Miguel Santos de Carvalho Livro de Imagem e Palhaço Mímico
Transcrição
Miguel Santos de Carvalho Livro de Imagem e Palhaço Mímico
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1011889/CA Miguel Santos de Carvalho Livro de Imagem e Palhaço Mímico: Narrativas sem palavras? Estudo sobre a construção narrativa por imagem DISSERTAÇÃO DE MESTRADO DEPARTAMENTO DE ARTES E DESIGN Programa de Pós-Graduação em Design Rio de Janeiro Abril de 2012 PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1011889/CA Miguel Santos de Carvalho Livro de Imagem e Palhaço Mímico: Narrativas sem palavras? Estudo sobre a construção narrativa por imagem Dissertação de Mestrado Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre pelo Programa de Pósgraduação em Design do Departamento de Artes & Design da PUC-Rio. Orientador: Prof. Nilton Gonçalves Gamba Jr. Rio de Janeiro Abril de 2012 Miguel Santos de Carvalho PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1011889/CA Livro de Imagem e Palhaço Mímico: Narrativas sem palavras? Estudo sobre a construção narrativa por imagem Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Design do Centro de Teologia e Ciências Humanas da PUC-Rio. Aprovada pela Comissão Examinadora abaixo assinada. Prof. Nilton Gonçalves Gamba Jr. Orientador Departamento de Artes & Design – PUC-Rio Prof. Luiz Antonio Luzio Coelho Departamento de Artes & Design – PUC-Rio Prof. Rui Gonçalves de Oliveira Escola de Belas Artes – UFRJ Profa. Denise Berruezo Portinari Coordenadora Setorial do Centro de Teologia e Ciências Humanas da PUC-Rio Rio de Janeiro, 3 de Abril de 2012 Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução total ou parcial do trabalho sem autorização da universidade, do autor e do orientador. Miguel Santos de Carvalho Graduado em Desenho Industrial, com habilitação em Programação Visual pela Escola de Belas Artes da Universidade Federal do Rio de Janeiro e Pós-Graduado em Literatura Infanto-Juvenil pela Universidade Federal Fluminense. Membro do Laboratório de Design de Histórias da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro desde 2006. Participou de diversas exposições e tem 6 livros publicados como Autor/Ilustrador. PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1011889/CA Ficha Catalográfica Carvalho, Miguel Santos de Livro de imagem e palhaço mímico : narrativas sem palavra? : estudo sobre a construção narrativa por imagem / Miguel Santos de Carvalho ; orientador: Nilton Gonçalves Gamba Jr. – 2012. 137 f. : il. (color.) ; 30 cm Dissertação (mestrado)–Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Departamento de Artes e Design, 2012. Inclui bibliografia 1. Artes e design – Teses. 2. Livro de imagem. 3. Palhaço mímico. 4. Teatro. 5. Livro ilustrado. 6. Ausência. 7. Linguagem. 8. Discurso. 9. Narrativa. I. Gamba Jr., Nilton Gonçalves. II. Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Departamento de Artes & Design. III. Título. CDD: 700 PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1011889/CA Dedico este estudo ao meu primeiro sobrinho, que já está a caminho. PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1011889/CA Agradecimentos Ao meu orientador professor Nilton Gamba Jr. pelas palavras de conforto nos momentos de desespero e as palavras desesperadoras nos momentos de conforto. Também pela delicadeza, gentileza e generosidade com que orientou este trabalho. À minha mãe e ao meu pai pelo amor, educação e orientação de vida. Às minhas irmãs Mariana e Juliana, pelo companheirismo em todos os momentos, e ao meu cunhado Márcio por complementar a família de maneira exemplar. À Luisa Pitta, pelo amor, carinho e companheirismo com que me acompanhou, apoiou e ajudou com seus dotes fotográficos, no percurso dessa jornada. Ao CNPq e à PUC-Rio, extendido aos seus funcionários, pelos auxílios concedidos, que foram de fundamental importância para a realização deste trabalho. Aos amigos que apoiaram, torceram e possibilitaram momentos de descontração e alegria, sem os quais seria penoso o caminho até aqui: Eliane Garcia, Claudia Bolshaw, Juju e Carol Bolshaw, Fernando Macedo, Daniel Dias, Gustavo Falcão, Juliana Feres, Cláudio Bittencourt, Rejane Spitz, Graça Chagas e Gabriel Gabiru. Ao Laboratório de Design de histórias, e a todos os seus integrantes, pela acolhida mesmo antes do curso e pelo enorme aprendizado e troca nos nossos encontros. Ao Daniel Malaguti pela indicação do curso, do orientador e pelo apoio ao longo de toda a minha trajetória dentro dessa universidade. Aos colegas de sala, pois compartilhamos as angustias e alegrias de dividir o mesmo espaço e lutar juntos pelo mesmo desafio. Ao amigo Gustavo Cassano por me emprestar suas habilidades fotográficas e seu PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1011889/CA estúdio para a produção das fotos usadas neste trabalho. Aos amigos Rolf Bateman, Antônio Belchior, Eduardo Cuducos, Andréa Elias e Norberto Presta pelo apoio e ajuda. Em especial ao amigo Rodrigo Raro pela revisão veloz e eficaz. E a todos os outros que de maneira indireta contribuíram para o trabalho. Aos professores das disciplinas, em especial Solange Jobim, Eliana Yunes e Denise Portinari pela fundamentação deste trabalho, e ao Rui de Oliveira, meu mestre em ilustração ainda na Escola de Belas Artes. A todos que apostaram no sucesso dessa empreitada, com cartas de indicação. E à banca examinadora pela dedicação em ler e avaliar este trabalho. Àqueles que por descuido eu tenha esquecido, também meu sinceros agradecimentos. Resumo Carvalho, Miguel Santos de; Gamba Jr., Nilton Gonçalves. Livro de Imagem e Palhaço Mímico: Narrativas sem palavras? Estudo sobre a construção narrativa por imagem. Rio de Janeiro, 2012. 137p. Dissertação de Mestrado – Departamento de Artes e Design, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Pesquisa sobre narrativa visual que tem por objeto de estudo o Livro de Imagem. A proposta é uma análise baseada na hipótese de uma proximidade entre a Ilustração e as Artes Cênicas. A escolha do Livro de Imagem tem um PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1011889/CA contraponto na área das Artes Cênicas, o Palhaço Mímico. Tal escolha deu-se em função da característica similar entre os dois objetos: a ausência do texto representado pela linguagem verbal. Esta abordagem consiste em analisar o Livro de Imagem sob a perspectiva dessa ausência textual como alternativa à tradição da teoria e crítica narrativa que privilegia o texto verbal. Palavras-chave Livro de Imagem, Palhaço Mímico, Teatro, Livro Ilustrado, Ausência, Linguagem, Discurso e Narrativa. Abstract Carvalho, Miguel Santos de; Gamba Jr., Nilton Gonçalves (Advisor) Picturebook and Clown Mime: wordless narrative? Study about the narrative construction by image. Rio de Janeiro, 2012. 137p. MSc. Dissertation – Departamento de Artes e Design, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Research on the visual narrative that has as its object of study the Picturebook. The proposal is an analysis based on the hypothesis of a proximity PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1011889/CA between the Illustration and the Performing Arts. The choice of Picturebook has a counterpoint in the area of Performing Arts, the Clown Mime. This choice was made because of the similar characteristics between the two objects: the text represented by the absence of verbal language. This approach involves analyzing the picture book from the perspective of textual absence as an alternative to the tradition of critical and theory of narrative that privileges the verbal text. Key-words Picturebook, Clown Mime, Theatre, Illustrated Book, Absense, Language, Discourse and Narrative. PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1011889/CA Sumário 1. Introdução 14 2. Ausência, uma abordagem 21 2.1 Linguagem, Discurso e Narrativa 27 2.2 Inclinação Afirmativa da Linguagem 37 2.3 Um olhar para a ausência 42 3. Livro de Imagem e Palhaço Mímico 511 3.1 Marginalização 544 3.2 Gênero e Exclusão 70 3.3 Imagem e texto 812 4. Categorias de Análise 1012 4.1 Relação espaço e tempo na imagem 1045 4.2 Sugestão de abstração conceitual 1168 4.3 Ausência na Imagem 1235 5. Considerações finais 130 6. Referencias bibliográficas 132 7. Anexos 1336 Lista de figuras Figura 1 – Oficina Designers da Alegria em Vitória/ES e Brasília/DF....... 53 Figura 2 – The Old Garden (1894) e Le Calife Cigogne (1948)................ 55 Figura 3 – Idéias de Jéca Tatu (1948) e A Bolsa Amarela (1976)......... . 556 Figura 4 – Arlechino e Pierrot (Pagliaccio ou Clown) ............................. 612 Figura 5 – Billy Vaughn (Augusto) e Mike Snider (Branco)..................... 634 Figura 6 – Teotônio (Augusto) e Carolino (Branco) – LUME Campinas/SP . ............................................................................................................... . 634 Figura 7 – Marcel Marceau....................................................................... 84 Figura 8 – Exemplo de sequência de imagens e códigos convencionais ..... .................................................................................................................. PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1011889/CA 834 Figura 9 – Esquema ilustrativo da relação das linguagens – Visual, ............ Textual e Gestual; e a natureza dos signos em questão – Iconicidade,....... Abstração e Movimento. ......................................................................... 100 Figura 10 – Tabela da relação entre as linguagens e questões próprias à .. narrativa...................................................................................... .......... 1023 Figura 11 –Sugestão de movimento do quadro................................... 1045 Figura 12 – Exemplo de ponto fixo ....................................................... 1056 Figura 13 – Exemplo de âncora ............................................................ 1057 Figura 14 – Exemplo de âncora .............................................................. 106 Figura 15 – Exemplo de quadro fixo ....................................................... 106 Figura 16 – Exemplo História em quadrinhos ......................................... 107 Figura 17 – Exemplo de plano e contraplano ......................................... 108 Figura 18 – Exemplo de deslocamento temporal – analepse ou .. flashback .......................................................................................... ...................... 110 Figura 19 – Exemplo de posições corporais ........................................... 109 Figura 20 – Exemplos de linhas de ação no corpo ................................. 109 Figura 21 – Linha construída pela composição ...................................... 110 Figura 22 – Distorção do corpo do personagem ..................................... 110 Figura 23 – Exemplo de representação pela parte ................................. 111 Figura 24 – Exemplo de distorção .......................................................... 111 Figura 25 – Linhas de direção do movimento ......................................... 112 Figura 26 – A repetição do personagem em diferentes posições ........... 113 Figura 27 – Uso de linhas como exemplo de códigos gráficos. .............. 113 Figura 28 – Exemplo de narrativa cíclica. ............................................... 114 Figura 29 – Sugestão de continuidade da narrativa. .............................. 114 Figura 30 – Exemplo de narrativa cíclica. ............................................... 115 Figura 31 – Exemplo de narrativa cíclica ................................................ 115 Figura 32 – Onomatopeias ..................................................................... 116 Figura 33 – Exemplo de ausência de representação do cenário ............ 117 Figura 34 – Exemplo de não representação de personagens ................ 117 Figura 35 – Exemplo de alteração da técnica e das cores ..................... 118 Figura 36 – Alteração gráfica .................................................................. 118 Figura 37 – Recursos gráficos de alteração da paleta de cor ................. 118 PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1011889/CA Figura 38 – Desenhos de Jacques Lecoq............................................... 119 Figura 39 – Sequência de gestos ........................................................... 119 Figura 40 – Representação do estado emocional pela linguagem ............... gestual ................................................................................................... .....................122 Figura 41 – Semelhança na gestualidade .............................................. 120 Figura 42 – Exemplo códigos gráficos convencionais ............................ 121 Figura 43 – Exemplo de convenção interna da narrativa ........................ 122 Figura 44 – Distorção formal da personagem ......................................... 123 Figura 45 – Representação de personagens como animais ................... 123 Figura 46 – Dois exemplos de ausência pelo ponto de vista. ................. 124 Figura 47 – Dobra na página que esconde/revela determinado espaço ....... dentro da narrativa ................................................................................. 124 Figura 48 – Exemplo de recursos do suporte. ........................................ 125 Figura 49 – Ausência total do cenário .................................................... 125 Figura 50 – Representações da materialidade do suporte (papel) ........ 125 13 1. Introdução A pesquisa que resulta neste trabalho dedica-se a aprofundar os estudos sobre o Livro de Imagem – objeto específico caracterizado por uma sequência de imagens, sem veiculação de texto escrito, com conteúdo narrativo, organizada no suporte livro. O interesse por esse objeto e, portanto, pela possibilidade narrativa das imagens, nasce em meio ao curso de Programação Visual na Escola de Belas Artes da Universidade Federal do Rio de Janeiro durante os estudos em ilustração para livros, coordenados pelo professor Dr. Rui de Oliveira1. O interesse pela possibilidade de contar histórias através das imagens PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1011889/CA conduziu a uma busca por complementar a formação, até então estritamente visual, na Literatura. O curso escolhido foi o de Pós-Graduação em Literatura Infanto-Juvenil, na Universidade Federal Fluminense. A monografia produzida para a conclusão do curso foi importante por evidenciar certo descompasso no estudo teórico e crítico à potencialidade narrativa das imagens em relação ao texto. Outro aspecto importante, oriundo dos estudos da especialização, foi a proximidade existente entre a Ilustração e as Artes Cênicas, sugerida por alguns autores. Esta proximidade encontra-se principalmente na construção híbrida da narrativa – composição entre texto e imagem. Tanto no livro ilustrado como numa peça de teatro, ambas as linguagens – verbal e visual – são organizadas de maneira a conduzir uma narrativa. Em paralelo, minha formação na área de Artes Cênicas e posteriormente uma complementação específica dessa formação2 deram suporte para vivenciar essa proximidade na prática. Diante da experiência interdisciplinar que conjuga a área da Literatura, das Artes Cênicas e do Design, foi possível constatar que a tradição da teoria e técnica 1 Rui de Oliveira é Designer e Ilustrador, professor da UFRJ e doutor pela ECA-USP. Ministrou aulas no curso de Comunicação Visual na EBA-UFRJ, além de projetos de pesquisa em ilustração. 2 Curso de Expressão Corporal e Teatro (1999) – Diretório Central dos Estudantes da UFF – ministrado por Anja Bittencourt, Mary Cardoso e Renato Sampaio; Onde eu Botei no Meu Nariz (2006) – Casa da Gávea – Curso de Palhaço Ministrado por Karla Koncá (As Marias da Graça); Oficina Riso e a Carícia (2006) – V Anjos do Picadeiro – Curso Ministrado pelo Palhaço Aziz Gual (México); Oficina de Mímica (2007) ministrada por Jiddu Saldanha; Interpretação Aplicada a Performance Circense (2010) – Ministrada por Rodrigo Robleño. 14 narrativa privilegia a linguagem textual ou, quando aborda a narrativa híbrida, hierarquiza o texto em relação à imagem. Nesse contexto, a narrativa que contempla imagens acaba por ainda demandar estudos que deem conta não só das suas especificidades, mas das suas relações contemporâneas com outras linguagens. A possibilidade de aprofundar essas questões deu-se no contato oportuno com o Laboratório de Design de histórias, da PUC-Rio, coordenado pelo Prof. Dr. Nilton Gamba Jr. Oportuno porque a proposta do laboratório já contemplava um aprofundamento dos estudos da narrativa, que viria dar uma continuidade aos estudos iniciados na pós-graduação. E por estar inserido dentro do Departamento de Artes e Design, ter a perspectiva de Projeto e de Comunicação Visual na construção narrativa. Também oportuno porque contempla em seus estudos outras linguagens – cinema, vídeo, animação e teatro, principalmente pela parceria com a PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1011889/CA Cia. NósNosNós tragédias e comedias aéreas. Por tratar-se de uma pesquisa interdisciplinar, foi necessário um recorte nas áreas contempladas que pudesse viabilizar maior aprofundamento no estudo. Se na área da Literatura iremos encontrar o Livro Ilustrado, e especificamente o Livro de Imagem, como exemplar de um objeto composto unicamente por imagens, na área das Artes Cênicas iremos investigar os estudos do Palhaço, mais detalhadamente aqueles que adotam como técnica a mímica: o Palhaço Mímico. A escolha se deu por duas questões específicas: a primeira diz respeito à natureza semelhante entre as duas linguagens (visual e gestual): a ausência da linguagem textual na construção narrativa. Tanto no Livro de Imagem como no Palhaço Mímico, temos a narrativa calcada em linguagens não verbais: imagética e gestual. A segunda, por tratar-se de duas linguagens com as quais tive contato em experiências profissionais: tanto na ilustração de livros e criação de livro de imagens, como na atuação como Palhaço Mímico e ator. Apesar de trabalhar com diferentes linguagens e áreas, a proposta é estudar o objeto Livro de Imagem e suas especificidades. O Palhaço Mímico servirá como apoio a uma investigação interdisciplinar, buscando compreender como se dá a experiência narrativa em linguagens que não utilizam a palavra como suporte ao texto. A escolha do Livro de Imagem como objeto de estudo, e o Palhaço Mímico como contraponto, dá-se pelo fato de que ambos possuem uma característica em 15 comum: a ausência de um elemento culturalmente esperado no livro e na cena: a representação do texto – escrita e oral, respectivamente. Assim, as narrativas construídas exclusivamente por imagens são um fenômeno exemplar da questão e trazem em si o desafio de uma metodologia alternativa para o panorama de dependência do texto. Espera-se ao final deste trabalho uma compreensão maior do Livro de Imagem e sua construção, que possibilite também contribuir para os estudos teóricos e críticos da Narrativa, em um âmbito maior. Ao campo do Design a discussão torna-se interessante por abordar características próprias à linguagem no que se refere à construção narrativa unicamente visual. Assim, uma discussão sobre as características próprias da linguagem visual em relação à linguagem textual tornam-se por si só questões referentes à reflexão e prática do Design. PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1011889/CA Por outro lado, pensar na narrativa estruturada unicamente na linguagem visual traz também contribuição à reflexão sobre a metodologia projetual. Principalmente pela perspectiva de não mais privilegiar a função como elemento principal do projeto, nem, contudo, trabalhar no caminho inverso de acreditar na perspectiva somente da forma como uma análise alternativa – dicotomia presente nas diversas discussões no campo do Design. É justamente na ideia de que ambas encontram-se de tal maneira indissociáveis, no contexto do Livro de Imagem, que se procurará pensar não mais na dicotomia como divergentes e contraditórias, mas na fruição estética em conjunto com uma função prática, como questões complementares na construção de uma experiência narrativa. O enfoque proposto para essa abordagem se estrutura numa reflexão sobre a ausência do texto verbal na construção narrativa em ambos os casos. Como cada linguagem responde a essa ausência e de que maneira lida com ela. Como o olhar sobre a ausência do texto verbal no Palhaço Mímico pode contribuir para um olhar sobre a mesma ausência no Livro de Imagem e vice-versa, para ampliarmos a compreensão da experiência narrativa. Para isso, iniciaremos com uma abordagem específica do termo Narrativa, e de dois termos que nessa discussão são inevitáveis de se delinear: Discurso e Linguagem. Ainda dentro dessa reflexão, buscaremos entender as características próprias de cada noção, em especial a característica afirmativa da Linguagem. Opta-se, como enfrentamento à característica apontada da linguagem, pela ausência como abordagem para a 16 pesquisa. Dessa reflexão surgem três categorias mais gerais de ausência e com as quais iremos analisar os dois objetos deste trabalho. A partir dessa análise encontramos neles uma certa marginalização relativa à área (Literatura e Artes Cênicas) e à inserção no mercado. Da marginalização, sob a ótica da ausência, emergem dois aspectos: a dificuldade na nomenclatura e a delimitação de gênero e exclusão. Em seguida, uma discussão sobre a relação texto e imagem na perspectiva da ausência do texto e de suas propostas de substituição ou transgressão por outra linguagem (visual ou gestual). Diante desse panorama é proposta a metodologia de análise dos Livros de Imagem, a seleção dos livros e os resultados encontrados por essa forma de olhar esses objetos. Aqui cabe relembrar que se optou por utilizar o Palhaço Mímico como contraponto ao Livro de Imagem. Ou seja, apesar da ideia de que as reflexões possam ser dirigidas para uma leitura de ambos os objetos, este trabalho PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1011889/CA se ocupará somente de uma abordagem sobre os Livros de Imagem. Como sugestão da banca na ocasião da defesa, finalizo esta introdução com o infográfico utilizado na apresentação do trabalho, que buscou apresentar um panorama geral de como foi a trajetória percorrida pela pesquisa. 17 Na primeira parte do infográfico procurou-se dar conta dos antecedentes a pesquisa, em primeiro lugar o tema geral e o problema que procurou-se enfrentar: o livro ilustrado e a narrativa por imagem. Aponta-se em seguida os objetos da pesquisa: Livro de Imagem e Palhaço Mímico. De posse das hipóteses e predições, colocadas anteriormente por outros autores ou por experiência prática PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1011889/CA (breve trajetória da minha formação) chegamos aos objetivos do trabalho. Num segundo momento (marcado pela estrela verde no infográfico), temos o inicio propriamente dito do curso de Mestrado. Para isso foi necessário primeiramente um aprofundamento nos principais conceitos utilizados na pesquisa – Linguagem, Discurso e Narrativa. Se por um lado esse aprofundamento conduziu ao encontro de questões próprias a cada conceito apresentado, principalmente a idéia de uma “inclinação afirmativa da linguagem” e com ela a idéia também de “ausência”, por outro fez refletir sobre o potencial narrativo das imagens e a especificidade das narrativas sem texto verbal. A noção de ausência foi percebida no estudo mais detalhado dos objetos em questão, fazendo emergir questões comuns como a “marginalização” e uma relação do gênero com certa “exclusão”. 18 Tanto o potencial narrativo das imagens, como o aprofundamento das questões comuns a ambos os objetos, se encontraram na discussão quanto a relação entre texto, imagem e gesto (movimento) no Palhaço Mímico e no Livro de Imagem. Em seguida, então, é apresentado o pequeno gráfico apresentando essas três linguagens, trazendo uma relação entre elas, focando nos potenciais que cada uma delas tinha de representação. Dessa relação surge a tabela ao final desse percurso que aponta para os potenciais e as deficiências próprias de cada linguagem na PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1011889/CA busca por uma representação narrativa. Como o cerne da pesquisa baseou-se na noção de ausência, a partir dessa tabela buscou-se observar de que maneira os livros de imagem propunham estratégias e 19 recursos para compensar a ausência da linguagem textual e gestual, na imagem. Dessa observação foram extraídas e definidas categorias para análise das obras. Essas categorias foram organizadas em três grupos, de maneira que em cada grupo estivessem presentes as que melhor propunham uma compensação de determinada linguagem: Relação Espaço Tempo na Imagem (ausência do movimento, do deslocamento, da ação – próprios do gesto); Sugestão de Abstração Conceitual (ausência da linguagem textual) e por fim, Ausência da Imagem. PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1011889/CA Também foram apresentados os livros consultados e as considerações finais. 20 2. Ausência, uma abordagem Interessando-se pela narrativa de modo geral, independente do seu suporte expressivo ou do seu prestígio sociocultural, a narratologia não tem que limitar a sua atenção aos textos narrativos literários. Mas é verdade que aqui são sobretudo esses os privilegiados: sabendo-se que é na narrativa verbal que se tem apoiado o desenvolvimento da narratologia e que a narrativa literária desfruta de uma projeção que não se pode ignorar, não se estranhará que os conceitos com ela relacionados apareçam largamente contemplados. (Reis & Lopes, 1988 p. 8-9) A teoria e a crítica narrativa, por privilegiarem o texto em suas abordagens, refletem decisivamente nas duas áreas de interesse desse estudo – as Artes Cênicas e a Literatura. Nas Artes Cênicas o texto, na forma do diálogo, é um elemento culturalmente encontrado e esperado numa peça teatral. O registro e a documentação de peças de teatro normalmente ocorrem textualmente no roteiro. Diálogos, rubricas são características desse tipo de documento. Se nas Artes PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1011889/CA Cênicas a presença do texto é de fato evidente, é na Literatura (aqui como grande área) que ele se torna inegável. Tanto as Artes Cênicas como a Literatura, portanto, apresentam uma característica comum: a presença do texto como elemento com o qual e pelo qual é construída e transmitida a narrativa. A contribuição pretendida neste trabalho ao estudo da narrativa se fundamenta na possibilidade de considerar como objetos de estudo o Palhaço Mímico dentro das Artes Cênicas e o Livro de Imagem dentro da Literatura – justamente pela ausência do texto no suporte, escrito ou falado. O que se pretende dizer com ausência de texto, aqui, não significa ausência de discurso. O que culturalmente se tem em ambas as situações citadas é a ausência de texto representado pela linguagem verbal (escrita ou oral). Obviamente, a narrativa apresenta um discurso, mas este não é representado ou veiculado sob a forma verbal. Nas Artes Cênicas, o Palhaço Mímico lança mão da linguagem corporal/gestual, de códigos da pantomima e de diversos outros recursos para construir o discurso narrativo que pretende. Igualmente, no Livro de Imagem a ausência de texto escrito leva o autor a revelar o discurso narrativo apenas no desencadear das imagens. Logo, pelo discurso não ser transmitido textualmente, por permanecer em silêncio no palhaço e no livro, é que vai interessar aqui sua análise narrativa. Quando a linguagem textual/verbal é retirada do objeto no qual culturalmente seria encontrada, e mantém-se o discurso narrativo, como podemos obter uma análise que venha contribuir para o campo da 21 narrativa? O que pode ser útil ao estudo da narrativa quando é retirado o elemento principal de sua análise? Para admitir a possibilidade de se estudar e analisar a narrativa sem a representação do texto verbal é necessário reconhecer de antemão o potencial narrativo de imagens e objetos. É justamente para analisar essa possibilidade que recorreremos aos estudos de Pier Paolo Pasolini, um autor que traz para esta pesquisa as vozes de duas áreas em particular: da Semiologia do Cinema e da Pedagogia. Tal contribuição vai ser bastante significativa porque traz em si uma afinidade com o estudo: a tensão entre duas áreas distintas, o Cinema e a Literatura. Apesar de não apontar essa tensão especificamente com as Artes Cênicas, Pasolini traz questões bastante interessantes quando analisa as especificidades da linguagem visual, no Cinema, em contraponto com a linguagem textual na Literatura. Assim, mesmo não coincidindo com as áreas PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1011889/CA abordadas, sua análise trará contribuições importantes para se pensar a relação entre a Literatura Ilustrada e as Artes Cênicas. Em Os Jovens Infelizes, Pasolini (1990) aponta para a existência de uma linguagem própria dos objetos, das coisas. Portanto, uma linguagem que é apreendida visualmente: As primeiras lembranças da vida são lembranças visuais. A vida, na lembrança, torna-se um filme mudo. Todos nós temos na mente a imagem que é a primeira, ou uma das primeiras, da nossa vida. Essa imagem é um signo, e, para sermos exatos um signo lingüístico. Portanto, se é um signo lingüístico, comunica ou expressa alguma coisa. (...) A primeira imagem da minha vida é uma cortina, branca, transparente, que pende – imóvel, creio – de uma janela que dá para um beco bastante triste e escuro. Essa cortina me aterroriza e me angustia: não como alguma coisa ameaçadora ou desagradável, mas como algo cósmico. Naquela cortina se resume e toma corpo todo o espírito da casa em que nasci. Era uma casa burguesa em Bolonha. (...) Mas se nos objetos e nas coisas cujas imagens ficam gravadas na minha lembrança, como as de um sonho indelével, se condensa e se concentra todo um mundo de ‘memórias’ que essas imagens evocam num só instante... (Pasolini, 1990 p. 125-26) Outros autores também apontam para uma linguagem presente em objetos, não se tratando exatamente de uma ideia original no que concerne a uma “leitura de mundo”. Mas a forma como essa linguagem é lida, as características próprias dessa linguagem que são colocadas por Pasolini, é que traz uma contribuição diferenciada para o trabalho. O fato de a linguagem das coisas nos chegar de forma visual, e mesmo quando não dominamos ainda a linguagem verbal, determina um modo de olhar e de apreender. Um “aprender”, como defende Pasolini, que não nos permite resposta – no âmbito do texto verbal apenas. 22 O conteúdo das minhas lembranças não se sobrepunha de fato a eles: o conteúdo deles era somente deles. E me era comunicado por eles. Sua comunicação era, portanto, essencialmente pedagógica. Ensinavam-me onde eu tinha nascido, em que mundo vivia e, acima de tudo, como devia conceber meu nascimento e minha vida. Em se tratando de um discurso pedagógico inarticulado, fixo, incontestável, não pode deixar de ser, como se diz hoje, autoritário e repressivo. O que aquela cortina me disse e me ensinou não admitia (e não admite) réplicas. (Pasolini, 1990 p. 126) Ao passo que não permite réplica, esse tipo de discurso, portanto, inscrevese na totalidade da construção subjetiva do leitor e não somente na formação intelectual, ou, nas próprias palavras do autor, “o que é educada é a sua carne, como forma do seu espírito”. Mais do que salientar a forma impositiva desse tipo de linguagem, o interessante é perceber seu caráter inarticulado. O domínio da linguagem verbal, que permite posteriormente resposta, discussão, análise, está associado a um conhecimento da linguagem e de seu mecanismo de construção. PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1011889/CA Sua articulação, quando conhecida, permite não só compreender os mecanismos sob os quais essas informações são comunicadas, como permite também resposta. O não domínio, o desconhecimento dos mecanismos da linguagem pedagógica das coisas e a maneira como ela atua precocemente na psicologia do indivíduo a caracterizam como uma linguagem inarticulada. E, por isso, sua imposição. Como fato agravante para a situação, em paralelo a essa formação do indivíduo, a nossa cultura como um todo ainda não tem uma preocupação na educação visual, quando comparada ao texto verbal. Alguns autores apontam para tal deficiência como um “analfabetismo visual”, que sugere uma falta de estudo da linguagem visual como parte do currículo escolar. Como esclarecimento da diferença entre uma representação pela linguagem textual e visual, Pasolini, como cineasta, propõe-nos uma análise sob o ponto de vista conflitante entre a visão e a representação própria do literato e do cineasta. Se o primeiro, a partir de seu olhar, reconstrói simbolicamente aquele mundo, “os ‘signos’ do sistema cinematográfico são evidentemente as próprias coisas, na sua materialidade e na sua realidade. É verdade que essas coisas se tornam ‘signos’, mas são ‘signos’, por assim dizer vivos.” (Pasolini, 1990 p.128) Se para o literato é necessária uma “tradução” da linguagem das coisas, para transmissão e comunicação, no cinema essa representação dá-se por meio da própria representação da imagem das coisas. E é claro que isso tem consequências inevitáveis e que vão proporcionar a riqueza poética própria de cada linguagem, 23 incluindo suas subversões e contaminações. O que, porém, não exclui a possibilidade de se apropriar de uma linguagem, mas trabalhar as especificidades dela em outra linguagem diferente, ou em outro suporte.1 A diferença da prática profissional do literato e do cineasta analisada por Pasolini, no entanto, não exclui uma convergência entre as duas linguagens. O literato, ao procurar representar a realidade vivida e percebida visualmente por meio de palavras, terá no contexto de consumo a possibilidade de sua inversão: imaginação decorrente da leitura do texto. O cineasta, por outro lado, ao expor a realidade pela própria representação visual das coisas, não impede a produção textual pelo seu expectador. Assim, também no livro produzido exclusivamente com palavras, o leitor, no ato de fruição, reconstrói o texto em imagens. Ou seja, cria imagens para os cenários e personagens narrados no texto. Portanto, imagens podem ser consequência de uma leitura de um texto verbal. Um produtor de PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1011889/CA discurso que utiliza a linguagem visual – cineasta, ilustrador, palhaço etc. – pode ter como resultado da fruição de sua obra uma produção textual. E é por isso que as linguagens híbridas – o cinema, artes cênicas, o livro ilustrado – buscam nessa tensão entre a imagem e o texto uma construção conjunta, para que não só evitem um discurso redundante (apesar de questionável a equivalência precisa entre linguagens diferentes), como também para tirar partido das potencialidades próprias de cada linguagem. Aqui voltamos ao tema da ausência, agora naquilo que a especificidade de uma complementa a outra. Portanto, considerando a produção textual a partir das imagens, propõe-se nesse trabalho o termo “ausência”, não com o significado de “ausência de discurso”, mas como uma não representação do texto na experiência de leitura. Assim, ao nos referirmos à ausência do texto no Livro de Imagem, por exemplo, não significa que este não possua um discurso, mas que o discurso pode ser de forma diferente como usualmente e culturalmente o encontramos. É essa ausência que Pasolini reconhece quando exemplifica a lembrança da vida como um filme mudo, mesmo ao explicitar a quantidade de informação, discurso e ensinamentos contidos nas coisas. A mudez à qual se refere Pasolini não é a mudez da ausência Pasolini entende que o literato pode apresentar uma abordagem em sua produção textual que traz características próprias do cinema e vice-versa. Quando apontamos para as características próprias, e as especificidades de uma linguagem, não estamos restringindo a possibilidade de outras dentro dessa linguagem. Pelo contrário, prevemos possibilidades de relativização e de outras maneiras de se trabalhar a linguagem que não seja só “obedecendo” aos princípios próprios dela. 1 24 de discurso, mas a de um discurso que é feito na ausência do texto como código. Outro exemplo que talvez seja ainda mais contundente é o trecho extraído do texto “O ‘discurso’ dos cabelos” (In: Pasolini, 1990) em que o autor expõe a presença de dois jovens, com cabelos compridos, no hall de um hotel onde estava hospedado. O que esses jovens diziam não era expresso por palavras, era tudo narrado pelos cabelos: Naquela situação particular – que era plenamente política, ou social, e, até diria, oficial – eles não tinham, na verdade, nenhuma necessidade de falar. Seu silêncio era rigorosamente funcional. E isso simplesmente porque a fala era supérflua. Ambos, de fato, usavam para se comunicar, com os presentes, com os observadores – com seus irmãos daquele momento –, uma linguagem diferente daquela composta de palavras. Aquilo que substituía a tradicional linguagem verbal, tornando-a supérflua – e encontrando, de resto, um lugar imediato no amplo domínio dos ‘signos’, ou seja, no âmbito da semiologia –, era a linguagem dos seus cabelos. (Pasolini, 1990 p. 37-8) No Discurso dos Cabelos, Pasolini aborda a linguagem contida nos jovens PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1011889/CA dos anos 1960, especificamente a linguagem contida no cabelo dos jovens daquela época. Os cabelos compridos, adotados pela juventude revolucionária, traziam, para o autor, um discurso ‘silencioso’, revolucionário, político, ideológico etc. Aqueles cabelos longos eram uma linguagem, por produzir códigos compartilhados e com eles um discurso próprio também. Além disso, essa linguagem física, material, aponta para algo diferente da linguagem verbal, mais comum: a linguagem inarticulada. Uma linguagem à qual não temos acesso integralmente aos seus mecanismos, a sua articulação. (Pasolini, 1990 p. 38) Um outro enfoque sobre a ausência é feito por Roland Barthes (2003), em seu livro O Neutro. Desdobrando o enfoque de Pasolini, que defende uma ausência da linguagem textual, Barthes procura demonstrar que mesmo na ausência absoluta de código, ainda se mantém algo ‘falante’. Esse silêncio é absorvido como código. O autor considera que na denominada “semiologia da moral mundana, o silêncio tem de fato uma substância ‘faladeira’ ou ‘falante’: ele é sempre o implícito”. (Barthes, 2003 p. 54) Sendo inclusive interpretado como discursos de diversas ordens: ora como direito, como defesa, como arma, como crime etc. Portanto, no silêncio – a que explicitamente se refere Barthes, o silêncio da fala – não está necessariamente ausente um discurso. Ao contrário, nele pode estar presente de forma implícita, dissimulada. 25 Pode-se dizer que nenhum dos escritores que partiram de um combate assaz solitário contra o poder da língua pôde ou pode evitar ser recuperado por ele, quer sob a forma presente póstuma de uma inscrição na cultura oficial, quer sob a forma presente de uma moda que impõe sua imagem e lhe prescreve a conformidade com aquilo que dele se espera. (Barthes, 1988 p. 26) E, por fim, dentro do próprio estudo da Literatura em geral, a noção de elipse – como figura de linguagem – traz em si a característica de algo que é silenciado, mas que (dentro do contexto) é subentendido. Ou seja, uma ausência textual que também ajuda a produzir o discurso narrativo. O silêncio, assim, reúne dentro do próprio termo algo de temível e de belo. Um termo que permite dentro de si uma ambivalência. O silêncio que me permite concentração, um foco dentro do meu pensamento e só nele, até o silêncio que preciso fazer para escutar o outro, dar a palavra. Para ouvir com toda atenção o que o outro me tem a dizer. O silêncio no qual é de direito permanecer, até o silêncio que me é imposto, obrigado. O silêncio que permanece diante de uma PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1011889/CA beleza onde não são encontradas palavras que a traduzam até o silêncio do horror, onde não se tem nada a dizer. O silêncio na cerimônia como sinal de respeito, até o silêncio que é feito por precaução. Silêncio por negligência até o silêncio exigido na cumplicidade. E tantos outros que poderíamos listar aqui. Em resumo, quando Pasolini aponta para a mudez da linguagem presente nos cabelos, está se referindo a uma mudez de código textual, mas que através das imagens (cabelo) é produzido um discurso. Assim, na ausência do código textual, temos as imagens como portadoras de signo e matéria-prima do discurso. Por outro lado, Barthes vai apontar que mesmo na ausência absoluta de códigos, o discurso ainda é produzido. Ou seja, a ausência de código é absorvida pela linguagem como signo. A narrativa, tanto no Livro de Imagem quanto na cena do Palhaço Mímico, prescinde da palavra em sua construção, mas não a ignora. Pelo contrário, tem consciência da sua falta, da importância cultural dada ao seu uso – daí sua subversão. E é justamente no jogo e na compreensão do silêncio, proposto nos dois casos, que funciona a fruição estética e a experiência narrativa nos objetos escolhidos. É através da análise dessa experiência narrativa, calcada na tensão entre a expectativa e a ausência, na criação, na veiculação e na recepção, que procuraremos nortear o trabalho. Não só nortear, mas fazer dessa tensão uma forma de abordagem alternativa. 26 Para compreendermos de que maneira será conduzida essa abordagem é necessária, primeiramente, a fundamentação de três termos com os quais inevitavelmente se trabalhará ao longo de todo o estudo: Linguagem, Discurso e Narrativa. Em seguida, uma abordagem sobre as características da Linguagem, em especial seu caráter afirmativo, e sobre a potencialização dessas características no contexto de uso (discurso) e no encontro com as especificidades do gênero (narrativa). É diante desse panorama que buscaremos inserir a noção de ausência. Como contraponto complementar, e não contrário, como poderíamos suspeitar. A noção de ausência e a característica afirmativa da linguagem serão ambas contempladas, proporcionando assim uma abordagem que se estabeleça nesse contraponto. Sabendo de antemão da impossibilidade de uma abordagem teórica exclusiva para PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1011889/CA as noções de Linguagem, Discurso e Narrativa, explicitamos a escolha feita neste estudo, sem pensar ser ela a única possibilidade de enfrentamento da questão. 2.1 Linguagem, Discurso e Narrativa Como o objetivo deste trabalho é estudar a experiência narrativa em duas linguagens específicas, faz-se necessário uma abordagem mais aprofundada do termo Narrativa, o que inevitavelmente nos leva aos outros dois termos: Discurso e Linguagem. Por isso, buscaremos referências que nos permitam maior clareza e justificar a escolha dos termos nesta pesquisa. Verificando entre os principais autores com os quais iremos trabalhar se temos coerência na acepção dos termos, mesmo que respeitadas as nuances de abordagem própria a cada obra. Entendendo a Narrativa como um gênero do Discurso, sendo este a Linguagem no seu contexto de uso e a linguagem o conjunto de códigos, poderíamos então entender a Linguagem como substrato do Discurso e este como substrato da Narrativa. Porém, cabe apontar que a forma de abordagem, usualmente associada aos estruturalistas, que entende Linguagem, Discurso e Narrativa como sendo uma sequência gradativa de complexidade já foi questionada e revista. Autores mais recentes, com alguns dos quais iremos trabalhar, apontam a sequência de maneira 27 inversa: a Narrativa como substrato do Discurso, e este como substrato da Linguagem. O que propõe a nova organização é entender que o ser humano possui em si uma pulsão à Narrativa que o conduz no caminho inverso, a produzir Discurso, e é daí que surge a produção de Linguagem. Ou seja, que a necessidade da expressão narrativa na comunicação é que, em última instância, levou à produção do código. Apesar das proposições históricas, entendemos que ambas as posições não são contraditórias, nem se invalidam mutuamente, e, dentro dessa perspectiva, procuraremos lidar com ambas de maneira complementar. Essa abordagem, em que não se propõe o confronto que resulta numa polarização, deverá ser buscada porque não se entende a ciência como um discurso de trajetória retilínea e contínua.2 Apesar de aprofundados em áreas de estudos específicas (Linguística, Análise de Discurso e Narratologia), é importante frisar a característica PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1011889/CA indissociável que possuem os termos entre si. O que significa dizer que uma análise aprofundada que se possa fazer sobre qualquer uma das três áreas acabará por buscar referências nas outras duas. Assim, os estudos que versam sobre Linguagem, Discurso e Narrativa necessitarão de um foco interdisciplinar, não só pela relação entre os três campos, mas também pela relação deles com o sujeito e seu contexto social. Para este estudo, portanto, também será necessário transitar entre as áreas e refletir sobre as questões próprias de cada termo e de sua relação com os outros. Para iniciarmos essa análise, usamos a obra Análise de Discurso, cuja autora, Eni Orlandi (2005), aponta as diferenças entre essa área e a análise de duas outras áreas que também se ocupam da linguagem: uma delas que a trata como código – Linguística –, e a outra como normas – Gramática. A Linguística procura pensar a Linguagem como código, como matéria-prima com a qual se procurará trabalhar e produzir enunciados e, portanto, discurso. A Gramática, como “normas de bem dizer”. A linguagem seria, então, “a materialidade do discurso”, o conjunto de elementos básicos com os quais se produz enunciados discursivos. A preocupação de Eni Orlandi é sobre a análise de discurso, por isso, a autora vai se ater de forma abrangente não à matéria-prima, mas ao contexto social onde ela é usada. O que fica claro na passagem a seguir. 2 Tal discussão é aprofundada no artigo escrito por Gamba Jr, e Eliane Garcia apresentado no ??? Congresso de Desenvolvimento e Pesquisa em Design ???, em que segundo o autor o desafio é conseguir lidar com a complementaridade de visões diferentes. 28 ... não se trabalha, como na Linguística, com a língua fechada nela mesma mas com o discurso, que é um objeto sócio-histórico em que o linguístico intervém como pressuposto. Nem se trabalha, por outro lado, com a história e a sociedade como se elas fossem independentes do fato de que elas significam. Nessa confluência, a Análise de Discurso critica a prática das Ciências Sociais e a da Linguística, refletindo sobre a maneira como a linguagem está materializada na ideologia e como a ideologia se manifesta na língua. Partindo da ideia de que a materialidade específica da ideologia é o discurso e a materialidade específica do discurso é a língua, trabalha a relação língua-discursoideologia. (Orlandi, 2005 p. 16-7) Apesar de não termos uma equivalência direta entre os termos Linguagem e Língua, encontraremos em alguns autores o uso quase como sinônimos. Serão compreendidos aqui: a língua como código e a linguagem como a qualidade desse código. Ou de maneira exemplar para Barthes: “A linguagem é uma legislação, a língua é seu código.” (Barthes, 1988 p. 12) Por conta dessa questão, neste estudo teremos a preocupação de quando PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1011889/CA falar da linguagem explicitar a natureza do código (icônico, textual, gestual). Por isso a adjetivação de linguagem nesta pesquisa sempre remete ao tipo de código: linguagem visual, textual, híbrida etc. O discurso para Eni Orlandi é a palavra em curso, o processo, a linguagem produzindo sentido. O que, portanto, inevitavelmente levará em consideração o seu contexto de uso, caracterizando-se como uma área do conhecimento que é fundamentalmente interdisciplinar.3 Para ilustrar, Eni Orlandi cita um evento ocorrido em uma eleição universitária em que uma faixa (preta com letras brancas) fora colocada para tranquilizar os eleitores de que o processo de votação seria seguro, pois os votos não seriam identificados. A análise feita pela autora parte não só da frase “vote sem medo”, mas também da maneira como ela foi apresentada e do contexto onde ela estava. Segundo Eni, a faixa na cor preta nos anos 1960 trazia uma memória, que não se pode negar numa análise do discurso. A cor preta, do ponto de vista da cromatografia política da época, era associada ao fascismo, aos conservadores, à “direita” política. As palavras “sem medo” trazem em si características implícitas: a de que há uma suspeita sobre algum candidato – que supostamente estaria 3 A autora procura trabalhar sua obra sobre três pilares que considera fundamentais para a abordagem: a Linguística – pela abordagem mais específica que faz do código, da língua; o Materialismo Histórico, por pressupor o contexto social e o “legado do materialismo histórico”, onde o homem é parte actante da história; e a Psicanálise, pois leva em consideração também a construção subjetiva (do leitor e do autor). 29 ameaçando o eleitor que não votasse a seu favor e, portanto, sugerem uma ameaça. Como contraponto para explicitar melhor o exemplo, Eni propõe que na mesma situação a faixa tivesse configurações diferentes: fosse branca e escrita em cores vermelhas: “vote com coragem!”. A cor vermelha ligaria historicamente a posições revolucionárias, transformadoras (referenciada ao comunismo e ao socialismo da época), e o termo coragem faze apelo à disposição de luta. Assim, as duas situações colocariam condições diferentes de leituras, o que implicaria em estabelecer condições políticas diferentes. Se no primeiro caso estaríamos associando à faixa negra e ao texto uma posição fascista, conservadora, isso significa dizer que independentemente da posição política de quem colocou a faixa, o discurso seria analisado agregando a ele questões políticas bem determinadas. PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1011889/CA Ficam nítidas com esse exemplo, portanto, as contribuições que a análise de discurso pode dar ao campo do Design. Justamente por sua característica fundamentalmente interdisciplinar é que uma análise que busca esse tipo de abordagem torna-se relevante para uma pesquisa voltada ao Projeto. Uma análise que se propõe a pensar as imagens, as cores, o contexto, além do conteúdo textual, está intimamente ligada ao pensamento projetual. E assim: Os dizeres não são, como dissemos, apenas mensagens a serem decodificadas. São efeitos de sentidos que são produzidos em condições determinadas e que estão de alguma forma presentes no modo como se diz, deixando vestígios que o analista de discurso tem de apreender. São pistas que ele aprende a seguir para compreender os sentidos aí produzidos, pondo em relação o dizer com sua exterioridade, suas condições de produção. Esses sentidos tem a ver com o que é dito ali mas também em outros lugares, assim como com o que não é dito, e com o que poderia ser dito e não foi. Desse modo, as margens do dizer, do texto, também fazem parte dele. (Orlandi, 2005 p. 30) No Dicionário de Teoria Narrativa, de Carlos Reis e Ana Cristina Lopes (1988), sob o ponto de vista de Benevistes encontra-se uma noção do termo Discurso, que é determinante “pela introdução do sujeito e da situação como parâmetros decisivos da descrição da atividade verbal”. Eles entendem o discurso dessa maneira, diferentemente da língua, pois segundo eles a língua é o “sistema de sinais formais que só se atualiza quando assumidos por um sujeito no ato da enunciação”. O discurso, porém, é o uso dessa língua, que também “faculta uma referência ao mundo e comporta marcas mais ou menos explícitas da situação em 30 que emerge” (Reis & Lopes, 1988 p. 28). Ou, em outras palavras, concebe-se o discurso como uma enunciação que é fundamentada no seu contexto de produção. Na esteira desta abertura, encontra-se a concepção de discurso como enunciado considerado em função das suas condições de produção. Com esta formulação, pretende sublinhar-se que os locutores não são meros pólos de um circuito comunicativo, mas sim entidades situadas num tempo histórico e num espaço sociocultural bem definido que condicionam o seu comportamento lingüístico. (Reis & Lopes, 1988 p. 28) E a narrativa, por sua vez, como gênero discursivo se especifica por três características fundamentais: alteridade, sequencialidade e dimensão temporal/espacial. A característica da alteridade nos remete a uma narração de fatos que estão objetivamente colocados diante do sujeito. E, nessa situação, o sujeito formula uma narrativa, transmitindo aquela experiência para outro. A forma como se desenvolve essa narrativa é sequencial, ou seja, pressupõe uma PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1011889/CA apresentação organizada numa sequência factual. Inclui por fim a dimensão temporal (tempo de leitura, tempo da narrativa, ritmo) e espacial (deslocamento, cenários etc.). É importante diferenciar um segundo aspecto, que diz respeito ao gênero: lírico e narrativo. O que essa separação propõe é pensar na dimensão lírica e poética como uma perspectiva subjetiva da produção de discurso. Apesar de diferenciar-se da narrativa pela alteridade, isso não impossibilita que possamos ter uma visão poética inserida em uma narrativa, mas que essa, prioritariamente, nos apresenta a dimensão temporal, sequencial, factual, espacial e numa perspectiva da alteridade. A partir de então podemos pensar em outro processo de classificação que por vezes será usado nesta dissertação: os gêneros narrativos. A primeira grande divisão é quanto ao caráter real ou ficcional da narrativa. Sobre essa ótica pode-se colocar a divergência entre a perspectiva filosófica – a qual faz referência à realidade como sendo percebida pelo sujeito e, portanto, inevitavelmente reelaborada e transformada: o que implica numa inexistência de uma realidade objetiva, já que toda realidade é mediada;; portanto, “tudo é ficcional” – e a perspectiva cultural, que pressupõe uma circunstância de provas que legitima a veracidade dos fatos colocados. Dessa discussão, no campo da ficcionalidade emerge a ideia de Verossimilhança: semelhança intuitiva com a verdade que 31 satisfaz a perspectiva cultural, sem, contudo, desfazer a noção da ficcionalidade – uma “suspensão da prova”, como aponta Umberto Eco (1994). Outra divisão proposta é segundo o destino do conteúdo, ou seja, seu receptor: Infantil ou Adulto. Posteriormente, gêneros historicamente construídos que pertencem também à ordem da fruição, mas que pressupõe muitas vezes características intrínsecas à obra e sua estrutura: Narrativa Trágica, Cômica e Dramática. Por fim, numa perspectiva de uso aplicado: Narrativa Informacional, de Entretenimento, Didática e Cultural. Acrescenta-se enfim a ideia de que a narrativa pode ainda ser expressa nos mais diferentes suportes fazendo uso comumente da linguagem verbal (texto escrito ou oral), mas também icônica (Livro de Imagem, Cinema Mudo etc.), inclusive em situações híbridas (Livros Ilustrados, Histórias em Quadrinhos, PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1011889/CA Cinema, Artes Cênicas etc.). Elementos Narrativos Dentro da narrativa levamos em consideração os seguintes elementos estruturais que a caracterizam: Universo temático, Personagens, Cenário, Trama, Matriz Temporal e Narrador. Apesar de procurarmos trazer uma definição específica de cada um deles, vale sublinhar que tratam-se de elementos indissociáveis entre si. Em diversos momentos poderemos notar que na tentativa de uma definição de um determinado elemento, inevitavelmente conduziremos a uma abordagem em conjunto com um ou mais elementos diferentes. O Universo temático caracteriza a atmosfera em que está inserida a narrativa, atravessando todos os outros elementos. É assim, talvez, o elemento de maior amplitude dentro da narrativa, criando uma harmonia entre os elementos. A personagem é o actante da história, ou seja, aquele que vive os fatos e age dentro da narrativa. Mesmo que este não seja um humano, comumente adota-se uma perspectiva antropomorfa sobre ele. Num sentido mais amplo, pois antropomorfizar aqui não se resume somente a dar formas físicas, mas também características subjetivas, culturais, psicológicas, cognitivas e de personalidade. Dotada, então, da capacidade de agir como um ser humano. Pode haver diversas personagens, distribuídos numa hierarquia de importância ao longo da história. O cenário é o ambiente em que se desenvolve a narrativa. O plano de fundo, o local ou os locais onde transcorrem os fatos vividos pelos personagens. 32 A trama é o sequenciamento dos fatos a que o personagem se depara. A construção da narrativa dá-se nesse encadeamento, onde um fato tem sempre relação com o seguinte, o anterior e o contexto geral da narrativa. A este último está ligado, principalmente, o tempo – estrutura de uma matriz sob a qual se organizam os fatos, sequenciadamente. A disposição sequencial não implica pensar que se organizam necessariamente em ordem cronológica linear. O Narrador é quem nos apresenta os fatos. Este pode ser também um personagem da história, que vivencia os fatos e os transmite para o leitor, ou um ser onisciente que apresenta a história sem participar efetivamente dela como actante. Podemos classificá-lo em diferentes categorias de acordo com seu envolvimento mais ou menos distanciado da narrativa: narrador autodiegético – entidade que relata os fatos de sua própria experiência; heterodiegético – aquele que narra fatos vivenciados por uma terceira pessoa, não fazendo parte da história PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1011889/CA como actante; homodiegético – entendido como um participante dos fatos narrados, sem, contudo, se colocar na figura central que protagoniza a história. Aproxima-se assim do autodiegético, pela vivência dos fatos narrados, mas distancia-se por não tratar-se da personagem central da narrativa. A partir desses elementos é importante perceber as relações construídas internamente na narrativa, por cada um deles ou pelo conjunto. A matriz temporal, por exemplo, permite uma reorganização factual, que não obedece literalmente à ordem dos fatos naturalmente vividos. O que conduz à ideia de analepse (ex. flashback), um deslocamento temporal dentro da história. O que interfere decisivamente no ritmo da narrativa, ou seja, na relação entre o tempo da história (o tempo de duração dos fatos) e o tempo da narração (tempo gasto para se narrar os fatos). Uma história que transcorra em um ano pode ser transmitida em apenas alguns minutos. Por outro lado, a experiência de uma situação de risco, que dure alguns segundos, pode levar horas para ser narrada. Assim, deparamo-nos com duas ideias de tempo: o tempo de leitura (tempo gasto para receber a narrativa) e o tempo da narrativa (aquele a que faz referencia a história).4 Diante dessa breve apresentação do que compreendemos por Linguagem, Discurso e Narrativa, cabe partirmos agora para as questões mais recentes que a eles estão colocadas. Diversos foram os autores que levantaram questões e 4 Sobre essa questão, consultar a obra Seus passeios pelos bosques da ficção, de Umberto Eco (1994). 33 relacionaram esses três termos com outros contextos de estudo. Alguns desses foram escolhidos por trazerem questões pertinentes à perspectiva que se pretende nesse trabalho. Relacionando Narrativa e Ciência, temos um autor que traz contribuições importantes para a pesquisa: Jean-François Lyotard (2006). Em seu livro A Condição Pós-Moderna, ele aponta para a ciência como uma espécie de discurso, inclusive protagonizando reflexões acerca da linguagem e também sendo afetada diretamente por ela. Este é um dos pontos principais abordados por Lyotard, pois sendo o saber uma espécie de discurso, o saber científico não é todo o saber, pois além de diretamente ligado, compete com outro saber ao qual Lyotard denomina de saber narrativo. Assim, narrativa e ciência, segundo o autor, encontram-se equiparados, no que tange à terminologia adotada, traduzidos como produtos discursivos. PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1011889/CA Lyotard, ao adotar como método de seu estudo os Jogos de Linguagem de Wittgenstein, vai também propor um olhar sobre a linguagem como regras promovidas a partir da constituição de um contrato social. Ou seja, sob a ótica dos Jogos de Linguagens, que centraliza sua atenção sobre os efeitos dos discursos, chama os diversos tipos de enunciados que ele caracteriza desta maneira, e dos quais enumerou-se alguns, de jogos de linguagem. Por este termo quer dizer que cada uma destas diversas categorias de enunciados deve poder ser determinada por regras que especifique suas propriedades e o uso que delas se pode fazer. Exatamente como o jogo de xadrez se define como um conjunto de regras que determinam as propriedades das peças, ou o modo conveniente de deslocá-las. (Lyotard, 2006 p. 16-7) E assim considera três observações: as regras dos jogos de linguagem não possuem sua legitimação em si mesmas, constituem um objeto de contrato entre os jogadores; sem regras não há jogo e se modificadas, modifica a natureza do jogo, portanto se um lance não satisfaz as regras, não pertence ao jogo; por último considera-se cada enunciado como um lance. A última observação entende, assim, a fala, o discurso, no sentido de jogo, como atos que provém de uma agonística. E essa agonística, o “espírito competitivo” está na natureza do homem e que este portanto só estabelece as regras para que o jogo, a disputa, possa ser realizada. Entendendo então discurso como produção de sentido e linguagem como o seu processo de uso. 34 Por outro lado, Umberto Eco (2005), em a Obra Aberta, considera a Linguagem como uma organização de estímulos efetuada pelo homem, portanto não natural, e baseando-se em definições da Linguística, compreende que “a linguagem não é um meio de comunicação entre outros;; é o ‘fundamento de toda comunicação’;; melhor ainda, ‘a linguagem é realmente o próprio fundamento da cultura’.” (Eco, 2005 p. 73) Ao longo do texto, ele utiliza-se dessa terminologia para analisar o conceito de “discurso aberto” em uma obra de arte. Este caracterizado pela ambiguidade permitida numa organização da linguagem que dá abertura a leituras e significações diversas. A possibilidade de significações diferentes para a mesma obra dá-se, para Eco, na relação de fruição, ou seja, no contexto em que se dá sua recepção. Giovanni Cutolo, autor que escreve a apresentação de Obra Aberta, nos mostra como Umberto Eco se coloca mediante essa discussão. Segundo ele, Eco PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1011889/CA não se apóia sobre a teoria estruturalista ao descrever o que entende por obra aberta, apesar de utilizar-se de alguns conceitos e termos, como vistos acima. Para Cutolo, Eco, na realidade, sustenta um ‘modelo teórico’ de obra aberta, que não reproduza uma presumida estrutura objetiva de certas obras, mas represente antes a estrutura de uma relação fruitiva, isto independentemente da existência prática, factual, de obras caracterizáveis como ‘abertas’. Ele não nos oferece o ‘modelo’ de um dado grupo de obras, mas sim de um grupo de relações de fruição entre estas e seus receptores. Trata-se portanto da tentativa de estatuir uma nova ordem de valores que extraia os seus próprios elementos de juízo e os seus próprios parâmetros da análise do contexto no qual a obra de arte se coloca, movendo-se em suas indagações para antes e depois dela, a fim de individuar aquilo que na verdade interessa: não a obra-definição, mas o mundo de relações de que esta se origina; não a obra-resultado, mas o processo que preside a sua formação; … (Cutolo, A abertura de Obra Aberta. In: Eco, 2005 p. 9-10) Assim, Eco demonstra não considerar a obra de arte como uma estrutura na qual se pode separar as partes, e separá-la do contexto. E, além disso, percebe uma obra como a manifestação de uma pulsão anterior à criação e sua fruição, ou seja, sua relação com a recepção, como parte dessa criação. Parte da obra estaria sendo construída na relação de fruição, e não apresentada como resultado de uma organização de uma estrutura mais elementar. A linguagem viria a serviço do discurso, na qual torna-se significativa, não o contrário. Representaria a torção pós-estruturalista que mencionamos no início. Também em Barthes é nítida a concepção de Linguagem como matériaprima, principalmente no texto Aula (Barthes, 1988), em que discute 35 fundamentalmente sobre Linguagem e Poder. Para o autor, o poder está “emboscado em todo e qualquer discurso”. O que permite ao autor a generalização da presença de poder no discurso é que para ele o poder não está somente no discurso, mas engendrado na própria matéria-prima da qual ele é feito (linguagem). Assim, estando o poder presente na própria linguagem, todo discurso, toda comunicação está impregnada inevitavelmente dele. Em outro momento interessante, Barthes chama atenção para a necessidade de “representação de alguma coisa” pelo homem, como pulsão à constituição, e, posteriormente, transgressão da linguagem. Para o autor, desde tempos antigos até as tentativas mais recentes o homem busca, talvez inutilmente, como afirma o autor, a representação do real. Assim, aponta então para uma recusa do homem em acreditar na impossibilidade do real ser representado pela linguagem e, portanto, sua produção discursiva incessante. O desejo então de representar o real PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1011889/CA seria o motor para a manutenção, recriação e criação da linguagem. É ainda fundamental a abordagem de Michel Lahud (1993) no que tange a discussão sobre o cinema e sua linguagem. Nele podemos perceber a visão contrária à de uma linguagem pronta com a qual o homem trabalha, organiza e se comunica. Segundo Lahud, Pasolini reconhecia na linguagem cinematográfica uma certa realidade, “uma expressão da realidade através da própria realidade”. A experiência linguística do cinema seria portanto uma experiência filosófica, de um olhar sobre o real. Assim, “se as coisas podem ser significantes quando reproduzidas, é porque certamente já são, mesmo antes de se tornarem imagens cinematográficas, elas próprias sempre significativas” (Lahud, 1993 p. 40-2). Ainda mais radical, Pasolini afirmaria que nada escapa à esfera do simbólico, não existindo uma realidade natural e muda, transformável em discurso através do processo artístico ou cultural, mas que tudo já é “naturalmente” percebido como signo de si mesmo, ou seja, ela mesmo, a realidade, é linguagem. Linguagem que se dá no confronto dessa realidade com o homem. E conclui que na natureza do homem existe uma pulsão discursiva que conduz a uma tradução da natureza e portanto uma produção de linguagem. Assim, a inclinação humana ao discurso impulsionaria a elaboração, tradução e percepção de linguagem. Em resumo, teríamos esquematicamente duas reflexões: 36 - Linguagem como matéria-prima do discurso e narrativa como gênero discursivo. - Pulsão narrativa de organização do espaço/tempo como uma demanda de produção de sentido discursivo e a partir daí a estruturação do código. Nessa dupla visão sobre os termos Linguagem, Discurso e Narrativa é que conduziremos a abordagem deste trabalho levando em consideração ambas as vertentes. Não entendidas como contraditórias, mas como complementares, já que suas definições não se alteram ao se modificar essa relação. Permitindo-se compreender de forma mais complexa e plástica: Linguagem como a estrutura do código, Discurso como produção de sentido pela Linguagem e Narrativa como produção discursiva numa organização específica que inclui os elementos: alteridade, sequência e relação espaço/tempo. PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1011889/CA Dentre as diversas reflexões já feitas sobre a Linguagem, uma questão emerge de maneira oportuna para a perspectiva desse trabalho e que justifica uma análise mais aprofundada: a inclinação afirmativa, ou assertiva, da linguagem. 2.2 Inclinação Afirmativa da Linguagem As discussões sobre essa questão envolvem diversas áreas que dialogam nessa pesquisa com o campo do design, sendo elas: a área da filosofia em Barthes (1988 e 2003) na Aula e em O Neutro; da produção científica (entendendo a ciência como produto discursivo), como aponta Lyotard (2006) em A Condição Pós-Moderna; a área da comunicação nos estudos de Umberto Eco (2005) em Obra Aberta; e finalmente no âmbito das relações sociais e das artes com Pasolini (1990) em Jovens Infelizes. Barthes (1988) abre o seu texto Aula discorrendo sobre o poder e vai chegar à linguagem como sendo o lugar onde se instala o poder que atravessa a história da humanidade: A razão dessa resistência e dessa ubiquidade é que o poder é o parasita de um organismo trans-social, ligado à história inteira do homem, e não somente à sua história política, histórica. Esse objeto em que se inscreve o poder, desde toda eternidade humana, é: a linguagem – ou, para ser mais preciso, sua expressão obrigatória: a língua. (Barthes, 1988 p. 12) 37 Mais adiante, ainda aponta na linguagem uma “voz dominadora, teimosa, implacável”, em cuja característica “fascista” dois outros aspectos se colocam: “a autoridade da asserção, o gregarismo da repetição” (Barthes, 1988 p. 14,15). Assim, segundo o autor, somos forçados pela linguagem a nos comunicar, pensar e produzir conhecimento de maneira assertiva. A comunicação por signos também traz em si uma característica fundamental: a de reconhecimento dos signos. Um signo torna-se signo à medida que é reconhecido. Para tanto é necessária sua repetição. Essa repetição dita a segunda característica apontada. A ciência se coloca no centro dessa discussão porque, entendida como discurso, e impregnada das duas características citadas (e potencializadas por estarem em movimento, em uso), tende agir de maneira afirmativa – excluindo a dúvida, a incerteza. A discussão sobre o confronto de dados quantitativos e PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1011889/CA qualitativos, a produção acadêmica e o mercado, método teórico-crítico e prático, podem servir aqui de exemplo à perspectiva abordada – se entendermos que das discussões não se assume a adoção de um, em detrimento do outro, definindo portanto o enfoque interdisciplinar. Além disso, concordam tanto Barthes (1988) como Eco (2005), que ao rediscutir na ciência sua inclinação assertiva esbarram em uma outra característica da linguagem: sua capacidade de absorção, de rápida significação, de readaptação. Ou seja, qualquer ruptura, qualquer proposta que trapaceie a linguagem, tende a ser reabsorvida como linguagem. O que quer dizer que a alternativa proposta por Barthes de “trapacear a língua” encontra um obstáculo: o de que nenhum combate contra o poder da linguagem pode evitar ser reabsorvido por ela sob a “inscrição na cultura oficial”. “Não há outra saída (...) senão o deslocamento – ou a teimosia – ou os dois ao mesmo tempo.” (Barthes, 1988 p. 26) Eco aponta para uma “constante ruptura” necessária à tensão no discurso. No âmbito da comunicação podemos perceber também uma situação parecida, justamente porque, como afirma Eco, a linguagem não é só um meio de comunicação, mas o fundamento dela e num âmbito maior, o fundamento da cultura. A questão então está entranhada, como previa Barthes e como reforça Eco, dentro da trajetória da humanidade, pois está inserida na cultura. Ao mesmo tempo então que a linguagem empresta suas características ao discurso, e portanto à narrativa, estes últimos, por serem organizações mais 38 complexas, tendem a potencializar e intensificar tais características. Mas, por tratar-se da linguagem em curso, em processo, é o momento também onde tornase possível o enfrentamento proposto. Ao mesmo tempo em que se complexifica, se abre a possibilidade de enfrentamento. Alguns autores apontam para essa ruptura, esse enfrentamento do afirmativo da linguagem, uma chance à dupla leitura. Numa tentativa de transgressão, pela possibilidade de se construir um discurso que possa conter diversos sentidos numa mesma leitura. Assim, em vez de termos uma definição e uma transparência do discurso, própria da assertividade da linguagem, teríamos uma abertura a diferentes leituras, diferentes entendimentos de uma mesma enunciação e também a dúvida, a incerteza. A essa ideia, está intimamente associada a noção cunhada por Bakhtin (2003) de Inacabamento, que será de grande importância para o trabalho. A ideia de Inacabamento nasce da percepção da necessidade de um PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1011889/CA complemento (acabamento) no ato da fruição estética da obra. Ou seja, a noção de que a obra só se faz completa na medida em que encontra um espectador que a preenche de sentido. E assim, o entendimento de que o acabamento presente no ato da fruição depende do sujeito e do contexto em que ele a observa permite leituras distintas de uma mesma obra. Como na Obra Aberta de Umberto Eco. “É nossa relação que define o objeto e não o contrário.” (Bakhtin, 2003 p. 4) Segundo Bakhtin, a vida é um acontecimento inacabado, sendo isso uma condição necessária à vida. Mas na Arte, o autor no ato de criação de um personagem precisa dar-lhe uma vida esteticamente acabada. Precisar criá-lo integralmente. Esse “excedente” na criação, ou seja, esse complemento axiológico proposto por Bakhtin, é o que ele vai chamar de Acabamento. É o excedente de visão, essa visão externa – “sempre verei e saberei algo que ele, da sua posição fora e diante de mim, não pode ver” (Bakhtin, 2003 p. 21) – que não posso ter de mim mesmo na vida, só no encontro com o outro. “O autor vivencia a vida da personagem em categorias axiológicas inteiramente diversas daquelas em que vivencia sua própria vida e a vida de outras pessoas.” (Bakhtin, 2003 p. 13) Ou seja, o que vejo no outro, só o outro tem o poder de ver em mim. Da mesma maneira como o vivenciamento interno, só eu posso ter da vida. E é no jogo entre a visão que contempla o vivenciamento interno que Bakhtin vai dar o nome de “volitivoemocional” e o “excedente de visão”, que permitirá o acabamento estético, ou seja, o ato de dar forma ao objeto de criação, que se dará a criação estética. 39 Diversas foram as discussões sobre a pluralidade de leituras de uma mesma obra, sobre um mesmo texto ou sobre uma imagem. Umberto Eco torna-se referência com a Obra Aberta por esclarecer de que maneira ele compreende essa pluralidade de sentido. Especialmente na área da Literatura Ilustrada, muitos autores abordam a questão, em especial pela relação entre o texto e a imagem e a possibilidade de leitura híbrida. Nesse ponto em especial, poderíamos destacar um fator presente na maior parte dessas abordagens: a construção conjunta permite que o texto e as imagens se complementem mutuamente. Assim, o que é dito no texto é complementado pelas informações visuais e vice-versa, numa construção em que já não se torna mais possível separar as duas linguagens sem que altere o sentido da história. Uma das possíveis maneiras de se construir essa relação é no contraponto de linguagem: enquanto uma linguagem propõe parte das informações sobre a narrativa, mantém em suspenso outras que serão apresentadas PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1011889/CA pela outra linguagem. Logo, funcionando numa espécie de jogo onde na ausência de uma linguagem a outra se faz presente. Veremos que a noção de Inacabamento está presente também no humor – na ideia de duplo sentido, por exemplo. Freud (1905) aponta a questão da possibilidade de múltipla leitura, justamente quando aborda a questão do chiste. O autor subdivide a sua análise em três partes, nas quais procurou estudar e observar a técnica, os propósitos, os motivos e o processo social dos chistes. Diante da obra pudemos verificar algumas características apontadas por Freud que nos permitem compreender melhor o fenômeno e relacioná-lo com a questão. O chiste seria um mecanismo de “transgressão e liberdade”, uma forma de desconcertar as pessoas diante das regras, normas e moral. Essa transgressão é possível por uma outra forma de leitura das regras e normas, o que conduz a um deslocamento de sentido e o desconserto. As brechas que podem haver nas regras sociais são exploradas no chiste. A essa possibilidade de duplo sentido, ou de multiuso, como chama o autor, está ligada então a ideia de uma abertura que permite outra leitura. Muitas vezes, como no caso do Palhaço, esse deslocamento é feito por uma visão estúpida ou absurda do mundo, o que provoca o riso. Há ainda a possibilidade da representação pelo oposto, partindo de uma ótica invertida ou a possibilidade de alusão. O mecanismo de transgressão, de possibilidades de novas leituras, de rompimento de leituras e olhares “pré-estabelecidos”, é furar os procedimentos e 40 normas que constroem e codificam um determinado modo de enxergar certa situação. Mas não somente de furar os procedimentos. Também é preciso reconhecer que a multiplicidade de leituras está presente no discurso, ou ainda pode ser proposto no discurso. O que deixa implícita a ideia de que há, nos discursos, lacunas ou brechas que serão “preenchidas” ou “acabadas” de diferentes maneiras. A possibilidade do Palhaço romper com a rigidez pelo humor é a mostra de que há múltiplas possibilidades de ler um discurso, uma situação e, por fim, de ver o mundo. Podemos perceber o Inacabamento quando pensamos nos intervalos presentes na narrativa dos livros ilustrados. Sendo de natureza elíptica (Linden, 2011), implica uma complementação pelo leitor. Assim como na narrativa textual podemos perceber informações que estão contidas nas “entrelinhas”, que não estão presente mas são subentendidas, também nos livros de imagem, mesmo sem PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1011889/CA o texto escrito, perceberemos o jogo estabelecido pelo autor com informações que estão ausentes mas são subentendidas. Quer seja na passagem de uma ilustração para outra – que pressupondo a noção de sequencialidade, provoca o preenchimento da lacuna temporal entre as páginas/imagens –, quer seja pelo recorte feito pelo ponto de vista proposto na ilustração – que contempla parte da realidade narrada, enquanto inevitavelmente omite outras. E é nesse jogo, sequencial, de ausência e complementação que se desenvolve a narrativa. É a partir dessas questões que Sophie Van der Linden vai compreender o Livro Ilustrado (e também o Livro de Imagem), especialmente como um objeto de natureza “elíptica e incompleta” (Linden, 2011 p. 48). Em diversos momentos os autores referenciados neste trabalho abordam essa questão, seja pelo aspecto das “lacunas e brechas” preenchidas pela outra linguagem (textual/visual), seja pelas lacunas existentes entre uma página dupla e outra – numa espécie de “entrepáginas”, parodiando a noção de “entrelinhas”. Sendo assim, o que “não é dito” é também de potencial importância para o texto. Como as pausas e silêncios destacados por Linden para a composição do ritmo (Linden, 2011 p. 147), ou nas formas “inacabadas”, bem como nos “brancos” (Linden, 2011 p. 150): Textos e imagens manifestamente trabalham em conjunto, mas também sabem, por sua vez, criar alguns ‘brancos’. Aos do texto correspondem a vaporosidade da imagem, seja quando mantém indefinição, seja quando 41 revela a carência à custa de muita observação ou interpretação subjetiva. (...) Os ‘brancos’ não são sistematicamente preenchidos e, na maioria das vezes, texto e imagem lançam seus não ditos um para o outro. (Linden, 2011 p. 152, 153) Cabe ressaltar que a ideia de uma natureza elíptica e incompleta não se limita somente ao objeto em questão. Poderíamos verificar além dos livros ilustrados, também nos livros sem imagens a ideia de uma natureza elíptica que complementaria a narrativa, como propusemos num paralelo entre os termos “entrepáginas” e “entrelinhas”. A ideia, portanto, é perceber na ausência, no que não é dito, a potencialização de múltiplas leituras. É explorando as brechas de regras e normas que o Palhaço constrói seus números e é explorando as imagens e suas ausências (o que está fora do quadro, ou que está “entre as páginas”) que também se constrói a narrativa no Livro de Imagem. E mais visível ainda no PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1011889/CA Palhaço Mímico, que constrói sua narrativa no que não mostra, utilizando-se de elementos que não estão presentes para produção de discurso e sentido. É, portanto, na ausência que trabalha o Palhaço Mímico – na ausência da fala, como é de costume associá-lo, mas muitas vezes também na ausência de objetos (elementos de cena, de cenários etc.). Na ideia de ausência duas questões estão colocadas. A primeira corresponde a certa competência de leitura – a ideia de que o leitor compreende o mecanismo de que na sequência de imagens é apresentada uma narrativa. E que as imagens mostradas não são necessariamente todas as ações dessa narrativa, mas o suficiente para que sejam compreendidas. Na junção entre as informações apresentadas com as informações que não são ditas na sequência visual, o leitor constrói um sentido para o discurso narrativo. A segunda, de que o leitor está diante dos fatos no momento em que eles acontecem. Sendo assim a história não está escrita, está em processo de construção. Destacando a característica afirmativa da linguagem, a ela propomos um contraponto, uma abordagem alternativa pretendida neste trabalho: um olhar para um objeto cuja característica é a ausência do elemento sob o qual esse objeto é normalmente analisado e criticado. A narrativa, tanto no Livro de Imagem quanto na cena do Palhaço Mímico, prescinde da palavra em sua construção. E é justamente partindo da ideia de que no jogo e na compreensão do silêncio, propostos nos dois casos, funcionam a fruição estética e a experiência narrativa. 42 Assim, a ausência como forma de abordagem se coloca como uma busca por enfrentar a característica afirmativa da linguagem, sem contudo entendê-la como oposta. Mas, na concepção de que nesse jogo de complementaridade se estabelece uma condição oportuna para a análise. 2.3 Um olhar para a ausência Para darmos início a abordagem sobre ausência, iremos primeiramente pensá-la como forma de Silêncio. Utilizaremos o termo silêncio apesar de encontrarmos em diferentes autores a mesma noção nomeada de maneira diversa. A partir de então, averiguaremos as razões desses silêncios e o que eles teriam em comum entre si, de tal maneira que permitissem uma organização. O caminho escolhido para essa organização se deu a partir de três categorias PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1011889/CA em que o uso da palavra silêncio poderia ser pensado: o que é indizível, o que não deve ser dito e o que não é dito. Em todos os casos iremos, por simplificação, conduzir o silêncio como ausência de discurso representado pela linguagem verbal (oral ou escrita). O que não limita a perceber o silêncio somente no âmbito dessa linguagem. A discussão que se estabelece poderia ser expandida a outras linguagens diferentes, sem contudo perder sua essência. O vácuo do indizível Axel Honneth (2009), através dos estudos da psicanálise, traz uma análise da relação entre mãe e filho chamando atenção, principalmente, pela maneira como essa relação é construída, já que a criança ainda não possui domínio da linguagem verbal. A partir do exemplo de Honneth, podemos dar início à reflexão sobre essa categoria do silêncio: o indizível. No exemplo dado acima, em que a criança ainda não possui o domínio da linguagem verbal para traduzir seus sentimentos e ânsias, está presente o indizível. O que buscamos entender desse vácuo é a ausência (como desconhecimento) do código. Bem próximo a esse tipo de silêncio imposto pela ausência do código temos o silêncio pela limitação de um código. Uma expressão sensível diante da qual diríamos como consenso que “não temos palavras para descrevê-lo” é o motivo, 43 por exemplo, para o silêncio indizível por limitação. É uma experiência que pode ser percebida em uma obra de arte, na fruição, no prazer, na alegria, no gozo. Mas como o silêncio é ambivalente e convive bem com o diferente e o contrário, também encontramos o silêncio na violência, na feiúra, na tristeza, na dor – também muitas vezes rompido com grunhidos e sons que na tentativa de exprimir o sentimento, só encontra sons sem significado verbal. Cabe ressaltar que no silêncio por limitação da linguagem, quando não encontramos recursos suficientes, muitas vezes lançamos mão de outras linguagens que possibilitem o escape. É uma espécie de complementação à lacuna deixada por uma linguagem. Ou ainda conjugamos informações de linguagens distintas produzindo construções na tentativa de possibilitar a expressividade nesse hibridismo. O que veremos em muitos casos é que há mudança de linguagem no discurso, na busca por uma expressão mais fiel, ou viável, ao que se PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1011889/CA pretende. Como outro exemplo, poderíamos citar os filmes mudos do princípio do século XX. O som, os diálogos, nas películas projetadas, eram pouco utilizados (por demandar cartelas) ou não eram utilizados. O silêncio – genialmente trabalhado por artistas como Charlie Chaplin e Buster Keaton – muitas vezes foi inevitável, por impossibilidades técnicas. Os sistemas de reprodução de som, na época, não tinham potência nem desempenho suficientes que dessem conta de serem utilizados nas salas de projeção. Assim, como não havia no momento aparelhos com tecnologia para gravar e reproduzir o som com qualidade e sincronia suficientes para serem utilizados, os filmes ficaram conhecidos como “mudos”. Muitas vezes esse silêncio era interrompido por orquestras ou músicos que tocavam ao vivo, acompanhando a projeção. Apesar disso, continuamos a chamá-los de “mudos”. O silêncio nesses casos não é colocado por uma limitação da linguagem, mas por uma limitação técnica de reproduzi-lo, e é por isso alocado aqui na categoria de indizível. Poderíamos também apontar o Indizível na exclusão proposta por uma prática cultural. Um exemplo disso é a dicotomia “racional x irracional”. Sobre isso, Maffesoli (2005) em seu texto Elogio da Razão Sensível pontua diversos aspectos dessa dicotomia e o que ela acabou gerando dentro do racionalismo, que para a discussão é bem representativo. Essa dicotomia evocada pelo racionalismo científico, não só determina a separação entre esses dois polos da inteligência 44 humana – que por si só já conduz a uma fragilidade de ambos –, como também negligencia a forma de pensar sensível. Assim, como o próprio Maffesoli coloca: podemos insistir sobre o fato de que foi no rastro da dicotomia evocada mais acima que se constituiu o racionalismo científico; e isso, tanto no que diz respeito à realidade individual quanto à realidade social. Como bom representante de tal tendência, Freud nota que a oposição eu/não-eu, sujeito/objeto, e poderíamos prosseguir com cultura/natureza, corpo/espírito, funda-se sobre o espírito de dominação. (Maffesoli, 2005 p. 40) A dicotomia que exclui do pensamento científico o polo sensível/emocional demonstra a incapacidade de se levar em consideração questões da subjetividade dentro desse método de produção de conhecimento. O polo sensível/emocional é então contido, silenciado para valorização do pensamento racional. O que não é possível de ser dito, expresso, traduzível pela razão, não interessa ao discurso científico. PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1011889/CA Gianni Vattimo (2004) é outro autor que também traz uma boa contribuição para o tema silêncio, quando trata do silêncio que existe na definição de Deus para a Filosofia. Em seu livro Depois da Cristandade, ele salienta que é preciso retomar a discussão a respeito de Deus, interrompida na Filosofia – ilustrada por Nietzsche no seu anúncio da Morte de Deus. Essa interrupção, segundo Vattimo, é resultado do crepúsculo das grandes metanarrativas (segundo a expressão de Lyotard) – das filosofias sistemáticas persuadidas de terem apreendido a verdadeira estrutura do real, as leis da história, o método para o conhecimento da única verdade –, também perderam o valor todas as razões fortes para um ateísmo filosófico. Se não é mais válida a metanarrativa do positivismo, não se pode mais pensar que Deus não existe porque este não é um fato demonstrável cientificamente. (Vattimo, 2004 p. 109) O silêncio que se instaura na filosofia, quando o tema é Deus, também se aproxima do que estamos chamando de Indizível. Nada mais complexo – e arrisca-se a dizer “impossível” de ser traduzido em linguagem – do que a experiência e a crença da existência divina. O silêncio que se estabelece é, para Nietzsche, o mesmo silêncio diante da Morte. Um encontro com Deus não poderia ser descrito, não teria linguagem que daria conta de representá-lo. O silêncio do que não deve ser dito Neste tópico o que chama atenção para a discussão é a palavra “deve”, colocada antes do dizer. O que deixa implícito uma ação desejada pelo outro, 45 construída socialmente, internalizada ou não pelo próprio sujeito. Trata-se de regras mais ou menos ocultas, porque levaremos em consideração regras explícitas – normas, leis; bem como as implícitas ou não claras –, moral, ética, valores. Uma pontuação bastante interessante para a discussão é colocada por Pasolini (1990). O autor aponta para uma diferença entre as regras colocadas em regimes ditatoriais e as regras do sistema capitalista. Nas duas situações temos repressões e regras de conduta a serem obedecidas. A diferença para Pasolini está na natureza dessas regras. O que para o autor fica claro nos regimes políticos ditatoriais (censura, violência, repressão, autoritarismo), também está presente no sistema capitalista, mas de maneira não clara. Para o autor, o capitalismo de consumo concede ao sujeito uma “liberdade”. Mas essa liberdade, na leitura de Pasolini, não se trata de uma “ausência de regras”, ausência da violência, da repressão e da censura – visíveis nos sistemas ditatoriais, trata-se agora de regras PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1011889/CA não claras. Portanto, o silêncio do que não deve ser dito trata do sujeito diante da sociedade, e o que esta espera dele como atitude ou reserva, segundo regras claras ou não. Ainda segundo Honneth (2009), podemos verificar o silêncio do que não se deve ser dito nas Artes, sob a forma da Censura. Como exemplo oportuno, podemos trazer a Commedia dell’ Arte Italiana, que durante a Idade Média sofreu com a repressão e censura. Nesse caso, a censura era uma norma estabelecida pelos governantes contra à prática artística desses indivíduos. Atores, diretores, artistas em geral foram ameaçados e perseguidos. E por isso, fugindo percorriam diversas cidades e países encenando suas peças, que na maioria das vezes eram compostas sobre a temática das fraquezas humanas. Assim, não raros apareciam temas como adultério, roubo, chantagem, corrupção e diversos outros que iriam de encontro à moral, aos bons costumes ou aos poderosos e as leis, o que na época, para os governantes, justificava a censura. Curiosamente a censura muitas vezes dava-se sobre a palavra, sobre o diálogo. Como resposta desenvolveu-se nessa época a técnica da mímica na Comedia dell’Arte, como alternativa à encenação sem palavras. E acredita-se que por conta disso vincula-se à mímica o palhaço e os artistas de rua e do circo. Figuras muito comuns durante a Idade Média, e que tiveram bastante influência da Commedia dell’Arte, foram os bobos da corte e bufões – que por força de simplificação chamaremos todos de palhaços. Em contrapartida, esses 46 personagens – que para Bakhtin (1993) não se despiam de seus papéis em nenhum momento, tornando vida e cena instâncias inseparáveis – eram os únicos que podiam – possuíam a permissão dos reis – dizer certas “verdades proibidas”. Essas verdades já eram de conhecimento geral muitas vezes, mas ninguém ousava comentar por medo de retaliações. Essas verdades proibidas, ou melhor, o silêncio dessas verdades é o que podemos chamar de silêncio do que não deve ser dito. Apenas alguns, naquela ocasião, tinham certa liberdade de falar. Que por sinal possuíam somente por não obter credibilidade social. Eram vistos como sujeitos confundidos com loucos e desprovidos de dignidade humana. Obviamente por isso poderiam tecer tais comentários sem receber punições tão severas quanto as que seriam impostas a qualquer outro cidadão. Isso não retira, obviamente, a possibilidade de muitos deles terem sido castigados – ou por passarem dos limites, ou simplesmente por perderem a liberdade concedida pelo rei. PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1011889/CA Dentro de sistemas autoritários, que são um risco presente sempre que há radicalismo e inflexibilidade ao lidar com o diferente, a censura é muito comum. No texto Interdependência e Sensibilidade Solidária de Hugo Asmann e Jung Mo Sung (2000), os autores afirmaram que a cultura na qual vivemos sempre abre e fecha janelas, permitindo e impedindo visões de mundo. Limitando, selecionando a forma de se perceber a realidade. Repudiando e ignorando o diferente. Assim abrindo espaço ao preconceito, à marginalização e a diversas maneiras silenciosas (ou não) de rejeitar o diferente. Podendo em casos mais graves chegar à violência – não faltando exemplos no fascismo, nazismo, ditaduras no Brasil e América Latina, regime de escravidão e conflitos religiosos espalhados ao redor do mundo. Há também as regras estabelecidas silenciosamente dentro da sociedade que dizem respeito à conduta social, à maneira de agir em grupo, à polidez. De forma mais branda, mais ainda uma conduta que “deve ser respeitada”, é o que no Brasil dá-se o nome de “politicamente correto”. O que “não deve ser dito” aqui aparece dentro da dicotomia do certo/errado. São “pactos sociais”, são contratos estabelecidos no silêncio (por vezes) onde o que fica calado tem um significado e uma repressão externa e não oficializada. Não é assim, uma norma, uma regra, mas um “senso comum”. E podemos citar também as regras de etiqueta, a educação, tabus etc. São todas formas não normativas de se limitar certas ações – condutas esperadas. 47 Novamente em Asmann & Sung (2000), a temática do silêncio se mostra presente também na questão da Solidariedade e nas questões relativas a valores. A breve análise do uso da palavra solidariedade recorrente na sociedade traz como exemplo os Parâmetros Curriculares Nacionais do Ensino Médio. Nesse contexto, os autores destacam a palavra solidariedade, que aparece com dois significados distintos. O primeiro é a solidariedade entendida como um fato e uma necessidade de compreensão da interdependência na vida social; o segundo, mais normativo e propositivo, é “um chamado à superação da exclusão e da segmentação social através da educação” (Asmann & Sung, 2000 p. 75). Estes dois sentidos estão interligados na medida em que a solidariedade como atitude, ou a solidariedade como uma questão ética, nasce de reconhecimento de que a solidariedade/interdependência é um fato, uma necessidade para a vida da e na sociedade. (Asmann & Sung, 2000 p. 75) PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1011889/CA O que chama atenção com relação ao tema silêncio aqui está nos exemplos apresentados no texto em que duas pessoas cientes do risco de causarem acidentes graves a outras, continuam agindo como se suas ações não fossem interferir na vida alheia. A forma de interpretar essa recusa em ser solidário, pelo autor, é figurada como um “tipo de cegueira”, que impede a percepção das relações de interdependência de todos os seres vivos, o que provoca a recusa de agir “de acordo com o esperado” – de tal forma a manter a coesão social. (Asmann & Sung, 2000 p. 78) Essa recusa, essa não ação ou não atitude – para utilizar as palavras dos autores, é num certo sentido voluntária, ou seja, um ato que parte da própria vontade do agente em recusar-se a fazer. Aqui percebemos a alocação dessa recusa no “não dito”, o silêncio que parte do sujeito – que me é confortável ou oportuno. Poderíamos lançar mão de André Comte-Sponville (1995), que aborda a virtude como uma tentativa de, na ação, nos tornarmos “mais humanos”, o “esforço de nos portar bem” (Comte-Sponville, 1995 p.9). E então pontuamos a lacuna como boa conduta, polidez. Assim, aqui poderíamos compreender que o que seria calado seria o que não deve ser dito, para ser mantida em equilíbrio o que o autor chama de “relação simétrica”. A necessidade do outro e do reconhecimento é parte do ato de fazer, da escolha e dos valores adotados. 48 Claro vê-se que esse tema tem relação direta com “bom convívio social”. Regras de boa convivência são condutas (apoiada em itens já revelados: moral, ética, valores etc.) que geram no interior da sociedade uma implícita normatização. O silêncio que é imposto e colocado segundo a lei e respeitado sob penas previstas. Assim, como o próprio Honneth coloca, trata-se das relações sociais discutidas no campo jurídico. Se o indizível não encontra na linguagem maneira de ser expresso, o silêncio do que não deve ser dito cala por regras e normas estabelecidas. A lacuna do não dito se coloca como um contraponto a essas duas situações. A lacuna do não dito Diferentemente do indizível, é uma categoria que recusa a ação. Não se trata de uma impossibilidade de organização do código ou mais ainda, uma limitação, PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1011889/CA nem uma proibição que não permita traduzir a experiência vivida. Trata-se de um silêncio oriundo do arbítrio. O que é dizível, mas não é dito, tem razões diversas. Poderíamos classificar como razões de ordem emocional, psíquicas, sensíveis, traumáticas etc. Bem como estratégica, poética etc. De qualquer modo, a lacuna do não dito passa pela retenção subjetiva. Para dar início à discussão traremos uma forma de visualizar a lacuna do não dito no início de qualquer processo. Ou, em outras palavras, a lacuna original. O silêncio tratado como uma folha branca, alva, pura e virgem, é para alguns um ambiente sagrado onde nele se procurará manter a sacralidade. A folha em branco, onde a partir dela tudo pode ser desenhado, pintado, reproduzido e criado, traz uma representação de originalidade. E utilizamos aqui, para definir essa palavra, o sentido de retorno à origem, ao início. Cabe também abordar a lacuna como expressão. E nesse caso ressaltaríamos a expressão artística. A escolha do termo “lacuna” no nome dessa categoria traz em si a ideia de uma falta. De algo que deveria estar ali, mas não está. E por conta disso, a ideia de algo que é esperado mas não se confirma. O silêncio que envolve uma expectativa. Esse silêncio como “frustração” pode ser uma provocação poética. Uma intencionalidade na supressão de algum termo, com a esperança de que no ato de fruição essa lacuna seja preenchida pelo próprio espectador. Como no caso da elipse, citada anteriormente. Pode ser assim, uma provocação do autor 49 em fragmentar a obra, fragmentar um texto, para uma reconstrução no ato da fruição. E aí, estamos diante da lacuna como subversão, como transgressão. Barthes em Aula (1988), quando aponta para a característica assertiva da linguagem, apesar de acreditar que uma língua se caracteriza mais pelo que ela obriga e menos pelo que ela impede de dizer, e por isso a chama de fascista, não deixa de considerar as restrições da língua. O que chamamos de silêncio do indizível, em Barthes encontraríamos claramente ao que ele se refere de “liberdade impossível”. Ou seja, PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1011889/CA Na língua, portanto, servidão e poder se confundem inelutavelmente. Se chamamos de liberdade não só a potência de subtrair-se ao poder, mas também e sobretudo a de não submeter ninguém, não pode então haver liberdade senão fora da linguagem. Infelizmente, a linguagem humana é sem exterior: é um lugar fechado. Só se pode sair dela pelo preço do impossível. (Barthes, 1988 p. 15-6) A solução proposta pelo autor é encontrar maneiras de trapacear com a língua, trapacear a língua. E dá a essa “revolução permanente da linguagem”, essa “trapaça salutar, essa esquiva, esse logro magnífico que permite ouvir a língua fora do poder” o nome de: Literatura. Claro que toda categorização é em si mesma uma forma de exclusão, e, portanto, gera as tão discutidas sombras e silêncios. Aqui, o esforço de categorizar se deu em função de perceber as proximidades dos motivos que geravam cada silêncio, mas compreendendo ser possíveis áreas de transição entre categorias, que impossibilitariam uma delimitação de forma rígida e definitiva. Um silêncio limitado pela linguagem pode muitas vezes não ser possível devido ao desconhecimento de outros mecanismos dessa linguagem. E retomando o exemplo de fechar e abrir janelas, de Asmann & Sung (2000): “cremos que o que vemos é toda a realidade ou toda a verdade”. O não dito voluntário, por vezes, pode ser apenas uma “norma oculta” já tão interiorizada que não nos damos conta que a vontade foi conduzida pela norma. Assim, as categorias aqui descritas não são, nem devem ser, de qualquer maneira restritivas. Podendo haver mesclas, hibridismo e contaminações. Portanto, o silêncio pode ser gerado a partir de motivações poéticas – quando se procura no silêncio a reflexão e a participação do espectador no momento da fruição. Motivação intelectual – como momento de reflexão, 50 pensamento, em que me silencio para o exterior, mas direciono atenção para minha subjetivdade. Na religião – onde a prece, a meditação necessita do silêncio como encontro com o espiritual, ou o respeito ao ritual, à cerimônia, à ideia de transcendência. Até num campo mais violento, como o silêncio da repressão, da censura. O silêncio da destruição, da degradação, da desumanização, da violência. Assim, colocamos a possibilidade de se analisar um objeto pela ausência de determinada linguagem. Também a possibilidade de um olhar que leve em consideração o que não é mostrado, parte para uma abordagem que não só considera o que é visível, dito, como o que permanece oculto. E essa é a proposta para a abordagem do Livro de Imagem com apoio no Palhaço Mímico, quando ambos apresentam a ausência do elemento textual esperado culturalmente. Cabe a partir de agora um olhar mais detalhado sobre ambos os objetos de estudo para perceber, ao longo de sua trajetória histórica e de sua práxis, o que PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1011889/CA poderíamos extrair de questões úteis para uma análise da narrativa – no seu contexto de produção, transmissão e consumo. De tal forma que leve em consideração os aspectos próprios da Linguagem – principalmente seu caráter afirmativo; ao Discurso por levar em consideração o contexto de uso da linguagem; e então compreendermos de que maneira se processa o desenvolvimento da experiência Narrativa nos dois campos. 51 3. Livro de Imagem e Palhaço Mímico A opção pelo Livro de Imagem deu-se em virtude de algumas questões, principalmente voltadas a um aprimoramento na prática da Ilustração. O impulso de conhecer melhor o Livro de Imagem e suas possibilidades levou-me ao interesse pela narrativa sem palavras, o que conduziu-me despretensiosamente à aproximação do Palhaço Mímico. A experiência profissional com o Livro de Imagem revelou uma possibilidade de construção narrativa sem o texto escrito, e com ela um grande interesse e desafio. Ao mesmo tempo em que esse objeto desafiava a contação de uma história por imagens, ele trazia a possibilidade de uma nova forma de autoria, por desvincular o trabalho do ilustrador da necessidade de um texto escrito e, PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1011889/CA portanto, de um escritor (autor). Essa ausência proporciona uma liberdade e uma autonomia artística ao ilustrador. Mas com ela a ausência também do “ponto de partida” tradicional do trabalho de ilustração. Enquanto me agradava a possibilidade de autonomia, percebia também a dificuldade de criar histórias por imagens. Nesse sentido remetemos em primeiro lugar à lacuna do não dito, a lacuna como expressão poética – entendendo a ausência do texto como desafio, como opção do ilustrador; e em segundo pela lacuna original, ausência do ponto de partida em que culturalmente se inicia o trabalho do ilustrador – o texto. Em paralelo à experiência como ilustrador, nasce a curiosidade pelo personagem palhaço. A experiência oriunda da formação nas Artes Cênicas foi suficiente para conduzir uma pesquisa pessoal sobre essa personagem. O encontro com profissionais, a participação em eventos e o contato com espetáculos foram aos poucos revelando algo em comum entre os profissionais da área das Artes Cênicas e da Ilustração: ambos tinham um vínculo com a Literatura e a preocupação de uma composição híbrida (texto e imagem) que contassem uma história. O que não se limita somente a essas duas áreas, pois também poderíamos citar o teatro de bonecos, o cinema, a história em quadrinhos, a animação, entre outros. No entanto, o que fundamentou uma pesquisa mais aprofundada sobre essas duas áreas específicas, além do interesse pessoal, foi a argumentação teórica de alguns autores que já apontavam para essa proximidade. 52 Rui de Oliveira, conhecido e premiado ilustrador brasileiro, autor também de livros de imagens e teórico, cita em seu livro dirigido à arte de ilustrar Pelos Jardins Boboli (Oliveira, 2008) que “assim como o trabalho de um ator que interpreta vários papéis (...) vejo o ato de ilustrar como um processo de criação semelhante”. (Oliveira, 2008 p. 149) O autor ainda conduz a discussão, apontando grandes referências do teatro, como Konstatin Stanislavsky e Bertold Brecht, em que aborda por exemplo a discussão mais tradicional sobre o distanciamento do ator e da personagem. Em outro momento também aponta para o cinema, mas prefere a aproximação com o teatro: “As convenções e sintaxes do teatro e a relação do ator com o texto levaram-me a me aproximar mais do teatro do que do cinema, com o intuito de entender o ofício de ilustrar”. (Oliveira, 2008 p. 151) A discussão de Rui de Oliveira segue na direção de propor uma interpretação própria para cada texto, relacionando com uma espécie de PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1011889/CA laboratório1 para construção da personagem, e ele acredita que interpretações diferentes para cada texto interferem decisivamente, por exemplo, na linguagem e técnica adotadas. Aqui novamente percebemos uma especificidade nas Artes Cênicas que as aproximam da ilustração literária. O contato com a obra textual (tanto no livro como no palco) resulta numa interpretação do diretor e do ilustrador, que proporciona montagens diferentes da mesma peça e edições diferentes do mesmo livro. E aqui nos afastamos um pouco do cinema e da animação, pois em ambas as situações essa realidade não é tão comum. Um outro autor que dedicou bastante atenção teórica e prática à ilustração, com grande experiência na narrativa visual, é Uri Shulevitz. Em seu texto Writing with Pictures (Shulevitz, 1985), o autor aponta diversas questões que envolvem uma narrativa visual; algumas delas serão abordadas com mais profundidade adiante. Uri concorda com uma certa proximidade do livro ilustrado com as Artes Cênicas. O autor aponta também para essa proximidade com o cinema, mas especifica o cinema mudo. “A pictures book is closer to theater and film, silent film in particular, than to the other kinds of book.” (Shulevitz, 1985 p. 16) Outro aspecto, porém, destaca-se na análise de Uri: o fato do autor afirmar uma Termo originário do teatro, no qual o ator busca a proximidade com o contexto onde a sua personagem viveria, oportunidade e fonte de pesquisa para a construção desta. 1 53 semelhança direta entre o Livro de Imagem e a Pantomima. (Shulevitz, 1985 p. 18) De maneira geral, podemos considerar que o vínculo com a Literatura era o ponto inicial de aproximação entre as Artes Cênicas e a Ilustração. O que nos permite dizer que o vínculo, portanto, que aproxima as duas áreas é o vínculo com o texto verbal. Com o intuito, porém, de uma perspectiva alternativa, este estudo buscou um recorte específico dentro de cada área, o que resultou na escolha do Palhaço dentro da área das Artes Cênicas e na Ilustração, o Livro Ilustrado. A partir de então, a proposta é analisá-los na situação desvinculada do texto verbal, na ausência da palavra. Nas Artes Cênicas, portanto, o Palhaço Mímico e, na Ilustração, o Livro de Imagem. Durante encontros de estudantes frequentados nos anos posteriores à conclusão da graduação, arriscou-se a provocar uma discussão entre eles sobre a PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1011889/CA relação entre o personagem Palhaço e o campo do Design. Elaborou-se uma oficina, que não era voltada para a aprendizagem de uma técnica específica, mas tinha o objetivo de propor uma reflexão sobre o campo do Design que partisse da experiência do trabalho como Palhaço. A oficina intitulada Designers da Alegria foi ministrada primeiramente na Universidade Federal do Espírito Santo, no II Encontro Regional dos Estudantes de Design RJ/ES, em Vitória, em 2006. Percebeu-se um grande interesse despertado, proporcionado principalmente pela visibilidade da oficina, já que os estudantes eram levados às ruas caracterizados, mas também pelo aprofundamento das discussões posteriores a essa experiência. Por isso, a oficina foi levada a diversos outros encontros em diferentes cidades e regiões do país, sempre em encontros destinados a estudantes de Design: VIII Interdesigners na UNESP em Bauru/SP, XVI Encontro Nacional dos Estudantes de Design na UNB em Brasília/DF, II Encontro Regional de Estudantes de Design CO/MG na UEMG em Belo Horizonte/MG e no IV Encontro Regional dos Estudantes de Design na UFBA em Salvador/BA, todos no ano de 2006. 54 Figura 1 – À esquerda e ao centro: participantes e grupo de discussão posterior à vivência da oficina Designers da Alegria em Vitória/ES; à direita: participantes da oficina em Brasília/DF . Assim, com estudos teóricos e práticos na área da Ilustração, bem como das Artes Cênicas, me volto ao Livro de Imagem e Palhaço Mímico, percebendo a proximidade que ambos possuíam no que tange à ausência de texto oral ou escrito na construção da narrativa; e, assim, realizo experimentação prática e reflexiva proporcionada pela oficina no ano de 2006, base para uma busca por aprofundamento que resultou, em parte, neste trabalho. O que pretende este PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1011889/CA capítulo é, portanto, visualizar os dois campos mencionados, procurando ora na trajetória histórica, ora na especificidade técnica e criativa de ambos, pontes e características comuns ou destoantes e questões que provocassem uma reflexão mais abrangente da construção de narrativas na ausência do texto escrito ou oral. 3.1 Marginalização Uma primeira característica comum entre os dois campos abordados foi a carência de material teórico e crítico. Uma contextualização histórica de ambas as áreas nos permitirá visualizar essa questão com maior clareza e perceber nela certa marginalização. Inserção no mercado Podemos perceber que ambos os profissionais (ilustrador e palhaço) deparam com certa marginalização quando são vistos dentro do âmbito comercial. E através de uma perspectiva histórica, poderemos dar visibilidade a essa marginalização relativa e que, sob a ótica do trabalho, aponta já para uma primeira manifestação de ausência. O breve relato do surgimento do Livro de Imagem feito por Rosângela Ferraro (2001) destaca o cenário europeu dos anos 1930, posteriormente no Brasil no final da década de 1960 e principalmente no chamado Boom dos anos 1970 da 55 Literatura Infantil Brasileira. Antes disso, eram raros os livros dedicados ao público infantil com as características que encontramos comumente hoje: “ricamente ilustrado, leve, pouco volumoso, adaptado ao porte físico e aos interesses da criança pequena”. (Ferraro, 2001 p. 31) Segundo Nelly Novaes Coelho (Coelho, 2000), na Europa, nas décadas de 1920 e 1930 tal mudança deveu-se ao impulso dado pelas “inovações propostas pela Escola Nova” (Coelho, 2000 p.186), fundamentadas pelas pesquisas da psicanálise, ligadas à pedagogia, que apontam e asseguram as imagens como os “mediadores mais eficazes para estabelecer relações de prazer, de descoberta ou de conhecimento”. E aponta Paul Faucher como o protagonista desse desenvolvimento, principalmente pela idealização dos Albums du Père Castor, resultado de suas atividades oficiais como educador e pedagogo no controle e PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1011889/CA seleção de livros didáticos. (Coelho, 2000) Figura 2 – Diferença dos livros produzidos antes e depois das inovações da Escola Nova: The Old Garden,1894, à esquerda, e Le Calife Cigogne - Albuns du Pére Castor, 1948. No Brasil, o reflexo dessas mudanças europeias só vai ser percebido no final da década de 1960 e início dos anos 1970. Impulsionada pelas propostas educacionais trazidas pela Escola Nova e principalmente pelo incentivo governamental, os livros infantis passaram a ter grande visibilidade no cenário brasileiro. A partir do interesse comercial de editoras brasileiras com o incentivo, estas passam a exigir mão de obra especializada – não só de escritores, mas principalmente de ilustradores e designers. 56 Figura 3 – Influências das inovações propostas pela Escola À esquerda, exemplar de Monteiro Lobato Idéias de Jéca Tatu, de 1948. À direita, A Bolsa Amarela, de Lygia Bojunga, 1976. Nova no Brasil: Com o visível crescimento da qualidade dos livros infantis, destacando aqui PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1011889/CA a parte visual – design gráfico, diagramação e ilustrações –, a teoria e a crítica literária infantil é obrigada a formular categorias e reformulá-las constantemente para darem conta de classificar e estudar os inúmeros tipos de livros que se desenvolveram nessa época: livros jogos, livros brinquedos, formatos diferentes, com texturas, coloridos etc. Verifica-se, nesse sentido, um descompasso de aprofundamento teórico e crítico que desse conta de acompanhar o desenvolvimento, principalmente com relação à imagem e sua contribuição ao campo da literatura. Consequências dessa lacuna podem ser percebidas em diversas situações. A primeira delas é que a partir do momento em que o ilustrador passa a ter uma participação importante e reconhecida nos livros – e na narrativa –, não há tempo de reflexão e, portanto, de estudos teóricos voltados para a linguagem visual dentro da Literatura. Esse descompasso gera, consequentemente, uma marginalização da atividade também nas reflexões teóricas da área. No palhaço também podemos perceber certa marginalização quando Bakhtin (1993) se debruça sobre a cultura cômica popular da Idade Média para constatar alguns aspectos relacionados não só a essa personagem, mas à área das Artes Cênicas em geral. Segundo ele, o grande acontecimento dessa época, que contemplaria esses personagens e serviria como reflexão para o contexto em questão, era o Carnaval. Sua riqueza de festas públicas, ritos e cultos, e personagens como anões, bufões, palhaços irão contribuir para o riso 57 carnavalesco. Este último, que contagiava rapidamente a população independentemente de classe ou posição social, tinha como característica mais forte justamente o rompimento com as relações hierárquicas. Igualando pessoas de diferentes classes sociais, propunha uma “segunda vida” – termo utilizado pelo autor para conceituar um momento em que as relações sociais marcadas pelo regime feudal eram desestruturadas e ignoradas –, que “era contrária a toda perpetuação, a toda idéia de acabamento e perfeição, mostrando a relatividade das verdades e autoridades no poder”. (Burnier, 2009 p. 206) O Carnaval apresentado como fenômeno social para a manifestação do cômico é apresentado como uma possibilidade de contraposição à ordem vigente. Uma alternativa ao oficial (Igreja e Estado), ao estabelecido, ao cotidiano. Seguindo essa perspectiva o cômico apresenta-se assim como a possibilidade do oposto ao sério, ao culto, ao protocolo. Cabe destacar que Bakhtin não considera o PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1011889/CA Carnaval uma manifestação puramente teatral, artística. Para ele o Carnaval situase na fronteira entre a arte e a vida. Assim, personagens e espectadores se encontravam indistinguíveis. Não existia a separação entre o público e o palco. Aliás, não existia o público. “Os espectadores não assistem ao Carnaval, eles o vivem.” Durante o Carnaval, segundo Bakhtin, não se pode fugir, pois este é ilimitado espacialmente, e as leis que reinam durante a festa são as leis da Liberdade. E é na ânsia pela liberdade, na fuga ao oficial, à vida cotidiana ordinária, que o povo está imerso nessa “segunda vida”, mesmo que efêmera. Aqui, prazer e necessidade humanos se misturam. Simbolismo até hoje mantido pela tradição de “passagem das chaves” do prefeito para o Rei Momo – representante do Carnaval, numa simbólica transferência de autoridade. ...triunfo de uma espécie de liberação temporária da narrativa dominante e do regime vigente, de abolição provisória de todas as relações hierárquicas, privilégios, regras e tabus. (...) Opunha-se a toda perpetuação, a todo aperfeiçoamento e regulamentação, apontava para um futuro ainda incompleto. (Bakhtin, 1993 p. 8-9) Aqui, pontualmente, percebemos novamente a questão da ausência, mais especificamente a lacuna como expressão e subversão, mas também embutido um silêncio da expectativa social, da censura, da polidez e do bom convívio social, pois o Carnaval, visto como alternativa à ordem e à vida social cotidiana, se estabelece como uma fuga. A busca por uma alternativa, mesmo que temporária, 58 se inscreve nas Artes Cênicas e especificamente no Palhaço, de maneira fundamental. Inclusive, alguns de seus personagens mantinham-se na sociedade como permanentemente representantes do princípio carnavalesco dentro da vida cotidiana. Como entidades que mantinham acesa a possibilidade de uma outra forma de vida, da liberdade. Dentre eles, Bobos, Bufões. E sendo assim, localizados numa “esfera indeterminada”, numa zona ausente de classificações: Não eram atores que desempenhavam seu papel no palco. Pelo contrário, eles continuavam sendo bufões e bobos em todas as circunstâncias da vida. Como tais, encarnavam uma forma especial da vida, ao mesmo tempo real e ideal. Situavam-se na fronteira entre a vida e a arte (numa esfera indeterminada), nem personagens excêntricos ou estúpidos nem atores cômicos. (Bakhtin, 1993 p. 7) Na França do século XVII, por razões políticas, a Commedie Française recebe o privilégio de ser a única companhia dentro da França a ter permissão do PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1011889/CA Rei para representar no idioma francês. Em todas as outras encenações foram proibidos atos e diálogos, numa resposta aos teatros populares de feira e aos artistas de rua pelas suas encenações quase sempre críticas da política dominante – silêncio pela censura. Retrucando às proibições, os artistas de rua criam as peças curtas nas quais não existiam os atos. Desenvolveram monólogos, evitando assim o uso de diálogos, e imaginaram uma série de alternativas para continuarem encenando suas peças: dentre elas cabe destacar principalmente a mímica – narrativas contadas sem o uso de diálogo ou palavras –, mímica como lacuna subversiva e expressiva. Sobre essa questão Jacques Lecoq (2010) traz uma leitura bastante significativa para a perspectiva da ausência. O autor, ao classificar a linguagem gestual em categorias, aponta a primeira delas como a Pantomima. Para Lecoq, trata-se da “técnica-limite – os gestos substituem as palavras”. Assim, na ausência da palavra adota-se um gesto que comunique o que a palavra deveria dizer. Mas principalmente, destaca o autor, que essa linguagem tem origem no teatro das feiras por dois motivos: “fazer-se compreender num ambiente muito barulhento, mas sobretudo devido à interdição de falar, imposta à sociedade dos atores italianos. (...) A pantomima nasceu de uma restrição, como a existente nas prisões, onde os detentos se comunicam por meio de gestos; ou, ainda, como se faz na Bolsa de Valores nos dias atuais”. (Lecoq, 2010 p. 157-8) Aqui podemos perceber as três categorias da ausência: o vácuo do indizível, quando a opção pela 59 mímica dava-se devido à limitação – impostação de voz em ambiente barulhento como feiras, Bolsa de Valores, ou uso da linguagem gestual nos presídios; o silêncio do que não deve ser dito, quando a mímica se coloca como resistência e subversão a interdições; e por fim a lacuna do não dito quando a técnica, usada por Lecoq, se coloca à disposição do ator como expressão, como um desafio de comunicar-se no palco sem o uso de palavras. Numa abordagem bem interessante, Mario Fernando Bolognesi (2003) nos mostra que a construção do circo, como conhecemos hoje, vai sendo feita em pequenas entradas de figuras e artistas oriundos de contextos marginais à alta aristocracia (inicialmente quem apreciava e frequentava os circo destinados a acrobacias e exibições equestres). Num primeiro momento, oriundo das feiras (proibidas ou falidas) os artistas saltimbancos, malabaristas e palhaços, que tinham nela sua fonte de renda, passaram a fazer parte dos espetáculos circenses, PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1011889/CA participando principalmente de números associados à má performance e cômicos. Tentativas frustradas de reproduzir as acrobacias equestres. Percebe-se que mesmo absorvendo o contingente das feiras, para os espetáculos até então consagrados e admirados pela aristocracia, esses artistas ainda permaneciam na marginalidade, fazendo exibições cômicas, demonstrando sua inabilidade para aquele tipo de atividade. Em contrapartida, esses artistas vieram quebrar a monotonia e o tédio, gerados pelas apresentações com cavalos, o que sem dúvida sustentou e manteve o interesse sobre o espetáculo circense. Pontuamos novamente as categorias do Indizível pela limitação técnica, como exclusão pela prática cultural, mas também, dentro da lacuna do não dito, novamente como expressão e subversão à ordem. E imerso nessas ausências nasce o palhaço tradicionalmente de circo. Com a entrada de novos artistas, principalmente os palhaços, Bolognesi descreve uma necessidade de rever a nomenclatura, já que grande parte do espetáculo nesse momento não mais eram números com cavalos. As cenas giravam mais em torno do teatro. Nessa época, algumas restrições políticas ainda proibiam as exibições intituladas de Teatro, dando concessão somente a algumas companhias e óperas da época. “Ao teatro das feiras, prioritariamente gestual, restou a busca de outros termos, tais como ‘pièce muttes’, ‘à écriteaux’ etc.” (Bolognesi, 2003 p.37) Apesar disso, ainda hoje pode-se perceber certo distanciamento entre o Circo e o Teatro. Aparentemente o que se percebe é que 60 culturalmente ao Circo está ligada a ideia de virtuosismo técnico, enquanto ao Teatro está associada a noção de dramaturgia, narrativa e representação. No final do século XVIII, apesar de uma breve suspensão, é retomada a censura e o controle do funcionamento dos teatros. Todos os outros espetáculos tiveram que adotar nomes variados. Assim, unem-se em espetáculos artistas de rua, saltimbancos, palhaços e militares, todos desempregados. Aqui, pontua-se uma constante ao longo da história do teatro, a exclusão de espetáculos que não tinham autorização para serem encenados. E mais ainda, não considerados, não contemplados nem legitimados pela aristocracia e, posteriormente, como consequência, pela história oficial do teatro. É constante a percepção de que esses artistas encontram-se comumente em situação de exclusão por prática cultural. Sobre essa questão podemos retomar o problema da Legitimação apresentado por Lyotard (2006), em que, segundo o autor, na consequência da PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1011889/CA falência das metanarrativas há o risco do mercado se apropriar dessa Legitimação. O que podemos perceber tanto nas Artes Cênicas como na Literatura é uma certa marginalização decorrente tanto de aspectos sociais, políticos e culturais, mas principalmente de aspectos ligados ao mercado. O Palhaço tem no seu contexto histórico censuras oficiais instauradas como repressão política. As apresentações na rua, em praças, feiras e circos apontam para uma exclusão das casas de espetáculos oficiais, o que os posiciona numa categoria malvista, em relação aos espetáculos que eram legitimados como dignos de apresentarem naqueles espaços. Na Literatura, a submissão do trabalho do ilustrador à narrativa textual aponta para uma legitimação de autoria da obra pelo texto, o que impacta diretamente na sua posição dentro do mercado editorial e de seu reconhecimento profissional e social. Nomenclatura Outra marca que podemos identificar na trajetória de ambas as áreas que reflete sua marginalização no mercado e na teoria e crítica é na problemática encontrada na nomenclatura. Divergências de termos não apontam necessariamente para uma diversidade crítica com relação à área, mas, como veremos, a uma lacuna na herança de reflexão teórica. Nas Artes Cênicas: Clown, Clown Branco, Augusto, Bufão, Bobo, Palhaço são alguns nomes que povoam esta área. É claro que no campo da arte, procurar 61 delimitações que definam alguma atividade é sempre incômodo e ineficiente, mas neste caso percebe-se que o problema pode se fundamentar na pouca atenção dispensada à atividade. Para constatar essa inconsistência do termo, trazemos como exemplo o não aparecimento da palavra ‘Palhaço’ no Dicionário de Teatro escrito por Luiz Paulo Vasconcellos. (Vasconcellos, 2009) Apesar disso, encontraremos no mesmo dicionário alguns verbetes que trarão definições muito próximas do que popularmente conhecemos como palhaço. Uma delas seria o “Bufão”: Personagem burlesco de comédia cuja raiz remonta à comedia grega e à Fábula Arellana. Caracteriza-se pela mímica exagerada, pela utilização de recursos corporais circenses e pelas deformações físicas do que resulta um humor espalhafatoso e grotesco. Muito embora o teor das críticas feitas seja sério, a linguagem utilizada mostra-se vulgar, resultando num saudável confronto entre a paródia da forma e a crítica do discurso. Veja também Clown e Fool (Vasconcellos, 2009 p. 44) PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1011889/CA Curiosamente, apesar de não termos o verbete palhaço, encontramos o termo Clown, que seria em inglês a tradução de Palhaço. No verbete Clown vemos: Personagem de comédia encontrado em algumas dramaturgias, especialmente no Teatro Elisabetano. Ingênuo e irreverente, o clown tem humor, simplicidade e sabedoria popular, com o que alimenta uma situação cômica geralmente construída de acasos, coincidências e repetições. Shakespeare (1564-1616) escreveu alguns bons papéis de clown, como Bottom, de Sonho de uma noite de verão (1595-1596). Os antecessores do clown podem ser encontrados na comédia greco-romana e na Commedia Dell’Arte. Modernamente, o clown inspirou grandes comediantes do cinema – Charles Chaplin, Buster Keaton, os Irmãos Marx, Jacques Tati –, servindo de base para uma série de estudos teóricos e de formação de atores no século XX – Jacques Lecoq, Thomas Leabhart e Philippe Gaulier, entre outros. Veja também Bufão e Fool. (Vasconcellos, 2009) Como veremos adiante, provavelmente esta separação dá-se pela divergência entre estudos voltados para o Teatro e o Circo, que apesar de semelhanças e proximidades históricas, mantém-se em separado estudos voltados para cada área específica, evitando sobreposições. Salvo, é claro, alguns casos excepcionais. Por conta dessa divisão, preferiu-se adotar o termo Artes Cênicas. Similar a este último, no livro O Corpo Poético – Uma pedagogia da criação teatral, de Jacques Lecoq (2010), também não encontramos a palavra Clown traduzida para o português, “Palhaço”. Alguns outros autores parecem tratar a questão criando uma diferenciação entre o termo Palhaço e o termo Clown, mas sem aprofundar a questão. É o caso, por exemplo, de Dario Fo (2004), no seu Manual Mínimo do Ator, no qual comenta sobre o personagem 62 Clown, diferenciando-o do Pagliaccio (palhaço) pela forma da maquiagem ou tipo de personagem: “Já vimos que o Arlecchino, em sua origem, usava uma PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1011889/CA maquiagem de clown, mas também de Pagliaccio (Palhaço)” (Fo, 2004 p. 305). Figura 4 – À esquerda, Arlechino, e à direita, Pierrot (Pagliaccio ou Clown). Ilustrações de Maurice Sand para seu próprio livro Masques et Buffons – comedie italienne (1862). Mário Fernando Bolognesi, por sua vez, parece tratar os termos palhaço e clown com certa distinção, mas sem detalhamento. Isso fica claro quando comenta sobre os primeiros artistas cômicos do Circo: Nos momentos iniciais, entretanto, não se tratavam de palhaços, tais como os de hoje. Esses primeiros cômicos restringiam-se a reproduzir, às avessas, um determinado número circense, principalmente os de montaria. Haveria necessidade de outras ingerências para a formação do clown. Dentre essas, destacaram-se a pantomima inglesa e a commedia dell’arte. (Bolognesi 2006 p. 62) Mais à frente, ele traz a origem inglesa do termo clown, que era o cômico principal na pantomima inglesa do século XVI, e afirma que no universo do circo o termo é utilizado para um artista cômico que em cena busca explorar sua excentricidade e tolice. Mas talvez a informação mais relevante seja que, segundo Bolognesi, o clown moderno teria sua origem no encontro da tradicional pantomima inglesa com os cômicos da Commedia dell’Arte italiana, ressaltando que a fusão “se deu a partir da caracterização externa (indumentária e maquiagem, principalmente) e do estilo de interpretação dos atores”. (Bolognesi, 2003 p. 63) E assim, parece se aproximar da união entre clown e pagliaccio descrita também por 63 Dario Fo, em que o clown seria referente ao artista cômico da pantomima inglesa e o pagliaccio ao personagem da Commedia dell’Arte italiana. Percebe-se então uma origem mista do palhaço moderno, o que justificaria a confusão dos termos. Porém, Renato Ferracini (2003) traz, citando dois outros autores – Roberto Ruiz e Luis Otávio Burnier –, outra perspectiva na diferenciação dos termos: Outra característica de clown é que ele nunca interpreta, ele simplesmente é. Ele não é uma personagem, ele é o próprio ator expondo seu ridículo, mostrando sua ingenuidade. Por esse motivo, usamos o conceito de clown e não de palhaço. Palhaço vem do italiano paglia (palha), material usado no revestimento de colchões. Isto porque a primitiva roupa deste cômico era feita de mesmo pano dos colchões: um tecido grosso e listrado, e afofada nas partes mais salientes do corpo, fazendo de quem a vestia um verdadeiro ‘colchão’ ambulante, protegendo-o de suas constantes quedas (Ruiz, 1987, p.12). Assim, o palhaço é hoje um tipo que tenta fazer graça e divertir seu público por meio de suas extravagâncias; ao passo que o clown tenta ser sincero e honesto consigo mesmo (Burnier, 1994, apud Ferracini, 2003 p. 218) Luiz Otávio Burnier, em seu livro A Arte do Ator (2009), dedica boa parte PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1011889/CA de sua reflexão ao tema dos palhaços. No oitavo capítulo, “O clown e a improvisação codificada”, de forma até contraditória ilustra a confusão de definir ou denominar a atividade dos palhaços, ao ressalta que os termos “palhaço” e “clown” são “termos distintos para designar a mesma coisa”, apesar de que “Existem, sim, diferenças quanto às linhas de trabalho”. (Burnier, 2009 p. 205) Mais adiante Burnier apresenta as duas linhas principais de trabalho que acusou como diferentes: uma corrente (segundo ele principalmente encontrada nos Estados Unidos) que dá valor ao número, ao que o clown vai fazer; enquanto a outra se preocupa por como será feito, não importando exatamente o quê. Este último, segundo ele, exige a valorização de uma “lógica individual”, um estudo da sua personalidade, tendendo para um trabalho mais pessoal (encontrado com mais facilidade entre os clowns europeus). Novamente esbarramos na questão da Linguagem. Tentar perceber diferenciações sutis entre atividades tão próximas, para cair no Indizível. Porém, independentemente da definição, os autores parecem admitir que existe, dentro da forma de atuação, uma divisão em duas categorias de palhaços: Clown Branco e Augusto. O clown branco é a encarnação do patrão, o intelectual, a pessoa cerebral. Tradicionalmente, tem o rosto branco, vestimenta de lantejoulas (herdada do Arlequim da commedia dell’arte), chapéu cônico e está sempre pronto a ludibriar seu parceiro em cena. Mais modernamente ele se apresenta de smoking e gravatinha borboleta e é chamado de cabaretier. No Brasil, é conhecido como escada. 64 PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1011889/CA O Augusto (no Brasil, tony, ou tony-excêntrico) é o bobo, o eterno perdedor, o ingênuo de boa-fé, o emocional. Ele está sempre sujeito ao domínio do branco, mas, geralmente, supera-o, fazendo triunfar a pureza sobre a malícia, o bem sobre o mal. (Burnier, 2009 p.206) Figura 5 – Figura 6 – À esquerda Billy Vaughn (Augusto) and Mike Snider (Branco), EUA. À direita Teotônio (Augusto) e Carolino (Branco) – LUME Campinas/SP O que se percebe, também, é que o surgimento dessa divisão nasce na própria prática. O encontro com o outro profissional, parceiro de cena, possibilita uma construção conjunta, numa tarefa de ajuda mútua. Sendo representantes de polos opostos (racional e irracional), tanto Augusto quanto Branco se complementam e se fortalecem. “Palhaço e clown” vão interessar a este estudo, principalmente porque trazem consigo aspectos complementares entre si no que se refere à maneira de atuar ou características históricas, culturais e sociais que veremos a seguir. Ambos irão contribuir para a construção do universo do palhaço popularmente conhecido hoje. Para facilitar a nossa leitura e explanação, procurei ao longo do trabalho utilizar somente o termo “Palhaço”, exceto quando houver alguma necessidade específica de diferenciação. Em paralelo também percebemos uma dificuldade no que compete à nomenclatura do Livro Ilustrado. O que normalmente encontramos nos autores é uma proposta de classificação que prioriza a relação entre o texto e as imagens. Perry Nodelman (1988), em seu livro Words about Pictures – The Narrative Art of Children’s Picture Books, esclarece que o que ele vai chamar de picture books são “livros para o público infantil que comunicam informações ou contam 65 histórias através de uma série de imagens combinadas com relativamente pouco ou nenhum texto”. (Nodelman, 1988 p. vii – tradução livre) A princípio, portanto, parece não diferenciar os livros com pouco texto verbal daqueles cujo conteúdo não possui texto verbal nenhum. Porém, mais adiante, refinando sua nomenclatura ele já utiliza o termo wordless books (Nodelman, 1988 p. 45) sem, contudo, definir se nestes ainda possuem texto escrito. Ainda na mesma obra, parece esclarecer que o que chama de picture-book é o tipo de livro cujo conteúdo mescla-se entre texto e imagem de tal maneira a tornar-se indissociável para a leitura. Termo que iremos rever em outros autores adiante. (Nodelman, 1988 p. 193) Vale destacar aqui que, embora apresente três termos distintos: picture book, picture-book e wordless books, cada um vai procurar reconhecer uma característica específica no livro, principalmente no que concerne a relação textoPUC-Rio - Certificação Digital Nº 1011889/CA imagem. Aqui percebemos uma coerência entre os autores de nomear picture book os livros que contêm texto e ilustração, traduzidos como “livros com ilustrações”2. Quando procura-se especificar a relação entre o texto e a imagem – seja de predominância, quantidade, volume de informação ou importância narrativa – surgem diferentes termos. Sem, contudo, verificarmos um consenso entre os autores. No Brasil, um dos primeiros autores que destacaram este tipo de livro foi Luis Camargo (1995) em Ilustração do Livro Infantil, que abre um capítulo comentando sobre o Livro de Imagem e definindo-o como “livros sem texto. As imagens é que contam a história”. (Camargo, 1995 p. 66) Apesar de apresentar com bastante simplicidade a definição acima, logo em seguida acrescenta a problemática que gira em torno do tema: “A expressão livro de imagem não é de uso generalizado (...) várias outras expressões têm sido usadas: álbum de figuras, álbum ilustrado, história muda, história sem palavras, livro de estampas, livro de figuras, livro mudo, livro sem texto, texto visual, etc.” Alguns desses termos destacam uma narrativa contada por imagens ou contada sem o uso do texto verbal: história muda, história sem palavras; outras consideram que apesar da ausência do verbo, ainda permanece o texto – texto visual; outras provavelmente 2 Ao longo do trabalho seguiremos a tradução dos termos feita pela editora Cosac Naify , para os livros Crítica, teoria e literatura infantil de Peter Hunt (2010), e Livro ilustrado: palavras e imagens de Maria Nikolajeva e Carle Scott (2011), pela data recente de publicação, por terem o mesmo tradutor (Cid Knipel) e por serem parte integrante da bibliografia deste trabalho, prezando assim pela coerência e atualidade. 66 foram buscar no cinema uma nomenclatura que desse conta dessa especificidade, encontrando no Cinema Mudo uma similaridade – Livro mudo, história muda; outras procuram destacar o suporte ou qualificando pela especificidade do conteúdo (ausência do conteúdo naturalmente esperado – texto verbal) – livro de estampas, livro de figuras, livro sem texto. Mas, mesmo apresentando essa gama de nomenclaturas, ele prefere utilizar Livro de Imagem para os livros que narram histórias unicamente por imagens – entretanto, sem procurar especificar o porquê da sua opção. Como comentado anteriormente, a tradução usada para picture book e picture-book foi a da editora Cosac Naify, que no ano de 2010 para o texto de Peter Hunt – Crítica, Teoria e Literatura Infantil (2010) traduz como LivroIlustrado o termo “picture books, tipo de livro no qual texto e ilustração combinam-se de tal maneira que a relação entre eles torna-se essencial para a PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1011889/CA compreensão da narrativa. (...) Opõem-se ao livro com ilustração, quando a informação da imagem é meramente decorativa ou redundante ao texto.” (Hunt, 2010 p. 39 - nota do editor) No capítulo 10 – A Crítica e o Livro-Ilustrado –, o autor reforça a diferença entre o Livro-Ilustrado e o Livro com Ilustrações, pois os “livros-ilustrados lidam na realidade com dois argumentos, o visual e o verbal; (...) Eles têm um grande potencial semiótico/semântico; decididamente não são simples coleções de imagens”. E vai ao extremo de comentar a respeito do que chamou de livroilustrado “puro” e que os editores compreenderam e traduziram como livroimagem “cuja narrativa é construída apenas com ilustrações, sem a presença do texto” (Hunt, 2010 p. 248 nota do editor) De forma semelhante a Luis Camargo, Nelly Novaes Coelho em Literatura Infantil (Coelho, 2000) deflagra também a gama de opções para se denominar o Livro de Imagem: “Desde os anos 20 (...) surgem os álbuns de figuras (livros de estampas, livros de imagens ou como quer que os rotulem)”. (Coelho, 2000 p. 186) Maria Nikolajeva e Carole Scott (2011), assinando a obra Livro Ilustrado: Palavras e Imagens, procuram através de uma análise de diversos autores mapear uma nomenclatura que caracteriza os diferentes tipos de livros segundo níveis de relação entre texto e imagem. 67 Os editores salientam ainda que, como essa nomenclatura no Brasil é “controversa”, apresentam as seguintes alternativas para tradução dos termos: picturebook – livro ilustrado; illustrated book, picture book e book with pictures – livro com ilustração. Sendo essas três últimas denominações dadas às obras em que “não apresenta inter-relação explícita entre palavra e imagem”. Além disso, destacam que as autoras deste livro distinguem picturebook de picture book, diferindo de outros autores – o que também mostra controvérsia não só no Brasil, como em outros países. Ainda acompanhando o texto de Nikolajeva e Scott, pode-se perceber que ao realizarem uma sucinta revisão bibliográfica em que buscaram, principalmente, a relação entre texto e imagem, surgem pontos interessantes para a questão terminológica. Neste levantamento surgem categorias bastante interessantes, embora somente algumas das tentativas levaram em consideração e, PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1011889/CA principalmente, destacaram o Livro de Imagem como uma categoria à parte. Dentre os que fizeram essa diferenciação, encontram-se: Kristin Hallberg, Joseph Schwarcz e Joanne M. Golden. Apesar de trazerem categorias e noções interessantes, eles parecem sempre se importar com a presença do texto verbal; Ulla Rhedin, segundo as autoras, parece criar categorias muito gerais, dificultando a classificação de exemplos específicos, como o Livro de Imagem. Somente o já citado Perry Nodelman e o autor Torben Gregersen, que propõe, dentre outras, a categoria de “narrativa pictórica: sem ou com pouquíssimas palavras”, parecem criar uma categoria específica para livros que não possuem uma narrativa com linguagem textual. Para finalizar, as duas autoras também fazem a sua proposta de tipologia, baseada na relação entre texto e imagem (como veremos adiante). Estas, porém, criam duas categorias para descrever os livros em que o texto verbal não é presente: “narrativa de imagens sem palavras (sequencial)” e “livro-imagem ou livro de imagem”. Apesar do esquema bastante interessante e detalhado de classificação segundo a importância do texto e da imagem, não definem exatamente o porquê da criação dessas duas categorias, que aparentemente não têm diferenças. Outra autora que contribui com uma classificação dos livros ilustrados é Sophie Van der Linden – Para ler o livro ilustrado (2011): 68 O que é o livro ilustrado? Designação pouco conhecida do grande público, não há em muitos países um termo fixo para definir o livro ilustrado infantil. Conforme o contexto, em francês recebe o nome de album ou livre d'images, em Portugal álbum ilustrado, em espanhol álbun e em língua inglesa picturebook, picture book e picture-book. (Linden, 2011 p. 22-3) Sophie Van der Linden vai priorizar em suas classificações os livros ilustrados quanto a sua organização interna, ou seja, a organização dos elementos textuais e imagéticos dentro do objeto livro. A primeira classificação que a autora estabelece é: - livros com ilustração - primeiras leituras - livro ilustrado - história em quadrinhos PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1011889/CA - livros pop-up - livros-brinquedo - livro interativo - imaginativos A autora reconhece a dificuldade, ou impossibilidade, de se criar categorias para dar conta da diversidade de tipos de livro, mas o esforço não é em vão. (Linden, 2011 pag. 23-4) Para finalizarmos, a maioria dos autores até então parece concordar em chamar picture book – Livro com ilustração – a gama diversa de livros que contêm ilustração (Nodelman, Linden, Nokolajeva e Scott, Gregersen, Hallberg, Golden). Para diversos outros autores, quando o livro possui uma inter-relação entre texto e imagem, o denominam picture-book – Livro Ilustrado – (Nodelman, Hunt, Linden, Nikolajeva e Scott). Por fim, os brasileiros chamam Livro de Imagem (ou livro-imagem como tradução feita pela Cosac Naify para picturebook) e parecem concordar tanto Nelly Novaes Coelho quanto Luis Camargo e Rosângela Ferraro. É importante ressaltar que para a Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil3 esta é a nomenclatura utilizada, inclusive tendo um prêmio específico previsto para esse tipo de livro. Instituição brasileira voltada para o Livro Infantil e Juvenil, representante nacional do International Board on Books for Young People – IBBY. 3 69 Como mencionado anteriormente, a confusão na nomenclatura não diz respeito somente ao Brasil, mas aos estudos gerais da Literatura Infantil. Muitas das categorizações que vimos aqui valem-se da quantidade de informação visual/verbal, ou mesmo da área preenchida na página pelo texto, ou pela imagem, e por fim, a importância, o peso de cada linguagem para a narrativa geral do livro. Isso ilustra de forma bastante contundente a dificuldade de categorizar esse gênero literário. E é nessa diversidade de olhares e análises que reside a tentativa de compreender o campo estudado, onde cada categoria criada tem a sua importância dentro da análise geral. Portanto, nos diz respeito exatamente perceber as diversas características interessantes encontradas nos critérios propostos pelos autores em suas análises. Além, é claro, de perceber que a dificuldade nessa organização está contida na falta de uma dedicação ao estudo da ilustração e da imagem nos livros, como temos com relação ao texto. Essa defasagem, esse descompasso que gera a PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1011889/CA dificuldade de compreender os livros ilustrados é que apontamos como uma ausência. Fica claro, assim, que o que se pretende com esse olhar sobre as nomenclaturas tanto do Palhaço como do Livro de Imagem não é a busca de um nome que dê conta de definir os objetos aos quais nos referimos. O problema da linguagem e de sua característica afirmativa é a necessidade de definição e de nomenclaturas que em si mesmas já provocam exclusões e marginalizações. O importante é perceber que em parte o problema de classificação nesse caso não está só na impossibilidade da linguagem de categorizar de maneira definitiva os objetos. Fato que esbarraria no Vácuo do Indizível, por não encontrar um termo que dê conta de todas as nuances e sobreposições de linguagens que esses objetos podem conter. Mas não podemos ignorar que uma parcela da dificuldade em pensar nomenclaturas para os objetos em questão parte da lacuna de pesquisas e reflexões acerca dos temas que fundamentem uma classificação. Existe, no entanto, uma ideia de liberdade autoral, concedida aos profissionais que encontram nessa marginalização um terreno fértil para sua manifestação – Lacuna do Não Dito. No Livro de Imagem, no qual a provocação maior é a retirada do elemento textual e o desafio de ainda sim narrar, é justamente na ideia de explorar novas maneiras, novos modos de narrar, que se potencializa a liberdade do ilustrador. Diante da possibilidade de desenvolver um livro somente com a linguagem que 70 ele está mais habituado a trabalhar, surge uma amplitude de possibilidades que concede-lhe certa autonomia, e com ela a liberdade. Quanto ao palhaço, será interessante a abordagem sobre os propósitos do chiste, em que Freud (2006) vai refletir sobre características de hostilidade ou de desnudamento. Ambos podem ser encontrados em situações de agressão, repressão ou ainda de rebaixamento. Quanto à característica hostil, o autor relata que esta é também reprimida (assim como a repressão sexual) e que encontra por meio do chiste uma maneira de substituir a agressão física. “Tornando nosso inimigo pequeno, inferior, desprezível ou cômico, conseguimos, por linhas transversas, o prazer de vencê-lo.” (Freud, 2006 p. 103) Esse propósito nos remete à característica de libertação bem como à ideia de ausência. Liberdade de “agredir”, como no exemplo acima, e de revelar algo que não se poderia dizer abertamente, utilizando das técnicas de “alusão” ou PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1011889/CA “omissão”, se protegendo na possibilidade de multileituras – Silêncio do que não deve ser dito e Lacuna do não dito. “Um chiste nos permite explorar no inimigo algo de ridículo que não poderíamos tratar aberta ou conscientemente.” (Freud, 2006 p.103) E ainda “trazer os que riem para o nosso lado”. Essa liberdade vai estar presente a todo momento no palhaço. Seja a liberdade de poder transgredir a ordem e as normas, ou encenar uma rebelião, uma fuga da autoridade (da sociedade, mas representada figurativamente no Dono do Circo ou no Clown Branco, por exemplo). A essa liberdade também são abordados outras situações na sociedade, que muito frequentemente são ligados à imagem do palhaço: o bêbado (sua liberdade de “espírito”, seu descompromisso) e a loucura (libertação de normas sociais). Portanto, encontraremos na ausência do “não dito” (omissão do texto no livro e alusão e duplo sentido na situação cômica) uma liberdade concedida ao Ilustrador e ao Palhaço. E tanto a marginalização quanto a liberdade são também visíveis na análise dos gêneros popular, cômico e infantil, proposta a seguir. 3.2 Gênero e Exclusão Há na categorização em gêneros um aspecto que envolve o contexto sociocultural de recepção. Bem como a interação autor/leitor e o que pressupõe 71 uma competência de leitura. Carlos Reis e Ana Cristina Lopes (1988) apresentam essa questão no âmbito da Narrativa. Assim, aspectos relativos ao sujeito leitor (predições, competência de leitura, condição econômica, classe social etc.) estão diretamente ligados à categorização de gêneros. Segundo os autores o romance, por exemplo, “é o gênero que sobretudo se justifica quando um público burguês e cada vez mais ocioso tem acesso à cultura como preenchimento do lazer”. O conto, por sua vez, corresponde “pela sua característica de brevidade e de relato oralizado, a certas circunstâncias de comunicação e de público (narrativa que se consuma numa única narração, receptor infantil ou culturalmente menos exigente etc.)”. (Reis & Lopes, 1988 p. 48) Os autores apontam ainda para a perspectiva histórica e a diversidade de “imposições” reveladas nos gêneros narrativos, apontando alguns “mecanismos coercivos mais ou menos discretos (academia, poética etc.)” e em outras situações PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1011889/CA crises de um gênero, por exemplo, que o subdivide ou o modifica. Assim, os gêneros não são fixos, são dependentes do contexto sociocultural e de consumo. Se por um lado os Palhaços não foram incorporados ao discurso oficial do teatro (censura, desqualificação ou exclusão), por outro os livros com ilustração são normalmente classificados como de gênero infantil. O que temos em comum entre essas duas situações é uma espécie de desqualificação de conteúdo. Os palhaços foram excluídos dos teatros por apresentarem conteúdos de cunho menor, imoral, superficial etc. ou estarem presentes em outros contextos: na rua, no circo, nas feiras. Os livros ilustrados, por sua vez, tratados como infantis por uma suposta ingenuidade de conteúdo, volume de texto pequeno e ilustrações. O que ambos têm em comum é uma desqualificação de conteúdo por supor um público com competência e/ou exigência de leitura limitada. Além disso, a imagem está também historicamente associada a um “facilitador” de leitura. Na Idade Média os vitrais das igrejas eram imagens que traduziam visualmente parte da história de Cristo, para que mesmo os analfabetos pudessem acompanhar a narrativa. A ideia de livro voltado para crianças, analfabetos e/ou com pouca facilidade de leitura também é um bom exemplo dessa questão. Entende-se assim que a Literatura Infantil está associada à educação das crianças, logo, um público menos familiarizado com a linguagem textual e, portanto, com exigência menor. 72 Sobre esse aspecto Nelly Novaes Coelho (2000) traz uma importante contribuição ao esclarecer-nos sobre a natureza da Literatura dirigida às crianças. Claro que o que entenderemos como Literatura hoje é uma leitura presente do que essa área representa socialmente. Portanto, sempre teremos uma ideia de Literatura localizada social e historicamente, e inevitavelmente atravessada por uma opção ideológica, política etc. Apesar disso, não impede compreender de que maneira se construiu o que hoje chamamos de Literatura Infantil, e que tipo de especificidade ela traz, que nos auxiliará na compreensão do que envolve o gênero infantil. Nelly destaca que o que vai diferenciar a Literatura Infantil da Literatura Adulta são as características do receptor. Numa visão mais superficial e imediata, a ideia de Literatura Infantil está ligada a livros coloridos, finos e voltados à distração e prazer das crianças. Por conta dessa associação mais vulgar, a PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1011889/CA Literatura Infantil acabou sendo “minimizada como criação literária e tratada pela cultura oficial como um gênero menor”. (Coelho, 2000 p. 29) O entendimento de infância como uma fase do desenvolvimento humano relativa a uma faixa etária específica e com características distintas dos adultos é recente. Tem suas origens com o surgimento da burguesia, com ela a escola, e principalmente de um público consumidor com demandas peculiares. Anteriormente, crianças eram vistas como “adultos em miniatura”, não tendo nenhum tratamento diferenciado. Por conta disso, os primeiros textos literários destinados ao público infantil eram na verdade adaptações de textos adultos. Como nos aponta Nelly: E como a criança era vista como um “adulto em miniatura”, os primeiros textos infantis resultaram da adaptação (ou da minimização) de textos escritos para adultos. Expurgadas as dificuldades de linguagem, as digressões ou reflexões que estariam acima da compreensão infantil; retirada as situações ou os conflitos não-exemplares e realçando principalmente as ações ou peripécias de caráter aventuresco ou exemplar... as obras literárias eram reduzidas em seu valor intrínseco, mas atingiam o novo objetivo: atrair o pequeno leitor/ouvinte e levá-lo a participar das diferentes experiências que a vida pode proporcionar, no campo do real ou do maravilhoso. (Coelho, 2000 p. 29-0) O que os grifos destacam é exemplar para ilustrar o que chamamos de “ausência”. Seja a ideia de Vácuo do Indizível, quando aponta a dificuldade de linguagens, digressões e reflexões que estariam acima da compreensão infantil; ou a do Silêncio, em conjunturas como “retiradas as situações ou os conflitos nãoexemplares”;; e mais ainda no que entendemos, no geral, pela “redução” das obras 73 literárias para adultos, como a forma de adaptação para o público infantil. O que tudo apresenta em comum é a supressão, a ausência de determinadas passagens, conteúdos etc. Portanto, segundo a autora, até pouco tempo atrás a literatura infantil foi concebida pela crítica como um gênero secundário, e visto pela ótica do adulto como pueril, simplificada, nivelada ao brinquedo, ou útil, com a ideia de aprendizagem, ou moralizante. No século XX, surge a redescoberta da Literatura Infantil, apoiada principalmente sobre as ideias da psicologia e a nova noção de infância. Com ela, formas inovadoras de se produzir literatura direcionada às especificidades do público infantil. Essas mudanças serão visíveis nos textos literários voltados para as crianças, e principalmente no olhar crítico e teórico sobre eles. Mas o mesmo não podemos PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1011889/CA afirmar com tanta certeza sobre as imagens. Na própria obra de Nelly Novaes Coelho, a ideia de ilustrações e imagens no livro parece ainda seguir a ótica de um auxílio ao aprendizado infantil. O que nos indica sua classificação entre tipos de leitores e nos permite perceber a redução das imagens à medida que a idade do leitor avança e seu domínio pela leitura se sedimenta. E culmina quando, aos 10/11 anos, o leitor é considerado fluente, e a essa fluência está associada a noção de que “as imagens já não são indispensáveis;; o texto começa a valer por si. Entretanto, uma ou outra ilustração adequada ainda é elemento de atração”. (Coelho, 2000 p. 38) Em seguida, quando o leitor já possui domínio sobre a linguagem textual (“leitor crítico”), as imagens já nem mais são previstas pela autora. O que parece estabelecer um vínculo da imagem como “auxiliadora” da aprendizagem da leitura escrita – tarefa destinada culturalmente à educação infantil. Aqui destacamos que à imagem estaria vinculada a ideia de um complemento ao não domínio da linguagem textual (Vácuo do Indizível). Outra questão que explica a relação entre a imagem e o gênero infantil apontada por Nelly é o vínculo deste gênero com o popular. Questão também percebida no contexto do Palhaço. Segundo a autora, no percurso histórico podese perceber que muitas das narrativas adultas adaptadas ao público infantil têm sua origem no gênero popular. 74 Dentre os fatores que podem ser apontados como comuns às obras adultas que falaram (ou falam) às crianças, estão os da popularidade e da exemplaridade. Todas as que se haviam transformado em clássicos da literatura infantil nasceram no meio popular. (...) Em todas elas havia a intenção de passar determinados valores e padrões a serem respeitados pela comunidade ou incorporados pelo indivíduo em seu comportamento. (Coelho, 2000 p. 41) A autora destaca que o vínculo estabelecido entre o popular e o infantil é oriundo da ideia de uma similaridade no público receptor. O que de maneira geral levaria a dizer que, tanto no povo como na criança, o “conhecimento da realidade se dá através do sensível, do emotivo, da intuição... e não através do racional ou da inteligência intelectiva, como acontece na mente adulta e culta”. (Coelho, 2000 p. 41) A ideia, portanto, também está vinculada a uma noção de ausência de domínio da linguagem e de seus mecanismos mais sofisticados. Ampliando a discussão, Nelly afirma que o que caracteriza esse vínculo entre o popular e o infantil é a relação entre a noção de história e natureza. A PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1011889/CA primeira, segundo O. Spengler (1952 apud Coelho, 2000 p. 42) está vinculada à vida culta e a segunda à vida instintiva. O que defende o autor é que o desconhecimento da linguagem pelo homem primitivo impossibilita “estruturar seus conhecimentos de forma histórica e racional”. E baseada nisso, Nelly conclui dizendo que o homem rudimentar como a criança manifestam uma consciência a-histórica da realidade em que estão situados, pois não compreendem a vida senão no presente. Como diz Spengler, “existe uma grande diferença entre viver uma coisa e conhecer uma coisa, entre a certeza imediata, proporcionada pelas várias classes de intuição e o conhecimento que resulta da experiência intelectual da técnica experimental. Para comunicar a primeira, servem a comparação, a imagem, o símbolo; para as últimas servem as fórmulas, leis, conceitos, esquemas”. (Coelho, 2000 p. 42-3) No caso dos Livros de Imagens e do Palhaço Mímico essas questões ainda se intensificam. Em conjunto com uma linguagem que constrói uma narrativa a partir de imagens e gestos, sem uso da palavra falada ou escrita, a problemática se reforça. Verificamos nas últimas décadas do século XX certa tendência à valorização do contexto da recepção, e por conseguinte ao ato de fruição. O que essa valorização traz em si, e que veremos com maior clareza no próximo tópico, é uma valorização do intérprete, que consigo trará importantes contribuições para o desenvolvimento da experiência narrativa tanto do Palhaço Mímico quanto no Livro de Imagem. 75 Veremos que tanto a ideia de uma comunicação não verbal, de uma apreensão “imediata” da realidade e, portanto, de presença, quanto a marginalização estão vinculadas ao gênero cômico. O palhaço traz na sua performance a ideia de jogo com o púbico. Jogo que permite uma interação mais próxima e com ela a construção da narrativa e do riso, como veremos a seguir. Para construir o jogo é necessário que o palhaço encontre no público em geral, ou em algum espectador específico, a pessoa que vai apontar para o próprio ridículo do palhaço, ou seja, o público torna-se cúmplice e, pela interação direta esbarra na espontaneidade. É nesse ponto de apoio que o palhaço encontra a base para a próxima ação e nessa dinâmica se estabelece o jogo. Uma espécie de jogo no limiar entre a arte (na representação) e a vida (pela experiência se sustentar num jogo presente e contar com elementos imprevistos e espontâneos)4. PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1011889/CA Essa cumplicidade por certo é o ponto de onde o público cria a empatia com o palhaço e também onde o público acredita tratar-se não de uma representação, mas de um momento real em que o palhaço não atua, mas vive. E sobre isso, nos fala Burnier: “o clown é como uma criança que, quando brinca, acredita integralmente em sua brincadeira: a criança não faz de conta que é o SuperHomem durante a brincadeira. Depois da brincadeira, ela sabe que aquilo tudo foi um jogo.” (Burnier, 2009 p. 217) Outro autor que contribui para a discussão de gênero e exclusão é Henri Bergson (2007). E justamente onde ele e Freud se encontram, acredito estar o mais proveitoso de ambas as análises. Os dois autores relacionam o espontâneo à infância, à espontaneidade da infância, também ao desamparo infantil em uma situação de “embaraço”, e à ingenuidade, que Freud vai analisar a partir de “jogos infantis com palavras e pensamentos, que tenham sido frustrados pela crítica racional” (Freud, 2006 p. 207). E, portanto: Se se pudesse generalizar, seria muito atraente colocar a característica específica do cômico como o ‘último riso da infância’ restabelecido. Podia-se então dizer: “Rio-me da diferença da despesa entre uma outra pessoa e eu próprio cada vez que redescubro a criança nela”. (Freud, 2006 p. 209) 4 Relação estabelecida por Bakhtin em Estética da Criação Verbal (BAKHTIN, 2003). 76 Bergson (2007) vai se aprofundar em questões relativas ao que chamou de “procedimentos de formatação” do riso também situando o tema no limite entre a Vida e a Arte. Inicia seu primeiro artigo5 destacando três pontos por onde a comicidade deve ser procurada. O primeiro revela que a comicidade é própria do humano. E que se rirmos de algo que não seja da esfera do humano – animal, objeto etc. – é porque nele encontramos ou percebemos uma atitude própria do ser humano, e nessa surpresa é que mora o risível. Coloca-se também uma condição, para que se desenvolva o cômico, a ausência de emoção, afeição etc. “Calar a piedade” e se dedicar ao insensível, ao intelecto, são condições básicas para se dar o cômico. Ao colocar como condição que o espectador se afaste da vida, assistindo-a de fora, percebemos uma proximidade por Bakhtin (2003) diferenciar interpretação e representação. O riso se dá à medida que estamos cientes do PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1011889/CA contexto, conhecemos o ambiente e comungamos da situação. Sem contudo ser sujeito dela, sem pertencer a ela sendo “vítima” dos acontecimentos, com o risco de reverter em trágico. Mas, mesmo afastados da situação e das emoções que ela fomenta, para os participantes, o “nosso riso é sempre o riso de um grupo”. (Bergson, 2007 p.5) O riso necessita de muito mais do que um eco, ele necessita de uma compreensão, de um compartilhamento, uma cumplicidade. Na Literatura Infantil, Nikolajeva & Scott discutem uma questão, à qual deram o nome de dupla audiência, que aponta para uma especificidade relacionada tanto com o gênero cômico como o infantil. À dupla audiência acredita-se também pertencer a ideia de uma cumplicidade na leitura. Mostram as autoras que muitos livros, mesmo com as características que o fariam comumente ser classificado de infantil, apresentam níveis de leituras que atendem também a um público adulto, possibilitando níveis de leituras diferenciados. Os adultos estão completamente embebidos nas convenções do livro e são experientes em decodificar texto de forma tradicional, seguindo o esperado desenrolar temporal de acontecimentos e leitura da esquerda para a direita. Mas os intrincados iconotextos de Thompson, com ilustrações abrangendo uma multiplicidade de minicenas e eventos pictóricos tangenciais, são perfeitamente adequados ao olhar menos exercitado, porém, perspicaz, da criança. (Nikolajeva & Scott, 2011) 5 O livro citado O Riso – ensaio sobre a significação da comicidade é a reunião de três artigos o publicados na Revue de Paris, 1º. e 15 de fevereiro, 1 . de março de 1899. 77 Interessante observar que pelo apontamento das autoras, de um lado temos o leitor adulto, experiente, que compreende o código e o processo de leitura, e que já está familiarizado com o mecanismo, mas é surpreendido por um livro que não apresenta o texto. Por outro lado, aponta que o olhar “menos exercitado” da criança, ou “certa ingenuidade” dela, permitem uma leitura mais fluida por ainda não estar acostumada aos padrões de leitura culturalmente compartilhados. Por outro lado, Linden ressalta que originalmente sendo o livro ilustrado um objeto destinado à criança, traz consigo a característica de atingir esse público através de mediadores que além de comprar os livros, muitas vezes fazem a leitura em voz alta, ou seja, participam da leitura. Diversos autores, já conscientes disso, produzem seus livros dando margem à multiplicidade de leituras que dependem não só da idade, mas de experiência de vida, do reconhecimento de códigos (habilidade e conhecimento prévio da linguagem e suas convenções) etc. Seja por PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1011889/CA questões pragmáticas de mercado (compreendendo os mediadores como consumidores dos livros), seja por status (jurados e curadores que premiam livros, indicam para compras governamentais ou para mostras internacionais, professores e pedagogos, pesquisadores e teóricos), o fato é que o livro ilustrado já não é mais produzido somente para o público infantil. Cada vez mais prevê uma diversidade de público e de leituras. Com isso, críticos norte-americanos foram levados a cunhar o termo duas address (destinatário duplo). (Linden, 2011 p. 29) Talvez a característica mais marcante apresentada por Linden é o fato de a mediação ser feita em voz alta, ou seja, a leitura do livro (texto verbal) é realizada oralmente, gerando uma experiência multissensorial para a criança. O pequeno leitor apreende a narrativa verbal por intermédio da audição – com todas as possibilidades de nuances, pausas dramáticas, entonações etc. presentes numa interpretação feita pelo mediador –, enquanto acompanha a narrativa visual nas ilustrações. A experiência sonora e visual a que é submetida a criança gera, segundo a autora, “um modo de recepção próximo ao do espetáculo”. (Linden, 2011 p. 119) O que aponta para a aproximação com o Cinema, mas principalmente com as Artes Cênicas, pois ao mesmo tempo fortalece a ideia de uma narrativa que está se acompanhando presencialmente. Sobre outra ótica, Bergson vai explorar qual o ponto em particular que desperta o riso. E este vai nos propor uma análise bastante apropriada para a discussão: importância da presença cênica do Palhaço. Partindo de alguns 78 exemplos práticos, ele vai se aproximando do que vê como “rigidez”, involuntariedade, nos movimentos, principalmente. Uma figura que remeta a essa involuntariedade é o distraído. O ato de fazer, agir involuntariamente, mesmo quando se está a pensar em outra coisa, com a atenção voltada para outro assunto, o estado de ação involuntária acaba por desencadear o riso. “Mais risível será a distração que tivermos visto nascer e crescer diante de nossos olhos, cuja origem conheceremos e cuja história poderemos reconstituir.” (Bergson, 2007 p.9) E poderíamos dizer, em outras palavras: “mais risível será a distração, se esta for presencial”. A partir de então, percebe-se uma divisão no ser humano, no que concerne à mecanicidade, ao que chamou de “vício”. Quando se trata de um vício associado à alma, ao espírito, e este é exposto em uma peça, estamos diante de um vício trágico. Porém, quando este pertence ao corpo, ao carnal, material, se transforma PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1011889/CA em cômico. O vício se manifesta como um automatismo corporal, um “automatismo muito próximo de uma simples distração”. (Bergson, 2007 p.12) Para Bergson, assim como para Burnier, a comicidade se aloca no corpo. Ela encontra sua forma de registrar-se na corporeidade. O que a vida e a sociedade exigem de cada um de nós é uma atenção constantemente vigilante, a discernir os contornos da situação presente, é também certa elasticidade do corpo e do espírito, que nos dê condições de adaptar-nos a ela. (Bergson, 2007 p.13) É como se o corpo se equipasse de movimentos mecânicos, hábitos repetidos e involuntários, que provocam o riso pela percepção de algo “não humano” preenchido por uma alma humana. Preocupados em dar conta de tanta exigência, acaba-se por mecanizar, automatizar certos aspectos e/ou movimentos, e daí surgem o desvio à regra, a fuga ao comum, ao normal e inevitavelmente constata-se sua posição de excentricidade. E essa ameaça, esse desvio de padrão, que a sociedade teme por necessitar de ordem para progredir, e diante do temível, ela a reprime. Reprime de que maneira? Através do riso. Portanto, aqui o riso também é entendido como censura, e o Silêncio do que não deve ser dito, como censura, polidez, conduta ou bom convívio social. 79 Bergson traz outra relação quanto à imagem, que nos será interessante. A relação que revela o “corpo que sobrepuja a alma” é comparável à “forma querendo se impor ao fundo”. E assim no cômico “os meios substituem os fins” (Bergson, 2007 p.39). Não seria coincidência que, ao analisarmos diversas performances de palhaços, percebemos que o motivo pelo qual aparentemente ele surge em cena – seja para tocar um instrumento, demonstrar alguma habilidade etc. – torna-se o menos importante para o espetáculo, reservando ao público o momento de maior comicidade justamente os meios pelos quais ele tentará atingir o fim, que seria realizar a ação destinada com êxito. Levando a extremos, verificamos que se o corpo mecanizado for sendo exagerado, chegaremos ao ponto de identificar o que Bergson chamou de “uma pessoa que nos dá a impressão de coisa”. É quando percebemos a vida, a humanidade em algo que nos parece um objeto inanimado. Uma mágica parecida, PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1011889/CA mas inversa, acontece na animação, na qual objetos a princípios “não vivos” são representados “animados”, com alma. Essa relação de “maravilhamento” que nos aparece na animação, quando invertida nos detona o riso. Retornaremos a Freud, no estudo sobre o chiste, que destaca um aspecto interessante, o da condensação – capacidade de reunir na mesma fala ato, gesto, palavra, múltiplas possibilidades de leitura. O que ele vai chamar também de economia, que procurará enxugar o volume de informação, ou ocultar, que potencializa uma leitura mais ampliada. Quando, na formação do chiste, o seu elaborador consegue reunir ou fazer alusão a outras questões na mesma palavra ou citação. O que poderia ser visto num espetáculo de palhaço em suas ações, gestos, movimentos que trazem não só o necessário à execução de uma tarefa, mas a possibilidade de traçar outros caminhos possíveis de leitura e compreensão da mesma cena. O fato de não usar palavras e de não ter elementos cênicos nem cenário proporciona uma economia de informação que segundo Freud e Benjamin expande as possibilidades de leitura. Este é o caso do Palhaço Mímico, por exemplo, que muitas vezes está presente no palco só com sua indumentária. Sem cenários, elementos de cena, objetos, nada. E nessa “economia máxima” constrói a narrativa. Uma questão interessante sobre a expansão das possibilidades de leitura é o fato de que em algumas ocasiões utiliza-se da lacuna do não dito como subterfúgio a censuras e regras implícitas (Silencio do que não deve ser dito), com 80 a alternância de linguagens. O que poderia soar desrespeitoso, ou até proibido numa linguagem, é traduzido e dito de outra maneira. Assim, não só pontuamos uma possibilidade de expansão de leitura como também uma expansão da escrita. Tanto no ato da produção como no consumo, verificamos essa possibilidade de abertura de leituras. Por último, ainda analisando as técnicas de construção de chistes, temos a característica da “espontaneidade”, por Freud apontada como “automatismo psíquico”, relacionado ao cômico, ou “respostas prontas”, “estabelecer uma inesperada unidade entre ataque e contra-ataque”. Ou ainda na característica involuntária destacada por Freud para o acontecimento do chiste. (Freud, 2006 p.72) Dentro desta, ainda encontraremos a característica de surpresa, do inesperado, que implica numa impossibilidade de repetição com o mesmo êxito. Esta característica também será percebida por Bergson, como veremos mais PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1011889/CA adiante, e ambos teriam origem num momento presente necessário ao inesperado, ao espontâneo. Como se só pudéssemos assistir, participar ou sermos atingidos pelo riso, se estamos diante do fenômeno que ocorre no exato momento, sem a possibilidade de uma repetição, ou pelo menos que obtenha o mesmo êxito. E isso se verifica tanto para a surpresa de quem recebe o chiste quanto de quem o envia. No contexto do palhaço, seria a resposta à participação necessária do público, no espetáculo, que se aproxima da relação cotidiana, da vida, pelo desconhecimento de sua aparição. O palhaço deve estar pronto à resposta imediata, o corpo deve estar preparado para esta resposta. Ou seja, não se pode ensaiar um número de palhaço inteiramente, com todas as marcas, sem dar margem ao improviso e às respostas do público. O palhaço vai trabalhar justamente na resposta à resposta dada pelo público. Ele pode, sim, preparar o palhaço, trazer algumas cenas prontas, preparar seu corpo, sua voz e outras características próprias do personagem, ou seja, se “preparar” para o jogo que irá se estabelecer no palco. Mas nunca encerrar a questão fora do palco e trazê-la ao público pronta, encerrada, acabada. Claro que o teatro também depende da encenação e do público, mas as marcas e rubricas já estão previamente ensaiadas. Se isso não fosse verdade, não existiriam termos como “cacos” próprios de inserções de improvisação, feitas pelo ator no momento da cena. Mas por outro lado, torna a se aproximar do teatro, na medida em que o texto literário, a peça escrita, só faz sentido quando lhe é dado o 81 acabamento estético e a junção de tudo: texto, figurino, cenário, personagens etc., no palco. Porém, este depende menos de um público participativo. Já o palhaço necessita essencialmente. Ainda sobre o tema repetição, podemos trazer como importante contribuição o texto A repetição na cultura de Luiz Antônio L. Coelho, publicado no livro Mosaico: imagens do conhecimento organizado por Solange Jobim e Souza (Souza, 2000). Para o autor, temos uma relação contraditória com a repetição. Se por um lado nos dá prazer, por outro nos repudia. Ora à repetição estão associados valores negativos, pejorativos (estereótipos, clichês, lugar comum etc.), ora valores positivos (ritual, controle social etc.). Desdobrando principalmente os valores positivos, Coelho vai apontar que o que diverge os valores associados às repetições são outros elementos criativos que acompanham essas recorrências. Diferenciando assim as “repetições criativas” das “repetições estéreis”. De PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1011889/CA maneira geral, ele aponta para a repetição presente na Natureza e também na Religião, mas é quando aborda a repetição na Cultura que mais traz elementos importantes para a discussão deste trabalho. Em primeiro lugar, pontuamos a repetição na linguagem como processo de reconhecimento e aí nos reportamos imediatamente ao já citado Barthes. Posteriormente o autor aponta também para a repetição no Teatro. A repetição que gera prazer na expectativa por reconhecer momentos específicos numa encenação do Kabuki e também o reconhecimento na cenografia padrão do teatro Noh – ambos manifestações específicas do teatro japonês. Lembra-nos também a já comentada repetição na remontagem de peças teatrais. O prazer de reconhecimento ao observar as alterações feitas ao modelo. Traz ainda com objetivo de ênfase a repetição da mensagem. Como veremos mais adiante em algumas das categorias, a repetição está vinculada assim à ideia de reforço, de ênfase em determinada cena ou elemento. Bem como na repetição no riso, e aí retornamos a Freud, como o prazer na economia de energia e a ideia de condensação. (Coelho in: Souza, 2000) Aqui vale ressaltar que quando comentamos as categorias, elas não foram exatamente citadas por Freud como técnica, mas foram reunidas livremente, no decorrer da leitura, ao perceber-se certa unidade funcional entre elas. Isso justifica uma divisão mais ampla, abarcando algumas categorias pelo autor mencionadas. 82 Temos assim uma noção mais aprofundada dos gêneros Infantil, Cômico e Popular, e suas respectivas ausências – indizível, silenciado ou não dito. Bem como os reflexos da marginalização apontada anteriormente e vista sob a ótica da inserção no mercado e da dificuldade de nomenclatura (também analisadas como ausência). Consciente da estrutura na qual estão inseridos os objetos desta pesquisa, partiremos para uma análise da ausência na relação entre imagem e texto. 3.3 Imagem e texto A ausência do elemento textual, num suporte onde ele é culturalmente esperado, conduz a uma ideia de uma lacuna de informação que seria necessária à compreensão. Nesta ausência se coloca o desafio da compreensão com “menos” PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1011889/CA informação. Uma sensação de falta, que dificultaria a compreensão cognitiva e fruição estética – ausência ou limitação do código. Para isso trabalharemos a noção de que tanto o Livro de Imagem quanto o Palhaço Mímico lidam com um volume de informação condensada, que possibilita múltiplas leituras. Algumas incursões mais voltadas para a forma trarão certas questões próprias à construção do livro e à maneira de enquadrar as imagens. O que conduz a uma reflexão sobre sua proximidade com o espetáculo e assim entender de que maneira essas duas questões se envolvem com o narrar. Mais adiante, teremos uma reflexão sobre a maneira como se estabelece um jogo de interação público/leitor (no Palhaço e no Livro de Imagem) de maneira a pensar como uma experiência visual, na presença física do espectador na cena narrada. A partir de então, como estabelecemos também as competências de leitura e o que elas exigem do leitor/espectador, partindo da ideia de uma cumplicidade entre o leitor e o livro, bem como espectador e palhaço. Dessa maneira, dentro do jogo, verificarmos que questões estão envolvidas nessa situação que permitem um olhar diferenciado à narrativa. A partir disso se provoca a rediscussão da tensão entre texto e imagem, num primeiro momento. E, posteriormente, a reflexão já apontada dentro do campo de estudo da Narrativa, da discussão entre os gêneros Realidade e Ficção. A proposta 83 é refletir sobre a natureza da prova em que pese o uso de diferentes linguagens e de suas diferenças de leituras no contexto cultural. Como característica da obra de Linden, a análise dos aspectos formais do livro nos traz questões interessantes a esse respeito. A autora faz um estudo específico sobre a moldura. A característica fundamental encontrada nesse estudo aponta para a moldura como uma forma de recorte ou delimitação do que está sendo mostrado. Por outro lado, as imagens que são trazidas ao livro e reproduzidas em página inteira, ou, como o termo técnico “sangram” a página, geram, segundo Linden, uma espécie de espetacularização. “A imagem tende então a anular o suporte.” (Linden, 2011 p. 73) E mais, quando essas imagens são dispostas dessa maneira e sequenciais, se assemelham a uma tela. Dessa forma as imagens sangradas, diferentemente das molduras, criam uma sensação de que aquela é só PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1011889/CA parte da realidade possível de ser vista daquele ângulo. Estamos assim diante de um artifício formal que cria o efeito cinético (tela) e, portanto, provoca uma sensação de presença na narrativa. Logo, a moldura seria uma espécie de recorte da realidade narrada, “anulando” outros elementos dessa história, enquanto a sangria seria a possibilidade “máxima” de perspectiva da cena. Porém, o que ambas tem em comum, mesmo com a diferença, é a não representação de toda a realidade. Mesmo o recorte da moldura ou o corte da sangria ainda excluem certos dados da realidade, podendo inclusive aproveitar-se dessa ausência como recurso – lacuna como expressão. A esse respeito, novamente retornaremos à mímica e a Jacques Lecoq (2010). Dessa vez pontua-se duas categorias de linguagens em que percebemos certa proximidade com a questão: a representação física e espacial na “figuração mímica” e a dinâmica interna das imagens nos “quadros mímicos”. A primeira, “figuração mímica”, consiste em representar pelo corpo não mais o texto escrito, palavras, mas sim espaços e objetos. Esses espaços só são visualizados à medida que o ator mímico os representa fisicamente em seu corpo com gestos etc. O que não está sendo representado pelo ator, pelos gestos, não é visível na cena como cenário, espaço físico ou objeto. Assim, a ausência dos elementos e dos espaços é invertida pela representação gestual do mímico. Uma parede que antes não era visível, a partir de alguns gestos do mímico passa a ter uma presença física na cena, mesmo que invisível. 84 Figura 7 – Fotografia do mímico Marcel Marceau simulando apoio com o braço. MARTIN, Ben. Marcel Marceau – Master of Mime. Ed. Penguin, 1978. Portanto, à medida que cada elemento vai sendo representado, assim como PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1011889/CA no Livro de Imagem, ele passa a ser percebido pelo espectador, ele “entra em cena”. Já os “quadros mímicos”, no fluxo dessa dinâmica, acrescentam o fator tempo e deslocamento espacial. Numa sequência de “quadros” (referência à pintura ou ao cinema), demonstra o deslocamento do personagem por ambientes e cenários diferentes, compreendendo “planos”, “travellings”, ritmos, closes. Muito próxima dos Livros de Imagem, essa categoria apresenta para nós a ideia de uma sequência de imagens, de cenas encadeadas que, no conjunto, no jogo silencioso, proporcionam uma experiência narrativa. Porém, o que diverge as duas linguagens é o movimento: possível na encenação mímica, mas só sugerido na ilustração. Figura 8 – Exemplo de sequência de imagens e códigos convencionais – linhas e borrões, como tentativa de representação do movimento pela imagem. Fonte: King, Stephen Michael. Folha. São Paulo: Brinque-Book, 2008. 85 É claro que não é só a moldura que será responsável por essa questão. O ponto de vista, o ângulo de visão e outros aspectos formais como técnica e efeitos visuais também trarão contribuições para provocar uma sensação de presença dentro da realidade narrada ou um distanciamento. Essa presença poderia ser lida pela ótica da especificidade da linguagem cinematográfica trazida por Pasolini, na qual os elementos, objetos e atos com os quais se trabalha o cinema, são pertencentes à realidade e não representações. Sem, contudo, pretender uma equivalência da representação fotográfica do cinema com a linguagem do desenho na ilustração, a ideia é perceber uma aproximação da linguagem da ilustração nos livros de imagem como visualização de uma narrativa próxima da tela de cinema e da linguagem cinematográfica ou teatral. Outro aspecto importante para a discussão sobre a relação entre texto e imagem é a produção discursiva – tanto na linguagem textual quanto imagética. A PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1011889/CA sequência de imagens no Livro de Imagens e da performance cênica do Palhaço Mímico, apesar da ausência do texto falado ou escrito, não impede a produção discursiva na linguagem textual. Assim, a produção textual por ser resultado da narrativa visual. Como se nesse processo de leitura das imagens estivessem presentes as ideias de Benjamin no que diz respeito a evitar dar explicações 6 e assim permitir o máximo de pluralidade de leituras possíveis. E por outro lado a ideia de uma leitura sempre fresca e nova, a narrativa “se assemelha a essas sementes de trigo que durante milhares de anos ficaram fechadas hermeticamente nas câmaras das pirâmides e que conservam até hoje suas forças germinativas.” (Benjamin, 1987 p. 204) E nisso, esbarramos novamente nos estudos voltados ao livro ilustrado, pois alguns autores consideram justamente essa dupla produção pressuposto para categorizações diversas. Categorizações comparativas entre texto e imagem Sophie Van der Linden estabelece uma categorização que leva em conta aspectos organizacionais do texto e da imagem. Numa primeira classificação Linden se debruça sobre o “status da imagem” para perceber essa relação dentro do livro. O resultado foi organizado da seguinte maneira: 6 Crítica que Benjamin faz à Imprensa e à natureza da informação – “Metade da arte narrativa está em evitar explicações.” (O Narrador, in: BENJAMIN, 1987) 86 - imagens isoladas: imagens isoladas do ponto de vista da expressão e da narrativa. Esse isolamento é marcado pela organização da imagem na página (diagramação). - imagens sequênciais: imagens justapostas e articuladas. - imagens associadas: são as imagens que possuem uma autonomia e ao mesmo tempo uma dependência. Nesse movimento contraditório, se estabelece um trecho entre as imagens isoladas e as sequênciais onde se localizam as imagens que não são nem totalmente isoladas, nem solidárias. (Linden, 2011 p. 44-5) Outra forma de categorização encontrada por Linden se refere ao tipo de diagramação: - Dissociação: alternância de leitura do texto e da imagem separadamente – PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1011889/CA ritmo vagaroso de leitura. - Associação: associação espacial entre o texto e a imagem – leitura mais dinâmica. - Compartimentação: imagem e texto associados, mas em compartimentos (molduras). - Conjunção: texto e imagens não se encontram em espaços reservados, mas se confundem na página. As três classificações apresentadas pela autora até agora, apesar de trabalharem com aspectos diferentes, se fundamentam na questão espacial, na distribuição de texto e imagem ao longo das páginas do livro. Parece, portanto, que a perspectiva de Linden sobre os livros ilustrados atravessa principalmente a quantidade (ou volume) e a organização espacial entre as duas linguagens. Esses tipos de classificações buscam pelo aspecto espacial dar conta da diversidade de organizações (diagramação) presentes na complexidade que se estabelece nesse hibridismo. Apesar do objeto em estudo não trabalhar com a linguagem textual e, portanto, não ser necessário uma análise sobre a sua organização espacial em conjunto com as imagens, uma interessante abordagem poderia ser feita a partir da proposta da autora: levando-se em conta que a imagem conduz no leitor uma produção de sentido e também uma construção narrativa, é comum que este traduza essa narrativa verbalmente. A questão que se coloca é qual o volume de 87 texto produzido por uma imagem específica? Ou ainda, é possível analisarmos imagens que proporcionem a produção de uma quantidade maior de texto do que outra? Que características devem ter essas imagens para que isso ocorra? Ou seja, seria uma organização que poderíamos pensar entre o texto e a imagem, mesmo quando o texto não está presente no livro de forma escrita. E na área do Palhaço, poderíamos também pensar na quantidade, no volume de texto que determinada performance produziria? E seria realmente possível uma “tradução” na íntegra entre linguagens? Claro que há impossibilidade de tradução literal, mas será que é possível alguma construção narrativa por imagens que não teria palavras para traduzi-la? E de que maneira então poderia ser lida? E mais ainda, é possível uma reconstrução visual das sugestões de imagens (cenários, elementos e objetos de cena) feitas pelo Palhaço Mímico? Aqui retornamos a Jaques Lecoq (2010) para trazer mais uma categoria de PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1011889/CA sua classificação: a de “Linguagens do Gesto”, que será útil para percebermos essas questões no Palhaço Mímico. A chamada pantomima branca (termo cunhado pelo autor) é traduzida por Lecoq como a pantomima que se limita a traduzir palavras em gestos. Para o autor, essa tradução de linguagens “impõe, inevitavelmente, uma sintaxe diferente daquela da linguagem falada”. Destacando uma construção diferente da linguagem textual, como no exemplo: “Você é bonita, venha comigo, vamos nadar” para “você e eu”, “você bonita”, “ir juntos”, “nadar ali”. Para Lecoq, isso implica numa economia (condensação), numa precisão (na escolha do termo a ser traduzido) e num tempo também diferente. (Lecoq, 2010 p. 158) Encontraremos na Literatura algumas classificações que buscam abordar o livro justamente na relação entre o texto e a imagem. Não necessariamente como tradução de linguagem, mas como complemento, colaboração. Linden traz uma categorização levando em conta principalmente os aspectos narrativos de ambos: - relação de redundância: a autora define como o “grau zero” da relação entre texto e imagem onde os conteúdos narrativos em ambas as linguagens se encontram total ou parcialmente sobrepostos. (Não ignorando a impossibilidade de se terem conteúdos “idênticos” em linguagens diferentes.) - relação de colaboração: construção conjunta entre texto e imagem, de forma articulada, gerando a noção de complementariedade. 88 - relação de disjunção: texto e imagens não necessariamente se contradizem, mas não apresentam pontos de convergência, podendo assumir inclusive a característica de “narrativas paralelas”. Aprofundando essa última categoria, Linden apresenta a necessidade de mostrar também uma classificação de como os elementos textuais e imagéticos se relacionam, ou seja, “de que maneira interagem um com o outro”. - função de repetição - função de seleção - função de revelação - função completiva - função de contraponto PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1011889/CA - função de amplificação De forma diferente, encontramos as tentativas de tipologias dos livros ilustrados apontadas por Nikolajeva & Scott. Nelas as autoras têm um esforço significativo em procurar descrever a gama de possibilidades de interação entre o texto a imagem, no que se refere à dependência das duas linguagens para a produção de sentido na narrativa. Inclusive com algumas propostas de termos para nomear este tipo de relação: “Iconotexto” (Hallberg);; “dueto”, “polissistemia” (Lawrence R. Spice);; “sinergia”, “imagem-texto” (W.J.T. Mitchell). (Nikolajeva & Scott, 2011 p. 23) Na maior parte dos casos analisados, as tipologias geram uma espécie de gradação que vai desde a independência completa do texto, em relação à imagem (a ilustração não é necessária à compreensão da narrativa) até o seu inverso. Apesar de muitos autores trazerem categorias bastante interessantes e levarem em consideração, em alguns casos, os livros que não possuem texto verbal, estes últimos quase não são abordados de forma mais aprofundada. Sustentando ainda a presença do texto dentro do livro. Ao analisar os tipos de livros em que a narrativa é contada unicamente pelas imagens, Nikolajeva & Scott também não aprofundam nem apontam qualquer característica específica dos livros, exceto a necessidade de verbalização da narrativa. Ou seja, ainda nos livros de imagem o texto torna-se “necessário”, mesmo que ausente, e a quantidade de lacunas presentes nas histórias permitem 89 uma contribuição do leitor, estimulando sua imaginação com mais amplitude – apesar dessa característica não ser exclusiva desse tipo de livro. O interessante na classificação proposta pelas autoras, no entanto, é a gradação em que divide os livros segundo “a dinâmica palavra-imagem”, colocando como extremos um texto sem imagens e um livro-imagem. A primeira divisão proposta é entre livros narrativos e não narrativos. Para este trabalho, como o objetivo apoia-se na narrativa, propôs-se trabalhar unicamente com a classificação de livros narrativos. TEXTO - texto narrativo - texto narrativo com poucas ilustrações - texto narrativo com pelo menos uma imagem por página dupla (não é PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1011889/CA dependente da imagem) - livro ilustrado simétrico (duas narrativas mutuamente redundantes) - livro ilustrado complementar (palavra e imagem preenchem uma a lacuna da outra) - livro ilustrado expansivo ou reforçador (a narrativa visual apoia a verbal, a narrativa verbal dependa da visual) - livro ilustrado de contraponto (duas narrativas mutuamente dependentes) - livro ilustrado siléptico - narrativa de imagem com palavras (sequencial) - narrativa de imagem sem palavras (sequencial) - livro de imagem ou livro-imagem IMAGEM Apesar de a classificação ser interessante justamente por trazer como perspectiva a dinâmica imagem e texto em relação à narrativa, percebe-se uma dificuldade de compreender a diferença entre duas categorias específicas. Por exemplo, as autoras não deixam claro a diferença entre as duas últimas categorias: “narrativa de imagem sem palavras (sequencial)” e “livro de imagem”. O que teríamos de diferença entre uma narrativa de imagem sem palavras e um Livro de Imagem? Seria a narrativa – está ou não presente nos Livros de Imagem? Uma 90 tirinha de jornal, um filme, uma sequência de imagens se enquadraria na categoria narrativa de imagem sem palavras, e um livro cujo conteúdo se desenrolasse numa narrativa somente por imagens seria qualificado como um Livro de Imagem? Seria uma linguagem específica que o Livro de Imagem possui que o qualifica separadamente? Por outro lado, o Livro de Imagem também não carrega o termo “ilustrado”, como nas categorias anteriores. Será então que o Livro de Imagem não é considerado “ilustrado”? Segundo a tradução de ilustração subentende-se uma imagem que possa esclarecer um texto, iluminá-lo. O termo ilustrado não se enquadraria então no Livro de Imagem justamente pela ausência do texto verbal? Ou seja, em livros desprovidos do texto verbal não é possível ter ilustrações? Do esquema proposto no livro, temos as seguintes categorias que foram abordadas com mais detalhamento e exemplos: PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1011889/CA - Livros Ilustrados Simétricos: caráter mutuamente redundante na interação texto-imagem – “as palavras nos contam exatamente a mesma história que a ‘lida’ nas ilustrações”. (Nikolajeva & Scott, 2010 p. 29) As autoras comentam que esse tipo de livro são muito “estáticos” no texto visual, utilizando ilustrações de forma apenas decorativa. E citam o distanciamento do escritor e o ilustrador como questão principal para resultar em um livro com ilustração e não livro ilustrado. Esta categoria parece ser consenso entre os teóricos – Linden (redundância), Schwarcz (congruência), Golden (simétricos) etc. - Livros Ilustrados Complementares: palavras e imagens preenchem as lacunas deixadas pela outra, limitando assim o espaço para a imaginação do leitor. - Livros Ilustrados Contrapontos: “palavras e imagens fornecem informações alternativas ou de algum modo se contradizem”, proporcionando uma diversidade de leitura e interpretações. Pontua ainda que neste caso os livros mais estimulantes foram produzidos por um só autor, que elaborou texto e imagem de forma conjunta. Nesse caso destacam o fator da Ironia, apontado também por Nodelman e Linden, quando o texto e a imagem se contradizem. - Livros Ilustrados Expansivos ou Reforçadores: as ilustrações não fazem contraponto às palavras, as “expandem”, “reforçam” ou “elaboram”. Sendo assim, o texto é absolutamente dependente das imagens, mas estas não trazem em si a narrativa. “Palavras e imagens contam duas histórias diferentes.” 91 Sobre isso, poderíamos destacar mais uma categoria proposta por Lecoq ao tratar da mímica. Para ele os contadores-mímicos procuram trabalhar com as duas linguagens em conjunto – verbal, na narrativa oral, e gestual –, reverberando e interpretando as ações ou emoções dos personagens. Segundo Lecoq, esses contadores podem conciliar as duas linguagens numa mesma narrativa ou alternálas, como pudemos perceber também na relação texto e imagem dos livros ilustrados. (Lecoq, 2010 p. 161) Outro aspecto interessante, destaca Linden, é o fato de ela observar que geralmente em leituras em que texto e imagem narram histórias diferentes e principalmente contraditórias (irônicas), as imagens são lidas como verdadeiras em relação ao texto. “De acordo com minhas investigações, é sempre a imagem que parece falar ‘a verdade’.” (Linden 2011 p. 125) Essa noção de múltipla leitura apresenta uma diferença quanto à forma de PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1011889/CA leitura, caso os fatos sejam narrados verbalmente ou visualmente. Talvez porque historicamente a imagem esteve associada à ideia de “registro” (pinturas na Idade Média, fotografia etc.) e, por conta disso, implicaria numa leitura dela condicionada a “falar sempre a verdade” e se caracterizar sempre como “prova dos fatos”. Esse grau de veracidade também é percebido nas Artes Cênicas, onde não está presente a imagem técnica como reprodução, mas sim o ator representando uma personagem. Claro que em ambos os casos, tanto no Cinema como nas Artes Cênicas, o público está ciente da representação, mas se dispõe a assistir o fato como real, utilizando-se do que Umberto Eco chamou de “suspensão das provas”. Porém, ainda que vistos como representação, existe principalmente nas Artes Cênicas uma presença do ator inegável. Para um espectador não ciente do jogo estabelecido no palco, como as crianças que por ventura desconhecem o mecanismo por trás de uma encenação, aquela presença física do personagem é vista como verdade. E não só em crianças, o público adulto, seja pela suspensão das provas, seja por uma excelente atuação, crê na presença do personagem ao visualizar o ator em cena. A relação, portanto, entre real e fictício permanece, mas com algumas questões curiosas. Sendo a imagem portadora, digamos, de uma “veracidade maior do que o texto, nos casos em que estes se contradizem” há, pelo leitor, a compreensão de que existe uma narrativa falsa e outra “verdadeira”. E essa característica à qual está associada a imagem deve-se ao fato de ela “mostrar” em 92 vez de contar. Quando o que está sendo narrado textualmente não corresponder à imagem, desloca-se esta para um status de prova dos fatos. “Se está sendo visto, está acontecendo.” E se está acontecendo, eu estou presente nesse fato, sou testemunha, sou cúmplice. Novamente perceberemos a cumplicidade em jogo. Nikolajeva & Scott, por exemplo, ao abordarem a perspectiva narrativa dentro dos livros ilustrados, trazem uma diferenciação no modo de narração do texto e da imagem. Em narratologia, o termo ‘ponto de vista’ é empregado em uma acepção mais ou menos metafórica, para denotar a posição assumida pelo narrador, pelo personagem e pelo leitor implícito (...). Há também uma distinção entre o ponto de vista literal (pelos olhos de quem os eventos são apresentados), o ponto de vista figurativo (transmitindo ideologia ou visão de mundo) e o ponto de vista transferido (como o narrador se beneficia com o relato da história). (...) Com as imagens, podemos falar de perspectiva em um sentido literal: como leitores/espectadores, vemos a ilustração de um ponto de vista fixo, que nos é imposto pelo artista. (Nikolajeva & Scott, 2011 p. 155) PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1011889/CA Mais adiante, ainda se baseando na Narratologia, as autoras relembram uma distinção essencial entre “ponto de vista (quem vê) e voz narrativa (quem fala)”. Assim, concluem as autoras, o texto fica primordialmente com a função da voz e as imagens do ponto de vista. O que mais chama atenção nessa diferenciação é a forma como se transmite a narrativa. A veracidade presente na imagem muito mais do que no texto, apontada por Linden, está contida na presença do espectador na cena. Ou seja, mais do que espectador, é como se ele estivesse presente no momento da ação, ou vendo uma fotografia do fato. Tratando-se de uma sequência de imagens, o Livro de Imagem fica então caracterizado como um grupo de imagens que registrou um determinado momento ou diversos momentos de uma história da qual procuramos, como leitores, compreender o fio narrativo. Esse estado de presença, como já vimos, também é verificado no Palhaço, que aponta para a mesma direção. Se ele não está exatamente atuando, então tudo que acontece aqui é real. Portanto, como na vida, as possibilidades são imprevisíveis. Não é a toa que à figura do Palhaço é comumente associada a do louco, a do bêbado. Acredita-se que esse vínculo se estabeleça pela relação de uma presença real percebida, onde se estabelece um vínculo em que as possibilidades são reais e presentes, onde não há atuação. E sendo o louco ou o bêbado “capaz de agir irracionalmente”, logo à figura do Palhaço também é associada um certo temor. 93 Para Michel Lahud (1993), Pasolini considera a realidade trazida também pela imagem no Cinema, quando aponta para a característica dessa linguagem como sendo um sistema “menos simbólico, arbitrário e convencional. Ela expressa a realidade com a própria realidade; que, ao invés de evocar, ou de representar, ou mesmo de copiar o real, ela simplesmente o reproduz (som e imagem)”. (Lahud, 1993 p. 41) Ou ainda: o cinema como experiência de linguagem que recompõe a fratura entre a matéria da expressão e a realidade expressa acaba de fato se confundindo com a experiência filosófica fundamental, para Pasolini, da própria existência humana: a de uma relação direta do eu com os outros e a da presença imediata do mundo para a consciência. (Lahud, 1993 p. 41) Parece que inevitavelmente, apesar de percorrer diferentes caminhos, iremos nos aproximar também do Cinema. Sobre esse aspecto, porém, merece ser feita PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1011889/CA uma abordagem à parte mais aprofundada. Cabe aqui destacarmos uma passagem da obra de Arlindo Machado, Pré-cinemas e Pós-cinemas (1997), que é bastante interessante para discussão. Segundo o autor, a característica da sala de cinema de hoje é similar ou idêntica às primeiras salas concebidas: “O cinema foi concebido, desde suas origens, como um lugar (em geral escuro) onde se pode espiar o outro.” Tal característica vem no entanto da dita “pulsão de tomar o outro como objeto”, que Arlindo Machado credita a Freud – escopofilia. (Machado, 1997 p.125) A partir daí, Arlindo Machado destaca a quantidade de filmes com temática erótica produzidos no princípio do século XX, mas sobretudo para demarcar o trajeto de preparação do espectador para uma “nova experiência do olhar, que hoje chamaríamos de subjetiva”. (Machado, 1997 p. 126) O autor esclarece-nos que alguns recursos (como vinheta simulando buracos de fechadura, lunetas e binóculos) foram utilizados muitas vezes para gerar no espectador essa presença subjetiva dentro da cena, pois na época ainda não se tinham popularizados os códigos cinematográficos conhecidos hoje. A aproximação da câmera tem inicialmente um apelo erótico indisfarçável: trata-se de retirar o espectador da posição cômoda, mas pouco aventurosa, do cavalheiro da platéia (...) e colocá-lo ‘em contato’ com os protagonistas, como se ele fosse subir ao ‘palco’ e vivenciar a ação como alguém que faz parte dela. (Machado, 1997 p. 127) 94 Para o autor, portanto, há uma nítida busca por uma inserção do espectador dentro da cena. O que de certa forma todas essas questões têm em comum é algo não só restrito à área da Literatura, muito menos do Livro de Imagem. Trata-se de uma “exigência de participação do leitor”, já abordada por Bakhtin como “Inacabamento” – a noção de que uma obra de arte necessita da participação do outro – alteridade na criação – para se tornar uma obra de arte. Há assim uma ‘parte da obra’ que falta, uma lacuna só preenchida no ato da fruição. E mais do que isso, uma obra de arte, mesmo não deixando lacunas ao observador, acaba sendo complementada por ele. A noção de “excedente de visão” – um olhar só possível pelo outro –, recoloca uma importância à recepção da obra, mas não só isso, dota o leitor de uma autoridade (alteridade prevista por Bakhtin) na narrativa. Essa autoridade, em PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1011889/CA comum acordo ao leitor, ou seja, uma construção mútua e partilhada, propõe ao “espectador-leitor” uma cumplicidade. Sobre essa característica Linden nos traz algumas observações com bastante propriedade: A contradição entre texto e imagem faz do leitor um cúmplice. Ele restabelece a “verdade” que, aliás, como já observei, é quase sempre vinculada pela imagem... (Linden, 2011 p. 135) Dando continuidade, Bakhtin (2003) discute a estética expressiva, que segundo ele “procura ao máximo excluir o autor como elemento essencialmente autônomo em face da personagem, restringindo-lhe as funções à mera técnica da expressividade”. (Bakhtin, 2003 p. 68) Ele vai chegar a discutir a diferença entre interpretar e representar. Principalmente nas Artes Cênicas, onde essas duas palavras podem ser confundidas como sinônimos, ele vai procurar trazer as especificidades de cada uma. O que vai nos ajudar a compreender o presencial necessário à atividade do palhaço, citada acima. Do ponto de vista do interpretador, segundo Bakhtin, não é prevista a existência de um espectador, ou seja, alguém fora do ato encenado, apreciando a cena de um ponto externo a ela. Para ilustrar, traz o exemplo interessante de um grupo de crianças que brinca de “chefe de bandidos”. A criança, nessa ocasião, assume a vida de bandido, vivencia ela, enxerga pelos olhos do bandido, seu horizonte é o horizonte do bandido. O mesmo acontece com os outros participantes que também o enxergam como 95 bandido e vivenciam juntos a mesma situação. Dessa maneira não se dá a experiência estética, e sim um acontecimento da vida, de interpretação da vida. A interpretação realmente começa a aproximar-se da arte, justamente da ação dramática, quando surge um participante novo, apático – o espectador –, que começa a deliciar-se com a interpretação das crianças do ponto de vista do todo do acontecimento da vida aí representado. (Bakhtin, 2003 p.69) E a partir daí a situação, mesmo com a presença de um espectador, pode retornar ao estado de interpretação, desde que o espectador assuma um papel dentro da brincadeira ou assuma um dos personagens já existentes. Mesmo permanecendo na cadeira onde está sentado. “Assim, não existe elemento estético imanente à própria interpretação, ele pode ser aí inserido por um espectador que PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1011889/CA observa com ativismo.” (Bakhtin, 2003 p.69) O que a interpretação tem mesmo em comum com a arte? Apenas o elemento puramente negativo, o fato de que aqui e agora não está presente a vida real mas tão-somente a sua representação; mas nem isso pode ser afirmado, porque só na arte ela é representada, na interpretação é imaginada, como já observamos; ela só se torna representada na contemplação ativo-criadora do espectador. (Bakhtin, 2003 p.69) Mimese Nikolaveja & Scott tratam a questão sob outra ótica. No capítulo em que abordam o tema, as autoras fazem a distinção entre “representação mimética e não mimética”. O primeiro caso trata-se de uma representação literal e o segundo simbólico. Ou seja, uma representação por imitação direta da realidade (mimética) ou a simbólica da qual se permite uma interpretação em diferentes níveis (simbólica ou abstrata). Para os livros ilustrados, e a partir do conceito de modalidade – “conceito da linguística que abrange categorias como possibilidade, impossibilidade, contingência ou necessidade de afirmação” (Nikolajeva & Scott, 2011 p. 237) – as autoras propõem uma classificação: - Interpretação mimética ou modalidade indicativa “isso aconteceu” - decodificação da informação como verdadeira. - Interpretação simbólica, transferida, não mimética - estímulo à decodificação como possibilidade de uma verdade. 96 Curiosamente a escolha das autoras em trabalhar com o conceito de modalidade se fundamenta na possibilidade de examinar “os modos complexos pelos quais os livros ilustrados transmitem a apreensão da realidade, que sempre envolve aspectos subjetivos, sem recorrer à divisão um tanto artificial das narrativas em fantásticas e realistas. (...) a interação palavra-imagem cria uma aspecto muito mais amplo que essa binaridade”. (Nikolajeva & Scott, 2011 p. 237) Mais adiante, procurarão demonstrar o quão complexas pode ser a modalidade através da interação entre texto e imagem. Em resumo, as autoras destacam o quão difícil é saber se o que vemos é real ou irreal, quando se trata de imagens desacompanhadas de palavras. Esse estado de interpretação, sem contudo perder o caráter de representação artística, esse grau de “vivenciamento interno” à narrativa, essa participação do PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1011889/CA leitor diante dos fatos, essa cumplicidade, irá se desenvolver por todo o livro e será de fundamental importância para a construção narrativa. Vimos essa abordagem em Linden, quando traz a noção de cumplicidade e uma relação com uma “verdade” proposta, e muitas vezes contradita, entre texto e imagem. Vimos essa “verdade” também em Bakhtin quando ele associa a interpretação com a vida e não como representação e por fim, ao analisarmos a classificação de Nikolajeva & Scott segundo a apreensão mimética e simbólica como graus diferentes de “veracidade”, bem como em Freud e Bergson ao analisar o cômico, bem como em Pasolini ao olhar para o cinema. A discussão aqui não se propõe a avaliar o grau de veracidade de uma imagem, nem questioná-la. O importante para o presente estudo é que a veracidade percebida por Linden nas imagens, também discutida por Bakhtin na interpretação como vivência e por Nikolajeva & Scott na complexidade de modalidades que essa verdade pode provocar a imaginação, fortalece a noção de presença. O livro ilustrado com frequência se apresenta como uma proposta aberta (representações dissimuladas nas fronteiras do livro, percursos de leitura implícitos dentro da imagem, funcionamento interno subjacente...) em que o espírito de brincadeira e o carinho ocupam um lugar primordial. (...) a confissão recíproca entre o criador e o leitor irá permitir a existência do livro. (Linden, 2011 p. 158, 159) 97 Diante então dessas reflexões, emergem algumas questões relevantes para a continuidade do estudo e para um outro olhar diante dos Livros de Imagens, acreditando que essas questões sejam as bases para uma reflexão mais debruçada sobre certas obras, permitindo uma análise crítica que expanda o olhar sobre esse objeto. Em primeiro lugar poderíamos apontar a ideia central, de ausência, e o que a partir dela se percebeu ao longo do texto. Passando pela noção de marginalização relativa, em que os dois objetos se colocam num contexto histórico, social e comercial, chegamos a questões que envolvem omissão, alusão e condensação, próprias do cômico, analisado por Freud. Mas também bastante oportuno para se pensar o Livro de Imagem e sua característica de redução do volume de texto em fragmentos visuais narrativos, presente no que chamamos de “entrepáginas”, ou “brancos”, “lacunas” etc. Assim, a redução, ou melhor, condensação de PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1011889/CA informações em algumas imagens sequênciais, proporcionam leituras diversas (quando pensada dupla audiência, ou multiplicidade de leitura) ou ainda experiências narrativas diversas (se imaginarmos que o adulto, acostumado com o livro, depara com outra proposta sem o texto, que o conduz a um desafio de ler e narrar só com imagens, e também a experiência da criança proporcionada por uma leitura multissensorial). Uma outra perspectiva é a da condição de leitura, ou modo de leitura. Nesse caminho verificamos uma sensação de presença física do espectador/leitor na cena narrada, como se estivesse ele próprio diante dos fatos e deles fossem extraídos a narrativa. Dessa reflexão, pudemos perceber aspectos como cumplicidade estabelecida entre o Palhaço e o espectador, o que em paralelo percebemos numa certa “espetacularização” própria dos Livros de Imagem. Por outro lado, apresentou-se a distinção feita por Bakhtin entre Interpretação e Representação que foi útil para por em foco o ato de fruição do leitor, como sendo uma experiência no limiar entre a Arte e a Vida. Isso traz novamente a ideia de uma experiência narrativa e a sensação de testemunha dos fatos, o que provocou, no encontro com informações contraditórias, no caso de livros com texto, a revelação de uma característica diferenciada entre a linguagem visual e a textual. E no encontro com o Palhaço Mímico, questões próprias da linguagem gestual. O desafio que percebo como ilustrador ao produzir um Livro de Imagem está na dificuldade de desenvolver integralmente uma narrativa somente com a 98 linguagem visual. O que de certa maneira deflagra que a linguagem verbal possui em sua ontologia características que permitem tratar determinados elementos da narrativa com maior eficiência do que a linguagem visual. O seu inverso também é válido. E é provavelmente a junção dessas duas linguagens nos livros ilustrados o que proporciona tamanha riqueza e diversidade. Spengler (apud Coelho, 2000) aponta para uma característica diferente entre a criança e o adulto no que se refere à leitura, já apontada anteriormente. Segundo o autor, essa característica está ligada à diferença de domínio da linguagem – normalmente mais precário e limitado na criança do que no adulto. Enquanto a criança pratica a leitura prioritariamente pela experiência sensível, o adulto o faz também de maneira intelectual e abstrata. O que de certa maneira atravessa essa questão é a diferença entre a característica ontológica do texto de representar simbolicamente e da imagem de PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1011889/CA representar iconicamente. Sobre isso, Pasolini nos esclarece muito bem quando diferencia a maneira de retratar um ambiente pelo literato e pelo cineasta. É claro que não se trata de características próprias a essas linguagens, nem estanques, mas apontamos como características ontológicas pela maneira como cada linguagem se apresenta – uma sob a forma de um código previamente combinado e outra pela representação por semelhança. Nikolajeva & Scott (2011) abrem sua análise dos livros ilustrados apontando também para essa diferença: O caráter ímpar dos livros ilustrados como forma de arte baseia-se em combinar dois níveis de comunicação, o visual e o verbal. Empregando a terminologia semiótica, podemos dizer que os livros ilustrados comunicam por meio de dois conjuntos de signos, o icônico e o convencional. (Nikolajeva e Scott, 2011 p. 13) As autoras ainda esclarecem que por conta dessa diferença a função atribuída às figuras nos livros ilustrados é prioritariamente de mimese (mostrar). Por outro lado, a função das palavras é principalmente de diegese (contar). Isso fica claro quando aponta para a facilidade encontrada nas imagens de apresentar o cenário, a ambientação, a caracterização e os elementos de cena7; e nas palavras, de representar questões abstratas como emoções, descrição psicológica e diálogo. Já o movimento, apesar da linguagem textual ter maior facilidade para tratar a questão temporal, permanece um desafio para ambas as linguagens. Se na textual 7 Nikolajeva e Scott (2011) desdobram essa questão em diferentes capítulos: Ambientação, Caracterização de personagens, Tempo e Movimento, Mimese e Modalidade, Linguagem figurada, metaficção e intertexto. 99 é preciso descrever o movimento, na linguagem visual ele só é possível mediante codificações ou sugestões – por exemplo, pelos traços ou esfumaçado que reforçam a direção do movimento de um carro, ou ainda a sequência de imagens em diferentes posições do mesmo personagem. Assim, em resumo, Nikolajeva & Scott nos auxiliam novamente: Se considerarmos o que cada um, imagem e palavra, faz de melhor, é claro que a descrição física pertence ao domínio do ilustrador, que pode, em um instante, comunicar informações sobre aparência que exigiriam muitas palavras e muito tempo de leitura. Mas a descrição psicológica, embora possa ser sugerida em imagens, necessita das sutilezas das palavras para captar emoções e motivações complexas. O discurso externo e interno como meio de caracterizar personagens é, por definição, verbal (embora alguns dispositivos visuais interessantes possam ser utilizados para transmitir discurso, a exemplo do que frequentemente vemos nas histórias em quadrinhos), como o são quaisquer declarações de terceiros sobre algum personagem que esteja sendo “analisado”, enquanto os comentários dos narrados podem ser tanto verbais como visuais. E, ao contrário de filmes, os livros ilustrados não podem fornecer o movimento no mesmo tempo oferecido pelo simbolismo das palavras. (Nikolajeva e Scott, 2011 p. 113) PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1011889/CA Para finalizar, retomamos o contraponto neste estudo, o Palhaço Mímico, que na sua construção narrativa utiliza-se da linguagem gestual prioritariamente. Nesse contexto, assim como a linguagem visual, a linguagem gestual apresenta certa dificuldade de contar, quando comparada à linguagem verbal. A pantomima branca, descrita por Lecoq (2010 p. 158), aponta para essa dificuldade quando o autor vê na linguagem gestual a necessidade de uma sintaxe própria para tentar reproduzir as palavras, pela impossibilidade do uso na sua integridade, da sintaxe própria da linguagem textual. O que torna também difícil, por consequência, a tarefa de representar conteúdos abstratos, psicológicos etc. Por outro lado, a linguagem gestual também não contempla a totalidade dos recursos próprios da linguagem visual, porque diferentemente dessa linguagem, não mostra os objetos, ambientes e cenários com os quais está trabalhando. Mas busca através do gesto, através do corpo, sugerir a presença de todos esses elementos – o que chamou de figuração mímica. (Lecoq, 2010 p. 158) Como contraponto à linguagem verbal e visual, no entanto, a linguagem gestual possui mais eficiência para representar o movimento, pela característica própria da performance. Por tratar-se de uma representação presencial, nela estão presentes especificidades dessa condição como o improviso e a espontaneidade. Assim, ilustramos no esquema abaixo três polos onde cada linguagem se coloca segundo sua maior ou menor eficiência de articulação e representação quanto à descrição icônica, abstrata e de movimento: 100 Figura 9 – PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1011889/CA Esquema ilustrativo da relação de proximidade das linguagens – Visual, Textual e Gestual; e a natureza dos signos em questão – Iconicidade, Abstração e Movimento. Veremos, no entanto, em publicações de livros de texto, descrições que criam abstratamente uma ambientação e promovem a imaginação de cenários, elementos de cena, caracterizações e movimento que enriquecem e expandem-no textualmente. Bem como também encontraremos livros de imagem que conseguem, apenas no uso das imagens, apresentar cenas com movimento e representar sutilezas emocionais, psicológicas e abstratas. Por fim, iremos igualmente encontrar palhaços mímicos que conseguem, com o corpo, transmitir emoções e descrever cenários, elementos e objetos. Isso se dá à medida que entendemos não se tratar de características exclusivas de cada linguagem, mas lacunas, ausências que podem ser mutuamente preenchidas e complementadas ou “trapaceadas” – como nos colocou Barthes e como veremos no objeto de estudo proposto. Ou ainda na mistura, nos hibridismos possíveis entre linguagens. Neste caso, temos os livros ilustrados, os contadores mímicos, o cinema, a animação e tantos outros. Como resultado deste trabalho, propõe-se uma análise fundamentada no cruzamento entre essas diferentes características das linguagens apresentadas, bem como as questões próprias a cada uma, buscando compreender, no Livro de Imagem, de que maneira as ausências percebidas na perspectiva histórica, bem como as ausências próprias da linguagem – com a qual ele se coloca o desafio de 101 produzir um livro sem a linguagem textual –, estão presentes e interferem na construção narrativa. E ainda, de que maneira questões históricas, da ausência e especificidades da linguagem gestual no Palhaço Mímico, colocam-se como contraponto e contribuições para essa análise. É a partir, então, do cruzamento entre os três polos e suas respectivas características, apontadas no quadro anterior, PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1011889/CA que veremos emergir as categorias de análise. 102 4. Categorias de Análise Como fechamento deste estudo e contribuição para uma análise crítica e teórica da narrativa, proponho a elaboração de categorias que possibilitem uma perspectiva analítica do Livro de Imagem. Como ponto de partida para a elaboração das categorias, temos a reflexão anterior, a relação entre as três linguagens – verbal, visual e gestual –, e as características e/ou recursos para o desenvolvimento de narrativas que ontologicamente pertencem a cada uma dessas linguagens especificamente. O que não exclui, nem impossibilita, como explicado anteriormente, observarmos o uso recorrente em linguagens diferentes da PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1011889/CA originária. Mas o que constatamos é que o surgimento de determinado recurso narrativo está vinculado a uma linguagem específica ou por conta da eficiência com que tal linguagem utiliza-o, ou pelas circunstâncias em que aquela linguagem foi desenvolvida – contexto histórico-social, suporte tecnológico etc. Dito isso, podemos colocar que a abstração conceitual – como a definição de uma dimensão psicológica, emocional, de um personagem, bem como a atmosfera e a classificação de um estado diferenciado de consciência como o sonho, o delírio, a fantasia – é própria da linguagem verbal. A possibilidade de descrever questões abstratas conceituais verbalmente é mais usual, culturalmente, do que tentar demonstrar isso visualmente ou por gestos. Por outro lado, questões que envolvem representação de movimento, do deslocamento tempo x espaço, possuem recursos mais imediatos na linguagem gestual. É inegável a eficácia de representar o movimento pela linguagem gestual – pelo corpo – quando comparada às linguagens verbal ou visual. Questões colocadas como improviso e espontaneidade – como vimos no palhaço – também são mais bem observadas numa representação presencial (performance, encenação teatral etc.) do que em objetos como o livro, onde a imagem permanece estática (sendo ele de linguagem puramente verbal, visual ou mista). E cabe à imagem, como bem nos esclareceu Nikolajeva & Scott, características voltadas à representação espacial/visual – cenários, figurinos, aspectos físicos do personagem, elementos de cena, iluminação. O ato de 103 “mostrar” encontra na linguagem visual uma eficácia maior na representação do que as propostas de representar um objeto, um cenário, pelo gesto ou mesmo descrever uma cena, um aspecto físico do personagem na linguagem textual. Como resultado do cruzamento entre estas questões e as três linguagens, PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1011889/CA temos a tabela a seguir: Figura 1 – Tabela da relação entre as linguagens e questões próprias à narrativa. A partir desse cruzamento e levando em consideração que o objeto principal deste estudo só utiliza a linguagem visual, dirigimos o foco de atenção para as questões que estão ou não presentes ontologicamente na linguagem visual, mas que são igualmente importantes para o desenvolvimento da narrativa. Assim, procuraremos fazer uma abordagem que parta da ausência de determinadas características na linguagem visual, para compreender de que maneira essas questões são resolvidas em uma narrativa exclusivamente visual. Ou seja, como o autor/ilustrador tenta suprir a carência de questões próprias à linguagem verbal e gestual quando constrói uma narrativa por imagens no livro. Em seguida, buscaremos compreender porque em alguns casos o autor propõe determinadas ausências também na própria linguagem visual, sendo essa exclusiva do Livro de Imagem. Os livros analisados Os livros escolhidos para serem analisados foram organizados pelo autor deste trabalho de maneira não sistemática. Adquiridos livremente, reúnem publicações nacionais e internacionais, incluindo diversos exemplares premiados 104 tanto no Brasil1 quanto no exterior. Outra questão presente nessa organização é que a maioria foi publicada na última década. O fato de não apresentarem nenhum critério específico na sua organização e seleção não foi encarado como um problema na pesquisa, visto que as categorias desenvolvidas buscam possibilitar uma análise dos livros de imagem na sua diversidade. Sendo assim não teremos, durante a análise, nenhum juízo de valor sobre os livros analisados, sendo suas imagens apresentadas apenas pelo fato de serem bons exemplos para a categoria em questão. As referências das imagens analisadas serão colocadas na legenda das mesmas, e a bibliografia contendo todos os livros analisados segue anexada a este trabalho. (Anexo I) Cabe pontuar que alguns dos livros não apresentam a narrativa unicamente por imagens. Apesar disso, optou-se por analisá-los também porque independentemente de fazerem pequeno uso da linguagem verbal, apresentavam PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1011889/CA excelentes exemplos para ilustrar algumas das categorias. Os grupos de categorias Por questões didáticas procuraremos reunir todas essas questões em três grupos e na seguinte ordem: Relação tempo e espaço na imagem, Sugestão de abstração conceitual e Ausência na imagem. Cada grupo ficará assim responsável por reunir questões próprias à ausência respectivamente da linguagem gestual, textual e visual. Essa organização deu-se em função da prioridade dada à análise do movimento – deslocamento tempo x espaço, entendido como característica fundamental no Livro de Imagem para a construção narrativa –, e, em seguida, aspectos próprios para suprir a ausência da linguagem verbal. Por fim, observouse que curiosamente alguns livros de imagens propunham certa ausência também na linguagem visual, o que de certa forma chamou atenção, e procurou-se perceber quais as questões que envolviam essa omissão. Nesses três grupos estarão, portanto, presentes as categorias de ausência: o Vácuo do indizível (ausência ou limitação do código, limitação técnica), o Silêncio do que não deve ser dito (expectativa social, censura, polidez) e a Lacuna do não dito (lacuna original, como expressão, subversão ou provocação). 1 Prêmio da Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil – O Melhor para Criança, promovido desde 1975 e que abrange diversas categorias incluindo especificamente a categoria para livros de imagem. 105 Apesar da enorme contribuição de Linden (2011) e Nikolajeva & Scott (2011) para a compreensão da expressão do tempo e do espaço, esses conjuntos de categorias abordam algumas das questões colocadas em ambas as análises. Mas busca, somando a elas, compreender de que outras maneiras são propostas pelos autores de livros de imagens a relação e representação do tempo e do espaço. Assim questões como “instante capital”, “instante qualquer”, “instante movimento”, “códigos gráficos”, “sucessão simultânea” repercutirão nas categorias propostas sem contudo uma exata similaridade. 4.1 Relação espaço e tempo na imagem Esse grupo trata da ausência na linguagem visual de questões relacionadas ontologicamente à linguagem gestual. Portanto, procurará abrigar questões PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1011889/CA principalmente da representação do movimento e consequentemente da relação entre tempo e espaço. Movimento do Quadro: Deslocamento espacial semelhante com o proposto pela câmera de cinema. A ideia de que a imagem é uma janela que delimita um ponto de vista, e que seu movimento sugere a noção de que ela acompanha o deslocamento do personagem no espaço. Como se o quadro (janela) acompanhasse o percurso dessa trajetória. Figura 2 – Sugestão de movimento do quadro no livro A Toalha Vermelha. Fonte: VILELA, Fernando. A toalha vermelha. São Paulo: Brinque-Book, 2007. Nesse movimento do quadro estarão presentes diferentes questões analisadas anteriormente. A primeira delas é a ideia de moldura e anulação do suporte, analisada por Linden. Também estará embutida a noção da presença (como testemunha da narrativa) e, por conta dela, a de “espetacularização”, ou 106 como “interpretação mimética ou modalidade indicativa” apontada por Nikolajeva. Pelo caráter fixo do livro impresso, o movimento só pode ser sugerido/aludido pela sequência de imagens (limitação técnica). Nessa sugestão outros elementos estarão intimamente ligados e, portanto, são importantes de se analisar. Ponto fixo ou Âncora: Como na Física, onde só é possível analisar o movimento e o deslocamento de determinado objeto segundo uma referência, aqui essa referência chamamos de âncora ou ponto fixo. O nome dado ao elemento encontra semelhança com a mímica, pois esta também apresenta um referencial fixo para se perceber o movimento (deslocamento). Apesar de terem essencialmente objetivos parecidos, criamos nomes diferentes para as seguintes PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1011889/CA situações: Como ponto fixo caracterizamos determinado elemento que torna-se referencial para perceber na sequência de imagem a sugestão de movimento. Figura 3 – Exemplo de ponto fixo. A rotatória com a estátua ao centro serve de referência para sugestão de movimento dos carros e do protagonista. Fonte: MERVEILLE, David. Na garupa do meu tio. São Paulo: Cosac Naify, 2009. Titulo original: Le Jacquot de Monsieur Hulot. A Âncora também dá a ideia de referencial para a continuidade narrativa, mas, diferentemente do ponto fixo, pode apresentar alterações ao longo do passar das páginas – alteração no próprio elemento, ou mudança de elemento. É claro que pela proximidade desses dois elementos e pela sutileza em sua diferenciação, pode haver sobreposições em alguns casos. 107 PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1011889/CA Figura 4 – Exemplo de âncora encontrado na sequência de imagens no fundo do mar. Da primeira imagem no alto a esquerda, até a terceira imagem permanence a imagem da jangada como referência de profundidade e deslocamento. Em seguida a figura da baleia assume a característica de âncora e por fim o barco. Fonte: VILELA, Fernando. A toalha vermelha. São Paulo: Brinque-Book, 2007. Figura 5 – O pequeno barco à esquerda da imagem serve de âncora por fazer referência de deslocamento espaçotemporal da narrativa e que permite o reconhecimento do personagem. Fonte: CÁRCAMO, Gonzalo. Gelo nos trópicos. São Paulo: Companhia das Letrinhas, 2011. Ambos estão também associados à ideia de repetição, pois justamente lidam com sua recorrente apresentação na sequência de imagens. A alusão de movimento é feita pela sequência de imagem, ele é percebido pelo encontro de uma referência (elemento repetido) à imagem anterior. A elipse suprimiu a representação direta do movimento que fica aqui apenas como índice. Quadro fixo: Este é um caso característico que utiliza o próprio quadro (formato da página dupla) como ponto fixo. Assim, funcionando de maneira semelhante ao palco italiano clássico no teatro, que tem o espaço físico fixo e determinado, onde os atores entram e saem da cena2 – caixa preta. Portanto, a 2 Apesar de algumas produções cenográficas possibilitarem a simulação de pontos de vistas diferentes em cada cena, o mais comum é termos um ponto de vista fixo. 108 perspectiva do quadro permanece fixa enquanto os personagens se deslocam por esse espaço. Figura 6 – Exemplo de quadro fixo, em que o enquadramento da cena se mantém apesar do movimento dos personagens. Percebe-se o movimento pelas relações distintas do personagem com o quadro. Fonte: MELLO, Roger. A flor do lado de lá. Rio de Janeiro: Salamandra, 1991. História em Quadrinhos: Também percebemos uma sugestão de movimento pela sequência de imagens delimitadas por molduras internas ao quadro. Assim como fizemos referência a características comuns no Cinema e no Teatro, aqui percebemos uma semelhança com a linguagem das histórias em PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1011889/CA quadrinhos – conjunto de pequenos quadros com imagens sequênciais. Este é um caso em que procura-se pontuar um determinado movimento, dentro da cena geral que está sendo mostrada pelo quadro da página inteira. Aqui, como em diversas outras categorias, teremos a noção de condensação bastante presente. A ideia de condensação, proposta por Freud e observada pelos diversos autores, está vinculada à noção de duplo sentido, da economia que amplia as potencialidades interpretativas. E nesse caso, um recurso que isola e condensa um movimento que o autor julga merecer destaque. Figura 7 – Quadro geral dividido em diferentes cenas. Exemplo de sugestão do movimento pela sequência de pequenos quadros menores dentro da página. Fonte: DOUZOU, Oliver. Esquimó. São Paulo: Hedra, 2007. Plano e Contra Plano: A noção de plano e contra plano no cinema, segundo Arlindo Machado (1997), origina-se da sugestão de representar a perseguição. E de maneira geral as possibilidades encontradas na edição e montagem da narrativa no cinema proporcionaram o desenvolvimento de diversos 109 outros recursos cinematográficos que serão utilizados largamente em outras linguagens e suportes – como é o caso dos livros de imagem. Nessa situação percebe-se tanto a ideia de perseguição quanto, de maneira geral, o deslocamento dos personagens pelo espaço. PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1011889/CA Figura 8 – Exemplo de plano e contraplano para sugerir deslocamento do personagem – referência à perseguição no cinema. Fonte: VINCENT, Gabrielle. A pequena marionete. São Paulo: Ed. 34, 2007. Descontinuidade temporal: Este ponto apresenta a ideia, também comum no cinema, de um deslocamento para um momento específico no tempo – noção conhecida como analepse. Como bem nos pontuou Linden (2011), não é um recurso frequentemente encontrado, e diferentemente da Narrativa Cíclica, esse recurso não necessariamente aponta para a noção de um movimento contínuo – cíclico ou de repetição –, mas apenas um reorganizar dos fatos que não obedece a uma linearidade. Figura 9 – A carta escrita pelo personagem principal no início da narrativa é reapresentada ao final, em um momento anterior à primeira cena, num exemplo de deslocamento temporal – analepse ou flashback. Fonte: MCPHAIL, David. Não!. São Paulo: Farol Literário, 2011. Título original: No!. 110 Gestual: Talvez o elemento que faça mais referência à técnica da mímica, pois propõe na representação do gesto, da posição corporal, a sugestão de movimento. Neste caso, cabe relembrar os estudos de Lecoq (2010) para o desenho do movimento corporal, e as linhas de ação que orientam a posição do corpo na preparação, antecipação ou execução do movimento. Essas linhas de ação foram estudadas também nos desenhos animados, por exemplo, como reforço à representação do movimento. Em ambos os casos é presente a sugestão do movimento pela representação de uma posição não natural do corpo – que implicaria um esforço enorme ou uma impossibilidade de sustentação. Como no exemplo colocado anteriormente, da ilusão proposta pelo mímico Marcel Marceau de estar apoiado em algum objeto. Essa ilusão é feita por um posicionamento do PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1011889/CA corpo que naturalmente só poderia ser sustentado quando apoiado. Figura 10 – Exemplo de posições corporais que sugerem desequilíbrio e, consequentemente, o movimento, pela impossibilidade de sustentação do corpo nessa posição. Fonte: MORAES, Odilon. O presente. São Paulo: Cosac Naify, 2010. Figura 11 – O corpo do personagem à esquerda da cena inclina-se em direção ao objetivo (alcançar a fruta) assim como a inclinação do personagem segurando a fruta, que sugere um movimento de fuga. Ambos são exemplos de linhas de ação no corpo. Fonte: CÁRCAMO, Gonzalo. Gelo nos trópicos. São Paulo: Companhia das Letrinhas, 2011. 111 Linhas de leitura: As linhas às quais nos referimos no ponto acima, além de se aplicarem ao movimento específico do personagem na ação, também estão associadas à composição geral do quadro. Esse ponto foi abordado com bastante profundidade e exemplos por Rui de Oliveira (2008). As linhas proporcionam um caminho de leitura no qual pode estar presente não só a noção de movimento – inclusive reforçando a linha de ação do corpo do personagem –, mas também a PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1011889/CA ideia de sequência, de continuidade. Figura 12 – Linha construída pela composição, para reforçar a trajetória do movimento na ação. Fonte: MELLO, Roger. A flor do lado de lá. Rio de Janeiro: Salamandra, 1991 Distorção da forma: A distorção da forma tem relação direta com as duas categorias anteriores. No cinema de animação essa distorção é amplamente utilizada e conhecida como sendo um dos princípios da animação tradicional para reforço da representação de movimento: Squash and Stretch. Esse recurso é utilizado tanto na gestualidade do personagem como reforçado pela linha de ação. A esse recurso poderíamos também recuperar a ideia de exagero corporal próprio do personagem Palhaço, para gerar o riso. Tanto no que diz respeito a exageros corporais, na sua construção física e psicológica, como exagero dos movimentos apontados por Freud, no gasto exagerado de energia para executar determinada ação. 112 PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1011889/CA Figura 13 – Distorção do corpo do personagem, representando a queda e sugerindo, assim, movimento. Fonte: BLAKE, Quentin. Clown. EUA: Henry Holt and Company, 1998. Representação pela parte: Também de maneira similar às categorias anteriores, temos a Representação pela parte, que sugere o movimento por uma representação como índice3. Nesse caso poderíamos visualizar alguns exemplos: um elemento que por não ser apresentado de maneira integral sugere uma movimentação – a omissão de determinada parte é consequência de um movimento específico. Ou a posição de uma parte desse elemento só seria possível através do movimento, também como consequência dele. E novamente podemos recorrer às ideias de Freud com relação a economia e condensação. Mostrar somente uma parte do personagem para aludir movimento nos permite ler essa relação como condensação – economia de energia. 3 Fazendo referência à semiótica e os modos de representação – símbolo, ícone e índice. 113 Figura 14 – Pedaço do pé do personagem principal. Exemplo de representação pela parte que sugere a saída do personagem pela direita da cena, numa espécie de coxia do teatro. Fonte: GEDOVIUS, Juan. Trucas. México: FCE, 1997. Figura 15 – Posição do cabelo do personagem, cuja inclinação sugere a movimentação da esquerda para a direita da cena como exemplo de distorção (categoria anterior), e o fogo, que sugere a presença ainda do dragão (apresentado na página anterior). Fonte: GEDOVIUS, Juan. Trucas. México: FCE, 1997. PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1011889/CA Representação Corporal da trajetória: Recurso bastante utilizado na mímica, propõe reproduzir no corpo a trajetória de determinado movimento. A ideia, portanto, é de espelhar o movimento de um elemento em outro – numa espécie de ressonância visual – com intuito de reforçar sua representação. Um bom exemplo desse tipo de representação é com a movimentação de uma plateia que assiste a um jogo de tênis. O movimento do corpo, e principalmente da cabeça, sugerem o movimento da bola. Figura 16 – Personagem segue a fruta acompanhando a direção do movimento da mesma, sugerindo com a cabeça e o corpo a trajetória que ela faria. Fonte: CÁRCAMO, Gonzalo. Gelo nos trópicos. São Paulo: Companhia das Letrinhas, 2011. 114 Repetição do elemento: A repetição neste caso, diferentemente da ideia de narrativa cíclica, é a de reproduzir na mesma cena o elemento (personagem por exemplo) em diferentes posições, que no conjunto sugerem a noção de movimento ou o deslocamento temporal x espacial. Essa categoria difere também da História em Quadrinhos porque não apresenta o recurso dos pequenos quadros que isolam a sequência de movimento. Neste caso, a sequência é apresentada sem nenhum tipo de delimitação formal. Essa categoria foi abordada por Linden de forma esclarecedora. Essa situação, como a autora aborda, trata-se de uma espécie de convenção simbólica comum nos livros ilustrados. E convenções simbólicas PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1011889/CA também serão encontradas nas duas últimas categorias. Figura 17 – A repetição do personagem em diferentes posições sugere diferentes momentos de sua movimentação no espaço. Fonte: KING, Stephen Michael. Folha. trad. Gilda de Aquino. São Paulo: Brinque-Book, 2008. Códigos gráficos: O que chamamos de códigos gráficos são referências específicas a elementos visuais abstratos, que por convenção representam determinado tipo de movimento ou ação. É o caso, por exemplo, de linhas que demarcam a trajetória ou reforçam o movimento, borrões e “nuvens de fumaça” que sugerem a poeira levantada pelo movimento etc. Aqui podemos trazer uma das categorias apresentadas por Nikolajeva & Scott que trata a respeito da interpretação simbólica, transferida, não mimética. 115 Figura 18 – Uso de linhas que representam a trajetória do movimento do personagem, como exemplo de códigos gráficos. Fonte: Idem. Narrativa Cíclica: Incluímos aqui os casos em que foi observada a ideia de repetição da narrativa, ou ideia de um ciclo de tempo contínuo. Classificamos como cíclico ou repetição quando percebemos dentro da narrativa dois trechos bem semelhantes no que diz respeito ao conteúdo da história narrada. O que PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1011889/CA alarga a sensação de tempo da narrativa ou reforça determinada ação. Figura 19 – Cena repetida dentro do livro Um dia, um pássaro…, como exemplo de narrativa cíclica. Fonte: JUNQUEIRA, Sonia & ABU, Angelo. Um dia, um pássaro… São Paulo: Peirópolis, 2009. Um caso específico é o retorno do conflito principal da narrativa ao final da história, o que possibilita a sensação de ciclo completo da narrativa. Ou, quando apresenta o mesmo conflito, mas com características diferentes da primeira narrativa, traz a ideia de continuidade. PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1011889/CA 116 Figura 20 – A cena em que a semente cai na cabeça do personagem principal é repetida ao final da narrativa, mas dessa vez na cabeça do personagem coadjuvante, sugerindo uma continuidade da narrativa. Fonte: KING, Stephen Michael. Folha. trad. Gilda de Aquino. São Paulo: Brinque-Book, 2008. Figura 21 – Outro exemplo de narrativa cíclica. O livro vermelho é perdido e reencontrado repetidamente, por diferentes personagens, sugerindo continuidade. Fonte: LEHMAN, Barbara. Red book. EUA: Houghton Mifflin Company, 2004. 117 Casos extremos que ilustram bem esse último ponto são quando o final da história coincide exatamente com o momento inicial do livro (mesma imagem). Neste caso, podem percebe-se a ideia de um tempo que se repete: analepse PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1011889/CA (flashback) – deslocamento temporal. Figura 22 – Caso exemplar em que a primeira cena da narrativa, no livro Cena de rua, é exatamente a mesma cena do final do livro. LAGO, Angela. Cena de rua. Belo Horizonte: RHJ, 1994. Nessa categoria podemos ver emergir a noção de repetição, colocada tanto por Freud e Bérgson quando analisam o riso, como por Coelho ao enxergar as diferentes questões que envolvem a noção de repetição na sociedade, principalmente na cultura. Reencontraremos a noção de repetição também em Linden e Nikolajeva & Scott, apesar de abordarem a questão da repetição na análise da relação texto e imagem nos livros ilustrados. De todo modo, veremos que tanto nos livros de imagem como nos livros ilustrados a repetição está bastante presente. Onomatopeias: Essa categoria foi propositalmente deixada para o encerramento deste grupo, pois inclui elementos textuais e, portanto, estariam fora do recorte estabelecido por esse trabalho. Porém, optou-se por fazer também uma abordagem sobre essa categoria porque as onomatopeias aqui foram consideradas como códigos visuais abstratos – sem vínculo com nenhum significado específico que não a reprodução sonora. E apesar de serem códigos da linguagem textual não trazem consigo significados denotativos – somente reforçam determinados movimentos, pelo som que representam. Apesar de essa questão ter sido analisada 118 por Linden (2011), aqui pontua-se o uso da onomatopeia como recurso para representação do movimento ou deslocamento espaço x tempo. Figura 23 – Onomatopeias que sugerem o barulho feito pela manipulação da tesoura cortando os cabelos do personagem. Fonte: Idem. PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1011889/CA 4.2 Sugestão de abstração conceitual Nesse conjunto analisaremos a ausência da representação que na cultura caberia ontologicamente à linguagem verbal. Assim, encontraremos as questões voltadas à abstração conceitual que inclui também a atmosfera e o estado de consciência. Isolamento de elemento narrativo: Nessa categoria reúnem-se as situações em que o isolamento de certo elemento gráfico proporciona uma espécie de foco em determinada ação ou situação, bem como o foco em algum conceito abstrato relativo ao personagem – emocional/psicológico. Aqui perceberemos questões discutidas anteriormente no que diz respeito à espetacularização – pela proximidade com o cinema e o teatro e seus recursos, bem como a ideia geral de omissão e redução –, pela ausência de determinada parte do todo da cena. Esse isolamento pode se caracterizar pela ausência do cenário transmitindo a ideia de foco. Recorte de determinada ação ou situação à qual o autor julgou merecer destaque. Encontraremos similaridade novamente no teatro com a ribalta, ou foco de luz que destaca certo elemento ou momento da cena. Também teremos recursos de câmera e de iluminação no cinema que traz semelhante destaque. 119 Figura 24 – Exemplo de ausência de representação do cenário sugerindo o isolamento e a solidão da personagem. Fonte: LEE, Suzy. Espelho. São Paulo: Cosac Naify, 2009 Titulo Original: Mirror Outro tipo de isolamento é o inverso do citado acima, onde a ausência é do PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1011889/CA personagem e o foco está na ambientação e no clima dado à cena. Em muitos casos encontra-se esse recurso na introdução à narrativa. Figura 25 – Exemplo de não representação de personagens, dando foco ao cenário, para representar uma atmosfera de frieza e isolamento. Fonte: LEHMAN, Barbara. Red book. EUA: Houghton Mifflin Company, 2004. Alteração gráfica: Essa categoria diz respeito a uma situação bastante recorrente nos livros analisados. É comum perceber uma mudança de técnica, ou mudanças na paleta de cor, da iluminação, do estilo e diversas outras alterações de ordem gráfica, que proporcionam um estranhamento visual em um determinado trecho da narrativa. Esse estranhamento tem objetivos, em sua maioria, de procurar transmitir questões conceituais ou abstratas: sugestões de mudança de clima ou atmosfera diferente na cena; representação do estado 120 psicológico/emocional da personagem, ou alteração no seu estado de consciência – perspectiva onírica, delírios, fantasias etc. PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1011889/CA Figura 26 – Exemplo de alteração da técnica e das cores, pelo autor, para sugerir o momento de transformação da realidade em fantasia. Fonte: CRUZ, Nelson. Leonardo. São Paulo: Scipione, 2006. Figura 27 – Alteração gráfica para reforçar a sugestão da emoção do personagem – tristeza em tons de cinza e alegria colorida. Fonte: MELLO, Roger. A flor do lado de lá. Rio de Janeiro: Salamandra, 1991. Figura 28 – Recursos gráficos de alteração da paleta de cor como exemplo para representar o sonho do personagem. Fonte: KING, Stephen Michael. Folha. trad. Gilda de Aquino. São Paulo: Brinque-Book, 2008. Gestual: Já vimos anteriormente a possibilidade de transmitir sugestão de movimento pelo gestual. Além disso, veremos nessa categoria a possibilidade de também sugerir conceitos abstratos. Essa sugestão pode ser feita de diferentes maneiras, dentre elas: sequência de imagens – construção visual da emoção da personagem de maneira gradual e sequencial; linguagem corporal – expressões corporais pontuais que sugerem determinada emoção. Sobre isso Lecoq, quando aprofunda o estudo dos quadros mímicos, pontua a tentativa de representar 121 estados emocionais do personagem. (Lecoq, 2010 p. 160) E mais ao final do livro traz alguns desenhos que buscam representar graficamente esses estados PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1011889/CA emocionais/psicológicos no corpo. Figura 29 – Desenhos de Jacques Lecoq representando o estado emocional e psicológico dos personagens pela linguagem gestual (linha de ação). Fonte: LECOQ, JACQUES. O Corpo Poético: Uma pedagogia da criação teatral. Tradução: Marcelo Gomes. São Paulo: Editora SENAC São Paulo: Edições SESC SP, 2010. Título Original: Le corps poétique: un enseignement de la création théatrale. 122 Figura 30 – No exemplo podemos ver as manifestações de apreensão e decepção que acumulam-se sugerindo o resultado do jogo e posteriormente o estado emocional do personagem pela sequência de imagens que representa gestos diferentes. Fonte: MORAES, Odilon. O presente. São Paulo: Cosac Naify, 2010. Figura 31 – Representação do estado emocional dos personagens pela linguagem gestual. Fonte: DOUZOU, Oliver. Esquimó. São Paulo: Hedra, 2007. PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1011889/CA Reforço por semelhança: A maneira como representa os aspectos psicológicos e emocionais do personagem na categoria anterior (através da sequência de imagens e da linguagem corporal) podem ser reforçados na semelhança formal (normalmente com a linha de ação do personagem) de outro elemento igualmente importante na narrativa. Numa espécie de paralelismo, proporcionado pela repetição ou similaridade da forma geral dos dois elementos. Assim novamente podemos trazer aqui a questão da repetição, principalmente quando colocada por Coelho (2000) na ideia de ressonância e por fim de reforço à ação. Figura 32 – Semelhança entre gestualidade do personagem e a forma geral da planta reforçando a representação de alteração do humor. Fonte: KING, Stephen Michael. Folha. trad. Gilda de Aquino. São Paulo: Brinque-Book, 2008. 123 Convenções gráficas: Assim como os códigos gráficos no grupo anterior demonstravam o movimento por convenção, essa categoria busca apontar para a utilização de convenções gráficas para a representação de questões abstratas conceituais. Encontraremos dentre os livros analisados elementos como estrelas, corações, traços, nuvens, raios, que procuram de maneira codificada representar questões abstratas como: tontura, dor, amor, raiva, felicidade etc. Apesar de alguns elementos serem próprios da linguagem gestual, são hoje comumente utilizados pela linguagem gráfica como códigos já estabelecidos e, por isso, enquadrados nessa categoria, como: aperto de mão, braços cruzados ou PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1011889/CA representação de expressões fisionômicas – como o sorriso na figura anterior. Figura 33 – Exemplo de representação de questões emocionais dos personagens por códigos gráficos convencionais. Fonte: PACHECO, Marcelo. O menino, o jabuti e o menino. São Paulo: Panda Books, 2008. Convenções Internas: As convenções gráficas da categoria anterior supõem um conhecimento prévio ao contato com a narrativa. Essa categoria, no entanto, aponta para convenções produzidas dentro da própria narrativa. Isso significa que em alguns casos determinadas imagens na narrativa são construídas e posteriormente utilizadas como códigos no desenvolvimento da própria narrativa. O que dá a entender que fora da narrativa tais códigos não teriam necessariamente o mesmo significado. E por isso, optou-se por chamar convenções internas. A essa convenções estão ligadas as ideias de Barthes – no sentido de absorção dos códigos pela linguagem e também seu fator de repetição. Repetição que traz em si o reconhecimento e, portanto, a possibilidade do funcionamento do código. E somado a ele podemos pontuar tanto Burnier (improvisação codificada), Freud (repetição) e Bérgson (vício), que apontam para a repetição como codificação que proporciona o riso. Bem como Coelho pelo prazer cultural do reconhecimento na repetição. PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1011889/CA 124 Figura 34 – Exemplo de referência a um momento da narrativa, pelo uso repetido da imagem, apresentada anteriormente, dos bonecos no cesto de lixo. Exemplo de convenção interna da narrativa. Fonte; BLAKE, Quentin. Clown. EUA: Henry Holt and Company, 1998. Distorção formal: Similar à categoria do conjunto anterior, essa distorção tem o objetivo de sugerir questões abstratas conceituais pelo estranhamento. Poderíamos perceber deformações na ordem da proporção – o tamanho de um personagem apresenta-se de maneira desproporcional em relação aos outros, ou ao espaço: como possibilidade de sugestão de força, liderança, imposição e ameaça (grande), ou no contrário (menor) medo, vergonha, por exemplo. Na ordem da forma – sugestão de estados psicológicos emocionais pela deformação física: deformação da expressão facial, deformações corporais, inclusive mesclando as características físicas originais da personagem com aspectos monstruosos, animalescos, grotescos. E metafórica – representação total do personagem por um objeto, animal ou outro elemento que sugira que a condição emocional/psicológica do personagem seja parecida com as características do elemento metafórico escolhido para sua representação. A essas deformações podemos relembrar os aspectos grotescos analisados por Bakhtin (1993), que estão intimamente ligados ao personagem palhaço. Bem como a ideia de alusão e 125 duplo sentido colocadas por Freud (2006), além, é claro, das múltiplas leituras pontuadas pelos diversos autores voltados à Literatura Ilustrada. E por fim, à noção de espetacularização e ao modo de interpretação não mimética, simbólica e transferida, apresentada por Nikolajeva & Scott (2011). PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1011889/CA Figura 35 – Distorção formal da personagem para sugerir seu estado emocional. Fonte: LAGO, Angela. Cena de rua. Belo Horizonte: RHJ, 1994. Figura 36 – Fonte: Idem. Representação de personagens como animais, para sugerir estado emocional. 4.3 Ausência na Imagem Neste último grupo, analisaremos a ausência de elementos próprios à linguagem visual. Curiosamente encontraremos também a ausência nos aspectos físicos e de representação espacial – neste trabalho entendidos como próprios à linguagem visual. Alguns deles já pontuamos anteriormente, mas com objetivos de suprir a falta de alguma das outras duas linguagens apontadas. Nesse caso específico temos a ausência da linguagem visual sem, contudo, uma relação direta 126 com representação de movimento ou questões abstratas. E é por conta dessa singularidade que emergiu a organização desse grupo. Ausência pelo ponto de vista: Entende-se que nessa categoria alguns elementos da narrativa ficam fora do quadro. Essa omissão é entendida como um recorte da realidade – onde nem toda a cena é mostrada, apenas uma parte que interessa à narrativa (por opção ou limitação do quadro), revelada em momento oportuno ou gradualmente. Aqui estão pontuadas questões como omissão e condensação, bem como acabamento e complementaridade. Quando se trata do recorte pela opção do autor, está embutida nessa questão a noção de onisciência do narrador. E nessa omissão e revelação a noção de expectativa e surpresa PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1011889/CA colocadas por Bérgson. Figura 37 – Dois exemplos na mesma obra de ausência pelo ponto de vista. No primeiro exemplo, o que aparentemente parecia ser uma pedra, na mudança de perspectiva revelou-se uma baleia. Em seguida, o deslocamento do ponto de vista do quadro revelou diversas flores próximas ao personagem sem que ele desse conta do fato. Fonte: MELLO, Roger. A flor do lado de lá. Rio de Janeiro: Salamandra, 1991. Omissão por recursos do suporte: Esse tipo de omissão/revelação pode ser proporcionado por recursos do suporte livro, que permitem esconder/mostrar determinados elementos – dobras, pop-ups, facas, entre outros. 127 Figura 38 – Dobra na página que esconde/revela determinado espaço dentro da narrativa. Fonte: MERVEILLE, David. Na garupa do meu tio. São Paulo: Cosac Naify, 2009. Titulo original: Le Jacquot de Monsieur Hulot. Tanto a Omissão por recursos do suporte como a Ausência pelo ponto de vista podem proporcionar surpresa – na revelação de algum elemento ou personagem que estava presente mas não era mostrado pelo quadro, ou na PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1011889/CA reelaboração da significação da cena pela revelação da parte omitida. Figura 39 – Neste exemplo o livro é apresentado com imagens compostas pela sobreposição de duas outras imagens. A obra é acompanhada por um acetado com tarjas, que ao colocá-lo sobre a imagem, permite a visualização das imagens separadamente, possibilitando assim seu reconhecimento. Fonte: FOLL, Dobroslav. Assim ou Assado?. São Paulo: Cosac Naify, 2011. Título Original: Co se cemu podobá?. Ausência total ou parcial da imagem: A ausência total de elementos na página podem sugerir pausa, interrupções ou silêncio. A ausência total ou parcial (como o exemplo da retirada total do cenário) pode proporcionar a ideia de metalinguagem, por representar a materialidade do suporte (papel) em sua condição original – lacuna original. 128 PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1011889/CA Figura 40 – Ausência total do cenário (brancura e rasgo do papel) como proposta de metalinguagem. Fonte: MARCEAU, Marcel & GOLDSTONE, Bruce. Bip in Book. EUA: Stewart, Tabori & Chang, 2001. Figura 41 – Representações de partes amassadas e queimadas da página, reforçando a ausência que remete à materialidade do suporte (papel). Fonte: GEDOVIUS, Juan. Trucas. México: FCE, 1997. Em alguns casos foi importante pontuar a mesma categoria em mais de um grupo, por proporcionar questões específicas relativas àquele conjunto. O que isso demonstra é que um elemento ou recurso específico pode apontar para objetivos diferentes. Pode propor noções e ideias de diversas ordens. Assim, podemos então afirmar que essa organização não exclui a possibilidade de sobreposições entre as categorias analisadas, nem muito menos a conjunção de diferentes categorias no mesmo elemento. O que implica dizer que essa organização deu-se em função de uma proposta de análise que leva em consideração uma delimitação imprecisa das categorias e a possibilidade de outros olhares e outras categorias possíveis. O que se espera, portanto, com esses três conjuntos é abarcar uma quantidade de categorias que permitam analisar os livros de imagem no seu desafio original de narrar uma história sem o texto escrito. Procurando através da 129 perspectiva da ausência, buscar representar somente na linguagem visual questões que estariam ligadas ontologicamente às outras duas linguagens – verbal ou gestual. E ainda, para finalizar, buscar, na perspectiva da ausência, analisar a omissão da própria linguagem visual no objeto cuja proposta é narrar somente por PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1011889/CA imagens. 130 5. Considerações finais O desafio maior deste trabalho foi procurar estudar e analisar a narrativa em um suporte onde a linguagem textual não estivesse presente. Encaramos o desafio por acreditar que a linguagem visual pode dar conta de proporcionar uma experiência narrativa e que esta experiência pode trazer contribuições, evidenciando como foco diferenciado um olhar não para o texto escrito ou falado – como tradicionalmente se fez ao longo dos diversos estudos nessa área –, mas um olhar justamente sobre a ausência da linguagem textual na narrativa. Admitimos que mesmo na ausência do texto escrito as imagens conduzem a uma experiência que acaba por resultar muitas vezes em uma produção verbal. E que assim, mesmo procurando trabalhar sob a ótica da ausência da linguagem PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1011889/CA gestual, ela tornava a se manifestar. Por outro lado, pode-se também perceber que essa questão não se restringe apenas à Literatura Ilustrada, nem ao Livro de Imagem. Quando nos deparamos com livros que narram unicamente pelo texto, também encontramos exemplos de produção imagética (imaginação) de ambientes, personagens, cenários etc. Assim, portanto, ao olhar para os objetos que nos propusemos a analisar, encontramos na narrativa imagética do Livro de Imagem e no contraponto com a narrativa gestual, corporal, do Palhaço Mímico uma espécie de carência. Uma lacuna deixada pela linguagem textual, que, porém, não impossibilitava a narrativa. Desdobrando esse cenário, pudemos também perceber que na linguagem textual, portanto, igualmente encontraríamos a carência deixada pela linguagem visual. E que ambas ficavam esvaziadas de movimento – característica mais comumente encontrada na linguagem gestual. Assim, no cruzamento entre as linguagens gestual, textual e visual, pudemos pontuar questões próprias ontologicamente a cada uma dessas linguagens, e que em sua ausência, era preciso recorrer a recursos que sugerissem ou aludissem, maneiras de preencher essa lacuna. Com isso, pudemos olhar para o Livro de Imagem como objeto de análise e verificar nas construções narrativas propostas em cada um deles que recursos eram identificados como recorrentes, para então categorizá-los. Apesar do fato deste trabalho focar o Livro de Imagem como objeto de estudo, e as análises 131 estarem voltadas para esse tipo de livro, acredito que as reflexões, as questões levantadas e as categorias possam contribuir não só para o Livro de Imagem mas para os Livros Ilustrados de maneira geral, bem como para o Palhaço Mímico e às Artes Cênicas. E acredita-se, como possível desdobramento deste estudo, que uma análise sobre as construções narrativas no Palhaço Mímico, assim como feita no Livro de Imagem, pode também trazer novas contribuições para estudo da Narrativa, da Literatura Ilustrada e, por fim, à Comunicação Visual e ao Design. Pelas três linguagens citadas fazerem parte da minha trajetória e prática profissional – como ator, palhaço, ilustrador, autor, designer –, e pela interação possível entre elas, vista neste trabalho, bem como o melhor entendimento sobre a narrativa, este estudo também contribuiu e contribuirá pessoalmente para minha formação e para um aprimoramento do meu fazer artístico. Cabe repetirmos que a perspectiva da ausência não se constitui como PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1011889/CA exclusiva possibilidade de visão sobre a narrativa visual. Outras formas de ver o Livro de Imagem serão igualmente ou mais importantes para a compreensão maior do universo da narrativa. Aproveitamos para pontuar que a perspectiva da ausência também pode ter seu desdobramento em estudos voltados para outras áreas, objetos e linguagens. Assim, espera-se que cada vez mais tenhamos trabalhos voltados à narrativa e principalmente à imagem. Cabe pontuarmos e agradecermos a colaboração dos autores citados neste trabalho. Principalmente aqueles que voltaram seu olhar para a imagem narrativa, a ilustração e o palhaço, pela carência de publicações nessas áreas. E também registrar a surpresa primorosa provocada pelos lançamentos de livros teóricos no Brasil nos últimos anos e principalmente durante o desenvolvimento deste trabalho. Obras fundamentais para esta pesquisa e para a redução do descompasso apontado no início deste trabalho entre os estudos da linguagem visual e textual voltados à narrativa. Espera-se, ao final, que este trabalho tenha realmente contribuído para todas as questões a que se propôs no início do seu desenvolvimento, como contribuiu para o meu aprendizado e aprimoramento profissional durante a sua realização. 132 6. Referencias bibliográficas 1. ARGAN, Giulio Carlo. Projeto e destino. trad. Marcos Bagno. São Paulo: Editora Ática, 2000. Título original: Proggeto e destino. 2. ARISTÓTELES. Arte Poética. Trad. Pietro Nassetti, São Paulo, Editora Martin Claret, 2004. Título original: Art Poétique 3. ASMANN, Hugo & SUNG, Jung Mo. Competências e sensibilidade solidária. Educar para a esperança. Petrópolis: Vozes, 2000. 4. BAKHTIN, Mikhail. Estética da Criação Verbal. Trad. Paulo Bezerra. - São PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1011889/CA Paulo: Martins Fontes, 2003. Título original: Estetika Sloviésnova Tvórtchestva. A Cultura Popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais. Brasília: Ed. da Universidade de Brasília, 1993. 5. BARTHES, Roland. O Impérios dos Signos, Trad. Leyla Perrone-Moisés. São Paulo: Martins Fontes, 2007. Título original: L'empire des signes. Aula. Editora Cultrix, São Paulo: 1988 O Neutro, trad. Ivone Castilho Benedetti. - São Paulo: Editora Martins Fontes, 2003. Título original: Le neutre. 6. BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política, trad. Sergio Paulo Rouanet. - São Paulo, Editora Brasiliense, 1987. Título original:Auswahl in drei Baenden. 7. BERGSON, Henri. O Riso – Ensaio sobre a significação da comicidade. trad. Ivone Castilho Benedetti São Paulo: Martins Fontes, 2007. Título original: Le rire. 8. BOLOGNESI, Mario Fernando. Palhaços. São Paulo: Ed. Unesp, 2003. _______________________ Circo e Teatro: aproximações e conflitos. Sala Preta, São Paulo, N.6, p. 9-26, 2006. 9. BURNIER, Luis Otávio. A arte de Ator: da técnica à representação. Campinas: Editora da UNICAMP, 2009 133 10. CALVINO, Ítalo. Seis propostas para o próximo milenio. trad. Ivo Barroso. - São Paulo, Cia das Letras, 1990. Título original: Lezioni americane – Sei proposte per il prossimo millennio. 11. CAMARGO, Luis. Ilustração do livro infantil. Belo Horizonte: Editora Lê, 1995. 12. COELHO, Nelly Novaes. Literatura Infantil: teoria, análise, didática. São Paulo: Editora Moderna, 2000. 13. COMTE-SPONVILLE, André. Pequeno Tratado das grandes virtudes. trad. Eduardo Brandão. – São Paulo: Martins Fontes, 1995. Título original: Petit traité des grandes vertus. 14. ECO, Umberto. Seis Passeios pelos Bosques da Ficção. trad. Hildegard Feist. – São Paulo, Cia das Letras, 1994. Título original: Six walks in the fictional woods. PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1011889/CA 15. ECO, Umberto. Obra Aberta. Editora Perspectiva. trad. Giovanni Cutolo. – São Paulo: 2005. Título original: Opera aperta. 16. FERRACINI, Renato. A arte de não representar como poesia corpórea do ator. Campinas: Editora da Unicamp, 2003. 17. FERRACINI, Renato. As setas Longas do Palhaço. Sala Preta, São Paulo, N.6, p. 65-69, 2006. 18. FERRARO, Mara Rosângela. O livro de imagens e as múltiplas leituras que a criança faz do seu texto visual, Campinas, SP, 2001. 19. FO, Dario; Manual Mínimo do Ator. Org. Franca Rame. Trad. Lucas Baldovino e Carlos David Szlak. – São Paulo: Editora Senac São Paulo, 2004. Título original: Manuale minimo dell'atore. 20. FREUD, Sigmund. Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, v. VIII - Os Chistes e sua relação com o incosciente. trad. Jayme Salomão. – Rio de Janeiro: Ed. Imago, 2006 21. GANCHO, Cândida Vilares. Como analisar narrativas, São Paulo, Ed. Ática, 2006. 22. HONNETH, Axel. Luta por reconhecimento. São Paulo: Ed. 34, 2009. 23. HUNT, Peter. Crítica, teoria e literatura infantil. trad. Cid Knipel. – São Paulo: Editora Cosac Naif, 2010. Título original: Criticism, Theory and Children's Literature. 134 24. LAHUD, Michel. A vida clara. Linguagens e realidades segundo Pasolini. - São Paulo, Companhia das Letras/Editora da UNICAMP, 1993. 25. LECOQ, Jacques O Corpo Poético - Uma pedagogia da criação teatral. Tradução: Marcelo Gomes. São Paulo: Editora SENAC São Paulo: Edições SESC SP, 2010. Título Original: Le corps poétique: un enseignement de la création théatrale. 26. LINDEN, Sophie Van der. Para ler o livro ilustrado. trad. Dorothée de Bruchard. São Paulo: Editora Cosac Naif, 2011. Título original: Lire l'album. 27. LYOTARD, Jean-François. A Condição Pós-Moderna. trad. Ricardo Corrêa Barbosa. Editora José Olympio, Rio de Janeiro: 2006. Título original: La condition postmoderne. 28. MACHADO, Arlindo. Pré-cinema & pós-cinema. Campinas: Papirus, 1997. 29. MAFFESOLI, Michel. Elogio da razão sensível. Petrópolis: Vozes, 2005. PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1011889/CA 30. MANGUEL, Alberto. Lendo Imagens: uma história de amor e ódio. trad. Rubens Figueiredo, Rosaura Eichemberg, Cláudia Strauch. – São Paulo, Cia das Letras, 2001. Título original: Reading pictures: a history of love an hate. 31. NIKOLAJEVA, Maria & SCOTT, Carole. Livro ilustrado: palavras e imagens. trad. Cid Knipel. – São Paulo: Editora Cosac Naif, 2011. Título original: How Picturebooks Work. 32. NODELMAN, Perry. Words about pictures. Athens, The University of Georgia Press, 1988. 33. OLIVEIRA, Rui de. Pelos Jardins Boboli – reflexões sobre a arte de ilustrar livros para crianças e jovens. Editora Nova Fronteira, Rio de Janeiro, 2008. 34. ORLANDI, Eni P. Análise de Discurso. Campinas: Editora Pontes, 2005. 35. PASOLINI, Pier Paolo. Os Jovens Infelizes. Antologia de ensaios corsários. Org Michel Lahud. Tradução: Michel Lahud e Maria Betânia Amoroso. - São Paulo, Editora Brasiliense, 1990. Título original: Scritti Corsari. 36. PRIGOGYNE, Ilya. O reencantamento do mundo. In: MORIN, Edgar; PRIGOGYNE, Ilya (Eds.). A sociedade em busca de valores. Para fugir à alternativa entre cepticismo e dogmatismo. Lisboa: Instituto Piaget, 1998. 37. REIS, Carlos & LOPES, Ana Cristina M. Dicionário de Teoria da Narrativa. São Paulo: Editora Ática, 1988. 135 38. ROMANO, Lúcia. O teatro do corpo manifesto: Teatro Físico. São Paulo: Editora Perspectiva, 2008. 39. SALISBURY, Martin. Illustrating Children’s Book, New York, Barron´s, 2004. 40. SCHILLEBEECKX, Edward. Deus e homem. São Paulo: Paulinas, 1980. 41. PIERUCCI, Antônio Flavio. O Desencantamento do mundo. Todos os passos do conceito de Max Weber. São Paulo: Editora 34, 2004 42. SHULEVITZ, Uri. Writing with pictures, New York, Watson-Guptill publications, 1985. 43. SOUZA, Solange Jobim e (org.). Mosaico: imagens do conhecimento. Rio de Janeiro: Rios Ambiciosos, 2000. 44. STANISLAVSKI, Constantin. A construção da personagem. trad. Pontes de Paula Lima. – Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1996. Título original: PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1011889/CA Building a character. 45. TODOROV, Tzvetan. As Estruturas Narrativas, São Paulo, Perspectiva, 2006. 46. VASCONCELLOS, Luiz Paulo. Dicionário de Teatro. Porto Alegre: L&PM, 2009. 47. VATTIMO, Gianni. Depois da cristandade. Por um cristianismo não religioso. Rio de Janeiro: Record, 2004. 48. ZYLBERMAN, Regina. Como e por que ler a literatura infantil brasileira. Rio de Janeiro: Objetiva, 2005. 136 Anexos Anexo I - Referências bibliográficas dos livros analisados ALEXANDRINO, Helena. O caminho do caracol. São Paulo: Studio Nobel, 1998. BANYAI, Istvan. O outro lado. Trad Daniel Bueno.São Paulo: Cosac Naify, 2007. Título Original: The ohter side. BANYAI, Istvan. Zoom. trad. Gilda de Aquino. Rio de Janeiro, Brinque-Book, 1995. BLAKE, Quentin. Clown. EUA: Henry Holt and Company, 1998. BORGES, Gustavo & KONDO, Daniel. Tchibum! São Paul: Cosac Naify, 2009. PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1011889/CA BRENMAN, Ilan & MARCONI, Renato. Telefone sem fio. São Paulo: Companhia ds Letrinhas, 2010. CÁRCAMO, Gonzalo. Gelo nos trópicos. São Paulo: Companhia das Letrinhas, 2011. CARVALHO, Miguel. Dia do Mar… Belo Horizonte: RHJ, 2011. CASTANHA, Marilda. Pula Gato! São Paulo: Scipione, 2008. CIPIS, Marcelo. Move tudo! São Paulo: Companhia das Letrinhas, 2011. CRUZ, Nelson. A árvore do Brasil. São Paulo: Peirópolis, 2009. CRUZ, Nelson. Leonardo. São Paulo: Scipione, 2006. CRUZ, Nelson. Noel. São Paulo: Scipione, 2007. DOUZOU, Oliver. Esquimó. São Paulo: Hedra, 2007. FOLL, Dobroslav. Assim ou Assado? São Paulo: Cosac Naify, 2011 Titulo Original: Co se cemu podobá? GEDOVIUS, Juan. Trucas. México: FCE, 1997. GOFFIN, Josse. Oh! São Paulo: Martins Fontes, 1995. JUNQUEIRA, Sonia & ABU, Angelo. Um dia, um pássaro… São Paulo: Peirópolis, 2009. KING, Stephen Michael. Folha. trad. Gilda de Aquino. São Paulo: Brinque-Book, 2008. LAGO, Angela. Cena de rua. Belo Horizonte: RHJ, 1994. LEE, Suzy. Espelho. São Paulo: Cosac Naify, 2009 Titulo Original: Mirror LEE, Suzy. Sombra. São Paulo: Cosac Naify, 2010. Titulo Original: Shadow 137 LEHMAN, Barbara. Red book. EUA: Houghton Mifflin Company, 2004. MARCEAU, Marcel & GOLDSTONE, Bruce. Bip in Book. EUA: Stewart, Tabori & Chang, 2001. MARTINS, Cláudio. No fim do mundo muda o fim. Belo Horizonte: Dimensão, 2004. MCPHAIL, David. Não! São Paulo: Farol Literário, 2011. Título original: No! MELLO, Roger. A flor do lado de lá. Rio de Janeiro: Salamandra, 1991. MERVEILLE, David. Na garupa do meu tio. São Paulo: Cosac Naify, 2009. Titulo original: Le Jacquot de Monsieur Hulot. MORAES, Odilon. O presente. São Paulo: Cosac Naify, 2010. NEVES, André. Brinquedos. São Paulo: Mundo Mirim, 2009. OLIVEIRA, Rui de & Luciana Sandroni. Chapeuzinho vermelho, e outros contos por imagem. São Paulo: Companhia das Letrinhas, 2002. PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1011889/CA OLIVEIRA, Rui de. Max Emiliano. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2009. OLIVEIRA, Rui de. Uma história de amor sem palavras. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2009. OMMEN, Sylvia van. La sorpresa. México: FCE, 2004. Titulo Original: De verrassing PACHECO, Marcelo. O menino, o jabuti e o menino. São Paulo: Panda Books, 2008. PIMENTEL, Marcelo. O fim da fila. Rio de Janeiro: Rovelle, 2011. RENNÓ, Regina. Catador de palavras. São Paulo: Paulus, 2011. TURK, Hanne. Filipe. São Paulo: Martins Fontes, 1987. Titulo Original: Philipp und die Kunst. VILELA, Fernando. A toalha vermelha. São Paulo: Brinque-Book, 2007. VINCENT, Gabrielle. A pequena marionete. São Paulo: Ed. 34, 2007.