens regados a
pecado, tirania e falsidade por abandonarem demasiadamente a fé, que acabou perdendo terreno em seus
corações por conta de suas funções sociais ou importantes demais para encher seus egos, ou gananciosas demais.
Conclusão
Com o referido estudo e as possibilidades de interpretação da representação feminina na obra Auto da
Barca do Inferno, pelo aporte teórico que escolhemos para enfatizar nosso olhar sobre a personagem Brizída Vaz,
relatando características modernas em uma mulher medieval.
Através de um conflito social existente, entre a sociedade extremamente religiosa e a atividade de
alcovitaria, prostituir mulheres, assim como a feitiçaria, revela uma fuga dos padrões comuns da época, fuga essa
que merece ser castigada e condenada, não por mãos humanas e sim por mãos divinas, já que nossa personagem
não consegue entrar na barca do céu, ficou claro que Deus desaprova essa atividade ou qualquer outra que fuja
da serenidade religiosa, segundo os costumes da época.
Mostrar esse tipo de situação em uma personagem revela que na época tal personagem de fato existia e
que o autor Gil Vicente, baseado em seu dogma religioso, expõe e condena, ao mesmo tempo que o público vai
rir mas também vai absorver esse dogma religioso, uma forma esperta do autor denunciar seu povo, sua
sociedade, seus costumes.
Referências
BAKHTIN, Mikhail Mikhailovitch. A cultura popular na Idade Média e na Renascença: o contexto de François
Rabelais. São Paulo: HUCITEC; [Brasília]: Editora da Universidade de Brasília, 1987.
LE GOFF, Jacques. A civilização do ocidente medieval. 2. ed. Lisboa: Estampa, vol. 1, 1995.
146
LE GOFF, Jacques. Os intelectuais na Idade Média. Rio de Janeiro: José Olympio, 2003.
ROIO, José Luiz del. Igreja Medieval - Cristandade Latina. São Paulo: Ática, 1997.
VICENTE, Gil. Auto da Barca do Inferno. Obras completas. v. II, Lisboa: Sá da Costa, 1974.
VICENTE, Gil. Auto da Barca do Inferno. Obras completas. v. II, Lisboa: Sá da Costa, 1974.
147
AMOR POR ANEXINS: ANÁLISE PAREMIOLÓGICA
NO TEXTO DRAMÁTICO
Juliana Costa da Silva62
Mary Cristina Rodrigues Diniz 63
Profª. Me. Lucimar Ribeiro Soares (Orientadora) 64
Resumo: Participante do Projeto de Extensão intitulado ―No palco, a vida‖ (PIBEX – Programa Institucional
de Bolsa de Extensão da Universidade Estadual do Maranhão), que objetiva o exame do texto dramático, tal
pesquisa busca evidenciar o texto teatral como objeto de estudo no âmbito literário e linguístico. Para tanto,
selecionamos o texto ―Amor por anexins‖ (1871), do teatrólogo maranhense Arthur Nabantino Gonçalves de
Azevedo (1855-1908), onde este autor adota uma linguagem acessível (corriqueira) e utiliza uma série de
provérbios na estruturação desse texto, que se revela como uma espécie de ―coletânea de adágios‖, os anexins, o
que faz desta peça literária um texto de fácil compreensão cujos episódios estão centralizados no cotidiano da
sociedade carioca. Sendo assim, analisa-se tais provérbios sob a perspectiva da Paremiologia (ramo de estudo cujo
objeto é o provérbio, a parêmia), atentando às marcas semântico-ideológicas de que são dotados. A importância
cultural (folclórica) também é válida, visto que os provérbios são expressões de caráter arcaizantes, geralmente
transmitidos de geração em geração (memória) sem que sejam desestabilizados na sua estrutura escrita,
permeados pela oralidade e influenciados pelo momento sociocultural vigente, ou seja, ao contexto de sua
criação. Contudo, temos um texto atemporal, justamente pelo teor compreensível de tais expressões que ainda
constituem modelos fraseológicos corriqueiramente incorporados à fala. Portanto, a ênfase será dada as
características do texto teatral, conjugadas à linguagem utilizada, sobretudo à importância dos adágios dispersos
no texto, de forma a se compreender o texto dramático como uma fusão literária e de reflexão linguística.
Palavras-chave: Literatura; Dramaturgia; Paremiologia.
Abstract:ParticipantExtension
Projecttitled"On
stage,
life"
(PIBEX
InstitutionalScholarshipProgramExtensionState Universityof Maranhão), which aims totake thedramatic text, this
research seeks tohighlight thetheatrical textas an object ofstudywithinliteraryandlinguistic. To do so, selectthe text
"by anexinsLove" (1871), the playwrightArthurMaranhãoNabantinoGonçalvesde Azevedo(1855- 1908),
wherethe authoradoptsan accessible language(ordinary) anduses a seriesof proverbsin structuringthis text, which
reveals itselfas a kind of"collective adages," theanexins, what makes thispiece of writinga texteasy to
understandwhose episodesare centeredin everyday societycarioca. Therefore, to analyzewhether thesesayingsfrom
the perspective ofparemiology(branch of study whoseobject isthe saying, the parêmia), attesting to thesemanticideological
brandsthatare
gifted.Thecultural
importance(folk)
is
alsovalid,
since
proverbs
areexpressionsofarchaiccharacter, usually transmittedfrom generation to generation(memory) without
beingdestabilizedin itswritten structure, permeatedby oralityand influenced byprevailingsocioculturalmoment,
ie,thecontextof its creation. Howeverwe have atimelesstext, just understandingthecontentof such
expressionsthatarestillmodelsphraseologicalroutinelyembeddedspeech. Therefore, emphasis will be giventhe
62
Graduanda em Letras na Universidade Estadual do Maranhão (UEMA)- Campus São Luís. Bolsista PIBEX, Projeto: ―No
palco, a vida‖. E-mail: [email protected].
63 Graduanda em Letras na Universidade Estadual do Maranhão (UEMA)- Campus São Luís. Bolsista (voluntária) PIBEX,
Projeto: ―No palco, a vida‖. E-mail: [email protected].
64 Professora-Assistente do Curso de Letras da Universidade Estadual do Maranhão (UEMA)- Campus São Luís.
Orientadora do Projeto PIBEX, ―No palco, a vida‖. Mestre e Doutoranda em Teoria Literária pela Universidade Federal do
Rio de Janeiro (UFRJ).
148
characteristicsof the language used, particularly the importanceof theadagescatteredin the textin order
tounderstand thedramatic textas a fusionofliteraryandlinguisticreflection.
Keywords: Literature; Playwriting; Paremiology.
Introdução
A análise paremiológica, à qual se submete esta pesquisa, possui como objeto o texto dramático, Amor por
Anexins, do teatrólogo maranhense Arthur Nabantino Gonçalves de Azevedo (*São Luís, 7 de julho de
1855/+Rio de Janeiro, 22 de outubro 1908), autor dotado de uma inteligência plurivalente (poeta, contista,
teatrólogo, professor, revisor, tradutor, jornalista, caricaturista), gênio precoce na dramaturgia e na arte de
escrever que cria suas primeiras peças ainda na infância. Aos 15 anos (1871), surpreende a terra natal com esta
peça Amor por Anexins, composta sob os moldes clássicos, sendo sucesso absoluto, com mais de mil
representações no final do século XIX. Arthur Azevedo caracterizou-se pela espontaneidade do texto, sempre
revestido de humor, com anedotas estruturadas linearmente apoiando o enredo, centradas na vida cotidiana e
mundana da sociedade carioca, desnudando o Rio de Janeiro onde passa a viver a partir do ano de 1873.
O escritor e também teatrólogo maranhense Josué Montello, prestigia o conterrâneo em sua obra
―Caminho da Fonte‖, com algumas páginas de singulares comentários acerca de Azevedo e desta dita peça, onde
observamos: ― De tudo quanto escreveu nesses anos de aprendizagem, sobrevive, além de alguns contos em
verso e das sátiras de Carapuças, a comédia em um ato Amor por Anexins, que seria o ponto de partida da
irradiação de seu nome além dos horizontes natais‖. (MONTELLO, 1959, p. 179). Neste significante ensaio,
Montello se apropria de certa familiaridade com relação a seu conterrâneo e de sua seleta produção (sobretudo
dramática) e faz uma série de correlações e hipóteses no que diz respeito à inspiração de Artur Azevedo para
escrever esta peça, sobretudo acerca dos provérbios utilizados, o que julgamos pertinentes a nossa pesquisa de
cunho paremiológico.
Ao ler pela primeira vez essa peça de Arthur Azevedo, escrita em São Luís por volta
de 1870, inclinei-me a crer que ela nada teria a ver, em matéria de influência literária,
com A feira dos Anexins, do clássico D. Francisco Manuel de Melo, cuja primeira
edição, de iniciativa do bibliófilo português Inocêncio Francisco da Silva, somente
veio a lume em 1875, quando a comédia do jovem maranhense já havia sido
copiosamente representada no Brasil e em Portugal [...] Mais tarde, porém, atentando
na correlação entre os dois trabalhos, esbocei a hipótese de ter andado pelo maranhão
um dos vários apógrafos de A feira dos Anexins, no qual Arthur Azevedo se teria
inspirado para escrever sua comédia [...] Há para o caso outro argumento, de mais
fundada razão [...] A fonte da comédia de Artur Azevedo foi indiscutivelmente o
trabalho do clássico português [...] Embora só tenha vindo a lume, em forma de livro,
em 1875, A feira dos Anexins foi antes divulgada em longos fragmentos por Antônio da
149
Silva Túlio, no sétimo volume do Arquivo Pitoresco [...]. (MONTELLO, 1959, p. 180182).
Essa publicação de Túlio veio acompanhada do trecho de um trabalho do grande historiador Alexandre
Herculano sobre Dom Francisco Manuel de Melo, onde este faz observação ou uma sugestão quanto A feira dos
Anexins: ―Seria quase um manual para os escritores dramáticos, principalmente do gênero cômico, que quisessem
fazer falar suas personagens com frase conveniente e com as graças e toques próprios da nossa língua portuguesa
e do verdadeiro estilo dramático‖ (grifo nosso). (MONTELLO, 1959, p. 182).
Esta sugestão foi acolhida por Azevedo, ao ponto de lhe servir de inspiração para compor Amor por
Anexins. É também importante salientar que esses dados fornecidos por Montello, confirmaram a nossa suspeita
de que fora feito por Azevedo um estudo (paremiológico) desses anexins, que lhe permitiu o conhecimento de
todo o repertório utilizado, ―um moinho de adágios‖ como o próprio autor designa na peça através da fala da
personagem Inês. Acreditamos que tal seleção de anexins (perpassando os caminhos da oralidade e memória
como detalharemos adiante), foi muito complexa, tendo em vista a pluralidade de sentido que estes estabelecem
nesse emaranhado de adágios e que lhe garante o caráter cômico. ―Além desse valor na tradição paremiológica da
Língua Portuguesa, a pequena peça de Artur Azevedo tem importância na bibliografia do Jovem autor: é a
primeira revelação definitiva de seu talento de comediógrafo‖, afirma MONTELLO (1959, p. 183). Quanto às
características do enredo temos um entreato cômico de ato único e contendo apenas três personagens (Isaías, um
velho solteirão; Inês, uma viúva, costureira; e um carteiro), a cena passa-se no Rio de Janeiro, na época em que
fora escrito, no século XIX.
1. Um estudo literário e linguístico
Como mencionado, esta análise de Amor por Anexins (1871) permeia as duas áreas de estudo da Língua
Portuguesa, a Literatura e a Linguística. A Literatura, por ser o nosso objeto de estudo um texto teatral, logo,
pertencendo ao gênero dramático, explicitando em sua essência a comicidade. E linguístico, por discutirmos a
passagem da linguagem oral para a escrita como fundamentos da memória no que concerne à seleção e a organização
dos adágios na transcriação para o texto dramático. Evidenciaremos, sobretudo, as matizes culturais explicitadas
nesse tipo de texto centrando o estudo nessa dualidade discursiva.
2.1.Os anexins: o corpus
A título de síntese, Josué Montello, em seu já mencionado ensaio, descreve a peça evidenciando o papel
dos anexins na mesma, o que nos permite inferir a importância e destaque que lhes são atribuídos. Ele anota:
Um cidadão ridículo, que fala por anexins, é a personagem central da peça de Arthur
Azevedo. Trata-se de um velho, Isaías, que pretende casar-se com a viúva, Inês [...] A
graça da comédia está na enfiada de anexins, um atrás do outro, que o velho põe na
150
conversa com a viúva, ao pretender conquistá-la. Inês resiste o que pode, até ceder ao
pedido de casamento, com esta condição: passar Isaías meia hora sem dizer anexim. O
velho que está realmente apaixonado, aceita a proposta [...] Embora Isaías esteja doido
para casar, não consegue permanecer um minuto sem dizer um anexim. Mas Inês, ao
vê-lo aflito com o anexim que lhe escapou, facilmente perdoa o namorado, e manda-o
abrir a torneira de anexins, ditados, rifões, sentenças, adágios e provérbios, desde que
saiba ser um bom marido e, agora é ela quem recorre ao anexim [...] (MONTELLO,
1959, p. 179-180).
Tomando os anexins como corpus da nossa análise, faz-se necessário, pô-los em evidencia, sob a
designação de provérbio, ―[...] O provérbio costuma ser definido como uma frase sentenciosa – em geral
metafórica – pela qual a sabedoria popular exprime ideias ou noções extraídas da experiência cotidiana [...]‖.
(Pineaux, 1963 apud MACEDO, 2000). Isso culmina na principal característica das peças azevedianas, a descrição
e na maioria das vezes a sátira sobre questões cotidianas. O amor, que se dá por anexins, não é posto por Arthur
Azevedo com caracteres românticos e sim difundindo realismo, simplicidade e conhecimento popular.
Comentando este aspecto Macedo afirma:
Os provérbios costumam ser associados ao inventário das tradições populares. Eles
encerram um fundo condensado de experiência refletida, contendo amostras e um
saber resultante de experiências ancestrais, e refletem a criação anônima dos mais
variados povos (―primitivos ou ―civilizados‖) da Antiguidade aos nossos dias.
(Whiting, 1931 apud MACEDO, 2000).
Ai está o caráter folclórico difundido na utilização dos provérbios na peça, atestando o valor históricocultural de que são dotados como estruturas, máximas, arcaizantes e como uma grande capacidade de se aderirem
a diferentes contextos e épocas sem que tenham seu sentido alterado. Isso só é possível devido a presença da
oralidade, fator que serviu de suporte para a proliferação desses provérbios em nossa fala, sem que houvesse um
desgaste total ou o esquecimento, algo relacionado à capacidade de memorização. A propósito, Macedo
prossegue:
As fórmulas sentenciosas eram aceitas nas sociedades arcaicas – inclusive nas da Idade
Média – como portadoras de verdades reconhecidas [...] pela via de mão dupla da
oralidade, ganhavam foros de universalidade. Os assuntos retratados nos provérbios,
por isso mesmo, eram comuns a pessoas ou grupos distanciados no tempo, no espaço
e na hierarquia social. Aí encontramos ideias concernentes às relações sociais (de
classe, de gênero, de parentesco, etárias), aos sentimentos (medo, alegria, tristeza) e às
relações afetivas (conjugal, fraternal, filial, amizade, amor (grifo nosso), ódio)
perpassadas por juízos fundados na autoridade da tradição. (MACEDO, 2000, p. 123).
2.2. Oralidade e escrita
151
No âmbito da oralidade e da escrita, destacamos a memória, como um processo narrativo em
meio ao dinamismo do texto, que neste caso remete a atividades de seleção e organização da vasta quantidade de
provérbios utilizados pelo autor nas falas de seus personagens.
O trabalho da memória é praticamente o mesmo levado a cabo na criação de um texto
ficcional. Ela não é um arquivo: sua forma de existência, a imagem que talvez a
exprima, não é estrutural ou orgânica, mas poética, virtualidade criativa e metamórfica,
ritmo e movimento, que nunca é aquilo que diz nem o metafisico e inapreensivo
aquilo que viveu, mas abertura em processo, o sentido da ficcionalidade ontológica do
ser social na órbita da singularidade, puro calidoscópio atravessado pelas múltiplas
vivências do humano; desdobradora por excelência e vitalizadora criativa do presente,
montando e desmontando os sentidos e os significados de cada um por meio das
conversas, dos relatos, das crenças e do mundo como resultado de um viver social que
garante identidade e limite. E sempre mais e sempre menos do que o metafísico
vivido, é sempre mais e sempre menos do que o autor, encontrando coerência muito
mais na fantasia que numa possível realidade orgânica que a marcasse com sua
existência. (CALDAS, 1999, p. 58 e 59).
De acordo com o exposto depreendemos que a memória não é vista somente como uma espécie de
arquivo, pois, como tal, seria estruturalmente fixa, diferentemente de seu real sentido. A memória consiste em
um processo dinâmico, criativo, poético, possibilitando uma constante metamorfose de ideias que podem ser
renovadas, aperfeiçoadas de acordo com o tempo e as condições de criação. Toda esta construção é visualizada
por Lins Caldas que se refere a ela da seguinte forma:
A memória (as memórias) é também garantia da constante modificação e permanência
da dialogicidade e da polifonia, perspectivações das linguagens, nos sentidos da fala e
da escrita, do corpo, das relações interpessoais e na constante criação da identidade
narrativa [...] Com isso, entendemos a memória não somente como criação pessoal,
mas como construção polifônica da sociabilidade, criação coletiva que, por ser
simbólica, cria as pontes que unificam e aproximam, num mesmo espaço vivido, as
múltiplas dimensões da vida, as múltiplas experiências da experiência. (CALDAS,
1999, p.62)
Logo, antes de todo o processo de seleção e organização, Azevedo utiliza duas outras funções da
memória, a investigação e a pesquisa, que são observadas a partir da observação do diálogo que evidenciam a
realidade em um texto ficcional onde o que entra em destaque é ―o fato ou o acontecimento (que é sempre uma
construção ficcional daquele vivido, sempre perspectiva, sempre intertextualidade, sempre abertura, sempre
menos e sempre mais, sempre narração e ficcionalidade, sempre texto) [...]‖, como lembra Caldas (1999, p.65).
Amor por Anexins (1871) possui características de um texto transcriado,ou seja, uma narrativa oralizante transladada
à escrita ficcional, onde os diálogos existentes entre os personagens se assemelham aos das pessoas do contexto
de sua criação. Caldas comentando sobre a transcrição do oral ao escrito, afirma:
152
A passagem do oral ao escrito não se faz de uma oralidade esquemática, teórica,
primitiva, para uma escrita civilizada, mumificada, distanciada, cartorial ou cientifica,
mas de uma oralidade viva e vivida, múltipla e polifônica, dialógica em seu
desenvolvimento e constituição, para uma escrita ficcional, aberta, virtual, que
potencializa a oralidade e o vivido, sem conter um significado naturalizado e sem
naturalizar. A escrita realiza a oralidade enquanto a oralidade vivifica o escrito: não há
aqui dois universos de comunicação (um primitivo e o outro civilizado), mas uma
síntese dialética em que uma não é apenas complemento da outra, mas aspectos de
uma mesma palavra. [...] As sutilezas entre o texto visto e o texto na mente; o texto
lido em voz alta e o texto lido em silêncio; o oral tornado texto e o oral viva-voz; o
oral recordado e fazendo recordar; a criação oral e a criação escrita; o oral texto de um
tipo de corpo, de voz, de memória, de vida, de narrar; o oral sonhado e o texto
ouvido; o texto tornado oralidade e a oralidade, texto [...]. (CALDAS, 1999, p.104)
a. A linguagem em foco
É notório que um dos recursos mais utilizados por Artur Azevedo em suas comédias é o cacoete de
linguagem. O cômico se mostra sempre através de uma personagem que maneja a linguagem como um de seus
traços caricatos. Estudioso da obra de Artur Azevedo, Antonio Martins anotou:
[...] Dentro desse conservadorismo linguístico, a presença constante de provérbios e
frases proverbiais impõe seu indiscutível prestígio ainda numa época em que se
sonhava com o rádio e a televisão. É a esse conjunto de expressões antiquadas
caracterizadoras do velho [Isaías] no teatro de Artur de Azevedo que convencionamos
chamar de recorrência. (MARTINS, 1988, p. 55).
Observamos também certa tendência por estruturas arcaizantes, sendo adotado em muitas de suas obras
máximas latinas, ―o gosto pelo falar antigo era uma constante no ânimo de Artur Azevedo. Natural essa
preferência pelos torneios sintáticos e pelas palavras comuns que todos entendiam à queima-roupa‖, prossegue
Martins (1988, p. 79). Incidindo logo ao coloquialismo algo inerente a essas expressões em que o próprio
Azevedo confessa a 15 de outubro de 1906, em palestra ao jornal carioca O País: ―os meus processos literários, a
minha simplicidade, a minha prosa sem imagens e citações, a minha condenável mania de escrever como
converso para que todos me entendam‖. Essa vocação foi imprescindível para o sucesso de suas obras que
atingiram um grande público que abarcava não somente os literatos, mas também os iletrados, uma simplicidade
em voga.
2.4. Perspectiva paremiológica
Quanto à Paremiologia, perspectiva de análise adotada (considerando a grande incidência de provérbios
no texto, cerca de 110) é importante mencionar nesse momento o escasso número de investigações, que
possuem seu corpus de estudo (a parêmia), logo nosso material de pesquisa foi relativamente escasso, e isso
153
tornou a pesquisa ainda mais instigante. Temos a conceituação de Paremiologia nas palavras de José Rivair
Macedo, em seu estudo paremiológico medieval, que aqui serve de principal suporte, fonte.
―Paremiologia é o estudo das formas de expressão coletivas e tradicionais
incorporadas à linguagem corrente, como os provérbios, expressões proverbiais, frases
feitas, prolóquios, anexins, locuções breves ou rifões. Os estudos paremiológicos
integram-se no campo de investigações das tradições folclóricas e/ou linguísticas [...]‖
(MACEDO, 2000, p. 121 e 122).
E acrescenta:
Aos linguistas interessa verificar a morfologia e/ou o funcionamento das locuções
proverbiais, ditados e expressões, considerando-as um tipo de literatura criada a partir
da inter-relação entre a oralidade e a escrita. (Jolles, 1976 apud MACEDO, 2000, p.
122). Os folcloristas, por outro lado, limitam-se a verificar a natureza do saber
veiculado nessa massa verbal quase infinita e intemporal, identificando os possíveis
significados que contém, bem como a origem de determinados motivos nela contidos
e desenvolvidos. (Amaral, 1982 apud MACEDO, 2000, p. 122).
No âmbito literário os provérbios contidos em Amor por anexins exprimem tópicos segundo os quais
são atribuídos diferentes significados nas falas/discurso de Isaías, ―o velho da farsa‖ (segundo Antônio Martins)
no sentido de persuadir Inês a casar-se com ele, o que se constituiu em uma ―pequena obra de engenharia
dramática‖ nas palavras do mesmo teórico. O enredo é estruturado por Azevedo de acordo com as diferentes
ideias expressas pelas frases feitas. Martins (1988) elenca esses adágios dentre outros:
Amor/ fidelidade – ―Amor com amor se paga‖ (p.74);
Ambição/ egoísmo – ―Quem muito quer muito perde‖ (p.68);
Solidariedade – ―Uma mão a outra lava/E ambas lavam o rosto (p.75);
Equanimidade/ justiça – ―A César o que é de César‖ (p.76); ―Virou-se o feitiço contra o feiticeiro‖ (p. 76).
Fartura – ―O que abunda não prejudica‖ (p. 71).
Criatividade – ―Quem conta um conto acrescenta um ponto‖ (p.69).
Fortaleza – ―Manda quem pode [e obedece quem tem juízo]‖ (p.75).
Catarse – ―Quem canta seus males espanta‖ (p.74).
Esperança/ otimismo – ―Onde come um come dois‖ (p.68)
154
Autoconfiança – ―Quem tem boca vai a Roma‖ (p.72)
Discrição – ―Em boca fechada não entra mosquitos‖ (p.71)
Determinismo – ―Vaso ruim não quebra‖ (p.71)
Constância – ―Água mole em pedra dura tanto dá [até que fura]‖ (p.69)
Efemeridade – ―Águas passadas não movem moinhos‖ (p.71).
Sabedoria – ―Para bom entendedor meia palavra basta‖ (p.70)
Falibilidade – ―A ocasião faz o ladrão‖ (p. 68)
Aparências promissoras – ―Quem desdenha quer comprar‖ (p.69)
Aparências enganadoras – ―Cão que ladra não morde‖ (p.72)
Previdência – ―Deus ajuda a quem madruga‖ (p.68)
Resignação – ―Há males que vem para bem‖ (p.69)
Causalidade – ―Dois sacos vazios não se podem ter de pé‖ (p.70)
Vale ressaltarmos o teor histórico, bem como a necessidade de conhecimentos prévios para que o
leitor/espectador venha a entender o que cada um expressa e assim possa utilizá-los perpassando os caminhos da
oralidade. Quanto à historicidade ou origem de alguns desses anexins, temos como berço a tradição cultural
europeia. O caráter persuasivo possui seu enfoque já que incide no objetivo de Isaías: contrair matrimônio.
A linguagem, já mencionada, resplandece magma importância, pois o estudo paremiológico foca
exatamente não no ideário romântico do amor, mas nesses anexins e no que eles representam na peça. A
pluralidade de sentidos caracteriza este texto como popular, já que existe um leitor/espectador com um
conhecimento cotidiano do corpus, sendo sugestivo seu emprego nas mais variadas situações, o que dependerá da
intencionalidade do enunciador.
Conclusão
Portanto, os provérbios presentes no texto Amor por Anexins, atestam a expressividade do texto
dramático, como nosso material de estudo, que ao ser visto sob a perspectiva paremiológica não somente
contemplou fatores propriamente linguísticos, mas evidenciou o texto em si como material de estudo pouco
utilizado, mas que favorece, como vimos, excelentes fontes de estudo e pesquisa. Os conceitos que remetem à
155
fala popular, como oralidade, proliferam por meio da tradição popular e desta forma são transladados para a
escrita dramática. A memória, responsável por sua perpetuação na passagem do tempo nos permite conhecer o
contexto de origem do adagiário e remete ao raciocínio, a capacidade mental e de abstração tanto daquele que se
expressa, quanto de quem recepciona. Todas essas constatações culminam no conhecimento acerca das múltiplas
possibilidades de analisar um texto que não está preso meramente à dramatização, mas que possui seu lugar no
âmbito literário e em reflexões linguísticas.
REFERÊNCIAS:
AZEVEDO, Artur. Amor por Anexins In Teatro de Artur Azevedo – vol. 1. RJ: INACEN, 1983. 64-77 p.
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MARTINS, Antônio. Arthur Azevedo: a palavra e o riso- uma introdução aos processos linguísticos de
comicidade no teatro e na sátira de Arthur Azevedo. SP: Perspectiva, 1988.
MACEDO, José Rivair. Paremiologia: riso, loucura e saber nos provérbios medievais In Riso, cultura e
sociedade na Idade média. SP: Ed. UNESP, 2000.
MONTELLO, Josué. O teatro de Arthur Azevedo, in Caminho da fonte. RJ: Instituto Nacional do Livro,
1959.
156
O LEITOR E CRÍTICO LITERÁRIO DALCÍDIO JURANDIR NA
IMPRENSA: 1930/1960.
Juliana Gomes dos Santos65
Prof. Dra. Marlí Tereza Furtado (Orientadora)66
Resumo:Este trabalho apresenta os resultados parciais alcançados na pesquisa, "Dalcídio Jurandir: o
jornalista e o romancista", ao qual participo como bolsista na modalidade de Iniciação Científica. Os
resultados foram alcançados de acordo com o desenvolvimento do plano de trabalho intitulado: "O
leitor e crítico literário Dalcídio Jurandir na imprensa de 1930/1960‖, tendo como orientadora a
Doutora Marlí Tereza Furtado. Este trabalho detém-se em analisar textos de crítica literária produzidos
por Dalcídio Jurandir para periódicos de Belém e do Rio de Janeiro, especificamente: O Estado do
Pará, Novos Rumos e Imprensa Popular, bem como se detém em confrontar a visão do crítico literário
enquanto em Belém, nos anos anteriores a 1941 com o crítico do Rio de Janeiro, nos anos posteriores a
1941, tendo por meta, também, averiguar a implicação do crítico literário Dalcídio Jurandir com a linha
ideológica do partido político ao qual era filiado, o Partido Comunista Brasileiro (PCB). O corpus para
essa pesquisa foi recolhido através da pesquisa: Dalcídio Jurandir e o realismo socialista, também
coordenado pela Doutora Marlí Tereza Furtado, entre 2007 e 2009. Ressalta-se, ainda que a vertente
jornalística de Dalcídio é precoce e antecede a sua produção Romanesca, esta é distendida em onze
romances que fazem parte do ciclo Extremo Norte e a obra Linha do Parque (que se encontra à
margem desse ciclo), sendo esta encomendada pelo PCB. Assim, a apresentação deste trabalho
mostrará a contribuição do leitor e crítico literário para a imprensa, bem como a percepção do leitor
Dalcídio Jurandir por meio de seus textos críticos, que revelam como as obras de escritores brasileiros e
estrangeiros eram recebidas pelo crítico que procurava verificar se elas continham, ou não, o empenho
por uma literatura comprometida em discutir problemas sociais.
Palavras-chave:Crítico literário; Dalcídio Jurandir; imprensa.
Abstract:Thisstudy presents thepreliminary resultsobtainedin the research titled: "Dalcídio Jurandir - O
Jornalista e o Romancista", whichparticipate as a scholarship in the formScientific Initiation. The
resultswereachieved as with the developmentof the work planentitled: "O leitor e crítico literário Dalcídio
Jurandir na imprensa de 1930/1960‖, having asGuidingDr.MarliTerezaFurtado. HoldsThis studywas to
analyzetextscriticallyproduced byliteraryjournalsDalcídioJurandirtoBelemandRio de Janeiro, specifically: O
Estado do Pará, Novos Rumos e Imprensa Popular, as well as confrontingthe vision ofliterary criticwhilein
Belém, in the yearspriorto 1941the criticRiode Janeiro, in the years after1941, with the goalalsoinvestigate
theimplication of theliterary criticDalcídioJurandirwith theideological lineof the political partyto whichit
wasaffiliated, thePartido Comunista Brasileiro(PCB). The ―corpus‖for this researchwas collectedthrough
research: ―Dalcídio Jurandir e o realismo socialista‖, alsocoordinated by Dr.MarliTerezaFurtado, between
2007and
2009.
It‘s
emphasizedstillthat
thejournalistic
sideofDalcídioisearly
andprecedes
theirproductionRomanesque, it is stretchedin elevennovelspartof the Extremo Norte, and the work Linha do
65
Graduanda do 8º semestre de Licenciatura em Letras – Língua Portuguesana Universidade Federal do Pará (UFPA).
Bolsista PIBIC/CNPQ. E-mail: [email protected]
66 Professora Doutora em Teoria e História Literária pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), professora do
curso de graduação e pós-graduação da Universidade Federal do Pará (UFPA).
E-mail: [email protected]
157
Parque (which is on the edgeof this cycle), and thisorder by thePCB. So,the presentationthis studyshowthe
contributionof the reader andliterary criticfor the press, as well as the perception
ofDalcídioJurandirreaderthrough hiscritical writings, which reveal howthe works ofwritersBrazilians and
foreignerswerereceived by thecritic whosought tocheck whetherthey contained, or not, the effortby
acommittedliteraturein discussingsocial problems.
Keywords: Literacy critic; Dalcídio Jurandir ; Press.
Introdução
O escritor Dalcídio Jurandir, nasceu na cidade de Ponta de Pedras, Ilha do Marajó, Pará, em 10 de
janeiro de 1909 e faleceu em 16 de junho de 1979, na cidade do Rio de Janeiro. Dalcídio contribuiu bastante para
a literatura, por meio de um projeto literário que visava, não apenas mostrar ao leitor os costumes do povo
marajoara, mas também destacar principalmente os conflitos sociais, as mazelas do homem: mesquinharia,
ambição, vaidade, ingenuidade do homem do campo em contraponto com a esperteza dos grandes proprietários
de terra, entre outros aspectos.
Esse projeto foi denominado Ciclo Extremo Norte, e é composto por dez romances: Chove nos campos de
Cachoeira (1941), Marajó (1947), Três casas e um rio (1958), Belém do Grão-Pará (1960), Passagem dos inocentes (1963),
Primeira Manhã (1968), Ponte do Galo (1971), Os habitantes (1976), Chão dos Lobos (1976) e Ribanceira (1978).Além
destes romances, escreveu também o romance proletário intitulado Linha do Parque (1959), encomenda do partido
a que era filiado, Partido Comunista Brasileiro, este romance visava passar aos leitores uma maior veracidade dos
acontecimentos da vida do trabalhador proletário, o que daria à obra maior credibilidade, esta obra também se
diferencia esteticamente dos demais romances que compõem o ciclo Extremo Norte, uma vez que a obra Linha
do parque narra a história do movimento operário no Rio Grande do Sul. Por outro lado, o ciclo Extremo Norte
narra a saga amazônica da personagem Alfredo, no entanto, no romance Marajó, Alfredo não aparece como
personagem principal da obra, um dos motivos que leva alguns leitores a lerem e até explicarem a obra Marajó
evadindo da sequência proposta pela saga amazônica vivida por Alfredo.
Além de sua atuação literária, muito bem representada por seus romances, em que o povo, bem como as
questões sociais são as peças fundamentais dos enredos, Dalcídio Jurandir também contribuiu para periódicos e
revistas, escreveu para a imprensa dos Estados do Pará, onde começou sua atividade jornalística, de Pernambuco,
da Paraíba e, principalmente, do Rio de Janeiro, onde foi morar após 1941. No Pará, colaborou com o jornal: O
Estado do Pará e com as revistas: Revista Escola, Novidade, Terra Imatura e A Semana, no período entre 1930 e 1941.
No Rio de Janeiro, com os periódicos: O Radical, Diretrizes, Diário de Notícias, Voz operária, Correio da Manhã,
Tribuna Popular, Novos Rumos, O Jornal, Imprensa Popular, revista Literatura, revista O Cruzeiro, A Classe Operária, Para
Todos, Problemas e Vamos Ler, no período entre 1941 e 1960.
158
Nesse contexto é que se propõe neste trabalho, um recorte das críticas literárias produzidas por Dalcídio
Jurandir para os periódicos em que mais atuou: O Estado do Pará (PA), Novos Rumos e Imprensa Popular (RJ), com o
propósito de perceber o leitor e crítico literário Dalcídio Jurandir na imprensa de 1930/1960.
1.
A crítica literária produzida por Dalcídio Jurandir para os periódicos:
O Estado do Pará, Novos Rumos e Imprensa Popular
Dalcídio Jurandir além da produção romanesca, distendida em onze romances, atuou, no decorrer de sua
vida, como jornalista, nos deixando mais de 200 textos, espalhados em periódicos que circulavam principalmente
em Belém e no Rio de Janeiro, entre os anos de 1930 e 1960. Entre esse legado foram encontrados textos de
variadas tipologias: poemas, crônicas, ensaios, reportagens, entrevistas e crítica literária.
Na crítica literária, o autor centrou-se em obras de diferentes gêneros (poesia, prosa, teatro) tanto de
autores brasileiros como de estrangeiros. Fazer a análise de artigos críticos de autoria de Dalcídio Jurandir,
publicados em periódicos dessas duas cidades, especificamente naqueles em que mais atuou: O Estado do Pará
(Pará), entre 1930 e 1941, Novos Rumos e Imprensa Popular (Rio de Janeiro) entre 1941 e 1960, se torna importante,
uma vez que, por meio dessa análise, pode-se averiguar mais uma face desse intelectual: Artista paraense
preocupado com uma literatura engajada, com o propósito de revolucionar, como afirma o próprio Jurandir
(1974),
Somos nós mesmos ao lado das massas, esclarecendo-nos na luta de todos os dias,
conhecendo o povo na sua miséria e no seu heroísmo subterrâneo e encontrando nele
o verdadeiro mistério da criação literária, a força de uma obra que interprete a
humanidade brasileira e ajude a conduzi-la também para diante. ( JURANDIR, 1974.
p.7)
Pode-se verificar também, se na recepção de Dalcídio Jurandir de obras de escritores brasileiros e
estrangeiros, aparece seu empenho por uma literatura comprometida em discutir problemas sociais, sendo este
um ponto forte nas produções romanescas do escritor paraense. O que se comprova na crítica literária O arranha
céu e o lírio dos campos, conforme o excerto seguinte:
Erico em todos os seus romances apresenta os personajens em torno dum tema que
nunca poderia por uma tese e de um conflito que se desenvolve atravez de todos os
problemas humanos. ―Um logar ao sol‖- muito proximo de ―contraponto‖- é uma
exaltação á vida coletiva, á sodariedade humana na luta pela existencia. Olhai os lirios
dos campos‖ é um prolongamento desse tema tão do agrado do escritor. Mas no
ultimo romance as situações são mais dramaticas, anda o que se pode chamar o
irreparavel nas mascaras e nos dramas que enchem o romance.[...] E Erico não faz
mais do que transmitir o que ha de problema, de odio e miseria, de luta estupida e
cega e mil soluções sociais com que nos atropelamos neste mundo. (JURANDIR, O
Estado do Pará, 1938)
159
Para o crítico era de grande importância que a obra literária servisse como instrumento de denúncia aos
problemas enfrentados pela sociedade brasileira, é o que se observa na crítica acima de Dalcídio Jurandir que
elogia o romance de Érico Veríssimo ―Olhai os lírios do campo‖, publicado naquele ano. Percebe-se que
Dalcídio foi leitor de Veríssimo e compartilha com ele o apelo às questões sociais em seus romances, talvez seja
este o ponto em comum , que atraiu Dalcídio como leitor da obra de Veríssimo. O crítico adentra no romance
de Veríssimo e percebe os personagens seus conflitos, sua mazelas, os seres coletivos – multidões que povoam o
espaço da obra, mostrando os desejos individuais daqueles personagens em meio a uma sociedade mercantilista.
Dalcídio apresenta o aspecto fundamental da obra de Veríssimo nesta crítica: a beleza da vida que se contrapõe
ao ―arranha céu‖, isto é, às grandes contruções, com o advento de uma sociedade modernista.
Percebe-se ainda que Dalcídio Jurandir é um excelente conhecedor do gênero romance. O que se
comprova também na entrevista concedida pelo escritor para a revista Novos Rumos,
- Creio que os meus romances – diz ele – são um feixe de temas - e variações em
torno destes – mas do que enredos ou simplesmente histórias. Gênero literário que
data apenas de ontem, é fruto de uma evolução em que se fundem o lírico, o
dramático, o épico. O romance não sairia do nível das narrações folclóricas, das gestas,
dos contos de cavalaria, folhetins e novelas radiofônicas, se tivesse apenas uma
história a contar.
( JURANDIR,
Novos Rumos).
Este feixe de temas e esta evolução são percebidos na leitura dos romances produzidos por Dalcídio
Jurandir, uma vez que, verifica-se que o enredo não gira em torno de uma única história, são muitos os temas,
personagens, conflitos contidos nas obras de Dalcídio, isso torna sua obra rica e grandiosa, mostrando a todo o
momento focos narrativos diferentes e que acabam no decorrer da narrativa se misturando, se complementando.
Pode-se afirmar, portanto que Dalcídio Jurandir como leitor e crítico tinha uma posição social ao
analisar as obras de outros autores, já que a questão social é algo de extrema importância na escrita tanto
romanesca, quanto jornalística do literato paraense. Para Dalcídio Jurandir a literatura deve retratar a realidade
vivida pelo povo, a fim de exercer no leitor uma maior conscientização a respeito dos problemas da população,
assim consequentemente surgiria uma interpretação revolucionária da realidade brasileira. O que se comprova no
excerto a seguir:
Não esqueçamos, neste ponto, das idéias camponesas descritas por Euclides da Cunha
em ―Os Sertões‖. Trata-se de um poema e de um romance, além do caráter de genial
reportagem e libelo que lançou contra as classes dominantes do país. Nas páginas de ―Os
Sertões‖ agita-se toda a humanidade do Nordeste condenada no latifúndio, ao atraso de
trezentos anos, o que tentava rebentar as cadeias por meio do cangaço de Canudos, de
toda espécie de luta. Os [...] por Euclides no seu poderoso livro, fazem parte de nossa
melhor literatura, de nossa cultura democrática e popular. Pouco depois de Euclides,
surge Lima Barreto que saudou a Revolução Russa, dizia-se ―maximalista‖ e deu ao seu
romance um caráter [...] tornando-se uma das maiores figuras de nosso [...]
160
Se a partir de 1930, a humanidade carioca, encontrada em Lima Barreto e que enche as
fábricas, oficinas e o porto, não cresceu no romance e nos contos, a de Euclides da
Cunha e de Domingos Olímpio ressurge no romance chamado nordestino já sob a
influência das novas idéias, despertando ao calor da revolução russa, da construção do
socialismo, do nascimento e do crescimento do P.C.B. O nascente proletariado brasileiro
assume a direção da revolução, indica o caminho das grandes lutas contra o semifeudalismo e contra o imperialismo. (JURANDIR, Imprensa Popular, 1952)
Verifica-se nesse excerto que Dalcídio ressalta obras e autores que trazem a temática proposta pelo
Partido comunista, que é revelar a realidade brasileira com todas as suas mazelas, em forma de textos literários,
para que assim, se possam expandir os ideais socialistas, a fim de denunciar combater e as mazelas existentes no
Brasil.
3. A implicação do crítico literário Dalcídio Jurandir com a linha ideológica do PCB
Dalcídio Jurandir, em sua produção jornalística, discute obras que obedecemaos conceitos ideológicos
pregados pelo Partido comunista Brasileiro, ao qual era filiado. Comoafirma Furtado (2011): ―[...] analisa
aspectos e/ou fenômenos da realidade, ou discute assuntos do PCB, como as coordenadas teóricas do Partido.
Entre esses ensaios são notórios os que discutem a escrita literária, conforme a concepção partidária.
(FURTADO, 2011. p.3).
Vale também frisar que os periódicos contribuíram bastante para propagar os propósitos políticos
ideológicos dos partidos políticos, assim, os comunistas também perceberam na imprensauma importante
ferramenta para levar, à grande massa, a ideologia do partido, como elenca Moraes (1994),
Coube a esta rede de jornais e revistas divulgar no país os alicerces da doutrina estética
exportada pela União Soviética para os partidos comunistas aliados. A mídia do PCB
foi, assim, o lugar exemplar de reverberação das teses de Andrei Jdanov, ideólogo e
censor da literatura e das artes na era Stálin. (MORAES, 1994. p.16).
Por apresentar uma concepção política voltada não apenas para os problemas sociais, mas também para
as questões culturais, o Partido Comunista Brasileiro atraiu muitos intelectuais, como Dalcídio Jurandir,
poiscomo afirma Konder (1980),
A concepção que os comunistas brasileiros tinham da democracia se mostrava no
trato com os problemas da cultura. Embora não tivesse um programa de política
cultural bem definido, a agremiação dirigida por Prestes enfatizava seu apreço pela
democracia e pela cultura [...] Eram muitos os intelectuais de prestígio que se
aproximavam, então, do PCB. (KONDER, 1980. p.59)
A literatura na percepção de Dalcídio Jurandir deve apresentar um caráter combativo, comprometida
com as causas sociais, tendo como base o princípio de que o lugar do artista/escritor é ao lado do povo,
161
conforme as propostas do partido a que era filiado, tais propostas tinham o intuito de revolucionar a literatura e,
por conseguinte a realidade vigente, buscando o progresso da classe operária. Para ele, os intelectuais não podiam
deixar de se unirem às ideias progressistas para instruir a população a respeito das leis que as amparam e do
movimento socialista brasileiro, pois só assim, esse movimento se consolidará e terá forças para lutar em prol dos
direitos e das necessidades do povo. E este posicionamento de Dalcídio Jurandir a respeito de sua concepção
político-partidária é evidenciado no excerto seguinte da crítica literária: Nota Sobre a Influência Do P.C.B em Nossa
Literatura.
A partir [...] fundação do Partido, começa a literatura brasileira a receber as primeiras
influências, ainda vagas ou pouco acentuadas das idéias do marxismo-leninismo. A
data ficou marcada para as nossas letras. Os pequenos jornais, boletins, os primeiros
livros traduzidos, as tentativas de apresentação em termos literários da questão social,
a poesia, [...] material para dias futuros, para uma elaboração mais literária, para sua
incorporação, enfim, na história da literatura. As idéias do marxismo-leninismo, a
partir do surgimento do P.C.B. entram a combater e a destruir o [...] das idéias
anarquistas e a mescla de diferentes socialismos em voga. O Partido passa a oferecer
ao historiador, ao crítico literário, ao poeta, ao romancista, ao pesquisador, a
possibilidade para uma interpretação revolucionária da realidade brasileira. E isso
significa primeiros [...] da revolução cultural. Esta se inicia na verdade com a fundação
do Partido [...] (JURANDIR, Imprensa Popular, 1952).
Por meio deste excerto desta crítica, compreende-se quão grande era a preocupação de Dalcídio em
apresentar uma literatura engajada politicamente, com a finalidade progressista que, segundo Dalcídio, se dá por
meio da influência do Partido Comunista Brasileiro na literatura.
Na produção jornalística do escritor Dalcídio Jurandir,é possível falar, do ponto de vista políticoideológico, em diferenças entre a crítica produzida por Dalcídio Jurandir em Belém, nos anos anteriores a 1941 e
a crítica produzida pelo autor no Rio de Janeiro, nos anos posteriores a 1941, uma vez que se evidencia que para
os periódicos e revistas de Belém, seus textos não eram voltados especificamente para a fundamentação
ideológico-partidária ao contrário dos textos escritos para os periódicos do Rio de Janeiro, que apresentavam
essa fundamentação. Os jornais do Rio de Janeiro, em sua maioria, eram timbrados com a marca de imprensa
comunista, o que não quer dizer que Dalcídio Jurandir não discutia questões políticas no periódico O Estado do
Pará (PA), pelo contrário, o escritor paraense além de discutir diversas questões políticas, articulava em seus
textos sobre estas questões no intuito de transformar e fazer vigorar uma realidade nova, diferente daquela que a
população menos favorecida padecia. Assim, Dalcídio Jurandir fazia de sua escrita para a imprensa tanto do Pará,
quanto para a imprensa do Rio de Janeiro um instrumento de combate e de denúncia dos problemas sociais.
Conclusão
162
É possível com este trabalho compreender a literatura que Dalcídio Jurandir defendia, não apenas
como objeto de leitura, mas como recurso transformador do que se tem em volta, do próprio, do outro, da
sociedade, do pensamento. Como afirma Fenerick (2004),
A literatura no Brasil, independente da época que se queira observar, foi elevada à
categoria máxima da sensibilidade e expressão do pensamento brasileiro. Conforme
constatou Antônio Cândido, "diferentemente do que sucede em outros países, a
literatura tem sido aqui, mais do que a filosofia e as ciências humanas, o fenômeno
central da vida do espírito". E, prossegue Antônio Cândido, "ante a impossibilidade de
formar aqui pesquisadores, técnicos, filósofos", a literatura ―preencheu a seu modo a
lacuna, criando mitos e padrões que serviram para orientar e dar forma ao
pensamento". (FENERICK, 2004. p.11).
Desta maneira, este estudo contribui para uma ampliação do horizonte estético sobre o autor, assim
como permite um conhecimento a mais, não apenas o conhecimento do escritor de romances, mas
principalmente o conhecimento e compreensão de um escritor que procurava uma literatura engajada, daí a
importância de analisá-lo na perspectiva de leitor e crítico literário na imprensa de 1930/1960.
REFERÊNCIAS:
CANDIDO, Antonio. Literatura e sociedade: estudos de teoria e história literária. São Paulo: Companhia Editora
Nacional, 1985.
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da ABRALIC – Tessituras, Interações, Convergências. São Paulo. 13 a 17 jul. 2008. Disponível em:
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Acessado em: 20-10- 2012.
_______Universo derruído e corrosão do herói em Dalcídio Jurandir. 263 fls. Tese (doutorado em teoria Literária).
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_______Dalcídio Jurandir jornalista: o empenho de um escritor por uma literatura empenhada. Artigo inédito cedido pela
professora.
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163
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KONDER, Leandro. A democracia e os comunistas no Brasil. Rio de Janeiro: Graal, 1980.
KONDER, Leandro. As ideias socialistas no Brasil. São Paulo: Moderna, 1995.
MOISÉS, Massaud. Dicionários de termos literários. São Paulo: Cultrix, 2004.
Revista PZZ (Pará Zero Zero) – Arte, política e cultura – O Chão Vermelho de Dalcídio Jurandir. Reedição Especial nº
6, 78 páginas, Belém, nov. de 2009.
PERIÓDICOS – O Estado do Pará, Novos Rumos e Imprensa Popular.
164
PROSA DE FICÇÃO NO JORNAL DO PARÁ
Juliana Yeska Torres Mendes (UFPA/CNPq)67
Orientação: Dra. Germana Maria Araújo Sales (UFPA/CNPq) 68
Resumo:A prática da escrita de romances folhetins ocorreu, primeiramente na cidade do Rio de Janeiro e se
espalhou por todo o país. No Pará, esse gênero ganhou espaço nos periódicos locais, que mantiveram a forma
semelhante aos da França, com publicação nos rodapés dos jornais e publicações em séries. O Jornal do Pará
esteve entre esses periódicos que seguiram ao novo modo de publicação. Dessa forma, o presente trabalho tem
como objetivo analisar os gêneros em prosa que circulavam no periódico Jornal do Pará da cidade de Belém, no
período oitocentista.
Palavras-chave:Folhetim ; Gêneros; Jornal do Pará
Abstract:The practice ofwritingnovelsserialsoccurredprimarilyin the city ofRio de Janeiroandhas spread
throughoutthe country. In Pará, this genrehas gained groundin thelocal newspapers, who maintainedsimilarly
toFrance withthepublicationofnewspapers andfootersinseries. TheJournalof Paráwas amongthosewho
followedthe newperiodicalpublishing mode. Thus, this study aims to analyzethe genresof prosethat circulatedin
the journalJournalof Paráin Belém, duringthe eighteenth century.
Keywords:Feuilleton; Genres; Journalof Pará.
Introdução
A prática de se escrever folhetins nasceu na França, em torno de 1830. Em Paris, o jornalista
Émile Girardin tem uma ideia inovadora: com o intuito de aumentar a vendagem de seu jornal, La
Presse, Émile pede a alguns romancistas que publiquem, em capítulos, no seu periódico. A ideia do
jornalista obtém êxito e a tiragem de seu jornal quase triplica seus exemplares. Utilizando uma técnica
que se aproxima do melodrama popular – priorização da história trágica, cercada de lágrimas, mas que
pode admitir se não um final feliz, pelo menos uma séria lição de moral –, o romance em folhetim
passa a ser devorado por um público que busca entretenimento para um dia fatigante.
Graduanda em Letras – Língua Portuguesa na Universidade Federal do Pará (UFPA). Bolsista AT/CNPq. E-mail:
[email protected]
68 Professora da Graduação em Letras e do Programa de Pós Graduação em Letras da Universidade Federal do Pará
(UFPA).
E-mail: [email protected]
67
165
O espaço reservado por Émile propunha assuntos mais leves que o resto do jornal, investindo
em variedades. Críticas literárias, anúncios, resenhas teatrais e receitas culinárias faziam parte do
feuilleton, que estava situado no rodapé do jornal. Marylise Meyer (1996, p. 23) explica como se deu a
glorificação do folhetim:
O folhetim vai ser completado com a rubrica ―variedade‖, que é cunha por onde
penetra a ficção, na forma de contos e novelas curtas. O passo decisivo é dado quando
Girardin, utilizando o que já vinha sendo feito para os periódicos, decide publicar
ficção em pedaços. Está criado o máximo chamariz ―continua no próximo número‖
(...)
O resultado foi um grande sucesso. A fórmula continua amanhã ou continua num próximo número
que a ficção em série proporcionava ao folhetim, alimentava paulatinamente o apetite e a curiosidade
do leitor diário do jornal e, obviamente, como resposta, fazia aumentar a procura por ele,
proporcionando-lhe maior tiragem e, consequentemente, barateando os seus custos.
O jornal
democratizava-se junto à burguesia e saía do círculo restrito dos assinantes ricos.
O romance espanhol Lazarillo de Tormes é o primeiro romance-folhetim publicado, 1836. No
final do mesmo ano, Giradin encomenda para Honoré de Balzac uma novela para ser publicada aos
pedaços, La vielle fille (A MeninaVelha). Na década de 1840, o feuilleton-roman alcança seu ápice com
Eugéne Sue e Alexandre Dumas. O sucesso da publicação aumentou a tiragem dos jornais e irritou os
críticos – que consideravam os escritos uma literatura industrial. O gênero ficou rotulado como
subliteratura, por sua relação intrínseca com a nascente indústria cultural. O folhetim é definido por
muitos especialistas como o primeiro produto da indústria cultural que estava surgindo.
Inicialmente os textos publicados não tinham uma especificidade, havia a presença de vários
textos como crítica, piadas, charadas, entre outros. A finalidade era um especo vazio que fosse
destinado ao entretenimento. Posteriormente os textos passaram a ter caráter mais específico. As
chamadas ficções em fatias tomavam conta, então, do espaço destinado aos textos, e com a fórmula
―continua amanhã‖, alcançou grande sucesso ao alimentar a curiosidade e expectativa do leitor. A
consequência era a maior procura dos periódicos por leitores ávidos pela continuação da narração.
Título geral desse pot-pourri de assunto, que Martins Pena chamaria de ―sarrabulho líterojornalístico‖: varietés, ou mélanges, ou feuilleton. Mas esse último, repita-se, era antes um
termo genérico, designando essencialmente o espaço na geografia do jornal e seu
espírito. Com o tempo, o apelativo abrangente passa a se diferenciar, alguns conteúdos
se rotinizam e o espaço do folhetim oferece abrigo semanal a cada espécie: é o ―feuilleton
dramatique‖(crítica de teatro); littéraire (resenha de livros); ―variétes‖ (MEYER, 1996, p.
58).
No início dos anos 1840, o gênero já está estabelecido e importantes escritores franceses eram
disputados pelos jornais do país para criar romances-folhetins exclusivos. As principais características
166
do folhetim são ―novas condição de corte, suspense, com as necessárias redundâncias para reativar
memórias ou esclarecer o leitor que pegou o bonde andando‖ (MEYER, 1996, p.59).
O romance-folhetim tem um agravamento das tensões, isso vai progressivamente aumentando;
o suspense é mantido capítulo a capítulo afim de que o leitor fique preso à expectativa pelo final da
narrativa. Essas longas histórias em fatias passam a ser encomendadas pelos jornais e, localizam-se
inicialmente nos rodapés das páginas. O romance-folhetim é um gênero popular por atender mais à
necessidade de divertimento do leitor do que à sua reflexão filosófica metafísica.
No Brasil, antes de se serem publicados em jornais, os romances circulavam em menor escala.
Para os leitores, o preço dos livros era alto. Para os escritores, havia a dificuldade de publicar uma obra
– o Brasil quase não tinha imprensa, a publicação tinha normalmente de ser feita na Europa. O
folhetim democratizou o acesso à literatura e serviu de estímulo para escritores, uma vez que lhes dava
a possibilidade de publicação. A imprensa surgiu de fato no Brasil após a vinda da família Real, em
1808. Tipografias foram abertas e outras foram equipadas com máquinas trazidas da Europa. Os
periódicos, então, passaram a ser veiculados no país com o propósito de atualizar o leitor sobre fatos
políticos e culturais. Posteriormente, o jornal buscou um novo propósito: o de entreter o leitor. Não
demorou a que o público se encantasse com as leituras diárias proporcionadas pelos jornais brasileiros.
O sucesso dos folhetins na França foi um fator importante para a iniciação da prática no Brasil. O
objetivo era o mesmo: dar a abertura aos jornais – fato que não era permitido pelo Império – e adquirir
novos leitores, de diferentes camadas.
A primeira aparição pelo país do folhetim foi em 1838, com a publicação de O capitão Paulo, de
Alexandre Dumas, traduzida por J. C. Muzzi. (MEYER,1996, p. 32). De acordo com Afrânio Coutinho, o
folhetim nasceu com autores brasileiros com Francisco Otaviano em 1852 e posteriormente teve nomes como
José de Alencar, Manuel Antônio de Almeida, Machado de Assis, Raul Pompéia e Coelho Neto. O folhetim
conquista o público do país e vai se transformando desde a definição de costumes e modos até ferramenta
incentivadora da leitura. Ler o folhetim virou hábito familiar, tanto na Corte quanto nos serões das províncias, e
durante sua leitura oral era permitida a presença das mulheres e a participação dos analfabetos, que eram a
maioria.
A fim de aprofundamento na pesquisa sobre a trajetória dos gêneros literários em prosa que circulavam
nos periódicos da cidade de Belém e do Rio de Janeiro no período oitocentista, analisou-se o gênero que mais
ocorreu em um desses periódicos da cidade de Belém, o Jornal do Pará.
Jornal do Pará
167
O Jornal do Pará foi um importante jornal que circulou na capital paraense entre 1862 e 1878 – um longo
período para os jornais daquela época. Produzido pela tipografia Santos & Irmãos, substituiu o Jornal Treze de Maio
(1840 -1844). O primeiro número do jornal foi publicado em 04 de novembro de 1862 e o último em 10 de
novembro de 1878, era produzido diariamente, exceto às segundas-feiras. Como órgão oficial, tinha um forte
caráter político, contudo, publicava diferentes assuntos, não somente por ser uma característica típica do
periódico oitocentista, mas também com o objetivo de conquistar o público. Entre informes, notícias oficiais,
anedotas, propagandas, avisos de reuniões e festas, a presença de textos literários era constante no jornal.
Abordando gêneros como novela, conto, crônica, romance e lenda, o Jornal do Pará atraia o público com as
famosas narrativas seriadas. No espaço do folhetim, há rubricas que registram a diversidade de gêneros ou ainda
a dificuldade de se nomear um gênero totalmente novo. As seções eram nomeadas de Variedades, Miscellanea,
Litteratura ou Folhetim, geralmente divididas em quatro colunas no pé da página inicial em que circulavam as
publicações literárias nos jornais. Sua produção era diária, exceto às segundas-feiras, dias imediatos aos
santificados e de festa nacional.
Resultados preliminares
Neste momento inicial da pesquisa foram observados os seguintes itens:
O número de prosas contabilizou um total de oitenta e cinco (85). O conto foi o gênero em prosa mais
publicado, contabilizando sessenta e nove (69) publicações no período de circulação do jornal. Dos sessenta e
nove contos publicados, vinte e oito (28) são de autores desconhecidos. O segundo gênero mais publicado foi a
crônica, com nove (09) publicações, seguido do romance com seis (06) publicações; o último gênero menos
visível é a lenda, com (01) uma publicação apenas.
A tabela abaixo ilustra os autores reconhecidos que publicaram no Jornal do Pará, suas
nacionalidades, ano de nascimento e morte:
Nome
Nascimento/ Morte
Nacionalidade
Anderson (Hans Christian
Andersen)
1805 - 1875
Dinamarquês
Luís Leopoldo Fernandes Pinheiro
Júnior
Brasileiro
1855 – 1955
Suíço
Jean Jacques Rousseau
1712-1778
168
Brasileiro
Dr. Aureliano José Lessa
1822 - 1861
Português
Ramalho Ortigão
Cônego Francisco Bernardino de
Souza
1836 - 1915
Brasileiro
-
Victória Colonna
1490 - 1547
Italiana
Charles Nodier
1780 - 1844
Francês
Padre João Vieira Cruz
1828 -
Português
Eduardo Ferreira França
1809 - 1857
Brasileiro
Francisco Luiz Gomes
1829 - 1869
Português
Manuel Antônio de Almeida
1831 - 1861
Português
Narcisa Amália
1856 - 1924
Brasileira
O gênero conto foi o mais visível durante os dezesseis anos (1862-1878) em que o periódico Jornal do Pará
circulou na capital da Província do Grão Pará. Pode ser verificado no quadro abaixo, os resultados preliminares,
quanto aos autores, datas de publicações e número de edições:
Gênero: Conto
169
Título
Autor
Data de publicação
Nº edições
A noviça
Autoria Desconhecida
14, 15, 16 e 17de
junho, 1867
04
A carteira
Autoria Desconhecida
29 de junho, 1867
01
Rivais e Amigas
Alberto Coutinho
Junior
17 e 20 de dezembro,
1867
02
Evangelina
Luciano Santos
13 de outubro, 1867
01
Uma noite no clube
F.
05 de novembro, 1867
01
As filhas do céu
F. M. Supíco
11 de agosto, 1868
01
Rosetta
José Ivo
23 de agosto de 1868
01
Seus Olhos
Pietro de
Castelgandolfo
15 de setembro, 1868
01
Haiva
Mery
22 de setembro de
1868
01
Entre flores
Candido Leitão
31 de outubro, 1868
01
Memórias de um bom
rapaz
Ramalho Ortigão
04 de maio, 1869
01
Criminoso Endurecido
Autoria Desconhecida
09 de maio, 1869
01
Um amor de mulher
Autoria Desconhecida
29 e 30 de maio, 1869
02
Nevoas
AlliDjeb
28 de dezembro, 1869
01
O destino
Matheus Alemam
14 de novembro, 1871
01
Exemplo de perseverança
Autoria Desconhecida
10 de novembro, 1872
01
Uma visão
Dr. Aureliano José
Lessa
13 de maio, 1873
01
O mendigo da catedral de
leão e o padre católico
Autoria Desconhecida
01 de junho, 1873
01
A mãe de família
Autoria Desconhecida
05 de junho, 1873
01
170
Um ilustre avarento
Autoria Desconhecida
27 de setembro, 1874
01
A filha de Jephé
Cônego Francisco
Bernardino de Souza
09 de janeiro, 1875
01
A morte de Sanção
Cônego Francisco
Bernardino de Souza
12 de janeiro, 1875
01
Contos Macahenses ―O
Anjo da solidão‖
L. L Fernandes
Pinheiro Jr.
13, 14 e 16 de janeiro,
1875
03
A vara das açucenas
Autoria Desconhecida
06 de fevereiro, 1875
01
A condessinha
Autoria Desconhecida
16 de fevereiro, 1875
01
As três flores
Autoria Desconhecida
18 e 19 de fevereiro
01
Um drama chinês
Autoria Desconhecida
24 de fevereiro, 1875
01
Nos Alpes
Autoria desconhecida
28, 02, 03 e 05 de
fevereiro, 1875
04
Um Casamento Original
Autoria desconhecida
22 e 23 de maio, 1875
02
As reuniões de família
Autoria desconhecida
02 e 03 de junho, 1875
02
Anjos caídos
Autoria desconhecida
04 de junho, 1875
01
A Beneficência Delicada
Emilio Augusto
Gomil de Penido
22 e 24 de junho, 1875
02
Um Aristocrata
Autoria desconhecida
27 e 28 de junho,
1875, 1875
02
Mãe
Anderson
10 e 11 de agosto,
1875
02
A Virtude Laureada
Victoria Colonna
27,28,31,02 e 03 de
agosto, 1875
05
171
Considerações finais
Os resultados indicam que entre as autoria do gênero Conto identificadas, a maioria é de nacionalidade
brasileira, o que permite inferir que, apesar da grande influência europeia na publicação de narrativas em
periódicos brasileiros no período oitocentista, no Jornal do Pará, os autores brasileiros possuíam grande parcela
participativa, como: Luís Leopoldo Fernandes Pinheiro Júnior; Poeta, cronista, romancista, tradutor,
jornalista, filólogo, professor, geógrafo e historiador brasileiro, Dr. Aureliano José Lessa: Bacharel formado em
Ciências Socias e jurídicas pela Academia de S. Paulo em 1853, e Eduardo Ferreira França; Era doutor em
medicina pela faculdade de Paris e pertencia a diversas associações literárias de jovens acadêmicos.
Entre os autores estrangeiros, encontrados até o presente momento, cito: Jacques Rosseaau;
importante filósofo e teórico político suíço, um dos precursores do movimento iluminista na França e Ramalho
Ortigão; Escritor, jornalista bibliotecário da Biblioteca da Ajuda, oficial da secretaria da Academia Real das
Ciências. Entre outros escritores, jornalistas, professores, cronistas, de diferentes nacionalidades.
REFERÊNCIAS:
MEYER, Marlyse. Folhetim: uma história. São Paulo: Companhia das Letras, 1996
SALES, Germana. Colunas Literárias: Variedades, Miscellaneas, Litteratura, Folhetins. Disponível em:
www.alb.com.br_anais15_sem03_GermanaMaria.pdf. Acesso em: 02 de fev. 2013
MARTINS, Patrícia. Jornal do Pará: A literatura brasileira na segunda metade do século XIX. Disponível em:
http://www.cielli.com.br/downloads/274.pdf. Acesso em 04 de abril. 2013
SERRA, Tânia Rebelo Costa. Antologia do romance-folhetim: (1389 – 1870). Brasília: Editora da
Universidade de Brasília, 1997.
172
UMA INVESTIGAÇÃO SOBRE OS DESTINADORES DE PREFÁCIOS EM
EXEMPLARES DA PROSA DE FICÇÃO PORTUGUESA DO SÉCULO XIX
Lorena Mena Barreto Rodrigues69
Prof. Dr. Valéria Augusti (Orientadora) 70
Resumo:Segundo Gérard Genette (2009), em sua obra Paratextos editoriais, pode-se definir prefácio como um
paratexto que ocupa posição anterior ou posterior a um texto sobre o qual, a propósito, tece diversas
considerações. Tendo isto em vista, Genette procura criar uma taxionomia capaz de dar conta dos diversos tipos
de prefácio, desde a Antiguidade até a era de Guttemberg. Para tanto, analisa, no que se refere à instância
prefacial, questões relativas ao estatuto formal e modal do prefácio, ao lugar ocupado por ele no conjunto da
obra, ao momento de sua aparição, aos seus destinadores e destinatários. Segundo Genette (2009), os prefácios,
no que tange a sua atribuição, podem ser de várias naturezas. Eles podem ser autorais, ou seja, quando o autor da
obra também o é do prefácio (quando atribuídas ao autor), alógrafos (atribuídos a terceiros) ou actorais
(atribuídos a uma personagem do texto). Na presente pesquisa, que faz parte do projeto O Grêmio Literário
Português do Pará e os livreiros portugueses (1867-1890), coordenado pela profa. Dra. Valéria Augusti, pretende-se
apresentar como os prefácios selecionados foram categorizados quanto ao tipo de destinador, bem como
mostrar as análises de seus conteúdos.
Palavras-chave: Prefácios; Prosa de ficção portuguesa; Século XIX.
Abstract:According to Gérard Genette (2009), in his work Paratextos Editoriais, can be defined preface as a
paratext which occupies position before or after of the text that weaves diverse considerations about it. With that
in view, Genette seeks to create a taxonomy able to account for various types of preface, from Antiquity to the
era of Guttemberg. It analyzes in relation to prefatory instance, questions concerning the status of the formal
and modal preface to the place occupied by it in the whole work, the moment of their appearance, their senders
and recipients. According to Genette (2009), the prefaces, regarding your assignment, can be of various natures.
They may be autorais, when the author of the work is also of the preface (when assigned by the author), alógrafos
(attributed to others) or actorais (attributed to a character in the text). In the present study, which is part of the
project O Grêmio Literário Português do Pará e os livreiros portugueses (1867-1890), coordinated by Prof. Dr. Valéria
Augusti, aims to present how the prefaces selected were categorized as to the type of sender as well as show the
analyzes of their contents.
Keywords: Prefaces; Portuguese prose fiction; 19th Century.
Introdução
Segundo Gérard Genette (2009), em sua obra Paratextos editoriais, pode-se definir prefácio como um
paratexto que ocupa posição anterior ou posterior a um texto sobre o qual tece considerações as mais diversas. O
69
Graduanda em Licenciatura em Letras, habilitação em Língua Portuguesa pela Universidade Federal do Pará (UFPA).
Bolsista PIBIC/FAPESPA. E-mail: [email protected]
70 Professora do Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal do Pará (UFPA).
E-mail: [email protected]
173
prefácio pode receber diversas denominações, tais como: introdução, proêmio, notícia, aviso, apresentação,
exame, preâmbulo, entre outras. Tendo isto em vista, Genette procura criar uma taxionomia capaz de dar conta
dos diversos tipos de prefácio, desde a Antiguidade até a era de Guttemberg. Para tanto, analisa, no que se refere
à instância prefacial, questões relativas ao estatuto formal e modal do prefácio, ao lugar ocupado por ele no
conjunto da obra, ao momento de sua aparição, aos seus destinadores e destinatários. Segundo Genette (2009),
os prefácios, no que tange a sua atribuição, podem ser de várias naturezas. Eles podem ser autorais (atribuídos ao
autor da obra a qual se refere), alógrafos (atribuídos a terceiros) ou actorais (atribuídos a uma personagem do
texto).
No presente artigo, pretende-se apresentar as categorizações e análises de alguns prefácios de exemplares
de prosa de ficção portuguesa pertencentes ao corpus do projeto O Grêmio Literário Português do Pará e os livreiros
portugueses (1867-1890), coordenado pela profa. Dra. Valéria Augusti. Selecionaram-se seis prefácios dos
exemplares de prosa de ficção portuguesa pertencentes ao corpus mais amplo até o presente momento coletado,
tendo em vista a extensão e variedade desses paratextos. Chegou-se, assim, à seguinte seleção: Meu caro editor da
obra Contos phantasticos (1865), de Theophilo Braga; Duas palavras ao leitor da obra Contos e descripções (1866), de M.
Pinheiro Chagas; Duas Palavras da obra A arrependida: romance (1872), de João Augusto d' Ornellas; Meu caro Luiz
de Magalhães da obra O brazileiro Soares (1886), de Luiz de Magalhães; Nota (da 2.ª edição) da obra O crime do Padre
Amaro (1889), de Eça de Queiroz; e Protesto e aviso aos leitores incautos, que faz Vasco de Montarroyo, personagem deste
romance da obra Os malditos (1895), de João de Castro.
Esses prefácios foram analisados tendo em vista a taxionomia elaborada por Genette, especialmente no
que diz respeito à categoria dos destinadores, ou seja, daqueles que seriam os autores dos prefácios das obras a
que se referem. Verificou-se que dos seis prefácios escolhidos, três eram autorais, dois alógrafos e um actoral,
sendo este último o único representante dessa categoria no corpus transcrito pelo projeto até a elaboração deste
artigo. Desse modo, serão expostas as razões pelas quais esses prefácios foram assim classificados. Além disso,
apresentar-se-ão análises dos paratextos especialmente no que se refere às discussões que se mostram
importantes para os estudos literários.
1. Prefácios autorais
Neste artigo, a categoria de prefácios autorais é representada por três paratextos, pertencentes às obras
Contos phantasticos (1865), de Theophilo Braga; Contos e descripções (1866), de M. Pinheiro Chagas; e O crime do Padre
Amaro (1889), de Eça de Queiroz.
O prefácio Meu Caro editor da obra Contos phantasticos (1865), de Theophilo Braga, pode ser
classificado como autoral uma vez que foi escrito pelo próprio autor da obra, o que se comprova pela
presença de sua assinatura ao final do paratexto. Nesse prefácio, encontra-se relevante discussão sobre
o gênero conto. O autor informa que o prólogo foi resposta a um pedido do editor que queria ―[...] um
capitulo de esthetica sobre esta [o conto] fórma litteraria‖ (BRAGA, 1865, p.5). Afirma também ter
174
quase desistido dessa empreitada, possivelmente não por incapacidade, posto que fosse um importante
crítico literário e historiador da Literatura Portuguesa, mas por considerar ―que o público não se agrada
de abstrações‖, motivo pelo qual justifica ter se limitado apenas a algumas considerações históricas
sobre o gênero.
Trata-se de um prefácio rico em informações e considerações sobre o conto, com várias
referências aos escritores que se utilizaram do gênero. Dentre eles, Theophilo Braga chega a se referir a
Voltaire, Diderot e Edgar Allan Poe. Define o conto como ―[...] forma litteraria da legenda‖ (Idem, p.6).
Nesse contexto, pode-se entender legenda como uma espécie de história fantasiosa. Para ele, o conto
seria ainda ―[...]a passagem do fabulario para a linguagem da prosa, ingênua, rude, de uma franqueza
maliciosa muitas vezes, e desenvolta‖ (Idem, p.6). O autor também dedica alguma atenção ao gênero
romance, pondo-o ao lado do conto, de modo a mostrar que esses gêneros tiveram, talvez, igual
importância para o desenvolvimento, na Literatura, de tendências filosóficas do séc. XVIII .
Por fim, Theophilo Braga afirma que ―a fórma do conto é estudada em todas as litteraturas da Europa‖
(Idem, p.11). Desse modo, pode-se afirmar que o autor reconhece a importância desse gênero, distinguindo-o do
gênero romance e elaborando um rol de representantes que considera importantes para a literatura ocidental.
O segundo prefácio, que precede a obra Contos e descripções, de Pinheiro Chagas, foi publicado em 1866,
pela livraria Campos Junior. Muito embora não contenha assinatura, pode-se, como bem assinala Gennete
(2009), considerá-lo autoral, pois é comum, nesses casos, que o autor do prefácio coincida com o autor da obra.
A primeira questão a se assinalar é que a obra que sucede esse prefácio faz parte de uma coleção, a ―Leitura para
caminhos de ferro‖. Por essa razão, o autor inicia seu texto questionando a existência de um prólogo em uma
obra destinada a ser lida em um trem: ―N‘um livro, destinado á leitura dos caminhos de ferro, um prologo é
absurdo.‖ (CHAGAS, 1866, p. 5). Do ponto de vista do autor, a velocidade da locomotiva não seria propícia à
leitura desse tipo de texto, pois, ao contrário do que ocorria com as antigas diligências, o novo veículo não se
atrasava e, por consequência, o leitor não ficava com tempo ocioso para ler o jornal ou mesmo o prólogo de um
livro:
A locomotiva não o tem. D‘antes o ronceiro omnibus, ou a pacata diligencia
annunciava que partia ás oito horas, e partia sempre ás nove. O que havia de fazer o
leitor durante essa hora de espera constante, em que estava, para assim dizermos, com
o pé no estribo, e em que temia sempre ouvir o tintinar da campainha annunciando a
partida? Se levasse um jornal, lêr os annuncios; se levasse um livro, lêr o prologo.
Podia por conseguinte o auctor espraiar-se á vontade na sua introducção, porque tinha
a certeza de ser lido... com um olho, só, é verdade; mas isso já era uma felicidade
completamente inesperada para um fazedor de prefacios. (Idem, p. 6)
Partindo desse argumento, o próprio autor justifica a extensão do prefácio, bem como de seu título Duas
palavras, que faz referência direta a sua brevidade em termos de extensão. Além disso, referindo-se ainda às
175
condições nas quais imagina que a leitura será feita, o autor alega não haver sequer tempo para explicar de que se
trata a obra:
Não ha um instante de intervallo, e a muito custo tenho tempo de lhe dizer, em
quanto os seus visinhos se accomodam nas almofadas do wagon, que o livro que vae
lêr é uma pequena collecção de folhetins despretenciosos, correndo ao de leve por
todos os assumptos, e desejando proporcionar leitura amena e facil. (Idem, p. 6)
Como se pode notar, a justificativa acerca do gênero literário de que trata a obra – folhetins
despretensiosos – parece estar associada à prática de leitura propriamente dita, que se daria supostamente nos
trens, motivo pelo qual acredita que seria amena e fácil. Por fim, o autor se coloca no lugar do leitor, imagina-se
ouvindo o anúncio da partida do trem, comparando o movimento de suas locomotivas ao galopar de corcéis de
fogo e deseja boa viagem ao leitor. Em suma, o prefácio em questão estabelece interessante relação entre a
extensão do prefácio, a natureza do texto literário que o segue e a situação ou prática de leitura a que acredita
serem lidos, uma vez que incluídos em uma coleção cujo destino era ser vendida em estações de trens e, por
consequência, lidas nesse ambiente ou durante as viagens.
O último prefácio classificado nessa categoria é uma Nota à 2ª edição de O crime do Padre Amaro, de Eça
de Queiroz. Essa nota foi escrita pelo autor na cidade de Bristol, em 1 de janeiro de 1880. Trata-se, sem dúvida,
de um prefácio autoral. O que chama a atenção logo de início é o fato de o autor tecer comentários à recepção
do romance no Brasil e em Portugal, demonstrando, assim, que acompanhava as considerações críticas feitas
sobre suas obras nos dois lados do Atlântico. Em ambos os países, afirma, o romance foi acusado de ser uma
imitação do romance de Zola denominado La faute de l‘abbé Mouret, ou, ainda, que ―este livro do auctor do
ASSOMOIR e de outros magistraes estudos sociaes suggerira a idéa, os personagens, a intenção do CRIME DO
PADRE AMARO‖ (QUEIROZ, 1880, p. 5).
Em virtude dessas insinuações, Eça de Queiroz utiliza o prefácio para apresentar os argumentos em
contrário. Num primeiro momento, afirma que essas acusações não são verdadeiras, uma vez que O crime do padre
Amaro fora escrito em 1871, lido para alguns amigos no ano seguinte e publicado em 1874, quando o livro de
Zola sequer havia vindo à luz, o que viria a ocorrer somente em 1875. Logo, ele não poderia plagiar algo que não
havia sido publicado anteriormente a sua obra.
Não satisfeito, Eça continua apresentando outros argumentos em sua defesa. Ironicamente afirma que
poderia ter penetrado nos pensamentos de Zola e ter visto as criações literárias futuras desse autor, como o
personagem abade Mouret. A ironia chega a tal ponto que ele utiliza um episódio bíblico como comparação, de
forma a dar a entender que penetrar na mente de Zola seria até mais extraordinário do que ser arrebatado aos
céus por um carro de fogo: ―Taes coisas são possíveis. Nem o homem prudente as deve considerar mais
extraordinarias que o carro de fogo que arrebatou Elias aos céos — e outros prodigios provados‖(Idem, p. 6).
Por fim, o romancista alega que essas acusações não são exatas, pois a simples comparação entre as duas
obras seria capaz de demonstrar sua ausência de fundamento. Por essa razão, passa a estabelecer a comparação
176
entre ambas. Segundo o autor, La faute de l‘abbé Mouret seria, em seu episódio central, um quadro alegórico da
iniciação do primeiro homem e da primeira mulher no amor. Por consequência, conclui que os ―críticos
intelligentes‖ que acusaram sua obra de imitar o romance naturalista francês, ―não tinham infelizmente lido o
romance maravilhoso do snr. Zola que foi talvez a origem de toda a sua gloria‖ (Idem, p.8). Ou seja, para ele a
semelhança entre as duas obras não passava dos títulos, o que demonstraria o desconhecimento dos dois livros
por parte da crítica. Desse modo, conclui que:
(...) só uma obtusidade cornea ou má fé cynica poderia assemelhar esta bella alegoria
idyllica, a que está misturado o pathetico drama d‘uma alma mystica, ao CRIME DO
PADRE AMARO que, como podem vêr n‘este novo trabalho, é apenas, no fundo,
uma intriga de clerigos e de beatas tramada e murmurada á sombra d‘uma velha Sé de
provincia portugueza. (Idem, p. 9)
Como se pode perceber, Eça de Queiroz aproveita a oportunidade para tecer uma crítica feroz aos que
escreveram sobre a obra, colocando-se numa posição rebaixada em relação a Zola, o que pode ser interpretado
como um recurso à modéstia afetada, desta feita, entre autores e não entre um mecenas e um escritor, como de
praxe em séculos anteriores Não seria de todo inútil assinalar que a nota prefacial finda com um agradecimento à
critica do Brasil e de Portugal pela ―attenção que ella tem dado aos meus trabalhos‖ (Idem, p. 9).
2. Prefácios alógrafos
Nesta categoria encontram-se o prefácio da obra A arrependida: romance (1872), de João Augusto
d'Ornellas e O brazileiro Soares (1886), de Luiz de Magalhães.
O prefácio Duas Palavras da obra A arrependida:romance (1872), de João Augusto d' Ornellas, pode ser
classificado como alógrafo, por não ter sido escrito por d‘Ornellas, autor da referida obra, e sim, pelo escritor
Julio Cesar Machado. No prefácio em questão, Julio Cesar Machado, ao comentar a abundância de romances que
estavam circulando no mercado editorial naquela época, realiza um retrospecto ao momento de florescimento
desse gênero em Portugal, citando escritores que teriam sido importantes nessa época, tais como, Almeida
Garret, Alexandre Herculano, Camillo Castelo Branco e até mesmo alguns autores estrangeiros que tinham suas
obras traduzidas para o português, como Walter Scott e Eugene Sue. Para o prefaciador, esse era um tempo
digno de ser amado, pois oferecia ―alimento delicioso [...]ás imaginações‖ (MACHADO in D'ORNELLAS, 1872,
p.5).Contudo, ressalta que à essa mesma altura, os leitores foram levados a se retirar lentamente do caminho para
o qual alguns escritores direcionaram o gênero romance. Acredita que apenas dois escritores dessa época se
mantiveram na escrita desse gênero, Camillo Castelo Branco e Corvo, porém, segundo Machado, Camillo se
sobressairia por permanecer ―sempre na lida, escritor de fantasia [...], homem de imaginação e de trabalho‖ (Idem,
p.5). Pode-se perceber que Julio Cesar Machado valoriza os ideais românticos, representados por autores que se
mantinham em atividade, ainda que dê a entender que àquele momento já não eram tão representativos no
campo literário português de sua época. Para Machado, o momento literário que Portugal enfrentava era de
―gosto vulgar e baixo‖ (Idem, p.6), ainda que possuísse esperança de que esse quadro viesse a mudar: ―A arte deve
177
ser impassível e esperar que o tempo e a fortuna voltem á (sic) razão‖ (Idem, p.6). Para que isso acontecesse, não
se deveria, a seu ver, compartilhar desse ―mau gosto‖, posto que ―o gosto popular não levantará nunca se formos
a abaixar-nos até elle‖ (Idem, p.6).
Após tais considerações, Julio Cesar Machado recusa-se a denominar a obra de D‘Ornellas, de romance,
posto que para ele a novela seria diferente desse gênero por não se conformar com ―as manias da épocha e aos
desvarios da moda que diviniza o lances incalculáveis e absurdos do Rocambole‖(Idem, p.6). Segundo Machado, o
autor de A arrependida mostra-se mais eficiente na construção do enredo por supostamente não se utilizar das
peripécias ou reviravoltas de obras como Rocambole. Machado segue exaltando A arrependida e seu autor, o que é
de se esperar em um prefácio alógrafo. Finda seu prefácio com um elogio generoso à obra, de forma a
recomendar sua leitura: ―A Arrependida afigura-se-me finalmente uma notável e bonita novela pela variedade de
incidentes verosimeis e interessantes, pelo raro desprendimento em não imitar nenhuma obra e nenhum autor, e
pela lição moral que se observa nos lances e nos conceitos‖(Idem, p.8). Como se pode notar, louva-se a
originalidade da obra e do autor, assim como a função moralizadora da ―novela‖, características muito
valorizadas pelo Romantismo, o que faz supor que ao autor do prefácio agradavam as produções literárias desse
período.
Outro prefácio alógrafo digno de nota é aquele que precede o romance O brazileiro Soares (1886), de Luiz
de Magalhães. Nesse paratexto, escrito e assinado por Eça de Queiroz, há inúmeras críticas ao Romantismo,
diferentemente do que ocorre com o prefácio de A Arrependida. Eça de Queiroz questiona a utilização e
construção que esse período literário teria feito da imagem do brasileiro71, designação dada aos portugueses que
imigravam para as terras brasileiras a fim de trabalhar para enriquecer e, quando obtinham esse intento, retornar
a Portugal. Eça de Queiroz afirma que os Românticos consideravam esse tipo como a representação da sandice e
do interesse material, tratando-o desdenhosa e caricatamente:
o saudoso emigrante passava logo a ser o brasileiro, o bruto, o reles, o alvar. Desde que elle
deixara de soluçar e ser sensivel, para labutar duramente de marçano nos armazens do
Rio, o Romantismo repellia-o como creatura baixa e soez. O trabalho despoetisara o
triste emigrante. E era então que o Romantismo se apossava d‘elle, já rico e brasileiro,
para o mostrar no livro e no palco, em caricatura, sempre material, sempre rude,
sempre risível. (QUEIROZ in MAGALHÃES, 1886, p.8)
Como se pode notar, há uma acusação aberta contra as representações do brasileiro pela literatura
romântica, seja nos palcos, seja nos livros. Do ponto de vista de Eça de Queiroz, essa figura teria sido elaborada
de forma caricata e sem profundidade, pois se o trabalho braçal no Novo Mundo destituía-o de qualquer
possibilidade de torná-lo objeto do poetar, ou seja, impedia de representá-lo como ―o homem de poesia e de
sonho‖ (Idem, p.9), restava representá-lo já enriquecido, mas brutalizado, rude. Tanto aquele voltado única e
71
Eça de Queiroz já havia discutido acerca desse tipo na crônica O ―brasileiro‖ (1872), porém, com diferente enfoque, de
modo a descrever o brasileiro e seus modos, assim como sua relação com a sociedade portuguesa. Sobre isso, c.f. QUEIROZ,
Eça. O ―brasileiro‖. In: ORTIGÃO, R.; QUEIROZ, E. As farpas: chronica mensal da política das letras e dos costumes.
Lisboa: Typ. Universal, 1872.
178
exclusivamente pelos interesses materiais como esse que desdenha do dinheiro e se ocupa apenas da paixão
seriam, nas palavras de Eça: ―dous typos, insipidamente falsos como generalisação, pareciam ainda mais postiços,
mais distantes da vida e da realidade, como factura‖ (Idem, p.9).
O autor também chama a atenção para o fato de o brasileiro ser o único tipo genuinamente português e
de todos os outros tipos utilizados pelos românticos não passarem de importações francesas. Por ser tão
nacional, esse ―typo symbolico de brasileiro gordalhufo e abrutado‖ (Idem, p.12) era apresentado constantemente
pelo Romantismo em novelas, dramas, poemas, como se aquele fosse o único brasileiro a ter existido. (Idem, p.1213). Eça de Queiroz atribui aos românticos uma representação superficial do brasileiro, bem distante daquela que
seria a sua verdadeira natureza:
Extraordinarios, estes Romanticos! E bem sympathicos, — os primeiros, os grandes,
os que tinham talento e uma veia soberba — com este inspirado, magnifico desdem
pela natureza, pelos factos, pelo real e pelo exacto! Os discipulos, esses, louvado seja
Nosso Senhor, são bem pêcosinhos, e bem chochinhos (Idem, p.13)
Nota-se o tom marcadamente irônico com que Eça de Queiroz se refere aos escritores Românticos
―simpáticos‖ e inspirados pelo ―desprezo pelo real‖. Cabe observar que Eça de Queiroz foi um dos
representantes da Geração de 187072 (LOURENÇO, 1999, p.113), que se orientou literariamente no sentido de
tentar representar a realidade dos fatos a fim de que as mazelas morais fossem corrigidas. Compreende-se,
portanto, que no prefácio de Eça de Queiroz ao romance de Luiz de Magalhães o primeiro enfatize o fato de o
segundo ter sido, a seu ver, instruído pela leitura de Flaubert, ou seja, estar sintonizado com o projeto realista, e
por isso, ser capaz de fazer o que outros autores ainda não haviam feito: apresentar o brasileiro em um romance,
mostrando-o como, a seu ver, ele realmente era:
é um homem, um méro homem, nem ideal nem bestial, apenas humano: talvez capaz
da maior sordidez, e talvez capaz do mais alto heroismo: podendo bem usar um
horrivel collete de seda amarella, e podendo ter por baixo d‘elle o mais nobre, o mais
leal coração: podendo bem ser ignobil, e podendo, porque não? ter a grandeza de
Marco Aurelio!... (QUEIROZ in MAGALHÃES, 1886, p.14-15)
Do ponto de vista de Eça de Queiroz, a obra de Magalhães seria um ―estudo realista‖ capaz de
desconstruir concepções sobre o brasileiro, criadas anteriormente pela estética Romântica. Magalhães, a seu ver:
―dá ao antigo grotesco, ao brasileiro, todas as qualidades de coração que pertenciam exclusivamente, pelo dogma
do Romantismo, ao homem pallido, ao homem de poesia e de sonho...‖ (Idem, p.15). O crítico prossegue
contrapondo as representações sobre o brasileiro, seja a feita pelo Realismo, seja a feita pelo Romantismo.
Enquanto este poderia ser acusado de tornar esse tipo tristonho, magro e infeliz, aquele seria responsável por
apresentá-lo de forma sincera e nobre.
72
Designação dada aos escritores realistas que intentaram revolucionar a sociedade, cultura e política de Portugal. A respeito
disso, c.f. o capítulo VII ―Inícios da Geração de 70‖. In: SARAIVA, A.J.; LOPES, O. História da Literatura Portuguesa.
Lisboa: Porto Editora, 2007. p. 798.
179
Por fim, Eça afirma que o livro O brazileiro Soares, de Luiz de Magalhães, possui as duas características
que considera qualidades supremas a serem buscadas em uma obra de arte, quais sejam, ―a realidade bem
observada e a observação bem exprimida‖ (Idem, p.17) em lugar da imaginação e da eloquência românticas. Eça
também afirma que Magalhães ―faz além d‘isso, com o seu BRASILEIRO SOARES, uma verdadeira
rehabilitação social‖ (Idem, p.17). Nesse prefácio Eça de Queiroz também afirma que o romance romântico
contribuiu para a criação de uma imagem preconceituosa em torno do brasileiro, também denominado de tornaviagem, que ―seria como uma nodoa escandalosa no suave idyllio portuguez!...‖ (Idem, p.20). Eça de Queiroz
conclui que Luiz de Magalhães resgatou o brasileiro dos ―limbos da caricatura disforme‖, revestindo-o de
―excellencias Moraes‖, estas que haviam sido produzidas pela ―calumnia romantica; mostrando no antigo typo do
Bruto a possivel existencia do Santo‖ (Idem, p.20-21). Eis a reabilitação social realizada pelo romance O brazileiro
Soares, ―obra de Verdade‖ por desprezar tranquilamente as convenções, por ―desbrasileirar o brasileiro‖,
desconstruindo a concepção já existente acerca desse. (Idem, p.21).
3. Prefácio actoral
O último prefácio a ser analisado acompanha a obra Os malditos (1895), de João de Castro. Trata-se de
um paratexto que pode ser classificado como actoral, por ter sido assinado por uma personagem da obra. Essa
personagem, curiosamente, utiliza o prefácio para protestar contra a forma como ela fora retratada na 1ª edição
da obra. Provavelmente por essa razão o prefácio seja intitulado Protesto e aviso aos leitores incautos, que faz Vasco de
Montarroyo, personagem deste romance. Há de se ressaltar que esse prefácio não é o único dessa obra, sucedendo
outro, escrito por João de Castro.
No segundo prefácio, o personagem Vasco de Montarroyo mostra-se insatisfeito com o autor por este
tê-lo supostamente caluniado em seus escritos, o que o teria levado, inclusive, a desejar duelar com seu criador:
―Ha pouco mais de um anno, quando a primeira edição d‘este romance appareceu, tive a estoica lembrança de
me desaggravar das calumnias com que as suas paginas desfavoreciam o meu nome, offerecendo
romanticamente ao auctor de ellas, um duello a sabre[...]‖ (MONTARROYO in CASTRO, 1895, p.9). Esse
embate com espadas não se realiza, mas a personagem e o autor se reúnem para conversar, querendo aquele
sempre uma oportunidade de se defender das ―[...] aleivosias publicadas n‘este livro [Os malditos]‖ (Idem, p.10). Ao
saber que uma segunda edição viria à lume, resolve, oportunamente, intimar o autor ―[...] com o seguinte
dilemma: estampar este protesto na antecâmara do seu romance, ou soffrer o vexame de uma política
correccional, por perdas e damnos‖ (Idem, p.10). Em suma, sentindo-se ofendida, a personagem chantageia o
autor, pressionando-o a publicar seu protesto para não sofrer outros tipos de danos. Logicamente, sabe-se o
resultado dessa intimação, já que o prefácio encontra-se em análise. De qualquer forma, a finalidade primeira do
prefácio consiste, segundo o autor/personagem, enfatizar suas ―bastas virtudes sociaes‖ (Idem, p.10) de modo a
reedificá-las.
O protesto da personagem se constrói de forma a apresentar argumentos contra as representações que o
autor fez acerca dele na narrativa que se segue. Ou seja, Montarroyo tenta, ao longo do prefácio, defender-se aos
180
olhos dos leitores, contando sua própria história, em que se mostra inocente. Para defender-se cita, em seu
protesto, uma carta de outro personagem que igualmente apresenta argumentos em seu favor, contrárias,
portanto, às informações oferecidas pelo autor na 1ª edição de Os malditos. Após a apresentação da carta,
Montarroyo considera que o autor teria sido suficientemente punido:
Depois d‘esta carta, cuja eloquência tem a energia fustigante de um knout moscovita,
considero sufficientemente punida a imprudência do actor d‘este livro. Por isso
amordaço com um ponto final o grito da minha vingança, - confiando que a
sagacidade da Luzitania facilmente adivinhará a importância das revelações que a
minha generosidade n‘este momento refreia. (Idem, p.21)
Dessa forma, Vasco de Montarroyo considera-se vingado por todas as calúnias e infâmias que lhe foram,
supostamente, lançadas pelo autor. A análise desse prefácio actoral torna perceptível a intenção de provocar uma
espécie de ―ofuscamento‖ das fronteiras entre ficção e realidade. O autor elabora um prefácio cuja autoria atribui
a uma personagem criada por ele mesmo. Não bastasse isso, põe a personagem a revoltar-se contra o próprio
criador, fazendo suspeitar que tudo o que fora por ele dito a seu respeito não passaria de difamação. Assim, o
leitor desavisado passa a acreditar na existência da personagem autora do prefácio e a duvidar da narrativa, ainda
que ambas não passem de uma peça única de ficção.
Considerações finais
Neste artigo, buscou-se apresentar como os prefácios selecionados podem ser categorizados de acordo
com a taxionomia sugerida por Gérard Genette, bem como mostrar que esses paratextos também constituem
fontes privilegiadas para o estudo de diversas questões relativas ao universo literário, tais como as que puderam
ser observadas: as discussões acerca dos gêneros literários, sobre a crítica, períodos literários, a relação autor e
obra, etc.
Em suma, é por essas razões que os paratextos não podem ser ignorados pelos pesquisadores da área de
literatura, pois longe de serem textos secundários, dispensáveis, revelam-se, ao contrário, fundamentais para a
compreensão da obra, de seu autor, dos gêneros, debates literários, entre outras temáticas.
REFERÊNCIAS:
BRAGA, Theophilo. Meu caro editor.In:_______. Contos phantasticos. Lisboa: typographia
universal, 1865.
CHAGAS, M. Pinheiro. Duas palavras ao leitor.In: _________. Contos e descripções. Lisboa: Livraria de
Campos Junior, 1866.
GENETTE, Gerard. A instância prefacial. In: Paratextos editoriais. São Paulo: Atelier Editorial, 2009.
181
LOURENÇO, Eduardo. Portugal como destino: dramaturgia cultural portuguesa. In: _________. Mitologia da
Saudade. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.
MACHADO, Julio Cesar. Duas Palavras.In:ORNELLAS, João Augusto d'. A Arrependida: romance. Madeira:
typographia do direito, 1872.
MONTARROYO, Vasco de. Protesto e aviso aos leitores incautos, que faz Vasco de Montarroyo, personagem
deste romance.In:CASTRO, João de. Os malditos. Lisboa: Livraria Moderna editora, 2ª ed., 1895.
QUEIROZ, Eça de. Nota (da 2.ª edição) .In: _________. O crime do padre amaro: scenas da vida de uma
devota. 3ª ed. Porto: Livraria Internacional de Ernesto Chardron, 1889.
_______. Meu caro Luiz de Magalhães.In:MAGALHÃES, Luiz de. O brazileiro Soares: romance original.
Porto: Liv. Chardron Lugan & Genelioux Editores, 1886.
182
A SAGA AMAZÔNICA DA BORRACHA EM TRÊS CASAS E UM RIO, DE
DALCÍDIO JURANDIR E EM A SELVA, DE FERREIRA DE CASTRO
Luciana Moraes dos Santos73
Profa. Dra. Marlí Furtado (Orientadora)74
Resumo: O período histórico referente à atividade de extração da borracha na Amazônia marcou a história da
região nos aspectos econômicos e sociais e, ainda, inspirou a produção literária de alguns autores notórios. Neste
sentido, o presente trabalho objetiva apresentar os resultados da investigação dos romances Três casas e um rio
(1958), de Dalcídio Jurandir e A Selva (1930), de Ferreira de Castro, sob a perspectiva da saga amazônica da
borracha, em razão destes romances se destacarem enquanto obras literárias que retratam o momento histórico
em questão, no qual o produto extraído da seringueira exerceu funções socioeconômicas distintas. Para tanto,
utilizamos como embasamento teórico os estudos de Baze (2010), Loureiro (2002), Sarges (2002), Tocantins
(1982), dentre outros autores, visando à análise e confronto da representação da saga amazônica da borracha de
ambas as obras, bem como o estudo do período histórico da economia extrativista na Amazônia conhecido
como ―Ciclo da borracha‖.
Palavras-chave: Ciclo da borracha; A Selva; Três casas e um rio.
Abstract: The historical period concerning the activity of extraction of rubber in Amazonia marked the history
of the region in economic and social aspects, and also inspired him to literary production of some authors
notorius. In this sense, this study presents the results of investigation of novels Três casas e um rio (1958), written
by Dalcídio Jurandir and A Selva (1930), written by Ferreira de Castro, from the perspective of the saga of the
rubber in the Amazon, because these novels stand out as literary works that depict the historical moment in
which the product extracted from hevea exerted distinct socioeconomic functions. Therefore, we use as
theoretical basement the studies of Baze (2010), Loureiro (2002), Sarges (2002), Tocantins (1982), among other
authors with the aim of analyze and compare the representation of the saga of the rubber in the Amazon of both
those jobs, as well as the study of the historical period of the extractive economy in Amazonia known as
―Rubber cycle‖.
Keywords: Rubber cycle; A Selva; Três casas e um rio.
73
Graduanda em Letras. Universidade Federal do Pará (UFPA). Bolsista PIBIC/CNPq. E-mail: [email protected]
Doutora em Teoria Literária e História da Literatura. Universidade Federal do Pará (UFPA). E-mail: [email protected]
74
183
Introdução
José Maria Ferreira de Castro (1898/1974) publicou o romance A Selva, em 1930, cujo enredo se localiza
na Amazônia do período da extração do látex, matéria-prima para a produção da borracha. O romancista
português alcançou notoriedade com este romance, transformando-se em paradigma para autores posteriores a
ponto de se firmar uma tradição iniciada no início do século vinte, com autores pouco notórios.
Por outro lado, o escritor paraense Dalcídio Jurandir (1909/1979), na série literária Extremo Norte75,
retratou o período amazônico da economia da borracha como uma fantasmagoria para o presente das
personagens dos seus romances.
Dessa forma, a saga da borracha é relembrada por personagens que vivenciaram esse período, em seu
fausto ou no seu ocaso, a exemplo de alguns personagens de Três casas e um rio, publicado em 1958. Nesse livro, a
personagem Sebastião, jovem negro criado pelo padrinho durante a exploração econômica da goma, relembra,
para o sobrinho e protagonista do romance, o drama que o padrinho e ele protagonizaram.
Neste sentido, a pesquisa objetivou analisar os romances Três casas e um rio (1958), de Dalcídio Jurandir e
A Selva (1930), de Ferreira de Castro, para confrontar a representação amazônica da saga da borracha de ambas
as obras, a fim de averiguar o trabalho que Dalcídio Jurandir elaborou com esses topos da tradição literária
amazônica.
Analisar a postura de Dalcídio Jurandir ao retratar esse período, confrontando-a com a postura
paradigmática de Ferreira de Castro se justifica para se poder comprovar a ruptura que Dalcídio Jurandir
estabeleceu com a tradição e de que modo atualizou a prosa paraense por sua inovação literária.
O presente trabalho foi baseado teoricamente nos estudos de Baze (2010), Loureiro (2002), Sarges
(2002), Tocantins (1982), dentre outros autores, e se consolidou por meio da pesquisa bibliográfica. Inicialmente,
houve a leitura das obras ficcionais corpus da pesquisa. Posteriormente, realizou-se a verificação do período
histórico da economia extrativista na Amazônia, conhecido como ―Ciclo da borracha‖. Finalmente, aprofundouse a análise das obras, comparando-as, com o propósito de estabelecer as correlações e/ou divergências entre as
obras trabalhadas.
1. Breve histórico
A extração da seiva da seringueira não era novidade para os habitantes da região amazônica. Os índios já
utilizavam o produto que, posteriormente, foi denominado pelos portugueses como borracha, comumente
utilizada na fabricação de borrachas de apagar, seringas e galochas. A partir do século XIX, a técnica de
75
Projeto literário cujo cerne é a saga do personagem Alfredo no espaço ficcional amazônico, composto por dez romances:
Chove nos campos de Cachoeira (1941), Marajó (1947), Três casas e um rio (1958), Belém do Grão-Pará (1960), Passagem do inocentes
(1963), Primeira manhã (1968), Ponte do galo (1971), Os habitantes (1976), Chão dos Lobos (1976) e Ribanceira (1978).
184
elaboração da borracha foi sendo aprimorada até a descoberta do processo de vulcanização 76, pelo cientista
norte-americano Charles Goodyear.
O processo de vulcanização ampliou a exportação, impulsionou a economia e transformou a região
amazônica na maior produtora da borracha. Consequentemente, houve o crescimento e desenvolvimento de
algumas localidades da região, como aconteceu em Manaus (AM), Porto Velho (RO) e Belém (PA), até a criação
do Território Federal do Acre, atual Estado do Acre.
Diversos fatores históricos caracterizam o período da economia amazônica que ficou conhecido como
―ciclo econômico da borracha‖, o qual teve duas fases ou ciclos: o primeiro é marcado pelo requintado e luxuoso
período áureo da Belle Époque77 amazônica, com o apogeu no final da segunda metade do século XIX, e
decadência em meados de 1912; e, o segundo ciclo é concomitante ao período da II Guerra Mundial (19391945), abastecida pelos ―Soldados da Borracha‖.
Contribuíram para a decadência da economia amazônica da borracha a introdução das mudas de
seringueiras levadas pelos ingleses, o aprimoramento das técnicas de plantio, a proximidade dos importadores e
os preços baixos, que fortaleceram o mercado asiático.
Os períodos de estiagens das zonas agrestes do sertão nordestino estão amplamente relacionados à
atividade extrativa da borracha na Região Norte. Além dos nativos da região, muitos nordestinos, sós ou com
famílias inteiras, arriscaram-se nos seringais, ao embrenharem na selva em busca do ―ouro‖ da Amazônia,
sujeitos a perigos e a doenças.
Havia intensa exploração de mão-de-obra, sistema de aviamento e trabalho escravo, pois os seringueiros
antes mesmo de começarem a trabalhar já deviam aos patrões desde a passagem para o seringal, até a
alimentação, o alojamento e o vestuário.
De acordo com Corrêa (1967, p. 22), a invenção do automóvel veio consagrar a borracha de forma
definitiva, como matéria-prima indispensável à civilização, beneficiando as indústrias do Ocidente.
Este breve histórico sobre a dimensão da transformação econômica e social vivenciada naquele período
se justifica para poder situar as obras corpus da pesquisa no contexto da economia extrativista, que propiciou
privilégios socioeconômicos para poucos.
Processo caracterizado pelo acréscimo de enxofre à borracha e aquecimento da mistura, o que intensifica as propriedades
de resistência e elasticidade do produto.
76
Belle Époque (expressão marcada do apogeu parisiense no fin du siècle) correspondente ao período final do ciclo da
borracha, que teria elevado a cultura local a uma altura jamais alcançada depois dela. Segundo Loureiro (2011), ―a celebrada
Belle Époque de Belém, como se diz, na verdade foi o fausto colonialista da Belle Époque francesa beneficiando-se do
mercado consumidor do Pará amazônico, ainda com os bolsos cheios do dinheiro da borracha. A consagração de um
colonialismo elegante que se tornou modelo para o gosto e motivo inibidor do reconhecimento de uma produção local com
as características de um ―ethos‖ amazônico, considerado, nessa óptica, em descompasso com as artes modeladas na
Europa‖.
77
185
2. Amazônia: leituras
O período histórico referente à economia da borracha, com o apogeu e o declínio da exportação do
produto, além de marcar a história da região amazônica nos aspectos econômicos e sociais, também inspirou a
produção literária de escritores notórios.
Muitos foram os autores que abordaram o ciclo da borracha em seus enredos.Um dos romances mais
representativos sobre essa temática foi A Selva, publicado em 1930, de autoria do escritor português Ferreira de
Castro (1898-1974). A obra em questão, como já citado anteriormente neste trabalho, consolidou-se como
paradigma para autores posteriores, no início do século passado, configurando-se em uma tradição seguida,
também, por autores pouco notórios.
Alguns dos acontecimentos vivenciados por Ferreira de Castro durante a adolescência foram abordados
em seu universo narrativo, em especial, Criminoso por Ambição (1916), Carne Faminta (1922), ―O Escravo
Redimido‖ (texto integrado no volume de novelas Sendas de Lirismo e de Amor -1925), Emigrantes (1928), A Selva
(1930) e Instinto Supremo (1968).
Recorrendo a sua vivência involuntária no mundo do seringal, o romancista português escreveu, após 15
anos, A Selva. Aobra literária relata o cotidiano do seringueiro em luta constante pela sobrevivência diante dos
infortúnios da floresta, a partir do personagem Alberto, o jovem imigrante português, obrigado a viajar para o
Brasil e mandado pelo tio para o seringal ―Paraíso‖.
No prefácio do livro de Baze (2010), Almir Diniz de Carvalho Júnior78 afirma que há um
entrecruzamento entre a narrativa do escritor biógrafo e a narrativa do romancista, na qual Ferreira de Castro é
uma espécie de autobiógrafo que se mostra no personagem Alberto.
Foi esse momento tão extraordinariamente grave para o meu espírito, que desde então
não corre uma única semana sem eu sonhar que regresso à selva [...]
Foi também por isso, talvez, que durante muitos anos tive medo de revivê-la
literariamente. Medo de reabrir, com a pena, as minhas feridas, como os homens lá
avivavam, com pequenos machados, no mistério da grande floresta, as chagas das
seringueiras. [...]
Enfim, quinze anos vividos tormentosamente sobre a noite em que abandonei o
seringal Paraíso, pude sentar-me à mesa de trabalho para começar este livro. [...]
(CASTRO, 1972, pp. 25-26)
A partir da leitura desse trecho da introdução escrita por Ferreira de Castro para a edição comemorativa
d‘A Selva, de 1955, notam-se os resquícios de fascínio e medo registrados nas lembranças do escritor, e a
afirmação do Professor Almir Diniz sobre a intenção de caráter autobiográfico do romance é confirmada, pois,
observa-se a existência de uma linha tênue entre a ficção e a realidade.
78
Professor do curso de História da Universidade Federal do Amazonas.
186
Outra obra em que ocorre a abordagem temática do ciclo da borracha é o romance Três casas e um rio, de
Dalcídio Jurandir (1909-1979), publicada em 1958. O escritor marajoara sempre demonstrou em seus romances
uma significativa preocupação com a realidade do povo, por ele mesmo denominado ―aristocracia de pé no
chão‖.
Três casas e um rio é o terceiro romance do projeto literário de Dalcídio, denominado de ciclo Extremo
Norte, cujo cerne é a saga do personagem Alfredo no espaço ficcional amazônico, e composto por dez
romances, a saber: Chove nos campos de Cachoeira (1941), Marajó (1947), Três casas e um rio (1958), Belém do Grão-Pará
(1960), Passagem do inocentes (1963), Primeira manhã (1968), Ponte do galo (1971), Os habitantes (1976), Chão dos Lobos
(1976) e Ribanceira (1978).
No terceiro romance, o personagem Alfredo deixa evidente a sua vontade de viajar para estudar em
Belém; é recorrente também nesse romance o empenho de D. Amélia, mãe de Alfredo, a fim de satisfazer os
sonhos do filho.
Pela possibilidade de mudança do espaço da narrativa do rural para o espaço urbano, Três casas e um rio é
considerado o romance de transição da série Extremo Norte, bem como pelo caráter de transição do
personagem cerne do livro, Alfredo.
No que diz respeito à verificação da saga amazônica da borracha em Três Casas e um rio, esta é
relembrada a partir do discurso do personagem Sebastião, jovem negro criado pelo padrinho durante a
exploração econômica da goma, que relembra para o sobrinho Alfredo o drama que o padrinho e ele
protagonizaram.
Sebastião falou-lhe do rio Juruá, lá no Amazonas, quanta lonjura. Viajara em navios
gaiolas, coisa que o sobrinho nunca fizera. [...]
Sebastião andara pelo Juruá, na mão do padrinho, um senhor mulato, de coração
grande. O padrinho se aventurara de Ponta de Pedras para o Amazonas, dizendo que
voltaria depois que tivesse extraído das vacas leiteiras do Alto Amazonas uma casa em
Belém, uns juros no banco e o colégio do afilhado.[...] Seguiu o padrinho no rumo do
Juruá. (JURANDIR, 1994, pp. 78-79)
Em Três casas e um rio, Dalcídio Jurandirtrata das questões sociais dos menos privilegiados
financeiramente, das precárias condições de trabalho e da exploração pelas quais sofriam os trabalhadores, neste
caso, representados pelos seringueiros, levados ao desespero a ponto de optar pela fuga a continuar martirizados
e espoliados. Conforme podemos notar no seguinte trecho:
Depois, juntou-se com uns seringueiros que vinham fugindo de um seringal brabo,
uns com febre, outros com a perna tremendo, aqueles contando horrores. Andaram
atravessando corredeiras, seringais, acossados por pium, sezão e fome. Um dia, saíram
num rio largo. Atracado ao trapiche, carregando borracha, um navio apitava.
(JURANDIR, 1994, p. 82)
187
Dalcídio Jurandir constrói sua terceira narrativa como o faz em outras narrativas da série, ou seja,
denuncia as mazelas da sociedade, pondo em prática os sentimentos de indignação e revolta presentes em seus
escritos para a imprensa, em especial, para a imprensa comunista.
Considerações Finais
Durante a pesquisa foi possível observar a extensa gama de ficções que abordam como temática a
Amazônia, como Inglês de Souza (1853-1918), Alberto Rangel (1871-1945) e Euclides da Cunha (1866-1909).
Autores cujas obras antecederam as narrativas A Selva (1930), de Ferreira de Castro e Três casas e um rio (1958), de
Dalcídio Jurandir, que por sua vez, também fazem parte das ficções sobre a Amazônia, em especial, sobre o
período da economia amazônica da borracha, o qual influenciou autores locais e autores estrangeiros.
A partir das leituras em torno desse tema, podemos observar nos romances corpus da pesquisa a
existência de uma relação indissociável entre o homem, o rio e a floresta, em que um está intrinsecamente ligado
ao outro por motivos econômicos e/ou até enigmáticos, provocando medo e fascínio diante do desconhecido.
É perceptível observar a abordagem diversificada pela qual os romancistas das obras em estudo retratam
esse período: em A Selva o homem parece sofrer menos pela maneira como é explorado do que pela ação do
meio, no caso, referimo-nos à floresta causadora de doenças e moléstias; por outro lado, em Três casas e um rio, os
indícios de denúncia social das condições de trabalho são proeminentes.
As possibilidades de leituras apresentadas neste trabalho visaram estabelecer as correlações e/ou
divergências entre as obras trabalhadas na tentativa de comprovar a ruptura com a tradição literária e a
atualização da prosa paraense pela inovação literária de Dalcídio Jurandir.
Referências
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DAOU, Ana Maria. A belle époque amazônica. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2000.
188
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Tese de doutorado.
JURANDIR, Dalcídio. Três casas e um rio. 3. ed. Belém: CEJUP, 1994.
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Disponível
em:
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LOUREIRO, Violeta Refkalefsky. A história social e econômica da Amazônia. In:______. (coord.). Estudo e problemas
amazônicos: história social e econômica e temas especiais. 2 ed. Belém: Cejup, 1992.
LUCAS, Fábio. Peregrinações Amazônicas: Histórias, Mitologia, Literatura. Ed. Letraselvagem, 2012.
MENDES, J. A. A crise amazônica e a borracha. 2 ed. Manaus: Valer/Governo do Estado do Amazonas, 2004,
(Série
Poranduba).
REIS, Arthur Cezar Ferreira. O seringal e o seringueiro. 2 ed. Manaus: Governo do Estado do Amazonas/Edua,
1997.
SARGES, Maria de Nazaré. Belém: riquezas produzindo a belle-époque (1870-1912). 2 ed. Belém: Paka-Tatu,
2002.
SOUZA, Márcio. Breve história da Amazônia. 2 ed. São Paulo: Marco Zero, s.d.
TOCANTINS, Leandro. Amazônia: natureza, homem e tempo. 2. ed. Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 1982
189
O MÉDICO DOS POBRES: CIRCULAÇÃO DE ENREDO FRANCÊSES EM
O LIBERAL DO PARÁ
Márcia Pinheiro79
Profa. Dra. Germana Sales (Orientadora) 80
Resumo:A criação do gênero romance-folhetim modificou a relação dos leitores com o jornal, desse modo
osperiódicos sairiam da convivência dos que desejavam apenas estar atualizados com as notícias e as belas letras e
passaram a fazer parte do cotidiano das famílias. Diante da necessidade de pesquisa do gênero folhetinesco,
estudiosos contemporâneos, têm investigado sua importância e de qual forma, a imprensa periódica, colaborou
para que os escritos literários se estendam por séculos e continuepresente na contemporaneidade. Desse modo,
este trabalho objetiva divulgar a circulação dos romances-folhetins do autor francês Xavier de Montépin (18231902), no jornal OLiberal do Pará e analisar a obra O Médico dos Pobres, contextualizada no seu tempo. O corpus da
pesquisa faz parte do acervo ―Memória em periódicos: a constituição de um acervo literário‖, coordenado pela
professora Dra. Germana Maria Araújo Sales.
Palavras-chave: Romance-folhetim; Século XIX; O Liberal do Pará.
Abstract: The creation of the romance genre-serial changed the relationship of readers to the newspaper,
thereby Periodicals would leave the coexistence of those who wished only to be updated with the news and the
beautiful lyrics and became part of the everyday life of families. Given the need to research the genre
folhetinesco, contemporary scholars have investigated its importance and in what form, the periodical press,
contributed to the literary writings extending over centuries and still present in contemporary times. Thus, this
work aims to disseminate the circulation of the novels of French author-serials Montépin Xavier (1823-1902),
the newspaper O Liberal Pará and analyze the book "The Doctor of the Poor", contextualized in his time. The
research corpus is part of the collection "Memory in periodicals: the creation of a literary collection", coordinated
by Professor Dr. Germana Maria Araújo Sales.
Keywords: Romance-serial; nineteenth century; The Liberal Para.
Introdução
A imprensa no século XIX foi veículo de informação por excelência. Estavam presentes nas páginas dos
jornais, as mais diversas temáticas para conquistar um público leitor cada vez mais exigente, o que possibilitou a
publicação das mais variadas temáticas, como ciência, cultura, entretenimento e as belas letras. Entre as colunas
dos jornais que publicavam temáticas diversificadas, encontratava-se no rodapé da página, a coluna Folhetim.
Ao lado das transformações advindas da influência do Capitalismo e ascensão da nova classe: a
burguesia, por volta de 1830 surgia na França os primeiros romances ao pé da página, sob a tutela do jornalista
francês Emile Girardin, que produziu a fórmula capaz de suscitar fortes emoções, dotada do mesmo apelo
popular que despertavam os melodramas parisienses no palco.
Graduanda em Letras na Universidade Federal do Pará (UFPA). Bolsista de Iniciação Cientifica. E-mail:
[email protected]
80 Professora do Programa de Pós Graduação em Letras da Universidade Federal do Pará (UFPA).
E-mail: [email protected]
79
190
Diante das mudanças mencionadas, no que concernem as transformações em solo brasileiro não poderia
ser diferente, uma vez que o século XIX foi um período marcado pelo aumento das exportações de produtos
europeus, e também o Brasil exportava, a ideia da ficção seriada. Entre essas mercadorias vindas de além-mar,
constavamlivros dos mais diversos conteúdos. A entrada, em maior quantidade, desse produto em nosso país por
meio dos portos existentes na Corte imperial enas demais províncias, permitiu a ampliação da circulação de
produções literárias e, consequentemente, o acesso a essas obras por parte dos leitores brasileiros.
Este trabalho tem como objetivo analisar o romance-folhetim O Médico dos Pobres, do autor francês
Xavier de Montépin, bem como apresentar algumas peculiaridades inerentes ao conteúdo da narrativa, e assim
demonstrar que os textos folhetinescos influenciaram na formação do público leitor em âmbito nacional e
paraense. O século XIX foi um momento no qual o Brasil passou por transformações no campo social e
econômico, dessa forma as modificações mencionadas ocasionaram, também, transformações de teor literário.
Em relação ao cumprimento do objetivo deste trabalho foi feita a leitura e análise do romance-folhetim
O Médico dos pobres81, do autor francês Xavier de Montépin, que foi publicado no jornal ―O liberal do Pará‖, no
ano de 1874. O corpus da pesquisa faz parte do acervo ―Memória em periódicos: a constituição de um acervo
literário‖, projeto coordenado pela Profa. Dra. Germana Sales da Universidade Federal do Pará (UFPA), ainda
acerca dos procedimentos metodológicos, utilizamos os periódicos que circularam no século XIX, disponíveis no
site da hemeroteca digital, o anexo da Dissertação de Mestrado de Edimara Santos, o qual pode ser encontrado
no acervo da Biblioteca Albeniza Chaves (PPGL/ILC/UFPA). Ademais, seguimos os seguintes passos: a) análise
do corpus selecionado, b) pesquisa bibliográfica, c) seleção dos dados mais relevantes. Ainda, no que envolve as
questões metodológicas utilizamos como aporte teórico os trabalhos de Marlyse Meyer, Tinhorão, Yasmin Nadaf
entre outros, que pesquisam no suporte jornal a temática folhetinesca e pesquisas em fontes primárias.
1. Ao rés-do-chão: o Brasil acolheu calorosamente a nova receita de literatura.
Era tempo dos romances publicados em folhetins, convites às temáticas como: jogo social de ambições,
raptos, donzelas abandonadas pelos pretendes, entre outros temas. Dessa maneira era composta a miscelânea que
compunha a coluna folhetim, e em meio aos mencionados anúncios estava à narrativa: romance folhetim82
surgida na França na primeira metade do século XIX e logo ganhou lugar de destaque no jornal francês. A
imprensa francesa durante o século a partir da visão empreendedora do jornalista Émile Girardin, apresentava o
rodapé do jornal como espaço para a publicação de prosa de ficção, arte, entretenimento entre outras
pontuações. O aparecimento do gênero estava ligado ao processo de popularização da imprensa e da literatura o
qual ocorreu no século XIX, acerca da composição do gênero folhetinesco Yasmin Nadaf constrói as seguintes
pontuações:
O corpus que substanciou este trabalho foi compilado por Edimara Santos, Mestre em Estudos Literários pelo Programa
de Pós-Graduação em Letras, da Universidade Federal do Pará.
82O aparecimento na França das histórias escritas para a publicação em capítulos, em rodapés de jornal, coincidiu em
meados da década de 1830 com a tendência a democratização revelada pela imprensa monárquica de julho, sob o governo
de Luís Felipe, quando as massas populares de Paris começaram a forçar sua participação política, através de uma
inquietação logo traduzida na série de teorias de reforma social tão características do século XIX. TINHORÃO, José
Ramos. Os romances em folhetim no Brasil: 1830 à atualidade. São Paulo: Duas Cidades, 1994.
81
191
Originário da imprensa francesa da primeira metade do século XIX, o folhetim teve
uma recheada história de vida, paixão e morte na primeira metade do século XX.
Nasceu da pura necessidade de gerar prazer e bem-estar aos leitores ou ouvintes de
jornais, cansados de verem os enfadonhos reclames oficiais ocuparem as páginas dos
periódicos [...] nesse espaço publicava-se tudo: artigos de crítica, crônicas e resenhas
de teatro, de literatura, de artes plásticas, comentários de acontecimentos mundanos,
piadas, receita de beleza e de cozinha, entre outros assuntos de entretenimento.
Devido ás miscelânea o folhetim era sinônimo de variedades (NADAF, 2002, p, 17).
No que envolve a chegada do folhetim no Brasil, devemos mencionar que o mágico chamariz chegou
em solo brasileiro na primeira metade do século XIX, carregado de peculiaridades formais e inovadoras que
tornam seu enredo melodramático, divertido e atraente. Muito mais do que um gênero o folhetim deve ser
entendido como um lugar de inovação e experimentação da imprensa, sobretudo no que envolve a formação do
público leitor brasileiro, assim o resultado foi um grande sucesso, a febre do ―continua amanhã‖ alimentava
gradativamente a curiosidade do leitor diário do jornal, assim o jornal popularizava-se e saia do âmbito de leitura
dos assinantes ricos. As expressões como ―caro leitor‖, atencioso leitor segundo Yasmin Nadaf (2002) surgiram
nos folhetins franceses, umas vez que o público manifestava-se acerca do desfecho das estórias, e tais expressões
foram incorporadas ao romance tradicional.
Diante das considerações supracitadas, entendemos que os periódicos não poderiam deixar de ser
lembrados no que concerne a História da Leitura, pois é relevante recuperar os fatos relacionados à formação da
leitura, já que, estes, de certo contribuirão com enriquecimento de acervos sobre historiografia literária.
A fórmula ―continua amanhã‖ aportou em Belém, e ao longo do século XIX foi palco de grandes
transformações sociais, econômicas, intelectuais. Para a Marinilce Coelho essas mudanças modificaram o cenário
paraense e da região amazônica, pois nesse período houve uma maior difusão dos hábitos europeus, os quais se
refletiram não só nos costumes e na arquitetura, como também na literatura que circulou na capital do Pará.
No Pará, o gênero romance-folhetim teve como suporte de divulgação os jornais e ganhou espaço por
meio da publicação de prosa de ficção recortadas de autores franceses e portugueses, o que fez com que o gênero
folhetinesco mantivesse uma forma semelhante ao da França: publicação em notas de rodapé, publicações em
séries, grandes temáticas - romantismo e melodramas; as narrativas recortadas publicadas nos jornais paraenses
apresentavam a mesma estrutura dos jornais franceses.
A cidade de Belém ao longo do século XIX foi palco de grandes transformações sociais, econômicas,
intelectuais, urbanísticas e políticas. Para a Marinilce Coelho (2005) essas mudanças modificaram o cenário
paraense e da região amazônica, pois nesse período houve uma maior difusão dos hábitos europeus, os quais se
refletiram não só nos costumes e na arquitetura, como também na literatura que circulou na capital do Pará,
sobretudo no que concerne a estruturação da imprensa paraense, e como observa Marinilce Coelho:
A cidade ganhava os requintes de metrópole. Nos bairros da elite, com ares
aristocráticos, várias casas e palacetes são construídos pelos barões da borracha. As
192
fachadas e interiores eram decorados com objetos de arte que vinham da Europa
pelos transatlânticos que ancoravam no porto de Belém. (COELHO, 2005, p, 26)
Diante das considerações mencionadas pela autora, era bastante comum caminhar por Belém e se
deparar com homens e mulheres com trajes que algumas vezes destoavam dos padrões climáticos da região
amazônica, pois praticamente tudo na cidade estava inspirado no modelo francês, pois o modelo europeu
influenciou sobremaneira o comportamento da população paraense nessa época. No que envolve á vida literária,
que a leitura do romance folhetim e a descrição dos personagens influenciava nos costumes e vestimentas, dos
leitores dos romances em tiras do jornal. Assim, os periódicos representavam um elemento difusor de textos
literários, nesse período, com suas peculiaridades na construção narrativa, como esclarece Yasmim Nadaf:
Ligados ao jogo verbal da sedução, os elementos estruturais da narrativa remete-nos à
velha fórmula discursiva da esperta Xerazade, aquela das Mil e uma noites, que enganava
e encantava o poderoso sultão Xeriar com suas infindáveis estórias, interrompidas no
momento mais empolgante, em troca de sua sobrevida [...] aqui numa versão mais
atualizada, Xerazade se transformou no jornal e no autor que através do romancefolhetim, passaram a construir teias infinitas para sua sobrevivência. (NADAF, 2002,
p, 45)
Os jornais que circularam em Belém do Pará do século XIX não deixaram de seguir a tendência da
época. A coluna folhetim fazia muito sucesso entre os leitores de prosas de ficção. Nesse espaço, os romances
estrangeiros, principalmente franceses e portugueses, estavam na preferência do público leitor oitocentista. Os
títulos de obras de autores famosos atualmente conhecidos em livro, para o público daquela época, circularam
pela capital paraense não só no formato livro, como também na coluna folhetim.
As transformações oriundas da divulgação da cultura europeia feitas nas páginas do jornal em Belém
demonstravam a forte influência dos gostos europeus na vida dos paraenses, em razão disso, era bastante comum
caminhar por Belém e se deparar com homens e mulheres com trajes que algumas vezes destoavam dos padrões
climáticos da região amazônica, pois, praticamente tudo na cidade estava inspirado no modelo francês, modelo o
qual influenciou sobremaneira o comportamento da população paraense no século XIX.
2. O Médico dos pobres: um legítimo representante do receituário folhetinesco
O autor Xavier de Montépin nasceu em 18 de março de 1823 e morreu em 30 de abril de 1902 foi
escritor de romances, novelas e dramas populares, distinguiu-se entre os autores franceses, em relação à
circulação de sua obra no O Liberal do Pará, foi o mais longo texto publicado nas páginas do periódico
supracitado, pois permaneceu por seis meses, com publicação de terça-feira a domingo, sem interrupção em sua
publicação.
193
A obra foi dividida em prólogo, que foi subdividido nos títulos: Pedro Prost I, Uma visita singular
II, O prólogo de um drama III, Eglantine IV. A primeira parte titulada ―Um capitão de aventureiros‖, foi
subdividida em vinte capítulos, já a segunda parte titulada ―O castelo de Águia‖ foi subdividida em 35
capítulos.
O estilo de fragmentação do romance de Montépin demonstrava um recurso utilizado pelos
autores dessas narrativas, que era a digressão, estratégia proposital nos textos publicados no século XIX
pela imprensa periódica, uma vez que os autores precisavam manter as narrativas nas colunas
jornalísticas, em razão disso, constantemente surgiam nas tramas novos personagens, novos cenários
entre outros fatos que permitiam que as histórias tivessem sempre transformações no enredo, como
mencionaremos no fragmento seguinte: ―Nossos leitores perguntam-se sem dúvida porque este nome
de um rei francês tinha sido dado a uma das praças de uma cidade inimiga da França, vamos dar-lhe a
explicação nas próximas linhas‖ (O LIBERAL DO PARÁ, 1874, edição 234, p, 1)diante disso, a
organização da estrutura do texto a partir do uso da digressão corrobora para que seja explicado alguns
acontecimentos históricos no enredo do romance-folhetim, assim o gênero folhetinesco apresentava um
recurso que tinha a finalidade de construir episódios, os quais continham uma unidade com
informações capaz de satisfazer o leitor.
No início do romance o narrador pede ao leitor que volte cerca de duzentos e cinquenta anos
ao passado, o que levará o leitor ao início do século XVII e o local, também, mencionado pelo narrador
é uma pequena província da França que na época pertencia à Espanha. O ano era de 1620, em uma
habitação modesta, o narrador apresenta o personagem Pedro Prost, o médico dos pobres.
Pedro Prost é apresentado ao leitor como homem estimado pelos demais moradores da pequena
localidade e sua profissão de médico é mencionada. Sequencialmente, é apresentada na narrativa uma jovem que
será Tiennette Levillain, que era a esposa do personagem Pedro Prost. Dois após a data de 1620 a esposa de
Prost falece no momento do parto.
O narrador apresenta-se como conhecedor do sofrimento de cada personagem, porém guarda tal
informação como uma espécie de ―carta na manga‖, no decorrer dos capítulos aparentemente a história do
personagem Pedro Prost é deixada de lado, e são apresentados outros novelos narrativos, mas o narrador não
perde o foco central da trama, uma vez que usa o elemento da retomada de eventos apresentados em capítulos
anteriores, como dispositivo para manter o leitor atento, e assim o narrador construía uma espécie de tutela em
relação ao leitor.
Em vista disso, o narrador conduz o leitor pela mão quando recapitula de modo sintético o lido e
promete à continuação da história, essa prática demonstra que a narrativa é um legítimo representante do romancefolhetim, pois o autor apresenta uma escrita de enredos densos em situações de peripécias que pareciam não ter
fim, contudo, não perde o centro do novelo, coincidências, mistérios, desencontros e assim o leitor ficava
ansioso na expectativa do desvendar final da narrativa.
194
Essa particularidade da retomada de eventos apresentados em capítulos anteriores, demonstra que existia
uma estratégia para manter o leitor atento, e assim o narrador construía uma espécie de tutela em relação ao
leitor. Marlyse Meyer acredita que essas publicações penetraram no Brasil pelo caminho aberto pela leitura de
romances modernos estrangeiros e destaca que a ―fulgurante e rápida penetração do folhetim francês‖ sugere
que, nas décadas de 1840 e 1850, havia no país ―um corpo de leitores e ouvintes consumidores de novelas já em
número suficiente para influir favoravelmente na vendagem do jornal que as publica e livros que as retomam.‖
(MEYER, 1996, p. 292-293). A hipótese da autora é confirmada pela continuidade do O Médico dos Pobres e sua o
período de sua circulação no jornal O Liberal do Pará.
A análise do conteúdo na narrativa permitiu perceber que o narrador apresenta-se como conhecedor do
sofrimento de cadapersonagem, porém guarda tal informaçãocomo umaespécie de carta na manga, como por
exemplo, quando no capitulo titulado ―Eglantine‖ o narrador descreve situações que demonstram que o
personagem Lacuzon sabe que a personagem Eglantine não está morta, e que Raul recuperará seu grande amor,
desse modo, tais acontecimentos corroboram para que o romance seja um legítimo representante do romancefolhetim, pois o autor apresenta uma escrita de enredos densos em situações de peripécias que pareciam não ter
fim, contudo, não perde o centro do novelo. Coincidências, mistérios, desencontros e assim o leitor ficava
ansioso na expectativa do desvendar final da narrativa.
Assim, lembramos a recorrência usual no romance-folhetim de estórias de amores contrariados,
paternidades trocadas, filhos bastardos, heranças usurpadas, todas elas seguidas de duelo, raptos, traições,
assassinatos e prisões, com o mencionado perfil eclético O Médico dos pobres apresenta uma modalidade discursiva
com receitas técnicas como, por exemplo, lembranças do passado, anúncio de fatos que serão vistos
posteriormente, coincidências e esclarecimentos repentinos, que assim determinam unidade e coerência ao texto
narrativo.
Outro elemento relevante é a utilização do esticamento da narrativa como, por exemplo, o descolamento
de cenário e que esse narrador usaria recursos ou procedimentos de sedução como a retomada de eventos
apresentados em capítulos anteriores, explicação do aparecimento de novos personagens, simulação de reações
do leitor e legitimação das mesmas, ou seja, procedimentos associados ao folhetim.
Não foram apenas os dispositivos mencionados neste trabalho que fundamentaram a construção do
romance em questão, no entanto por motivo da extensão da narrativa, optamos por fazer um recorte de algumas
peculiaridades que foram consideradas mais relevantes, como por exemplo, a fidelidade, as questões de efeito
moralizante, a ideia do casamento por conveniência, entre outros temas. Montépin obteve reconhecimento e
prestígio na França, por isso está relação dos estrangeiros mais publicados no Brasil.
Considerações finais
Este trabalho propôs uma análise do conteúdo do romance-folhetim O Médico dos Pobres, cujo objetivo
maior pauta-se na restauração dos textos literários que circularam em Belém no século XIX, para serem
195
apreciados pelos leitores atuais. Nesse sentido foi feita a leitura do romance integralmente, e assim, foi possível
comprovar a contribuição do gênero para a formação de um público leitor/escritor e consumidor de literatura na
Província do Pará no século XIX. Assim, esperamos que este trabalho contribua com novas investigações, e,
sobretudo para a disseminação de um novo olhar no que envolve a imprensa e à literatura paraense nos anos
oitocentos.
Outra pontuação que devemos mencionar, seria que o autor ganhava por linha escrita, desse modo era
levado a tornar a estória mais longa possível, com isso à narrativa analisada é um legítimo representante do
romance-folhetim, pois apresenta estórias de amores contrariados, paternidades trocadas, filhos bastardos, entre
outras situações que envolvem a trama do romance, bem como duelos, prisões, traições núcleos de novelos que
eram geradores de idas e vindas no conteúdo do romance, diante disso, destacamos a conexão entre pontuações
acerca do enredo e a extensão da obra O Médico dos Pobres, pois tais proposições demonstram a existência de um
público consumidor já suficiente para construir um elemento favorável para a venda do jornal.
A relevância dos estudos em fontes primárias demonstra a importância da pesquisa em periódicos, pois,
estes, não poderiam deixar de ser lembrados no que envolve a História da Leitura, uma vez que é relevante
recuperar os fatos relacionados à formação da leitura, já que contribuirão com enriquecimento de acervos sobre
historiografia literária, diante das proposições supracitadas Regina Zilberman esclarece que:
A História da Literatura pôde então voltar, submissa aos novos padrões e com a tarefa
de definir o cânone, constituído por nomes e valores examinados, qualificados,
avalizados e ranqueados pela Teoria da Literatura. Lugar da elite do saber, a
universidade elitiza os objetos de que se constitui o saber que oferece, conforme um
processo simultâneo de seleção e exclusão, coerente, mas dificilmente democrático
(ZILBERMAN, 2004, p. 14).
Por conseguinte, objetivamos, com este trabalho, traçar considerações sobre quais as temáticas lidas pela
classe burguesa em Belém na segunda metade do século XIX, e com o intuito de levar ao conhecimento,
principalmente da comunidade acadêmica algumas pontuações que permeavam o universo da leitura em Belém
no século XIX, como por exemplo, o conteúdo do romance O Médico dos pobres ser extenso, pois isso
demonstrava que os escritores, e em relação a Belém os editores faziam para que as técnicas de construção de
narrativas envolvessem os leitores.
Diante disso, notamos que existe uma ligação tênue no que concerne a consolidação da imprensa
periódica, e as transformações sociais no mundo capitalista, que envolveram a classe burguesa como detentora de
novas posses, pois o surgimento do romance-folhetim é impensável sem estar ligado à nova função do dinheiro,
que está relacionado com a formação dos novos ricos, os burgueses.
196
REFERÊNCIAS
COELHO, Marinilce Oliveira. O grupo dos Novos (1946-1952): memórias literárias de Belém do Pará. Belém.
EDUFPA. 2005.
NADAF, Yasmin Jamil. Rodapé das miscelâneas: o folhetim nos Jornais do Mato-Grosso, séculos XIX e XX.
Rio de Janeiro. Sete Letras. 2002.
SANTOS, Edimara Ferreira. Dumas, Montépin e Du Terrail: A circulação de romances-folhetins
franceses no Pará nos anos de 1871 a 1880. 2010.110f. Dissertação (Mestrado em Teoria Literária) –
Pós-Graduação em Letras, Universidade Federal do Pará, Belém, 2010.
SERRA, Tânia Rebelo Costa. Antologia do Romance-folhetim: 1839 a 1870. Brasília: UnB, 1997.
TINHORÃO, José Ramos. Os romances em folhetim no Brasil: 1830 à atualidade. São Paulo: Duas Cidades,
1994.
197
METÁFORA NA POESIA: UM ESTUDO DAS
CONCEPTUALIZAÇÕES METAFÓRICAS DA VIDA NA POESIA DE
PATATIVA DO ASSARÉ
Marcos Helam Alves da Silva83
Resumo:O lançamento da obra Metaphor we live by , em 1980, de George Lakoff e Mark L. Johnson, faz
emergir uma nova perspectiva de abordagem da metáfora. Nesta obra precursora, os autores erigem a Teoria da
Metáfora Conceptual, situada no campo mais abrangente da Linguística Cognitiva, a qual concebe a cognição
como corporificada. Ou seja, a cognição envolve necessariamente a interação mente-corpo-mundo. Frente a esse
novo paradigma, a metáfora passa a ser encarada como integrante da nossa vida cotidiana e não apenas como
uma simples figura de linguagem. Na visão de Lakoff e Jonhson, a metáfora é primeiramente um fenômeno
cognitivo, por estar presente no nosso sistema conceitual, somente depois, dada a nossa necessidade de
manifestação linguística, ela passa a ser uma questão ligada a palavras, portanto, o sistema conceitual humano é
de natureza essencialmente metafórica. Com isso, considerando a proposta de Lakoff e Johnson ([1980] 2002 e
colaboradores), o propósito deste estudo é fazer uma investigação sobre as metáforas conceptuais na poesia
popular de Patativa do Assaré nas conceptualizações metafóricas da Vida. Para tanto, constituímos uma amostra
de vinte poemas sobre a temática da vida, a partir da qual inventariamos as metáforas conceptuais da vida
empregadas pelo poeta. Com isso, vimos à produtividade da Teoria da Metáfora Conceitual quando se trata de
explorar as concepções de vida que subjazem às construções poéticas da literatura popular.
Palavras-chave: Metáfora Conceptual; Poesia; Patativa do Assaré.
RESUMÉ: Le lancement dulivreMétaphoresde la vie quotidienne, en 1980, George Lakoff etMark
L.Johnson, ontapporté une nouvelleperspective d'aborderla métaphore. Dans ce travail,le précurseur,
les auteurs érigentla théoriede la métaphore conceptuelle, situé dans le vaste domainede la Linguistique
Cognitive,
qui
conçoitla
cognitionincarnée.
Autrement
dit,la
cognitionimplique
nécessairementl'interactioncorps-esprit-monde.
Face
àce
nouveau
paradigme,
la
métaphoredevientconsidérée commepartie intégrante de notrevie quotidienne etpas seulement comme
unesimple figure de language. Compte tenu deLakoff etJohnson, la métaphore est avant tout
unphénomène cognitif, étant présent dansnotre système conceptuel, seulement alors, compte tenu de
notre besoin demanifestation linguistique, il devient une question liéeà la parole,de sorte que
lesystèmeconceptuel humainest essentiellementmétaphorique.Ainsi, compte tenu de la propositionde
Lakoffet Johnson ([1980] 2002 etcollaborateurs), le but de cette étudeest de faire unerecherche sur
lesmétaphores conceptuellesdans la poésiepopulaire de Patativa do Assaré dans
lesconceptualisationsmétaphoriques devie. A cet effet, constituentun échantillon de vingtpoèmes sur le
thèmede la vie, à partir de laquellel'inventaire desmétaphores conceptuellesemployées parla vie du
poète. Avec cela, nousavons vula productivitéde la théorie dela métaphore conceptuellequandil s'agit
d'explorerles conceptsqui sous-tendentla vie deconstructions poétiquesde la littérature populaire.
Mots-Clés: Métaphore Conceptuelle; poésie; Patativa do Assaré.
Introdução
83
Graduando do curso de Licenciatura em Letras/Português da Universidade Estadual do Piauí – UESPI / Campus Poeta
Torquato Neto. Bolsista do CNPq e vinculado ao Grupo de Pesquisa de Estudos do Texto (GETEXTO/UESPI). E-mail:
[email protected].
198
O lançamento da obra Metaphor We Live by, de Lakoff e Johnson (1980), instituiu uma virada
paradigmática do estudo da metáfora de modo a concebê-la como integrante da linguagem ordinária e não
apenas como um recurso da feitura poética. Na proposta de Lakoff e Johnson (1980), a metáfora é integrante do
nosso sistema conceptual, é um fenômeno cognitivo constituidor da linguagem e orientador de nossos
pensamentos e ações.
Compreendendo-a nessa perspectiva cognitiva, propor-se-á com este estudo inventariar e analisar
ocorrências de metáforas conceptuais empregadas pelo poeta popular Patativa do Assaré na conceptualização da
Vida. Assim, nas partes que se seguem, encontram-se debatidos os pressupostos teóricos que norteiam a
pesquisa bem como a análise do corpus.
1. A Linguística Cognitiva: algumas considerações
O século XX e mais precisamente os anos de 80 foram responsáveis por trazer a linguística uma
grande efervescência motivada principalmente pela oposição às escolas Estruturalista, derivada a partir
dos postulados de Ferdinand de Saussure, e Gerativa, do qual Noam Chomsky é o principal
representante. Apesar das divergências de estudo da língua que existiam entre elas, uma característica
lhes é peculiar: ambas negligenciaram nos seus pressupostos a língua em uso e o sujeito que a utiliza.
Em oposição a estas escolas, surgem as ―tendências hifenizadas‖ (MARCUSCHI, 2005, p. 21)
como: a Linguística de Texto, a Análise do Discurso, a Análise da Conversação, a Sociolinguística, a
Psicolinguística, a Etnografia da Comunicação, a Etnometodologia, entre outras, que se constituirão
como grandes e profícuas áreas do estudo da linguagem nos fins do século XX e início do século XXI.
É dessa mesma época o surgimento do que se convencionou chamar de Segunda Geração das
Ciências Cognitivas. Tal movimento é uma reação às ideias advindas do Gerativismo de Noam
Chomsky para quem a linguagem é autônoma e a mente configurava-se como uma caixa-preta,
inacessível ao estudo e a observação. Na perspectiva chomskyana, a linguagem é uma faculdade mental,
porém, autônoma e independente das demais formas de conhecimento.
Nesse contexto, surge a Linguística Cognitiva, ―um novo paradigma de investigação para a
linguagem humana, no qual (mente/cérebro/corpo) e fatores históricos e interações socioculturais são
indissociáveis‖ (FELTES, 2012, p. 12). A Linguística Cognitiva firma-se hoje como área promissora
dentro dos estudos da linguagem, que longe de estabelecer-se como um programa fechado dialoga com
inúmeras outras áreas, como: as Neurociências, a Antropologia Cognitiva, as Ciências da Computação,
a Filosofia da Linguagem (FELTES, 2012) e com a Linguística de Texto (LIMA 2003; 2009), apenas
para citar algumas. Assim, apesar de relativamente jovem, a LC já oferece à Academia provas efetivas
de que possui condições de firmar-se como ciência, motivando-a ―a rever-se e desenvolver-se
continuamente‖ (FELTES, 2012, p. 13), basta olhar os estudos e publicações que são lançados ano a
199
ano, além dos inúmeros grupos de pesquisa e ainda os estudos que são realizadas em nível da pósgraduação stricto sensu nas mais conceituadas Universidades do país.
Conforme Abreu (2010), os grandes temas da Linguística Cognitiva são: (1) Categorização e
teorias dos protótipos; (2) Linguagem corporificada e esquemas de imagens; (3) Frames e scripts; (4)
Metáfora; (5) Metonímia; (6) Blending, integração e redes de integração; (7) Histórias, parábolas e
provérbios; (8) Teorias dos espaços mentais; (9) Iconicidades; e (10) Gramática e Cognição. Para o
desenvolvimento desta proposta de estudo, utilizaremos da Linguística Cognitiva, um de seus grandes
temas: a Metáfora.
2. A Teoria da Metáfora Conceptual
Os estudos acerca da presença da metáfora na linguagem, dos quais Aristóteles é grande
precursor, datam da Antiguidade. Na visão tradicional do estudo da metáfora, a sua presença no
discurso nada mais é do que um fenômeno em que se usa o ―nome de uma coisa para designar outra‖
(BERBER SARDINHA, 2007, p. 20). Nessa abordagem, a metáfora é vista como recorrente e peculiar
da linguagem poética. A linguagem cotidiana deveria, pois, ser desprovida desse uso desviante haja vista
que as formas desviantes de falar não referenciam as coisas de forma apropriada (FARIAS;
MARCUSCHI, 2006).
Essa concepção clássica, considerada na atualidade como restrita, foi considerada verdade
absoluta e inquestionável por dois milhões de anos e até hoje em decorrência dela é comum
associarmos a metáfora a (1) traço peculiar da linguagem poética; a (2) instrumento para embelezar a
linguagem; e/ou (3) uma simples figura de linguagem.
Em meados do início dos anos 80, com o lançamento da obra Metaphors we Live By (Metáforas
da Vida Cotidiana, na tradução em Língua Portuguesa), de autoria do linguista George Lakoff e do
filósofo Mark Johnson, é que demarcar-se-á o início de uma nova perspectiva dos estudos relacionados
a metáfora, com a proposição da Teoria da Metáfora Conceptual, teoria-base da Linguística Cognitiva,
área já suscintamente apresentada na seção anterior.
Lakoff e Johnson (1980) apontam que a metáfora está presente no nosso sistema conceitual
(cognitivo) e por tal razão manifesta-se na linguagem do dia-a-dia. Assim passa a ser entendida como
integrante da nossa vida cotidiana e um mecanismo recorrente da linguagem. Os autores e seu estudo
pioneiro são, portanto, um divisor de águas nos estudos contemporâneos da metáfora, que, como já
mencionado anteriormente, passa a ter uma abordagem sistematicamente cognitiva. Nas palavras dos
autores,
A metáfora é, para a maioria das pessoas, um recurso da imaginação poética e um
ornamento retórico – é mais uma questão extraordinária do que de linguagem
ordinária. Mais que isso, a metáfora é usualmente vista como uma característica
restrita à linguagem, uma questão mais de palavras do que pensamento ou ação. Por
esta razão, a maioria das pessoas acha que pode viver perfeitamente bem sem a
200
metáfora. Nós descobrimos, ao contrário, que a metáfora está infiltrada na vida
cotidiana, não somente na linguagem, mas também no pensamento e na ação. Nosso
sistema conceitual ordinário, em termo do qual não só pensamos, mas também
agimos, é fundamentalmente metafórico por natureza (LAKOFF; JOHNSON, 1980
[2002], p. 45).
Na perspectiva de Lakoff e Johnson, a metáfora é primeiramente um recurso cognitivo, dada a
sua presença no nosso sistema conceptual, somente depois a partir da necessidade de manifestação
linguística ela passa a ser uma questão de palavras. A metáfora é um fenômeno tão cognitivamente
situado que através dela o ser humano representa inúmeros conceitos de forma automática, a partir de
sua interação histórica, social e cultural e de forma inconsciente, o que pode dar a falsa impressão de
que se pode viver sem utilizar expressões metafóricas para externar o que se sente. Na visão de Lima,
Feltes e Macêdo (2008, p. 129) ―uma metáfora conceitual é, portanto, uma construção cognitiva,
baseada nas experiências culturais vividas; são um modo de construção de conhecimento na forma de
um mapeamento entre domínios de conhecimentos (...)‖.
Assim, a essência da metáfora consiste em compreender e experienciar uma coisa em termos de
outra (LAKOFF; JOHNSON, 2002), trata-se de um mapeamento sistemático entre dois domínios
conceptuais. Por domínio entende-se ―área do conhecimento ou experiências humana‖ (BERBER
SARDINHA, 2007, p. 31) e o mapeamento consiste nas relações que se estabelecem entre esses
domínios. Os dois domínios conceptuais são: o domínio-fonte e o domínio-alvo; o primeiro (mais
físico) é a fonte das inferências, o segundo (mais abstrato) é onde as inferências se aplicam.
A metáfora conceptual é assim denominada em virtude de conceptualizar alguma coisa. Por
exemplo, quando dizemos que o AMOR É UMA VIAGEM, tal conceptualização somente torna-se
possível porque o conhecimento que temos armazenado no nosso aparato cognitivo sobre a Viagem
(evento mais concreto) serve para entendermos o outro domínio conceptual Amor (mais abstrato).
A Teoria da Metáfora Conceptual, da qual Lakoff e Johnson (1980 [2002]) são as grandes
referências, tem sido ao longo dos anos estudada e aperfeiçoada tal como apontam Lima, Feltes e
Macêdo (2007), não sendo possível tratar aqui desses desdobramentos, porém o entendimento de que
que a metáfora é fruto do experiencialismo da cognição, já é suficiente para a compreensão da proposta
de análise a ser adiante apresentada.
3. Apresentação e Análise do Corpus
Nesta parte do trabalho, tratar-se-á da constituição e da análise do corpus. A proposta é inventariar as
conceptualizações metafóricas da vida na poesia popular de Patativa do Assaré. Ressalte-se que o
posicionamento teórico aqui defendido não compreende a metáfora como algo peculiar apenas da linguagem
artística e/ou poética, haja vista que a maioria das expressões metafóricas provenientes da linguagem poética são
201
frutos de metáforas conceptuais (LAKOFF; TURNER, 1989; LOIOLA, 2006) que se originam no
experiencialismo decorrente da interação homem/mundo.
Loiola (2006), baseando-se em Lakoff e Turner (1989, p. 03), afirma: ―A criação poética é mais uma
forma de criar nova coerência na experiência do que a invenção de novas metáforas‖. Na visão dos teóricos, as
metáforas poéticas não são essencialmente diferentes das metáforas conceptuais. Segundo Loiola, já aqui
referendado, na produção do poeta há ―uma extensão, uma elaboração, uma composição desse pensamento,
além de fazer questionamentos a respeito do que já é convencional‖ [destaques do autor]. O poeta como
grande conhecedor da língua e dos mecanismos de construção poética refina a linguagem, mas no geral as
metáforas poéticas apresentadas por ele têm por base as metáforas conceptuais.
No trecho abaixo do poema ―O Sabiá e o Gavião‖, do poeta em análise, há a ocorrência da metáfora
conceptual A VIDA É UMA JORNADA, presente no primeiro verso ―Mas, tudo na vida passa‖ da décima quarta
estrofe, conforme transcrição a seguir:
Trecho I:
Mas, tudo na vida passa.
Amanheceu certo dia
O mundo todo sem graça,
Sem graça e sem poesia.
Quarqué pessoa que visse
E um momento refritisse
Nessa sombra de tristeza,
Dava pra ficá pensando
Que arguém tava malinando
Nas coisa da Natureza.
A metáfora conceptual A VIDA É UMA JORNADA é uma das metáforas mais recorrentes
tanto na poesia de diferentes autores da literatura brasileira como em outros gêneros textuais como o
Blog. Em estudos realizados por Silva (2010), a metáfora conceptual em questão se faz presentes em
quatro de seis poemas analisados. Em outro estudo que tratava sobre as conceptualizações metafóricas
nas postagens dos blogs de seis postagens analisadas a metáfora A VIDA É UMA JORNADA está
presente em duas. Conforme Silva (2012),
Esta metáfora tem despertado interesse de inúmeros estudiosos da Teoria da Metáfora
Conceptual (FELTES, 2007), como Lakoff e Turner (1989), Kövecses (1991). Claro
que cada autor apresenta esta metáfora vinculada as suas bases culturais. No geral a
vida é assim conceptualizada por se assemelhar a uma jornada, um caminho a
percorrer e possuir ―objetivos e metas a serem atingidos‖ (ESPÍRITO SANTO, 1998,
p. 85). Nesses licenciamentos metafóricos os objetivos são postos como metas e
meios para que se possa atingir os objetivos ou caminhos que se irá percorrer durante
a vida (SILVA, 2012, p. 8).
No poema em questão compreende-se a vida como uma jornada que possui muitos sobressaltos,
caminhos que por uma razão não podem ser percorridos ou que se tem de abdicar. Em outro poema intitulado
―O Nordestino em São Paulo‖ há também a ocorrência da metáfora conceptual A VIDA É UMA JORNADA.
Trecho II:
202
E passa a vida sem gozar sossego
sem esquecer o seu torrão natal,
com o salário de um mesquinho emprego
sua família vai passando mal.
No poema ―Nordestino Sim, nordestinado não‖ ocorre à metáfora conceptual A VIDA É
SOFRIMENTO, conforme primeiro verso do quinto parágrafo do poema em questão.
Trecho III:
Sofremos em nossa vida
Uma batalha renhida
Do irmão contra o irmão
Nós somos injustiçados
Nordestinos explorados
Mas nordestinados não
O verso ―Sofremos em nossa vida‖ corroba a existência da metáfora em questão. Ressalte-se que o eupoético dos poemas em análise canta e conta na sua produção literária fatos cotidianos da vida do nordestino,
parcela da população que por um longo espaço de tempo ficou à margem das políticas públicas dos governos e
com as próprias carências, quer econômicas, geográficas e históricas, da região. Assim sendo, nada mais comum
que a incorporação desse sofrimento na temática dos poemas e consequentemente a atribuição de suas
características à vida.
No poema a ―Prefeitura sem Prefeito‖, há também a ocorrência da metáfora conceptual A VIDA É
SOFRIMENTO, conforme trecho a seguir:
Trecho IV:
Nessa vida atroz e dura
Tudo pode acontecer
Muito breve há de se ver
Prefeito sem prefeitura;
Vejo que alguém me censura
E não fica satisfeito
203
Porém, eu ando sem jeito,
Sem esperança e sem fé,
Por ver no meu Assaré
Prefeitura sem prefeito.
No poema ―Aposentadoria do Mané do Riachão‖, há a ocorrência da metáfora conceptual A VIDA É
UMA PENITÊNCIA. Conforme a análise da metáfora conceptual anterior, há uma interligação entre a
conceptualização metafórica e o meio geográfico-cultural em que se deu a construção do texto poético, há aqui
um mapeamento entre o conceito de vida e a experiência do construtor do texto em que a vida é conceptualizada
como um castigo/penitência.
Trecho V:
Seu moço, fique ciente
De tudo que eu vou contar,
Sou um pobre penitente
Nasci no dia do azá,
Por capricho eu vim ao mundo
Perto de um riacho fundo
No mais feio grutião
E como ali fui nascido,
Fiquei sendo conhecido
Por Mané do Riachão.
Passei a vida penando
A metáfora A VIDA É UMA PENITÊNCIA também está presente no primeiro verso da quinta estrofe
do poema ―Caboclo Roceiro‖
e ainda no oitavo verso da terceira estrofe do poema ―Cante lá, que eu canto
cá‖.
Trecho VI:
Tu és nesta vida o fiel penitente
Um pobre inocente no banco do réu.
Caboclo não guarda contigo esta crença
A tua sentença não parte do céu.
Trecho VII:
Você teve inducação,
Aprendeu munta ciença,
Mas das coisa do sertão
Não tem boa esperiença.
204
Nunca fez uma paioça,
Nunca trabaiou na roça,
Não pode conhecê bem,
Pois nesta penosa vida,
Só quem provou da comida
Sabe o gosto que ela tem.
No mesmo poema, à medida que a construção dos sentidos do texto evolui temos a ocorrência da
metáfora conceptual A VIDA É DIVERSÃO, presente no primeiro verso da décima sexta estrofe, conforme
trecho a seguir:
Trecho VIII:
Sua vida é divirtida
E a minha é grande pená.
Só numa parte de vida
Nóis dois samo bem iguá:
É no dereito sagrado,
Por Jesus abençoado
Pra consolá nosso pranto,
Conheço e não me confundo
Da coisa mió do mundo
Nóis goza do mesmo tanto.
Em ―Terreiro de Chopana‖, temos a ocorrência da metáfora conceptual A VIDA É UMA GUERRA. O
domínio guerra é bastante utilizado como fonte de mapeamentos para inúmeras conceptualizações metafóricas
como: DISCUSSÃO É UMA GUERRA; RELACIONAMENTOS AMOROSOS SÃO UMA GUERRA. A vida
pode ser conceptualizada como uma guerra tendo em vista ser comum atribuir às fases/etapas da vida inferências
que se dão a partir do conhecimento de mundo que temos acerca de uma batalha/guerra. Cada etapa vivida é
uma guerra vencida.
Trecho X:
Minha vida é uma guerra
E duro o meu sofrimento
Sem tê um parmo de terra:
Eu não sei como sustento
A minha grande famia...
Conclusão
205
Conforme a proposta deste estudo, objetivou-se inventariar as metáforas conceptuais presentes na
poesia popular de Patativa do Assaré. Conforme apontado por estudiosos como Lakoff e Turner (1989) e Loiola
(2006), as metáforas poéticas não são dissociadas das metáforas conceptuais, uma está inserida na outra. A
diferença que existe está no caráter questionador e refletidor do poeta, além do seu trato com a linguagem.
Da análise dos dez poemas de Patativa do Assaré, inventariamos seis conceptualizações metafóricas de
Vida, a saber: A VIDA É UMA JORNADA, A VIDA É SOFRIMENTO, A VIDA É PENITÊNCIA, A VIDA
É DIVERSÃO, A VIDA É PERSONIFICADA, A VIDA É UMA GUERRA. Das conceptualizações
inventariadas, umas são mais recorrentes como: A VIDA É UMA JORNADA (presente em dois dos poemas
analisados); A VIDA É SOFRIMENTO/PENITÊNCIA (presente em quatro dos poemas analisados) e outras
mais específicas, mas todas resultantes da interação do homem com o mundo em que está inserido, mostrando o
quanto a cognição humana em contínua utilização da experiência corpórea é responsável por produzir novos e
diversos significados na construção das categorias.
REFERÊNCIAS
ABREU, Antônio Suarez. Linguística Cognitiva: uma visão geral e aplicada. Cotia-SP: Ateliê Editorial, 2010.
BERBER SARDINHA, Tony. Metáfora. São Paulo: Parábola Editorial, 2007.
FARIAS, Emília Maria Peixoto; MARCUSCHI, Luiz Antônio. A metáfora das cores na língua e no
pensamento. In: PINTO, Abuêndia Padilha. (org.). Tópicos em Cognição e Linguagem. Recife: Editora
Universitária (UFPE), 2006.
FELTES, Heloísa Pedroso de Moraes. Semântica Cognitiva: ilhas, pontes e teias. Porto Alegre:
EDIPURS, 2007.
FELTES, Heloísa Pedroso de Moraes. Introdução: Mapas e puzzles: contribuição e desafios da
Linguística Cognitiva para os estudos da sobre a significação. In: GOMES, Languisner; FELTES,
Heloísa Pedroso de Moraes. Entre Mesclas e Metáforas: nos labirintos da geração de sentidos. Caxias do
Sul: EDUCS, 2012.
LAKOFF, G; JOHNSON, M. Metáforas da vida cotidiana. Tradução de Mara Sophia Zanotto. Campinas,
SP. Mercado das Letras; São Paulo: Educ, 2002.
LAKOFF, G; TURNER, M. More than cool reason: a field guide to poetic metaphor. Chicago:
University of Chicago Press, 1989.
LIMA, Paula Lenz Costa; et al. Cognição e Metáfora: A Teoria da Metáfora Conceptual. In: MACEDO,
Ana Cristina Pelosi de; FELTES, Heloísa Pedroso de Moraes; FARIAS, Emília Maria Peixoto. Cognição
e Linguística: explorando territórios, mapeamentos e percursos. Caxias do Sul – RS: EDUCS; Porto
Alegre: EDIPUCRS, 2008.
206
LOIOLA, Rubens de Lacerda. Metáfora conceitual no texto poético. In: MACEDO, Ana Cristina
Pelosi de; BUSSONS, A. (Orgs.). Faces da Metáfora. Fortaleza: Expressão Gráfica e Editora, 2006.
MARCUSCHI, Luiz Antônio. Fenômenos da Linguagem: reflexões semânticas e discursivas. Rio de Janeiro:
Editora Lucerna, 2007.
SILVA, Marcos Helam Alves. Metáforas Conceituais empregadas na Conceptualização da Vida na
poesia de Autores da Literatura Brasileira. In: SIQUEIRA, Maity; et al. Anais do IV Congresso Internacional
sobre a Metáfora na Linguagem e no Pensamento. Porto Alegre: Instituto de Letras/UFRGS, 2010, p. 10071029.
SILVA, Marcos Helam Alves. A Ocorrência de Metáforas Conceptuais na construção de postagens do
Gênero Digital Blog. In: MARTINS, Marco Antônio; et al. Anais da XXIV Jornada Nacional do Grupo de
Estudos Linguísticos do Nordeste. Natal: EDUFRN, 2012, p. 1-10.
FONTE DO CORPUS:
ASSARÉ, Patativa. Aqui tem coisa. São Paulo: Hedra, 2004.
Na internet: http://www.fisica.ufpb.br/~romero/port/ga_pa.htm#Osab, com acesso em 10 abr 13.
207
PREFÁCIOS AUTORAIS, ALÓGRAFOS E ACTORAIS DE ROMANCES
FRANCESES DO SÉCULO XIX
M. G. F. S.84
Profª. Drª. V. A (Orientadora)85
Resumo: Este trabalho é vinculado ao projeto de pesquisa O Grêmio Literário Português do Pará e os livreiros
portugueses (1867 - 1890), coordenado pela Profª. Drª. Valéria Augusti, que tem por objetivo quantificar e analisar
a circulação de exemplares de prosa de ficção do século XIX presentes no acervo do Grêmio Literário Português
do Pará. Para esse texto, serão estudados alguns prefácios de obras francesas que fazem parte desse acervo. Tais
prefácios serão classificados segundo a tipologia de destinadores (os autores dos paratextos), elaborada por
Gerárd Gennette (2009) na obra Paratextos Editoriais. Nessa obra, Genette (2009) afirma existirem três categorias
genéricas de destinadores de prefácios: autógrafo ou autoral (em que o destinador é o autor do texto), alógrafo
(em que o destinador é uma terceira pessoa) e actoral (em que o destinador é um personagem). Os prefácios das
obras A menina lisa (1870), de Paul de Kock, A noiva de Fontenay-das-Rosas(s.d),do mesmo autor, e O processo de
Clemenceau(1833) de Alexandre Dumas Filho, serão classificados segundo essa taxionomia para, em seguida,
serem analisadas as motivações, finalidades e elementos constitutivos que cada categoria de destinador pode
apresentar.
Palavras chave: Prefácios; Romances franceses; Século XIX
Abstract: This work is linked to the research project O Grêmio Literário Português do Pará e os livreiros portugueses
(1867 - 1890), coordinated by Prof. Dr ª. Valeria Augusti, which aims to quantify and analyze the movement of
specimens of prose fiction 19th century present in the collection of the Grêmio Literário Português do Pará. For that
text, we will study some prefaces of French works that are part of that collection. Those prefaces will be sorted
by type of senders (the authors of paratexts), compiled by Gerárd Gennette (2009) on the work Paratextos
editoriais. In that work, Genette says there are three general categories of prefaces: autógrafo or autoral (when the
sender is the author of the text), alógrafo (when the sender is a third person) and actoral (when the sender is a
character). The prefaces of works A menina lisa (1870), by Paul de Kock, A noiva de Fontenay-das-Rosas(s.d),By the
same author, and O processo de Clemenceau(1833) by Alexandre Dumas Filho, will be classified according to that
taxonomy then be analyzed in their motivations, aims and components each category sender can present.
Keywords: Prefaces; French Novels; 19th century
1. Introdução
Por compreender a seguinte afirmação de Roger Chartier (1995, p. 220): ―nenhum texto existe fora do
suporte que lhe confere legibilidade‖, o presente trabalho pressupõe que a Literatura não é uma entidade
abstrata, que se restringe ao estudo dos objetos textuais, mas, na verdade, é uma instituição social, que deve ter
claramente definido os aspectos materiais por quais circulam os textos literários, os lugares históricos e sociais
84
Maria Gabriella Flores Severo (UFPA). Bolsista PIBIC/FAPESPA. E-mail: [email protected]
Drª. Valéria Augusti (UFPA). E-mail: [email protected]
85Profª.
208
em que se encontram, entre outros aspectos que fazem total diferença na apreensão do objeto artístico. Dessa
forma, o conceito de Literatura que a compreende como texto ideal a ser interpretado independentemente de seu
suporte material não condiz com a realidade, pois a atribuição do significado resulta de uma relação estreita
estabelecida entre três polos: ―o próprio texto, o objeto que comunica o texto e o ato que o apreende.‖
(CHARTIER, 1995, p. 221).
Por levar em conta não apenas o texto, mas também seu suporte material, uma das preocupações dos
estudiosos da História Cultural é a distinção a ser feita entre texto e impressão, pois, segundo Chartier (1995), há
uma diferença fundamental entre a escrita de um texto e a feitura de um livro: os autores escrevem textos,
porém, os livros, ou mesmo outros suportes materiais do texto, são produzidos por outros agentes envolvidos
em sua produção. Daí as considerações de Robert Darnton (1995) a respeito dos diversos intermediários que
estão envolvidos no processo de produção do livro e que, segundo afirma, foram esquecidos pela história da
literatura, a despeito de serem de grande importância no estabelecimento do elo entre autores e leitores. Dentre
esses intermediários é possível citar: livreiros, editores, tipógrafos, etc.
Entendendo a complexidade do processo de produção do livro, e da apreensão desse tipo de material
pelos leitores, traz-se, nesse trabalho, uma concepção de Literatura, que compreende a interpretação do texto
como não dependente exclusivamente de sua estrutura textual, mas também de seus aspectos materiais, como o
tipo de suporte, o formato do livro, o tipo de edição, as características da impressão, os paratextos que o
acompanham ou não, etc, os quais têm impacto sobre a compreensão do leitor a respeito dele. Desse modo,
percebe-se que o estudo da Literatura pode e deve levar em consideração múltiplos aspectos, tanto textuais,
como materiais, considerando-se a dimensão histórico-social de ambos.
Dentre os elementos que podem interferir na leitura e interpretação dos textos está aquilo que o
estruturalista francês Gérard Genette (2009) denomina paratextos editoriais86. Tais paratextos podem ser
constituídos por título, dedicatórias, prefácios, pósfácios, notas, etc. Estando presentes em uma obra podem
mudar de forma significativa sua recepção pelos leitores. Assim sendo, pode-se imaginar a diferença provocada
pela leitura de um mesmo texto que em diferentes edições ganha paratextos antes inexistentes. Ou seja, ler um
―mesmo‖ texto com ou sem notas de rodapé, com ou sem prefácio, altera de maneira significativa a atribuição de
seu sentido. Portanto, se o suporte material dos textos literários é importante, os paratextos das obras também o
são, pois informam sobre o próprio texto, sobre seu ―valor literário‖, sobre o gênero ao qual pertencem, bem
como sobre o seu autor.
Para que se compreenda a importância do estudo dos paratextos, particularmente dos prefácios, que
mais interessam nesse trabalho, se faz necessário recorrer a definições específicas a esse respeito. Daí a
importância do trabalho do crítico francês Genette (2009), que define prefácio como toda espécie de texto
liminar (preliminar ou pós-liminar) autoral ou alógrafo que consiste num discurso produzido sobre o texto que
segue ou antecede. Além de defini-lo, o pesquisador propõe um estudo abrangente desse tipo de paratexto, de
modo a caracterizá-lo quanto a sua forma, ao lugar em que está localizado, ao momento de seu aparecimento,
86Paratextos
Editoriais é também o título de sua obra.
209
aos seus destinadores (ou autores dos prefácios) e aos seus destinatários (o público). Assim, o estudioso
apresenta uma taxionomia, acompanhada de vários exemplos de prefácios arcaicos ou modernos, de forma a
ilustrar as categorias propostas.
Dentre essas categorias, percebe-se que o crítico reserva mais atenção à dos destinadores, para a qual
sugere subclassificações entre os tipos de prefácios que podem existir. Assim sendo, no que tange aos
destinadores, os prefácios podem, conforme Genette (2009), ser atribuídos ao autor do texto que o acompanha
(real ou pretenso); a um ator (ou seja, uma das personagens da ação); ou mesmo a uma terceira pessoa, caso dos
prefaciadores alógrafos.
Tendo em vista o estudo dos prefácios a partir da teorização do crítico francês Genette (2009), pretendese, nesse texto, analisar os paratextos87 de exemplares de prosa de ficção francesa que constam no acervo do
Grêmio literário português do Pará, com o intuito de perceber as possíveis interferências desses prefácios no
processo de atribuição de significado das obras pelos leitores do século XIX. Parte-se do pressuposto segundo o
qual o significado, como assinalado anteriormente, se dá em meio a um jogo de forças estabelecido entre os
desejos do autor, do editor, ou do crítico no sentido de impor certa interpretação da obra e a liberdade ―vigiada‖
do leitor, sempre preparado para escapar a esses desejos (CERTEAU, 2003).
2.
Afinal, para que servem os prefácios?
Entende-se que o estudo dos prefácios é importante porque esses ―[...] paratextos (prefácios, notas,
posfácios, advertências do editor etc.) são usados para desculpar-se, para justificar-se.‖ (SITI, 2009, p. 169), além
de oferecerem informações importantes no que se refere à produção escrita de algum gênero literário, bem como
às considerações sobre autores e obras.
Estudos com enfoque em prefácios têm sido produzidos por pesquisadores na área dos estudos
literários, como é o caso de Sandra Vasconcelos (2002), que se utilizou de prefácios, artigos, panfletos, cartas, etc,
para entender a discussão que se fazia a respeito do gênero romance, quando este estava em ascensão na
Inglaterra no século XVIII. Vasconcelos (2002) pôde perceber que os diferentes prefácios traziam importantes
contribuições para o estudo do gênero em questão:
Assim, os prefácios, artigos e panfletos que discutiam o novo gênero iriam ocupar-se
de questões fundamentais como: definição do gênero; problemas de forma e técnica;
questionamento do conteúdo próprio ao romance; questões éticas; a figura do leitor; o
papel do romancista; estratégias narrativas; a relação do romance com outros gêneros,
entre as mais importantes. (VASCONCELOS, 2002, p. 43)
Desse modo, entende-se que o estudo sobre o gênero romance se deu de forma mais abrangente por
meio do levantamento e análise desses tipos de textos, dentre os quais se destacaram os prefácios.
Como visto, sabe-se que a categoria de paratextos abrange outros tipos de ―textos‖, porém, nesse trabalho, esse termo
será usado constantemente como sinônimo para prefácio.
87
210
Germana Sales (2003), por sua vez, se debruçou sobre prefácios e posfácios de exemplares de prosa de
ficção brasileira publicados no século XIX, entre os anos de 1826 a 1881. No entanto, em lugar de discutir a
teorização sobre o romance, a autora se propôs a refletir sobre ―o perfil dos leitores, a imagem do autor e a
construção do gênero romanesco na primeira metade do século XIX‖ (SALES, 2003, p. 15).
Também o projeto de pesquisa O Grêmio Literário Português do Pará e os livreiros portugueses (1867 - 1890),
coordenado pela Profª. Drª. Valéria Augusti tem, dentre seus objetivos, a transcrição e análise de prefácios e
posfácios dos exemplares de prosa de ficção publicados no século XIX presentes no acervo do Grêmio Literário
Português do Pará. É no interior desse projeto maior que venho desenvolvendo atividades como bolsista PIBIC,
as quais estão diretamente relacionadas ao presente texto. Desse modo, da totalidade do corpus que está em
processo de constituição na referida pesquisa, foram selecionados os seguintes prefácios de exemplares de prosa
de ficção francesa publicados no século XIX: Palavreado para servir de prefácio, da obra A menina Lisa (1870), de Paul
de Kock; Prefacio da edição franceza, da obra A noiva de Fontenay-das-Rosas (s.d), do mesmo autor;Ao SR. Rollinet
Advogado da relação, da obra O processo de Clemenceau (1833), de Alexandre Dumas Filho.
Assim sendo, parece não haver dúvida que o estudo de paratextos, tais como prefácios e posfácios, pode
trazer grandes contribuições ao campo dos estudos literários, necessitando ser mais explorado. Por essa razão,
pretende-se, a seguir, realizar a discussão e análise dos prefácios acima referidos, os quais representam as três
subcategorias propostas por Genette, no que tange aos destinadores.
3.
Entre Autores, Atores e Outros
O Palavreado para servir de prefácio, da obra A menina Lisa (1870), de Paul de Kock, pode ser categorizado
como um prefácio de destinador autoral ou autógrafo, ou seja, cujo autor é o mesmo da obra. Neste caso, podese perceber que há alguns indícios no próprio paratexto que permitem classificá-lo dessa forma. Um indício
importante, visível no prefácio e que pode evidenciar seu caráter autoral é a afirmação do prefaciador de que
seria uma verdadeira celebridade parisiense, e que, inclusive, dá autógrafos: ―Quando um homem tem a fortuna...
parece-me que seria melhor dizer a desgraça!... emfim, quando um homem tem alguma celebridade, não se passa
dia algum em que não receba pedidos de autographos‖ (KOCK, 1870, p. 5). Essa consideração, que poderia ter
um caráter genérico, ou seja, designar qualquer celebridade é em seguida especificada, pois o autor do prefácio se
autodenomina um escritor de romances: ―Que diabo se lhe poderia então offerecer? me dizia um sujeito que
sempre me pede exemplares dos meus romances...O que é ainda mais indiscreto que um autographo‖ (Idem, p.
9). Desse modo, não resta dúvida de que Paul de Kock é o prefaciador de sua própria obra, ainda que não assine
o paratexto com seu nome. Percebe-se, também, pelo próprio discurso do prefácio, que esse autor quer passar a
imagem de escritor consagrado entre os leitores. Assim, compreende-se que é possível em um prefácio a criação
de uma imagem de si mesmo, e a que Paul de Kock que revelar é a de autor popular.
Como comprovação de seu sucesso, o autor afirma que costumava ser plagiado por outros escritores:
―Ultimamente recebo uma carta d‘um sujeito que me manda uns versos de que eu sou auctor, e que
provavelmente elle tinha lido e copiado n‘um álbum. Espero que isto me servirá de lição para não tornar a cair
211
em escrever versos em álbum.‖(Idem, p. 7 e 8). É possível que essa afirmação de Paul de Kock seja plausível, pois
escritores de sucesso eram comumente imitados ou até mesmo plagiados88 por outros. A imitação foi prática
comum que atingiu os primeiros romancistas modernos Samuel Richardson e Henry Fielding89,que por serem os
precursores de uma forma nova na literatura (o romance moderno), tornaram-se modelos para os escritores do
seu período e, inclusive, para os posteriores. Vasconcelos (2007) demonstra que o grande interesse do público
pelo gênero, e os interesses mercadológicos dos autores e das casas editoriais fizeram, ainda no século XVIII,
com que se repetissem ―fórmulas bem-sucedidas e o recurso à imitação‖ (VASCONCELOS, p. 154). Assim,
possivelmente, o romancista popular Paul de Kock, no século XIX, não estava isento de ser ―copiado‖, já que
era um modelo para quem quisesse alcançar o sucesso.
É importante observar que Paul de Kock não está exagerando ao se definir como um escritor de
sucesso, pois, segundo Paes (2012) esse autor pode ser considerado ―um dos romancistas franceses mais
populares no século XIX‖ (PAES, 2012, p.33), não somente na França, mas também em Portugal e no Brasil,
ainda que atualmente faça parte dos ―escritores de segunda categoria pelas instâncias legitimadoras da produção
literária.‖ (Idem, p. 33).
Muito embora, seja possível imaginar que esse escritor tenha feito grande sucesso entre o público leitor
mais amplo, o que demonstra a afirmação acima referida da pesquisadora Paes (2012) a esse respeito, e as
sucessivas edições de suas obras presentes no acervo do Grêmio Literário Português no Pará, o autor não
deixava de se queixar da oposição da crítica literária, que não o considerava um autor de grande monta. Esse
embate é perceptível no prefácio, pois ao se vangloriar de sua posição, faz crer que nem todos o apreciavam: ―Se
tenho feito o meu caminho, tenho-o feito só, sem intriga e sem apoio.‖ (KOCK, 1870 p. 8 e 9). Pode-se, então,
supor que essa afirmação faça referência à própria crítica literária da época, que, possivelmente, não o prestigiava
justamente por ser ele um romancista popular, epíteto muito mal visto no período. Dessa forma, percebe-se que
o prefácio também pode servir de espaço de debate entre o autor e a crítica literária90 de seu período, como está
claro no paratexto.
Outra função do prefácio é aquela que o autor se utiliza do espaço prefacial para dirigir-se de modo
especial ao seu leitor: ―Enquanto estou de vez para conversar com o um caro leitor e com a minha adorável
leitora, podia confiar-lhe ainda uma d‘essas apoquentações a que algumas vezes nos é difficil escapar‖ (Idem, p.
10). Esse tipo de aproximação escritor-público é muito favorável para o autor que pretende angariar a
benevolência de seus leitores para com suas obras. Vasconcelos (2007, p. 154) afirma que, no século XVIII, era
importante que o romancista mantivesse um diálogo com seu leitor por meio dos paratextos.
Deve-se observar que a noção de plágio requer a noção de propriedade intelectual, ou direito autoral, cuja emergência
história foi amplamente discutida por Roger Chartier (2010) em seu texto Escutar os mortos
com os olhos.
89 Ian Watt (2010, p. 10), em sua obra A ascensão do romance: estudos sobre Defoe, Richardson e Fielding,afirma que esses dois
autores se consideravam criadores de uma nova forma literária, e viam que estavam rompendo com a ficção antiga, porém,
sequer assinalaram a diversidade de sua ficção mudando-lhe o nome.
90 Vasconcelos (2002, p. 109) afirma que geralmente os romancistas, do século XVIII, usavam de ―justificativas e explicações
de várias ordens [em] seus romances, na tentativa de ganhar a simpatia dos críticos, vencer suas reservas, atenuar sua
severidade ou evitar sua reprovação‖, em contrapartida a isso, Paul de Kock parece estar em franco embate com a crítica
literária de sua época.
88
212
O segundo paratexto a ser analisado é o prefacio da edição franceza, da obra A noiva de Fontenay-das-Rosas
(s.d), do autor já mencionado, pode ser categorizado como um prefácio de destinador alógrafo, ou seja, em que o
autor do prefácio não é o mesmo da obra.
O caráter alógrafo do prefácio é evidenciado por sua própria assinatura, feita pelo Editor da obra. Assim,
sendo, não se trata de um prefácio autoral ou actoral, qual seja supostamente escrito por um personagem. Além
disso, o editor corrobora com essa constatação afirmando que: ―O author d‘este livro já não existe, é bem sabido
por todos: todos, e isto constitue o maior elogio ao homem e ao romancista‖ (KOCK, S.d, p. 1). É importante
perceber que mesmo após a morte de Paul de Kock, seu sucesso parece não ter acabado entre o público, o que
faz crer na grande aceitação que tinha entre os leitores.
Como já assinalado, o prefaciador é o editor da obra, que no próprio paratexto revela as relações
mercadológicas implicadas em sua publicação: ―Além da vantagem de seu editor, tínhamos a honra de sermos
amigos de Paulo de Kock; estas tres obras que annunciamos estavam-nos destinadas por um contrato; e este
contrato não poude a morte quebral-o, pelo contrario, nol-o tornou mais precioso.‖ (Idem, p. 2). Percebe-se, pois,
que o editor põe a nu o processo contratual em que está implicada a obra, tornando explícito o fato de que, ainda
tenham sido amigos, a relação não deixou de possuir uma dimensão comercial, afinal Paul de Kock era um
romancista de apelo popular, e deveria ser muito requisitado por livrarias e gabinetes de leitura.
É importante salientar que a figura do editor nem sempre é prestigiada pelos estudos literários, por se
acreditar que ele não tenha uma função primordial no processo de interpretação do livro. Contudo, os
historiadores do livro e alguns estudiosos da Literatura têm se importado em compreender a função desse
importante intermediário para o campo da literatura. Robert Darnton (1995), por exemplo, o considera um
intermediário ―esquecido‖ pela Literatura, ainda que sua importância e de outros mediadores sejam fundamentais
para que a obra, a princípio tão somente um texto, se torne um livro e chegue às mãos do leitor. Além disso, o
editor também exerce coerções sobre a obra, que implicam uma certa intenção de impor ao leitor um modo de
ler o texto. Isto pode se dar de diversas maneiras, inclusive por meio dos aparatos paratextuais, como os
prefácios, em que emitem opiniões favoráveis ou contrárias ao autor e à obra, a depender de suas intenções, que
tem total relação com o mercado editorial.
Outro paratexto a ser discutido é o Ao SR. Rollinet Advogado da relação, da obra O processo de Clemenceau
(1833), de Alexandre Dumas Filho. Esse prefácio pode ser categorizado como um prefácio de destinador
actoral, ou seja, cujo prefaciador é um personagem da ação.
Esse tipo de destinador parece inicialmente complexo, pois se sabe que um personagem é uma entidade
ficcional que depende de um criador para existir, e quem o cria é o próprio autor da obra. Porém, para Genette
(2009) não é relação com a realidade que importa, mas a quem é atribuída à autoria do prefácio, independente
das questões de verossimilhança.
Assim, ainda que pareça uma situação improvável, percebe-se essa relação nesse prefácio, pois quem
assina o paratexto é Pedro Clemenceau, o protagonista da obra, objeto de criação de Alexandre Dumas Filho. As
213
imbricações impostas nesse prefácio são interessantes, pois, além de ser um texto supostamente escrito por um
personagem, esse também se caracteriza por ser uma carta enviada pelo personagem Pedro Clemenceau ao seu
advogado, ou seja, mais um fator que se dá no campo da ficção.
Nesse paratexto configurado em forma de carta, o prefaciador afirma que vai narrar os fatos que
ocorreram um mês antes de sua prisão, o que evidencia o caráter prefacial, pois é um texto que fala sobre o texto
que seguirá, e comprova que o próprio autor do prefácio é um actor. No prefácio, o personagem comenta sua
própria prisão: ―Uma vez que, mal teve noticia da minha prisão, e sem querer saber quando havia de verdadeiro
ou de falso nos boatos que circulam a meu respeito.‖ (FILHO, 1833).
Assim, não há dúvida de que Alexandre Dumas Filho emprestou sua voz para o personagem de sua obra
nesse prefácio, realizando uma manobra ficcional. Desse modo, diferentemente do que se costuma pensar, ou
seja, que os paratextos somente se referem a discursos, de uma pessoa real, feitos a propósito do texto, pode-se
perceber que há prefácios que são textos ficcionais, de personagens da ação, que fazem parte da ficção que
seguirá. Neste caso, segundo Genette (2009, p. 163): ―O estatuto da ficção que rege claramente os textos
romanescos [...], rege igualmente certos elementos do paratexto, de maneiras muitas vezes implícita e entregue à
sagacidade do leitor.‖
Outra relação importante a ser observada nesse prefácio, diz respeito ao modo como é concebida a
ficção, como um conjunto de ―fatos‖ a serem narrados e como ―memória‖:: ―não direi sómente uma memória
dos factos, cujo inteiro conhecimento é indispensável ao advogado quem apraz encarregar-se da minha causa,
mas uma narração confidencial e inexorável dos sucessos, circunstanciais, e pensamentos que originam a
catastrophe ocorrida no mez passado.‖ (FILHO, 1833). Assim, pode-se compreender que Alexandre D. F. cedeu
o estatuto de prefaciador a Pedro Clemenceau com o intuito de negar o estatuto ficcional do texto, sugerindo ao
leitor que se tratava de uma história ―verídica‖, ou seja, ―real‖. Utilizando-se dessa estratégia, possivelmente,
criou uma efeito de realidade, fazendo com que o leitor acreditasse na veracidade da narrativa, já que a
personagem afirma que vai narrar os fatos, dando a impressão de que o leitor terá contato com um
acontecimento que realmente ocorreu. Desse modo, entende-se que esse prefácio se utiliza de um recurso
narrativo muito caro ao gênero romance, qual seja, sua aproximação com a realidade. Conforme bem assinala
Vasconcelos (2007), os romancistas costumavam utilizar-se de diversas estratégias para dar a impressão de
veracidade às obras ficcionais91 e ―pôr fim às suspeitas do público em relação à ficção‖ (VASCONCELOS, 2007,
p. 151).
Considerações finais
Como se viu nos prefácios apresentados nesse texto, percebeu-se que o espaço prefacial pode servir às
diversas motivações dos destinadores. No caso do destinador autoral, o prefácio serviu para criar uma ―imagem
91É
possível supor que o estatuto ficcional do romance não era muito bem visto no século XIX graças a herança dos ataques
que o gênero sofrera no século das Luzes (MATTOS, 2004).
214
de si‖, para realizar um debate com a crítica literária, e para angariar a benevolência do leitor, no caso do prefácio
de editor, viu-se que o intuito principal era promover a obra, e no caso do actor, supôs-se que o objetivo
principal fosse criar a sensação de que o leitor estivesse lidando com uma história real. É claro que a proposição
realizada nesse trabalho foi inicial, e não se esgota, sendo possível perceber, ainda, muitos outros intuitos que
podem se revelar a partir da categoria de destinadores. Assim, entende-se que observar as motivações dos
―autores‖ dos prefácios pode contribuir para os estudos literários, podendo, ainda a tipologia de Genette (2009)
vir a abranger os estudos dos paratextos, na medida em que os pesquisadores se utilizarem dessas categorias para
pensar as diversas implicações que cada uma delas pode trazer para o campo do estudo da história literária e
cultural.
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CHARTIER, Roger. Escutar os mortos com os olhos. Estudos avançados. São Paulo, v. 24, n. 69, maio/ago.
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_______________. Textos, impressões, leituras. In: HUNT, Lynn. A nova História Cultural. São Paulo:
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PAES, Alessandra Pantoja. Sobre a prática tradutória de romances no século XIX: o exemplo de uma versão
portuguesa de les intrigants de Paul de Kock. Belas Infiéis.v. 1, n. 1, p. 29-41, 2012. Disponível
em:<<http://www.red.unb.br/index.php/belasinfieis/article/view/7524/5809>>. Acesso em: 12 abr. 2013.
SALES, Germana Maria Araújo. Palavra e sedução: uma leitura dos prefácios oitocentistas (1826-1881). Tese
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215
____________________________. Formação do romance inglês: Ensaios teóricos. São Paulo: Hucitec,
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WATT, Ian. A ascensão do romance: estudos sobre Defoe, Richardson e Fielding. Tradução Hildegard Feist.
São Paulo: Companhia das letras, 2010.
216
SINFONIA PASTORAL –MEHR AUSDRUCK DER EMPFINDUNG ALS
MALEREI:ANTES EXPRESSÃO DO SENTIMENTO QUE PINTURA.
Olivânia Maria Lima Rocha92
Alcione Corrêa Alves 93
Resumo: O objeto artístico é capaz de ultrapassar o domínio estético e tecer relações do homem com o mundo.
Tendo isso em mente vemos a Música e a Literatura como expressões artísticas que se comunicam através de
signos, sendo então polissêmicas e multiinterpretáveis, capazes de despertar diferentes sentimentos e reações ao
serem percebidos pelo público. Selecionamos como objeto de estudo o texto La symphonie pastorale, de André
Gide (1869-1951) e a Sexta sinfonia (Sinfonia pastoral) de Ludwig van Beethoven (1770-1827). Destarte, esta
comunicação indaga sobre a possibilidade de estabelecer correspondência entre essas duas obras para além da
simples homonímia. Utilizamos como fortuna crítica o conceito de horizonte de expectativa de Hans Robert
Jauss, intertextualidade e texto polissêmico de Literatura Comparada de Sandra Nitrini, correspondência das artes
do livro Literatura Comparada de Pierre Brunel, mensagem estética de A estrutura ausente de Umberto Eco, o artigo
―Música e literatura‖ de Ernesto von Rückert; do qual nos apropriamos da noção de poema sinfônico para que
pensássemos a Sexta sinfonia como um texto estruturado em blocos sucessivos e, o livro El estilo clássico Haydn,
Mozart e Beethoven que nos auxiliou na compreensão da obra de Beethoven. Ao inicio dessa pesquisa tivemos a
impressão que as duas obras tinham uma correspondência por quadros descritivos de um lugar (o campo), mas a
correspondência para semelhanças ou diferenças é percebida se a Sexta sinfonia for analisada como um texto, pois
a mente humana percebe tanto o texto-musical quanto o texto-literário como estruturas articuladas de idéias,
sons ou signos.
Palavra-Chave: Sinfonia Pastoral; Beethoven; Gide.
Abstract: The artistic object is able to exceed the aesthetic domain and to weave relations of the man with the
world. I bear that in mind we see the Music and the Literature like artistic expressions that are communicated
through sings, being the polyssemic and you were multiinterpreting, able to wake different feelings and reactions
while being realized by the public. We select like object of study the text La symphonie pastorale, of André Gide
(1969-1951) and the Sixth symphony of Ludwig van Beethoven (1770-1827). Thus, this paper inquires about the
possibility to establish correspondence between these two works for besides the simple homonymy. We use like
critical fortune the concept of horizon of expectation of Hans Robert Jauss; intertextuality of Compared
Literature of Sandra Nitrini; correspondence of the arts of the book Compared Literature of Pierre Brunel;
aesthetic message of the Absent structure of Umberto Eco; the article ―Music and Literature‖ of Ernesto von
Rückert; of which we seize the notion of symphonic poem so that we thought the Sixth symphony like a text
structured in successive blocks and, the book The style classic Haydn, Mozart and Beethoven that helped us in
the understanding of the work of Beethoven. To the beginning of this inquiry we had the impression that two
92
Estudante do Curso de História e Graduada em Letras Português Francês pela Universidade Federal do Piauí.
[email protected]
93 Orientador. Doutor e Mestre em Letras pela UFRGS. Professor do Departamento de Letras da Universidade Federal do
Piauí. [email protected]
217
works took a correspondence as descriptive pictures of a place (the field), but the correspondence for similarities
or differences is realized if the Sixth symphony is analysed like a text, since the human mind realizes so much the
text-musical how much the literary-text as articulated structures of ideas, sounds or signs.
Keywords: Pastoral Symphony; Beethoven; Gide.
INTRODUÇÃO
Nosso ponto de partida foi o estudo da obra La symphonie pastorale, de André Gide no qual o foco
interpretativo foi incentivado pelo viés da estética da recepção.
Nossa questão norteadora foi a 6ª sinfonia de Beethoven é uma chave de leitura para compreender
La symphonie pastorale Gide? Esse artigo vislumbrou a possibilidade de estabelecer uma relação entre La
symphonie pastorale e a Sexta sinfonia de para além da homonímia.
O artigo apresenta-se em subdivisões: primeiramente abordamos os aspectos teóricos, em seguida o
método de estudo, a discussão sobre a obra, e por fim as considerações finais. Para iniciarmos vejamos alguns
conceitos que orientaram essa pesquisa.
Referencial Teórico
Dentro dos estudos da correspondência das artes, essas são abrangidas por áreas de conhecimento como
Filosofia, Psicologia, Sociologia e outras. As artes não atuam sozinhas, mas em regime de colaboração, de
reflexão e dialética. Segundo Etienne Souriau (1983, p. 20) ―Nada mais evidente que a existência de um tipo de
parentesco entre as artes‖
Essa característica de parentesco dar-se-á, pois a arte é uma elaboração do homem sobre sua realidade
retratando uma experiência, um sentimento, sendo o desnudamento estético do belo, do sublime, mas
compreendendo ao seu oposto diametral.
Essa elaboração que aproxima as artes é obtida pelo processo de mimesís. As artes são imitações. Para
Cionarescu apud Nitrini (1997, p. 128-129) influência se distingui de imitação, por isso ele estabeleceu quatro
sentidos que estão vinculados a mimesís.
O primeiro de imitação da natureza como fonte de arte, pautado pela ideia platônica de imitação na qual
não se tem uma reprodução, mas sim uma transposição de experiência. O segundo, na época do renascimento,
voltado para a imitação de autores clássicos da antiguidade em que são imitados os procedimentos e princípios,
como uma espécie de adaptação dos cânones.
O terceiro traz a imitação de uma obra literária que lembra a imitação renascentista, pois o título da obra
remete a um modelo estabelecido. ―É comum, nos séculos XVI e XVII, denominar-se imitação não um principio
218
ou procedimento, mas a obra literária que trai a presença destes. A tragédia Iphigénie de Racine é uma imitação da
tragédia Eurípides‖ (NITRINI, 1997, p.129).
O quarto sentido é utilizado pelos comparatistas diz que influência e imitação são equivalentes. Isso
decorrente da época que a imitação livre constituía uma busca pela emulação ou tentativa de superar os modelos
canonizados.
Então com esses sentidos podemos inferir que a imitação se dá de maneiras diferenciadas e Aristóteles
ratifica essa afirmativa. ―diferem, porém, umas das outras, por três aspectos: ou por que imitam por meios
diversos, ou porque imitam os objetos diversos, ou porque imitam por modos e não da mesma maneira‖
(ARISTÓTELES 1987, p. 201). Esse autor afirma que o objeto de imitação são as ações praticadas pelo homem
e que em relação à tragédia e a comédia, a primeira imita os melhores homens e a segunda os piores.
A imitação dos homens melhores, portanto a tragédia tem um apelo kathartikós94. A atuação dos atores
é o que vai suscitar nos expectadores ―terror e a piedade, tem por efeito a purificação dessas emoções‖
(ARISTÓTELES 1987, p. 205).
Destarte, de uma maneira intrínseca a arte é algo que desperta nos homens sensações. Para Etienne
Souriau (1973, p. 118) ―a arte é uma elaboração de coisas suscetíveis de atuar poderosamente nos homens‖.
Pensando nesse poder de atuação das artes sobre o homem é que se busca a compreensão e a relação
entre as duas obras em estudo. O primeiro ponto é que as artes são decodificadas através de signos. Para
Beveniste (2006, p. 45) ―O homem inteiro é um signo, seu pensamento é um signo, sua emoção é um signo‖. O
signo também é capaz de evocar algo que ali está buscando ser expresso ou manifesto.
O papel do signo é o de representar o de tomar lugar de outra coisa evocando-a a
titulo de substituto. Toda definição mais precisa, que distinguiriam notadamente
muitas variedades de signos, supõe uma reflexão sobre o principio de uma ciência dos
signos de uma semiologia, é um esforço para elaborá-la. (BEVENISTE, 2006, p. 51)
Então aquilo que o homem expressa faz parte de um sistema de signos que são capazes de mostrar
aquilo que o se quer representar através de uma mensagem. Nesse momento cabe pontuar que há muitas
mensagens, mas aquela que tem a função estética é constituída nas relações entre os signos na expectativa de
formar um código próprio. Segundo Eco (1997, p. 52) ―A mensagem com função estética, é antes de tudo,
estruturada de modo ambíguo em relação ao sistema de expectativas que é o código‖.
Essa mensagem estética possui uma ambiguidade, pois dela é exigido um esforço para que seja
interpretada e nesse processo pode-se ter uma confusão de mensagens ou várias direções de decodificação.
94
Referente à catarse que vem do grego kátharsis e significa purgação ou purificação. Efeito produzido sobre os
expectadores por uma representação dramática. LAROUSE. Dicionário de língua portuguesa. São Paulo: Atica, 2011.
219
Nesse ponto abrimos um adendo para que para que possamos pensar essa interpretação da arte dentro
da tela supra exposta segundo um método de estudo que veremos a seguir.
Método de Estudo
Para o estudo das artes percebeu-se que não há método único. Isso implica que aquelas vêm de
realidades e sociedades diversas, demonstrando que não se pode deixar de lado as intersecções que a arte sofre
nem sua historicidade. Tomamos alguns conceitos como literatura comparada, intertextualidade, estética da
recepção de Jauss e estética comparada para delinear um método de análise.
De acordo com Clerc apud Brunel (2004, p. 283) a literatura é comparada é ―a arte [..] de aproximar a
literatura de outros domínios de expressão ou do conhecimento, ou dos factos ou dos textos literários entre si[..]
a fim de melhor os descrever, os compreender e os apreciar‖
Ao aproximar as artes para verificar uma correspondência entre elas podemos utilizar da literatura
comparada o conceito de intertextualidade.
O termo intertextualidade designa está transposição de uma ou vários sistemas de
signos num outro, mas já que neste termo foi entendido no sentido banal, de crítica de
fatos de um texto, preferiria o de transposição que tem a vantagem de precisar que a
passagem de um sistema para significante para o outro exige articulação do sistema
existente. (NITRINI, 1997, p. 157)
Essa transposição de código tenta agregar os significados e as interpretações que são destinados a um
termo para que seja transposto para outro termo, isso implica que a imagem de um vocábulo, de uma música
passará para o texto e vice versa.
Coadunando–se a essa idéia de intertextualidade temos o método desenvolvido por Jauss, a estética da
recepção. As críticas de Jauss eram pautadas na forma habitual que a teoria literária ordena as obras de acordo
com tendências gerais; seguindo o esquema de ver a obra pelo seu autor, pela cronologia.
a qualidade e a categoria de uma obra literária não resultam nem das condições
históricas ou biográficas de seu nascimento, nem tão-somente de seu posicionamento
no contexto sucessório no desenvolvimento de um gênero, mas sim dos critérios da
recepção, do efeito produzido pela obra e de sua fama junto á posteridade. (JAUSS,
1994, p.8)
Jauss desenvolveu a estética da recepção seguindo algumas teses. A primeira diz respeito à historicidade
da literatura, que não se relaciona à sucessão de fatos literários, mas ao diálogo estabelecido entre a obra e o
leitor. Já segunda afirma que a vivência e o conhecimento do público determina a recepção ―conduz o leitor a
220
determinada postura emocional e, com tudo isso, antecipa um horizonte geral da compreensão‖. (JAUSS, 1994,
p. 28).
A terceira trata do distanciamento entre as expectativas do leitor e compreensão da obra após sua
recepção é o que Jauss chamou de fusão de horizontes. Na quarta Jauss propõe examinar as relações atuais do
texto com a época de sua publicação. As três últimas teses apresentam uma metodologia de estudo da obra
literária; pelos aspectos diacrônico, sincrônico, e a relação da obra com a vida do leitor.
Vale ressaltar que os conhecimentos prévios e que o confronto da experiência ulterior de recepção com
a recepção da obra seguinte serão as ferramentas básicas para o estudo da estética da recepção.
A estética comparada traz a ideia que as artes atuam no mesmo campo de expressão, sendo percebidas
através de oscilações e das manipulações feitas pelo homem para que algo seja expresso como uma mensagem
decodificada em dados sensoriais.
Os dados sensoriais de que se servem as artes, nunca chegam a uma purificação de
fato, a um isolamento prático daquele jogo de qualia. As cores do quadro têm formas,
diferentes de luminosidade e mesmo relações com os valores táteis evocados pela
manipulação do pigmento colorido. O corpo do dançarino em movimento não é puro
caleidoscópio de atitudes, deslocamentos suaves, transferências no espaço.
(SOURIAU, 1983, 62).
Esse autor aponta que não há isolamento dos objetos estéticos e, para buscar relações entre eles é
necessário uma investigação da pautada nas semelhanças e diferenças, para que se possa ter um maior
entendimento, e por conseqüência uma maior contemplação das artes. (SOURIAU 1983, p. 37)
Ele chama a atenção para as três premissas que constituem as semelhanças secretas entre as artes: a
primeira transposição rigorosa e metódica de uma terminologia; a segunda avaliar a extensão do fato percebido e
sua importância, e por fim a tenacidade para forjar os instrumentos de sistematização e acumulo de
conhecimento. Partindo desse apontamento das semelhanças entre as artes vejamos a relação entre música e
literatura
Relações entre Música e Literatura
A literatura e a música são comunicadas pela visão e audição respectivamente, sendo compostas de
signos que estabelecem uma mensagem estética a serem recebidas e interpretadas pelo interlocutor.
Ambas as artes são capazes de provocar emoções que estariam no espectro da catarse aristotélica. De
acordo com Brunel (2004, p. 267) ―A literatura está igualmente implicada nas reflexões sobre a experiência
estética. A noção de catarse que Aristóteles introduziu a propósito da tragédia (A tragédia [...], suscitando piedade
e temor, opera a purgação [ou purificação] própria e tais emoções) estende-se a toda criação artística.‖
221
O que se pode compreender é a arte possui tamanha influência nos homens, pois faz parte de um bem
coletivo espiritual. A música e a literatura têm relação de semelhança, pois sugerem e evocam sentimentos,
destarte, estão ambas ligadas à afetividade e a memória.
No entanto existe um mal entendido entre as duas artes; que a música seria algo de momento um
esboço do que passou e a literatura fosse perene. Vejamos que o Brunel (2004) afirma sobre isso:
As obras que relacionam Literatura e música prestam-se, como vimos, a muitos malentendidos. Por menos necessário que seja o vínculo entre a música com programa
(sinfonia titular, poema sinfônico) e o seu argumento literário, este ultimo guia a
imaginação em direção ao prazer livre da analogia (BRUNEL, 2004, p. 277)
Mal entendidos entre as artes sempre terão, pois são interpretações que se utilizam da imaginação e
portanto tem livre analogia, mas Brunel (2004) a ponta que a relação entre música e literatura é mais profunda
dentro do formato chamado poema sinfônico, que constitui-se de um gênero de música clássica. Esse formado é
composto de um programa ou estruturação.
Bem mais sutil, mas talvez até mais profunda, é a relação entre a música e a literatura,
encontrada no gênero de composição denominado ―Poema Sinfônico‖. Este termo foi
usado pela primeira vez para a composição ―Tasso‖, de Liszt (1811-1883). É um
gênero de música sinfônica que se distingue da sinfonia pelo seu caráter programático
e, geralmente, pela estruturação em um único movimento. No poema sinfônico o
compositor procura expressar por meio de sons, o conteúdo de uma obra literária, de
um quadro pictórico ou, mesmo, de uma idéia filosófica. As apresentações desses
poemas em salas de concerto são acompanhadas de um programa explicativo do tema
desenvolvido, relacionando as partes musicais correspondentes a cada trecho.
(RÜCKERT, 1997, p. 07)
Rückert lista alguma obras consideradas poemas sinfônicos por seu conteúdo programático como a
precursora ―Sinfonia Pastoral‖ de Beethoven (1770-1827); as sinfonias ―Fantástica‖ e ―Haroldo na Itália‖ de
Berlioz (1803-1869); a abertura ―Romeu e Julieta‖ de Tchaikowsky (1840-1893) e a suite sinfônica ―Scherazade‖
de Rimsky-Korsakov (1844-1908).‖ (RÜCKERT, 1997, p. 09).
A relação entre música e literatura é mais visceral se as colocamos no mesmo patamar de objetos
artísticos os quais ser humano interpreta através da linguagem, de um código de signos.
Como pode ser percebido, há muita afinidade entre a música e a literatura, sendo esta,
ao longo de toda a história da música, a fonte inspiradora de grande parte da criação
musical, mesmo nos casos da ―música absoluta‖, isto é, constituída puramente de
sons, sem qualquer apelo literário direto. A razão dessa afinidade, talvez, esteja na
própria estrutura da mente humana, que, uma vez adquirida à linguagem, elabora o
pensamento em termos do discurso, isto é, da articulação das palavras em frases, para
a condução do raciocínio. A música, por sua expressão na dimensão temporal, de
modo diferente das artes plásticas, é criada mentalmente numa sucessão de sons que,
222
muito apropriadamente, denomina-se ―fraseado musical‖. É como se cada idéia
melódica possuísse uma estrutura sintática com sujeito, predicado, complementos e
adjuntos. Ao compor, o músico elabora um ―texto musical‖, em que expressa sua
idéias em blocos sucessivos, do mesmo modo que na redação do texto literário.
(RÜCKERT, 1997, p. 09 -10)
Se ambas as artes forem recebidas pelo ser humano como um texto poderemos pensar que elas têm
personagens e um enredo. Esse terá inicio, meio, fim, conflitos entre as personagens, descrições e ainda narrará
ou argumentará sobre algum assunto.
Diante do exposto até o momento vamos prosseguir apresentando a Sexta sinfonia e a sinfonia pastoral
e sua análise das duas obras.
Sexta Sinfonia de Beethoven e La Symphonie pastorale de Gide
A Sexta Sinfonia de Beethoven, cujo subtítulo é Pastoral foi descrita por ele como: mehr Ausdruck der
Empfindung als Malerei, ―antes expressão do sentimento que pintura‖. Beethoven apostou nessa peça buscando
demonstrar que expressar sentimentos representava mais que pintar um quadro descritivo.
El tipo de realismo evocador y nervioso de La Victoria de Wellington no es el mismo
que El de los efectos descriptivos de la Sexta sinfonía, la cual era, como el mismo
Beethoven escribió, ―más una cuestión de sentimiento que de pintura con sonido‖. La
pastoral es, ante todo, una verdadera sinfonía clásica muy fluida por la doctrina que
entonces imperaba de tomar el arte para describir las sensaciones o los sentimientos,
filosofía que se adaptaba mejor a la música de los años 1760 (y anteriores) que al estilo
dramático que la siguió. (ROSEN, 1999, p. 459)
Ela é dividida em cinco andamentos. O primeiro movimento é chamado de Erwachen heiterer Gefühle
bei der Ankunft auf dem Lande, ―Despertar de alegres emoções ao chegar ao campo‖. Possui melodias clamas e
alegres. O segundo movimento Szene am Bach, ou ―cena à beira de um regato‖ com notas calmas dá a sensação
de uma vida no campo. Seguindo a mesma tendência descritiva temos o terceiro movimento Lustiges
Zusammensein der Landleute, ou ―Alegre reunião dos camponeses‖. O quarto movimento Gewitter, Sturm
―Tempestade‖, em fá menor, possui um vigor característico e nos faz sentir em meio a uma tempestade. O
último movimento da Pastoral é o hino de celebração: Hirtengesang. Frohe, dankbare Gefühle nach dem Sturm,
―Canto pastoral. Sentimentos de alegria e gratidão após a tempestade‖.
A 6ª sinfonia (Pastoral) foi composta imediatamente a seguir à 5ª, sendo as duas
estreadas no mesmo programa de Dezembro 1808. Cada um dos cincos andamentos
tem um título descritivo, evocando uma cena da vida campestre. Beethoven adaptou o
seu programa descritivo à forma habitual da sinfonia clássica, limitando-se a inserir ao
scherzo (folguedos dos camponeses) um andamento suplementar (tempestade) que
223
serve para introduzir o finale (sentimentos de gratidão após a tempestade). (GROUT,
1994, p. 559)
Essa sinfonia retrata o ambiente campestre, no entanto Beethoven quando comparado com outros
autores que produziram musicas pastorais, como Haydn, apresenta uma caráter mais rústico, capaz de comportar
uma descrição de ambiente, mas de modo dramático ao demonstrar tanto vigor.
Embora a sexta sinfonia se apresente em cinco movimentos ela na verdade tem quadro conforme afirma
Rosen (1999):
Algunos han advertido que su estructura en cinco movimientos se anticipa a los
experimentos románticos posteriores (como la symphonie Fantastique de Berlioz),
pero esto es sólo una figuración; el cuarto movimiento de Beethoven no tiene
existencia independiente, sino que está tratado como una introducción, expandida, al
movimiento final, como ocurre en el quinteto en Sol menor de Mozart. ROSEN,
1999, p. 460)
A sexta sinfonia de Beethoven encerra em si certa ambiguidade seja pelo nome e seja pela estrutura
aparente ou pela sua execução com momentos ora suaves ora vigorosos, mas até mesmo essa ambiguidade
auxiliou-nos em nosso estudo.
Essa ambiguidade foi sentida também em La symphonie pastorale de Gide seja falando dos sentimentos,
dos personagens ou temas da obra. Na obra um pastor protestante que não se nomeia, registra em seu diário a
experiência que teve em tentar resgatar Gertrudes, uma cega e órfã da escuridão. Contra os protestos da mulher e
até o falatório da vizinhança ele persiste na educação da moça até ela mostrar os primeiros sinais de
corresponder, com amor e avidez pelo conhecimento. Na medida em que ela torna-se uma moça educada, longe
das futilidades cotidianas, então os sentimentos de ambos começam a mudar e ficam confusos. O filho mais
velho do pastor, Jacques, também percebe as mudanças de Gertrudes e se apaixona por ela. O romance tornará
um rumo para longe da estagnação quando surge a esperança de Gertrude fazer uma cirurgia que lhe dará a
visão. O que acaba por acontecer, mas nesse ínterim uma angústia se abate sobre o pastor que se preocupa com
o amor proibido: o dele por Gertrude ou o de Jacques pela moça. Adjunvante a essa preocupação ele se interroga
se a moça tornar a ver o amor dela por ele mudará? Gertrude já vidente converte-se toma conhecimento daquilo
que lhe era oculto. Ela vê as belezas do mundo, mas também contiguo o que é feio. Não suportando o choque
de visões sobre a realidade, e não podendo escolher entre seus amores sem magoá-los ela tenta se suicidar
jogando-se num rio. Sobrevive somente para se converter ao catolicismo e para contar ao pastor que é Jacques
quem ela ama.
Discussão
224
Utilizando os conceitos supracitados e a metodologia exposta analisamos nossos objetos de estudo. A
questão era se a sexta sinfonia pode ser uma chave de leitura para compreender Sinfonia pastoral de Gide.
Tivemos auxilio inclusive do próprio texto para refletir sobre a diferença entre entender e compreender.
Diante disso formulamos que 'Entender' aqui seria ouvir uma explicação e o compreender seria construir o seu
conhecimento; compreender o explicado.
Percebe-se isso com mais clareza depois que o pastor leva Gertrudes até Neuchâtel para assistir o
concerto, cuja obra era a Sexta sinfonia de Beethoven ―faire entendre la symphonie pastorale‖. GIDE (1975, p.
55).
Esse evento marca uma mudança ocorrida na vida dos personagens, expressada quando Gertrude
começa a fazer questionamentos ao pastor e esse percebe o quão precário era seu método ensino.
A primeira semelhança entre o livro La symphonie pastoral e a peça musical é a questão do próprio
nome que é emprestado para o livro, pois a sexta sinfonia de Beethoven é também conhecida como sinfonia
pastoral, no entanto as relações entre elas não param por ai.
Destarte, que podemos compreender a sinfonia pastoral utilizando a sexta sinfonia de Beethoven,
pensando a música como blocos sucessivos de texto com títulos e transpormos esses títulos para o livro. Se
leviano se tentássemos dividir a obra de Gide em cinco partes, assim como os movimentos da música o esforço
seria infrutífero, pois não poderíamos ali como fazer as marcações tendo que a forma de registro do livro é feita
num diário e, portanto em datas.
Na música temos os tons que evocam a paisagem campestre, o pastor que cuida de suas ovelhas. No
livro temos o pastor que dedica-se a uma ovelha desgarrada tentando captivar sua alma oferecendo uma versão
singular do evangelho. Ainda na questão religiosa, nos leva a refletir sobre a questão do pastor ao guiar a ovelha
perdida, se perder ao cumprir a tarefa gerando dúvidas sobre o seu próprio caminho que deve escolher. Pastor e
ovelha se confundem, pois o despertar dos sentimentos os deixa na mesma condição: cegos.
A questão da cegueira não remete somente a cegueira da visão, mas também a cegueira da crença
fervorosa, da manipulação dos sentimentos que nublam o conhecimento e a razão. A música expressa o ar livre
do campo, as ovelhas que são livres para percorrer caminhos diversos incluindo se perderem. No livro temos a
diferença, pois o pastor tenta impedir a autonomia de Gertrude, buscando mantê-la cega, negando a ela sua
liberdade fazendo com que a mesma só conheça aquilo que ele quer lhe ensinar.
A conexão entre a música e o livro nos levou através dos seus cinco movimentos a refletir sobre os
ciclos da vida como um périplo de Gertrudes da morte para a morte, pois ela parte de uma não existência
espiritual e cultural para uma não existência física.
Para compreender isso simplificamos assim: de uma existência em que vivia nas trevas da cegueira e do
desconhecimento Gertrudes desperta da sua inércia pela música e pelo amor do pastor que a guiava pelo
evangelho a privando de toda maldade. Ela vai tornando-se consciente aos poucos de forma lenta e calma até
225
possuir uma visão própria, além do ato de ver propriamente dito, momento que é o auge de suas angustias pelo
choque de visões, do que lhe foi ensinado pelo pastor e o que é a realidade, cujo desfecho será sua morte.
Considerações Finais
A música do século XIX se apresenta ligada as outras artes como a literatura. Nessa época era muito
comum as sinfonias serem associadas à pintura de quadros descritivos, mas para Beethoven não era bem assim
tanto que o subtítulo da sexta sinfonia era antes expressão do sentimento que pintura e representava a idéia de
liberdade.
E quanto a Sinfonia pastoral de Gide? A sexta sinfonia pode ser uma chave de leitura. Sim, esse processo
tem inicio através do nome da obra, pois observa-se que a Sexta sinfonia foi composta mais de cem anos antes
de que Gide apresentasse ao público a sinfonia pastoral.
Além disso, percebe-se que o livro esse busca mostrar uma reflexão sobre os sentimentos, isso já é
denotado pela maneira de ser escrito na forma de diário íntimo. E a relação do livro com música demarca que
essa se corresponde com aquela obra, pois a música consegue expressar os diferentes estados de espírito das
personagens que no decorrer dos andamentos da música/livro tem um inicio calmo, um momento de
turbulência e depois a calmaria. Assim como os sentimentos que os personagens sentem ou pensam que sentem,
a confusão entre o amor, o ciúme, enfim os sentimentos que surgem e perturbam as personagens.
REFERÊNCIAS
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BEVENISTE, Émile. Problemas de lingüística geral II. Trad. Eduardo Guimarães [et. al] Rev. Eduardo
Guimarães. 2.ed. Campinas-SP: Pontes Editores, 2006.
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Monteiro. Rev. Helena Borbas. Lisboa: Gulbekian, 2004.
ECO, Humberto. A estrutura ausente: uma introdução à pesquisa semiológica. 7.ed. São Paulo: Editora
Perspectiva, 1997.
GIDE, André. La symphonie pastorale. Paris: Galimard, 1975.
226
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de Janeiro: Francisco Alves, 1982.
GROUT, Donald J., PALISCA, Claude, V. História da música ocidental. Lisboa: Gradativa, 1994
JAUSS, Hans Robert. A história da literatura como provocação à teoria literária. Trad. De Sérgio Tellaroli.
São Paulo: Ática, 1994.
NITRINI, Sandra. Literatura Comparada. São Paulo: Edusp, 1997.
ROSEN, Charles. El estilo clásico: Haydn, Mozart, Beethoven. Madrid: Alianza Editorial, 1999.
RÜCKERT, Ernesto von. Música e literatura. IN: Revista Gláuks, do Departamento de Letras da Universidade
Federal
de
Viçosa,
ano
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nº
2,
jan-fev/1997,
pp.
125-138
Disponível
em:
http://www.ruckert.pro.br/texts/musicaeliteratura.pdf Acesso em: 20/03/2013
SOURIAU, Etienne. Chaves da estética. Trad. Cesarina Abdala Belém. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
1973.
______. A correspondência das artes: elementos de estética comparada. Tradução de Maria Cecília Queiroz de
Moraes Pinto e Maria Helena Ribeiro da Cunha. São Paulo: Cultrix; Edusp, 1983.
227
AS TENSÕES DA CARNE NO PINHÉM: UMA LEITURA DO
EROTISMO EM “A ESTÓRIA DE LÉLIO E LINA”
Pablo Rossini Pinho Ramos95
Prof. Dr. Sílvio Augusto de Oliveira Holanda (orientador) 96
Resumo: No Urubuquaquá, no Pinhém (1964), de João Guimarães Rosa (1908-1967), é composta de três narrativas:
―Cara-de-Bronze‖, ―O recado do morro‖ e ―A estória de Lélio e Lina‖. Esta última novela será o objeto de
análise do presente trabalho. Centrada no protagonista Lélio de Higino, vaqueiro recém-chegado à fazenda do
Pinhém para trabalhar na fazenda de seo Senclér, a trama é marcada por diversas temáticas que se circunscrevem
no sertão, entre as quais se destacam o amor (NUNES, 1964), fonte de inquietação para a maioria das
personagens e pelo erotismo como forma de supressão daquilo que se gostaria de ter. O último tópico
mencionado será o ponto central de análise da novela em questão. Com base na Estética da recepção de H. R.
Jauss (1921-1997) quanto à experiência estética do leitor diante do texto literário e nas concepções de Georges
Bataille (1897-1962) acerca do erotismo, que se fundamenta na ideia de uma ruptura de fronteiras, em outras
palavras, numa transgressão dos limites estabelecidos pela ordem oficial ou construídos pelos tabus sociais. Neste
estudo, portanto, busca-se examinar de que forma o erotismo perpassaria pelo interdito e colocaria em tensão
princípios de organização social consolidados pelo patriarcado por meio das construções dos discursos
femininos presentes principalmente na personagem Jiní.
Palavras-chave: Guimarães Rosa; ―A estória de Lélio e Lina‖; Erotismo; Experiência estética.
TENSIONS OF THE FLESH IN PINHÉM: A READING OF
EROTICISM IN “A ESTÓRIA DE LÉLIO E LINA”
Abstract:No Urubuquaquá in Pinhém (1964), by João Guimarães Rosa (1908-1967), consists of three stories:
―Cara-de-Bronze‖, ―O recado do morro‖ and ―A estória de Lélio e Lina‖. This last novel will be the object of
analysis of this study. Centered in protagonist who is called Lélio de Higino, cowboy newcomer to the farm to
work on the farm Pinhém of seo Senclér, the plot is marked by several themes that are confined in the
hinterland, among which stand out the love (NUNES, 1964), source caring for most characters and eroticism as
a way of suppressing what is like to have. The last mentioned topic will be the focus of analysis of the novel in
question. Based on the Aesthetic Reception of H. R. Jauss (1921-1967) as the aesthetic experience of the reader
before the literary text and the ideas of Georges Bataille (1897-1962) about eroticism, which is based on the idea
of a break boundaries, in other words, a transgression of the limits established by official order or constructed by
social taboos. This study, therefore, seeks to examine in which manner the eroticism pervade by the interdict and
Graduando do oitavo semestre do curso de Letras da Universidade Federal do Pará (UFPA) e bolsista de Iniciação
Científica PIBIC-CNPq. Email: [email protected]
96 Professor do Programa de Pós Graduação em Letras da Universidade Federal do Pará (UFPA).
Email: [email protected]
95
228
put tension on principles of social organization bound by patriarchy through constructions of discourses present
mainly in female character Jiní.
Keywords: Guimarães Rosa; ―A estória de Lélio e Lina‖; Eroticism; Aesthetic experience.
Por meio de uma leitura antropológica, Georges Bataille (1897-1962), em O erotismo (1957), ao investigar
o conjunto de informações e aspectos que constituem o homem na sua essência, tais como o medo, a vida e a
morte, confere ao erotismo, enquanto uma forma de sexualidade, o elemento fulcral para explicar a civilização
moderna que estará manifesto em sujeitos de ambos os sexos indistintamente ao longo dos anos.
Deixando claro desde já ao leitor, logo no prefácio de seu ensaio, que as discussões suscitadas sobre a
referida temática não se limitarão tão-somente ao ato sexual, o autor de As lágrimas de Eros97 (1961) examina,
prioritariamente, a ―unidade do espírito humano.‖ (BATAILLE, 1987, p. 7)
Ao analisar o erotismo, este autor se vale da criação de duas categorias contraditórias do ponto de vista
do significante, porém complementares quando se leva em conta a experiência das emoções advindas do
indivíduo: o interdito e a transgressão. Aquele se situa no limiar da descoberta daquilo que é proibido. No
interdito, o prazer é revelado e traz em sua natureza o sentimento do interdito. Nas palavras do pensador francês
―o interdito elimina a violência e nosso movimentos de violência (entre os quais os que respondem ao impulso
sexual) destroem em nós a ordem tranquila sem a qual a consciência humana é inconcebível‖ (BATAILLE, 1987,
p. 25). Quanto à transgressão, o ―desejar‖ do romper com a lei, esta também se situa no marco do erotismo, haja
vista que coloca em debate o fato de o homem não ser feito de fronteiras estáveis e que a ânsia da transgressão é
válida para que se tenha a garantia da estrutura social, logo, necessária para a coletividade na qual vivem os
homens, ainda que culmine no cometimento do pecado. Nas palavras do teórico,
Mas sentimos no momento da transgressão siangústia sem a qual o interdito não
existiria: é a experiência do pecado. A experiência leva à transgressão realizada, à
transgressão bem sucedida que sustentando o interdito, sustenta-o para dele tirar
prazer. (BATAILLE, 1987, p. 26)
Asseverar que ambas categorias somam-se no desenvolvimento da sexualidade deve-se ao fato de que o
interdito sexual se manifesta plenamente na transgressão, no processo de descoberta daquilo que é negado ao ser,
no desejo de romper com o que é estabelecido.
O erotismo, portanto, reside justamente em uma forma particular de atividade sexual, só se
manifestando quando o sexo ultrapassa a função meramente reprodutiva e se estabelece como busca de
autoconhecimento que tem no objeto de desejo o significado da busca por algo externo, daí o porquê de Bataille
97
Esta seria a última obra lançada em vida pelo pensador francês.
229
afirmar que essencialmente o erotismo ―é na consciência do homem aquilo que põe nele o ser em questão.‖
(BATAILLE, 1987, p. 20)
Essas considerações preliminares acerca do erotismo, segundo Bataille, servirão para a
propósito do presente trabalho que é apresentar uma leitura de tal temática em ―A estória de Lélio e
Lina‖, a terceira narrativa que integra Corpo de baile, obra de João Guimarães Rosa. Para tanto, este
trabalho terá como fim metodológico as premissas, sobretudo as que se referem à noção de experiência
estética, fundamentadas por Hans Robert Jauss (1921-1997) na Estética da recepção. O professor de
Konstanz, juntamente com outros estudiosos, iniciou um novo ciclo de estudos literários que gerou
novas propostas para o que se tinha até então no âmbito da teoria e da história da Literatura. Antes,
estudar tal disciplina era saber meramente a diacronia literária, não levando em consideração a
experiência estética do leitor no momento do contato com a obra, bem aos moldes do historicismo,
que, por sua vez, defende que podemos entender um período antigo exatamente como aconteceu, em
sua ―plenitude própria‖ (JAUSS, 1994, p.11), hipótese esta descartada pelo pensador alemão.
Sobre a relação dialógica entre obra e leitor (já que o segundo é o agente colaborativo na
constituição do sentido da primeira) o produto desta será a experiência estética enquanto um fenômeno
particular de atividade comunicativa. É por meio dela que o leitor poderá atribuir um interpretação para
o texto literário a partir do seu horizonte vivencial-espontâneo que pode ter sido ativo ou não.
O leitor, a partir desse momento, passa a desempenhar um papel basilar no método proposto
pelo históriador. É visto como agente imprescendível para a atribuição do conhecimento, seja ele de
caráter estético ou histórico, logo, papel de destinatário a quem a obra literária deve visar
primordialmente. Conferir ao leitor um papel produtivo e resultante da identificação deste com o texto
lido é, portanto, a valorização da experiência estética, que enfatiza a ideia de que uma obra só pode ser
julgada de acordo com o seu relacionamento com seu destinatário. Nas palavras de Jauss, ―o espectador
pode ser afetado pelo que se representa, identificar-se com as pessoas em ação, dar assim livre curso às
próprias paixões despertadas e sentir-se aliviado por sua descarga prazerosa.‖ (JAUSS, 2002, p. 87)
Partindo de concepções aristotélicas, o autor de Por uma hermenêutica literária (1982) elucida que a
experiência estética pode ser composta de três etapas relacionadas entre si: a poíesis, concebida como ―o
prazer ante a obra que nós mesmos realizamos‖ (JAUSS, 2002, p. 100); a aisthesis, entendida como ―o
prazer estético da percepção reconhecedora e do reconhecimento perceptivo‖ (JAUSS, 2002, p. 101) e
por fim a katharsis, vista como ―aquele prazer dos afetos provocados pelo discurso ou pela poesia,
capaz de conduzir o ouvinte e o espectador tanto à transformação de suas convicções quanto à
libertação de sua psique.‖ (JAUSS, 2002, p. 101)
Sendo a experiência estética parte do processo hermenêutico e também um fenômeno singular
no qual o leitor vivencia um período motivado pelas expectativas de seu tempo, é inegável que este é
capaz de formular um juízo prévio acerca do que acredita ser o erotismo, tópico central da presente
230
trabalho, todavia, nada impede que este possa ser confrontado com outra concepção desta natureza
presente na obra literária. Neste sentido, visando propor uma leitura de como o erotismo pode ser
apresentado ao leitor num texto literário, torna-se coerente deter-se, dentre os três processos da
experiência estética, na interpretação da katharsis, haja vista que um dos propósitos desta discussão é
justamente provocar o leitor por meio da apresentação de novas possibilidades interpretativas no que
tange ao erotismo (sem se desvincular das premissas bataillianas) e que podem ser observadas de modo
particular em ―A estória de Lélio e Lina‖, terceira narrativa que integrou Corpo de baile dos anos de 1956
a 1964.
As sete novelas98 de Corpo de baile, de um modo geral, podem ser lidas com base em quatro eixos
centrais que perpassam o sertão descrito por Guimarães Rosa: a infância, a velhice, a busca da palavra e
o erotismo. Temáticas estas que dialogam com o ponto fulcral comum a todas as narrativas: o sentido
de travessia feito pelas personagens, desde a saída até a chegada destes em um determinado lugar,
motivadas, em grande parte, pela procura da essência das coisas e de si mesmo.
Já é consenso entre a crítica rosiana que ―Buriti‖ destaca-se das outras novelas rosianas por
carregar uma intensa carga erótica descrita por meio de discursos que sugerem o desabrochar para a
sexualidade ao leitor por parte, principalmente, de personagens femininas significativas na novela
referida, tais como Glória e Lala. O fato também das ações centrarem-se durante a noite já sugere ao
leitor também que a transgressão da ordem no sertão, marcado pelas convenções sociais e familiares,
encontra situações favoráveis no momento em que tudo a princípio deveria estar calmo.
Êle jogava fortemente absorto. Perto, Glória e Behú não se escondiam de jubilantes,
vendo como Lalinha conseguia reter por mais tempo o pai, talvez aos poucos êle fôsse
diminuindo aquelas saídas na noite, que avolumavam pecado. (ROSA, 1956, v.2, p.
751)
Em contrapartida, os mais recentes estudos dedicados a ―A estória de Lélio e Lina‖ ocuparamse sobretudo em salientar a temática amorosa, a velhice e a possível falta de uma unidade composicional
na trama. Quanto ao tópico do erotismo, este já foi ressaltado por Luis Fernando Valente em
Mundivivências (2011) que apresenta uma leitura diferenciada das demais ao situar as principais
personagens femininas do Pinhém como agentes reconfiguradoras do sertão, à medida que confrontam
formas de agir e de se comportar por meio do erotismo no momento que expressam seus desejos e
pulsões sexuais de modo natural e necessário, desvinculados do caráter de submissão. Nas palavras do
autor ―essas mulheres são capazes de ações transgressoras, que apontam para a possibilidade de uma
ordem alternativa.‖ (VALENTE, 2011, p. 127)
A ordem das novelas a seguir está acordada com a disposição destas nos dois primeiros volumes que as englobaram em
Corpo de baile. São elas: ―Campo geral‖; ―Uma estória de amor‖; ―A estória de Lélio e Lina‖; ―O recado do morro‖; ―Dãolalalão‖; ―Cara-de-Bronze‖ e ―Buriti‖.
98
231
O erotismo será retomado neste trabalho, contudo, diferentemente de Valente que mencionou a
perspectiva erótica num modelo global da narrativa, pretende-se explorar tal temática a partir somente
da relação existente entre o vaqueiro Lélio e a mulata Jiní, por entendermos que a noção de erotismo
segundo Bataille é mais bem observada em suas definições, caso seja dado relevo às duas personagens
referidas. Ao fazer esse recorte, estamos certamente despertando o leitor para uma nova experiência
estética do que este venha a conceber como erotismo, confrontando-o com novas concepções que
procuram fugir do banal e comum, principalmente em se tratando de uma obra literária, na qual o
processo de criação da linguagem não é por acaso.
Lélio de Higino chega ao Pinhém para trabalhar na fazenda do seo Senclér, senhor patriarca e
gerenciador do lugar em questão. A chegada do protagonista é motivada em grande parte por uma
desilusão amorosa outrora vivida com Sinhá Linda, uma moça por quem se apaixonara na cidade. O
trabalho de condutor da boiada, neste momento, parece ser a saída para Lélio esquecer o que ficou para
trás e poder novamente encontrar seu equilíbrio interior até então ausente.
Ao perceber que ―um novo estirão de sua vida‖ (ROSA, 1956, v. 1, p. 256) começa e desejando
arduamente esquecer aquela ―moça fina de luxo e rica‖ (ROSA, 1956, v. 1, p. 258) do passado a qualquer custo,
Lélio, durante sua estada no Pinhém, passa a se envolver com distintas mulheres que figuram simbolicamente
como catalisadoras da transformação do sertanejo, desde aquelas que oferecem seu corpo apenas por ―prazer de
artes‖ (ROSA, 1956, v. 1, p. 297), objetivando saciar as necessidades sexuais dos vaqueiros que frequentam suas
casas e materializados nas personagens Conceição e Tomásia até aquelas de caráter paradoxal, a exemplo de
Rosalina, capaz de combinar um misto de sabedoria popular de uma idosa e de vitalidade inigualável de uma
moça e de atrair Lélio de uma forma totalmente envolvente quanto inexplicável. ―E, quando chegaram, e que
Lélio largou o feixe de gravetos, ela segurou um momento as duas mãos dêle. No suave saudar, nunca pessôa
nenhuma tinha feito assim.‖ (ROSA, 1956, v. 1, p. 307)
Contudo, nenhum envolvimento de Lélio é capaz de indicar com tanta propriedade uma possibilidade de
uma ordem alternativa nas relações internas de ordem institucional-familiar quanto o que foi desfrutado com Jiní,
mulher de Tomé, seu companheiro de vaquejada. A moça, dotada de reputação questionável e descrita como
uma ―mulata escura, mas recortada fino de cara, e corpo bem feito, acinturado, que é uma beleza sensível‖
(ROSA, 1956, v. 1, p. 264) surge num momento em que Lélio não possui ainda uma perspectiva de unidade
vivencial, sendo, portanto, no momento de sua descontinuidade amorosa a situação favorável para o despertar de
uma intensa atração sexual no protagonista que não consegue evitá-la, mesmo sabendo de seu compromisso com
Tomé, seu companheiro de vaquejada. ―A gente a ia vendo, e levava um choque‖ (ROSA, 1956, v. 1, p. 279).
Para Lenise Lucchese (2011, p. 123), ―O envolvimento do casal aconteceu pelo viés do ocultamento, do
proibido, do desejo incontido, dos olhos assanhados de Jiní que encontraram os olhos ardentes de Lélio‖.
Jiní representa também o papel daquela que tensiona as relações sociais no sertão, à medida que esta
confronta formas de agir e de se comportar por meio do jogo erótico no momento que expressa seus desejos e
pulsões sexuais de modo espontâneo e necessário, desvinculados do caráter de submissão a uma sociedade
232
tipicamente patriarcal. O que se observa mediante a leitura da novela é a presença da relativização ponderada de
valores femininos tradicionais, em que, apesar da presença de um poder masculino instaurado no sertão, este não
é um obstáculo suficiente para que mulheres como Jiní possam expressar suas inquietações e vontades próprias.
Cumpre frisar, no entanto, que, apesar dessa possibilidade de contestação parcial dos valores patriarcais
pelas mulheres, estas continuam ainda atuando como secundárias. O eixo central encontra-se justamente em
interpretar como Guimarães Rosa apresenta ao leitor um sertão ambíguo que transita entre o arcaico e o
moderno a todo instante por meio da representação da figura feminina.
É durante a ausência do amigo de Lélio que o erotismo, isto é, a experiência pelo qual o próprio ser se
põe em questão, promove a transgressão de limites na novela rosiana, ao revelar a quebra do interdito no
momento que Jiní comete o adultério, sem se preocupar com as consequências do ato, ao se envolver com Lélio.
Consideramos a passagem abaixo como sendo talvez o único momento de manifestação do erotismo,
porém representativo, acordado com a fundamentação de Bataille, presente em ―A estória de Lélio e Lina‖.
No lusco, a Jiní estava de branco, sentada na beira da laje; ficou em pé feito fôgo.
Nem êle pôde abrir nem ouvir palavra nenhuma, ela se abraçou, se agarrou com êle,
era um corpo quente, cobrejante, e uma bôca cheirosa, beiços que se mexiam mole
molhados, que beijando. Ali mesmo, se conheceram em carne, souberam-se. E dali
foram para a casa, apertados sempre, esbarrando a cada passo para o chupo de um
beijo, e se pegando com as mãos, retremiam, respiravam com barulho, não
conversavam. (ROSA, 1956, v. 1, p. 327, grafia do autor).
No dicionário de termos filosóficos, o conceito de carne pode ser entendido como a ―substância viva
comum ao corpo do homem e às coisas do mundo, que constitui, ao mesmo tempo, o objeto e o sujeito das
experiências humanas‖ (ABBAGNANO, 2007, p. 118). Mais do que saciar ―o desespero do desejo‖ (ROSA,
1956, v.1, p. 328) pulsante nos corpos, o prazer em carne que será experimentado por Lélio representa apenas o
afã da busca pela satisfação pessoal, ainda que escape aos princípios sociais, e que só pode ser encontrada com
Jiní, representação arquetípica do romper da ordem. Bataille em seu ensaio atribui essas tensões entre a procura
do prazer e os valores assimilados em vida como sendo uma violência que escapa ao controle do que é racional
por estimular ações animalescas nos amantes ao se encontrarem em carne. Nas palavras do filósofo, ―a carne é
em nós esse excesso que se opõe à lei da decência‖. (BATAILLE, 1987, p. 61)
Neste trabalho buscou-se apresentar ao leitor uma discussão sobre a possibilidade de uma leitura do
erotismo em ―A estória de Lélio e Lina‖, uma das novelas do ciclo novelesco pertencentes a Corpo de baile cujos
estudos ainda se encontram em processo de desenvolvimento se comparado às narrativas da mesma obra matriz
como ―Campo geral‖ e ―Buriti‖, por exemplo.
Fundamentado nos conceitos sobre erotismo trazidos por Bataille em uma das suas principais obras,
procurou-se propor uma leitura da temática em tela que foge ao banal, limitando-se essencialmente associá-la ao
puro prazer carnal de um indivído.
233
Compreender a dimensão do processo de erotização num sertão, que tende a se afastar de qualquer
convencionalidade no que se refere as relações discursivas entre os indivíduos, com base na ideia de uma
transgressão dos limites estabelecidos pela ordem oficial ou construídos pelos tabus sociais consolidados por
muito tempo na sociedade, proporciona uma experiência estética diferenciada que aproxima leitor e obra a partir
do que pode ou não ser experimentado por aquele em suas vivências, tal como Jauss elucida.
O tumultuado encontro dos corpos em busca do prazer observados nas personagens Lélio e Jiní
representam, sobretudo, o signo da oposição acentuada a determinados comportamentos e julgamentos que, a
priori, não são habituais ou esperados, o que evidencia o caminhar do sertão de Rosa para a modernização em
potencial.
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VALENTE, Luis Fernando. Mundivivências:leituras comparativas de Guimarães Rosa. Belo Horizonte:
UFMG, 2011. 163 p.
234
SANTO E HERÓI: ENTRE AS FLECHAS E SACRIFÍCIOS.
Pâmela P. Souza Neri99
Alessandra F. Conde as Silva100
Resumo: O presente artigo é resultado da Regência 2012/2013 do Projeto Museu em (Re)vista 101.
Nosso trabalho foi pautada na pesquisa da representação da imagem de São Sebastião presente no
MASB (Museu de Arte Sacra de Bragança). Pois, a imagem propicia não só deleite estético, como
carrega ideologias, significações e capacidade de múltiplas interpretações. O intuito foi analisar o poder
simbólico da imagem para a construção do conhecimento desde a Idade Média até os dias hoje, assim
como a sua relação com o imaginário, identidade e memória da região do Salgado, nordeste paraense.
Durante a produção discutiremos questões como histórias dos Santos, afetividade e comoção na arte
Sacra, relações do homem e a imagem e Sincretismo Religioso. Para Alçar nossos objetivos usaremos
como embasamento teórico Jacques Le Goff, Carlo Ginzburg, Arthur Schopenhauer, Umberto Eco
entre outros.
Palavras-chave: Afetividade; São Sebastião; Santo; Herói; Imagem.
Abstract: This article is the result of the Regency 2012/2013 Project Museum at (Re) view. Our work
was based on research of image representation of St. Sebastian in this BAM (Museu de Arte Sacra de
Bragança). Well, the image not only provides aesthetic delight, as loads ideologies, meanings and ability
to multiple interpretations. The aim was to analyze the symbolic power of the image to the construction
of knowledge from the Middle Ages until the day today, as well as its relationship with the imagination,
memory and identity of the region Salgado, northeastern Pará. During production we discuss issues
such as stories of the Saints, affection and emotion in Sacred Art, image and relations of man and
Religious Syncretism. To raise our goals as we use theoretical Jacques Le Goff, Carlo Ginzburg, Arthur
Schopenhauer, Umberto Eco among others.
Keywords:Affection; San Sebastian; Ghost; Hero; Image.
Introdução
O projeto Museu em (Re)vista objetiva fomentar metodologias que auxiliem os professores no que diz
respeito aos caminhos do ensino-aprendizagem. Desse modo, direciona suas ações para o Museu de Arte Sacra
de Bragança, pois o local possui uma larga esfera de oportunidades para incentivar de modo imediato a educação,
não só no que tange à educação formal, mas permitindo ao estudante que visita o lugar uma maior liberdade de
pensamento crítico e a construção do seu próprio conhecimento, que consequentemente ampliará a sua bagagem
de compreensão do saber proporcionado no meio escolar. O projeto, atualmente, em sua segunda edição
apresentou dois eixos de trabalho: O primeiro trata da proposta de Ensino e Aprendizagem em caráter de
99
Aluna do Curso de Letras-Habilitação Língua Portuguesa 2009, da Universidade Federal do Pará, bolsista do Projeto
Museu em (Re)vista (PROEX-EIXO TRANSVERSAL) 2012-2013. Coordenadora: Profª Me. Alessandra Fabrícia.
[email protected].
100 Mestre em Estudos Literários pela UFES. Professora de Literatura da Universidade Federal do Pará, campus
Universitário de Bragança. [email protected].
101 Tal projeto tem como pretensão valorizar o ensino de leitura tanto no âmbito da escrita, quanto no âmbito da imagem,
melhorando desse modo a produção textual.
235
extensão, que objetiva pôr em prática os saberes da Arte Sacra em parceria com a educação formal escolar. O
segundo eixo, ao qual pertence, base do artigo em questão, tratou da pesquisa sobre a representação na imagem
cristã e sua ligação com a sociedade de Bragança.
No que tange a escolha da imagem pesquisada, municípios como Bragança, Tracuateua, Viseu, São João
de Pirabas, entre outros possuem em sua cultura forte influência da representação de São Sebastião, tendo a sua
memória e identidade fortemente alicerçada por ela. Essa construção cultural geralmente está voltada para o
imaginário de uma determinada região e de seu povo. Como ressalta Hilário Franco Jr. (1999, p.151), ―o
imaginário recorre a instrumentos culturais da sua época e a elementos da realidade psíquica profunda, da
mentalidade‖. A pretensão se resumiu na reeducação de saberes já vivenciados, entre eles a história do santo aqui
estudado. São Sebastião, embora possua uma larga fundamentação cultural no imaginário social, apresenta
poucas citações sobre sua história, mesmo no campo acadêmico, pouco se discute sobre a sua história e
importância para a construção da chamada História Sacra. Na verdade, seus registros limitam-se às Atas de seu
martírio, pois em boa parte delas, os escribas eram delimitados a dar ênfase mais a seu martírio, do que ao
martirizado, questão que voltaremos no decorrer do artigo. Outra fonte de conhecimento sobre o Santo, os atos
apócrifos atribuídos a Santo Ambrósio de Milão, afirma que Sebastião era um soldado listado no exército
Romano por volta de 283 d. C. com um propósito voltado para a evangelização dos torturados cristãos. Embora
cristão, ganhou rapidamente cargos de confiança de Dioclesiano e Maximiano, imperadores romanos, como
capitão da Guarda Pretoriana. Todavia, por volta de 286 d.C., a sua atitude sempre benevolente com os
prisioneiros cristãos, agravado pela denúncia de um soldado, o levou a ser julgado sem chance de defesa como
traidor, tendo como punição a morte por flechas102. No entanto, não foram as flechas que o vitimaram
fatalmente, pois após ser socorrido por Irene103, apresentando-se a Dioclesiano, foi condenado a ser espancado
até morte, sendo seu corpo atirado no esgoto público de Roma.
Entre as muitas vertentes interessantes da trajetória do Santo das flechas, está a inconsistência
das datas da perseguição e do edito que instituía a perseguição aos cristãos proferidos em 303 d. C.,
tornando precoce a data da execução (286 d. C.) de São Sebastião. Dioclesiano, na época, buscava
implantar medidas governamentais que assegurassem seu poder absoluto. Para Paul Veyne (2009, p.
246), por volta dos anos 300, o imperador buscou constituir uma pureza moral no Império Romano,
proferindo palavras que reavivassem a crença da veneração às leis romanas, para, desse modo, despertar
a benevolência dos deuses para com Roma. Embora precedidas por muitas perseguições, dava-se a
partir daí a principal perseguição aos cristãos durante o Império, pois a última década do século III,
período próximo à perseguição a São Sebastião, testemunhou uma forte emancipação ideológica
anticristã, liderada por estudiosos e membros da administração imperial como Porfírio, Tiro e
Hierócles. Estes formavam os principais propagadores de tal pensamento; para eles a grande
102
103
Expressão mais acentuada da sua representação iconográfica.
Canonizada como Santa Irene pela Igreja Católica. Sua festa é comemorada em 30 de Março.
236
precariedade do movimento cristão está no fato de que pior que o politeísmo é cultuar um ser humano
(Jesus Cristo). Todavia, como já dito, Dioclesiano comungava amigavelmente com a ideia de possuir
em sua Guarda de confiança um soldado cristão; tal fato despertou uma indagação, o verdadeiro
motivo da perseguição liderada por Dioclesiano quarenta anos após o rescrito de Galieno (SILVA,
2011, p. 28.). Sobre isso, Moses I. Finley (1991, p. 170) diz-nos que
cristãos ocupavam cargos públicos, e eram leais (ou tão indiferentes) ao Estado como
qualquer outro grupo, não havia nenhuma grande pressão popular no sentido de
eliminá-los, no sentido de torná-los bodes expiatórios da peste e da fome; em suma,
não havia nenhum motivo político ou social visível para que Diocleciano, quase ao
final de seu reinado, decidisse esmagar essa religião.
O cristianismo, nesse momento, se apresentava (303 d.C.) para Dioclesiano como o último entrave para
a Concórdia104. Um dos motivos mais conhecidos está na obrigatoriedade imposta pelo imperador de sacrifícios de
animais que, feitos na presença de cristãos, despertavam o ato de benzer dos devotos durante o rito, colocando
em risco a unidade cultural e eclesiástica tão defendida pelo imperador (SILVA. 2011, p. 32). Mediante a tal
ameaça, Dioclesiano ordenou que todas as pessoas que estivessem em sua residência imperial deveriam, sem
objeção, praticar sacríficios, incluindo membros do exército, sendo estes os mais punidos diante de uma negação,
com torturas semelhantes à vivida por São Sebastião décadas atrás. O modo de execução de Sebastião fez dele
um dos exemplos católicos que mais despertou o teor mártir, tão comum na historiografia dos santos. Tal
característica fez dele assunto recorrente durante a Idade Média, principalmente no que tange à arte medieval.
Andréia Cristina Lopes Frazão da Silva, em Reflexões Sobre os Martírios: a Obra História Eclesiástica de
Eusébio de Cesaréia e a Hagiografia Cristã afirma que muitas hagiografias de mártires da Península Ibérica foram
produzidas no período do Século XI ao XIII, haja vista que nessa época revia-se o modo de pensar sobre o
martírio, tanto pela vasta produção de hagiografias que reiterou a memória acerca dos mártires cristãos, quanto
pela forte evangelização contra as heresias, levando muito cristãos a mártires.
Daí a justificativa da grande difusão de Santos Mártires como São Sebastião (o culto surgiu no século IV,
com maior difusão na Baixa Idade Média entre os séculos XIV e XV). A História Eclesiástica em sua concepção foi
de total importância para a difusão do caráter maravilhoso da vida dos mártires. São Sebastião, por exemplo,
mesmo após a sua execução por flechadas apareceu vivo diante do imperador Dioclesiano. O escrito auxiliou,
desse modo, a própria canonização desses personagens religiosos, pois após a morte, eles apareciam em sonhos
pregando o evangelho e realizavam milagres. Sobre o crescimento do culto a mártires como São Sebastião, Silva
(2008, p. 9) nos diz que,
o crescimento da veneração aos mártires pode ser constatado não só pela redação de
textos consagrados à sua memória, dentre os quais se sobressaem os próprios textos
eusebianos, mas também por materiais de caráter litúrgico e/ou ritual, que foram
preservados em papiros, cerâmicas ou pedras.
Medida que fundamentava as políticas de Dioclesiano, entre elas a Reforma Monetária de 294 d. C., e a obrigatoriedade
do uso Latim nas moedas (SILVA, p. 38).
104
237
Se falarmos em devoção e santificação, sem dúvida, falamos de uma construção por meio de relatos
cheios de crença e veemência da verdade, das maravilhas feitas antes e principalmente depois da morte desses
grandes nomes da Igreja Católica, sendo esses textos eclesiásticos, como o aqui discutido, importantes difusores
dessas narrativas, justificando abordagem deles aqui, haja vista que, embora muitos questionem a veemência da
trajetória de São Sebastião, tais escritos permitem a comparação com mártires contemporâneos, legitimando a
sua trajetória maravilhosa. Dadas essas informações, passaremos a discutir o caráter sincrético presente na
representação do santo aqui estudado.
1. Sincretismo Religioso: Rei e São Sebastião.
O sincretismo religioso, sem dúvida, é um dos ramos mais discutidos do Estudo das Religiões; tal
conceito, segundo Mircea Eliade (1992, p. 7) tem como gênese a difusão dos cultos orientais e das religiões dos
mistérios no Império Romano, com mais ênfase na Alexandria, desencadeando o conhecimento das religiões
exóticas e possibilitando as investigações sobre as antiguidades religiosas dos diversos países. Todavia, para a
dinamarquesa Anita Leopold (2005) ao falar do conceito diz que todas as religiões são sincréticas, pois embora se
julguem puras e neguem terminantemente qualquer ligação com outras religiões, mesclam-se por ser resultado
dos contatos culturais múltiplos. Ainda nas palavras de Leopold, o sincretismo consiste na vertente mais
contraditória da ciência das religiões, levando muitos estudiosos ao pensamento de abolir seu estudo na área.
Sérgio Ferretti (1995, p. 25) pontua o sincretismo como misturas de religiões, daí a busca por sua
extinção. Outro ponto passível de discussão é o fato de que na Antiguidade possuía o significado de junção de
forças contrárias frente ao adversário; no século XIII, de luta contra uma verdadeira religião, por meio da heresia
e junção de elementos opostos. Por toda essa mudança de sentido e sua forte ligação com a mistura confusa de
elementos distintos, como a imposição do evolucionismo ou colonialismo (a mistura entre santos católicos e
entidades da religião africana, permitindo, desse modo, a adoração dos deuses africanos pelos escravos), houve
nas últimas décadas uma séria mudança no campo dos estudos religiosos. Todavia, é inegável sua relação com as
religiões afro-brasileiras, consequência do caráter sincrético advindos de sua formação no Brasil de elementos
africanos, ameríndios e católicos. Arthur Ramos em Aculturação Negra no Brasil discute sincretismo não como uma
aceitação, mas como uma reação a aculturação sofrida pelos negros desde a colonização. Toda essa discussão
sobre sincretismo e religião afro-brasileira fundamenta nossa socialização sobre o Santo Católico e sua relação
com a Umbanda, pois nessa religião São Sebastião corresponde ao Orixá Oxossi, que na tradição umbandista é o
grande Orixá das Florestas, sendo o regedor entre o reino animal e vegetal. Um ponto interessante é que as
mesmas flechas que o vitimaram, nessa perspectiva, o auxiliam em sua função de caçador com seu arco flecha,
protegendo a natureza.
É essa perspectiva que forma uma linha de ligação entre São Sebastião é o Rei de Portugal, Dom
Sebastião105, que após um naufrágio, desapareceu sem deixar pistas, formando assim um movimento em Portugal
105
O desejado nasceu no ano de 1554 e foi filho único de Joana de Áustria e príncipe D. João, morto aos vinte dias do seu
nascimento. Assumiu o trono aos quatorze anos, sendo educado sob o forte Dogma Católico, caráter que o leva a pregar a
238
que atravessou continentes. Estamos falando do Sebastianismo. Indo contra a ideia do Brasil como pátria dos
piores tipos, durante as primeiras décadas da colonização, já se acreditava que a terra brasilis poderia ser o lugar do
paraíso terreal. Como podemos observar as histórias de manifestação do sebastianismo no Brasil, ainda no
período colonial, não nos oferecem e nem esclarecem uma narrativa detalhada de como teria sido transportado o
mito sebástico para a colônia portuguesa na América, como acontece nas narrativas e descrições de uma história
linear, e não poderia ser assim, até porque já acrescentamos: foram várias as reapropriações que se fez do mito
em terras "brasílicas". Sobre isso, Maria Isaura Pereira de Queiroz (2003, p. 30) afirma que a narrativa messiânica
está pautada na seguinte sequência, eleição divina; provação; retiro; volta gloriosa. Sobre os caminhos desta
crença no Brasil, Hermann (1998, p. 71) diz que "seguramente se misturaram aos messianismos de origem
indígena que aqui já viviam e com as especificidades das religiosidades africanas que para cá vieram junto com os
escravos"106. Não abordaremos com mais detalhes tal preceito, só falamos dele para introduzir o paralelo entre
essas duas figuras no imaginário cultural da região. Usaremos como exemplo, o município de São João de
Pirabas, possuidor da pedra, que nas narrativas locais, nada mais é do que a forma encantada do próprio Rei,
trazido pelas ondas à praia do Município.
Gerson Santos Silva em O Castelo do Rei Sabá: Memórias Encobertas nas Encantarias do Pará nos diz
que como todo mito, as narrativas sobre o Rei Sabá apresentam para a região um fundo didático, pois
entre os muitos relatos, está o caráter protetor da natureza da figura monárquica, ou seja, os pescadores
tem na representação de Dom Sebastião um castigador para os que maltratam o ecossistema. Assim
como São Sebastião representa o papel de regulador das coisas naturais, o Rei Sabá possui uma forte
influência na atitude do homem frente ao meio que vive. Outro ponto de encontro entre os dois
personagens está na relação imagética que os dois comungam, haja vista que durante a procissão anual,
dedicada ao Rei Sabá, a imagem que é levada na berlinda é a do ―São Sebastião das Flechas‖. Silva
afirma que no mesmo dia que é comemorado o dia do Santo Católico é comemorado e cultuado na Ilha
de Fortaleza, a entidade afro-brasileira Rei Sabá;diga-se de passagem, essa associação entre a entidade da
umbanda e São Sebastião, poderia explicar o culto ao rei tanto no munícipio, como nas outras cidades
devotas. Tal explicação só é impedida pelo fato de um ser Rei e o outro um soldado do Império
Romano (2004. p. 8-10). Sobre essa semelhança Heraldo Maués (2001, pp. 11-55.) afirma que ―é fácil
perceber porque muitas pessoas confundem o rei Sebastião (na pedra do rei Sabá) com o santo católico
São Sebastião e fazem promessas a ele‖ (2001, pp. 11-55). Outra hipótese permissível de
fundamentação é a necessidade do ver nas religiões. Carlo Ginzburg cita, como exemplo, os manequins
de madeira usados no funerais reais da França e Inglaterra. Ora o manequim de cera era depositado no
catafalco de madeira, (tínhamos nesse caso a representação mimética) ora o leito fúnebre real vazio era
coberto por um lenço que representava o rei morto, (tínhamos nesse procedimento a representação não
mimética). A presença mimética no primeiro exemplo está ausente e no seguinte presente. O
supremacia do cristianismo e a luta contra as nações infiéis. Esse pensamento leva Dom Sebastião a lutar contra os Árabes
na Batalha Alcacér-Quibir em 1578 (LELLI, 2010 p. 99).
239
procedimento era realizado, tanto para assegurar a veemência da notícia da morte, quanto para preparar
e fixar a ideia de luto nos súditos, haja vista que na época, o trabalho de embalsamamento demorava
meses (GINZBURG, 2001 p. 85-86). Na verdade, a relação entre a imagem de São Sebastião como
representação da entidade do Rei Sabá está veemente relacionada com o símbolo religioso. Do mesmo
modo, assim como afirma Ginzburg, a imagem do Santo Católico constrói uma ideia do estar ali,pois
torna presente através da imagem a representação do ―Rei Sabá‖, tornando-o presente tanto no âmbito
do ver, quanto no campo da abstração.Sobre isso, Vernant (apud Ginsburg, 2001, p 94), ao falar do
símbolo cristão diz que
o signo religioso não se apresenta como simples instrumento de pensamento, não visa
evocar apenas na mente dos homens a potência sagrada a que remete, mas quer
sempre estabelecer também uma verdadeira comunicação com ela, inserir realmente
sua presença no universo humano. No entanto procurando assim construir uma ponte
ligando ao divino, ela deve ao mesmo tempo ressalta a distância, revelar a
incomensurabilidade entre a potência divina e tudo que manifesta, de um modo
necessariamente inadequado, aos olhos dos homens.
A bem da verdade, a grande questão é que estamos falando, ao longo dessa linhas, de três figuras, o
Santo, o Orixá e o Rei de Portugal, todos sincretizados ou não, pelo menos no que diz respeito às peculiaridades
de São João de Pirabas, estão fortemente representado pelo símbolo religioso do santo das flechas, São
Sebastião.
2. A Relação homem, arte e imagem.
Carlos Ginzburg (2001, p. 100) afirma que a imagem tem a capacidade de instrumentar a memória na
construção de histórias, possui não só o deleite estético, como permite uma afetividade através da identidade. No
que diz respeito ao saber proporcionado pela Arte, motivo da indagação que abriu essa discussão, na Metafísica do
Belo, Schopenhauer fala da existência de duas formas de apreender o conhecimento sobre o tempo, espaço e
história presente na obra de arte, são eles a afetividade do mundo e a própria arte. Todavia, segundo ele, o saber
pela afetividade se torna complexo pela sua via de concepção que perpassa a própria vontade, assim, a obra de
arte faz o caminho menos tortuoso para se alcançar o conhecimento, pois ele está lá passivo de apreensão.
Para exemplificar, podemos citar a arte medieval, pois o modo impiedoso de execução tornou São
Sebastião um ícone para simbolizar o martírio, sacrifício e devoção, tornandoo santo tema recorrente na arte
medieval. Em sua maioria, as obras de arte são representadas por um jovem amarrado a uma árvore e perfurado
por várias flechas, com um número específico, cinco, para uma melhor precisão. Para Schopenhauer, existe uma
larga distância entre o conceito e a ideia. A arte medieval carrega um conceito explicitado pela alegoria, o saber já
estava pronto, assim, a ideia era de caráter fraco, de cunho subjetivo quando deveria ser motriz da criação e da
interpretação individual (2003, p. 180). Ora, sabemos que a concepção artística da Idade Média era conceitual,
pois suas alegorias tinham a função de transmitir ensinamentos bíblicos aos não alfabetizados, Tal pensamento é
240
defendido por Ernest Gombrich em História da Arte: ―Pois esses artistas não se propunham criar uma
semelhança convincente com a natureza ou fazer coisas belas: eles queriam transmitir a seus irmãos de fé o
conteúdo e mensagem da história sagrada‖ (2008, p. 165).
De tal modo, sabemos disso não pelos relatos históricos, mas pela própria arte. Ela nos conta sobre
ideologias, limites e avanços de uma determinada época. A imagem de São Sebastião, por exemplo, chama
atenção pela ausência das flechas, possuindo apenas as chagas abertas causadas por elas. Podemos pensar que na
sua concepção, o artista preferiu sobrepor o caráter de comoção característico da arte sacra, pois tal teor poderia
ser encoberto pelo heroísmo presente na entrega de São Sebastião à morte pela fé. Umberto Eco em História da
Feiura (2007) afirma que as pessoas, em sua maioria, veneram o belo, prova é o pouco material acadêmico sobre
o grotesco, o feio sempre foi contrastado com o belo, nesse sentido, podemos entender que o belo só é belo por
não ser o feio.
Pensamento semelhante ocorre na criação da arte sacra, quase sempre presenciamos o não bonito
despertando comoção, a imagem de São Sebastião perpassado por flechas, não consiste na visão mais delicada e
graciosa, todavia se faz necessária para despertar a misericórdia e, por que não, o despertar da culpa e
arrependimento dos pecados.As chagas expostas despertam satisfação pela graça, ressaltam o milagre de sua
sobrevivência após as flechadas que deveriam ser mortais. Tal afirmação é facilmente fundamentada se a
compararmos com outro soldado, canonizado pela Igreja Católica. Estamos falando de São Jorge, expresso em
suas representações, sempre montado em seu cavalo, resguardando na mão uma lança, possuindo a narrativa
fantástica da sua luta com o Dragão, é inquestionável a relação de semelhança entre os dois soldados
canonizados, construindo o porquê do ―São Jorge Herói‖ em detrimento ao ―São Sebastião martirizado‖,
reafirmando a intenção de interpretação na obra de arte já explicitada acima.
Conclusão
Para a Hagiografia Eclesiástica, o martírio nasce da eleição divina e não de uma reação frente ao
adversário. De igual modo, a prática do martírio entre os cristãos se tornou uma recorrência, levando
muitos a se entregar à morte. Tanto a primeira afirmação, quanto à segunda, estão fortemente
condizentes com a história do Santo das Flechas, pois embora, como já discutido acima, tenha sido um
soldado, função intimamente relacionada com o heroísmo, pouco sabemos das vivências do soldado
Sebastião, suas batalhas e feitos heroicos. Entre os relatos mais divulgados estão sua atitude
misericordiosa com os prisioneiros, o milagre da sobrevivência mesmo após a execução pelas flechas,
assim como a sua atitude de sacrifício e desprendimento ao se apresentar ao Imperador que havia
ordenado a sua execução. Temos em sua representação toda a emoção de um povo que busca um
ajudador nas horas difíceis, um intermediador dos sofredores, pois em vida sofreu para proteger seu
caráter cristão, seguindo com firmeza o que diz o livro de primeira João 16:33 ―Tenho-vos dito estas
coisas, para que em mim tenhais paz. No mundo tereis tribulações; mas tende bom ânimo, eu venci o
mundo‖.
241
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242
A MUHURAIDA: UM POEMA DESCONHECIDO DA LITERATURA
BRASILEIRA
Sales Maciel de Góis107
Thacísio Santiago Cruz108
Resumo
Este artigo baseado no projeto de iniciação a pesquisa cientifica ―A Muhuraida: entre a história e a ficção‖
(desenvolvido na Universidade Federal do Amazonas – UFAM, nos anos de 2011/2012), traz como objeto de
estudo o poema épico de Henrique João Wilkens, datado de 1785, A Muhuraida ou o Triunfo da Fé [...] editado pelo
Padre português Cypriano Pereira Alho, em 1819. Esse trabalho foi desenvolvido por meio de pesquisas de
cunho bibliográfico. A análise do corpus literário focou-se em discutir e analisar a importância do poema épico
A Muhuraida [...] tanto para os estudos literários amazônicos quanto para os estudos históricos. Para trabalhar
essa problemática utilizou-se de Moisés, Teixeira, Santos, a dissertação de mestrado de Amoroso Marta Rosa, as
teses de doutorado de Celdon Fritzen e Yurgel Pantoja Caldas. Também se observou obras literárias do mesmo
período, como: o Uraguai, de Durão e o Caramuru. O artigo está estruturado da seguinte maneira: a apresentação,
a qual propõe introduzir o leitor na discussão, culminando com os resultados, seguido pela conclusão.
Palavras- chave: A Muhuraida, Wilkens, Mura.
Abstract
Thisarticle based onprojectinitiationscientific research"The Muhuraida: between history andfiction" (developedat
the Federal Universityof Amazonas-UFAMin the years2011/2012), as an object ofstudybringsthe epic poemof
HenryJohnWilkens,dated1785,theMuhuraidaortheTriumph
ofFaith[...]
editedby
FatherPereiraPortugueseCyprianoGarlicin 1819. This workwas developedthroughliteraturepesquisas dedie. The
analysis ofliterary corpusfocused ondiscussing and analyzingthe importanceof the epic poemTheMuhuraida[...]
both forliterary studiesasAmazonforhistorical studies. To workthis problem, we used Moses,Teixeira, Santos, the
dissertationofMartaRosaAmoroso, thedoctoral thesesofCeldonFritzenYurgelPantojaandCaldas. Alsonotedliterary
worksof thesame periodastheUraguaiofDurãoandCaramuru. Thepaper is structured asfollows: the presentation,
which proposesto introduce the readerinto the discussion, culminatingwith the results, followedbyconclusion.
Keywords:TheMuhuraida, Wilkens, Mura.
Apresentação
107Estudante
do Curso de Letras-Língua e Literatura Portuguesa e Língua e Literatura Espanhola, na Universidade Federal
do Amazonas – UFAM/ Instituto de Natureza e Cultura – INC/ Benjamin Constant-AM. (e-mail: [email protected])
108 Mestre, orientador do projeto- UFAM/INC-BC.
243
O presente artigo é resultado do trabalho de iniciação à pesquisa científica a Muharaida: entre a ficção e a
história, o qual foi norteado por pesquisas de cunho bibliográfico. Nas pesquisas destacam-se os seguintes
teóricos que deram suporte científico ao projeto em questão. Para o estudo das relações entre história e ficção
consultaram-se as obras de Paul Ricoeur (1998; 2010) intitulada O tempo e a Narrativa, além de François Cadiou
(2007) na obra Como se faz História e Walter Benjamin (1994) em Sobre o Conceito de História. Essas obras não serão
citadas explicitamente no corpo desse trabalho, todavia as ideias desses teóricos serão encontradas as margens,
do mesmo. Pois é seria sem sentido falar em entrecruzamento entre ficção e história no poema épico A
Muhuraida[...]sem a leitura das ideias desses três autores destacados, uma vez que esses teóricos dominam as áreas
de poética e história, e são fontes requisitadas nos estudos literários e históricos.
A obra mais utilizada nesse estudo foi A Muhuraida ou triunfo da fé[...] (1993) de Henrique João Wilkens,
que descreve o processo da conversão e a reconciliação da grande e forte nação Mura. Essa obra é conhecida
como o primeiro poema épico/heróico escrito em língua portuguesa sobre/e no Amazonas, no ano de 1785. O
poema foi transcrito do original pelo padre Cypriano PerreiraAlho109, em 1819. O manuscrito original foi
encontrado na torre do Tombo em Portugal.
No ano de 1993, por iniciativa da Biblioteca Nacional, Universidade Federal do Amazonas/UFAM e o
Governo do Estado do Amazonas, publicou-se A Muhuraida ou triunfo da fé[...]. Nessa obra há um capítulo de
introdução crítica, escrito por David H. Treece, da Universidade de Liverpol e outro capítulo intitulado Henrique
João Wilkens e os Mura, escrito por Carlos de Araújo Moreira Neto, diretor do Museu do Índio do Rio de
Janeiro. Além do manuscrito original (fac-símile) e a transcrição diplomática do poema por Dirceu Lindoso.
Esta obra, A Muhuraida[...]não se encontra nos cânones da literatura brasileira. Ela poderia estar entre o
Uraguay de José Basílio da Gama e o Caramuru do Frei José Santa Rita Durão, poemas considerados por Candido
(1986) como épicos do colonialismo. A Muhuraida [...] poderia até mesmo ser classificada como uma epopéia
colonialista já que as peripécias entre portugueses e muras acontecem em meio à política pombalina em meio à
condição colonial, porém, a tradição literária não foi solidária a este poema, isto se pode verificar com a ausência
da Muhuraida dos dicionários de literatura brasileira e de coleções de poemas épicos brasileiros do século XVIII e
XIX, como a que foi organizada por Ivan Teixeira (2008) intitulada Épicos. Nesta ontologia há uma referência
bibliográfica sobre o poema em questão, todavia é muito pouco, até mesmo por se tratar de um poema que traz
várias informações históricas e literárias da Amazônia colonialista.
O desenvolvimento desse trabalho foi subsidiado por uma dissertação de mestrado e duas teses de
doutorado que direta ou indiretamente abordam importantes aspectos sobre o poema. A dissertação de mestrado
109Presbítero
secular, depois de ter professado durante alguns anos o instituto ou regra Carmelita, com o nome de Fr.
Cypriano Albertino. Esteve no Brasil, em 1792, foi vigário paroquial da igreja de Moreira, na Capitania do Rio Negro.
Regressou à Évora, sua pátria, onde obtendo a secularização, ali se conservou o resto de sua vida. Em 1820 declarou-se
acérrimo propugnador das ideias liberais, o que depois lhe provocou alguns desgostos. Em 1834 foi nomeado Bibliotecário
da biblioteca publica de Évora, cargo que exerceria por um pouco mais de três meses, pois faleceu neste mesmo ano. A
Muhuraida, ou a conversão e reconciliação do gentio Muhra. Poema heróico em seis cantos, por H. J Wilkens, (traduzido em oitava rima
portuguesa.) Lisboa, na Imp. Regia 1819, 8˚ de 70 páginas. Em 1821 fez anunciar na Gazeta Universal n˚58 de 12 de julho a
publicação de uma tradução por ele feita da História das inquisições de Hespanha e Portugal, por D. João Álvares de Colmenar,
que seria acompanhada de quatro estampas, e o preço da subscrição era 960 réis.
244
é de Amoroso Marta Rosa (1991) e as teses de dourado são de Fritzen Celdon (2000) e Yurgel Pantoja Caldas
(2007). Esse material foi essencial para o avanço desse projeto, pois sem a dissertação e as teses ficaria difícil de
entender a importância do poema épico A Muhuraida [...] tanto para os estudos literários quanto para os estudos
históricos, sendo assim sem utilização científica desses excelentes trabalhos o resultado referente à relevância do
poema para os estudos amazônicos seria quase nulo, porém com os subsídios teóricos apresentados no material
destacado nesse parágrafo houve uma mudança significativa, quanto, à importância desse poema para os estudos
poéticos e históricos.
Algumas obras como: A coleção Multiclássicos Épico (2008), de Ivan Teixeira. Para ele110 ―os poetas lusobrasileiros do século XVIII restringem os elementos da magnificência do estilo‖. Esse estilo é encontrado em
Vila Rica o Uraguay e o Caramuru. Teixeira não consegue encontrar no poema A Muhuraida [...] a tal
magnificência, embora inclua esta obra nas referências bibliográficas da sua coleção Multiclássicos Épico (2008, p.
91).
Hênio Tavares, em sua obra teoria literária (2002) se restringe a falar algo sobre o poema épico. Francisco
Jorge dos Santos em História do Amazonas (2010) discute sinteticamente sobre os índios Mura no século XVIII,
inclusive apresenta algumas imagens de Alexandre Ferreira Rodrigues que retratam a aparência desses índios,
todavia o autor não discute, e nem informa coisa alguma sobre o épico de Wilkens. O Pequeno Dicionário de
Literatura Brasileira,de Massaud Moisés (1967) e Enciclopédia Barsa (2002), tão pouco. Tudo isso, corrobora para
o não reconhecimento da importância do poema épico A Muhuraida [...], observa-se dessa forma, pelo fato que,
esses autores não escrevem nada sobre o poema, tão pouco o citam ou abordam alguma informação a respeito
do poema ou de seu autor. Caso reconheçam sua importância não a explicitam. É importante se pensar: como
resgatar uma literatura Amazônica uma vez que a parte interessada não está atenta a esses detalhes? Pode-se
compreender a omissão deste poema dos cânones da literatura brasileira, porém é dificultoso entender a
negligência do mesmo por parte dos interessados, como se evidência em Santos (2010). A obra desse autor é
distribuída em todas as Escolas do Amazonas, o título é História do Amazonas, mas como se pode fazer história
omitindo parte da própria história? Santo não conhecia o poema A Muhuraida [...]?
O poema de Wilkens foi escrito no fim do século XVIII, talvez num momento de transição entre o
Arcadismo e o Romantismo brasileiro. De acordo com Tufano (1983, p. 31) o período de renovação cultural
iniciou-se em 1759 com a expulsão dos jesuítas de Portugal, nesse contexto nasce o arcadismo, no qual os poetas
recriam textos com base na natureza. Segundo Tufano (1983, p. 32) dos poetas do arcadismo brasileiro merece
destaque: Cláudio Manoel da costa, Tomás Antônio Gonzaga, Silva Alvarenga, Alvarenga Peixoto, Basílio da
Gama e Santa Rita Durão. Onde está Henrique João Wilkens? Não se sabe os motivos pelos quais a literatura
brasileira não incluiu o poema épico/heróico A Muhuraida [...] de Wilkens, na tradição literária brasileira.
Especula-se pelo menos quatro hipóteses, são elas: por razões sociais, visto que o norte do país não era
tão rentável quanto o sudeste. Segundo, Wilkens não era brasileiro, mas Cláudio Manoel da Costa também não
era brasileiro, como Wilkens era Português. Terceiro, pelos exageros e os elementos mitológicos contidos no
110
Teixeira (2008, p. 85).
245
texto do poema, talvez esses dois elementos não preenchesse os anseios da tradição literária posterior ao
arcadismo e romantismo. Quarta e talvez a mais provável das hipóteses a respeito da omissão do poema de
Wilkens seja o desconhecimento.
Talvez os críticos literários não conhecessem A Muhuraida [...], visto que, em 1819 o padre Cipriano o
tenha encontrado. E em 1993 o Governo do Amazonas, em parceria com a UFAM elaborou a versão do poema
em língua portuguesa. Entretanto, agora o poema já deveria estar entre cânones da literatura brasileira, fato que
ainda não aconteceu.
Por último, observou-se o estudo deoutros poemas épicos do século XVIII, como o Uraguai, de Basílio
da Gama, e o Caramuru, de Santa Rita Durão, bem como sobre o contexto em que foram compostos, utilizou-se
ainda os trabalhos de Candido (1959; 1985; 2000), Dutra (1968) e Ruedas de La Serna (1995). Além de Eliane
Pequeno e sua contribuição científica sobre os índios Mura publicada na Revista de Estudos e Pesquisas, FUNAI.
Outros nomes também aparecerão no corpo desse trabalho, nomes como: Bates, Alexandre Ferreira Rodrigues,
Landi e outros.
Resultados
O projeto de iniciação científica A Muhuraida: entre a ficção e a história propôs como discussão geral
analisar a importância do poema épico A Muhuraida [...], tanto para os estudos históricos quanto para os estudos
literários, sendo assim serão apresentados abaixo os resultados dessa pesquisa, de cunho bibliográfico.
Iniciaremos com a seguinte pergunta: O Poema épico A Muhuraida [...], é importante ou tanto para os
estudos literários quanto para os estudos históricos no Amazonas? Se a resposta for não, a maioria dos teóricos
da literatura brasileira estarão cobertos de razão em não citar o poema em suas obras. Selecionamos algumas
obras recentes da literatura brasileira e literatura e história do Amazonas, obras nas quais não é possível
encontrar nada a respeito do poema em discussão.
A coleção Multiclássicos Épico (2008), de Ivan Teixeira, que segundo ele próprio pretende contribuir
para o convívio com textos da tradição clássica na literatura brasileira, não do período colonial, mas também do
romantismo, não aborda nenhum aspecto do poema de Wilkens. Teixeira apresenta o Uraguai (1769) de Basílio
da Gama e o Caramuru (1781) de Santa Rita Durão dois poemas épicos que são aproximadamente do mesmo
período dA Muhuraida [...] e que foram reconhecidos pela tradição literária brasileira.
A obra de Hênio Tavares teoria literária (2002) aborda vários tipos de obras literárias, porém não cita e
nem analisa a obra de Wilkens. Massaud Moisés outro estudioso da literatura brasileira também poupa palavras a
respeito do poema épico A Muhuraida (...), além desses autores há muitos outros que não mencionam e nem
reconhecem a importância do poema em questão. Em meio a este contexto algumas perguntas podem ser ainda
levantadas: porque estas autoridades em literatura brasileira não escreveram nada a respeito do poema de
Wilkens? Seria de propósito? Ou seria apenas pela falta de conhecimento da existência da obra? A segunda
246
hipótese torna-se improvável levando-se em consideração os meios de comunicações que estão disponíveis no
mundo atual.
O mais interessante é que até mesmo obras do Estado do Amazonas não apresentam o poema A
Muhuraida [...]. Francisco Jorge dos Santos em História do Amazonas (2010), para a primeira série do ensino médio.
Obra que é utilizada com os alunos em Escolas do Amazonas e não há menção alguma a obra de Wilkens. Dessa
forma encontramos uma tradição histórica e literária que repudia esse poema. Se encerrássemos aqui esse
trabalho certamente a resposta seria não. O poema épico A Muhuraida [...] ―não é importante nem para os
estudos históricos, nem literários e muitos menos para os Amazônicos‖.
No entanto a pesquisa não terminou ainda e algumas produções acadêmicas atestam para uma possível
relevância do poema épico A Muhuraida [...] tanto para os estudos históricos, literários e amazônicos. Nesse
momento destaca-se a dissertação de mestrado apresentada ao departamento de Antropologia social do
Departamento de Antropologia Social do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de
Campinas, no ano de 1991, por Marta Rosa Amoroso.
Embora Amoroso111 tenha como foco de seu trabalho os índios Mura, em sua dissertação ela implícita
em algumas partes informações do poema de Wilkens, como ―... até 1775 a Coroa atende as demandas dos
colonos, mas elege como prioridade a organização do trabalho indígena por meio da conversão dos índios ao
catolicismo‖. É Wilkens que narra está conversão dos índios Mura a fé romana. Amoroso também menciona em
sua dissertação o nome de João Pereira Caldas112 personagem histórico, a quem o poema épico a Muhuraida é
destinado.
A autora acima citada reserva um espaço em sua dissertação para falar mais explicitamente sobre o
poema heróico, A Muhuraida. Ela o descreve da seguinte forma:
[...] forma, argumento e intenção assemelham o poema Muhuraida aos outros dois
épicos do arcadismo brasileiro: O Uraguay (1754), de José Basílio da Gama e o
Caramuru (1781) do Frei Francisco José Santa Rita Durão. Wilkens também construiu
seu poema em oitava camoniana e utilizou-se amplamente do recurso das notas de
rodapé para a contemplação dos versos com informações com caráter histórico e
etnográfico, [...] o poema é composto em seis cantos, que aqui vão resumidos através
das palavras-chave de cada canto. No primeiro o gentio Mura é apresentado no seu
estado selvagem, e são acentuados os traços de sua ferocidade: a prática da escravidão
de outros índios, submetido pelo Mura a trabalhos forçados; o vil costume da
violentação das vítimas; o ultraje dos cadáveres. A cidade e as vilas vivem nas trevas,
temendo o ataque dos Mura. No segundo canto o Mura ouve o Mensageiro Divino,
que anuncia a luz que vem da fé. O lugar de Santo Antonio do Imaripi, no Rio Japurá
é o cenário do terceiro canto que trata da conversão dos Mura [...]. O quarto canto a
aproximação se realiza, comandada por Mathias Fernandes do Imaripi. Os Mura estão
em paz e vão a Ega conhecer as autoridades. O quinto canto fala do principal,
Ambrósio, um ―Murificado‖, isto é, tornado Mura que inicia no lugar de Nogueira
outro assentamento. O sexto canto finaliza a epopeia e celebra a conversão dos Mura
111Página
112Página
28, dissertação de mestrado.
113, da mesma dissertação.
247
ao catolicismo. Vinte crianças Mura são batizadas: é a vitória final contra o ―príncipe
das trevas‖. (AMOROSO, 1991. p. 124-125)
Não só Amoroso, mas também Fritzen Celdon, em sua tese de Doutorado para o Curso de Teoria e
História Literária do Instituto de Estudos da Linguagem da Universidade Estadual de Campinas, intitulada Mitos
e Luzes em representação da Amazônia ratifica através seu trabalho a relevância do poema épico/heróico A Muhuraida
[...] tanto para os estudos literários quanto para os históricos.
Sob orientação do Doutor Francisco Foot Hardman, Fritzen se propõe a analisar um conjunto de textos
ambientados na Amazônia procurando enfatizar neles os procedimentos de representação dessa região e de seus
habitantes. Dentre esses textos designados por ele como ambientados se encontra o poema de Wilkens. Para
Fritzen (2000, p. 15) A Muhuraida [...] é a primeira obra Literária produzida na Floresta Amazônica, em área
brasileira.
Para espraiar nossos olhos sobre essa nova disposição cultural diante da natureza do
próprio homem e que filosoficamente se designou como a emancipação esclarecida
dos medos e superstições ancestrais, proponho a interpretação do texto considerado
inaugural da literatura amazônica, o poema épico Muhuraida, escrito em 1785 pelo
engenheiro português Henrique João Wilkens. (FRITZEN, 2000. p. 66)
O autor citado acima ainda se dedicará a analisar o poema de Wilkens do ponto de vista
literário/histórico de forma mais profunda, isso pode ser encontrado em sua tese, entre as páginas 66 a 101. Não
se entrará nesse mérito até porque o foco desse trabalho de iniciação a pesquisa científica não era a analise do em
si, do poema A Muhuraida[...], mas sim, um estudo sobre a importância do poema para os estudos amazônicos.
Os estudos de cunho científico sobre a obra de Wilkens prosseguirão com Yurgel Pantoja Caldas, em
sua tese de doutorado em Estudos Literários pela FALE/UFMG. Um dos objetivos de Yurgel é através do seu
trabalho conseguir a inserção do épico Muhuraida (1785) na tradição literária brasileira como texto fundador da
literatura amazônica, bem como O Uraguay (1769) e O Caramuru (1781), dois épicos que se destacam na tradição
literária brasileira.
Segundo Yurgel (1997, p. 6) ―Muhuraida [...] instaura-se com particular interesse para a formação cultural
daquela região, marcada por um movimento constante de contradições e ambiguidades, próprio do texto
ficcional de Wilkens‖. É interessante observar que além da ficção própria da Muhuraida, há também o caráter
histórico no poema, esse se dá através de datas, nomes de autoridades da época, cidades do Estado do Amazonas
e Rios, enquanto que aquele outro se dá principalmente com a presença de nomes mitológicos inseridos por
Wilkens na escrita do poema.
Dessa maneira, há o entrecruzamento entre história e ficção, real e imaginário, fato e exagero. Quase ao
mesmo tempo em que Wilkens utiliza um dado histórico e/ou bíblico, como uma vila ou uma cidade ou uma
248
metáfora bíblica, ele acrescenta nomes mitológicos ou até então exageros, ao corpo do poema. Destacam-se
alguns nomes da mitologia grega presentes no poema de Wilkens (1993) como: tártaros (p.105), arcáno (p.117),
zéfiro (p.123), etc. Algumas vilas, sendo elas Ega (p.89), lugar onde A Muhuraida foi escrita, Barcelos (p. 141)113 e
outra vilas. A terminologia bíblica também é evidenciada no poema, uma vez que, o autor se utiliza de inúmeros
termos bíblicos como: luz, graça, autor divino, providência e trevas (p.99); ―qual lobo astuto, que o rebanho
vendo, passar, de ovelhas, do pastor seguido a desgarrará logo acometendo‖ (p.105). Os nomes históricos citados
no prólogo e nas notas de rodapé do poema são: João Perreira Caldas governador do Estado do Grão- Pará
(p.89), Mathias Fernades que era o atual diretor de Santo Antonio do Imaripi (p.93), o tenente coronel João
Batista Mardel e outros.
Os elementos históricos e ficcionais se misturam no poema época, isso também pode ser considerado
como outra marca camoniana. Assim como Camões apresenta, na obra Os Lusíadas vários acontecimentos
envolvendo os mitos gregos. Entre mitos e fatos, Wilkens escreve o primeiro poema épico/heróico sobre/e no
Amazonas.
Dessa forma a tradição universitária/cientifica fornece uma dissertação de mestrado e duas teses de
doutorado, elementos que atestam para a relevância do poema épico A Muhuraida[...]. Vale ressaltar que dentre
esses três trabalhos Yurgel é que mais se aprofunda e explora o poema.
Considerações finais
O trabalho de iniciação cientifica A Muhuraida: entre a ficção e história iniciou-se com a problemática
que envolve ficção e história no poema épico de Wilkens. Observou-se que este fenômeno de mesclar fato e
mito ocorre constantemente nesse poema. Os fatos históricos se dão por meio de personagens históricos, rios,
cidades, e alusões bíblicas e atos ficcionais se evidenciam através de mitos e exageros, sendo assim, nota-se em
Wilkens os traços de uma escola camoniana.
O objetivo principal era analisar a importância do poema épico A Muhuraida[...] tanto para os estudos
históricos quanto para os estudos literários, para isso, foram analisadas algumas obras literárias, uma dissertação
de mestrado e duas teses de doutorado, dessa forma observamos que a as obras literárias quase que descartam a
Muhuraida [...] de seu ciclo, uma vez que não há estudos, nem alusões e muitas delas nem mencionam o poema de
Wilkens. Todavia, a dissertação de mestrado de Amoroso, as teses de doutorado de Caldas e de Celdon atestam
para uma relevância impar do poema épico/heróico, não só para os estudos literários e históricos, mas também
para os estudos Amazônicos. Caldas ainda propõe em sua tese a inserção dA Muhuraida [...] como texto inaugural
da literatura Amazônica.
As limitações desse trabalho estão associadas a sua divulgação, ao entrecruzamento entre história e
ficção e a exclusão do poema dos cânones da literatura brasileira. Em relação ao primeiro, só foi possível divulgar
113Se
encontra na nota de rodapé, no poema.
249
o projeto em uma Escola da Rede pública no município de Tabatinga-AM e na Universidade Federal do
Amazonas-UFAM/ INC- Benjamin Constant. Quanto ao segundo, observou-se que se trata de uma temática
ampla e que pode ser aprofundada numa dissertação de mestrado ou até mesmo numa tese de doutorado. O
Terceiro, também é algo muito abrangente e ainda não há nada escrito sobre esta exclusão da obra A
Muhuraida[...], esse também é um grande problema a ser discutido pelos acadêmicos. Levando-se em
consideração, tudo que foi apresentado pode-se afirmar que o trabalho de iniciação científica foi bem
significativo e ajudou-nos a esclarecer algumas inquietações e principalmente as que dizem respeito à importância
do poema para os estudos históricos e literários.
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251
AUTORES E OBRAS PORTUGUESAS NO JORNAL A PROVÍNCIA DO
PARÁ114
Sara Vasconcelos Ferreira115
Profa. Dra. Germana Maria Araújo Sales116
Resumo: O objetivo desse trabalho é apresentar os textos de autores portugueses que foram
veiculados durante a penúltima década do século XIX, no jornal A Província do Pará, presença intensa
notabilizada pelos nomes de Eça de Queirós, Maria Amália Vaz de Carvalho, Alberto Braga e Luiz de
Magalhães, entre outros autores cujas obras estiveram presentes na seção folhetim do periódico
paraense. Essas publicações deixaram marcas na história da literatura no Pará e realizar esta análise,
permite-nos identificar quais eram os textos portugueses veiculados em Belém no Oitocentos, assim
como contribui para as pesquisas sobre a trajetória da ficção no Brasil, além de ressaltar a importância
dessas narrativas na formação da cultura letrada paraense.
Palavras-chave: publicações portuguesas; século XIX; jornais.
Abstract: The work aims is to present the texts of portuguese authors, published during the 80s, in the
nineteenth century, in the newspaper A Província do Pará, intensive presence remarkable by names of
Eca de Queiroz, Maria AmáliaVaz de Carvalho, Alberto Braga and Luiz de Magalhães, among others
authors whose works were present in feuilleton column paraense journal. These publications have left
their mark on the history of literature in Pará and this analysis allows us to identify which were
conveyed Portuguese texts in Belém, in the nineteenth century, as well as contributing to research into
the history of fiction in Brazil, in addition to emphasizing the importance of these narratives in the
formation of Pará literacy.
Key-word: Portuguese publications; nineteenth century; newspapers.
Introdução
Em meados do século XIX os jornais brasileiros, envolvidos pela febre do folhetim, ofertavam
diariamente em suas páginas escritos cuja finalidade era entreter os leitores. Essas produções eram, em
sua maioria, de países europeus, especialmente franceses. Entretanto, a presença de autores portugueses
também foi relevante e autores consagrados como Camilo Castelo Branco e Eça de Queirós faziam
parte do elenco dos portugueses presentes nos rodapés dos jornais brasileiros.
É nesse período fértil para a literatura brasileira que o jornal A Província do Pará iniciou suas
publicações com início de circulação em 25 de março de 1876, a princípio ligada às lideranças
partidárias da qual se desvincularia em 1889.
Este artigo é resultado da pesquisa de Iniciação Científica (2012-2013) que tem a finalidade de identificar a presença
portuguesa no jornal A Província do Pará durante o século XIX.
115 Bolsista PIBIC/CNPq – Universidade Federal do Pará (UFPA). E-mail: [email protected]
116 Universidade Federal do Pará (UFPA). E-mail: [email protected]
114
252
Desde as primeiras publicações o jornal trouxe no rodapé da segunda página a seção folhetim
com a publicação de contos, romances, críticas de romances, excertos de novas obras e até mesmo
textos sobre política.
Todavia, na década de oitenta, a folha passou a publicar nessa seção, somente
textos ligados ao entretenimento, com a publicação maciça de romances franceses e contos
portugueses. Essa relação com franceses e portugueses, que dominava as páginas da folha se justifica
por duas razões: no caso dos franceses, o fato do romance-folhetim ser oriundo da França fez com que
nomes como Guy de Maupassant, Xavier de Montepin, Paul Féval, entre tantos outros, estivessem
presentes não somente nessa folha diária, como em outras publicadas no país; por outro lado, a
presença dos portugueses, que estiveram em segundo lugar em publicação no periódico paraense, se dá
pela relação estreita entre a capital da província do Grão Pará com Lisboa, além disso, A Província tinha
um colaborador em Lisboa, Montalverne de Siqueira, que mantinha, na medida do possível, os leitores
do jornal atualizados aos acontecementos na Europa, quer fossem assuntos políticos quanto literários.
Dessa forma, este trabalho se volta para a presença de obras e autores portugueses que tiveram
seus textos divulgados no jornal A Província do Pará durante a década de oitenta do século XIX.
A PROSA DE FICÇÃO PORTUGUESA
A penúltima década do século XIX é o momento em que a prosa se ficção portuguesa tem mais
espaço no jornal A Província do Pará. Verificamos que nessa década a quantidade de textos portugueses
publicados no folhetim do jornal é mais frequente que nas décadas iniciais e finais do referido século,
no qual a seção folhetim é dominada por narrativas francesas que foram mais frequentes. Assim, no
total de publicações, identificamos 27 narrativas cujas autorias são atribuídas a portugueses. Dessas há
uma maioria incontestável de contos, apenas um romance e duas crônicas foram publicadas no período.
A publicação de contos, principalmente os contos menores – de um fascículo – facilitava que mais de
um texto fosse veiculado de uma vez na mesma seção.
A presença de autores portugueses no rodapé do periódico paraense foi diversificada e envolveu
nomes de autores consagrados como Eça de Queirós e Pinheiro Chagas, assim como Rebello da Silva,
Ramalho Ortigão e Maria Amália Vaz de Carvalho, além de outros que não são reconhecidos
atualmente, como Moura Cabral, Arthur Lobo d‘Ávila e Jayme Seguier117. Entres as obras de autores
consagrados e publicações de desconhecidos, notamos que essas narrativas, em sua maioria eram
republicações de outros jornais ou de livros, comuns na época.
Escritor português, Jaime de Seguier (1860-1932) foi colaborador de vários jornais e revistas portugueses; entre eles, o
Diário de Notícias, o Jornal da Noite e as revistas Pantheon e Domingo e publicou, em 1883, a coletânea de poesias Alegros e
Adágios.
117
253
No entanto, como mencionamos anteriormente, a maioria das publicações era de pequenos
contos, dezessete deles divulgados em apenas um fascículo, cujo enredo tratava do cotidiano da
burguesia portuguesa, narrava histórias comuns para o entretenimento dos leitores, como também era
notada a atenção à educação feminina com vertente pedagógica. Entre os autores mais frequentes estão
Maria Amália Vaz de Carvalho, seguido por Alberto Braga, Pinheiro Chagas, Eça de Queirós, Ramalho
Ortigão e mais XX que assinaram os textos portugueses veiculados n‘A Província.
A maioria dos textos foi publicada em apenas um fascículo e parte deles eram republicações de
livros ou jornais, como acontece nos contos de Alberto Braga já publicados no livro Contos d‘Aldeia
(1879), uma seleção de contos do autor.
Dentre as narrativas publicadas em série, destacamos Maria Amália Vaz de Carvalho, que
mesmo sendo a única mulher entre os portugueses a ocupar a seção folhetim, aparece com cinco
contos veiculados na folha. Seus textos são divulgados principalmente em 1880 quando a presença
portuguesa foi mais intensa. As outras narrativas são: O mandarim, de Eça de Queirós; A camisa do
noivado, de Rebello da Silva; Pastoral, de Bento Moreno – pseudônimo de Teixeira de Queirós; e o único
romance, Tristezas à beira-mar, de Manuel Pinheiro Chagas.
Os contos de Rebello da Silva e Teixeira de Queirós não mantinham qualquer semelhança com
a estrutura de matriz francesa; eles foram fatiados e adaptados ao espaço do folhetim. No caso do
conto de Rebello da Silva, era parte da coletânea de contos do livro Contos e Lendas, publicado em 1873.
A produção foi reproduzida do livro, pois o jornal assinalou, entre o título da seção e o título do conto,
o nome do livro. Por outro lado, Pastoral, de Teixeira de Queirós, publicado em 1893, na revista
Occidente, de Portugal, todavia, esse conto era parte do livro Arvoredo do autor.
Entretanto, diante das republicações verificamos que o jornal paraense também veiculava obras
anteriormente publicadas no folhetim português, essa relação direta está presente n‘A Província do Pará
com O Mandarim no período de 29 de agosto a 15 de setembro de 1880 em dez fascículos. A versão
divulgada em folhetim não é a mesma da publicada em livro, visto que o autor fez acréscimos da
publicação. Essa diferença pode se justificar pelo fato do conto de Eça ter sido publicado
primeiramente em folhetim no Diário de Portugal, no mesmo ano. A versão no formato livro, publicado
pela Livraria Internacional de Ernesto de Chardrom está datada em junho de 1880; no entanto,
verificamos que no período de 07 a 18 de julho do mesmo ano a obra foi publicada no Diário de Portugal
em onze folhetins. Porém, a versão divulgada n‘A Província difere da que foi publicada em livro, pois o
livro está acrescido de um prólogo e dividido em oito capítulos. Além disso, houve uma diminuição
significativa nos episódios como a carta escrita pelo general Camilloff em resposta a Theodoro e outros
cortes foram feitos ao longo da narrativa. O mesmo acontece com o conto Senhor Diabo, de Eça de
Queirós, cuja versão presente na folha paraense é menor que o conto publicado em livro, observa-se
254
que somente a metade da narrativa foi veiculada no jornal; no entanto, não é possível afirmar se esse
corte foi feito pelos editores do jornal paraense.
Como acontece com os outros contos, O Mandarim não tem estrutura folhetinesca, assim como
os cortes feitos no texto são os mesmos que aparecem no jornal português e não no ponto culminante
da narrativa, como característica do gênero folhetinesco. Há ainda n‘O Mandarim, de Eça de Queirós,
diferença na definição genérica do texto, pois, embora Massaud Moisés tenha elencado a obra entre os
principais romances de Eça118, verifica-se que o texto está classificado como conto no periódico. Esse
conto de Eça de Queirós é o único em que a classificação feita no jornal se difere da classificação atual,
visto que a maioria dos contos foi retirada, possivelmente, de livros.
Sendo Eça de Queirós um dos autores mais louvados no jornal paraense, embora tenha
somente duas obras publicadas, teve a divulgação de diversos livros seus divulgados na folha, entre os
quais Os Maias, que teve alguns fragmentos veiculados em 1885; embora a edição do livro só tenha
ocorrido em 1888. No entanto, em um espaço dominado por textos assinados por homens, destacamos
Maria Amália Vaz de Carvalho, uma autora portuguesa de grande expressão no cenário das letras, que
autora de diversos contos, escritos sobre educação e bons costumes e foi destaque entre as mulheres de
sua época. Maria Amália Vaz de Carvalho é a autora mais frequente na coluna folhetim, entre os
autores portugueses. Foram identificados seis contos durante a década de oitenta, mais precisamente
nos primeiros anos, quando a presença portuguesa foi intensa; cinco desses contos foram publicados
em dois fascículos, eram textos curtos que não ultrapassavam dois folhetins. Esses textos haviam sido
veiculados em outras fontes antes de serem publicados na folha paraense. As narrativas Em casa de
Madame X, A mulher do ministro, A estréia do delegado e Os remorsos do brasileiro, por exemplo, já haviam sido
veiculados no Jornal do Comércio, do Rio de Janeiro, alguns meses antes e A perceptora fazia parte da
coletânea de contos da autora publicados no livro Contos e Phantasias, de 1880, mesmo ano em que a
folha paraense ofertou o conto aos seus leitores.
Esses contos tinham um cunho pedagógico, de educação feminina. Maria Amália com tom
firme de quem tem destaque na sociedade defendia, em seu discurso, a igualdade de instrução das
mulheres em relação aos homens; por isso seus contos apresentavam de forma muito clara que a
mulher deveria estudar, pois uma mulher instruída estaria mais bem preparada para cuidar dos filhos e
gerir bem uma família, assim como servir a sociedade. Suas protagonistas eram figuras femininas;
podendo ser modelos a serem seguidos, como a Madame X que cuidava da família para que as filhas
fossem prendadas e os filhos bem criados de forma que servissem bem a sociedade. O cunho moral
Em O conto português, o autor elenca O mandarim entre os romances de Eça de Queirós. Segundo MOISÉS (2004, p. 94),
Eça ―cultivou o romance (Mistério da Estrada de Sintra, em colaboração com Ramalho Ortigão, 1871; O Primo Basílio, de 1878;
O Mandarim, de 1879...)‖. Todavia, é importante ressaltar que O Mandarim foi publicado pela primeira vez em 07 de julho de
1880, no Diário de Portugal.
118
255
também foi marcado em outros contos veiculados no periódico, quando mostravam que uma atitude
insana de uma mulher poderia destruir a família e consequentemente destruí-la.
A autora foi uma das poucas mulheres que ocupou as páginas do periódico paraense ao lado de
Guiomar Torrezão. Com textos dedicados ao público feminino da época, o jornal mantinha um de seus
princípios de educar e moralizar a sociedade paraense através dos escritos que, embora fossem
publicados para o entretenimento e lazer, mantinham o discurso pedagógico em nome da moral e da
família. As moças tinham, nessas prosas, exemplos a serem seguidos, os vícios a serem condenados, as
consequências das más escolhas; com a finalidade de educá-las para a vida na sociedade da época. Maria
Amália foi uma das vozes mais importantes da sociedade intelectual portuguesa; uma mulher que
escreveu sua história pela coragem e inteligência, uma mulher que viveu sua época em um momento em
que as mulheres tinham mais deveres que direitos e deixou seu legado às gerações posteriores.
Mesmo que tenha havido um domínio de contos publicados n‘A Província, o romance de
Manoel Pinheiro Chagas é o único que mantém todas as características do romance-folhetim e o único
romance português veiculado no jornal no período estudado. Tristezas à beira-mar foi publicado no jornal
durante a década de oitenta do século XIX, de 20 de julho a 02 de setembro de 1880, em 36 fascículos
no rodapé da segunda página do periódico. O romance inicia pelo primeiro capítulo, não apresenta a
dedicatória que contém na versão em livro. Ao compararmos as duas versões, observamos que não há
muitas diferenças, as que têm não modificam nem influenciam na narrativa.
Tristezas é um típico romance-folhetim; na dedicatória da versão livro o autor afirma que ―fala
da tristeza este romance, de saudades indefinidas, de vagas melancolias‖ (Chagas, 1973: 21). Essas
características expostas pelo autor definem bem a narrativa e a trajetória de Leonor, uma jovem
moradora de Ericeira, uma aldeia portuguesa. A simplicidade do ambiente familiar em que vive Leonor
se defronta com a realidade de sua irmã Madalena – uma lisboeta. Ambas foram separadas após o
falecimento da mãe e perderam o contato, pois o avô e a tia que as ampararam depois de órfãs eram
inimigos, o que acarretou em total afastamento. Leonor foi morar com o avô Bartolomeu Soares à
beira-mar de Ericeira e Madalena foi amparada por d. Úrsula, irmã de seu avô, em Lisboa. Ao se
encontrarem novamente, se apaixonam pelo mesmo homem – Jorge, e se separam mais uma vez,
restando na casa da beira-mar somente Leonor e o avô.
A solidão marca a vivência de Leonor e o avô. Se a casa era triste e melancólica antes de
Madalena ir morar em Ericeira, após sua partida, seguiu-se de características fúnebres. A tristeza tomou
conta de ambos, eram como ―dois cadáveres‖ naquela casa, mesmo quando saíam para o passeio, a
melancolia e a tristeza lhes acompanhavam. Com imensas agruras o avô morreu, aumentando a tristeza
e solidão de Leonor. Alguns anos depois Jorge também morreu em um vendaval e deixou Madalena
sozinha com uma filha cujo nome era Leonor, uma forma de Madalena ter Leonor sempre perto de si.
256
Após a morte de Jorge e Bartolomeu Soares o padre da aldeia aproxima novamente as irmãs. Leonor
perdoa Madalena e ambas passam a viver juntas.
Tristezas à beira-mar era uma republicação; narrativa está dividida em 19 capítulos e um epílogo e
a cada final de capítulo encerra em algum momento importante para a continuação do romance, ou
seja, o corte feito no auge, próprio do romance-folhetim, para incitar a curiosidade do leitor é bem
claro na versão em livro, no momento de divisão dos capítulos. Quando o romance é ―fatiado‖ para ser
publicado na coluna folhetim d‘A Província, esses cortes não são feitos no auge ou em momentos
culminantes da narrativa, mas o romance é acomodado no espaço do folhetim, isso quer dizer que
independente de estar no auge ou não o corte era feito para caber nas seis colunas da seção folhetim da
folha. Todavia, quando verificamos as divisões dos capítulos feitas na versão em livro observamos que
cada capítulo terminava sempre num ponto culminante e importante para a narrativa. Essa escrita
―mágica‖ a que denominava romance folhetim, segundo Yasmin Nadaf,
...deveria vir permeada de um enredo sensacionalista, pronto para despertar tanto o
interesse das camadas populares como a curiosidade dos antigos leitores das mais
abastadas. Tal enredo, elaborado em partes independentes escritas para serem
apresentadas em picadinho, teria que se adequar ainda aos intervalos cronológicos
entre o aparecimento das referidas partes, que totalizariam o conjunto, e a completa
dependência da receptividade do leitor ansioso pela sua continuação ou não, podendo,
inclusive a qualquer hora ser interrompido ou alterado.
As marcas do romance são a melancolia e a tristeza que eram sempre acompanhadas ou
antecipadas por uma tempestade. A chegada de Madalena na aldeia, o despertar dos sentimentos entre
Jorge e Madalena e a morte de Jorge foram marcadas por intensas tempestades como se fossem
presságios do que estava por vir. Essas tensões que marcam o romance são recorrentes no romancefolhetim, como uma forma de elevar o leitor ao máximo das emoções.
Outro elemento folhetinesco presente nas Tristezas é o chamamento ao leitor ou leitora. No
romance quando o narrador apresenta as características de Leonor:
Leonor ia assim, creada á lei da natureza; a sua educação physica, moral e intellectual
faziam-n'a as ondas e os fraguedos; o infinito do mar ensinou-lhe a ideia de Deus, os
relâmpagos mostraram-lhe essa palavra santa escripta em lettras de fogo nas nuvens da
procella; a sua intelligencia alli se desenvolveu sem cultivo, não tendo por mestre
senão a rude poesia d'esses selvagens ermos. Estou que as leitoras protestam contra
semelhante educação, e prevêem na heroina uma aldeã bronca e malcreada; não tentarei dissuadil-as
nem grangear, á custa da verdade, sympathias para Leonor. Tal ella era, assim a retrato
fielmente. (grifos nossos).
Em vários momentos há esse diálogo com o leitor a fim de buscar a atenção do leitor para que
este faça um melhor delineamento do perfil da heroína. Yasmin Nadaf explica que, devido ao leitor
sentir sua vida refletida literariamente no jornal, sentiu o direito de expressar seus interesses, ―dessa
interlocução resultou igualmente o caráter de familiaridade entre o autor-narrador e o receptor, que
passou a ser chamado de ‗caro leitor‘, ‗atencioso leitor‘ entre outras amáveis expressões depois
257
incorporadas ao romance tradicional‖. Outras vezes em que a atenção do leitor é chamada se dá
quando há necessidade de lembrá-lo de algum fato narrado antes.
De todas as narrativas publicadas na seção folhetim do jornal A Província do Pará, a única que
mantém a estrutura do folhetim é o romance de Pinheiro Chagas; embora os cortes no romance
tenham sido condicionados ao espaço da seção, independente se o corte era feito em pontos
importantes ou não.
Considerações finais
Ao longo da década de oitenta, verificamos que a presença portuguesa foi constante. Ao lado de
autores consagrados como Eça de Queirós, outros nomes atualmente não tão apreciados tiveram suas
narrativas veiculadas no periódico. Nesse período, quando o folhetim já tinha conhecido seu auge, os
textos com autoria portuguesa se limitava a contos, textos breves publicados em um capítulo. Essa
relação com Portugal mostra que a província do Grão-Pará estava atualizada ao que acontecia no
mundo. Além disso, verificamos que as leituras feitas no Pará eram bem diversificadas, embora as
narrativas francesas e portuguesas tenham sido hegemônicas. Esse aspecto é interessante para
identificar as influências na literatura brasileira.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
CHAGAS, Manoel Pinheiro. Tristezas à beira-mar. Rio de Janeiro: Editora Três, 1973.
MEYER, Marlyse. Folhetim: uma história. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.
MOISÉS, Massaud. A Criação Literária: prosa I. 10ª Ed. São Paulo: Cultrix, 1978.
_______________. O Conto Português. 5ª Ed. Revista. São Paulo: Cultrix, 1999.
MONTEIRO, Benecdito. História do Pará. Amazônia, 2005.
NADAF, Yasmin Jamil. Rodapé das miscelâneas: o folhetim nos jornais de Mato Grosso (séculos
XIX e XX). Rio de Janeiro: 7Letras, 2002.
SERRA, Tânia Rebelo Costa. Antologia do romance de folhetim (1839 a 1870). Brasília: Ed. UNB,
1997.
TINHORÃO, José Ramos. Os romances em folhetim no Brasil: 1830 a atualidade. São Paulo: Duas
Cidades, 1994.
258
ESTILOMETRIA INFORMÁTICA: ESTILO LITERÁRIO A PARTIR DO USO DO ARTIGO
DEFINIDO “THE”
Shisleny Machado Lopes119
Prof. Dr. Saulo da Cunha de Serpa Brandão (Orientador)120
Resumo:A análise estilométrica é uma área da estilística que explora técnicas estatísticas do estilo de textos e de
autores. Dessa forma, o uso da estilometria nos leva a questionar sobre o estilo de um determinado autor, que
pode ser compreendido como uma escolha (in)consciente de afastamento à norma. A análise estilométrica,
diferente da tradicional leitura qualitativa, é baseada em dados estatísticos observados nos corpus em estudo que
podem ser utilizados de várias formas, desde a estilística até a atribuição de autoria. Baseada no arcabouço teórico
de Monteiro, 2005, este trabalho consiste em analisar e cotejar a capacidade expressiva do artigo ―The‖ a partir de
um amplo levantamento lexicométrico de textos de seis norte-americanos, dois do século XIX (Edgar Allan Poe e
Stephen Crane) e quatro do século XX (Joseph Heller, Thomas Pynchon, Saul Bellow e William Gibson), além de
apontar um caminho estilístico adotado pelos autores que destoem dos demais. Atualmente, pode-se encontrar
alguns programas que foram criados especialmente para supracitada análise, dentre eles o Lexico3, que é utilizado
nesta pesquisa. Depois de gerados os dados estatísticos dos corpora, verificou-se as singularidades no uso do
artigo e proveu-se justificativas estilísticas para as discrepâncias encontradas. Com esse estudo, concluímos que o
uso do artigo não é um fator meramente sintático e que ele acarreta valores semânticos relevantes dentro de uma
obra.
Palavras-chave:Estilometria; Artigo definido ―the‖; Software Lexico3.
Abstract: The stylometric analysis is an area of stylistic techniques that explores statistical style of texts and
authors. Thus, the use of stylometry leads us to question the style of a particular author, which can be
understood as a (un)conscious choice of withdrawal from the norm. The stylometric analysis, unlike traditional
qualitative reading, is based on statistical study observed in the corpus which can be used in various forms, since
the stylistic to the assignment of authorship. Based on the theoretical framework of Monteiro, 2005, this work
consists of analyzing and collating the expressive capability of the article "the" from a broad lexicalmetric survey
of texts by six Americans, two from the nineteenth century (Edgar Allan Poe and Stephen Crane) and four from
the twentieth century (Joseph Heller, Thomas Pynchon, Saul Bellow and William Gibson), while pointing out a
stylistic path adopted by the authors that detract from the other. Currently, one can find some programs that
were created especially for the above analysis, including Lexico3, which is used in this research. Once statistical
data corpora were generated, we found the singularities in the use of the article and provided justifications for
stylistic discrepancies found. With this study, we conclude that the use of the article is not a merely syntactic
factor and that it carries relevant semantic values within a work.
Keywords: Stylometry; Definite article "the"; Lexico3 Software.
119Graduanda
em Letras/Inglês da Universidade Federal do Piauí (UFPI). Bolsista CNPq. E-mail:
[email protected]
120 Professor Drº do Departamento de Letras (DL) da Universidade Federal do Piauí (UFPI). E-mail:
[email protected]
259
Introdução
O presente estudo é, de certa forma, uma continuação de Lopes (2012). Este consiste em analisar e
cotejar a capacidade expressiva do artigo the em seis obras literárias, duas de autores do século XIX e quatro de
autores do século XX.
Na pesquisa anterior realizamos uma análise lexicométrica dos corporaprovenientes de dois autores
contemporâneos norte-americanos, contudo durante a realização do trabalho observamos uma variação oscilante
na frequência do artigo the, que em um dos corpora aparecia com muita frequênciae no outro a frequência era
parca. Esse inusitado e curioso resultado nos levou a desenvolver esta pesquisa, agora estilométrica.
A análise estilométrica é, conforme Monteiro (1991), uma área da estilística que estuda técnicas
matemáticas avaliativas do estilo de textos e de autores. Dessa forma, o uso da estilometria é significante por
responder a questionamentos sobre o estilo de um determinado autor, que pode ser compreendido em função de
dois processos: ou como um conjunto de escolhas ou como um afastamento à norma. A análise estilométrica,
diferente da tradicional leitura qualitativa, é baseada em dados estatísticos retirados do corpus em estudo que podem
ser utilizados de várias formas, desde a estilística até a atribuição de autoria.
Com o avanço tecnológico, já podemos encontrar alguns programas que foram criados especialmente
para esse fim, dentre eles o Léxico3121, visto em Brandão (2006). Segundo o autor, faz-se necessário, antes da
utilização do software, um trabalho de preparação, seleção, revisão e balizamento122 do corpus. O programa
disponibiliza ferramentas que realizam de forma precisa a contagem de palavras, a elaboração de gráficos e o
fornecimento de dados para que o pesquisador possa analisar, por exemplo, a riqueza vocabular, dentre outras
funções. Com esse software de computador ganhamos agilidade na execução das atividades propostas pela
pesquisa, visto que, se estetrabalho fosse realizado manualmente, demandaria muito mais tempo e poderia estar
mais passível a erros.
Depois de gerados os dados estatísticos dos corpora, verificamos as singularidades no uso do artigo
e provemos justificativas estilísticas para as discrepâncias encontradas.
Metodologia
Para alcançarmos os objetivos deste estudo, escolhemos, de modo aleatório, obras que correspondem a
121
Programa de computador de uso livre na Universidade de Sorbonne, França. Ferramenta de Estatística Textual.
balizamento consiste na sinalização e identificação do corpus trabalhado para que desta forma possa ser submetido ao
programa e preparado para a análise e interpretação de dados.
122O
260
dois autores do século XIX (Edgar Allan Poe e Stephen Crane) e quatro do século XX (Joseph Heller, Thomas
Pynchon, Saul Bellow e William Gibson).
Como mencionado acima, para realizar o estudo estilométrico dos mesmos utilizamos o Lexico3, um
software desenvolvido na Université de la Sorbonne Nouvelle - Paris 3, pela equipe CLA2T (Cédric Lamalle, William
Martinez, André Salem e Serge Fleury), que fornece dados precisos e eficazes para o tipo de análise explorado
nesse estudo (BRANDÃO, 2006). Este é um programa de aplicação lexicométrica e de utilização não muito
complexa que abre um leque de possibilidades para investigação do corpus. Segundo BRANDÃO, 2006:
Ele nos permite de forma ágil balizar livremente o texto a ser analisado,
determinando como dividir o texto, fazer contagem das vezes que uma determinada
palavra ocorre dentro de um balizamento, determinar o tamanho e fazer o
levantamento das ocorrências de um segmento repetido a ser pesquisado, indicar a
distribuição das palavras dentro do texto, expor as concordâncias que ocorreram com
uma palavra, elaborar gráficos indicando as frequências relativas e absoluta da
aparição de uma palavra em uma determinada baliza, etc.
O processo para a utilização do software Lexico3 neste trabalho deu-se da seguinte forma:
primeiramente digitalizamos e transformamos para o Word uma amostra de 3000 palavras de cada um dos seis
textos de seis autores diferentes contemporâneos que são eles: Thomas Pynchon - The Crying of Lot 49 (O leilão
do Lote 49), Saul Bellow - Mr. Sammler's Planet (Planeta do Sr. Sammler), Stephen Crane
- The Red Badge of Courage (A Insignia Vermelha da Coragem), Joseph Heller - Catch-22, William Gibson Spook country e Edgar Allan Poe - The Duc de l'Omlette.
Em seguida, realizamos o balizamento123 para que o programa pudesse reconhecer os textos para que
fosse possível que ele fornecesse os dados lexicométricos. Em face dessa complexa abordagem, outro tipo de
ordenamento que se fez necessário diz respeito aos tipos de análises que seriam adotadas em nosso trabalho,
nesse caso, elegemos a análise quantitativa que nos possibilitou identificar e diferenciar o emprego do artigo the
entre os corpora de 3000 palavras dos seis autores escolhidos.
O emprego do artigo em um texto literário é sem dúvida umas das formas mais significativas a ser
analisada, pois sua presença, reiteração ou ausência acarretam efeitos-estilísticos semânticos dos mais variados, o
que nos levará a tecer e fixar diretrizes relevantes acerca do estilo de cada autor em estudo.
Pode-se dizer que a presença do artigo, pelo simples fato de indicar a existência dos seres, é índice de
intelectualização; a omissão, ao contrário, apontando para essência dos objetos revela o predomínio da
emotividade, (MONTEIRO, 1991). Contudo, estas regras devem ser vistas com bastante cautela porque
para classificarmos o artigo em duas categorias (afetividade e gramaticalidade) é preciso fazer uma análise de
123
O balizamento consiste em: I - Abrir e revisar o corpus no Word, II - Modificar todas as letras maiúsculas formato txt,
que é o formato reconhecido pelo programa, para que desta forma pudessem ser obtidos dados necessários ao
desenvolvimento da pesquisa.
261
cada enunciado da amostra sem que haja esquecimento, confusão ou imprecisão durante esse processo e é
tomando esse cuidado que optamos por utilizar um programa para essa finalidade.
Como supracitado, o artigo é usado na língua inglesa a partir de determinadas regras assim como em
português, porém Monteiro (2005) afirma que a ausência e a presença do mesmo acarretam consequências
estilísticas semânticas tanto afetivas como puramente gramaticais. Foi a partir desse pressuposto que utilizamos
a ferramenta Lexico3 para identificar e analisar cada um dos enunciados dos seis corpora de 3000 palavras onde o
artigo the estava presente. Como pode ser observado na ilustração abaixo:
O critério utilizado para análise de cada enunciado foi a função sintática e semântica ocupada pelo
artigo the. Como pode ser visto na figura acima o objeto de estudo foi destacado pelo programa em todos
os corpora para que possamos visualizar e sem margem de erro identificar todos os artigos presentes na
amostra.
262
Fundamentação teórica
Nas palavras de Monteiro (2005):
A pesquisa estilística tem desafiado a argúcia e sensibilidade de muitos estudiosos
que, refletindo sobre o fenômeno da linguagem, percebem que certos usos
lingüísticos, mais do que simplesmente destinados a pura informação, se
caracterizam por uma intenção expressiva, carregando-se de valores afetivos e
evocatórios. (p.9)
Como nos diz o autor, além da complexidade das intenções do autor, é certo que nem todos os usos
linguísticos devem possuir uma explicação de ordem estilística, pois existem aqueles que são devidos a desvios
como lapsos de memória, cansaço ou deficiências na habilidade de redigir. Entretanto, aqueles que apresentam
um desejo de superar as limitações da norma merecem ser objetos de análise, especialmente quando é adotado um
critério que privilegie a noção de contexto, a fim de não se equiparar a um puro impressionismo.
Com efeito, se o contexto ou situação discursiva permite e até força a manifestação de um desvio,
certos elementos geradores de associações conotativas se instauram numa atmosfera afetiva que não pode ser
simplesmente ignorada (MONTEIRO, 2005). Descobrir e interpretar esses traços, que ocorrem em todos os
níveis da linguagem, bem como identificar os mecanismos que propiciam a escolha de uma forma em vez de
outras disponíveis no corpus em análise, são os objetivos básicos da estilometria.
Análise e discussão dos dados
A análise deu-se da seguinte forma: primeiramente identificou-se a função sintática do artigo dentro
do enunciado em análise como no exemplo abaixo, trecho retirado da amostra do livro O leilão do lote 49,
de Thomas Pynchon: "Oedipa stood in the living room, stared at by the greenish dead eye of the tv tube, spoke the name
of god, tried to feel as drunk as possible". (Oedipa ficou na sala, olhou pelo olho esverdeado morto do tubo de
televisão, falou o nome de Deus, tentou sentir-se tão bêbado quanto possível.Tradução nossa).
O artigo ocupa nos três primeiros casos a função sintática de auxiliar para formação da preposição
necessária para ocorrência da concordância nominal (in + the: Para designar algo dentro de um determinado
espaço; não necessariamente um espaço físico, by + the: para indicar o canal utilizado e of + the preposicionar
algo). Já no último caso ele exerce a função de identificar o substantivo único em sua espécie que é Deus. É
certo que todo artigo utilizado no exemplo exerce uma função sintática, porém, segundo Monteiro (2005), nem
todos enfatizam o caráter puramente qualitativo com o qual os seres ou objetos são nomeados, não procurando
defini-los, mas apenas aludindo à parte que ocupam na escala com que nosso intelecto e nossa afetividade
ordenam no mundo exterior. O último artigo do enunciado exemplificado acima, por exemplo, por anteceder o
nome de Deus, nome cautelosamente evocado na sociedade, sugere certo intimismo e familiaridade, o que lhe
263
confere valores afetivos.
Vejamos outro exemplo retirado do livro Mr. Sammler's Planet (Planeta do Sr. Sammler) de Saul: "Shortly
after dawn, or what would have been dawn in a normal sky, mr. Artur Sammler with his bushy eye took in the books and papers of
his west side bedroom and suspected strongly that they were the wrong books, the wrong papers".(Pouco depois do amanhecer,
ou o que teria sido o amanhecer em um céu normal, Sr. Artur Sammler com seu olho observou os livros e
papéis do lado oeste de seu quarto e suspeitou fortemente que eles eram os livros errados, os papéis
errados.Tradução nossa).
Neste caso o primeiro uso do artigo é devido a ele anteceder um substantivo que é acompanhado de um
adjetivo, de uma frase ou de uma oração que o torna único. Mas nas duas últimas ocorrências observa-se que eles
antecedem substantivos já mencionados ou identificados, no momento, por quem fala. Porém, diferentemente
da primeira presença do mesmo, as últimas ocorrências do artigo na sentença buscam intensificar o mesmo
adjetivo que ambos os substantivos possuem através da reiteração do artigo e do adjetivo, expressando assim
valores sentimentais, uma vez que os nomes passam a designar sobretudo as qualidades dos objetos.
Após esse minucioso e lento procedimento alcançamos interessantes resultados. Abaixo estão os
gráficos com os cômputos das frequências do artigo the em cada texto que foi analisado e dividido em duas
categorias, afetividade e gramaticalidade.
Resultados das amostras pertencentes ao século XIX:
Afetividade
Gramaticalidade
264
Resultados das amostras pertencentes ao século XX:
Afetividade
Gramaticalidade
O que pode ser observado além de todos apresentarem um índice percentual de gramaticalização maior
do que a afetividade é que nos corpora de The Red Badge of Courage (A Insígnia Vermelha da Coragem) de
Stephen Crane e de The Duc de l'Omlette de Edgar Allan Poe, autores pertencentes ao século XIX, a indicação da
afetividade pelo uso do artigo the é maior na amostra do livro de Edgar do que no livro de Stephen apesar de o
primeiro ser um conto humorístico valendo-se do recurso de pôr em cena o diabo, não um diabo
impressionante, apavorante, mas um diabo meio ridículo, um diabo de teatro cômico cuja famigerada sutileza
deixa muito a desejar, um diabo que gosta mais de fazer galhofarias de mau-gosto do que de pôr almas a perder. E
o segundo ser um romance conhecido por seu estilo distinto, que inclui sequências de batalha realistas, bem como
o uso repetido de imagens de cor e tom irônico. Separando-se de uma narrativa de guerra tradicional, a história
do autor aborda temas como: heroísmo, maturação, a covardia e a indiferença da natureza.
Entre os autores do século XX, os corpora de The Crying of Lot 49 (O leilão do Lote 49) de Thomas
Pynchon e de Spook country de William Gibson evidenciaram semelhanças no percentual de gramaticalização e
acreditamos que essa semelhança se deve ao conteúdo complexo que ambos os textos abordam mostrando-se
voltados para um público específico de leitores.
Retratando uma sociedade fragmentada dramaticamente O leilão do lote 49 contém um difuso sentimento
de caos cultural, na verdade, o livro baseia-se em todas as áreas da cultura e da sociedade. No final, a protagonista
do romance, Oedipa Maas, encontra-se sozinha e alienada na sociedade, tendo perdido o contato com a vida que
ela costumava levar antes que ela começasse sua tentativa de desvendar o mistério do Tristero. A linguagem é o
265
meio pelo qual a história é comunicada, e Pynchon optou por utilizar uma linguagem cheia de piadas, trocadilhos e
sátiras. A ciência parece estar em oposição ao caos da linguagem que todos manipulam e é ordenada, coerente e
oferece um corpo de conhecimento definido que todos possam estudar. E, no entanto, mesmo a coerência da
ciência é posta em causa, a existência de Demônio de Maxwell e a figura do Dr. Hilário. Mais do que qualquer
outra coisa, O leilão do lote 49 parece ser o caos cultural e de comunicação visto através dos olhos de uma jovem
que se encontra em um mundo alucinógeno desintegrando ao seu redor. Já o livro Spook Country de Gibson
explora temas relacionados com espionagem, a arte da guerra especulação e esotérico marcial, bem como temas
familiares de romances anteriores do autor, como os usos inesperados para os quais a tecnologia é empregada
(por exemplo, arte locativa) e da natureza da celebridade. Através de seu tratamento de tecnologia locativo, o
romance revisita noções de realidade virtual e do ciberespaço.
No entanto a corpora de Mr. Sammler's Planet (Planeta do Sr. Sammler) de Saul Bellow apresentou o
percentual de gramaticalização semelhante a corpora de Catch-22 de Joseph Heller.
Rotulado por muitos que já o leram e críticos, o romance de Bellow é visto como uma resposta ao
Holocausto ele gira em torno dos conflitos de Sammler entre intelecto e intuição, entre agir no mundo e ficar de
lado para observá-lo. Mas que no final da novela, Sammler encontra um equilíbrio. Muito semelhante a este
último, Catch-22 é um romance satírico e histórico que analisa as experiências de Yossarian e os outros aviadores
no campo, e as suas tentativas de manter a sanidade, a fim de cumprir os requisitos de seus serviços, para que
eles possam voltar para casa. O romance aborda também conflitos como Sanidade e insanidade, distorção da
justiça, entre outros.
Considerações Finais
Concluímos que o uso do artigo não é um fator meramente sintático e que ele acarreta valores
semânticos relevantes dentro de uma obra. Mais do que um simples determinante dentro da estrutura sintática
de uma frase provamos que o artigo the por ser a forma com maior ocorrência em todas as seis corpora
analisadas pode previamente determinar que tipos de leitores o texto melhor se adequa através de um trabalho
minucioso em relação à identificação do valor afetivo agregado a cada uma das ocorrências encontradas.
As amostras que apresentaram um número maior no percentual de afetividade ao empregar o artigo the
como: Mr. Sammler's Planet (Planeta do Sr. Sammler) de Saul
Bellow e The Duc de l'Omlette de Edgar Allan Poe, são os que melhor se mostraram adequados a leitores
que buscam familiaridade com o que leem. Já os que evidenciaram menor percentual no índice de afetividade
como: The Crying of Lot 49 (O leilão do Lote 49) de Thomas Pynchon e de Spook Country de William Gibson, são
os que melhor se mostraram adequados a leitores intelectuais e assíduos ao ambiente de leitura.
266
REFERÊNCIAS:
BRANDÃO, S. C. de S.Atribuição de autoria: um problema antigo, novas ferramentas. Texto Digital, Florianópolis, ano 2, n.
1, Julho 2006. Disponível em: <www.textodigital.ufsc.br>. Acesso em: Setembro de 2011.
LOPES, Shisleny Machado. Estilometria Caracteristica Pos-Moderna da Obra de Thomas Pynchon. ANAIS do
III Congresso Internacional da ABRAPUI. Santa Catarina, Florianópolis. 2012. Disponível em:
<http://www.abrapui.org/anais/PosteresLiteratura/1.pdf>. Acesso em: Maio de 2012.
MONTEIRO, José Lemos.A Estilística. São Paulo: Ed. Ática. 1991.
MONTEIRO, José Lemos.A Estilística manual de análise e criação do estilo literário. Petrópolis, Rj: Vozes, 2005.
267
268
A RELAÇÃO ENTRE CORPO E PODER EM “A ESTÓRIA DE LÉLIO E
LINA”, DE GUIMARÃES ROSA
Wellington Diogo Leite Rocha124
Prof. Dr. Sílvio Augusto de Oliveira Holanda (Orientador) 125
Resumo: Considerando que na cultura patriarcal a ―voz‖ da mulher é, de certa maneira, apagada, este estudo
pretende mostrar, na narrativa de Guimarães Rosa, a voz das personagens femininas, que configuram uma
espécie de desarticulação quanto ao patriarcado. Centrando a análise em Jini e nas ―tias‖ Conceição e Tomázia,
retrataremos o poder simbólico exercido por essas mulheres, que não mais se submetem ao mando masculino e
executam a ação em ―A estória de Lélio e Lina‖. Dessa maneira, o autor pretende dar visibilidade às mulheres
excluídas do discurso histórico oficial presente no ambiente sertanejo, alterando a representação comum deste
espaço. Segundo Deise Lima, em Encenações do Brasil Rural em Guimarães Rosa (2001), há, na trama rosiana, o
espaço de uma fazenda de pecuária do Pinhém, em que o cotidiano se movimenta por meio de uma dialética
entre os desejos e frustrações dos vaqueiros, que acabam por buscar na casa das tias, e, no caso de Lélio, também
em Jini, uma forma de se evadirem dos seus conflitos e decepções. Valendo-se da sensualidade, as ―tias‖ alteram
a hierarquia comum do sertão e passam a exercer um poder simbólico, materializado em seus corpos, que
aparece na narrativa com o intento de criticar o modelo patriarcal, sem dissolvê-lo por completo, porque a casa
de prostituição foi criada, e, supostamente, mantida por Seo Senclér, dono da fazenda, o qual pretende preservar
as moças casadoiras. Auxiliado pelos estudos de Foucault (1926-1984) sobre o poder, e baseado na Estética da
recepção de Hans Robert Jauss (1921-1997), cuja reflexão atribui ao leitor o papel de destinatário a quem a obra
literária deve visar, o seguinte texto pretende discutir a multiplicidade de funções desempenhadas pelas mulheres
no sertão e os valores patriarcais presentes na obra.
Palavras-chave: Mulher; Recepção; Guimarães Rosa.
THE RELATIONSHIP BETWEEN BODY AND POWER IN “A ESTÓRIA
DE LÉLIO E LINA” OF GUIMARÃES ROSA
Abstract: Whereas in patriarchal culture ―voice‖ of women is, in a way, erased, this study aims to show, in the
narrative of Guimarães Rosa, the voice of the female characters which constitute a kind of dislocation as the
patriarchy. Focusing the analysis on Jini and the ―aunts‖ for example Conceição and Tomázia that they portray
the symbolic power exercised and they no longer submit to send male and execute the action in ―A estória de
Lélio e Lina‖. Thus, the author intends to give visibility to women excluded from official historical discourse
present in the backcountry environment, changing the common representation of this space. According Deise
Lima in Encenações do Brasil Rural em Guimarães Rosa (2001), there is, in Rosa‘s plot, the space of a cattle ranch in
Pinhém, where the daily moves through a dialectic between the desires and frustrations cowboys that end up
searching the house aunts, and in the case of Lélio, also in Jini, a way to evade their conflicts and
124
Graduando em Letras (Habilitação em língua portuguesa) pela Universidade Federal do Pará (UFPA). Voluntário de
iniciação científica. E-mail: [email protected]
125 Professor do Programa de Pós Graduação em Letras da Universidade Federal do Pará (UFPA).
E-mail: [email protected]
269
disappointments. Availing himself of sensuality, the ―aunts‖ alter the common hierarchy of the interior and come
to exercise symbolic power, embodied in their bodies, which appears in the narrative with the intent to criticize
the patriarchal model, without dissolving it altogether, because the brothel was created, and supposedly
maintained by Seo Senclér, owner of the farm, which aims to preserve the marriageable girls. Aided by the
studies of Foucault (1926-1984) on the power, and based Aesthetic Reception of Hans Robert Jauss (1921-1997),
whose reflection gives the reader the role of recipient to whom the literary work should aim, the following text
discusses the multiple roles played by women in the hinterland, and patriarchal values in the present work.
Keywords: Women; Reception; Guimarães Rosa.
Introdução
Segundo Roberto Machado (2012), não encontramos em Foucault uma teoria geral do poder. Ele afirma
que o poder não é algo natural e unitário, mas uma prática social, constituída historicamente. O mecanismo do
poder não é exclusividade do Estado, podendo ser exercido e articulado com poderes locais, específicos,
circunscritos a uma pequena área de ação. É o que acontece no Pinhém onde o poder se encontra centralizado
nas mãos de Seo Senclér, mas também é exercido em instâncias menores como no caso das ―tias‖ Conceição e
Tomázia, que se valem de um discurso e valores patriarcais a fim de manter a ordem e disciplinar os vaqueiros.
As variadas formas de poder que são vinculadas ao Estado são indispensáveis para a sua sustentação e atuação
eficaz.
A análise de Foucault acerca do poder visa a dar conta das mudanças de regime político, desde os níveis
mais gerais para os mais específicos em que, investindo em instituições, tomam corpo técnicas de dominação.
Poder esse que intervém materialmente, atingindo a realidade mais concreta dos
indivíduos — o seu corpo — e que se situa no nível do próprio corpo social, e não
acima dele, penetrando na vida cotidiana, e por isso pode ser caracterizado como
micropoder ou subpoder. O que Foucault chamou ―microfísica do poder‖ significa
tanto um deslocamento do espaço da análise quanto do nível que esta se efetua. Dois
aspectos intimamente ligados, à medida que a consideração do poder em suas
extremidades, a atenção a suas formas locais, a seus últimos lineamentos tem como
correlato a investigação dos procedimentos técnicos de poder que realizam um
controle detalhado, minucioso do corpo — gestos, atitudes, comportamentos, hábitos,
discursos (MACHADO, 2012, p.14).
Para Machado (2012), o Estado não é o ponto de partida da origem de todo o tipo de poder social, mas
as relações de poder muitas vezes se instituíram fora dele. Essas relações foram essenciais ―para situar a
genealogia dos saberes modernos, que, com tecnologias próprias e relativamente autônomas, foram utilizadas e
transformadas pelas formas mais gerais de dominação do aparelho de Estado‖ (MACHADO, 2012, p.17).
270
De acordo com Machado (2012), rigorosamente, o poder não existe, o que existe são manifestações de
poder nos seus mais diferentes níveis. O poder é algo que se exerce, funciona e se efetua. Talvez essa tenha sido
a grande dificuldade de Foucault para conseguir chegar a uma definição acerca dos estudos sobre o poder.
Em A ordem do discurso, de Michel Foucault (2011), temos uma hipótese sobre um discurso que tem uma
natureza situada na ordem das leis, e se ele exerce algum poder é porque ―advém de nós‖
126.
A construção
discursiva é algo que assim como o poder passa por diferentes estágios de formulação. E a produção do discurso
―é ao mesmo tempo controlada, selecionada, organizada e redistribuída por certo número de procedimentos que
têm por função conjurar seus poderes e perigos, dominar seu acontecimento aleatório, esquivar sua pesada e
temível materialidade‖ (FOUCAULT, 2011, p. 8-9).
O discurso pode manifestar o desejo e o poder e por isso está longe de ser um elemento transparente ou
neutro no qual a sexualidade se desarma e a política se pacifica. Em A estória de Lélio e Lina temos a figura de Jini.
Ela é vista como um objeto que teve diferentes proprietários e é cobiçada como uma espécie de tesouro, mas no
decorrer da estória vai ganhando autonomia e se ―emancipa‖. Após ser abandonada por Tomé decide se
prostituir. Nesse movimento a mulata sai da condição de simples mercadoria do jugo patriarcal e passa para uma
realidade diferente, a vida capitalista urbana, que se constitui numa relação simbólica do avanço capitalista no
espaço sertanejo.
Por mais que o discurso seja aparentemente bem pouca coisa, as interdições que o
atingem revelam logo, rapidamente, sua ligação com o desejo e com o poder. Nisto
não há nada de espantoso, visto que o discurso ─ como a psicanálise nos mostrou ─
─ que é o objeto do desejo; e visto que ─ isto a história não cessa de nos ensinar ─ o
discurso não é simplesmente aquilo que traduz as lutas ou os sistemas de dominação,
mas aquilo por que, pelo que se luta, o poder do qual nos queremos apoderar
(FOUCAULT, 2011, p. 10).
As relações corpo vs. poder
Para Foucault (2012), o fantasma corporal no nível das diferentes instituições existe com a ideia de um
corpo social constituído pela universalidade das vontades. Em outras palavras podemos afirmar que o consenso é
que faz nascer o corpo social, mas com a materialidade do poder se exercendo sobre o próprio corpo dos
indivíduos. Na narrativa A estória de Lélio e Lina, de Guimarães Rosa (1956), existe uma quebra do horizonte de
expectativa do leitor ao se deparar com duas personagens femininas, as tias, exercendo esse controle sobre o
corpo dos indivíduos. A quebra do horizonte de expectativa127 acontece efetivamente pelo fato da estória se
passar num espaço e num determinado momento em que a cultura patriarcal não permite essa abertura para a
figura da mulher, que, segundo Deise Lima (2001), tem a sua ―voz‖ apagada do discurso histórico oficial.
126
127
FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso, 2011, p. 7
JAUSS, Hans Robert. A história da literatura como provocação à teoria literária. Trad. Sérgio Tellaroli. São Paulo: Ática, 1994.
271
No Pinhém as tias são utilizadas como um mecanismo para manter a ordem por meio de uma casa de
prostituição em que os serviços são prestados apenas aos domingos. Dessa maneira Seo Senclér faz com que os
vaqueiros trabalhem bastante durante a semana para se darem ao desfrute do prazer com as tias posteriormente.
Alguns conseguiam ir escondidos às vezes, mas não era algo tão comum. Além de manter os vaqueiros
motivados pelo trabalho com a recompensa do prazer dos domingos, Seo Senclér com a casa de prostituição
acaba por preservar as moças casadoiras, ou seja, aquelas em idade de casar.
Segundo Borges e Rocha (2010), Seo Senclér a partir desse movimento acaba por mostrar um poder de
natureza coronelista, a despeito no abrandamento do trato, já que ao permitir que as tias se privassem da
companhia das demais mulheres da fazenda soa como um privilégio concedido. Esse privilégio é concedido pelo
fato de elas renderem supostamente um lucro bem maior do que o investimento feito nelas.
Um trecho que comprova o poder e o respeito adquirido pelas tias Conceição e Tomázia é o seguinte:
O Placidino se esticou em pé, fazendo menção olhada de ir entrar junto com ela. Mas,
com um não de dedo, ela mandou que êle esperasse a vez. ─ ―Paciência, meu filho.
Agora ainda é outro ...‖ E olhou para Lélio, com denguice, mas também com tanto
damêjo de soberania, que parecia estar esperando ser tirada para uma dansa em sala. E
Lélio foi (ROSA, 1956, v 1, p. 301).
Apesar do discurso das personagens femininas não aparecer com tanta frequência de maneira direta, é o
conjunto de vozes, tanto masculinas quanto femininas, que fazem ecoar essa relação de respeito e controle.
Segundo Borges e Rocha (2010), as tias se valem da sensualidade materializada em seus corpos para exercer uma
espécie de poder simbólico. Esse poder é simbólico na medida em que ele é ambíguo porque no Pinhém quem
exerce o poder de fato é Seo Senclér, as tias são apenas uma ramificação desse poder. Mesmo com Guimarães
Rosa fazendo esse movimento de desarticulação do patriarcado não se pode esquecer que naquela sociedade a
mulher era uma figura deixada à margem.
Segundo Foucault (2012), nas relações de poder, acabamos por nos deparar com fenômenos complexos
que não obedecem à forma hegeliana da dialética128. O domínio e a consciência do próprio corpo só puderam ser
adquiridos a partir do efeito dos investimentos do corpo pelo poder: os exercícios, exaltação do belo corpo e etc.
Tudo isso conduz ao desejo do próprio corpo por meio de um trabalho insistente que foi construído
culturalmente, passando por sociedades em que o poder se exerceu sobre o corpo das crianças, dos soldados e
sobre o corpo sadio. Mas,
a partir do momento em que o poder produziu esse efeito, como consequência direta
de suas conquistas, emerge inevitavelmente a reinvindicação de seu do corpo contra o
poder, da saúde contra a economia, do prazer contra as normas morais da sexualidade,
do casamento, do pudor. E, assim, o que tornava forte o poder passa a ser aquilo por
que ele é atacado... O poder penetrou no corpo, encontra-se exposto no próprio
corpo... Lembrem-se do pânico das instituições do corpo social (médicos, políticos)
128
Cf. FOUCAULT, 2012, p. 235.
272
com a ideia da união livre ou do aborto... Na realidade, a impressão de que o poder
vacila é falsa, porque ele pode recuar, se deslocar, investir em outros lugares... e a
batalha continua (FOUCAULT, 2012, p. 235).
Retomando o caso da mulata Jini, explicaremos a partir desse momento como ela adquire o seu próprio
poder a partir da mudança de relações exercida pelo seu corpo. Jini foi comprada por Seo Senclér, mas dona
Rute, esposa do fazendeiro, ao saber de tudo briga com o marido e ameaça sair de casa. O marido então faz do
Bereba o falso companheiro da mulata que em troca recebe uma casinha:
Mandou até Jini em cidade, viagem tão longe, para tratar dos dentes. Por desculpa,
quando ela voltou, a pôs morando de mentira com o Bereba, que é um pobre coitado
fazedor de alpercatas, e deu ao Bereba uma casinha nova, com muita comodidade.
Tolice ter feito tanta despesa, pois não dilatou para dona Rute ficar sabendo disso
(ROSA, 1956, v 1, p. 275-276).
Depois Jini passa a viver amasiada com Tomé: ―─ O Tomé. Ora vive com uma mulata escura, mas
recortada fino de cara, e corpo bem feito, acinturado, que é uma beleza sensível, mesmo‖ (ROSA, 1956, v1, p.
264).
Segundo Borges e Rocha (2010), toda vez que a mulata aparece na narrativa ela é descrita com novos
atributos e qualidades ―A Jini tão desconhecida, inventada, estranha côr de violeta, os olhos aviando verdes, o
corpo enxuto, o avanço dos seios, os finos tornozelos, as pernas de bom cavalo‖ (ROSA, 1956, v 1, p.325).
Durante uma viagem de Tomé, Jini e Lélio passam a se encontrar. Lélio se apaixona pela mulata, e
movido pelo desejo não resiste às tensões da carne.
No lusco, a Jini estava de branco, sentada na beira da laje; ficou em pé feito fogo.
Nem êle pôde abrir nem ouvir palavra nenhuma, ela se abraçou, agarrou com êle, era
um corpo quente, cobrejante, e uma boca cheirosa, beiços que se mexiam mole
molhados, que beijando. Ali mesmo, se conheceram em carne, souberam-se. E dali
foram para casa, apertados sempre, esbarrando a cada passo para um chupo de um
beijo, e se pegando com as mãos, retremiam, respiravam com barulho, não
conversavam (ROSA, 1956, v1, p. 327).
Decorridos mais alguns acontecimentos na narrativa, Jini se separa de Tomé e passa a se prostituir.
Tomé foi para outra fazenda enquanto ―a Jini agora estava recebendo homens, geral, e estava desencaminhando
os casados‖ (ROSA, 1956, v1, p. 371). Lélio ao saber disso se encontra profundamente magoado.
Nos momentos finais da narrativa um fazendeiro chamado José Bento Ramos Juca aparece no Pinhém
para casar com Jini e levá-la embora. ―Veio buscá-la , com os papéis de banho já correndo, veio com cavalo com
a sela poltrona, com arreiame niquelado, com camaradas de escolta e mucama de pajear, e três burros cargueiros,
273
para a tralha que a Jini tivesse e levasse‖ (ROSA, 1956, v1, p. 372-373). Esse movimento em que Jini sai da
condição de mercadoria do jugo patriarcalista e passa a viver com um homem rico da cidade é encarado como
uma metáfora do avanço do capitalismo sob o espaço sertanejo. Assim se completa o ciclo da personagem ao se
―emancipar‖ como mercadoria, fazendo com que tudo fique aos seus pés. A partir do momento em que se casa,
a mulata passa a ter propriedade sobre si mesma por meio de um movimento em que conquistou ou comprou
sua alforria vendendo o seu corpo, que era o seu principal instrumento de poder.
Considerações finais
Tendo investigado a ocorrência da ―voz‖ das personagens femininas em A estória de Lélio e Lina, pode-se
afirmar que apesar do movimento presente em alguns momentos, em que as mulheres conduzem o andamento
da narrativa, o poder exercido no Pinhém ainda se encontra centralizado nas mãos de Seo Senclér. Apesar de a
narrativa ter Lélio e Rosalina como protagonistas, tudo o que acontece é efeito das manifestações de poder
advindos do fazendeiro.
Auxiliado pelos estudos de Foucault (1926-1984) sobre o poder e pelo método estético- recepcional de
Jauss (1921-1997), este texto tentou mostrar aspectos que tornam a narrativa de Guimarães Rosa diferente das
demais. Essa diferença consiste justamente pelo fato de dar voz às mulheres que geralmente são excluídas do
discurso histórico oficial presente no ambiente sertanejo.
Essa ―voz‖ feminina nem sempre é marcada, o que exige maior esforço e atenção por parte do leitor
para construir relações de sentido lógicas na atribuição de significado ao texto. A Estética da Recepção, método
de investigação proposto por Jauss, considera o leitor como participante ativo no processo de compreensão.
Nessa perspectiva o significado de uma obra não depende exclusivamente dos sentidos atribuídos pelo autor,
mas o leitor também é parte importante do processo na medida em que realiza inferências e atribui significados,
atuando como uma espécie de coautor.
Na tentativa de relacionar os textos teóricos de Foucault e Jauss com o texto literário de Guimarães
Rosa, foram usados textos de recepção crítica que dessem destaque ao feminino presente em AEstória de Lélio e
Lina. Apesar do poder exercido pelas personagens analisadas acontecer apenas na relação corpo ─ poder, as
mulheres não se limitam apenas a esse papel no sertão rosiano e revelam um caráter multifacetado ao
desempenharem uma multiplicidade de papéis.
Como foi possível observar a partir das análises acerca das relações corpo ─ poder, vimos que o poder é
algo construído socialmente, culturalmente, não sendo de exclusividade do Estado e de uma única forma
centralizadora. O poder existe em instâncias menores, o que Foucault chamou de micropoder, e no espaço da
fazenda do Pinhém ele não é exclusividade masculina, sendo exercido também pelas mulheres que se valem de
armas como a sensualidade e o corpo para conseguirem o objeto de seus desejos.
274
O poder não é algo que possua uma materialidade em si, mas é algo que passa pelas mais diversas
instâncias até se transformar em um elemento de dominação e controle. Assim como a disciplina dos corpos, o
poder exige também uma construção discursiva eficiente para que ele seja capaz de dar conta dos indivíduos. O
discurso é parte integrante do poder, e é por meio dessa relação que se revela os desejos daquilo que se quer
alcançar, possuir e entre outras coisas.
O corpo: superfície da inscrição dos acontecimentos (enquanto a linguagem os marca
e as ideias os dissolvem), lugar de dissociação do Eu (que supõe a quimera de uma
unidade substancial), volume em perpétua pulverização. A genealogia, como análise da
proveniência, está, portanto, no ponto de articulação do corpo com a história. Ela
deve mostrar o corpo inteiramente marcado de história e a história arruinando o
corpo (FOUCAULT, 2012, p. 65).
Portanto é sobre o corpo que se encontra o estigma dos acontecimentos passados, é dele que nascem os
desejos, os abatimentos, os erros. É dele que nascem os conflitos, que entram em luta, se apagam uns aos outros
e continuam seu insuperável conflito.
REFERÊNCIAS
BORGES, Telma; ROCHA, H.C.P. A mulher e a lei do estado na literatura de Guimarães Rosa: um estudo de A estória de
Lélio e Lina.In: Latin American Studies Association, Toronto, 2010. Crisis, Response, Recovery.
FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso: aula inaugural no Collège de France, pronunciada em 2 de dezembro
de 1970. 21ª ed. São Paulo: Edições Loyola, 2011.
_____. Microfísica do poder. Organização, introdução e revisão técnica de Roberto Machado. 25ª ed. São Paulo:
Graal, 2012.
JAUSS, Hans Robert. A história da literatura como provocação à teoria literária. Trad. Sérgio Tellaroli. São Paulo: Ática,
1994.
LIMA, Deise Dantas. Encenações do Brasil rural em Guimarães Rosa. Niterói: EdUFF, 2001.
MACHADO, Roberto. Por uma Genealogia do Poder. In: FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder.
Organização, introdução e revisão técnica de Roberto Machado. 25ª ed. São Paulo: Graal, 2012, pp. 7-34.
ROSA, João Guimarães. Corpo de baile: sete novelas. Rio de Janeiro: J. Olympio, 1956, 2 v, pp. 247-383.
275
RELATOS DE EXPERIÊNCIA
ESTUDOS LINGUÍSTICOS
276
VISITA DE ALUNOS DO CURSO DE LETRAS DA UFOPA À
COMUNIDADE INDÍGENA ARAÇAZAL
Almira Vieira da Silva1
Naelson Sarmento Barbosa 2
Profª. Esp. Maria Luiza Fernandes da Silva Pimentel3
Profº Dr.Nilton Varela Hitotuzi (Orientador) 4
Resumo:Este trabalho é um breve relato de experiência de uma ação do subprojeto de Letras PIBIDInglês Contribuições para Formação de Novos Professores de Inglês na Região Oeste do Pará. O objetivo geral da
visita foi coletar dados para a elaboração de unidades interdisciplinares de ensino, baseadas na história,
geografia e etnografia da Comunidade Aldeia Araçazal. Enquanto que os objetivos específicos
consistiram em: fotografar e filmar pessoas, objetos, animais, plantas, peixes, aves e insetos; entrevistar
o líder e membros da comunidade; coletar histórias orais (quer sejam fatos ou lendas); fazer uma síntese
da história da comunidade a partir das narrativas e elementos históricos verificados in loco; descrever o
estilo de vida da comunidade e sua relação com a natureza; e fazer uma descrição ilustrada da área onde
a comunidade está localizada. A visita à área denominada Aldeia Araçazal projetada, sedimentou-se em
três teorias norteadoras de empreendimentos de pesquisa de Anderson e Absolon (2011), Lecompte;
Schensul (2010) e de Murchinson (2010). Adotando-se estratégias da pesquisa etnográfica, os dados
foram coletados através de entrevistas com o líder e membros da comunidade, as quais foram gravadas
em áudio para posterior transcrição e sistematização juntamente com registros fotográficos e fílmicos.
O artigo está divido em três seções principais: inicialmente, é explicada a escolha por uma comunidade
indígena; em seguida são apresentados, de um modo geral, os caminhos metodológicos para a visita no
que se refere à dimensão logística, a pesquisa em si, e os instrumentos de coleta de dados e por fim os
os resultados.
Palavras-chave:Inglês, Coleta de dados, Visita.
Abstract: This work is a brief case study of a subproject of letters PIBID action-English contributions
to the formation of new English teachers in the West of Pará. The overall objective of the visiting was
to collect data for the preparation of interdisciplinary teaching units, based on history, geography and
ethnography of Araçazal Village Community. While the specific objectives were: photograph people,
objects, animals, plants, fish, birds and insects; interview the leader and members of the community;
collect oral histories (whether facts or legends); make a summary of the history of the community from
the narratives and historical elements checked on the spot; describe the lifestyle of the community and
their relationship with nature; and make an illustrated description of the area where the community is
located. The visiting to the area called the village Araçazal was designed into three main theories of
Anderson and research ventures Absolon (2011), Lecompte; Schensul (2010) and Murchinson (2010).
Adopting strategies of ethnographic researching, the data were collected through interviews with the
leader and members of the community, which were recorded on audio for later transcription and
ordering along with photographic records and films. The article is divided into three main sections:
initially, it is explained the choice by an indigenous community; next are presented, generally speaking,
1
Aluna do Instituto de Ciências da Educação (ICED) /Programa de Letras da Universidade Federal do Oeste do Pará
(UFOPA). Bolsista PIBID-Ingles. E-mail: [email protected]
2 Aluno do Instituto de Ciências da Educação (ICED)/ Programa de Letras da Universidade Federal do Oeste do Pará
(UFOPA).E-mail: [email protected]
3 Aluno do Instituto de Ciências da Educação (ICED)/ Programa de Letras da Universidade Federal do Oeste do Pará
(UFOPA).E-mail: [email protected]
4Professor do Instituto de Ciências da Educação (ICED)/ Programa de Letras da Universidade Federal do Oeste do Pará
(UFOPA).E-mail: [email protected]
277
the paths for the visiting with regarding to the logistics dimension, the search itself, and the data
collection instruments and finally the results.
Keywords: English; data collection; visit.
3. Introdução
A preocupação com a formação de professores em função das políticas governamentais é
recorrente, pois quem atua na prática escolar, possibilitando qualquer mudança ou inovação, grosso
modo, é o professor. Sem ele poderá ser impossível buscar novos sentidos para escola e construir
pactos e alianças em que esteja presentes a dimensão cidadã, o compromisso com a cultura de paz, com
a solidariedade, com o respeito às diversidades e com a satisfação das necessidades básicas de ensino e
aprendizagem.
Reconhecer o papel vital dos professores é enxergar a contribuição para educação conquistar um
mundo mais seguro, mais próspero e ambientalmente mais sadio favorecendo o progresso social,
econômico e cultural.
O desafio é imenso porque ao longo da história a profissão docente vem sofrendo uma série de
mudanças, mas ganha novos contornos nos dias atuais, no sentido de redefinir a função educativa e
compreender quem são os professores, qual o papel da escola, o que ensinar e como ensinar etc.
Por certo, a escola que se constata parece não mais responder aos novos tempos, bem como as
limitações dos currículos nos cursos de formação inicial de professores oferecidos pelas universidades,
principalmente no que toca as competências necessárias à formação profissional.
Essa constatação e esse desafio são ainda maiores quando tratamos de formação inicial de
professores na região norte. Para que esse professor se situe no contexto de mudanças que caracteriza o
momento atual é imprescindível que ―as universidades e os cursos de formação para o magistério
devam estar voltados à formação de um professor capaz de ajustar sua didática às novas realidades da
sociedade, do conhecimento, do aluno, dos diversos universos culturais, dos meios de comunicação‖.
(LIBANEO, 2003, p.10).
A questão da formação constitui-se, portanto um dos pontos cruciais, o desafio que se delineia é
dos cursos de formação de professores darem conta de entregar para o mercado de trabalho um
profissional com conhecimentos teóricos e práticos consistentes a vencer todos os obstáculos que
poderá estar exposto na escola.
Nesse contexto, o presente artigo é um relato de experiência de uma ação do subprojeto de Letras
PIBID-Inglês denominado Contribuições para Formação de Novos Professores de Inglês na Região Oeste do Pará5
Esse subprojeto é parte do projeto institucional ―Educação para a Integração da Amazônia‖ que por sua vez, está ligado ao
Programa Institucional de Bolsas de Iniciação à Docência, Edital nº 001/2011 CAPES.
5
278
coordenado pelo professor Nilton Varela Hitotuzi, como o idealizador do projeto de visita, portanto
muito do que está aqui produzido traz o seu traço e sua marca no decorrer de todo o texto.
A realização da visita vem ao encontro da superação desses desafios ao propor a participação de 15
(quinze) alunos de Letras (futuro professores de inglês), atuando como bolsistas/pesquisadores além
desses, 01 (um) professor supervisor (da rede publica de ensino) e 02 (duas) alunas voluntarias do curso
de letras da UFOPA em um ambiente não escolar em busca de coleta dados que após didatizados
possam servir para práticas pedagógicas mais eficientes no ensino aprendizagem de língua inglesa nas
escolas públicas de ensino em Santarém.
O objetivo geral da visita foi coletar dados para a elaboração de unidades interdisciplinares de
ensino, baseadas na história, geografia e etnografia da Comunidade Aldeia Araçazal. Os objetivos
específicos consistiram em:fotografar e filmar pessoas, objetos, animais, plantas, peixes, aves e insetos;
entrevistar o líder e membros da comunidade; coletar histórias orais (quer sejam fatos ou lendas); fazer
uma síntese da história da comunidade a partir das narrativas e elementos históricos verificados in loco;
descrever o estilo de vida da comunidade e sua relação com a natureza; e fazer uma descrição ilustrada
da área onde a comunidade está localizada.
Vale ressaltar que os objetivos específicos sobre a síntese da história, descrição do estilo de vida e
da área da comunidade só foram atingidos após o retorno à Santarém. Entretanto, ainda na
comunidade, foi feito um levantamento do material coletado a fim de se verificar se o mesmo é
suficiente para a consecução de tais objetivos.
A visita à área denominada Aldeia Araçazal projetada, sedimentou-se em três teorias norteadoras de
empreendimentos de pesquisa de Anderson e Absolon (2011),Lecompte; Schensul (2010) e de
Murchinson (2010).
Adotando-se estratégias da pesquisa etnográfica, os dados foram coletados através de entrevistas
com o líder e membros da comunidade, as quais foram gravadas em áudio para posterior transcrição e
sistematização juntamente com registros fotográficos e fílmicos.
No sentido de tornar mais claro de como foi desenvolvida a visita, o artigo está divido em três
seções principais: inicialmente, é explicada sobre o que motivou a escolha por uma comunidade
indígena; em seguida são apresentados, de um modo geral, os caminhos metodológicos para a visita no
que se refere à dimensão logística, a pesquisa em si, e os instrumentos de coleta de dados. E, por fim,
os resultados da visita.
1. A escolha por uma comunidade indígena
As discussões sobre formação de professores se estendem especificamente neste trabalho, a
formação de professores de Inglês, pelo fato da necessidade de se pensar na realidade atual da formação
279
inicial desses professores e o que os cursos de licenciatura estão oferecendo aos futuros professores de
inglês para o alcance de um conteúdo teórico-prático mais próximo do contexto de mudanças
pedagógicas que caracteriza o momento atual.
Inicialmente, um dos aspectos a ser destacado é Projeto Pedagógico do Curso (PPC), o outro são
os Projetos de Pesquisa e Extensão que precisam estar alinhados com os objetivos geral e específico, a
matriz curricular, as atividades complementares entre outros itens importantes num PPC, mas
principalmente com o perfil de profissional na área da licenciatura em língua estrangeira que se deseja.
O PPC dos cursos de licenciatura deve estar voltado à formação de ―um professor capaz de ajustar
sua didática às novas realidades da sociedade, do conhecimento, do aluno, dos diversos universos
culturais, dos meios de comunicação‖ (LIBANEO, 2003, p.10). O autor acrescenta ainda que o novo
professor necessita de:
(...) de uma cultura geral mais ampliada, capacidade de aprender a aprender,
competência para saber agir na sala de aula, habilidades comunicativas, domínio da
linguagem informacional, saber usar meios de comunicação e articular as aulas com as
mídias e multimídas (LIBANEO, 2003, p.10).
Acrescenta-se a essas necessidades o engajamento em projetos de pesquisa e extensão para
consolidar os conhecimentos através do circuito ensino (conhecimentos teóricos adquiridos na
graduação), pesquisa ( desenvolvimento da capacidade de investigação) e extensão ( aplicação de todo
esse conhecimento no ambiente alvo do ensino e da pesquisa), além disso, retorno à universidade
através discussões e analises das experiências vividas relacionando com as bases teóricas adquiridas na
universidade.
Tudo isso, porque ensino, pesquisa e extensão apresentam-se, no âmbito das universidades
públicas brasileiras, como uma das suas maiores virtudes e expressão de compromisso social. O
exercício de tais funções é requerido como dado de excelência no ensino superior fundamentalmente
voltado para formação profissional à luz da apropriação e produção do conhecimento científico.
A LDB/1986 no artigo 43 (quarenta e três) sobre Educação Superior omitiu o princípio da
indissociabilidade ensino, pesquisa e extensão, no entanto as universidades continuam imbuídas dessas
funções.
A educação superior tem por finalidade: 1.estimular a criação cultural e o
desenvolvimento do espírito científico e do pensamento reflexivo; 2.formar
diplomados nas diferentes áreas de conhecimento, aptos para a inserção em setores
profissionais e para a participação no desenvolvimento da sociedade brasileira, e
colaborar na sua formação contínua; 3.incentivar o trabalho de pesquisa e investigação
científica, visando o desenvolvimento da ciência e da tecnologia e da criação e difusão
da cultura, e, desse modo, desenvolver o entendimento do homem e do meio em que
vive;4.promover a divulgação de conhecimentos culturais, científicos e técnicos que
constituem patrimônio da humanidade e comunicar o saber através do ensino, de
280
publicações ou de outras formas de comunicação; 5.suscitar o desejo permanente de
aperfeiçoamento cultural e profissional e possibilitar a correspondente concretização,
integrando os conhecimentos que vão sendo adquiridos numa estrutura intelectual
sistematizadora do conhecimento de cada geração; 6.estimular o conhecimento dos
problemas do mundo presente, em particular os nacionais e regionais, prestar serviços
especializados à comunidade e estabelecer com esta uma relação de reciprocidade;
7.promover a extensão, aberta à participação da população, visando à difusão das
conquistas e benefícios resultantes da criação cultural e da pesquisa científica e
tecnológica geradas na instituição. (BRASIL, MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO, 1996)
Considerando os objetivos desse artigo, não avançaremos na analise num modelo de ensino
superior em suas relações com a indissociabilidade no ensino, pesquisa extensão, apenas registrar nossa
adesão a esse tripé que conduz as dimensões ético-politicas e didático-pedagógicas.
Além disso, A concretização da ação docente realiza-se no cotidiano, na sala de aula, ou seja, na
prática educacional que está inserida na tessitura social e é configurada na interação entre os sujeitos e
grupos.
Para concretização dessa pauta, são necessárias proposições de projetos de iniciação à pesquisa e a
atividades de extensão durante todo o percurso acadêmico do futuro professor para uma construção
lógica dos conhecimentos na articulação teórica e prática das disciplinas que compõe a matriz curricular
do curso de licenciatura.
É o que o presente trabalho propõe com a escolha de um ambiente que não é o escolar, mas que
possibilitou uma coleta de dados rica em elementos que demonstram a diversidade regional e
principalmente local, conforme é recomendado nos Parâmetros Curriculares Nacionais (1998) ―o
respeito às diversidades regionais, culturais, políticas existentes no país e, de outro, considerar a
necessidade de construir referências nacionais comuns ao processo educativo em todas as regiões
brasileiras‖.
Considerando dentre outros fatores, os relativos às comunidades locais como um dos critérios
para inclusão das línguas estrangeiras nos currículos escolares, aqui especificamente o inglês, bem como
as possibilidades das relações de convivência , conforme propõe os PCN Língua Estrangeira ―a
convivência entre comunidades locais e imigrantes ou indígenas pode ser um critério para a inclusão de
determinada língua no currículo escolar. Justifica-se pelas relações envolvidas nessa convivência: as
relações culturais, afetivas e de parentesco‖. (PCN, 2008, p.23), a visita realizada com os alunos do
PIBID-inglês numa comunidade indígena trouxe uma oportunidade imensa de troca de experiências.
Primeiramente, a escolha da comunidade do Araçazal deu-se pelo fato de um dos bolsistas do
subprojeto PIBID-inglês ser membro da etnia Cumaruára que habita o lugar denominado Aldeia
Araçazal, o que favoreceu tanto a interação com a comunidade quanto a logística da empreitada;
281
Segundo, a possibilidade de haver a articulação com um número maior de disciplinas na transposição
didática (VERRET, 1975 apud CLÉMENT; HOVART, 2000) dos dados que se pretendeu coletar na
área, os quais incluíram falas dos membros da etnia que ali habitam e a captura, em vídeo e através de
fotografias, de elementos geográficos, artístico-culturais, além de amostras da flora e fauna local.
A visita à Comunidade Araçazal, com a finalidade de coletar dados para a elaboração e execução de
unidades interdisciplinares de estudo foi à concretização da ação docente, na medida em que permitiu
alavancar o alcance do objetivo maior do subprojeto PIBID/LETRAS – Inglês que é oferecer
contribuições à formação de futuros professores de Inglês da região oeste do estado do Pará. Essas
contribuições foram identificadas em, pelo menos, quatro fatores envolvidos na proposta: (a) o trabalho
colaborativo; (b) a pesquisa; (c) a produção de material didático; e (d) a iniciação à docência. Em
primeiro lugar, elemento fundamental à práxis de educador, o trabalho colaborativo permeou todo o
processo da expedição, desde o seu planejamento ao seu acontecimento.
Além disso, houve continuidade sinergética para que a manipulação dos dados coletados tivesse
êxito. E, isso envolveu sistematização, transposição didática e utilização do material, ações que foram
seguidas da verificação de resultados. Portanto, os alunos bolsistas e voluntários, os supervisores
juntamente com o coordenador de gestão e a coordenadora adjunta voluntária estiveram engajados nas
dimensões logística, educativa e social da visita.
A pesquisa, em segundo lugar, ocorreu como bônus aos graduandos engajados no projeto visto
não ser esse o foco explícito do PIBID. Mas, como não conseguimos dissociar a prática docente da
pesquisa, foi iniciado, de fato, nos futuros professores de Inglês formados na UFOPA, a cultura da
pesquisa, dentro e fora do ambiente escolar. Além de termos caracterizado com mais clareza e precisão
os problemas que nos propusemos a investigar, a pesquisa apontou para formas de solucioná-los ou,
pelo menos, abrandá-los. A pesquisa também pôde contribuir para o desenvolvimento da argúcia
intelectual do pesquisador. Daí mais uma razão para o envolvimento dos licenciandos na investigação
científica.
Já a produção de material didático se constituiu numa oportunidade para os alunos bolsistas
capitalizarem algumas das teorias estudadas. Entretanto, ressaltamos que, nessa atividade, houve a
participação dos coordenadores e dos professores supervisores, tendo em vista a incipiente
familiaridade dos alunos bolsistas com a língua inglesa e com estratégias de ensino. Isso não implicou o
silenciamento de suas vozes, uma vez que consideramos valiosa a sua experiência discente, desde o préescolar até o presente, para o processo de produção das unidades interdisciplinares de estudo que já
estão usadas nas escolas onde trabalham os professores supervisores. Por fim, mas igualmente
importante, está sendo a experiência dos ―pibidianos‖ em sala de aula, quando já estão auxiliando os
professores supervisores na utilização do material produzido.
282
Como preparação para essa fase do seu processo de formação, eles primeiramente usam as
unidades de estudo como alunos de Inglês pela razão já mencionada e também para testá-las. As aulas
aos bolsistas são ministradas tanto pelos coordenadores como pelos seus respectivos supervisores.
Dessa forma, acreditamos prepará-los mais adequadamente para assistirem, de modo mais
produtivo, os professores supervisores quando da utilização do material em sala de aula. Reiteramos,
portanto, que esse e os demais fatores aqui apresentados têm o potencial de ampliar aspossibilidades
de uma formação docente sólida dos alunos engajados no subprojetoPIBID/LETRAS – Inglês.
2. Os caminhos metodológicos
A visita à área denominada Aldeia Araçazal, ora projetada, sedimenta-se em três teorias
norteadoras de empreendimentos de pesquisa. Para lidarmos com a dimensão logística da empreitada,
fundamentamo-nos nas sugestões de Anderson e Absolon (2011). Com relação à pesquisa em si,
optamos pelo método etnográfico de investigação (LECOMPTE; SCHENSUL, 2010) por ser
apropriado ao tipo de investigação a que nos propomos.
E, utilizamos filmadoras, máquinas fotográficas, gravadores e cadernos de anotação como
instrumentos de coleta de dados, conforme sugerido por Murchinson (2010).
Como este projeto limitou-se à visita à comunidade e à coleta de dados, não serão detalhados
aqui os procedimentos metodológicos a serem usados na sistematização do material, elaboração das
unidades interdisciplinares de estudo e utilização das mesmas em sala de aula, assim como não serão
mencionadas as teorias que embasam tais procedimentos.
Dito isso, partimos para o detalhamento dos procedimentos adotados. Da logística – Primeiro,
disponibilizado o recurso financeiro necessário por parte da coordenação institucional do projeto
PIBID/CAPES, foi fretado um barco com capacidade para, no mínimo, 20 (vinte) pessoas além da
tripulação. Foi providenciado suprimentos e, convocado os supervisores, alunos bolsistas e voluntários
para uma reunião em que se discutiu cada fase da iniciativa e se estabeleceu os papéis dos participantes,
bem como as normas de convivência durante a empreitada, ocasião em que se chamou a atenção de
todos para o cuidado que se deveria ter quando da interação com a comunidade visitada, a fim de se
evitar a perturbação da ordem local e outros tipos de transtornos suscetíveis de ocorrer. Da pesquisa –
Visando atingir os objetivos estabelecidos neste projeto, foi feito registros fílmicos e fotográficos das
pessoas e de sua produção cultural, de animais domésticos e selváticos, da vegetação, de rios, lagos e
igarapés. Ainda coletou-se narrativas de fatos históricos e de lendas através de ―conversas‖ com o líder
e membros da comunidade. Ressaltamos que as perguntas feitas ao líder da comunidade foram
previamente roteirizadas, mesmo prevendo-se variações e expansões das mesmas durante a interação.
De volta a Santarém, iniciou-se a fase de manipulação dos dados.
283
3. Considerações Finais
A intenção dessa empreitada através de uma visita é a realização de reflexões sobre a importância,
cada vez maior, do engajamento de alunos do Curso de Graduação em Letras – Português/Inglês da
UFOPA em atividade de pesquisa, em coleta de dados para a produção de material didático
interdisciplinar, possibilitando a esses alunos, desde o início de sua formação conhecer e vivenciar um
ambiente acadêmico-científico. Além disso, a observação in loco do convívio do homem com a natureza;
o conhecimento da história de um grupo social, de suas crenças e sua cultura de forma direta pôde
contribuir enfaticamente para a sensibilização dos participantes acerca da necessidade de preservação da
natureza e do reconhecimento de outras etnias que conosco compartilham a mesma região.
Além disso, a complexidade da profissão do professor é expressa por todas as ações que ele
vivencia na escola e o que aprende na universidade. O professor, atento, e dedicado ao exercício
permanente da observação crítica, a ação e avaliação, ética e política, singular e compartilhada, produz
uma ação educativa para que as gerações transcendam a si mesmas, desafiando-se e reconstruindo-se.
Uma nova prática social e pedagógica resultante da vivência, da pesquisa, da produção própria de um
material didático, da análise crítica do enfretamento dos problemas existentes e do conhecimento da
realidade escolar, traz uma construção mais completa desse aluno, futuro professor.
A característica essencial do trabalho do professor é favorecer para que seus sujeitos, eles próprios,
tornem-se construtores e transformadores de sua individualidade, da subjetividade e da própria
sociedade.
Refletir sobre o preparo profissional do professor é importante. Mas não só sobre aspectos
técnicos, conhecimentos e organização dos cursos, é preciso reconhecer os aspectos humanos no
processo formativo do professor para transitar no cotidiano escolar.
A imersão dos alunos do PIBID-letras da UFOPA numa comunidade indígena levou-os a um
ambiente de diversidade, uma vez que, todo o contexto vivido com os moradores da comunidade de
Araçazal abriga um universo heterogêneo, plural e em movimento constante, em que cada alunopesquisador é singular, com uma identidade originada de seu próprio grupo social, estabelecida por
valores, crenças, hábitos, saberes, padrões de condutas, linguagem, trajetórias peculiares e possibilidades
cognitivas diversas em relação à aprendizagem e que após essa vivência, tudo isso, expressará numa
unidade de ensino de inglês, nas escolas da rede pública a essência desses sujeitos: aluno-professor e
membros da comunidade.
REFERÊNCIAS:
284
ANDERSON, Dave; ABSOLON, Molly. Expedition planning. Mechanicsburg: Stackpole Books, 2011.
[NOLS – National Outdoor Leadership School]
BRASIL. SECRETARIA DA EDUCAÇÃO FUNDAMENTAL. Parâmetros Curriculares Nacionais:
terceiros e quartos ciclos do ensino fundamental:língua estrangeira. Brasília: MEC/SEF, 1998.
BRASIL, MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO. Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB). Nº
9394/96.
CLÉMENT, Pierre; HOVART, Sébastien. Environmental education: analysis of the didactic transposition
and of the conceptions of teachers. In: BAYRHUBER, Horst; MAYER, Jürgen (Eds.). Empirical research
on environmental education in Europe. Munster : Waxmann Verlag, 2000, p. 77-90.
HITOTUZI, Varela Hitotuzi. Visita à comunidade Araçazal: atividade do subprojeto de letras- inglês
Contribuições para a Formação de Novos Professores de Inglês na Região Oeste do Pará. Santarém:
UFOPA, 2012.
LECOMPTE, Margaret; SCHENSUL, Jean J. Designing & conducting ethnographic research: an introduction.
Plymouth: Alta Mira Press, 2010.
MURCHISON, Julian M. Ethnography essentials:designing, conducting, and presenting your research. San
Francisco: Jossey-Bass, 2010.
285
CONHECER A SI MESMO ATRAVÉS DA MEMÓRIA: O RELATO DE UMA
EXPERIÊNCIA
Amanda Gazola Tartuci1
Profª. Drª Dylia Lysardo-Dias (Orientadora)2
Resumo:O presente trabalho apresenta um relato de experiências no qual se analisa uma oficina
ministrada para alunos do sétimo ano de uma escola estadual de uma cidade do interior de Minas
Gerais no âmbito do subprojeto Letras do Programa Institucional de Bolsa de Iniciação à Docência,
PIBID, da UFSJ. A oficina teve como tema a ―Memória‖ e objetivou fazer com que os alunos
refletissem, através de suas próprias histórias, sobre a memória como chave importante para o sujeito
se conhecer e de se reconhecer como parte de um grupo. Muitas vezes, os alunos usaram a voz do
outro para ―construírem‖ sua própria memória. A oficina baseou-se na importância do processo de
interação social e no entendimento dos quadros sociais que compõem a memória e utilizou a
construção oral e escrita de narrativas. O ponto de partida do trabalho foi a escolha e a descrição de um
objeto significativo pessoal, a partir do qual cada um contou a sua história e depois registrou-a por
escrito. Percebemos aqui que a memória individual está intrinsecamente ligada à coletiva: é a relação do
eu e do outro. Ao se conhecerem, os alunos se reconhecem como parte de um grupo, de uma
coletividade, e, principalmente na idade em que estão, o grupo ajuda-os na construção da identidade
social atuando como elemento de coesão.
Palavras-chave: Memória; Produção textual; Identidade.
Abstract:The present work is an account of experiences: it presents and analyzes a class held for the
seventh year (sixth grade) of a public school in the countryside of Minas Gerais, in the subproject
entitled Language from Institutional Scholarship Program Initiation to Teaching, PIBID/ UFSJ. The
class had as its theme "Memory" aimed to make students reflect, through their own stories, how
memory is an important key promoting self knowledge and recognition about themselves as part of a
group. Often, students used a third party voice to "build" their own memory. The class was based on
the importance of the process in social interaction and in understanding the social frameworks that
make up the memory used and the construction of oral and written narratives. The starting point for
the study was to choose and describe an object that was personal, from which each told their story.
This story was listened by all of the students and registered. Here we see that individual memory is
inextricably linked to the collective: the relationship of self and other. When knowing themselves,
students recognize each other as a part of a group, and thus, construct their own identity in speeches
socially imposed by other individuals. When they meet, students recognize themselves as part of a
group, a community, and especially in the age that they are, the group helps them in the construction of
social identity acting as a cohesive element.
Keywords: Memory; Text production; Identity.
Introdução
Graduanda em Letras na Universidade Federal de São João del – Rei. Bolsista CAPES. E-mail: [email protected]
Professora do Programa de Pós Graduação em Letras da Universidade Federal de São João del – Rei. E-mail:
[email protected]
1
2
286
Narrativas fazem parte do nosso cotidiano, é através delas que compartilhamos histórias,
experiências e conhecimento. Elas são tão arraigadas ao nosso modo de viver que ―são nessas
narrativas que as identidades sociais são projetadas‖ (Hoffnagel, 2010, p.63), o que aponta para a
importância e a funcionalidade das narrativas, sobre quando se trata de uma narrativa na qual os
sujeitos retomam sua própria história.
O projeto que desenvolvemos com esses alunos faz parte do PIBID/UFSJ, subprojeto Letras.
Nossa ênfase na atuação escolar priorizou a leitura e produção de texto, na tentativa de dar um suporte
à escola, que encontra inúmeros desafios no que se refere às práticas de letramento. No intuito de
alcançarmos esse objetivo, escolhemos o tema ―memória‖ para desenvolvermos com os alunos em seis
oficinas ministradas em duplas pelos bolsistas3, tema relacionado a um projeto maior sobre biografias.
Nesse artigo, vamos apresentar uma oficina trabalhada no sétimo ano e elaborada por mim e
por outro bolsista que articulou narrativa oral, memória e produção escrita, sem perder de vista a
questão da identidade. As atividades propostas contemplaram a expressão oral, aspecto pouco
trabalhado em sala de aula, dando voz aos alunos nas suas vivências de sujeito.
O objetivo do presente artigo é mostrar a importância dos alunos contarem suas histórias,
elaborando narrativas orais e escritas, tendo em vista que ―as identidades são forjadas dentro do
discurso, mais especificamente dentro de práticas discursivas social e institucionalmente situadas‖
(GOMES, 2011, p.289).
Na primeira seção deste trabalho, apresentamos alguns aspectos da linguagem com base nas
formulações de Vygotsky (1998) e Bakhtin (1992) e sua relação com os quadros sociais que compõem a
memória, baseando-nos nos estudos de Halbwachs (2006). Compreendemos ainda, a partir de Bakhtin
(1992), que é na interação pela linguagem que o ―eu‖ e o ―outro‖ se instituem, já que o sujeito toma
consciência do ―eu‖ a partir do momento em que interage com o ―outro‖. Todas essas formulações
podem contribuir para nossa prática pedagógica tendo em vista a instrumentalidade didática de
atividades que abordem a memória.
Referencial Teórico
A análise das formulações de Vygotsky (1998) e Bakhtin (1992) em relação ao processo de interação
social permite-nos entender que, para eles, o sentido das coisas é dado ao homem pela linguagem. O
3
As oficinas aqui analisadas são de minha autoria juntamente com meu colega de trabalho Márcio Rodrigues, a quem eu
agradeço por ter cedido seus direitos autorais.
287
sujeito e o outro estão sempre presentes na linguagem e na interação, para Bakhtin ―a enunciação é o
produto da interação de dois indivíduos socialmente organizados‖(BAKHTIN, 1992 apud
RADAELLI, 2011, p.8). Vygotsky defende, desenvolvendo sua teoria da aprendizagem, que o homem
constitui-se e desenvolve-se como sujeito através de suas relações sociais e da linguagem, o homem
visto como um ser histórico. O aluno passa a ser visto então, como sujeito do ato educativo em
interação com o objeto, que é a linguagem. Essas abordagens contemplam a natureza social à linguagem
e à educação como prática social e se constitui como forma concreta da relação entre classes.
Na perspectiva da internalização de Vygotsky, que demonstra o trajeto social para o individual,
mediado pelo signo e pelo outro: ―a linguagem e a consciência deixam de serem vistas como faculdades
naturais humanas, para se constituírem em produtos de ação coletiva dos homens, desenvolvidos ao
longo da história‖ (RADAELLI, 2011,p.2). Todavia, as ideias de Vygotsky, propondo a intervenção do
professor para possibilitar o aprendizado, não podem ser entendidas como um processo direcionador e
autoritário. A questão refere-se à interação como forma de participação dialógica na qual todos os
sujeitos têm direito à voz e são efetivamente ouvidos. .Nesse sentido, Garcez afirma que ―o papel do
professor ultrapassa o de suporte ou andaime estático, pois tem um caráter mobilizador, encorajador,
impulsionador e construtor muito claro‖ (1998, p.39). Dessa forma, ainda de acordo com Garcez,
professores de produção textual devem policiar suas ações pedagógicas para não:
i)
j)
k)
l)
m)
n)
o)
―falar mais que o aluno;
tentar direcionar o redator para o que interessa apenas ao professor;
tentar interessá-lo por assuntos moralmente aceitos;
ignorar o que há no papel;
ignorar as razões originais do redator para a redação;
tentar ensinar habilidades que estão longe demais do alcance do aluno;
propor sua própria linguagem ao redator (frases, palavras, expressões,
exemplos);
p) perguntar coisas que já sabe e que o redator ainda não pode responder‖.
(GARCEZ, 1998, p.39)
A prática, portanto, é orientada pelo professor, mas o aluno deve trabalhar ativamente, atuando
em um processo de co-construção. A presença de mediadores como a fala, a oralidade e a comunicação
é muito importante e Vygotsky (1998) defende que a intervenção deve ser de forma deliberada e
organizada, pois a relação do homem com o mundo não é uma relação direta e sim uma relação
mediada.
Ainda com ênfase na ação interativa na linguagem, Bakhtin (1992) considera que:
―A verdadeira substância da língua não é construída por um sistema abstrato de
formas linguísticas nem pela enunciação monológica isolada, nem pelo ato
psicofisiológico de sua produção, mas pelo fenômeno social da interação verbal,
realizada através da enunciação ou das enunciações. A interação verbal constitui assim
a realidade fundamental da língua.‖ (BAKHTIN, 1992, p.123)
288
Para Vygotsky (1998) e Bakhtin (1992), o desenvolvimento das funções mentais superiores dáse em dois momentos: o primeiro, social, e o segundo, individual (internalização para Vygotsky e
monologização da consciência para Bakhtin). Entretanto, nesses dois momentos, utilizamos os recursos
de mediação, que são a experiência sociocultural e o signo. O discurso interno de uma criança,
portanto, e, mais tarde, o pensamento, desenvolvem-se pelos instrumentos linguísticos do pensamento
e pela experiência sociocultural da criança.
Entramos então na relação da memória com a sóciointeração da linguagem. A concepção de
memória aqui adotada se trata de uma constituição no presente daquilo que vivemos e/ou
experenciamos no passado. Os estudos de Halbwachs (2006) contribuíram para o entendimento dos
quadros sociais que compõem a memória, para ele o indivíduo carrega em si a lembrança, mas está
sempre interagindo com a sociedade, ou seja, a lembrança aparentemente mais particular remete a um
grupo. A memória é entendida, pelo autor, como um trabalho de reconhecimento e reconstrução que
atualiza os ―quadros sociais‖ nos quais as lembranças podem permanecer e, então, articular-se entre si.
Portanto, as memórias individuais são sempre construídas a partir de sua relação de pertencimento a
um grupo.
O sociólogo Pollak (1992,p.5) diz que se a memória é um fenômeno construído social e
individualmente: ―podemos também dizer que há uma ligação fenomenológica muito estreita entre a
memória e o sentimento de identidade‖. Veremos na análise das oficinas como acontece essa ligação
entre memória e identidade nos alunos do sétimo ano da escola em que trabalhamos.
A oficina
Os alunos do sétimo ano têm entre doze e treze anos e estão entrando na adolescência, fase da
vida em que a relação com o grupo e sua relação de pertencimento é supervalorizada. As oficinas de
produção de texto com o tema memória, de início, não despertou muito interesse nos alunos. Essa
resistência inicial foi diminuindo à medida que a atividade se desenrolava.
Sendo a narrativa um fato cotidiano, como já dito, as estórias que contamos sobre nossas
próprias vidas e sobre a vida de outras pessoas são uma forma de texto no qual construímos,
interpretamos e compartilhamos experiências. Todos os alunos, nas oficinas, tiveram histórias para
contar e eles as compartilhavam com prazer, alguns tímidos no início, mas outros que tinham uma
necessidade extrema em se expressarem não houve espaço para timidez. Dessa forma, as identidades
sociais dos alunos são construídas através de sua própria memória.
A oficina foi assim proposta:
289
Oficina“Conhecendo a si mesmo através da memória”
Público alvo: Alunos do sétimo ano do Ensino Fundamental.
Duração: 50 minutos.
Objetivo: Refletir com os alunos, através de suas próprias histórias como a
memória é chave importante para o indivíduo se conhecer e se reconhecer
como parte de um grupo.
Descrição das atividades:
Professor – contar a história de um objeto significativo para ele.
Com o modelo do professor, abrir para todos os alunos contarem a sua
história.
Pedir uma pequena produção de texto (narrativa) a respeito da história do
objeto. A atividade deverá ser terminada em saladeaula.
Recursos: Objeto pessoal que seja significativo e que remeta a alguma história
da vida de cada aluno, esse objeto deve ser trazido de casa e avisado com uma
semana de antecedência. Papel e caneta.
Avaliação: Correção da produção textual e comentário com os alunos.
Essa oficina foi elaborada pensando na importância da elaboração oral de narrativas pelos
alunos e foi através de um objeto significativo pessoal que eles contaram suas histórias. Nessa oficina
eu e meu colega de projeto também participamos: cada um tinha que levar um objeto pessoal, sobre o
qual faria uma narrativa. Consideramos que a nossa memória precisa de, muitas vezes, algumas
referências para construir lembranças. Shmidt (1993, p.288) explicando Halbwachs disse: ―Para
Halbwachs o indivíduo que lembra é sempre um indivíduo inserido e habitado por grupos de
referência; a memória é sempre construída em grupo, mas é também, sempre, um trabalho do sujeito‖.
Para contarmos nossas histórias, tivemos que pesquisar em nossas casas e até mesmo em nossas
lembranças algum objeto de importância em nossa infância, que nos remetessem a momentos
significativos. Alguns de nós levamos objetos como agenda, violão, boneca, ou seja, objetos que
tiveram uma utilidade num determinado período de nossas vidas e os demais, a maioria, levaram
objetos como fotos e roupas do batizado, fotos do aniversário de um ano, enfim, coisas que remetem à
aos primeiros anos de vida, sem que necessariamente eles se lembrassem delas.
No início da oficina, o outro bolsista contou a história do objeto que escolheu para levar
demonstrando para os alunos que eles deveriam elaborar uma pequena narrativa oral que constasse o
porquê daquele objeto ter sido escolhido e a história do mesmo. Assim, os alunos foram um a um para
a frente da sala, fizeram sua pequena narrativa oral e mostraram para os colegas o objeto de escolha.
Eles participaram de forma interativa uns com os outros e conosco também, mudando a reação
negativa que eles tiveram a respeito do tema proposto no início do projeto. Encerrei o momento de
290
narração com a história do meu objeto e depois conversamos com os alunos sobre o que as histórias
tinham em comum e se eles achavam que elas eram importantes para a formação deles como sujeitos.
Os alunos, então, perceberam que todos falaram, em alguma parte da história, sobre o círculo
social que os rodeia. Alguns chegaram a afirmar que não precisavam de ninguém, mas, posteriormente,
pelos argumentos dos próprios colegas, concluíram que o outro é necessário na construção de sua
identidade e memória. A afetividade a uma comunidade, para Halbwachs (2006), dá consistência às
lembranças, pois elas são sempre o produto de um processo coletivo, sendo que nenhuma lembrança
dos alunos, principalmente da infância, foi sem a presença do outro. Entendemos que os alunos
perceberam que o que era significativo era a lembrança da qual nem eles mesmos lembravam, mas uma
lembrança que eles construíram através do depoimento de seus familiares e amigos.
As narrativas foram produzidas oralmente e em seguida escritas pelos alunos. O importante foi
que os alunos se expuseram e essas narrativas são parte de um processo de construção de suas
identidades, sendo sujeitos ativos em interação com a linguagem.
Hoffnagel (2010) diz que identidade é a realização interacional, negociada e alcançada por
membros de uma interação no curso de eventos comuns, como traços constitutivos de seus encontros
sociais. Por isso consideramos as oficinas enriquecedoras para os alunos, porque, além de produzirem
textos orais e escritos, puderam, através delas, refletir sobre suas identidades.
É indiscutível a importância da produção textual escrita e oral para a formação educacional dos
alunos, entretanto, é necessário conduzir o aluno à ―transposição‖ do oral para o escrito, sem traumas e
respeitando o ritmo de aprendizagem de cada um. Também se faz necessário que eles sejam capazes de
realizar uma leitura hábil de seu contexto e da diversidade que o compõe, logo, irão não só
compreender o passado, como também poderão estabelecer relações entre o futuro e o presente. As
produções dos alunos nos fizeram compreender que a importância destes reavivarem o passado para
compreender o presente e/ou também o futuro, faz com que eles se reconheçam como sujeitos ativos e
transformadores de seu próprio meio, pois a memória coletiva dá a eles um sentimento de
pertencimento. Dessa forma, eles irão se importar mais com a realidade que os cerca, com a
comunidade, com a escola e com sua formação e serão impulsionados a agir como cidadãos conscientes
de seus deveres e direitos.
Considerações finais:
No presente artigo apontamos para o aspecto sóciointeracionista da linguagem e da memória na
produção textual com alunos do ensino fundamental. Como Bakhtin (1992) ressalta a importância da
interação verbal no ato educativo, da interação com o ―outro‖, buscamos explorar essa interação
291
durante todo o trabalho. Além da importância da interação verbal, ressaltamos aqui a produção escrita
dos alunos, pois tentamos fazer essa transposição do oral para o escrito de forma a contribuir para o
letramento dos alunos. Sobre isso, Garcez (1998) relata que:
―A pesquisa científica sobre a escrita tem evoluído de uma visão
centrada no produto para o enfoque dos processos individuais do sujeito
cognitivo que produz o texto e, mais recentemente, para o caráter interativo da
produção de texto, ou seja, para os modos de participação do outro nessa
produção‖. (GARCEZ, 1998, p.23)
Entendemos que a oficina foi proveitosa para os alunos porque, mesmo que no início eles não
aprovassem o tema, posteriormente eles demonstraram prazer em compartilhar suas narrativas orais e o
texto escrito foi feito sem dificuldades e sem nenhum tipo de resistência.
Também ressaltamos aqui a importância da memória para os alunos refletirem sobre a língua,
construírem sua identidade, conhecerem e reconhecerem a própria história e de se situarem como
sujeitos na sociedade em que vivem. A linguagem é um dos elementos mais importantes que afirmam o
caráter social da memória, pois as trocas entre os membros de um grupo se fazem por meio da
linguagem e narrar e lembrar fazem parte desta.
Sendo assim, as oficinas podem ser de grande valia para alunos da educação básica e para
professores também, pois poderão repensar suas práticas, através da memória, e, consequentemente,
seu fazer pedagógico. A interação oral proporcionará uma reflexão pela própria língua e fará parte da
produção escrita, sendo essa entendida como um processo e não apenas como produto final. Por fim,
as práticas pedagógicas devem ser constantemente reavaliadas, pois a memória permite esse olhar de
reconstrução e de reavaliação do trabalho realizado, para que as práticas não se tornem obsoletas e
apenas cumpridoras de metas.
REFERÊNCIAS:
BAKHTIN, M (V.N. Volochinov) Marxismo e filosofia da linguagem. Tradução de Michel Lauch e
Iara Frateschi Vieira. 6.ed. São Paulo: Editora Huritec 1992.
CARINO, Jonaedson. A biografia e sua instrumentalidade educativa. Educação e Sociedade, Ano XX,
Campinas, SP: Cedes, 1999.
GARCEZ, Lucília Helena do C. A escrita e o outro: Os modos de participação na construção do texto. 1ª
Ed. Brasília: Universidade de Brasília, 1998.
292
HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva / Maurice Halbwachs ; tradução de Beatriz Sidou. – São
Paulo: Centauro, 2006.
HOFFNAGEL, Judith C. A narrativa como lugar da expressão de identidade social. In: TEMAS EM
ANTROPOLOGIA E LINGUÍSTICA. Recife: Edições Bagaço, 2010.
GOMES, M.C.A., CATALDI, C., MELO, M.S.S. (Orgs.). Estudos discursivos em foco: páraticas de pesquisa
sob múltiplos olhares. Viçosa, MG: Ed. UFV, 2011.
RADAELLI, Maria Eunice. Contribuições de Vygotsky e Bakhtin para a linguagem: Interação no processo de
alfabetização.Thêma et Scientia – Vol. 1, nº1, jan/jun 2011.
293
PROPOSTA DE TRABALHO EM NOVAS TECNOLOGIAS E
LETRAMENTO: PRAXIS VOLTADA PARA UMA PERSPECTIVA
SOCIOAMBIENTAL COM A EDUCAÇÃO INFANTIL
A.C.C.D.A1
A.F.F.F2
G.A.F3
Prof. Ms. E.R.F.J (Orientador)4
Resumo: O trabalho apresentado analisa e descreve o trajeto de crianças pertencentes ao Pré-Escolar
II de um Centro de Referência em Educação Infantil de João Pessoa, capital do Estado da Paraíba, no
Brasil e se refere à construção de processos identitários e de alfabetização através do contexto
socioambiental dos sujeitos em suas dimensões geográficas, biológicas, históricas, sociais , subjetivas e
lingüísticas considerando os links entre o seu meio natural e o seu mundo social articulados em uma
proposta de letramento inicial que contempla a passagem da escrita silábica para a forma silábica
alfabética. Para tanto, foram propostas atividades que envolvem a compreensão prévia do educando
acerca da fauna brasileira e mais especificamente do peixe-boi (TRICHECHUS Manatus) e
fundamenta-se em práticas ancoradas na inter-relação entre os saberes socioambientais e linguísticos
com as novas tecnologias/mídias, objetivando a sua aplicabilidade nas creches públicas e
estabelecimentos privados de ensino bem como o desenvolvimento de habilidades e competências em
escrita e leitura. Para tanto, foram utilizados os seguintes procedimentos metodológicos: pesquisa e
notas de campo, atividades de desenho, pintura, recorte,colagem, exibição de vídeo acerca do objeto de
estudo, além da pesquisa em sites educacionais e jogos eletrônicos referentes à preservação do bioma
amazônico, atividades escritas silábicas, jogo da memória e exercícios que estimulam a aquisição da
coordenação motora fina/grossa e o desenvolvimento da capacidade de análise pelos sujeitos. À luz
das teorias de CASTELS (1999), FREEMAN (1982),LEVY (1993), DOWBOR(2001),BRUNNER
(2004),BRANCO
(2003),
KOLLER(2004),BRASIL
(1997),(1998),(1999),
FAULSTICH
(1987),MARTINS (2003),KATO(1999) e RANGEL (2005) realizou-se esta pesquisa-ação em que
foram abordados conceitos pertinentes a estratégias de letramento, às tecnologias e a sua amplitude na
educação ambiental para crianças pertencentes à Pré-Escola, cidadãos reflexivos e participativos que
no futuro estarão aptos a exercer o protagonismo no seu contexto acadêmico, no mundo do trabalho e
na sociedade.
Palavras-Chave: Letramento; Tecnologia; Meio Ambiente
Abstract: The work presented analyses and describes the path of children belonging to the preschool II
in a Reference Center on Early Childhood Education of João Pessoa, capital of the State of Paraíba in
Brazil and refers to the construction of identity processes and socio-environmental context through the
literacy of the subjects in their geographical dimensions, biological, historical, social, linguistic and
subjective considering the links between the natural environment and its social world articulated in a
proposal for initial literacy that contemplates the passage of syllabic writing to alphabetic syllabic form.
1
Ana Cláudia Cunha D‘Assunção.Graduanda do curso de Pedagogia da Universidade Federal da Paraíba.(UFPB/UAB) email: [email protected]
2
Ana Flávia Florentino de Freitas. Graduanda do curso de Pedagogia da Universidade Federal da Paraíba (UFPB/UAB) email: [email protected]
3
Georgina Alves da Fonseca. Graduanda do curso de Pedagogia da Universidade Federal da Paraíba (UFPB/UAB) email:[email protected]
4
Ednildon Ramalho Fideles Júnior.Professor Tutor daUniversidade Federal da Paraíba (UFPB/UAB) e-mail:
[email protected]
294
To this end, proposed activities involving the prior understanding of educating about the Brazilian
fauna and more specifically of the Manatee (TRICHECHUS Manatus) and is based on practices
anchored on the interrelationship between social and linguistic knowledge with new
technologies/media, aiming at its applicability in public nurseries and private teaching establishments as
well as the development of skills and competencies in writing and reading. To this end, we used the
following methodological procedures: research and field notes, clipping, drawing, painting, collage,
video display about the object of study, in addition to research on educational websites and video
games related to the preservation of the Amazon biome, syllabic writing activities, memory game and
exercises that stimulate the acquisition of motor coordination fine/coarse and the development of
analytical capacity by subject. In the light of the theories of CASTELS (1999), FREEMAN (1982),
LEVY (1993), DOWBOR (2001), BRUNNER (2004), white (2003), KOLLER (2004), BRAZIL
(1997), (1998), (1999), FAULSTICH (1987), MARTINS (2003), KATO (1999), FERREIRO &
TEBEROSKY (1997,2000) and RANGEL (2005) took place this action-research on relevant concepts
that were discussed the literacy strategies, technologies and its amplitude in environmental education
for children belonging to the pre-school reflective citizens and participants that in the future will be
able to play the leading role in the academic context, in the world of work and in the society.
Key Words: Literacy; Technology; Environment
INTRODUÇÃO
O entendimento acerca do processo de letramento no cotidiano da criança se efetiva a partir da
compreensão por parte do sujeito (educando) das múltiplas linguagens observadas em seu cotidiano,
imprimindo-lhes contornos regulares a partir da construção de regras, permitindo a gênese de seus
próprios conceitos gramaticais, isto é, o seu modo peculiar, único e intuitivo de explicitar a estruturação
da linguagem. Neste sentido, pode-se citar a contribuição de FERREIRO & TEBEROSKY (2000,p.29)
ao pontuarem ―a importância do sujeito ativo que busca compreender o mundo que o cerca.‖
(COSTA,BEZERRA,TEIXEIRA,DIAS (2012,p.47). Ainda de acordo com as referidas autoras, a
criança vem a ser:
―um sujeito que aprende basicamente através de suas próprias ações sobre os objetos do
mundo e que constrói as suas próprias categorias no pensamento ao mesmo tempo em que
organiza o seu mundo‖.( FERREIRO & TEBEROSKY,2000,p.29)
Outro aspecto considerado nesta análise relaciona-se à escrita enquanto modo particular de
representação da linguagem pelo sujeito (criança), demonstrando um conhecimento pré-existente sobre
a sua língua materna, mesmo antes de adentrar o ambiente escolar.
Deve-se considerar ainda, o fato de a apreensão da escrita pela criança depende das
oportunidades de fazê-lo, mesmo que não consiga grafar corretamente as palavras, incidindo em um
dos quatro pilares propostos por DELORS (2001): Aprender a fazer e tal gesto permitirá que o
indivíduo confronte pontos de vistas e reflitam pari passu de que modo a escrita se organiza, o que ela
representa e a sua função.
No âmbito da turma de 4/5 anos do Centro de Referência em Educação Infantil Frei Afonso,
no que tange à apropriação da escrita pode-se evidenciar que alguns sujeitos desta faixa etária (o
295
menino K., 5 anos e 6 meses e a menina C., 5 anos e 2 meses) indagam espontaneamente acerca do
significado de alguns vocábulos, dialogando com as professoras e estabelecendo links com as figuras
apresentadas e os desenhos realizados durante as aulas.
Concebeu-se também que os sujeitos (educandos) perceberam a leitura de símbolos
diferentemente dos códigos adultos seguindo hipóteses reformuladas no decorrer do tempo e tais idéias
são compostas por uma sequência iniciada na hipótese pré-silábica e que culmina com a apreensão e
elaboração da silábica( relacionam a grafia ao som) com vistas a alcançar a compreensão das letras
como modo de representação menores do que as sílabas, isto é, culminando com a assimilação da
hipótese alfabética (FERREIRO;TEBEROSKY,2000). No contexto da referida turma, notou-se
também que algumas crianças não realizavam distinção entre o desenho e a escrita, valendo-se de
qualquer sinal gráfico para representar o seu ambiente.
Neste ínterim, percebe-se que a criança em processo de aprendizagem estabelece relações com
o seu mundo, incorporando a sua linguagem a partir do seu cotidiano e deste modo, detectou-se que os
educandos pertencentes à referida turma, utilizavam-se muito da fala.
Para KATO(2002,p.11 apud BEZERRA & OLIVEIRA (Orgs.),p.87):
A fala e a escrita são parcialmente isomórficas, mas que na fase inicial é a escrita que
tenta representar a fala – o que faz de forma parcial – e, posteriormente, é a fala que
procura simular a escrita, conseguindo-o também parcialmente. O esquema abaixo
tenta captar esta direção: Fala 1 - > Escrita1 - > Escrita2 -> Fala 2
Tais considerações foram validadas a partir da realização de atividades envolvendo o gênero
textual lista. As crianças tentaram relacionar nomes a animais e objetos para a organização de uma lista
de animais, levando em consideração que o referido tipo de texto constitui-se em um lócus privilegiado
para o trabalho com aprendentes que não sabem ler ou escrever convencionalmente, entretanto, fez-se
necessária a mediação das educadoras (estagiárias de Pedagogia, autoras deste trabalho) no sentido de
propor a escrita da lista de animais para relacionar com a sua função no ecossistema. Observou-se que a
escrita destes teve início com a primeira letra do nome do animal ou outra similar, caracterizando a
função social que os mencionados animais possuem no contexto dos educandos.
Para tanto, as crianças receberam uma lista com substantivos próprios e comuns conhecidos
por elas, distintos por grupos ou categorias: animais do circo, animais da fazenda, animais marinhos, da
floresta, do rio, flores, frutas e outras categorias com a mediação das professoras tentaram realizar uma
leitura, no sentido de registrar as suas impressões em torno da matéria e estabelecendo as primeiras
situações comunicativas do estabelecimento de relações entre a instâncias oral e a escrita.
Na condição de ser histórico e social, os sujeitos devem interagir com os elementos que o
inserem no contexto da educação voltada para as inovações e mudanças que o cenário do novo milênio
impõem a reflexão em torno das práticas educativas que contribuem de modo interventivo das ações
perpetradas pelos seres humanos no meio ambiente, introduzindo-as no mundo infantil a partir do
296
processo de desenvolvimento social e intelectual assim como a compreensão de conceitos formados e
assimilados no interior de processos cognitivos interligados ao meio social dos sujeitos, suas
representações no cotidiano e sua apresentação na realidade social.
Neste sentido, pode-se validar a assertativa de Vygotsky (1999) acerca da temática abordada:
A consciência é entendida aqui como a percepção da atividade da mente, a consciência
de estar consciente. No entanto é uma fase extremamente importante no processo de
formação de conceitos mais abstratos porque é nela que se dá o início das impressões
desordenadas a partir das organizações dos objetos discretos, vivenciados em grupo.
Em suma, cria bases para organizações posteriores, a partir da interiorização dos
instrumentos culturais e da regulação do próprio comportamento.
Nesta ótica do autor observa-se que o sujeito é profundamente marcado pelo seu meio
físico/social e que para que ele desenvolva integralmente os seus aspectos físico,motor,cognitivo,
afetivo e social torna-se necessário sentir-se seguro principalmente no que tange à sua formação social e
pessoal em um lócus em que ele seja aceito, amado e cuidado.
Ressalta-se a importância do educador enquanto moderador das relações do indivíduo com o
seu mundo e reflexo, permitindo a construção de uma sociedade mais justa, que demanda do debate em
torno dos conhecimentos pré-existentes no tocante às temáticas do meio ambiente e da utilização de
ferramentas tecnológicas e midiáticas como instrumentos de conscientização dos sujeitos especialmente
no que se refere à preservação ambiental e construção da cidadania a partir de práticas trazidas para o
contexto escolar a partir do eixo temático transversal Meio Ambiente, inserido nos PCNs (Parâmetros
Curriculares Nacionais), no RCNEI (Referencial Curricular Nacional para o Ensino Infantil) e na
LDBEN nº 9394/96 (Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional Brasileira), percebendo que a
análise deste assunto demanda não apenas em concebê-la como vertente educacional, mas a partir da
ótica do sujeito entendido como fator e resultado dos links estabelecidos entre os fatos
históricos,sociais,políticos e econômicos.
Assim, GRAMSCI (1999:93) pontua: ―O homem é um processo, precisamente, um processo de
seus atos.‖ No interior desta dinâmica, percebe-se que a criança constitui-se em uma fração do todo e
as características que lhes são peculiares quer seja no aspecto psicológico ou no físico se modificam
segundo cada realidade específica e de acordo com o seu meio.
Neste panorama, pontua-se a relevância para o desenvolvimento de ações nestas áreas
específicas nas instituições de ensino infantil, a de adequar metodologias e a prática docente ao
contexto social, biológico e cultural do indivíduo, refletindo sobre este tema, formulando e apontado
para o fato de que a criação dos referidos Parâmetros possibilitou a identificação do que deveria ser
discutido em torno das questões de educação ambiental para crianças matriculadas no ensino infantil
através dos recursos tecnológicos.
297
Em seu cerne o referido documento pontua os principais objetivos aqui explicitados, a saber: a
formação de sujeitos capazes de utilizar as novas tecnologias e no futuro, possibilitar a discussão em
torno das implicações éticas e ambientais condizentes com a utilização das mencionadas tecnologias;
permitir as múltiplas interações entre a comunidade escolar (alunos, pais e/ou responsáveis,
professores,funcionários e gestores) e a natureza; avaliar a ação humana em torno da caça predatória do
peixe-boi (manati) e as suas conseqüências para o meio ambiente; permitir a interação da criança com as
tecnologias a partir da leitura de imagens computadorizadas e a sua conseqüente familiarização com
dados e documentos das mais variadas fontes informativas sobre a matéria (inclusive meios
eletrônicos); análise dos fatos subjacentes à temática abordada; percepção por parte dos sujeitos das leis
e princípios concernentes à interação sociedade/natureza para a melhoria das condições de vida no
planeta.
Diante do exposto concebe-se a sala de aula como um espaço dialógico em que diferentes vozes
e contextos se fazem uníssonos, o educandositua-se como sujeito de ações e relações estabelecidas
coletivamente
em
que as práticas valoradas são provenientes de
um novo
contexto
social,ideológico,político,histórico e econômico em que circulam as novas tecnologias advindas a partir
das últimas décadas do século passado.
Neste ínterim, destaca-se a relevância que um estudo desta natureza impõe, levando em
consideração a assertativa de LEVY (1999) apud BEZERRA & COSTA (2009,p.107): o ciberespaço é
o novo espaço de comunicação que abrange diferentes dispositivos computacionais e informacionais e
tem como principais características: abertura e descentralização, conteúdo ilimitado, liberdade de
expressão e singularidades.
Faz-se necessário neste ponto, expor que no contexto escolar e no cotidiano das crianças do
Centro de Referência em Educação Infantil Frei Afonso, as novas tecnologias da informação e
comunicação (TICs) não se constituem em meras ferramentas a serem utilizadas pelas crianças, mas
processos em vias de desenvolvimento por parte das mesmas. Tanto educadores quanto educandos
podem assumir o controle desta tecnologia a fim de produzir e disseminar o conhecimento científico.
Neste sentido este estudo contemplou a análise em torno dos diversos conceitos relativos às
questões do meio ambiente e de como a vida das pessoas são transformadas a partir da utilização das
novas ferramentas tecnológicas. Neste ínterim, ―a Terra seria um organismo, onde todos os seres vivos
estariam ligados entre si e o ambiente físico.‖ (LOVELOCK (1970) in BARRETO,BRENNAND &
ARAÚJO,2010,p.190). Nos Parâmetros Curriculares Nacionais – PCNs (1998) Brasileiros tem-se:
A principal função do trabalho com o tema meio ambiente é contribuir para a
formação de cidadãos conscientes, aptos a decidir e atuar na realidade socioambiental
298
de um modo comprometido com a vida, com o bem-estar de cada um e da sociedade
local.
Ademais, a partir da lei exposta anteriormente, as creches e pré-escolas, que atendem crianças
de até seis anos, se vincularam ao sistema educacional, abrindo espaço para uma preocupação mais
formal com esse nível de ensino, preocupação esta que pode ser identificada também por meio da
criação dos Referenciais Curriculares Nacionais da Educação Infantil (Brasil, 1997b), expondo
deste modo, anecessidade do trabalho com o meio ambiente, destacando a importância do trabalho
com a formação integral das crianças, centrando-se nos eixos de Formação Pessoal e Social
(incorporando a preocupação com o cuidado infantil dentro do eixo de Identidade e Autonomia) e
Conhecimento de Mundo (incorporando o trabalho com conteúdos informativos sobre o tema saúde
dentro do eixo de Natureza e Sociedade): (...) estudos da percepção que os indivíduos tem acerca do eu meio, são de
fundamental importância para que possamos compreender melhor as inter-relações entre o homem e o meio ambiente, suas
expectativas, satisfações e insatisfações, julgamentos e condutas. GUERRA & SOUZA (2005)
O projeto ora proposto foi desenvolvido durante oito semanas e quinze dias respectivamente
nos meses de Outubro, Novembro e Dezembro de 2012, no Centro de Referência em Educação
Infantil Frei Afonso, instituição pública municipal de ensino infantil situada à Rua Santa Terezinha
S/N , localizada no bairro do Roger, em João Pessoa, capital da Paraíba, unidade federativa situada na
região Nordeste do Brasil e cuja clientela é composta por 37 sujeitos (crianças) oriundas das camadas
sociais menos favorecidas.
Tais ações foram organizadas em um cronograma disposto em sete etapas,conforme o exposto
a seguir: Convocação dos sujeitos; Realização de atividades lúdico e didático-pedagógicas envolvendo a
temática do meio ambiente e da escrita de nomes de animais pertencentes à fauna brasileira; Elaboração
de trabalhos a partir de atividades desenvolvidas em sala de informática/multimídia; Sistematização dos
dados coletados a partir das atividades desenvolvidas; Exposição dos trabalhos em evento
pedagógico/científico/cultural; Elaboração do Relatório Final; Impressão do Relatório Final. No
parecer de FAGGIONATO (2002) a percepção ambiental dos indivíduos pode ser estudada através de
questionários, mapas mentais ou de contorno, representação fotográfica etc.
Apontando para uma abordagem qualitativa e descritiva, não reportando a generalizações
estatísticas e convém destacar que foram utilizados os seguintes procedimentos: intervenção e
observação por parte dos profissionais e estagiários envolvidos neste processo de apreensão dos
conteúdos referidos no corpus desta análise e com base na transcrição, leitura, na reflexão e na
socialização das ações e imagens (fotos) propostas para a comunidade acadêmica foram identificadas
categorias que emergiram das diversas situações vivenciadas dentro e fora de sala de aula,
299
representando, assim, os elementos considerados pelos atores envolvidos como de fundamental
importância neste processo tais como o cuidar e o educar como elementos presentes no trabalho de
articulação dos conhecimentos em meio ambiente e tecnologias, conforme exposto nas referências
deste estudo.
Metodologicamente concebe-se que tanto a escolha quanto a aplicação de métodos de pesquisa
se dão sempre em função do objeto pesquisado e a problemática nela contida norteiam a jornada rumo
ao conhecimento e a identificação da concepção de crianças de 4 a 5 anos em torno da temática da
preservação de espécimes em extinção assim como a integração entre meio ambiente e uso de
tecnologias possibilitaram a construção do conhecimento, instaurando propostas de intervenção que
possibilitaram o conhecimento por parte dos pesquisadores no tocante à realidade dos sujeitos. O
trabalho teve início na primeira quinzena do mês de outubro e primeiramente foram selecionados 37
sujeitos (a turma do Pré-Escolar II) em sua totalidade e a coleta de dados foi realizada em 11
momentos, a saber:
1ª momento: Planejamento das ações; 2ª momento: Exibição de vídeo e descoberta dos detalhes
da vida dos animais em risco de extinção na fauna brasileira e do peixe boi no computador. Elaboração
de um cartaz acerca dos conhecimentos prévios dos educandos sobe os mesmos e comparação com
aqueles adquiridos a partir da utilização do computador e em torno das suas inquietações em torno da
matéria abordada; 3ºmomento:Realização de atividades de desenho e pintura a dedo e colagem (Colocar
o peixe-boi no aquário); 4ºmomento: Apresentação dos materiais para as crianças coletarem dados a
respeito deste animal traçando considerações sobre a sua pesquisa na internet; 5ºmomento:
Organização de grupos para que cada um deles trabalhe com uma fonte distinta; 6ºmomento: Expor o
site Ciência Hoje para crianças a partir da digitação da palavra peixe boi; 7º momento:Questionar e
registrar a importância das descobertas dos sujeitos e reiterar a validade da construção de uma
consciência ambiental partindo do uso de ferramentas tecnológicas (principalmente ao destacar o
salvamento dos endereços eletrônicos como suporte em pesquisas futuras); 8º momento: Listagem de
nomes e sistematização de fichas técnicas sobre o assunto; 9ºmomento: Apresentação de jogos de
computador sobre a fauna brasileira;10ºmomento: Escritura das legendas das fotos (dos jogos) no
computador; 11º momento: Aula de campo no viveiro do Projeto Peixe-Boi, localizado na Ilha de
Itamaracá, no Estado de Pernambuco, na região Nordeste do Brasil.
As crianças foram avaliadas qualitativamente e continuamente no decorrer do trabalho a partir
de sua socialização, participação, interesse, capacidade de liderança, coordenação viso-motora e/ou
motora fina/grossa, comunicação, expressão, conscientização em torno da preservação do meio
ambiente e em relação ao desenvolvimento de competências afetivas, cognitivas, mnemônicas, assim
como no tocante à a ampliação de seu vocabulário e minimização dos erros de ortografia entre os
300
meses de Outubro , Novembro e Dezembro de 2012 percebeu-se uma melhora significativa nas
práticas associadas às condições de conservação do meio ambiente e da assimilação por parte das
crianças acerca dos eixos temáticos meio ambiente e tecnologia como garantia do pleno
desenvolvimento dos educandos pertencentes ao Centro de Referência em Educação Infantil Frei
Afonso.
É mister ressaltar que as idéias das crianças sobre meio ambiente, preservação e utilização do
suporte tecnológico como ferramenta de ensino-aprendizagem e como forma de edificação de uma
consciência cidadã constituem-se em frutos de uma construção social, uma vez que diferentemente à
visão de um indivíduo passivo que sofre a influência do seu meio, pôde-se elaborar um estudo desta
natureza que abordando a teoria psicogenética de Piaget demonstrou que o conhecimento não se
materializa em um simulacro da realidade, mas deriva de um processo ativo de construção, fruto da
interação do sujeito com o meio em que vive e em conformidade com o pensamento piagetiano:
Os conhecimentos derivam da ação, não no sentido de meras respostas associativas,
mas no sentido muito mais profundo da associação do real com as coordenações
necessárias e gerais da ação. (PIAGET, 1969/1985,p.37)
Percebeu-se também que os sujeitos manifestavam-se a respeito do assunto abordado
distintamente de acordo com a sua faixa etária, isto é, como atitude reflexa das características
manifestas no seu estágio de desenvolvimento.
Como resultado depreendeu-se que a evolução cognitiva dos educandos possibilitou a análise
das formas peculiares de aquisição das relações entre a língua falada e a escrita segundo os estágios de
desenvolvimento intelectual de cada um, demonstrando ainda a ampliação de habilidades e de
competências, apesar de não compreenderem as conseqüências das ações negativas impetradas contra o
planeta e os seres vivos, devido à sua pouca idade. Não considerar este fator limitaria o campo de ação
destes pesquisadores e no tocante à compreensão das relações entre os indivíduos, os espécimes
ameaçados e o meio ambiente.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Finalizando esta jornada, deve-se questionar o modo que as temáticas da educação ambiental e
do acesso às tecnologias e mídias pelas crianças das instituições públicas de ensino infantil, sem reportar
a generalizações, tendo em vista que este projeto foi elaborado e executado em apenas uma creche do
município de João Pessoa.
Depois de analisados e escrutinados os dados verificou-se a necessidade premente de trabalharse a educação ambiental associada às práticas de letramento, principalmente no que se refere à
fragmentação conceitual dos ―pequenos‖ e de suas famílias em relação à preservação do meio ambiente
301
a partindo da pesquisa e da ambientação em fontes eletrônicas e/ou midiáticas e principalmente a partir
da sua inserção em um ambiente capaz de possibilitar o desenvolvimento de competências em leitura e
escrita com o fito de ampliar-lhes as suas concepções e pontos de vista a partir de sua inserção no
mundo que os cerca, permitindo o entendimento de que a escola enquanto instituição mediadora e
formadora deve constituir-se em local dialógico, ativo e decisivo na construção de uma nova realidade
para os sujeitos.
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professores e alunos das escolas públicas de Cabedelo e João Pessoa. In: Anais do XI Congresso
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FERREIRO,E & TEBEROSKY,A. A Psicogênese da língua escrita.4.ed.,Porto Alegre:
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302
HABILIDADES, APTIDÕES E IDENTIDADE: UM RELATO DE
EXPERIÊNCIA DAS ATIVIDADES DE ENSINO E PESQUISA NO PIBID
LETRAS IFPA/CAMPUS BELÉM.
Ana Paula Santos Sarmanho1
Profa. Esp. Leila Telma Lopes Sodré (Orientadora)2
Resumo:Este estudo realizou-se durante as atividades de ensino e pesquisa do Programa de Iniciação à
Docência – PIBID, oferecido pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior CAPES, através do Projeto Ciências em Ação II, aos alunos de licenciatura do Instituto Federal do
Pará. O mesmo visa apresentar resultados das atividades desenvolvidas na escola parceira E.E.E.F.M.
Temístocles de Araújo, especificamente nas turmas de 1º ano regular integral.
O trabalho tem como proposta enfocar o uso de textos e dinâmicas motivadoras a fim de desenvolver
as práticas de leitura e escrita, dentro e fora do âmbito escolar, possibilitando o domínio dessas práticas
e produções quer escritas, a exemplo os trabalhos desenvolvidos em sala, gêneros primários e
secundários, quer orais, a exemplo das interações comunicativas face a face, como também para
desenvolver suas capacidades de linguagens, valorizar a escola como espaço social democrático,
levando ao aluno se perceber como ator social de fundamental importância nas relações sociais e na
transformação da sociedade.
Partindo de concepções sociointeracionistas, trabalho a proposta de GERALDI (1997) na qual todas as
produções – escritas e orais - são ponto de partida e de chegada para todo o processo de ensino
aprendizagem de língua e, para tanto, os textos motivadores são um instrumento valioso nesse processo
de aquisição da linguagem. Além disso, trabalho a proposta de LEFFA (1999) e CARVALHO (2007)
que abordam o papel fundamental do leitor na atribuição e construção de significados ao texto, para
que haja a interação autor-texto-leitor. Dessa forma, o professor oportuniza, aos alunos, aulas com
textos significativos que trabalham habilidades, aptidões, questões de identidade e que ampliam as
visões de mundo tanto de quem ensina, como de quem aprende. Haja vista, que as aulas de português
devem levar ao aluno a compreensão das relações sociais e transformação da realidade circundante.
Palavras-chave: Textos motivadores; Interacionismo; Ensino aprendizagem.
Abstract: This study was carried out during the activities of teaching and research Program Initiation
to Teaching – Pibid, offered by Coordination of Improvement of Higher Education Personnel CAPES, through Project Science in Action II, undergraduate students at the Federal Institute of Para It
aims to present the results of activities in partner school EEEFM Themistocles de Araújo, specifically
in classes of 1st year regular full.
The proposed work is focusing on the use of dynamic and motivational texts to develop reading and
writing practices, both inside and outside the school, allowing the mastery of these practices and
productions whether written, like the work done in class, gender primary and secondary, whether
verbal, such communicative interactions face to face, but also to develop their language skills, enhance
1
Graduando do 3º semestre de Licenciatura Plena em Letras do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Pará
e bolsista do Programa de Iniciação à Docência – PIBID/IFPA CAPES. (IFPA) E-mail:
[email protected]
2
Professora do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Pará – IFPA, graduação em Letras pela UFPA,
especialização em Letras, Coordenadora do Subprojeto de Letras/Belém-2011 do PIBID/IFPA. E-mail:
[email protected]
303
the school as a social democratic, leading the student to understand how fundamentally important
social actor in social relations and transformation society.
Leaving sociointeractionists conceptions, the proposed work GERALDI (1997) in which all
productions - written and oral - are the point of departure and arrival for the whole process of teaching
and learning of language, therefore, the texts are a motivating tool valuable in the process of language
acquisition. Furthermore, the proposed work Leffa (1999) and Carvalho (2007) that address the role of
the reader in the construction and allocation of meanings to the text, so there is interaction author-textreader. Thus, the teacher gives opportunity, students, classes with significant texts working abilities,
skills, and identity issues that extend both the worldviews of those who teach, as learners. Considering
that the Portuguese classes should lead to student understanding of social relations and transformation
of the surrounding reality.
Keywords:Texts motivators. Interactionism. Teaching and Learning.
4. Introdução
Este relato de experiências descreve uma situação vivenciada como bolsista do Pibid Letras na
Escola Estadual de Ensino Fundamental e Médio Temístocles de Araújo, onde observei os
procedimentos adotados pelos professores de Língua Portuguesa que se utilizam de textos motivadores,
tais como ―Aprenda a gostar mais de você‖, ―A moça tecelã‖, e dinâmicas de grupo tais como, ―Quem
eu sou faz a diferença‖, ―Quem sou eu‖,
como recursos didáticos e pedagógicos para o
desenvolvimento das práticas de leitura e, principalmente de escrita, em sala de aula. Estes recursos
podem se tornar um instrumento valioso no tocante ao processo de ensino-aprendizagem de línguas.
Acredito que a escolha de textos e de dinâmicas deva contemplar uma gama de questões sociais
e culturais existentes no mundo e no nosso cotidiano. Na aula de Língua Portuguesa, o uso desses
recursos torna possível que os debates em sala sejam instaurados, a partir da exploração de temas de
interesse dos alunos. Observei que há enriquecimento intelectual, pois a leitura e a discussão dos
assuntos trabalham capacidades cognitivas como a memória, a percepção, a seleção de palavras e de
formas de construir enunciados, além da capacidade de criticar, argumentar e posicionar-se como
sujeito de dizer, falando ou escrevendo.
Observo que os assuntos motivados pelo texto e debatidos pelos alunos podem servir como
embasamento para as produções quer escritas (nas redações solicitadas pelos professores, em
documentos etc.), quer orais (nas diversas situações comunicativas de interação social face a face, como
as conversas informais, por exemplo).
A observação dessa aula realizou-se durante as atividades de ensino do Programa de Iniciação à
Docência – PIBID, oferecido pela CAPES através do Projeto Ciências em Ação II, aos alunos das áreas
de licenciatura do Instituto Federal do Pará – IFPA. Como o referido Programa visa iniciar os alunosbolsistas na área da docência, abrangendo dessa forma pesquisa, ensino e extensão, levei em conta que a
minha formação estava sendo construída na prática com os subsídios da teoria, pois também há leituras
de base, como Magda Soares, João Wanderley Geraldi, Mikhail Bakhtin, Angela Kleiman, entre outros.
304
Para tanto, os bolsistas desenvolvem atividades de ensino nas escolas parceiras e atividades de pesquisa
no Laboratório do Pibid, fazendo assim a articulação entre teoria e prática para que o aluno de
licenciatura possa desenvolver experiências docentes ainda no tempo de formação acadêmica,
almejando contribuir na produção de conhecimento e em mudanças qualitativas na prática escolar da
escola pública paraense.
2 CARACTERIZAÇÃO DO PROJETO DE LETRAS “LEITURA E ESCRITA NO
CONTEXTO ESCOLAR”
O Subprojeto Letras ―Leitura e Escrita no Contexto Escolar‖ faz parte do Programa Ciências
em Ação II, o qual se vincula ao PIBID/CAPES-IFPA. As atividades no Projeto de Letras, no primeiro
momento, iniciaram-se pelas definições das atividades de ensino nas escolas e das atividades de
pesquisa no laboratório. A primeira atitude da coordenadora foi discutir a realidade da educação no
Brasil e a situação de analfabetismo funcional no Brasil, destacando os índices de analfabetismo no
Pará. Para aprofundar essa discussão, precisamos efetuar as leituras de base indicadas, pela professora
Leila Sodré, tais quais: ―Letramento e língua materna‖ de Angela Kleiman, ―letramento digital e ensino‖
de Antônio Carlos Xavier, ―música na aula de português‖ de Darcilia Simões, entre outras, para que
pudéssemos compreender sob o olhar científico o que significa analfabetismo, letramento, índices da
realidade de leitura e escrita dos alunos, como ocorre o processo de ensino-aprendizagem da leitura e
escrita. Após isso, fomos divididos em Grupos Temáticos (GT) para que cada grupo pudesse
desenvolver as atividades de ensino e pesquisa, elegendo um tema de discussão e uma comunidade de
gêneros textuais. O GT no qual estou inserida trabalha o letramento digital que focaliza além da
inclusão digital, o uso adequado do computador e seus múltiplos recursos a fim de incentivar a leitura
crítica e aquisição-compreensão da leitura e escrita. Esse recorte do estudo relativo às práticas de
letramento nos levou a definir o nosso trabalho nas escolas a partir de uma seleção de diversos gêneros
digitais como o blog, e-mail, fóruns educacionais, chat educacional e etc.
O GT Letramento digital preocupa-se com atividades de ensino que venham a inserir os alunos
no ambiente digital para que compreendam as práticas de leitura e escrita por intermédio dos gêneros
digitais e se percebam como atores sociais nesse âmbito. Na Escola Estadual Mário Barbosa,
desenvolvemos oficinas a fim de preparar os alunos para a prova do ENEM, aplicamos questionários
de leitura e escrita a fim de compreender a realidade dos alunos e da escola. Auxiliamos também na
criação da feira de ciências com o mural de poesias a partir da temática água, com alunos de 2º e 3º ano
do ensino médio regular. Depois, fomos realocados para atuar na Escola Estadual Temístocles de
Araújo com as turmas do 1º ano do Ensino Médio que permanecem na escola pelo modelo de
educação integral e integrada.
305
Como o PIBID é um Programa que valoriza a iniciação dos estudantes de Licenciatura, estamos
tendo a oportunidade de reconhecer que a escola é um espaço social fundado do princípio democrático,
e o trabalho com a leitura e com a escrita escolar deve ser incentivado, nas aulas de Língua Portuguesa,
com textos motivadores que tragam os assuntos para um debate onde a interação aconteça e as
informações sejam fonte de interpretação e produção escrita. A aula de português deve levar o aluno a
compreender as relações sociais e a transformação da realidade em que está inserido. Ele deve
perceber-se como ator social com fundamental papel atuante, a fazer leituras e releituras dos discursos
que são empregados e proferidos e que sejam capazes de avaliar, questionar, interpretar e analisar
criticamente o mundo circundante. E o professor de Língua Portuguesa deve assumir seu compromisso
com essa formação, percebendo-se como agente de transformação social.
3 FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA
Para subsidiar o trabalho com os textos motivadores e dinâmicas de grupo, utilizei algumas
concepções de Leffa (1999) e Carvalho (2007), autores que falam sobre o papel fundamental do leitor,
na perceção e atribuição de significados ao texto, para que haja a interação autor-texto-leitor, além de
outras como Fish (1996), Solé (1998), Freire (1994) e Geraldi (2007).
Leffa (1999, p. 13-37) apresenta uma teoria da leitura, cuja ênfase no leitor, concentra-se
basicamente em algo que acontece na mente desse leitor, portanto a construção do significado não é
feita a partir do texto, chamado por Leffa como um processo de extração, mas a partir do leitor, que
não extrai do texto um significado, mas o atribui.
Leffa ainda discorre sobre o processo de interação, podendo ser ele entre autor-leitor, textoautor, texto-leitor, ou ainda, as fontes de conhecimento envolvidas na leitura, existentes na mente do
leitor, como conhecimento de mundo e conhecimento linguístico, o leitor e os outros leitores. Dessa
forma, pretendia-se levar o aluno a perceber o texto por meio de um processo cognitivo de construção
de significados e para tanto, todos os textos trabalhados e as dinâmicas desenvolvidas não foram
objetos de extração e decodificação, mas sim a potencialização do aprendizado e a compreensão do
material textual usado, no nosso caso, os textos motivadores.
Por sua vez, Carvalho (2007, p. 108) reconhece a importância do autor no processo de
atribuição de sentido ao livro e por outro lado, destaca a importância do leitor, pois como a noção de
Stanley Fish (1996, p. 407-425) apresenta o texto de forma somente realizável a partir do olhar
interpretativo do leitor, e sem o qual ele inexiste.
As atividades desenvolvidas visam que os alunos se enxerguem como atores sociais e acima de
tudo, sujeitos ativos, que dialogicamente se constroem e são construídos no texto, por esse motivo, a
dinâmica relatada trabalhará questões de identidade, habilidades e aptidões, pois como afirma Souza,
―As concepções interacionistas consideram a leitura como um processo cognitivo e
perceptivo, a prática leitora condensa tanto as informações presentes no texto, como
306
as informações que o leitor traz consigo e a construção dos sentidos ocorre através da
interação entre leitor e texto.‖(SOUZA, 2000, p. 02)
Solé (1998) considera o modelo interacionista como o mais adequado para o entendimento do
ato de leitura como um processo de compreensão, do qual participam tanto o texto, sua forma e
conteúdo, quanto o leitor, suas expectativas e conhecimentos prévios. Assim sendo, o educador deve
ter a percepção e entendimento de que não é mero transmissor de conhecimentos e que essa interação
entre seus conhecimentos é de vasta riqueza tanto para o educando, quanto para o educador.
Ratificando, Freire (1994) destaca esse tema quando afirma que:
―Ensinar não é transferir conteúdo a ninguém, assim como aprender não é memorizar
o perfil do conteúdo transferido no discurso vertical do professor, a aprendizagem
não se dá por transferência de conteúdo, mas por interação, que é o caminho da
construção.‖ (FREIRE, 1994, p.134).
Tendo em vista que os textos motivadores são de suma importância, para além de trabalhar
questões de identidade, aptidões e habilidades, como também para a produção textual, dos alunos, no
processo ensino/aprendizagem, Geraldi (1997) afirma que:
―A produção de textos (orais e escritos) é o ponto de partida e chegada de todo
processo ensino aprendizagem da língua, [...] porque é no texto que a língua se revela
na sua totalidade, quer enquanto conjunto de formas e de seu reaparecimento, quer
enquanto discurso.[...]‖ (GERALDI, 1997, p. 58)
Vale salientar, que a escolha dos textos motivadores e dinâmicas requer do educador uma
observação das competências e necessidades dos alunos que serão trabalhadas.
4 O RELATO DE EXPERIÊNCIA
A experiência aqui relatada é produto de várias reuniões de planejamento com a Professora
Coordenadora, com os bolsistas e com os professores das escolas-parceiras, atividades de pesquisa e
atividades de ensino, desenvolvidas na escola Temístocles de Araújo em parceria com o PIBIDIFPA/Campus Belém, vinculado à Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior
(CAPES).
Iniciamos com as leituras de base que iriam subsidiar nossa concepção de letramento, nos mais
variados grupos temáticos (GT), cujo objetivo é embasar as nossas intervenções na sala de aula e a
formulação de exercícios para auxiliar o professor nas aulas de leitura e escrita. Além disso, essas
leituras nos possibilitaram criar instrumento de pesquisa como questionário e diários de campo para
fazer um diagnóstico de leitura e escrita, a fim de finalmente conhecer a realidade de letramento escolar,
pois nossa meta é a construção do Ateliê de Leitura e Escrita.
Para isso, era preciso ver a leitura enquanto processo sociointeracional, perceber que há
modelos teóricos que ajudam a perceber essa questão de diferentes modos. Estamos ainda fazendo
nossas escolhas teóricas e verificando a possibilidade de introduzir algumas questões da Análise do
307
Discurso de base francesa. Essa base teórica nos ajuda a pensar dinâmicas para interpretação de textos,
de fatos e situações vividas pelos alunos em sala. Alguns exercícios formulados pelo GT Letramento
Digital, tais como ―A identidade [Ir]realidade nas Redes Sociais‖, trazendo discussões acerca da
identidade no mundo digital, com enfoque nas redes sociais, sobre o eu online e eu offline, o perfil
construído para que o Outro me perceba nas diversas redes sociais e gêneros digitais, nos quais estou
inserido. Tal qual como a atividade com o texto ―Comunicação e Tecnologia – Violência na Rede: Os
ataques virtuais – o cyberbullying – são uma prática que se tornou comum entre os adolescentes e
preocupam os educadores‖, que esclarecerá a questão do cyberbullying e suas consequências dentro e
fora do âmbito escolar e sugestionará o que os pais devem fazer, casos seus filhos sejam os praticantes
ou sofram a ação praticada por outros colegas de classe. Tais atividades, alem de outras, estão
permitindo que os alunos percebam a leitura não mais como ato de decodificação de palavras ou como
depósito de informações e conteúdos escolares. O modelo sociointeracionista proposto por Geraldi
(1997) tem sido uma ótima contribuição na sala de aula, pois o aluno já começa a perceber-se como
construtor social a partir das diversas interações orais e/ou escritas dentro e fora do âmbito escolar.
A proposta de atividade ―trabalhar a auto estima‖ foi pesquisada e desenvolvida pela professora
de Língua Portuguesa da escola Temístocles, Lilian Amaral. Auxiliei-a na entrega do texto de título
―Aprenda a gostar mais de você‖, de autoria do Professor Guimarães.
A leitura foi feita em conjunto com os alunos e logo após a professora os questionou: O que
percebem do texto? Qual sua opinião sobre a mensagem? O que tem de mais importante? O que foi
compreendido?
A turma, de uma forma muito positiva e participativa, manifestou sua opinião e percepção
acerca do texto. Cada aluno destacou uma frase que o cativou, chamou sua atenção e exprimiu o
porquê da escolha.
Cito algumas opiniões: ―Quem faz o sucesso é você, mais ninguém. Temos que ‗correr‘ atrás do
sucesso e não esperar pelas outras pessoas‖ (aluna da turma 1R2). Outro parecer de um aluno afirmava
―Para gostar mais de você mesmo é importante desenvolver a capacidade de se doar, sem interesse
financeiro. E acrescentou que ajuda em campanhas na comunidade‖. Neste momento, a professora os
questionou se já haviam visitado algum asilo. Nenhum aluno se manifestou, então a professora os
incentivou a fazer uma visita. Alguns gostaram da ideia e ficaram pensativos sobre o assunto. Chegaram
a perguntar onde se localizava o asilo mais próximo.
Uma última opinião que destaco foi de um aluno que citou ―Habitue-se a aprender com suas
falhas.‖ Ele afirmou o quanto isso era um problema para o mesmo e que estava tentando melhorar e
perceber que as falhas são necessárias para a construção do caráter de cada pessoa. Acrescentando que
é importante se aceitar, aceitar seus acertos e, sobretudo, seus erros.
308
Após longa discussão sobre a mensagem e o entendimento de cada aluno, a partir de suas
vivências, a professora propôs uma produção textual ou a chamada construção de significados, com o
tema ―Minhas habilidades, aptidões, amizades, objetivos e eu‖.
Grande parte dos alunos entregou a atividade escrita na mesma aula e os outros entregaram na
aula seguinte.
Por fim, podemos perceber que as perguntas realizadas oralmente pela professora serviram de
introdução à dissertação elaborada pelos alunos.
O outro texto utilizado pela professora foi ―A moça tecelã‖, no qual em um primeiro momento,
foi feita uma leitura conjunta com os alunos, esclarecida as dúvidas sobre o significado das palavras
desconhecidas pelos alunos e foram identificados os elementos narrativos do texto. Em um segundo
momento, a professora foi instigando, aos alunos, a interpretar o texto, e a todo momento
questionando, porque eles interpretaram desta ou daquela maneira, baseados em que ou em qual
momento do texto. A professora perguntou o que mais tinha chamado a atenção deles, no texto. Logo,
os alunos foram manifestando suas opiniões, a aluna da turma 1R2 afirmou, que o que mais chamava
atenção, era ―o fato de que tudo que a tecelã fazia, passava a ter vida‖. Outro aluno da turma 1R2
observou o contraste de desejos presentes no texto ―Ela sonhava em ter filhos, e ele descobriu o poder
do tear e queria possuir bens‖ e por fim, destaquei uma terceira opinião de uma aluna da turma 1R2 ―o
problema não é querer ter bens materiais, o problema é quando esse desejo ultrapassa os
relacionamentos, a pessoa passa por cima de todos para ter algo material‖.
Em seguida, a professora destacou duas lições que o texto, no seu entendimento, trazia: a
primeira era não pensar nos bens materiais acima das pessoas, dos relacionamentos. Não deixar a
ganância nos consumir e fragilizar as nossas relações com os próximos. E segundo, pensar antes de
agir, quando queremos muito alguma coisa, pois na vida não temos a oportunidade de retroagir a
situação, tal qual a moça tecelã fez, ela desteceu o que tanto queria e tinha tecido com o seu poderoso
tear.
Além disto, a professora conversou com os alunos sobre as questões morais da sociedade,
questões de caráter, de se deixar influenciar negativamente pelas ações e palavras de outras pessoas, e
finalizou com uma auto reflexão sobre o caráter dos alunos, suas ações, como se comportam e como se
deixam influenciar em certas situações.
A primeira dinâmica realizada tem como título ―Quem sou eu‖, na qual a professora entregou
uma folha de papel em branco para cada aluno e pediu que desenhassem algo que gostassem muito,
uma frase preferida, e caso não gostasse do seu nome, escrevesse qual nome gostaria que fosse o seu.
Passado uns 20 minutos, a professora juntamente com os alunos, foram discutindo o porquê das
escolhas de cada um, com o que se identificavam, o que gostariam de seguir na carreira profissional e
309
como cada um se percebia como indivíduo, como os nomes indicavam as personalidades de cada aluno,
percebidas pelos outros alunos e pela professora.
A outra dinâmica realizada chama-se ―Quem eu sou faz a diferença‖, na qual todos os alunos
recortaram tiras de papel e escreveram nela o título da dinâmica. Após contar a história da dinâmica, a
professora os orientou que cada um entregasse o papel para uma pessoa em sala que fazia a diferença
na sua vida. Em seguida, todos entregaram os papéis, e cada um afirmou porque aquele colega de classe
fazia a diferença na sua vida. No fim, a professora refletiu sobre a importância das pessoas na nossa
vida e como fazemos a diferença na vida de outras pessoas.
5. Análise dos Resultados
Os alunos, por meio das atividades que foram realizadas, perceberam que nem todas as
perguntas elaboradas pela professora eram possíveis de se responder apenas com o auxílio do texto
motivador. Reconheceram que muito do que foi desenvolvido por eles, partiu da discussão em sala de
aula, da divergência de opiniões e descobriram que grande parte do que foi produzido, só foi possível
pelo seu conhecimento de mundo, suas vivências.
Em grande parte das atividades, os alunos relataram pontos negativos que gostariam de
amenizar e/ou modificar. Relataram também metas, objetivos de vida, cursos que pretendem fazer,
sonhos que almejam realizar, experiências e habilidades que os satisfazem.
As atividades e dinâmicas motivadoras trabalham a autoconfiança, autoestima e ajuda aos
alunos se perceberem como cidadãos, como atores sociais capazes de transformar o meio em que
vivem, capazes de opinar criticamente, e se sentem mais preparados para os desafios dentro e fora do
âmbito escolar.
Por meio dessas atividades, percebemos a forma que a leitura se dá, ou seja, por meio da
interação. Cujo leitor, através de seus conhecimentos, interage com o autor por meio do texto, para
construir significados. Nessa mesma visão, Silva (1998) postula que o leitor crítico está atento ao que lê,
reflete sobre e transforma a realidade na qual está inserido sobre os aspectos sociais, ideológicos e
culturais presentes no que está lendo. Para tanto, o desafio do professor é desenvolver uma leitura
crítica, afim de que o aluno possa produzir significados a partir dos textos e dinâmicas trabalhadas em
sala de aula. Por fim, acrescento uma afirmação da Professora Coordenadora Leila Sodré de que o
significado não é dado, mas construído a partir das diversas atividades e interações sociais vivenciadas
tanto pelo educando, como pelo educador.
6. Conclusão
O relato de experiência apresentado deriva da exposição de atividades de ensino articulando as
dinâmicas e textos motivadores com teorias de leitura, por meio das quais ratificamos estratégias de
310
ensino aprendizagem da Língua Portuguesa. Tais estratégias ainda precisam ser aplicadas para que os
alunos compreendam que precisam construir o sentido do texto de forma coletiva, e não esperar que os
significados sejam dados pelo professor ou pelo livro didático. E isso só é possível por meio da
percepção e da atuação dos sujeitos que se constituem pela linguagem e pelos processos interacionais.
Essa experiência de sala de aula demonstrou a necessidade do trabalho do professor com seus alunos a
partir de práticas sociais de letramento, como a leitura e a escrita em sala de aula para que o aluno
possa, a partir das ideias partilhadas, construir novos sentidos e ampliar sua compreensão baseados em
elementos linguísticos e extralinguísticos.
Acredito que esse relato de experiência poderá ser significativo para os estudiosos da Área de
Letras que se interessam pelo ensino-aprendizagem da Língua Portuguesa.
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311
FOLHINHA APLICADA: UM EXERCÍCIO DIALÓGICO
Andrea Alves da Silva Souza1
Maria Alice de Sousa Carvalho2
Telma Maria Santos Faria Mota3
Resumo: O presente relato de experiência vem atender aos propósitos de um evento que problematiza,
entre outros temas, a relação entre língua e sociedade, tem como pretensão refletir sobre o alcance de
um periódico mensal elaborado para promover a experiência da leitura e da escrita de toda a
comunidade escolar. Esse periódico, Folhinha Aplicada, é desenvolvido no Centro de Ensino e
Pesquisa Aplicada à Educação da Universidade Federal de Goiás (CEPAE/UFG) e na Escola
Municipal Amâncio Seixo de Brito de Goiânia(EMASB) com uma formatação específica de modo a
atender e permitir o acesso a uma produção textual diversificada, tal como é encontrada na nossa
sociedade. Nele estão os textos produzidos pelos alunos, familiares e docentes em conformidade com
um projeto de ensino, determinado pelo investimento na concepção de linguagem como experiência
humanizadora e dialógica. Assim, as atividades de leitura e produção de textos devem focalizar os
diferentes enunciados e gêneros discursivos que rodeiam o sujeito da linguagem, significando e
ressignificando o mundo. Na visão teórica bakhtiniana, a vida é dialógica por natureza. Isto é, viver
significa participar de um diálogo que pressupõe: interrogar; escutar; responder; concordar, discordar
etc. Semelhantemente à vida, a educação também só se realiza se orquestrada pelo diálogo; um diálogo,
portanto, em que a palavra deve ser concebida, se não em sua múltipla orientação, pelo menos em sua
dupla face. Como ciência humana que é, pressupõe sempre a recepção seguida de interpretação da
palavra de outrem.
Palavras-chave: Linguagem; Ensino; Jornal.
Abstract: This experience report comes to attend the purposes of an event which problematizes, among
other topics, the relation between language and society, and has the intention to reflect on the range of
a monthly periodical designed to promote the experience of reading and writing across the school
community. This periodical, Folhinha Aplicada, is developed at the Center for Teaching and Research
Applied to Education, from the Federal University of Goiás (CEPAE / UFG), and at the Municipal
School Amâncio Seixo de Brito, from Goiânia (EMASB). It has a specific formatting that attempt to
provide acess to a diversified textual prodution, such as it is found in our society. In Folhinha Aplicada
there are texts produced by the students, families and teachers in accordance to a teaching project,
determinated by the investment in the conception of language as a dialogic and humanizing experience.
Therefore, the activities of reading and text production must focus on the different statements and
genres that surround the subject of language, meaning and resignifying the world. According to the
bakhtinian theoretical view, life is naturally dialogical. In other words, to live means to participate in a
dialogue which presupposes: interrogate, listen, respond, agree, disagree etc. Similar to life, education
Professora Auxiliar da Universidade Federal de Goiás – email: [email protected]
Professora Adjunta da Universidade Federal de Goiás – email: [email protected]
3 Professora Auxiliar da Universidade Federal de Goiás – email: [email protected]
1
2
312
also takes place only if orchestrated by dialogue; therefore a dialogue in wich the word must be
conceived, if not in its multiple orientation, at least in its double face. As a human science that it is, it
allways presupposes the reception followed by the interpretation of the word from others.
Keywords: Language, Teaching, Newspaper
O que realizar para materializar um projeto de ensino determinado por uma
abordagem que concebe a linguagem como experiência humanizadora e dialógica? Com
essa pergunta sempre em vista, temos, no Centro de Ensino e Pesquisa Aplicada à
Educação da Universidade Federal de Goiás (CEPAE/UFG), procurado realizar
algumas propostas cuja base seja referendar tal concepção e neste texto iremos
apresentar uma delas, a do jornal mensal veiculado impresso e também on-line sob o
nome escolhido em concurso pelos alunos, o Folhinha Aplicada. Esse periódico tem
uma formatação específica de modo a atender e permitir o acesso a uma produção
textual diversificada, tal como é encontrada na nossa sociedade.
Na perspectiva teórico-bakhtiniana, a vida é dialógica por natureza. Isto é, viver
significa participar de um diálogo que pressupõe: interrogar; escutar; responder;
concordar, discordar etc. Semelhantemente à vida, a educação também só se realiza se
orquestrada pelo diálogo; um diálogo, em que a palavra deve ser concebida, se não em
sua múltipla orientação, pelo menos em sua dupla face. Como ciência humana que é,
pressupõe sempre a recepção seguida de interpretação da palavra de outrem.
Assim, as atividades de leitura e produção de textos devem focalizar os diferentes
enunciados e gêneros discursivos que rodeiam o sujeito da linguagem, significando e
ressignificando o mundo. E, é essa experiência que realmente importa, não só nas aulas
de Língua Portuguesa, mas em todas as outras do currículo escolar, ou seja, é no
exercício de leitura e escrita ocorrido diariamente, em que se experimenta a riqueza da
linguagem, suas infinitas possibilidades.
Conforme o nosso projeto de ensino a interlocução na escola é o principal
princípio, pois para Bakhtin
Aquele que apreende a enunciação de outrem não é um ser mudo, privado da palavra, mas
ao contrário um ser cheio de palavras interiores‖ [...]A palavra vai à palavra. É no quadro do
313
discurso interior que se efetua a apreensão da enunciação de outrem, sua compreensão e sua
apreciação, isto é, a orientação ativa do falante (1995, p.147).
Parece óbvio, não é? Entretanto, não é isso que vemos acontecer na maioria das
aulas de nossa língua materna, sob a orientação da política educacional em curso. Aquela
em que a prioridade é aumentar os índices avaliativos, sem que o aluno passe pela
travessia de trabalhar com a palavra, com todas as implicações aí envolvidas, no sentido
mesmo de ser falante. Passagem que ocorre com alegria e dor, com acertos e erros.
O eixo da proposta educacional, implementada pelo Ministério da Educação
vincula cada vez mais à educação com avaliação, gestão e financiamento, isto é, submete
a nossa educação à lógica economicista sob o modelo da produtividade, com a defesa de
que é possível ter mais eficácia, ou seja, melhores índices. Essa política é estendida aos
estados e municípios, por meio de um conjunto de programas sistematizados e bem
articulados sob os nomes Índice de Desenvolvimento da Educação Básica, Prova Brasil,
Provinha, Pacto Nacional Pela Alfabetização Na Idade Certa, Currículo em Movimento,
dentre outros. Projetos que incentivam medidas de avaliação e meritocracia.
Qual o efeito dessa política no ensino? Em artigo recente, os professores João
Wanderley Geraldi e Corinta Maria Grisolia Geraldi, ressaltaram a crescente
domesticação dos professores,via os mecanismos avaliativos atuais. Estes tolhem os
professores, não permitem que exerçam sua função de maneira diferenciada e criativa.
Para esses pesquisadores, um objeto de ensino até foi criado para facilitar a realização
dos testes: os gêneros discursivos. As crianças atualmente ―reconhecem‖ uma carta,
diferenciam uma crônica de uma fábula, mas perguntamos: ela lê e escreve textos: cartas,
crônicas, resenhas, por exemplo?
Portando, não dá para ficar apenas no reconhecimento dos gêneros discursivos.
Faz-se necessário interagir e escrever gêneros diversos, principalmente os que mais
fazem parte da esfera comunicativa, ou seja, os que usamos no cotidiano. Como afirma
Bakhtin (2010), nos comunicamos através dos gêneros discursivos ―aprendemos a
moldar nosso discurso em forma de gênero (2010, p.283)‖. Por isso, o professor
314
necessita conhecer os gêneros quanto ao conteúdo temático, estilo e construção
composicional devido a relatividades dos mesmos.
O professor está cercado por livros didáticos e programas. Os primeiros
(melhoram um pouco) apresentam atividades que aparentemente trabalham a leitura e a
escrita, mas objetivam o conteúdo, explorando superficialmente os gêneros discursivos.
O Folhinha Aplicada tem garantido a possibilidade de aliar os gêneros discursivos à
faceta que realmente importa, isto é, promover o diálogo, assim como o processo de
elaboração de estar no mundo, lendo e escrevendo.
Por meio do Folhinha as crianças e a comunidade escolar são convidadas a
participar
de todas as instâncias das condições de produção textual, sugerindo e
alimentando a linha editorial, semelhante a de outros jornais, precisamente aos que
circulam na nossa sociedade. Desse modo, podem escrever resenhas de livros e filmes;
compor contos, poesias e crônicas; realizar entrevistas; expressar opiniões; relatar fatos e
apresentar pesquisas. Esses trabalhos, quando selecionados pela turma e/ou professor,
são publicados na íntegra, para que o exercício de autoria seja respeitado.
Em recente entrevista, publicada no jornal de circulação regional, alguns alunos
foram convidados a darem opinião sobre o Folhinha. Para Débora Lígia da Silva, de 11
anos, o Folhinha além ―de informar faz com que as pessoas pensem e formem suas
opiniões sobre o mundo‖ (FARIA, 2013, p. 5). Já Filipe Araújo, de 8 anos observou que
escrever ―pensando em publicar no jornal fica muito mais interessante‖ (FARIA, 2013,
p.5).
Essas opiniões reafirmam mais uma vez a importância de realizar a publicação do
jornal na escola. Como já anunciado, temos uma série de editorias, que necessariamente
não precisa comparecer em cada edição, mas de acordo com o que é produzido
diariamente, espontaneamente e/ou mesmo com a orientação dos professores em sala
de aula. Assim são muitas as possibilidades para a produção textual, destacamos as
seguintes colunas:
315
1. Aos leitores – espaço reservado à equipe do jornalzinho para a comunicação com
os leitores. Questões sobre o jornal, as matérias, notícias, assuntos mais
importantes que envolvem o colégio.
2. Folhinha Cultural – editoria reservada para expor matérias que se relacionam
com a temática cultural. Aspectos da cultura goiana e brasileira, folclore, lendas,
mitos, eventos culturais, músicas, artes plásticas, entrevistas com artistas, são
sugestões para o espaço.
3. Pesquisa Aplicada – sob orientação, uma equipe tem a missão de fazer algum
tipo de pesquisa com informações, dados estatísticos, gráficos, etc. Exemplo:
Pesquisas de opiniões sobre algum acontecimento relevante.
4. Cantinho de Leitura – textos diversos para leitura, como por exemplo, crônicas,
poesias, histórias em quadrinhos e charges.
5. Dicas da Folhinha – dicas de livros, filmes, cd‘s, dvd‘s, teatro, cinema, etc.
6. Diversão – um tipo de palavras cruzadas ou algum cartum com intenção de
entretenimento dos leitores.
7. Mãos à obra – espaço para além de entreter, exercitar a capacidade criativa das
crianças. Atividades como experiências científicas e origami são exemplos.
8. Você Sabia? – curiosidades em geral. Exemplos: curiosidades sobre questões que
envolvem o corpo humano, animais, plantas e o Planeta Terra.
9. Para saber mais – textos selecionados ou produzidos sobre temas mais
complexos, como políticas, direitos e deveres, sociedade, etc.
10. De olho na natureza – curiosidades sobre a natureza, preservação e importância
do meio ambiente.
11. Va(ler) – resenhas e resumos de livros, CDs, DVD, exposições, teatros, por
exemplo.
12. Cultura corporal – curiosidades sobre os variados tipos de esportes, como
regras, pontuação, histórias, esportistas famosos, etc.
13. Fala leitor – sugestões, opiniões e críticas.
316
Como citamos acima, são várias as possibilidades de participação na
composição do jornal e já produzimos várias edições, com um número de 680 cópias em
preto e branco, além de publicá-lo on line e em cores.
Não poderíamos deixar de
mencionar um outro aspecto abordado no depoimento de uma das crianças acima, a do
Filipe.Cuja fala nos permite relacionar a questão da intenção de interlocução, ou seja,
para quem escrevo? Quem vai ler meus textos? Como vou escrevê-lo? Que recursos
lingüísticos usar para que o leitor construa sentidos?
Observamos que o uso do jornal é um meio importante para que possamos
trabalhar com a língua padrão. É uma maneira significativa e real para se conhecerem e
ampliarem as variadas maneiras de expressar, principalmente quanto ao uso formal da
nossa língua materna. O periódico permite aproveitar a heterogeneidade dos enunciados
linguísticos e, dessa maneira, contemplar uma abordagem da gramática no texto, tal
como é sugerido por Antunes:
A proposta, portanto, é que o texto seja analisado: no seu gênero, na sua função, nas
suas estratégias de composição, na sua distribuição de informações, no seu grau de
informatividade, nas suas remissões intertextuais, nos seus recursos de coesão, no
estabelecimento de sua coerência e, por causa disso tudo, só por causa disso, repito, os
itens de gramática comparecem (2007, p.138).
A experiência de escrever para o jornal proporciona condições de aprendizagem
quanto à natureza composicional, estilística e temática do gênero trabalhado, mudando o
enfoque bastante utilizado ainda da gramática pela gramática. De certa forma, o trabalho
de escrever para o jornal, incentiva e promove situações discursivas em que as
particularidades de um texto – as fronteiras, o acabamento, o tema, o dizer do locutor, o
autor, o destinatário, a expressividade e as formas de estruturação, são elementos
relacionados, dependentes do movimento de construção textual.
A palavra, como tão bem define José Paulo Paes, sem poesia ―não parece nem
palavra‖(1993, p.26). Como tentamos apresentar neste texto, o Folhinha promove esse
exercício com a palavra e, tem ajudado na promoção da experiência de leitura e escrita,
no processo mesmo de construção de sentidos.
317
Referências Bibliográficas
ANTUNES, I. Lutar com palavras: coesão e coerência. São Paulo: Parábolas, 2007.
BAKHTIN, M. Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método
sociológico na ciência da linguagem. 7.ed. São Paulo: Hucitec, 1995.
_____. Os gêneros do discurso. In: Estética de criação verbal. São Paulo: Martins Fontes,
2010
FARIA, K. Tem jornal na escola também. O Popular. Goiânia, março, 2013, O
Almanaque, p. 4-5.
GERALDI, J. W. GERALDI, C. M. G. A domestificação dos agentes educativos:
h´alguma luz no túnel. Inter-Ação, Revista da Faculdade de Educação, UFG. Goiânia:
FE/PPGE/UFG, v. 37, n.1, jan./jun., 2012.
PAES, J. P. Uma letra puxa a outra. São Paulo: companhia das letrinhas, 1993.
UNIVERSIDADE FEDERAL DE GOIÁS, Centro de Ensino e Pesquisa Aplicada à
Educação(Cepae/UFG). Projeto de Ensino de Língua Portuguesa: ouvindo, falando,
lendo e escrevendo o mundo. Goiânia: Cepae/UFG, 2011.
318
O DISCURSO PUBLICITÁRIO NAS PROPAGANDAS DAS OPERADORAS
DE TELEFONIA CELULAR E OS PROCESSOS DE IDENTIFICAÇÃO E
ALTERIDADE EM MICHEL PÊCHEUX
Cássia Priscilla Silva Aleixo
RESUMO
Este relato de experiência se propõe a divulgar a pesquisa que se desenvolve sobre o discurso
publicitário, no que se refere aos processos de identificação e alteridade produzidos na constituição
histórica dos sentidos. Este estudo tem-se desenvolvido à luz dos pressupostos teóricos da Análise do
Discurso, conforme abordagem de Michel Pêcheux. Para tanto, o corpus que será avaliado é
constituído por propagandas das operadoras de telefonia celular, veiculadas em variados meios de
comunicação. Pretende-se ressaltar os elementos que influenciam a produção do discurso, com enfoque
na dimensão ideológica e no contexto histórico-social em que o discurso está inserido. Com esse
propósito, a pesquisa procura examinar como funciona os conceitos de identificação e alteridade no
discurso publicitário. A importância social deste estudo se justifica na contribuição que poderá
proporcionar aos docentes que trabalham com a linguagem, visto que estes poderão, com base nas
implicações aqui expostas, desenvolver atividades que busquem a competência de leitura em seus
alunos, tornando-os leitores críticos e conscientes.
Palavras-chaves: Discurso publicitário; Identificação; Alteridade.
ABSTRACT
This experience report proposes to disseminate research that develops on the advertising discourse in
advertisements of mobile operators, with regard to the processes of identification and alterity produced
in its historical construction. This study has been developed in light of the theoretical assumptions of
discourse analysis as Pêcheux approach. Therefore, the corpus will be evaluated consists of
advertisements these companies broadcast in various media. It is intended to highlight the elements
that influence the production of discourse, focusing on the ideological dimension and the sociohistorical context in which the discourse is embedded. For this purpose, the research examines how the
concepts work identification and otherness in advertising discourse. The social importance of this study
is justified on the contribution that can provide language teachers, since they may, based on the
implications here exposed, activities that seek to develop reading skills in their students, making them
aware and critical readers.
Keywords: Advertising discourse; Identification; Otherness.
319
INTRODUÇÃO
Atribui-se o ponto de partida do estudo moderno da linguagem à Saussure e sua célebre
concepção dicotômica entre a língua e a fala. A partir desse marco, muitos outros estudos continuam
sendo realizados.
A língua é um fato social cuja existência se funda nas necessidades de comunicação, por essa
razão não pode ser vista como manifestação individual de cada falante. Por conseguinte, a linguagem
enquanto discurso não constitui um sistema de signos utilizados apenas para comunicação ou
pensamento, ela é interação, um modo de produção social, é um lugar apropriado para a manifestação
da ideologia. A linguagem é um lugar de conflito, de confronto ideológico, e seus processos
constitutivos são histórico-sociais.
Tecemos a seguir considerações acerca dos processos de Identificação e Alteridade, segundo o
enfoque de Michel Pêcheux, produzidos na constituição histórica dos sentidos nos discursos
publicitários das operadoras de telefonia celular. Para isso utilizamos o suporte teórico de Brandão
(2004); Mussalim (2003) e Pêcheux (2009).
FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA
A Análise do Discurso (AD) é a disciplina que se ocupa do estudo da discursivação, o estudo
das relações entre condições de produção dos discursos e seus processos de constituição.
A AD inicialmente era definida como ―o estudo linguístico das condições de produção de um
enunciado‖, apoiando-se sobre conceitos e métodos da linguística. Mas só a linguística não é suficiente
para marcar a especificidade da AD no interior dos estudos da linguagem e para isso será necessário
considerar outras dimensões como a ideologia e o discurso.
Segundo Brandão (2004), Pêcheux, um dos estudiosos mais profícuos da AD, elabora seus
conceitos através dos conceitos de Althusser, sobre a ideologia, e de Focault, sobre o discurso.
Para analisar a definição de ideologia dada por Althusser, primeiramente devemos conhecer a
definição de ideologia dada por Marx e Engels, muito usada para a definição de ideologia por vários
autores.
Dessa forma, se em Marx o termo ―ideologia‖ parece estar reduzido a uma simples
categoria filosófica de ilusão ou mascaramento da realidade social, isso decorre do fato
de se tomar, como ponto de partida para a elaboração de sua teoria, a crítica ao
sistema capitalista e o respectivo desnudamento da ideologia burguesa. A ideologia a
que ele se refere é, portanto, especificamente a ideologia da classe dominante.
(BRANDÃO, 2004, p.22)
320
Após a definição de Marx e Engels, podemos conhecer como funciona a ideologia de Althusser,
também referida por Brandão:
(...) Althusser afirma que, para manter sua dominação, a classe dominante gera
mecanismo de perpetuação ou de reprodução das condições materiais, ideológicas e
políticas de exploração. É ai então que entra o papel do Estado que, através de seus
Aparelhos Repressores – ARE – (compreendendo o governo, a administração, o
exército, a polícia, os tribunais, as prisões et.) e Aparelhos Ideológicos – AIE –
(compreendendo instituições tais como: a religião, a escola, a família, o direito, a
política, o sindicato, a cultura, a informação), intervém ou pela repressão ou pela
ideologia, tentando forçar a classe dominante a submeter-se às relações e condições de
exploração. (BRANDÃO, 2004, p.23)
Para expressar a sua ideologia, o sujeito faz uso dos discursos, nos quais, segundo Brandão
(2004) são
como um conjunto de enunciados que se remetem a uma mesma formação
discursiva (―um discurso é um conjunto de enunciados que tem seus princípios
de regularidade em uma mesma formação discursiva‖), para Foucault, a análise
de uma formação discursiva consistirá, então, na descrição dos enunciados que
a compõem. E a noção de enunciado em Foucault é contraposta à noção de
proposição e de frase (...), concebendo-o como a unidade elementar, básica que
forma o discurso. O discurso seria concebido, dessa forma, como uma família
de enunciados pertencentes a uma mesma formação discursiva. (BRANDÃO,
2004, p.33)
Para a constituição dos enunciados, Foucault enumera quatro características. A primeira diz
respeito à relação do enunciado com o referencial, que é aquilo que o enunciado enuncia. A segunda
característica diz respeito à relação do enunciado com seu sujeito, na qual, para Foucault,
o sujeito do enunciado não é causa, origem ou ponto de partida do fenômeno de
articulação escrita ou oral de um enunciado e nem a fonte ordenadora, móvel e
constante, das operações de significação que os enunciados viriam manifestar na
superfície do discurso. (BRANDAO, 2004, p.35)
Segundo Mussalim (2003), Lacan faz uma releitura de Freud, recorrendo ao estruturalismo de
Saussure e Jakobson, em uma tentativa de abordar com mais precisão o inconsciente. Para ele, o
inconsciente se estrutura como uma linguagem, como uma cadeia de significantes, como se houvesse
sob as palavras, outras palavras, como se o discurso fosse atravessado pelo discurso do Outro, do
inconsciente. O inconsciente é o lugar desconhecido, estranho, enfim do Outro e em relação ao qual o
sujeito se define, ganha identidade. Para Lacan, o sujeito é visto como uma representação da ordem da
linguagem, e a linguagem é a condição do inconsciente.
O estudo do discurso para a AD, como nos mostra Mussalim (2003), inscreve-se num terreno
em que intervêm questões teóricas relativas à ideologia e ao sujeito. Sendo assim,
o sujeito Lacaniano, clivado, dividido, mas estruturado a partir da linguagem, fornecia
para a AD uma teoria do sujeito condizente com um de seus interesses centrais, o de
conceber os textos como produtos de um trabalho ideológico não-consciente. Calcada
no materialismo histórico, a AD concebe o discurso como uma manifestação, uma
321
materialização da ideologia decorrente do modo de organização dos modos de
produção social. Sendo assim, o sujeito do discurso não poderia ser considerado como
aquele que decide sobre os sentidos e as possibilidades enunciativas do próprio
discurso, mas como aquele que ocupa um lugar social e a partir dele enuncia, sempre
inserido no processo histórico que lhe permite determinadas inserções e não outras.
Em outras palavras, o sujeito não é livre para dizer o que quer, mas é levado, sem que
tenha consciência disso (...), a ocupar seu lugar em determinada formação social e
enunciar o que lhe e possível a partir do lugar que ocupa. (MUSSALIM, 2003, p.111)
A terceira característica dada por Foucault, segundo Brandão (2004), é a que diz respeito à
existência de um domínio, ou seja, a associação de um enunciado a um conjunto de enunciados, onde
ele afirma que não existe um enunciado isolado. Em um enunciado podem estar presentes um ou mais
enunciados de outros discursos, ou seja, um enunciado, um discurso, baseia-se em outros enunciados
ou discursos na sua enunciação.
A quarta característica dada por Foucault refere-se à sua condição material. Brandão (2004) nos
mostra como caracterizar essa materialidade postulada por Foucault:
Para caracterizar essa materialidade, Foucault faz uma distinção entre enunciado e
enunciação. Esta se dá toda vez que alguém emite um conjunto de signos; enquanto a
enunciação se marca pela singularidade, pois jamais se repete, o enunciado pode ser
repetido. Hipoteticamente, enunciações diferentes podem encerrar o mesmo
enunciado. No entanto, como a repetição de um enunciado depende de sua
materialidade, que é de ordem institucional, isto é, depende de sua localização em um
campo institucional, uma frase dita no cotidiano, inserida num romance ou inscrita
num outro tipo qualquer de texto, jamais será o mesmo enunciado, pois em cada um
desses espaços, possui uma função enunciativa diferente. (BRANDAO, 2004, p.36)
A construção de um discurso pelo sujeito depende de suas condições de produção, sendo que o
que garante a especificidade da Análise do Discurso, segundo Mussalim,
(...) é a relação que os analistas do discurso procuram estabelecer entre um discurso e
suas condições de produção, ou seja, entre um discurso e as condições sociais e
históricas que permitiram que ele fosse produzido e gerasse determinados efeitos de
sentido e não outros. (MUSSALIM, 2003, p.112)
Segundo Brandão (2004), foi Pêcheux quem tentou fazer a primeira definição empírica geral da
noção de condição de produção, inscrevendo a noção do esquema informacional da comunicação
elaborada por Jakobson, colocando em cena os protagonistas do discurso e o seu referente, permitindo
compreender as condições (históricas) da produção de um discurso. Pêcheux, segundo Brandão, vê
―nos protagonistas dos discursos não a presença física de organismos humanos individuais‟, mas a
representação de lugares determinados na estrutura de uma formação social‖ (BRANDÃO, 2004, p.
45).
Para Pêcheux, segundo Brandão,
No discurso, as relações entre esses lugares, objetivamente definíveis acham-se
representadas por uma série de ―formações imaginárias‖ que designam o lugar que
destinador e destinatário atribuem a si mesmo e ao outro a imagem que eles fazem de
seu próprio lugar e do lugar do outro. (BRANDAO, 2004, p.44).
322
Na constituição do discurso, além da importância das condições de produção nas quais são
produzidos, tem grande importância também a Formação Discursiva e Ideológica. Mussalim (2003)
afirma que uma formação discursiva
determina o que pode/deve ser dito a partir de um determinado lugar social. Assim
uma formação discursiva é marcada por regularidades, ou seja, por ―regras de
formação‖, concebidas como mecanismos de controle que determinam o interno (o
que pertence) e o externo (o que não pertence) de uma formação discursiva.
(MUSSALIM, 2003, p.119)
Sendo assim, uma Formação Discursiva é atravessada pelo pré-construído, definição dada por
Pêcheux, na qual ele a define como discursos que vieram de outro lugar e que são incorporados por ela
em uma relação de confronto ou aliança. Pode-se dizer que uma Formação Discursiva é constituída por
paráfrases, já que é um espaço onde enunciados são retomados e reformulados.
Nas palavras de Mussalim (2003), o conceito de Formação Discursiva é utilizado pela AD para
designar o lugar onde se articulam discurso e ideologia. Uma Formação Discursiva é governada por
uma Formação Ideológica e como uma Formação Discursiva é um dos componentes de uma
Formação Ideológica específica, ela é um espaço de embates, de lutas ideológicas.
Entre as relações existentes entre a Formação Ideológica e a Formação Discursiva, destaca-se a
importância do sujeito na formação do discurso. Quando falamos na autoria dos discursos, em se a
concepção de que ela pertence ao sujeito, de que é opinião do próprio autor, porém não é essa a
concepção que se adota na Análise do Discurso. Quando se trata do discurso, em relação ao seu autor,
segundo as palavras de Mussalim (2003, p.119), o sujeito não pode ser concebido como um indivíduo
que fala, ―como fonte do próprio discurso, (...) quem de fato fala é uma instituição, ou uma teoria, ou
uma ideologia‖.
Mussalim explica como funciona a relação do sujeito com o discurso e a ideologia utilizando as
palavras de Foucault, citadas em sua obra:
O sujeito passa a ser concebido como aquele que desempenha diferentes papéis de
acordo com as várias posições que ocupa no espaço interdiscursivo. (...) O sujeito
apesar de desempenhar diversos papéis, não é totalmente livre; ele sofre as coerções
da formação discursiva do interior do qual já enuncia, já que esta é regulada por uma
formação ideológica. Em outras palavras, o sujeito do discurso ocupa um lugar de
onde enuncia, e é este lugar, entendido como a representação de traços de
determinado lugar social, (...) que determina o que ele pode ou não dizer a partir dali,
ou seja, este sujeito, ocupando o lugar que ocupa no interior de uma formação social,
é dominado por uma determinada formação ideológica que preestabelece as
possibilidades de sentido de seu discurso. (MUSSALIM, 2003, p.133)
Diante dessa concepção de que o sujeito sofre as coerções de uma Formação Ideológica e
Discursiva, ou é submetido à sua própria natureza inconsciente, surge a questão da interpelação ou
assujeitamento do sujeito como sujeito ideológico, que consiste em fazer com que cada indivíduo, sem
que ele tenha consciência disso, mas, ao contrário, tenha a impressão de que é o senhor de sua própria
323
vontade, seja levado a ocupar seu lugar em um dos grupos ou classes de uma determinada formação
social.
As reflexões de Pêcheux sobre a língua colocam-nos em um lugar onde a literalidade dos
sentidos e a transparência do dizer não têm mais espaço, inscrevendo as questões do sentido, e com
elas as do equívoco e dos outros sentidos possíveis, no interior das discussões sobre a língua, as quais
passam, necessariamente, pelas relações do sujeito com a Ideologia. Assim, pretendemos com nossa
pesquisa alcançar a compreensão do termo Ideologia e o caráter incompleto e movente da identidade
do sujeito a partir da observação dos espaços de subjetivação que se criam na relação entre sujeito,
língua e ideologia.
No capítulo III de Semântica e discurso, intitulado Discurso e ideologia(s), no qual a marca de
plural vem, não por acaso, grafada entre parênteses, Pêcheux (2009:130) reforça o caráter contraditório
de todo modo de produção cujo princípio seja a luta de classes, afirmação na qual nos parece o centro
de discussões que nos levam à heterogeneidade das formações discursivas e, consequentemente, ao
encontro dos modos de subjetivação do sujeito. É nesse ponto que o autor começa a marcar o quão
indissociáveis são as noções de reprodução/transformação - mostrando que tanto a reprodução quanto
a transformação das relações de produção atravessam as práticas sociais, sendo impossível, portanto,
localizá-las e analisá-las de forma estanque; é esse, também, o momento em que ele passa a delinear as
fronteiras entre a Ideologia (com esse I maiúsculo), as ideologias e a forma-sujeito, trabalho que inicia
desfazendo uma idéia comum que permeia as discussões nesse campo: a de que as ideologias são feitas
de idéias; reafirmando, então, que são as práticas que as constituem.
Reconhecemos, em vista disso, que há diversas formas de identificação do sujeito, ao ser
interpelado, com a forma-sujeito, o que passa pelo reconhecimento de que as FDs não são dotadas de
uma homogeneidade que nos permita definir com precisão seus limites e de que no universo das
formações discursivas não só as posições antagônicas entram em choque provocando conflitos, sendo,
portanto, a contradição um fantasma que habita toda e qualquer FD, passível de sofrer os efeitos de
sobredeterminação pelos quais o mesmo, o igual é afetado pela alteridade, contradição que funciona
como um princípio da historicidade do discurso. Ideologia, formação ideológica, formação social,
forma-sujeito, formação discursiva, entre outras noções, compõem uma rede intrincada de formulações
que nos leva a pensar o discurso, a prática discursiva como uma prática de sujeitos para sujeitos, pois,
como disse Pêcheux (2009:182), todo discurso é discurso de um sujeito. E mais, inscrever a Ideologia e a
contradição como inerentes aos processos acima descritos nos leva a pensar a constante reestruturação
de seus limites e seus modos de realização, bem como a possibilidade de reajustamentos no processo de
construção de uma identidade pelo sujeito.
Assim, o imaginário, entendido como uma forma de conhecimento que representa, para o
sujeito, um saber no qual o mesmo se insere, que possibilita e determina a sua apreensão da realidade e,
324
consequentemente, a sua relação com o discurso publicitário, é fundamental para a construção de um
lugar para o sujeito no ponto de vista do outro. O sujeito precisa inscrever-se em processos
identificatórios e, portanto, acaba por realizar movimentos que colocam em jogo um outro imaginário,
já que a produção de sentidos não ocorre no vazio. Dessa identificação resulta a identidade do sujeito,
produto da relação deste com a linguagem e, portanto, necessariamente incompleta, uma vez que a
relação entre o sujeito do discurso e a forma-sujeito pode dar-se de modos diversos, resultando, em
modalidades de subjetivação diferenciadas.
Esse imaginário tem uma função de sustentação dos processos que vão da identificação para a
formação da identidade, e só por um trabalho de desarranjo/rearranjo da forma-sujeito, essa identidade
pode estar sempre em formação/transformação, possibilitando ao sujeito o encontro com outros
lugares de dizer que não aquele da identificação plena com a FD na qual se inscreve. Então, ao falarmos
das relações que o sujeito mantém com a forma-sujeito, caracterizando os seus modos de subjetivação,
Pêcheux acabou por oferecer-nos um caminho bastante fecundo para a compreensão dos processos de
identificação pelos quais passa o sujeito, atrelado a uma identidade movente, sempre prestes a
reestruturar-se, uma identidade afetada pela tensão entre a continuidade e a descontinuidade, identidade
em constante rearranjo. É preciso, pensar, no entanto, que se há essa dinâmica das práticas discursivas a
reconfigurar-se pelos movimentos de desarranjo/rearranjo, há algo que resta, há algo que fica, há um
residual que permanece, seja sendo reproduzido, seja no esquecimento a que o relegou determinada
transformação.
ANÁLISE DO CORPUS
Expomos a seguir duas propagandas de operadoras de telefonia celular, a primeira da Claro
(Imagem 1) e a segunda da Tim (Imagem 2), sobre as quais analisamos os discursos publicitários,
tomando como aporte teórico os processos de identificação e alteridade em Pêcheux.
Imagem 1
Imagem 2
325
A Imagem 1 nos revela dois jovens, um de costas para o outro, conectados com o ―mundo
musical‖. Os instrumentos musicais acompanhados do slogan da Claro, que traz poucas palavras,
representa o som saindo dos dois aparelhos que os jovens estão segurando. Observamos também que
ao anunciar o serviço oferecido pela sua tecnologia, a palavra ‗claro‘ possui polissemia, é a marca da
empresa e uma afirmação que antecede a notícia: Sua música em sua mão, isto é, é dada ao consumidor
a certeza de que essa operadora lhe dá o poder de ter em mãos o que ele desejar.
Notamos, portanto, uma individualização do sujeito, um texto que nos insere numa cena
individual, isto é, as pessoas se isolam uma das outras, cada uma possui seu celular, suas músicas.
Assim, cada um dos jovens apresenta um universo próprio, individual e ―esquecem‖ o que está em
volta dos mesmos. Isso nos leva a pensar na contradição, já que a rede social é um lugar de encontros,
quando uma pessoa entra numa rede social, que é a internet, ela vai em busca do Outro,ela vai em
busca do texto do Outro, da imagem do Outro, da notícia do Outro, se ela busca o Outro no ambiente
virtual, no presencial ela faz diferente, a propaganda, no caso o discurso publicitário da Claro, incentiva
uma postura individual, isolada, os sujeitos não interagem mais.
Como vimos em Pêcheux a alteridade consiste em se colocar no lugar do Outro, na relação
interpessoal, com consideração, valorização, identificação e dialogar com o outro. A prática alteridade
se conecta aos relacionamentos tanto entre indivíduos como entre grupos culturais religiosos,
científicos, étnicos, etc. Na relação alteritária, está sempre presente os fenômenos holísticos da
complementaridade e da interdependência, no modo de pensar, de sentir e de agir, onde o nicho
ecológico, as experiências particulares são preservadas e consideradas, sem que haja a preocupação com
a sobreposição, assimilação ou destruição destas. A prática da alteridade conduz da diferença à soma
nas relações interpessoais entre os seres humanos revestidos de cidadania. Pela relação alteritária é
possível exercer a cidadania e estabelecer uma relação pacífica e construtiva com os diferentes, na
medida em que se identifique, entenda e aprenda a aprender com o contrário. Porém, quando vemos
isso na Imagem 1, compreendemos que o discurso não é uma construção independente das relações
sociais, mas, ao contrário, o fazer discursivo é uma prática humana que só pode ser compreendida a
partir do entendimento das contradições sociais que possibilitaram sua objetivação. Pêcheux enfatiza
esse fato de submeter a formação discursiva às formações ideológicas que, por sua vez, expressam as
contradições de classe antagônicas da sociedade.
326
A Imagem 2 nos mostra um campo de futebol e três camisas de clubes que são patrocinados
pela Tim: Corinthians, Palmeiras e São Paulo. Verificamos uma analogia entre a paixão pelos times de
futebol, que para os torcedores não tem tamanho e o slogan da Tim ―Viver Sem Fronteiras‖, ou seja,
enquanto for patrocinadora oficial destes clubes, se depender dela, a paixão pelos mesmos vai ser cada
vez mais sem fronteiras.
Observamos, ao tratar-se do assunto ―paixão pelo time não tem tamanho‖ na propaganda da
Tim, a articulação entre o ideológico e histórico, pois para Pêcheux o sujeito é afetado ideologicamente
ao se inserir na história. Isto é, a interpelação do indivíduo em sujeito de seu discurso dar-se pela
identificação do sujeito enunciativo com a forma-sujeito da formação discursiva dominante,
delimitando o que pode e deve ser dito. Sendo assim, as formações discursivas representam na
linguagem as formações ideológicas que lhes correspondem.
Ao se mencionar o fato da paixão pelo time que ―se depender da Tim vai ser cada vez mais sem
fronteiras‖ significa dizer que o sujeito é fragmentado ideologicamente por um processo inconsciente
de afetamento pelo Outro que impõe, ao sujeito, a incessante busca por completude e causa,
consequentemente, a infinita repetição das falhas, manifestadas pela linguagem através do equívoco, o
qual torna possível a polissemia e o deslizamento de sentidos, ambos constituintes de posições-autor
diferentes e/ou contraditórias numa mesma formação discursiva. Por isso, é possível dizer que o sujeito
é fragmentado ideologicamente, além de ser descentrado pela interpelação histórica e pelo o
inconsciente. Este sujeito fragmentado é a base da teoria da heterogeneidade constitutiva do discurso e
das formas discursivas. Cabe então salientarmos que os processos de identificação ocorrem por
intermédio do olhar do Outro, ou seja, do ponto de vista do Sujeito no que se refere à linguagem e a
alteridade consiste na heterogeneidade enunciativa.
Estes discursos expressos nas duas imagens que utilizamos produzem uma rede simbólica que
traça identidades a partir de uma estética de si. São práticas discursivas que constituem verdadeiros
dispositivos identitários e produzem subjetividades como singularidades históricas a partir do
agenciamento de trajetos e redes de memórias. As FDs são consideradas como componentes de FIs,
relacionadas às suas condições de produção no interior de uma realidade social marcada pela ideologia
dominante. O sentido é, portanto, relacionado a um exterior ideológico demarcado por FIs.
Pêcheux procura dar respostas a um momento histórico em que se instalava a ―sociedade do
espetáculo midiático‖. Sua análise da movimentação discursiva em torno do enunciado oferece valiosas
pistas para pensarmos o valor do conceito de FD que se associa à dispersão das redes de memória e dos
trajetos sociais dos sentidos. Tomando o trabalho discursivo realizado pela mídia sobre o
acontecimento, Pêcheux mostra o jogo entre transparência e opacidade produzido pela retomadas,
deslocamentos e inversões de formulações que resultam em uma ―espetacularização da política‖. Essa
nova formulação da FD acompanha, portanto, a mudança no contexto histórico, os meios tecnológicos
327
de difusão e circulação dos discursos que se tornam indissociáveis dos enunciados não verbais e dos
suportes materiais que os sustentam, isto é, dos novos regimes de discursividades instaurados pelos
meios de comunicação de massa.
CONCLUSÃO
Em síntese, pretendemos levar o que foi analisado ao longo de nossa pesquisa para o ambiente
da sala de aula, no que diz respeito ao ensino-aprendizagem. Em vista disso, o educador como analista
de discurso, busca investigar as condições complexas (que são, ao mesmo tempo, da ordem da
linguagem e da ordem da história) nas quais se realizou um determinado enunciado, condições que lhe
dão uma existência específica. Essa existência faz o discurso emergir em relação com um domínio de
memória, como jogo de posições possíveis para um sujeito, como elemento em um campo de
coexistência, como materialidade repetível.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BRANDÃO, Helena Hathsue Nagamine. Introdução à análise do discurso. 2. ed. Ver. Campinas, SP:
Editora da UNICAMP, 2004.
MUSSALIM, Fernanda. Análise do discurso In: MUSSALIM, Fernanda & BENTES, Anna Christina
(org.). Introdução à Linguística: domínios e fronteiras, Vol. II, 3.ed. São Paulo: Cortez, 2003.
PÊCHEUX, Michel. Semântica e Discurso: uma crítica à afirmação do óbvio. Campinas: Ed. da Unicamp,
2009.
Propagandas da Claro. Disponível em: <http: //WWW. claro.com. br>. Acesso em: 02 mar. 2013.
Propagandas da Tim. Disponível em: <http: //WWW. tim.com.br>. Acesso em: 02 mar. 2013.
328
GLOSSÁRIO PORTUGUÊS-PARAKANÃ PARA USO NA EDUCAÇÃO
BILÍNGÜE E NA SAÚDE: PRODUÇÃO, UTILIZAÇÃO E POSSIBILIDADES
M. Sc. Claudio Emidio-Silva1
M. Sc. Rita de Cássia Almeida-Silva2
Resumo: O presente trabalho trata da experiência de construção de um glossário Português-Parakanã
realizado com os dois grupos Parakanã (ocidental e oriental) da Terra Indígena Parakanã do Tocantins,
nos municípios de Novo Repartimento e Itupiranga. Os Parakanã Orientais situavam as suas aldeias
próximas ao rio Tocantins e os Parakanã Ocidentais situavam as suas aldeias próximas ao rio Xingu.
Após o contato com a sociedade envolvente os Parakanã Orientais foram transferidos para a aldeia
Paranatinga e parte dos ocidentais foi reunida na aldeia Maroxewara, ambas na atual TI Parakanã.
Outro grupo de ocidentais também foi reunido em uma aldeia na TI Apyterewa próximo ao rio Xingu.
O trabalho foi realizado para auxiliar a comunicação dos professores e dos agentes de saúde com os
indígenas, havendo uma participação deles na construção do glossário. Também tornou-se material de
apoio nos cursos para dirimir dúvidas dos professores indígenas em formação e alunos Parakanã bem
como estabelece comparações entre as duas variantes da língua Parakanã: oriental e ocidental. Além do
glossário também foram produzidas frases na língua Parakanã para uso na escola e posto de saúde com
suas respectivas traduções em português para que os professores e técnicos de enfermagem pudessem
desenvolver suas atividades da melhorar forma possível, no que diz respeito a comunicação entre índios
e não índios. O atual glossário encontra-se em 2012 com mais de 2.000 palavras e frases. Optou-se por
grafar as palavras como são atualmente escritas pelos indígenas e não da forma lingüística, assim o seu
sentido de utilidade para os profissionais que trabalham na TI e que não dominam os códigos
lingüísticos foi muito maior, podendo usar e aprender a língua Parakanã de forma mais dinâmica e útil.
Palavras-chave: Glossário; Educação bilíngüe; Povo Parakanã; Português-Parakanã.
Abstract: This paper deals with the experience of building a glossary Portuguese-Parakanã performed
with two groups Parakanã (western and eastern) Indian Earth Parakanã of Tocantins, in the cities of
Novo Repartimento and Itupiranga. The Eastern Parakanã their villages were located near the
Tocantins River and Western Parakanã their villages were located near the Xingu River. After contact
with the surrounding society Parakanã East were transferred to the village Paranatinga and western part
of the village was gathered Maroxewara, both in current IE Parakanã. Another group of Westerners
was also meeting in a village in IE Apyterewa near the Xingu River. The work was carried out to aid
communication of teachers and health workers with the Indians, with their participation in the
construction of the glossary. It also became supporting material in the courses to settle questions of
indigenous teachers and students in training Parakanã well as establishing comparisons between the two
variants of the language Parakanã: eastern and western. Besides the glossary were also produced in the
language Parakanã phrases for use in school and health post with their translations in Portuguese for
teachers and nursing technicians could develop its activities to improve the way possible, with regard to
communication between Indians and non-Indians. The current glossary is in 2012 with more than a
2.000 words and phrases. We chose to spell the words as they are currently written by Indians and not
the linguistic form, so their sense of usefulness for professionals who work in IE and who have not
mastered the linguistic codes was much bigger and can use and learn the language Parakanã more
dynamic and useful.
Keywords: Glossary; Bilingual Education; Parakanã People; Portuguese-Parakanã.
1
2
Mestre em Ciências Biológicas; Doutorando em Educação – UAB-UEPA ([email protected]).
Mestre em Teoria Literária – SEDUC-PA/UAB-UEPA ([email protected]).
329
1. Introdução
O povo Parakanã do Tocantins vive atualmente na Terra Indígena Parakanã, sudeste do Pará,
municípios de Novo Repartimento e Itupiranga, em uma área de 351.697,41 ha, onde se distribuem em
13 aldeias, formando uma população de 908 indivíduos e 31 de dezembro de 2011 (Programa Parakanã,
2011). Nas aldeias há escolas onde são trabalhadas a alfabetização na língua materna e as demais
disciplinas em português, como uma segunda língua. Devido aos processos de contato, nem sempre
bem conduzidos, foram agrupados na mesma área Parakanã Ocidental (Maroxewara) e Parakanã
Oriental (Paranatinga). Segundo Fausto (2001) esses dois grandes grupos se separaram a
aproximadamente 100 e 200 anos atrás e estavam distribuídos em pequenos aldeamentos no interflúvio
Tocantins – Xingu, no sentido leste-oeste e entre a região de Marabá e Tucuruí no sentido norte-sul.
Havia guerras entre os dois grupos, inclusive com rapto de mulheres entre eles, bem como guerreavam
também com os Kayapó e os Asuriní do Tocantins, entre outros grupos. Os Kayapó eram
essencialmente seus grandes inimigos. Os Parakanã se autodenominam awaete3, que significa gente de
verdade, em contraposição a akwawa, que além de designar entidades míticas que podem lhes fazer
algum mal também é o mesmo termo utilizado para designar os seus inimigos tradicionais, os Kaiapó.
Para os não índios o termo designatório é toria, que significa qualquer pessoa da sociedade envolvente,
podendo haver algum complemento: toriatinga – não índio branco; toriapihona– não índio preto; toriapipi
– não índio pequeno; toriapokoa – não índio alto; toriakoxoa – não índio mulher; toriakoma‘e – não índio
homem. Este último pode vir sem o complemento, apenas toria.
A comunicação do povo Parakanã do Tocantins, atualmente é realizada na língua materna (awaete
xe‘enga), sendo o português (toria xe‘enga) utilizado como uma segunda língua. Montserrat (2005; p. 98)
mostra a seguinte classificação: tronco Tupi, família Tupi Guarani, língua Akwáwa e dialeto Parakanã.
E, Rodrigues & Cabral (2002; p. 335) estabelecem a seguinte estrutura, após uma excelente revisão:
Família Tupi-Guarani, Ramo IV, numa posição lingüística com os Asuriní do Tocantins e Suruí
(Mujetire).
O processo de escolarização Parakanã passou por muitas fazes tendo linhas de ensino da Escola rural e
da Escola missionária, com poucos resultados satisfatórios. Com a implantação do Programa Parakanã
em 1987, devido às mudanças ocorridas com a inundação das reservas onde moravam os Parakanã do
Tocantins e transferência para a atual TI Parakanã, este povo pôde se organizar melhor, com
atendimentos especializados nas áreas de saúde, educação, produção e proteção ambiental. A lingüista
Ruth Monserrat começou a organizar os fonemas da língua Parakanã e a montar uma proposta de
educação, que embora não tenha sido dado prosseguimento, contribuiu para o inicio da organização
dos escritos fonéticas do grupo e sua respectiva organização para uso na escola.
3
awa: gente; ete: verdadeiro.
330
Em dezembro de 1990, o Subprograma de Educação Parakanã iniciou uma nova fase com a
contratação do lingüista ‗João das Letras‘ que deu a continuação dos estudos lingüísticos iniciados com
a Ruth Monserrat, formalizando uma base para uma ação educacional verdadeiramente Parakanã.
Começou-se por uma troca de experiência lingüística na escola da aldeia Paranatinga, pela qual se pôde
avaliar o nível de informação dos índios, qual a herança das escolas anteriores e qual a perspectiva e
entendimento da comunidade sobre a questão educação. Após os estudos lingüísticos levantados, em
1991 foi formada uma equipe de educação para atender as escolas recém implantadas nas duas aldeias
existentes: Maroxewara (que significada lugar do veado branco) e Paranatinga (que significa rio de água
branca).
Com o passar do tempo essas duas aldeias foram se dividindo e formando novas aldeias, ocupando
sistematicamente todo o entorno da Terra Indígena Parakanã. A formação de novas aldeias se deve
especialmente devido a diminuição de estoques de caça, uma vez que os Parakanã são caçadores
coletores ou por distensões Políticas, entre outras necessidades. Assim, no final de 2011 as aldeias
constituídas na Terra Indígena Parakanã ficaram assim distribuídas, no total de treze: Aldeias originadas
de Maroxewara: Inaxyganga, Itapeyga, Parano‘a, Paranoita e Paranoema; e aldeias originadas de
Paranatinga: Paranowaona, Itaygo‘a, O‘ayga, Itaygara, Itaoenawa e Paranoawe.
Com tantas aldeias e escolas para serem organizadas foi necessários resgatar todo o conhecimento que
já havia sido organizado para formatar um método de alfabetização na língua materna que desse conta
de atender as escolas, ser de fácil uso para os professores e ainda ter uma uniformidade para quando os
alunos mudassem de aldeia não estranhassem o ensino na escola nova. O quadro a seguir mostra como
estão organizados os fonemas Parakanã. Deu-se preferência em organizar o glossário da forma que os
fonemas são utilizados na escola, pois de outra forma o trabalho seria de pouca utilidade para os
professores e especialmente para os próprios indígenas que necessitam consultar o glossário para suas
atividades na escola e nos cursos de formação que acontecem na Terra Indígena.
Guia da pronuncia aproximada da língua Parakanã
Consoantes
Letra /
Pronuncia aproximada
Fonema
- Como se fosse um sopro saído da garganta. Mais ou menos como no
h
inglês, home.
- Quando está em início de sílaba pronuncia-se como no português, meu.
m
- No final da palavra, pronuncia-se como se estivesse preparando a boca
para dizer um p.
- No início de sílaba, como no português nu.
- No final de palavra, a ponta da língua deve encostar atrás dos dentes
n
superiores, como se fosse pronunciar um t.
- No meio ou no final da sílaba, nasaliza a vogal anterior.
k
- Como o c de casa e o qu de quero em português.
p
- Como no português.
- Sempre é pronunciado como o r de caro, tanto no começo como no meio
r
da palavra.
g
- Nunca inicia palavra. Precedida de n e em sílaba final de palavra, tem o
Exemplos
aha, hohe
mopa, amana
opam, opotam
nana, ene
oken, axan
enong, xe‘enga
ka‘a, ipokoa
peyra, pipi
reina, ere, raira
331
t
x
w
kw
’
som muito fraco, como song, do inglês.
- No meio da palavra, precedida de n, fica nasalizada.
- Depois da vogal y, é produzida com um pouco de ar raspando na
garganta.
- Antes de a, e, o e y soa como no português.
- Antes de i, soa como se tivesse um som próximo do s ou z entre o t e o i
(tsi).
- Pode ser pronunciado como ch, tch, dj e algo como r com a ponta da
língua puxada um pouco mais pro céu da boca. Depende do dialeto do
falante. Isto acontece em português, uma letra serve para representar vários
sons: s pode ser casa (z), saco (s); x pode ser táxi (quissi), taxa (ch), auxiliar
(s)
- Pronúncia bastante aproximada do v em português.
- Pronuncia-se como o qu em português, como na palavra quadro.
- É um interrompimento, no ossinho da garganta, da corrente de ar. É
chamado de glotal e em línguas indígenas tem o mesmo valor de uma
consoante.
Vogais
Letra /
Pronuncia aproximada
Fonema
a
- Como no português
- Como e de dedo.
- Como é de pé.
e
- No ditongo, quando é a segunda letra, soa bem fraco quase como se fosse
i. Mas, uma observação deve ser feita: não é i.
i
- Como em português.
- Pronuncia-se como o o de coco.
o
- Na segunda letra de ditongo, tem o som fechado como u. Mas não é u.
- O importante é prestar atenção na posição da língua, da boca e dos
lábios. O y representa um som que não existe na língua portuguesa, por
isso é difícil para nós produzi-lo, da mesma forma como é difícil para os
y
índios produzir o l ou o ce no meio de palavras, por não ter na língua
deles. Para fazê-lo, pronuncie a letra a, segure a boca nesta posição, a
língua também, e faça a pronúncia do i. Treine algumas vezes, pensando
neste som como sendo o y, aprimorando-o a cada vez que o fizer.
xaong, enong, exang
anga, ingá,
i‘yga, ipyga, xoxygara
neratyga, ita, tatoa
tepotinema, xaotia
maxa, taxeria
arawawa, wewe
kwanoa, Itawaekwera
Awaete’a, xa’e
Exemplos
maxa, arara
ene
ere
aexang, eeron
ipira, konomia
Katoete, konomia,
Xaotia
yga, ygara, xoxygara
Alguns detalhes sobre a língua Parakanã que devem ser considerados: 1) A língua Parakanã (ou
Awaetexe‘enga) não é uma língua morta, portanto sujeita a mudanças no decorrer do tempo e porque
não dizer, do espaço; 2) Existem diferenças dialetais importantes entre os dois grandes grupos de
Awaete – Parakanã: ocidentais e orientais; 3) Existem diferenças nas falas da mulher e do homem, na da
criança e do adulto e na do jovem e do velho; 4) Objetos que não são de sua cultura podem ter
diferenças nos nomes entre ocidentais e orientais e até mesmo dentro do mesmo grupo, pois a língua
precisa de um longo tempo para se ajustar e solidificar um termo e/ou palavra;
Agora vamos conhecer os principais pronomes utilizados pelos falantes do Awaete xe‘enga e como
fica o verbo quando associado aos diferentes pronomes no tempo presente:
Pronomes Pessoais
ixe
eu
ene
você
a’e
ele
xane / ore
nós (inclusivo)
ore xowe
nós (exclusivo)
Pronomes interrogativos
moa pa
awapa / mopareke
mopa
ma’epa
marai pa
onde está
quem?
a onde? / cadê
o que?
qual?
332
pe’e
eomia
vocês
eles
maram pa / ma’ekwirapa
maramnipaquantos?
Conjugação do verbo caçar -ata:
1ª pessoa do singular
Eu caço
2ª pessoa do singular
Você caça
3ª pessoa do singular
Ele caça
1ª pessoa do plural
Nós caçamos (inclusivo)
1ª pessoa do plural
Nós caçamos (exclusivo)
2ª pessoa do plural
Vocês caçam
3ª pessoa do plural
Eles caçam
2. Material e métodos
como?
Ixe aata
Ene ere ata
A’e oata
Ore oroata / xane xa’ata
Ore xowe oroata
Pee peata
Eomia oata
Como já havia certa organização na forma da escrita Parakanã, mas os awaete cobravam uma
tradução de muitas de suas palavras para o português foi necessário organizar um glossário dessas
palavras para que houvesse fluência de seu uso nas atividades escolares, tanto para os professores não
índios que ministravam aulas, como para os professores indígenas em formação e os próprios
estudantes Awaete.
Assim os professores organizaram com seus alunos primeiramente as palavras que os Awaete
queriam saber o seu significado e depois as palavras que os professores necessitavam saber para
organizar suas aulas tanto na alfabetização como nas demais atividades de educação e também alguns
termos utilizados no atendimento a saúde Parakanã, pois cada enfermeira nova que chagava as aldeias
precisavam de um série de comandos para poder atender de forma correta as crianças e os velhos que
não entendem muito bem o português. Também se resgatou as palavras colhidas por Ruth Monserrat e
João das Letras. Desta forma foi possível listar 2.000 palavras e termos em Português e suas respectivas
traduções para o Parakanã, nas duas variantes (oriental e ocidental).
A professora Ana Zélia Alves foi treinada para fazer a gravação e conferência de cada palavra
com os falantes da língua. Para isso utilizou um dicionário escolar que a ajudava a explicar cada termo
que se desejava a tradução. O trabalho foi realizado em todas as aldeias existentes para poder se ter um
espectro o maior possível de falantes, e claro, representantes das duas variantes. Deve ser ressaltado que
devido às diferentes dialetais entre Parakanã Ocidental e Oriental cada termo em português foi
traduzido pelos falantes dos dois grupos. A figura 1, a seguir mostra alguns momentos da coleta de
dados nas aldeias e nas reuniões das lideranças.
333
Figura 1: Coleta de dados nas aldeias e em reuniões com os líderes Parakanã.
A preferência em se organizar o glossário a partir do português foi porque atualmente a
educação é realizada com professores não indígenas que precisam ter um entendimento da língua
Parakanã, para poder trabalhar nas salas de alfabetização, mesmo quando há a ajuda dos falantes no
processo. Mas, só foram escolhidas as palavras que faziam um sentido muito claro de seu
entendimento, após as explicações e sempre que possível com mais de um falante em cada grupo
(Oriental e Ocidental).
A medida que as palavras iam sendo gravadas eram arroladas em uma lista definitiva fechando
letra a letra do alfabeto. Os dados coletados de forma mais sistematizado foi de 2000 a 2004, mas a
coleta continua sendo realizada e atualizada a lista de palavras, uma vez que os falantes Parakanã vão se
apropriando melhor dos termos em português para traduzir as palavras quando necessário, com mais
propriedade. Após a lista formada esta foi enviada a professora Ana Suelly Arruda Câmara Cabral para
que pudesse corrigir as palavras de forma lingüística para poder estruturar as bases para um futuro
dicionário, propriamente dito.
3. Resultados
A seguir iremos apresentar um quadro com 5 palavras de cada letra do alfabeto para se ter uma
idéia de como está organizado o Glossário Parakanã.
PORTUGUES
PARAKANÃ
ORIENTAL
Abacaxi
Abaixar
Agarrar
Abóbora
Anzol
Nana
-eroxym
-pyyng
Xoromo‘a
Pina
Bacaba
Bala
Bainha
Boi
Bola
Pinowa
Oywa (flecha)
Kygeipirera
Tapi‘iroa
Mamapyra/ywa
Cabeça
-‗a
PARAKANÃ
OCIDENTAL
A
Nana/Xoparapara
-eroxym
-pyhyng
Xoromoa
Taona
B
Pinowa
Oywaina
Orowo‘ea
Tapiroa
Ywa
C
-‗a/-akynga
OBSERVAÇÕES
Duas formas nos oci
Iguais
Duas formas
Diferente na terminação
Duas formas muito diferentes
Iguais
-ina = pequena
Duas formas
Prolongamento da silaba ori.
Duas formas nos ori
Duas formas nos oci
334
Caçar
Cacau
Cacaueiro
Café
-ata
Aka‘oa
Akao‘ywa
Kaxe
Danado
Debulhar
Demarcar
Dente
Dinheiro
Okaoete
-ekyi
-monyxam
Hona
Tamatare
Égua
Embaixo
Embrulhar
Empatar
Enxada
Tapirangakoxoa
Ywype
-won
-xoxawenxowe
Porore
Face
Fantasma
Farelo
Fezes
Fino
Hekwara
Akwawa
Heakytom
Tepotya
Iwaipipi
Gafanhoto
Galho
Galinha
Galinheiro
Garoto (a)
Tokorapina
Hakoa
Wyrangawa
Wyragawaaranga
Konomia
Hemorragia
Herança
Hérnia
História
Hora
Wygo
Werikapota
Karowara
Morongetaemyna
Kwarayga/Ara
Idoso
Igarape
Imbaúba
Importante
Imaginar
Moroiroete
Paranopipia
Amaywa
Ypykopy
Oxeapyka
Jabota
Jabuti
Jacaré
Jambo
Junto
Xaotiakoxoa
Xaotia
Xakare
Iapironwa‘e
Oxopoywyry
Lagarta
Lama
Lâmpada
Levantar
Língua
Ygangoa
Ygo‘oa
Kanina
-po‘om
Iapekoa
Macaco-guariba
Macaxeira
Akykya
Manytawa
-ata
Akaoangawa
Akao‘ywa
Kape
D
Noporotingoihi
-ekyi
-amaka
Honia
Tamatare
E
Tapirangakoxoa
Iwyre
-‘owon
-xoxawe
Xygakape/Marapaxa/Porore
F
Heikwera
Akwawa
Iakyta‘a
Tepoty
Iporoipipi
G
Tokorapina
Ywakoa/Hakoa
Wyrapaxe
Wyrapaxeawyra
Konomia
H
Wygo
Werikapota/Hakykweripe
Karowara
Morongeta
Ara
I
Moroiroete
Paranoapipia
Awaywa
Katoete
Oxeapyka/Okakwaranta
J
Xaotiakoxoa
Xaotia
Xakare
Iapytonwa‘e
Oxoporemo
L
Yganga
Tixona
Kanina
-po‘om
Ikoa
M
Akykya
Manyangatoa
Iguais
angawa = falso
Iguais
Diferenças nas terminações
Diferentes
Iguais
Diferentes
Diferentes
Iguais
Koxoa = fêmea
Diferentes
Diferentes
Diferentes
Mais diferenças nos oci
Diferentes
Iguais
Diferentes
Diferenças nas terminações
Pipi = pequeno
Iguais
Duas formas nos oci.
Diferentes
Diferentes
Konomitoa = Coletivo
Iguais
Duas formas oci
Iguais
Diferentes (-emyna=velho)
Duas forma ori
Iguais
Pequena diferença
Diferentes
Diferentes
Duas formas oci
Iguais
Iguais
Iguais
Diferentes
Diferentes
Diferentes
Diferentes
Iguais
Iguais
Diferentes
Iguais
Diferentes
335
Mãe
Magro
Mamão
Y‘yga
Ikawera
Mamao
Nascente
Negro
Nojento
Nublado
Nuvem
Oxam
Ipiona
Oxewaro
Homygo
Ywanga
Olho
Onça
Onde (está)
Ontem
Outro
He‘a
Xawaraete
Mopa
Karowamo
Amote
Pato
Peixe
Porco-espinho
Pulga
Pus
Wyrapopewa
Ipira
Ixarokynga
Tonga
Ipewa
Quase
Quati
Quem
Quebrar
Queijo
Xeipaweteiweree
Kwatia
Awapa
Open
Tapiroakamia
Rã
Rachar
Rádio
Raiva
Raiz
Akawaxa
-maxaran
Toriakanga
Ipiray
Ha‘apa
Saber
Saco
Saia
Sapo
Seio
Akwawete
Korawa
Tyrowa
Kararakatanga
Ikoma
Taboca
Tacho
Tamanduá
Tapa
Telefone
Takwara
Xa‘e
Tamanowa
-nopo
Omongetatawa
Urtiga
Urubu
Urubu-pequeno
Urucum-bravo
Útero
Anamiaona
Orowoa
Orowo‘ia
Rokoaporanywa
Hapiaoma
Veado-vermelho
Veado-fuboca
Vento
Mixarete
Patania
Wytoa
Y‘yga
Ikawepam
Mamao
N
Oxeom
Ipiona
Oxewaro
Homyn
Tatatingangawa
O
He‘a
Xawaraete
Mopa
Karowawe
Amote
P
Wyrapypewa
Ipira
Hatiatiwa‘e
Tonga
Ipewa
Q
Opamwerehe
Kwatia
Awapa
Open
Tapiroakamya
R
Myxa
-xygapota
Toriakinga
Ipirahy
Ha‘apa
S
Okwaham
Tyropirera
Tyrokoa
Kororoa
Ikoma
T
Takwara
Xa‘e
Tamanowa
-nopo
Iapyharewara/Toriakyngagawa
U
Pynoa
Orowoa
Orowoyra
Rokoaporanywa
Hapiaoma
V
Mixarete
Maroxe
Wytoa
Iguais
Diferentes
Iguais
Diferentes
Iguais
Iguais
Diferentes
Diferentes
Iguais
Iguais
Iguais
Diferentes
Iguais
Diferentes
Iuais
Diferentes
Iguais
Iguais
Diferentes
Iguais
Iguais
Iguais
Pequena diferença
Diferentes
Diferentes
Diferentes
Diferentes
Iguais
Diferentes
Diferentes
Diferentes
Diferentes
Iguais
Iguais
Panela de barro (iguais)
Iguais
Iguais
Diferentes
Diferentes
Iguais
Pequena diferença
Iguais
Iguais
Iguais
Diferentes
Iguais
336
Vespa
Vai buscar pra mim.
Kawa
Ahapota herota xeope
Xampu
Xícara
Xixi
Xipaya
Xucro
Xaokawa
Kaxewawa
-koron
Awaete
Oporongetaote
Zangado
Zelar
Zero
Zoada
Zurro
Ipiraygete
-xemoryryima‘ere
Oaerowang
Ixapepoa
Oxa‘a
Kawa
Eroeha amo xeope
X
Tyxowa‘e
Torixa‘e
-koron
Awaete
Oporongetaere
Z
Ipiraygete
-xemoryryi
Oaerowang
Ixapepoa
Oxa‘a
Iguais
Diferentes
Diferentes
Diferentes
Iguais
Iguais (outro índio)
Pequena diferença
Diferentes
Pequena diferença
Iguais
Iguais
Iguais
Foram escolhidas aqui alguns exemplos das principais classes de palavras: Verbos - Os verbos estão
indicados com um traço (-) na frente da palavra. Esse traço representa o complemento do verbo, pois
em Parakanã a pessoa vem junto no verbo. Por exemplo, abaixar se escreve -eroxym, porque em um
modo prático, em uma frase deve se dizer quem está abaixando. No verbo caçar (-ata) ficaria assim: eu
caço (ixe aata) e ele caça (a‘e oata); Substantivos - os nomes das coisas são geralmente escritos de
forma completa como abacaxi (nana) e babaçu (inata). Mas pode em alguns casos aparecer com a
indicação para algum prefixo como na palavra galho que pode ser -akoa porque o galho é parte de algo
(da árvore), então deve ter algum complemento. Assim como olho - hea (-ea), que pertence a alguém
(ou é meu ou é dele); Preposição - Normal como em depois (amoteramo); Advérbio - embaixo
(Ywyrype/Iwyre); Adjetivo - normal como em fino (Iwaipipi/Iporoipipi);
Outro dado importante são as diferenças mostradas entre os dois grupos: Parakanã Oriental e Parakanã
Ocidental. Essas podem ser: 1) Um grupo pode conhecer a palavra do outro grupo, mas chama o
objeto de outra forma totalmente diferente, como no caso do Abacaxi: PKN ORI chama de nana e
PKN OCI conhece a designação nana, mas prefere chamar de xoparapara; 2) Objetos novos, que
conheceram após o contato, podem receber nomes completamente diferentes (anzol = taona e pina) ou
com apenas uma pequena modificação em algum som na palavra (boi = tapi‘iroa e tapiroa) ou ainda com
uma grande modificação, mas ainda com parte da palavra semelhante (galinha = wyrangawa e
wyrapaxe); 3) Pode acontecer de aparecer uma pequena diferença muito comum nas palavras com: a.
Som y e som h (-pyyng e -pyhyng); b. Som ‗ (xoromo‘a e xoromoa); c. Duplicação do som (i‘i); 4) Palavras
existentes na língua Parakanã sem tradução para o português. É uma língua em movimento, falada,
viva. Nem tudo pode ainda ser traduzido e sempre haverá palavras que não precisarão ser traduzidas,
pois diz respeito apenas a sua cultura: a. Peyra: espécie de bolsa que os Awaete fazem de cipó ou palha
para carregar caça ou utensílios; b. Pariria: planta de folha larga e alongada medicinal que serve para dor
de cabeça e febre.
Com a organização das palavras ficou muito mais fácil construir o Método de Alfabetização na
Língua Parakanã, que a partir de palavras chaves concretas leva a criança a aprender a escrita de sua
337
língua de forma rápida, gradual e completa. Também ajudou nos diálogos nos Postos de Saúde para
atendimento de saúda aos Awaete de cada aldeia.
4. Discussão e conclusão
Os Parakanã do Tocantins (TI Parakanã) guardam algumas diferenças dialetais entre os dois grupos
existentes, além de terem diferenças mais marcantes entre os Asuriní do Tocantins e Suruí, do grupo
lingüístico ao qual pertencem. Entretanto, a comunicação se faz muito bem entre as três etnias. Os
Parakanã já casaram tanto com mulheres Asuriní do Tocantins como com mulheres Suruí e nas aldeias
essas mulheres se comunicavam muito bem no seu círculo familiar. Entre os Parakanã, as diferenças
também são marcadas na pintura corporal, na confecção do artesanato e nas danças. Mas esses
elementos são mais difíceis de serem observados. É na fala que percebemos a entonação, a altura da
voz, a velocidade com que as palavras são faladas.
Essa experiência com o glossário Parakanã foi muito importante do ponto de vista da participação dos
falantes. Em todas as aldeias as pessoas ficavam tentando entender os termos, perguntavam para os
mais velhos e repetiam as gravações quando essas não ficavam adequadas o quanto fosse necessário.
Nas escolas sempre ficam a disposição dos alunos dicionários português-português que são bastante
utilizados e solicitados. Muitos alunos possuem o seu próprio dicionário. O glossário tem ajudado,
especialmente os mais jovens a entender termos que eles têm dúvidas ou não estão acostumados a
utilizar. Acreditamos que um dicionário Parakanã-Português será o nosso próximo passo, com o
desenvolvimento de uma metodologia em que os próprios falantes do Parakanã possam construí-lo.
Como já existe atualmente o dicionário feito com os Parakanã do Xingu (Apyterewa) construído por
Silva (2003), será bem mais fácil realizar essa construção para os Parakanã Oriental oriundos da aldeia
Paranatinga, bem como ampliar a compreensão dos termos utilizados nas duas línguas.
Referências Bibliográficas
FAUSTO, C. 2001. Inimigos Fiéis: história, guerra e xamanismo na Amazônia. São Paulo:
Editora da Universidade de São Paulo.
MONTSERRAT, Ruth Maria Fonini. 2005. Línguas indígenas no Brasil contemporâneo. Em: CHAUI,
Marilena de Souza & GRUPIONI, Luís Donisete Benzi. (Org.). Índios no Brasil. 4ª ed. São Paulo:
Global; Brasília: MEC. 93-104.
PROGRAMA PARAKANÃ. 2011. Relatório de Atividades. (relatório não publicado). Tucuruí–PA.
281 p.
RODRIGUES, AryonDall‘Igna, CABRAL, Ana Suelly Arruda Câmara, 2002. Revendo a classificação
interna da família Tupí-Guarani. Em: CABRAL, Ana Suelly Arruda Câmara, RODRIGUES,
AryonDall‘Igna (Orgs.). Línguas Indígenas Brasileiras: Fonologia, Grámatica e História. Atas do
338
I Encontro Internacional do Grupo de Trabalho sobre Línguas Indígenas da ANPOLL; Tomo I,
Editora Universitária/UFPA, Belém. 327-337.
SILVA, Gino Ferreira da. 2003. Construindo um dicionário Parakanã-Português. Dissertação de
Mestrado. UFPA – Letras (Lingüística e Teoria Literária). 148 p.
Agradecimentos
Agradecemos especialmente a todos os Awaete que de forma direta ou indireta ajudaram na construção deste
trabalho, especialmente: Os Orientais Amynyxoa Parakanã; Apoena Parakanã; Axoa Parakanã Awaewoa
Parakanã; Kwatinema Parakanã; Wawa Parakanã; Wyraporona Parakanã; e os Ocidentais Awaxetywy‘yma
Parakanã; Ina Parakanã; Kytyga Parakanã; Moroyroa Parakanã; Nananawa Parakanã; Rirore Parakanã;
Takotywera Parakanã; Tarana Parakanã; Tyge Parakanã; Xeteria Parakanã.
MUSEU PARA LER E ESCREVER: RELATO DE UMA EXPERIÊNCIA
DIDÁTICA
Elenilda do R. Costa1
Alessandra F. Conde da Silva2
Resumo: A aversão à escrita e à leitura por parte dos alunos causa grande insatisfação nos professores.
Conhecedor da realidade nacional, o projeto Museu em (re)vista buscou desenvolver trabalhos que
auxiliassem os professores no campo do ensino-aprendizagem. Foi preciso percorrer alguns caminhos,
como, por exemplo, os da leitura, os das imagens e, ainda, os aspectos culturais da região bragantina.
No que concerne à ação e extensão, o projeto objetivou valorizar a cultura no circuito escolar,
incentivando o prazer de desfrutar de imagens e palavras antes pertencentes à esfera do museu e,
portanto, desconhecidas, muitas vezes, aos alunos. Por este motivo, a ação que desempenhou um
direcionamento ao Museu de Arte Sacra da região bragantina mostrou-se pertinente, uma vez que os
museus são palco de histórias, de experiências múltiplas etc. Aspectos da cultura, do imaginário e da
memória da região foram também enfoques deste projeto, objetivando o conhecimento e a valoração
ao meio cultural do aluno. A partir desta instigação, o aluno poderia construir conhecimentos e outras
ações que conduzissem à prática da pesquisa, da leitura e da escrita, seguindo a visão de que o aluno
deve ser autor da própria história. A aproximação do Museu com a escola foi um meio de conduzir
esses alunos à ação de leitura prazerosa e de produção escrita criativa (em nosso caso, valorizando a
produção narrativa e a utilização de instrumentos tecnológicos como suporte educacional); nosso
intento foi dar oportunidades à classe de ver com outros olhos o momento de ler e escrever.
Palavras-chave: Cultura, Ensino-aprendizagem; Museu.
1
2
Graduanda do curso de letras – Língua Portuguesa – 2009 UFPA/Bragança ([email protected]).
Mestre em Estudos Literários pela UFES. Atualmente professora da UFPA.
339
Abstract:The aversionto writing andreadingby studentscauses greatdissatisfactionamong teachers.
Knowerof national reality, the design museumin(re) viewsought to developworksthat could
helpteachersin teachingand learning. It was necessary togosomeway, for example,the
readingoftheimagesand alsocultural aspects bragantinaregion. Regarding theactionand scope, the project
aimed toenhance theculture in theschoolcircuit, encouragingthe pleasureof enjoyingimages and
wordsthat once belongedto the sphereof the museumand thereforeunknown, often students. For this
reason,
the
action
thatplayed
adirectionto
the
Museumof
Sacred
Artin
the
regionbragantinaprovedrelevant, since the museumsareonstagestories,multiple experiencesetc.Aspectsof
culture, imagination and memoryof the regionwerealsofocusesof this projectaimed at
determiningandvaluingthecultural environmentof the student. From thisinstigation, the studentcould
buildknowledge andother actionsthat would leadto the practiceof research,reading and writing,
following the view thatstudents should beauthor's own story. The approachof the Museumwith the
schoolwasa
meansto
drivethese
studentsto
actionpleasurablereadingandcreative
writingproduction(inour case, valuing narrative productionand use oftechnological toolssuch
aseducational support) our intentwas to giveopportunitiesto the classto seewith new eyesthe time toread
and write.
Keywords: Culture, Teaching and learning; Museum.
1. Introdução
Aprendi – enquanto bolsista de extensão – ao longo desta experiência que não existe um modo
de ler, mas existem muitas e diversificada maneiras de ―ler bem‖. O ensino de Língua Portuguesa tem a
finalidade de ampliar quatro competências linguísticas aos alunos: a de ouvir, a de falar, a de ler e a de
escrever. O aluno deve saber empregar essas quatro atividades humanas de forma apropriada em cada
contexto social em que se encontrem. Para Bakhtin (1997), norteado pela metáfora do ―eu e o outro‖, a
relação indivíduo-sociedade deve ser pautada na alteridade, isto é, o eu deve se posicionar para o outro e
é dessa forma também que ele deve se posicionar na sua interrelação com os mais diferentes gêneros
discursivos. Harold Bloom (2001, p. 15) escreveu com a mesma ideia: ―ler nos conduz à alteridade, seja
à nossa própria ou à de nossos amigos, presentes ou futuros.‖. Pensamento análogo apresenta Chartier
(1994, p. 16): Ler ―(...) não é somente uma operação abstrata de intelecção (...) é também por em jogo o
corpo é inscrição num espaço, relação consigo e com o outro‖.
O projeto Museu em (re)vista3 teve como entidades parceiras a Escola Estadual Argentina Pereira
o Museu de arte Sacra de Bragança (MASB) e buscou privilegiar a leitura e a produção escrita,
valorizando a cultura local.
3
O projeto Museu em (re)vista, coordenado pela Profª Me. Alessandra F. Conde da Silva, visa desenvolver trabalhos que
auxiliem os professores quanto ao processo de ensino-aprendizagem. Para tal, algumas ações nos regem, entre elas, os
caminhos da leitura, sejam os da imagem (das Artes Plásticas), sejam os da palavra; enfoques pelas vias da cultura, do
contato com o imaginário cultural dos povos. Nesse processo de ação e extensão, o projeto Museu em (re)vista objetiva
valorizar as Artes e a cultura no circuito escolar, realocando os domínios artísticos, incentivando a fruição de imagens e
palavras, antes pertencentes à esfera dos museus e do cânone literário. Desta forma, uma ação direcionada ao Museu de Arte
Sacra da região bragantina mostra-se pertinente, uma vez que os museus são mais que um apoio complementar à educação
340
Neste trabalho apresentarei várias possibilidades de leitura aos alunos com o intuito de
mostrar-lhes o quão agradável pode ser este momento. Essas atividades foram aplicadas por mim,
quando da minha experiência em sala de aula. Segui desde os caminhos da ficção literária até aos
caminhos da leitura de imagens (quando necessário utilizei o recurso audiovisual). Os receptores da
execução desta experiência foram alunos de 1º ano de Ensino Médio de uma escola pública da cidade
de Bragança-Pa.
Tal como propõe os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs) de Língua Portuguesa, no que
diz respeito ao ensino dos gêneros, o projeto em questão buscou proporcionar uma maior familiaridade
entre os alunos e os gêneros tanto escritos quanto orais, de forma que o aluno percebesse que essa
relação pode ser muito agradável e que, consequentemente, pode aprender a lidar com os mecanismos
que regulam a nossa língua, promovendo, então, o desenvolvimento das atividades de leitura e escrita.
Era minha preocupação mostrar ao aluno a importância da leitura e da escrita para a sociedade de hoje,
seguindo a concepção freiriana de aluno-cidadão: quis então dirimir os sentimentos de aversão e,
consequentemente, mostrar os benefícios a serem ganhos pelos amigos da leitura.
As atividades foram desenvolvidas tanto em de sala de aula (a maioria) quanto externamente.
Aquelas foram de leituras de contos medievais (contos sobre lobisomens, bruxas, vampiros etc. – que, a
meu ver, são de interesses da juventude, no momento), conversas sobre o processo de ensinoaprendizagem, discussões sobre o que torna a leitura fatigante, produções escritas, conversas sobre tais
produções. Estas (encontros fora da escola) ocorreram com uma visita ao MASB4 e à Universidade
Federal do Pará (UFPA) na cidade de Bragança para uma oficina sobre o uso do programa Comic life5.
Como todo projeto, o Museu em (re)vista também teve seus momentos baixos, pois iniciando as
atividades com mais ou menos trinta e cinco alunos, tivemos dias em que atividades foram feitas com
apenas nove estudantes e outra vez, seis. Todavia, não desanimei, pois acredito que de algum modo
uma pequena semente ficou plantada em cada um daquela classe.
2. Práticas de leitura e escrita na modernidade
Schopenhauer (2009, p. 40) afirma que ―a leitura impõe ao espírito pensamentos que, em
relação ao direcionamento e à disposição dele naquele momento, são tão estranhos e heterogêneos
formal, são, numa perspectiva emergente, uma experiência educativa independente da educação formal, o que conduz o
fruidor, o visitante do museu a agir, interagir com mais liberdade. O projeto Museu em (re)vistarecebe bolsa auxílio financeiro,
para a operacionalização de suas atividades, do Programa da PROEX (2012), para auxílio de extensão, Eixo Transversal
Inovação e Tecnologia.
4 Museu de Arte Sacra de Bragança
5 Programa destinado à criação de histórias em quadrinhos. Objetivo final do projeto Museu em (re)vista.
341
quanto é o selo em relação ao lacre sobre o qual imprime sua marca.‖ Com este pensamento sintetizei o
que me pareceu bem verdade na experiência vivida com os alunos do 1º ano do Ensino Médio. Dito
isso, mostrarei de que forma e quais as impressões percebidas, por mim, naquela turma. Há,
inegavelmente, uma grande preocupação nas escolas quanto à leitura dos alunos e, não importa de que
turma/ano eles sejam, sempre há e sempre haverá a preocupação com o que e que tipo de leitura os
alunos estão realizando nos dias de hoje (e se estão fazendo alguma leitura), mais ainda, qual e como
será a escrita deste; sendo leitura e escrita duas vias que caminham paralelamente não há como falar de
uma sem tocar na outra.
A realidade, negativa de certo modo, que se tem no quadro escolar, é que a preocupação maior
e a total responsabilidade de fazer o aluno compreender as normas a seguir, no que diz respeito ao
comportamento social de fala e escrita, cabe somente ao taxado professor de Língua Portuguesa. Daí,
os demais professores pouco se importam ou se interessam em realizar atividades que privilegiem a
leitura e a produção textual. Consideremos que ler é muito mais que decifrar códigos linguísticos; ler é
interpretar, é compreender.
Como leitora, sempre considerei a obrigação de ler algo extremamente desestimulante; hoje
entendo a reação dos alunos quando o assunto é ler. Bloom (2001, p. 17) já dizia que ―o porquê da
leitura deve ser a satisfação de interesses pessoais.‖ Assim, ao chegar à sala de aula, percebi que a
grande rejeição dos alunos se deve também a esse quesito. O fato de estarem preocupados com uma
nota ou com uma avaliação rouba destes o prazer de uma leitura agradável.
As dificuldades encontradas tanto para o professor quanto para o aluno são muitas, ambos
veem, no processo de leitura, um grande desafio. Despertar o prazer de ler em alunos com dificuldades
explícitas é muito desafiador e, portanto, no ato de vencer este desafio está toda a beleza da educação; o
transpor barreiras é o grande troféu das escolas enquanto instituições educacionais. Porém, falta um
compromisso mais sério por parte das escolas (não de todas, é claro, mas da maioria) em formar
leitores, em fazer deixar de ser a leitura apenas uma atividade de nota escolar. Penso que quando isto
acontecer teremos muito mais leitores ávidos e competentes que não apenas decifram códigos, mas que
compreendem as entrelinhas; uma relação que está estritamente ligada com a compreensão da própria
realidade, enquanto indivíduo social.
Sim, mas devemos estar nos perguntando como fazer isto acontecer? Talvez pareça mais
simples do que se imagina, pois, a meu ver, o grande empecilho se deve ao fato de termos nas escolas
um trabalho burocrático quanto à leitura, estamos depositando no ato de lê um meio de trabalho
sistemático, não agradável (tanto para os professores quanto para os alunos), sem falar que a leitura se
342
tornou um evento; a semana da leitura é, me parece, o único momento em que toda a escola está
mobilizada com o foco nos alunos, contudo o objetivo final nada mais é que meras apresentações para
o restante do grupo escolar, apresentações estas que são completamente desmotivadoras de se ver, pois
é totalmente visível a falta de interesse demonstrado pelos alunos, um teatro de principiantes; e a
interpretação dos textos? E o entendimento do aluno? E a discussão a respeito do que se está lendo?
Tudo isso fica para segundo plano, infelizmente. Consequentemente, produzimos alunos que chegam
ao fim do ano letivo com pouca ou nenhuma competência definidos pelos projetos escolares e planos
de curso.
É alarmante a falta de leitura – e leitura competente - nas instituições educacionais; uma grande
lacuna tem se formado na prática de leitura dos alunos de Ensino Médio, pois eles têm continuado o
erro que se estabelece no Ensino Fundamental. Ora, o ato de leitura, como sabemos, é muito mais do
que decodificação de signos, é compreensão do mundo que a leitura proporciona. Ler é interpretar e o
ato de interpretação, em sala de aula, pode vir precedido de exposição oral, isto é, do ouvir a opinião
dos alunos sobre determinado texto. Além do mais, Havelock (s/d, p. 28) comenta sobre a importância
da oralidade em sala de aula. Não é só deixar o aluno falar, mas privilegiar também os gêneros orais. É
agradável e educativo discutir sobre as várias leituras que se pode ter de um único texto; ouvir o que
cada aluno pode dizer de acordo com o seu conhecimento de mundo e o que, ao fim da aula, ficou de
conhecimento para a vida, para a construção do ser social.
A leitura é um universo que carrega elementos intensos para cativar os alunos. Na infância têmse textos que despertam a imaginação, mexem com os sonhos das crianças; na adolescência vê-se a
fantasia e a busca de desejos incessantes, de realizações para o agora, de uma inquietude que carrega
muitos significados e, por fim, na juventude é imprescindível o uso de textos que retratem o universo
deles e nada melhor para descrevê-los que escrituras que usem e abusem do fantástico, do sobrenatural,
é isso que está sendo consumido por eles, então porque contrariá-los falando de outras coisas que não
as que eles gostam. Ao menos quando queremos formar leitores.
O professor deve estar em comum acordo com seus alunos, portanto não há mal algum em
levar para a sala de aula livros como as sagas Crepúsculo e Harry Potter, por exemplo. Na verdade, em
minha prática, levei contos (uma vez que seria impossível em tão pouco tempo trabalhar com uma obra
completa) que continham temáticas presentes em livros como os já referidos acima.
A aula de literatura no Ensino Médio pode acontecer de forma prazerosa. Os textos podem e
devem ser lidos por vários alunos e neste ponto podemos conhecer um pouco mais das dificuldades e
facilidades que cada um apresenta, além do que demonstra uma oportunidade única para reafirmar a
343
importância do convívio coletivo e democrático. Em sala de aula, a leitura coletiva se torna mais
produtiva e fascinante pelas diversas competências performáticas que são demonstradas.
É preciso que se entenda que a leitura não é uma questão de momento, mas se trata de um ato
importante para toda a vida. Estamos em constante processo de leitura, lemos a todo instante seja texto
escrito ou imagem. Uma simples ida ao supermercado, por exemplo, exige que sejamos leitores para
simplesmente não trazer um produto fora da validade etc. Portanto, é preocupante perceber a falta de
compromisso que há com algo de suma importância para o ser humano e mais preocupante ainda a
falta de capacitação para o professor que não sabe o que fazer, pois não sabe como agradar uma
―clientela‖ que é tão exigente e diversa e que não vê nada de prazeroso na leitura de um livro. E sabe
por que isso acontece? Porque o ato de ler e de escrever está sendo colocado como punição para os
alunos. Se continuar assim jamais teremos leitores felizes, ou melhor, jamais teremos leitores. Estamos
tratando de ―leitura ou ‗lei dura‘?‖ é o questionamento que Theodoro da Silva (2011, p. 12) se faz.
Textos são para serem lidos, relidos, discutidos, debatidos. Segundo o autor acima referenciado,
a resposta para ―o que é ler‖ está no envolvimento de ―um trajeto de investigação cuidadoso e lento,
pois exige uma série de reflexões de caráter interdisciplinar‖ (SILVA, 2011, p. 12).
Outro ponto que se pode tratar a respeito da leitura e, mais especificamente, das aulas de
Literatura como um mecanismo de aprendizagem é que não se pode pensar em textos que devem ser
lidos somente porque são consagrados e aclamados pela crítica literária, mas deve-se pensar na leitura
em sala como um relacionamento entre duas pessoas em que ambas devem relacionar-se de modo
prazeroso. Não estou dizendo que os clássicos não devem ser lidos. Por clássicos entendamos não só
os cânones do passado, mas muito do que temos na modernidade. Devemos sim levar para sala de aula
as grandes obras da nossa Literatura, mas não somente; a sala de aula não deve ser um lugar passivo em
que os alunos devem aceitar todas as leituras que lhes são impostas, devem e tem todo o direito de
dizer o que gostariam de ler, de refletir, de discutir com a ajuda do professor. Este deve ser um
articulador que ofereça ao aluno o que é indispensável ao currículo escolar, mas também – e
principalmente – que proporcione à classe satisfação ao ler. O tipo de leitura que é feita pelo aluno dirá
que tipo de leitor ele será; isto é, se ao ler, interpretará o texto e adentrará no mundo inteligente e
mágico da leitura, ou se será somente um arremedo de leitor que somente decodifica signos.
3. A experiência
06 de setembro de 2012 foi o primeiro dia em que encontrei aqueles alunos. Não foi minha
primeira conversa com eles, pois a coordenadora do projeto acompanhou-me à escola, no primeiro dia,
para conhecer a turma, apresentar o projeto e convidá-los a fazer parte. Meu encontro, de fato, ocorreu
344
quatro dias depois e neste encontro tivemos bastante tempo para falar das pretensões futuras e demos
início aos trabalhos. A princípio, fiquei um tanto apreensiva, pois estava diante de uma classe que tinha
alunos com quase a minha idade, mas tal apreensão impulsionou-me a dar o melhor de mim para que
eu pudesse transmitir a confiança que eu queria que eles sentissem. Um conselho ironicamente
interessante nos dá Harold Bloom (2001, p. 16) a respeito da leitura: ―Na verdade, o único conselho
que se pode dar a alguém com respeito à leitura é não aceitar conselho algum‖. Portanto diante do
pensamento do grande mestre, o que podia fazer por aqueles alunos era lhes mostrar a própria leitura
de um modo diferente do habitual.
Comecei por apresentar-lhes uma narrativa medieval. Talvez alguém possa ficar abismado com
a minha escolha, mas eles estiveram tão concentrados em tudo que eu falava que era quase inacreditável
para uma turma de Ensino Médio. Pois bem, acredito que a aversão que os alunos, frequentemente,
sentem em relação à leitura ocorre pela falta de estimulo do próprio professor, pois se nem ele mesmo
tem vontade de ler que dirá seus alunos. A transformação que causa a leitura deve acontecer
primeiramente no docente para, então, depois acontecer nos estudantes.
A pergunta que deve estar no ar é: por que uma narrativa medieval? Porque sou uma amante
desta época e acredito que a leitura é uma paixão que é transmitida aos que estão ao redor e, sendo
assim, nada poderia encantá-los mais que o meu entusiasmo pelo Medievo. E deu certo. Todos os
textos retrataram esse universo e o meu ânimo contagiou-os, acredito, e cada fim de aula era como o
fim de um capítulo de novela; eles sempre queriam saber o que viria depois. Sem falsa modéstia era
muito gratificante vê-los entusiasmados para o próximo encontro. Além do mais, os textos escolhidos,
segundo orientação do projeto, buscavam abordar temáticas bastante consumidas pelos alunos. Basta
que lembremos, por exemplo, dos filmes e livros assistidos e lidos pelos alunos. Livros esses que não
são trabalhados nas escolas. É patente a preferência por bruxas, vampiros, lobisomens presentes em
muitos livros e filmes. Textos medievais, por exemplo, são ricos nessas temáticas. A lai de Melion trata
da história de um nobre que vira lobo. Morgana, por ilustração, é uma fada/bruxa presente no
imaginário medieval, assim como muitas outras personagens mágicas, histórias sobre cavaleiros e
combates, vampiros etc.
Busquei trabalhar com sequências didáticas como forma de estruturar minhas atividades, pois minhas
ações pedagógicas privilegiariam o gênero conto. Sequência didática é ―uma sequência de módulos de
ensino, organizados conjuntamente para melhorar uma determinada prática de linguagem. As
sequências didáticas instauram uma primeira relação entre um projeto de apropriação de uma prática de
linguagem e os instrumentos que facilitam essa apropriação‖ (DOLZ E SCHNEUWLY, 2004, p.51).
345
Tentávamos nos encontrar, pelo menos, uma vez por semana; nem sempre era possível, pois eu
não poderia interromper todas as aula da professora atuante e também a escola tinha suas tarefas a
cumprir; é preciso deixar claro que mesmo nos nossos encontros, havia a preocupação de estar sempre
em conexão com o assunto dado pela professora efetiva, para não confundir a cabeça dos alunos com
mais um assunto dos muitos que a grade curricular da escola já disponibiliza.
Toda uma discussão se desenvolveu até aqui e pouco se falou, com propriedade, do Museu de
Arte Sacra de Bragança (MASB) e ainda não se disse o motivo de consideramos este patrimônio como
um instrumento educacional. Explicarei. O MASB é um espaço onde se encontra um pouco da história
da religiosidade de Bragança, mas antes de tudo é um espaço que poucos moradores bragantinos sabem
que existem na sua cidade e que, dos que conhecem, poucos são os que já o visitaram. Portanto, o
objetivo do projeto era fazer com que um patrimônio tão pouco conhecido ficasse, como o próprio
nome do projeto vinculado carrega ―em vista‖ e ―em (re)vista‖, assim estaríamos tratando de algo
(des)conhecido do público.
Foi possível trabalhar com o museu como instrumento educacional, pois com isso os alunos
investigaram objetos e conheceram um pouco sobre a arte sacra e também compreenderam a
importância de tal espaço; espaço este que poderia ser lido de forma diferente por cada um deles.
Escutaram vozes de uma história que já estava silenciada pela correria do dia a dia e pela falta de
informação. Deram sentido a muitas imagens. Por fim, conhecemos então que expectativas carregavam
tais alunos para uma aula extraclasse e o quanto essa relação museu/escola pode contribuir para o
ensino aprendizagem.
Tínhamos o anseio de saber que consciência havia ficado nos alunos após tal experiência, então
pedi a eles que contassem (escrevessem) para mim tal relato. Schneuwly e Dolz (1999, p. 10) escrevem
que ―toda introdução de um gênero na escola é o resultado de uma decisão didática que visa a objetivos
precisos de aprendizagem‖, Digo isso para expressar que nesta atividade os alunos tenderam mais para
o lado do texto descritivo que para o dissertativo (talvez porque desde o início já vínhamos trabalhando
com eles, nas sequências didáticas, o gênero conto, sobretudo o medieval, rico em maravilhoso). Mas
essa questão da produção do gênero errado, não foi um problema. Prosseguindo com a sequência
didática, construímos um módulo de atividades, buscando mostrar a diferença entre os gêneros.
Faz parte dos objetivos do projeto conduzir o aluno à produção de uma história em quadrinhos,
o que privilegia o gênero narrativo. Para tal, será utilizado o software Comic life. O projeto está num
momento em que se executa esta tarefa. Segundo as prerrogativas do projeto, a aplicação dos contos de
temática medieval era para que os alunos se ambientassem num ambiente mágico e maravilhoso.
346
Poderia ter sido escolhido outro tipo de conto, mas foi considerado, por exemplo, o tipo de narrativa
da vida dos santos e demais gêneros medievais: alicerçados no maravilhoso cristão e pagão. Assim,
quando os alunos tiverem que construir as histórias, concernentes à experiência no museu, eles já terão
sua bagagem cultural aumentada.
Interessante notar no Museu de Arte Sacra de Bragança é que há naquelas peças, me parece,
uma história heroica, sim, pois os santos – se não todos, mas a maioria – expostos para apreciação
carregam uma narrativa ―guerreira‖ que deve ser observada pelo visitante (falamos, é claro, de heroísmo
cristão e a estrutura das narrativas obedece ao padrão de um herói que necessita enfrentar um grande
inimigo, até que, no final, após passar por grandes demandas e angústias, possa vencer o mal); daí o
projeto Museu em (re)vista seguir uma outra linha de estudo que é a catalogação destes santos e suas
representatividade na sociedade bragantina. Por muitas vezes, algumas histórias dos santos foram
contadas, para os alunos, objetivando a captação de elementos presentes tanto nos contos trabalhados
em sala de aula, quanto nas narrativas dos santos.
Em resumo, já posso afirmar, pela minha experiência, que essa parceria contribuiu
significativamente para o aprendizado de um novo olhar dos alunos para o museu. Já houve um tempo
em nossa sociedade que o(s) museu(s) eram símbolo de uma consciência histórica do nosso país. Uma
visita a qualquer museu carrega não somente beleza aos olhos, mas acima de tudo, um espaço que
determina ou determinou comportamentos hierárquicos e construção de memórias; é um lugar de troca
de informação, de conhecimento, lugar de descobertas, de sentidos.
Paulo Freire (2006, p. 22) fala criticamente de ―uma transmissão de conhecimentos a sujeitos
passivos‖. Daí, por tudo que foi descrito acima a respeito do espaço museu, percebemos o quanto é
rico trabalhar com tal patrimônio para mostrar aos alunos que, além de uma consciência daquilo que há
na sua cidade, interessa a todos, enquanto cidadãos, uma educação que trabalhe discursos,
conhecimento histórico de uma sociedade que deve ―produzir‖ sujeitos pensantes, alunos que avaliem
os fatos criticamente, buscando a formação de um ser social que dialogue de maneira eficaz com todos
e diversos integrantes de uma sociedade.
O que se espera, agora de uma atividade estimulante que trouxe grandes benefícios ao
desenvolvimento do projeto, como já se disse acima, é uma produção de histórias em quadrinhos,
utilizando o software Comic life, como instrumento educacional, atendendo as especificações do edital do
programa que financia a operacionalização do projeto, sobre a utilização das novas tecnologias no
circuito escolar. Com ela, de forma pedagógica, buscou-se conduzir o aluno à produção textual
347
dinâmica e ativa, visto que é o próprio aluno quem produzirá sua experiência no museu, isto é, contará
a sua própria história.
Considerar a formação do público leitor é pensar não somente na escola como instituição de
ensino, mas também em outros espaços como o próprio museu. Ler e escrever, no Ensino Médio, é um
processo que precisa ser dinâmico e eficaz. Para isso está ai a Literatura, o MASB, o processo de criação
de histórias em quadrinhos; tudo como suporte para um ensino satisfatório de leitura e produção
textual.
Referências
BAKTHIN, Mikhail. Marxismo e filosofia da linguagem. 7ª ed. São Paulo: Hucitec, 1997.
BENJAMIN, Walter. O narrador – Considerações sobre a obra de Nikolai Leskov. In: Obras Escolhidas
I - Magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense, 1996.
BLOOM, Harold. Como e por que ler. Rio de Janeiro; Objetiva: 2001.
CHARTIER, Roger. A ordem dos livros. Leitores e bibliotecas na França entre os séculos XIX e XVIII.
Brasília: UNB, 1994.
DOLZ, Joaquim; SCHNEUWLY, Bernand. Gêneros orais e escritos na escola. Campinas, SP: Mercado de
Letras, 2004. 278 p. (Tradução e organização: Roxane Rojo; Glaís Sales Cordeiro).
DOLZ, Joaquim; SCHNEUWLY, Bernand. Os gêneros escolares: das práticas de linguagem aos objetos de
ensino. Revista Brasileira de Educação, 1999.
FREIRE, Paulo. Medo e ousadia: o cotidiano do professor. 7ª ed. Rio de Janeiro: Paz e terra. 1997.
HAVELOCK, Eric. A equação oralidade – cultura escrita: uma formula para a mente moderna. In:
OLSON, David. R., TORRANCE, Nancy. Cultura escrita e oralidade. Trad. Valter Siqueira. São Paulo:
Ática s/d.
SCHOPENHAUER, Arthur. A arte de escrever. Tradução e Organização de Pedro Sussekind. Porto
Alegre, RS: L&PM POCKET, 2009.
SILVA, Ezequiel Theodoro da. O ato de ler. 11 Ed. São Paulo; Cortez, 2011.
348
349
AS CANÇÕES DA MPB ANALISADAS A LUZ DA TEORIA BAKHTINIANA
DA CARNAVALIZAÇÃO.
Elielder de Oliveira Lima1
João Batista Costa Gonçalves2
Resumo: Este artigo analisa as canções de Chico Buarque de Hollanda produzidas durante a Ditadura
Militar aqui no Brasil a luz da teoria da carnavalização presentes nas obras Problemas da Poética de
Dostóiévski (1981) e A Cultura Popular na Idade Média: o contexto de François Rabelais (1987) de
Mikhail Bakhtin. A análise busca estabelecer um diálogo entre a teoria bakhtiniana da carnavalização,
compreendida com uma influência do carnaval na literatura e em outros gêneros, com as canções
buarqueanas.
Palavras-chave: Bakhtin, carnavalização, Chico Buarque.
Abstract: This article analyzes the songs by Chico Buarque produced during the military dictatorship in
Brazil in light of the theory of carnivalization Problems in the works of Dostoevsky's Poetics (1981)
and Popular Culture in the Middle Ages: the context of François Rabelais (1987 ) of Mikhail Bakhtin.
The analysis seeks to establish a dialogue between the Bakhtinian theory of carnivalization, comprised
of Carnival with an influence on literature and other genres, with songs buarqueanas.
Keywords: Bakhtin, carnivalization, Chico Buarque.
1. Introdução
Foi no cenário de censura e repressão que Chico Buarque de Hollanda encontrou maior
inspiração para a composição de suas canções. E são justamente as produzidas nos idos de 1964 a 1985,
que servirão de corpus para a análise do texto deste artigo.
As canções serão analisadas a luz da teoria da carnavalização de Bakhtin (1981, 1987) buscando
estabelecer entre elas, canções e teoria, um diálogo.
O fenômeno da carnavalização pode ser
compreendido como uma influência do carnaval na literatura e nos diferentes gêneros. Sua origem está
na festa primitiva que celebra o começo do ano ou o renascimento da natureza e caracteriza-se pela
liberação das restrições da vida cotidiana.
O carnaval possui uma série de linguagens de símbolos sensíveis e concretos que evidencia uma
projeção carnavalesca do mundo. Desta forma, o carnaval constitui-se a manifestação de um mundo às
avessas no qual a distância entre os homens, criada pelas leis que determinam um sistema de vida
normal, são suspensas.
1Especialista
em Ensino de Língua Portuguesa (UECE). Professor da Rede Pública de Ensino do Estado do Ceará. E-mail:
[email protected]
Professor orientador. Doutor em Linguística pela Universidade Federal do Ceará, é professor da Universidade Estadual do Ceará onde
atua na graduação e pós-graduação. E-mail: [email protected]
2
350
Para Bakhtin, o carnaval constituía simultaneamente um conjunto de manifestações da cultura
popular e um princípio de compreensão holística dessa cultura em termos de visão de mundo coerente
e organizada.
2. A carnavalização: um conceito extraído das obras de Bakhtin
O enfoque teórico mais apropriado para análise é o ponto de vista do pensador russo Mikhail
Bakhtin sobre a carnavalização. Em seu livro A Obra de François Rabelais e a Cultura Popular na Idade Média
e no Renascimento (escrito em 1940 e publicado somente em 1965), desenvolve uma inovadora teoria da
cultura popular e da sua apropriação pela literatura baseada nos conceitos de carnaval e carnavalização.
A utilização da teoria de Bakhtin sobre a carnavalização para análise das canções de Chico
Buarque, principalmente as produzidas no período da ditadura militar, torna-se oportuno por basear-se
uma tensão entre o mundo oficial e o popular.
Por carnavalização entende-se a influência do carnaval na literatura e nos diferentes gêneros. A
origem do carnaval está na festa primitiva que celebra o começo do ano ou o renascimento da natureza
e caracteriza-se pela liberação das restrições da vida cotidiana.
O carnaval possuiu uma linguagem de símbolos sensíveis e concretos que evidencia uma
projeção carnavalesca do mundo. O carnaval seria, portanto, a manifestação de um mundo às avessas
no qual as distâncias entre os homens, criada pelas leis que determinam um sistema de vida normal, são
suspensas.
Para Bakhtin, o carnaval constituía simultaneamente um conjunto de manifestações da cultura
popular e um princípio de compreensão holística dessa cultura em termos de visão de mundo coerente
e organizada. O elemento que unifica a diversidade de manifestações carnavalescas e lhes confere a
dimensão cósmica é o riso, um riso coletivo que se opõe ao tom sério e a solenidade repressiva da
cultura oficial e do poder real, mas que não se limita a ser negativo e destrutivo.
O carnaval propriamente dito não é, evidentemente, um fenômeno literário. É uma
forma sincrética de espetáculo de caráter ritual, muito complexa, variada, que, sob base
carnavalesca geral, apresenta diversos matizes e variações, dependendo da diferença de
épocas, povos e festejos particulares. O carnaval criou toda uma linguagem de formas
concreto-sensoriais simbólicas. Essa linguagem exprime de maneira diversificada uma
cosmovisão carnavalesca una, que lhe penetra todas as formas. É a transposição da
linguagem do carnaval para a linguagem da literatura que chamamos carnavalização da
literatura. (Bakhtin, 1987, p.122)
Os efeitos cômicos apontados por Bakhtin dentro da carnavalização literária transparecem
através de antíteses entre vida e morte, religião e festa, violência e orgia, inverno e primavera, carnaval e
quaresma, desvendando a dialética da própria vida.
351
O teórico ainda afirma que ―o carnaval aproxima, reúne e combina o sagrado com o profano, o
elevado com o baixo, o grande com o insignificante, a sabedoria com a tolice, o bem com o mal e o
sério ao cômico‖ (1987, p.123). Essa série de combinações dá origem a categoria da profanação, que é
formada pelos sacrilégios e indecências carnavalescas que se relacionam com a força produtora da terra
e do corpo, e pelas paródias carnavalescas dos textos sagrados e sentenças bíblicas.
Os ritos e espetáculos carnavalescos ofereciam uma visão de mundo, do homem e das relações
humanas totalmente diferentes, deliberadamente não oficial, exterior à Igreja e ao Estado; pareciam ter
se constituído, ao lado do mundo oficial, um segundo mundo e uma segunda vida. Essa segunda vida
da cultura popular constrói-se como paródia da vida ordinária, como um mundo ao revés (Bakhtin,
1987, p.125).
O mundo às avessas, criado pelos atos carnavalescos, é baseado na vida do instinto individual e
deseja igualdade entre os homens. O carnaval põe em destaque o desvirtuamento da cultura oficial
através do contraste entre duas imagens que se constroem em uma só.
Ao contrário da festa oficial, o carnaval era o triunfo de uma espécie de libertação
temporária da verdade dominante e do regime vigente, da abolição provisória de todas
as relações hierárquicas, privilégios, regras, tabus (Bakhtin, 1997, p.123)
Alargando o palco da vida privada, de uma época delimitada, a carnavalização introduz um
palco universal, comum a todos os homens. Na praça do carnaval, a distância entre os homens vê-se
substituída por um contato ―livre e familiar‖. Seu paradigma é o mundo às avessas, que valida todos os
travestimentos e inversões de roupas, palavras, atitudes, dando-se voz ao grotesco, ao obsceno, ao que
Bakhtin chama de baixo corporal e material, em contraposição a cultura oficial.
O tempo carnavalesco não é trágico, nem épico, nem histórico. Com suas próprias leis, ele
engloba uma quantidade infinita de mudanças radicais e metamorfoses. Com todas as imagens do
carnaval, também o riso é profundamente ambivalente. Nele a negação mistura-se à afirmação,
relacionando-se tais imagens com processos de mudança e de crise.
Pode-se enumerar em três as grandes formas de revestimento do riso carnavalesco. Em
primeiro lugar, vêm os espetáculos e rituais cômicos, que não se limitavam apenas às procissões do
carnaval, que tomavam conta das ruas por vários dias, mas também a outras festas, ritos, protocolos e
representações constitutivas do tempo do carnaval por toda a Europa, como a festa dos loucos ou a do
burro, em que se celebrava uma paródia da liturgia perante um burro paramentado.
Da abundância de tipos ou figuras públicas de que o carnaval era feita, sobressaía o louco (tido
quase sempre como néscio, parvo, bobo, palhaço), representante do próprio espírito carnavalesco,
geralmente escolhido como rei cômico. O que singulariza esses rituais é, sobretudo, a sua natureza não
oficial, denotando, como diz Bakhtin (1987), uma segunda vida do povo, um duplo das práticas da
352
Igreja e do Estado, em que todo o povo participava numa comunhão utópica de liberdade e
abundância, de suspensão de todas as hierarquias e de dissolução da fronteira entre a arte e o mundo.
A segunda forma de revestimento do riso são as composições verbais cômicas. Durante a Idade
Média, houve uma massificação de uma infinidade de textos de caráter paródico, muitos deles
produzidos nos mosteiros para os ritos carnavalescos. A chamada paródia sacra parodiava todos os
aspectos do culto: liturgia, hinos, salmos, evangelhos e orações. Outros gêneros eram também alvos do
riso paródico: os decretos, os espetáculos, os testamentos e outros, cujo sentido residia no
rebaixamento ou destronamento de tudo o que era elevado, dogmático ou sério.
Por fim, a terceira forma de revestimento do riso residia nos vários gêneros de linguagem
familiar e grosseira da praça pública. Neste aspecto o carnaval instituiu uma nova forma de
comunicação baseado no gesto e no vocabulário que decorre do nivelamento social e da abolição das
formalidades e etiquetas.
O uso generalizado de profanidades e blasfêmias, juras, imprecações, obscenidades e expressões
de teor insultoso definem a linguagem carnavalesca em sua função ambivalente: ao tempo em que é
humilhante é também libertadora. Certas obscenidades ainda hoje conservam um sentido
simultaneamente de insulto e elogio. As pancadas e outras formas de abuso físico cômico são
características do comportamento carnavalesco, representando a redução do alto ao baixo,
simbolizando a morte que dá vida.
O carnaval, para Bakhtin, gera um tipo especial de riso festivo. É mais do que uma reação
individual e um evento cômico isolado. É uma alegria universal, dirigida a tudo e a todos, inclusive aos
participantes do carnaval. O autor também compartilha a idéia de que o carnaval tem múltiplas faces; é
ao mesmo tempo textual, pois é idealizado a partir de um texto original; intertextual, por atribuir
variadas formas de interpretação dessa idéia original; contextual, por estar inserido no contexto social.
É tomando por idéia seminal essa perspectiva da teoria da carnavalização que se analisará as
canções de Chico Buarque de Holanda, produzida no período do Regime Militar (1964 a 1985) e que
em sua grande maioria vem contestar o instituído oficialmente.
3. As canções que insistem em dizer, sem ter dito
Nas letras das canções escolhidas para análise é possível identificar a voz do inconformismo
social que carrega por vezes um grito ou um riso contido que diz uma coisa querendo significar outra,
muitas vezes na tentativa de subverter a ordem opressora do regime ditatorial3. Ao ser questionado
Neste momento abrimos um parêntese para alertar ao leitor que embora façamos uma investigação para perceber o elemento
carnavalesco nas canções produzidas durante o regime militar, nem todas elas relacionam-se diretamente a este fato de nossa história, uma
vez que a visão de mundo carnavalesca encontradas nas canções, também se refere a elementos da cultura popular.
3
353
pela Revista 3654, a respeito de suas composições com intenção clara de denúncia ou protesto, Chico
Buarque assevera que suas canções foram produzidas desintencionalmente:
Não, minhas músicas não são feitas com nenhuma intenção. São feitas mais com
intuição, com emoção, com estalos assim e o que elas têm de elaborado é só a parte
formal, mesmo quando elas abordam temas sociais. Acho que a canção de protesto,
canção definida e dirigida política ou ideologicamente, acho que não há condições para
se fazer uma canção assim, no Brasil, no momento. Não passa. Quer dizer, nem passa
pela cabeça de ninguém. Então, eu não sou um cantor de protesto. Pode dizer que sou
um cantor do cotidiano. Um cantor de resmungo. E uma pessoa de protesto. Pode dizer
isso.
Ainda nessa mesma entrevista Chico diz que é melhor ser ―censurado do que omisso‖. Dessa
declaração pode-se compreender que a censura recai sobre as composições e sobre o próprio
compositor justamente por ele não omitir opinião, muito embora essas opiniões não apareçam as claras.
O objetivo era atingir o povo brasileiro, tirá-los do estado de inércia. O grande entrave foi que as
canções não foram compreendidas por todos. Sobre isso ele ainda nos diz:
Acho que a censura à informação é um erro grave porque limitando a divulgação,
impede o conhecimento amplo das verdades e cria uma falsa realidade que acaba
contagiando os próprios responsáveis pela censura. (...) A censura à manifestação e à
criação artística limita e marginaliza o autor teatral, o músico, o cineasta, muitas vezes,
obrigando o cara a fazer malabarismos pra dizer alguma coisa. Alguma coisa que só
passa por uma pequena elite que já sabe dessa coisa. A obra de arte nacional acaba se
afastando do povo, acaba ficando chata. (Revista 365, 1976. In:
www.chicobuarque.com.br)
Uma declaração dessa natureza evidencia, muito bem, que o compositor pretendia atingir a
grande massa, uma vez que a pequena elite já encontrava-se engajada na política nacional. O público de
Chico Buarque, na época, eram os que se encontravam na faixa universitária, já que a censura bloqueava
o contato mais próximo do público com o artista, levando, desta forma, a arte a perder seu
compromisso com o popular.
Em entrevista a Revista Veja em agosto de 1978, Chico diz que sua intenção era levar o povo a
refletir e que a partir dessa reflexão chegasse as suas próprias conclusões: ―Realmente, eu não
proponho mudanças. A ideia é justamente essa: constatar uma situação, colocar uma situação,
confiando no critério das pessoas que vão ouvir minha música ou assistir à peça. E que elas tirem daí
alguma conclusão‖. (Revista Veja. Como falar ao povo?SP.ag/78. In: www.chicobuarque.com.br)
Outro ponto a ser destacado é que Chico nunca intencionou ser herói do povo brasileiro, ou
mesmo mudar o ser humano. Ele sempre afirmou ser artista e não político, nem subversivo. Na
entrevista a Revista Bondinho, no ano de 1976, ele assegura que:
Se alguém me faz subversivo, é a própria censura, porque eu quero dizer as coisas
claramente. Não quero dizer sub não. Inclusive, eu acho que às vezes tenha que
procurar uma imagem, uma metáfora, pra dizer um negócio. Eu gosto de dizer as coisas
claras. (Disponível em: www.chicobuarque.com.br)
4
Disponível em www.chicobuarque.com.br
354
Como é possível perceber, Chico foi um relator de seu tempo. Conseguiu transmitir – mesmo
que de forma camuflada, nas entrelinhas, tudo o que os brasileiros estavam sentindo naqueles anos de
chumbo. Ele pode ser considera um porta-voz, muito embora tenha tentado negar esse papel, de uma
geração que se encontrava desiludida e carecia de alguém que pudesse empreender uma luta por ela.
O Brasil viveu um grande vazio político, especialmente durante seis anos, compreendidos entre
1968 a 1974, sobre o qual o Chico nos fala que,
as opções que se apresentaram eram muito pobres para interessar o jovem, as
pessoas gostariam de estar participando de alguma forma da sociedade. Então,
é evidente que nesse período, qualquer palco virava uma tribuna, mesmo não
querendo o sujeito estava lá assumindo uma posição. O tempo todo, a cada
momento, a cada canção e a cada entrevista. (Folhetim. FSP, 1978. In:
www.chicobuarque.com.br)
É possível notar que as canções exprimiam – ainda hoje exprimem, marcas de um sujeito
socialmente inconformado, que materializou em discurso o sentimento do povo brasileiro que viveu
sob as garras de um regime ditatorial que lhes castrava a liberdade de expressão. De uma forma ou de
outra, as canções conduziram muita gente à reflexão dos seus direitos enquanto cidadãos. A arte de
Chico Buarque é plural e até hoje fervilha no coração e no imaginário do povo. O mesmo povo que vai
aos shows e nunca esquece as ―boas canções‖
A proposição deste artigo é investigar a incidência da cosmovisão carnavalesca nas letras das
canções: Roda Viva (1967), Bom Conselho (1972), Palavra de Mulher (1985) e Não Sonho Mais (1979), razão
maior da pesquisa.
3.1
Os versos carnavalizados de Chico Buarque
A canção Roda-Viva ganhou o Festival de 1967 e venceu a canção Alegria, Alegria do baiano
Caetano Veloso. Roda-Viva mudou a imagem do mocinho bem criado e também compositor de A
Banda. A rima alternada dos versos -a, b, a, b – possibilita visualizá-la como uma grande engrenagem
que chega para esmagar os que se encontram no caminho inverso.
O dicionário Houaiss da Língua Portuguesa (2001, p. 2467), mostra que Roda-Viva é um
movimento incessante, uma inquietação, uma confusão. E nesse movimento incessante vem a Roda,
arrancando, dilacerando tudo o aquilo que ainda estava desenvolvendo-se. No verso ―a gente estancou
de repente‖, o verbo estancar remete quase sempre à sangue, ele é quem pode ser estancado. No
entanto, o emprego do verbo estancar, denota o estancamento do cidadão, impossibilitando-o de
desenvolvimento, crescimento. A canção é uma forte imagem da opressão e dos opressores do Regime
que ―esmagavam‖ a liberdade de expressão do povo brasileiro, como fica evidente nos versos: ―A gente
quer ter voz ativa / No nosso destino mandar‖.
355
Na segunda estrofe, nos versos (―A gente vai contra a corrente/Até não poder resistir‖)
encontramos mais uma vez o elemento subversivo – próprio da lógica carnavalesca bakhtiniana,
quando ao fazer referência ao sistema, o compositor utiliza a palavra corrente, que esta ligado água, a
força destruídora da água em épocas de chuvas fartas, onde há grandes correntezas. A resistência aqui
trazida pela canção, não é de um fenômeno da natureza como se possa supor inicialmente, mas é
justamente resistir à correnteza/dureza da ditadura militar e ter consciência dos riscos de se enfrentar
essa ―maré‖ - ser preso, torturado, exilado e até mesmo morto.
Já nos versos iniciais da última estrofe – O samba, a viola, a roseira/ Um dia a fogueira queimou
– o fogo aqui simboliza o fim de um processo. Nesses versos, Chico evidencia o poder de destruição da
ditadura. Ele põe fim a tudo: o samba, a viola, a roseira. Os artistas já não podiam cantar mais o que
queriam, pois a censura estava lá, para cercear cada pisada em falso, e nesta ação, por no fogo tudo que
a questionasse. A roseira representa nesta música, a carreira de muitos artistas que estava sendo
interrompida pela ditadura, que lhes tirou a essência – a voz, o destino e a possibilidade de exprimir
seus sofrimentos através da música. Foi lhes tirada ―viola‖ e a ―roseira‖ que estava sendo cultivada há
tempos, mas, de súbito impediram de tirar tudo que prometia.
E para encerrar as ponderações sobre a canção Roda-Vida, apresentamos declaração do próprio
compositor sobre ela:
Uma espécie de desabafo, uma afirmação de onde eu estava me metendo sem
ter percebido, eu já não podia mais levar adiante a vida inteira, a careta do
menino de 21 anos que cantava ―A Banda‖. Já não era mais a minha realidade e
isso chocou as pessoas que esperavam que fosse só o lirismo – a gente não é só
uma coisa.
(Rádio do Centro Cultural São Paulo, 10/12/1985. In:
www.chicobuarque.com.br)
A canção Bom Conselho foi escrita para o filme Quando o Carnaval Chegar, de Cacá Diegues. Chico
a compôs em 1972, também em pleno Regime Militar. Um bom motivo para se dar ‗de graça‘ Bons
Conselhos aos cidadãos brasileiros. E assim o fez, construindo seu discurso a partir de provérbios
extraídos da cultura carnavalesca. A canção apresenta os provérbios populares desconstruídos com o
intuito de transmitir novas mensagens. Para podermos alcançar os sentidos desconstruídos, que teriam
sido subvertidos segundo a visão de mundo carnavalesca, é necessário fazer uma retomada, aos
sentidos primeiros que estes provérbios carregam para que sua desconstrução faça sentido.
Os dois versos iniciais da canção nos remetem ao primeiro provérbio ―se conselho fosse bom,
ninguém daria, mas venderia‖. Esse provérbio é utilizado com muita frequência nas situações em que
alguém com certa experiência aconselha a outra com menos experiência e que na maioria das ocasiões
não tem interesse em ouvir o que está sendo aconselhado. Já do terceiro verso (Inútil dormir que a dor
não passa), retiramos o segundo provérbio: ―Quando dormir a dor passa‖. As mães são as que mais se
utilizam deste provérbio, especialmente quando o filho chora por conta de uma dorzinha que insiste em
não passar. Dos três últimos versos ainda da primeira estrofe, temos mais um provérbio: ―Quem espera
356
sempre alcança‖, que traz em si a ideia de que as coisas têm seu tempo certo para acontecer e que
devemos esperar o momento oportuno chegar.
A segunda estrofe, por sua vez traz desconstruído, e ao desconstruir carnavaliza-se, as ideias dos
seguintes provérbios:1) Quem brinca com fogo se queima; 2) Faça o que eu digo, mas não faça o que
eu faço; 3) Pense duas vezes antes de agir. Quanto a terceira estrofe, podemos também encontrar
desconstruído os seguintes provérbios: 1) Devagar se vai ao longe; 2) Quem semeia vento colhe
tempestade. Agora que, enumerados os provérbios da maneira como são apresentados na tradição
popular, cabe neste momento, remetê-los a uma leitura tal qual Chico fez, só que de uma maneira
desconstruída. Não se pode é esquecer o contexto situacional que em que a canção fora produzida.
Depreende-se da canção a existência de um sujeito que tem de dizer uma coisa para significar
outra; é alguém que age coercivamente, por forças sociais. A canção, na realidade, não traz apenas um
Bom Conselho, mas vários deles que se espraiam por entre a poesia que parece querer sair do papel e
gritar. Trata-se, portanto, de um convite ou mesmo uma intimação ao povo brasileiro que lutem para
reconquistar a democracia. Claro que, essa mensagem não aparece de forma velada, através da negação
dos provérbios populares.
Outra característica carnavalesca na canção percebe-se pelo enunciador do discurso, que o dito
―bom conselho‖, de bom não tem nada. A mensagem é de um discurso desesperançoso. A canção é,
também, um excelente exemplo de imbricação de gêneros: provérbios e música.
Já em Palavra de Mulher, que pertence à coletânea Ópera do Malandro, Chico destaca a perspectiva
feminina, nada comum na sociedade de sua época, por serem os compositores do período
condicionados pelo sistema patriarcal.
Em a Palavra de Mulher, a voz feminina é ativa, o que já destrona a figura masculina do papel que
lhes é imposto pela sociedade. O título da canção já subverte um adágio popular que é comum ser
utilizado nas culturas essencialmente machistas, quando alguém querendo reforçar o ato ilocucionária
de sua palavra utiliza-se da expressão ―palavra de homem‖.
Ao ser colocada dentro dos limites do machismo, a canção já fica sendo subversiva, pois é
sempre o homem que pede que a mulher espere pacientemente o seu regresso. A canção silencia a voz
masculina, em seu lugar a voz feminina ganha terreno e assume completamente o papel que no geral é
exercido pelo homem: ―Posso até/Sair de bar em bar, falar besteira‖. Nestes versos, o fato de sair de
bar em bar, é um atitude totalmente transgressora para uma mulher, uma vez que isso é comum ao
homem.
A mulher aqui da canção, que tem uma atitude até certo ponto ―malandra‖, tem consciência de
que está enganando-se na vida boêmia que leva, e até, quem sabe, da prostituição, mas mantém e
assevera uma promessa que tem força ―haja o que houver, eu vou voltar‖, e finaliza nessa mesma
direção: ―Espera/ Me espera/ Eu vou voltar‖. Ao assumir essa postura firme e de garantir que sua
357
palavra será cumprida, a mulher da canção não cabe dentro do rol dos estereótipos negativizados
apresentados, o que por si, remete ao conceito da teoria carnavalesca de Bakhtin.
A canção Não Sonho Mais foi compostas para o filme República dos Assassinos de Miguel Farias,
nela, a exemplo da famosa Geni e o Zepelim – Chico novamente utiliza a figura de um travesti, que por si
só, já representa uma forma de inversão. A canção também apresenta valores grotescos de forma
bastante explícita e escrachada. Diferente de Geni o Zepelim, nesta canção o travesti não é apenas um
personagem, mas o próprio narrador que se dirige a um policial, que é seu amante, e para ele descreve
atemorizado o sonho que teve. É interessante destacar que o temor do sonho não é sério, mas possui
uma pitada de humor: ―Foi um sonho medonho/Desses que às vezes a gente sonha/E baba na
fronha‖. No sonho todas as vítimas do policial vão ao seu encontro em busca de vingança, o mais
curioso é que o próprio narrador está entre as vítimas.
O destaque dado ao baixo corporal – elemento carnavalizador, assim como Geni e o Zepelim, é
encontrado nos versos: ―E baba na fronha/E se urina toda‖, ―E escarrei-te inteira/A tua carniça‖, ―Te
rasgamo a carcaça/ (...) / Viramo as tripa/ Comemo os ovo‖. É possível perceber que a morte que o
povo desejava para o policial que os havia maltratado, era uma morte antropofágica. Embora
estivessem diante de um ato plenamente covarde do carrasco – ―Tu, que foi tão valente/Chorou pra
gente/Pediu piedade‖ – que teria provocado o riso do seu próprio amante, o povo que o perseguiu não
se compadece e fazem justiça ao comê-lo.
Algumas estrofes terminam com verbos que se ligam diretamente a boca: sufocar, esfolar,
gargalhar, escarrar, cantar, evidenciando o elemento grotesco, possível de perceber através da visão
carnavalesca de mundo.
A música acaba com um final bastante comum nas composições de Chico Buarque, onde a
infelicidade de um faz a felicidade de todos. Na música em análise, após comer o ―antagonista‖ o povo
―pôs-se a cantar‖5. A situação de injustiça – policial e vítimas – além de ser invertida, pois ocorre o
destronamento do policial e coroamento do povo, é feita de forma significativamente simbólica pela
ingestão de um pelos outros.
Não Sonho Mais, segundo o próprio Chico, ―é uma letra violenta pra burro‖. Porém, ela traz em
si uma violência alegre, festiva, assim como nas batalhas e pancadarias descritas por Rabelais. O humor
contido na letra não permite que as imagens de violência se tornem trágicas, o tom alegre predomina
também no arranjo da canção.
4. Conclusão
5
Chico também utiliza esse mesmo tipo de imagem nas canções Apesar de Você e Rosa-dos-ventos.
358
Através das obras Problemas da Poética da Dostóievsky e A Cultura Popular na Idade Média e no
Renascimento: O Contexto de François Rabelais, de Mikhail Bakhtin0, extraímos o conceito de carnavalização
para tentarmos estabelecer um diálogo com as canções de Chico Buarque produzidas no período da
Ditadura Militar aqui no Brasil. Suspeitávamos, e a análise das canções pode confirmar nossas suspeitas,
que as canções produzidas sob a repressão apresentariam elementos carnavalescos com fonte de
subversão da ordem.
A análise das canções confirmou a suspeita – Chico Buarque era um compositor
subversivo.
Analisando Roda Viva encontramos o elemento da subversão, próprio da lógica
carnavalesca apontada por Bakhtin (1987), quando Chico faz referência a resistência do sistema
ditatorial utilizando-se do vocábulo estancar, para situar o cidadão brasileiro da época, que foi
estancado pela ditadura.
Em Bom Conselho o elemento que vem a tona é a paródia do que costumeiramente
entendemos como ―bom conselho‖. O compositor na verdade dava uma série de maus conselhos:
―inútil dormir que a dor não passa‖, ―Está provado, quem espera nunca alcança‖, só para exemplificar.
Já em Palavra de Mulher encontramos a subversão e o destronamento da figura masculina quando a
mulher assume, em uma sociedade extremamente machista, um papel social próprio do homem. Por
fim, em Não Sonho Mais diversos elementos carnavalescos se evidenciaram com facilmente: o riso
carnavalesco, a coroação e o destronamento, as imagens do baixo corporal e do grotesco.
A compreensão de todos esses elementos nas canções analisadas só foi possível por termos
encontrados nas concepções Bakhtin fundamentos teóricos que subsidiaram nossa investigação. É
possível asseverarmos que conseguimos estabelecer, ou mesmo encontrar, um ponto de diálogo entre
as obras do pensador russo e do compositor brasileiro.
Não podemos afirmar que Chico Buarque é um escritor carnavalizador em sua natureza e
essência. No entanto, a análise das canções feitas nesse artigo, permite a compreensão e apreensão dos
elementos carnavalizadores do discurso buarqueano em sua obstinação em dizer, sem ter dito.
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François Rabelais. São Paulo: HUCITEC, 1987.
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In: ____. Problemas da poética de Doistoiévski. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1891,
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BERNARDI, Rosse Marye. ―Rabelais e sensação carnavalesca do mundo.‖ In: BRAIT, Beth. Bakthin:
Dialogismo e Polifonia. São Paulo: Contexto, 2009.
359
BRAIT, Beth. Bakhtin: outros conceitos chaves. São Paulo: Contexto, 2008.
BRAIT, Beth. Bakthin: Dialogismo e Polifonia. São Paulo: Contexto, 2009.
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MIRANDA, Dilmar. Carnavalização e multidentidade cultural: antropofagia e tropicalismo. In: Tempo
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PONZIO, Augusto. A revolução bakhtiniana. São Paulo: Contexto, 2009.
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canção popular moderna brasileira. Rio de Janeiro: Nova Fronteira; São Paulo: Fundação Perseu
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TINHORÃO, José Ramos. Pequena história da música popular. São Paulo: Vozes, 1979
ZAPPA, Regina. Chico Buarque. Perfis do Rio. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1999.
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www.arquivonacional.gov.bt. Acesso em 23 de março de 2011.
www.censuramusical.com. Acesso em 23 de março de 2011.
360
A FORMAÇÃO DOCENTE E O PROCESSO DE ENSINO
APRENDIZAGEM DE LÍNGUA INGLESA NO ESTADO DO TOCANTINS
Jaqueline Costa Rodrigues Nogueira1
Resumo:A concepção deste estudo científico se embasa na premissa de que a preocupação com a
formação docente é muito antiga, assim como a necessidade de educar. Para referendar esta afirmativa,
reportamo-nos a SAVIANI (2009) que aponta acerca da necessidade da formação docente, já
preconizada por Comenius no século XVII. O século XXI chegou e se percebe como a formação
docente continua sendo necessária para o enriquecimento do processo de ensino e aprendizagem. Em
consonância com essa necessidade, PRETTO (2009) destaca que o momento histórico contemporâneo
é especial, porque vivemos uma época de profundas transformações em todas as áreas do
conhecimento, da cultura e da vida social. Ressalta-se que, hoje, estamos diante de um novo contexto
educacional provocado pelos avanços tecnológicos, sendo necessário um novo posicionamento no
processo de ensino e aprendizagem. Corroborando as palavras de Prensky (2009) os alunos nascidos
desde a década de 80 são nativos digitais: pensam, agem e avaliam diferentemente em relação às
gerações anteriores os denominados de imigrantes digitais. Constata-se, por meio de estudos e
pesquisas, que o uso da tecnologia, como por exemplo, da internet tem contribuído para que os
adolescentes se desenvolvam e escrevam mais. O que nos remete ao preparo e domínio que o educador
necessita ter diante desse novo cenário educativo. Nessa perspectiva, a SEDUC/Tocantins, em parceria
com a PUC – Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro ofertou o Curso de Especialização
Lato Sensu - Tecnologias em Educação aos servidores da rede estadual de ensino. E, este relato de
experiência, objetiva socializar o resultado da pesquisa realizada, com professores do Ensino
Fundamental e Médio de Língua Inglesa da Rede Estadual de ensino, no que tange ao uso dos recursos
tecnológicos no planejamento/aulas de inglês, assim como, acrescentar sugestões de propostas que
possam contribuir com o trabalho dos professores.
Palavras-chave: Formação; Ensino; Aprendizagem.
Abstract: This study is based upon the premise that concerns about teacher training is very old, as well
as the need to educate. To endorse this statement we refer us SAVIANI (2009) that points about the
need for teacher training, as advocated by Comenius in the seventeenth century. The twenty first
century has arrived and is perceived as teacher training is still necessary to enrich the teaching and
learning process. In line with this need, PRETTO (2009) points out that the contemporary historical
moment is special, because we live in a time of profound changes in all areas of knowledge, culture and
social life. It is noteworthy that, today, we face a new educational context caused by technological
advances, necessitating a new position in the process of teaching and learning. To Prensky (2009)
students born since the 80´s are digital natives: think, act and assess differently from previous
generations of so-called digital immigrants. It appears, through studies and research, the use of
technology such as the internet has helped teenagers to develop and write more. Which brings us to the
stating area and that the educator needs to have before this new educational scenario. From this
perspective, SEDUC Tocantins, in partnership with PUC Rio de Janeiro offered the Specialization
Course – Technology in Education to people from state schools. And this experience report, aims to
socialize the result of research conducted with teachers in elementary and high school English
Language attend state of education regarding the use of technological resources in planning/English
classes, as well as add suggestions of proposals that can contribute to the teacher´s work.
Keywords: Training; Teaching; Learning.
1
Especialista em Metodologia do Ensino de Língua Inglesa IBPEX e Tecnologias em Educação pela PUC do Rio de
Janeiro.
E-mail: [email protected]
361
5. Introdução
Acredita-se que a formação continuada do professor é um dos quesitos primordiais para o bom
andamento do processo de ensino e aprendizagem dos estudantes, assim como para o crescimento do
exercício profissional do professor.
Nas últimas décadas o ensino de línguas estrangeiras tem passado por mudanças significativas
do ponto de vista teórico. Discute-se muito o papel da escola, do professor, do aluno e do sistema
escolar como um todo. As melhores estratégias usadas no ensino de línguas têm se centrado no
processo de ensino-aprendizagem visando estabelecer um ensino mais significativo e motivador.
A concepção deste estudo científico se embasa na premissa de que a preocupação com a
formação docente é muito antiga, assim como a necessidade de educar. Para referendar esta afirmativa,
reportamo-nos a SAVIANI (2009) que aponta acerca da necessidade da formação docente, já
preconizada por Comenius no século XVII. O século XXI chegou e se percebe como a formação
docente continua sendo necessária para o enriquecimento do processo de ensino e aprendizagem. Em
consonância com essa necessidade, PRETTO (2009) destaca que o momento histórico contemporâneo
é especial, porque vivemos uma época de profundas transformações em todas as áreas do
conhecimento, da cultura e da vida social. Ressalta-se que, hoje, estamos diante de um novo contexto
educacional provocado pelos avanços tecnológicos, sendo necessário um novo posicionamento no
processo de ensino e aprendizagem. Corroborando as palavras de Prensky (2009) os alunos nascidos
desde a década de 80 são nativos digitais: pensam, agem e avaliam diferentemente em relação às
gerações anteriores os denominados de imigrantes digitais.
Constata-se, por meio de estudos e pesquisas, que o uso da tecnologia, como por exemplo, da
internet tem contribuído para que os adolescentes se desenvolvam e escrevam mais. O que nos remete
ao preparo e domínio que o educador necessita ter diante desse novo cenário educativo.
O questionamento para esta pesquisa surgiu das inquietações vividas pela pesquisadora por
conta da proximidade profissional com o tema proposto. Na atualidade sabe-se como é importante o
uso das tecnologias no ambiente escolar. Para os alunos é uma forma de tornar a aula mais interessante
e prazerosa, uma vez que será utilizada uma ferramenta que ele conhece bem e que muitas vezes
domina mais que o professor. Ressalta-se que os alunos nasceram na era digital. Logo, passam grande
parte do seu tempo diante da tela, ou seja, teclando. Será que os nossos professores de inglês tem se
apropriado desta nova metodologia de trabalho e aplicado em suas aulas?
Dentre os fatores que foram observados nesta pesquisa, destacam-se a possível contribuição
que a equipe de formação continuada da SEDUC Tocantins pode oferecer aos professores da rede
Estadual de Ensino no quesito uso de recursos midiáticos no planejamento/sala de aula, a possível
362
contribuição da APLITINS, o uso do laboratório de informática como ferramenta pedagógica de
ensino, entre outros.
Verificou-se a contribuição inicial fornecida pela SEDUC Tocantins e APLITINS (Associação
de Professores de Língua Inglesa do Estado do Tocantins) no processo de formação continuada dos
professores de inglês das unidades escolares da capital Palmas, no que tange ao uso da tecnologia nos
planejamentos/ aulas de inglês, assim como foi dadas sugestões do uso da tecnologia visando contribuir
com o planejamento/aula dos professores de inglês.
6. ALGUNS APONTAMENTOS EM TORNO DA FORMAÇÃO DO PROFESSOR DE
LÍNGUA ESTRANGEIRA NO ESTADO DO TOCANTINS
Com o advento tecnológico é importante que a escola reveja o processo de ensino aprendizagem.
E, o professor de Língua Inglesa também precisa se apropriar desse novo ambiente de ensinoaprendizagem para contribuir de forma significativa no processo de construção do conhecimento de
seus alunos.
Muitas vezes pode haver certa rejeição ao novo por parte de alguns professores, mas acredita-se
ser necessário transpor essa barreira e estar aberta a esta nova perspectiva educacional. As mudanças
ocorrem na sociedade nos mais variados meios e com a educação não poderia ser diferente. Fazem-se
necessárias inovações nas práticas pedagógicas dos professores. A equipe escolar como um todo
necessita se apropriar dessas inovações, cabendo ao professor à condução deste processo em sua sala
de aula em parceria com todo corpo escolar.
O ensino da Língua inglesa na atualidade pode ser mediado por diversas ferramentas de ensino,
dentre elas, livros didáticos, flashcards, revistas, vídeos, músicas etc. Tais ferramentas podem estimulam a
criatividade do professor ao planejar sua aula na constante premissa de tentar diferenciar e melhorar sua
forma de ministrar aulas. A música tem uma aceitação muito grande por parte dos alunos. Estudos
comprovam que o ensino de idiomas mediado por música deixa a aula mais prazerosa e há uma
interação maior dos alunos. E, é uma ferramenta que auxilia na pronúncia, leitura, interpretação e
melhora o entendimento das características linguísticas.
Os vídeos também chamam bastante a atenção dos alunos por envolvê-los com sua magia. É
necessário leitura e apropriação sobre como usar adequadamente tais ferramentas em sala de aula. E,
agora com o advento da tecnologia, é extremamente importante mediar o ensino de inglês também pelo
uso do computador. A primeira rede eletrônica no mundo surgiu nos Estados Unidos, no período da
guerra fria, a mesma era a ARPANET. Essa rede transferia, de forma rápida, grande quantidade de
dados de um computador para outro.
363
Naquela época um computador poderia ocupar o espaço de uma sala inteira, felizmente, hoje
ele é muito menor podendo até ser carregado nas mãos. O acesso da população mundial ao
computador melhorou consideravelmente nos últimos tempos. Pode-se dizer que antes apenas famílias
de classe alta poderiam comprar computadores ou laptops. No entanto, o custo do computador baixou,
se popularizou e hoje é possível para famílias de outras classes sociais poderem comprar também seu
computador, seja de mesa ou um laptop.
Hoje, no campo educacional, várias escolas brasileiras já possuem laboratórios de informática
oportunizando, desta forma, a inserção dos alunos nesse novo momento de mudanças. Muitas vezes o
acesso ao computador não ocorre apenas na escola, mas também em lan house, ou até mesmo nas
residências desses alunos. No entanto, surge um questionamento: será que os professores estão
preparados para utilizar essa nova ferramenta em sua prática pedagógica?
O profissional de idiomas da atualidade necessita querer estar conectado a este novo contexto
educacional. Destaca-se a importância da participação em cursos de formação de professores,
encontros, simpósios, seminários e tudo que possa auxiliar na sua formação nos mais variados aspectos,
como também, no que tange ao uso dessa nova ferramenta de ensino-aprendizagem.
BERTELLI (2010) em seu texto publicado no Jornal do Tocantins, no dia 18 de agosto,
destacou que uma notícia publicada chamou-lhe a atenção: ―Professores usam computador como
máquina de escrever.‖ Ressalta-se, no entanto, que esses professores ao menos estão tentando utilizar
essa nova ferramenta de ensino, apesar de não terem completo domínio sobre os inúmeros recursos
que o computador oferece. Então, faz-se necessário uma formação continuada voltada para o uso
correto desta tecnologia o que possibilitaria um aprofundamento do seu conhecimento nos recursos de
multimídias à disposição para que eles não usem somente os editores de textos disponíveis.
Estudos publicados sobre o uso da tecnologia apontam que alguns professores são resistentes
ao uso dessa nova ferramenta. FREITAS (2009, p. 20) destaca que essa realidade apresentada à escola
com a inserção das novas tecnologias não representa apenas outra postura do profissional da educação
perante o conhecimento desenvolvido com seus alunos, representa uma ruptura com as formas
anteriores de ensino aprendizagem. Vale salientar que o professor que está em consonância com a
realidade atual é aquele que percebe que as mudanças já fazem parte do cotidiano das pessoas e que as
mesmas já foram assimiladas pelos alunos. E, que o professor que não dominar essa nova ferramenta
pode estar fadado à exclusão tecnológica. Cabe a ele e a todo corpo escolar tentar se adequar para que
haja uma contribuição significativa e atual em sua prática pedagógica. Nas palavras de Oliveira e Paiva
(2001) ― a web é rica em infinitas possibilidades de combinações e de fontes para tarefas diversas.‖
O governo do estado do Tocantins em parceira com o Conselho Britânico em 2008 ofertou um
curso on-line de inglês para professores e assessores de currículo de Língua Inglesa da rede estadual de
ensino com um nível de conhecimento do idioma entre iniciante e intermediário. O curso, intitulado E-
364
english for Teachers, proporcionava aos professores cadastrados metodologias diferenciadas no ensino do
idioma, leituras de vários artigos e textos na área em sites confiáveis de ensino, como por exemplo, o
site do Conselho Britânico (www.britishcouncil.org), bem como, atividades auditivas, atividades escritas
e a participação em fóruns o que oportunizou ao professor de inglês a possibilidade de teclar com
outros professores de outras partes do estado por meio da tecnologia.
O referido curso ofereceu entre 150 a 200 horas de aprendizagem online. As matérias do curso
se subdividiam em 10 unidades, cada qual com 3 tópicos e 1 tópico de revisão. Um tópico levava 1
semana para ser concluído. Uma unidade deveria ser concluída em aproximadamente 1 mês. No ritmo
de 1 unidade por mês o curso poderia ser concluído entre 10 e 12 meses.
O curso foi dado por meio do ambiente de aprendizagem virtual moodle. Este ambiente trata-se
de um espaço eletrônico que oferece duas ferramentas básicas de aprendizagem:
1. Recursos: Materiais de curso e links para materiais e informações na rede de alcance
mundial;
1. Comunicação: O moodle tem três canais de comunicação com instrutores e outros
participantes: endereço eletrônico, fóruns de discussão e salas de bate-papo.
O desenvolvimento online do curso permitiu que os professores de inglês tivessem um maior
alcance às oportunidades que os recursos tecnológicos oferecem na atualidade. O curso foi flexível,
uma vez que o professor podia estudar onde e quando quisesse. E, estava sob o monitoramento de
professores-tutores disponibilizados pelo Conselho Britânico. O curso E-english for teachers visava
também:
1. Auxiliar o professor no desenvolvimento do inglês para atividades em sala de aula;
2. Aumentar a sensibilidade de formas e função do idioma apresentados em aulas além de
procedimentos e técnicas para cumprir esta tarefa;
3. Auxiliar na melhoria do inglês para propósito de estudo e competências de aprendizado
online;
4. Promover o desenvolvimento de competências apropriadas nas habilidades orais, de leitura,
e de escrita no campo de ensino de inglês, assim como maior número de tópicos gerais
relacionados à comunicação, vida social, educação e cultura;
5. Desenvolver um conhecimento e competência no idioma que auxiliará o professor na
preparação para o teste PET.
O curso também oportunizou ao professor de inglês teclar com outros professores de outras
partes do estado por meio do computador. Este é um exemplo de ação que visa à inserção do professor
no mundo da tecnologia. O curso E-english for teachers contribuiu inicialmente na formação continuada
online de professores de inglês do Estado do Tocantins.
365
Já a APLITINS ( Associação de Professores de Língua Inglesa do Estado do Tocantins) vem
contribuindo também, para a reflexão-ação no que tange ao uso dos recursos midiáticos nas aulas de
inglês dos professores do Estado.
Investigou-se as possíveis contribuições que a APLITINS oferece aos professores de inglês do
Estado do Tocantins no que tange ao uso dos recursos tecnológicos nas aulas de inglês e como os
professores relacionam este conhecimento no aprendizado de Língua Inglesa. Dentre outros temas
abordados nos seminários desta associação, verificou-se nos arquivos da mesma que muitos workshops
e plenárias foram ministrados ao longo dos anos sobre o uso da tecnologia nas aulas de inglês.
Os professores que participaram da pesquisa trabalham em unidades escolares pertencentes a
região sul, norte, central e periférica da capital. Outro critério de escolha foi se a unidade escolar, na
qual o professor trabalha, havia o oferecimento no currículo o ensino de inglês seja no Ensino
Fundamental ou no Ensino Médio e se possuía laboratório de informática equipado com no mínimo 10
computadores. Destaca-se que os alunos dessas unidades escolares tem 2 (duas) aulas semanais de
inglês conforme legislação vigente.
Esta pesquisa teve como característica o levantamento de dados. Nem todos os
integrantes da população, no caso professores que participam do seminário da APLITINS, foram
estudados. Foram selecionados professores seguindo o critério de amostragem. Tratou-se de uma
amostragem significativa mediante todo o universo. Coletaram-se dados junto aos professores de
Ensino Fundamental e Médio por meio da aplicação de questionário utilizando perguntas abertas e
fechadas.
Conforme os dados levantados constatou-se que todos os professores que responderam o
questionário possuem graduação em Letras – Língua Portuguesa, Inglesa e respectivas Literaturas com
idade variando entre 27 e 60 anos e apenas 10 % não possuem especialização. Deste universo 50 %
trabalham na modalidade do Ensino Fundamental e Médio, 25% atuam apenas no Ensino Fundamental
e 25 % atua no Ensino Médio apenas. A pesquisa apontou ainda que a maioria dos professores
considera que a APLITINS auxilia os professores de inglês no que tange ao uso dos recursos
tecnológicos nas aulas de inglês. E que sempre que possível procuram colocar em prática as sugestões
que são repassadas durante os seminários.
3. O USO DOS RECURSOS MIDIÁTICOS NO ENSINO DE LÍNGUA INGLESA –
ALGUMAS RAZÕES PARA FAZÊ-LO
Nota-se que o cotidiano da sala de aula vem sofrendo transformações ao longo dos anos. Os
alunos não são mais os mesmos. Eles modificaram sua forma de pensar e de ver o mundo que os cerca.
Será que os professores e a escola estão acompanhando estas mudanças?
366
Percebeu-se com a pesquisa realizada que o professor nota as transformações ocorridas no
processo de ensino aprendizagem e, que consideram que é necessária uma mudança na forma de
ministrar aulas e procurar não usar o mesmo modelo de aula costumeiramente usado antes do advento
tecnológico. Os alunos são bombardeados dia a dia por inúmeras informações. Mas fica o
questionamento: Será que sabem selecionar o que de fato é importante para a sua vida? Acredita-se que
o professor deve ser o fio condutor para auxiliá-los a selecionar o que pode ajudá-lo na construção do
seu conhecimento. E auxiliá-los também para que prevaleça a qualidade da informação em detrimento
da quantidade de informação que recebem todos os dias.
Na era da tecnologia tem-se um aparato de recursos midiáticos que o professor pode e deve
lançar mão nos seus planejamentos/aulas. Antigamente o professor de inglês podia utilizar como
recurso metodológico, além do quadro e giz, o rádio, CD player, a TV, flashcards etc. Hoje se tem um
leque muito grande de possibilidades de construir uma boa aula com o uso da tecnologia.
Como sugestão de recursos midiáticos o professor pode utilizar blogs, imagens, vídeos, wikis,
pacotes de softwares utilitários, compartilhamento de arquivos, podcasting, twitter e a internet. São
recursos atuais que os alunos gostam e pode-se dizer que facilitam o processo de ensino aprendizagem.
Já que são recursos que os alunos, como foi dito anteriormente, muitas vezes também dominam muito
mais que o professor. E que se não dominam ainda, têm curiosidade em conhecer e saber utilizar. Os
alunos estão abertos ao novo, ao diferente. O que muitas vezes não ocorre com alguns professores.
A internet representa um grande diferencial para o campo da educação por causa dos
novos elementos que trouxe para a área de pedagogia, tais como: a conversas online
entre professor/aluno, um imenso volume de informações constantes nos seus
milhões de home pages, ou seja, houve uma dinamização no processo de produção,
acesso e compreensão do conhecimento. Pensar educação, hoje, deve
obrigatoriamente passar pela compreensão desses novos modelos de suportes
educacionais, visto que passamos por uma ruptura no processo aprender/ensinar em
razão das novas tecnologias. (FREITAS, 2009.)
Corroborando o pensamento de FREITAS (2009) acredita-se que o professor de inglês da
atualidade precisa lançar mão do uso dessas novas tecnologias em suas aulas. Utilizar, por exemplo, a
internet como ferramenta de ensino-aprendizagem. No entanto, faz-se necessário que o professor esteja
bem informado e refletir criticamente quanto ao material que retira da internet para o uso pedagógico.
Existem muitos sites confiáveis de inglês que o professor pode utilizar para planejar e ministrar suas
aulas.
O uso dos vídeos nas aulas também é um recurso muito interessante. Atualmente é
extremamente fácil produzir vídeos até mesmo nos mais simples celulares professores e/ou alunos
podem gravar imagens que podem posteriormente serem editadas com o auxílio de softwares simples
como o moviemaker. O professor pode utilizar estes vídeos como ferramenta de ensino-aprendizagem. O
you tube é uma ferramenta que, certamente, muitos professores conhecem e que provavelmente retiram
367
de lá ideias para suas aulas e é um dos mais populares. O interessante é que são diversos temas com
diversos tempos de duração, dentre eles, propagandas, gramática, vídeos musicais, vídeos institucionais
etc. que podem ser utilizados nas aulas de inglês.
O professor de inglês pode ainda utilizar blogs como ferramenta de ensino-aprendizagem com
os alunos. É um recurso muito interessante e estimulante. O
blog é uma das mais antigas e
populares ferramentas de web 2.0. Ele tem uma estrutura simples que permite uma rápida atualização.
O mesmo facilita a aprendizagem, uma vez que o aluno terá a oportunidade de adicionar imagens e/ou
vídeos, indicar links de seu interesse, escrever, ler, além de interagir com colegas e/ou com o professor.
Entretanto, é importante que seja um tema de interesse dos alunos, porque desta forma eles se sentirão
mais envolvidos no processo.
O professor de inglês também pode utilizar podcasting, que é uma forma de publicação e arquivos
de áudio (postcast), gravados geralmente em formato MP3, e transmitido via internet, como ferramenta
de ensino-aprendizagem com os alunos. É um recurso auditivo atual e significativo. O twitter também
pode ser utilizado como ferramenta de ensino nas aulas de inglês. O professor pode utilizar o
laboratório de informática de sua unidade escolar e criar o twitter com os alunos. Nesta atividade será
necessário que eles leiam a partir disso ampliarão seu vocabulário no idioma inglês, além de envolver os
alunos na construção e leitura desta ferramenta de comunicação.
No texto publicado no Jornal do Tocantins, do dia 26 de setembro de 2010, aponta que há 145
milhões de usuários do twitter pelo mundo e destacou ainda, que há uma nova interface do twitter.
Segundo ele:
A nova onda da internet brasileira está de cara nova, com funcionalidades que já
estavam na ―lista de desejos‖ de muitos usuários, principalmente por já serem
utilizadas pelos mais populares clientes do serviço (programas que permitem acessar o
conteúdo do twitter). (MARTINS, 2010)
No entanto, não é a internet brasileira que está com uma nova interface, é a internet mundial
(twitter) que está com uma nova interface. E, conforme pesquisa realizada, usuários tanto brasileiros
quanto de outras nacionalidades estão sendo ―presenteados‖ com esta nova interface. Ressalta-se que
entre as modificações que o referido autor abordou em seu texto está a questão da beleza, do espaço, a
relação de seguidos e seguidores (following e followers) que deixa de ser exibida aleatoriamente para, ao que
parece, exibir sempre os 7 (sete) mais recentes, ordenados cronologicamente e com respectivo avatar,
dentre outras modificações. O twitter é uma excelente ferramenta para desvendar o mundo da
tecnologia.
Todas essas ferramentas, em consonância com o envolvimento do professor no processo de
ensino-aprendizagem, podem tornar a aula mais interessante, assim como contribuir significativamente
para o processo de construção de conhecimento dos alunos.
368
REFERÊNCIAS:
APLITINS. Blog da Associação de Professores de Língua Inglesa do Estado do Tocantins.
HTTP://www.aplitins-to.blogspot.com Acesso em 10 de janeiro de 2013.
SAVIANI, Demerval. Formação de professores: aspectos históricos e teóricos do problema no
contexto brasileiro. Revista Brasileira de Educação. V. 14. Jan/abr 2009. Disponível em
www.scielo.br/pdf/rbedu/v14n40/v14n40a12.pdf. Acesso em 03 de setembro de 2010.
BERTELI, Luiz Gonzaga. É preciso dominar o teclado. Jornal do Tocantins. Palmas, 18 de agosto de
2010. Tendências e Ideias. Pág. 04.
FREITAS, Maria Teresa de Assunção. Cibercultura e formação de professores. Belo Horizonte:
Autêntica Editora, 2009.
GIL, Antonio Carlos. Como elaborar projetos de pesquisa. 4ª ed. São Paulo: Atlas, 2007.
HOLDEN, Susan. O ensino da língua inglesa nos dias atuais. Special Book Services Livraria. São Paulo,
2009.
HORWITZ, Elaine Kolker. Becoming a Language Teacher – A practical Guide to Second Language
Learning and Teaching. Pearson Education, 2008.
MARTINS, Rodrigo. A nova interface do twitter. Jornal do Tocantins. Palmas, 26 de setembro de
2010. Tendências e idéias. Pág. 04.
PRETTO, Nelson; PINTO, Cláudio da Costa. Tecnologias e novas educações. Revista Brasileira e
Educação V.14. Jan/abr 2009. Disponível em www.scielo.br/pdf/rbedu/v11n31/a03v11n31.pdf.
Acesso em 03 de setembro de 2010.
PAIVA, V.L.M.O. A www e o ensino de Inglês. Revista Brasileira de Linguística. Aplicada. v. 1, n1,
2001.p.93-116. Disponível em www.veramenezes.com/www.htm.Acesso em 10 de setembro de 2010.
_________________. O Uso da tecnologia no ensino de línguas estrangeiras: breve retrospectiva
histórica. Vera Lúcia Menezes de Oliveira e Paiva. Disponível em www.veramenezes.com/techist.pdf.
Acesso em 10 de setembro de 2010.
369
AS MARCAS DO SUJEITO NA LÍNGUA: UMA ANÁLISE DA CATEGORIA
DE PESSOA E NÃO PESSOA DE ÉMILE BENVENISTE
Joelina Luzia Rodrigues Pereira1
Prof.ª. Ms. Rosana Siqueira de Carvalho do Vale (Orientadora) 2
Resumo:Sob a perspectiva teórica da Análise do Discurso de linha francesa, este trabalho apresenta
uma discussão acerca dos aspectos discursivos sobre subjetividade, especialmente considerada a partir
da teoria da enunciação de Émile Benveniste, em alguns trechos extraídos do Relatório de
Sustentabilidade 2011 da Vale.O Relatório de Sustentabilidade, usado como Corpus de análise, é um
documento institucional produzido anualmente, no qual a Vale apresenta seus compromissos,
posicionamentos, resultados e planos quanto à conservação do planeta e sobre a valorização das
pessoas. A questão primordial, deste trabalho, foi investigar os efeitos de sentido criados pela empresa
na veiculação de seu discurso no que diz respeito a desenvolvimento sustentável.
Palavras-chave:Análise do Discurso; Enunciação; Subjetividade; Sustentabilidade.
Resumen:Desde la perspectiva teórica del análisis del discurso de la línea francesa, este trabajo
presenta un análisis de los aspectos discursivos de la subjetividad, sobre todo visto desde la teoría de la
enunciación de Émile Benveniste en algunos extractos del Informe de Sostenibilidad 2011 de Vale. El
Informe de Sostenibilidad, que se utiliza como análisis de Corpus, es un documento institucional
producida anualmente, en la que Vale tiene sus compromisos, prácticas, resultados y planes para la
conservación del planeta y en la valoración de las personas. El objetivo fundamental de este trabajo fue
investigar los efectos de sentido creado por la empresa en el servicio a su discurso con respecto al
desarrollo sostenible.
Palabras-clave: Análisis del discurso;Enunciación;Subjetividad;Sostenibilidad.
INTRODUÇÃO
Este trabalho teve como objetivo investigar as marcas do sujeito na língua. A relevância desse
tema se justifica pelo fato de que a teoria da enunciação, de Émile Benveniste, especialmente, a análise
dos pronomes, recorte que atenta para a categoria de pessoa e não pessoa, permite uma visão subjetiva
da língua, na qual o sujeito se inseri pela atribuição de referência.
O pronome sempre foi visto pela gramática tradicional como uma classe única, sem referência à
noção de pessoalidade. Entretanto, a teoria enunciativa de Benveniste (2005, p.277) contesta essa
concepção, pois segundo o autor, os pronomes podem se apresentar de diferentes formas:
1
Especialização em Estudos Linguísticos e Literários na Universidade Estadual do Pará (UEPA). Professora de Língua
portuguesa SEDUC. E-mail: [email protected]
2Professor do Programa de Pós Graduação em Letras da Universidade Estadual do Pará (UEPA).
E-mail:[email protected]
370
Uns pertencem à sintaxe da língua, outros são característicos daquilo a que chamaremos as ―instâncias do
discurso‖, isto é, os atos discretos e cada vez únicos pelos quais a língua é atualizada em palavra por um
locutor.
Em razão disso, o objetivo dessa pesquisa consistiu em construir uma análise enunciativa da
categoria de pessoa usando como Corpus, alguns trechos extraídos do Relatório de Sustentabilidade da
Vale do ano de 2011. A escolha desse documento como objeto de análise se deu em razão do contexto
vivenciado pela empresa, pois, sendo ela uma grande mineradora, é fato que sua atuação repercute
decisivamente no meio ambiente, então, nos interessa investigar de que forma a Vale revela sua
subjetividade, isto é, se marca ou se anula como sujeito do discurso em um jogo intersubjetivo que tem
por finalidade discursiva, criar sentidos favoráveis à imagem da empresa no que se refere à preservação
da natureza.
Para fundamentar as análises, apresento os pressupostos teóricos da Análise do Discurso de
linha francesa, detendo-me nas leituras de textos voltados a enunciação e nas teorias de subjetividade de
Émile Benveniste, apresentadas em Problemas de Linguística Geral I (1995) e Problemas de Linguística
Geral II (2006).
A FORMAÇÃO IDEOLÓGICA
O fenômeno ideológico é fortemente marcado pelo marxismo e a ideologia na visão marxista é,
especificamente, a ideologia da classe dominante. Entretanto, Althusser (1970) apud (BRANDÃO,
2004, p.24) se opõe a essa concepção, por considerá-la simplista e reduzir o conceito de ideologia a
simples representação mecânica da realidade. Para ele, ideologia é a maneira pela qual os homens vivem
sua relação com as condições reais de existência, e essa relação é necessariamente imaginária.
Para Althusser (1985) apud (CHARAUDEAU, 2008, p.268) a transparência da linguagem, ou
seja, o que faz com que uma palavra ―designe uma coisa‖ não exclui o efeito ideológico de que ―você e
eu somos sujeitos‖ essa concepção de ideologia, segundo o autor, está relacionada ao inconsciente pelo
viés da interpelação dos indivíduos em sujeitos. A noção de que somos sujeitos representa um efeito
ideológico elementar para a AD que postula a relação indissociável entre ideologia e as práticas do
sujeito. A linguagem não representa apenas veículo de ideologia, mas lugar de materialidade ideológica.
Uma análise da concepção marxista e da concepção althusseriana sobre o fenômeno ideológico revela
que as diferentes formas de conceituar ideologia giram em torno de dois pólos, a saber: uma que
representa a concepção marxista, preconiza a existência de um discurso ideológico que se utiliza de
diferentes manobras para legitimar o poder de um grupo social; e outra que apresenta uma visão mais
ampla sobre o fenômeno e concebe a ideologia como algo inerente ao signo, assim, é possível afirmar,
que não há um discurso ideológico e si que todos os discursos o são. (BRANDÃO, 2004, p. 30)
Então, apoiando-se nas teorias do marxismo althusseriano, Pêcheux (1995) elabora seu estudo
sobre ideologia. Para ele a ideologia deve ser caracterizada por uma materialidade específica articulada
sobre a materialidade econômica. Dessa maneira, a ideologia vai funcionar como reprodutora das
371
relações de produção, isto é, o sujeito será assujeitado como sujeito ideológico, de forma que cada
sujeito interpelado pela ideologia busque ocupar o seu lugar em um grupo ou classe social de uma
determinada formação social.
Segundo Pêcheux a AD utiliza o termo formação ideológica(FI) para designar esse confronto de
forças que ocorre em um determinado momento histórico. Haroche (1971 apud BRANDÃO, 2009)
define a organização de posições ideológicas como um conjunto de representações que se relacionam
em situação de conflito:
É importante ressaltar, quanto à relação estabelecida entre as posições de classe, que uma
formação ideológica comporta mais de uma posição com capacidade de confrontar uma com a outra.
Entretanto, as forças não precisam, necessariamente, estarem em confronto, elas podem manter entre si
relações de aliança ou de dominação.
Após essas considerações, vale ressaltar ainda que para a AD, não importa, portanto, o sujeito
em si, o importante é o lugar ideológico de onde enunciam os sujeitos. Assim, é possível afirmar, que
esse campo de estudo busca compreender como um objeto simbólico produz sentidos e como está
investido de significado para e por sujeitos (ORLANDI, 2005).
Essa concepção retoma o caráter arbitrário do signo e revela que se por um lado a linguagem
leva a criação de sentido, por outro representa um risco, pois permite manipular a construção da
referência. A liberdade de relação entre signo e sentido é o que permite produzir novos sentidos,
atenuar outros e eliminar os sentidos indesejáveis.
A FORMAÇÃO DISCURSIVA
Primeiramente, elaborado pelo filósofo Michel Foucault, ao investigar as condições históricas e
discursivas nas quais se constituem os sistemas de saber, o conceito de formação discursiva foi
elaborado por Pêcheux e ocupa um lugar central na Análise do Discurso, pois é onde se percebe a
articulação entre discurso e ideologia.
Segundo Foucault (1969) apud (MUSSALIM, 2009, p.119) uma formação discursiva consiste
em:
Um conjunto de regras anônimas, históricas, sempre determinadas no tempo e no espaço que definiram em
uma época dada, e para uma área social, econômica, geográfica ou linguística dada, as condições de exercício
da função enunciativa.
Considerando que o sentido não existe em si, mas é determinado pelas posições ideológicas
colocadas em jogo no processo sócio-histórico em que as palavras são produzidas, Orlandi (2005)
afirma que a noção de formação discursiva é central para a AD porque permite compreender o
processo de produção de sentidos e a sua relação com a ideologia, além de possibilitar que o analista
estabeleça regularidades no funcionamento do discurso.
De acordo com Mussalim (2009) a formação discursiva é o que determina o que pode o que
não pode ser dito a partir de um determinado lugar social. Dessa forma, ela é marcada por
372
regularidades, ou seja, por ―regras de formação‖ que funcionam como mecanismos de controle para
determinar o que pertence (interno) e o que não pertence (externo) a uma formação discursiva. Isso
significa dizer, que uma FD ao se definir em relação a algo que é externo, ou seja, ao que pertence a
outras formações discursivas, deixa de ser concebida como um espaço estrutural fechado e passa a ser
invadida por elementos que vêm de outras formações discursivas. Com isso, o espaço de uma FD é
atravessado pelo que a autora denomina de ―pré-construído‖, discursos construídos anteriormente ou
posteriormente, e que são incorporados por uma relação de confronto ou de aliança.
A noção de formação discursiva como um espaço atravessado por outras FDs em que cada FD
busca fechar suas fronteiras para construir sua identidade leva Courtine e Marandin (1981) apud
(BRANDÃO, 2004) a concluir que:
Uma FD é, portanto, heterogênea a ela própria: o fechamento de uma FD é fundamentalmente instável, ela
não consiste em um limite traçado de forma definitiva, separando um exterior e um interior, mas se inscreve
entre diversas FDs como uma fronteira que se desloca em função dos embates da luta ideológica. (p.49)
Dessa forma, Brandão (2004, p. 50-51) destaca que cabe a AD trabalhar o discurso, buscando
na materialidade linguística as marcas das contradições ideológicas.
CONDIÇÕES DE PRODUÇÃO
Inscrito na teoria informacional da comunicação do linguista Roman Jakobson, cuja
contribuição consiste em colocar em cena os protagonistas do discurso e o seu referente, permitindo
compreender as condições (históricas) da produção de um discurso; Michel Pêcheux tenta elaborar a
primeira definição empírica geral de condições de produção.
Segundo Brandão (2004), Pêcheux vê os protagonistas do discurso não como uma presença
física de ―organismos humanos individuais‖, mas como uma representação de lugares na estrutura de
uma formação social. Para exemplificar o pensamento de Pêcheux, Brandão utiliza uma instituição
escolar, onde é possível encontrar diferentes ―lugares‖: o lugar do diretor, do professor, do aluno,
sendo todos esses ―lugares‖ marcados por traços que os diferenciam um do outro.
No discurso, a relação entre esses lugares, objetivamente definíveis,encontram-se representadas
pelo que Pêcheux (1969) apud (BRANDÃO, 2004, p, 44) chama de:
Formações imaginárias que designam o lugar que destinador e destinatário atribuem a si mesmo e ao outro, a
imagem que eles fazem de seu próprio lugar e do lugar do outro.
De acordo com essa concepção, em qualquer processo discursivo, o emissor pode antecipar ou
antever o ―imaginário‖ do outro, ou seja, antecipar as representações do receptor, o que possibilita a
instauração de estratégias discursivas.
Para a Análise do Discurso, o sujeito não tem acesso às reais condições de produção do seu
discurso, pois essas condições são representadas de maneira imaginária. Pêcheux, em seu jogo de
imagens estabelece as condições de produção como sendo:
373
Aquilo que o sujeito pode/deve ou não dizer, a partir do lugar que ocupa e das representações que faz ao
enunciar, não é preestabelecido antes que o sujeito enuncie o discurso, mas esse jogo vai se constituindoa
medida que se constitui o próprio discurso. (PÊCHEUX, 1969, apud MUSSALIM, 2009, p. 137)
Para complementar a teoria de Pêcheux, Brandão (2004, p.44) apresenta uma definição de
condição de produção de Courtine:
Os termos imagens ou formação imaginária poderia perfeitamente ser substituído pela noção de papel tal
como é utilizada nas teorias do papel herdadas da sociologia funcionalista de Parsons, ou ainda do
interacionismo psicossociológico de Goffman.
Para o autor, a noção de condição de produção esta ligada à análise histórica das contradições
ideológicas presentes na materialidade dos discursos.
A CONSTRUÇÃO DE SUBJETIVIDADES
A enunciação sempre foi vista com desconfiança pela linguística tradicional, em razão da forte
presença de aspectos contextuais, exigidos para explicar os seus fenômenos. De acordo com Flores e
Teixeira (2010) foi nesse cenário que o francês Émile Benveniste, considerado o linguista da
enunciação, desenvolveu, a partir do quadro estruturalista de Saussure, um modelo de análise
linguística, voltado especificamente, à enunciação.
Benveniste em O aparelho formal da enunciação (2006) coloca a língua em uma dimensão de
significação que só se dá no nível do discurso, isto é, na enunciação. Segundo ele, ―a enunciação é este
colocar em funcionamento a língua por um ato individual de utilização‖. (BENVENISTE, 1970, p.82
apud FLORES e TEIXEIRA 2010, p. 35) Com isso, separa o ato, objeto de estudo da enunciação, do
produto, ou seja, do discurso. Assim, enunciar significa transformar a língua em discurso.
Sendo a linguagem da natureza do homem, como afirma Benveniste (2006), é por meio dela que
ele se faz como sujeito através da sua subjetividade, conceito definido pelo linguista, como a capacidade
que o locutor possui de se propor como sujeito. Assim, por meio de um processo intersubjetivo, o
sujeito é produto de um jogo de interação que se realiza por meio da língua e possibilita a sua passagem
de locutor a sujeito (apud Flores e Teixeira, 2010).
Nessa perspectiva, é possível afirmar que a referência é parte integrante da enunciação, pois a
presença do locutor em sua enunciação faz com que cada instância de discurso seja um centro de
referência interno, em que vai se manifestar formas específicas cuja função é colocar o locutor em
constante relação com sua enunciação. Flores e Teixeira (2010, p.37) afirmam que:
Cada vez que o locutor se apropria do aparelho formal da enunciação - e por ele se apropria da língua toda produz um uso novo e como tal irrepetível. Essa irrepetibilidade deve-se ao fato de que jamais tempo, espaço
e pessoa - categorias fundamentais em enunciação - podem ser perenizadas no uso da língua.
É importante ressaltar, que Benveniste ao incluir em seus estudos linguísticos a referência, trata
de uma referência ao sujeito e não ao mundo. E ressaltar ainda, que o aparelho formal da enunciação,
referido pelo teórico, é um tipo de dispositivo que as línguas dispõem para que possam ser enunciadas.
374
Assim, o aparelho da enunciação e a marcação da subjetividade na estrutura da língua (FLORES e
TEIXEIRA, 2010, p. 36).
De acordo com Benveniste (2005), em A natureza dos pronomes, a subjetividade é percebida
materialmente em um enunciado através de algumas formas (dêixis, verbo) que a língua empresta ao
individuo ao enunciar. Ele classifica essas formas linguísticas, que têm o poder de expressar a
subjetividade, em pronomes e verbo e os integra na categoria de pessoa.
Para o autor, os pronomes não constituem uma classe unitária, pois se apresentam de diferentes
formas:
Uns pertencem à sintaxe da língua, outros são característicos daquilo a que chamaremos as ―instâncias do
discurso‖, isto é, os atos discretos e cada vez únicos pelos quais a língua é atualizada em palavra por um
locutor. (2005, p. 277)
Ao instaurar a categoria de pessoa, Benveniste define as pessoas do discurso em: eu/tu (pessoa)
em oposição a ele (não pessoa).
.
As pessoas - eu e tu - são essenciais no que se refere à subjetividade, pois existem em qualquer
língua e sem elas a língua seria inconcebível. A esses pronomes estão ligados indicadores que só têm
referência na realidade do discurso que contenham o indicador de pessoa, são os indicadores da deíxes,
pronomes demonstrativos, advérbios e adjetivos, responsáveis por organizar as relações espaciais e
temporais que cercam o sujeito (isto, aqui e agora). Com isso, os pronomes - eu e tu - somente ganham
plenitude quando assumidos por um falante, na instância discursiva.
A terceira pessoa, ou não pessoa – ele - é um signo pleno, uma categoria da língua que tem
referência objetiva e seu valor independe da enunciação.
PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS
Na fase de coleta e de análise dos dados, submetemos o Relatório de sustentabilidade da Vale
2011 à teoria de subjetividade de Émile Benveniste (1995) e (2006). A escolha desse relatório como
objeto de análise se deu em razão do contexto vivenciado pela empresa, porque, sendo ela uma grande
mineradora, é fato que sua atuação repercute decisivamente no meio ambiente, então, nos interessa
investigar de que forma a Vale revela sua subjetividade, ou seja, se marca ou se anula como sujeito do
discurso em um jogo intersubjetivo que tem por finalidade discursiva, criar sentidos favoráveis à
imagem da empresa no que se refere à preservação da natureza. Com esse objetivo, selecionamos
alguns trechos do relatório, nos quais é possível perceber a categoria de pessoa e não pessoa marcada
no discurso. Esses trechos foram divididos em dois grupos, de acordo com a presença ou ausência de
subjetividade. No primeiro, estão os trechos marcados pelas formas eu/nós e tu/vocês e no segundo,
estão os trechos marcados pela não pessoa ele/ela.
ANÁLISE ANUNCIATIVA
375
Nestaseção,analisaremos trechos extraídos do Relatório de Sustentabilidade da Vale, buscando
investigar os efeitos de sentido criados a partir de um quadro enunciativo formado, de um lado, pela
categoria de pessoa eu/tu ou nós/vocês e, por outro lado, pela não pessoa ele ou eles.
INDICADORES DE PESSOA EU/TU – NÓS/VOCÊS
TRECHO 1
―Não quero que haja qualquer dúvida que, nesta empresa, a vida é mais importante do que a produção.
Se tivermos que escolher, devemos escolhera vida.‖(M. F. Diretor-presidente)
TRECHO 2
―Para promovermos o desenvolvimento sustentável, precisamos reconhecer a finitude dos recursos
naturais do planeta, tornar nossas operações mais eficientes e trabalhar construtivamente com as partes
interessadas.‖(G. Z. Diretora de Desenvolvimento Sustentável).
TRECHO 3
―Estamosrealizando grandes investimentos em saúde e segurança e construindo uma cultura de
prevenção e gerenciamento de risco na nossa empresa. Todas as fatalidades, ferimentos e doenças podem ser
prevenidos, e nossa meta é dano zero.‖(J.H. Diretora Global de Saúde e Segurança).
Analisando os trechos acima, é possível perceber, que o locutor marca sua subjetividade, ou
seja, se coloca como sujeito, flexionando os verbos ou as locuções verbais na primeira pessoa
(quero,tivermos, devemos escolher, promovermos, precisamos reconhecer e estamos realizando) e que
essas formas verbais estão subordinadas a um indicador de primeira pessoa: (eu) quero, (nós) devemos
escolher, (nós) promovermos, (nós) precisamos reconhecer e (nós) estamos realizando.
Com isso, podemos comprovar o que diz Benveniste (1946), em Estrutura das relações de
pessoa no verbo, quando diz que o verbo é, juntamente, com o pronome, a única espécie de palavra
que se submete a categoria de pessoa. Segundo ele, uma teoria linguística da pessoa verbal só se
constitui se tiver como base as oposições que distinguem as pessoas. Benveniste (p. 250) afirma que:
―(...) não parece que se conheça uma língua dotada de um verbo no qual as distinções de pessoa não se
marquem de uma ou de outra maneira nas formas verbais‖.
Segundo Benveniste, em A natureza dos pronomes (1956), os pronomes ocupam um papel
fundamental no contexto da subjetividade, eles têm a função de promover a comunicação
intersubjetiva, o que corresponde a um jogo de interação dado pelas formas linguísticas, possibilitando
a passagem de locutor a sujeito por meio de um processo de apropriação da língua (Flores, 2010, p.33).
Aplicando o princípio da intersubjetividade, observamos que o locutor ao se colocar como sujeito do
discurso (pessoa subjetiva); atribui ao outro o lugar do tu (pessoa não subjetiva).
Quanto aos efeitos de sentido que os indicadores de pessoa eu/nós e tu/vocês, produzem nos
trechos acima, constatamos que sua utilização por funcionários do alto escalão da Vale, ou seja, por
pessoas que tem autoridade para falar em nome da empresa, tem como finalidade discursiva, respaldar
o que se está dizendo sobre temas como: desenvolvimento sustentável e segurança no trabalho.
376
INDICADORES DE NÃO PESSOA ELE/ELA E ELES/ELAS
TRECHO 4
―Desenvolvimento sustentável para a Vale, é captar as inúmeras oportunidades de crescimento,
reconhecendo os limites físicos do planeta‖. (p.15)
TRECHO 5
―As relações da Vale com autoridades governamentais e organizações da sociedade civil são norteadas
pelo Código de Conduta Ética, pela visão, pela missão e pelos valores da empresa.‖ (p.26).
TRECHO 6
―A Vale sabe que trabalhar em diversos países e culturas é um desafio, mas que, ao mesmo tempo,
representa uma oportunidade, pela riqueza que uma força de trabalho diversa representa.‖ (p.43).
De acordo com Benveniste (1956), em A natureza dos pronomes, não basta definir a categoria
de pessoa apenas em relação à presença ou à ausência do traço de pessoalidade, é necessário defini-la
em termos de subjetividade. Nessa perspectiva, observamos que há um apagamento do sujeito, ou seja,
comprovamos a ausência de subjetividade. O enunciador se apropria do pronome (ela), definido por
Benveniste como a forma da não pessoa, para se referir a Vale, como podemos comprovar nos trechos
analisados: ―Desenvolvimento sustentável para a Vale...‖, ―As relações da Vale...‖, ―A Vale sabe‖.
Benveniste, também, ressalta que a forma da não pessoa (ele/ela) só se constitui em termos de
subjetividade, em oposição às formas: eu/nós, pessoa subjetiva; tu/vocês, apenas pessoa. Então, pelo
princípio intersubjetivo, preconizado por esse autor, o enunciador (empresa) se apaga como sujeito e se
posiciona discursivamente como não pessoa (ela), atribuindo ao leitor o lugar de pessoa não subjetiva
(tu).
Observamos que essa estratégia enunciativa utilizada pela empresa produz como efeito de
sentido, dar maior veracidade ao discurso. O leitor tem a sensação de que o que se afirma sobre a
empresa, não é a própria Vale que esta dizendo e sim, outras vozes. Com isso, o discurso ganha status
de verdade e a empresa se posiciona discursivamente com maior imparcialidade.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A partir dessa análise, comprovamos o que diz Benveniste (2006, p.82) quando define a
enunciação como: ―O colocar a língua em funcionamento por um ato individual de utilização‖. Pois,
sendo o sujeito o praticante da ação de enunciar, ele constrói sentidos por meio da referência. Desse
modo, a análise pautada na categoria de pessoa e não pessoa revelou questões essenciais que elucidaram
como os discursos são construídos em uma relação entre sujeitos.
Os dados analisados nesse estudo permitiram observar o comprometimento socioideológico do
Relatório de Sustentabilidade 2011 da Vale, utilizado como instrumento de divulgação das ações e
posicionamentos da empresa, no que se refere a desenvolvimento sustentável. Nesse sentido, as
análises mostraram que a Vale, por meio de sua prática discursiva, se coloca como uma instituição
preocupada com a preservação do meio ambiente.
A pesquisa teve como aporte teórico os artigos de Benveniste (1956, 1958, 1970), em especial os
que abordam o ―homem na língua‖, reunidos em Problemas de Linguística Geral I (1995) e Problemas
377
de Linguística Geral II (1958). Utilizamos ainda, alguns estudiosos de Benveniste como Flores et al
(2010), Brandão (2004) e Mussalim e Bentes (2009).
Nesse estudo que se realizou a luz da Análise do Discurso de linha francesa, a língua foi
assumida como um fenômeno social e ideológico, que expressa posicionamentos avaliativos e não
apenas um sistema linguístico dissociado de seus elementos contextuais. Essa concepção de língua
implica em uma mudança na forma que o estudo de língua vem sendo ensinado nas escolas brasileiras.
Pois, considerar a língua como um fenômeno abstrato não responde a totalidade dos fenômenos
linguísticos e não desenvolve a capacidade linguística dos falantes. A língua, para a Análise do Discurso,
está inserida na história do sujeito.
REFERÊNCIAS
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Campinas, SP: Pontes, 1995, p. 277-283.
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Pontes, 2005, p. 284-293.
______. O aparelho formal da enunciação. In: ______. Problemas de Linguística Geral II. Campinas, SP:
Pontes, 2006. p. 81-90.
BRANDÃO, H.H. N. (2004). Introdução à analise do discurso. Campinas, SP: Editora da UNICAMP.
2ª ed., 2004.
CHARAUDEAU, P. e MAINGUENEAU, D. (2008) . Dicionário de análise do discurso. Tradução
Fabiana Komesu at. al. São Paulo: Editora Contexto.
MUSSALIM, F. e BENTES, A.C. (2009). Introdução à linguística: domínios e fronteiras. Vol. 2 São
Paulo, Cortez.
ORLANDI, Eni Puccinelli, (2005). Análise do discurso: princípios e procedimentos. Campinas, S.P:
Pontes.
SITE CONSULTADO
Relatório de Sustentabilidade 2011. Disponível em: http://www.vale.com/rs2011. Acesso em 20 jun.,
2012.
378
ARTICULANDO O ESTUDO DE LÍNGUA INGLESA COM A CULTURA DE
ARAÇAZAL
Katiana Farias1
Marlison Soares Gomes2
Sílvia Letícia Soares Corrêa3
Nilton Varela Hitotuzi (orientador)4
Resumo:No período de 15 a 18 de novembro de 2012, os bolsistas do subprojeto do Programa
Institucional de Bolsas de Iniciação a Docência – PIBID/Inglês da Universidade Federal do Oeste do
Pará – UFOPA fizeram uma visita à comunidade de Araçazal situada à margem esquerda do Rio
Tapajós, no Município de Santarém e localizada dentro da reserva extrativista Tapajós – Arapiuns
(RESEX). A visita tinha como objetivo precípuo a coleta de dados para o planejamento de unidades
interdisciplinares de ensino, visando uma articulação entre o estudo de inglês e outras disciplinas. Como
parte integrante do nosso planejamento, coletamos relatos de moradores antigos e fizemos trilhas para
conhecer a história da área preservada e os recursos que ela oferece àqueles que lhe habitam. Os
registros, grande parte feitos em fotografias, retratam a fauna, flora e o dia-a-dia da comunidade. Os
comunitários iniciam os serviços pela manhã: pescam, caçam, cultivam a mandioca etc. práticas estas
que garantem sua sobrevivência. Dentre as trilhas realizadas conseguimos verificar uma área, onde
franceses invadiram e construíram um resort já destruído pelo tempo. Segundo moradores, tais invasores
abandonaram a área por determinação da justiça, visto que os mesmos proibiam os comunitários de se
aproximarem do local, além da grande devastação que causavam. Esse resort ocupava uma área bastante
extensa com bangalôs bem equipadas, com esgoto, água encanada, área de banho, grande aquário e
restaurante com vista para o Rio Tapajós. Hoje esse espaço mostra as marcas do tempo que o destroem
a cada dia, bem como, interfere na vida da comunidade, assim, pode-se analisar até onde o homem
chega pela ambição.Esta vivencia nos proporcionou um riquíssimo arquivo de dados e isso nos abre
um leque de possibilidades que balizam a produção de material didático.
Palavras-chave: Comunidade, Registros, Material de Didático, Ensino.
Abstract: From 15 to 18, November 2012, the scholarship students of the Programa Institucional de
Bolsas de Iniciação a Docência (Docency Initiation Scholarships Institutional Program) PIBID/English
from the Universidade Federal do Oeste do Pará – UFOPA visited the Araçazal Community located
within the Tapajós – Arapiuns (RESEX) extractive preserve at the left bank of the Tapajós River in the
municipality of Santarém. The visit had as its objective to collect data to do the planning of the teaching
interdisciplinary unities, aiming to do an articulation between the study of English and the others
subjects. As an integrant part of our planning, we collected accounts from the old residents and we
went on the trails to know the history of the preserved area and the resources it offers to the residents.
Records, great part through photographs portray fauna and flora and the day by day of the community.
The community residents start their day in the morning, they fish, they hunt, they grow manioc. These
praticals guaranty their survival. In the trails we verified an area where Frenchmen has built a resort
destroyed by the time. In according to the residents, these invaders abandoned the area by justice
determination, once they prohibited the residents to get closer to the place besides the great devastation
they caused. This resort occupied a very large area, with piped water, bath area, large aquarium and a
restaurant with a sight to the river. Today this place shows the marks from the time, as well as it
1Aluna
do Curso de Licenciatura Integrada em Português/Inglês, Universidade Federal do Oeste do Pará,
[email protected]
2Aluno do Curso de Licenciatura Integrada em Português/Inglês, Universidade Federal do Oeste do Pará,
[email protected]
3Aluna do Curso de Licenciatura Integrada em Português/Inglês, Universidade Federal do Oeste do Pará,
[email protected]
4 Doutor em Letras, Universidade Federal do Oeste do Pará,[email protected]
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interfere in the community‘s life. thus we can analyze how far men can go for their ambition. This
experience gave us a very rich data archive and it has given us a lot of opportunities to produce didactic
material.
Key-words: community, files, didactic material, teaching.
1. INTRODUÇÃO
Sabe-se que, no município de Santarém, estado do Pará, a quantidade de professores de Inglês é
bastante reduzida em decorrência da mínima oferta de cursos de Licenciatura em Letras – Inglês no
município. Até recentemente, somente o Centro Universitário Luterano de Santarém oferecia tal curso.
A partir do início de 2012, a Universidade Federal do Oeste do Pará também passou a dar a sua
contribuição para a formação desses profissionais. Daí a constatação do fato de que muitos dos
profissionais que atuam nessa área possuem outras licenciaturas – em geral, Letras – Português – e,
frequentemente, eles sequer passam por um processo de capacitação para ministrarem aulas de Inglês.
Devido a esse despreparo, as estratégias utilizadas nas salas de aula estão muito aquém das necessidades
e expectativas dos alunos. Isso gera desmotivação e, consequentemente, aproveitamento insuficiente
durante o seu percurso escolar, o que pode contribuir para a inibição da vontade de futuramente
tornarem-se professores de Inglês ou usuários proficientes do idioma ou de qualquer outra língua
estrangeira. Ante essa problemática, o presente artigo traz como objetivo a proposta de uma estratégia
de ensino que contribua para a mudança de atitude do aluno da escola pública santarena em relação ao
desenvolvimento de habilidades necessárias a aquisição e ampliação do seu repertório linguístico e,
especificamente, o incentive a tornar-se um proficiente usuário da Língua Inglesa e para que o
professor possa conhecer e usar novas estratégias para o ensino desta Língua. Para tanto,
fundamentados nos trabalhos de Mikhail Bakhtin, John Gumperz e Ingedore Koch, desenvolveremos
um conjunto de atividades a partir do gênero textual histórias em quadrinhos (HQ‘s) que, embora
considerado uma ferramenta pedagógica de alto valor, ainda é pouco explorado em ambientes
escolares, sobretudo em nossa região. O trabalho será realizado com alunos de duas turmas do 3º ano
do Ensino Médio de uma escola pública de Santarém-PA. Os alunos criarão HQ‘s por meio do
programa Photoscape, que é um software usado para a produção de textos desse gênero, a partir de
fotografias previamente selecionadas. Nessas criações, eles poderão desenvolver o seu potencial criativo
e reflexivo a fim de produzir as suas próprias histórias, respaldados em suas vivências. Isso poderá
tornar o aprendizado prazeroso e consistente, porque os conhecimentos que os alunos trazem consigo
para a escola serão levados em consideração. No início do século XX, John Dewey já ressaltava o valor
da experiência no processo educativo. Mais tarde, Paulo Freire também desenvolveu sua pedagogia
centrada na experiência do educando. É nessa perspectiva que pretendemos ressaltar, em nossa
intervenção pedagógica, os usos sociais e culturais da língua estrangeira, tratados nos PCN‘s como
380
engajamento discursivo dos alunos. Como resultado da produção de HQ‘s, esperamos poder perceber,
da parte dos alunos, mais disposição para estudar inglês e o reconhecimento da importância do
aprendizado desse idioma. As evidências dessas mudanças de atitude serão coletadas através de
entrevistas com os participantes das atividades. As suas falas serão transcritas e, com base no método
fenomenológico de análise, de Clark Moustakas, será produzida uma síntese das atitudes dos alunos.
Sendo as HQs um gênero que facilmente seduz crianças e jovens, acreditamos que esse trabalho tornará
o processo de aprendizagem da língua inglesa mais atraente e eficaz.
2. FORMAÇÃO DE PROFESSORES DE INGLÊS
Trabalhar o processo de ensino e aprendizagem de uma língua estrangeira na Região Oeste do
Estado do Pará é um grande desafio, tendo em vista as condições histórica, geográfica, cultural,
econômica, social e outras, que permeiam a região. Talvez, o maior problema enfrentado pelas
instituições educacionais nesse processo, seja a formação inadequada de professores. O número de
professores com formação em nível superior, em Língua Inglesa, atuando nas redes municipal e
estadual ainda não atende a demanda de turmas de inglês da região. Com isso, professores sem
qualificação na área assumem turmas, lecionando sem o conhecimento das diversas metodologias de
ensino, de forma não consistente, o que pode ser a causa da aversão dos alunos ao idioma e o resultado
é a má formação destes, quase com nenhuma perspectiva de se tornarem proficientes na língua
estudada.
Colaborando com essa ideia, Libâneo (2008, p.22), nos alerta que ―na tendência tradicional [...]
os conteúdos, os procedimentos didáticos, a relação professor-aluno não têm nenhuma relação com o
cotidiano do aluno e muito menos com as realidades sociais. É a predominância da palavra do
professor, das regras impostas, do cultivo exclusivamente do intelectual.‖, esse é mais um fator que
poderá desmotivar os alunos e fazer com que eles não adquiram o conhecimento esperado da língua
estudada.
Uma investigação acerca de tal problemática está sendo realizada através do subprojeto
PIBID/Letras-Inglês da Universidade Federal do Oeste do Pará, que tem com tema ―Contribuições
para a Formação de Novos Professores de Inglês na Região Oeste do Pará‖ 5. O subprojeto vem sendo
desenvolvido em 04 (quatro) escolas da rede estadual na cidade de Santarém/PA. Dentre os seus
objetivos, destacam-se a contribuição para a formação continuada dos supervisores nele envolvidos
(professores efetivos das escolas parceiras), e melhor qualificação de novas gerações de professores de
Inglês.
Esse subprojeto é parte do projeto institucional ―Educação para a Integração da Amazônia‖ que por sua vez, está ligado ao
Programa Institucional de Bolsas de Iniciação à Docência, Edital nº 001/2011 CAPES.
5
381
Além das dificuldades da maioria dos professores de inglês não terem uma formação acadêmica,
há também outros agravantes, como por exemplo, a infraestrutura das escolas. Se por um lado, muitas
escolas não oferecem estrutura adequada para um processo de ensino de qualidade, por outro, aquelas
que oferecem boa estrutura e equipamentos modernos, esbarram na carência de formação tecnológica
por parte desses professores, ao não saberem trabalhar com ferramentas novas no que diz respeito ao
ensino de línguas. Por isso, a necessidade de formar profissionais que possuam conhecimento
abrangente, que saibam lidar com múltiplos contextos, para que possam, dessa forma, atuar com visão
mais contemporânea, diferente de profissionais conteudistas que continuam a usar metodologias que
não levam em conta as habilidades dos alunos.
Pensando na dinâmica da região e nos aspectos que influem na formação de profissionais ainda
mais competentes no que tange o ensino de uma segunda língua é que se propôs este trabalho com o
qual será possível um olhar técnico tanto na cultura do lugar em que se insere a língua estrangeira
quanto nas pessoas que dela se utilizam ou que pretendem se utilizar.
Na contemporaneidade é cada vez mais complexo trabalhar com alunos sempre ligados nas
novas tecnologias, tecnologias estas que com frequência se fazem presentes nas salas de aula. Nesse
contexto, é importante que os professores participem de processos de formação continuada para que
assim saibam lidar com as mudanças trazidas pela tecnologia, segundo Mizukami (2002, p. 14):
No cotidiano da sala de aula o professor defronta-se com múltiplas situações
divergentes com as quais não aprende a lidar durante seu curso de formação. Essas
situações estão além de referenciais teóricos e técnicos e por isso o professor não
consegue apoio direto nos conhecimentos adquiridos no curso de formação para lidar
com eles.
De acordo com os Parâmetros Curriculares Nacionais – (PCN‘s) do Ensino Médio (2000, p.24),
é preciso ―aplicar as tecnologias da informação e da comunicação na escola, no trabalho e em outros
contextos relevantes da vida‖. Entretanto, como ressalta Libâneo (1999, p. 14), ―muitos professores [...]
se apavoram quando são pressionados a lidar com equipamentos eletrônicos‖. Assim, percebe-se a
importância da formação continuada para professores que por algum motivo ainda não se apropriaram
de ferramentas mais adequadas para o ensino de línguas na atualidade.
De acordo com os PCN‘s do Ensino Médio, muitos problemas têm interferido no processo de
ensino e aprendizagem de língua estrangeira nas escolas ao longo do tempo:
Fatores como o reduzido número de horas reservado ao estudo das línguas
estrangeiras e a carência de professores com formação linguística e pedagógica, por
exemplo, foram os responsáveis pela não aplicação efetiva dos textos legais. Assim,
em lugar de capacitar o aluno a falar, ler e escrever em um novo idioma, as aulas de
Língua Estrangeira Moderna nas escolas de nível médio; acabaram por assumir uma
feição monótona e repetitiva que, muitas vezes, chega a desmotivar professores e
alunos, ao mesmo tempo em que deixa de valorizar conteúdos relevantes à formação
educacional dos estudantes. (BRASIL. 2000. 25).
382
Krashen (1982) defende em sua teoria de aquisição de segunda língua que é fundamental levar
em consideração, nos processos de aprendizagem, o conhecimento ou habilidades que os aprendizes já
possuem. Reforçando essa ideia, Libâneo (1999, p. 29) afirma que:
[...] o professor medeia a relação ativa do aluno com a matéria, inclusive com
conteúdos próprios de sua disciplina, mas considerando os conhecimentos, a
experiência e os significados que os alunos trazem à sala de aula, seu potencial
cognitivo, suas capacidades e interesses, seus procedimentos de pensar, seu modo de
trabalhar.
Percebe-se, dessa forma, a importância de professores preparados para lidar com o novo perfil
de aluno atualmente encontrado nas escolas. Os novos profissionais da educação precisam ter
conhecimento das novas tendências tecnológicas que permeiam a educação e, para isso, é preciso
atualização e tornar-se apto a ensinar nestes novos tempos.
3. DIDATIZANDO AS HISTÓRIAS EM QUADRINHOS NAS AULAS DE LÍNGUA
INGLESA
Através dos registros e verificações coletadas na Comunidade Araçazal, passou se a trabalhar na
produção do material didático que terá como principal destaque a cultura da região e auxiliará
professores de Língua Inglesa a desenvolverem metodologias relacionadas ao contexto em que a
população está inserida.
A pesquisa consiste na produção de Histórias em Quadrinhos – (HQ‘s), mostrando a vivência
da comunidade, para aplicação em sala de aula como ferramenta de ensino de Língua Inglesa, uma vez
que tal artifício tem o potencial para beneficiar a produção de conhecimento de acordo com a realidade
das escolas públicas dessa região e possibilitar, ao professor, maior dinamismo em suas atividades,
relacionando a realidade local à sala de aula e fazendo com que haja maior interesse de seus alunos no
processo de aprendizagem proposto.
A fim de munir o professor com uma metodologia inovadora para o ensino de Língua Inglesa,
sugere-se o uso de histórias regionais em quadrinhos como material de apoio ao ensino. Essas histórias
podem ser instrumentais na veiculação de conteúdos programáticos e proporcionar o efetivo uso da
língua de forma ilustrada, explorando a realidade em sintonia com a faixa etária do aluno.
O contexto social a que grande parte dos alunos da rede pública de ensino pertence é, na
maioria das vezes, a principal interferência na aquisição de uma segunda língua, devido à falta de
material didático que envolva a temática de seu cotidiano. Cabe ao professor buscar novas estratégias
para que, no processo de ensino e aprendizagem, os obstáculos que impedem os alunos de se
apropriarem da língua-alvo sejam removidos e estes se sintam motivados a utilizá-la no cotidiano, em
uma conversa com os amigos.
383
É importante observar que, quando se trata do ensino de Língua Inglesa, devemos privilegiar
todas as possibilidades que tornam viáveis a comunicação e a aquisiçãodo conhecimento da língua em
questão, de maneira que se possa promover uma comunicação eficiente, seja por meio de textos
escritos, conversações ou outras ocasiões que possam contribuir para que o aluno reconheça e
compreenda os sentidos e as formas de utilização da diversidade de vocábulos, expressões idiomáticas e
gêneros textuais. Em vista da problemática existente na rede pública de ensino, relacionada a
profissionais qualificados ou não, que não buscam atualizar-se para lidar com o perfil do aluno
contemporâneo; e ainda relativamente àqueles que encontram dificuldades em transmitir os conteúdos
ofertados pelos livros didáticos, geralmente embasados em culturas de outras regiões, propõe-se a
elaboração de um material didático com temas da própria região para o aperfeiçoamento do processo
de ensino e aprendizagem de língua estrangeira.
4. METODOLOGIA
Apresenta-se aqui uma projeção de utilização de HQ‘s no ensino de Língua Inglesa. Na
realidade, esse trabalho teve início em uma visita à Comunidade Araçazal feita por bolsistas do
subprojeto PIBID/LETRAS-Inglês com o intuito de coletar dados para a elaboração de unidades de
estudo de Inglês em articulação com outras disciplinas, tais como: Biologia, História, Arte e Sociologia.
A etapa seguinte constitui na sistematização dos dados coletados. Depois disso, será realizada uma
oficina com o objetivo de orientar acerca do manuseio do software Photoscape na produção e edição de
histórias em quadrinhos.
As próximas etapas envolvem alunos do Ensino Médio de uma escola da rede pública de
Santarém. Primeiramente, em grupos a serem definidos pela equipe organizadora, os educandos irão
produzir os roteiros com ênfase na rotina diária dos alunos. Deverá contar a rotina de um estudante
comum do Ensino Médio. Ainda nessa etapa, os roteiros serão lidos em grupos (leitura dramática). A
finalidade da leitura é trabalhar a fala e a compreensão em inglês. Na etapa posterior, os alunos
produzirão fotografias que, encadeadas, deverão seguir uma sequência lógica e coesa a fim de
estabelecer relação com os roteiros anteriormente construídos, os grupos deverão contar com essas
imagens e as histórias propostas nos roteiros.
No decorrer da etapa de aplicação, os alunos irão compor as HQ‘s, fazendo uso do Photoscape e
dos textos produzidos na etapa de construção de roteiros. Nesse ínterim os grupos terão de construir as
páginas das HQ‘s que posteriormente serão impressas de acordo com a orientação da equipe do
subprojeto PIBID/LETRAS-Inglês. A última etapa será a produção final. Nela os grupos escolherão os
melhores trabalhos e os apresentarão à comunidade escolar. Cada aluno participante responderá um
questionário para fins de averiguação de suas aptidões com relação ao estudo de uma segunda língua,
384
mais especificamente o inglês. Os boletins atuais e os do ano anterior à aplicação do projeto serão
comparados para construção de gráfico estatístico demonstrativos do desempenho dos alunos.
5. CONCLUSÃO
Compreende-se que todo o processo de ensino e aprendizagem é extremamente complexo e,
quando diz respeito a uma língua estrangeira, o qual envolve uma nova cultura, o grau de dificuldade
pode aumentar significativamente. Nesse processo, ao trabalhar uma nova estrutura gramatical, tendo
em mente teorias que advogam o recurso à experiência do educando, é importante utilizar-se de
elementos da própria região e, por meio deles, inserir a língua estrangeira. Nesse sentido, pensando na
possibilidade de uma aquisição mais rápida e consistente da língua estudada, apresentou-se a
possibilidade de se trabalhar na sala de aula de Língua Inglesa com as HQ‘s, que há anos envolvem
crianças, jovens e adultos.
A produção de Histórias em Quadrinhos a ser desenvolvida por alunos do Ensino Médio da
escola pública santarena remete a mais um elemento que também tem o potencial de despertar a
atenção e a curiosidade dos mesmos: a tecnologia da computação; através dela será desenvolvida a
metodologia a ser aplicada. Assim, preveem-se resultados positivos, pois além de proporcionar algo que
os alunos gostam de trabalhar, estarão em uso, questões que fazem parte do seu cotidiano. Logo, se
espera um maior envolvimento não apenas do alunado, mas de todos envolvidos no processo.
Em síntese, acredita-se que o processo de ensino e aprendizagem de inglês será facilitado pela
articulação dos conteúdos da disciplina com a cultura de Araçazal. Uma melhor compreensão por parte
dos estudantes e, consequentemente, resultados mais positivos poderão encorajar os alunos a quererem
apropriar-se do idioma.
6. REFERÊNCIAS:
BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 1992.
BRASIL. Secretaria de Educação Básica. Parâmetros curriculares nacionais:ensino médio: linguagens,
códigos e suas tecnologias. Brasília: MEC/SEF, 2000.
FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. 36. ed. São Paulo: Paz e Terra,
2007.
385
GUMPERZ, John. Convenções de contextualização. In Sociolingüística Interacional. RIBEIRO, B. T. &
GARCEZ, Pedro de Morais. (Orgs.), São Paulo: Loyola, 2002.
IMBERNÓN, Francisco (Org.). Educação no século XXI: Os desafios do futuro imediato. 2ed. Porto Alegre:
Artmed, 2000.
KRASHEN, Stephen. Second language acquisition and second language learning. California: Pergamon Press
Inc., 1981.
______. Principles and practice in second language acquisition.California: Pergamon Press Inc., 1982.
KOCH, Ingedore Grunfeld Villaça. O Texto e a construção dos sentidos. São Paulo: Contexto, 2003.
LIBÂNEO, José Carlos. Pedagogia e pedagogos, para quê? 7ed. São Paulo: Cortez, 2004.
______. Democratização da escola pública: a pedagogia crítico-social dos conteúdos. 22ed. São Paulo: Loyola, 2008.
______. Adeus professor, adeus professora? Novas exigências educacionais e profissão docente. 3ed. São Paulo:
Cortez, 1999.
MARCUSCHI, Luiz Antônio. Novas perspectivas para o ensino da linguagem. Plenária 2, III SIGET, 17 a 19
de agosto de 2005, Rio Grande do Sul: UFSM, 2005.
MIZUKAMI, Maria da Graça Nicoletti. et al. Escola e aprendizagem da docência: processo de investigação e
formação. São Carlos: EDUUFSCar, 2002.
386
A PRODUÇÃO DO BEIJU COMO OBJETO MOTIVADOR NO ENSINO
TRANSDISCIPLINAR
Ocineide Guimarães Ferreira1
Nelcivane dos Anjos da Silva2
Nilton Varela Hitotuzi3
Ana Claudia Medeiros da Silva4
Resumo:Este relato apresenta uma experiência na reserva indígena Araçazal, resultante de uma visita
realizada como parte das atividades do Subprojeto PIBID/Letras-Inglês, que se propõe a contribuir
com a formação de professores de Inglês na região oeste do Pará. O objeto de observação foi a
produção do biju (dialeto local): desde o plantio da mandioca até o surgimento do produto final. Por
tratar-se de um processo que engloba vários conhecimentos e habilidades, e por corresponder a
diferentes aspectos da vida na reserva, pensou-se em uma proposta transdisciplinar, através de uma
sequência de atividades, usando-se um objeto concreto e motivador (o beiju) como instrumento
facilitador no processo de ensino e aprendizagem; e tendo o Inglês como disciplina mobilizadora,
através da qual se estabelecerão pontos comuns com outras disciplinas. Essa estratégia permitirá a
integralidade dos conhecimentos na cooperação entre as disciplinas. Ademais, ela encorajará a
organização e a promoção de um pensamento complexo: a problematização e a delimitação de um
ponto de vista transdisciplinar para a construção de novos saberes a partir de conteúdos que se
completam, permitindo que o aluno seja capaz de compreender simultaneamente as diferentes
dimensões de um mesmo tema. A proposta tem por objetivo: (1) contribuir para o desenvolvimento de
competências e habilidades através da integração disciplinar; (2) propiciar reflexões sobre o papel do
aluno como transformador e produtor de conhecimentos; (3) estimular o aprendizado da língua inglesa
de forma integrada. Essa estratégia deverá ser desenvolvida em escolas da rede pública da região do
oeste do Pará com o intuito de congregar saberes e sentidos em um processo de transformação no
exercício do pensar, construir, desconstruir e reconstruir para fundamentar e motivar os alunos a
acreditarem no seu potencial transformador, crítico, político e reflexivo, encorajando-os, ainda, à
flexibilidade a mudanças.
Palavras-Chave: Integralidade; Transdisciplinaridade; Objeto motivador.
Discente do curso de Licenciatura Integrada em Letras: Português-Inglês/UFOPA. Bolsista PIBID/CAPES. E-mail:
[email protected]
1
Discente do curso de Licenciatura Integrada em Letras: Português-Inglês/UFOPA. Bolsista PIBID/CAPES. E-mail:
[email protected]
2
Docente do Programa de Letras do Instituto de Ciências da Educação/UFOPA. Bolsista PIBID/CAPES. E-mail:
[email protected]
4 Discente do curso de Licenciatura Integrada em Letras: Português-Inglês/UFOPA. Bolsista PIBID/CAPES. E-mail:
[email protected]
3
387
Abstract:This report presents an experience in the Araçazal Indian reservation, as a result of a visit to it
as part of the activities of the Subproject PIBID/Letras-Inglês, whose prime aim is the education of
English teachers in western Pará. The object of observation was the production process of biju (to use
the local dialect): from the planting of cassava to the final product. Because it is a process that
encompasses many skills and abilities, and corresponds to different aspects of life in the reservation, a
transdisciplinary proposal towards the teaching and learning of English was outlined. The idea is to
produce a sequence of activities, using a concrete and motivator object (the cassava bread) as the
facilitator in the process of teaching and learning, and having English as the mobilizing discipline,
through which a common ground can be established with other disciplines. This strategy will allow the
integrality of knowledge through cooperation among the disciplines involved. Furthermore, it will
encourage the organization and promotion of complex thinking, which can be evinced by the
problematization and definition of a transdisciplinary viewpoint for the construction of a new
epistemology from disciplines that complete each other, allowing the student to simultaneously
understand the various different dimensions of the same theme. This endeavour aims to: (1) contribute
to the development of skills and abilities through subject matter integration; (2) provide room for
reflections on the role of the students as producers and transformers of knowledge; and (3) encourage
the learning of English in an integrated manner. This strategy will be developed in state schools from
the region of western Pará in order to gather knowledge and senses together in a transformative
process that requires the exercise of thinking, constructing, deconstructing and reconstructing to
support and motivate students to believe in their transformative, critical, political and reflective
potential, encouraging them to be flexible in the face of change.
Keywords: Integrality; Transdisciplinarity; Motivator object.
7. Introdução
Temos observado que, nas escolas públicas do oeste do Pará, a disciplina Língua
Estrangeira/Inglês é geralmente ministrada de forma fragmentada e isolada. Essa forma de estudá-la
não considera o aprendizado sequer como uma atividade meramente intelectual e menos ainda que o
aluno seja um sujeito emotivo, afetivo, criativo e cognitivo. É possível que essa atitude seja motivada
pelo próprio sistema educacional, quando, através do currículo escolar, desprivilegia o Inglês enquanto
uma disciplina a ser explorada com rigor e a coloca apenas como uma simples atividade para
complementação da grade curricular não prioritária. Isso pode implicar na desmotivação do aluno para
aprender a língua estrangeira. Os especialistas em educação, responsáveis pela elaboração dos
Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN), também se aperceberam desse problema. Eles argumentam
que um dos fatores contrários à aprendizagem, especificamente em língua inglesa, ―[...] é que o ensino
de língua estrangeira não é visto como elemento importante na formação do aluno, como um direito
que lhe deve ser assegurado [...]‖ (BRASIL, 1998, p.24).
Ao que parece, em contextos assim, as ações transdisciplinares se apresentam como uma
alternativa no processo educacional, porque se constituem em uma estratégia que agrega as diferentes
áreas do conhecimento, visando à colaboração, integralidade, unicidade e significância do
conhecimento (ROCHA FILHO; BASSO; BORGES, 2007). Além do importante papel de auxiliar no
processo de ensino e aprendizagem, a transdisciplinaridade é uma postura epistemológica ousada que
388
permite potencializar a pesquisa, o entendimento, o senso crítico, a busca de soluções e transformações
sociais. Daí a importância de se incluir o ensino de Inglês na esteira de uma proposta transdisciplinar.
Portanto, a hipótese sustentada neste trabalho é a de que uma abordagem de ensino transdisciplinar,
contendo elementos da realidade local poderá promover o engajamento do aluno da escola pública da
região no processo de aprendizagem de inglês de forma mais intensa e comprometida.
8. O contexto da experiência
A inclusão do Inglês na perspectiva de ensino transdisciplinar nos remete à pesquisa na
educação como elemento catalizador de um olhar crítico sobre a relação da teoria com a prática e do
exercício de nos situarmos dialogicamente no mundo. Defendemos, como o faz Brandão (1981), a
pesquisa na educação centrada no diálogo com as culturas populares e as comunidades dos excluídos e
na ruptura com os velhos modos de pensar, de educar e de investigar a realidade. Esse modo de
conceber a pesquisa em educação busca a identificação totalizante entre sujeito e objeto onde a
população pesquisada é movida a participar da pesquisa como agente ativo, produzindo conhecimento
e interferindo na própria realidade (DEMO, 2002). Na mesma perspectiva desses autores, entendemos
a pesquisa como um instrumento possibilitador de um relacionamento de cooperação entre a teoria e a
prática, onde se estabelece uma conexão entre o pesquisador e o objeto pesquisado.A teoria não pode
sobreviver sem a prática e vice-versa. Esse argumento é também apresentado por Freire (1998), que
capitaliza a necessidade de uma postura crítico-reflexiva na relação orgânica entre teoria e prática:
[...] na formação permanente dos professores, o momento fundamental é o da reflexão
crítica sobre a prática. É pensando criticamente a prática de hoje ou de ontem que se
pode melhorar a próxima prática. O próprio discurso teórico, necessário à reflexão
crítica, tem de ser de tal modo concreto que quase se confunda com a prática.
(FREIRE, 1998, p. 44).
Partindo dessa noção de pesquisa em educação, os bolsistas do Subprojeto PIBID/LetrasInglês5 da Universidade Federal do Oeste do Pará (UFOPA) realizaram uma visita a uma comunidade
indígena, chamada Araçazal, como parte das atividades preparatórias para a produção de unidades de
estudo, em que se articulam o ensino de Inglês com o de outras disciplinas, visando beneficiar alunos
O subprojeto Letras – Inglês do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação à Docência – PIBID/CAPES/UFOPA,
que tem como objetivo maior contribuir para a formação continuada dos supervisores nele envolvidos e a qualificação
adequada de novas gerações de professores de Inglês da região Oeste do Pará, está sendo desenvolvido em três escolas da
rede pública estadual de ensino da cidade de Santarém desde outubro de 2012. Atualmente, o subprojeto conta com a
participação de quinze bolsistas e cinco voluntários, organizados em três grupos. Cada grupo, por sua vez, é orientado por
um supervisor do quadro das escolas parceiras. O Prof. Dr. Nilton Varela Hitotuzi e a Prof. Esp. Maria Luiza Pimentel são
os coordenadores de área do subprojeto.
5
389
da educação básica, professores e os futuros professores de Inglês engajados no subprojeto pelo
exercício da transdisciplinaridade.
Parenteticamente, o termo transdisciplinaridade foi originalmente criado por Piaget no I Seminário
Internacional sobre pluri e interdisciplinaridade, realizado na Universidade de Nice, também conhecido
como Seminário de Nice, em 1970. A partir daí encetaram-se os estudos transdisciplinares, sendo o
Centre International de Recherches et d`Études transdisciplinaires um dos principais centros mundiais
de estudos transdisciplinares da atualidade. Considerado um dos mais complexos, o conceito de
transdisciplinaridade se refere ao que está ao mesmo tempo entre, através e alémde quaisquer disciplinas,
(NICOLESCU, 2001). A finalidade da transdisciplinaridade é articular os saberes isolados, mediando a
compreensão e procurando uma interação máxima entre as disciplinas, respeitando suas
individualidades e particularidades, em um exercício constante de colaboração para a obtenção de um
saber comum, o mais completo possível, sem transformá-las em uma única disciplina. Ela rompe a
dicotomia entre sujeito e objeto, transcendendo o universo das disciplinas fechadas e permite a
multiplicidade dos modos de aprendizagem dos indivíduos, reafirmando o valor de cada sujeito como
portador e produtor de conhecimento. Nicolescu (2001) concebe a transdisciplinaridade como uma
forma de ser, saber e abordar, atravessando as fronteiras epistemológicas de cada ciência, praticando o
diálogo dos saberes sem perder de vista a diversidade.
Desde o Seminário de Nice, os estudos sobre transdisciplinaridade se avolumaram, exigindo,
portanto, uma compreensão mais ampla acerca do seu papel no mundo contemporâneo. Foi elaborada,
então, a Carta da Transdisciplinaridade, produzida no Convento de Arrábida, Portugal, por ocasião do
Primeiro Congresso Mundial da Transdisciplinaridade, em 1994. Nesse documento, se estabelecem os
―princípios fundamentais da comunidade de espíritos transdisciplinares‖ e se explicita a natureza
crítico-reflexiva e inclusiva dessa comunidade (FREITAS; MORIN; NICOLESCU, 1994, p. 1):
[...] Artigo 3: [...] A transdisciplinaridade não procura o domínio sobre várias outras
disciplinas, mas a abertura de todas elas àquilo que as atravessa e as ultrapassa. [...]
Artigo 5: A visão transdisciplinar é resolutamente aberta na medida em que ela
ultrapassa o campo das ciências exatas devido ao seu diálogo e sua reconciliação não
somente com as ciências humanas, mas também com a arte, a literatura, a poesia e a
experiência espiritual. [...]Artigo 11:[...] A educação transdisciplinar reavalia o
papel da intuição, da imaginação, da sensibilidade e do corpo na transmissão
dos conhecimentos. (FREITAS; MORIN; NICOLESCU, 1994, p. 2-3).
Assim, tão complexa quanto os problemas que tenta solucionar, tem-se a transdisciplinaridade
que, por ser tão sutil, se constitui na linha tênue que une e serve de limite entre o comprometimento e o
individualismo de cada disciplina, que não possui uma definição exata, e ao mesmo tempo é um dos
mais necessários conceitos quando tratamos de educação crítica e reflexiva e que vise à melhoria da
qualidade de vida das pessoas, como sustentam Rocha Filho, Basso e Borges (2009, p. 94):
390
Uma educação voltada para a vivência de valores pode instrumentalizar o cidadão para
fazer escolhas mais conscientes e responsáveis, baseadas no conhecimento pleno e em
uma ética sustentada em uma perspectiva ampla de mundo, contribuindo para uma
vida melhor para nós e para a comunidade em que estamos inseridos. Uma ação
integrada entre professores que operem transdisciplinarmente é o meio mais eficaz de
atingir estes resultados, pois o exemplo é o ensinamento mais poderoso que alguém
pode dar.
Retomando a experiência na comunidade Araçazal, um dos registros ali realizados envolve a
produção do biju (dialeto local) de tapioca. Derivado da mandioca, o beiju é um alimento tipicamente
regional, produzido de forma artesanal que, além de fazer parte das atividades econômicas daquela
comunidade, também carrega uma herança cultural perpetuada pela sua passagem de uma geração a
outra. Segundo Bosi (1992, p. 309), o termo cultura pode ser entendido como uma ―[...] herança de
valores e objetos, compartilhada por um grupo humano relativamente coeso‖. Wanderley (2010, p. 62)
também ressalta o caráter processual e doméstico da passagem de conhecimentos de uma geração para
outra:
Um aprendizado notável que atravessa os séculos se fixa nos trabalhos domésticos aprendidos
dos familiares, das comunidades, em casa, no trabalho, nas festas, na religião e que se sucedem
de geração por geração. Usualmente, dentro das famílias, o artesanato adquire um status
especial, pelo que exige de dedicação e aprendizado continuo, passado de geração a geração. É
notável a variedade, a criatividade, o conhecimento específico de certos produtos.
A partir desse entendimento, as observações da produção do beiju ganham contornos
diferenciados quando se pressupõe que, para esse aprendizado, seja necessário englobar vários
conhecimentos e habilidades resistentes à passagem do tempo, convergentes e complementares em
diferentes aspectos, partindo do planejamento do plantio da mandioca até a obtenção do produto
final.
9. Os instrumentos usados na coleta de dados
O esquema de coleta e análise de dados, além de estabelecer uma abordagem mais focalizada
sobre determinado problema, sugere procedimentos para a consecução das metas que se desejam
alcançar. Demo (2002) argumenta que o ato de pesquisar gera necessariamente um método de
comunicação, porque é preciso construir, de modo conveniente, a comunicação cabível e adequada e o
conteúdo da comunicação, se a mesma for produtiva. Segundo o autor, quem pesquisa tem o que
comunicar.
Alguns dos instrumentos utilizados para coletar os dados das observações na produção do beiju
de tapioca foram: a) as observações anotadas em diário de campo; b) os registros fotográficos; c) e as
391
gravações em vídeo, que demonstram os procedimentos realizados desde a preparação da massa até a
preparação dos beijus para levá-los ao forno. Outros instrumentos utilizados foram a entrevista através
gravações de áudio/vídeo e questionários para compreender os processos que antecedem à preparação
do beiju, tais como informações relacionadas ao plantio e colheita da mandioca, período, clima, solo,
água, importância cultural e econômica para a comunidade. Os dados coletados através desses
instrumentos estão sendo analisados. E, os resultados parciais das análises já apontam algumas
possibilidades de elaboração de material didático-pedagógico para aplicação nas escolas publicas
parceiras do subprojeto PIBID/Letras-Inglês.
10. Projeções de utilização da experiência no ensino de Inglês
A experiência de observação e registro do processo de produção do beiju está sendo utilizada
pelos bolsistas do Subprojeto PIBID/Letras-Inglês em uma proposta de elaboração e aplicação de
atividades didáticas na escola pública do oeste do Pará. A proposta visa: i) contribuir para o
desenvolvimento de competências e habilidades através da integração de conteúdos de diferentes
disciplinas; ii) propiciar aos educandos momentos de reflexão sobre seu papel transformador de
conhecimentos no processo educativo; e iii) estimular a apropriação de diferentes conhecimentos
dentro e fora do ambiente escolar, de forma integrada. Essa proposta tem como fundamento teórico a
transdisciplinaridade.
Serão, então, elaboradas sequências de atividades, em torno de um objeto concreto e motivador
(a produção do beiju), usado como instrumento facilitador no processo de ensino e aprendizagem,
tendo o Inglês como disciplina mobilizadora, através da qual se estabelecerão pontos comuns com
outras disciplinas. Essa estratégia permitirá a integralidade dos conhecimentos pela cooperação das
disciplinas entre si e pelo entendimento de organização e direcionamento para um pensamento
complexo. Além disso, ela favorecerá a problematização e a delimitação de temas, por uma perspectiva
transdisciplinar, para a construção de novos saberes a partir de conteúdos que se completam,
permitindo que o aluno seja capaz de compreender simultaneamente as diferentes dimensões de
ummesmo objeto. As sequências de atividades serão desenvolvidas levando-se em consideração estas
disciplinas e os tópicos a elas relacionados:

Português: explorar diferentes tipos de textos que envolvam a produção do beiju, tais
como: poemas, textos jornalísticos, receitas, gramática e vocabulário;

Inglês: estrutura gramatical, vocabulário, números e uso do dicionário;
392

História: fazer um levantamento histórico cultural da comunidade e do grau em que
o processo de aprendizagem da produção do beiju influencia o cotidiano dos
comunitários;

Geografia: discutir a localização, vegetação, qualidade do solo, período de plantio e
colheita da mandioca, clima;

Matemática: usar números, valores, proporções, medidas, formas geométrica, frações
no estudo da economia da comunidade;

Ciências da Natureza: explorar aspectos ecológicos relacionados ao solo e à água;

Estudos Amazônicos: ressaltar adversidades da Amazônia e a relação do homem
com o meio.
O intuito da ação é criar uma rede interligada envolvendo essas disciplinas, os conteúdos
específicos e torná-los cooperativos e interativos entre si como partes integrantes de um processo mais
amplo que abranja diferentes conhecimentos a partir de um mesmo objeto de estudo, gerando
condições de aperfeiçoar os conhecimentos e a percepção como um meio de exercitar o pensar, o
construir, o desconstruir e o reconstruir para motivação dos alunos, a fim de que possam acreditar em
seu potencial transformador, crítico, político e reflexivo; e sejam flexíveis a mudanças.
11. A escolha do objeto motivador
A escolha da produção do beiju como objeto de observação se deu em função da busca de
dados que partam da realidade de um determinado grupo e que tenham relação e influência em seus
processos de aprendizagem. Recorrer à cultura local, àquilo que é familiar ao aluno, é uma estratégia
também defendida nos PCN:
[a] ausência de conhecimento de mundo pode apresentar grande dificuldade no engajamento
discursivo, principalmente se não dominar o conhecimento sistêmico na interação oral ou
escrita na qual estiver envolvido. Por exemplo, a dificuldade para entender a fala de alguém
sobre um assunto que desconheça pode ser maior se o aluno tiver problemas com o
vocabulário usado e/ou com a sintaxe. Por outro lado, essa dificuldade será diminuída se o
assunto já for do conhecimento do aluno. Além disso, não é comum [o aluno] vincular-se a
práticas interacionais orais e escritas que não sejam significativas e motivadoras para o
engajamento discursivo. (BRASIL, 1998, p.24).
Com efeito, o objeto motivador, sendo um produto de uma realidade concreta permite a sua
manipulação e faz com que o aluno veja, compreenda e interaja. Ele poderá fazer uso de habilidades
393
adquiridas nas disciplinas envolvidas na sequência de atividades sem, entretanto, sentir-se coagido a
fazê-lo, mas como uma necessidade intelectual para compreender o desenvolvimento do processo.
Como não existe limite inerente ou intrínseco ao objeto de estudo, considerando as diversas
possibilidades que podem ser exploradas, os resultados que podem ser obtidos são infinitos, fazendo
com que o aluno perceba quais dados são necessários para se chegar à compreensão do objeto como
um todo (GIL, 2003, p. 122); e que o professor tenha a sensibilidade de contextualizar e canalizar os
estudos para o fomento de um ambiente onde sejam valorizados os conhecimentos relacionados aos
temas e conteúdos envolvidos, que os alunos trazem consigo, e potencializada a construção de novos
saberes, alcançando o objetivo da atividade e estimulando a superação dos resultados esperados.
12. Os resultados esperados e algumas considerações finais
Uma vez desenvolvidas e aplicadas as sequências de atividades, esperamos que os alunos
participantes da experiência reflitam sobre a sua própria realidade, problematizem e busquem soluções
para os problemas que se apresentarem a partir do objeto motivador, seja na arena do ambiente escolar,
seja no contexto de suas práticas sociais fora da escola; e que sejam ajudados a compreender o mundo
circunstante, a fim de que possam contribuir positivamente para o seu autoaprendizado como sujeitos
autônomos, críticos e agentes, produtores do seu próprio conhecimento.
A proposta em construção se apresenta como um mecanismo de combate a elementos que
geram as circunstâncias difíceis em que se dá o ensino e a aprendizagem de Língua Estrangeira/Inglês
na região oeste do Pará e em outras partes do país: i) a falta de materiais adequados; ii) turmas
excessivamente numerosas; iii) número reduzido de aulas por semana; iv) tempo insuficiente dedicado à
matéria no currículo; e v) a ausência ou incipiência de ações formativas contínuas, direcionadas ao
corpo docente (BRASIL, 1998; HITOTUZI, 2013).
Por fim, a implementação de sequências de atividades com material didático centrado da
produção do beiju como objeto motivador, poderá evidenciar possíveis lacunas que apontem para a
necessidade de buscarmos outros elementos que possam colaborar com o processo educacional na
região oeste do Pará e motivar os acadêmicos pesquisadores a aprofundar suas investigações, visando
novas alternativas para estimular o aluno da educação básica pública a se envolver no processo de
educação integral proporcionado pela transdisciplinaridade.
REFERÊNCIAS:
BOSI, Alfredo. Dialética da colonização. 3. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.
394
BRANDÃO, Carlos Rodrigues, Pesquisa participante. São Paulo: Brasiliense, 1981.
BRASIL. Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros curriculares nacionais: terceiro e quarto ciclos do
ensino fundamental: língua estrangeira. Brasília: MEC/SEF, 1998.
DEMO, Pedro. Complexidade e Aprendizagem: A dinâmica não linear do conhecimento.São Paulo : Atlas. 2002.
FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Paz e Terra,
1998.
FREITAS, Lima de; MORIN, Edgar; NICOLESCU, Basarab. Carta da transdisciplinaridade. In: Primeiro
Congresso Mundial de Transdisciplinaridade. Convento de Arrábiada, Portugal, 2-6 nov. 1994.
GIL, Antonio Carlos. Como Elaborar Projetos de Pesquisa. - 4. ed. – São Paulo: Atlas, 2007.
HITOTUZI, Nilton. ―Falta tempo!‖ – o que revela essa expressão acerca das políticas públicas para a
educação continuada de professores da educação básica? In: IV Congresso Internacional de Estudos
Linguísticos e Literários na Amazônia, 2013, Belém. Anais... Belém: UFPA, 2013. No prelo.
NICOLESCU, Basarab. O Manifesto da Transdisciplinaridade. São Paulo: Triom, 2001.
ROCHA FILHO, João Bernardes da; BASSO, Nara Regina de Souza; BORGES, Regina Maria Rabello.
Transdisciplinaridade: a natureza íntima da educação científica. 2. ed. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2009.
WANDERLEY, Luiz Eduardo W. Educação popular: metamorfose e veredas. São Paulo: Cortez, 2010.
395
GUAMÁ: BILINGÜE PESQUISA, EXTENSIÓN Y ENSEÑANZA DE
ESPAÑOL A TRAVÉS DE ANALOGÍAS PARA ALUMNOS EN RIESGO
SOCIAL
Rita de CássiaPaiva1
Anna MargridaMendes Leal2
Resumen: Lametodología de enseñanza de LE está aún restringida a las metodologías comunicativa y,
más recientemente, a la enseñanza por tareas. Sin embrago, otra alternativa puede ser considerada en el
ámbito de enseñanza para propósitos específicos como por ejemplo, un proyecto de extensión con
contorno social.En 2009 en la UFPA –Universidad Federal de Pará–, fue desarrollado el proyecto
Guamá Bilingüe en Diez Años a partir del PAPIM –Programa de Apoyo a Proyectos de Intervenciones
Metodológicas– que busca incentivar y apoyar el desarrollo de actividades y experimentos que
acrescente métodos y técnicas innovadoras y eficaces en el proceso de enseñanza y aprendizaje. Este
programa es auspiciado por la Pro-Rectoría de Enseñanza y Graduación (PROEG) que selecciona en
todos los 11 (once) campi de la UFPA los proyectos que puedan abarcar mayor interacción entre la
universidad, enseñanza y apoyo social. Por tratarse en su escoplo de intervención metodológica
diferenciada, se inició una pesquisa para desarrollar un material didáctico que abarcara, además de las
cuatro destrezas, temas e enfoque que llevaran al aprendizaje significativo, propuesta de David Ausubel
que, compartiendo marco teórico con Liev Vygotsky, permitió la elaboración de un material único,
direccionado a un público muy específico: adolescentes de 15 a 18 años en riesgo social de dos escuelas
públicas del barrio del Guamá, Belem, PA, Brasil. El Guamá Bilingüe se lleva a cabo desde el 2010 y fue
aceptado como proyecto de extensión por la FALEM –Faculdade de Letras Estrangeiras Modernas–de
la UFPA a partir del 2011.
Palabras-clave: Guamá Bilingüe, Proyecto de Extensión, Aprendizaje significativo
Abstract: The teaching methodology to Spanish as foreign language is still restricted to the
communicative approach and more recently to teaching by tasks. However, other alternative in the
1
UFPA – [email protected]
UFPA – [email protected]
2
396
scope of teaching for specific proposes, as for example, in an extension project in a social perspective.
In 2009 at UFPA– Federal University of Para State – it had been developed the Project named
GuamaBilingue in Ten Years supported by PAPIM3 a program that supports projects of
methodological interventionsthat intents to sustain and encourage activities and experiments which may
add renewing and efficient methods an technics in the teaching and learning processes. This program is
maintained by PROEG4– Pro-rectory of Learning and Under Graduation that selects among the 11
campuses of UFPA the projects that could reach most interaction between learning and social support.
Because of its different methodological intervention, a research had been started in order to develop a
didactical material which englobe more than the four skills but themes and approach that could lead to
the significative learning, proposed by David Ausubel, as well as sharing the theoretical frame
withLievVygotsky. By this perspective, it was elaborated a unique material, aiming a very specific
public: adolescents from 15 to 18 years old who are in social risk from two public high schools from
Guamá zone in Belém, Para state, Brazil. ProjectGuamáBilingueexists since 2010 and one year later was
accepted as an extension project by FALEM5 – Faculty of Foreign Languages – of UFPA.
Key words: GuamáBilingue, Extension Project, Significative Learning
Introducción
Existe una percepción en el ámbito de proyectos y/o servicio social que debido a que estemos
incorporados en una sociedad concreta, bajo la hegemonía del capitalismo, el campo popular está
plagado por valores y concepciones de la ideología dominante (SILVA, 2011:171). Sin embargo, se vive
en una época en que el consumo prevalece sobre los valores sociomorales en todos los estratos sociales
(MILLER,2007:34). Alumnos de escuelas ubicadas en regiones menos favorecidas buscan ostentar
ropas y celulares de moda, con alta tecnología, aunque la conectividad en la región Norte no sea estable
yfácilmente accesible. Todavía, la educación no entra en el espectro del deseo de adquisición. Menos
aún se aspira aprender/construir valores como respeto y honestidad, conello, se ve que hay una falla
justamente en la educación sila sociedad mantiene en el consumo su lastro y objetivo (MILLER,
2007:35).
A partir de esa premisa y porque la Universidad Federal de Pará –UFPA– es la más grande
institución de enseñanza en la pan amazonia,se percibe la necesidad de aportar a la comunidad en la que
está insertada UFPA proyectos de extensión ya que la Universidad se apoya en el trípode enseñanza,
pesquisa y extensión en el ámbito académico.
3
Programa de Apoio a Projetos de Intervenções Metodológicas in Portuguese
Pro-Reitoria de Ensino e Graduação in Portuguese
5
Faculdade de Letras Estrangeiras Modernas in Portuguese.
4
397
De este modo, para atender las demandas de subsidios para proyectos extensionistas, fue
lanzado en 2009, a través de la Pro-Rectoría de Enseñanza y Graduación (PROEG), el PAPIM –
Programa de Apoyo a Proyectos de Intervenciones Metodológicas que pasa a vigorar desde el 2010.
Dicho programa busca incentivar y apoyar el desarrollo de actividades y experimentos que acrescenten
métodos y técnicas innovadoras y eficaces en el proceso de enseñanza y aprendizaje. En su orientación
se busca en todos los 11 campus de la UFPA los proyectos que puedan alcanzar mayor interacción entre
enseñanza y soporte social.
A partir de ahí, fue desarrollado el proyecto Guamá Bilingüe iniciado ya en 2010 e incluido en
2011 como proyecto de extensión de la FALEM –Faculdade de Letras Estrangeiras Modernas– de
aquella universidad. El proyecto Guamá Bilingüe,que ya está en su cuarto año de existencia, es una
propuesta educacional centrada en una metodología diferenciada específicamente diseñada para
alumnos de enseñanza media entre 15 a 18 años en riesgo social de escuelas públicas del barrio Guamá,
Belém/PA.
Conforme explican Paiva & Leal (2011:168), en el texto del proyecto está dicho que:
Este barrio es, reconocidamente, uno de los más violentos de esta capital debido a las
desigualdades sociales y a los parcos recursos en él invertidos por los sectores públicos
y privados para la mitigación de esta situación.
Siendo la UFPA una institución pública con una fuerte inclinación social en sus
diversos cursos, está inserta en una relación de amensalismo con su entorno que le
impide alcanzar su plenitud académica.
Partiendo de esa premisa, creemos que la educación –como agente transformador–
puede iniciar un ciclo de cambios positivos que culminen en una relación más
productiva para ambos, a saber, UFPA y barrio del Guamá.(Paiva & Leal, 2011:168)
Las mismas autoras también informan que al tratarse de valores en educación para este público
específico, es decir, jóvenes en riesgo social, diversos cuidados fueron tomados, desde la sumisión
misma dela propuesta del proyecto hasta la elección de textos y montaje de los materiales(Paiva & Leal,
2011:167).
El desarrollo del material, con textos alternando temas culturales y sociales –que afectan
directamente la vida de jóvenes en barrios periféricos– se hizo posible usando estrategias de la
lingüística cognitiva así como el uso de analogías para comprensión del nuevo código lingüístico que se
está sobreponiendo al suyo propio. Esto porque ambos idiomas, según investigación de Almeida Neto
(apud NETA, 2004)afirma que ―entre las lenguas románicas, el portugués y el español son las que mantienen mayor
afinidad entre sí‖ se construyen en una base del 85% de semejanza.
Para validar el uso de analogías, se consideró que los procesos mentales para la adquisición de
una lengua extranjera pasan también por el raciocinio analógico. Méier (apud Paiva e Leal, 2011:166)
ilustra que:
398
La adquisición de otra lengua implica la instalación de un nuevo código lingüístico, un
nuevo sistema de codificación y decodificación, independiente del sistema utilizado
hasta entonces. Podemos imaginar que esos dos sistemas se desarrollen o
independientemente uno del otro, si la realidad cubierta por los significados es
diferente, o en superposición, si los significados son interpretados sucesivamente en
las dos lenguas.(MÉIER apud Paiva e Leal, 2011:166)
También fueron utilizados los principios de modelado mental de Lawson&Lawson así como las
teorías del aprendizaje significativo de David Ausubel como base teórica para construcción de dicho
material. Esto porque de nada sirve entregar a los alumnos un material que no tenga conexión y/o
referencia a su realidad, a su contexto, a su entorno. El público del proyecto necesita un material que les
conduzca al aprendizaje significativo, para que haya construcción de conocimiento y formación
ciudadana. En otras palabras, el aprendizaje significativo que se propone va a ocurrir cuando la nueva
información se ancle en conceptos relevantes prexistentes en la estructura cognitiva de quien aprende:
[…] la nueva información interactúa con una estructura de conocimiento específico a
la cual Ausubel define como conceptos subsunsores (subsumers), existentes en la
estructura cognitiva del individuo. El aprendizaje significativo ocurre cuando la nueva
información se ancla en conceptos relevantes prexistentes en la estructura cognitiva
del que aprende. (MOREIRA& MANSINI, 1982)
Fue considerado también, en la selección de textos, el punto de vista de Mondoñedo (2008:9)
para que más que una variación lingüística fuera presentada a los alumnos:
[...] el ejercicio normativo no es una praxis para conocer, buscar y comunicar la
verdad, no es un ejercicio científico, sino una acción desarrollada para ocultar la
heterogeneidad y la riqueza de la expresión verbal, una estrategia de la ilusión con
explícitas finalidades de control; en otras palabras, es un instrumento
ideológicoMondoñedo (2008:9).
Además, por tener solamente 96horas/clase, el proyecto contempla los contenidos del nivel A2
del Marco Común Europeo de Referencia. Así, al salir del proyecto, los alumnos tienen un certificado
emitido por la UFPA que atesta su competencia lingüística en aquel nivel y porcentaje de frecuencia en
el curso.
Escoplo del proyecto y material desarrollado
Hay un prejuicio social de origen (Cardoso de Oliveira, 2006) muy marcado en los sistemas
sociales que recibenlos alumnos de las escuelas públicas, especialmente aquellos originarios de escuelas
que está en un entorno de violencia. Mismo dentro de la UFPA donde la recepción de alumnos de
clases menos favorecidas lleva, por ejemplo, a laexistencia de programas de permanencia que subsidian
habitación, desplazamientoy/u alimentación. Sin embargo, cuando se ve adolescentes sin camisa,
sobretodo en bicicleta, queriendo entrar en el campus, generalmente se pide identificación a fin de
evitar que la violencia que está extramuros llegue a las facultades.
399
Debido a los estereotipos y al prejuicio de origen, se pode vislumbrar que un alumno de la
enseñanza secundaria del barrio Guamá será visto como un ―posible bandido‖ se esté, por ejemplo,
simplemente andando en bicicleta sin camisa a camino de las clases de español a las 17 horas. Si
observado de una perspectiva antropológica, el sujeto en cuestión es fruto del Guamá, pasible de ser
interpelado por la policía por su aspecto y por los datos relativos a la notoria violencia del barrio y de
los robos perpetrados por chicos en bicicleta.
En el ámbito de las perspectivas de jóvenes como estos, vale la pena considerar los datos del
Instituto de Co-Responsabilidade pela Educação para alumnos originarios de las escuelas públicas de Brasil,
presentados en la XXII REUNIÃO ANUAL DO FAUBAI, São Paulo/2010:
1. Alta tasa de fracaso y de abandono escolar.
2. 13 años para cumplir el ciclo fundamental de 9 años.
3. 17 años para cumplir el ciclo básico de 12 años.
4. Sólo el 15% de los alumnos concluyen la enseñanza fundamental con edad correcta
(14 años).
5. Sólo el 40% de los jóvenes brasileños concluyen la secundaria.
6. El 50% de los alumnos del 5º curso son analfabetos.
7. Los alumnos concluyen el 9º curso con nivel de conocimientos del 5º curso.
8. Los alumnos concluyen la secundaria con nivel de conocimientos del 9º curso.
9. El 70% de la población brasileña es analfabeta funcional.
10. El 80% de la población brasileña no consigue calcular un porcentaje.
(MAGALHÃES, 2010)
El objetivo del proyecto, conforme encontrado en el sitio web es, reduzir a violênciae opreconceito
social através da educação. También se puede considerar el deseo de producir literacidad crítica, usando la
enseñanza de español como instrumento para tanto. Eso porque que la educación –como agente
transformador, puede iniciar un ciclo de cambios positivos que culminen en una relación más
productiva tanto para la universidad cuanto para los alumnos, objeto del proyecto.
En el afán de alcanzar objetivos como (1) alejar los alumnos de las calles durante el horario del
fin de tarde porque es cuando diversos crímenes son cometidos por jóvenes, (2) llevar los alumnos para
las aulas de una universidad para que ellos entiendan que tienen el derecho de estar ahíy que la
educación superior puede también ser para ellos, (3) brindarles el curso de español ya que en sus
escuelas –a pesar de la Ley 11.161/2005– esta disciplina no es ofertada, (4) ofrecer a los estudiantes del
curso de Letras Español un proyecto de extensión que, conforme el PP FALEM (2010:5)
prevêatividadesvoltadas para a práticaprofissionalcapazes de proporcionar ao futuro professorumavivência real de diferentes
situações de trabalho. Essa faceta do projeto está expressa principalmente navariedade de ações extensionistas e de
atividades de naturezaprática que poderão ser desenvolvidas durante o curso y (5) permitir mayor integración con la
comunidad alrededor de la UFPA, el desarrollo de los materiales didácticos tuvo que ser, además de
efectivo, atrayente. Por ello, fuepreparado por una designer, co-autora de este trabajo, solamente en
blanco y negro y sin derecho de autor.
400
Cada una de las unidades fue desarrolladapara tener sólo cuatro páginas y están comprendidas
en un texto con diez preguntas de comprensión; una sección para discusión visando a la fluidez
lingüística y participación individual de cada alumno denominada ―Hablar por los codos‖ en la que los
alumnos tienen que hablar y expresar sus pensamientos y percepciones sobre cada tema presentado;
una sesión de gramática con ejercicios llamadas ―¡Atar cabos!‖ y ―Poniendo las manos en la masa‖
respectivamente; ―¡Fíjate‖! con un complemento cultural o social y terminando con ―Recordar‖. Como
ejemplo del material, se ve a continuación la primera Unidad Didáctica:
Figura 3: Textos principales
Figura 4: Comprensión de texto y conversación
401
Figura 3: Gramática y ejercicios
Figura 4: Texto de apoyo y ―Recordar‖
Ha sido necesario un cuidado especial con el léxico y cada texto principal alternaba, por unidad
didáctica,temas de la realidad a que estaban sometidos los alumnos –alcoholismo y violencia doméstica,
por ejemplo, con informaciones culturales –personajes como El Cid, Joaquín Murieta, Mercedes Sosa o
lugares como la Patagonia. Ya en el aspecto gramatical, las explicaciones trataron de hacer un paralelo
con el conocimiento de la lengua materna que ellos ya habían estudiado justamente para validar la
cuestión metodológica del aprendizaje significativo. Con ello, no fue de hecho una sorpresa la
descubierta que el 60% de los alumnos (de cada grupo) no tenían siquiera el conocimiento básico de
conjugación adecuada de los verbos en portugués. Hay que notarse que ese hueco gramatical no era
cobrado estructuralmente, sino en el contexto de la unidad. Así que, al fin y al cabo, muchos alumnos
aprendieron en español lo que no habían aprendido en portugués.
Vale resaltar que, cuando eran abordados temas que escapaban a su cotidiano, siempre había
discusiones o cuestionamientos por los becarios que condujeran los alumnos a expresar su opinión y
apuntalarles su camino a un mejor porvenir siempre interactuando en idioma español. Además, el
material también busca presentar distintos aspectos culturales y lingüísticos, alternando el origen y
temas de los textos para trabajar las múltiples variantes del idioma. Así, la realidad docente también es
afrontada en este proyecto de extensión que les permite a los becarios actuar como profesores y
resolver problemas/dudas que surgen naturalmente en aulas de clase. A continuación, un ejemplo de
este aspecto del material:
402
Figura 5: Corrida de toros
Figura 6: Tinkú
A guisa de conclusión
Es demasiada ilusión creer que los alumnos del Guamá Bilingüe sean eximios hablantes de
español o mismo lectores ávidos de este idioma. Sin embargo, lo que ha sido percibido en estos cuatro
años de existencia es que, al concluir el proyecto, los alumnos ya no son tan alienados a su realidad
como cuando entraron.Además de enseñar español, el uso de analogías está convirtiéndose en un
instrumento de cambio personal y educacional.De este modo, la inserción de analogías en una
metodología de enseñanza de español para alumnos del Guamá Bilingüe hace con que el conocimiento
a ser aprendido pueda sobreponerse al que ya se encuentra allí en términos de idioma y, al mismo
tiempo, termina por transformar esta misma enseñanza en una poderosa herramienta de cam

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