A Conservação do Patrimônio no Brasil - Teoria e Prática

Transcrição

A Conservação do Patrimônio no Brasil - Teoria e Prática
A Conservação do
Patrimônio no Brasil
Teoria e Prática
Orgaização:
Silvio Zancheti
Gabriela Azevedo
Carolina Moura
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1
Seminário
da Rede
Organizadores
Silvio Mendes Zancheti
Gabriela Magalhães Azevêdo
Carolina Moura Neves
A CONSERVAÇÃO DO PATRIMÔNIO NO BRASIL
TEORIA E PRÁTICA
1º Seminário da Rede Conservação_BR
Centro de Estudos Avançados da Conservação Integrada – CECI
Olinda 2015
Capa
Carolina Moura Neves
Projeto Gráfico
Gabriela Magalhães Azevêdo
Todos os direitos reservados
Centro de Estudos Avançados da Conservação Integrada
Praça do Carmo, n. 5, apt. 6. – Bairro do Carmo
53120-000 Olinda PE Brasil
Fone: 3439 3445
http://www.ceci-br.org
[email protected]
A Conservação do Patrimônio no Brasil: teoria e prática.
Organizado por Silvio Mendes Zancheti, Gabriela Magalhães
Azevêdo e Carolina Moura Neves / Olinda: Centro de Estudos da
Conservação Integrada, 2015.
223 p.:il.
Inclui bibliografia.
ISBN 978-85-98747-21-7
1. Conservação. 2. Memória. 3. Paisagem.
4. Instrumentos.
A CONSERVAÇÃO DO PATRIMÔNIO NO BRASIL: TEORIA E PRÁTICA
1º SEMINÁRIO DA REDE CONSERVAÇÃO _ BR
12 a 13 de Novembro de 2012
Auditório do Hotel 7 Colinas
Ladeira de São Francisco, Carmo.
Olinda – Pernambuco – Brasil
ORGANIZAÇÃO
Rede Conservação_BR
COMITÊ CIENTÍFICO
Alex Oliveira de Souza (UEMA)
Centro de Estudos Avançados da Conservação
Integrada (Ceci)
Ana Carmen Jara Casco (IPHAN)
Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento
Urbano da UFPE (MDU)
Cecília Ribeiro (UFPE e Ceci)
Curso de Mestrado em Ambiente Construído e
Patrimônio Sustentável
Cêça Guimaraens (UFRJ)
Elio Trussiani (La Sapienza, Itália)
Flaviana Lira (UNB)
Flavio Carsalade (UFMG)
Leonardo Castriota (UFMG)
COMITÊ DE ORGANIZAÇÃO
Lúcia Hidaka (UFAL)
Flávio Carsalade (UFMG)
Marluce Wall Venâncio (UEMA)
Silvio Zancheti (Ceci e UFPE)
Natália Vieira (UFRN)
Virgínia Pontual (Ceci e UFPE)
Norma Lacerda (UFPE e Ceci)
Paula Maciel (UNICAP)
Renata Cabral (USP, São Carlos, Ceci)
SECRETARIA EXECUTIVA
Rosane Piccolo Loretto (Ceci)
Raquel Bertuzzi (Ceci)
Silvio Mendes Zancheti (UFPE e Ceci)
Gabriela Azevêdo (Ceci)
Tomás Lapa (MDU e Ceci)
Carolina Moura Neves (Ceci)
Virgínia Pontual (UFPE e Ceci)
Sumário
Apresentação
Os organizadores
03
Parte 3
Patrimônio e paisagem
Texto Abertura
Paisagens urbanas tradicionais
Patrimônio como construção cultural
Letícia Miguel Teixeira
05
124
Flavio Carsalade
A paisagem do Plano Piloto de Brasília a partir de
suas escalas
Parte 1
Gabriela Azevêdo e Carolina Neves
Patrimônio e teoria
Por uma agenda de discussões sobre a
conservação da arquitetura moderna
133
26
Parte 4
Patrimônio e seus instrumentos
Flaviana Lira
Gestão da conservação - restauração do
patrimônio cultural: algumas reflexões sobre
teoria e prática
38
Ozana Hannesch, Elisabete Edelvita da Silva,
Marcus Granato e Ana Paula de Carvalho
A “via crítica” no patrimônio cultural: Uma
perspectiva comparativa
49
CRONIDAS: Proposta de padronização de
representação em mapas de danos
145
Luís Gustavo Costa e Lucas Figueiredo Baisch
Por que os mestres escutam as pedras? Uma
investigação sobre a trajetória profissional do
trabalhador da construção civil que atua na
restauração de imóveis
157
Régis Martins e Antônio de Pádua Tomasi
Leonardo Castriota
Parte 2
Utilização da conservação patrimonial material
como instrumento de inclusão social: Avaliação
do programa Escuelas Taller no Nordeste do
Brasil
Patrimônio e memória
167
Karla Nunes Penna e Elisabeth Taylor
Ayrton Carvalho e a disseminação do campo da
conservação no Brasil
65
Delitos contra o patrimônio cultural:
Insuficiências normativas brasileiras e espanholas
Juliana Melo Pernambuco
181
Anauene Dias Soares
O papel da memória na conservação sustentável
do patrimônio: O Cine Bandeirante em
Sabará/MG
76
Identificação patrimonial e instrumentos de
inventário aplicados às edificações históricas de
Espírito Santo do Pinhal/SP
Fabiana De Lucca Munaier e Felipe Munaier
193
Camila Corsi Ferreira
Memória e estruturação do espaço nas colônias
italianas no Rio Grande do Sul. Estudo críticocomparativo entre Bento Gonçalves/RS e as terras
de origem
87
Pelas cidades: Jornadas de planejamento
municipal pela proteção da memória e do
patrimônio cultural dos municípios
Décio Rigatti, Lívia Piccinini e Elio Trusiani
A forma segue a função? Uma contribuição ao
estado atual da arte da conservação patrimonial
no Brasil a partir de dois estudos de caso: o
Touring Club e o Brasília Palace Hotel
Ana Elisabete Medeiros e Oscar Luís Ferreira
205
Fábio José Martins de Lima
108
Texto de Encerramento
Plano de gestão da conservação para edificações
de valor cultural
Jorge Tinoco
218
APRESENTAÇÃO
Esse livro reúne os trabalhos selecionados e apresentados no seminário A
conservação do patrimônio no Brasil: teoria e prática realizado entre os dias 12 a 13
de novembro de 2012, no centro histórico da cidade de Olinda, Pernambuco.
Foram publicados trabalhos escolhidos, por uma avaliação criteriosa, entre um
conjunto de mais de uma centena de propostas apresentadas à comissão
editorial do seminário.
O conjunto de artigos reflete a maturidade alcançada pela pesquisa sobre
a conservação patrimonial no meio acadêmico e profissional do Brasil. Muitos e
diversos temas estão contemplados com profundidade e rigor científico. Podese afirmar, sem desprezar contribuições importantes que, até os anos 1990, a
produção sobre a conservação patrimonial reunia, basicamente, relatos de
aplicações práticas de ações de restauro ou estudos preliminares, quase sempre
históricos, sobre as obras que receberiam essas intervenções. Pouco se discutia
sobre teoria, métodos ou abordagens de intervenção em objetos patrimoniais.
Os trabalhos reunidos nesses anais são uma prova cabal dessa afirmação.
Forão tratados temas teóricos e práticos da conservação patrimonial, nos seus
mais variados aspectos, com uma diversidade e profundidade notável para um
campo de pesquisa e discussão teórica tão recente em nosso país.
Todos os textos apresentam ideias originais, inéditas e elaboradas com
critérios científicos consagrados. Comentar os trabalhos apresentados seria uma
tarefa exaustiva e redundante, já que foram publicados com resumos bem
elaborados que facilitam a consulta do leitor.
O objetivo principal do seminário foi fornecer uma panorâmica sobre o
estado da arte da pesquisa da conservação do patrimônio cultural no nosso
país. Também, e não menos importante, foi iniciar um diálogo estruturado e
sistemático entre pesquisadores e suas equipes, para a formação de uma rede
colaborativa de pesquisa.
O tempo decorrido entre a publicação do livro e o seminário não
arrefeceu o interesse nos temas tratados no evento. Logo após o seminário os
3
artigos apresentados no evento foram disponibilizados na página da web do
Centro de Estudos Avançados da Conservação Integrada (Ceci) e, até o
momento da publicação desse volume (junho de 2015), havido sido realizados
mais 29.000 downloads dos artigos.
A formação da rede foi um desafio insuperável pelo Ceci. As redes
científicas requerem recursos econômicos, institucionais e humanos que
ultrapassam, em muito, as capacidades de organismos como o Ceci para
assumir a liderança necessária para a sua consolidação. Assim, mesmo não
podendo continuar a proposta da rede, o Ceci publica o livro esperando que
com isso a rede possa ser assumida e desenvolvida por outras instituições ou
indivíduos.
Os organizadores do seminário e da publicação querem expressar
gratidão a todos os colegas pesquisadores e administradores do Ceci que
colaboraram na realização do seminário e da publicação. Sem o esforço e
abnegação deles esses produtos não existiriam. Também, querem agradecer a
colaboração dos membros do Comitê Científico do seminário pelo excelente
trabalho de análise e seleção dos textos. Querem ainda estender os seus
agradecimentos aos dois grandes conservadores do patrimônio no Brasil que
realizaram as conferências de abertura e encerramento do seminário: Professor
Flavio Carsalade e o Arquiteto Jorge de Lucena Tinoco.
Olinda, junho de 2015
Silvio Mendes Zancheti
Gabriela Magalhães Azevêdo
Carolina Moura da Fonseca Neves
Organizadores
4
PATRIMÔNIO COMO CONSTRUÇÃO CULTURAL1
Flavio de Lemos Carsalade
Resumo
O artigo examina a pertinência dos fundamentos da teoria da
preservação vigentes nas áreas da cultura (estabilidade cultural), história
(objetivismo histórico) e artes (imanência da arte) visando discutir sua
validade no campo da preservação e restauro do patrimônio construído.
A partir dessa análise, o autor discute o que efetivamente se preserva e
restaura em arquitetura, indicando a necessidade de uma abordagem
própria para este campo, a partir da contribuição da hermenêutica e do
reconhecimento da intersubjetividade.
Palavras-Chave: patrimônio cultural, patrimônio histórico, patrimônio
artístico
Introdução
A noção de Patrimônio Cultural contemporânea é muito mais ampla do que
aquela que se fazia há poucas décadas atrás, quando ela se estabelecia apenas sobre os
pilares da história e da arte, sendo que a excepcionalidade artística ainda tutelava o
reconhecimento histórico. Os tempos mudaram, mas as raízes de formação do
pensamento patrimonial ainda definem com bastante intensidade o tratamento que é
dado aos bens patrimoniais. A abordagem que se pretende fazer aqui é antes uma
maneira de investigar as diversas faces do conceito de patrimônio e as conseqüências
que elas têm nas estratégias de preservação, evitando-se mascara-las como se houvesse
uma unidade de pensamento supostamente estabelecida pelas “cartas internacionais”
ou que certas tensões, como por exemplo, a opção entre instância estética ou instância
histórica já tivessem sido superadas pela história do restauro.
1. Princípios de preservação/ restauração
A consolidação moderna de uma consistente “teoria da restauração” foi
realizada pelo italiano Cesare Brandi (1906-1988), a partir das contribuições sobre o
tema que já vinham sendo debatidas na Europa desde o século XIX. A sua teoria se
estabeleceu sobre os dois pilares acima citados, a história e a arte, levando-o a discorrer
sobre uma instância histórica e uma instância artística aplicáveis aos objetos a serem
restaurados. Dois conceitos fundamentais para o entendimento contemporâneo do
patrimônio – a cultura e a memória - não foram explorados, mas apesar disso, a prática
contemporânea aplica a teoria brandiana indiscriminadamente aos bens a serem
Artigo publicado em Cadernos de Estudos do PEP V. 9 (Contribuição dos Palestrantes da 8a Oficina do
PEP, Petrópolis 2008). Edição IPHAN 2009, ISBN 978-85-7334-126-3
 UFMG. [email protected]
1
5
preservados, desconhecendo que toda ela foi estabelecida apenas com relação às obras
de arte, hoje apenas uma parcela de nosso vasto patrimônio.
Além disso, a separação entre uma instância histórica (na maior parte das vezes
relacionada à matéria) e artística (na teoria brandiana associada à imagem) possibilita
também uma separação entre imagem e matéria, a qual muitas vezes aponta para uma
atitude simplista que reduz o trabalho de restauro a uma mera adaptação da matéria à
obra de arte em sua exigência formal, desconhecendo envolventes da memória e da
cultura.
A partir dessas distinções – instância histórica e instância artística, imagem e
matéria - de certa maneira, o processo histórico de abordagem do patrimônio e seu
restauro têm se estabelecido a partir de três crenças principais, as quais procuraremos
analisar aqui e que são: o objetivismo histórico (a matéria como prova inequívoca do
passado), a imanência da arte (a imagem dotada de uma aura única e reveladora,
imutável) e a estabilidade da cultura (a identidade e os costumes como padrões
imutáveis caracterizadores de um determinado povo).
1.1. OBJETIVISMO HISTÓRICO
“Vinte e cinco anos depois, tudo pode ser verdade. O
homem está disposto a admitir qualquer coisa desde que
traga a chancela do tempo”. (Carlos Drummond de
Andrade, Fala Amendoeira)
A questão do objetivismo histórico pode ser abordada sob dois ângulos. O
primeiro diz respeito à epistemologia da própria disciplina da História e a segunda
relativa ao par autenticidade/verdade, o qual documentaria inequivocamente a
historiografia.
A) Quanto à história:
Embora a História contemporânea questione a idéia “objetiva” de “verdade histórica”,
ela está tão arraigada no senso comum e na patrimonialidade “agregada” aos objetos
que elas se confundem com a impossível busca de recuperar os fatos passados como
eles realmente aconteceram, contrariando a constatação de que o discurso histórico é
essencialmente dedutivo e as suas explicações são antes “avaliações” que
“demonstrações”. O movimento da década de 70 conhecido como Nova História já
reconhecia alguns pontos epistemológicos importantes:

O acontecimento é singular: o fato histórico só acontece uma vez e não se repete.
Daí decorrem três grandes problemas. Primeiro, a primazia do acontecimento
(não confundir fato histórico com o acontecimento real); segundo, a
parcialidade e a fragmentação dos fatos, privilegiando, como é mais usual, os
indivíduos e as grandes personalidades; terceiro, a redução da História à
narração (o que leva a escolhas não explícitas na narração);
6

É impossível uma reconstrução integral dos fatos exatamente como ocorreram.
Na realidade, a História agrupa fatos em função do método e do historiador, sendo,
portanto, extremamente influenciada pelo momento em que é escrita;

Na outra ponta, as fontes que supostamente “documentariam” objetivamente
os fatos podem ter sido manipuladas pelo poder (documentos “oficiais”) ou pela
opinião (fontes jornalísticas) ou pelo filtro do narrador (indeterminação da
memória);
Constatações como essa levam, é claro, a uma grande suspeição sobre uma
única verdade histórica e, consequentemente, propõe uma revisão de conceitos e
métodos.
B) Quanto á autenticidade
É a materialidade do bem cultural, talvez, que lhe confira um status de História
objetiva, pois se os momentos históricos são recriações, a matéria que sobreviveu ao
tempo é um fato concreto, palpável, um documento, portanto. Uma análise desse
suposto “documento” seria, então, de grande utilidade para a nossa análise. Dois
problemas metodológicos ocorrem com relação aos documentos, nessa abordagem:

Se não há uma neutralidade da história, como se esta fosse a narração da
“verdade” dos acontecimentos, a qual história esse documento se refere? Até
que ponto ele é puro e resultante de uma seleção desinteressada e até onde eles
comprovariam uma determinada versão histórica, a qual, na verdade, atende
às intenções das classes dominantes ou aos recortes próprios de cada
historiador que os colecionou;

Quais os critérios decisivamente científicos que comprovariam a suposta
autenticidade do documento e como se daria a conservação dessa
autenticidade? Nesse caso, ainda que seja verificada a sua idade, não há como
saber se ele espelharia a verdade como ela realmente aconteceu ou se seria uma
versão “fabricada” para provar uma história oficial ou desejada.
Qualquer que seja a sua forma, no entanto, o documento antigo constitui um
acervo patrimonial, posto que é uma herança que vem do passado e tem sua origem
em um tempo que não volta mais. Independentemente de seu valor de “verdade”, ele é
um objeto do passado, com potencial de expressão próprio. Isto não quer dizer, no
entanto, que ele é certamente o documento comprobatório da história e nem que ele é
original de um determinado fato histórico ou de um único momento específico de
criação: ele deve ser absolutamente relativizado como sobrevivente do passado, mas
sem a aura de um inconteste documento de uma História “real”. No entanto, e apesar
disso, a idéia de preservação do documento está muito ligada aos conceitos de
veracidade e autenticidade, sobre os quais repousariam o seu valor documental.
Ambos são conceitos complexos que merecem uma atenção especial.
O conceito de “verdade” é bastante complexo no campo da filosofia e, quando
examinado quanto ao seu compromisso com a idéia de preservação, ele oferece vários
ângulos de exame. No entanto, apesar de toda essa indeterminação quanto ao
7
verdadeiro e ao autêntico, o terror de se preservar uma “mentira” é tão grande na área
patrimonial que vários textos e encontros foram realizados em nome da autenticidade.
Para a Carta de Brasília, o entendimento sobre autenticidade repousa sobre os
conceitos de identidade e herança, reconhecendo que ela não poderia ser abordada
desde um ponto de vista objetivo. Ao reconhecer a mutabilidade do conceito de
autenticidade, a Carta arrisca uma definição:
As diferentes vertentes que integram uma sociedade apresentam leituras
de tempo e espaço diferentes mas igualmente válidas, que devem ser
levadas em conta no momento em que se fizer a avaliação da
autenticidade [...] O significado da palavra autenticidade está
intimamente ligado à idéia de verdade: autêntico é o que é verdadeiro, o
que é dado como certo, sobre o qual não há dúvidas. Os edifícios e lugares
são objetos materiais, portadores de uma mensagem ou de um argumento
cuja validade, no quadro de um contexto social e cultural determinado e
de sua compreensão e aceitação pela comunidade, os converte em
patrimônio. Poderíamos dizer, com base neste princípio, que nos encontramos
diante de um bem autêntico quando há correspondência entre o objeto material e o
seu significado (CARTA DE BRASÍLIA, 1991, grifos nossos).
A própria UNESCO, no seu Operational Guideliness, também se distancia do
conceito de autenticidade como uma suposta “verdade objetiva” e se aproxima do
entendimento de uma autenticidade sócio-cultural. Essa nova abordagem da
autenticidade, é claro, acaba influindo também na idéia de integridade (cuja
recuperação seria teoricamente a meta do restauro), a qual passa a ser relativa aos
valores culturais.
Colocada a questão da verdade e da autenticidade, resta-nos ainda investigar
outras relações entre as duas. Vimos até agora que a autenticidade se ampara sobre
dois fatores, a matéria (se ela é substituída, a autenticidade do objeto é ameaçada) e à
imagem. A estes, Viñas acrescenta outros dois: a idéia que originou o objeto e a sua
função material (especialmente nos bens arquitetônicos). Segundo o autor, esses fatores
acabariam por gerar, na teoria do restauro, quatro concepções sobre supostos estados
autênticos do objeto2: um “estado autêntico como estado original” (ou o que tinha o objeto
quando acabou de ser produzido); um “estado autêntico como estado prístino” (ou seja,
aquele que o objeto deveria ter, ainda que não tenha tido nunca); um “estado autêntico
como estado pretendido pelo autor” (ou seja, como o mais parecido possível como o autor
o queria) e um “estado autêntico como estado atual” (ou seja, a única autenticidade
possível seria aquela maneira como o objeto efetivamente se apresenta a nós). Desses
quatro, Viñas reconhece que a autenticidade não é um fato objetivo, mas que, “de fato,
todos os objetos são autênticos, autênticos pelo fato de existir, tautologicamente
autênticos.” 3
2
3
VIÑAS, 2003, p. 84-86
VIÑAS, 2003, p.93
8
1.2. IMANÊNCIA ARTÍSTICA
“Arte é tudo aquilo que os homens
chamam de arte” (Formaggio)
Sendo a obra de arte considerada a expressão máxima da cultura e o resultado
do gênio criador, a imposição da inteligência e da sensibilidade humana sobre a
matéria informe, é compreensível (embora discutível) que a atividade do restauro se
detivesse sobre a questão da imagem. A preservação e a continuidade de sua expressão
seriam um desafio ao qual não poderiam se furtar os profissionais da área.
Vale a pena, aqui, explorarmos brevemente o conceito de “imagem”. Este já foi
entendido como resultado da nossa ação fisiológica de ver (ela mesma eivada de
conteúdos culturais e existenciais), como representação (seja do ponto de vista
comunicacional da semiologia ou da substituição do ser pela sua designação) como
substituto da representação pela presentificação crítica (como na Fountain de
Duchamp) ou, em Platão, como mimesis (como uma mentira que esconde a verdade) e
ainda, pela fenomenologia, como sendo a forma como o objeto se nos apresenta: como
ele se manifesta e como é por cada um percebido, ligado portanto à sua aparência, a
qual inclui, integradamente, a sua materialidade e seu significado.
Às várias concepções de imagem, ainda se acrescentam outras questões
intrinsecamente ligadas a ela e que nos interessam especialmente quanto à sua
preservação. Primeiramente, vamos examinar a preservação da imagem assentada na
idéia de sua legibilidade. Nesse enfoque, as deteriorações causadas pelo tempo são
aceitas até o ponto em que não interfiram na capacidade da obra exercer a sua
expressão, ou seja, permanecer legível. A partir desse entendimento de legibilidade,
vários são os tratados que definem como sendo a sua recuperação a tarefa precípua do
restaurador, como a Carta do Restauro de 1972 que entende o restauro como “qualquer
intervenção destinada a manter em funcionamento, facilitar a leitura e transmitir
integralmente ao futuro” os objetos patrimoniais.
Para empreender seu raciocínio quanto à legibilidade, Viñas nos lembra que,
em primeiro lugar, que a questão da legibilidade é baseada em códigos e, portanto
depende tanto do que está “escrito” quanto da capacidade de quem vai lê-lo e de seu
conhecimento sobre os códigos ali utilizados e que, em segundo lugar, as lacunas
eventualmente existentes em uma obra de arte necessariamente não a tornam ilegível,
mas propõem uma outra forma de legibilidade, incorporando nessa nova forma
também os acidentes do tempo.
Os dois pontos levantados por Viñas são importantes para o entendimento do
conceito de legibilidade na abordagem que aqui fazemos porque remetem à questão
fenomenológica da relação entre obra e sujeito e reforçam que o procedimento do
restauro na verdade é fruto de decisões pessoais do restaurador e das eleições que ele
faz, privilegiando uma das possíveis leituras do objeto sobre outras. A passagem do
tempo modifica a peça e, na outra ponta, também as condições de leitura do observador presente
são outras. Não há, portanto, como recuperar a totalidade existencial da obra daquele momento
neste novo momento, qualquer intervenção sobre ela privilegia um fator sobre o outro, na sua
construção presente.
9
Esse mesmo raciocínio abre as portas para que suspeitemos também de uma
visão muito determinista do conceito de deterioração. Para nos ajudar a explorar este
aspecto, cabe referência à questão da pátina, a qual é muitas vezes essencial ao
entendimento da passagem histórica do bem e cuja supressão acabaria por lhe retirar
até mesmo sua apreensão de autenticidade. O entendimento, portanto, de deterioro
como “alteração material do bem” não é suficiente, posto que a passagem do tempo, é
claro, imprime suas marcas no objeto e elas não são necessariamente negativas ou
destruidoras. Na verdade, consideramos deterioração aquilo que entendemos como
sendo um valor “negativo” para a peça, novamente mostrando que mesmo uma
questão que, a princípio parece tão centrada no objeto como o deterioro, também
depende do sujeito e das relações intersubjetivas que se estabelecem.
A autenticidade da expressão, outro suposto atributo da “aura” do objeto
artístico, é também buscada muitas vezes no processo de restauro sob diversos
enfoques tais como a congenialidade com o autor e o tempo (“é assim que o autor
queria”), o proto-estado ou estado originário. Sob todas essas formas fica difícil se falar
objetivamente de uma suposta expressão autêntica posto que o tempo passou para a
peça e sobre ela imprimiu suas marcas, as quais não são apenas marcas materiais também autênticas - mas mesmo as da tradição, a qual fez com que a peça se
apresentasse desta ou daquela maneira aos pósteros. Sob esse aspecto, inclusive,
convém lembrar que a raiz da palavra “tradição” (do latim traditio, tradere, trado) é a
base tanto da palavra transmissão quanto da palavra traição, reforçando o fato de que
nem sempre a transmissão é neutra e fiel.
A solução brandiana para o restauro está exposta no seu primeiro axioma, onde
ele define que, na obra de arte, só se restaura a matéria. Ora, para o entendimento
contemporâneo de alguns autores como Bardeschi não faz sentido um entendimento
de restauro centrado na preponderância da imagem e muito menos que só se restaura a
matéria, para ele exatamente o que não se deve restaurar, pois é a única coisa autêntica
remanescente do bem, portanto a única a se manter a salvo de qualquer intervenção.
Outro problema prático do restauro levantado por Brandi e também correlato á
legibilidade trazido pela questão da fragmentação e da lacuna. O conceito de lacuna
apresenta problemas quer do ponto de vista semiológico, da leitura, quer do ponto de
vista da percepção gestáltica, especialmente quanto à extensão lacunar. Sob o primeiro
ponto de vista, a lacuna pode ser de tal ordem que interrompa a compreensão do texto
e, sob o ponto de vista da segunda, ela pode interromper o liame das partes e dificultar
a legibilidade da obra. O conceito de lacuna, no entanto, não é único. Para a
hermenêutica gadameriana, por exemplo, ele não está centrado no objeto, mas na
relação entre ele, o sujeito e a compreensão que este faz daquele, remetendo também ao
intérprete.
1.3. ESTABILIDADE CULTURAL
A visão antropológica contemporânea entende a cultura como sendo uma visão
de mundo que estabelece padrões públicos e determina o destino das nações, uma
consciência coletiva, uma forma de falar sobre identidades coletivas. Na medida em
que ela apresenta esse papel intermediador, a cultura faz parte integrante de nosso ser,
10
da nossa relação com o mundo. Talvez pelo fato de que ela não seja herdada
biologicamente, mas assimilada, sujeita ao vai-e-vem dos processos históricos, ela
apresenta várias características que nos importam nesse momento, tais como um
caráter dinâmico (com várias sub-culturas, abertas, sincréticas, instáveis) e diversos
níveis interdependentes (indivíduo, grupo ou classe, sociedade). Na realidade, os
valores culturais são variáveis e relativos e não predeterminados e eternos e, no seu
desenvolvimento, ela se apresenta como criação e recriação contínuas, muitas vezes à
base de empréstimos e trocas.
As ideias culturais são expressas e comunicadas por meio de símbolos, padrões
explícitos e implícitos, idéias tradicionais com valores vinculados. Como sistema
simbólico, ela é influenciada e influencia as relações sociais, a economia, a arte, a
religião e outras formas do ser humano se manifestar ou se comportar. Tais funções
psicológicas e existenciais fazem com que a cultura nos pareça estável, sob pena de
perdemos nosso próprio eixo, se assim não fosse. No entanto, não é bem assim.
Na medida em que a simbologia muitas vezes se constrói sobre objetos físicos,
no caso das coletividades sobre monumentos ou objetos fortes e presentes, a ilusão da
estabilidade cultural leva a uma errônea imbricação entre objeto e significado, como se
este último fosse imanente àquele. O entendimento de que para garantir o significado
da obra é preciso mantê-la intacta ou como era está claramente centrado no objeto e na
sua imanência própria e, de certa forma, desconhece a relação com o sujeito que, à sua
maneira lhe impões significações pessoais e de grupos que lhes impõem também
outras significações próprias.
A preservação da dimensão simbólica, no entanto apresenta várias particularidades:

Pelo seu caráter sinedóquico, ou seja, do particular representar o todo, faz com
que, de certa maneira, a preservação dependa mais da sobrevivência do bem,
seja de que maneira for, do que da estrita preservação da matéria, como
mostram os exemplos de Ouro Preto e Varsóvia;

Pelo seu caráter difuso, representa conceitos imprecisos (do ponto de vista
descritivo, como identidade, por exemplo) ou excessivamente abrangentes (de
grandes grupos sociais, como nação, por exemplo), os quais, de certa maneira,
também não se associam diretamente às sutilezas e detalhes da forma ou da
matéria;

Pela natureza de sua seleção, remete mais a uma construção idealizada, política
ou econômica do que propriamente a uma conservação intacta (da qual se
aproveitam as estratégias oportunistas de preservação);

Pelo fato de simbolizar vários e diferentes conceitos (valores “altoculturais”, de
identificação grupal, ideológicos e até mesmo sentimentais), também apresenta
diferentes modos e métodos de preservação;

Pela sua estreita ligação com a sociedade e os valores a que serve, os quais muitas
vezes se sobrepõem à sua função original - pois a dimensão simbólica se
11
apresenta como mais importante - causa alterações na forma e na matéria para
se adaptar ao predomínio dessa função4;

Pela maneira como se apresenta, na sua preservação podem se alternar valores e
métodos que se relacionam mais com a sua presença como objeto artístico ou
histórico, ou ainda de maneira magnificada ou reduzida;

Pela flexibilidade inerente à classificação de um objeto como obra de arte, pode
induzir a diferentes decisões sobre sua preservação. Essa flexibilidade, por exemplo,
faz com que alguns objetos sejam considerados como pseudo-artísticos e,
portanto, sem “necessidade” aparente de preservação (como “a pintura banal
de uma igrejinha qualquer”), a qual poderia ser substituída (do ponto de vista
artístico) ou mantida (pelo valor sentimental, ligado à memória);
B) A questão da identidade
É essa mesma esperança de estabilidade, de permanência, que cria a confusão
quanto ao conceito de identidade, entendido como um atributo imutável, associado ao
ser, como o “mesmo”, aquilo que não muda, aquilo que se aproxima do referente. Se
essa concepção for utilizada de maneira rígida, como muitas vezes o é, “identidade”
seria um conceito dominador e evanescente que a todo o momento entraria em choque
com a realidade, esta sempre dinâmica e diversa.
Face à imprecisão de seus contornos, o termo “identidade” tem apresentado
vários entendimentos. Muitas vezes aparece como a tentativa de materialização de um
ente coletivo dotado de coerência e continuidade, uma “objetificação cultural”5, a
construção de um modelo que aparece como um conceito tão ideal que nunca acontece
na prática ou acaba por determinar quais elementos devem ser preservados para
construir este ente. Outras tantas vezes, a identidade aparece como “sentimento de
ser”, ligado a uma suposta autenticidade do grupo. Essas acepções, como não poderia
deixar de ser, acabam sendo utilizadas como plataforma de dominação, usado na
prática para justificar as mais diferentes ações. Sob outro ponto de vista, a identidade
também pode ser entendida pelo seu conceito complementar, a diversidade. Por esse
processo, seria mais operacional reconhecer aquilo que se parece pela contraposição
com o que lhe é diverso, diferente. O que acabaria por levar a um entendimento
mutável de identidade como o “mesmo na recognição” ou uma repetição que se
diferencia6, sempre transformação e criação. É importante, então, que não entendamos
“identidade” como um conceito absoluto, pré-existente e congelado, mas sempre relacional,
calcado na ação presente e na compreensão da sua diversidade e transformação.
D) Quem escolhe o que é patrimônio
Já em 1903, Riegl nos mostrava que, em face dessa relatividade e instabilidade
cultural, a questão do patrimônio se assentava sobe valores. E, nesse caso, como se
Por exemplo, a mudança operada após o período de vandalismo da Revolução Francesa nos palácios que
deixaram de ser residências para se tornarem espaços coletivos, patrimônio comum.
5 GONÇALVES, 1996
6 MAGNAVITA, 2003, p. 69
4
12
mede o valor coletivo? A régua usada tem sido a força do Estado, o gosto das elites e,
modernamente, a imposição da mídia ou do capital. A partir daí podemos depreender
que os valores não estão apenas no objeto, mas na compreensão que as sociedades fazem sobre
ele. Essa compreensão se sobrepõe, portanto àquela de que o próprio teria uma
“verdade” imanente, a qual deveria ser preservada.
A questão da classificação de um objeto como patrimônio ou não parece estar
ligada a uma suposta imanência do próprio objeto, impregnando-o de uma função
totêmica, como se ele, por ele, fosse o catalisador das comunidades, o gerador das
identidades. Também neste aspecto é colocar carga demais sobre o objeto. Na
realidade, não é ele que gera as identidades, apenas as simboliza, representa valores
anteriormente gerados que se agregam em torno daquilo que podemos chamar
“identidades”.
Dessa discussão fica claro que o “ser” patrimônio não está no caráter imanente
do objeto, mas sim em uma outra forma de relação que passa também pela pessoa,
comunidade ou sociedade, portanto pelo sujeito, que lhe confere tal grau. E quem é
esse sujeito? Também esse sujeito tem caráter mutante, dependendo do grupo social,
do tempo histórico e dos valores que lhes são inerentes. Alguns teóricos, a partir dessa
constatação, tendem a estabelecer que a característica comum dos objetos-patrimônio é
o significado que eles trazem consigo, ou seja, seu caráter simbólico. Dessa forma, eles
seriam, antes que objetos memoráveis, objetos rememoradores7.
De qualquer maneira, também não é o sujeito que, independentemente do
objeto cria seus significados. Para Viñas, “a patrimonialidade não provém dos objetos,
mas dos sujeitos: pode definir-se como uma energia não-física que o sujeito irradia
sobre um objeto e que este reflete.” 8. No nosso entendimento – e segundo nosso
método de análise – isto também não é verdade, pois aqui se coloca toda a
responsabilidade sobre o sujeito. Parece-nos, antes, que a posição de patrimônio está na
interação entre sujeito e objeto, no acontecimento, no fenômeno, pois se objetos
específicos refletem a intenção do sujeito, de alguma forma eles têm em si certas
propriedades (espaciais, históricas, artísticas) que lhe conferem esse poder. Há nisso
um correlato importante com o entendimento hermenêutico sobre o objeto histórico.
Segundo Gadamer, “o verdadeiro objeto histórico não é um objeto, mas a unidade de
um de outro, uma relação formada tanto pela realidade da história, quanto pela
realidade do compreender histórico” 9. O significado, portanto está na relação que se
estabelece entre o sujeito e o objeto e a compreensão hermenêutica está na consciência
dessa reciprocidade.
F) Os significados patrimoniais
Os debates que se fazem em torno da restauração mostram com clareza a
mesma oscilação que se faz na discussão sobre o patrimônio em seu caráter histórico,
artístico e cultural. Enquanto os estritos defensores do caráter histórico ainda se
ressentem do positivismo e de um objetivismo documental, os defensores do caráter
VIÑAS, 2003, p. 55
VIÑAS, 2003, p. 152
9 GADAMER, 2004, p. 396
7
8
13
artístico se prendem a um idealismo calcado na expressividade da imagem, ambos
centrados no objeto em si. A vertente cultural tende a aproximar-se do sujeito,
enfatizando mais as questões subjetivas e do senso coletivo, em parte também
considerado pelo ramo crítico-criativo relacionado ao caráter estético. A postura
fenomenológica se propõe a superar essa dicotomia, na medida em que não valoriza
mais o objeto ou o sujeito, mas a relação entre eles. Não há apenas o objeto em sua
imanência, independente do sujeito que o observa, frui e nele intervém e nem o sujeito
em sua consciência estrita que apenas usa o objeto como ponte para seus próprios
pensamentos, podendo, em face a essa minimização de seu valor objetivo, alterá-lo ao
seu bel prazer, posto que o sujeito e a sociedade são só o que contam.
A presença do sujeito modifica a apreensão do objeto. Viñas10 nos revela que
essa modificação ocorre a partir de quatro fenômenos principais:

A inércia icônica, segundo a qual o espectador reconhece o objeto como está
acostumado a fazê-lo e qualquer alteração na sua forma lhe parece estranha ou
inverídica (como exemplo, nos pareceria estranho ver os templos gregos coloridos –
como efetivamente eram no momento de sua criação, posto que nos acostumamos a
vê-los brancos);

O preconceito histórico, segundo o qual o objeto deve adaptar-se ao que o
espectador pressupõe (que é o que acontece, por exemplo, nos filmes os quais
inclusive ajudam a criar o modo como “devemos” reconhecer os diferentes
períodos históricos: a Idade Média escura e sombria, a Renascença cheia de luzes);

O fetichismo material, segundo o qual a verdade está no material original, ainda
que a réplica seja perfeita e feita com o mesmo material do original (o espectador se
sente enganado, por exemplo, quando fica sabendo que grande parte das esculturas
urbanas de Florença não são as originais);

A garantia dos “experts”, segundo a qual os técnicos sabem mais do que qualquer
um e, portanto, seu saber é superior (eles devem, inclusive, nos dizer como devemos
pensar).
Um exame das atitudes do sujeito face aos bens artísticos, culturais ou
históricos mostra bem como esses fenômenos sempre apareceram de uma forma ou de
outra na história e condicionaram o próprio ato de intervenção neles. Por exemplo, a
inércia icônica aparece no Renascimento na valorização da cultura greco-romana, como
ela parecia ao homem dos séculos XIV e XV; o preconceito histórico, da mesma forma, na
Renascença, na negação do gótico e na adição de elementos clássicos ao Panteão ou
ainda, no século XVIII com o saudosismo estilístico dos “neos” com resquícios até
mesmo nas restaurações fantasiosas de Viollet-le-Duc; o fetichismo material aparece seja
nos “souvenirs”, seja no documento histórico valorizado de forma diferente no
Iluminismo ou no positivismo do século XIX; a garantia dos experts é também presente
na história, só mudando os experts, os quais muitas vezes foram os nobres ou os
clérigos.. Aos diferentes tipos de valor atribuídos aos monumentos, em função de
diferentes momentos históricos e contextos correspondem também diferentes meios
para sua preservação.
10
VIÑAS, 2003, p. 97-98
14
Assim, nem a imagem é a-histórica e nem a história é homogênea. A
compreensão dessas premissas é fundamental para a atitude do restaurador, fazendo
com que o seu juízo histórico-estético influencie substancialmente sua prática. Hoje já
superamos a idéia de neutralidade científica até mesmo nas ciências humanas e sociais,
onde até mesmo os próprios antropólogos, por exemplo, já não acreditam mais em
uma posição “neutra” de análise de uma determinada cultura, entendendo que mesmo
o observador está profundamente marcado pela cultura e tradição do homem que as
examina.
Por trás da vertente cultural está a questão do significado do bem para o
homem e as sociedades, o qual, como vimos nos casos de Varsóvia, Veneza ou Ouro
Preto, interfere decisivamente nos métodos e processos de restauração. O significado
do bem muitas vezes supera a mensagem da própria imagem, fazendo com que a sua
força simbólica ultrapasse a expressividade estética nele contida. Na realidade, a
questão do significado ultrapassa as imposições da forma, tendo com relação a esta
uma relativa autonomia. Embora a imagem congregue significados e estimule relações,
o bem patrimonial parece estimular outros níveis de relação ligados ao mundo
existencial do fruidor. Essa autonomia do significado em relação à obra única se exerce
em diferentes maneiras:

Pelo “descolamento” entre a imagem e a obra física, objeto histórico, quando a
imagem precisa ser evocada ou utilizada independemente do seu suporte material
existir ou não, como no caso das cidades supracitadas ou das sucessivas tentativas
de reconstrução do Templo de Salomão ou do uso de suas formas como base para
outros templos construídos ao longo da história;

Pela sua “mutabilidade operacional”, quando a imagem precisa ser adequada ou
atualizada ou reformada para melhor atender aos novos usos e práticas que nela se
fazem ou dela se extraem, como ocorre na Igreja de Nosso Senhor do Bonfim, em
Salvador, onde vários de seus espaços são alterados ao longo do tempo, de forma a
facilitar a relação com os fiéis;

Pelo seu “uso icônico”, que é o caso citado por Walter Benjamin em seu texto “A
obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica”, onde a imagem deixa de ser
necessariamente associada ao seu suporte material original – a perda da aura – e
ganha mundo com apropriações diversas como é o caso, por exemplo, da Mona
Lisa, “pop star”;

Pelo seu “significado ritualístico”, ligado a aspectos cíclicos das tradições ou à
afirmação do mundo simbólico, como soe ocorrer no Oriente em práticas
tradicionais como a reconstrução do Templo de Ise.
2. O que se preserva/ restaura
Se compreendermos que as ações de patrimonialização e restauro não estão
centradas apenas no objeto, mas também no sujeito, devemos compreender também a
importância de se trabalhar o patrimônio como um campo de relações, a partir das quais
se estabelece a sua compreensão, olhando com suspeita as teorias apriorísticas que
sobre ele se lançam. Acreditamos que só há abertura e pacto possível entre o fruidor e o
15
patrimônio se este tiver um sentido para aquele11. A questão da significação, assim,
traz consigo uma grande abertura na medida em que entendemos que não existe um
significado único e universal, mas vários deles, advindos dos modos particulares a
partir dos quais ele é experimentado. Da mesma forma, não há metodologia única de
intervenção, mas no nosso entendimento todas elas devem levar em conta a questão de
dotação de sentido, sob pena de esvaziar aquilo que se abre na historicidade do
monumento O significado do bem patrimonial, entretanto, não parte apenas da sua
história ou da sua esteticidade, mas da integração dessas duas formas de apropriação
se estabelecendo ainda sobre uma série de referências, sejam elas de natureza espacial,
de conceitos prévios emanados do mundo sócio-cultural ou pessoal, em suas vivências
e memória.
Alguns perigos, no entanto, se apresentam à compreensão/ interpretação (e seu
rebatimento na preservação) que necessitam ser apontados para o uso adequado de
nosso método12:

O perigo historicista acontece quando colocamos o “contexto no lugar do texto”, ou
seja, quando tentamos entender o bem patrimonial não como ele se apresenta hoje
a nós, mas como ele era e se portava no contexto onde ele nasceu. Este é o perigo
que conduz ao embalsamento e a mumificação do bem e que também conduz a sua
apropriação excessivamente setorial (geralmente pela indústria do turismo) e que,
ao tentar lhe recuperar a “verdade” do significado, acaba por lhe retirar quase todo
ele;

O perigo psicológico acontece quando, na preservação, procuramos interpretar a
intenção do autor ou o espírito da época em uma forma de congenialidade que é
mais pretensiosa do que possível. O próprio Brandi já nos alertava para o perigo
dessa atitude, ao condenar a tentação do restaurador de fazer “como” o autor;

O perigo objetivista13 acontece quando se procura derivar o sentido do bem a ser
interpretado a partir apenas dele próprio, “tornando-o independente do autor, do
contexto e do intérprete”. Segundo Brandão, esta tentação acaba por promover um
insulamento da obra de arte e da Arquitetura, especialmente aquele que se verifica
nos museus e galerias de arte;

O perigo relativista, próximo ao historicista, acontece quando obliteramos nosso
modo próprio de interpretação pela tentação de relativizar sempre a obra ao seu
contexto original. Por esse perigo substituímos a fruição/ intervenção do presente
pelo excesso de zelo pelo suposto documento;

O perigo subjetivista acontece quando a balança pende para o lado do leitor/
restaurador que impregna o bem patrimonial com sua própria e exclusiva
Levantamos, inclusive, que a perda de sentido é um dos principais problemas pelo qual passa a
preservação hoje.
12 Os cinco primeiros foram trabalhados a partir daqueles apresentados por Carlos Antônio Brandão em
BRANDÃO, 1999, p. 115, 116. A eles acrescentamos os últimos três.
13 BRANDÃO chama a este perigo de “positivista”, mas preferi reservar este termo para as posturas
esteticistas e filológicas do limiar dos séculos XIX e XX.
11
16
interpretação ou quando, no processo de intervenção, minimiza a presença da sua
historicidade para fazer valer sua própria intencionalidade;

O perigo positivista acontece quando se acredita poder trabalhar o bem apenas
pelo método científico, sobre supostas bases “seguras” que a ciência ou o método
analítico pudesse lhe fornecer. Aqui se enquadram tanto o método filológico
quanto o método de recomposição da unidade estilística citados no início deste
capítulo;

O perigo idealista aparece, no patrimônio edificado, naquilo que tange ao culto à
imagem ou a matéria como se elas fossem, respectivamente, os centros da
expressão artística ou da historicidade do objeto. Esta discussão também será
retomada com mais profundidade nos capítulos seguintes;

O perigo do senso comum aparece na suposta “verdade” superficial assimilada
coletivamente ou na superficialidade do gosto ou do juízo comum.
Do exame desses perigos, podemos verificar que compreender estética e
historicamente não se dá a partir de uma congenialidade, nem a partir de algo que
seria imanente ou transcendente ao próprio objeto, nem ainda sobre o esforço analítico,
mas a consciência da filiação da obra a nosso mundo.
A) O QUE SE PRESERVA
Ao mudar a cultura, transformam-se os valores e transformam-se, também, é
claro, as atitudes quanto ao patrimônio. Assim, parece que o que se preserva, na realidade,
é a identidade em transformação, ou seja, a preservação não está na capacidade do bem de
permanecer como está, mas na sua capacidade de mudar junto com as mudanças sócio-culturais.
Essa concepção se choca com a acepção de imutabilidade do bem a ser preservado.
Também ele, como a tradição e a cultura, está em constante transformação.
Não há, portanto, como buscar a essência do objeto de restauro em uma idéia
imutável de “objeto” que sobreviveu à história, pois ele está inserido na história da
vida, a qual se caracteriza pela transformação. Não há esse objeto a-histórico
“essencial” - além do que isso seria uma contradição com seu valor como patrimônio
histórico conferido exatamente por ser histórico. Mesmo a idéia de uma transmissão
“neutra”, independente da cultura e da tradição não se sustenta. Benjamin e Osborne
trabalham o conceito de transmissão, comparando o pensamento de Heidegger e de
Benjamin, ambos convergentes para o fato de que a História não é um ato progressivo
e nem o presente um herdeiro inconteste do passado. A partir dessa convergência
constatam:
Enquanto o Iluminismo e o antiiluminismo conferiam à tradição o sentido
de transmissão, Heidegger e Benjamin recuperaram seu sentido traiçoeiro
e perigoso de uma rendição potencialmente destrutiva. O ato de
“entregar” destrói o objeto cedido; não é de modo algum um “meio”,
muito menos um meio “neutro”, para a transmissão do passado para o
presente. Como ambos reconheceram em 1916, a tradição é não só o que é
transmitido num dado tempo como também a outorga desse tempo, ele
próprio na distinção entre passado e presente ao mesmo tempo que os
17
supera ao entregá-los um ao outro; ela tanto funda quanto pressupõe o
tempo que tem lugar. Como Heidegger e Benjamin mostraram em 1916, a
tradição é um fenômeno paradoxal, e até destrutivo, caracterizado por
uma transmissão que ao mesmo tempo excede ao que é transmitido e é
por ele contida. (BENJAMIN e OSBORNE, 1997, p. 29).
Assim, toda transmissão ao presente seria também uma forma de destruição do
passado, resultando, portanto, numa quebra da autenticidade daquilo que é
transmitido, pelo menos naquela autenticidade “pura” ou a uma suposta plenitude
“original” da obra de arte14.
Dessas discussões resultou que os objetos que sobreviveram à torrente do
tempo são, na realidade, aquilo que foi selecionado para ser passado ao futuro,
portanto fruto intencionado de uma sociedade que queria ser lembrada de certa
maneira, afinal a História é uma versão do fato, não o fato em si.
Mas as duas impossibilidades, a da objetividade da história e a da imanência da
imagem, persistem apesar da relatividade cultural e social e acabam por gerar uma
tensão entre verdade e leitura que afeta substancialmente as práticas de preservação.
Para entendermos as suas formas mais usuais partimos da disjunção entre História e
patrimônio revelada por Lowenthal:
A história e o patrimônio transmitem coisas diferentes a audiências
diferentes. A história conta a todos os que querem ouvi-la o que ocorreu e
como as coisas chegaram a ser o que são. O patrimônio se baseia em mitos
de origem e continuidade, conferindo a um grupo prestígio e objetivos
comuns. A história se engrandece quando seu conhecimento se propaga; o
patrimônio se vê diminuído e degradado quando se estende. A história é
para todos, o patrimônio somente para nós. A história não é
completamente aberta - os investigadores protegem suas fontes, os
arquivos se fecham, aos críticos se nega o acesso aos documentos e os
erros são esquecidos. Mas a maior parte dos historiadores condena a
ocultação. Ao contrário, as mensagens do patrimônio estão restritas aos
eleitos. [...] o patrimônio se baseia em regras tribais que convertem cada
passado em uma posse exclusiva e secreta. Criado para gerar e proteger
interesses de grupos, somente nos beneficia se o isolamos dos demais.
Compartilhar, ou inclusive mostrar, um legado histórico aos demais
diminui suas virtudes e poderes. [...] Ser do clã é essencial para
sobrevivência e bem estar de um grupo. (Lowenthal, 1996) (VIÑAS, 2003,
p. 143-144).
“Duas coisas emergem do processo de ‘vir ser e desaparecer’: uma é o objeto ou evento que vem e vai, e
a outra é a vinda e ida de objetos e eventos, sua tradição. Para Benjamin, o preço que se paga para se
tornar um objeto de tradição é a inautenticidade e a imperfeição; tal objeto nunca pode estar
autenticamente ali, integral em si mesmo, uma vez que só está ali graças ao fato de ter sido transmitido
pela tradição. Sua emergência já é sempre o seu desaparecimento – o local da tradição não é um lugar
onde passado, presente e futuro são reunidos para uma ação resoluta, mas um lugar onde o presente é
obsedado não só por seu passado como também por seu futuro de vir a ser passado. É um lugar de luto.
Aqui a origem e seus objetos jamais podem atingir a autenticidade, estando sempre em dívida com algo
que não se revela”. (BENJAMIN e OSBORNE, 1997, p. 34).
14
18
A partir dessas constatações, Para Lowenthal, a preservação do patrimônio se
acomoda ao uso que se faz dele mediante três operações fundamentais e interligadas:
uma atualização (no sentido de se impor imagens e valores a personagens do passado);
uma melhora (que destaca aquilo que mais se considera hoje) e uma exclusão (o que, ao
contrário da anterior, consiste em “esquecer” aquilo que hoje não é apreciado) (VIÑAS,
2003, p. 146).
A questão da preservação se centra agora, portanto, no conceito de
transformação, ou seja, como manejar essa transformação de forma que não se rompa a
delicada tessitura entre a tradição e a contemporaneidade, pois, ao intervir no bem
patrimonial nós o estamos modificando, sempre, afinal pela tradição ele já nos chega
alterado, pela cultura ele nos chega tematizado e, pelo tempo, com sua significação
“original” perdida.
B) O QUE SE RESTAURA
Após o exame do conceito de preservação, resta-nos que a grande dificuldade
epistemológica do restauro está na evanescência de seu objeto de aplicação. Afinal, a
que se aplica o restauro? O que se restaura? A palavra restaurar, de origem latina, traz
consigo a idéia de recobrar, reaver, recuperar, recompor. Ora, pelo que vimos até
agora, estas são ações impossíveis com relação ao bem patrimonial, posto que, ao
intervirmos na sua matéria, seja na sua estrutura ou na sua aparência, não o estamos
recuperando, mas modificando-o. Além do mais, preservar e restaurar, apesar de
serem conceitos interligados, não são exatamente ações associadas e nem sempre
complementares, pois restaurar significa intervir em um bem, ao passo que preservar
significaria apenas, a princípio, a sua transmissão através do tempo. A interligação
biunívoca entre as práticas de preservação e restauração, portanto, só teriam sentido se
para a transmissão do bem - e o seu vigor no presente – fosse indispensável a sua
recuperação, o que já vimos não ser também sempre necessário. A ação de restaurar,
portanto, se aplica apenas quando há um objetivo precípuo de superar a destruição
causada na transmissão daquele bem que, sem a ação do restauro, perderia totalmente
o seu potencial de significação15. Restaurar, portanto, parece ser uma ação interventiva
que visa recolocar o bem patrimonial no jogo do presente através da recuperação de
suas próprias perdas e é, portanto, sempre um processo de re-significação e daí uma
re-criação que se faz sobre a matéria que conseguiu sobreviver ao tempo.
Essas premissas poderiam nos dar a ilusão de que, então, ao desaparecer
efetivamente o objeto do restauro, se desapareceria também o seu objetivo, o que, é
claro, não faz sentido. Essa digressão nos leva a compreender, então, que a ação de
restaurar está presente na dimensão existencial do ser, mas deve ser repensada mais
quanto aos seus objetivos do que quanto aos seus objetos (sobre os quais a História da
Restauração sempre versou). No entanto, não é pelas dificuldades epistemológicas
relacionadas ao objeto do restauro que estariam liberados os limites de ação do
restaurador. Essas dificuldades só nos mostram que, na realidade, ao aprofundarmos
nossa investigação sobre patrimônio, preservação e restauro, não estamos “reduzindo”
O que também já vimos, através de Riegl, ser impossível, pois mesmo uma ruína é prenhe de
significados.
15
19
a aplicabilidade desses conceitos, mas ampliando-os e com isso, também
redimensionando o “objeto” do restauro. É essa a tarefa que se nos apresenta neste
momento e convém começarmos por algumas distinções conceituais importantes que
se dão, por exemplo, entre preservação e restauro ou entre conservação e restauro,
dentre outras.
Assim, o que se preserva não é:

O bem “intocado”, pois se o não tocarmos ele se degrada e, ao nele tocarmos,
acabamos por modificá-lo;

A matéria “original”, como aparece no paradoxo da Nau de Teseu;

A forma “congelada” do bem, posto que é impossível parar a ação do tempo e
de cada geração sobre o bem;

Uma suposta “verdade” histórica, posto que esta não existe objetivamente;

O seu momento “original” de criação, posto que esse já passou e só poderia ser
acessado por uma suposta congenialidade, esta também impossível;

A intervenção apenas na matéria, sem com isso intervir na dimensão imaterial;

A redução de seus significados ou de sua complexidade

E nem se dá através de um método exclusivamente científico, universal e
neutro (que pende para o lado do objeto), mas também não tão aberto que
desconsidere elementos compartilhados coletivamente (o que penderia para o
lado do sujeito) e nem se faz a partir de um entendimento “globalista”, onde o
objeto artístico é entendido de maneira global, sem levar em consideração as
especificidades de cada expressividade artística.
A partir disso, entendemos que, na realidade, o que se preserva é:

A “existência” do bem patrimonial, na sua capacidade de se fazer presente;

A sua capacidade de pontuar a existência, referenciando-a, a sua especialidade
no espaço e no tempo;

A sua capacidade de nos atrair e possibilitar um pro-jeto;

A fruição do presente instituída pela memória e as possibilidades abertas pelo
passado: não é o retorno ao passado, mas a sua vivência no presente;

A abertura de significados que a obra de arte (e de resto, mesmo o bem
patrimonial não dotado de caráter artístico) “fixou” na matéria e no lugar e não
apenas pelas características objetivas (formais e físicas) do objeto, portanto as
suas dimensões material e imaterial;
20

A identidade em transformação: a capacidade de mudança do bem, mantendo o
equilíbrio dos modos pessoal e impessoal, dentro da dinâmica do tempo e da
cultura;
3. Saídas
Quais seriam, portanto, as saídas para os dilemas que a própria noção de
patrimônio cultural traz consigo? Até onde nos é permitido vislumbrar, podemos
propor que essas saídas estão no reconhecimento da relatividade do bem patrimonial e
no reconhecimento da intersubjetividade.
A)
RECONHECIMENTO DA
RELATIVIDADE
CONTRIBUIÇÃO DA HERMENÊUTICA
DO
PROCESSO:
A
Para compreendermos a relatividade do processo de patrimonialização, a
Hermenêutica de Gadamer, de base fenomenológica, pode ser de importante ajuda.
Em primeiro lugar, ela é entendida como cura. A cura é um conceito de
Heidegger que pode ser entendido, de forma simplificada, como o exercício do ser na
sua existencialidade, ou seja, na lida cotidiana do homem com as coisas, com as outras
pessoas, com o mundo, dentro da vida.
Essa questão pode ser exemplificada pela tradição patrimonial no Brasil
Segundo José Reginaldo Santos Gonçalves, ela teria sido edificada sobre o medo da
perda e sob a necessidade de se construir um projeto de nação e, segundo Vera Millet,
fortemente marcada pelo controle governamental e econômico. Essas atitudes acabam
por levar a um desequilíbrio entre o bem patrimonial e a vida cotidiana e continuada:
ao invés do bem se assentar com serenidade no transcorrer da vida, é claro exercendo
sua função referencial como sempre, ele se superexpõe e se torna espetáculo, portanto,
à parte da própria seqüência “natural” dos acontecimentos, afinal, “o que está em vias
de desaparecer deve ser magnificado”16. Ao se fazer assim, ele também magnifica certos
significados “selecionados”, “fechando” neles a compreensão da obra preservada e criando uma
distância entre ela e o seu fruidor.
Outro ponto importante relacionado à questão da cura é o que se dá em
decorrência da ilusão de perenidade é de que o objeto patrimonial é a imagem
congelada do passado. Como imagem, ela teria, portanto, uma imanência própria que a
desvincularia do fruidor, possuindo em si as propriedades necessárias para gerar
sempre a mesma mensagem. Na realidade, ele é um elemento de interação reflexiva
com o fruidor, seja pela consciência histórica ou artística, seja como estímulo à sua
compreensão pessoal.
Em segundo lugar, a Hermenêutica de Gadamer reforça a importância da
relatividade do pensamento presente na consciência histórica. Para Gadamer, o homem
moderno tem o privilégio de “ter consciência da historicidade de todo presente e da
16
JEUDY, 2005, p. 27
21
relatividade de toda opinião (...) e ter senso histórico significa pensar expressamente o
horizonte histórico co-extensivo à vida que vivemos e seguimos vivendo” 17. Esse senso
histórico permite ao homem moderno se entender na perspectiva do tempo e
relativizar a sua opinião, dois pontos fundamentais para se exercer a abertura
necessária à interpretação hermenêutica.
Quanto ao terceiro ponto, Gadamer identifica também uma consciência estética,
como sendo um tipo de compreensão que se realiza a partir do próprio centro da
relação entre o fruidor e a obra de arte, na verdade que aí, na relação, se estabelece.
Para ele, a verdade da arte não estria na referência à realidade, como resultado de sua
imitação ou transformação, mas no mundo que ela própria institui, o qual cria a sua
própria verdade quando a nós se apresenta. Tal distinção que a obra de arte possibilita em
relação ao objeto real – à qual Gadamer chama de “distinção estética” –uma abstração
que lhe é salutar, na medida em que cria o canal específico de sua compreensão,
independente dos outros elementos de sua “realidade” (seu objetivo, sua função ou o
significado de seu conteúdo). Essa abstração, no entanto, não deve ser confundida com
a suposta qualidade estética ligada apenas ao belo e ao gênio, os quais apontamos
anteriormente, posto que o belo muitas vezes é influenciado pela consciência histórica
e que a genialidade é antes o reconhecimento do outro, portanto exteriorizada. A
abstração a qual Gadamer se refere está situada antes na esfera do modo da
experiência, na abertura de um outro modo de vivência que a arte institui. A sua
realidade objetiva, claro, é também importante para a ancoragem da obra ao mundo e
para a complementação de seus significados, mas não substitui a abertura fornecida
pela realidade outra que a arte possibilita. “O que perfaz a soberania da consciência
estética é poder realizar por toda parte uma tal distinção [entre a realidade e a
abstração por ela criada] e poder ver tudo ‘esteticamente’.” 18.
B)
RECONHECIMENTO DA IMPORTÂNCIA DA INTERSUBJETIVIDADE
Além das questões da relatividade colocadas pela saída hermenêutica, resta-nos
também a saída do reconhecimento da intersubjetividade. Pelo que depreendemos até
agora, parece ter ficado claro que o “ser” patrimônio não está no caráter imanente do
objeto, mas sim em uma outra forma de relação que passa também pela pessoa,
comunidade ou sociedade, portanto pelo sujeito, que lhe confere tal grau.
A partir do entendimento que é a intersubjetividade que, na realidade, insitui o
patrimônio, qualquer intervenção nesse patrimônio diz respeito também a essa
intersubjetividade, ou seja, o que subjaz sob qualquer discurso de preservação é o
discurso da ética. A missão ética presente na preservação remete aos pontos
desenvolvidos anteriormente, tendo a ver com a herança e a sobrevivência, com a
proteção da identidade, mas também fortemente com a preservação da verdade e da
autenticidade. No entanto, se esses conceitos não podem ser estabelecidos de forma
precisa e pragmática, cabe também suspeitar de que uma ética baseada em critérios
acríticos também possa estar a serviço de interesses pouco claros. A partir dessa
17
18
GADAMER, 2003, p. 17, 18
GADAMER, 2004/ I, p. 136
22
constatação, supera-se, novamente, a centralidade no objeto e retorna-se, assim, à
questão do sujeito e do significado. Surgem daí várias correntes, todas elas em defesa
da ética, mas com visões diferentes, as quais defendem em graus também diferentes
uma intervenção maior ou menor no objeto, mas que de uma forma ou de outra, estão
profundamente condicionadas pelos valores de época, os quais, também por sua vez,
não são homogêneos. Para Viñas, por exemplo, a preservação seria, na verdade, tanto
mais “ética” quanto mais correspondesse ao horizonte de expectativa social. A
discussão de valores acaba levando à inclusão do debate sobre a função do bem
patrimonial, a qual além das funções psicológicas e sociais já mencionadas (proteção da
identidade, herança, etc.), também leva ao resgate mesmo da sua utilidade como fator
ético importante para servir à sociedade em que se insere o bem. De qualquer forma, os
objetos de preservação
[...] também podem desenvolver funções de natureza muito variada,
tangível ou não. Ele, constantemente, produz conflitos entre os sujeitos
afetados por um processo de Restauração, porque potencializar uma
função habitualmente limita ou condiciona outras. A importância de cada
função variará para cada usuário; a decisão eticamente correta sobre que
ações desenvolver não pode basear-se nas prioridades de um indivíduo
como restaurador, como químico, como historiador da arte, como
proprietário, como decisor, etc. Seria eticamente mais correto (mas também
funcionalmente melhor) tentar melhorar o mais sincera e
equilibradamente possível as eficácias que esse objeto tem para seus
usuários, para cada pessoa, para quem desenvolve alguma função de
algum tipo. Nestes casos, o critério de atuação tampouco pode variar
muito com respeito ao que se viu antes: em teoria o ganho funcional tem
que ser máximo. (VIÑAS, 2003, p. 159).
Face às sutilezas conceituais que o problema da autenticidade/ verdade
apresenta – e à sua restrita circunscrição aos meios dos experts – alguns autores
acreditam que a ética da preservação, para ser verdadeira, deve se estender a todos os
segmentos das sociedades envolvidas. Tal postura acaba por levar à noção de que um
bem é tanto melhor preservado quanto maior o número de pessoas satisfeitas com sua
forma de preservação. Esta, segundo Viñas, é uma fórmula defendida seguidamente na
teoria contemporânea da restauração e se funda no entendimento de uma ética baseada
na “negociação (Staniforth, 2000; Avrami et al., 2000); no equilíbrio (Jaeschke, 1996;
Bergeon, 1977), na discussão (Molina y Pincemin, 1994), no diálogo (Reynolds, 1996), ou
no consenso (Jiménez, 1998)” 19. Para ele, portanto, a preservação não pode ser
tecnocrática, mas tampouco populista, devendo ser realizada, contemporaneamente,
sob a égide da negociação e sustentabilidade.
É
apontam
conceito,
impactos
19
assim que a dimensão ética e o entendimento da preservação/ restauro
para a face do desenvolvimento sustentável. Conforme entendemos hoje esse
ele aponta para a capacidade de um determinado meio de absorver os
da transformação, baseado na integração das agendas social, econômica,
VIÑAS, 2003, p. 163
23
ambiental e cultural e nunca dizendo respeito a um modelo final a ser perseguido, mas,
antes, a um processo. Tudo isso, a nosso ver, em estreita correspondência com a
preservação de nosso patrimônio cultural.
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25
POR UMA AGENDA DE DISCUSSÕES SOBRE A
CONSERVAÇÃO DA ARQUITETURA MODERNA
Flaviana Barreto Lira
Resumo
As cartas ou recomendações são documentos, elaborados no nível
internacional e nacional, nos quais estão definidos procedimentos, normas
e conceitos balizadores da prática da conservação. Conforme informa
Rowney (2004), visam atender a dois objetivos principais: apresentar uma
destilação da filosofia da conservação do momento presente e definir
diretrizes para a prática da conservação. Juridicamente as cartas não têm
força de lei. Todavia, são fontes fundamentais utilizadas pelos Estados na
concepção das normas e na execução das estratégias de proteção ao
patrimônio. Tratando especificamente da arquitetura moderna (AM), ainda
que sua importância e seus valores venham sendo progressivamente
legitimados nesses documentos, são ainda reduzidas as discussões sobre a
forma como os princípios de conservação dos exemplares da arquitetura de
períodos anteriores podem ser aplicados aos bens desse período. Nesse
sentido, este artigo discute as possibilidades de aplicação das
recomendações ou cartas patrimoniais, elaboradas considerando as
características dos bens culturais de períodos mais antigos, aos edifícios da
AM. A abordagem não tem por objetivo apenas apontar as limitações, mas
sim consolidar uma reflexão pautada na construção de caminhos possíveis
de leitura e aplicação desses documentos. Considerando que no campo da
conservação do patrimônio cultural não há respostas prontas, pois cada
edifício demanda questões particulares, sempre que possível as discussões
serão ilustradas com exemplos práticos. Espera-se, assim, construir uma
abordagem com maior clareza e consistência, capaz de apontar direções
que possam vir a se constituir numa agenda, ainda que embrionária, para
elaboração de novas cartas, focadas nos desafios impostos pela arquitetura
desse momento.
Palavras-chave: recomendações internacionais, arquitetura moderna e
conservação.
Introdução
As cartas patrimoniais são elaboradas com o fim de trazer considerações sobre
aspectos relativos à conservação do patrimônio. São produzidas em encontros de
entidades internacionais, como o ICOMOS, (Conselho Internacional de Monumentos e
Sítios) e nas sessões da UNESCO. Atendem a dois objetivos: apresentar destilação da
filosofia da conservação do momento e definir diretrizes para a prática da conservação
(ROWNEY, 2004).

UNB. [email protected].
26
Juridicamente não têm força de lei, mas são fontes fundamentais para a
concepção das normas legais e para a execução das estratégias de proteção e de
conservação do patrimônio.
Apesar da existência em alguns países já no século XIX de dispositivos
institucionais de proteção ao patrimônio, a primeira carta de abrangência internacional
só foi elaborada depois da I Guerra Mundial, em virtude da necessidade de restaurar o
patrimônio destruído naquela ocasião20. A partir daí, a preocupação com o patrimônio
passou a ser questão internacional.
Com a instituição do título de Patrimônio da Humanidade pela UNESCO na
década de 1970, há um aumento considerável na produção de cartas. De acordo com
Rowney (2004), visa-se consolidar princípios universais de conservação, garantindo a
salvaguarda em iguais condições dos bens classificados na Lista do Patrimônio
Mundial. Mesmo buscando entendimentos ou posturas consensuais aplicáveis
internacionalmente, cada país é estimulado a elaborar suas próprias cartas
patrimoniais, considerando seus contextos sociais, econômicos e culturais.
Em relação ao conteúdo trazido pelas cartas, pode-se constatar que são diversas
as questões tratadas e que o traço comum a todas elas é a busca pela consolidação de
princípios balizadores da prática. Outro aspecto perceptível a partir da leitura das
cartas é que há uma significativa transformação no tempo das noções de patrimônio,
de conservação e de outras correlatas ao tema.
Tratando especificamente da AM, ainda que sua importância e seus valores
venham sendo progressivamente legitimados nas cartas patrimoniais, não são comuns
discussões voltadas para a forma como os princípios de conservação dos exemplares
da arquitetura de períodos anteriores podem ser aplicados aos bens desse período.
Nesse sentido, busca-se responder a uma pergunta central: em que medida os
princípios destilados pelas cartas patrimoniais podem ser adotados na conservação da
AM?
Para tanto, o artigo encontra-se estruturado em três seções. Na primeira são
explicitadas as particularidades trazidas pelos edifícios modernos e os desafios à sua
conservação. Na seção seguinte, essas particularidades guiam a análise sobre como o
conteúdo de algumas das mais importantes cartas trazem à conservação dos
exemplares da AM. Na última seção, é realizado um exercício de síntese com o intuito
de consolidar premissas envolvidas na problemática da conservação da AM, bem como
apontar as direções para seu enfrentamento.
Como resposta a essa demanda, no ano de 1931 os países europeus organizaram conferência sobre o
tema e elaboraram o primeiro documento internacional a tratar de políticas de preservação do patrimônio:
a Carta de Atenas. É importante ressaltar que a referida carta, publicada em 1931 pelo Escritório
Internacional dos museus, é distinta da Carta de Atenas elaborada em 1933 e publicada em 1945 pelo
CIAM (Congresso Internacional da Arquitetura Moderna).
20
27
1. As particularidades da arquitetura moderna e os desafios à sua conservação
Segundo Macdonald (2003), nos últimos vinte anos presencia-se um aumento no
interesse em conservar o patrimônio do século XX. Isso pode ser observado tanto no
nível nacional, como no internacional, por intermédio da atuação do DOCOMOMO.
Por iniciativa do DOCOMOMO, foi publicada em 1990 uma carta focada
exclusivamente na preservação da AM: a Declaração de Eindhoven (1990) 21. Mesmo
sendo uma iniciativa pioneira, não há no escopo dessa declaração nenhum
entendimento que já não estivesse presente em outras cartas elaboradas com o foco no
patrimônio de períodos anteriores.
Além da atuação de organismo de proteção local e do DOCOMOMO, também se
pode observar mais recentemente aumento do interesse pela proteção da AM, por
parte de agências e organismos vinculados à UNESCO. Essa tendência é expressa por
meio do número crescente de conferências internacionais sobre o tema22.
Todavia, apesar dos avanços recentes, a conservação do patrimônio moderno
ainda traz grandes desafios. Sobre o assunto, Macdonald (2003) dispõe:
Lacunas do reconhecimento (com exceção dos ícones), a ausência de
pesquisas que construam um referencial teórico para a identificação
desse patrimônio e a pouca proteção trazem como consequência a
perda de importantes exemplares (MACDONALD, 2003, p. 1,
tradução nossa).
Em termos filosóficos e metodológicos, a teoria que fundamenta a conservação
do patrimônio de períodos anteriores pode ser aplicada às obras da AM, todavia essa
aplicação não é direta. Isso considerando que os edifícios modernos romperam a lógica
projetual e construtiva tradicional, ao introduzir novas concepções arquitetônicas,
novos materiais, novas tecnologias e novas estruturas.
Macdonald (2003), ao buscar clarear as particularidades da AM com vistas à sua
conservação, identifica sete aspectos: i. projeto e funcionalismo; ii. tempo de vida; iii.
materiais; iv. detalhamento; v. manutenção; vi. pátina do tempo; vii. reconhecimento.
O funcionalismo, um dos principais pilares da AM, é definidor do projeto.
Macdonald (2003) discute que, em razão disso, a adaptação dos edifícios modernos às
necessidades contemporâneas de uso, conforto, segurança pode se tornar mais
complexa que no caso de edifícios de períodos anteriores, pois, grandes mudanças
De forma sintetizada, esta declaração dispõe sobre: a importância de chamar a atenção do público, das
autoridades, dos profissionais e da comunidade educacional sobre o significado do movimento moderno;
o estímulo à identificação e à documentação das obras por meio de registros escritos, fotografias, desenhos
e outros documentos; a promoção do desenvolvimento de técnicas e de métodos apropriados de
conservação e a disseminação delas no meio profissional; a oposição à destruição e à desfiguração de obras
desse movimento; a importância de atrair financiamento para sua documentação e conservação; a
necessidade de explorar e desenvolver o conhecimento acerca do movimento moderno.
22 Em 2001 a UNESCO promoveu encontro voltado para a discussão sobre os meios de aprimorar a
identificação e a documentação do patrimônio moderno, como forma de ampliar a representatividade dos
bens desse período na Lista do Patrimônio Mundial Como produto, foi elaborada uma publicação
denominada “Identification and documentation of Modern Heritage” disponível em <
http://whc.unesco.org/documents/publi_wh_papers_05_en.pdf>, acessado em 23 de abril de 2009.
21
28
funcionais e estruturais subvertem sua concepção projetual. O princípio de que a forma
segue a função pode tornar os edifícios modernos menos flexíveis a adaptação a novos
usos e, consequentemente, mais suscetíveis à obsolescência e a demolições prematuras.
Macdonald (2003) entende que o argumento de que os edifícios modernos foram
concebidos para ter um tempo de vida útil curto não se aplica a toda a produção desse
período. Para ela, são apenas os edifícios descritos como “futuristas”, do início do
modernismo, que foram projetados com esse fim.
Apesar de romper com esse mito, que pode ter servido de justificativa para uma
série de demolições, a autora dispõe que estudos realizados no Reino Unido
demonstraram que os edifícios modernos exigem reparações iniciais em
aproximadamente metade do tempo dos edifícios de períodos anteriores, ou seja, entre
25-30 anos após sua construção. As grandes reparações costumam ser necessárias no
prazo de 50-60 anos para os edifícios modernos e entre 100-120 anos para edifícios
tradicionais.
Macdonald (2003) dispõe que o desgaste precoce e mais acelerado desses
edifícios é, frequentemente, resultado do uso de materiais sem o adequado
conhecimento de sua performance, bem como da utilização de materiais tradicionais de
novas maneiras.
O abandono de formas tradicionais de detalhar, com o objetivo de alcançar uma
“nova estética moderna”, e a ausência de um adequado conhecimento da melhor forma
de utilizar os novos materiais é outra questão que traz desafios à conservação da AM.
Em virtude disso, são comuns em muitos edifícios modernos problemas de infiltração e
de acondicionamento térmico.
Figura 1. Infiltrações na estrutura e lacunas nos Figura 2. Lacunas e rachaduras, Igreja de
vitrais, Catedral de Brasília. Fonte: Autora, 2009 Nossa Sra. de Fátima. Fonte: Autora, 2009
Outro aspecto importante a ser ressaltado em relação à AM é o seu processo
criativo: primordialmente focado na inovação, deixava em segundo plano aspectos
relativos à manutenção. Esse fato se justifica pela ideia da arquitetura enquanto objeto
de arte, isto é, os edifícios eram concebidos como obras concluídas, diferente de grande
parte dos exemplares da arquitetura tradicional, concebidos prevendo adições
posteriores.
29
Figura 3. A arquitetura como artefato artístico
concluído: Catedral de Brasília.
Fonte: Autora, 2009
Figura 4. A arquitetura como artefato artístico
concluído: Igreja de Nossa Sra. de Fátima,
Brasília. Fonte: Autora, 2009.
A manutenção não era, portanto, um aspecto primordial uma vez que os edifícios
deveriam satisfazer às necessidades daquela sociedade, pois as gerações futuras
levantariam suas próprias necessidades. “Mesmo mestres modernos, como Aalto,
costumavam desconsiderar a possibilidade de proteger suas obras por mais tempo que
sua funcionalidade permitisse” (JOKILEHTO, 2003, p. 108, tradução nossa).
A pátina do tempo é também questão polêmica e complexa na conservação da
AM. Os materiais com superfícies polidas e com brilho, como o vidro e os metais, e as
formas arrojadas que caracterizam a AM parecem não “deixar espaço” para a pátina.
Macdonald (2003) afirma que o entendimento de que o edifício moderno não foi
concebido para ser envolto pela pátina tem levado a uma postura que privilegia a
substituição dos materiais sob o argumento de que o reparo sem a reconstrução vai
suprimir do edifício algo que é central à sua autenticidade: a sua imagem.
O reconhecimento da AM como patrimônio cultural, por meio da atribuição de
significados e valores, apesar de ser a última questão levantada por Macdonald (2003),
é a primeira que deve ser solucionada. Mesmo que os organismos de proteção estejam
cada vez mais empenhados na proteção desse legado, a adesão da sociedade é ainda
reduzida. Jokilehto (2003), ao buscar explicações para esse fato, afirma:
Acessar a significância de algo normalmente leva tempo. No caso do
patrimônio moderno, a distância é ainda curta e o julgamento é difícil.
Ainda que nossos entornos sejam em grande parte resultantes de
obras do Movimento Moderno, nós temos dificuldade em
compreendê-los, pois parece que estamos julgando a nós mesmos
(JOKILEHTO, 2003, p.108-109, tradução nossa).
A conservação da AM é, portanto, complexa, tanto pela dificuldade de
reconhecimento de seus valores, quanto pela capacidade de responder
satisfatoriamente aos desafios impostos por suas especificidades. Todavia, os processos
30
de projetar e de construir edifícios modernos ainda estão vivos na memória,
oferecendo um potencial para entendê-los de uma maneira muitas vezes superior
àqueles empregados na arquitetura tradicional.
2. A arquitetura moderna e as cartas patrimoniais
Muitas foram as cartas elaboradas desde a publicação da Carta de Atenas (1931).
Este artigo não se propõe a esgotar o tema da aplicabilidade desses documentos à AM.
Pretende-se discutir, à luz dos sete aspectos identificados por Macdonald (2003), em
que medida o conteúdo trazido por algumas das cartas de maior relevância já
produzidas pode dar respostas aos desafios impostos pela AM.
Projeto e funcionalismo
A seção anterior pontuou as dificuldades de adaptação a novos usos comuns aos
edifícios modernos. Por outro lado, é consenso entre os documentos publicados desde
a Carta de Veneza (1964) que a continuidade de uma função útil à sociedade é
imprescindível para a conservação do patrimônio arquitetônico e urbanístico.
O paradoxo que se instaura é comum a edifícios de qualquer período. A
prerrogativa de que a reutilização é condição imprescindível para a preservação parece
ter produzido entre os técnicos e especialistas em conservação a ideia de que no
interior são aceitos critérios de intervenção mais flexíveis que aqueles aplicados no
invólucro externo.
É interessante observar que na mesma Carta de Veneza (1964), em que é
ressaltada a importância da destinação de um uso contemporâneo ao patrimônio, está
também disposto que as alterações necessárias à adaptação não devem implicar
alterações na disposição ou decoração dos edifícios.
A despeito desse entendimento, antigas alfândegas viram shoppings, igrejas se
transfiguram em salas de exposições, galpões portuários em bares e restaurantes, entre
outros. Essa postura, tão disseminada na prática da conservação do patrimônio, tem
como consequência a fragmentação da natureza própria da arquitetura, ao tratar
interior e exterior como entes independentes, e não como partes que, articuladas,
constituem o espaço arquitetônico. Se a arquitetura se consubstancia por meio do
espaço, o desafio posto à reutilização de um exemplar moderno ou de um do período
colonial é o mesmo: dotar o edifício de um uso compatível23 com suas características
compositivas, e não o contrário. Assim, os desafios trazidos pelo projeto funcionalista
moderno à introdução de novos usos não são, em princípio, distintos ou maiores que
os de edifícios de períodos anteriores.
A complexidade da preservação e conservação, todavia, não pode servir de
argumento para o abandono. Como dispõe a Declaração de Amsterdã (1975), o
patrimônio precisa ser tratado como parte integrante da cidade, que tem uma função
social a cumprir. Neste documento é explicitamente defendido que mesmo naqueles
Por uso compatível, segundo a Carta de Burra (1999), entende-se aquele que respeita e não provoca
mudanças na significância cultural do sítio em que o edifício se localiza.
23
31
casos nos quais as operações de restauração são mais onerosas que a construção do
novo, os “custos sociais” da segunda opção são maiores.
Outra questão de grande importância trazida pela Carta de Veneza (1964) referese às adições. No corpo dessa carta está disposto que as contribuições de todos os
períodos devem ser respeitadas e mantidas, a menos que não possuam interesse ou
estejam ocultando algo de valor. Se a AM foi projetada como um produto acabado,
como manter as adições sem comprometer a sua estética?
Em princípio pode-se dizer que a dimensão estética deve prevalecer em
detrimento da dimensão histórica nos edifícios modernos. Tal postura poderia se
contrapor à Carta de Veneza e até mesmo à visão contemporânea de conservação, mas
poderia ser justificável perante a sociedade, e mesmo perante os especialistas, quando
se considera que se trata de um edifício moderno concebido enquanto um artefato
fechado, concluído.
Ainda que esse “desejo” de remover adições seja muitas vezes legitimado por um
grupo, generalizações podem ser arriscadas considerando a multiplicidade estilística
incluída sob a denominação de AM. Brandi (1964) propõe que o processo de tomada de
decisões relativo à restauração de obras de arte (estando aí incluídas as obras de
arquitetura) seja realizado a partir de um juízo crítico entre as instâncias estética e
histórica; esse é também o caminho mais acertado para se decidir sobre a manutenção
ou não das adições nos edifícios modernos.
Tempo de vida, materiais, detalhamento e manutenção
A Carta de Veneza (1964), em relação à conservação, defende que a forma mais
adequada de alcançá-la é por meio da manutenção regular e permanente. Na AM,
como disposto, a conservação dos edifícios impõe desafios específicos decorrentes do
pouco conhecimento à época de sua construção das propriedades dos materiais
utilizados, como também da primazia do ato criativo sobre a manutenção e a
sustentabilidade dos edifícios. Nesse sentido, a manutenção periódica, como forma de
retardar o envelhecimento precoce e de evitar intervenções restaurativas é postura
desejável.
Construções emblemáticas do modernismo, como o Edifício Seagram em Nova
York, de Mies van der Rohe, e o Parque Guinle, de Lúcio Costa, no Rio de Janeiro, vêm
sobrevivendo em muito bom estado graças à aplicação de processos contínuos de
manutenção (ZANCHETI, 2009).
Nos casos em que o restauro ou a reconstrução é inevitável, a Carta de Veneza
(1964) dispõe que o desafio consiste em fazer uma diferenciação clara e, ao mesmo
tempo, harmônica entre as partes antigas e as novas.
Muitos dos materiais utilizados nos edifícios modernos ainda são utilizados hoje,
no entanto de uma forma tecnologicamente mais desenvolvida. Esse fato acaba por
gerar tendência a intervir por “substituição” e não por “conservação”. O refazimento
de partes do edifício com o mesmo material, fazendo uso de técnicas mais avançadas,
apaga o que Viñas (2001) convencionou chamar de valor historiográfico da técnica.
32
Foi buscando evitar que se corrompesse esse valor e o traço historicizado da
fachada do edifício Pirelli, Milão – Itália, que a equipe responsável pela restauração
procedeu. Projetado e realizado entre os anos de 1956 e 1961 por uma equipe
coordenada pelo arquiteto Giò Ponti, o conjunto Pirelli representa uma das maiores
expressões arquitetônicas do século passado, na qual as soluções tecnológicas se
integram perfeitamente com as escolhas formais e decorativas (CARBONARA;
CAMPANELLI, 2003).
Os danos decorrentes da colisão de uma aeronave de pequeno porte no ano 2002
atingiram, sobretudo, o exterior do volume mais importante do conjunto, a torre de
cerca de 130 metros, com duas fachadas quase completamente em vidro, excetuando-se
as partes estruturais em cimento armado (pilastras e laterais), que são revestidas com
mosaico de pastilha cerâmica.
A intervenção nas fachadas teve duas grandes frentes: o restauro de parte dos
perfis metálicos da cortina de vidro e a recuperação do mosaico de pastilha cerâmica.
Em relação à cortina de vidro, a primeira decisão foi conservar seus perfis em
alumínio, evitando substituições por elementos novos análogos ou por um sistema
contemporâneo. Vidros e guarnições foram substituídos de modo a garantir padrões
adequados de conforto e bem-estar térmico, enquanto isso foi realizada a recuperação
dos perfis metálicos e de seus acessórios, posto ser eles de reconhecido valor
arquitetônico e construtivo. Excluindo-se aqueles irremediavelmente danificados ou
perdidos, cada parte foi limpa, rechumbada e reanodizada, a fim de que readquirisse a
funcionalidade e a capacidade de resistência aos agentes atmosféricos, conservando,
porém, os traços de seu natural envelhecimento (CARBONARA; CAMPANELLI, 2003).
A mesma linha conceitual orientou a intervenção sobre o revestimento do
mosaico de pastilha cerâmica da fachada. Depois de um atento mapeamento dos
danos, foi realizada a consolidação e a limpeza das pastilhas e, onde foi necessário, a
reintegração com elementos novos. A opção pela uniformização entre partes originais e
partes integradas justificou-se pelo desejo de não fragmentar a imagem do edifício – na
qual as pastilhas representam uma estrutura orgânica e contínua sem que prevaleça
nenhum elemento – e em razão da relativa pequena extensão percentual da lacuna
(CARBONARA; CAMPANELLI, 2003).
O restauro do conjunto Pirelli pode ser tomado como um caso paradigmático de
restauração de um edifício moderno, seja pelo respeito aos materiais e às técnicas
originais, seja pelo cuidadoso processo de documentação.
Pátina do tempo
Em 1972 foi publicada na Itália a Carta do Restauro, que traz para o debate da
conservação uma importante noção: a de pátina.
De acordo com esse documento, a pátina, entendida como o efeito da passagem
do tempo nas superfícies dos objetos, deve ser conservada por razões históricas,
estéticas e técnicas. No caso dos edifícios modernos, como visto anteriormente, não é
consenso a manutenção da pátina, especialmente quando se argumenta que eles não
foram projetados para envelhecer.
33
A passagem do tempo deixa marcas nos edifícios modernos e, ainda que eles
tenham sido pensados para não carregar tais marcas em suas superfícies, é importante
que a pátina seja mantida porque houve um transcurso no tempo que não deve ser
apagado.
A intervenção no conjunto Pirelli traz, também neste aspecto, contribuições
importantes. Segundo Salvo (2005), o princípio orientador da intervenção adotado pela
equipe foi o reconhecimento do valor de “trâmite” que a matéria autêntica possui na
perpetuação da imagem e, naturalmente, do valor histórico e também estético do
objeto.
A partir dessa abordagem, o edifício foi aceito como era, “marcado pelo tempo,
em sua forma e substância” e, “mesmo os ‘defeitos’, erros técnicos ou alterações
superficiais do material representam testemunhas históricas do processo que conduziu
à situação contemporânea, devendo assim ser conservados absolutamente ‘autênticos’”
(SALVO, 2005, p. 68, tradução nossa).
A opção pela manutenção ou limpeza da pátina deve resultar de um juízo crítico
que considere, por um lado, a sua importância estética e como elemento que agrega ao
edifício valor de ancianidade e, por outro, o limiar em que esta deixa de ser um efeito
positivo para se tornar algo destrutivo, por se formar a partir da degradação do
próprio material.
Reconhecimento
A Carta de Burra (1999) é uma das mais importantes cartas patrimoniais já
publicadas em virtude da abrangência dos temas que trata e da precisão dos conceitos
que propõe relativos à conservação. Nesse sentido, apesar de trazer entendimentos já
presentes em outras cartas, pode-se dizer que ela é mais completa e operacional que a
Carta de Veneza (1964), documento norteador de sua construção, além de ser
responsável por vincular definitivamente a conservação do patrimônio à sua
significância cultural.
Segundo esse documento, o fim principal de qualquer ação que envolva o
patrimônio deve ser a garantia de sua significância cultural. No corpo dessa carta está
disposto que, em primeiro lugar, deve vir “a compreensão do significado cultural,
depois o desenvolvimento da política e, finalmente, a gestão do sítio de acordo com
essa política”.
Reconhecer a significância cultural de edifícios do movimento moderno ainda é
um desafio, pois são difíceis os consensos sobre os valores passíveis de conservação
entre os envolvidos com esses bens, em especial quando se considera o público
comum.
O único caminho para despertar nas pessoas a consciência da importância de
preservar os edifícios modernos é por meio de programas de educação e divulgação de
suas características e de seus significados. Como afirma a Carta de Burra (1999), a
significância cultural nem sempre está a vista, muitas vezes é preciso explicitá-la.
34
3. Por uma agenda de discussões sobre a conservação da AM
As discussões até aqui construídas demonstram que os princípios balizadores da
conservação da arquitetura de períodos mais antigos são capazes de dar respostas à
problemática específica da AM. No entanto, enquanto há muitas posturas consensuais
do que vem a ser boas práticas de conservação e restauração em edifícios ditos
tradicionais, nos exemplares modernos os consensos ainda estão por serem formados.
Sem perder de vista que no campo da conservação do patrimônio cultural não há
respostas prontas, esta seção buscará levantar aspectos com os quais os profissionais
envolvidos na conservação da AM deverão ser deparar. Para tanto, alguns pontos
tratados nas seções anteriores serão retomados em forma de premissas, bem como
outros serão levantados. Pretende-se, assim, sistematizar essa problemática, apontando
caminhos para seu entendimento e enfrentamento.
Premissa 1: Reconhecer a significância cultural de edifícios do movimento
moderno é o maior desafio à sua conservação. A ausência de consciência patrimonial
está relacionada tanto à falta de conhecimento sobre os significados históricos e
artísticos dos bens, como a inexistência de um sentimento de identificação e
pertencimento das pessoas para com eles. É necessário conscientizar a comunidade por
meio de programas de educação e de divulgação de suas características e de seus
significados, para tanto o especialista tem papel central. Apenas por meio dessa
mobilização é possível alcança o apoio político necessário para se proceder à sua
conservação.
Premissa 2: O experimentalismo, tanto no uso de novos materiais e técnicas,
como no emprego de materiais tradicionais de maneira não usual, é um traço comum à
AM. Uma das principais consequências dessa particularidade é o envelhecimento
precoce e a deterioração acelerada. O caminho mais adequado para retardar esse
processo e evitar intervenções restaurativas – sempre mais impactantes – é por meio da
realização periódica e programa de ações manutenção.
Premissa 3: A continuidade de função útil à sociedade é condição imprescindível
para a conservação do patrimônio arquitetônico e urbanístico moderno. O preceito de
que a forma segue a função pode ser rompido quando são destinados usos não
condizentes com o projeto funcionalista moderno. Usos que requeiram mudanças na
espacialidade interna ou na decoração dos edifícios devem ser evitados, sob a pena de
perda de suas características projetuais e figurativas autênticas. O desafio é melhorar
suas condições de uso e de conforto ambiental sem comprometer sua espacialidade e
figuratividade
Premissa 4: Os edifícios modernos estabelecem estreita relação com o entorno
urbano ou rural onde são implantados, que pode ser, harmônica, ao buscar integração,
ou contrastante e conflituosa, ao buscar a ruptura. Por isso, é latente a necessidade de
preservar o entorno o mais próximo possível do original, como forma de compreender
o significado do próprio edifício.
Premissa 5: Muitos dos materiais utilizados na AM ainda são utilizados hoje, no
entanto de forma tecnologicamente mais desenvolvida. A questão a ser enfrentada
para que não se apague esse aspecto da autenticidade diz respeito ao cuidado no
emprego, quando necessário, de técnicas construtivas e materiais atuais. Quando não
35
for possível ou desejável fazer uma distinção clara entre as parte novas e as originais, é
fundamental que a intervenção seja documentada por meio de registros escritos e
fotográficos.
Premissa 6: A passagem do tempo deixa marcas nos edifícios modernos, ainda
que eles tenham sido pensados para não carregar tais marcas em suas superfícies. É
importante que a pátina seja mantida porque houve um transcurso no tempo que não
deve ser apagado ou mascarado, sob pena de perda de significados tanto históricos
como estéticos desses edifícios. Quando for necessária intervenção que acarrete
substituição dos materiais, deve-se buscar a utilização de materiais que proporcionem
envelhecimento das superfícies semelhantes aos originais.
Premissa 7: Grande parte dos exemplares da AM foram concebidos enquanto
objetos de arte, ou seja, como obras concluídas. Adições posteriores podem
comprometer suas características projetuais e figurativas autênticas e, por esta razão, a
postura principal deve ser favorável à sua remoção. Todavia, a cautela recomenda que
qualquer processo de tomada de decisões relativo à conservação e restauração de obras
de arquitetura seja realizado a partir de juízo crítico entre as instâncias estética e
histórica.
A discussão construída neste artigo teve foco eminentemente teórico acerca da
conservação da AM. Ainda que tenha buscado ilustrar tal discussão com pequenos
estudos de caso, na prática da conservação, cada intervenção irá demandar novos
desafios. Todavia, apesar do seu caráter geral, as premissas explicitadas são capazes de
apontar direções que possam se constituir numa agenda, ainda que embrionária, para
elaboração de novas cartas, focadas nos desafios impostos pela AM. O caminho está
aberto, mas não resta dúvida de que ainda há muito a ser percorrido.
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37
GESTÃO DA CONSERVAÇÃO-RESTAURAÇÃO DO
PATRIMÔNIO CULTURAL: ALGUMAS REFLEXÕES SOBRE
TEORIA E PRÁTICA
Ozana Hannesch, Elisabete Edelvita Chaves da Silva♦, Marcus Granato♥ & Ana Paula
Corrêa de Carvalho♠
Resumo
Este artigo traz reflexões sobre como as correntes teóricas do campo da
conservação definem as práticas e os padrões das ações de intervenção no
patrimônio cultural. Reforça que a ação dos Conservadores está na
materialidade, mas o que se espera preservar e/ou conservar são os valores
associados com o patrimônio. Estes valores são influenciados por razões
temporais, sociais e subjetivas. Então, os contextos que determinam os
objetos da conservação-restauração, durante toda a história desta
disciplina, trazem consigo implicações para a autenticidade, a integridade e
a subjetividade, e têm impacto nas decisões técnicas e críticas dos
profissionais desta área.
Palavras chave: patrimônio cultural, gestão da conservação, teoria da
conservação.
Introdução
Na sua estruturação enquanto disciplina a Conservação-restauração esteve ligada
à pesquisa, tanto no aspecto teórico quanto prático, pois a construção do campo pelos
antiquários e, posteriormente, pelos arquitetos-restauradores do século XIX e XX
estava relacionada à experimentação concomitantemente a um habitus teórico que
respaldasse a intervenção.
Viollet-le-Duc, Ruskin, Brandi e tantos outros definiram suas orientações de
acordo com os códigos e atitudes estabelecidas nos cortes temporais que constituem a
história por eles vivenciada, e que foram assimiladas ou não, de acordo com os novos
grupos sociais herdeiros dos patrimônios construídos pelas humanidades, ou seja,
pelas diferentes culturas. Choay escreve que:

Museu de Astronomia e Ciências Afins. [email protected]
♦ UNIRIO. [email protected]
♥ Museu
♠ UFRJ.
de Astronomia e Ciências Afins. [email protected]
[email protected]
38
É uma concepção comum da arquitectura memorial que leva Ruskin a considerar
os monumentos do passado como sagrados e intocáveis e Viollet a promover uma
aproximação histórica e didáctica da restauração...
[...] Quando preconiza a restauração, Viollet trabalha num país em que disse e
repetiu que ignorava a cultura de manutenção (Choay, 2009, p.33).
Boito dirige-se para o valor documental dos monumentos: o respeito pela matéria
original, à unidade de estilo e à distinguibilidade. Riegel diferencia os conceitos de
monumento e monumento histórico e os valores a eles inerentes, como os
rememorativos e os de contemporaneidade e, assim, subsidia as novas premissas que
sustentam o patrimônio e as categorias das intervenções, ao definir também o valor
instrumental e o valor artístico relativo etc. “Ele demonstrou que em matéria de
restauração não pode existir nenhuma regra científica absoluta, cada caso inscreve-se
numa dialética particular de valores em jogo...” (Choay, 2009, p.35).
Brandi, que nos é mais próximo, preconiza diretrizes de observância à estética, à
história, à função e à ambiência cultural. Vê o empirismo como inerente ao ato de
intervenção, ao considerar que o restauro é um ato crítico no qual devemos dar atenção
para o juízo de valor. Viñas direciona para a sociedade a coresponsabilidade da gestão
da conservação, que deve subsidiar a intervenção.
Esses profissionais gestores – restauradores, arquitetos, historiadores,
administradores – demonstram-nos que as práticas têm acompanhado os valores
intrínsecos em cada época e que os preceitos teóricos fazem parte dos desdobramentos
que essas ações desencadeiam. Assim, apesar de intervir na materialidade, o que se
deseja preservado ou conservado são os valores: temporais, sociais e subjetivos
inerentes aos patrimônios culturais, decorrentes dos grupos sociais que os constroem.
As características constitutivas do patrimônio, constatadas pelo olhar do final do
século XX e início do século XXI, tais como ambiguidade, polissemia, materialidade,
etc., requerem a ampliação do foco dos gestores para fora dos seus domínios de
trabalho, em função do caráter inclusivo deste conceito, das categorias e dos seus
limites.
1.
Termos e conceitos
Como uma disciplina em fase de consolidação, a Conservação-Restauração ainda
hoje enfrenta uma terminologia difusa no seu uso. Os verbos preservar, conservar e
restaurar aparecem em diferentes contextos e épocas, às vezes como sinônimo, às vezes
como excludentes.
Se considerarmos a adoção do termo conservação preventiva e sua definição
mais recente (Vantaa, 2000), percebemos que ainda estamos longe de chegar a um
39
acordo nestas conceituações, especialmente quando recordamos o questionamento de
Viñas (2003) que defende, por definição, que toda conservação já embute uma ideia de
prevenção, não?
Por fim, acentuando esta problemática frente aos conceitos utilizados no exercício
profissional, trazemos o termo restauração preventiva, utilizado por Brandi (2004). Aos
olhos do século XXI podemos afirmar que estas discussões já estão superadas dentro
do que chamamos de linguagem especializada?
Toda esta terminologia repercute nos equívocos e na compreensão que o público
em geral faz destes termos, ao mesmo tempo em que é por meio destas discussões que
nossa visão profissional vai se tornando mais clara quanto aos conceitos. Jokilehto
coloca o tema da seguinte perspectiva:
Os conceitos modernos relacionados com a conservação do patrimônio cultural e
natural estão fundamentalmente relacionados com o desenvolvimento da
modernidade. Esse desenvolvimento começa no século dezoito, embora baseado em
raízes mais antigas. A própria modernidade é marcada por várias mudanças na
sociedade, indo de inovações técnicas e cientificas a aspectos sociais e econômicos e a
reflexões filosóficas e culturais. (Jokilehto, 2002, p. 12).
A visão deste autor traz uma perspectiva sincrônica em função da temporalidade
nos quais estão inseridos os processos de conservação-restauração de bens culturais. E
que, na atualidade, encontramo-nos, cada dia mais, diante de um ideal de
inclusividade de valores, difícil de ser delimitado na interdisciplinaridade.
2.
Correntes teóricas
Pode-se afirmar que o interesse histórico e científico pelos monumentos antigos
desenvolve-se muito lentamente no período conhecido como Renascimento. Mas é
apenas com a Revolução Francesa que se inicia o empenho e a intervenção do Estado
pela preservação destes, assim como pela sua promoção como de interesse público.
Para Luso, Lourenço e Almeida (2004), neste período, tornou-se necessário não só
protegê-los, mas definir as metodologias para sua conservação e restauração de uma
forma entendida como adequada. É possível verificar o quanto essas iniciativas deram
origem às primeiras legislações nos países europeus e que, posteriormente, foram
assimiladas por países do continente americano e disseminadas por organismos
internacionais governamentais como a UNESCO, o ICOM, ICOMOS, ICCROM, entre
outros.
Eugène Emmanuel Viollet-Le-Duc (1814-1879) desponta, na França, um dos
primeiros teóricos da restauração, fundamentando a intervenção no conhecimento do
passado para, entendendo às intenções do autor e a lógica do projeto, recompor a
40
construção para o que seria sua forma ideal: a pureza de estilo (Violllet-le-Duc, 2000).
Estas ideias foram explicitadas no Dicionário de Arquitetura Francesa, publicado entre
os anos de 1854 e 1871, especialmente no verbete Restauração. Sua produção teórica
não o eximiu das críticas que se apresentaram ao caráter de suas intervenções,
conforme coloca Choay (2006), que escreve:
A noção de estrutura, porém, levava-o a retomar, ao empreender a restauração
real dos edifícios medievais, a atitude idealista que havia presidido às “restaurações”
dos monumentos clássicos desenhadas pelos antiquários e que davam continuidade às
“restituições” da Escola de Belas Artes. Reconstituindo um tipo, ele se mune de uma
ferramenta didática que restitui ao objeto restaurado um valor histórico, mas não a sua
historicidade (CHOAY 2006, p. 158).
Na sua contemporaneidade as ações de Viollet foram interpretadas como uma
intervenção drástica e, numa época posterior, como um falso histórico. Entretanto, na
tarefa de conhecer a obra, procurava reunir o maior grupo de documentos e de
documentação para entendê-la. Esse esforço em prol de uma pesquisa que
fundamentasse as intervenções talvez seja seu principal legado.
Em oposição ao que poderíamos chamar da corrente teórica difundida por
Viollet, está John Ruskin (1819-1900), Inglaterra, que difundia o absoluto respeito à
matéria original e negava qualquer possibilidade de intervenção no edifício que não
fosse apenas para sua manutenção. Propunha considerar e manter as alterações feitas
em uma obra durante sua existência. Ao tratar deste tema Jokilehto afirma:
A nova consciência histórica que evoluiu do século dezoito chamou a atenção
para o significado da autenticidade do material histórico dos monumentos antigos.
Compreendeu-se que o trabalho de um artesão ou de um artista era inevitavelmente
caracterizado pela cultura e pelas condições socioeconômicas da época. Era, portanto,
impossível reproduzir o trabalho em seu significado original em um contexto cultural
diferente, mesmo que as formas fossem fielmente copiadas (Jokilehto, 2002, p. 13).
Neste sentido, ao revermos os preceitos difundidos por Ruskin, percebemos o
respeito máximo ao tempo de existência de uma obra, um aspecto do conceito de
autenticidade, relacionado ao seu caráter documental. Contudo, ao buscar a
manutenção ou sua conservação, em que medida se afeta ou afetará seu valor
simbólico? Ainda hoje nós, profissionais da conservação-restauração24, nos
defrontamos com esta pergunta.
No final do século XIX e início do século XX, surge ainda Camillo Boito (18361914), na Itália, que defendia uma intervenção mínima – a essencial para que o edifício
Aplicamos aqui este termo a fim deixar claro o uso dos dois conceitos, isto é, a Conservação como mais
abrangente, englobando a Restauração (ação restrita e especializada), e a conservação, tanto preventiva
como curativa, porém com intervenções sobre o acervo ou ambiente. Do mesmo modo retomaremos o
termo neste texto quando desejarmos fazer esta ênfase.
24
41
mantivesse a unidade de estilo, com a preservação da pátina – mas, se necessário,
também a demolição de elementos acrescentados com o tempo (Boito, 2002).
Considerava, numa linha mais centralizada, que toda adição de recomposição deveria
ser claramente identificável, “consolidando uma via, conhecida na Itália como ‘restauro
filológico’, que dava ênfase ao valor documental da obra” (Kühl, 2008, p. 19). Os
princípios deste verbete de atuação foram apresentados no III Congresso de Arquitetos
e Engenheiros Civis, em Roma, 1883.
Nesse contexto considera-se que todo objeto está arraigado de informações que
dizem respeito à cultura de onde advêm materiais (localidade, especificidades
constituintes), estilo que representam (apresentação estética, período), uso (culto,
artefato, arte, moradia); nível tecnológico e científico em que foram
criados/produzidos (técnicas construtivas, alteração dos materiais) etc. Estes
elementos contêm dados sobre as obras e as identificam, sendo importantes
ferramentas no trabalho de todo conservador-restaurador.
No rastro da Segunda Grande Guerra Mundial, monumentos e coleções inteiras
ficaram muito danificados, gerando um movimento de questionamento dos conceitos
do "Restauro Científico" que exigiam postura de quase neutralidade do
arquiteto/conservador em relação ao bem cultural. Uma nova postura prevaleceu, o
Restauro Crítico, com uma atitude mais flexível por parte dos profissionais,
principalmente europeus, face à pressão social e política pela recomposição de
monumentos e objetos danificados.
Em 1964, durante um congresso em Veneza, os princípios do Restauro Científico
voltam a prevalecer, sendo ampliados e revistos na Carta Italiana de Restauro de 1972,
por Cesare Brandi. Brandi, acrescentou outras questões e reflexões aos que o
antecederam, buscando entender a obra na sua materialidade e epifania, definindo que
(Brandi, 2004):a) restaura-se a matéria da obra de arte, ou seja, sua estrutura – é sobre
ela que devemos atuar;
b) entretanto, esta restauração visa restabelecer a unidade potencial da obra, em
toda sua manifestação, sem cometer o falso artístico ou o falso histórico.
Brandi (2004) aplica o fundamento de que na obra de arte deve haver prevalência
do critério estético sobre o histórico, por ele considerá-lo sua função primordial.
Verifica-se ainda, na episteme desta consciência, o critério que permitia ao artesãorestaurador experimentar uma relação de criação com a obra, ao mesmo tempo em que
desenvolvia a prática das intervenções, possibilitando, contudo, reflexões e
questionamentos sobre a disciplina que estava se estabelecendo. Viñas (2006) afirma
que isto se dá dentro de uma atmosfera do restauro ainda intuitivo e subjetivo.
É possível reconhecer, nestas poucas linhas de texto, princípios que hoje
continuam orientando critérios de intervenção não somente da parcela do patrimônio
cultural denominada de “patrimônio arquitetônico”, mas também do artístico,
42
bibliográfico, arqueológico, entre outros. Estas foram tentativas de disciplinar os
tratamentos, a fim de que não trouxessem prejuízos às obras, o que nem sempre se
pode considerar que foi sucedido. Entretanto, são ações carregadas do contexto de suas
épocas e experiências inequívocas de delimitar o “campo” da conservação
/restauração.
Neste quadro, surge um novo paradigma do final do século XX, que tem como
marco a perda de patrimônio nas enchentes de Florença (1966 – Itália) e a tomada de
consciência sobre o problema da poluição desenfreada, da chuva ácida, e do papel
quebradiço (1960 – EUA). O foco das ações direciona-se a recuperar grandes volumes
de acervos e edificações que foram danificados e que necessitam de longo prazo, alto
custo e inúmeros especialistas para serem recuperados, sem a certeza de que o trabalho
seria concluído de forma adequada ao custo versus benefício. Junta-se a esta dúvida o
alargamento do conceito de patrimônio, que amplia cada vez mais os domínios de
atuação da conservação-restauração e a participação das outras disciplinas que lhe são
complementares.
É também neste período da segunda metade do século XX, que a ConservaçãoRestauração tornar-se uma disciplina mais científica, na tentativa de abandonar os
modelos mais artesanais, para reivindicar legitimação enquanto ciência independente.
Entretanto, esta área vê-se em frente a dois problemas imediatos: 1) ausência de
formação especializada – consequentemente, tendo um número restrito de
profissionais com formação acadêmica e de pesquisa – e, 2) a necessidade de
reaproximação com o viés humanístico, que lhe é característico deste seu estágio
empírico. Tenta, assim, caminhar para uma visão de cunho mais interdisciplinar e
comprometido com aspectos culturais, científicos, bem como políticos e
administrativos. Aqui se verifica uma nova perspectiva de reflexão crítica, que produz
transformações na prática, técnica e ética da profissão.
Desde o início da disciplina Conservação-Restauração, sempre estiveram
presentes as orientações quanto à documentação e estudos preliminares para o
entendimento dos aspectos formais, do projeto original, da epifania da obra e seu
reconhecimento enquanto obra de arte, preceitos estes originados no Humanismo.
A apropriação e destruição do patrimônio cultural em decorrência de guerras e
invasões impulsionaram os gestores do patrimônio e de aí decorrem o advento das
‘cartas patrimoniais’, os esforços para aplicação de novos materiais de intervenção e os
novos métodos de exame e de tratamento com base científica (que é uma forte corrente
já no século XX), posturas que influenciam o trabalho desta disciplina, refletindo num
período reconhecido como Restauro Científico. Junta-se a isto a dificuldade de
reconstrução e duma enormidade de edifícios destruídos pelas grandes guerras na
Europa, o que suscita a reconstrução dos elementos materiais e do aspecto formal de
prédios e cidades, com vista a recuperação de seu valor simbólico.
43
Tais situações vêm ao encontro da mudança no cenário social de valorização do
passado e presente, que depois serão absorvidos dentro dos códigos de ética e da
atuação do profissional da conservação-restauração como princípios basilares, que
ainda são aplicados nos dias atuais.
3.
A tomada de consciência: o valor simbólico e intangível
Verificamos que as práticas interventivas sempre existiram. Muitas delas
originadas de desenvolvimentos tecnológicos que foram assimilados rapidamente por
inúmeros países, sob pena de parecerem subdesenvolvidos. Entretanto, algumas
práticas foram aplicadas sem o tempo de maturação necessário à avaliação dos seus
efeitos em longo prazo e de acordo com padrões locais, ambientais e, porque não dizer,
materiais, distintos de onde eles foram replicados.
Estas ações de intervenção, baseadas em tendências internacionais, como o foram
os produtos clareadores sobre o papel, os adesivos não removíveis em telas, entre
outras, não eram dirigidos para a especificidade da materialidade inerente ao
patrimônio cultural brasileiro, por exemplo, nem para os ambientes onde ele estava
inserido.
Adriana Hóllos em sua dissertação coloca que nós, profissionais da conservaçãorestauração precisamos perceber nosso papel para além da utilização de um conjunto
de técnicas e materiais aplicáveis. A autora lembra que já existem pressupostos e bases
teóricas na área estabelecidas desde no século XIX (Hollós, 2006). Assim, tomando
como afirmação uma ação difundida por Brandi, precisamos nos utilizar do ato crítico,
a fim de estabelecermos nossas práticas e definirmos a base teórica considerada, para a
sociedade, profissional e adequada.
Como afirma Viñas (2003), reconhecemos que, com o restauro, a obra ganha
outra dimensão e atualiza-se, nunca mais será como antes. Contudo, existe uma
preocupação cada vez maior com a autoria, os materiais originais, a investigação
científica, a documentação e contextualização da obra. Porém, isto só respalda o
partido da intervenção e, como já afirmado neste texto, depende dos pressupostos de
cada época. A intervenção é, então, caracterizada pelo período em que foi realizada:
materiais, técnicas, níveis de intervenção e por atitudes subjetivas, a partir de
abordagens filosóficas particulares e individualizadas sobre a obra.
A tomada de consciência verifica-se, no final do século XX, dentro do
reconhecimento do caráter interdisciplinar em que o trabalho passa a ser realizado – ou
deveria sê-lo. Esta abordagem reflete uma visão mais holística dos ‘aspectos’ que
afetam não só o patrimônio cultural, como também e, especialmente, o patrimônio
natural. Assim, a Conservação-Restauração hoje deve ser pensada numa escala que
prima pelo equilíbrio do planeta – ambiental, econômico, político, social cultural, e
44
numa visão que conjugue: globalização e identidade, participação e responsabilidade
social.
Neste sentido, é no final do século XX que reconhecemos a dimensão e o peso de
outro valor inerente aos bens culturais, que até aquele momento não havia sido
definido pelos teóricos de nossa área: o valor simbólico, conforme coloca Vinãs:
Ninguna circunstancia material justifica la preocupación por ellos, porque su
valor es otro: es un valor convencional, acordado y concedido por un grupo de
personas, o incluso, en ciertos casos, por una sola persona. Sobre estos objetos se
vuelcan unos valores que en realidad corresponden a sentimientos, creencias o
ideologías, es decir, a aspectos inmateriales de la realidad (2006, p.41).
É o entendimento do bem cultural em seu caráter simbólico e impregnado de
sentidos, um conceito ainda não explicitado. Identificamos em Brandi (2004) o ponto de
partida dos primeiros pressupostos a serem seguidos no final do século XX e início do
século XXI, ao apreender este caráter imaterial e simbólico e apontar que a restauração
atua na materialidade.
À medida que a disciplina vai se aprimorando, estreita-se também a relação com
a ciência (no sentido positivista). Basear nossas decisões no conhecimento científico, no
entendimento e proteção do(s) seu(s) significado(s), na documentação que lhe deve ser
complementar, na expectativa e benefício do seu proprietário e da sociedade e das
gerações futuras, este é o contexto que nos encontramos hoje. Numa dinâmica social
cada vez mais veloz... Como não cristalizar o patrimônio sem des-significá-lo25? Como
atualizá-lo na dinâmica temporal, considerando sua materialidade e imaterialidade26?
Entretanto, passados mais de trinta anos das primeiras reflexões de Brandi, ainda
nos encontramos buscando pontos de apoio mais seguros para a tomada de decisão e
de entendimento e proposição das intervenções, sem, contudo, de estarmos eximidos
de alguma crítica. O que é correto? Melhor seria perguntar: que atitude é aceita na
sociedade atual.
4.
Os contextos do Conservador-Restaurador no Brasil atual
Dentro do contexto e das questões apresentadas anteriormente, voltamos o nosso
olhar para a área de Conservação-Restauração no Brasil. A restrita formação e pesquisa
no campo representam ainda a reaplicação das técnicas de intervenção adotadas no
exterior, sem a devida crítica e reflexão, o que vem sendo, nos últimos 10 anos,
Queríamos aqui reforçar a ideia do termo significado, pois entendemos que este tem um sentido
simbólico distinto para cada grupo social ou individuo.
26 Utilizamos este termo aqui em oposição ao anterior, mas preferimos a forma patrimônio intangível.
Neste sentido, o termo a ser utilizado seria intangibilidade.
25
45
substituída pelos estudos sobre a avaliação dos espaços de guarda, sobre o estado de
conservação dos acervos e os novos métodos e materiais de trabalho.
Já a partir do último quartel do século passado, não havia mais como pensar em
dirigir-se apenas para itens individualizados com o impulso da Conservação
Preventiva. As pesquisas científicas passaram a se voltar para os estudos das condições
ambientais necessárias para os acervos, os métodos de levantamento e amostragem
para seleção de materiais a serem reproduzidos, protegidos, conservados e
restaurados. Houve uma corrida para atender aos parâmetros e referenciais
estabelecidos pela Ciência da Conservação. Contudo, é necessário rever o cenário em
que estavam inseridas as políticas de conservação no Brasil.
Na década de 1980, poucos eram os especialistas na área de ConservaçãoRestauração, seja de obras de arte, arquitetura e engenharia e havia quase que ausência
de profissionais para atuar em objetos científicos. Aliás, estes últimos não eram
enquadrados enquanto categoria de patrimônio, conforme atestam os documentos
naquele período, conforme escreve Granato (2008). A formação se obtinha pela
frequência em ateliês, oficinas e “canteiros de obras” de restauro e em cursos de curta
duração promovidos por instituições de guarda ou fiscalização do patrimônio, pelo
Instituto Brasileiro de Arquitetos do Brasil – IAB, em eventos da Associação Brasileira
de Conservadores e Restauradores – ABRACOR, entre outros. Alguns profissionais,
que atuavam na a partir de meados do século XX, inclusive os vinculados a instituições
públicas, como o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, tiveram a sua
formação na Europa e nos EUA, como foi o caso de Edson Motta, entre outros.
Do mesmo modo, os projetos de restauração inicialmente não continham o nível
de detalhamento que hoje possuem. A prática da restauração começava a ter uma
maior dinâmica e um padrão adequado (isto é, que primasse pelo respeito aos
princípios éticos internacionalmente seguidos), na medida em que as obras de restauro
eram realizadas, como por exemplo, a obra de restauração do Museu da República, no
final da década de 1980.
Sobre outro aspecto, verificamos que, o reconhecimento do patrimônio cultural
brasileiro como patrimônio da humanidade pela UNESCO, a partir dos anos 80,
alavancou uma série de intervenções em Centros Históricos, incrementando as
políticas públicas de conservação dos conjuntos arquitetônicos, bem como de outros
acervos integrados. Importantes contribuições para a gestão estão inseridas no
Programa Corredor Cultural, no Rio de Janeiro, que recuperou várias edificações
localizadas no centro antigo da cidade; e em Pernambuco, no bairro do Recife, a
implantação de um núcleo de conservação integrada em parceria com a Universidade
Federal de Pernambuco, a Prefeitura, a UNESCO e o IPHAN. Esses projetos de
revitalização do patrimônio cultural só foram adotados no norte do país a partir dos
últimos anos da década de 90.
46
Entre as décadas de 1980 e 1990, destacamos, na formação de um quadro mais
acadêmico, a criação de cursos em nível de especialização, na Universidade Federal de
Minas Gerais/Escola de Belas Artes – EBA-CECOR, na Fundação de Artes de Outro
Preto – FAOP, ambos em Minas Gerais, na Universidade Federal do Rio de
Janeiro/Escola de Belas Artes, no Rio de Janeiro, na Universidade Federal da Bahia, e
na Universidade Federal de Pernambuco, estes últimos tendo continuidade nos dias
atuais. Na primeira década do século XXI, agregam-se várias iniciativas de cursos de
graduação em conservação e restauração, como os da Faculdade Estácio de Sá, da
UFMG e da UFRJ.
Conclusão
A partir das breves considerações que foram apresentadas nesse trabalho,
verifica-se que, a visão dicotômica entre prática e teoria, é mais de complementaridade
ou dissociação. Neste sentido, a Conservação-Restauração deve buscar a adoção da
prática segundo uma teoria, que lhe fundamenta e dá apoio à tomada de decisão e
respaldo à opção escolhida. Tentando, a partir deste breve histórico, fazer um paralelo
com o tema que propusemos abordar, apontamos uma sintonia e reconhecemos que
ainda nos vemos no país dentro de um estado empírico de trabalho. Reforça esta
perspectiva a recente de abertura de oferta acadêmica em nível de graduação, o não
reconhecimento da profissão, que esperamos seja instituída ainda este ano, e a busca,
ainda presente e incessante, pelo aprendizado de técnicas, sem o embasamento
filosófico e crítico necessário a esta atuação.
Estamos ainda em fase de amadurecimento, de pensar a ConservaçãoRestauração não apenas como uma questão técnica, mas, como já afirmava Brandi
(2004), uma ação crítica. Para isso, é necessário abandonar os métodos artesanais de
aprendizagem, entender o documento em seus valores constitutivos, e o acervo como
uma “representação”, no sentido adotado por Le Goff: aquele que “abrange todas e
quaisquer traduções mentais de uma realidade exterior percebida”(1984, p. ).
Como, a partir de uma complexa discussão do trinômio: preservaçãoconservação-restauração e considerando as teorias já difundidas, podemos
compreender a dinâmica e as implicações de intervir no patrimônio cultural, nas suas
perspectivas material e intangível, considerando os conceitos de autenticidade,
integridade, identidade, responsabilidade e participação social e desenvolvimento
sustentável?
Quisemos com este trabalho apresentar algumas reflexões que vimos tendo no
nosso exercício profissional e suscitar outros colegas a tornarem-se mais ativos nas
discussões políticas, administrativas e sociais que envolvem a salvaguarda e gestão de
nosso patrimônio cultural. Isto, acreditamos, apenas será conseguido com o contínuo
47
debate e crítica ao estado da arte desta disciplina em nosso país, visto que somos nós,
em diferentes eventos e momentos, que estamos em vias de consolidar o campo da
Conservação-Restauração no Brasil.
Referências
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em 7 de junho de 1884. Cotia/SP, Ateliê Editorial. p. 29-63.
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CHOAY, Françoise. 2006. Alegoria do Patrimônio. São Paulo, UNESP. 216p.
GRANATO, Marcus, CÂMARA, Roberta Nobre da. 2008. Patrimônio, Ciência e
Tecnologia: inter-relações. In: CARVALHO, Claudia S. Rodrigues, GRANATO,
Marcus, BEZERRA, Rafael Zamorano, BENCHETRIT, Sara Fassa. Um olhar
contemporâneo sobre a preservação do patrimônio cultural. Rio de Janeiro, Museu Histórico
Nacional, p. 172 – 200.
HÓLLOS, Adriana Lucia Cox. 2006. Entre o passado e o futuro: limites e possibilidades
da preservação documental no Arquivo Nacional do Brasil. 96p. Dissertação
(Mestrado) - Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, Programa de Pós
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JUKKA, Jokilehto. 2002. Conceitos e idéias sobre conservação. In: ZANCHETI, Sílvio (org.).
Gestão do Patrimônio Cultural Integrado. UFPE.
KÜHL, Mugayar Beatriz. 2008. Os restauradores e o pensamento de Camillo Boito
sobre a Restauração. In: Boito, Camillo. 2008. Os Restauradores conferência feita para a
Exposição de Turim em 7 de junho de 1884. Cotia, SP, Ateliê Editorial, p. 9-28.
LE GOFF, Jacques. 1984. Memória. Enciclopédia Einaudi. Porto, Imprensa Nacional-Casa
da Moeda, v.1, p. 11-49.
Towards a European preventive conservation strategy adopted at the Vantaa Meeting
2000. Vantaa, EVTEK , September 21-22, 7 p.
VIÑAS, Salvador Muñoz. 2003. Teoría contemporánea de la restauración. Madrid, Editorial
Síntesis. 205 p.
VIOLLET-LE-DUC, Eugène Emmanuel. Restauração. Cotia, Ateliê Editorial, 2000. 70 p.
48
A “VIA CRÍTICA” NO PATRIMÔNIO CULTURAL: UMA
PERSPECTIVA COMPARATIVA
Leonardo Barci Castriota
Resumo
Nos últimos anos, o campo do patrimônio cultural sofreu uma mudança
decisiva, deixando, na nossa opinião, a sua fase "dogmática" e se
aproximando de um ponto de vista "crítico" que aborda o patrimônio
como um fato social e historicamente determinado. Com essa mudança
de foco, as diferentes formas em que o campo da conservação constituiu
e articulou nos diferentes contextos nacionais tornaram-se objetos
privilegiados de análise. Apesar das diferentes circunstâncias e
momentos, as politicas de conservação do patrimônio em diversos
países tem trabalhado a memória nacional sob a ótica dialética da
lembrança/esquecimento. Assim, concentrando em certos aspectos em
detrimentos de outros e iluminam momentos históricos enquanto
obscurecem outros. Com essa estrutura esse trabalho revê a discussão
recente sobre o patrimônio em dois contextos nacionais - Brasil e
Alemanha - procurando mostrar, em uma perspectiva comparativa,
como ambas políticas patrimoniais sofreram mudanças radicais
Palavras chave: Patrimônio, memória, via crítica, política de conservação
Introdução
Nos últimos anos, o campo do patrimônio cultural tem passado por uma
mudança decisiva, deixando, a nosso ver, sua fase “dogmática” e acercando-se de uma
perspectiva “crítica”, em que o próprio patrimônio é percebido como histórica e
socialmente determinado. Com isso, passa-se a adotar uma perspectiva crescentemente
reflexiva, não se tomando mais as políticas da área como algo dado, derivadas do
reconhecimento de valores objetivos e universais incorporados nos bens culturais, mas,
reversamente, como construções sociais, multiplicando-se os trabalhos que examinam as
suas condições de possibilidade, o seu enraizamento temporal e social27.

UFMG. [email protected]
Como anota Andrea Daher: “Ao deixar de ser definido como uma coleção de obras canônicas,
‘patrimônio’, nesta acepção contemporânea, remete à diversidade cultural das práticas sociais. No entanto,
essa concepção, por mais que constatável em escala ocidental, não pode responder às indagações sobre as
próprias representações que a noção veicula, sobretudo nos discursos voltados para a preservação, nem
tampouco das práticas que as ensejaram. Daí a necessidade de uma perspectiva que dê conta da lógica
específica de práticas e discursos em torno de ‘patrimônio’, no interior de diferentes regimes de
representação em que foram operados, evidenciando o seu caráter tanto imaginário quanto institucional e,
assim, os seus diversos sentidos históricos.” (Daher, 2010, p. 199-200)
27
49
Ao perscrutar os diversos valores envolvidos em cada escolha patrimonial, a
teoria contemporânea em nossa área vem realizando uma “virada copernicana” de
moldes kantianos: assim como Kant colocou a razão no centro de suas investigações,
para que primeiramente fosse examinado como se processa e se fundamenta o
conhecimento, a teoria atual do patrimônio coloca o próprio patrimônio — enquanto
campo e atividade social — no centro de suas investigações, examinando
primeiramente como se processam e se fundamentam as escolhas que conformam o
corpus desse campo. Hoje, mais do que nunca, se percebe que as escolhas (e
consequentes omissões) das políticas de patrimônio são decorrentes de um Zeitgeist
determinado, e se expressam, via de regra, numa historiografia específica28. Aqui
poderíamos dizer, com Dominique Poulot, que a história do patrimônio, como tem
sido praticada “há uma geração com êxito incontestável” é “amplamente a história da
maneira como uma sociedade constrói seu patrimônio”. (Poulot, 2009, p. 12)
Neste sentido, têm sido objetos privilegiados de análise as maneiras
diferenciadas com que se articula e se constitui o campo da conservação nos diversos
contextos nacionais. Concebidas e postas em prática em momentos e circunstâncias
diversificadas nos diversos países, as políticas do patrimônio trabalham, via de regra,
com a dialética lembrar-esquecer: para se criar uma memória nacional, privilegiam-se
certos aspectos em detrimento de outros, iluminam-se certos momentos da história,
enquanto outros permanecem na obscuridade. Esse processo – marcado por seleção e
escolhas sempre discricionárias – parece oferecer um terreno ideal para se perceber o
caráter de construção social das memórias nacionais, foco de interesse desses estudos
recentes. E aqui cabe notar que essas análises críticas a que tem sido submetido o
campo do patrimônio fazem-se mais factíveis exatamente devido à intensa revisão
historiográfica que ele tem sofrido nos últimos anos, quando se tem examinado, em
profundidade e por diversos ângulos, a sua gênese social e ideológica nos diversos países.
É natural que essas revisões, esses estudos que examinam como se processam e
se fundamentam as escolhas que conformam e mantêm o corpus patrimonial, também
venham a ter ênfases diferenciadas, conforme o contexto nacional. Assim, por
exemplo, no caso dos Estados Unidos, têm se multiplicado, nos últimos anos, trabalhos
que, principalmente a partir da perspectiva especificamente anglo-saxônica da
participação da sociedade civil e abordando as questões da história social e da
memória dos lugares, submetem a uma revisão radical as políticas institucionais de
patrimônio29. Neste texto vamos passar em revista a discussão recente em dois
contextos nacionais diferentes: na Alemanha pós-Unificação e no Brasil das duas
últimas de décadas, mostrando como em cada um desses contextos, releem-se as
escolhas patrimoniais de forma também distinta.
A esse respeito, confira o capítulo “História da arquitetura e preservação do patrimônio: diálogos”, do
livro Patrimônio Cultural, de nossa autoria (Castriota, 2009, p. 65-76)
28
No caso dos Estados Unidos, podemos citar uma série de publicações, entre as quais Lowentahl, 1986;
Boyer, 1994; Hayden, 1995; Frank; Petersen, 2002; Page; Mason, 2004; Murtagh, 2006; Kaufmann, 2009.
Especial ênfase deve ser dada à edição especial do Journal of the Society of Architectural Historians (JSAH), de
setembro de 1999, que teve como tema a relação entre a preservação do patrimônio e a história da
Arquitetura, com diversos artigos abordando o tema.
29
50
1. Alemanha, reunificação e reconstrução
Em primeiro lugar, poderíamos citar aqui o caso da Alemanha, onde,
principalmente após a reunificação do país em 1990, tem ficado bastante clara a
perspectiva política e ideológica das escolhas patrimoniais, que têm sido tematizadas em
diversos trabalhos recentes. O fato é que com a incorporação da antiga República
Democrática Alemã, do leste, pela República Federal, aquele país europeu tem se visto
às voltas com muitas questões envolvendo seu passado e seu patrimônio, o que tem
feito com que se discutam ali com muita ênfase questões centrais da teoria da
conservação, entre as quais vai ter grande destaque a questão da reconstrução.
Dentre os inúmeros trabalhos que acompanham como a teoria e a prática no
campo do patrimônio têm refletido a – difícil - construção da identidade nacional
alemã, destaca-se, a nosso ver, o trabalho de síntese de Michael Falser, Zwischen
Identität und Authentizität (Entre Identidade e Autenticidade), fruto de uma tese defendida
na Universidade Técnica de Berlim (Falser, 2008). Preocupado principalmente em ligar
os discursos da história da arte e do público em geral, por um lado, com a questão da
formação da identidade nacional, por outro, Falser produz uma impressionante
história política do patrimônio alemão nos últimos dois séculos, desde o período do
Iluminismo e das reformas da Prússia-Renânia, procurando identificar e discutir
sempre o contexto das diversas escolhas patrimoniais30.
O seu trabalho vai abordar três eras bastante específicas na trajetória do
patrimônio na Alemanha: o Século XIX, o período que vai de 1945 a 1989 e o seu
momento presente, por volta do ano 2000. Suas observações sobre a teoria e o discurso
são baseadas em seis estudos de caso (Fallbeispiele), sendo que o primeiro deles aborda
o desenvolvimento da Prússia entre 1795-1840, tomando especificamente o papel de
Friedrich Gilly e Friedrich Karl Schinkel, e os casos conhecidos e polêmicos envolvendo
Marienburg e a Catedral de Erfurt. Em segundo lugar, o autor vai ter como foco o caso
do Castelo de Heidelberg por volta de 1900, apresentando-se o intenso debate no qual,
naquele momento, autores tão diversos como Georg Dehio e Alois Riegl se
manifestaram contra uma possível reconstrução das ruínas, controvérsia na qual Falser
vê o início da moderna preservação de monumentos na Alemanha. Ao analisar esse
caso, o autor ilustra sua tese de que a teoria e prática no campo do patrimônio refletem
a construção da identidade nacional, procurando esclarecer, nos processos da formação
da nação alemã, estratégias culturais recorrentes que constantemente alteram os
fundamentos da preservação do patrimônio.
À luz desse caso, Falser analisa a situação da preservação do patrimônio na
região de língua alemã (deutschsprachigen Denkmalpflege), relatando a controvérsia entre
o alemão, historiador da arte, Georg Dehio, e o austríaco, historiador da arte e
conservador geral dos monumentos, Alois Riegl, na tentativa de esclarecer diferentes
pontos de vista na conduta de conservação, tendo em vista as distintas identidades
nacionais das duas regiões. Como se sabe, o fim do século XIX foi marcado na Europa
por um excessivo nacionalismo, que teve reflexo na 1ª Guerra Mundial, que terminou
Aqui cabe se destacar também a obra do historiador norte-americano Rudy Koshar, que já havia tentado
escrever uma história social dos monumentos na Alemanha pelo menos desde o final do século XIX.
(Confira Koshar, 1998; 2000).
30
51
por dissolver a monarquia de Habsburgo – efetivamente o Império Austro-Húngaro ao
fim da 1ª Guerra – e o Reich alemão. Após 1848 (Pequena Solução Alemã), 1866 (Guerra
Austro-prussiana) e 1871 (Unificação Alemã), a “Prússia-Alemanha” e a “Áustria dos
Habsburgos” seguiram trajetórias fortemente divergentes na formação de seus Estados.
O desenvolvimento deste processo foi bastante notável no campo da cultura, da
política e da preservação estatal do patrimônio: enquanto no Império Alemão havia
desde a unificação, em 1871, o conceito de uma Kulturnation sob a qual estariam
agrupados de forma homogênea numa mesma nação língua, cultura e tradições, o
governo dos Habsburgos tinha em Viena uma capital multicultural, entendendo-se a
nação como a união de diferentes etnias que compartilhavam a mesma história e
condição. Assim, na Alemanha, após a unificação de 1871, o comando político
propagava a Kulturnation e a consolidação da história alemã, o que na prática implicou
numa separação entre poder e cultura, estando o desenvolvimento desta última
relacionado a um processo de “cultivação" e um conflito entre cultura e civilização.
O império Austro-Húngaro, por sua vez, era um Estado multicultural que em
1900 abrangia doze nacionalidades com suas respectivas línguas, tradições, além de
três religiões monoteístas combinadas. Com isso, sua característica principal vai ser
uma grande diversidade, além de uma ambivalente identidade coletiva. No círculo
intelectual de Viena no início do séc. XX vão estar em voga as ideias de uma política
cultural e artística, assim como o conceito de uma política social. Nesse ambiente, a
preservação do patrimônio também vai ser percebida como um meio de estabilização
de uma certa “ideia de Estado”, , quase federalista, e incentivador da arte, que se
constituía na virada do século na República do Danúbio. Desde o início, então, a
língua vai ser vista, simultaneamente, como um meio potencial de unificação – ou de
separação – nacional e um problema na construção de uma identidade na monarquia
dos Habsburgos31. A tese de Falser vai ser, então, que a ideia de preservação do
patrimônio de Riegl, sobretudo a sua teoria do valor de ancianidade, somente poderia
surgir dessa realidade, numa sociedade supranacional onde coexistiam várias línguas,
uma sociedade subjetiva e emocional.
O terceiro caso estudado já vai envolver a reconstrução pós-2ª Guerra Mundial,
depois de 1945, enfocando-se principalmente os debates sobre a reconstrução em
Frankfurt am Main, enquanto o quarto caso já toma a repercussão do Ano Europeu do
Patrimônio, em 1975, nos programas nacionais e iniciativas dos grupos comunitários
na República Federal, mostrando um certo caráter retrógrado da interpretação da
Alemanha Ocidental do pensamento europeu sobre o patrimônio, também expressa no
lema "Um futuro para o nosso passado"32. Em quinto lugar, toma-se o caso do
desmantelamento e a reconstrução na década de 1980, sob a égide do pós-modernismo,
do mercado de Hildesheim. Finalmente o último caso de estudo trata de Berlim após
1990, principalmente as intervenções realizadas no entorno da ilha no rio Spree, e os
debates sobre a "eliminação" da história – incômoda – da arquitetura da República
Democrática Alemã (RDA), bem como a reconstrução de uma história nacional
prussiano-alemã idealizada.
Excelentes objetos para discussão, tais como o
As decisões tomadas quanto à preservação do patrimônio na Ringstraβe de Viena denotam o caráter
centralizador e institucional que o tema assumiu no império.
32 A seu ver, a expansão do conceito de patrimônio a todo tecido social vai ser provocado apenas iniciado a
partir do exterior (história da arte) e de baixo para cima (iniciativas de cidadãos).
31
52
monumento a Lenin em Berlim Oriental, a Neue Wache, a desmontagem do Palácio da
República e o projeto para reconstrução do castelo real são trazidos à baila, parecendo
este caso ser o ponto de convergência do trabalho de Falser. Se realiza um trabalho
eminentemente descritivo, sua posição é inequívoca: ele ataca a destruição dos
vestígios de uma história frágil e controversa, que vem sido, a seu ver, provocada pelas
elites políticas e empresariais no intuito de criar um espaço mítico purificado.
A tese principal do trabalho de Falser é que "o discurso da teoria e prática da
preservação histórica” vão ser “um reflexo da construção político-cultural da
identidade nacional" (Falser, 2008, p. 59). Assim, a história da construção da nação
alemã – cheia de crises, de rupturas profundos e inúmeras revoluções fracassadas
desde o final do Século XVIII – teria se refletido nos debates recorrentes sobre o
patrimônio nacional e principalmente sobre a questão da reconstrução de objetos
transmitidos pela tradição: "O tema da reconstrução permanece até hoje”, escreve, “o
reverso material do ‘caminho especial’ mental do processo de construção da nação
alemã, com a sua construção contínua da identidade sempre dúvida e auto imposta."(p.
68). Para ele, não seria fortuito, portanto, que esse debate – que juntamente com a
questão da autenticidade constitui um dos desafios centrais da conservação do
patrimônio – ocupe uma posição central na Alemanha e que sempre reapareça no
horizonte33.
2. Brasil: redesenhando o “mapa do passado”
No caso brasileiro, cabe se destacar a contribuição decisiva de diversos
trabalhos que, desde o final dos anos 1980, têm realizado a
“desnaturalização” das escolhas que vinham compondo o corpus patrimonial,
mostrando como as políticas de preservação em nosso país, principalmente
aquelas em nível federal, são responsáveis pela criação de um “mapa do
Brasil passado” muito específico 34. Aqui cabe chamar a atenção para a
contribuição da Antropologia, que, nos últimos anos, vai ser decisiva na
abertura dessa “via crítica” em nosso país, situando histórica e culturalmente
o discurso que se produzia na área.
Se os antropólogos já vinham
participando secundariamente de um campo dominado por arquitet os e
historiadores 35, o patrimônio vai se tornar objeto de reflexão sistemática dos
Um trabalho interessante sobre a questão da reconstrução na Alemanha é o artigo “Wiederaufbau: a
Alemanha e o sentido da reconstrução”, de Luiz Antonio Lopes de Souza, publicado no ARQUITEXTOS
em duas partes (Souza, 2009a; 2009b).
34 Dentre os diversos trabalhos recentes nessa linha, cabem se citar Gonçalves, 1995; Rubino, 1996; Santos,
1996; Fonseca, 1997; Castriota, 1999; Guimarãens, 2004; Gonçalves, 2007; Lima Filho; Eckert; Beltrão, 2007;
Chuva, 2009.
35 Manuel Ferreira Lima Filho e Regina Maria do Rego Monteiro de Abreu mostram que a atuação dos
antropólogos no campo do Patrimônio não é nova, especialmente se incluirmos no campo do Patrimônio
os museus. Em seu importante artigo, lembram-nos que a Antropologia “nasceu nos museus”, sendo
“marcada pela ideia de preservação desde o início, quando os primeiros pesquisadores da disciplina
coletavam objetos e documentos em suas pesquisas de campo e depois os armazenavam nos laboratórios
de pesquisa. Se internacionalmente podemos nos lembrar de Franz Boas, Georges Henri Rivière (Museu de
Artes e Tradições Populares de Paris), Paul Rivet (Museu do Homem) e mesmo Claude Lévi-Strauss
(colaborador do Museu do Homem e do Projeto de fundação da UNESCO), no Brasil não há como se
esquecer das figuras emblemáticas de Édison Carneiro (Museu Nacional), Darcy Ribeiro (fundador do
Museu do Índio) e Luiz de Castro Faria (Museu Nacional). Já no que tange a atuação junto às instituições
33
53
antropólogos apenas nas últimas décadas, especialmente quando alguns
pesquisadores incluíram o tema em suas teses de doutorado. Aqui cabe se
citar os pioneiros Antônio Augusto Arantes Neto 36, que em 1978, defendeu a
tese Sociological aspects of folhetos literature in Northeast Brazil , orientada por
Edmund Leach na Universidade de Cambridge / King´s College, Inglaterra,
e que mais tarde publica o livro Produzindo o passado (1984), e José Reginaldo
Gonçalves, com a tese Rediscoveries of Brazil: Nation and Cultural Heritage as
Narratives, orientada por Richard Handler e defendida na Universidade da
Virginia (EUA) em 1984 e também transformada no livro A Retórica da Perda
– os discursos do patrimônio cultural no Brasil em 1996 37.
Essa trilha fecunda aberta pelos dois antropólogos, vai ter sequência no
início dos anos 1990, quando dois importantes trabalhos acadêmicos seguem
na mesma linha, tratando de circunstanciar as políticas d e preservação no
país, colocando sob escrutínio suas escolhas e a constituição de seu
discurso 38. E falar em políticas de patrimônio no Brasil é falar do Serviço do
Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (SPHAN), que não foi um mero
órgão burocrático, mas, como apontam à exaustão trabalhos recentes,
formulou um ideário e implementou as ações de preservação em nosso país,
desde sua fundação na década de 1930. Em As fachadas da história: os
antecedentes, a criação e os trabalhos do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico
Nacional, 1937-1968, dissertação defendida na UNICAMP em 1991, sob a
orientação de Antônio Augusto Arantes, Silvana Rubino realiza um
minucioso trabalho de desmistificação da ação desse órgão, investigando
criticamente a sua utilização de conceitos ligados à memória, patrimônio
histórico, cultural e artístico,
mostrando as motivações políticas das
diversas escolhas. O corpus com que trabalha emana dos primeiros anos do
de patrimônio propriamente ditas, a atuação dos antropólogos “se fez sentir desde o início, mas sempre de
forma esporádica”, destacando-se a atuação no Conselho do Patrimônio do IPHAN de Gilberto Velho e,
mais recentemente, de Roque de Barros Laraia. (Lima Filho, Manuel Ferreira; Abreu, Regina Maria do
Rego Monteiro de. A antropologia e o patrimônio cultural no Brasil. In: Associação Brasileira de
Antropologia, 2007, p. 21-22.)
36 Antônio Augusto Arantes vai ter uma trajetória que combina pesquisa acadêmica e militância junto aos
órgãos de preservação. Do ponto de vista universitário cabe se destacar sua carreira docente de quatro
décadas em duas universidades paulistas – a USP e a Unicamp, que ajudou a criar em 1970. Nos anos de
1980, com o processo de redemocratização, participou da intensa discussão sobre a conceituação do
patrimônio, assumindo em 1983 a Presidência do CONDEPHAAT em São Paulo. Também esteve à frente
do IPHAN, de 2004 a 2006, como seu presidente, tendo implementado o Departamento de Patrimônio
Imaterial e o Programa Nacional do Patrimônio Imaterial deste órgão. Dentre a sua produção acadêmica
sobre o patrimônio, cabe se citar o livro pioneiro Produzindo o passado, publicado em 1984.
37 Segundo Manuel Ferreira Lima Filho e Regina Maria do Rego Monteiro de Abreu, esses dois trabalhos
“podem ser considerados marcos de uma reflexão antropológica sobre o patrimônio no Brasil. Um tema
antes tratado por arquitetos e historiadores passava a ser focalizado sob o viés da Antropologia. A tônica
destes trabalhos consistiu em apresentar uma visão desnaturalizada de um campo eivado por ideologias e
por paixões sobretudo de cunho nacionalista. Arantes e Gonçalves esforçaram-se por propor uma outra
leitura de construções discursivas particularmente eficazes na fabricação de uma memória e de uma
identidade nacionais”. (Lima Filho e Abreu, A antropologia e o patrimônio cultural no Brasil. In:
Associação Brasileira de Antropologia, 2007, p. 21-22.)
38 Aqui se costuma citar também a tese de doutorado de Antônio Luiz Dias de Andrade, Um Estado
completo que pode jamais ter existido, defendida junto à FAU/USP, em 1993.
54
Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (SPHAN), a partir do
qual a antropóloga recompõe o contexto do nacionalismo e da forte presença
do Estado nos anos 1930, que configuravam o campo cultural aquando da
emergência da política cultural no Brasil. Através da análise de personagens
como Lucio Costa, Mário de Andrade, Gilberto Freyre, Gustavo Capanema,
Manuel Bandeira e Rodrigo Mello Franco de Andrade, Rubino recupera
conexões entre campos profissionais/intelectuais da antropologia,
arquitetura e literatura, que marcaram a chamada “fase heroica” daquele
órgão 39.
Já a tese de doutorado de Mariza Veloso Motta Santos, O tecido do
tempo: a ideia de patrimônio cultural no Brasil, 1920 -1970, defendida na UnB,
em 1992, num movimento paralelo, analisa o surgimento da ideia de
patrimônio e das práticas sociais c onsolidadas a partir dessa ideia, naquele
período, evidenciando a presença ativa de um grupo modernista, principal
articulador da trama discursiva construída em torno das ideias de
patrimônio e nação. A questão do patrimônio é tratada ali como uma ideia força que ordena e estrutura uma matriz discursiva voltada ao passado e que
engloba concepções sobre a história, o tempo, a estética, a memória, o espaço
público e, primordialmente, sobre a nação brasileira. A autora mostra como
esse grupo modernista que institucionaliza, em 1937, o SPHAN (Serviço do
Patrimônio Histórico e Artístico Nacional), vai articular uma estratégia
baseada numa peculiar teoria da temporalidade: ao mesmo tempo em que
“redescobre” o barroco - que vê como a origem da cultura brasileira , inventa
um futuro para a nação que se acreditava nascente 40. O trabalho centra sua
análise em torno da atuação de dois personagens carismáticos e exemplares
do grupo: Rodrigo Melo Franco de Andrade e Mário de Andrade, e analisa,
por fim, a criação a “Academia SPHAN” e o exercício de sua prática
institucional por meio de documentos sobre rotinas e procedimentos
adotados naquele período 41.
Em meados dos anos 1990, duas publicações dão a conhecer a um
público mais amplo essa nova perspectiva de análise, que c omeça a
impregnar os trabalhos acadêmicos sobre o patrimônio em nosso país.
Assim, em 1996, mesmo ano da publicação do Volume 24 da Revista do
Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional , que traz diversos artigos
A pesquisa recompõe o contexto do nacionalismo e da forte presença do Estado nos anos 30, e o campo
cultural da emergência da política cultural no Brasil, em quatro perspectivas: (1) a proto-história, ou todo o
trabalho pró-preservação anterior ao SPHAN; (2) a criação do SPHAN em 1937; (3) a prática do SPHAN
através da análise do acervo preservado; (4) o legado intelectual e acadêmico da experiência do SPHAN.
40 A esse respeito, confira Castriota, 1999, artigo publicado posteriormente em versão alterada como o
capítulo “Nas encruzilhadas do desenvolvimento: a trajetória da preservação do patrimônio em Ouro
Preto (MD)”, em Castriota, 2009, p. 131-152.
39
Em 1996, essas mesmas autoras vão contribuir para o volume 24 da Revista do Serviço do Patrimônio
Histórico e Artístico Nacional, com os artigos “O mapa do Brasil passado” (Rubino, 1996, p. 97-105) e “Nasce
a Academia SPHAN” (Santos, 1996, p. 77-95), em que de certa forma retomam os temas de suas
respectivas teses.
41
55
nessa linha, José Reginaldo Santos Gonçalves publica como livro o
interessante estudo A Retórica da Perda: os discursos do patrimônio cultural no
Brasil 42, versão de sua tese já citada, no qual avalia a estratégia de narração
da identidade nacional, nos conduzindo a questões cruciais apon tadas por
Otávio Velho, as analogias entre alegoria, ruína e patrimônio; o barroco
como "signo totêmico" da identidade nacional brasileira; as associações entre
os discursos a partir de patrimônio e os discursos modernistas; o papel dos
intelectuais na produção de valores supostamente em declínio, entre outros.
Gonçalves também vai analisar as duas figuras centrais na formulação de
políticas do patrimônio no Brasil: Rodrigo Mello Franco de Andrade – um
dos idealizadores e primeiro diretor do SPHAN, que ins pirou sua política de
1937 a 1979 – e Aloísio Magalhães – que esteve à frente do SPHAN/PróMemória por um curto período, de 1979 a 1983, mas que foi decisivo para
sua transformação. Segundo o autor, no discurso de cada um deles, o Brasil
seria “objetificado de certo modo e segundo determinados propósitos”. A
partir dessa premissa, ele explora “contrasticamente (sic) as estratégias
através das quais esses intelectuais, por meio de narrativas diversas,
inventam o patrimônio cultural, a nação brasileira e a el es próprios,
enquanto guardiões desse patrimônio.” (Gonçalvez, 1995, p. 33)
Gonçalez mostra como a questão da identidade nacional vinha sendo
pensada desde os últimos anos do império e desde a instauração do regime
republicano, em 1889, centrando-se, no entanto, as discussões sobre esse
tema, naquele período, na ideia de “raça”. Ao longo da segunda e terceira
décadas do século XX, o foco vai mudar substancialmente e o problema
passa a ser discutido, não mais em termos raciais, mas culturais, como uma
busca da “brasilidade”, de uma “essência”, “alma” ou simplesmente
“identidade” da nação brasileira.” (p. 41). Para Rodrigo Mello Franco de
Andrade, o patrimônio deveria ser pensado como parte de um patrimônio
universal, mas ao mesmo tempo, ele situaria as origens da cultura brasileira
na “tradição” singular produzida pelas contribuições da populações
indígenas, africanas e europeias no Brasil.(...) uma síntese de valores
“primitivos” e “exóticos”.” (Gonçalvez, 1995, p. 44 -45) Essa visão, que se
torna hegemônica no SPHAN, postula que uma “tradição” brasileira veio a
ser criada e estabelecida com base nesse processo de combinação cultural,
não sendo enfatizadas em sua narrativa as “diferenças entre essas heranças”,
ganhando o primeiro plano “um quadro unifi cado e singular da identidade
cultural brasileira.” Com isso, o autor pode concluir que seria possível dizer
que “em certo sentido, Rodrigo, durante determinado período, modela o
A ideia de perda, que perpassa o livro, está, como mostra o autor, sempre presente na “criação” dos
patrimônios nacionais, como explicitado pelo autor: “A História aparece como “um processo inexorável de
destruição, em que valores, instituições e objetos associados a uma “cultura”, “tradição”, “identidade” ou
“memória” nacional tendem a se perder.(...) O efeito dessa visão é desenhar um enquadramento mítico
para o processo histórico, que é equacionado, de modo absoluto, à destruição e homogeneização do
passado e das culturas.” (Gonçalves, 1995, p. 22)
42
56
patrimônio cultural brasileiro, ao mesmo tempo que o patrimônio o modela,
enquanto persona pública.” (Gonçalvez, 1995, p. 47)
Já Aloísio Magalhães, que assume a direção do SPHAN nos anos 1970,
anos finais do regime político autoritário que vigorava no Brasil desde o
golpe militar de 1964, dá início a uma nova política para o patri mônio
cultural brasileiro, substituindo o “patrimônio histórico e artístico” de
Rodrigo pela noção de “bens culturais”. Segundo Rodrigues, quando usa a
noção de “cultura brasileira”, Magalhães “enfatiza mais o presente do que o
passado” e, principalmente “a diversidade cultural no contexto da sociedade
brasileira”, embora continuasse acreditando que, além dessa diversidade,
existiria uma cultura brasileira “integrada, contínua e regular.” (Gonçalvez,
1995, p. 52)
Pensando num projeto de desenvolvimento na cional, o
propósito de Aloísio Magalhães seria “identificar e preservar o caráter
nacional brasileiro de forma que o processo de desenvolvimento econômico e
tecnológico possa prosseguir sem que isso represente uma perda de
autonomia cultural frente aos países do primeiro mundo.” Assim, os bens
culturais seriam pensados “não como objetos fixos, exemplares, mas no
processo mesmo de criação e recriação que lhes dá realidade.” (Gonçalvez,
1995, p. 55) 43
É interessante percebermos, com o autor, que Rodrigo e A loísio usam
diferentes “estratégias de autenticação”: enquanto Rodrigo autentica sua
posição “opondo-a a um discurso não científico, não profissional sobre a
cultura brasileira.” (Gonçalvez, 1995, p.61), Aloísio “autentica sua própria
posição desafiando a de Rodrigo”, sendo sua estratégia “a de narrar a
cultura nacional brasileira, não necessariamente de um ponto de vista
distante e impessoal, mas, aproximadamente, valorizando o que (...)
chamamos de “ponto de vista narrativo”.
Apesar dessa distinção, as
narrativas dessas duas figuras emblemáticas do patrimônio se aproximariam
no fato de que “em ambas as narrativas a nação é objetificada como uma
“busca” pela identidade. (p.62) Essas narrativas se diferenciariam, de novo,
no propósito que viam na apropriação necessária da cultura e do patrimônio
nacional: enquanto para Rodrigo o propósito de apropriação seria o de
“defender uma “tradição” para “civilizar”, para Aloísio era necessário
“preservar
a
“heterogeneidade
cultural”
para
garantir
o
44
“desenvolvimento”.” (Gonçalvez, 1995, p.63-64)
A Retórica da Perda segue mostrando como esses diferentes “discursos”
se refletem e moldam as práticas do patrimônio cultural no Brasil, em dois
José Reginaldo Santos Gonçalves chama a atenção também para a aproximação da ideias de Magalhães
com aquelas do projeto original de Mário de Andrade, de 1936, que segundo Aloísio não teraim sido
seguidas pela instituição até então. O Projeto de Mário de Andrade é bastante abrangente, englobando as
“diferentes formas de ‘cultura popular’”; a “autêntica” identidade nacional (cultura popular); uma “visão
pluralista e, de certo modo, “antropológica” do brasil”, continuando o patrimônio a ser pensado também
como uma “causa” (Gonçalves, 1995, p. 56)
44 Num outro trecho, o autor enuncia: “A estratégia de apropriação da cultura nacional pressuposta no
discurso de Aloísio trazia como consequência uma representação da nação brasileira como uma totalidade
cultural diversificada e em permanente processo de transformação.” (Gonçalves, 1995, p.81)
43
57
períodos distintos: o que vai de 1937 a 1979, onde predominam as ideias de
Rodrigo e o período posterior, quando se nota a influência de Aloísio
Magalhães. Assim, no período inicial, numa política que o autor denomina
de “em busca do tempo perdido”, o SPHAN praticaria uma defesa dos
monumentos “como signos visuais de uma condição civilizada” (Gonçalvez,
1995, p.65), utilizando-se para isso do instrumento do tombamento (o
correspondente ao termo registration, em inglês, e ao termo classement, em
francês), também criado em 1937, e cujo procedimento é resenhado pelo
autor. Aqui Gonçalves analisa, como vão fazer vários autores, os
tombamentos da “primeira leva”, especialmente o tombamento de Ouro
Preto e a defesa da arquitetura colonial a ela subjacente. Segundo ele,
“Rodrigo justificou essa concentração argumentando que, no século XVIII,
mais que em qualquer outra região do país, um número superior de
monumentos e obras de arte “com feição mais expressiva” foi produzido em
Minas Gerais ([1969] 1987:73).” (Gonçalvez, 1995, p.71)
Nesses
tombamentos, realizados sob a ótica inicial dominante no SPHAN,
predominaria o “ponto de vista estético”, sendo que a religião,
especialmente o catolicismo, desempenharia um “papel crucial na narrativa
de Rodrigo”.
Identificando-se mais com a visão de Aloísio Magalhães, o autor
ressalta a aproximação deste com as posições de Mario de Andrade: “Para
Aloísio, a noção de “patrimônio cultural” concebida por Mário (de Andrade)
estava muito próxima de uma concepção democrática e pluralista do que a
veio a inspirar a política implementada por Rodrigo.” (p.73) O foco das
políticas do SPHAN continuaria no passado, mas “um passado concebido
como um instrumento, uma referência a ser usada no processo de
desenvolvimento econômico e cultural”, onde os ”bens culturais”,
“considerados como parte integrante da vida cotidi ana de distintos
seguimentos da sociedade brasileira”, desempenhariam um papel central (p.
76) A partir dessa visão, vai ser peça central a criação do CNRC (Centro
Nacional de Referência Cultural) que vai ter o objetivo de “estudar e propor
uma política alternativa de patrimônio cultural”, a fim de “traçar um sistema
referencial básico para a descrição e análise da dinâmica cultural brasileira,
tal como é caracterizada na prática das diversas artes, ciências e tecnologias
(Magalhães [1979] 1985:130). ” (Gonçalvez, 1995, p.77)
Cabe observar, por fim, que, em sua pesquisa, José Reginaldo Santos
Gonçalves adota, como apontam Manuel Ferreira Lima Filho e Regina Maria
do Rego Monteiro de Abreu, a noção de “colecionismo” de Clifford,
identificando que os bens considerados dignos de preservação deveriam
formar, nas construções discursivas estudadas (de Rodrigo Mello Franco de
Andrade e de Aloísio Magalhães), uma espécie de mosaico “autenticamente”
nacional:
Gonçalves, utilizando-se de estratégia etnográfica e
tomando os discursos de Rodrigo Mello Franco de
Andrade e de Aloísio Magalhães como os de
informantes selecionados numa pesquisa de campo,
58
produz a relativização desta categoria fundante das
modernas ideologias ocidentais. O tema do patrimônio
emerge, assim, como um lugar de construção de valores
– e, como tal, extremamente plástico e variável. O bem
cultural “autêntico” como representação metafórica da
totalidade nacional é desnaturalizado, e a sua face
ideológica e ficcional descortinada. ( Lima Filho e Abreu,
A antropologia e o patrimônio cultural no Brasil. In:
Associação Brasileira de Antropologia, 2007, p. 21 -22.)
Na mesma linha, Maria Cecília Londres Fonseca publica em 1997 O
Patrimônio em Processo: trajetória da política federal de preservação no Bra sil, que
tinha sido apresentado inicialmente como tese de doutorado em Sociologia
da Cultura na UNB, no qual traça a trajetória da política federal de
preservação do patrimônio histórico e artístico nacional até os anos 1980.
Como no trabalho de Gonçalves, o foco de análise não se concentra apenas
na chamada “fase heroica”, estendendo-se para as décadas posteriores.
Assim, ao focalizar dois momentos fundamentais nas políticas de patrimônio
– a chamada “fase heroica” e a “fase moderna”, a partir dos anos 197 0, a
autora, que é funcionária do IPHAN, vai centrar sua discussão nas práticas
institucionais adotadas no processo de construção desse patrimônio e como
ao longo desse período os diversos grupos de intelectuais envolvidos nesse
trabalho, nas palavras de Janete Tanno, “influenciados pelas mudanças
sociais, políticas e culturais e pelas novas tendências internacionais sobre o
tema”, vão contribuir para alargar a noção de patrimônio em nosso país,
propondo “mudanças significativas no sentido da democratização desses
bens, não somente pelo envolvimento da sociedade civil no processo, como
na discussão do significado econômico e político da preservação”. (Tanno,
2006, p.233)
Cecília Londres adota, então, uma perspectiva “primordialmente
histórica”, tomando como “objeto de pesquisa o processo de construção do
patrimônio histórico e artístico no Brasil, considerado enquanto uma prática
social produtiva, criadora de valor em diferentes direções” (Fonseca, 1997, p.
19-20). Tomando o viés institucional, a autora mostra que, num primeiro
momento, o instrumento de legitimação das escolhas – que recaía, via de
regra, sobre a herança luso-brasileira, restringindo-se, principalmente, às
expressões culturais e arquitetônicas das elites econômicas e religiosas 45 – era
a autoridade dos técnicos do SPHAN, “revestidos da aura intelectual que
cercava o grupo de modernistas que fazia parte da instituição”. Analisando
as condições de atuação do órgão, a autora chama a atenção para como o
grupo de intelectuais desenvolvia suas ativi dades com grande autonomia no
interior do Ministério da Educação e Saúde, a despeito de atuar em plena
ditadura do Estado Novo. Ao tomar a segunda etapa de sua periodização, no
Nessa primeira fase de trabalho do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (SPHAN), os
tombamentos privilegiaram, em especial, igrejas e prédios do período colonial, prevalecendo uma
apreciação de caráter estético, sendo que o valor histórico era pouco considerado. A esse respeito, confira a
crítica de Tanno, 2006, p. 233-234.
45
59
entanto, nota-se como esse quadro irá se alterar, com o novo contexto
político, social e cultural do país. Por meio da análise dos processos de
tombamento abertos entre 1970 e 1990, Fonseca mostra, então, as
modificações na política de proteção ao patrimônio histórico, a conceituação
deste e a busca de novos instrumentos de proteçã o no contexto sociopolítico
que se instaurou no País, sobretudo a partir da década de 1980. Ao tomar as
novas formulações do SPHAN, pós-Rodrigo Mello Franco, Fonseca aponta
para a ampliação da participação da sociedade organizada na definição do
que deveria ser preservado como patrimônio cultural, mostrando
principalmente o aumento da participação de diversos grupos sociais, e não
somente dos técnicos ou das elites, e o direito de acesso aos bens culturais 46.
Ainda nessa perspectiva, cabe chamar a atenção para o trabalho de
Márcia Regina Romeiro Chuva,que em 1998 defende sua tese de doutorado
em História pela Universidade Federal Fluminense com o título Os arquitetos
da memória: a construção do patrimônio histórico e artístico nacional no Brasil –
anos 30 e 40, que vai se transformar em livro em 2009, quando é publicado
pela Editora UFRJ com o título Os arquitetos da memória: sociogênese das
práticas de preservação do patrimônio cultural no Brasil (anos 1930 -1940). Neste
trabalho, a autora, prosseguindo a mesma linha das pesquisas anteriormente
citadas, vai mostrar como o patrimônio vai ser histórica e temporalmente
determinado, o que fica mais claro na própria escolha do subtítulo do
trabalho. Ao falar de uma “sociogênese das práticas de preservação do
patrimônio cultural no Brasil”, Chuva recusa qualquer naturalização desse
conceito, concentrando-se na definição do "serviço" do Patrimônio Histórico
e Artístico Nacional: o "patrimônio", nesta perspectiva, não vai ser algo
dado, mas muito mais uma arena em que práticas e representações,
correspondentes aos mais variados programas políticos estatais, se
encontram em disputa.
Para mostrar as lutas de representação, em diversos âmbitos, que
marcaram a história do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico
Nacional (IPHAN), Chuva utiliza-se da sua proximidade com o Arquivo
Central do IPHAN, gerando uma obra de notável riqueza documental, que
consegue delinear com precisão como se deu a “construção do patrimônio
histórico e artístico nacional no Brasil” naquele período, com a invenção de
seus objetos e a escolha de seus métodos de trabalho. Ao se concentrar no
período 1930-1940, a autora mostra como “a implementação de ações de
proteção do patrimônio nacional foi estratégica para a ampliação das redes
territoriais na formação do Estado e para a construção de sentimentos de
pertencimento a uma comunidade nacional imaginada, na medida em que
46 É
interessante anotarmos aqui que na reedição de 2005, a autora aprofunda o tema da democratização da
política de preservação, mostrando como essa pode ser observada tanto no alargamento da noção de
patrimônio, quanto na introdução do instrumento do registro cultural, que já se mostra abrangente pelos
próprios títulos dos livros de registro, estabelecidos pelo decreto-lei nº 3.551, de 4 de agosto de 2000 1)
Livro de registro dos saberes; 2) Livro de registro das Celebrações; 3) Livro de registro das formas de
expressão; 4) livro de registro dos lugares.
60
essas ações geraram uma territorialização particular da nação, garantindo a
permanência, no tempo e no espaço, de objetos mon umentalizado” (Abreu,
2010) Mais uma vez aqui, deparamo-nos com um trabalho que
“desnaturaliza” as escolhas patrimoniais, mostrando como os “arquitetos da
memória” inventaram os “quadros da memória nacional”, cuja referência
primordial das origens da nacionalidade foi associada estreitamente a
imagens das Minas Gerais do século XVIII. Márcia Chuva resume essa ideia
Esse patrimônio mineiro foi de tal forma reproduzido
em revistas, jornais, mapas, folhetos, etc. que,
multiplicando-se infinitamente, tornou-se ícone máximo
de “brasilidade‟ na escala de valores que se impôs. O
Sphan esteve, sem dúvida, aderido ao projeto de
nacionalização implementado pelo Estado Novo, ao
unificar uma escala hierárquica de valores patrimoniais
a partir de um padrão de arte e arquitetura determinado
pela produção mineira colonial. (Chuva, 2009, p. 63)
Se esses trabalhos citados se voltam, em primeira linha, para as
escolhas que determinam o corpus patrimonial, identificando sua gênese e
pano de fundo institucional, outro trabalho recente aborda criticamente
outra faceta das políticas de patrimônio: a restauração. Trata -se do livro
Restauração arquitetônica. A experiência do SPHAN em São Paulo, 1937-1975, de
Cristiane Souza Gonçalves, fruto de sua dissertação de mestrado defendida
na FAU-USP (Gonçalves, 2007). Se as escolhas efetuadas pelos técnicos do
SPHAN nos permitem traçar o “mapa do Brasil passado” que aquele órgão
queria deixar em herança para as gerações futuras, também a maneira de
intervir sobre aqueles bens, as restaurações pensadas e efetivamente
executas naquele período vão ser igualmente significativas da forma de se
gerir o patrimônio 47.
Assim, Cristiane Gonçalves se debruça sobre esse primeiro momento de
ação institucional (1939-1975), tomando principalmente a atuação de Luís
Saia, a frente da Superintendência Regional do IPHAN em São Paulo, e vai
mostrar como ele pensava o restauro, a luz de exemplos concretos, entre os
quais o restauro da antiga Câmara e Cadeia de Atibaia. Neste caso, mas
também nos outros exemplos estudados – igreja de São Miguel Paulista,
casa-sede e capela do Sítio Santo Antônio e Fazenda Pau D’Alho – a autora
mostra como muito mais que aderir às normas que internacionalmente
vinham sendo implementadas no campo do patrimônio naquele momento,
tinha-se a tendência de se classificar os monumentos, enquadrando -os em
modelos estilísticos previamente determinados, como fazia Viollet -le-Duc, o
que levava
a que se buscasse o princípio da “unidade estilística” 48,
A respeito do livro de Cristiane Gonçalves, confira a interessante resenha de Claudia dos Reis e Cunha
(Cunha, 2007).
48 A unidade estilística, como coloca a autora, é uma “ideia [que] atravessa os trabalhos apresentados com
tal vigor que é quase impossível não observá-la nos resultados obtidos, sendo inevitável associá-la aos
propósitos finais das restaurações, bem como aos processos que levaram até as soluções alcançadas, nos
quatro casos analisados...” (Gonçalves, 2007, p. 186).
47
61
apagando-se as marcas e as modificações d eixadas pelo tempo. Além disso,
mostra-se que não se atendia também minimamente a outros princípios como
a da “distinguibilidade”: Se desde as primeiras restaurações já se procurava
diferenciar a intervenção recente da matéria original (principalmente atr avés
do uso do concreto nos reforços estruturais ou reconstrução de partes
ruídas), isto acabava prejudicado pela uniformização no tratamento das
fachadas, que, em busca da unidade do conjunto, mascarava as técnicas
recentes (Gonçalves, 2007, p.196).
Conclusões
Como pudemos ver, salta aos olhos, nos dois casos estudados, como nos últimos
anos tem se submetido, de fato, a uma análise crítica as escolhas que conformaram o
corpus patrimonial desses dois países, bem como a maneira de se intervir sobre ele. No
caso da Alemanha, vimos, tomando principalmente o trabalho de Michael Falser, como
a teoria e prática no campo do patrimônio refletem efetivamente a – problemática –
construção da identidade nacional, âmbito no qual ganha especial destaque a questão
da reconstrução, tão combatida pela teoria internacional da conservação e tão prezada
pelos alemães. No caso brasileiro, pudemos acompanhar a intensa reflexão crítica,
que, desde o final dos anos 1980, tem empreendido uma “desnaturalização”
das escolhas que vinham compondo o nosso corpus patrimonial, e que eram
responsáveis, como vimos, pela criação de um “mapa do Brasil passado”
muito específico.
Para finalizar, cabe ainda observar que essa perspectiva tem se
espalhado com muita intensidade em nosso país, pr incipalmente pelo
rebatimento que tem tido no campo da academia: são inúmeros hoje os
trabalhos que têm se produzido nos diversos programas de pós -graduação
que se voltam para o próprio patrimônio como objeto de estudo, analisando
as maneiras pelas quais esse campo tem se articulado ao longo dos anos nas
diversas esferas de governo – federal, estadual e municipal. Com isso,
avança crescentemente a nossa compreensão do patrimônio como uma
construção social, e as inúmeras consequências que advêm dessa
compreensão.
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AYRTON CARVALHO E A DISSEMINAÇÃO DO CAMPO DA
CONSERVAÇÃO NO BRASIL
Juliana Melo Pereira
Resumo
Este artigo discorre sobre as práticas de Ayrton Carvalho, chefe do 1º
Distrito Regional do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional
(IPHAN), a fim de revelar sua contribuição para o campo da conservação
no Brasil. Com a hipótese que a contribuição deste intelectual não foi
limitada a sua atuação no IPHAN, procuramos primeiramente
compreender sua formação, dedicando atenção especial à experiência como
estagiário na Diretoria de Arquitetura e Urbanismo, coordenada pelo
arquiteto Luiz Nunes. Depois, partimos para a análise da atuação de
Ayrton Carvalho enquanto chefe do 1º Distrito Regional do IPHAN. Este
percurso investigativo percorre diferentes ambientes culturais e nos
permite perceber que as práticas da salvaguarda no Brasil são conformadas
interagindo diretamente com o campo da arquitetura moderna. Deste
modo, defendemos o argumento que entre os intelectuais que conformaram
o campo da conservação no Brasil, os referenciais foram múltiplos e
resultantes das diversas formações, filiações e referenciais teóricos, apesar
da tendência historiográfica de destacar e unidade e centralidade de
pensamento. Portanto, através deste estudo, seguimos a direção oposta à
tendência de atribuir a um único grupo a responsabilidade sobre as
concepções acerca do patrimônio histórico e artístico nacional, bem como as
práticas no sentido de sua salvaguarda.
Palavras-chave: Ayrton Carvalho, arquitetura moderna, patrimônio histórico e
artístico nacional.
Introdução
Ayrton de Almeida Carvalho foi engenheiro, professor no curso de Arquitetura e
chefe do 1º Distrito Regional do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional
(IPHAN)49. Responsável pelos estados de Alagoas, Pernambuco, Paraíba e Rio Grande
do Norte, realizou inúmeros tombamentos, restaurações, inventários, pesquisas, cursos
e outros trabalhos voltados para a conservação do patrimônio. Graças à atuação deste
profissional, exemplares preciosos da arquitetura tradicional foram descobertos,

UFPE. [email protected]
Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (SPHAN), de 1937 à 1946; Diretoria do Patrimônio
Histórico e Artístico Nacional (DPHAN), de 1946 à 1970; Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico
Nacional (IPHAN), de 1970 à 1979; Secretaria do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (SPHAN), de
1979 à 1990; Instituto Brasileiro do Patrimônio Cultural (IBPC), de 1990 à 1994; Instituto do Patrimônio
Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), 1994. Neste trabalho adotamos a nomenclatura ‘IPHAN’ para
todos os períodos.
49
65
estudados e salvaguardados até os dias atuais. Extrapolando os limites da instituição,
Ayrton Carvalho constituiu em torno do 1º Distrito um ambiente cultural composto
por estudantes e intelectuais de diversas áreas e instituições, dispostos a conhecer e
colaborar com a conservação do patrimônio histórico e artístico nacional.
Por tais motivos, a presente investigação tem como objeto de estudo as práticas
de Ayrton Carvalho, a fim analisar, sob um viés diferenciado, como se constituiu o
campo da conservação no Brasil. A historiografia sobre este temática, talvez pela pouca
distância temporal ou pelo peso das instituições envolvidas, é permeada de figuras
mitificadas sobre as quais é atribuída toda responsabilidade sobre a delimitação do
patrimônio histórico artístico nacional e as práticas no sentido de sua salvaguarda.
Para além de Rodrigo Mello Franco e Lúcio Costa, mais ainda, para além do IPHAN,
buscamos neste texto explorar a contribuição de Ayrton Carvalho, na disseminação de
práticas no campo da conservação no país. 50
1.
Formação profissional e a experiência na Diretoria de Arquitetura e
Construção
Ayrton Carvalho formou-se em 1939, pela Escola Livre de Engenharia de
Pernambuco. Com quase 50 anos de fundação, o curso já era referenciado
regionalmente por sua excelência e contava com professores renomados como Joaquim
Cardozo, Newton Maia, João Holmes Sobrinho, Luís Freyre, José Estelita, entre outros.
Segundo o engenheiro Antônio Baltar, estudante desta escola na mesma época que
Carvalho, o ensino das matérias básicas era no nível das melhores universidades do
mundo, ao ponto de alunos formados ingressarem sem dificuldade em instituições
internacionais. Em relação ao ensino aplicado, a Escola não contava com o mesmo
avanço, o que se deve ao atraso geral em que se encontravam os serviços públicos e
empreendimentos de engenharia no país (BALTAR, 1995).
Uma tentativa de romper com o atraso e pouca eficiência dos serviços públicos
foi a criação da Diretoria de Arquitetura e Construção (DAC), apontada um dos mais
importantes episódios da arquitetura moderna brasileira. A diretoria reuniu um grupo
em sintonia com os debates da arquitetura internacional e as peculiaridades locais e
pode ser considerada uma das primeiras experiências no sentido de conformar uma
escola de arquitetura moderna nacional, embora predomine na historiografia, o
pioneirismo do eixo Rio-São Paulo. Este movimento foi vivenciado de perto por
Ayrton Carvalho, que ainda estudante participou como estagiário da equipe inovadora
e teve a oportunidade de complementar sua formação.
A DAC foi criada em 1934, com o objetivo de coordenar e executar os projetos de
edifício públicos do estado. Estava inserida num projeto de modernização da máquina
administrativa, no primeiro mandato do interventor do estado de Pernambuco, Carlos
Lima Cavalcanti. Para chefiá-la, foi convidado o arquiteto mineiro, recém-formado pela
ENBA, Luiz Nunes 51 que conformou a equipe inicial junto aos engenheiros José
Este artigo é resultado da pesquisa de mestrado desenvolvida pela autora, intitulada ‘Admiráveis
Insensatos: Ayrton Carvalho, Luís Saia e as práticas no campo da conservação no Brasil’ (PEREIRA, 2012).
51 Luiz Carlos Nunes de Souza (1908-1937) formou-se arquiteto na ENBA, em 1931. Quando estudante,
liderou junto a Jorge Moreira, a greve de apoio à reforma de Lúcio Costa. Em 1933, desenvolveu projetos
50
66
Noberto, Gauss Estelita e Jaime Coutinho, o desenhista Hélio Feijó, os estudantes de
engenharia Antônio Baltar e Ayrton Carvalho, além de muitos outros profissionais. A
diretoria inovou no serviço público pela tentativa de racionalização e padronização dos
materiais e por inserir nas discussões diplomados e operários, em pé de igualdade em
busca de melhores soluções construtivas. As pressões políticas fizeram com que a DAC
fosse dissolvida em 1935, sendo retomada em 1936, como Diretoria de Arquitetura e
Urbanismo (DAU) incorporando para sua pauta questões da cidade, junto a Luiz
Nunes, fizeram parte da nova equipe: os arquitetos Fernando Saturnino de Britto, João
Corrêia Lima e o paisagista Roberto Burle Marx.
Como estagiário, Ayrton Carvalho ficou responsável pela Seção de Materiais,
encarregado do levantamento de todos os materiais utilizados nas construções.
Segundo Joaquim Cardozo esta não era uma habilidade comum, pois deveria ser feito
o levantamento minucioso de nomes, utilidades, vantagens e desvantagens do
emprego de cada material. Cabia também a Carvalho, o estudo e classificação das
possibilidades em conjunto dos materiais, por exemplo: madeira, ferros, vidros,
materiais para coberturas e impermeabilização. Estes estudos resultaram em um
caderno de encargos (uma espécie de catálogo) onde se escolhiam materiais adequados
para cada construção da DAU (CARDOZO, 2007).
A Diretoria assinava várias revistas nacionais e importadas, entre as quais Pencil
Points, Architecture D’Aujourd’hui e Architectural Form, que eram distribuídas entre os
funcionários, ficando cada um encarregado de ler determinado artigo, relatá-lo e
apresentar sua apreciação sobre o texto. Os temas mais debatidos foram a obra da
Bauhaus, as ideias de Le Corbusier, Walter Gropius, Mies Van Der Rohe, Hames
Mayer, Andrea Lurçat e todo grupo francês (MELO, 2000:115).
Ayrton Carvalho participou da construção das duas obras mais emblemáticas da
DAU, que marcaram a história da arquitetura moderna brasileira: a Caixa d’Água de
Olinda (1936) e o Pavilhão de Verificação de Óbitos da Faculdade de Medicina (1937).
Na primeira, juntamente com seu colega de estágio e curso, Antônio Baltar, conduziu a
construção. Já na segunda, foi mais além, ao buscar com Luiz Nunes, alternativas para
possibilitar financeiramente sua construção.52 Os edifícios destacam-se pelo seu
pioneirismo seja estrutural e funcional, como a Caixa d’Água (Figura 1), ou estético e
formal, como o Pavilhão de Óbitos (Figura 2).
de edifícios de apartamentos no Rio de Janeiro, considerados por Lúcio Costa no artigo “Depoimento de
um arquiteto carioca” obras percussoras da arquitetura moderna no Rio de Janeiro (XAVIER, 2003:
Apêndice).
52 Segundo Geraldo Gomes, a participação de Ayrton Carvalho na execução deste edifício foi além do
habitual, ele teria possibilitado sua construção deste edifício através das sobras de outras construções e
quase teve que responder judicialmente por ter construído um edifício público sem verbas específicas para
tal (SILVA, 1997).
67
Figura 1 e 2: Caixa d’água de Olinda e Pavilhão de óbitos (respectivamente), fotos publicadas na
‘Brazil Builds’. Nos agradecimentos, Philip Godwin inclui Ayrton Carvalho, Antônio Baltar e
Benício Dias, por mostrar a arquitetura moderna e colonial pernambucana (Fonte: Goodwin,
1943:89).
A experiência da DAC/DAU apropriou-se dos preceitos da arquitetura moderna,
em voga no eixo internacional, que unidos ao conhecimento sobre os materiais e
técnicas construtivas locais, resultaram numa arquitetura moderna, genuinamente
pernambucana e brasileira. Segundo Glauco Campello (2001), a arquitetura seiscentista
no Nordeste, se destaca pela conformação ao ambiente natural, aos condicionamentos
locais, economia de meios e simplicidade pragmática (mesmo nas construções
eruditas). O diálogo entre as construções da DAC com esta tradição colonial é evidente,
nas técnicas construtivas, nos programas e na adaptação às condições locais, o que
permitiu criar projetos de arrojo arquitetônico e estrutural, utilizando elementos da
arquitetura local, como o combogó, para adaptação climática. Esta reinterpretação das
tradições, somado caráter empirista da diretoria, de experimentar e buscar in loco novas
soluções, unidas à base na Escola Livre de Engenharia, se refletiu tanto na prática de
Ayrton Carvalho à frente do IPHAN, quanto na docência, pois seus alunos na
disciplina ‘Arquitetura no Brasil’ foram levados a viajar e percorrer diversas cidades,
construindo em campo o saber sobre a arquitetura brasileira.
A equipe da DAU se dispersou em 1937, após o falecimento precoce de Luiz
Nunes. Ayrton Carvalho formou-se e ingressou no IPHAN, como Assistente Técnico
de 3º classe, responsável por fiscalizar e coordenar as obras em andamento. Os contatos
tecidos e os conhecimentos adquiridos na DAC/DAU foram fundamentais para sua
indicação.
2.
Ayrton Carvalho e o 1º Distrito Regional do IPHAN
O IPHAN foi criado em 1937, com o intuito de identificar, promover e
salvaguardar o patrimônio histórico e artístico nacional. Funcionou de forma
extremamente centralizada nos primeiros anos, mesmo com colaboradores em
diferentes estados desde a criação, com única sede no Distrito Federal (Rio de Janeiro).
Esta estrutura foi modificada em 1946, quando as instituições passaram por um
processo de reorganização pós-Estado Novo. Foram então criados quatro Distritos
Regionais, com sede das cidades do Recife, Salvador, Belo Horizonte e São Paulo, com
68
a finalidade de viabilizar e disseminar as práticas da instituição nestas regiões,
considerando as dimensões continentais do país. Para chefiar estes Distritos, foram
nomeados quatro intelectuais que já colaboravam com o IPHAN: o engenheiro Ayrton
Carvalho (1º Distrito), o escritor Godofredo Filho (2º Distrito), o arquiteto Sylvio de
Vasconcellos (3º Distrito) e o engenheiro-arquiteto Luís Saia (4º Distrito).
A sede da instituição permaneceu no Rio de Janeiro, sob a direção de Rodrigo
Mello Franco de Andrade e constante orientação de Lúcio Costa, chefe da Divisão de
Estudos e Tombamentos (DET), como mostra o esquema seguinte:
Figura 3: Organograma da estrutura técnico-funcional do IPHAN determinada pelo Regimento
Interno de 1946, (Fonte: Autora).
Assim que foi criado o IPHAN, pessoas de notório saber foram convocadas para
listar monumentos representativos passíveis de tombados em seus estados, os
Assistentes Técnicos respondiam pela repartição em oito diferentes regiões do país.53
Em Pernambuco, esta primeira tarefa coube ao sociólogo Gilberto Freyre, mas a
necessidade de um técnico conhecedor da arquitetura tradicional fez com que, em
1939, o engenheiro Ayrton Carvalho também fosse convidado para a função, pois
apesar de jovem e recém-formado, já havia trabalhado ao lado de nomes como Luiz
Nunes e Joaquim Cardozo no estágio na DAC. Em pouco tempo, o engenheiro tornouse o principal representante em Pernambuco, função que exerceu por 42 anos,
independente das transformações administrativas, políticas e conceituais.
Ayrton Carvalho ingressou no IPHAN para executar os reparos necessários da
Igreja de Nossa Senhora dos Prazeres e da Capela de Nossa Senhora da Conceição
(Capela da Jaqueira). Nestas obras, o engenheiro era responsável pela contratação de
mão-de-obra, elaboração de orçamentos e relatórios periódicos, além do intermédio
1ª. Distrito Federal e Rio de Janeiro; 2ª. Amazonas e Pará; 3ª. Maranhão, Piauí e Ceará; 4ª. Rio Grande do
Norte, Paraíba, Pernambuco e Alagoas; 5ª. Bahia e Sergipe; 6ª. São Paulo e Mato Grosso; 7ª. Paraná, Santa
Catarina e Rio Grande do Sul; 8ª. Minas Gerais e Goiás (ANDRADE, 1987).
53
69
com as autoridades locais.54 Segundo Luís Saia (1977), neste momento as práticas da
instituição se pautavam em três ações fundamentais: o inventário de exemplares
significativos da formação brasileira; as reparações imediatas aos monumentos
ameaçados de ruína e a introdução na normalidade nacional, do instrumento do
tombamento e de suas consequências.
Com a criação do 1º Distrito Regional no Recife, Ayrton Carvalho passou a
contar com uma sede fixa para o IPHAN e um pequeno quadro de funcionários.
Tirando alguns auxiliares administrativos e o arquiteto José Ferrão Castelo Branco, que
faziam parte do quadro oficial, os demais profissionais que colaboravam com a
instituição eram contratados por serviço prestado. Como nos demais Distritos, era
fundamental a presença de um fotógrafo para manter a Área Central inteirada do
andamento das obras e dos bens a serem tombados, no Recife, essa tarefa foi levada
por Benício Watley Dias.
O quadro reduzido e a escassez de verbas não impediram que Ayrton Carvalho
constituísse um amplo corpo de colaboradores, a sede do 1º Distrito, no sobrado da
Rua da União, era uma espécie de centro cultural onde se reuniam todas as tardes,
intelectuais renomados para debates acalorados. Neste cenário, o ‘Dr. Ayrton’ (como
era conhecido) constituiu uma rede de relações bem estabelecidas com o corpo docente
da Universidade do Recife, além de setores da administração Estadual e Municipal.
Entre os que fizeram parte deste grupo: o engenheiro Joaquim Cardozo, o jurista Luiz
Delgado, o advogado Berguedoff Elliot, o filósofo Evaldo Coutinho, o artista plástico
Hélio Feijó, o historiador José Antônio Gonsalves de Mello, os intelectuais José Maria
de Albuquerque Melo e José Césio Regueira Costa, os engenheiros Antônio Baltar e
Edgard D’Amorim, além dos arquitetos Delfim Amorim, Acácio Gil Borsói, Gerson
Loretto, Edmundo Barros, José Luiz da Mota Menezes, Geraldo Gomes, Vital Pessôa de
Melo, Augusto Reynaldo, Valdomiro Alves de Souza, Marcos Domingues, Conceição
Lafayete, Zildo Sena Caldas e Zenildo Caldas, entre outros.55 Todos prestavam serviços
como colaboradores da instituição, recebendo honorários por isso, ou não.
Os primeiros tombamentos do 1º Distrito contemplaram principalmente
exemplares da arquitetura religiosa do século XVII, Monumentos como o Conjunto
Franciscano de João Pessoa, o Mosteiro de São Bento, em Olinda, a Capela da Jaqueira
(Figura 4) e a Igreja de São Pedro dos Clérigos, no Recife, pelo excepcional valor
artístico e, por vezes, histórico. Além das religiosas, as edificações militares também
foram contempladas: o Forte Orange, em Itamaracá, o Forte do Pau Amarelo, em
Olinda, o Forte das Cinco Pontas e do Brum, no Recife, remetiam valores que não
deveriam ser esquecidos pela nação. Mais tarde, a arquitetura civil dos engenhos
também foi alvo de tombamento, como principal registro da arquitetura rural colonial
(Figura 5).
Documentos arquivados na Série Assuntos Administrativos, Subsérie Ayrton Carvalho. Arquivo Central
do IPHAN/Seção Rio de Janeiro.
55Informações concedidas à autora em entrevistas (Geraldo Gomes, José Luiz da Mota Menezes e Zulmira
Carvalho) e levantadas nas correspondências entre o 1º Distrito e a Área Central.
54
70
Figura 4: Capela da Jaqueira, Recife-PE, 1939;
(Fonte: Arquivo Central do IPHAN, Série
Obras- Capela da Jaqueira).
Figura 5: Engenho Poço Bonito, Vicência-PE,
1946; (Fonte: Arquivo Central do IPHAN, Série
Obras- Engenho Poço Bonito).
Ayrton Carvalho fez manobra com as verbas mínimas que lhe foram fornecidas,
muitas vezes em desacordo com a Área Central56, teve querelas com padres, que
teimavam em reformar igrejas tombadas, e proprietários displicentes, que deixavam
edificações em ruínas. Brigou, literalmente, com Deus e o mundo, para fazer cumprir a
salvaguarda do patrimônio histórico e artístico. Tarefa esta, apropriada como ‘causa’
pelos intelectuais engajados no projeto do IPHAN. Assim como os demais técnicos,
Carvalho também atuou em obras de restauro e conservação, entretanto foi na defesa
de monumentos ameaçados pelas transformações urbanísticas que conseguimos
identificar a contribuição mais significativa deste engenheiro-urbanista.
Assim como as principais capitais brasileiras, as áreas centrais do Recife foram
alvo de reformas urbanas da primeira metade do século XX. Em busca de melhorias de
estética, salubridade e circulação, sucessivos planos propunham a abertura de novas
avenidas e construção de edifícios verticalizados nos bairros de Santo Antônio e São
José, até então permeados de representações negativas por conta da forma urbana
tradicional – ruas estreitas, tortuosas, ocupadas por sobrados e casario de porta-ejanela – vinculados ao atraso econômico e social. A verticalização nestes bairros, que
também eram território de diversas edificações tombadas foi enfrentada por Ayrton
Carvalho, à frente do 1º Distrito e gerou inúmeros confrontos que podem ser
observados nos processos de aprovação de novas edificações na Avenida Dantas
Barreto entre as décadas de 1950 e 1960.57
Em um período cujos conceitos de conservação urbana ainda eram incipientes no
país, Ayrton Carvalho construiu um escopo de práticas no sentido de proteção à
Nas correspondências pesquisadas identificamos em vários momentos, conflitos entre a administração
central do IPHAN e Ayrton Carvalho devido à relocação de verbas, muitas vezes o chefe do 1º Distrito
transferia a verba destinada a determinado serviço para outro de maior urgência, sem esperar a
autorização. Numa destas vezes, Rodrigo Mello Franco declarou: “O Ayrton tem, pois de deliberar se lhe
convém ou não a minha chefia. De minha parte, já verifiquei definitivamente que não serve o regime
estabelecido por ele” (Rodrigo Mello Franco. Carta 394, para João Malheiros [inspetor do IPHAN] 09 ago.
1950).
57 Estes processos encontram-se arquivados na 5ªSuperintendênciaRegional do IPHAN e foram analisados
detalhadamente por Pereira (2009).
56
71
vizinhança e visibilidade dos bens tombados, com o aporte mínimo da legislação que
se resumia ao vago art. 18º do Decreto-lei nº. 25/1937:
Sem prévia autorização do Serviço do Patrimônio Histórico Artístico
Nacional, não se poderá, na vizinhança da coisa tombada, fazer
construção que lhe impeça ou reduza a visibilidade, nem nela colocar
anúncios ou cartazes, sob pena de ser mandado destruir a obra ou
retirar o objeto, impondo neste caso multa de cinquenta por cento do
valor do mesmo objeto (BRASIL. Decreto-lei nº. 25/1937).
O chefe do 1º Distrito não só conseguiu conter parte da verticalização no entorno
de monumentos como a Igreja do Carmo, Pátio de São Pedro e Igreja de Santo Antônio,
como também se articulou com a Municipalidade, conseguindo inserir e efetivar a
determinação do Decreto nº. 25 na legislação municipal. A parceria entre as instituições
resultou no Plano de Gabaritos para os Bairros de Santo Antônio e São José, o primeiro
instrumento municipal de salvaguarda ao patrimônio. A preocupação de Ayrton
Carvalho era voltada para o monumento em si, porém considerava como parte da
composição deste, a ‘arquitetura menor’ da vizinhança, o que nos permite aproximar as
concepções deste engenheiro com as do arquiteto Gustavo Giovanonni:
O que nos preocupa agora é evitar que os monumentos nacionais, em
face da re-urbanização planejada, fiquem amesquinhados. O
levantamento das construções muito altas, nas proximidades dos
monumentos, inteiramente divorciadas do espírito sadio da boa
arquitetura contemporânea, conduz, inevitavelmente, a esse fim,
impedindo ou diminuindo-lhes a perspectiva, total ou parcialmente,
de modo a quase apagá-los na sua majestade, no meio urbano em que
se encontram (Ayrton Carvalho. Of.nº. 219/52, para Rodrigo Mello
Franco. Recife, 26 nov.1952).
O que se percebe ao longo da atuação de Ayrton Carvalho no 1º Distrito
Regional é o dilema permanente entre as práticas do urbanismo modernista e da
conservação, na cidade do Recife, inclusive entre os profissionais que compunham o
quadro funcional do IPHAN. A construção de edifícios verticalizados no entorno de
monumentos tombados era relativizada, a partir de ser ou não um exemplar da
arquitetura moderna. O próprio Ayrton Carvalho demonstra esta posição ambígua, ao
encaminhar o projeto elaborado pelo arquiteto Delfim Amorim, para substituição do
casario que compõe Pátio de São Pedro por edifícios com base de dois pavimentos
(Figura 7). Segundo o chefe do 1º Distrito, a proposta de Amorim, respeitava o pátio e
constituía um conjunto inofensivo para a igreja, a proposta foi impugnada por Lúcio
Costa que defendeu a manutenção das alturas das casas atuais e sua variedade, a fim
de desestimular a iniciativa imobiliária.
72
Figura 6: Estudo de Acácio Gil Borsói para a
construção do Ed. Banco Mercantil, vizinho à
Matriz de Santo Antônio; (Fonte: Arquivo
Central do IPHAN-RJ).
Figura 7: Proposta de Delfim Amorim para o
Pátio de São Pedro; (Fonte: Arquivo Central do
IPHAN-RJ)
A partir da análise sobre as práticas de Ayrton Carvalho no 1º Distrito do
IPHAN, percebemos que apesar da concepção inicial acerca do patrimônio histórico e
artístico nacional ser bastante ligada àquela disseminada pela Área Central do IPHAN,
vai sendo relativizada ao longo de sua atuação, a partir de novas experiências. Se de
início, via como principal característica de um bem para tombamento, seus valores
artísticos mensurados a partir do paradigma do Barroco mineiro, na década de 1950, o
engenheiro já atenta, em seus inventários, para expressões da arquitetura local, como o
Sítio da Cruz e o da Trindade (Figura 8) 58, tradicionais da cidade.
Figura 8: Sítio da Trindade, década de 1960; (Fonte: Acervo do Laboratório da Paisagem.)
O entendimento de Ayrton Carvalho da ‘ambiência’ como parte da composição
do monumento, se faz notar em momentos como a ocasião em que o Sítio da Jaqueira
(hoje um importante parque da cidade) estava para ser loteado e o engenheiro se opôs:
Solicito urgentes providências junto ao Instituto dos Comerciários no
sentido de serem eliminadas ruas projetadas partes posterior e lateral
da Capela da Jaqueira. Estas exigências imprescindíveis, a nosso ver
tem finalidade. Esta repartição que só assim manterá aspecto do
Em 1953, durante os preparativos para o Tricentenário da Restauração Pernambucana, o jornalista
Aníbal Fernandes sugeriu à Comissão do Tricentenário a construção de um hospital público no terreno
deste Sítio. Ayrton Carvalho, que fazia parte da comissão, discordou e sugeriu a criação de um grande
parque para crianças (o que foi aceito). (Ayrton Carvalho. Carta à Rodrigo Mello Franco, 23 mai. 1953).
58
73
monumento, magnífico exemplar capela sítio. (...) Nosso parecer é que
toda área ao redor da capela deve se constituir um único parque com
aproveitamento de toda linda e antiga arborização existente sem ruas
intercaladas (Ayrton Carvalho. Telegrama a Rodrigo Mello Franco,
Recife, 08 abr. 1945).
Assim como os demais chefes de Distrito Regionais, Ayrton Carvalho teve papel
fundamental na mobilização de colaboradores que ajudaram a suprir as limitações da
instituição, tornando sua atuação eficaz. O contato com profissionais de outras
instituições e ambientes culturais, fez com que os debates acerca da conservação dos
monumentos ultrapassassem os limites do 1º Distrito. Através destas articulações, a
legislação federal de salvaguarda, antes desconsiderada até mesmo pelos instrumentos
municipais, passou a ser assimilada e repercutida. Esta habilidade com no trato com as
instituições e em fazer funcionar os instrumentos legislativos, bem o modo de pensar a
cidade, nos permite concluir que em sua atuação Ayrton Carvalho no IPHAN foi,
sobretudo, um urbanista.
Conclusão
A análise sobre as práticas de Ayrton Carvalho nos revela a relação intrínseca
entre a arquitetura moderna e a conservação do patrimônio histórico e artístico
nacional, que se constituíram interagindo de forma direta sem contraposição.
Percebemos que o saber acerca da arquitetura tradicional é construído por Carvalho, a
partir de uma experiência pioneira no sentido de constituir uma arquitetura moderna
brasileira. Na DAC/DAU o engenheiro foi levado a estudar a fundo os materiais e
técnicas construtivas tradicionais e locais, para se apropriar destes e produzir uma
arquitetura moderna em sintonia com os preceitos difundidos por Le Corbusier e pela
Bauhaus, condizente com as condições e peculiaridades locais.
À frente do 1º Distrito Regional, vimos que os valores da ‘boa arquitetura’ –
Colonial ou Moderna – enunciada por Lúcio Costa guiavam as práticas de Ayrton
Carvalho, fosse nas restaurações, inventários, tombamentos ou intervenção no entorno
de vizinhança de monumentos. Cabe destacar este último ponto, como uma de suas
principais contribuições, a inserção de edifícios verticalizados na vizinhança de
monumentos tombados exigiu que este desenvolvesse um tirocínio acerca dos
instrumentos urbanísticos ainda pouco avançado no âmbito nacional. Enquanto chefe
de Distrito – ainda que tenha realizado pesquisas, inventários e tombamentos como os
demais – o papel maior de Ayrton Carvalho foi como urbanista. Graças a este
engenheiro a cidade hoje pode contar com parques em sítios tradicionais como o da
Jaqueira e o da Trindade e além dos pátios e casario do conjunto histórico dos bairros
Santo Antônio e São José. Para além da atuação na instituição, Ayrton Carvalho
constituiu uma espécie de centro cultural em torno do 1º Distrito Regional, onde alunos
e intelectuais eram instigados a contribuir e discutir soluções para os impasses
cotidianos, levando o conhecimento acerca das práticas da salvaguarda a se disseminar
por diversos ambientes institucionais e culturais.
74
Referências
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Artístico Nacional. Rio de Janeiro: Ministério de Educação e Saúde, v.1 : 3.
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CAMPELLO, G. O. , 2001. O brilho da simplicidade: dois estudos sobre a arquitetura
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CARDOZO, J. 2007. A Diretoria de Arquitetura e Urbanismo (DAU): olhada de um
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BRASIL, de 30 nov. 1937. Decreto-lei nº. 25.
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Dissertação de Mestrado, PPGH-UFPE.
PEREIRA, J.M., 2009. Dilemas e confrontos entre o urbanismo modernista e a
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PEREIRA, J.M., 2012. Admiráveis Insensatos: Ayrton Carvalho, Luís Saia e as práticas
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SAIA, L. 1977. Até os 35 anos, a fase heroica. CJ Arquitetura – Revista de Arquitetura,
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IPHAN.
XAVIER, Alberto (Org), 2003. Depoimento de uma geração– arquitetura moderna
brasileira. São Paulo: Cosac & Naify.
75
O PAPEL DA MEMÓRIA NA CONSERVAÇÃO SUSTENTÁVEL
DO PATRIMÔNIO: O CINE BANDEIRANTE EM SABARÁ (MG)
Fabiana De Lucca Munaier & Felipe Carneiro Munaier♥
Resumo
O objetivo deste artigo é desenvolver uma discussão em torno da memória
do lugar como um componente que atribui sentido ao bem cultural e,
consequentemente, como um caminho para viabilizar a sua conservação
enquanto ambiente construído. A memória do lugar ajuda a comunidade a
definir um passado comum e a apropriar-se do bem patrimonial, o que
favorece a sua conservação de forma mais duradoura. O artigo utiliza o
Cine Bandeirante, inaugurado em 1959, em Sabará (MG), como estudo de
caso que demonstra como um lugar que perde sua ligação com a sociedade
tende a cair no esquecimento. Seu prédio, já há alguns anos sem nenhum
uso, encontra-se no estágio inicial do processo de restauração. O Cine
Bandeirante fez parte da vida da cidade, mas não é apenas um resquício do
passado. O estudo busca mostrar que o lugar, mesmo que não cumpra mais
suas funções originais, precisa dialogar com o presente.
Palavras-chave: cinema, identidade, memória, Sabará, sustentabilidade,
patrimônio
Introdução
O objetivo deste texto é destacar a importância da conservação do ambiente
construído, enquanto bem cultural referente à identidade de indivíduos e grupos,
enquanto possuidor de uma memória essencial. Para preservar o lugar, vivenciado no
passado e vivido no presente, é necessário resguardar sua memória, o que contribui
para a apropriação do bem patrimonial pela sociedade e colabora com a manutenção
dos seus valores culturais.
Trata-se de um texto resumido, com vistas à ampla discussão que circunda o
tema e os inúmeros desafios que surgem ao trabalhar com patrimônio e
sustentabilidade na atualidade. O Cine Bandeirante, antigo cinema de Sabará (MG), é
usado no texto como estudo de caso que ajuda a pensar a relação entre patrimônio e
memória de forma sustentável.

♥
UFMG. [email protected]
[email protected]
76
1. Breve estudo de caso: o Cine Bandeirante ontem e hoje
No início do século XX, o Teatro Municipal de Sabará foi adaptado e
transformou-se em Cine Teatro Borba Gato, mas com o passar dos anos suas
instalações chegaram ao limite de não suportar a produção cinematográfica em escala
industrial que demandava arquitetura sofisticada e aparelhagens avançadas. Pode-se
afirmar que o cinema, diretamente relacionado ao consumo, se desenvolveu seguindo
os anseios da modernidade capitalista (Benjamin, 1975).
Na década de 1950, surgiu a ideia de construir em Sabará um cinema com
equipamentos de áudio e projeções que oferecessem à população a possibilidade de
assistir aos mesmos filmes em cartaz nos cinemas de Belo Horizonte. Em 1959, através
da iniciativa do prefeito José Costa Sepúlveda, o moderno Cine Bandeirante foi
inaugurado. O projeto do cinema foi feito pelo engenheiro Paulo Penaforte Parreiras e
as obras de construção foram executadas por profissionais da construção civil em
Sabará, liderados por Antônio Lourenço59. Durante muitos anos foi opção de lazer e
cultura, com a projeção de filmes dos mais diversos gêneros. Tinha capacidade para
aproximadamente oitocentos espectadores (Novo cinema, 1958). A nova sala
proporcionou a primeira experiência cinematográfica de massa na cidade.
Eram poucas as pessoas que possuíam televisores até o início da década de
1970, consequentemente, era comum a existência de longas filas para entrar no cinema.
A partir de 1978, o Cine Bandeirante entrou em decadência. A ampla difusão da
televisão e a facilidade de acesso a Belo Horizonte colaboraram para a redução do
público até culminar no fechamento definitivo. Posteriormente, o prédio passou a
chamar-se Centro Cultural José Costa Sepúlveda e começou a atender programas como
o “Férias no Cinema”, ensaios de teatro, palestras e formaturas (Conselho, 2002, p. 4-8).
Mas essas atividades, que eram tentativas de atribuir uso ao local, não vingaram.
O declínio do Cine Bandeirante foi marcado por filmes do gênero
pornochanchada e ocorreu de forma semelhante à decadência do Cine Candelária em
Belo Horizonte. Aliás, foi da mesma forma como aconteceu em várias salas de cinema
pelo Brasil. Além da predominância da exibição desse tipo de filme, Teodoro Assunção
(2009, p.20) afirma que a decadência das salas é marcada pela “massificação dos
hábitos televisivos e – por meio de uma novidade tecnológica decisiva – a introdução
do hábito cômodo e doméstico do home video com todo o novo comércio das
videolocadoras”.
Em 2002, o prédio do Cine Bandeirante recebeu o título de patrimônio histórico
e cultural. Sua estrutura foi tombada e protegida em nível municipal60. Com a
ampliação do campo de abrangência do chamado patrimônio “instrumentos como o
tombamento (...) passam agora a expor, de uma maneira cruel, suas limitações e têm, a
nosso ver, que ser revistos à luz de novos condicionantes e critérios” (Castriota, 2009,
p.86). As considerações de Leonardo Castriota são relevantes na medida em que é
possível observar o precário estado de conservação em que estava o Cine Bandeirante
A arquitetura do prédio do Cine Bandeirante foi projetada no estilo Art Déco. A ideia era seguir os
modernos traços arquitetônicos da cidade de Belo Horizonte, típicos do século XX, bem como a política de
modernização defendida pela elite nacional da época.
60 Conforme decreto 275/2002 e inscrição 22-T do Livro de Tombos de Sabará, fls. 05 (Secretaria de Cultura
da Prefeitura Municipal de Sabará).
59
77
às vésperas do início das obras de restauração começadas em junho de 2012. As figuras
1 e 2 ilustram os problemas de infiltração que a estrutura do prédio do cinema passou
nos últimos anos.
Figura 1. Hall de entrada do Cine Bandeirante
Fonte: Felipe Carneiro Munaier
Figura 2. Foto do teto acima da plateia do cinema
Fonte: Felipe Carneiro Munaier
A situação em que a construção chegou mostra que qua lquer proposta
de intervenção precisa garantir a integridade e o uso do Cine Bandeirante,
recuperando-o como “documento monumento” da cidade (Le Goff, 2003). O
tombamento, por si só, é uma ferramenta importante, mas falha no contexto
atual. O Cine só vai se tornar efetivamente patrimônio coletivo quando a
78
comunidade lhe conferir sentido. A memória funciona como elo entre a
sociedade e o bem cultural. A preservação da memória do cinema em Sabará,
na sua vinculação com a história, pode contribuir para a recup eração do seu
sentido cultural. A população vivenciou o lugar, logo os órgãos de
preservação não podem tomar decisões sem dialogar com a sociedade que,
ao apropriar-se do bem, contribui para a continuidade dos seus aspectos
culturais e ambientais. As intervenções no campo do patrimônio devem levar
em consideração os diversos suportes da memória: as edificações e os
espaços, os documentos, as imagens e as palavras (Castriota, 2009, p.86).
Envolver a comunidade e observar como o lugar foi vivenciado no passad o e
como é rememorado atualmente pode ajudar os profissionais da conservação
a identificar os vínculos entre os sabarenses de hoje e o cinema.
A preservação do patrimônio ambiental urbano: “é, antes, preservar o
equilíbrio da paisagem, pensando sempre com o inter-relacionados à infraestrutura, o lote, a edificação, a linguagem urbana, os usos, o perfil histórico
e a própria paisagem natural” (Castriota, 2009, p.89). Os usos e os desusos
influenciam na conservação dos bens culturais. O patrimônio não é está tico,
a cidade é um organismo vivo, em transformação, os costumes mudam, a
cultura é dinâmica. As políticas de preservação devem priorizar o acesso da
população ao bem cultural. Em suma, o Cine Bandeirante não cumpre mais
suas funções originais, bem como já não abriga nenhuma atividade cultural
há alguns anos. O lugar precisa de um uso que garanta sua integridade,
preservando-lhe as linhas arquitetônicas externas e detalhes internos, assim
como sua memória. O diálogo com a comunidade é fundamental para o
processo de tomada de decisões sobre a conservação e os diversos valores
que envolvem o bem cultural devem ser discutidos antes de definir um novo
uso para o lugar.
O jornal Estado de Minas, no dia 15 de maio de 2012, noticiou que “os
dias de glória da sétima arte, turbinados pela moderna tecnologia e novas
gerações de atores e atrizes, vão voltar à cidade colonial, com a restauração
do prédio do antigo Cine Bandeirante” (Werneck, 2012). A notícia destaca
que há sete anos fechada e abandonada, a construção va i se transformar em
local multimídia, com espaço reservado para sessões de cinema. Os custos do
projeto estão estimados em R$1,3 milhão.
É a memória afetiva que eleva o Cine à categoria de patrimônio,
depositário do passado histórico. O local, que tem seu período de uso cada
vez mais distante no tempo, corre o risco de perder o seu caráter identitário,
relacional e histórico, o que configuraria um brusco rompimento cultural. A
população precisa ficar próxima das ações de intervenção durante toda a
execução do projeto de restauração.
79
2. Patrimônio Sustentável
2.1 Memória e Conservação
A partir do pressuposto de que cada lugar tem sua memória, podemos
considerá-la como aliada às estratégias de valorização e conservação dos
bens culturais que compõem a relação identitária entre população e cidade.
O ser humano tende a valorizar e cuidar do que lhe desperta afeto ou
identificação. Quando a identidade cultural fica ameaçada, o patrimônio
sofre consequências. É importante preservar a memória do lugar para que o
bem cultural não perca seu sentido.
O lugar é o lar das tradições e memórias. Conforme Tuan (1983, p.3 -6),
tempo e lugar são componentes básicos do mundo vivido e aos lugares
atribuímos valores. Muitos são definidos pela cultura, que é exclusiva do ser
humano. O espaço indiferenciado se transforma em lugar depois que o
dotamos de valor (Tuan, 1983, p.6). O autor defende que o lugar e o espaço
são experimentados. De acordo com Casey (1987, p.186 -187), a “memória do
lugar” seria “a persistência estabilizadora do lugar como um contenedor de
experiências que contribui tão poderosamente para a sua memorabilidade
intrínseca”. A memória se vincula ao lugar, portanto, é orientada e/ou
suportada pelo lugar. As pessoas têm capacidade de se conectar com o
ambiente construído. Então, a “memória do lugar” se configura como a
chave para se definir um passado comum. Segundo Hayden (1995, p.47),
explorar a “memória social” e a “memória do lugar” é uma ideia poderosa
que pode servir a preservação do ambiente construído.
Ana Carlos afirma que é relevante
[...] pensar a história particular de cada lugar se
desenvolvendo, ou melhor, se realizando em função de uma
cultura/tradição/língua/hábitos que lhe são próprios,
construídos ao longo da história [...]. O lugar é a base da
reprodução da vida e pode ser analisado pela tríade
habitante - identidade - lugar. [...] As relações que os
indivíduos mantêm com os espaços habitados se exprimem
todos os dias nos modos do uso [...] (2007, p.17).
Por meio dos modos de uso o homem habita e se apropria do espaço,
transformando-o em lugar. Portanto, o lugar pode ser compreendido através
do conjunto de sentidos impresso pelo uso. Atualmente o Cine Bandeirante
demanda que os profissionais envolvidos no projeto de restauração
articulem meios da sociedade se reapropriar do bem. O período de desuso
pode ter causado uma perda de identidade principalmente com relação às
novas gerações que sequer vivenciaram o cinema em funcionamento. O
cinema foi parte do cotidiano da cidade até que as atividades
cinematográficas foram encerradas em meados da década de 1980.
Recentemente, a Prefeitura, junto de parceiros da iniciativa privada, iniciou
a restauração do prédio, uma vez que o mesmo não oferecia condições
adequadas para abrigar qualquer tipo de atividade. O local estava correndo
o risco de cair no esquecimento. Nessa situação, a relação da comunidade
80
com o bem cultural fica comprometida, considerando -se o Cine Bandeirante
como parte da construção identitária dos sabarenses. “Identidade coletiva
(...) não seria aquilo que é igual, mas o que faz as pessoas se reconhecerem
como grupo: valores comuns, ritos e ritmos compartilhados” (Carsalade,
2007, p.177). Seriam as práticas cotidianas compartilhadas por uma
comunidade.
Choay (2006, p.26) completa o conceito de i dentidade coletiva ao
afirmar que o patrimônio tem papel fundamental na preservação da
identidade dos povos e dos grupos sociais. Também ressalta que as relações
dos bens culturais com o tempo, a memória e o saber interferem na sua
conservação. O esquecimento, o desapego e a falta de uso levam o bem ao
abandono. O patrimônio possui caráter transformador que precisa ser relido
e utilizado de forma consciente e sustentável. Sem, no entanto, perder o
lastro da memória. Duas dimensões convivem num mesmo lugar d a
memória, a perenidade do passado e a dinâmica do presente, numa
complementaridade que permite uma reutilização do bem patrimonial, que,
longe de ser apenas um resquício do passado, é plástico o suficiente para
dialogar com o presente.
O conceito de “patrimônio” está em constante ampliação. Segundo
Castriota (2009, p.85), aos critérios estilísticos e históricos se juntam a
preocupação com o entorno, ambiência e o significado que a comunidade
confere ao bem patrimonial. O conceito de “sustentabilidade” tamb ém é
amplo e está ainda em construção, mas seu escopo já é claro: as necessidades
de uso dos recursos disponíveis não podem comprometer a qualidade de
vida no futuro. Os bens culturais precisam ser considerados como recursos
de suma importância para o futuro.
O economista David Throsby (2001) insere o conceito de
sustentabilidade como um princípio não apenas para as decisões sobre a
conservação do ambiente construído, mas como uma estrutura holística para
interpretações interligadas entre economia, sociedad e, cultura e sistemas
biológicos. O autor afirma que é preciso reconhecer a importância do valor
intangível do patrimônio, as ligações com a história local que um bem
representa, assim como o valor da educação e o papel simbólico para a
comunidade. Esses valores podem se servir para que a comunidade se
aproxime das ações voltadas para a conservação dos bens locais. Os valores
sociais, culturais e ambientais são fundamentais para a preservação do
ambiente construído, mas não podem ser dissociados da esfera e conômica
(Throsby, 2001, p.4).
Pelo viés da sustentabilidade social, a antropóloga Setha Low (2001,
p.47) afirma que a formação da identidade cultural está diretamente
relacionada ao ambiente construído. As lembranças físicas fornecem um
sentimento de identificação com o lugar, através da continuidade e
conectividade que raramente temos consciência, mas que desempenham um
papel importante em nosso desenvolvimento psicológico como indivíduos e
grupos. Low (2001) retoma os princípios de sustentabilidade de T hrosby
81
(2001) e reforça que para a sustentabilidade social ser atingida em nível de
indivíduos e grupos é preciso que o lugar seja preservado. Para Martins
(2006) o patrimônio “é uma consequência da percepção do homem e seu
valor, no contexto no qual está inserido”, e a falta de informação à população
sobre valorização cidadã de patrimônio têm consequências nos sujeitos
enquanto povo e memória (Martins, 2006, p.45).
Os bens culturais devem ser compreendidos como recursos essenciais
para o presente e o futuro das cidades e é nessa órbita que carece ser
pensada a conservação do Cine Bandeirante em Sabará. De acordo com
Carneiro
[...] quem assegura que as relações entre as pessoas dessa
cidade não sofram perdas em termos de qualidade, sempre
que algo desaparece do convívio de todos? Se há uma reação
sintomática melancólica, já se pode pensar que parte da
história de um cidadão rui junto com um cinema, uma
edificação, uma árvore etc. (2006, p.22).
A preocupação com o patrimônio está diretamente relacionada à
qualidade de vida e, nesse processo, a memória possui papel crucial, pois
tem a ver com afetividade e identidade.
2.2.
Patrimônio e identidade
O patrimônio possui estreita ligação com a memória e encontra fundamento
como ponto de referência para a formação da identidade coletiva. Sob um ponto de
vista sociológico Castells afirma que
A construção de identidades vale-se da matéria prima fornecida pela
história, geografia, biologia, instituições produtivas e reprodutivas,
pela memória coletiva e por fantasias pessoais, pelos aparatos de
poder e revelações de cunho religioso. Porém, todos esses materiais
são processados pelos indivíduos, grupos sociais e sociedades, que
reorganizam seu significado em função de tendências sociais e
projetos culturais enraizados em sua estrutura social, bem como em
sua visão de tempo/espaço (Castells, 1999, p.23).
A dinâmica da identidade tratada por Castells sugere que “Como, e por quem,
diferentes tipos de identidades são construídas, e com quais resultados, são questões
que não podem ser abordadas em linhas gerais, abstratas: estão estritamente
relacionadas a um contexto social” (Castells, 1999, p.26). Para Marc Augé, a
superabundância e os excessos enfraquecem as referências coletivas gerando um
individualismo da identidade. Assim sendo, o chamado “não-lugar” caracteriza-se por
não ser identitário, histórico e relacional.
Essa necessidade de dar um sentido ao presente, senão ao passado, é o
resgate da superabundância factual que corresponde a uma situação
82
que poderíamos dizer de supermodernidade para dar conta de sua
modalidade essencial: o excesso (Aaugé, 1994, p.32).
Por outro lado está o espaço antropológico, histórico, criador de identidade e
fomentador de relações interpessoais; “[…] é simultaneamente princípio de sentido
para aqueles que o habitam e princípio de inteligibilidade para quem o observa”
(Augé, 1994 p. 51). Nesse sentido, o Cine Bandeirante é um bem cultural que compõe a
identidade da população sabarense. Isso ocorre tanto pelas experiências passadas
quanto pela forma de rememorá-las. Em uma reflexão sobre o discurso a respeito da
história e seu conceito, Walter Benjamin coloca que somente para a humanidade
redimida o passado é citável em cada um dos seus momentos (Benjamin, 1994, p. 223).
A determinação específica da ciência histórica, segundo ele, não é conhecer o passado,
mas sim furtar a ele sentidos e ambientes que possam auxiliar o homem a lidar com
problemas de seu tempo.
Articular historicamente o passado não significa conhecê-lo como ele
de fato foi. Significa apropriar-se de uma reminiscência, tal como ela
relampeja no momento de um perigo. [...] Em cada época, é preciso
arrancar a tradição ao conformismo, que quer apoderar-se dela
(Benjamin, 1994, p. 224).
A identidade se constrói a partir da tentativa de criação de blocos sociais coesos,
através do reconhecimento de fatores em comum e que representam a personalidade
de uma população. Nesse sentido, identidades são arquitetadas em função de
interesses socioeconômicos e políticos, onde a cultura é um discurso que constrói
sentidos, influencia e organiza ações e concepções dos sujeitos relacionados ao
presente, sua diversidade e transformação. Segundo Le Goff (1996, p.423-424) no
próprio processo de memória do homem existe uma ordenação e uma releitura dos
vestígios. A leitura dos símbolos importantes de formação cultural é função da
memória quando confere o sentido da identidade.
Pierre Nora (1993) reforça que a memória é carregada por grupos vivos e está
em permanente evolução, aberta à dialética da lembrança e do esquecimento,
inconsciente de suas deformações sucessivas, vulnerável a todos os usos e
manipulações, susceptível de longas latências e de repentinas revitalizações. É um
fenômeno sempre atual, um elo vivido no eterno presente. É afetiva e mágica. A
memória emerge de um grupo que ela une. É, por natureza, múltipla e desacelerada,
coletiva, plural e individualizada. Se enraíza no concreto, no espaço, no gesto, na
imagem, no objeto. Nesse viés, Carneiro (2006, p.20) completa que “a memória está
diretamente ligada ao patrimônio de um povo, pois gera, a partir da cultura (...) um
ponto de referência de sua identidade e as fontes de sua inspiração”. A partir desse
pressuposto o autor acredita que a perda de um bem cultural se configura como fonte
de sofrimento psíquico. Os elementos materiais de uma cultura servem de alicerce para
o sentimento de identidade e pertencimento a um lugar.
Portanto, a intervenção no Cine Bandeirante que hoje se faz necessária, e que já
teve início recentemente, precisa visar sua conservação como ambiente construído que
guarda a memória do cinema na cidade. Ele se constitui como produção de sentidos
83
consequentes da formação de identidade entre interlocutores e ambiente a partir da
interação entre os mesmos. Esse importante detalhe não pode ser desconsiderado.
Conclusão
Para conservar um bem cultural é preciso ir além do que simplesmente tombálo. É importante que haja um efetivo diálogo entre os órgãos públicos e a sociedade,
que deve ser envolvida no processo. Ao apropriar-se do bem cultural, através do uso e
de uma relação afetiva, a sociedade pode contribuir para a continuidade dos seus
aspectos culturais e ambientais. Para criar estratégias de conservação para o Cine
Bandeirante é importante envolver a comunidade e pensar como o lugar foi vivenciado
no passado e como é rememorado atualmente. Somente a população, através da
memória, poderá garantir o sentido do patrimônio.
Os usos e os desusos influenciam na conservação dos bens culturais. Sem uso o
bem tende a perder a ligação com a comunidade e a cair em esquecimento. A
preservação só faz sentido se priorizar o acesso da população ao bem. Através do uso,
o homem habita e se apropria do bem cultural. Se cada lugar tem sua memória, logo
ela se configura como um caminho para a valorização e conservação dos bens culturais,
ou seja, a memória é um dos quesitos para atribuir sentido ao patrimônio. A relação do
patrimônio com a sociedade interfere na sua conservação. O Cine Bandeirante é um
depositário do passado, mas o mesmo precisa dialogar com o presente, pois possui
valor histórico e simbólico para a comunidade. Os valores são fundamentais para a
conservação do patrimônio e auxiliam na definição de um novo uso para o bem
cultural na mesma medida em que corroboram para aproximá-lo da comunidade.
Para trabalhar o patrimônio edificado é preciso fazer considerações em longo
prazo, o que nos remete ao conceito de sustentabilidade. Além de valor econômico, o
Cine Bandeirante possui valor histórico, arquitetônico, estético e simbólico, isto é, valor
cultural. Esse precisa ser preservado como um importante recurso tanto para o
presente quanto para as gerações futuras. Conservar o lugar e sua memória é preservar
a identidade cultural de indivíduos e grupos.
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86
MEMÓRIA E ESTRUTURAÇÃO DO ESPAÇO NAS COLÔNIAS
ITALIANAS NO RIO GRANDE DO SUL. ESTUDO CRÍTICOCOMPARATIVO ENTRE BENTO GONÇALVES/RS E AS
TERRAS DE ORIGEM
Décio Rigatti, Lívia Terezinha Salomão Piccinini♦ & Elio Trusiani♥
Resumo
O trabalho, resultado parcial de uma pesquisa em andamento entre a
UFRGS e a Sapienza Universidade de Roma, aborda a questão geral da
paisagem cultural através de uma metodologia de investigaçao histórica
entre dois aspectos: o nível do territorio e o nível da arquitetura rural. A
ocupação da serra do Estado do Rio Grande do Sul com a vinda de colonos
italianos a partir de 1875 resulta numa paisagem única no Brasil. O
presente trabalho se propõe a descrever a evolução histórica do território e
da paisagem atual ante as novas formas de uso e a discutir, de forma
crítica, os vínculos e os sinais de permanência/transformação entre a
colônia italiana e as terras de origem de seus habitantes. O trabalho
pretende investigar as regras das matrizes históricas dos assentamentos,
sua evolução e sua relação com o território atual e as paisagens
contemporâneas e identificar, a partir da análise dos layouts de uma
amostra de habitações rurais no interior do município de Bento Gonçalves RS, de que maneira os traços da história e da tradição da imigração italiana
se manifestam e se articulam com a experiência arquitetônica das áreas de
origem, além de permitir o exame das novas funções do território e das
novas tipologias de paisagens, pondo a questão da conservação das
permanências históricas como recurso para valorizar o territorio e a
paisagem. Os resultados, até o momento, mostram que, no que se refere
especificamente à estrutura das habitações rurais, estas possuem grande
similaridade de organização, embora apresentem formas, materiais,
implantação, etc. diferentes entre si e das matrizes históricas, e que estas
recorrências parecem representar modos culturalmente arraigados de se
estabelecerem: (i) relações internas entre os membros das famílias; (ii)
externamente com os visitantes; (iii) e na organização do cotidiano das
famílias e da vida comunitária.
Palavras-chaves: estrutura da paisagem de colonização italiana no RS, estrutura
da habitação rural de colonização italiana no RS, memória e estrutura do espaço.

UFGRS. [email protected],
UFRGS. [email protected],

Sapienza Università di Roma, [email protected]

87
Introdução
Este trabalho traz os primeiros resultados de uma pesquisa em andamento que
trata dos aspetos de estruturação de uma parte do território do Estado do Rio Grande
do Sul tendo início com o processo migratório ocorrido desde o segundo quartel do
século XIX, a partir do qual colonos italianos oriundos especialmente do norte da Itália
se estabelecem nas recém-criadas colônias na serra gaúcha.
A ocupação que acontece na encosta de cima da serra no Estado do Rio Grande
do Sul com a vinda de colonos italianos, a partir de 1875, baseada, no nível político, nos
planos oficiais de colonização e, fisicamente, nos desenhos dos engenheiros militares
para as “linhas e travessões”, resulta na configuração de uma paisagem única no Brasil.
Estudos dos últimos cinquenta anos sobre a imigração italiana no RS produziram
uma boa literatura especializada sobre a região que é centrada, principalmente, em
abordagens sociológica, econômica, etnológica, lingüística e antropológica, além dos
estudos nas áreas da fito-geografia e da geografia física, de maneira ampla.
Especificamente nos campos da arquitetura e do urbanismo existem diversos estudos
realizados sobre a moradia dos primeiros habitantes e, mesmo, da evolução urbana dos
núcleos coloniais pioneiros e das novas cidades criadas a partir do século XIX. No
entanto, ainda não existe um trabalho sistemático que vincule as modalidades de
ocupação do território, as tipologias urbanas e edilícias e suas relações quando
examinados com os lugares de origem dos imigrantes, particularmente das regiões do
Vêneto e do Trentino Alto Ádige.
1. Objetivos
O presente trabalho se propõe a descrever a evolução histórica do território e da
paisagem atual ante as novas formas de uso e as paisagens contemporâneas, e a
discutir, de forma crítica, os vínculos e os sinais de permanência/transformação entre a
colônia italiana e as terras de origem de seus habitantes. A pesquisa pretende
reconstituir as regras das matrizes históricas dos assentamentos, sua evolução e sua
relação com o território atual e as paisagens contemporâneas. Além disso, busca ainda
investigar/identificar o papel que os traços da história e da tradição da imigração
italiana apresentam hoje nas novas funções do território e nas novas tipologias de
paisagens, de novos assentamentos, em relação a evolução urbana e regional.
Como estudo de caso, será estudado o território do município de Bento
Gonçalves, e compreenderá o período entre 1875-2005. O estudo de Bento Gonçalves,
como parte da Primeira Colônia, a partir da qual os imigrantes aguardavam a sua
destinação final, ou seja, o seu assentamento nos lotes de terras rurais, possibilita que
as questões propostas sejam avaliadas desde o inicio do processo da colonização
italiana no Rio Grande do Sul.
88
2. Metodologia
O trabalho está baseado em pesquisa histórica com particular interesse nas
questões espaciais. Assim, serão utilizadas informações de dados primários presentes
no Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul e em arquivos nas cidades de colonização
italiana, especialmente o existente na Universidade de Caxias do Sul, que abriga
documentos importantes sobre o período. Do mesmo modo, serão pesquisados dados
secundários, a partir de documentação institucional e de particulares, dissertações,
teses e trabalhos acadêmicos em geral, que serão utilizados como fontes de informação.
A cartografia disponível sobre projetos das colônias nas áreas urbanas permitirão
recompor a parte de evolução histórica da ocupação do território, bem como plantas,
fotos antigas, levantamentos in loco e outras formas de registro permitirão caracterizar
as tipologias edilícias. Neste particular, as técnicas da sintaxe espacial (Hillier e
Hanson, 1984) serão aplicadas para avaliar os aspectos de estrutura da organização
espacial da habitação rural implantada na região de análise avaliando, portanto,
questões que vão além dos aspectos formais.
Em relação à paisagem, o objetivo é o de identificar os âmbitos e os locais que
constituem os elementos da estrutura fundamental do sistema paisagístico por meio do
estudo dos elementos estruturais, morfológicos e perceptivos que permitam
reconstituir a estrutura plurisistêmica da componente paisagística cultural. Os critérios
adotados serão descritivos e interpretativos do mosaico paisagístico, especialmente da
trama dos tecidos da paisagem agrária, além do residencial produtivo. Isto permite
interpretar as formas, as diferenças culturais de implantação e as diferentes relações
com as áreas de mata e de plantações com seus ritmos, tipos e regras compositivas que
se tornam valores e recurso na definição dos sub-âmbitos da paisagem. São
privilegiados os elementos fixos da paisagem: estradas, percursos, canais, cursos
d’água, em relação aos modificáveis, como os limites das matas. Estes permitem
individuar os diferentes âmbitos da paisagem - montanhoso, de bosques, de cultivo em
encostas e nas áreas planas, etc. - referidos à geografia, ao caráter paisagístico, aos
valores ambientais, perceptivos e culturais:
Trabalho semelhante, porem mais expedito será realizado nas regiões do Vêneto
e Trentino Alto Ádige na Itália e, a partir destes, serão possíveis as análises e os
estudos comparativos necessários para avaliar as transposições/adaptações tipomorfológicas realizadas pelos imigrantes nos novos territórios da América.
No presente trabalho, serão apresentados particularmente os resultados
relacionados com as habitações rurais, parte inicial da pesquisa, que estuda as casa
implantadas originalmente pelos primeiros colonos que ocupam o território de Bento
Gonçalves-RS.
3. Antecedentes históricos
No Brasil Imperial, as questões de mão-de-obra e escravidão são apontadas por
vários autores como os responsáveis pela adoção da política imigratória e de
colonização. Para Celso Furtado, a chave do problema econômico do país estava na
mão-de-obra. Para Nelson Sodré, a imigração européia do século XIX está ligada
89
intimamanete à escravidão. A extinção do tráfego escravo (Lei Euzebio de Queiroz,
1850) e os problemas com a manutenção das fazendas cafeeiras levou a economia do
Império a se decidir pelo emprego da mão-de-obra livre e pela ocupação das terras
pelos imigrantes europeus. Aqui, a abolição do tráfego de negros e o estabelecimento
da Lei do Ventre Livre (1874) apontava para a necessidade de adotar novas formas de
trabalho para explorar o solo e alternativas para resolver as demandas provenientes da
agricultura.
Neste período, na Itália, a Unificação, fruto de interesses políticos-econômicos
entre diferentes grupos, foi uma revolução incapaz de reorganizar a propriedade da
terra de uma maneira eficaz a ponto de diminuir os conflitos. Ao lado do latifúndio e
dos grandes senhores de terra, os camponeses empobrecidos viviam em pequenas
propriedades que não geravam o suficiente para a sobevivência da própria família,
quanto mais gerar excedentes que pudessem ser comercializados. A forma de
modernização acelerada promovida pela introdução do capitalismo naquele país
prejudicou camponeses e trabalhadores assalariados. Ao mesmo tempo em que as
novas tecnologias (trem, telégrafo, máquinas industriais) auxiliavam na superação da
economia feudal existente liberando grandes contingentes da população rural para
novas cidades e indústrias, uma igualmente grande quantidade da população não
conseguia ser absorvida pelo mercado de trabalho nacional, nem pelos mercados dos
demais países da Europa, que haviam passado por esse processo anteriormente. A
pressa em superar séculos de atraso e adaptar-se ao capitalismo levou o Estado italiano
a pressionar os trabalhadores assalariados e camponeses, cobrando taxas e impostos
impossíveis de serem atendidos pelos mais pobres e incapazes de gerar empregos
suficientes, obrigava-os a abandonar suas familias, vender suas terras para pagar as
dívidas, emigrar. Greves, protestos e manifestações populares avançavam sobre as
cidades, ao mesmo tempo em que a fome (gerando a pelagra) e as doenças (cólera,
malária) atacavam as populações. Em um país que na época constituia-se de trinta
milhões de pessoas, havia muitos habitantes dispostos a se aventurarem a abandonar a
Pátria e rumar para o exterior, mesmo para terras longínquas, em busca da
sobrevivência e de melhores condições de vida.
Os acordos entre os governos brasileiros e italianos acionaram milhares de
pessoas entre os dois países, propagandeando as vantagens de imigrar para o Brasil e
organizando e orientando desde a navegação e as condições de trabalho até as formas
de propriedade da terra. É estimado que chegaram ao Rio Grande do Sul oitenta e
quatro mil italianos e que no total, chegou um milhão de italianos no Brasil entre 1875 e
1913, provenientes de diversas regiões e cidades italianas, mas a maior parte
provenientes do norte da Itália, tais como Beluno, Treviso, Bergamo, Trento, Calabria,
Modena, Milao, Padova, Genova, Napolis, Firenze e outros. Os custos de transporte da
Europa ao Brasil e dos portos de chegada até a área do assentamento, ficavam a cargo
do governo brasileiro e o cálculo das dividas individuais com as despesas de imigração
era calculada em 30% sobre o valor dos lotes. O período de tempo entre a saída da
Itália e a chegada ao assentamento final, no Brasil, não era muito longo (ao redor de
um mes), embora desagradável e penoso, nos navios com falta de espaço e higiene,
alimentação inadequada e doeças que atormentavam as crianças e as mulheres, pois a
maioria dos imigrantes vinha acompanhado da mulher e de filhos, em grupos de duas
a dez famílias.
90
Em 18 de setembro de 1850, D. Pedro II assinou a Lei n. 601, a “Lei das Terras”
que passou a regular a colonização e a imigração para o Brasil. A lei dispõe com
precisão sobre os usos das terras devolutas do Império, decidindo como legitimar as
sesmarias já concedidas e orientando sobre a venda de terras. Desde o início do século
XIX vinha-se desenvolvendo um pensamento pró-imigração no Brasil. No entanto, se
por um lado a Coroa Imperial Portuguesa no Brasil representava interesses comerciais,
por outro lado, as classes proprietárias de terras, esforçavam se para garantir a
delimitação das terras para imigração e colonização que lhes fossem convenientes. No
Rio Grande do Sul, o pensamento pró-imigração desejava não apenas resolver o
problema de escassez de mão-de-obra, mas significava a opção por substituir a
escravatura e complementar a monocultura ganadeira com novas práticas: a
colonização e o povoamento da região norte do estado, o trabalho livre, a pequena
propriedade, a gricultura.
Autores ressaltam que o processo de imigração e de colonização no Brasil, deve
ser entendido sob a marca da “Lei das Terras” (1850), que institucionalizou, a nível
jurídico-político, a propriedade privada da terra no país. Assim, a política de
colonização foi regida pela Lei Provincial n. 304 datada de 30 de novembro de 1854,
que garantiu a imigração subordinada aos interesses dos grandes proprietários de terra
(SANTOS, 1978). Paralelamente, e de certa forma contraditoriamente, a opção pela
imigração apoiava-se em um conjunto de motivos inovadores, significando um
progresso ante a escravidão e a monocultura e criticando as condições da sociedade
escravocrata das charqueadas, buscava o acesso ao trabalho livre de imigrantes
europeus, proprietários e brancos (SANTOS, 1978).
A Lei autorizava a compra de terras, pelo governo, com base nos seguintes
princípios: (a) divisão de lotes de 48 hectares, com reservas de áreas para as servidões
públicas (mas a maioria dos lotes destinados aos imigrantes italianos não ultrapassava
os 30 hectares); (b) venda de lotes em pagamentos por até cinco anos, com garantia dos
mesmos como hipoteca; (c) auxílio aos imigrantes (para a compra de alimentos,
ferramentas, sementes, etc.) reembolsáveis dentro de cinco anos, com dois anos de
carência; (d) proibição dos colonos de possuirem escravos seus.
Em maio de 1854, o governo brasileiro regulamenta disposições sobre os marcos,
as demarcações das léguas, dos travessões, linhas e lotes. Ficam determinados os
preços dos lotes, o auxílio financeiro aos imigrantes até a colheita das primieras safras,
as zonas urbanas, as reservas florestais, os locais das fortificações e os portos (GIRON,
1977).
No estado do Rio Grande do Sul, o Decreto n. 1984 de 06 de outubro de 1857
criou a Repartição Especial de Terras Públicas na Província de São Pedro do Rio
Grande do Sul, que autorizava a venda das terras finalmente escolhidas para a
localização dos colonos. A área escolhida foi a região da Encosta Superior do Nordeste,
área de difícil acesso, pedregosa e pouco fértil, com topografia muito acidentada, rios
de baixa navegabilidade e grandes distâncias dos portos. Essa localização garantiu, no
entanto, o espaço para a continuidade da grande propriedade latifundiária do sul do
estado. O governo oferecia a possibilidade de os colonos trabalharem durante 15 dias,
no mes, na abertura de estradas na região e o pagamento seria descontado do custo dos
lotes. Após o pagamento de um terço do lote, o colono recebia um título provisório do
91
mesmo, e quando o valor integral da divida fosse quitado e, comprovado que o lote era
cultivado e ocupado, o título definitivo lhe era conferido. O processo e os
procedimentos em relação à terra, tais como demarcação, divisão, medição,
distribuição dos lotes e o assentamento dos moradores das colonias eram
desenvolvidos por engenheiros, agrimensores, desenhistas e topógrafos pertencentes à
Inspetoria Especial de Terras e Colonização.
4. A casa rural implantada no interior de Bento Gonçalves
4.1 O Edifício
Por mais simples que seja o programa de uma moradia, ela apresenta
peculiaridades que permitem compreendê-la muito além do que nos transmite pela sua
aparência, pelos materiais utilizados, pela sua escala, proporções, relações entre cheios
e vazios, enfim, pelos seus atributos físicos e imediatamente reconhecíveis. Neste
particular, e mantidas as exceções, cada moradia tende a se constituir num objeto
único, seja na busca da marca e das particularidades de quem nela habita, seja como
resultado dos conceitos e ideais que justificaram a sua concepção e projeto, entre tantas
opções possíveis.
Isto é tanto verificado numa arquitetura que podemos conceituar como erudita,
no sentido de que foi matéria de um processo de desenho por um especialista que, via
de regra, não é o próprio morador, quanto na arquitetura dita vernacular, aquela que é
produzida muito mais por processos de reprodução incutidos no tempo e no espaço
pela cultura.
Mas a acepção da casa, tal com exposta acima, expõe um problema metodológico
para a sua análise, uma vez que limita a abordagem essencialmente às questões de
forma, sendo que seu conteúdo enquanto espaço de vivência, fica subentendido como
uma dimensão quase que independente da forma, como se os processos de uso não
tivessem no arranjo espacial, um atributo essencial para a sua viabilização ou para sua
própria constituição.
Toda casa, assim como todo o edifício, distingue-se do espaço público dado que,
enquanto o último é constituído por um contínuo, o edifício constitui-se numa
construção de limites a esse espaço contínuo e, portanto, a experiência possível nesses
dois domínios é muito diversa. O edifício, enquanto interrupção do contínuo espacial
que caracteriza o domínio público, propõe uma distinção fundamental entre um
exterior e um interior. Enquanto que o exterior é conceitualmente o espaço do livre uso,
através do qual de qualquer lugar se pode ir a qualquer outro lugar, o interior constitui
o domínio do controle das relações sociais, uma vez que o limite espacial imposto pelo
edifício estabelece limites relativamente claros quanto às relações entre o morador,
aquele que controla esse espaço delimitado, e o estranho, ou visitante que pode, na
medida em que lhe é permitido, penetrar e se movimentar nesse interior de acordo
com cláusulas prévias e socialmente acordadas.
O edifício estabelece, portanto, o potencial de relações entre os moradores e
visitantes, utilizando-se de estratégias de arranjo espacial, através das quais são
definidas fisicamente as possibilidades, mesmo que não determinísticas, das relações
sociais no espaço.
92
A importância desta distinção é fundamental para a compreensão das
modalidades socialmente construídas do uso do espaço e permite que a produção e a
reprodução das relações sociais utilizem o espaço como uma de suas instâncias,
responsável pela geração das possibilidades de interfaces de estranhos entre si – no
domínio público – e pelas interfaces entre moradores entre si e com estranhos, no
domínio privado delimitado pelo edifício.
Como dizem Hillier, B. e Hanson, J. (1984:145):
“In moving from outside to inside, we move from the arena of encounter
probalities to a domain of social knowledge, in the sense that what is
realised in every interior is already a certain mode of organizing experience,
and a certain way of representing in space the idiosyncrasies of cultural
identity.”
Assim, um dos conceitos-chave é o de ordem espacial, que é como é possível
definir a natureza das relações entre categorias sociais. Ordenar o espaço significa
“...at least some domain of unitary control, that ‘unitariness’ being expressed
by two properties: a continuous outer boundary, such that all parts of the
external world are subject to some form of control; and continuous internal
permeability, such that every part of the building is accessible to every other
part without going outside the boundary.” (Hillier, B. e Hanson, J. (1984:147)
4.2 O instrumental da Sintaxe Espacial
Uma vez conceituado o papel do edifício como interface de diferentes categorias
sociais, fica evidente que qualquer método de análise a ser utilizado precisa resolver
uma questão fundamental, ou seja, deve possibilitar a identificação do conteúdo
espacial presente na sociedade e, ao mesmo tempo permitir que o conteúdo social
impresso no espaço possa ser identificado e descrito de alguma maneira.
Para tanto, serão utilizados os procedimentos de análise da sintaxe espacial,
sistematizados em 1984 por Hillier e Hanson, através da publicação The social logic of
space (Cambridge University Press) e debatidos em congressos internacionais
específicos, os International Space Syntax Symposium, encontro bi-anual que em 2012
fechou sua oitava edição.
A sintaxe espacial constitui-se num procedimento útil na medida em que permite
que os padrões espaciais utilizados em determinado território, tanto na escala urbana
quanto na escala do edifício, sejam avaliados em seus aspectos estruturais
ultrapassando, portanto, as questões de descrição tipo-morfológica, agregando os
aspectos de configuração e uso do espaço permitindo, deste modo, descrever as
diversas morfologias e, ao mesmo tempo, suas relações com o uso social do espaço.
Como esta teoria está já consolidada por uma ampla produção acadêmica e de
uso prático, os aspectos mais conceituais serão remetidos à literatura existente ao passo
que serão retidos apenas aqueles aspectos que interessam mais de perto as questões a
serem discutidas na presente pesquisa, tanto do ponto de vista dos métodos de
representação do espaço, quanto de sua interpretação.
93
As formas de representação adotadas permitem que sejam feitas mensurações
das propriedades espaciais presentes em determinadas morfologias. Deste modo, é
possível comparar edificações distintas a partir de seus elementos estruturais e
relacionais o que, de outro modo, seria limitado aos aspectos formais e, portanto, de
difícil comparação.
A representação básica das edificações é feita pela construção de um ‘mapa
justificado’, no qual cada compartimento é representado por um círculo e cada relação
de permeabilidade existente entre quaisquer compartimentos é representada por uma
linha. Deste modo, abstraem-se da edificação os aspectos de forma e materiais e são
retidas as relações espaciais. Este mapa tanto reproduz as relações espaciais existentes
como também permite a quantificação das propriedades espaciais.
O exemplo simples abaixo é extraído do The social logic of space (p. 148) e permite
ilustrar o argumento, sendo que à esquerda é representada a planta-baixa da
edificação, com seus compartimentos e, à direita, o gráfico correspondente:
a
a
A
a
a
b
a
b
a
c
a
c
a
a
a
B
b
a
a
a
b
a
c
a
c
a
c
a
C
a
a
b
a
b
a
a
a
c
a
94
Os compartimentos ‘a’ e ‘b’ estão, de alguma forma, relacionados com o espaço
exterior – ‘c’ – e o papel relativo de cada um dos compartimentos depende da sua
posição relativa, entre si e com o espaço externo. Assim, em A, ‘a’ e ‘b’ são simétricos a
‘c’, com todos os espaços situados ao longo de um único anel. Em B, o exterior se
relaciona com ambos os espaços internos, mas estes não se relacionam entre si, isto é,
para ir de ‘a’ para ‘b’ é necessário utilizar o espaço externo. No caso de C, o espaço ‘b’
só pode ser acessado do exterior mediante a passagem pelo espaço ‘a’ que, portanto,
assume um papel de controle do que ocorre entre ‘c’ e ‘b’, possuindo uma estrutura em
árvore. Essas diferentes configurações representam modos distintos de os espaços
controlarem as diferentes morfologias e, portanto, enfatizam propriedades relacionais
de controle das categorias sociais envolvidas.
O espaço externo, representado por um círculo cruzado nas situações
representadas, é a raiz dos gráficos. Isto se deve a uma condição essencial para a
compreensão do funcionamento das edificações, ou seja, de que forma um edifício
pode ser entendido do ponto de vista do espaço externo. A raiz do gráfico, no entanto,
pode ser qualquer um dos espaços do conjunto considerado, mudando-se apenas o
ponto de vista de como o sistema em análise é visto a partir dele.
Ao analisar diferentes edificações através destes procedimentos, é possível a
identificação de famílias de estruturas – os genótipos – e esses genótipos é que
permitirão examinar o objetivo fundamental da pesquisa que se centra na identificação
de que modo os imigrantes italianos que se radicam na região de Bento Gonçalves
reproduzem essas estruturas, muito além do que reproduzem enquanto forma,
materiais ou técnicas construtivas. São os genótipos os que permitem estabelecer os
vínculos essenciais entre morfologia e uso social do espaço.
“...a genotype in buildings (gamma, no original) can be defined in terms of
associations between labels of spaces and differentiations in how those
spaces relate to the complex as a whole... (...) genotypes will be the result of
relations of inhabitants and inhabitants with visitors” (Hiller, B.; Hanson, J.,
1984:154).
E são exatamente as interfaces entre os moradores e visitantes os geradores
sociais fundamentais dos edifícios (Hanson, J., 1998:22).
4.3 As medidas sintáticas
Nesta pesquisa, serão utilizadas apenas algumas das medidas sintáticas, entre
tantas possíveis, consideradas fundamentais para a descrição das propriedades
estruturais de um layout.
A medida mais importante é a integração, ou seja, a medida que avalia o papel
relativo de cada um dos compartimentos de um edifício, em relação a todos os outros
do conjunto. Esta medida permite avaliar em que medida os espaços componentes
contribuem ou não para aproximar todos os espaços entre si (daí o termo integração
espacial) e é função da profundidade de cada espaço em relação a todos os demais.
Profundidade, aqui, é entendida como o número de compartimentos é necessário
percorrer para, de qualquer espaço alcançar qualquer outro na composição.
95
A medida de integração é dada pela fórmula:
, onde RA é a medida
de integração, Md é a profundidade média do sistema considerado e n é o número de
espaços que compõem o sistema. Com a finalidade de permitir a comparação entre
sistemas de tamanhos diferentes, utiliza-se a medida de integração normalizada:
onde RRa é a integração normalizada, RA a medida de integração descrita
anteriormente e k é um coeficiente relativo ao número de espaços (p. 112 de The social
logic of space). Para que o resultado tenha um significado direto (maior valor=maior
integração), o que facilita enormemente as análises, é utilizada a recíproca de RRA, ou
seja, 1/RRA.
4.4 Os ‘rótulos’, ou os usos dados aos compartimentos
Parte importante da análise é a avaliação dos rótulos, ou seja, a identificação do
que acontece em cada um dos compartimentos de um edifício. Isto permite comparar a
posição de cada compartimento no sistema – seu nível de integração – com o que
acontece nele. Deste modo, as regularidades ou diferenças constantes num grupo de
edifícios é que vão definir as famílias de estrutura ou os genótipos.
Como diz Hanson:
“Integration has emerged in empirical studies as one of the fundamental
ways in which houses convey culture through their configurations. (...) we
began to find that in cases where we were able to work with a statistically
reliable sample of real houses from the traditional and vernacular record,
different functions or activities were systematically assigned to spaces which
integrated the dwellings to differing degrees. Function thus acquired a
spatial expression which could also be assigned a numerical value. Where
these numerical differences were in a consistent order across a sample of
plans from a region, society or ethnic grouping, then we could say that a
cultural pattern existed, one which could be detected in the configuration
itself rather than in the way in which it was interpreted by minds. We called
this particular type of numerical consistency in spatial patterning a house
‘genotype’ ”(Hanson, J., 1998:32).
São exatamente esses padrões culturais que interessam resgatar nesta pesquisa, a
partir de uma amostra de habitações rurais do interior de Bento Gonçalves.
5. A amostra
O ponto de partida para a definição da amostra das habitações a serem
analisadas nesta pesquisa é o Inventário do Patrimônio Histórico Edificado de Bento
Gonçalves realizado em 1996, compreendendo todo o território do município. Dos 491
bens inventariados como de interesse de preservação, foram selecionados apenas as
residências localizadas na área rural do município, já que este foi o principal destino
dos imigrantes recém-chegados da Itália, eles mesmos oriundos basicamente da área
rural de diversas regiões do norte, especialmente do Vêneto pré-alpino, origem de mais
do que 54% dos imigrantes.
96
Tendo em vista os objetivos da pesquisa, procedeu-se levantamentos in loco,
procurando agregar informações não constantes das fichas de levantamento de 1996,
como a paisagem de implantação das residências, a reconstituição das plantas-baixas,
com a destinação de uso de cada compartimento. Das 203 residências selecionadas em
todo o território do município, foram feitos levantamentos prioritários naquelas
localidades que apresentavam uma maior concentração de edificações, que foram as
localidades de São Pedro, Linha Paulina, Linha Eulália e Linha Leopoldina.
Na ocasião dos levantamentos optou-se por incluir na observação eventuais
residências não listadas, mas que apresentavam interesse para a pesquisa e, também,
nos casos em que a edificação tenha sido tão modificada a ponto de perder suas
características e impedir a reconstituição da planta, estas foram descartadas. Alguns
bens listados que foram objeto de reformas recentes, mas que ainda dispunham de
documentação com registros das situações originais foram mantidas, sendo utilizado o
material de arquivo, normalmente dos escritórios de arquitetura responsáveis pelas
reformas. As casas ou residências são denominadas pelo nome de família, mantendo-se
sua identificação como foi feito pelo levantamento dos bens de interesse para
preservação de 1996.
A listagem final dos bens, com plantas-baixas e paisagem de entorno levantadas,
com sua localização, consta da tabela abaixo.
Tabela 1 : Relação das residências rurais de Bento Gonçalves levantadas
NOME
LOCAL
Antiga Casa Moret
Linha Paulina
Antiga Casa Rossatto
Linha Eulalia
Casa Irmãos Bianchi
Estrada Geral de São Pedro
Casa das Massas
Estrada Geral de São Pedro
Casa Destro
Linha Eulalia
Casa e Cantina Moret
Linha Paulina
Casa e Cozinha Toniollo
Linha Eulalia Alta
Casa Gabardo
Linha Eulalia Baixa
Casa Jatir Toniollo
Linha Eulalia Alta
Casa Merlin
São Pedro
Casa Rossato
Linha Eulália
Casa Rossato
Eulália Alta
Casa Simadon
Linha Paulina – Vale Aurora
Casa Somenzzi
Linha Paulina Baixa
Casa Strapazzon
Estrada Geral de São Pedro
Residência Arsego
São Pedro
OBSERVAÇÕES
Originalmente
residência,
não consta do inventário de
1996
97
Residência Comiotto
Estrada Geral de São Pedro
Residência Zachet
São Pedro
Fonte: levantamentos dos autores
5.1 A Casa Rural do Imigrante italiano no interior de Bento Gonçalves
É importante identificar preliminarmente os papéis e o funcionamento da casa
rural do imigrante italiano, pois isto permite reconhecer partes importantes e
constitutivas da própria organização espacial, tanto da casa como do território
circundante.
A casa rural no período inicial da colonização da serra gaúcha não constitui
apenas o núcleo principal do abrigo da família, mas é parte de uma organização que só
pode ser compreendida em sua complexidade, a partir tanto dos modos de
enfrentamento dos problemas inicialmente encontrados nos processos de formação da
rede espacial e social da imigração italiana, particularmente na área rural de Bento
Gonçalves, um dos primeiros destinos dos imigrantes e objeto de nosso estudo, quanto
das particularidades provenientes das suas origens e as adaptações necessárias ao novo
território.
Assim, a residência normalmente não é a única transformação territorial
efetuada, mas é o centro de um número de atividades complexas que implicam em
outras edificações complementares, além da transformação da paisagem propriamente
dita.
A residência, além de local de abrigo e da reprodução da força de trabalho, no
cotidiano da atividade rural possui também papel importante como elemento
fundamental para a sobrevivência do núcleo familiar, principalmente nos primeiros e
mais difíceis anos. Deste modo, a casa cumpre o papel de abrigo, o papel de
representação, especialmente nas relações com os outros e, num nível mais pragmático
e funcional, como local que permite assegurar a manutenção independente da família
ao longo do ano, o qual é marcado por temporalidades bem delineadas de trabalho
com a terra e com os animais, de plantio, de cuidados, de colheitas, de armazenagem,
sem os quais, a própria sobrevivência ficaria em risco. A casa é parte integrante de todo
este processo e a organização espacial reflete todos estes aspectos, simultaneamente,
independente do seu tamanho ou do tamanho do núcleo familiar a que pertence. Neste
particular, o tamanho do núcleo familiar sempre foi de importância vital para o
sustento e o progresso da família, especialmente porque significava que, quanto mais
braços, mais mão de obra e, portanto, mais trabalho poderia ser investido na terra, num
período em que inexistia mão de obra assalariada, mas cada núcleo familiar era o único
responsável pelo trabalho e sustento, com algumas poucas exceções, especialmente de
parcelas de colheitas que poderiam agregar, por exemplo, vizinhos em sistema de troca
de trabalhos.
Numa situação típica, uma casa rural de imigrante italiano na serra gaúcha pode
ser compartimentada para fins analíticos por diversos setores.
98
Uma parte fundamental é o setor de serviços, composto normalmente por uma
sala de refeições, uma cozinha e uma pequena área de lavagem de louças e de preparo
de comidas. A sala de refeições é intensamente utilizada ao longo de todo o dia pelos
membros da família que são responsáveis pela manutenção da casa, incluindo a
limpeza, arrumação dos quartos, lavagem de roupa, consertos de roupas, preparo das
refeições, preparo de outros alimentos como o pão, cuidados e alimentação dos animais
domésticos, que pode incluir a ordenha das vacas, a coleta de pastagem para a sua
alimentação, além de obtenção e fornecimento de alimentação para as aves, fontes de
carne e ovos, os porcos, importante fonte de proteína, além de matéria prima para os
embutidos que, por suas características, permite a estocagem por longos períodos de
tempo, do mesmo modo que o queijo.
A cozinha é normalmente composta por um fogão a lenha (fuocolare, na fase
inicial de ocupação da colônia) e, nos invernos, serve como área de estar de toda a
família, principalmente à noite, onde permanece ao longo de grandes bancos ou
cadeiras, usufruindo tanto do calor quanto da iluminação do fogo, sendo importante
espaço de trocas sociais e de discussão da organização da família e do trabalho. No
verão, a parte externa da casa é mais utilizada.
A parte correspondente à pia é utilizada como área de preparo de refeições e
para a lavagem da louça, tendo um caráter mais de despejo e de produção de dejetos.
O acesso a este setor da casa normalmente se dá por meio de porta independente,
diretamente voltada para o espaço exterior. Portanto, seu acesso é feito sem a
necessidade de se ingressar em outros setores da casa, importante modo de manter
certas partes da casa fora do contato com outras, mais limpas e com funções mais
específicas, como veremos. Outra solução espacial também comum para este setor da
casa é, além de manter acesso independente para o espaço exterior, possuir um volume
também separado e, muitas vezes, independente do restante da casa, conectado ao
restante da edificação por um alpendre coberto. Esta separação, principalmente
quando toda a casa é construída em madeira, ou quando a parte de serviço é feita em
madeira e o restante da edificação é realizado em alvenaria de tijolos ou de pedra tem o
papel de servir como elemento separador para fins de segurança, já que a área da
cozinha é mais sujeita a acidentes com fogo. No caso em que toda a residência é
construída em alvenaria, o volume da cozinha continua como um conjunto de espaços
independentes, porém justaposto ao volume restante da casa.
O programa da parte íntima da casa é bastante simples, usualmente composta
por uma sala de estar, normalmente pouco utilizada pela família, tendo uma função
mais relevante na recepção de estranhos ou de visitas mais formais. As visitas mais
informais, como os vizinhos e parentes, costuma ter como espaço de vivência a parte
de serviço da casa. O mobiliário tende a ser mais elaborado, embora com pouca
utilização pela família. Normalmente a sala serve como elemento de ligação direta com
os dormitórios, separados por sexo e faixa etária, sendo que os filhos menores tendem
a ficar juntos ou mais próximos aos pais. Esta parte da casa também costuma ter acesso
independente ao espaço exterior sendo que, nos casos em que a parte de serviço é
justaposta com a íntima, sempre existe uma conexão interna de relação entre estas duas
partes da casa. No caso de volumes separados entre a parte de serviço e a íntima, o
alpendre cumpre a função de servir como elemento de ligação e de relação com o
99
espaço exterior. Apesar do pouco uso cotidiano da sala, esta se constitui num espaço
importante para a representação da família, principalmente perante os estranhos e é
fundamental para determinadas ocasiões da vida da família, como lugar de recepção
para festas como casamentos, ou para realizar parte dos serviços fúnebres de membros
da família, já que serve como local do velório. Deste modo, a sala possui uma
relevância fundamental para a realização de socialidades que implicam nas relações da
família, principalmente com estranhos.
Como parte importante da casa rural, o porão é elemento constante em todas as
residências. Normalmente é construído em pedra e apresenta poucas aberturas e
acessos, os quais são independentes do restante da casa. Os materiais e o controle das
aberturas permite que a temperatura seja mantida baixa e praticamente constante,
importante para a conservação de alimentos produzidos, como queijos e embutidos,
assim como para a produção e armazenagem de vinhos, servindo também como área
de estocagem da produção de outros alimentos mais frágeis como batatas e sementes.
Deste modo, o porão assume um papel fundamental para a garantia da subsistência da
família, como local de armazenagem de alimentos que requerem baixas temperaturas,
como uma espécie de geladeira natural, obtida a partir do modo de inserção no terreno
– frequentemente com partes em contato direto com a terra - e do uso de materiais e
técnicas construtivas adequadas.
Com papel semelhante, o sótão das casas sempre possui um papel utilitário para
o funcionamento do conjunto. Além de normalmente abrigar parte dos dormitórios da
casa, o sótão, como área submetida a temperaturas mais elevadas e com baixa
humidade, serve como área para a conservação de grãos – os chamados granaros fundamentais para que, ao longo do ano, possam ser transformados em farinhas para o
pão e para a polenta, alimentos essenciais para o sustento da família.
Além da residência e dos seus compartimentos, tantos voltados às atividades
cotidianas como as excepcionais, outras edificações e espaços fazem parte do conjunto
do que se denomina de casa rural e também representam papéis fundamentais para a
sobrevivência da família, tanto na produção de alimentos quanto no abrigo de animais
de trabalho e dos implementos necessários às tarefas do dia a dia. O paiol será a
edificação onde é feita a guarda de implementos, como ferramentas, maquinários
diversos e, muitas vezes, é usado para a armazenagem de parte da produção agrícola.
Já a estrebaria será a área de cuidados com os animais domésticos, principalmente para
os bois utilizados para a tração do arado e carretas, as vacas que são ali abrigadas,
alimentadas e ordenhadas e também para os cavalos, que são utilizados
prioritariamente como meios de transporte. A localização do paiol e, principalmente,
da estrebaria, em função da necessidade de cuidados especiais de limpeza e de higiene,
é cuidada, mantida certa distância da residência.
A criação de porcos e de aves se dava normalmente em áreas específicas e
separadas, mas nunca muito distante da residência, tanto por questões de controle
como de facilidade para os cuidados e alimentação, que são constantes.
Já a horta e o pomar, estes se localizam próximos à residência, por questões de
controle e de facilidade no uso e manutenção. A horta é sempre cercada, para impedir
o acesso de animais. Produtos de presença constante são os temperos para as comidas e
os chás e outras ervas utilizadas para o tratamento de doenças mais comuns. Durante o
100
ano, produtos sazonais são cultivados para a variação de temperos, alimentos e
produtos para conservas, como o tomate, a vagem, o pepino, a abóbora, por exemplo.
O pomar normalmente não existe como uma área separada e organizada. As árvores
frutíferas ficam mais dispersas, próximas da residência. As árvores frutíferas que
requerem mais cuidados e tratamentos usualmente são dispostas ao longo dos
perímetros dos parreirais e, quando do tratamento destas, as árvores frutíferas como o
pessegueiro e a figueira também são tratadas com o mesmo sulfato de cobre utilizado
nos parreirais.
Deste modo, a casa rural é o núcleo de produção e de reprodução da família mas
também assume um papel fundamental para as condições de sobrevivência,
comportando funções de produção e de armazenagem de alimentos que, produzidos
ao longo do ano, garantem a alimentação do grupo familiar e dos animais criados. A
casa é parte de um conjunto organizado de transformação do território, que implica em
espaços edificados e outros não, mas sempre trabalhados. É nesta perspectiva de
multiplicidade de funções e de espaços transformados que se pode, então trabalhar
tanto as questões de organização da residência propriamente dita e do território da
colônia como um todo.
6. Análise preliminar dos resultados
Das dezoito casas pesquisadas até o presente momento, a residência com o
menor número de espaços é a Antiga Casa Moret, com seis compartimentos, datada de
1897 e construída em pedra. É uma pequena casa, que logo foi substituída por outra
maior, nas suas proximidades, assim que a família cresceu. A residência com o maior
número de compartimentos é a Casa e Cozinha Toniollo, com 20 compartimentos. As
demais residências possuem um número de compartimentos variável, sendo que
praticamente em metade da amostra o número de compartimentos é de nove ou dez,
com o restante da amostra ficando acima deste número – oito casas – e apenas duas
com um número de compartimentos menor do que nove (tabela 2).
Tabela número 2 – As residências da amostra por número de compartimentos61
Casa
Número de Compartimentos
de 6 a 8
de 9 a 10
Antiga Casa Casa Irmãos Bianchi
Moret
Residência Zachet
Casa Merlim
Casa das Massas
Casa Simadon
Casa Rossato – L. Eulália
Casa Somenzzi
de 11 a 15
Casa Arsego
Casa Strapazzon
Casa Gabardo
Casa e Cantina
Moret
Casa Rossato –
Eulália Alta
Casa Jatir Toniollo
de 16 a 20
Residência
Comiotto
Casa e Cozinha
Toniollo
Casa Destro
Na contagem do número de compartimentos, em todas as residências o exterior é contado como um dos
seus compartimentos.
61
101
Antiga Casa Rossato
Fonte: levantamentos dos autores.
O que se observa é que o número de compartimentos tem uma maior variação
dependendo do número de dormitórios que a casa apresenta, o que tende a refletir o
número de pessoas que compõe a unidade familiar. São nove as residências com um
número de dormitórios entre dois (o menor número encontrado na amostra) e quatro,
dez possuem entre cinco e seis dormitórios, sendo que a Casa e Cozinha Toniollo
apresenta oito dormitórios e a Residência Comioto, apresenta o maior número de
dormitórios da amostra, com nove (tabela 3).
Tabela número 3 – As residências da amostra segundo o número de dormitórios
Casa
Número de dormitórios
de 2 a 4
de 5 a 7
8 e mais
Residência Zachet
Casa Irmãos Bianchi
Residência Comioto
Casa Merlim
Casa Arsego
Casa e Cozinha Toniollo
Casa Simadon
Casa das Massas
Antiga Casa Moret
Casa Strapazzon
Casa e Cantina Moret
Casa Gabardo
Antiga Casa Rossato
Casa Rossato – L. Eulália
Casa Somenzzi
Casa Rossato – Eulália
Alta
Casa Destro
Casa Jatir Toniollo
Fonte: levantamentos dos autores
Outro aspecto que pode afetar o número de compartimentos é o nível de
complexidade apresentado pela residência, já que às vezes a função de habitação é
compartilhada por alguma outra atividade econômica particular, que produz, além de
uma ampliação do número de compartimentos, uma estrutura espacial específica, já
que a ênfase dada nas relações internas e externas das casas varia, dependendo da
importância desta atividade na vida cotidiana e das suas relações com os estranhos ou
os usuários desta atividade. Da amostra considerada, a Casa Jatir Toniollo apresenta
também a função de comércio, com loja e depósitos compondo a mesma edificação
com a residência. A Casa Destro, por sua vez, apresenta atividades de ferraria e
carpintaria como negócios articulados à residência propriamente dita. No restante dos
casos, todos os compartimentos são os comumente encontrados em todas as
habitações.
102
A parte de serviço é comum a todas as residências, apenas apresentando
variações em termos de a cozinha e o comedor, ou sala da jantar, constituírem um
compartimento único – em oito das vinte e uma residências levantadas – ou a cozinha
constituir compartimento independente do comedor. Em apenas três residências
encontramos um compartimento específico para a lavagem de louças e preparo de
alimentos, compartimento este ligado diretamente à cozinha e normalmente associado
a uma área de despejo, seja de água servida, seja de restos de alimentos. Esta parte da
casa se apresenta como um corpo edificado diferente do restante, ou seja, com o
comedor e cozinha, formando ou não um compartimento único e a área de lavagem e
preparo de alimentos, em dez residências, muitas vezes com um único pavimento,
mesmo quando o restante da casa apresenta outro pavimento na parte social e íntima.
Isto significa que, nesses casos, não existe sótão sobre a cozinha. Nas demais casas, o
volume é um só, abrigando tanto a parte de serviço quanto a social e íntima.
Tabela número 4 – Residências que apresentam a parte de serviço com volume
diferente do restante
ORDEM
CASA
1
Casa e Cantina Moret
2
Casa e Cozinha Toniolo
3
Casa Simadon
4
Casa Gabardo
5
Casa das Massas
6
Casa Strapazzon
7
Residência Comioto
8
Residência Zachet
Fonte: levantamentos dos autores
Embora se constituindo numa tipologia usual entre as casas rurais da região
italiana gaúcha, a amostra apresentou apenas duas residências – a atual Casa das
Massas e a Casa Strapazzon – com o acesso à residência feito a partir de uma passagem
coberta, que separa a parte de serviço do restante da casa. Em sete residências o acesso
à residência a partir do exterior é feito a partir de um alpendre, que funciona como
espaço de transição entre a casa e o exterior. Nas doze casas restantes, o acesso ao
interior das residências se dá diretamente do espaço exterior, sem transição, seja por
passagem coberta, seja por um alpendre.
103
Tabela número 5 – As residências da amostra segundo o tipo de acesso pelo exterior
Casa
Tipo de Acesso a Partir do Exterior
Acesso Direto
Por Alpendre
Por Passagem Coberta
Casa Irmãos Bianchi
Casa Destro
Casa das Massas
Residência Zachet
Casa Arsego
Casa Strapazzon
Casa Merlim
Residência Comioto
Casa Simadon
Casa e Cantina Moret
Casa Gabardo
Casa Jatir Toniollo
Casa Rossato – L. Eulália
Casa e Cozinha Toniollo
Casa Somenzzi
Antiga Casa Moret
Casa Rossato – Eulália Alta
Antiga Casa Rossato
Fonte: levantamentos dos autores
7. As Casas da Amostra
Para fins ilustrativos, serão mostrados os procedimentos analíticos utilizados
para uma das casas levantadas, a Casa Rossato localizada na Linha Eulália. As casas
restantes estão em processo de complementação de dados e de graficação dos
resultados para o apoio às análises. É importante salientar que, na fase em que se
encontra a pesquisa, os resultados que emergem das análises até o momento referem-se
à parte brasileira da pesquisa, faltando a incorporação das análises que serão efetuadas
na região do Vêneto pré-alpino na Itália.
Outro aspecto importante é que os aspectos de construção da paisagem também
serão objeto de avaliação posterior, tanto da parte brasileira quanto da italiana.
A Casa Rossato da Eulália Alta possui dez compartimentos e apresenta algumas
características peculiares em relação ao restante da amostra. Uma única entrada frontal
faz o acesso de toda a residência a partir da sala de estar, por onde a parte de serviço e
o porão se ligam. Assim como em alguns outros casos, o porão existe como
compartimento, mas não se encontra abaixo do nível do restante da casa e ocupa parte
da projeção da casa, no mesmo nível do térreo, com o corpo contido na mesma. Possui
um dos acessos independentes, por fora da residência e, outro, que se liga com o
restante da casa por uma porta para a sala de estar. O pavimento térreo conta apenas
com a sala, a cozinha com comedor e o porão, por onde se faz o acesso ao sótão, no
andar superior. Neste, encontramos duas salas, uma imediatamente acima do porão e,
outra, para onde se ligam todos os dormitórios.
As plantas e as fotos abaixo ilustram o exemplo descrito acima (figura 1).
104
Figura 1 – Plantas e fotos dos autores
8. A Estrutura Interna das Casas – conclusões preliminares
Os procedimentos adotados para a análise da estrutura das habitações rurais de
Bento Gonçalves levaram em consideração, graficamente, o ponto de vista de todos os
compartimentos para que se possa entender seu papel na organização do layout e
representados pelos diversos grafos justificados correspondentes (figura 2, abaixo).
Neles, cada um dos compartimentos, cuja função é indicada com uma cor, que é
repetida para todos os compartimentos de mesma função em todas as demais
residências, é colocado na raiz do grafo, marcado com o círculo cruzado, e os demais
compartimentos são dispostos nas profundidades respectivas em relação a este espaço
raiz, daí o uso do termo ‘justificado’. O resultado apresentado significa como a
habitação é compreendida a partir deste. Deste modo, dependendo de qual
105
compartimento é utilizado como raiz do grafo, os demais compartimentos são mais ou
menos próximos, ou rasos, se são definidos setores específicos na moradia ou não, se a
estrutura interna é mais rígida, ou ordenada, ou mais aberta, se a estrutura é mais
anelar ou na forma de árvore. Todas estas peculiaridades definem as formas de
investimento social realizado no espaço e, deste modo, esclarecem tanto das relações
internas da casa e de seus moradores, quanto das relações destes com o mundo
exterior.
Figura 2: Fonte, os autores
Além dos grafos, foram calculados os valores de integração espacial de cada
compartimento de cada habitação, bem como sua integração média. A partir destas
informações examinamos uma ordenação dos compartimentos de cada habitação por
ordem decrescente de integração espacial, o que permite compreender, para cada
residência, o tipo de investimento social feito para a organização espacial da moradia.
Das dezoito residências que fazem parte da amostra, dez, ou seja, 55,6% delas
possuem a sala de estar como o compartimento mais integrado de toda a casa. Em uma
delas a sala é o segundo compartimento mais integrado, em duas casas a sala é o
terceiro compartimento mais integrada e em um caso, a sala de estar é apenas o quarto
compartimento em ordem de integração. É interessante observar o papel central que
este compartimento apresenta, uma vez que é o responsável pela mediação das
relações internas e, principalmente, o espaço que será o responsável pelo acolhimento
dos estranhos nos momentos especiais da vida da família como os batizados,
casamentos e outras festas familiares, bem como a recepção de visitas especiais e a
realização das cerimônias fúnebres dos membros das famílias falecidos.
Em 22,2% dos casos, o compartimento com maior valor de integração da casa é a
sala do sótão. Esta se apresenta com esta relevância, principalmente como elemento de
articulação do restante da casa com a parte mais íntima e, a partir do qual uma grande
parcela dos dormitórios é acessada.
Em relação ao papel do espaço exterior na organização das casas, também
encontramos algumas regularidades interessantes. Primeiramente, em nenhuma das
residências o exterior é o espaço mais integrado. Em 22,3% dos casos ele é o segundo
espaço mais integrado; em 44,6% dos casos é o terceiro espaço mais importante, em
outros 22,3% dos casos é o quarto espaço de maior integração. Em dois casos, ocupam
um papel de maior segregação. Isto significa que, na grande maioria dos casos, o
106
exterior ocupa um papel relevante na composição sem, no entanto, representar
habitações extrovertidas nem introvertidas, ficando em situação de pequeno
afastamento do interior da casa, mas sempre a poucos passos de profundidade do
conjunto. Isto assegura uma organização que viabiliza certa privacidade da vida
familiar, mas com boa acessibilidade com o mundo exterior.
No caso das duas residências da amostra onde o espaço de maior profundidade
ou segregação em relação ao conjunto de todos os compartimentos é o exterior, pode-se
inferir que o investimento social nessas residências para o seu arranjo espacial é
realizado de modo a serem produzidas habitações mais introvertidas, isto é,
valorizando muito mais as relações internas da família e dos moradores entre si e
menos destes com o mundo exterior, topologicamente mais afastado na configuração.
Outro aspecto que chama a atenção na amostra e que reforça o argumento das
práticas sociais amparadas nos modos de produção do espaço material é o caso da
Casa Jatir Toniollo que compartilha numa mesma edificação a função residencial com
comércio. Neste caso, a loja se apresenta como o compartimento de maior integração,
obviamente por ser o espaço prioritário de circulação de estranhos e, portanto, esse
movimento é facilitado pelo modo como o comércio é inserido na moradia.
No estágio em que a pesquisa se encontra já se vislumbra uma série de
consistências apresentadas pelos resultados da amostra, o que permite inferir que,
mesmo com formas, materiais e soluções arquitetônicas distintas, as habitações rurais
construídas no início da colonização do interior de Bento Gonçalves apresentam
semelhanças notáveis do ponto de vista da sua estrutura.
Parece evidente que estas recorrências estruturais, longe de serem casuais, são
fruto da cultura manifesta pelos colonos italianos sendo que, interessa agora examinar
se, além da reprodução de um modo de vida impresso no espaço no território onde se
instalaram no final do século XIX, estas repetições estruturais são verificadas nas terras
de origem, objeto da outra parte da pesquisa.
Referências Bibliográficas
FURTADO, C. 1995. Formação econômica do Brasil. São Paulo, Ed. Cia. Editora Nacional.
GIRON, L. S. 1977. Caxias do Sul: Evolução Histórica. Universidade de Caxias do Sul –
Prefeitura Municipal de Caxias do Sul, Escola Superior de Teologia São Lourenço de
Brindes.
HANSON, J. 2003. Decoding homes and houses. Cambridge, Cambridge University Press.
HILLIER, B., HANSON, J. 1984. The social logic of space. Cambridge, Cambridge
University Press.
SANTOS, M. 1978. O espaço dividido: os dois circuitos da economia urbana dos países
subdesenvolvidos. Rio de Janeiro, Ed. Francisco Alves.
107
A FORMA SEGUE A FUNÇÃO? Uma contribuição ao estado atual
da arte da conservação patrimonial no Brasil a partir de dois
estudos de caso: o Touring Club e o Brasília Palace Hotel
Ana Elisabete de Almeida Medeiros & Oscar Luís Ferreira
RESUMO
A insistência da Carta de Veneza em defender que edifícios e sítios
deveriam ser vistos como documentos históricos que não poderiam ser
falsificados vem sendo usada para justificar intervenções modernistas. A
Declaração de Amsterdã vem sendo utilizada para justificar novos usos em
bens patrimoniais como a melhor maneira de permitir a sua inserção na
vida contemporânea. Todavia, a crença modernista do pós-guerra no “fim
da história” não iria suspeitar que cidades e edifícios modernos iriam se
tornar “patrimônio cultural” tão cedo. 52 anos depois, Brasília se oferece à
análise não mais apenas como a cidade projetada, construída ou tombada.
É possível ir além da exaltação do projeto arquitetônico e urbanístico
originais e refletir Brasília a partir da perspectiva de uma cidade
vivenciada. Considerando os desafios e complexidades envolvendo o
processo de intervenção em edifícios e sítios considerados patrimônio
cultural modernos, o presente artigo pretende contribuir para o debate em
torno do estado da arte da conservação patrimonial no Brasil por meio da
análise de dois edifícios em Brasília, ambos de Oscar Niemeyer: o Touring
Club e o Brasília Palace Hotel. Através da análise de projetos, imagens,
documentos e pesquisa arquitetônica, o artigo pretende situar a relação
entre o princípio da planta livre, do espaço flexível e a antecipação das
necessidades futuras, de um lado e, de outro, das possibilidades de reuso.
O artigo defende o fato de que as intervenções sofridas por ambos os
edifícios ao longo dos anos, manifesta as contradições e complexidades da
questão da conservação do patrimônio moderno. Se a forma segue a função
e esta muda no contexto de plantas livres, como as intervenções em
edifícios modernos tombados têm lidado com esse fato? Seria possível
verificar se as cláusulas usadas para justificar intervenções modernistas
poderiam ser utilizadas para reivindicarintervenções tradicionais ou pósmodernistasnos estudos de caso selecionados?
Keywords: Patrimônio Cultural, Brasília, Touring Club, Brasília Palace Hotel,
Reuso, Conservação


UNB. [email protected]
UNB. [email protected]
108
Introdução
Igreja de São Francisco de Assis (1947), Catetinho (1959) e Catedral de Brasília
(1967): inicia-se o processo de construção social do patrimônio moderno que culmina
no tombamento do Plano Piloto, em 1990, pelo IPHAN, três anos após o seu
reconhecimento pela UNESCO.
A prática preservacionista recente tem estimulado abordagem com ênfase na
intervenção por mudança de uso. Brasília não é diferente: se à Catedral e ao Congresso
estão reservadas ações mais restritas, aos demais bens, reconhecidos nas dimensões
nacional e local, cabem intervenções apoiadas em Cartas Patrimoniais que justificam
novos usos como a melhor maneira de permitir a sua (re)inserção na vida
contemporânea.
Embora exigências relativas à acessibilidade, segurança e saúde constituam
questões que se colocam para a prática preservacionista de bens culturais
tradicionaisou modernos, algumas distinções entre a preservação dos edifícios e
tecidos urbanos tradicionais e aquela da arquitetura e urbanismo modernoschamam a
atenção quando se trata, sobretudo, da mudança de uso.
Aprimeira apresenta uma cultura conservacionista sedimentada em anos de
prática e teoria. Asegunda ainda padece da ausência de uma cultura da preservação, de
arcabouço teórico próprio capaz de alicerçar uma prática consistente. Sobre a
arquitetura e urbanismos modernos paira o peso da proximidade do tempo que
dificulta a sua apropriação como patrimônios culturais, cuja definição se encontra
associada aos valores histórico e de antiguidade, além do de arte. Soma-se a este
aspecto a banalização do tipo lógico da arquitetura moderna que, transformado em
modelo, (re)produz-se indiscriminadamente (Lima, 2012). Fatosqueescapam
àarquitetura e urbanismostradicionais.
While significance has historically been found largely in a building’s physical reality,
modern architecture’s significance has gravitated toward the conceptual: the idea of the
architect’s design intent. Questions about preserving the design as built or as intended,
even If original materials must be sacrificed, arise as a result of efforts to establish and
maintain continuity with the intent of the designer rather than just in the
material.(PRUDON, 2008: 25)
Os materiais modernos não aceitam a pátina, associada ao mau desempenho.
Exigem reposições freqüentes e colocam em xeque a autenticidade: cara à prática
preservacionista tradicional, quando associada à perenidade dos materiais, sugere ser
entendida, no contexto da prática preservacionista contemporânea, que lida com o bem
cultural moderno, como um conceito relacionado à sobrevivência de uma concepção
espacial intrinsecamente ligada à integração das artes, àpromenade architecturale, ao uso
dos cinco pontos da arquitetura moderna.
Outra distinção fundamental:a tipologia funcionalmente determinada dos
edifícios e sítios modernos resultante da form follows function a qual se contrapõe a
forma urbana e/ou edilícia tradicionais, menos funcionalmente determinada.
As intervenções contemporâneas se alicerçam nas ruínas da máxima sullivaniana
form follows function. A crítica de Rossi (1960) ao funcionalismo ingênuo mostra o
109
caminho: a fruição de fatos arquitetônicos cuja função foi perdida demonstra que o
valor dos mesmos reside na forma. Formstays, function changes.
Se a forma da arquitetura moderna resulta da função, a planta livre decorre de
um único uso? Mas, a planta livre não é espaço flexível apto a antecipar necessidades
futuras? Espaço cuja vocação real é a polivalência, um item que perpassa todas as
propriedades que definem uma edificação: forma, função, materiais e tecnologia?
(Rosso, 1980:96) Tais propriedades não seriam impregnadas pelas características que
configuram a polivalência: flexibilidade, adaptabilidade, ampliabilidade e agregação
de funções?
Se a forma segue a função ou permanece, se a função muda com o tempo como
situar as intervenções noTouring Club e no Hotel Brasília Palace (BPH), de Niemeyer o primeiro tombado (2007) e o segundo desconhecido em todosos níveis de
institucionalização da prática preservacionista, embora encerre valores que o
qualificam comomonumento?
Para responder estas questõeso artigodebate aCarta de Veneza (1964) e a
Declaração de Amsterdã (1975); analisa a planta livre, relacionando-a com
aformfollowsfunction; apresenta e discute intervenções no BPH e Touring e apresenta
conclusão.
1. Cartas Patrimoniais
As Cartas Patrimoniais significam a sistematização da teoria da preservação
durante os últimos 81 anos. Seu foco, porém, ainda refere-se aos “monumentos do
passado”. A preservação da arquitetura modernacontinua objeto de discussão.Segundo
Jokilehto:
We can see conservation and modernity as the dialectics of our contemporary culture; both
have become essential factors in today’s society(Jokilehto, 2003:108)
Como documentos balizadores da prática preservacionista, a (re)leitura das
Cartas Patrimoniais para orientar as intervenções contemporâneas em patrimônio
moderno parece necessária e indispensável. Assim, dois importantes documentos que
justificam intervenções demudança de uso do patrimônio são objeto de atenção nas
linhas que se seguem: a Carta de Veneza e a Declaração de Amsterdã.
1.1 Carta de Veneza
A Carta de Veneza (1964) coloca a destinação de função útil como elemento da
conservação dos monumentos (Cury, 2000:92).
The conservation of monuments is always facilitated by making use of them for some
socially useful purpose. (ICOMOS, 1965:2)
Segundo Veneza sempre que “as técnicas tradicionais se revelarem inadequadas,
a consolidação do monumento pode ser assegurada com o emprego de todas as
técnicas modernas de construção” (Cury, 2000:93). O emprego dos novos materiais,
devidamente datados e identificados é fruto da interpretação dos Artigos 10, 11 e 12
que aceitam a substituição de elementos ausentes por material ou técnica novos, desde
110
que estesse integrem em harmonia e diferenciem-se do original evitando o falso, e
toleram acréscimos desde que se respeite a edificação e suas partes. Em suma: a Carta
recomenda o uso criativo demateriais e técnicas.
Para Almeida (Almeida, 2010)1960 foiadécadade aproximação entre conservar e
projetar, devidoà ampliação quantitativa do patrimônioexigindo intervenções,
principalmente novos usos capazes de preservá-los após o restauro.
A fronteira entre os termos ‘restauro’ e ‘projeto’ ...tende a diluir-se ... O restauro vem sendo
chamado a intervir, deixando para trás seu caráter meramente conservativo ...a intervenção
de projeto vem sendo chamada a considerar as preexistências ...a tirar partido da experiência
histórica ... (Almeida, 2010:71).
Onze anos separam a Carta daDeclaração. Período insuficiente para gerar
grandes transformações. Suficiente para registrar mudançasquanto à função social do
patrimônio cultural.
1.2 Declaração de Amsterdã
A Declaração de Amsterdã(1975) entendeu que a alteração de uso do patrimônio
arquitetônico como ação de conservação está vinculada às funções sociais identificadas
durante os procedimentos de levantamento e avaliação dos bens culturais, envolvendo
a interveniência dos atores sociais e passando pelo reconhecimento da arquitetura
como elemento formador do tecido urbano.
NaConservação Integrada, proposta pela Declaração, o tratamento dispensado ao
patrimônio deveria obedecer ao reconhecimentodos valores estéticos, históricos,
científicos e sociais paraestabelecer metas para a sua preservação e integração em
políticas econômicas e sociais. Trata-se do princípio de responsabilidade social como
instrumento da preservação:
... descobre-se que a conservação das construções existentes contribui para a economia de
recursos e para a luta contra o desperdício ... construções antigas podem receber novos usos
que correspondam às necessidades da vida contemporânea.(Cury, 2000: 201-2)
A função social do patrimônio arquitetônico é um dos princípios da Declaração
que propõe a mudança de uso com atribuição de funções que respeitem o caráter do
patrimônio e o integrem na vida social. O valor do bem deve ser avaliado também por
seu “valor de utilização” (Cury, 2000).
What is social Value? It is the foundation of our identity as individual and member of a
community; an irreplaceable centre of significance.(Hay apudJohnston, 1992:7)
A Declaração recomenda novos usos com destinação social. As Cartas adotam a
mudança de uso como ação de intervenção, respeitados parâmetros de
compatibilidade. As Cartas sugerem o respeito aos valores identificados que
configuram a significância. Aceitam a introdução de novas técnicas ou materiaisque
constituem a arquitetura moderna.Incentivam seu uso. Mas, no caso de intervenção no
moderno que materiais e técnicas são aceitáveis? O que é a significância do patrimônio
moderno?
Diante destasquestões, as Cartas restam em silêncio ou induzemrespostas nas
entrelinhas permitindointerpretações variadas. A questão da substância, da
111
autenticidade e/ou integridade coloca-se de forma a acentuar a consistência material.
Não há referência quanto à concepção espacial e sua permanência no tempo. Não há
registro de reflexões sobre a planta livre ouformfollowsfunction na determinação do
espaço e das relações entre este e a mudança de uso.
2. Forma, Função, Planta Livre
Paris, 1926:L’Esprit Nouveaupublica artigo de Le Corbusier intitulado “Os Cinco
Pontos de uma Nova Arquitetura”resumindo a nova maneira de se conceber a
arquitetura moderna por meio do uso de cinco elementos independentes: o
pilotis,construção solta do chão por pilares, elevando o centro de gravidade da
composição,possibilitando a fruição do térreo; o terraço-jardim onde telhas cedem
espaço à laje plana; a planta livre,resultado da técnica, dos novos materiais de
construção permitindo a estrutura independente e paredes internas, transformadas em
simples divisórias cuja função estrutural inexiste; a janela em fita, resultado da técnica
estendendo-se por toda a extensão da fachada; e a fachada livre, último ponto,
decorrência do recuo da estrutura maximizando a integração interior/exterior, a
interpenetração espacial (Giedion, 1990).
Segundo Hebly, embora compareça como o terceiro ponto da nova arquitetura, a
planta livre
is usually taken as the focal point of these 5 Points introducing what was an essentially
new architecture, one which develops from the inside towards the outside. The column and
the uninterrupted floor slab are the constructional premises for this free plan: it is the
function that gives the form to the interior space. (Hebly, 1989: 47)
No programa por excelência da arquitetura moderna européia, o habitar dá
forma ao espaço interior. Le Corbusier faz da planta livre obra de arte (Giedion, 1990).
O morar se organiza livremente a cada andar, subvertendo a disposição do habitar
tradicional. Alicerçado na nova concepção do espaço cubista o plano é o elemento
gerador da composição, ainda que seu significado se encontre fora de si mesmo, no
volume cuja sessão vertical revela a interpenetração espacial indissolúvel entre interior
e exterior, alcançada por meio de escadas e rampas, que promovem a
promenadearchitecturale, e pela liberdade do agenciamento de cada pavimento.
Mass and surface are elements by which architecture manifests itself. Mass and surface are
determined by the plan. The planis the generator(…)carries in itself the veryessence of
sensation.(Corbusier apudRisselada, 1989)
Alicerçadas nos cinco pontos da nova arquitetura, as formas externas das
residências projetadas por Le Corbusier não retratam fielmente as respectivas
disposições interiores. (Hebly, 1989).O uso inicial dos 5 pontos está associado ao temachave da produção arquitetônica daquele período - a forma abstrata. Mas, a forma
segue ou não a função?
Risselada e Michl fornecem elementos de reflexão. Risseladacontrapõe a planta à
fachada livres, partindo da análise entre as maisonsCitroan e Dom-ino, de um lado, e
os projetos corbuserianos, do outro, revelando as relações entre planos horizontais e
verticais. O problema formal da introdução de elementos de ligação vertical aparece: o
plano horizontal livre não mais se define por paredes portantes. Também a fachada
112
livre não decorre da organização interna, segue regras próprias determinadas por
traçados reguladores. O autor demonstra que é nas Villa Baizeau e Savoye que a
fachada, livre estruturalmente, não mais goza da prerrogativa da liberdade
compositiva refletindo a organização interna.
Michlquestiona:formfollowswhat?Argumenta que não há sentido no entendimento
da função que precede a forma. Salvo se há distinção entre função pretendida daquela
existente. Forma sempre precede a função quando se refere a uso já existente e forma
segue a função sempre que esta diz respeito a um desejo latente cuja forma precisa ser
encontrada. Michl lembra que os modernos adotam a noção de função como ponto de
partida objetivo, demanda colocada pela Modernidade que rompe com o passado
gerando uma forma arquitetônica nova. O autordefende que, sem este ponto de partida
objetivo, destituído de um entendimento metafísico, o funcionalismo moderno seria
apenas mudança de estilo e não defesa de uma causa (Kopp, 1990). Isto porque,
percebida como demanda própria da causa modernista, para cada nova função
corresponde a forma funcional, única capaz de responder às exigências da
modernidade. O habitar, trabalhar, viver modernos definem formas intrínsecas a
soluções funcionais que se colocam acima das demandas estéticas do mercado. O
arquiteto detém o discurso e a prática competentes na salvaguarda dos interesses do
usuário no processo de concepção arquitetônica.
Le Corbusier determina os cinco pontos como resposta formal às funções do
habitar definidas em um futuro presente. Para ele, o habitar moderno é uma nova
função a qual deve se seguir uma nova forma do morarcapaz de moldar o homem
moderno, baseada no pilotis, no teto jardim, na janela em fita e na planta e fachada
livres.
A arquitetura modernanão permanece atrelada à função habitar ou à Europa. No
Brasil, o programa por excelência do movimento moderno são as funções públicas.
Aqui, apesar da idéiade que ser moderno significava pensar o novo a partir da tradição
(Santos, 1992), os cinco pontos da nova arquiteturacomparecem associados à integração
das artes e ao resgate de elementos da arquitetura tradicional; adaptados ao clima;
compondo uma obra de arte total, (re)definindo, formalmente, o morar, o trabalhar, o
divertir-se.
Na capital projetada e construída ondea arquitetura é o elemento primeiro,
formfollowsfunction: Brasília materializa-se em formas arquitetônicas que decorrem da
reinvenção do morar, trabalhar, circular, divertir-se, do modo de viver que se quer
forjar moderno e nacional. Nesta cidade ainda não tombada epouco vivenciada
(Medeiros & Campos, 2010)os cinco pontos comparecem em toda parte. Panos de vidro
criam reflexos substituindo o jogo de luz e sombra, estabelecendo uma relação de
continuidade entre interior/exterior e revelando fachadas livres que gozam, além da
independência estrutural, a liberdade compositiva.
É a este recorte espaço-temporal que pertencem o BPH e o Touring.
113
3. Estudos de Caso
3.1 Brasília Palace Hotel
Figura 1. BPH. Fachada Oeste. 09/2012.(Fonte: PROAU-8/FAU/UnB)
Inaugurado em 30/06/58, o então Hotel de Turismo foi um dos primeiros
edifícios de Brasília (Ficher, 2000). Niemeyer concebeu-o como um edifício longo, três
pavimentos, estrutura metálica revestida de concreto, modulação estrutural de
7mX7mcombalanços transversais de 2,5m e 3,5m, nas empenas. Abrigandodormitórios
e governança eraperpassado por volume de um pavimentocom cobertura retilínea e
estrutura periférica modulada de 7mX15m entre eixos de pilares e balanços de 3m. As
vedações foram livremente trabalhadasabrigando funções distintas: salões, boate, bar e
restaurante. Pisos foram executados em meios níveis etransparênciapermitiu a
interpenetração espacial.
Figura 2. BPH.Térreo. Projeto Original.1958.(Fonte: PROAU-8/FAU/UnB)
O uso dos temas base e destaque está presentena barra longilínea sobre pilotis
eno bloco horizontal em planta livre e vedações curvas. A edificação apresenta
características estéticas que a qualificam como obra de arte e documento históricoda
arquitetura moderna. Dos cinco pontos de Le Corbusier falta ao BPH o toit-terrasse.
Além da execução de estrutura e vedações segundo o conceito da Maison Dom-ino, aqui
comparecem a integração das artes, a busca do novo pela tradiçãoe a adaptabilidade ao
114
clima local. A forma decorre da função de hospedar que se quer nova, exigindo uma
materialidade arquitetônica moderna e brasileira. O edifício materializa o registro
artístico de uma forma de fazer arquitetura, cultura técnica, artística e histórica de um
passado recente.
O edifício como documento: Palco e personagem da epopéiada construção de
Brasília. Também historicamente, o BPH desempenhou papel fundamental na
materialização de Brasília que, até então, era apenas sonho e projeto.
Figura 3. BPH. Fachada Leste. (Fonte: ArPDF/PROAU-8/FAU/UnB)
Danificado por um incêndioem 05/08/78, teve sua recuperação adiada, durante
anos, por custos impeditivos. Em 1997, a TERRACAP conseguiu o direito de licitar a
edificação arrendada, até então, pela Prudência de Grandes Hotéis S.A.
Figura 4. BPH. Fachada Oeste. Empena Sul.(Fonte: PROAU-8/FAU/UnB).
Em 2001, o BPH foi arrendado pela Paulo Octávio Empreendimento
Imobiliários que iniciou intervenção a cargo do escritório de Niemeyer, sob a
responsabilidade do arquiteto Carlos Magalhães e supervisão do próprio Niemeyer.Em
2004, parcialmente protegida por intervenções pontuais o BPH teve azulejos do painel
do lobby vandalizados. A ausência completa de vedações em todos os pavimentos
acentuava a concepção onde estrutura, forma e função se complementam para gerar a
planta livre. Em 2007, foi reaberto.
115
Figura 5. BPH. Fachada Oeste.2004. (Fonte: PROAU-8/FAU/UnB). Figura 6. BPH. Bloco barra.
Segundo pavimento, sem vedações dos dormitórios. 2004. (Fonte: PROAU-8/FAU/UnB)
A análise do BPH representa a permanência da forma após o sinistro, abandono e
arruinamento. Formstays, functionstays. A mudança de paradigma proposta por Prudon
(Prudon, 2008:25) para a preservação da arquitetura moderna permite inferir que a
preservação coerente dos ideais de seu criador, suas intenções, bem como o desenho
original da edificação estão, em certa medida, acima das preocupações com aspectos de
significância material. No caso do BPH tais preocupações são perceptíveis uma vez que
Niemeyer foi o responsável pela intervenção. Porém, pode-se inferir que os quatro
pontosque caracterizam o BPHdevem ser objeto de consideração em intervenções
futuras.
3.2 Touring Club
Figura 7. Touring Club. Fachada Oeste vista a partir da praçado SDS. 2002. (Fonte: PROAU8/FAU/UnB); Figura 8. Vista a partir da praçadoSDS. 2002. (Fonte: PROAU-8/FAU/UnB)
“Previram-se igualmente nesta extensa plataforma... (rodoviária) duas amplas
praças privativas dos pedestres, uma fronteira ao teatro da Ópera e outra,
simetricamente disposta, em frente a um pavilhão de pouca altura debruçado sobre os
jardins do setor cultural e destinado a restaurante, bar e casa de chá”(COSTA, 2001:24).
116
Teatro da Ópera e Casa de Chá, tanto o Teatro Nacional quanto o Touring foram
previstos por Costa no Relatório do Plano Piloto.
Figura8.Touring.Planta original.Pavimento superior (Fonte: Mello, 2008:4).
Projetado por Niemeyer (1963) o Touringsegue concepção do tema destaque
pavilhonar com estrutura de cobertura em vigas invertidas de concreto
abrigandoauditório e salão de exposições, e tema base com dois
pavimentos,funcionando como anexo. O sistema construtivo segue a concepção da
Maison Dom-inocom clara percepção do sistema estrutural, vedações e fachadas livres.
Responsabilidade da construtora Domingos Moreira e Cia LTDA, concluída em
1967, a obra mantém as diretrizes referentes à forma e atende a outras indicações do
Relatório do Plano Piloto. Porém, o “restaurante, bar e casa de chá” cedeu lugar ao
Touring,no Brasil desde 1923.
Figura 9.Touring.SCS.2004. (Fonte: PROAU-8/FAU/UnB). Figura 10. Sistema construtivo. 1965.
(Fonte: PROAU-8/FAU/UnB).
117
Figura 11. Touring Club. Escada. 2002. (Fonte: PROAU-8/FAU/UnB)
Decadentedesde 1970, o Touringfoi reformado, em 1983, por Niemeyer:teve o
salão de exposiçõesliberado e, com ele, esquadrias em vidro que permitiam a leitura
interior/exterior/interior. Dos quatro pontos presentes, a fachada livre foi
descaracterizada. No lugar do salão:salas. A escada foi enclausurada e o auditório
substituído por sanitários e salas administrativas.O grau de degradação, nos anos1990,
levou Niemeyer a sugerir sua demolição. (Schleeet al. 2007:3).
Figura 9. Touring Club. Pavimento superior. 1985. (Fonte: Mello, 2008:5).
Em 2001, o edifício passouà categoria de patrimônio disponível da administração
pública. Colocado a leilão em 2005, foi arrematado pela empresa Global Distribuidora
de Combustíveis. Em 2007, foi sede da Casa Cor. Apesar do marketing do “intervir
restaurando”, de que “... a mostra valorizou o local e o fez superar a fama de ponto de
violência, drogas e prostituição, indicando que é um espaço privilegiado da cidade, de
boa visibilidade e que pode atrair bons investimentos”(Araújo, 2007),devolvido à
sociedade em outubro/2007, o prédio não apresentava nenhuma característica do
“restauro”. Descaracterização e desrespeito são mais apropriados para qualificar a
“intervenção” tal o grau de camuflagem a qual o edifício foi submetido pelos 52
ambientes. Estrutura mascarada, planta livre ilegível, fachadas idem.
118
Figura 13. Touring. Fachada Norte. 2008. (Fonte: PROAU8/FAU/UnB)
Em 2008, tombada, a edificação estava novamente abandonada, repleta de
“novos entulhos epatologias”:sobra das intervenções,partes de revestimentos, placas
de gesso, restos de ambientes distintos da arquitetura niemeyeriana. Os balanços da
edificação?Irreconhecíveis. Os sanitários? Químicos portáteis.
Hoje,a estrutura de concreto aparente está “caiada” e as patologias
“maquiadas”.Nestas condições, o Touringé ocupadopeloGDF: Centro de Referência de
Assistência Social, DF Digital, Coordenadoria de Ações Especiais e núcleos vinculados
à Secretaria de Desenvolvimento Social e Transferência de Renda do Distrito Federal.
Figura 14. Touring. Fachada Sul. 2002. (Fonte: PROAU-8/FAU/UnB); Figura 15. Fachada Sul.
2012. (Fonte: PROAU-8/FAU/UnB)
A planta com pilares de concreto periféricos e vão livre de 14,50m, balanços
laterais de 5,80m e 8m nas fachadas Norte e Sul, permitiu alterações de organização
espacial, uso e função. No entanto, em nenhuma das intervenções propostas, mesmo
naquela realizada em 1983 por Niemeyer houve respeito aopilotise à planta e fachada
livres.
Conclusão
Na Brasília metrópole tombada, patrimônio mundial em que o arquiteto divide o
discurso competente, a forma não mais segue a função: precede-a. À luz do argumento
119
de Michl, a arquitetura contemporânea em Brasília, inclusive as intervenções em bens
patrimoniais, não almeja forjarfunção geradora de nova forma.
Se Berman (Berman, 1997) estava certo, se tudo que é sólido desmancha no ar e a
aventura da modernidade, segundo definição de Heynen (Heynen, 1999), continua
então o futuro presente parece ter-se perdido, em Brasília, em um passado presente
intimidador, que nega uma modernização em curso, alicerçada no novo: tecnologias,
materiais, sistemas de comunicação, embate local versus global, etc.
A forma e a função ficam. A forma fica, a função muda. Masnão no sentido de
transformação a exigir nova materialidade arquitetônica. Trata-se de função já existente
que apenas se “transfere” forçando adaptação da velha forma.
No momento de concepção e construção do BPH a forma segue a função. Depois
do incêndio a forma fica, a função muda: empenas transmutam-se em paredões
derappel. Em seguida, a forma fica e a função de hospedar retorna, mas o faz sem
pretensões de inserir novos conceitos que exijam novas expressões formais
arquitetônicas. Nenhuma demanda do atual espírito de modernidade conduz a
transformações. O princípio da planta livre é respeitado e serve ao acréscimo de
quartos. A leitura volumétrica do edifício com os temas base e destaque permanece
inalterada. O pilotis, a planta e a fachada livres lá estão. Entretanto, embora goze da
liberdade estrutural, a fachada não mais permite sua leitura formal, devido à supressão
das esquadrias originais. As janelas em fita também não mais comparecem. Contudo, a
integração das artes pode ser usufruída.
Quanto ao Touring, formfollowsfuction é uma verdade da sua concepção à
materialização primeira. Mas, este princípio se perde. O edifício recebe múltiplas
funções que nãose colocam como exigência de novas expressões arquitetônicas
formais. Funções que, ao se inserirem em forma existentedesrespeitam valores
intrínsecos. O pilotis, a planta e fachada livres são pontos da arquitetura que nem
sempre podem ser lidos claramente após as intervenções.
À luz da questão a forma segue a função? a análise do BPH e do
Touringpermitediscutir o estado da arte da conservação no Brasil. As intervenções
colocam em xeque o legado da arquitetura moderna que se quer perpetuar, por meio
da prática preservacionista, às gerações futuras. Que legado é este? Trata-se de
preservar uma forma que segue a função? Ou a herança é considerar, em cada época, o
Zeigeist ou espírito do tempo?
Os dois: a necessidade de preservar a forma resultante da então nova função
proposta pelo Zeigeist dos anos vinte ao sessenta do século passado; a forma que fica
em sua essência e substância, na sua autenticidade e integridade compreendidas para
além da materialidade física e que se estabelece na imaterialidade do conceito por trás
do espaço conformado na relação entre os cinco pontos da arquitetura moderna, na
integração das artes, no partido temas base/destaque, na arquitetura como obra de arte
total ena reinterpretação da tradição e adaptação ao clima local.E também: a urgência
em considerar o espírito do tempo presente, na recusa ao pastiche que invalidafalsos
modernos, e na defesa do espírito criador que responde às exigências da atual
modernidade e do processo de modernização em curso, embora respeitoso dos valores
precedentes.
120
Nem futuro presente, passado presente, e sim, presente presente que, diante da
tensão entre tradição e modernidade aceite o restauro dentro de uma intervenção
criadora, capaz de gerar o novo, estética e tecnicamente, respeitando preexistências em
sua essência. Apesar das várias leituras que o bem cultural permite como valor
artístico, histórico e/ou social, é possível estabelecer parâmetros para uma
aproximação analítica e crítica do objeto de intervenção capaz de preservar suas
características intrínsecas sem engessá-las em um tempo pretérito.
À luz da análise do BPH e do Touring, propõe-se que a liberdade de intervenção
seja tomada como um processo de reinserção no presente necessariamente
comprometido com o passado, com o presente, e com o futuro.
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123
PAISAGENS URBANAS TRADICIONAIS
Letícia Miguel Teixeira
Resumo
Semelhantes a uma grande colcha de retalhos, as paisagens urbanas
revelam-se a partir de fatos urbanos, específicos para cada experiência de
interação das pessoas com os lugares. Por sua vez, observar e analisar os
processos de alteração urbana das paisagens urbanas tradicionais pode ser
também uma importante ferramenta auxiliar no processo de planejamento
e gestão das cidades onde estas se inserem. Como parte integrante e coautor desta paisagem, o fazer do indivíduo pode ser o ponto de partida
para a análise do espaço urbano, pois cabe ao cidadão comum um
importante papel no processo de transformação do território. E, por outro
lado, cabe ao poder público promover um ordenamento urbano apropriado
as tradições de sua população, com foco busca da na qualidade das cidades.
Introdução
As cidades são criações sociais, a todo tempo reconstruídas pela ação das pessoas
que no cotidiano conservam, modificam e transformam o espaço onde vivem.
Especialmente as paisagens urbanas são um produto social que interage
reciprocamente nos seus processos de produção e permanência. Assim, o que se lê na
cidade é o reflexo de diversos símbolos que revelam o homem e sua interação com o
cenário pré-existente.
A fruição das paisagens urbanas relaciona-se tanto com a comunidade
diretamente envolvida com a transmissão de uma forma de habitar que propiciou sua
continuidade, quanto na capacidade de identificação do restante da população com os
elementos intrínsecos a esta paisagem.
As paisagens urbanas tradicionais designam conjuntos urbanos reconhecidos por
sua expressão material e imaterial, sendo atribuída à expressão imaterial a
caracterização das práticas do habitar que proporcionam a conformação da expressão
material.
Todavia, em relação à leitura das paisagens urbanas tradicionais e à compreensão
de seus processos de transformação, há necessidade de se deter o olhar sobre as formas
de expressão do habitar dos indivíduos que constroem essas paisagens, operando em
grande parte esta transformação.
Por sua vez, observar e analisar os processos de alteração urbana das paisagens
urbanas tradicionais pode ser também uma importante ferramenta auxiliar no processo
de planejamento e gestão das cidades onde estas se inserem. A importância

Ministério das Cidades. [email protected]
124
sociocultural de se preservar estas paisagens é concomitante à sua inserção na
dinâmica cidade. Lembrando que as paisagens urbanas tradicionais são, ou já foram,
parte do núcleo pulsante da estrutura urbana do município.
Assim, o desafio deste artigo é conseguir demonstrar como a leitura das
paisagens urbanas, em especial as tradicionais, pode contribuir para o planejamento e
ordenamento qualitativo das cidades. Levando em conta que e a compreensão dos seus
processos constitutivos, enquanto reflexos de uma manifestação cultural das formas do
habitar de indivíduos que leem e interpretam as paisagens, pode oferecer subsídios
para construção de leis que depreendam o que há de melhor nos costumes construtivos
de sua população.
1. Cidades Criações Sociais que comunicam mensagens
A cidade é fruto da produção social sobre o território. A cidade, enquanto
paisagem urbana, é uma grande colcha de retalhos de arquiteturas observadas a partir
da escala cujo referencial é o homem. Rossi (1995, p. 115)i designa a cidade a partir de
fatos urbanos, específicos para cada lugar que propiciou o desenvolvimento de uma
determinada realidade e experiência. A arquitetura é vista como o “momento último
desse processo”, denominado fato urbano, pois corresponde a um elemento detectável.
A arquitetura de cada edifício, os lugares coletivos de permanência e de passagem, são
quem dão o suporte material que possibilita a experiência da vida em sociedade. Cada
pequeno fragmento da composição imagética mantém, junto à respectiva paisagem que
compõe, a mesma relação que o indivíduo mantém com a sociedade que integra.
Assim como a parte está para o todo na construção da imagem da paisagem
urbana, as características de cada ser estão para a formação do social, do coletivo, em
igual grau de relação. As cidades são criações sociais, a todo tempo reconstruídas pela
ação das pessoas que no cotidiano conservam, modificam e transformam o espaço
onde vivem. O ambiente urbano é um produto social.
Enquanto processo e enquanto fruição, a cidade é fragmentada, não linear, por
mais previsível que se tente construí-la, mesmo quando apresente normas urbanísticas
reguladoras bastante rígidas. As experiências da fruição do ambiente pelo transeunte
nas áreas comerciais de grandes centros mostram esta diversidade. A cidade, apesar de
aparentemente ostentar uma ordem iminente na distribuição hierárquica de suas vias
arteriais e secundárias, é rizomática (Deleuze, 2000) ii na sua expansão, que se repete e
se recria na multiplicidade das formas de habitar heterogêneas para grupos
heterogêneos.
A cidade pode ser considerada um sistema que verbaliza mensagens através de
seus elementos significantes, onde lemos realidades sobrepostas umas às outras, onde
os principais elementos significantes serão aqui definidos, como elementos primários:
(Rossi1995).
...que participam da evolução da cidade no tempo de maneira
permanente, identificando-se frequentemente com os fatores
constituintes da cidade. iii
125
Como uma mensagem, a cidade é interpretada como um símbolo que se vê e o
que se sente. Esta é uma experiência cognitiva, onde as sensações são despertadas
especialmente através da imagem. Esta, por sua vez, estimula a troca entre o cidadão e
o espaço fruído que despertou aquelas sensações. E essa interação do homem que
reconstrói a imagem, por sua vez, é reassimilada por ele e pelos demais indivíduos que
compartilham daquele espaço da cidade. As interpretações são infinitas, variam de
acordo com a cultura de cada cidadão, de sua experiência de vida, dos traços de sua
personalidade.
Na sociedade urbana, caracterizada pela heterogeneidade de indivíduos, a
cidade reflete um sistema de sensações e interpretação distintas. E, dentro da dinâmica
urbana, estas interpretações e novas construções se sobrepõem. (Lepetit, 2001)
As sociedades urbanas não se alojam em conchas vazias
encontradas por acaso: procedem continuamente a uma
reatualização e a uma mudança de sentido das formas antigas.
Elas se reinterpretam.iv
Escolhas individuais determinam o que se altera e o que permanece inalterado
nos edifícios. Novos cenários surgem a todo instante a partir de pequenas modificações
de cada elemento que compõe a paisagem: janelas, portas, telhados, jardins, grades,
calçadas, volumes e vazios do construído. E com cada ato, cada decisão individual, a
morfologia urbana e as imagens do lugar vão se transformando. Cada ação de cada
cidadão em seu espaço individual, que se reflete na composição da paisagem,
desencadeia uma série de novas reações nos demais indivíduos que interagem naquela
comunidade.
Quando um grupo toma posse de um território, transforma-o à
sua imagem - o espaço ratifica relações sociais – e, ao mesmo
tempo, é pressionado pela própria materialidade de sua criação,
à qual acaba obedecendo:ele se fecha no interior do quadro que
construiuv
Assim, a sobreposição das imagens na paisagem urbana se constrói
contrapondo a permanência com a substituição, permitindo que novas relações sejam
travadas com os espaços vivenciados e novas mensagens sejam disseminadas e
reinterpretadas.
2. Paisagem Urbana Tradicional
As cidades são as paisagens contemporâneas por excelência. E na grande
expansão das formas de vida urbana, onde vemos a maior parcela da população do
planeta habitar cidades, o termo 'paisagem urbana' adquire uma conotação tão ampla
quanto a multiplicidade de grupos e comunidades que leem as cidades com suas
lentes. Assim, os efeitos da ação do homem sobre as paisagens são, nas cidades,
tomadas de uma escala desproporcionalmente ampliada, como vimos no tópico
126
anterior que mostrou como as cidades, e por sua vez as paisagens urbanas, são criações
sociais que comunicam mensagens.
A paisagem é tudo aquilo que nós vemos, o que nossa visão alcança, podendo ser
definida como o domínio do visível, aquilo que a vista abarca, conforme Santos (1988).
Não é formada apenas de volumes, mas também de cores, movimentos, odores, sons,
etc. A paisagem, que se oferece aos olhos sob as luzes diáfanas das primeiras e últimas
horas do dia, compõe a ambientação adequada para a fruição dos detalhes, da
manifestação da matéria, e permite que os artefatos mais banais se transformem em
objetos singelos, talvez até belos, sempre ricos em informações sobre a pragmaticidade
de suas funções, seus aspectos físicos. Elementos de composição da paisagem são
cheios de suas próprias histórias, que se relacionam com diversos tempos e com
inúmeras pessoas. Alguns de seus componentes são capazes até mesmo de resgatar
memórias de afetos e outras lembranças. Assim, há um paradoxo neste conceito, pois
toda esta estrutura, que é composta pela união de elementos materiais, físicos e
palpáveis, não possui, no conjunto, uma dimensão tátil, posto que a paisagem é
essencialmente algo a ser percebido.
Conforme Santos (1988) “a dimensão da paisagem é a dimensão da percepção, o que
chega aos sentidos” (Santos, 1988, p. 22). Para o geógrafo, cabe ao chamado aparelho
cognitivo a responsabilidade sobre como cada indivíduo processa as mensagens que as
paisagens transmitem. Esta apreensão é feita de forma seletiva de acordo com as
referências pessoais de cada indivíduo, obtidas pela educação formal ou informal que
recebe ao longo da vida. Para Santos (1988), a conceituação de paisagem parte da
proposição de que o espaço se define como um “conjunto indissociável de sistemas de
objetos e de sistemas de ações” (SANTOS, 1988, p. 10), no qual a paisagem deve ser
entendida como “categoria analítica interna”. Ou seja, a partir deste conceito de espaço,
devemos compreender a lógica da paisagem enquanto objeto constituído pela matéria
que efetivamente é, ocupando lugar e possuindo escala frente a outros referenciais
espaciais. Ressalta-se, neste sentido, sua concomitante interação com seu sistema de
criação e recriação, ou seja, os atos e ações por ela sofridas à custa da própria natureza
e do homem.
Por sua vez, há Paisagens que sofrem transformações mais lentas, permanecendo
conectadas a uma experiência de memória. Com toda sorte estão de alguma forma
integradas a vida contemporânea e sendo por elas mesmas elos do passado, vinculadas
à uma tradição.
O conceito de tradição denota uma conexão com o passado, um elo entre a
história pretérita e as ações presentes. A palavra tradição é oriunda do verbo latim
tradere que se remete a trazer, transmitir, no nosso português. Este processo de uma
entrega dos valores legados por antepassados envolve um ritual de recebimento e
perpetuação das heranças apreendidas.
A tradição associa-se à idéia de entregar um conhecimento, ou ensinar por meio
da transmissão de fatos e costumes, seja de natureza espiritual, filosófica, moral,
técnica ou material. Como conjunto de idéias, práticas, memórias, recordações e
símbolos, a tradição é conservada, reassimilada e até transformada. Apesar de não ser
127
engessada, pressupõe uma continuidade persistente que mantém a integridade de uma
essência, um caráter, que resiste às mudanças desintegradoras.
Assim, as paisagens urbanas tradicionais são, por sua vez, parcelas do território
onde se verifica a existência de práticas, sistematicamente reproduzidas, que se
relacionam diretamente com a transformação e a preservação desta paisagem ao longo
do tempo. A carga mnemônica instaurada ao longo de sua conformação, é responsável
pela propagação de mensagens, especialmente as visuais, que são apreendidas tanto
por meio de suas partes - fragmento, quanto pelo todo – paisagem. Essa apreensão se
deve às diversas formas de interpretações cognitivas dos indivíduos. Enquanto
processo, esta paisagem é a conjunção destes fragmentos que, de modo harmônico, se
interagem e se integram formando uma “tela” exposta à cidade. Assim como a
paisagem é urbana por estar na cidade, é tradicional por perpetuar-se nela.
A paisagem urbana tradicional desencadeia no indivíduo uma reflexão sobre
quem ele é, pois, além de inspirá-lo a refletir, influencia-o na reflexão sobre si, na
medida em que a leitura da paisagem se acumula à sua cultura e também a transforma
por meio de percepções e escolhas. Por que a paisagem urbana tradicional é múltipla?
Porque sua composição imagética é múltipla, ocorre em tempos distintos e de formas
distintas, já que é recriada por cidadãos com referências diversas, possibilidades
únicas.
Menos como algo a ser observado, e mais como parte integrante e co-autor desta
paisagem, o fazer do indivíduo pode ser o ponto de partida para análise do espaço
urbano. Para Gourou (1973), “o homem é um fazedor de paisagens”, pois munido de
técnicas de transformação das mesmas pôde ser capaz de viver em associação com
outros indivíduos naquilo que o autor define como “um tecido de técnicas”: a vida em
sociedade.
3.
Cognição e o Habitar
A paisagem urbana tradicional é, assim, um tipo de lugar construído a partir das
interpretações cognitivas de indivíduos sobre seus desejos e possibilidades, e comporta
o aspecto táctil que pode ser observado na sua arquitetura, em suas texturas e
materiais, calçadas, vias, vegetações, pessoas, ambiências, interações e sensações. As
descobertas dos visitantes e o ritmo do cotidiano de seus habitantes.
Dentre os estudos desenvolvidos na ciência da psicologia, há o que trata da
cognição social, definido como “processo que orienta condutas frente a outros
indivíduos da mesma espécie” (Butman; Allegri, 2001). É um campo de estudo que
investiga a maneira como pensamos sobre nós mesmos e a sociedade da qual somos
parte, considerando as seleções – memórias - e interpretações.
A cognição, entendida como a aquisição do conhecimento a partir da percepção,
estabelece parâmetros e categorias adotadas para descrever a totalidade de
informações de quem a percebe e capta na mente. Essas percepções, dos lugares, dos
indivíduos, dos grupos e mesmo da própria identidade, são edificadas com base nos
chamados artefatos cognitivos, que auxiliam a mente na construção dos consensos.
128
Trata-se de artifícios externos, observados, selecionados, utilizados,
compartilhados, vivenciados no cotidiano, que se manifestam por meio da
memorização, da interpretação que os indivíduos realizam a partir do contato
estabelecido com formas de comunicação. Estas variam de acordo com o modo com
que o receptor analisa as mensagens transmitidas por meio destes artefatos cognitivos.
No caso de produção da arquitetura ou da paisagem, enquanto artefato fruto de
um processo cognitivo, pode ou não ter havido uma intenção de um autor com relação
a esta produção, ou seja, ela pode ou não ter sido premeditada. E o simples fato de ter
havido uma intenção de um autor não garante a mesma interpretação de quem usufrui
deste artefato. Não há uma necessária correlação entre o pensamento daquele que
premeditou: o arquiteto, o construtor e o simples usuário, sujeito que habita e por este
ato transforma as arquiteturas e paisagens.
Schulz (1980), que trata da intenção em arquitetura, evidencia a transcendência
que a vivência do lugar implica psiquicamente no ser como algo maior que os aspectos
meramente funcionais. O habitar implica em sentidos e sentimentos individuais que
refletem as diversas situações que o espaço existencial adquire para cada ser. A
dimensão existencial do lugar - que se relaciona a algo mais do que meramente
abrigar-se - foi analisada sob aspectos fenomenológicos. Schulz (1980) procurou interrelacionar os complexos e até mesmo contraditórios caminhos destas análises
cognitivas que partem da arquitetura como elemento concreto, que permite a ação e
ocorrência de eventos que imprimem caráter ao lugar, para chegar a uma teorização a
respeito do Ser no Mundo.
Genius Loci, é uma antiga expressão utilizada para dizer sobre a existência de
um Espírito do Lugar, protetor, de acordo com a tradição grego-romana62. Schulz
(1980) a utiliza para designar esta capacidade única impressa aos lugares, que são o
que são pela capacidade do homem de imbuí-los de significados. Significados esses
que, apesar de toda análise cognitiva de diferentes homens com suas cargas pessoais,
são próprios de cada lugar. A impressão de um caráter único àquele espaço é percebida
através da fruição do habitar, que orienta o homem quanto à visualização de
características deste lugar que, por sua vez, se sobrepõe até mesmo às diferenças sócioculturais de diversos indivíduos.
Esta abordagem sobre cognição e habitar é importante para que se possa, por
meio da investigação filosófica do ser que habita, tentar delinear os aspectos que
envolvem as decisões tomadas pelos indivíduos que expressam a cultura do habitar na
forma como transformam as paisagens urbanas tradicionais. Daí temos que as
paisagens urbanas tradicionais são fruto e conseqüência do conjunto das práticas dos
grupos de indivíduos organizados no território, exercendo processos cognitivos de
escolha e atuação.
De acordo com SMITH, William. A Dictionary of Greek and Roman Biography and Mythology. Boston,
Little Brown and co., 1867, p. 241-242. disponível em
< http://www.ancientlibrary.com/smith-bio/1349.html >, consultado em 29 de julho de 2010.
62
129
4.
O Código de Obras/Edificações como instrumento de gestão da
transformação das paisagens urbanas tradicionais.
O Código de Obras/Edificações é uma norma municipal de regulação das
construções. Ele deve possibilitar o controle e fiscalização das edificações por parte do
poder público municipal, que são os entes federados constitucionalmente responsáveis
pela política de desenvolvimento urbano, conforme o artigo 182 da Constituição Federal de
1998, CF-88. Política esta que tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções
sociais da cidade e garantir o bem- estar de seus habitantes.
Por meio da determinação de procedimentos administrativos e parâmetros
técnicos a serem observados pela administração pública e pelos demais interessados e
envolvidos na execução de obras e na utilização das edificações, nos Código de
Obras/Edificações, são estabelecidos padrões de qualidade dos espaços edificados que
satisfaçam as condições mínimas de fruição adequada pelos usuários diretos e demais
cidadãos.
Esta lei também poderá definir os procedimentos de aprovação de projetos e
licenças para a execução de obras, bem como os parâmetros para fiscalização do seu
andamento e aplicação de eventuais penalidades. Quanto ao seu conteúdo, há uma
diversidade de formas de cobrança desta legislação pelas administrações locais. Alguns
municípios estabelecem um Código de Obras/Edificações mais detalhado, observando
as características de diversas tipologias e usos, considerando a interface com a lei de
uso e ocupação do solo que contem o zoneamento urbano. Outros municípios já optam
pelo estabelecimento de diretrizes mais genéricas, sem especificação de detalhes por
tipo de uso ou relação com o lugar onde a obra se encontra.
Portanto, se esta lei atua sobre as regras gerais e específicas a serem obedecidas
no projeto, licenciamento, execução, manutenção e utilização de obras e edificações,
dentro dos limites dos imóveis, é uma lei que atua na propriedade particular, em como
o indivíduo habitará seu imóvel. Por outro lado, a CF 88 também nos diz no inciso
XXIII do artigo 5 que a propriedade atenderá a sua função social. Então devemos considerar
que o cumprimento ao Código de Obras/Edificação é o cumprimento da função social
da propriedade, tendo em vista que esta lei deve conter o atributo de garantir que este
direito constitucional fundamental seja respeitado pelo dono do imóvel urbano
edificado? E é isso que temos visto nas nossas cidades?
Nos últimos anos, tem-se debatido muito pouco sobre a importância desse tipo
de legislação para a construção das cidades, e mais ainda de manutenção de paisagens
urbanas tradicionais. Pode se dizer que nas últimas duas décadas essa discussão sobre
este tipo de lei de ordenamento arquitetônico, deu lugar a outras discussões
relacionadas ao Planejamento Urbano de forma mais genérica.
O Plano Diretor foi empoderecido pela CF88 como o instrumento básico da
política de desenvolvimento e de expansão urbana. Posteriormente, a lei 10.257/2001, o
Estatuto da Cidade, trouxe diversos instrumentos urbanísticos a ser integrados ao
Plano Diretor, especialmente para se fazer cumprir a função social da propriedade.
Mas o legislador optou por não trazer nenhuma expressiva orientação sobre códigos de
obras/edificações.
130
Talvez pelo fato de tais códigos se tratarem de uma lei que atua no imóvel da
porta para dentro, tenha se pensado que eles não tem nenhuma relação com a
construção do ambiente urbano? Ou porque estes são realmente um capítulo a parte
que não caberiam ser apenas mencionados no Estatuto? Mas é certo que estas normas
se refletem sim na cidade, pois são elas que trazem os parâmetros construtivos que
orientam os indivíduos a arquitetarem o quebra cabeça das paisagens urbanas, por
meio de cada elemento construtivo de cada edifício. Lembrando do que vimos sobre a
contribuição de cada indivíduo, que por meio do imóvel que ocupa compõe a
paisagem urbana, enquanto imagem e enquanto processo construtivo.
Os códigos devem ser concebidos de modo a garantir as condições de
salubridade, segurança, acessibilidade, adequação ambiental e preservação cultural,
atuando como agente legalizador dos costumes construtivos da cidade. Bem, e essa
relação com a legitimação dos costumes construtivos implica em um conhecimento
sobre o território existente. E mesmo que o código incida sobre uma área de expansão
urbana, a concepção de suas regras se orientou por ideais do que se acredita serem
bons exemplos, observados em paisagens urbanas existentes.
Conclusão
Vimos que as cidades, e em especial as paisagens urbanas tradicionais,
transmitem mensagens sensoriais aos indivíduos que com ela se interagem. A carga
mnemônica instaurada ao longo de sua conformação é responsável pela propagação de
mensagens, especialmente as visuais, que são apreendidas tanto por meio de suas
partes - fragmento, quanto pelo todo – paisagem. Essa apreensão se deve às diversas
formas de interpretações cognitivas dos indivíduos. Enquanto processo, esta paisagem
é a conjunção destes fragmentos que, de modo harmônico, se interagem e se integram
formando uma “tela” exposta à cidade.
As paisagens urbanas tradicionais foram aqui definidas como parcelas do
território onde se verifica a existência de práticas, sistematicamente reproduzidas, que
se relacionam diretamente com a transformação e a preservação destas paisagens ao
longo do tempo. Como parte integrante e co-autor desta paisagem, o fazer do
indivíduo pode ser o ponto de partida para a análise do espaço urbano. Pois cabe ao
cidadão comum um importante papel no processo de transformação do território,
papel esse que o poder público tem menosprezado.
Vimos que os Códigos de Obras/Edificações devem atuar como agente
legalizador dos costumes construtivos da cidade. Um dos trabalhos iniciais do
planejamento é o levantamento de dados e diagnóstico das condicionantes locais, onde
são identificadas as estruturas atuais e o histórico dos processos que levaram àquela
conformação de uso e ocupação da paisagem. Embora desconsideradas e não
levantadas dentre os itens do diagnóstico do planejamento, as ações de modificação de
edifícios realizadas por seus usuários se refletem no uso e ocupação do território.
Assim, na paisagem urbana tradicional, e mesmo em outras partes da cidade,
onde o habitar popular está a exprimir suas mensagens, o desafio posto é a construção
de políticas atentas à reciprocidade desta relação dos indivíduos com a paisagem, não
131
perdendo de vista a responsabilidade que cabe ao poder público neste processo, de
acordo com o que aqui foi refletido.
Finalmente, em que medida essas reflexões podem ajudar a fundamentar futuras
diretrizes para o planejamento urbano, tendo em vista os limites da intervenção do
Poder Público na garantia das qualidades ambiental, social e cultural presentes nas
paisagens urbanas tradicionais.
Pois se as pessoas leem as paisagens e delas interpretam mensagens, também
cabe ao Poder Público municipal, que tem a prerrogativa do ordenamento urbano, ler o
que essas paisagens tem a dizer sobre o desenvolvimento das formas de ocupação do
indivíduo no espaço urbano, de modo a se apreender informações que ajudem na
construção de cidades mais humanizadas com melhor qualidade de vida.
132
A PAISAGEM DO PLANO PILOTO DE BRASÍLIA
A PARTIR DE SUAS ESCALAS
Gabriela Azevêdo & Carolina Neves♥
Resumo
Este trabalho pretende analisar de que modo as escalas refletem a paisagem
de Brasília, e assim como são responsáveis pelas diferentes expressões
urbanas da cidade. Para tanto, o artigo está estruturado em duas partes. Na
primeira parte é abordado como Lucio Costa construiu cada escala no
projeto do Plano Piloto, e na segunda parte, como os aspectos
fundamentais de cada escala refletem nas diferentes paisagens de Brasília.
A partir desta análise percebeu-se que a apropriação dos espaços das
escalas é determinante para o processo de conservação ou degradação do
espaço da cidade.
Palavras chave: Brasília, escalas urbanas, paisagem cultural.
Introdução
Este presente trabalho é o desdobramento de uma pesquisa de iniciação
científica que teve como objetivo principal construir a declaração de significância 1 de
Brasília, e como objetivo específico identificar os bens que são expressivos para a
compreensão dos significados deste conjunto urbanístico.
Nos resultados parciais da pesquisa, obtidos a partir de análise documental,
identificou-se os objetos e processos2 patrimoniais de Brasília. São eles: 1) Plano Piloto
2) Edifícios excepcionais de Oscar Niemeyer 3) Conjuntos urbanos 4) Paisagens e vistas
5) Dinâmicas urbanas e processos distintos de ocupação do solo.
Os itens 1 e 2 foram extraídos dos documentos de inscrição de Brasília na Lista
de Patrimônio Mundial da UNESCO e dos demais documentos de preservação do sítio.
Os itens 3, 4 e 5 foram extraídos a partir da análise de outras fontes documentais
(livros, trabalhos acadêmicos, trabalhos técnicos de órgãos públicos, além de imagens,
mapas e fotografias significativas para compreensão e apreensão dos valores do bem).
Os planos de preservação do conjunto urbanístico de Brasília estão baseados,
em sua maioria, nas características fundamentais das quatro escalas urbanas
(monumental, residencial, gregária e bucólica). Porém, percebeu-se que muitas dessas
características são processos patrimoniais, e não objetos. Ou seja, mais do que nos
aspectos materiais, grande parte das características fundamentais do Plano Piloto está

UFPE. [email protected]
UFPE. [email protected]
1 Declaração de significância: documento onde estão expressos os valores do bem patrimonial.
2 Objetos patrimoniais: artefatos que possuem valor patrimonial. Processos patrimoniais: dinâmicas presentes
no sítio, decorrentes das relações entre pessoas-pessoas e pessoas-objetos, reconhecidas como possuidoras
dos valores patrimoniais.
♥
133
nas dinâmicas urbanas, nas relações interpessoais e nas relações entre as pessoas e o
espaço construído.
Estas dinâmicas urbanas trazem a tona o conceito de paisagem cultural, onde o
foco é o processo de interação do homem com o meio natural. A paisagem cultural está
relacionada com os cenários resultantes da modificação do meio ambiente pelo
homem, expressados através da composição do espaço natural com o espaço
construído.
E sendo a paisagem uma construção social, marcas da relação entre o homem e
o meio, ela passa a ter valores patrimoniais a partir do momento em que é singular, em
que as suas qualidades são únicas (ALMEIDA, 2006). No caso de sítios patrimoniais, a
paisagem faz parte da compreensão dos significados culturais do sítio, pois a paisagem
é um reflexo do processo de construção da identidade de um determinado grupo social
com o espaço que o envolve.
O objetivo deste trabalho é analisar de que modo as escalas refletem a paisagem
de Brasília, e assim como são responsáveis pelas diferentes expressões urbanas da
cidade. Para tanto, o artigo está estruturado em duas partes. Na primeira parte é
abordado como Lucio Costa construiu cada escala no projeto do Plano Piloto, e na
segunda parte, como os aspectos fundamentais de cada escala refletem nas diferentes
paisagens de Brasília.
1. O Plano Piloto de Brasília
A ideia de levar a capital do litoral para o interior do país é antiga, anterior
mesmo à independência, mas apenas com o governo de Juscelino Kubitschek, na
década de 50 do século XX, é que o projeto de construção de Brasília foi concretizado.
Nas palavras de Mario Pedrosa, Brasília é muito mais do que urbanismo, é uma
hipótese de reconstrução de todo um país. No entanto, ela faz parte de um velho sonho
nacional (PEDROSA, 1981).
A construção de Brasília³ uniu o desenvolvimento tecnológico e econômico pelo
qual o país estava passando com a necessidade de ocupação do cerrado e com o
processo de construção de uma identidade nacional. Brasília chegou como elemento de
integração nacional, como afirmou Vilanova Artigas: "Ontem, construíamos
timidamente alguns edifícios; hoje, fazemos Brasília – uma cidade inteira – com
argumentos nossos. De Casa em Casa, de Cidade em Cidade, ficais certos, ajudaremos
a reconquistar o Brasil para os brasileiros" (ARTIGAS apud SEGAWA, 2002, p.122).
Em 1956, foi lançado o Concurso para a Nova Capital, e dele participaram 26
projetos. O projeto vencedor foi o do arquiteto e urbanista Lucio Costa. Nas palavras
do júri do concurso, a proposta de Costa foi a "que melhor integra os elementos
monumentais na vida quotidiana da cidade, como Capital Federal, apresentando numa
composição coerente, racional, de essência urbana – uma obra de arte".
Em todas as propostas apresentadas ao júri havia uma semelhança na
concepção projetual, todos partiam do pressuposto modernista que o racionalismo
funcional seria capaz de resolver as contradições sociais e econômicas da sociedade,
juntamente com os problemas urbanos mais latentes. Assim, todos os projetos tinham
em comum: a) divisão da cidade pelas funções consideradas básicas (habitação,
134
trabalho, lazer); b) vias exclusivas para automóveis, a partir de um sistema de
circulação hierarquizado, com vias expressas para evitar ao máximo os cruzamentos; e
c) muitos vazios urbanos, fazendo composição com a baixa densidade construtiva
(BICCA, 1985; KOHLSDORF, 1985; BASTOS e ZEIN, 2010).
O projeto de Costa se enquadra no "modelo" citado acima, afinal, é a concepção
urbanística de uma época; porém, o projeto vencedor foi o único que foi além dos
cânones internacionais. Segundo a análise de Antônio Carpitero, o projeto de Lucio
Costa está longe de seguir à risca os preceitos da Carta de Atenas, pois ele deu atenção
a inúmeras soluções que destoam daqueles princípios, como a atenção dada à bacia
hidrográfica e ao relevo, bem como à tradição arquitetônica trazida pelos portugueses
(CARPITERO apud FREITAG, 2002).
A inovação da proposta de Lucio Costa foi o zoneamento da cidade a partir das
diferentes interações humanas com o espaço. A cidade está dividida basicamente em
três setores: de lazer e comércio, de moradia (com pequenos equipamentos urbanos) e
o centro cívico-administrativo do país. A partir de dois eixos, que se cruzam
inicialmente em ângulo reto, e depois um deles se arqueia para melhor adaptar-se a
topografia, surge o traçado urbano da cidade.
Figura 1: Croquis de Lucio Costa
Fonte: Relatório do Plano Piloto.
No Relatório do Plano Piloto, Lucio Costa não utiliza o termo escala para o
zoneamento que ele faz da cidade. Ele faz referência a diferentes setores: setores
residenciais, setor central de diversões, setor bancário-comercial e setor municipal. Em
1987, Costa reavalia o processo de concepção e construção da cidade no documento
Brasília Revisitada. Nele são pontuadas as características fundamentais do plano. Entre
outras, está a interação entre as quatro escalas urbanas, a estrutura viária, a
importância do paisagismo e a presença do céu.
Apesar de só ser apontado por Costa três décadas após a formulação do plano,
o conceito de escala é um dos princípios norteadores do projeto. Escala é a relação de
uma grandeza a partir de um referencial conhecido, está relacionado à proporção. Este
conceito se reflete na concepção urbanística do plano através das relações entre o
homem e o espaço construído.
135
A expressividade alcançada pelo projeto de Lucio Costa está na sutileza
atingida pela interação entre as diversas dimensões urbanas presentes em Brasília, e
como elas se relacionam com a paisagem do planalto central. Como afirma Lauande
(2007), a topografia e a horizontalidade foram utilizadas como elementos de
composição para os cenários e perspectivas, onde a cidade e a paisagem natural se
fundem em uma magnífica compreensão de espírito de lugar.
1.1 As escalas
O Plano Piloto de Brasília está zoneado em quatro escalas, e cada uma delas
possui características espaciais singulares, que conferem diferentes interações
humanas.
A escala monumental está configurada pelo eixo monumental, da Praça dos
Três Poderes até a Praça do Buriti. A partir de uma grande esplanada estão dispostos
os edifícios que abrigam a alma político-administrativa do país e do governo local, que
representa a dimensão coletiva da cidade. A ocupação do solo na escala monumental é
feita a partir de um eixo único, que tem claramente um foco que representa os três
poderes do estado, ocupado por edifícios monumentais centralizados (Praça dos Três
Poderes). A relação de proporção entre as áreas edificadas e as não edificadas, o
contraste entre os extensos vazios urbanos e os imponentes edifícios, com excepcional
qualidade artística, confere a monumentalidade do lugar.
A escala residencial organiza as residências multifamiliares através das
superquadras, que são conjuntos de edifícios dispostos em lâminas, de gabarito
uniforme com seis pavimentos, suspensos por pilotis. A área térrea é de livre acesso
aos pedestres, o que modifica a relação entre solo público e privado, comumente
delimitado pelos muros das cidades tradicionais. Em Brasília, o lote deixa de existir, e é
transferido pela projeção da lâmina do edifício. Os edifícios são circundados por um
grande cinturão verde, e a circulação de veículos e pedestres é distinta. Quatro
superquadras formam uma unidade de vizinhança, com comércio, escola primária,
igreja de bairro, e outros equipamentos de pequeno porte.
A escala gregária é formada pela interseção dos eixos monumental e
rodoviário-residencial, sendo considerada o coração da cidade. Tem como principal
elemento – e o que melhor sintetiza sua função agregadora – a plataforma rodoviária,
que integra o Plano Piloto com as cidades satélites. Nela encontram-se também os
setores de diversões, comerciais, bancários, hoteleiros, médico-hospitalares, de
autarquia e de rádio e televisão.
136
Figura 2: As três (das quatro) escalas do Plano Piloto.
Fonte: autora.
A escala bucólica está presente nos vazios urbanos e na densa massa vegetal
que envolve a cidade, configurada em todas as áreas livres. Enquanto que as outras
três escalas possuem uma clara definição espacial, com seus padrões de uso e ocupação
do solo e gabaritos limitados, a escala bucólica possui uma expressão intangível, que
permeia todas as outras. A escala bucólica é responsável pelo caráter de cidade-parque
(BOTELHO, 2009), o que faz de Brasília uma cidade aberta, sem limites espaciais, um
genuíno exemplo do espírito de época moderno.
A importância do paisagismo, citado por Costa no Brasília Revisitada, é na
verdade essa relação com a natureza que ele traz pra dentro da cidade: "na passagem
sem transição do ocupado para o não ocupado em lugar de muralhas, a cidade se
propôs delimitada por áreas livres arborizadas" (COSTA, 1987). E assim a escala
bucólica está presente no Plano Piloto de formas distintas: 1) através das densas áreas
arborizadas que formam um cinturão verde em torno das superquadras; 2) com o
paisagismo como elemento de composição e integração entre a arquitetura e outras
artes (escultura, pintura, painéis), fazendo-se de elo entre o interior e o exterior dos
edifícios; 3) como elemento de composição volumétrica a partir dos cheios e vazios
(áreas non aedificandi), como no caso do canteiro central do eixo monumental, que deve
estar sempre gramado e não edificado; 4) com a presença do céu como "moldura" para
os edifícios institucionais.
Assim, o paisagismo é o elemento de coesão do Plano Piloto. Funciona como
uma membrana de proteção, resguardando a cidade da expansão urbana, ao mesmo
tempo em que gera uma compreensão de unidade, dentre as diferentes expressões
urbanas da cidade.
137
2. A paisagem a partir das escalas
A configuração espacial de Brasília é o resultado da soma da configuração
espacial de cada escala e simultaneamente, da interação entre elas. Os espaços de cada
escala, tendo características distintas, buscam, em um jogo de proporções e
significações, se complementarem e interagirem (MONTE JUCÁ apud BOTELHO, 2009,
p.88).
Figura 3. Interação entre as quatro escalas.
Fonte: Nelson Kon (marcação nossa).
A diferença existente na morfologia urbana de cada escala é responsável pela
paisagem multifacetada da cidade, que vai da dimensão cotidiana (urbs), presente na
escala residencial, à dimensão simbólica (civitas), presente na escala monumental.
Os aspectos que definem a paisagem nas escala são fundamentalmente três: os
parâmetros urbanísticos (uso e ocupação do solo), a forma de implantação
(afastamentos e a relação entre cheios e vazios) e as atividades realizadas no território.
Apesar destes aspectos serem expressos em características materiais – alturas, volumes,
proporções – eles possuem um caráter subjetivo, pois diz respeito as dinâmicas
urbanas da cidade.
2.1 A Escala Monumental
A vista ampla e desimpedida do eixo monumental, com a esplanada dos
ministérios gramada e desocupada, o Congresso como ponto focal, e os edifícios
ministeriais reforçando essa perspectiva, é uma paisagem que reflete poder e
soberania. Essa é a imagem que está mais presente na memória coletiva de visitantes
ou moradores quando se faz referência ao Plano Piloto. Os recursos compositivos
utilizados no eixo monumental, como a utilização das técnicas de terraplenos, a
marcação de pontos focais e a precisão na localização dos edifícios, são responsáveis
pelo caráter simbólico do lugar.
138
Figura 4. Esplanada dos Ministérios. Fonte: Paulo César Brandt.
Estava previsto no Relatório do Plano Piloto que "a perspectiva de conjunto da
esplanada deve prosseguir desimpedida até além da plataforma (rodoviária) onde os
dois eixos urbanísticos se cruzam". Segundo analise de Paulo Bicca (1985), a
perspectiva de Brasília é descendente do urbanismo haussmaniano, criador de uma
paisagem de eixos e perspectivas que vão desembocar em edifícios monumentais.
É no eixo monumental onde mais se vê o horizonte, e a presença do horizonte
como elemento de composição dessa paisagem cria a sensação de amplitude e
vastidão, reforçando a monumentalidade dos edifícios governamentais (projeto de
Oscar Niemeyer). Alguns autores consideram que o caráter simbólico ao qual chegou à
proposta de Costa foi a uma das suas maiores contribuições à arquitetura e ao
urbanismo modernos, retomando a questão simbólica para o cerne da arquitetura.
Figura 5. Vista do eixo monumental a partir da
Torre de Televisão. Fonte: Beatriz Brasil (marcação nossa).
139
A forma como foi resolvida a questão viária, evitando os cruzamentos (através
das tesourinhas e das mudanças de níveis) também tem ressonância na paisagem
urbana de Brasília. Outro elemento fundamental à composição da paisagem desse eixo
é a torre de televisão. A presença vertical da torre no meio de uma esplanada é o
contraponto vertical do edifício do congresso, e além de ser um símbolo de
comunicação e modernidade, seu mirante permite a fruição de diversos cenários da
cidade.
O resultado desses diversos elementos significantes da paisagem do eixo
monumental é de caráter cenográfico, que induz mais a contemplação e menos a
experimentação do espaço. Essa paisagem é de certa forma estática, criada para ser
apreciada como uma obra de arte.
2.2 A Escala Residencial
A escala residencial, também chamada de escala doméstica, propicia uma
relação de proximidade entre quem usufrui do espaço livre e o espaço construído. Esta
relação é responsável pela nova maneira de viver, uma relação que resguarda a vida
cotidiana do resto da cidade.
Isto acontece, pois, o eixo residencial representa o homem no nível individual
de sua existência (LAUANDE, 2007), já que foi concebido a partir da escala humana.
As superquadras procuram atender às formas de convívio, onde o homem pode viver
com qualidade de vida, junto à natureza e perto de diversos serviços, sem necessitar
percorrer longas distâncias para efetuar as atividades cotidianas.
Figura 6: Entrada da escala residencial.
Fonte: Nelson Kon.
Figura 7: Pátio interno da escala
residencial. Fonte: Nelson Kon.
A composição dos espaços na escala residencial resulta em uma paisagem
fluida e permeável. O cinturão verde que emoldura os edifícios gera uma relação de
maior proximidade do homem com a natureza, quebrando com a dicotomia entre meio
urbano e meio natural. A proximidade nesses espaços entre pequenos equipamentos
urbanos e edifícios residenciais reforça o sentimento de pertencimento dentro das
superquadras, gerando um sentimento de coletividade.
140
2.3 A Escala Gregária
Desenvolvida a partir da plataforma rodoviária, a escala gregária é o centro
urbano de Brasília. Foi concebida para ser um local de agregação, com diversos setores
reunidos para propiciar encontros e trocas – econômicas, sociais, afetivas, culturais,
simbólicas (KOHLSDORF apud GOULART, 2009).
O caráter vertical dos edifícios, a alta densidade construtiva, e a predominância
dos espaços edificados aos espaços livres são os elementos que compõem a paisagem
da escala gregária. As áreas que mais se aproximam com o que foi previsto no
Relatório do Plano Piloto (um corpo arquitetônico contínuo, com galeria, amplas
calçadas, terraços e cafés) são as que mais possuem características de agregação e
urbanidade.
Nas áreas em que estas características não foram adotadas a paisagem é árida e
desumana, apresentando espaços com grandes diferenças de níveis, sem relação com o
entorno e extensas áreas ainda não ocupadas.
Figura 8: Plataforma de embarque no térreo,
e edifício do setor cultural sul no nível
superior. Fonte: Nelson Kon.
Figura 9: Aridez na paisagem e extensas
áreas desocupadas na escala bucólica.
Fonte: Maurício Goulart
Em compensação, a plataforma rodoviária, ponto de interseção entre os dois
eixos, é onde melhor se manifesta a urbanidade de Brasília. Desenvolvida em três
níveis, a plataforma é edifício e espaço público simultaneamente. A dinâmica urbana
da plataforma rodoviária é viva e pulsante, com milhares de pessoas que se apropriam
do seu espaço diariamente, através das relações de troca e convívio.
2.4 A Escala Bucólica
A escala bucólica é a responsável por muitas das características das outras três
escalas, pois faz a interação da paisagem natural com os elementos construídos, assim,
ela pode ser encontrada nas diferentes fisionomias da paisagem das quatro escalas.
Além da interação com os elementos construídos, pode-se dizer que esta escala
é a que possui uma forte ligação com as relações humanas, pois propicia atividades de
lazer e passeio (nos parques, praças e na orla do lago). A escala bucólica, de acordo
com a fisionomia em que aparece, funciona tanto para dispersar pessoas como para
concentrar. As paisagens desta escala que têm forte caráter concentrador são
141
encontradas no interior das superquadras, enquanto que no eixo monumental, possui
caráter dispersor que enaltece o valor de monumentalidade.
Figura 10: Inserção da escala bucólica na
escala residencial. Fonte: Leonardo Finotti.
Figura 11: Presença do céu como elemento
de composição da paisagem. Fonte: Idem.
Considerações Finais
O projeto da cidade de Brasília poderia ter sido apenas o projeto de mais uma
cidade, ou tão somente uma resposta às necessidades da época – renovação das
configurações sociais e urbanas brasileiras, heranças do passado colonial. Lucio Costa
foi muito além das exigências do Relatório do Plano Piloto, pois repensou a
arquitetura, o urbanismo e a paisagem urbana a partir das diferentes interações
humanas com a cidade. A concepção espacial do Plano Piloto é, na verdade, a tradução
de diversas relações sociais, consideradas por Lucio Costa como uma forma de viver,
de habitar, e de referenciar o estado nacional.
Da mesma forma que se observa diferenciação das características das paisagens
e das relações humanas, pode-se perceber que a apropriação dos espaços das escalas é
determinante para o processo de conservação ou degradação do espaço. Isto porque,
de acordo com Monte Jucá (2009), “a paisagem se realiza, também, por meio de
evocações afetivas e simbólicas”.
Porém, a partir do que foi abordado neste trabalho, surgem questionamentos a
respeito da conservação deste sítio, único conjunto urbanístico contemporâneo
tombado até o momento pela UNESCO como Patrimônio da Humanidade. Se muitas
das características fundamentais do Plano Piloto estão refletidas nos aspectos
imateriais, nas dinâmicas urbanas e percepções espaciais, como conservá-las? Se a
mudança é algo inerente à paisagem, como conciliar conservação com transformação?
142
Referências
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144
CRONIDAS: PROPOSTA DE PADRONIZAÇÃO DE
REPRESENTAÇÃO EM MAPAS DE DANOS
Luís Gustavo Gonçalves Costa & Lucas Figueiredo Baisch♥
Resumo
Este artigo discute a padronização de mapas de danos - utilizados no
diagnóstico de projetos de conservação e restauro de edificações de
interesse histórico-cultural - através da base de dados Cronidas. Entende-se
por mapa de danos a documentação ilustrativa de prejuízos - sejam esses
materiais, funcionais ou estéticos - necessária para embasar os trabalhos de
intervenção conservativa ou restaurativa. O conteúdo desses mapas é feito
por material essencialmente gráfico - superposição de hachuras, fotografias,
índices, cores, caracteres e legendas - com a finalidade de localizar,
identificar, quantificar e especificar as avarias encontradas nas edificações.
Diante das várias formas de se representar graficamente as informações dos
mapas de danos, as possibilidades são tantas que dificultam a leitura
objetiva e única delas. Isso abre margem a interpretações dúbias e, por isso,
gera a necessidade da formular uma proposta de padronização. Diante
disso, surge a construção da base de dados Cronidas na web. Cronidas é
uma coleção de fichas com informações sobre patologia da construção.
Cada ficha contém a descrição do dano, sua identificação em edificações,
fotografias e o código padrão de representação em uma ferramenta CAD. A
descrição e identificação do dano é feita a partir de consulta bibliográfica
de diferentes autores. Na seleção desses códigos, levou-se em consideração
os aspectos de comunicação visual e relações de contrastes de cores na
percepção visual. Assim, com essa seleção, gera-se o repositório de códigos
dos danos para serem aplicados nas fichas da base de dados Cronidas. Com
o intuito de divulgar e otimizar o acesso à base de dados, é desenvolvido
um website - confeccionado com o content mannagement system
WordPress. Assim, na Internet, é possível a colaboração de conteúdo por
usuários cadastrados - profissionais interessados para inserção de novas
informações sobre danos - integrando-as à base de dados. Além disso,
usuários podem acompanhar notícias e fóruns de discussões nas redes
sociais - como o Twitter e Facebook. Assim, espera-se que com a unificação
da representação gráfica, os projetos de edificações de interesse histórico e
cultural, sejam de fácil leitura pelos profissionais envolvidos.
Keywords: Standardization, databases, Cronidas, damage maps, pathology
building, graphic representation

♥
UNIJORGE. [email protected]
UNIJORGE. [email protected]
145
Introdução
Este trabalho se enquadra na linha investigativa da teoria e da tecnologia da
conservação e restauro do patrimônio histórico, patologia da construção,
especificamente no estudo das representações de mapa de danos, etapa fundamental
de um projeto de conservação e restauro.
O universo dos mapas de danos é o tema abordado neste artigo, abrangendo a
patologia da construção e a criação da base de dados Cronidas para a padronização da
linguagem e da representação de mapa de danos. Essa representação contém
informações que auxiliam o profissional da área a especificar serviços e procedimentos
de intervenção em edificações que delas necessitem.
Neste contexto, o mapa de danos é um material ilustrativo contendo a
representação dos componentes construtivos (parede, piso, esquadria, telhado, etc.) e
os danos encontrados, bem como as informações necessárias para embasar os trabalhos
de intervenção e consolidação em projetos de conservação e restauro. Este material
apresenta sobreposição de elementos gráficos, hachuras, fotografias, índices, cores,
letras e legendas contendo dados sobre os danos incidentes nos componentes da
construção e nos materiais empregados na construção. Logo, o mapa de danos é um
instrumento que antecede a elaboração dos projetos de intervenções, conservação e
restauro de edificações, sendo importante para identificar, quantificar, especificar e
localizar as avarias na edificação. Para a identificação desses danos utiliza-se, a
princípio, os diversos sentidos de percepção. Entretanto, para que seja precisa, faz-se
necessário realizar prospecções e análises laboratoriais.
Tabela 1: O processo patológico e de danos: gráfico sequencial e seus componentes
Localizar
Determina a área ou o
ponto exato onde
ocorre o dano.
Identificar
Constata, comprova
ou reconhece o
dano.
Especificar
Quantificar
Detalha e
particulariza o
dano.
Mensura áreas
afetadas.
Fonte: (Carrió ,1990).
A identificação das áreas prejudicadas e a elaboração dos mapas de danos é um
pré-requisito do diagnóstico para intervenções em um roteiro para o projeto de
restauro.
Desta forma, o conhecimento da patologia das edificações é indispensável para
todos os que trabalham com a construção civil, em conservação e restauro, pois
conhecer os materiais que foram empregados, os defeitos ou as deteriorações que
apresentam, assim como suas causas é fundamental na proposição de intervenções e
procedimentos de tratamento, para reverter ou estabilizar os danos existentes em
edifícios de interesse cultural. Assim, a pesquisa conta com a elaboração de uma base
de dados contendo informações sobre danos em materiais de construção, com sua
descrição, fotografias desenhos esquemáticos com resultados retirados de revisão
bibliográfica ou de casos reais de obras. Consta também de uma recomendação para
representação dessas avarias em mapas de danos. As informações estão organizadas
sistematicamente em forma de fichas e disponibilizadas através de acesso em um
website específico, aberto à colaboração de conteúdo, aceitando novas fichas e
146
incorporando-as à base de dados. Este website oferece informações reunidas para a
consulta aos profissionais da conservação e do restauro, impressão e para o download,
favorecendo a padronização da linguagem e da representação gráfica para o
mapeamento de danos em edificações brasileiras de interesse artístico, histórico e
cultural.
1.O processo patológico
Denomina-se de processo patológico, toda a investigação de como se manifesta
o dano com todas as suas características e possibilidades de reparo ou previsão da
evolução desse dano (Carrió,1990).
Figura 1. O processo patológico e de danos: gráfico sequencial e seus componentes. (Fonte:
Carrió, 1990).
Assim como um texto, o mapa de danos transmite uma visão específica do
estado da edificação contendo um discurso técnico, configurando-o como instrumento
de análise para o diagnóstico para intervenções de restauro, para ações conservativas
ou de manutenção. Conseqüentemente, o mapa de dano é um instrumento importante
para o estudo investigativo de um processo patológico, pois ele indicará os sintomas
aparentes na edificação. Dando inicio na identificação do agente envolvido no dano e
examinando as causas.
Tabela 2: Estudo investigativo (diagnóstico de dano)
Sintoma
Manifestação percebida
Exemplos
Manchas de umidade
Perda de Material
Agente
Ação determinante dano
Causa
É o que ocasiona o dano
Infiltração
Furo na tubulação de água
Cristalização de sais
Presença de água associada a sais
Fonte: Anotações de aula de Silvia Puccioni.63
Aula de identificação de danos, (patologia das construções) ministradas no CECRE - Salvador em junho
de 2009, pela professora Silvia Puccioni.
63
147
Tendo o diagnóstico como o resultado da investigação de causas, agentes e
sintomas, parte-se para o tratamento, o prognóstico e/ou a prescrição para prevenção
contra futuras reincidências. Um exemplo de diagnóstico é a investigação de uma
mancha na parede (sintoma), cuja ação é a infiltração (agente) ocasionada por um furo
na tubulação de água (causa).
2. Padronização de mapas de danos
Existem inúmeras formas de apresentar informações graficamente e, no caso
particular dos mapas de danos, são tantas as possibilidades que surge a necessidade de
se organizar uma proposta de padronização, já que esses mapas são apresentados de
diferentes maneiras, o que dificulta a leitura única, abrindo margem para
interpretações imprecisas. A boa leitura do mapa de danos é condicionada pela
facilidade em avaliar corretamente os dados representados. Na representação gráfica
de mapas de danos, os códigos devem ser organizados de modo a compartilhar a
informação pretendida com clareza.
Figura 2. Codificação de danos.
Fonte: Costa, 2010
A representação gráfica é integrante de um sistema de sinais que armazena,
compreende e comunica por meio da construção da imagem.
Figura 3. Componentes do sistema de comunicação de um mapa de danos. (Fonte: Inferência a
partir de Archela, 2008).
148
A fonte de informação é a edificação, a mensagem que se quer passar é o estado
da edificação informando a incidência dos danos com sua localização exata, pelo
levantamento dos danos (emissor) que identifica os danos e os codifica através de
mapa de danos (códigos) onde o profissional responsável (receptor) lê, decodifica e
utiliza para a finalidade (destino) de diagnosticar os problemas de conservação da
edificação.
Então alguns procedimentos foram realizados para a padronização da
representação dos danos tais como: codificação dos danos em AutoCAD® , testes de
impressão e seleção desses códigos e classificação de danos.
2.1. Codificação de danos em AutoCAD®
O dano é representado através de um código gráfico aplicado no mapa base.
Para a codificação de danos na representação gráfica, a ferramenta utilizada é o
programa AutoCAD® e verifica-se a existência de danos que se apresentam
características pontuais, lineares ou em áreas. Deste modo, na representação pontual de
danos (exemplo: entupimento de calha) são usados símbolos (figuras geométricas), no
caso: o quadrado, o triângulo e o círculo. Na representação linear de danos (exemplo:
rachadura e abaulamento) são usadas linhas nas quais foram escolhidas: a linha
contínua e a linha tracejada (hidden). Já nas feições caracterizadas em áreas (zonas) de
danos (exemplo: erosão e crosta negra), são selecionados polígonos fechados
preenchidos com hachuras.
A codificação de danos pode ser expressa através do uso de símbolos, linhas,
manchas de cores ou de texturas e índices.
 Códigos de símbolos (pontuais)
 Código de linhas (lineares)
 Código de manchas (áreas)
Assim, a presença de dano pontual como pontos de entupimento de calhas,
pode ser representada por um símbolo ou figura geométrica; uma região atacada por
cianobactérias ou qualquer dano que ocupe uma região da superfície do material ou
componente construtivo, pode ser representada por uma área; já as trincas ou
abaulamentos, danos com características lineares podem ser representados por linhas
desenhando seu trajeto.
2.2. Testes de impressão e seleção de códigos
Foram realizados testes de impressão para representações gráficas foram
fundamentadas na teoria cartográfica da Semiologia Gráfica. A seleção dos códigos de
representação para elaboração de mapas de danos, levou-se em consideração, os
aspectos de comunicação visual e as relações de contrastes de cores na percepção
visual, através de testes de impressão de concepções empíricas de elementos de
149
representação gráfica do AutoCAD® gerando um repositório de códigos atribuídos
para os danos inclusos na base de dados.
Desta forma, a seleção dos códigos de representação de danos e os resultados
dos testes estão registrados na (Tabela 3).
Tabela 3: Resultado dos testes de impressão.
Variáveis de Codificação
Cores de Linhas
Cores de hachuras
Cores de símbolos pontuais
Tipos de linha
Espessuras de linhas
Hachuras
Símbolos pontuais
Tamanho de símbolos
Quantidade disponível
no Auto CAD 2008
255
255
255
60*
24
80*
Várias
Várias
Quantidade utilizadas
no teste de impressão
87
87
87
2
17
20
3
3
Fonte: (Costa, 2010)
AutoCAD
Quantidade
Selecionada
6
9
5
2
3
20
3
1
* Padrão do
3. Classificação dos danos
Sabendo-se que o universo dos danos é muito amplo, os mesmos foram
divididos em conjuntos para entendimento do todo e das partes que o compõem. Deste
modo, utilizou-se uma classificação de danos para a modelagem do banco de dados
para a base de dados Cronidas, estabelecendo três grupos:
Grupo 1 - Agentes patológicos;
Grupo 2 - Tipos de danos;
Grupo 3- Incidência de danos em materiais ou componentes construtivos.
Essa classificação auxilia a caracterização do dano no estudo investigativo,
definindo o diagnóstico. Foi utilizada na construção do banco de dados do website,
facilitando a busca de danos com características em comum.
Tabela 4: Componentes da base de dados Cronidas
Lista de danos
Grupo 1:
Agentes
Grupo 2:
Tipo de dano
90 Danos*
6 Agentes
6 Tipos
* Número de danos inicial, por se
tratar de uma base de dados
poderá receber colaborações de
profissionais.
Grupo 3:
Incidência do
dano
12 Materiais e
11 Componentes
construtivos
Fonte: (Costa, 2010)
4. A base de dados Cronidas
A base de dados recebeu nome de Cronidas, baseado no mito grego dos filhos
do Titã Cronos (Senhor do Tempo). Alegoricamente busca-se a analogia da mitologia
com a luta dos restauradores contra a ação do tempo nas construções. Para apresentar
150
esta analogia, foi editado um vídeo explicativo narrando a associação do mito com a
base de dados disponibilizada no website. A proposta de elaboração dessa base de
dados surge da necessidade da padronização de mapas de danos.
A base de dados Cronidas é uma coleção de informações que consiste em uma
lista de danos ocorrentes nas construções do patrimônio histórico-cultural, com sua
representação (codificação padronizada) para a elaboração de mapa de danos no
programa AutoCAD®, essa base de dados foi organizada em fichas disponíveis em um
website.
Tabela 5: Itens da ficha de dano da base de dados Cronidas
TÍTULO
(Nome do dano)
TERMOS EQUIVALENTES
(Nomes com que o dano pode ser conhecido)
DESCRIÇÃO
(O que é o dano e características peculiares)
IDENTIFICAÇÃO
(Como identificar)
IMAGENS
(Fotografias ou desenhos ilustrando o dano com os créditos da imagem)
REPRESENTAÇÃO EM MAPA DE DANOS (AutoCAD® )
(Padrão da codificação gráfica do dano para elaboração de mapas em
AutoCAD® )
ETIMOLOGIA
(Trata da origem e formação através da palavra do nome do dano)
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
(livros, site, CD-ROM)
Fonte: (Costa, 2010)
Para o registro fotográfico para essas fichas, utilizou-se dois campos de visão
diferentes para melhor compreensão do dano e onde ele está localizado na edificação e
também uma escala gráfica para a referência de tamanho.
Para a fotografia, pensou-se um campo médio e outro fechado. Na figura 4, tem
a foto num campo médio onde se observa a edificação como dano de desagregação
numa parede de adobe revestida de barro e pintada de cal branca. Já na figura 5, da
mesma edificação, se tem o registro do mesmo dano da mesma edificação, mas num
campo fechado com a escala gráfica. Nesta foto, é possível observar o dano com mais
detalhes, como por exemplo:
151
Figuras 4 e 5. Diferentes campos de registro fotográfico para melhor compreensão do dano
Sobre a escala gráfica, ao mesmo tempo, identifica a foto pertencente a base de
dados Cronidas e da a dimensão real do que está sendo fotografado. A escala está
impressa num cartão e tem do lado da frente o logotipo do Cronidas, nome do
fotógrafo e o logotipo do website. Foi feita no software CorelDraw e impresso em placa
policarbonato branco com impressora inkjet.
Figura 6. Modelo do cartão com escala gráfica de Cronidas
Assim, esta base de dados é apresentada em modo de catálogo explicativo e
ilustrativo de dano, com sua respectiva representação. Para isto, foram testados
diversos códigos com suas variáveis, buscando selecionar o número de 198 padrões,
com o propósito de suprir o conteúdo inicial (90 danos) da base de dados e ainda
deixar reservado um número suficiente para possíveis colaborações e adição de novos
danos na base de danos. Assim, esta base de dados é uma coleção de informações sobre
os vários tipos de danos ocorrentes nas edificações, com a sua representação e
codificação padronizadas em ferramenta CAD64, tendo como objetivo auxiliar o
CAD: é a abreviatura de Computer Aided Design, que significa projeto auxiliado por computador. É,
também, utilizada como sinônimo de software para projetos e desenhos.
64
152
inventário de danos contendo a descrição, identificação, ilustração e representação
gráfica codificada destes danos, visando contribuir, como foi dito, para a padronização
da representação gráfica de mapas de danos. Além disso, a base de dados contempla a
definição de termos relacionados à patologia das edificações, suas características e
agentes, procedimentos para identificar e diagnosticar as manifestações, além de
catalogar os danos mais incidentes nos diversos materiais de construção e nos
componentes construtivos. A Figura 7 ilustra o resultado de um mapa de danos
utilizando o padrão proposto nesta pesquisa.
Figura 7. Mapa de danos utilizando a base de dados Cronidas.
Tabela 6. Lista de danos
1. Abrasão
36. Desgaste
71. Perda de aderência
2. Alteração cromática
37. Deslizamentos de telhas
72. Perda de pigmento
3. Alveolização
38. Destacamento (descolamento)
73. Perfuração
4. Ausência de recobrimento de
armadura
39. Destelhamento
74. Pichação (Grafismo)
5. Batidas (estocadas)
40. Diferenças de brilho no verniz
75. Pitting (furos)
6. Bolhas (vesiculas)
41. Eflorescência
76. Presença de plantas
7. Brocas (xilófago)
42. Enrugamento
77. Pulverulência
8. Calcinação
43. Entupimento de calha
78. Rachadura
9. Capilaridade
44. Enxame
79. Rasgos
153
10. Carbonatação do concreto
45. Erosão
80. Ressecamento
11. Carbonização
46. Erros de intervenção
81. Riscos
12. Cianoficeas
47. Erros de repintura
82. Saponificação
13. Cisalhamento
48. Escavação
83. Segregações no concreto
14. Clivagem
49. Escorrimento
84. Sujidade
15. Colonização biológica –
biofilme
50. Esmagamento
85. Trinca
16. Concreção
51. Estresse externo
86. Vandalismo
17. Condensação
52. Estresse interno
87. Vazamento goteiras
18. Corrosão
53. Fadiga
19. Craquelê
54. Fissura
20. Criptoflorescência
55. Fratura
21. Crosta negra
56. Fungos (apodrecedores,
emboloradores)
22. Crosta salina
57. Furos
23. Cupins térmitas
58. Gelividade
24. Defeito de fabricação
59. Infiltração
25. Defeito de solda
60. Intervenções anteriores
26. Defeitos congênitos (nós,
fendas ou encurvamento)
61. Lacuna (perda)
27. Deformação (amassados)
62. Lascamento do concreto
28. Deformações (abaulamento)
63. Líquenes
29. Degradação diferencial
64. Lixiviação (presença de
estalactites)
30. Dejetos, guano
65. Manchas superficiais
31. Delaminação (esfoliação,
escamação)
66. Musgos
32. Desagregação
67. Ninhos
33. Desbotamento
(fotodeterioração)
68. Oxidação
34. Descamação em placas
69. Oxidação do verniz
35. Descascamento
70. Peças trocadas
88. Xilófagos marinhos
incrustantes
89. Xilófagos marinhos
perfuradores
90. Extra sobre Pátina
*listagem inicial de danos, com
possibilidade de inclusão de
outros danos por profissionais
colaboradores.
5. O website colaborativo
Com o intuito de divulgar e otimizar o acesso à base de dados, foi desenvolvido
um website disponível no endereço <http://www.cronidas.net>, utilizando a
ferramenta WordPress para gerenciamento de conteúdo web (Content Management
System), associada à ferramenta MySQL (para gerenciamento de base de dados) através
do modelo-entidade relacionamento, e finalmente a linguagem de programação PHP
(Hypertext Preprocessor, utilizada para gerar conteúdo dinâmico na web). Assim, o
website foi modelado no conceito da web 2.0, possibilitando colaboração de conteúdo
por usuários cadastrados, profissionais interessados para inserção de novas
informações sobre danos, que uma vez postados serão submetidos a um comitê técnico
(formado por especialistas da área de restauro), sendo então as informações
154
posteriormente integradas à base de dados. Nestas novas informações são anexadas
codificações de representação determinadas pelo webmaster. Dentre as seções propostas
estão: o banco de dados disponibilizando as fichas de danos para consulta, impressão e
download; o sistema de busca por categorias ou palavras-chave; o formulário de
cadastro para colaboradores; apoio e instruções de como utilizar os códigos de
representação nos mapas de danos, e o download do arquivo “cronidas_padrao” em
formato DWG (AutoCAD® ) contendo a representação dos danos catalogados. Neste
arquivo, as informações estão estruturadas por layers e com seus respectivos padrões
de representação, e dotadas das competentes legendas. Além disto, o website integra os
seus usuários às redes sociais: Facebook e Twitter, que possibilitam acompanhar as
atualizações da base de dados, notícias da área, além de permitir o acesso a fóruns de
discussões.
Figura 8. Página para o download do Arquivo-padrão.
Em 2012, o programa de iniciação cientifica do curso de Arquitetura e
Urbanismo do Centro Universitário Jorge Amado- Salvador-BA, integrou-se a equipe
do Cronidas, sob a orientação do professor Luis Gustavo Gonçalves Costa, contando
com 20 alunos-pesquisadores para implementação da base de dados.
Considerações Finais
Este trabalho está inserido em um contexto tecnológico que ocorre uma
expansão das ferramentas participativas que vem sendo chamado de web 2.0. Deste
155
modo, a pesquisa contempla o assunto de websites colaborativos que se consolidam nos
últimos anos, despontando-o como uma das principais ferramentas presentes na
internet para estimular os usuários a produzirem os seus próprios conteúdos. Assim a
base de dados Cronidas está preparada para receber novos conteúdos por meio de
colaborações de profissionais da área de conservação e restauro e da patologia da
construção, tornando o sistema aberto ao crescimento monitorado.
Com relação ao arquivo “cronidas_padrao.dwg” (disponível para o download), o
uso do programa AutoCAD® ® fez-se necessário devido a preocupação em utilizar
hachuras e linhas no padrão já existente na escolha da representação de danos, ainda
que a criação de novos padrões fosse cogitada para o teste de impressão. Porém, o
usuário poderia ter problemas com o uso do roteiro de procedimentos a ser executado
e poderia tornar-se uma barreira para seu uso e adoção desse padrão. Portanto, a
facilidade de sua utilização foi tomada como prioritária na escolha de linhas e hachuras
já existentes no programa e que compõem a base de dados para representação de
patologia da construção em mapa de danos.
Outro ponto a se considerar na confecção de mapas de danos é a sobreposição
de danos que pode comumente ocorrer. Como se notou um prejuízo na percepção do
dano, recomendou-se a divisão do mapa de danos em diferentes pranchas, evitando
ambiguidade na leitura.
Referências
ARCHELA, R. S. Análise da cartografia brasileira: bibliografia de cartografia na
geografia no período de 1935-1997. Tese de Doutorado, Faculdade de Filosofia, Letras e
Ciências Humanas da Universidade de São Paulo- Curso de Geografia, Departamento
de Geografia. 2000, p.300.
CARRIÓ, J. M.. Curso de patologia: conservación y restauración de edifícios, Madrid:
Colegio Oficial de Arquitectos de Madri. 1990, p.82.
COSTA, L. G. G. Cronidas: Elaboração da Base de dados para mapas de danos.
Dissertação de Mestrado, Universidade Federal da Bahia-PPGAU-FAUFBA. 2010,
p.260.
156
POR QUE OS MESTRES ESCUTAM AS PEDRAS? Uma
investigação sobre a trajetória profissional do trabalhador da
construção civil que atua na Restauração de Imóveis
Régis Eduardo Martins  & Antônio de Pádua Nunes Tomasi
Resumo
Este artigo tem por finalidade apresentar a pesquisa em desenvolvimento
no mestrado em Educação Tecnológica do Centro Federal de Ensino
Tecnológico de Minas Gerais, que investiga a trajetória profissional de
trabalhadores da construção civil que atuam em obras de restauração de
imóveis antigos. Objetiva-se nesta pesquisa encontrar subsídios para o
entendimento da trajetória do trabalhador pesquisado, considerando os
elementos que os direcionaram para o aprendizado das técnicas
construtivas antigas e não para o caminho comumente seguido no setor.
Palavras-chave: Educação Profissional, Trajetória Profissional, Construção Civil,
Restauração de Imóveis, Patrimônio Cultural.
Introdução
O presente artigo tem como premissa apresentar a pesquisa em andamento,
desenvolvida no Mestrado em Educação Tecnológica do Centro Federal de Educação
Tecnológica de Minas Gerais (CEFET-MG), que busca compreender como
trabalhadores da construção civil adquirem os saberes necessários ao trabalho na
restauração de imóveis. Por meio da investigação da trajetória profissional desses
indivíduos, tentar-se-á chegar ao entendimento de como o conhecimento é transmitido
entre os profissionais da área e de como que o saber-fazer necessário às intervenções de
restauro transforma a atuação desses trabalhadores.
1. Contextualização
Incialmente, no intuito de demonstrar os propósitos da proposta deste estudo, é
preciso apresentar o “ambiente gerador” no qual se desenvolve a trajetória profissional
do trabalhador estudado. Para tanto, a construção civil será tratada a partir de aspectos
gerais, a fim de descrever o setor no Brasil, bem como sua origem, o perfil do
profissional atuante na área, os canteiros de obra, entre outros que se mostrarem
pertinentes durante a discussão da pesquisa.


CEFET MG. [email protected]
CEFET MG. [email protected]
157
Historicamente a construção civil brasileira é um espaço dominado pelo baixo
nível de escolaridade, alta rotatividade da mão de obra, índices elevados de
desperdício de material e de acidentes de trabalho. Também, é importante ressaltar que
se tratar de uma área fortemente influenciada pelos ciclos de crescimento econômico
do país, uma vez que por muito tempo foi o setor produtivo responsável por alavancar
os índices de empregabilidade aferidos pelo Ministério do Trabalho.
Diante desse quadro desenvolveu-se por muito tempo, de um modo geral, um
certo preconceito em relação à construção civil, seja enquanto campo de pesquisa no
meio acadêmico seja quando se objetiva trata-la como setor produtivo de cunho
industrial. TOMASI (1999) discorre sobre essa imagem negativa relacionada à área:
Não obstante a contribuição de estudos econômicos, a imagem negativa do setor já
estava definida, graças a sua dependência do uso da força física e do gesto
artesanal do trabalhador que prevalecia às inovações tecnológicas, representadas
na indústria, pela introdução de máquinas, equipamentos e componentes cada vez
mais performantes que vão revolucionar não somente a fábrica mas a própria
sociedade. (TOMASI, 1999. p.22)
É necessário observar que a construção civil ao longo do tempo não acompanhou
o percurso de industrialização vista em outros setores produtivos. Nela prevaleceu o
trabalho manual e o emprego de máquinas de pequeno porte; ao mesmo tempo em que
não houve uma adequação à organização do trabalho contemporaneamente percebida
no meio industrial. Também, cabe destacar que boa parte das pesquisas científicas
destinadas à área dirige-se ao desenvolvimento de materiais, ao comportamento de
estruturas e à pós-ocupação dos imóveis; não oferecendo de forma efetiva uma
contribuição para o entendimento do setor quanto a sua composição humana. Tendo
em vista as características peculiares do setor, bem como, os conhecimentos e a cultura
ligada aos seus sujeitos integrantes; ainda pouco se sabe sobre os agentes responsáveis
pela execução de obras, no intuito de entender quais as particularidades do seu saber, a
sua interação com os outros membros de sua categoria e a sua adequação às tarefas
empreendias nos canteiros.
O trabalhador da construção civil difere bastante da mão-de-obra encontrada em
outros setores produtivos ligados à atividade industrial no Brasil. Segundo TOMASI
(1999), a mão-de-obra, por seu turno, foi garantida por uma população de migrantes e/ou
imigrantes, basicamente de origem rural e habituada aos trabalhos duros e, de certa forma, aos
procedimentos e ferramentas utilizadas na Construção. Sendo assim, nem sempre o
profissional em seu ingresso possui uma formação ou uma carreira estabelecida no
setor. Na maioria das vezes o indivíduo chega ao canteiro desprovido de
conhecimentos sobre os serviços que lhes serão repassados. Diante desse quadro, em
boa parte dos casos, o vigor físico e a disposição aos trabalhos duros são os fatores
determinantes para a admissão do empregado.
Apesar das inovações tecnológicas e organizacionais inseridas no setor, ainda
prevalece a formação profissional desenvolvida no local de trabalho, a partir de um
aprendizado empírico e fundamentado na observação de outros profissionais. Sendo
assim, o indivíduo, na maioria das vezes, não passa por treinamento preliminar e
chega à obra normalmente na posição de ajudante. No dia-a-dia do canteiro, o contato
com diferentes serviços e as relações pessoais estabelecidas entre seus pares
proporcionam a mudança de posição, fazendo com o trabalhador ascenda para um
158
posto de trabalho mais elevado ao anteriormente ocupado. Em conformidade com esse
entendimento, BARONE (1999) nos diz que:
Os trabalhadores estão agrupados, segundo sua qualificação e de forma
hierárquica, em ajudantes, serventes, meios oficiais, oficiais, encarregados, mestres
de obra e, acima, o engenheiro de obra. [...] Entre as diferentes categorias
ocupacionais, há uma relação pessoal, não explicitada. A partir do nível e
‘qualidade’ dessa relação (‘boa/ruim’), os trabalhadores de menor qualificação vão
sendo ‘escolhidos’ e inseridos no processo de aprendizagem do trabalho, realizado
no cotidiano do canteiro de obras, conduzindo lentamente a uma mudança na
escala da estrutura hierárquica de ocupações. (BARONE, 1999, p.109)
A mudança na escala hierárquica aludida pela autora, na maioria dos casos, tem
a ver com a aquisição de saberes pelo profissional, que tende permitir a progressão
entre as atividades comumente existentes na construção civil. Nesse quadro de
posições, há uma setorização provocada pela natureza do ofício desempenhado, o que
produz classificações como as de: ajudante, meio-oficial, pedreiro, carpinteiro, armador,
instalador, pintor, encarregados e mestres de obra.
Campo dessas transformações, o canteiro de obras na construção civil é o cenário
das relações profissionais e da produção em si. Nele, indivíduos de diversas origens e
qualificações empreendem um trabalho condicionado ao emprego de grande esforço
corporal e de reconhecida periculosidade. Nesse contexto, o trabalhador do setor
adquire os saberes necessários à execução dos serviços, ao mesmo tempo em que
delineiam um perfil profissional característico; geralmente do sexo masculino, jovem e
disposto a empregar, principalmente, a força física como moeda de troca a ser paga
pelo empregador. Como contribuição para essa descrição, TOMASI (1999) contribui
com a assertiva seguinte:
Atrasada, como querem alguns, ou um modo original de fabricação, como querem
outros, o certo é que nos canteiros de obras da Construção Civil predominam,
ainda hoje em todo mundo, atividades ‘simples’, perigosas, insalubres e que
exigem grande esforço físico. Essas atividades definem a necessidade de uma mãode-obra jovem, forte, ‘corajosa’ e de ‘boa vontade’ para conviver com tais
condições, assim como para adquirir os conhecimentos necessários à sua execução.
(TOMASI, 1999, p.7)
Outra característica destacada pelo autor citado tem a ver com a aparente
ausência de transformações ocorridas ao longo do tempo nos locais onde ocorrem as
atividades diárias da construção civil. Segundo o autor citado, os canteiros de obras de
hoje guardam grande semelhança com os da Idade Média, das grandes obras como, por exemplo,
das catedrais que conhecemos daquela época. Ainda, [...] asseguram a semelhança a grande
dependência que a Construção tem da sua mão-de-obra, sobretudo qualificada, ou do trabalho
artesanal [...] (TOMASI, 1999, p.10). Como se tem verificado no Brasil, nas últimas
décadas este quadro tem mudado, ainda que marcas fortes do trabalho artesanal
possam ser facilmente identificadas.
Ao mesmo tempo, a lenta transformação no setor propicia alguns pontos
positivos. A organização do trabalho reproduzida desde o período medieval tende a
159
manter inertes certos saberes que são fundamentais para alguns ramos da construção
civil, como o campo da restauração de imóveis.
As edificações antigas apresentam um caráter construtivo distinto dos métodos
de produção utilizados na atualidade. No passado, a inexistência de uma cadeia
produtiva de materiais de construção obrigava aos trabalhadores terem um domínio
acertado das técnicas a serem empregadas e da exploração de matérias-primas com as
quais se obteriam os elementos constituintes do edifício. Normalmente, os materiais
básicos a serem utilizados eram: a terra, a madeira, a cal, a pedra e, em menor
proporção, o metal. Além desses, em alguns lugares, aproveitavam-se fibras vegetais,
esterco bovino e entre outros que pudesse ser aproveitado eventualmente.
No caso brasileiro, a arquitetura produzida até o fim do período colonial foi
fortemente marcada pelo caráter das relações mantidas com Portugal. A dependência
econômica e cultural em relação ao Reino fez com que as edificações erguidas no Brasil
mantivessem uma marcante uniformidade, construtiva e arquitetônica, ao longo dos
quase quatro séculos de domínio português. Nesse sentido, a construção de
residências, edifícios públicos e religiosos, obras viárias e demais instalações, estiveram
condicionadas a princípios criados na Metrópole e pouco sofreram modificações
quando aqui desenvolvidas.
Apesar da corrente de modernização provocada pelas novas técnicas e materiais
introduzidos a partir do séc. XIX, a dependência do trabalho manual não permitiu o
abandono completo da herança construtiva portuguesa de imediato. Em regiões mais
remotas do país, ainda é possível encontrar edificações produzidas com terra crua e
matérias-primas vegetais, nas quais foram empregados métodos construtivos
semelhantes aos encontrados em imóveis do período colonial. Sobre a predominância
de tais características na construção civil, HARDMAN & LEONARDI (1991) observam
que:
No século XIX e início do atual [séc. XX], entretanto, a construção civil ainda
guardaria muitas das características da arquitetura do século XVIII. Na construção
de casas residenciais, o trabalho ainda era artesanal, sendo empregados muitos
artistas nos serviços de alvenaria e madeira, guarnecimento de janelas e balcões,
utilização de ferro forjado, azulejos etc. (HARDMAN; LEONARDI, 1991, p.39)
Se num passado não muito distante a herança construtiva portuguesa foi
considerada sinal de atraso e de um processo defasado de construir, na atualidade o
desconhecimento das características das construções dos séculos passados, bem como
dos materiais e técnicas utilizados antigamente, tem sido um dos maiores desafios na
conservação do patrimônio arquitetônico brasileiro. Nesse sentido, a dificuldade em se
encontrar profissionais com a qualificação necessária à execução de restaurações é um
dos problemas recorrentes na construção civil voltada para a área. As técnicas
construtivas empregadas nos edifícios do período colonial estão em desuso em boa
parte do país; além disso, o ensino de tais técnicas muitas vezes não faz parte do
cotidiano das obras e de cursos de capacitação que atendem o setor.
No Brasil, pensando-se no mercado existente para a preservação do patrimônio
edificado, poucas empresas do setor construtivo destinam suas ações somente para o
restauro de edifícios. A grande maioria define a atuação no campo da restauração
como uma atividade complementar, sem a exigência de manter um quadro profissional
especializado para tal função. A falta de uma política sólida de investimentos na
160
preservação aliado ao alto custo da mão-de-obra capacitada para a função são
normalmente os maiores empecilhos para a consolidação do restauro como um setor
promissor na construção civil, apesar do grande acervo de bens arquitetônicos em todo
o país. Tal situação interfere diretamente na formação de trabalhadores para atuar na
área, uma vez que não há continuidade nas medidas de incentivo criadas para atender
a demanda de bens que precisam ser restaurados e, por consequência, não incentivam
a formação de mão-de-obra especializada através de cursos profissionalizantes.
Com a evolução das técnicas construtivas e a inserção de materiais
industrializados na construção de edifícios, as práticas derivadas da arquitetura
colonial foram abandonadas gradualmente após as primeiras décadas do séc. XX na
maioria das cidades brasileiras. No entanto, o saber fazer ligado às técnicas
construtivas tradicionais sobreviveu em locais onde a renúncia definitiva destas não foi
possível, seja por fatores econômicos que retardaram o desenvolvimento urbano local
ou pela existência de edifícios que necessitassem de tais técnicas para obras de
manutenções ou reformas e, posteriormente, nas restaurações promovidas pelos órgãos
de proteção do patrimônio cultural.
Tais conhecimentos foram necessários às primeiras obras de restauro promovidas
pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), órgão chancelado
pelo Estado para a proteção do patrimônio cultural brasileiro em atuação no país desde
1937. Conforme Márcia Chuva (2010) nos mostra no trecho abaixo, identificar
profissionais que ainda detinham o saber relacionado às técnicas construtivas antigas
foi fundamental para a restauração de imóveis.
Para fabricação de materiais novos semelhantes aos ‘primitivos’, era necessário
recorrer à mão-de-obra local que dominasse as técnicas antigas, como, no caso dos
carpinteiros empregados [na restauração da casa na Rua do Amparo nº 28 em
Olinda], agregando, assim, trabalhadores cujas funções, ofícios, conhecimentos e
serviços não encontravam mais demanda, substituídos por produtos
industrializados. Eles tornaram-se fundamentais nas restaurações, que
necessitavam da produção artesanal de peças de carpintaria, serralheria, cantaria,
por exemplo e, desse modo, populações desconectadas das malhas de controle do
Estado por se encontrarem isoladas em suas próprias localidades foram sendo
paulatinamente integradas. Essas pessoas foram identificadas e integradas como
trabalhadores ou como fornecedores de peças de produção artesanal, inacessíveis
por estarem fora do circuito comercial e produtivo. (CHUVA, 2010, p.3)
Dessa forma, o IPHAN teve importante contribuição para que determinados
ofícios praticados na arquitetura antiga continuassem a serem usados, principalmente,
nas cidades chanceladas pelo órgão onde se encontram grande parte das edificações do
período colonial. As orientações para a restauração destes imóveis influenciaram na
manutenção de técnicas construtivas e materiais semelhantes aos originais, no lugar da
simples substituição.
Condicionados por estes e outros fatores extrínsecos a esse debate, vários ofícios
tradicionais da construção civil ainda subsistem espalhados pelo país. Em Minas
Gerais, principalmente na região das cidades do Ciclo do Ouro, diversos profissionais
ligados a estas técnicas ainda podem ser encontrados, entre os quais boa parte têm sua
atividade principal voltada a obras de preservação do patrimônio arquitetônico.
161
De imediato, sabe-se que estes trabalhadores normalmente possuem uma faixa
etária mais elevada e aprenderam os ofícios tradicionais a partir do tirocínio in loco,
apreendido a partir do contato com as técnicas construtivas antigas. O conhecimento
adquirido, em boa parte dos casos, desenvolveu-se como comumente ocorre na
construção civil, baseado na observação de outros trabalhadores em atuação e no
cotidiano do canteiro de obras. No contexto que trata da forma de apreensão do
trabalho, os autores, citados anteriormente, fazem a seguinte referência sobre a
transmissão de saberes entre os indivíduos a serem pesquisados:
Nota-se no sítio esta clara relação de transmissão do conhecimento, o qual se dá
prioritariamente pela relação mestre/aprendiz. [...] Ainda dentre os profissionais
identificados, notou-se a presença de alguns com tradição familiar no ofício ou
ainda com aprendizado na Europa. (ALONSO; ARAÚJO, 2010, p.48)
A transmissão do conhecimento conforme o registrado por ALONSO & ARAÚJO
(2010) se assemelha bastante com o método difundido no período colonial, de acordo
com a tradição difundida pelas Corporações de Ofícios da Idade Média. No Brasil, no
entanto, cabia às irmandades religiosas e confrarias o papel desenvolvido pelas
corporações, como regulador das atividades produtivas e do ensino dos ofícios
(HARDMAN; LEONARDI, 1991).
Nesse quadro de transmissão de saberes, ao mesmo tempo semelhante pelo
método de aprendizado mas distinto pelo caráter do serviço a ser realizado nas
restaurações, é preciso compreender por que alguns trabalhadores da construção civil
acabaram seguindo um caminho diferenciado, adquirindo assim uma qualificação
distinta dos demais profissionais da área. É importante considerar também, que
somente o contato com as técnicas construtivas do passado talvez não seja o fator
determinante nesse quadro; haja vista que, em locais onde são encontrados imóveis
construídos até a primeira metade do séc. XIX, a arquitetura antiga coexiste com a
praticada após esse período.
Com isso, faz-se necessário aumentar o foco de observação para os fatores
socioculturais estabelecidos em torno das funções exercidas no nicho da construção
civil no qual se estabelece o recorte. O caráter de rememoração de um passado distante
relacionado ao ato de restaurar um imóvel antigo pode ser um dos motivos a
influenciar a escolha deste profissional, no intuito de restituir a sensação de
estabilidade e continuidade provocada pela arquitetura. Com isso, podemos recorrer a
HALBWACHS (2006) no entendimento desse sentimento:
A estabilidade da habitação e sua aparência interior não deixam de impor ao grupo
a imagem pacificante de sua continuidade. Anos de vida comum passados num
contexto a esta altura uniforme mal se distinguem uns dos outros, e se poderá
duvidar que muito tempo tenha passado e tenhamos mudado imensamente no
intervalo. Isso não está totalmente errado. Quando inserido numa parte do espaço,
um grupo o molda à sua imagem, mas ao mesmo tempo se dobra e se adapta a
coisas materiais que a ela resistem. O grupo se fecha no contexto e construiu. A
imagem do meio exterior e das relações estáveis que mantém com este passa ao
primeiro plano da ideia que tem de si mesmo. [...] (HALBWACHS, 2006, p.159)
162
Provocados pela ideia de uma continuidade estabelecida permitida pelos
edifícios, este autor ainda nos infere que “quando um grupo humano vive por muito tempo
em um local adaptado a seus hábitos, não apenas a seus movimentos, mas também seus
pensamentos se regulam pela sucessão das imagens materiais que os objetos exteriores
representam para ele [...]” (HALBWACHS, 2006, p.163). Com isso, percebemos que a
existência de locais onde se salvaguarda a arquitetura dos séculos anteriores pode
influenciar nos indivíduos o intuito de manter vivos os laços com os objetos materiais
que representam este passado. Nesse sentido, a opção pela atuação no restauro de
imóveis antigos pode ter sido originada em uma experiência coletiva e não somente
individualmente, conforme as oportunidades profissionais oferecidas ao trabalhador a
ser estudado.
Ainda cabe discutir a constituição das atividades executadas pelos trabalhadores
da construção civil que atuam na restauração a partir da concepção de ofício. No
contexto estudado tratamos de práticas que não estão encerradas na fragmentação do
saber, mas na exploração de todas as possibilidades técnicas envolvidas na recuperação
de materiais e elementos a serem restaurados. Pela diversidade de soluções
construtivas empregadas na arquitetura antiga, o profissional atuante nessa área
precisa explorar habilidades que se dão em conjunto e não permitiriam aplicação do
saber de forma dissociada. Para compreensão de ofício nos moldes tratados,
recorremos ao trecho abaixo referendado em TOMASI & SILVA (2007):
O ofício, portanto, no sentido que sempre balizou as práticas artesanais e que
muitos sociólogos do trabalho ainda hoje reclamam, é o encontro de habilidades
técnicas, intelectuais e manuais associadas a uma experiência. É, finalmente, o
reconhecimento social da posse de um saber, de um saber-fazer, de uma
identidade, construídos a partir desta tripla habilidade, esta experiência. (TOMASI;
SILVA, 2007, p.6)
Estes autores recorrem à ideia de que o ofício tem a ver com o reconhecimento
social que por consequência produz identidade, fato que concernentemente condiz
com a proposta da pesquisa em andamento. Ao ser reconhecido pela função exercida
no campo da restauração, o profissional a ser estudado adquire fundamental
importância, uma vez que existe em todo o país um grande número de bens que
demandam de preservação.
De acordo com a metodologia empregada no restauro, deve-se sempre preferir a
manutenção de técnicas e materiais semelhantes aos originais. Segundo a Declaração de
Amsterdã de 1975, “[...] é importante atentar para que os materiais de construção tradicional
ainda disponível e as artes e técnicas tradicionais continuem a ser aplicados” (IPHAN, 2004,
p.209). Igualmente, a Carta de Restauro de 1972, “[...] uma exigência fundamental da
restauração é respeitar e salvaguardar a autenticidade dos elementos construtivos da obra. Esse
princípio deve sempre guiar as escolhas operacionais.” (BRANDI, 2005, p.244).
Por fim pretende-se na pesquisa empreendida entender que caminhos
conduziram alguns trabalhadores da construção civil à atuação na restauração de
imóveis, sendo que possivelmente esse ato não esteja limitado às situações vivenciadas
nos canteiros de obra. Dessa forma, o tema abordado permite uma investigação de
processo, no qual se desenvolve a formação do trabalhador diante sua natureza, suas
características e as exigências existentes na trajetória profissional desse indivíduo; ao
163
mesmo tempo em que possam ser encontradas motivações de cunho sociocultural na
“opção” ou na “falta de opção” por este campo dentre outros no setor.
2. Método de Análise Usado na Pesquisa
O desenvolvimento da pesquisa será realizado em duas etapas. A primeira delas
pretende construir um modelo teórico inicial para referendar a análise dos dados
obtidos na etapa de investigação de campo. Antes de tudo, é preciso definirem-se
algumas concepções metodológicas, necessárias à compreensão do objeto de pesquisa
de forma a enquadrar-se no campo da educação profissional e tecnológica.
Na análise a ser inferida, sabe-se que o trabalhador estudado domina
competências que o singulariza de outros de sua categoria, como: a habilidade para
trabalhos detalhados, a compreensão do funcionamento das técnicas construtivas
antigas, o conhecimento da possibilidade de uso e da limitação dos materiais de
construção empregados nas edificações dos séculos passados, a posse de um senso
artístico e estético razoavelmente elaborado e, também, uma vocação para trabalhos
artesanais. Sem desqualificar o individuo que atua na construção civil convencional,
que também constrói sua carreira a partir de experiências e conhecimentos específicos
permitidos por sua atuação, entendemos que o profissional inserido na área da
restauração necessita reunir alguns saberes que o qualifica para tanto. Esse arcabouço
de saberes são os que, ao mesmo tempo, o modifica e o distingue dos outros membros
de sua categoria profissional, permitindo o afastamento da prática que lhes é
concernente daquelas que são comumente reconhecidas no segmento construtivo.
A luz desse entendimento pode-se inferir que os trabalhadores a serem
estudados são transformados pelo seu trabalho; no sentido de que o caráter da atuação
do indivíduo permite, por meio de seus atos, interagir com seu objeto de trabalho. Por
consequência disso, ao atuar, por meio desse movimento, sobre a Natureza externa a
ele e ao modificá-la, ele modifica, ao mesmo tempo, sua própria natureza. [...] (MARX,
1996, p.297)
Na área da construção civil na qual se desenvolve este estudo, tem-se a
oportunidade de conhecer que determinados indivíduos interagem com seu objeto
trabalho e desta relação desenvolvem uma linguagem própria de atuação; como, por
exemplo, no caso de mestres canteiros que, de acordo com o conhecimento popular,
“conversam” com as pedras para obter o produto final de seu trabalho. Este ato de
“conversar com o objeto” se dá por meio do conhecimento adquirido, na experiência
profissional e na interação entre homem e natureza. Nesse sentido, também se pode
recorrer a BERGER & LUCKMANN (2010) que oferece a seguinte compreensão:
A expressividade humana é capaz de objetivações, isto é, manifestações em
produtos da atividade humana que estão ao dispor tanto dos produtores quanto
dos outros homens, como elementos que são de um mundo comum. Estas
objetivações servem de índices mais ou menos duradouros dos processos
subjetivos de seus produtores, permitindo que se entendam além da situação face a
face em que podem ser diretamente apreendidas. [...] (BERGER; LUCKMANN,
2010, p.52)
Desta forma, como método de validação das hipóteses apresentadas, na segunda
etapa dar-se-á a partir da realização de entrevistas semiestruturadas, que contribuirão
164
com o entendimento de que a trajetória profissional do trabalhador atuante na
restauração decorre de uma interação socioprofissional, na qual esse indivíduo é
transformado, ao mesmo tempo, por sua prática na construção civil e pelo meio no
qual está inserido. Com isso, o nicho profissional dos indivíduos estudados teria
incisiva influência sobre o caminho a ser seguido, no sentido de que diante da
inexistência certas condições, necessárias ao desenvolvimento dos conhecimentos
voltados ao trabalho de restauro, não surjam àquelas que farão com que o trabalhador
esteja apto para tal.
Considerações Finais
Diante das perspectivas apontadas pelo aporte inicial da pesquisa, tem-se o
entendimento que os fatores, que conduzem a trajetória profissional dos trabalhadores
para o campo da restauração e não para os demais da construção civil, são fruto de
uma inter-relação entre as oportunidades profissionais e os saberes disponíveis a serem
apreendidos. Sendo assim, o caminho seguido por este indivíduo se caracteriza por
uma convergência entre habilidades possuídas e um ambiente gerador; ambiente este
possivelmente relacionado a locais que dispõem de imóveis antigos.
Desta forma, o trabalhador inicia sua carreira, comumente, como qualquer agente
da construção civil, exposto aos mesmos percalços existentes a todos os profissionais
do setor. Porém, a possibilidade de adquirir os conhecimentos necessários à
restauração tenderia a transformar e a caracterizar esse indivíduo, de acordo com os
valores existentes no meio. Com isso, pode-se presumir que a posse do conhecimento
advém de uma interação socioprofissional, na qual objeto de trabalho e trabalhador
interagem a partir de uma linguagem singular, constituída no cerne de um campo
profissional específico.
Referências
ALONSO, Paulo H.; Araújo, Guilherme M.. Técnicas Construtivas Tradicionais em
Minas Gerais: Sítios, Localidades e Ofícios. In: Castriota, Leonardo B. (2010) Mestres
Artífices da Construção Tradicional – Minas Gerais. IPHAN/Monumenta. p. 37-62.
Disponível em: http://issuu.com/alexisazevedo/docs/caderno_memoria_mg. [Acesso
em: 27 Ago. 2011].
BARONE, Rosa E. M.. (1999) Canteiro-Escola: trabalho e educação na construção civil.
São Paulo: Educ. 400p.
BERGER, Peter L.; Luckmann, Tomas. (2010) A Construção Social da Realidade. 32º Ed.
Petrópolis: Vozes. 248p.
BRANDI, Cesare. (2004) Teoria da Restauração. Cotia: Ateliê. 262 p.
CASTRIOTA, Leonardo B.. O Registro dos Mestres Artífices: Preservação do saber
fazer da construção tradicional. In: Castriota, Leonardo B. (2010). Mestres Artífices da
Construção Tradicional – Minas Gerais. IPHAN/Monumenta. p. 37-62. Disponível em:
http://issuu.com/alexisazevedo/docs/caderno_memoria_mg [Acesso em: 27 Ago.
2011].
165
CHUVA, Márcia R. R. (2010) Investigando as restaurações fundadoras do patrimônio:
das práticas rotineiras às normas técnicas. In: Nos Arquivos do Iphan - Revista eletrônica
de pesquisa e documentação. IPHAN: Rio de Janeiro. 4p. Disponível em
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166
UTILIZAÇÃO DA CONSERVAÇÃO PATRIMONIAL
MATERIAL COMO INSTRUMENTO DE INCLUSÃO SOCIAL:
AVALIAÇÃO DO PROGRAMA ESCUELAS TALLER NO
NORDESTE DO BRASIL
Karla Nunes Penna & Elisabeth Taylor
Resumo
O objetivo desse artigo é discutir estratégias locais para fortalecimento de
capacidades regionais, através da avaliação de programas de treinamento para
a conservação patrimonial localizados no nordeste do Brasil 65, usando como
estudo de caso as Oficina-escolas (Escuelas Taller) implantadas nas cidades de
São Luís, João Pessoa e Salvador. O foco é discutir a utilização de programas
de treinamento para a conservação como instrumento de inclusão social,
investigando questões decorrentes dessa associação e desafios a serem
superados para garantir o desempenho apropriado e a continuidade de
programas dessa natureza.
Palavras-chaves: avaliação, conservação patrimonial, inclusão social, Escuelas
Taller, nordeste do Brasil.

Curtin University of Australia, School of Education. [email protected]
[email protected]
1 Esse estudo é resultado de uma pesquisa de mestrado em Patrimônio Cultural, realizada pelos autores
deste artigo, através da Curtin University of Australia. Essa foi uma pesquisa etnográfica realizada em
2010/2011, que incluiu coleta e análise de documentação, entrevistas semi-estruturadas e observação
direta in loco, com o objetivo de desenvolver uma análise de performance de centros de treinamento para a
preservação, usando como estudo de caso não só as oficinas escolas mas também outros programas de
formação para a conservação localizados na região nordeste do Brasil. A investigação foi focada em obter e
analisar dados com o objetivo de identificar problemas relacionados à educação para a preservação
pertinentes a esses centros de treinamento.
 CECI.
167
Introdução
Ensinar não é tranferir conhecimento, mas criar possibilidades para a
sua produção ou sua construção. Quem ensina aprende ao ensinar, e
quem aprende ensina ao aprender. Paulo Freire
As dificuldades sociais e econômicas as quais os países em desenvolvimento
estão sujeitos afetam fortemente a preservação do patrimônio dos centros históricos
localizados nessas áreas. A prioridade de ação política tem como foco questões básicas
de sobrevivência, tais como redução da pobreza, estabelecimento da equidade e da
sustentabilidade, luta para atender às necessidades básicas como alimentação,
moradia, cuidados médicos e acesso à educação, o que faz com que a conservação
patrimonial fique relevada a segundo plano dentro do contexto urbano.
Esses problemas sociais e econômicos afetam fortemente o desenvolvimento de
processos educativos, frequentemente tornando impraticáveis iniciativas de promoção
social e econômica sustentáveis. Ao mesmo tempo, a expansão econômica
ambientalmente insustentável em países em desenvolvimento, conduz a um perigoso
processo de degradação dos recursos naturais e culturais, dos quais as pessoas imersas
na pobreza dependem para sua sobrevivência (King, 1999)
Analisando o contexto das cidades históricas do nordeste do Brasil, de um lado
podemos observar enormes e valiosos acervos a serem mantidos, com prédios
apresentando alto estágio de degeneração, muitos abandonados, e áreas urbanas
degradadas. Por outro lado, temos os centros históricos abrigando comunidades de
baixíssima renda, inseridas e contribuindo para manter um difícil e complexo ambiente
social.
Na tentativa de associar as questões sociais e a preservação do patrimônio,
diversos programas tem sido implementados visando capacitar jovens em situação de
vulnerabilidade social para executar serviços de conservação de prédios e centros
históricos, com o objetivo de incluir essas pessoas em uma futura carreira no mercado
da construção civil. Esse tipo de programa de capacitação tem um forte apelo social, e
tem se apresentado como uma forma indireta de redução da pobreza através de
168
treinamento profissional, buscando geração de oportunidade de emprego e renda e
integração desse público no mercado de trabalho.
Um importante exemplo desse tipo de ação é o Programa Oficina-Escola. A
partir de 1991 os governos espanhol e brasileiro entraram em acordo para a
implementação do programa Escuelas Taller no nordeste do Brasil, conhecido pelo
nome de Oficina-Escola nas cidades de João Pessoa e São Luís e como Escola-Oficina
em Salvador (Agencia Española de Cooperación Internacional y Desarrollo – AECID,
2010). Após mais de 20 anos de implantação do primeiro projeto na cidade de João
Pessoa, é importante fazer uma avaliação desse tipo de iniciativa, com foco (1) na
discussão sobre a utilização de programas de conservação do patrimonial cultural
como instrumento de inclusão social e (2) nos desafios a superar para viabilizar o
funcionamento de programas dessa natureza.
É impossível dentro do escopo desse artigo discutir por completo esse tópico
mas alguns pontos importantes podem ser abordados visto que são familiares aos
profissionais envolvidos com o sistema de treinamento para a preservação.
1. Sites culturais, comunidades locais e pobreza
As principais questões a serem enfrentadas pelas cidades que possuem
patrimônio cultural a preservar geralmente não giram em torno de questões culturais e
sim de aspectos sociais, tais como: a luta pela redução da pobreza, promoção de
programas para a garantia dos direitos civis e políticos das comunidades locais,
melhoria dos níveis de empregabilidade e renda, busca por maior qualidade de
habitação e acesso à educação, serviços de saúde e equipamentos sociais (King, 1999).
Vários outros problemas são resultados de rápido desenvolvimento,
disposições legais insuficientes, dificuldade de coordenação interdepartamental e de
integração de políticas, falta de planejamento e monitoramento, e falta de recursos em
comparação com a demanda, entre outros (International Centre for the Study of the
Preservation and Restoration of Cultural Property - ICCROM, 1995). Para agravar a
situação, ou como uma conseqüência dela, o Brasil é um país que apresenta um dos
mais altos níveis de desigualdade econômica e social entre o grupo G20 (OXFAM,
169
2012). A longo prazo, essa desigualdade crescente torna improvável um crescimento
sólido o suficiente para melhorar o estado atual de pobreza em determinadas áreas do
país.
Ao examinar algumas questões referentes a preservação cultural levantadas
durante essa investigação e também observando as rápidas mudanças que ocorrem
atualmente no ambiente natural e seus impactos sobre o patrimônio cultural e
assentamentos humanos, podemos observar que, a fim de alcançar práticas de sucesso
em formação para a conservação, é imperativo saber não só como lidar com estas
questões relacionadas à pobreza, mas também saber gerir o sensível equilíbrio entre
políticas, instrumentos, estratégias e as atores interessados (Sullivan, 2004).
Sítios considerados patrimônio mundial demandam uma gestão complexa.
Analisando as cidades utilizadas como estudo de caso nessa pesquisa, São Luís por
exemplo, é o maior centro histórico na América Latina. Mais de 5.600 edifícios
distribuídos em 220 hectares, prédios de enormes dimensões, grande parte
abandonados ou servindo como moradia de parte das pessoas mais pobres da cidade
(Nunes, 2005). Devido a esse difícil contexto sócio-econômico, os centros históricos
apresentam todo o tipo de problema social: alto índice de criminalidade, prostituição,
tráfico de drogas, violência, expondo os moradores a uma vida instável e insegura.
A situação do centro histórico de São Luís é muito semelhante com as outras
cidades históricas do nordeste do Brasil, consideradas ou não patrimônio da
Humanidade pela UNESCO (United Nations Educational, Scientific and Cultural
Organization). Apesar de ter histórias, influências e assentamentos urbanos diferentes,
há várias semelhanças entre essas cidades, que se conectam através da similaridade do
contexto econômico e social.
Trabalhar com patrimônio cultural em países em desenvolvimento não é uma
tarefa fácil. Além das questões sociais e econômicas, existe uma grande preocupação
com a falta de especialistas qualificados que garantam a conservação do patrimônio e o
uso sustentável dos recursos (Albert, Bernecker, Perez, Thakur, e Nairen, 2007).
Preservação demanda pessoas treinadas com habilidades necessárias para conduzir
intervenções e processos de decisão levando em conta a complexidade e a
170
multidisciplinaridade desse campo. Não apenas treinadas para trabalhar levando em
consideração a preservação do patrimônio natural e cultural em contextos de pobreza,
mas principlamente considerando que existe acima de tudo um "patrimônio vivo",
pessoas que vivem, trabalham e usufrem de locais históricos em suas vidas cotidianas
(Thakur, 2007). Além disso, sítios históricos têm que atender a exigentes e inflexíveis
legislações nacionais e recomendações internacionais, e ainda devem atender às
demandas econômicas da sociedade nos quais estão inseridos. Agravando a situação,
os problemas sistêmicos profundamente enraizados nos países em desenvolvimento,
tais como corrupção, violência, e injustiça social, tornam mais difícil as possibilidades
de desenvolvimento de políticas de sucesso (The World Bank, 1999).
Como conseqüência, muitas vezes os resultados dos programas não atendem as
demandas das comunidades locais. Sendo assim, encontrar maneiras de conciliar os
problemas decorrentes do contexto local e as ações de treinamento para a conservação
e preservação tem provado ser um desafio a ser superado por governos, instituições,
gestores e profissionais.
2. Programas de formação para a conservação e inclusão social
O objetivo do treinamento para a conservação é garantir que os procedimentos
sejam executados dentro do quadro legal e técnico estabelecido pelos orgãos gestores e
reguladores da preservação, considerando ainda as qualidades e os valores de cada
sociedade, o contexto cultural, social e econômico local, e os riscos e pressões a que
cada sítio está submetido (International Centre for the Study of the Preservation and
Restoration of Cultural Property – ICCROM, 2010). O treinamento para a conservação é
uma ação interdisciplinar, que demanda interação entre comunidades locais, os setores
público e privado e os todos os outros atores envolvidos e interessados no processo de
preservação. Gilmour (2007) enfatiza que é importante considerar que a preservação
depende do que as pessoas acham que vale a pena preservar, em um determinado
momento de suas histórias, e dentro de um contexto específico. Sendo assim, as
estratégias de treinamento para conservação devem ser desenvolvidas com base nessa
percepção das comunidades locais.
171
Durante a história da conservação patrimonial não houve programa de
treinamento ideal, e sim uma longa história de tentativas, experiências e reflexões, que
geraram uma grande quantidade de recomendações e propostas de formação. A partir
da Convenção do Patrimônio Mundial (UNESCO, 1972) em diante, um número
crescente de programas de formação foram organizados em universidades e
instituições de formação técnica. Em paralelo com essas iniciativas, o conceito de
patrimônio em si tem sido ampliado, principalmente na segunda metade do século 20,
com o envolvimento de um número sempre crescente de disciplinas e de partes
interessadas no processo de treinamento (Jokilehto 2006).
Por um longo tempo, os governos de países em desenvolvimento têm investido
grande esforço no sentido de implementar programas de treinamento que auxiliem a
revitalização do patrimônio. Estas iniciativas são de grande importância para a
preservação de bens culturais e para as comunidades locais. Investimentos em
conservação do patrimônio construído têm sido reconhecidos por instituições
internacionais de desenvolvimento como fatores importantes para a redução da
pobreza. Documentos recentes do Banco Mundial elaborado no âmbito do tema
"Desenvolvimento Ambiental e Socialmente Sustentável (ESSD)" consideram os
investimentos em conservação de áreas históricas como estratégias viáveis para a
redução da pobreza, especialmente por meio de projetos que favoreçam a criação de
novos empregos e mão de obra qualificada, resultando em redução da pobreza e uma
maior inclusão social.
3. O programa Escuelas Taller no Brasil
A situação social que os países em desenvolvimento apresentam têm
despertado o interesse da comunidade internacional, especialmente as organizações
interessadas em promover benefícios econômicos e redução da pobreza, através de
programas de preservação do patrimônio cultural, tais como, Banco Mundial e
UNESCO. Muitas parcerias também tem sido estabelecidas entre países latinoamericanos e europeus, buscando o desenvolvimento sustentável da preservação
através de programas com foco na promoção da inclusão social (ICCROM, 1995).
172
Nesse sentido, uma importante iniciativa foi realizada pelo governo espanhol,
chamada Oficina-Escola (Escuelas Taller). Esse projeto tem como objetivo proporcionar
a jovens carentes, entre 18 a 23 anos, em situação de vulnerabilidade social,
oportunidades de inserção no mercado de trabalho e de integração social, por
intermédio da formação de mão-de-obra para a recuperação do patrimônio cultural, e
da complementação da escolaridade formal dos alunos (AECID, 2010). O projeto
Oficina-escola abrange mais que uma mera qualificação de mão-de-obra. Visa também
a complementação da educação formal. Teoria e prática são indissociáveis nesse
contexto, estabelecendo uma ligação entre trabalho manual, valorização do patrimônio
e promoção da cidadania.
O projeto baseado no programa espanhol Escuelas Taller y Casas de Ofícios,
iniciado em 1985 em Madri, está no Brasil desde 1991, com escolas de João Pessoa
(implantanda em 1991) , de Salvador (1997) e de São Luís (2006). As oficinas-escolas são
centros de trabalho e formação, onde jovens que vivem em situação de risco social
recebem formação profissional, ao mesmo tempo que praticam um ofício tradicional
específico dentro de um canteiro de uma obra de restauro (OECD, 1998). A essência da
metodologia da oficina-escola é de "aprender a fazer, fazendo" e, enfatizando o "como
fazer", o "porquê fazer" e "para que fazer" (FUMPH, 2006).
Analisando dados estatísticos relacionados ao público alvo, podemos observar
que entre os 191 milhões de brasileiros, 34,6 milhões são jovens de 15 a 24 anos de
idade (IBGE, 2010) e 14,5% da população vivem em situações precárias de extrema
pobreza (linha de indigência). Temos assim cerca de 5 milhões de jovens sob condição
social vulnerável, com potencial de serem envolvidos neste tipo de curso de formação
profissional. Se considerarmos aqueles que estão abaixo da linha de pobreza (não
considerados em pobreza extrema), mas ainda sem condições adequadas de vida,
temos o índice de 34,1%, ou seja, cerca de 11,8 milhões de pessoas. Isso significa que
temos quase 17 milhões de jovens expostos a todos os tipos de risco social, que vivem
sem oportunidades, dentro de um mundo cercado por violência e injustiça. Programas
de formação dirigidos a esses jovens são uma forma de ajudar a aliviar a situação. Eles
podem fornecer formação profissional a esses jovens e prover acesso a um outro
mundo com outras possibilidades diferentes das quais eles possuem atualmente.
173
A AECID, instituição responsável por fomentar essa iniciativa e também por
parte do suporte financeiro das Oficinas-Escolas, não impõe um projeto definitivo nem
um modelo a seguir, e sim um projeto adequado a cada cidade, desenvolvido pela
equipe gestora local, baseado em um intercâmbio de experiências e conhecimentos que
a Espanha tem em determinadas áreas (Mansilla, 2007). Em cada cidade, a
implementação do projeto Oficina-escola demandou a constituição de parcerias
públicas e privadas para viabilizar os programas. O projeto Oficina-escola teve como
prioridade criar condições para que a própria comunidade possa participar do
processo de revitalização, promovendo sua inclusão como parte atuante nas decisões,
como residentes conscientes de suas responsabilidades, direitos e deveres e como mão
de obra qualificada no processo de preservação e conservação de seu patrimônio
cultural.
No entanto, apesar de todo o mérito social que esse programa possui, algumas
questões decorrentes do uso do restauro como instrumento de inclusão social precisam
ser discutidas. A fim de se alcançar um contexto educacional e formativo sustentável
muitos problemas precisam ser superados.
4. Desafios a serem superados
Associar a demanda do mercado por pessoas treinadas em conservação com a
necessidade de oferecer mais oportunidades de emprego e renda a jovens em situação
de vulnerabilidade virou uma constante a nível nacional, que muitas vezes pode não
resolver nem um problema nem outro. Independente do forte apelo social dessas
iniciativas, a abordagem prática desses programas tem que ser discutida.
A pergunta a ser respondida é se é válido e eficiente _social e tecnicamente
falando_ usar programas de conservação do patrimônio como instrumento de inclusão
social. Quais são os benefícios reais desse tipo de associação? Sem dúvida, programas
dessa natureza trazem a curto prazo fortes benefícios sociais, gerando, além de uma
renda temporária por dois anos, oportunidades para essas pessoas de serem inseridas
no mercado de trabalho ao mesmo tempo que treina profissionais para atuar nas obras
de conservação. Segundo alguns participantes da pesquisa, essa associação restauroinclusão social é possível e trás vários benefícios associados. Primeiro, como o jovem
174
integrante da Oficina-escola se mantem na escola formal, ele agrega o benefício da
formação escolar tradicional à formação profissional. Segundo, os jovens que
trabalham com um patrimônio que pertence a eles e com o qual eles se identificam
“enxergam” e defendem melhor seus monumentos, empreendendo esforço e dedicação
laboral para recuperar sua própria cultura.
O diferencial do treinamento é a evocação do sentimento de pertencimento, a
apropriação sentimental, e consequentemente a responsabilidade associada de cuidar
do que é seu. O valor cultural único, significativo para a comunidade no qual o jovem
está inserido associado à capacitação técnica e à educação complementar (como a
formação para a cidadania), gera resultados mais efetivos do processo de educação
para a preservação, tornando-a mais abrangente e eficaz. No entanto, para atingir essa
efetividade, existem muitos desafios a superar. Entre outras questões, os seguintes
problemas foram identificados pelos participantes do estudo:
(1) O primeiro ponto levantado é que muitas vezes a implantação desses
programas é feita sem um apropriado conhecimento do mercado, um estudo
compreensivo para identificar quais cursos promover para que esse jovem seja
absorvido após o treinamento com mais facilidade, atendendo as demandas locais do
setor da construção civil. O planejamento dos treinamentos devem ser baseados na
investigação do que o mercado realmente precisa, que tipo de profissionais precisam
ser formados. Conhecendo exatamente o que o mercado precisa e as habilidades
requeridas, a formação pode ser mais direcionada, visando preencher as lacunas
existentes dentro dos contextos locais.
(2) Em segundo lugar, programas práticos de treinamento para a conservação
demandam grande engajamento do aprendiz com o ambiente de trabalho. Qualificação
é resultado de um processo de aprendizado prolongado dada a necessidade de
envolvimento e compreensão de técnicas e procedimentos. Com as obras de restauro
_canteiro prático dos treinamentos_ sendo regidas pela Lei n. 8.666 (que prevê que a
execução de obras da construção civil será concedida à empresa que oferecer proposta
com menor preço e/ou execução em menor prazo), torna-se praticamente inviável o
treinamento adequado dos aprendizes. A pressão pela execução rápida afeta a
transmissão do conhecimento e consequentemente a qualidade do ensino.
Outro
175
problema relacionado à mesma questão é que o aprendiz, o mestre de obra e qualquer
outro profissional relacionado com os trabalhos de conservação tem que estar
obrigatoriamente vinculados a uma empresa ou construtora, visto que só a elas é
concedido o direito de intervir fisicamente nos prédios.
(3) Outra questão é que esses programas objetivam treinar pessoas muitas vezes
sem preparo educacional formal. Os programas estão sendo direcionados para jovens
que não possuem conhecimento prévio de construção civil, e que muitas vezes mal
sabem ler e escrever. Esse público tem um ritmo diferente de aprendizado. Deixando
um pouco à parte a questão patrimonial e analisando a situação social dos jovens-alvo
desses programas, verificamos que eles se encontram numa situação social
desfavorável onde muitos estão envolvidos com drogas, com prostituição, estão fora da
escola porque as famílias precisam que trabalhem para complementar a renda, muitas
vezes engajados em trabalho semi-escravo, imersos em famílias desfuncionais. Essas
pessoas requerem assistência específica e metodologias diferenciadas com vistas a
promover uma aprendizagem eficiente. A capacitação técnica é a chave do
treinamento, mas estratégias mais elaboradas de associação da formação profissional
ao contexto social são fundamentais na busca do desenvolvimento social e pessoal
desses aprendizes.
(4) A fluência da transmissão de conhecimento entre o mestre e o aprendiz
também afeta o treinamento. Existe um abismo de conhecimento entre os mestresartífices e os jovens. De um lado, o conhecimento que levou à construção patrimônio
brasileiro não foi um conhecimento popular, foi um conhecimento erudito, onde as
pessoas que não frequentavam a escola formal tinham formação de qualidade; esse é o
background dos mestres. Do outro lado, temos os jovens em risco social, com
dificuldade
de
absorver
o
conhecimento
e
demonstrando
problemas
de
comportamento, interação social e formação elementar. Foi observado durante a
pesquisa que os mestres tem dificuldade em lidar com os aprendizes e acabam por
tratá-los como “peões de obra”. Issso torna a relação mestre-aluno difícil, e dificulta a
transmissão de conhecimento. Além disso, as gerações são muito diferentes. A geração
dos jovens, com outra leitura do mundo, não está muitas vezes disposta a se engajar
em uma trasmissão lenta do conhecimento, de se tornar discipulo de um mestre em
176
anos de aprendizado contínuo. A própria construção civil contemporânea demanda
um tempo de formação mais rápida, com aplicação de novas tecnologias e
metodologias. É necessário haver uma conexão entre essas duas “línguas”. Essa nova
linguagem também demanda informatização, enquanto muitos mestres mal sabem
ligar um computador.
(5) A falta de reconhecimento desses cursos pelo Ministério da Educação - MEC
também foi apontado como um problema a superar.
O certificado emitido pelas
Oficinas-escolas não possui a selo do MEC o que significa que não é uma ação
educativa inserida no processo formação regrada e continuada oficial. É importante
que esse período dentro da oficina escola seja homologado dentro do sistema
formativo o país. Enquanto isso não acontece, as oficinas fornecem um ensino que não
pode ser aproveitado na grade oficial de educação no Brasil, que nem dá uma titulação
nem tem interface com a formação tradicional. Mesmo que as oficinas estejam
provendo uma educação de excelência, esse conhecimento não está sendo integrado no
sistema oficial de ensino.
(6) O inexistente acompanhamento do ex-aluno também foi um fator apontado
pelos participantes como um problema. Nenhum dos centros de treinamento sob
estudo possui um mecanismo sistematizado de monitoramento do aluno póstreinamento, apesar de todos os entrevistados ressaltarem o quanto isso seria
importante, visto que isso forneceria um feedback essencial sobre se o ensino fornecido
está sendo suficiente e adequado ao que o mercado e instituições demandam. A
escassez de recursos foi a justificativa geral apresentada para a não avaliação pósimplantação dos projetos. Há a falta de recursos, sempre presente em países em
desenvolvimento, onde a obtenção de recursos para iniciativas de preservação do
patrimônio exige forte articulação política e esforços institucionais integrados, e mesmo
assim, a provisão de recursos é irregular e limitada. O recurso para as oficinas em geral
é suficiente para o desenvolvimento do curso de formação específica, mas é
insuficiente para financiar outras tarefas de gestão, tais como monitoramento e
avaliação.
177
Conclusão
Em meio as demandas a serem atendidas no campo da preservação do patrimônio, a
preocupação com a educação para a conservação tem sido contínua. O assunto é
complexo e gera várias questões sobre a qualidade da capacitação fornecida pelas
oficinas escolas e por outros centros de formação que visam a inclusão social além do
treinamento para a conservação. As questões variam desde problemas financeiros e
falta de apoio político e institucional para esses programas, até assuntos mais
específicos, tais como o escopo do curso, conteúdo, metodologia de ensino, associação
de teoria e prática, a qualificação dos professores e mestres, o perfil dos participantes e
da inter-relação entre o grau desejado de educação e o grau real alcançado.
Baseado nos documentos analisados é difícil medir em que extensão está havendo um
real desenvolvimento social, ou mesmo profissional, proveniente do treinamento
fornecido pelas Oficinas-escolas. A inclusão social através das atividades de
preservação do patrimônio cultural pode funcionar enquanto formação para a
cidadania mas é necessário o desenvolvimento de avaliações qualitativas e de estudos
de impactos sociais para verificar se os treinamentos estão sendo realmente efetivos
quando se trata de capacitação profissional. As avaliações baseadas em indicadores
qualitativos como a eficácia da capacitação, o nível de aprendizado, ou se o
aprendizado fornecido gerou novas oportunidades de emprego ou incremento real de
renda proveniente de um trabalho formal estável, podem fornecer importante feedback
sobre o processo de treinamento, importante para a melhoria da qualidade do
programa (Patton, 1987).
A conservação do patrimônio histórico de áreas urbanas degradadas, centros
urbanos, e muitos outros bens culturais de uma sociedade, pode ser encarado como
atividades importantes que procuram aliviar a pobreza e aumentar a coesão social
através da valorização da história de uma nação (Jokilehto, 2006). As Oficinas-escolas
fazem parte das experiências de planejamento integrado no Brasil, e tem reconhecida
importância em cidades históricas nas quais foram implementadas.
No entanto, apesar do mérito social dessas iniciativas educacionais serem
inegáveis, infelizmente, a pobreza não pode ser percebida apenas em termos de
178
privação de recursos, mas também em termos de capacidade de investir em soluções
sustentáveis. Associam obras de conservação e inclusão social pode ser arriscado e
gerar uma situação não-sustentável. Apesar de isso parecer a princípio reverter o
cenário atual de indicadores sociais, refletindo alguma melhora, na verdade isso pode
criar um futuro aumento do nível de desemprego, uma vez que essas pessoas não
serão capazes de manter-se no mercado devido à execução de serviço de má qualidade.
É importante investigar se estes projetos representam um alívio efetivo para a pobreza
local ou geram apenas uma “ilusão” de profissionalização que em poucos anos se
tornará inútil.
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180
DELITOS CONTRA O PATRIMÔNIO CULTURAL:
INSUFICIÊNCIAS NORMATIVAS BRASILEIRAS E
ESPANHOLAS
Anauene Dias Soares
Resumo
Ao longo dos anos o patrimônio cultural sofre com constantes atentados.
Infelizmente, práticas ilícitas como o tráfico e o comércio ilegal de
património cultural podem ser considerados um dos maiores setores do
comércio internacional. Assim, neste artigo, objetiva-se analisar
procedimentos acerca da proteção do patrimônio cultural brasileiro. Com
esse propósito serão verificadas as elaborações de ordem normativa que
envolve a conservação dos bens culturais e, à luz da legislação espanhola,
sobretudo da Lei Orgânica 12/95 - ao tratar do contrabando do património
cultural do referido país; destacar pontos que necessitam ser mais bem
precisados na normativa brasileira para impedir o tráfico ilítico de bens
culturais no Brasil, principalmente no que tange o tráfico de bens
patrimoniais culturais na escala internacional. Este estudo, também,
considerará aspectos relativos aos valores patrimoniais para a elaboração
normativa, seja de valores culturais ou econômicos, concernentes à
efitividade legal a fim de proteger o patrimônio cultural que é a memória e
a identidade de uma comunidade.
Palavras-chave: patrimônio cultural, normativa internacional, tráfico ilícito
Introdução
O tráfico de patrimônio cultural abrange numerosas atividades, que vão da
exportação de bens culturais pelos seus legítimos proprietários, sem a necessária
autorização, até ao comércio especializado de objetos furtados, passando pela
apropriação e comercialização de obras de arte desconhecidas pelas autoridades. O
combate aos atentados contra as riquezas arqueológicas, históricas e artísticas que
constituem heranças nacionais exige a cooperação internacional, quer na prevenção das
infrações, quer para assegurar a restituição dos bens subtraídos. (Askerud & Clément
1997)
No Brasil, os problemas de tráfico ilícito ainda não são confrontados por
legislação suficientemente adequada e elaborada. Até então o que se tem é a
Convenção da UNESCO de 1970 firmada por países, como Brasil e Espanha,
enumerando medidas de proteção acerca do tráfico ilícito de bens culturais. Assim, a
criação de uma legislação nacional é requisito a imposição de sanções e penas a fim de

ECA/USP. [email protected]
181
coibir a prática deste delito. Hoje, há leis voltadas para a proteção de bens culturais,
mas não se fez nenhum tratamento diferenciado nacionalmente como no ordenamento
espanhol ao tratar do contrabando destes.
A tipificação penal brasileira mais próxima desta conduta é a receptação
qualificada enumerada pelo art. 180, §1º ou o contrabando e descaminho previsto no
artigo 334, § 1º, “c”, ambos pertencentes ao Código Penal e, o bem jurídico protegido
por estes, abrangem tanto o patrimônio público quanto o privado e, por isso, se estende
ao patrimônio cultural66. Por outro lado, há, também, previsão legal no artigo 48 da lei
de Contravenções Penais para o Exercício ilegal do comércio de coisas antigas e obras de
arte67, não existindo legislação especial penal que trate do patrimônio cultural
especificamente, encontrando apenas referência a este em esfera ambiental. 68 No mais,
a Constituição brasileira atribui competências em ordem administrativa, legislativa e
judiciária para União, Estados, Municípios e Distrito Federal na proteção ao patrimônio
cultural.69
Ainda, segundo a Constituição Brasileira, o Patrimônio Cultural constitui um
elemento estrutural da identidade de certas comunidades, tal como instrumento de
coesão social e memória; além disso, de acordo com a Constituição Espanhola, possui
um valor cultural objetivo e sua proteção independe que seja de titularidade pública ou
privada ou qual seja o seu regime jurídico. No mais, o valor cultural de determinados
bens é a causa para proteção e definição como condutas delitivas previstas no Código
Penal Espanhol. 70 Segundo Tamarit Sumalla (1997):
“[...] o valor subjacente ao bem jurídico não é de caráter econômico,
senão cultural, devendo-se considerar o dano ou a deterioração que
ocorre com o objeto material do delito, independentemente do valor
do prejuízo causado economicamente. Sendo relevante a afetação que
se produziu aos interesses culturais, históricos ou artísticos, para se
estabelecer a existência ou não de uma conduta delitiva.” (Tradução
minha) 71
A dificuldade de demonstrar às instâncias judiciais a ilicitude penal do
Patrimônio Cultural se deve também ao princípio da mínima intervenção penal e do
conflito entre o valor econômico e o valor cultural dos bens (Rus 1996), pois a
legislação vigente considera apenas os aspectos de valor econômico, seja por avaliação
pericial ou tributária, seja nacional ou internacional, seja na lei orgânica de
contrabando espanhola.
A criação e adoção de medidas específicas adequadas, tanto na Espanha quanto
no Brasil, de normas protecionistas ao patrimônio cultural, superando o valor
Bens culturais elencados pelo art.216, CF/88, Brasil.
Art. 48, Lei de Contravenções Penais, Brasil.
68 Lei 9.605/98, Brasil.
69 Arts. 23, 24 e 30 , CF/88, Brasil.
70 Art. 2.1 e) LO. 12/95, Espanha.
71 Tamarit Sumalla 1997 apud Polo 2006 p.8.
Texto original: “[...]el valor que subyace en el bien jurídico no es de caráter econômico, sino cultural, debiéndose
tener cuenta el daño o deterioro que se produce al objeto material del delito independientemente de la cuantia del
prejuicio causado económicamente. Siendo relevante la afectación que se produce a intereses culturales, históricos o
artísticos para establecer la existência o no de la conducta delictiva.”
66
67
182
econômico como elemento determinante das tipicidades penais; campanhas de
sensibilização da sociedade para assumir a responsabilidade da própria identidade e
aprimoramento da cooperação internacional se fazem necessárias atualmente. (Polo
2006)
Portanto, um estudo à luz do ordenamento espanhol quanto à repressão do
contrabando do patrimônio histórico artístico, precipuamente da Lei Orgânica 12/95,
se relacionando com normativas nacionais, foi realizado com o intuito de apontar a
insuficiência e inefetividade das normativas de combate à comercialização ilegal de
bens culturais nos dois países.
1. Concepção de patrimônio cultural como bem jurídico tutelado
A proteção de bens patrimoniais como suportes da memória e de identidade é
um direito que envolve características que abrangem desde a conservação a usos
sociais destes, como a educação e a difusão patrimonial; visto que o patrimônio
“expressa à solidariedade que une aqueles que compartilham um conjunto de bens e
práticas que os identificam”72. Ou seja, ela deve ocorrer, também, por meio da
participação dos grupos sociais pelo patrimônio, a partir de uma apropriação coletiva e
democrática. (N. Canclini 1999)
Assim, o patrimônio cultural, nos dizeres de Silvia Zanirato (2009, p.145-146) “é
conformado pelas manifestações materiais e imateriais criadas pelos sujeitos ao longo
da história. Neles se incluem objetos e estruturas dotados de valores históricos,
culturais e artísticos, bens que representam as fontes culturais de uma sociedade ou de
um grupo social.”
Ressalta-se que o conteúdo material de proteção do patrimônio cultural, no
ordenamento espanhol atual, em suas diferentes manifestações, vem dado por um bem
jurídico em que seu conteúdo material se concentra no interesse coletivo e, que, a tutela
do direito se fundamente no compromisso de possibilitar e permitir o acesso e a
participação dos cidadãos. Encontra-se então a existência de um bem jurídico de
titularidade dos cidadãos - da sociedade, bem jurídico coletivo.
Todavia, a priori das discussões do constitucionalismo moderno, o bem jurídico
era reconhecido apenas quanto “patrimônio histórico, como o conjunto de elementos
naturais ou culturais, materiais ou imateriais, herdados do passado, onde um
determinado grupo social reconhecesse sua própria identidade” (Polo 2006, p.6).
2. Os delitos contra o patrimônio cultural
O tráfico de bens culturais constitui o terceiro crime mais rentável no mundo e
de acordo com o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) –
responsável legal pela conservação de bens tombados pelo governo federal brasileiro
listou em 1997 aproximadamente 1.032 objetos de arte roubados no Brasil, passando a
figurar a lista dos dez países que apresentam os maiores roubos de obras culturais do
mundo. (Costa & Rocha 2007)
72
N. Canclini 1996 apud Zanirato 2009, p.146.
183
As obras de arte, especificamente, são objetos de tráfico pelos valores nelas
contidos, que justificam a ânsia pela posse, ainda que muitas vezes irregular, de peças,
daí a comercialização ilegal, o furto, a falsificação e o extravio, para além de outros.
Segundo Fincham (2009):
“(...) o roubo de arte é geralmente efetuado com a finalidade de
revenda ou resgate e, comumente, os ladrões são comissionados por
colecionadores particulares confidenciais. A arte roubada é também
usada frequentemente entre criminosos em um sistema de operação
bancária internacional, como o submundo do tráfico de drogas e de
armas, ou simplesmente, como meio de troca destes artigos.”
(Tradução minha)
Por esses bens serem considerados não consumíveis, constituem quase sempre
um investimento financeiro muito rentável a médio e longo prazo – sendo o suporte do
mercado internacional de arte. “Informações fornecidas pelo FBI – Federal Bureau of
Investigation, o tráfico internacional de obras de arte movimenta aproximadamente U$
6 bilhões por ano”(Costa & Rocha 2007). Além disso, se tornou uma maneira talentosa
e segura de lavagem de dinheiro por facções criminosas advindos de tráficos de
entorpecentes, armas, prostituição, jogos ilícitos e contrabando de joias preciosas.
A situação complica ainda mais se considerar que há países com atitudes
diametralmente opostas quanto à possibilidade de devolução de bens aos países de
onde foram ilicitamente retirados, sem contar que há argumentos como a saída de que
não há ilegalidade, sob a tutela da boa fé, normalmente utilizados como explanação
por grandes "lobbies" do comércio de antiguidade (Bo 2003).
Ocorre assim a importação significativa de obras, simplificada pela fragilidade
de controles alfandegários, o que propicia a inclusão no mercado internacional de
objetos furtados nos países. Portanto, o tráfico, além de promover a introdução
clandestina de determinado bem ilícito para o comércio interno de um país, possibilita
a sua exportação para outros mercados (Costa & Rocha 2007).
Assim, podem ser assinalados em três grupos distintos os delitos relacionados
ao patrimônio cultural, tais como os referentes á aquisição ilegal, os de tráfico ilegal e o
concurso de crimes dos dois anteriores. O tráfico consiste justamente no ato de
comerciar ou mercadejar bens provenientes de negócios ilícitos ou indecorosos (Nunes
1999). No mais, tem-se notado a preocupação com que os diferentes Estados - inclusive
Brasil e Espanha, tanto dos receptores como dos destinatários no combate ao tráfico
ilícito de bens culturais.
3. Regime jurídico internacional do patrimônio cultural
O principal órgão internacional de guarda do patrimônio cultural é a
Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO).
Essa instituição entende que a destruição ou mutilação de bens culturais constitui um
empobrecimento nefasto para todos os povos, por essa razão instituiu, no plano
internacional, medidas destinadas à proteção. Uma delas foi definida pela Convention
on the Means of Prohibiting and Preventing the Illicit Import, Export and Transfer of
Ownership of Cultural Property em 14 de novembro de 1970. Em seu artigo 3, essa
Convenção estabelece que “The import, export or transfer of ownership of cultural
184
property effected contrary to the provisions adopted under this Convention by the
States Parties thereto, shall be illicit”73. Entende, ainda, como ilícito, em seu artigo 11
“The export and transfer of ownership of cultural property under compulsion arising
directly or indirectly from the occupation of a country by a foreign power shall be
regarded as illicit.”74
Outra convenção aprovada pela UNESCO é a Convenção Sobre a Proteção do
Patrimônio Mundial Cultural e Natural, aprovada pela Conferência Geral em 16 de
novembro de 1972 em Paris e inserida no ordenamento brasileiro em 12 de dezembro
de 1977 pelo Decreto n° 80.978.
Segundo a UNESCO, os Estados signatários das Convenções devem estabelecer
esforços para inventariar seus bens culturais, protegê-los e, quando for o caso, por seus
valores excepcionais, propor a sua inscrição na lista de patrimônio mundial. O país
deve então se esforçar para evitar o trafico internacional, seja na exportação ou na
importação de bens culturais. Isso implica em um sistema de vigilância que previna e
reprima o comércio ilegal de obras de arte. Frisa-se que a Convenção da UNESCO de
1970 também define como requisito a imposição de penas e sanções adequadas de
forma a coibir a prática do tráfico ilícito de bens culturais. (Costa & Rocha 2007)
O Brasil aderiu à Convenção de 1970, integrada ao sistema legal nacional pelo
Decreto 72.312, promulgado em 21 de novembro de 1973 e intitulado Convenção sobre as
Medidas a serem Adotadas para Proibir e Impedir a Importação, Exportação e Transportação e
Transferência de Propriedade Ilícitas dos Bens Culturais.
Houve então a criação da Coordenação-Geral de Proteção ao Meio Ambiente e
Patrimônio Histórico, no Departamento da Polícia Federal, e a implantação, em 27
Estados da Federação, de Delegacias de Meio Ambiente e Patrimônio Histórico
responsável pelo cuidado com os bens sujeitos ao comércio ilícito. É importante
destacar ainda que foram promulgadas no Brasil várias leis75 direcionadas à proteção
dos bens culturais, as quais devem colaborar para impedir o avanço da circulação e da
comercialização ilegal de bens. (Costa & Rocha 2007)
Também, há países76 com tributação favorecida (paraísos fiscais) e com
utilização abusiva dos tratados e convenções internacionais como mecanismos para
Tradução: “A importação, exportação ou transferência de propriedade de bens culturais realizadas em
oposição às disposições previstas pela presente Convenção, adotadas pelos respectivos Estados-Membros,
será ilícito.”
10 Tradução: “A exportação e transferência de propriedade de bens culturais de um determinado país sob
compulsão direta ou indireta decorrentes da ocupação por uma outra potência estrangeira deve ser
considerada como ilícita.”
11 Cf. Decreto-Lei 25/37 (organiza a proteção do patrimônio histórico e artístico nacional); Lei 3.924/61
(dispõe sobre monumentos arqueológicos e pré-históricos); Lei 4.845/65 (proíbe a saída para o exterior de
obras de arte produzidas no país até o fim do período monárquico); Lei 5.471/68 (dispõe sobre a
exportação de livros antigos e conjuntos bibliográficos brasileiros); Decreto-Lei 72.312/73 (sobrevinda da
Convenção da UNESCO em 1970) e Portaria 262/IPHAN.
76 A Instrução Normativa SRF nº 188, de 06 de agosto de 2002, dispõe:
“Consideram-se países ou dependências que não tributam a renda ou que a tributam à alíquota inferior a 20% ou,
ainda, cuja legislação interna oponha sigilo relativo à composição societária de pessoas jurídicas ou à sua titularidade
as seguintes jurisdições:Andorra; Anguilla; Antígua e Barbuda; Antilhas Holandesas; Aruba; Comunidade das
Bahamas; Bahrein; Barbados; Belize; Ilhas Bermudas;Campione D’Italia; Ilhas do Canal (Alderney, Guernsey, Jersey
e Sark); Ilhas Cayman; Chipre; Cingapura; Ilhas Cook; República da Costa Rica; Djibouti; Dominica; Emirados
73
185
lavagem de dinheiro e remessa ilegal de divisas. A cooperação internacional também é
analisada por intermédio dos organismos internacionais e nacionais de assistência
administrativas, que dão suporte à atuação do poder judiciário na repatriação de
ativos. (Silva 2000) No Brasil, o crime de lavagem de dinheiro, é tipificado pela Lei nº.
9.613 de 1998 e é um crime de amplitude internacional que consiste em dar uma
aparência lícita a recursos obtidos por meio de outro crime, como o tráfico ilícito de
bens culturais.
4. Abrangência da proteção ao patrimônio cultural na Constituição da
República Federativa do Brasil e na Constituição do Reino da Espanha
Nesses termos, a proteção do patrimônio cultural por via do Direito se faz
indispensável para fins de sua conservação, seja por previsão constitucional, penal ou
administrativa; pois, o patrimônio cultural constitui um elemento estrutural da
identidade de certos povos, como instrumento de coesão social, como prevê a
Constituição brasileira de 1988, em seu artigo 215, ao dizer que “o Estado garantirá a
todos o pleno exercício dos direitos culturais” e determinar o direito à memória. Cabe
ao Estado o dever de executar políticas para que efetivamente seja vivido o direito à
memória pela sociedade. (Derani 2010)
Conforme dispõe o artigo 216 da Constituição Federal de 1988, constitui
patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e imaterial, tomados
individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à
memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira. Podem ser formas
de expressão; os modos de criar, fazer e viver; as criações científicas, artísticas e
tecnológicas; as obras, objetos, documentos, edificações e demais espaços destinados às
manifestações artístico-culturais; os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico,
paisagístico, artístico, arqueológico, paleontológico, ecológico e científico.
A Carta Magna brasileira em seu artigo 23 atribui competência comum da
União, Estados, Distrito Federal e Municípios de proteger os bens de valor histórico,
artístico e cultural, monumentos, paisagens notáveis e sítios arqueológicos. Para
proteger esses bens, o Poder Público deve efetuar registros, proceder a inventários,
exercer vigilância, tombar e desapropriar bens. É também interesse da comunidade o
respeito e manutenção do patrimônio cultural, tanto por sua função social, quanto ao
fato de este pertencer a todos os povos. (Polo 2006). O entendimento é o de que quando
se preserva legalmente e socialmente o patrimônio cultural, conserva-se a memória e
reforça-se a identidade da nação.
A vigente Constituição do Reino da Espanha regula esta matéria em seu artigo
46, não visando um protecionismo em sentido possessivo, seu principal objetivo é a
manutenção e conservação do patrimônio cultural em similar ao nacional,
estabelecendo a respeito Los poderes públicos garantizarán la conservación y promoverán el
Árabes Unidos; Gibraltar; Granada; Hong Kong; Lebuan; Líbano; Libéria; Liechtenstein; Luxemburgo (no que
respeita às sociedades holding regidas, na legislação Luxemburguesa, pela Lei de 31 de julho de 1929); Macau; Ilha da
Madeira; Maldivas; Malta; Ilha de Man; Ilhas Marshall; Ilhas Maurício; Mônaco; Ilhas Montserrat; Nauru; Ilha
Niue; Sultanato de Omã; Panamá; Federação de São Cristóvão e Nevis; Samoa Americana; Samoa Ocidental; San
Marino; São Vicente e Granadinas; Santa Lúcia; Seychelles; Tonga; Ilhas Turks e Caicos; Vanuatu; Ilhas Virgens
Americanas; Ilhas Virgens Britânicas.”
186
enriquecimiento del patrimonio histórico, cultural y artístico de los pueblos de España y de los
pueblos que lo integran, cualquiera que sea su régimen jurídico y titularidad. La ley sancionará
los atentados contra este patrimonio77; por outra parte o Tribunal Supremo espanhol
designa que a previsão constitucional se estenda a toda classe de bem que “per se” ou
na realidade tenham o mencionado valor, seja qual for à situação jurídica, de domínio
público ou privado.
Ainda no artigo 46 da constituição espanhola, além de comprometer os poderes
públicos quanto à proteção do patrimônio histórico, cultural ou artístico preceitua que
a legislação penal sancionará os atentados. A proteção de bens culturais por via do
Direito Penal é imprescindível para sua conservação, o valor cultural de determinados
bens só é protegido de acordo com a definição da prática delitiva prescrita no Código
Penal. A proteção penal dos bens jurídicos coletivos correspondentes com os
denominados direitos sociais e econômicos tem relevância constitucional. (Polo 2006)
5. Regime jurídico de proteção ao patrimônio cultural dentro da legislação
nacional e espanhola
Nesses termos, a previsão de penas e sanções para esses crimes não recebeu
tratamento diferenciado na legislação penal brasileira, havendo apenas prescrição em
leis esparsas78 quanto a danos causados a esses bens. No Código Penal, a tipificação
mais próxima à conduta de negociação ilícita de determinado bem cultural é a
receptação qualificada prevista no artigo 180, §1º, com seguinte redação:
“Art. 180. (...)
§1º Adquirir, receber, transportar, conduzir, ocultar, ter em depósito, desmontar,
montar, remontar, vender, expor à venda, ou de qualquer forma utilizar, em
proveito próprio ou alheio, no exercício de atividade comercial ou industrial,
coisas que deve saber ser produto de crime:
Pena – reclusão, de três a oito anos, e multa (grifo meu)
Se o agente manter em depósito, vender ou expor à venda bem cultural
estrangeiro introduzido ou importado de forma fraudulenta no país, responderá pelo
crime de contrabando ou descaminho, previsto no artigo 334, §1º, “c”, do Código
Penal79 e não pelo crime de receptação qualificada.(Costa & Rocha 2007)
Tradução minha: “Os poderes públicos garantirão a conservação e promoverão o enriquecimento do
patrimônio histórico, cultural e artístico das comunidades da Espanha e das comunidades que a integram,
qualquer que seja seu regime jurídico ou titularidade. A lei sancionará os atentados contra este
patrimônio.”
14 CF. Lei 9.605 (dispõe sobre sanções penais e administrativas derivadas das condutas e atividade lesivas
ao meio ambiente); Lei 7.347/85 (disciplina a ação civil pública de responsabilidade por danos causados ao
meio ambiente, ao consumidor, a bens de direitos e valor artísticos, estéticos, históricos e turísticos);
Decreto-Lei 6.514/2008 (dispõe sobre as infrações e sanções administrativas ao meio ambiente, estabelece o
processo administrativo federal para apuração destas infrações, e dá outras providências).
79 Art. 334, Código penal, Espanha
(...) “c) vende, expõe à venda, mantém em depósito ou, de qualquer forma, utiliza
em proveito próprio ou alheio, no exercício de atividade comercial ou industrial, mercadoria de
procedência estrangeira que introduziu clandestinamente no País ou importou fraudulentamente ou que
sabe ser produto
77
187
Ainda no que se refere à tutela do patrimônio cultural em âmbito penal, este se
encontra incluso nas matérias direcionadas ao campo ambiental, na Lei n. 9.605/98.
Nela verifica-se que o Direito Penal Ambiental brasileiro sequer constitui uma
especialidade do Direito Penal, pois apenas enumera crimes realtivos a destruição,
inutilização, alteração ou deterioração dos bens culturais.80
O Decreto-lei n. 3.688/1941 (Lei de contravenções penais), em seu Capítulo VI,
que disciplina as contravenções relativas à organização do Trabalho, de forma taxativa
e reducionista, prevê a figura da contravenção de “exercício ilegal do comércio de
coisas antigas e obras de arte”, consistindo em:
“Art. 48. Exercer, sem observância das prescrições legais, comércio de antiguidades
e de obras de arte, ou de manuscritos e livros ou raros:
Pena – prisão simples, de 1 (um) a 6 (seis) meses, ou multa”
Já o Código Penal espanhol vigente, não estabelece um modelo adequado de
proteção também, que subordine de modo claro, o interesse patrimonial dos bens
pertencentes ao patrimônio cultural em seu viés social. O Capítulo II do Título XVI, nos
artigos 321 ao 32481, regula a proteção ao patrimônio histórico, estendendo esta
aplicabilidade a todos os bens patrimoniais como preceitua os mandamentos
constitucionais.
5.1 Repressão ao Contrabando: Lei Orgânica 12/95, Espanha
A partir de 1993, com o tratado da União Europeia, popularmente conhecido
como Tratado de Maastrich, houve o desaparecimento de fronteiras entre os membros
pertencentes a UE, o que afetou de forma significativa as relações do contrabando,
de introdução clandestina no território nacional ou de importação fraudulenta por parte de outrem; (...)”
80 Artigos 62 e 63, Lei 9.605/98, Brasil.
81 ”(...) CAPÍTULO II. DE LOS DELITOS SOBRE EL PATRIMONIO HISTÓRICO
Artículo 321
Los que derriben o alteren gravemente edificios singularmente protegidos por su interés histórico, artístico, cultural o
monumental serán castigados con las penas de prisión de seis meses a tres años, multa de doce a veinticuatro meses y,
en todo caso, inhabilitación especial para profesión u oficio por tiempo de uno a cinco años.
En cualquier caso, los Jueces o Tribunales, motivadamente, podrán ordenar, a cargo del autor del hecho, la
reconstrucción o restauración de la obra, sin perjuicio de las indemnizaciones debidas a terceros de buena fe.
Artículo 322
1. La autoridad o funcionario público que, a sabiendas de su injusticia, haya informado favorablemente proyectos de
derribo o alteración de edificios singularmente protegidos será castigado además de con la pena establecida en el art.
404 de este Código con la de prisión de seis meses a dos años o la de multa de doce a veinticuatro meses.
2. Con las mismas penas se castigará a la autoridad o funcionario público que por sí mismo o como miembro de un
organismo colegiado haya resuelto o votado a favor de su concesión a sabiendas de su injusticia
Artículo 323
Será castigado con la pena de prisión de uno a tres años y multa de doce a veinticuatro meses el que cause daños en
un archivo, registro, museo, biblioteca, centro docente, gabinete científico, institución análoga o en bienes de valor
histórico, artístico, científico, cultural o monumental, así como en yacimientos arqueológicos.
En este caso, los Jueces o Tribunales podrán ordenar, a cargo del autor del daño, la adopción de medidas encaminadas
a restaurar, en lo posible, el bien dañado.
Artículo 324
El que por imprudencia grave cause daños, en cuantía superior a 400 euros, en un archivo, registro, museo,
biblioteca, centro docente, gabinete científico, institución análoga o en bienes de valor artístico, histórico, cultural,
científico o monumental, así como en yacimientos arqueológicos, será castigado con la pena de multa de tres a 18
meses, atendiendo a la importancia de los mismos.(...)”
188
principalmente referentes ao patrimônio cultural (Polo 2006). Dessa forma,
considerando os ditames legais estabelecidos por este tratado, o contrabando em
âmbito Espanhol, regula-se pela Lei Orgânica 12/95.
Esta norma, segundo estabelece a parte final da primeira disposição dos
motivos da referida lei; se aplicará de forma complementar pelo Código Penal em
acordo com o Título 1º (Delitos de contrabando); pela Lei Tributária Geral e pela Lei do
Regime Jurídico das Administrações Públicas e Procedimento Administrativo Comum,
prescrito no título 2º (infrações administrativas de contrabando). Tudo sem prejuízo
das remissões em branco ou de outras normas que este texto se submete. A Lei 12/95 é
uma lei penal especial devido seu caráter múltiplo de norma penal e administrativa,
considerando também seu caráter processual por algum dos mandatos do dito texto82.
Assim, conforme a normativa, comete o delito ou infração de contrabando, em
função de seu valor, quem tirar do território espanhol bens que integrem o Patrimônio
Cultural da Espanha, sem a devida autorização da Administração do Estado quando
for necessário, inclusive se seu destino for para qualquer um dos países signatários da
UE83.
O reconhecimento dos direitos sociais e econômicos pelo constitucionalismo
moderno, passou a considerar os princípios do Direito sancionador penal ao invés do
administrativo, regulamentando no artigo 25 não só o poder penal do Estado, mas
também o poder sancionador e disciplinar da Administração. Portando, quem comete
o delito de contrabando será punido com uma pena de prisão de menor infração
(máxima de 3 anos) e multa proporcional ao valor do bem.
A qualificação do contrabando como um delito menos grave, possibilita a
redução das medidas judiciais, maculando as investigações devido às dificuldades
técnicas e políticas atribuídas a elaboração de tipos penais adequados para a proteção
do patrimônio cultural. Além disso, o princípio da mínima intervenção penal dificulta
a identificação da notória gravidade e atuação dolosa exigida no artigo 321 do próprio
Código Penal, por exemplo. Essa imprecisão legal determina a dificuldade de aplicação
do sistema penal, reduzindo o mecanismo a uma simples sanção administrativa em
função do dano causado, quando em realidade há uma grande disparidade entre o
valor econômico e o valor cultural. (Polo 2006)
No artigo 10 da lei reguladora ou de repressão ao contrabando, em questão de
valoração dos bens integrantes do patrimônio cultural, caberá ao juiz buscar os
serviços competentes para a avaliação destes.
Por último, cabe uma consideração em destaque: se há a presença de uma
figura normal ou especial, pois, do ponto de vista formal legislativo, o tráfico do
Art. 2.1 e) LO. 12/95, Espanha.
Art. 2.1 a) e g) LO. 12/95, Espanha.
“a) La importación o exportación de bienes del patrimonio histórico artístico sin presentar-las para su despacho en
las oficinas de aduanas o en los lugares habilitados por la administración
aduanera, teniendo en cuenta que la ocultación o sustracción dolosa de estos bienes a la acción de la
administración Aduanera dentro de los recintos o lugares habilitados equivaldrá a la no presentación.
g) La obtención mediante alegación de causa falsa o de cualquier otro modo ilícito del
despacho aduanero o la autorización para la salida de bienes que integren el patrimonio histórico
artístico español.”
82
83
189
patrimônio cultural, não só é regulamentado por uma lei especial criminal, mas
também concorre a seus infratores, uma série de atributos que dão especialidades a
figura, configurando como um dos principais atos no que tange à economia ou ao
incentivo do enriquecimento de grupos envolvidos nessa atividade (Polo 2006).
Conclusão
O comércio ilegal (tráfico) de bens culturais tem causado expressivos e
irreparáveis danos ao patrimônio cultural, tanto no Brasil quanto na Espanha,
sobretudo pela omissão na elaboração e no cumprimento de normas legais e
regulamentadoras destinadas a disciplinar e sancionar a comercialização desses bens.
Logo, é necessário incrementação, o aperfeiçoamento e a intensificação da elaboração
efetiva para a aplicação de legislações a fim de coibir a prática destes delitos.
Contudo, não existe uma legislação especialmente criada para regulamentar,
prevenir e combater o tráfico ilícito de bens culturais no Brasil, nem mesmo nos moldes
estabelecidos em relação à Lei Orgânica 12/95 de Repressão ao Contrabando da
Espanha. Ainda que esta contenha incoerências e lacunas das normas legais fazendo-se
necessário o uso subsidiário do Código Penal espanhol e de outras normativas legais.
Ainda assim, mesmo com a carência de uma regulamentação normativa
específica e adequada, as condutas e atividades consideradas lesivas ao patrimônio
cultural sujeitam os infratores, pessoas físicas ou jurídicas, a sanções penais e
administrativas, seja em território brasileiro ou espanhol, independentemente da
obrigação de reparar os danos causados.
No mais, se faz necessária à efetiva interação e cooperação nacional e
internacional entre poder público, órgãos, instituições e entidades culturais –
principalmente aquelas responsáveis pela tutela de bens e valores culturais – para
proporcionar maior celeridade e eficácia na adoção de medidas e ações, preventivas e
reparadoras, relacionadas à proteção, do patrimônio cultural.
Quando se pensa em patrimônio, se faz necessário considerar os valores
atribuídos aos bens culturais que lhes darão significados quanto identificação e
memória para certos povos. Para proteger esse patrimônio, principalmente por meio de
bases normativas, é preciso se ater que o objetivo não pode simplesmente se manter na
dimensão material, econômica daqueles bens, mas sim, em salvaguardar também, os
valores culturais que a eles lhes são agregados.
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192
IDENTIFICAÇÃO PATRIMONIAL E INSTRUMENTOS DE
INVENTÁRIO APLICADOS ÀS EDIFICAÇÕES HISTÓRICAS
DE ESPÍRITO SANTO DO PINHAL - SP
Camila Corsi Ferreira
Resumo
Relato de uma experiência de utilização de instrumentos de inventário
aplicados às edificações históricas de Espírito Santo do Pinhal, uma cidade
paulista em cuja região a ocupação, por mineiros e paulistas vindos de
outra região, remonta o início do século XVIII, e que teve o apogeu de seu
desenvolvimento no contexto da expansão da economia cafeeira. Trata-se
da elaboração de um registro amplo que inclui levantamentos métricos,
fotográficos, documentais e entrevistas, de edificações ecléticas em sua
maioria, patrocinadas pela camada da população local formada por
proprietários rurais e negociantes bem sucedidos. Numa perspectiva de
preservação do patrimônio cultural já foram identificados 34 imóveis que
deverão ser conservados integralmente, uma vez que expressam um
somatório de valores urbanísticos, históricos e arquitetônicos relevantes
para o local. Estes casarões constituem um significativo acervo
arquitetônico na cidade, e importante acervo arquitetônico do ecletismo e
da história do ciclo cafeeiro no estado de São Paulo. O exemplo
apresentado é o do Chalet Monte Negro. Ao longo dos últimos anos,
grande parte dessas edificações está sendo destruída ou descaracterizada.
Com essa análise buscamos destacar a importância do estudo e do registro
da arquitetura da burguesia cafeeira, apontando para a necessidade de
conscientização e preservação deste patrimônio como documento histórico
e arquitetônico.
Palavras-chave: Patrimônio histórico. Inventário. Ecletismo. Ciclo do café.
Espírito Santo do Pinhal - SP.
Introdução
Ao buscar a compreensão do presente para a construção de um futuro
consciente, o estudo do passado e seu reconhecimento através de uma releitura
constante dos fatos mais significativos se fazem questão fundamental. A identidade de
um povo é, além de outros fatores, formada com referências de sua memória, seu
passado. O século XIX e o início do século XX são de especial interesse por
representarem um período de grandes transformações no panorama da cultura
nacional. A transferência da Corte para o Brasil, a mudança da sede do governo para o
Rio de Janeiro, deslocando o centro de decisões e a polarização do comércio interno e

USP. [email protected]
193
externo, a abertura dos portos às nações amigas tiveram como consequência o
desencadeamento de fatos históricos como a Independência e a decadência e posterior
abolição do trabalho escravo que irão culminar, em fins do século, com a proclamação
da República. A segunda metade do séc. XIX e as primeiras décadas do séc. XX
constituem um período de intensas transformações no modo de vida patriarcal da
sociedade paulista.
O século XIX foi também o período da introdução da cultura do café no estado
de São Paulo, um novo ciclo agrícola que já existia em Campinas em 1830, e cuja
expansão atingiu, por volta de 1880, a região de Espírito Santo do Pinhal, uma cidade
paulista em cuja região a ocupação, por mineiros e paulistas vindos de outra região,
remonta o início do século XVIII, e que teve o apogeu de seu desenvolvimento no
contexto da expansão da economia cafeeira.
Financiados pela riqueza acumulada pelo café, vários casarões urbanos foram
construídos em Espírito Santo do Pinhal nas últimas décadas do séc. XIX,
principalmente depois da instalação da ferrovia na cidade, e nas três primeiras décadas
do séc. XX, e constituem um importante acervo arquitetônico do ecletismo e da história
do ciclo do café no estado de São Paulo. Em geral, localizam-se no centro da cidade,
principalmente próximo à Praça da Matriz.
Para a análise e compreensão da história das cidades e das pessoas, a
arquitetura tem papel relevante por materializar, nas edificações, os modos de vida e
de construção de uma época. Além de referência urbana, as edificações são a história
materializada. Nesse sentido, entende-se que os bens de relevância histórica e/ou
arquitetônica devem ser devidamente documentados e inventariados, antes mesmo de
qualquer ação preservacionista.
Nesse sentido, este trabalho84 apresenta o relato de uma experiência de
utilização de instrumentos de inventário aplicados às edificações históricas Espírito
Santo do Pinhal, através da exposição de um levantamento completo. Trata-se da
elaboração de um registro amplo que inclui levantamentos métricos, fotográficos,
documentais e entrevistas, de edificações ecléticas em sua maioria, patrocinadas pela
camada da população local formada por proprietários rurais e negociantes bem
sucedidos. Numa perspectiva de preservação do patrimônio cultural já foram
identificados 34 imóveis que deverão ser conservados integralmente, uma vez que
expressam um somatório de valores urbanísticos, históricos e arquitetônicos relevantes
para o local. Desse total, foi realizado o levantamento completo em 14 edificações. As
etapas necessárias para a elaboração do inventário do patrimônio material de Espírito
Santo do Pinhal foram guiadas por publicações já existentes, baseando-se em seu
trabalho de sistematização, e também a partir da análise de diferentes metodologias
aplicadas pelo IPHAN, e pelos governos de vários estados. O levantamento sistemático
consta de registro das características formais das edificações e de análise tipológica,
sistematizadas em ficha de identificação contendo dados históricos e construtivos,
fotografias e plantas.
O presente artigo foi elaborado a partir da dissertação de mestrado “Arquitetura residencial urbana:
Espírito Santo do Pinhal, 1880-1930”, orientada pela Profa Dra Maria Ângela P. C. S. Bortolucci e defendida
em 2011 na EESC-USP.
84
194
A construção do inventário de bens arquitetônicos é etapa indispensável no
processo de registro de bens culturais, trabalho necessário no sentido de incentivar a
preservação dos mesmos e viabilizar ações municipais nesse sentido. A organização
desse amplo registro pretende, através dos instrumentos de inventário, fornecer
subsídios para o conhecimento e a conscientização da sociedade local sobre seu
patrimônio, como documento histórico e arquitetônico, e a necessidade de preservá-lo.
1. A cidade
Espírito Santo do Pinhal, cidade paulista que teve sua formação na mesma
época do surto cafeeiro e seu desenvolvimento por ele patrocinado, situa-se na região
sudeste do Brasil, a leste do estado de São Paulo, a 199 km da capital paulista, a 95 km
de Campinas e apenas 20 km da fronteira com o sul do estado de Minas Gerais. Foi
fundada em 27 de dezembro de 1849. Cidade de pequeno porte, sua população é de
40.480 mil habitantes distribuídos em 392 km2, sendo o perímetro urbano de 10 km2.
Pinhal85 originou-se a partir de uma doação de terras que estava relacionada a
uma disputa entre fazendeiros pela sua posse. Sua origem foi singular, uma vez que a
cidade não surgiu a partir de povoações preexistentes nem teve seu sítio escolhido com
o intuito de se formar uma aglomeração. O local onde hoje se encontra o centro,
iniciado em 1849, foi escolhido por ter sido o palco de confronto relevante envolvendo
os donos das fazendas. Trata-se de um lugar alto, um espigão circundado por córregos
e ribeirões na parte mais baixa, fazendo parte de um amplo entorno de topografia
montanhosa. O núcleo inicial foi organizado em torno da praça da atual Igreja Matriz
(Praça da Independência), então capela, de onde partem algumas ruas em tabuleiro de
xadrez até o limite das divisas originais do patrimônio.
Os casarões urbanos financiados por essa riqueza advinda da cultura cafeeira
foram construídos em Pinhal nas últimas décadas do século XIX, principalmente
depois da instalação da ferrovia na cidade, e nas três primeiras décadas do século XX, e
constituem ainda um significativo acervo arquitetônico na cidade. São belas residências
construídas para fazendeiros de café e profissionais liberais enriquecidos, como
médicos e advogados, em sua maioria no período compreendido entre 1880 – o início
do progresso da cafeicultura na cidade – e 1930, que, em decorrência da quebra da
bolsa em Nova Iorque, gerou um processo de estagnação na economia local e
consequentemente, na produção arquitetônica.
Os registros de imagem mais antigos de Pinhal, que datam da década de oitenta
do século XIX, indicam uma cidade com vínculos arquitetônicos tradicionais,
percebidos nos casarões edificados no alinhamento e nas laterais dos lotes, com
telhados geralmente de duas águas com beirais, ainda construídos em taipa. Na década
seguinte é notório o aumento no número de edificações, e percebemos que, apesar das
poucas modificações empreendidas, já é possível encontrarmos construções da classe
abastada começando a incorporar os princípios do ecletismo, como as platibandas.
No decorrer do texto iremos nos referenciar à cidade apenas pelo nome Pinhal, por ser esta a forma mais
usada por seus moradores.
85
195
Em Pinhal, a arquitetura eclética foi introduzida pelo fazendeiro de café, que
frequentemente visitava São Paulo e Rio de Janeiro, e que, conhecendo também as
cidades europeias, buscou inspiração na produção arquitetônica destes lugares para
executar sua própria residência urbana, que deveria representar sua posição social e
econômica. A consolidação dessa imagem do fazendeiro de café passou
necessariamente pela remodelação de sua residência urbana. Dessa forma, esse
ecletismo produzido em outros lugares e especialmente na capital da então província
de São Paulo serviu de para novas apropriações e reinterpretações locais.
Apesar de ser importante acervo arquitetônico, ao longo dos anos, grande parte
dessas edificações vem sendo destruída ou descaracterizada, sendo escassos os
registros, documentação ou estudos mais aprofundados.
2. Instrumentos de inventário
Para a análise e compreensão da história das cidades e das pessoas, a
arquitetura tem papel relevante por materializar, nas edificações, os modos de vida e
de construção de uma época. Além de referência urbana, as edificações são a história
materializada. Nesse sentido, entende-se que os bens de relevância histórica e/ou
arquitetônica devem ser devidamente documentados e inventariados, antes mesmo de
qualquer ação preservacionista.
O trabalho de inventário do patrimônio arquitetônico é a principal ferramenta
de documentação, e cria um amplo panorama dos bens arquitetônicos de uma
localidade. A partir do levantamento de dados necessários, como a construção do
conhecimento histórico de como surgiu a edificação, quais suas características
primitivas, seus elementos construtivos, suas alterações ao longo do tempo etc, pode-se
reunir as informações para a elaboração de um inventário, que deve seguir um
procedimento metodológico específico e que servirá de base para a elaboração de um
dossiê sobre a edificação.
Numa perspectiva de preservação do patrimônio cultural, visando à
legitimação e perpetuação, nessa sociedade, de seus bens culturais, seja pelo
reconhecimento e preservação do objeto, ou através de sua documentação, vem sendo
elaborado amplo registro das edificações, através de levantamentos métricos,
fotográficos, documentais e entrevistas. Tais instrumentos de inventário serão um
caminho para o conhecimento e a conscientização da sociedade local sobre seu
patrimônio e a necessidade de preservá-lo.
2.1 Abordagem metodológica
As etapas necessárias para a elaboração do inventário do patrimônio material
de Espírito Santo do Pinhal foram guiadas por publicações já existentes, baseando-se
em seu trabalho de sistematização, e também a partir da análise de diferentes
metodologias aplicadas pelo IPHAN, e pelos governos de vários estados.
Nesse caso, o procedimento metodológico utilizado tem como referência
principal as fichas de inventário do Inepac – Rio de Janeiro, as fichas desenvolvidas
196
pelo Ipac – Bahia, as fichas elaboradas pelo DPH – São Paulo, e também pelo IPHAN,
bem como textos de apoio que abordam a questão da metodologia para inventários.
Entre as edificações de interesse histórico na cidade, correspondentes ao ciclo
do café, já foram identificados 34 imóveis que deverão ser indicados para serem
conservados integralmente, uma vez que expressam um somatório de valores
urbanísticos, históricos e arquitetônicos relevantes para o local. Além disso, já foi
realizado levantamento em 14 edificações, cujos registros terão implantação no lote,
planta, fotos internas e fotos externas, além de uma ficha de levantamento contendo
dados sobre a edificação. O levantamento documental é de primordial importância ao
possibilitar a análise e avaliação dos dados vistos “in loco”.
Figura 1. Mapa do centro da cidade com a localização dos casarões. (Fonte: Ferreira, 2010)
A escolha dos casarões obedeceu aos seguintes critérios:

cronológico, edificados entre 1880 – início do progresso da cafeicultura na
cidade e portanto da riqueza – e 1930, período da quebra da bolsa, que gerou um
processo de estagnação na economia local e consequentemente, na produção
arquitetônica;

localização das residências, em sua maioria implantadas no centro da

disponibilidade das fontes, a fim de facilitar o trabalho e reduzir tempo;
cidade;

diferenças tipológicas e formais de exceção, dificilmente encontradas em
cidades de pequeno porte com relação ao mesmo período;

edificações que apresentarem risco de demolição, devido ao risco de
perdê-los sem documentação;
197

residências onde ainda exista mobiliário de época, possibilitando uma
reconstrução mais consistente do modo de vida da época.
A ficha de inventário deverá conter o maior número de informações possíveis
sobre o edifício, reunindo conhecimentos de vários aspectos para sua catalogação e
posterior análise. Essa ficha deverá apresentar:
 nome da edificação;
 número de registro;
 localização e endereço original;
 primeiro proprietário e atual proprietário;
 construtor e época/ano da construção;
 uso original e atual;
 possibilidades de acesso ao bem inventariado;
 data do levantamento e contato;

descrição e histórico arquitetônico, contendo descrição da área do entorno;

existência de projetos, fotos e móveis antigos, memoriais, documentação
sobre o imóvel etc;

intervenções realizadas;

estado de conservação;

descrição e caracterização da edificação: tipologia, partido, implantação,
características particulares, estilo arquitetônico;

dados técnicos, materiais e sistemas construtivos;

levantamento arquitetônico contendo representação gráfica da planta,
utilizando a ferramenta CAD;

levantamento fotográfico externo de todas as edificações e interno quando
possibilitado o acesso;

documentação iconográfica;

meios de preservação.
3. Modelo de ficha de inventário
A seguir será apresentado um modelo de levantamento, documento histórico e
instrumento indispensável para possíveis intervenções, que consiste no registro gráfico
do imóvel construído a partir da tomada de medidas das fachadas, ambientes internos
e detalhes construtivos essenciais à leitura do edifício e sua representação. Nele consta
o registro das características formais das edificações e de análise tipológica,
198
sistematizadas em ficha de identificação contendo dados históricos e construtivos,
fotografias e plantas. Todo o material coletado foi digitalizado com o uso da
ferramenta CAD.
Buscou-se a reconstrução da história do bem arquitetônico estudado, iniciandose pela coleta de dados da edificação. As fontes para essa etapa foram os acervos locais
públicos e particulares, com material iconográfico e bibliográfico, visitas de campo e
entrevistas. Em seguida foi definida a localização da edificação na malha urbana, e
posteriormente a tipologia arquitetônica, que tem relação com a função do edifício,
implantação e distribuição dos espaços internos. Os produtos dessa etapa são as
fotografias internas e externas e a representação gráfica da planta e da implantação.
Nesse momento buscou-se analisar a distribuição dos ambientes internos, bem como
hábitos e costumes na época da construção, e também classificar o estilo arquitetônico.
Procurou-se identificar também os sistemas e materiais construtivos,
permitindo o conhecimento da técnica construtiva utilizada no período da construção,
dos seus elementos estruturais e arquitetônicos característicos, e dos materiais e
métodos de sua utilização.
3.1 O Chalet Monte Negro
Ao contrário dos outros fazendeiros, encontramos diferente opção por parte do
Comendador Monte Negro, que preferiu se instalar longe do centro, próximo à Estação
Ferroviária recém-inaugurada, exatamente onde os imigrantes não pertencentes à elite
habitavam, local que Tamaso (1998) chamou de “parte baixa” da cidade. Essa região
compreendia o entorno da Vila Monte Negro, próximo ao prédio da Estação
Ferroviária e ao ‘chalet’ do Comendador, sendo que ambas as edificações pertenciam
ao Comendador João Elisário de Carvalho Monte Negro. Próspero fazendeiro de café,
Monte Negro loteou essas terras e fundou a Vila Montenegro, doando uma parte para
a instalação do prédio da Estação Ferroviária e construindo, em 1896, o ‘chalet’ em um
dos seus terrenos. O fechamento do terreno desse casarão era feito por meio de gradis
de meia altura em 1903, mas atualmente é cercado por muros altos, e tanto o portão de
acesso principal quanto o portão para automóveis são em madeira, sem ornamentos.
Monte Negro emigrou para o Brasil no início da década de 1840, vindo de
Lousã, próximo a Coimbra, Portugal, e se dedicou primeiramente ao comércio,
trabalhando como caixeiro viajante. Realizou sua primeira viagem à província de São
Paulo em 1856, e já em 1867 comprou as terras onde fundou a Colônia Nova Louzã,
onde se estabeleceu com 29 imigrantes portugueses, “com trabalho livre e remunerado
em plena época do regime de escravidão no Brasil”, segundo Bartholomei (2010). Em
1894 realizou uma viagem à Europa, retornando um ano depois, e em 1896 construiu
seu casarão, conhecido em Pinhal como ‘chalet’ do Comendador. Faleceu em 8 de maio
de 1915, com quase 91 anos, solteiro, e está sepultado no Cemitério Municipal de
Pinhal em um túmulo simples, segundo seu desejo expresso em testamento. Como não
teve filhos, deixou o chalé para seu sobrinho Alfredo. O segundo proprietário do
casarão era da família Pieroti, e em 1949 passou a pertencer a Fernando V. Martins,
sendo que sua esposa, Lavínia Lessa Martins, vendeu o imóvel em 1976 para o atual
proprietário, Jacob Leme Antunes.
199
Entendemos que a opção do Comendador por construir sua residência nesse
local se deve ao fato de ser possuidor de quase todo o entorno nessa região, e, além
disso, também era imigrante como a maior parte da população desse local. Foi uma
pessoa de ideias progressistas, avançadas para a época, e pudemos perceber pelos
registros que era uma pessoa altruísta, livre de preconceitos. Talvez por tudo isso
Monte Negro tenha se sentido livre para se instalar em suas terras, em oposição à elite
do entorno da Igreja Matriz. Acreditamos, inclusive, na hipótese de ter sido o
Comendador de certa forma excluído da sociedade abastada da época, ainda que de
maneira sutil e velada, por causa de seus pensamentos de liberdade em uma época de
escravidão; de igualdade em um tempo da mais marcada discriminação social.
O terreno onde foi construído o sobrado em 1896 tem um pequeno declive. É de
uso residencial, elevado do solo com base de pedra e com porão que aproveita o
declive natural do terreno, e as paredes são de tijolos, fabricados na olaria da Colônia
Nova Louzã, de sua propriedade, contendo suas iniciais. Foi erguido no alinhamento e
com jardins laterais, sendo sua volumetria movimentada. Está implantado em lote
bastante irregular, com seu formato parecido com um triângulo, e três faces são
voltadas para diferentes ruas. A fachada frontal é simétrica, e as demais fachadas
voltadas para a rua apresentam apenas janelas. As fachadas voltadas para o jardim
lateral e para o quintal apresentam portas e janelas.
Figuras 2 e 3. Fichas de levantamento do Chalet Monte Negro. A primeira imagem contem as
informações gerais do edifício; a segunda imagem mostra sua localização e ambiência. (Fonte:
Ferreira, 2010)
200
Figuras 4 e 5. Fichas de levantamento do Chalet Monte Negro. A figura 4 mostra a implantação
do edifício, e a figura 5 mostra a planta do térreo. (Fonte: Ferreira, 2010)
201
Figuras 6 e 7. Fichas de levantamento do Chalet Monte Negro. A figura 6 mostra a planta do
pavimento superior, e na figura 7 vemos a descrição arquitetônica e dados tipológicos e
construtivos. (Fonte: Ferreira, 2010)
Figuras 8 e 9. Fichas de levantamento do Chalet Monte Negro. A duas figuras apresentam a
descrição arquitetônica e os dados tipológicos e construtivos. (Fonte: Ferreira, 2010)
202
Figuras 10 e 11. Fichas de levantamento do Chalet Monte Negro. A figura 10 trata do estado de
conservação e das intervenções realizadas no edifício. A figura 11 mostra os dados históricos
encontrados e a proteção existente, quando há, dos órgãos de preservação. (Fonte: Ferreira,
2010)
Conclusão
A arquitetura do século XIX vem sendo progressivamente estudada e
reavaliada, em um processo iniciado há algumas décadas, passando necessariamente
pela quebra dos preconceitos. Esse movimento certamente está contribuindo para o
surgimento de uma nova consciência sobre a proteção e a restauração do patrimônio
cultural do século XIX e das primeiras décadas do século XX. Essa arquitetura guarda
em si valores culturais, sociais e simbólicos. São representantes de distinção social e
poder econômico de uma época de importantes e significativas transformações. É
fundamental a preservação dessas referências que representam as raízes culturais do
lugar, documentos vivos da memória cultural da cidade.
A construção do inventário de bens arquitetônicos e posteriormente uma
análise da edificação em seu contexto mais amplo são etapas indispensáveis no
processo de registro de bens culturais, trabalho necessário no sentido de incentivar a
preservação dos mesmos e viabilizar ações municipais nesse sentido. Além disso,
almejamos propiciar um maior conhecimento do lugar, das pessoas e das edificações,
pois conhecendo a história entenderemos nosso presente. Verificamos uma
preocupante escassez de estudos referentes ao objeto, o que certamente impede que
ações que assegurem sua manutenção sejam devidamente tomadas. Não se preserva
aquilo que não se conhece, é preciso dar a conhecer para então saber preservar. Nesse
sentido, através do registro dessa arquitetura, pretendemos apresentar alguns
subsídios para contribuir para que haja maior conscientização sobre a necessidade de
preservação desse patrimônio como documento histórico e arquitetônico.
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204
PELAS CIDADES: JORNADAS DE PLANEJAMENTO
MUNICIPAL PELA PROTEÇÃO DA MEMÓRIA E DO
PATRIMÔNIO CULTURAL DOS MUNICÍPIOS86
Fabio Jose Martins de Lima
Resumo
O trabalho é parte do Programa Urbanismo em Minas Gerais, da
Universidade Federal de Juiz de Fora – URBANISMOMG/UFJF, o qual
inclui atividades de pesquisa e extensao aplicadas as cidades do Estado de
Minas Gerais, Brasil, particularmente nas municipalidades da Zona da
Mata Mineira. A comunicaçao sintetiza os ultimos resultados, com
prioridade para as questoes socio-culturais e naturais, buscando contribuir
para o desenvolvimento urbano qualificado das cidades. Para discutir as
demandas atuais das cidades, participaçao se coloca como essencial na
perspectiva da gestao democratica das cidades. Neste sentido, foram
propostos oficinas com professores e servidores municipais, os quais foram
envolvidos nas discussoes relativas ao planejamento urbano, priorizando o
tema do patrimonio cultural. O trabalho tem o apoio do Ministerio da
Cultura e se vincula aos resultados da pesquisa em planejamento urbano
com o suporte da CAPES, CNPq, Min Cidades e FAPEMIG.
Palavras chave: patrimonio cultural, participaçao e planejamento urbano.
Introdução
A participação se coloca como essencial na atualidade, considerando as
possibilidades de gestões democráticas, de acordo com a Lei no10.257, o Estatuto das
Cidades, aprovado em 2001. Muitas dificuldades se colocam para pensarmos os rumos
futuros das cidades. Esta constatação não é de hoje e podemos dizer que planos não
O texto expõe resultados de atividades de pesquisa e extensão junto ao Grupo Urbanismo em Minas
Gerais, cadastrado no CNPq, vinculado ao Departamento de Arquitetura e Urbanismo da Faculdade de
Engenharia da UFJF. Estas atividades envolvem a continuidade de estudos anteriores com a participação
de professores, pesquisadores e alunos graduandos. Desde 1994, o NPE URBANISMOMG trabalha com
projetos de pesquisa envolvendo idealizações e realizações urbanísticas para as cidades mineiras,
inicialmente com o apoio do CNPQ e, posteriormente, com o apoio da FAPEMIG, que se inserem na rede
de pesquisa Urbanismo no Brasil, coordenada pela Professora Maria Cristina da Silva Leme, da FAUUSP.
A partir de 2005, os desdobramentos da pesquisa foram ampliados através de ações extensionistas
relacionadas aos municípios próximos à Juiz de Fora, abrangendo temas vinculados à questão do
Planejamento Urbano e Rural. Com o desenvolvimento do PROEXT Cultura, em 2008, foram realizadas as
oficinas de planejamento, com ações em municípios da região de grande aproveitamento.

UFJF . [email protected]
86
205
faltaram. De tudo o que foi pensado e projetado para as cidades, pouco foi
implementado. O que temos hoje são aglomerações cada vez mais segmentadas e
desiguais. Novas ocupações e parcelamentos em áreas de proteção permanente se
tornaram lugares comuns nas expansões urbanas. Em muitos dos casos a própria
formação da cidade já foi definida de maneira inadequada. Para uma reflexão sobre o
futuro de nossas urbes torna-se necessário o entendimento, no passado e no presente,
das práticas e do pensamento sobre as cidades. Por esta via, temos a compreensão do
município na sua globalidade e a relação com os municípios do entorno, tendo em
vista a definição de diretrizes urbanísticas para o desenvolvimento urbano e rural. Isto
implica considerar a inserção dos municípios em regiões de planejamento. Os temas
que se interpõem são diversos, como a proteção da memória e do patrimônio cultural,
a preservação da paisagem natural, a educação, a saúde, a assistência social, o
transporte e a circulação urbana e rural, a habitação, as infraestruturas urbanas, dentre
outros. Emerge, assim, a necessidade de se pensar em um desenvolvimento que
considere a inclusão social e a distribuição de renda.
A compreensão do município e sua região na globalidade e a relação com os
municípios do entorno, permite pensar diretrizes urbanísticas para o desenvolvimento
urbano e rural conjunto destes municípios. O enfoque sobre os municípios numa
perspectiva de analise comparada busca uma aproximação sobre especificidades locais
e regionais em termos de demandas sócio-culturais. A capacitação através de oficinas
de planejamento de caráter multidisciplinar mostra-se necessária para o envolvimento
das comunidades envolvidas. Por meio destas oficinas se coloca a sensibilização com
relação aos temas relacionados ao planejamento urbano, com particular atenção para a
proteção da memoria e do patrimônio cultural, em suas diversas manifestações.
Por esta via, o principal argumento para o desenvolvimento das Jornadas de
Planejamento em 2012 está relacionado à continuidade de projetos que envolvem
atividades de pesquisa e de extensão nas regiões do Estado de Minas Gerais, numa
perspectiva de análise comparada, com vistas à compreensão de especificidades locais
e regionais. Há o interesse em trabalhos conjuntos aos municípios, principalmente de
cunho sociocultural, que possam contribuir para o desenvolvimento urbano e rural
qualificado.
Vale mencionar que a participação no grupo de profissionais de outras áreas,
além da Arquitetura e do Urbanismo, como Turismo, Comunicação, Engenharias,
Geografia, Estatística e História, tem ampliado a visão sobre os problemas urbanos,
particularmente sobre a problemática relacionada à proteção do patrimônio cultural.
Eventos e publicações têm possibilitado a apresentação dos resultados da pesquisa e
ampliado os debates.
1. Planejamento e patrimônio
A construção das cidades como um processo longo na história revela densidades
de tempos diferenciados e contrastes entre o passado e o presente. Nos dias de hoje,
muitas são as dificuldades colocadas, em graus de complexidade distintos, em se
pensar os rumos futuros. Em Minas Gerais, particularmente, inúmeros planos, projetos
e propostas foram elaborados por técnicos na tentativa de organizar os sistemas e usos
da cidade, com o intuito de melhorar a vida urbana. No entanto, muito do que foi
206
pensado não foi executado como deveria, ou mesmo não se encaixou na realidade
efetiva.
Desta forma, como síntese deste processo, tem-se a formação de aglomerações
urbanas cada vez mais segmentadas e desiguais, com novas ocupações e
parcelamentos em áreas de proteção permanente como lugares comuns nas expansões
urbanas, além de inúmeros serviços nas áreas da saúde, educação, transporte, lazer,
entre outros, que representam o direito à cidade e, entretanto, não são oferecidos por
falta de um planejamento adequado.
O que se busca, em termos de aproximações sobre a história das cidades, é a
compreensão deste processo como uma chave de reflexão sobre o futuro das urbes, em
suma, o entendimento do passado e do presente, do que foi implementado e do que foi
pensado. Neste contexto, o passado atua na fundamentação das propostas sobre as
cidades existentes e as novas expansões, já que a percepção do processo contínuo de
transformações sobre as cidades coloca-se de modo emergente na atualidade, para que
se possa prever o seu futuro de maneira planejada.
A compreensão do município e sua região na globalidade, bem como a relação
com os municípios do entorno, possibilitam diretrizes urbanísticas para o
desenvolvimento urbano e rural conjunto destes municípios. Dentre outros fatores que
emergem, destaca-se a necessidade de se pensar um desenvolvimento que considere a
inclusão social e a divisão de renda, além da compreensão de que os temas se
interpõem neste cenário e são diversos, podendo ser aqui citados a proteção da
memória e do patrimônio cultural, a preservação da paisagem natural, a educação, a
saúde, a assistência social, o transporte e a circulação urbana e rural, a habitação, as
infraestruturas urbanas, dentre outros.
A perspectiva que se coloca, de análise comparada, busca a compreensão das
especificidades locais e regionais, acerca das demandas colocadas pelos municípios em
Minas Gerais, particularmente na região da Zona da Mata. Por esta via segue a atuação
do Programa Urbanismo em Minas Gerais da Universidade Federal de Juiz de Fora –
UFJF, através do Núcleo de Pesquisa e Extensão Urbanismo em Minas Gerais, tendo
em vista a definição de diretrizes urbanísticas para o desenvolvimento urbano e rural
em bases sustentáveis. Pode-se destacar que a preservação da memória e do
patrimônio cultural inseridos no ambiente urbano e rural dos municípios auxilia muito
na formação da identidade cultural. Percebe-se que as transformações urbanísticas das
cidades intercalam diversas intervenções, as quais envolvem, muitas vezes, renovações
e reabilitações do seu ambiente construído.
É importante salientar a necessidade do entendimento das origens dos núcleos
urbanos para compreender todo o percurso histórico de sua sociedade e finalmente
propor mudanças e melhorias em suas projeções de crescimento. Para isso, os bens de
importância cultural e ambiental tangível e intangível de um município devem ser
considerados como parte da ambiência da cidade, fazendo dela única. As cidades que
se tornam genéricas, sem identidade ou sem referenciais não promovem fluxos e não
evoluem.
Dessa forma, o pensamento sobre a proteção e conservação do patrimônio
cultural, seja este ambientai, móvel ou imóvel, tangível ou intangível, deve estar
207
intrínseco ao pensamento sobre o desenvolvimento urbano. Para tanto, as cartas
patrimoniais e o Decreto-Lei Federal no 25, de 30 de novembro de 1937, em particular,
que organiza a proteção do patrimônio histórico e artístico nacional, devem ser
referências constantes sobre o destino das cidades.
1.1 Importância do processo participativo
A participação coloca-se como essencial na atualidade para as abordagens sobre
os meios urbanos e rurais, na perspectiva de gestões democráticas. Assim preconiza a
Lei nº 10.257, o Estatuto das Cidades, aprovado em 2001. A perspectiva que se coloca é
aquela da participação comunitária, considerando as especificidades locais e regionais.
Pensar o município na sua globalidade e a relação com os municípios do entorno é
essencial, o que implica considerar a inserção municipal em uma região de
planejamento.
Essa estratégia envolve a elaboração de planos diretores, na perspectiva colocada
pelo Estatuto da Cidade, que traz a regulamentação dos artigos números 182 e 183 da
Constituição Federal. Os princípios e normas constitucionais, nestes artigos, referem-se
às Políticas Urbanas, e é o Estatuto da Cidade que regulamenta tais artigos com
diretrizes específicas, de forma a contribuir com uma gestão mais eficiente e eficaz, na
perspectiva da descentralização e da participação da sociedade civil. Assim, no
Capítulo III, relativo ao Plano Diretor, o Estatuto ressalta que “... a propriedade urbana
cumpre sua função social quando atende às exigências fundamentais de ordenação da cidade
expressas no Plano Diretor, assegurando o atendimento das necessidades dos cidadãos quanto à
qualidade de vida, à justiça social e ao desenvolvimento das atividades econômicas (...)”.
A renovação das esperanças por um futuro melhor, para as gerações que virão,
está relacionada às políticas públicas construídas de modo coletivo, que considerem a
requalificação urbana e rural dos municípios. Neste sentido, pensar mecanismos de
gestão de planejamento municipal com efetiva participação comunitária emerge nas
discussões atuais. A referencia aqui ao planejamento municipal, considera várias
frentes como desafios a serem enfrentados pelas administrações locais, numa
perspectiva de desenvolvimento que considere a inclusão social e a distribuição de
renda.
As leis dos Planos Diretores, debatidas em conferências públicas e aprovadas
pelas Câmaras Municipais, como uma esperança para a requalificação dos municípios,
ainda estão por se materializar. O potencial interesse turístico, que motivou a
elaboração das leis dos planos diretores em determinados municípios, ainda encontrase fragmentado. A ênfase no patrimônio cultural dos municípios, revelado por
paisagens exuberantes, cursos d’água abundantes e cenários bucólicos, além de
conjuntos urbanos e rurais edificados, reacendeu as esperanças por um futuro melhor.
Os vários tempos da memória da ocupação trazem boas lembranças do passado e
incertezas quanto às opções recentes em termos de renovações.
A perspectiva que se coloca, então, considerando a inclusão social, a
acessibilidade, dentre outros aspectos citados, é a de uma compreensão mais
abrangente das questões para repensar os espaços construídos e os naturais. Ficam as
dificuldades mencionadas na esperança da melhoria da qualidade de vida nos meios
208
urbanos e rurais, por um desenvolvimento em bases sustentáveis para as cidades
mineiras.
2. As Jornadas pelas Cidades
O projeto apresentado desenvolve-se em três cidades da Zona da Mata Mineira,
especificamente na Microrregião de Juiz de Fora: Matias Barbosa, Chácara e Pequeri
(fig.1). Seus limites são definidos à sudeste pela divisa dos estados de Minas Gerais e
Rio de Janeiro, à noroeste, norte e nordeste, respectivamente, às microrregiões de
Barbacena, Ubá e Cataguases, e à sudoeste pela mesorregião Campo das Vertentes. Os
três municípios estão inseridos na bacia hidrográfica do rio Paraibuna que também
compõe a bacia do Paraíba do Sul, um dos rios mais importantes da região sudeste do
Brasil.
Figura 1. Municípios que integram o projeto Jornadas de Planejamento
Municipal: pela memoria e pelo patrimônio cultural dos municípios. Fonte:
acervo NPE URBANISMOMG, 2012.
Tal projeto é organizado por etapas, levando-se em conta um processo de
construção coletiva, que considere as especificidades físico-geográficas, bem como a
inclusão de todos os segmentos socioculturais. Para atingir os objetivos propostos, já
foram realizadas atividades que envolvem incursões em acervos locais e regionais para
levantamentos de dados, entrevistas com as comunidades (fig.2), e demais trabalhos de
campo. Nesta etapa, foram retomados pesquisas e levantamentos já desenvolvidos
sobre os municípios, na perspectiva de uma complementação da revisão de literatura.
Esta complementação foi desencadeada nos acervos locais junto às prefeituras e em
acervos situados em centros urbanos médios e grandes, incluindo acervos em Belo
Horizonte/MG, contemplando documentação gráfica e fotográfica.
O mapeamento cultural dos municípios merece ser destacado, inicialmente
construído no processo de elaboração dos planos diretores, que se compõe de
209
representações da realidade urbana e rural, tendo em vista leituras atuais desta
realidade e projeções futuras. Tal mapeamento tem como base fotografias aéreas,
imagens de satélites, mapas e plantas urbanas, que, associadas ao trabalho de campo,
representam os seguintes dados: manchas urbanas, da sede municipal e dos distritos;
fragmentos vegetais relevantes; bacias hidrográficas – rios, ribeirões, córregos e
nascentes; cachoeiras e formações rochosas; estradas, caminhos e identificação das
referências culturais – dos bens imóveis e móveis nos municípios trabalhados.
Figura 2. Aspecto de atividade de entrevista com
moradora da cidade de Pequeri/MG. Fonte:
acervo NPE URBANISMOMG, 2012.
A produção dos mapas consiste no levantamento de dados, edição desses dados
e publicação em meio digital e impressos. Além do levantamento de dados geográficos
em órgãos governamentais, foram necessárias visitas a campo para complementação
do levantamento. Com o uso do aparelho de GPS (System Position Global), pontos de
interesse cultural e ambiental foram marcados e georeferenciados. Os mapas ainda se
encontram em fase de elaboração.
Feito o levantamento de cada uma das cidades, a comparação destes dados,
principalmente quando temos mais de uma localidade para investigação, fornece
interessantes observações e significantes indicações sobre as potencialidades do
patrimônio ambiental e cultural nestes municípios, podendo auxiliar na demarcação,
implantação, gestão e planejamento destas potencialidades voltadas para o
aproveitamento turístico-cultural. Este material subsidiou a apresentação das oficinas
para a capacitação.
O que se pretende com as oficinas é pensar a proteção da memória e do
patrimônio cultural dos municípios, promovendo a capacitação de professores e
alunos, no tocante aos temas relacionados ao planejamento urbano e rural, e
proporcionar uma perspectiva de análise comparada da participação no âmbito das
administrações municipais. A partir das especificidades de cada local, podem ser
definidas diretrizes para a expansão urbana, e não apenas parâmetros, pois estas
compõem planos globais e integrados considerando a cidade e suas vizinhanças,
visando um desenvolvimento sustentável e a sensibilização comunitária acerca da
proteção patrimonial.
210
Desta forma, procura-se estabelecer diretrizes que promovam o
desenvolvimento urbano e rural qualificado, considerando as especificidades e as
demandas locais e regionais, visando maior sensibilização da comunidade, permitindo
a visualização, espacialização, distribuição, zoneamento, potencialidades do
patrimônio ambiental e cultural das áreas em estudo, e possibilitando uma maior
interface entre os órgãos públicos, os pesquisadores e a comunidade.
As oficinas são interativas, envolvendo a participação comunitária de maneira
efetiva, não tendo o objetivo único de levar o conhecimento. Mais do que o sentido da
educação, a ideia é abrir uma via de mão dupla, no momento em que se leva e, ao
mesmo tempo, são trazidos conteúdos, através dos quais se entende melhor, com a
visão de quem é do lugar, o que aquela determinada comunidade valoriza e entende
como patrimônio. A oficina acontece durante um dia inteiro em cada cidade, sendo
dividida basicamente em três momentos: o momento inicial com a realização de
dinâmicas, um segundo que consiste em apresentação de conceitos acerca do tema, e o
momento final do jogo do patrimônio.
A primeira dinâmica (fig.3) tem por objetivo interagir os participantes de forma
descontraída, a partir de um jogo de perguntas aleatórias e apresentação pessoal de
cada participante. É desenvolvida com os participantes em circulo, e uso de balões com
cartões de perguntas que eles próprios fazem uns aos outros, com alguma relação
direta ao trabalho a ser desenvolvido pelo núcleo de pesquisa.
Figura 3. Dinâmica de apresentação realizada
em Pequeri/MG, também desenvolvida para
os outros municípios, a saber, Chacara/MG e
Matias Barbosa/MG. Fonte: acervo NPE
URBANISMOMG, 2012.
Figura 4. Dinâmica mapa mental realizada
em Pequeri/MG, também desenvolvida
para os outros municípios, a saber,
Chacara/MG e Matias Barbosa/MG. Fonte:
acervo NPE URBANISMOMG, 2012.
Outra dinâmica proposta é a do mapa mental (fig.4), que, além de ser uma
ferramenta de organização de ideias através de um diagrama, é uma forma de
exteriorizar suas opiniões. No caso do mapa mental da jornada de planejamento
municipal, o objetivo principal é fazer com que os participantes da oficina, ao
desenharem a imagem que tem em mente da sua cidade, destacando seus principais
pontos, sejam positivos ou negativos, despertem o sentido de pertencimento àquela
cidade. É a partir deste sentimento de pertencimento que surge a valorização do seu
211
lugar e assim a proteção deste. Para essa atividade, o público é divido em grupos, entre
os quais são distribuídos os materiais de desenho. Cada grupo elabora o seu mapa
mental da cidade e posteriormente apresenta a todos.
Após as duas primeiras dinâmicas, o grupo do núcleo Urbanismomg faz uma
breve apresentação (fig.5) dos principais conceitos e referências referentes à temática
patrimonial, desde o próprio conceito de patrimônio, relacionado à memória e
identidade, passando pelas diferentes formas de manifestação desse patrimônio e
proteção do mesmo, até os marcos legislativos e leis/programas de incentivo no que
diz respeito a essa questão. Nesse momento, é apresentado ainda um breve histórico
do local, com os bens e leis patrimoniais específicos do município trabalhado.
O jogo do patrimônio (fig.6), por sua vez, é a atividade final das oficias.
Consiste em um tabuleiro com cartas e dados, em versões física e digital,
desenvolvidas pelo núcleo de pesquisa. Traçado com a intenção de incentivar a
conservação dos patrimônios e a importância destes para a formação da identidade da
cidade, as cartas, que ditam o funcionamento do jogo, criam momentos fictícios de
vivencias do cidadão com o patrimônio e as problemáticas enfrentadas para a
preservação do mesmo. Abrangendo diversas formas positivas e negativas de ação, o
jogador é agraciado ou penalizado através do deslocamento pelo tabuleiro, até que um
grupo atinja a linha de chegada.
Figura 5. Apresentação dos conceitos e temas
ligados ao patrimônio cultural no município de
Chácara/MG, também desenvolvido nos outros
municípios, a saber, Pequeri/MG e Matias
Barbosa/MG..
Fonte:
acervo
NPE
URBANISMOMG, 2012.
Conclusão
Pensar e propor intervenções e diretrizes para as cidades com participação da
comunidade local permite uma compreensão mais abrangente de como se articulam as
suas ocupações e de como estas ocupações, como apropriações de territórios, fazem
parte da construção da memória social do lugar. Isso permite e provoca repensar os
212
espaços construídos, tendo em vista os grupos e os seus territórios carregados de
significados e conteúdos.
Para os pesquisadores, colaboradores e alunos envolvidos, trata-se de poder
vivenciar realidades diferenciadas como um laboratório que inclui atividades de
pesquisa e extensão. Para as comunidades envolvidas, tomar conhecimento do que se
desenvolve no âmbito acadêmico faz ver a importância destes trabalhos e permite
também compreender melhor a diversidade que se revela nestes espaços, como
reflexos dos múltiplos horizontes históricos. Afinal, a consideração da experiência
acumulada permite reavaliar as soluções possíveis.
Figura 6. Jogo do patrimônio, tabuleiro referente à Chácara/MG,
também em fase de desenvolvimento para os outros municípios, a
saber, Pequeri/MG e Matias Barbosa/MG.. Fonte: acervo NPE
URBANISMOMG, 2012.
Acredita-se que trabalhar em bases sustentáveis é uma opção viável para tais
cidades devido ao pequeno porte dos municípios e à maior facilidade de se ter uma
administração, planejamento e uma organização espacial urbana, ainda que estas
cidades sejam organismos vivos em constante crescimento e mutação. Entende-se
ainda que trabalhar com a conservação e preservação dos diversos tipos de
patrimônios locais é uma forma de se estimular a cultura local, proporcionar uma
identidade cultural, o reconhecimento dos munícipes em seu espaço, o interesse
turístico, e maior qualidade dos espaços públicos, com a conservação da história local e
regional.
Após o fechamento das jornadas de planejamento municipal, os trabalhos não se
encerram, já que a proposta é continuar apoiando na conscientização e disseminação
das diretrizes e importância dos planos diretores, além da produção de materiais para
213
esses municípios, sempre visando à importância da participação coletiva na construção
e consolidação do desenvolvimento urbano e rural em bases sustentáveis.
Ao longo do desenvolvimento do trabalho, o material levantado e o mapeamento
construído já estão sendo digitalizados e disponibilizados para as comunidades através
do site www.ufjf.br/urbanismomg. Uma cópia impressa do jogo do patrimônio
também já foi repassada aos municípios durante as oficinas. Além disso, um guia do
patrimonio cultural cada cidade (fig.7a e b) e uma cartilha do patrimônio cultural
(fig.8) vem sendo elaborados com o objetivo de reunir os principais termos e conceitos
relativos ao patrimônio cultural e ambiental, para que as discussões desencadeadas nas
oficinas possam ser repassadas e refeitas em outros momentos através dos professores
envolvidos nas atividades. Pretende-se promover ainda uma exposição itinerante dos
trabalhos com fotografias e projeções de vídeos, a ser desencadeada nos municípios
enfocados.
Figura 7 a, b , c. Guia do Patrimonio Cultural de Chácara/MG, também em fase de
desenvolvimento para os outros municípios, a saber, Pequeri/MG e Matias Barbosa/MG.
Fonte: acervo NPE URBANISMOMG, 2012.
214
Figura 8. Cartilha do Patrimonio Cultural, também em fase de desenvolvimento para
os outros municípios, a saber, Pequeri/MG e Matias Barbosa/MG.. Fonte: acervo
NPE URBANISMOMG, 2012.
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217
PLANO DE GESTÃO DA CONSERVAÇÃO PARA
EDIFICAÇÕES DE VALOR CULTURAL
Jorge Eduardo Lucena Tinoco
Resumo
Esta comunicação trata do Plano de Gestão da Conservação como um
instrumento de planejamento que estabelece uma política de administração
para o uso adequado dos espaços e dos componentes construtivos, bem
como da manutenção periódica do imóvel. Aborda a carência atual no
âmbito técnico especializado da conservação do patrimônio construído dos
procedimentos para elaboração de um documento que concilie os processos
políticos e administrativos de dotações orçamentárias e de captações
financeiras versus as necessidades técnico-operacionais das obras e dos
serviços. O artigo apresenta o case do Plano de Gestão da Conservação da
Basílica da Penha, elaborado pelo CECI no ano de 2006, como uma
experiência exitosa para a garantia da integridade e autenticidade de um
bem cultural construído.
Palavras-chave: plano de gestão de conservação; plano diretor de
conservação; conservação do patrimônio.
Introdução
O Plano de Gestão da Conservação para edificações de valor cultural é um
instrumento de planejamento que estabelece uma política de administração para o uso
adequado dos espaços e dos componentes construtivos, bem como da manutenção
periódica do imóvel. Tem como finalidade a garantia para a sociedade da integridade
física do edifício e dos valores de significância do bem cultural que se quer preservar.
Trata-se de uma ferramenta que se apresenta como um novo modelo de gestão a ser
adotado pelo Poder Público e pela Inciativa Privada na conservação do patrimônio
cultural construído.
No Brasil de hoje, é patente que os métodos correntes e as técnicas de projetos de
restauro privilegiam apenas a execução das obras, seguindo na contramão das
condutas mais avançadas para a salvaguarda da herança cultural construída. Há uma
lacuna no meio técnico especializado da conservação do patrimônio construído sobre
os procedimentos para elaboração de um planejamento integrado para a conciliação
dos processos políticos e administrativos de dotações orçamentárias e de captações
financeiras versus as necessidades técnico-operacionais das obras e dos serviços.
É comum constatar-se que os projetos de conservação são totalmente dissociados
das ações periódicas e contínuas da gestão e da manutenção da edificação. O
planejamento mais avançado tem que extrapolar as questões básicas e cotidianas
comuns às planilhas orçamentárias e aos cronogramas físico-financeiros dos projetos.
Não se fazer previsões ou se estabelecer parâmetros e custos quanto à manutenção da
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CECI, [email protected]
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edificação que se pretende empreender a conservação e o restauro é uma prática lesiva
aos cofres públicos e a poupança privada.
Desde a criação de programas governamentais sistematizados de preservação, a
partir da década de 1970 até os primeiros anos deste novo século, as obras e os serviços
em edificações de valor cultural, sob a proteção do Poder Público, valem-se da
expertise dos profissionais e dos métodos operacionais da construção civil na condução
dos principais empreendimentos. O Curso de Gestão de Restauro do CECI , através de
viagens de estudos pelas principais cidades históricas do Nordeste e Sudeste do Brasil,
tem verificado que as expectativas quanto à qualidade final das intervenções tomam de
empréstimo parâmetros utilizados pelo mercado imobiliário, particularmente das áreas
das construções habitacionais e comerciais, nem sempre adequadas aos materiais,
técnicas e sistemas construtivos tradicionais. Dentre os vários materiais e
procedimentos aqueles que mais causam interferências nas edificações antigas são os
relativos às inovações tecnológicas, particularmente de materiais sintéticos para
impermeabilidade e estanqueidade das estruturas e revestimentos, conforto térmico,
comunicações etc..
Dos projetos da primeira hora do PCH – Programa de Cidades Históricas aos
atuais relativos aos eixos um e dois do PAC das Cidades Históricas não há previsões
de dotações orçamentárias (para o caso do Ente Público) ou de capacidade econômicofinanceira (no caso de Ente Privado) para se manter adequadamente o uso da
edificação, sequer num horizonte mínimo de dez anos.
Ainda em nosso meio, parece que a antiga assertiva do artigo 9º da Carta de
Veneza de 1964 de que a restauração é uma operação que deve ter um caráter
excepcional ainda não encontrou a ressonância no âmbito do Poder Público seja
federal, estadual ou municipal, e quiçá em alguns profissionais especialistas. A
restauração deve ceder à conservação. A política de manutenção tem se de ser
estimulada, implementada e garantida. Urge, portanto, uma mudança de paradigma.
1. Plano de Gestão da Conservação
O Plano de Gestão da Conservação – PGC é composto por um conjunto de
documentos técnicos comprometidos com ações integradas de curto, médio e longo
prazos para a realização de ações conservativas que não podem mais ser abordadas
com a visão imediata da obra de restauro, que se encerra com as solenidades de
aposição de placas pelos políticos ou de outras comemorações.
PGC não se limitada às ações das obras em si. Os procedimentos relacionados no
Plano devem ir além da entrega das obras ou serviços, monitorando a gestão do uso,
bem como os desgastes e as falências naturais dos seus componentes construtivos.
Neste sentido, destacam-se as recomendações e orientações sobre as ações periódicas
de inspeções e manutenções, bem como as estimativas dos custos desses
procedimentos. A elaboração do plano deve ser iniciada pari passu com a idealização
dos projetos, ainda nas pranchetas dos profissionais . Devem respaldar-se em estudos e
no conhecimento dos procedimentos necessários às rotinas de inspeções e
manutenções periódicas dos materiais e técnicas construtivas a especificar. A antevisão
das capacidades de carga, a vida útil dos materiais, as situações de riscos,
necessariamente, têm de ser abordadas.
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Apresenta-se a seguir as experiências do CECI na elaboração e implementação do
Plano para a Basílica de Nossa Senhora da Penha, localizada na cidade do Recife, em
Pernambuco no período de fev/2006 a dez/2012.
2. Basílica de Nossa Senhora da Penha – Caso
O PGC da Basílica da Penha foi elaborado pelo CECI no ano de 2006 por
demanda da Província de Nossa Senhora da Penha do Nordeste do Brasil – PRONEB.
O plano foi executado em duas etapas pelo fato de a edificação encontrar-se em estado
iminente de sinistros por incêndios e por desabamentos. A primeira etapa consignou a
proposta básica de intervenção das obras e serviços de conservação e restauro; a
segunda contemplou os procedimentos e as orientações para a gestão do acervo
cultural construído dos Capuchinos e as medidas para as inspeções e manutenções
periódicas dos componentes construtivos, bem como as estimativas dos custos com
essas despesas.
O plano da Basílica consistiu na estruturação de ações de conservação integrada ,
reunindo um conjunto orientações técnicas direcionadas às intervenções físicas em
nível de restauro da edificação. O plano tratou da identificação dos atributos tangíveis
e intangíveis significativos da Basílica a serem preservados, sinalizou as patologias e os
danos mais evidentes, definiu os principais atores responsáveis pela sua conservação e
meios para sustentabilidades atuais e futuras da conservação do edifício. Teve por
objetivo oferecer subsídios aos Frades sobre as práticas protetivas de forma a instruir o
pedido de tombamento em níveis estadual e federal, e de sugerir as alterações
necessárias em seus Estatutos para o favorecimento das tomadas de decisões e
implementação das ações.
O Plano teve como ponto de partida a Declaração de Significância da Basílica
cujo orago de Nossa Senhora da Penha é a santa padroeira da Indústria e do Comércio
da cidade do Recife. Essa declaração teve o intuito de evidenciar os valores essenciais
materiais e imateriais atribuídos à edificação, associados à sua estrutura de templo e às
suas práticas religiosas e sociais, merecedoras de ações de salvaguarda e proteção,
garantindo sua permanência no tempo. Assim, abriu-se a possibilidade de se instituir
uma rotina de monitoramento da conservação, capaz de assegurar a constante aferição
e avaliação das mudanças pelo dia a dia do uso, estabelecendo estratégias para se
garantir a salvaguarda do bem cultural num horizonte de até vinte anos.
O plano da Basílica foi diferenciado dos outros dois elaborados pelo CECI para
os Franciscanos de Olinda e Serinhaém devido à urgência para se eliminar os riscos de
incêndio e desabamentos. A primeira etapa foi elaborada em quarenta e cinco dias. Um
tempo recorde, considerando-se que a Basílica não possuía nenhum registro cadastral
de plantas por mais elementares que fossem. A segunda etapa foi realizada quando da
captação dos recursos financeiros junto aos governos estadual e federal e à iniciativa
privada para a execução das obras.
2.1 Etapa I – Plano de Conservação Integrada
O modelo elaborado e aplicado pelo CECI constou dos seguintes documentos:
Apresentação; Declaração de Significância; Localização; Propriedade; Vínculos Legais e
Normas de Proteção; Antecedentes Históricos; Origens da Localização; Origem da
Consagração da Construção Religiosa; Cronologia dos Processos HistóricoConstrutivos; Significância Histórica; Características Físicas da Edificação; Registros
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Cadastrais (planta-baixa, fachadas, cobertas, usos, bens integrados); Patologias e
Danos; Autenticidade e Integridade; Gestão da Propriedade (caráter social da
comunidade, sustentabilidade, conservação atual); Planilha de Orçamento (estimativas
de custos); Cronograma Físico-Financeiro; Referências Bibliográficas; Glossário; Ficha
Técnica.
Dessa etapa destacam-se dois importantes documentos para a continuidade do
plano na segunda etapa e para o novo processo de gestão adotado pelos Capuchinhos –
a Declaração de Significância e o Mapa de Danos.
A Declaração de Significância da Basílica assim manifestou-se:
A Basílica de Nossa Senhora da Penha, da Ordem dos Frades Menores
Capuchinhos constitui um imponente edifício na paisagem urbana do Bairro de São
José – fortemente marcada pela presença das torres sineiras altas e delgadas e da
enorme cúpula do transcepto, símbolos de uma forte religiosidade – que norteou a
configuração urbana do início da formação da cidade.
A volumetria da Basílica destaca-se no contexto pela sua monumentalidade e
singularidade que, além da pertinência como elemento arquitetônico, o partido de
planta em cruz, ao gosto românico, coroa a devoção religiosa cristã tão forte na cidade
do Recife.
A Basílica de Nossa Senhora da Penha merece uma emergencial ação de
conservação por reunir os seguintes valores materiais e imateriais:
- Registra a monumentalidade da arte religiosa, de estilo eclético com influência
do neoclassicismo da segunda metade o século XIX, no bairro histórico de São José,
coração da cidade do Recife;
- Representa o vigor devocional e religioso, marcante dos séculos passados e que
perdura até os dias atuais, sem perda de valor, recebendo semanalmente milhares de
fiéis para as benções de São Felix e da Virgem ;
- Apresenta expressivos valores artístico e histórico, refletidos em sua concepção
de planta, volumetria e bens integrados, bem como a introdução de elemento
abobadado em cúpula na sua coberta, materializando o poder religioso na paisagem
urbana.
- É um dos mais representativos exemplares no Brasil das técnicas construtivas
do primeiro período da Arquitetura eclética . Os trabalhos decorativos em estuque,
particularmente nas técnicas do marmorino e escaiola, tanto no interior como no
exterior, fazem-na única no Nordeste do Brasil.
O conjunto desses elementos representa a permanência dos valores simbólicos e
documentais singulares, testemunho insubstituível da religião, da arte e da história,
merecendo o ato de preservação para conhecimento e usufruto das futuras gerações.
O Mapa de Danos foi elaborado a partir de fichas que permitiu a coletada em
campo de dados técnicos das deteriorações em todos os componentes construtivos.
Esse documento serviu de base não só para a definição e dimensionamento dos
serviços, mas, também, para a elaboração da metodologia de conservação da segunda
etapa.
O mapa foi configurado a partir da produção de sessenta fichas, contendo as
principais patologias responsáveis pela degradação da Basílica. Os danos mais
significativos estavam localizados nos telhados devido às infiltrações generalizadas
pelas ações inadequadas de alteração das técnicas e dos materiais; nas instalações
elétricas remanescentes de 1918 e pela proliferação de gambiarras e extensões de força
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e energia improvisadas; nos revestimentos internos e externos das paredes, degradados
pela aplicação de tinta plásticas de base PVA látex.
2.2 Etapa 2 – Plano de Gestão da Conservação
A elaboração desse plano aprofundou as pesquisas e os levantamentos
produzidos na primeira etapa. Foram revisados, ampliados e elaborados os seguintes
documentos:
Todas as plantas cadastrais, através de levantamentos minuciosos, inclusive
simulações em virtuais em 3D das técnicas dos sistemas construtivos dos telhados e
imagens em VR360o tour ; o Inventário do Acervo dos Bens Arquitetônicos Integrados
e Aplicados, bem como do acervo do mobiliário e das alfaias; os Projetos
Complementares de Conservação e Restauro dos Elementos Artísticos com respectivas
as Planilhas de Orçamento e Cronogramas ; os Manuais de Inspeção e de Manutenção
periódicas; as alterações do Estatuto e do Regimento Interno da PRONEB.
As alterações no estatuto da PRONEB, os manuais de inspeção e manutenção
periódicas e as Fichas de Identificação de Danos – FIDs são as peças em destaque nesta
etapa. Sem estes documentos, não seriam viáveis ações planejadas de salvaguarda dos
valores de significância da Basílica dentro dos proceitos da mínima intervenção e do
respeito à autenticidade.
A principal alteração no Estatuto dos Capuchinhos foi a inserção do art. 51, onde
“O Governo Provincial-Diretoria será assistido pela Comissão de Arte Sacra no âmbito
da preservação do patrimônio cultural da Província” (PRONEB, Estatuto – abril/2012,
p. 11). Essa comissão ficou responsável pela preservação dos bens patrimoniais de
valor histórico e artístico, reconhecidos pelo Poder Público através do instituto jurídico
do tombamento, além de aqueles classificados, tombados e registrados pela própria
Comissão no Livro do Patrimônio Cultural da Província. No Nordeste do Brasil essa é
a primeira notícia que se tem da introdução de um órgão no organograma jurídico de
uma ordem religiosa para se garantir a integridade e a autenticidade dos seus bens
patrimoniais de valor histórico e artístico. Essa comissão já se encontra em atividade,
tendo contratado um profissional com amplas habilidades nos principais ofícios
tradicionais da construção, capacitado pelo CECI há mais de cinco anos, inclusive com
participação nas obras de restauro da Basílica .
Os manuais de inspeção e manutenção periódicas estabeleceram as ações de
rotina para orientar os frades e funcionários da Basílica nas suas atividades como
moradores e observadores dos espaços e dos componentes construtivos da edificação.
Com um texto coloquial fornece orientações que buscam sensibilizar essas pessoas a
criarem um olhar mais apurado, capaz de identificar pequenos sinais de degradação,
possibilitando uma intervenção precoce e menos invasiva ao patrimônio .
As Fichas de Identificação de Danos – FIDs são documentos normalizados com
registros e anotações gráficas e fotográficas sobre os danos existentes numa edificação.
As FIDs contêm os registros principais para a produção do Manual de Manutenção de
uma edificação de valor cultural porque cadastram desde as causas das degradações,
quando da elaboração do Mapa de Danos, até as condutas propostas, os métodos e os
materiais utilizados na realização das intervenções.
São os documentos essenciais e indispensáveis para os procedimentos de
intervenção de manutenções periódicas nos componentes construtivos de uma
edificação. Sem os registros das origens, natureza, agentes e causas, além das anotações
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dos procedimentos e dos materiais utilizados nas intervenções, não é possível se dar a
continuidade segura e econômica da conservação .
Conclusões
A modelagem e a aplicação do Plano de Gestão da Conservação é hoje uma
ferramenta útil à Administração das edificações de valor cultural. O Plano pode
garantir a eliminação de grandes intervenções de restauro num horizonte de até vinte
anos, proporcionando reduções significativas dos custos, possibilitando a permanência
dos valores de significância e de integridade da edificação.
O custo para a produção do Plano é relativamente baixo se comparado ao preço
final de um projeto elaborado nos moldes atualmente exigidos pelo IPHAN , pois pode
ser considerado como um projeto complementar pela Administração. Também, os
gastos com as inspeções e manutenções periódicas são reduzidos. Tomando-se por
base a área de 1.200m2 e a ordem de grandeza dos componentes construtivos e dos
elementos artísticos integrados e aplicados da Basílica da Penha, a Paróquia tem um
custo médio mensal de R$ 4.200,00 com mão de obra, mais R$ 1.800,00 com materiais.
Isto representará no longo prazo, no horizonte de vinte anos previsto no Plano, um
total de aproximadamente R$ 1.440 mil, que é apenas 10% do total a ser gasto com o
restauro em andamento . Evidentemente que alguns procedimentos de manutenção
exigirão maiores investimentos quando dos serviços previstos nas manutenções
quinquenais e decenais como as repinturas das fachadas externas, a substituição da
fiação da rede de energia elétrica, cujo horizonte de vida útil média é de dez anos, etc..
O cenário brasileiro para a gestão da conservação de edificações de valor cultural
deve ficar aberto às periódicas recomendações emanadas pelos organismos e reuniões
técnicas internacionais e nacionais. Os trabalhos que vêm sendo desenvolvidos pelo
CECI e outras instituições ajudam na ampliação desse conhecimento, pois também se
fundamentam em estudos realizados em teses de mestrado e doutorado por seus
associados, no âmbito da Academia, bem como na prática junto as entidades que
aceitaram essa nova maneira de pensar e agir sobre seus edifícios históricos.
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