Miguel Santos de Carvalho Livro de Imagem e Palhaço Mímico

Transcrição

Miguel Santos de Carvalho Livro de Imagem e Palhaço Mímico
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1011889/CA
Miguel Santos de Carvalho
Livro de Imagem e Palhaço
Mímico: Narrativas sem palavras?
Estudo sobre a construção narrativa
por imagem
DISSERTAÇÃO DE MESTRADO
DEPARTAMENTO DE ARTES E DESIGN
Programa de Pós-Graduação em Design
Rio de Janeiro
Abril de 2012
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1011889/CA
Miguel Santos de Carvalho
Livro de Imagem e Palhaço Mímico: Narrativas
sem palavras? Estudo sobre a construção
narrativa por imagem
Dissertação de Mestrado
Dissertação apresentada como requisito parcial para
obtenção do grau de Mestre pelo Programa de Pósgraduação em Design do Departamento de Artes &
Design da PUC-Rio.
Orientador: Prof. Nilton Gonçalves Gamba Jr.
Rio de Janeiro
Abril de 2012
Miguel Santos de Carvalho
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1011889/CA
Livro de Imagem e Palhaço Mímico:
Narrativas sem palavras? Estudo sobre a
construção narrativa por imagem
Dissertação apresentada como requisito parcial
para obtenção do grau de Mestre pelo Programa
de Pós-Graduação em Design do Centro de
Teologia e Ciências Humanas da PUC-Rio.
Aprovada pela Comissão Examinadora abaixo
assinada.
Prof. Nilton Gonçalves Gamba Jr.
Orientador
Departamento de Artes & Design – PUC-Rio
Prof. Luiz Antonio Luzio Coelho
Departamento de Artes & Design – PUC-Rio
Prof. Rui Gonçalves de Oliveira
Escola de Belas Artes – UFRJ
Profa. Denise Berruezo Portinari
Coordenadora Setorial do Centro de Teologia e
Ciências Humanas da PUC-Rio
Rio de Janeiro, 3 de Abril de 2012
Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução total ou
parcial do trabalho sem autorização da universidade, do autor
e do orientador.
Miguel Santos de Carvalho
Graduado em Desenho Industrial, com habilitação em
Programação Visual pela Escola de Belas Artes da
Universidade Federal do Rio de Janeiro e Pós-Graduado em
Literatura Infanto-Juvenil pela Universidade Federal
Fluminense. Membro do Laboratório de Design de Histórias
da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro desde
2006. Participou de diversas exposições e tem 6 livros
publicados como Autor/Ilustrador.
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Ficha Catalográfica
Carvalho, Miguel Santos de
Livro de imagem e palhaço mímico : narrativas
sem palavra? : estudo sobre a construção narrativa por
imagem / Miguel Santos de Carvalho ; orientador: Nilton
Gonçalves Gamba Jr. – 2012.
137 f. : il. (color.) ; 30 cm
Dissertação (mestrado)–Pontifícia Universidade
Católica do Rio de Janeiro, Departamento de Artes e
Design, 2012.
Inclui bibliografia
1. Artes e design – Teses. 2. Livro de imagem.
3. Palhaço mímico. 4. Teatro. 5. Livro ilustrado. 6.
Ausência. 7. Linguagem. 8. Discurso. 9. Narrativa. I.
Gamba Jr., Nilton Gonçalves. II. Pontifícia Universidade
Católica do Rio de Janeiro. Departamento de Artes &
Design. III. Título.
CDD: 700
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Dedico este estudo
ao meu primeiro sobrinho,
que já está a caminho.
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Agradecimentos
Ao meu orientador professor Nilton Gamba Jr. pelas palavras de conforto nos
momentos de desespero e as palavras desesperadoras nos momentos de conforto.
Também pela delicadeza, gentileza e generosidade com que orientou este
trabalho.
À minha mãe e ao meu pai pelo amor, educação e orientação de vida.
Às minhas irmãs Mariana e Juliana, pelo companheirismo em todos os momentos,
e ao meu cunhado Márcio por complementar a família de maneira exemplar.
À Luisa Pitta, pelo amor, carinho e companheirismo com que me acompanhou,
apoiou e ajudou com seus dotes fotográficos, no percurso dessa jornada.
Ao CNPq e à PUC-Rio, extendido aos seus funcionários, pelos auxílios
concedidos, que foram de fundamental importância para a realização deste
trabalho.
Aos amigos que apoiaram, torceram e possibilitaram momentos de descontração e
alegria, sem os quais seria penoso o caminho até aqui: Eliane Garcia, Claudia
Bolshaw, Juju e Carol Bolshaw, Fernando Macedo, Daniel Dias, Gustavo Falcão,
Juliana Feres, Cláudio Bittencourt, Rejane Spitz, Graça Chagas e Gabriel Gabiru.
Ao Laboratório de Design de histórias, e a todos os seus integrantes, pela acolhida
mesmo antes do curso e pelo enorme aprendizado e troca nos nossos encontros.
Ao Daniel Malaguti pela indicação do curso, do orientador e pelo apoio ao longo
de toda a minha trajetória dentro dessa universidade.
Aos colegas de sala, pois compartilhamos as angustias e alegrias de dividir o
mesmo espaço e lutar juntos pelo mesmo desafio.
Ao amigo Gustavo Cassano por me emprestar suas habilidades fotográficas e seu
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estúdio para a produção das fotos usadas neste trabalho. Aos amigos Rolf
Bateman, Antônio Belchior, Eduardo Cuducos, Andréa Elias e Norberto Presta
pelo apoio e ajuda. Em especial ao amigo Rodrigo Raro pela revisão veloz e
eficaz. E a todos os outros que de maneira indireta contribuíram para o trabalho.
Aos professores das disciplinas, em especial Solange Jobim, Eliana Yunes e
Denise Portinari pela fundamentação deste trabalho, e ao Rui de Oliveira, meu
mestre em ilustração ainda na Escola de Belas Artes.
A todos que apostaram no sucesso dessa empreitada, com cartas de indicação.
E à banca examinadora pela dedicação em ler e avaliar este trabalho.
Àqueles que por descuido eu tenha esquecido, também meu sinceros
agradecimentos.
Resumo
Carvalho, Miguel Santos de; Gamba Jr., Nilton Gonçalves. Livro de
Imagem e Palhaço Mímico: Narrativas sem palavras? Estudo sobre a
construção narrativa por imagem. Rio de Janeiro, 2012. 137p.
Dissertação de Mestrado – Departamento de Artes e Design, Pontifícia
Universidade Católica do Rio de Janeiro.
Pesquisa sobre narrativa visual que tem por objeto de estudo o Livro de
Imagem. A proposta é uma análise baseada na hipótese de uma proximidade entre
a Ilustração e as Artes Cênicas. A escolha do Livro de Imagem tem um
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contraponto na área das Artes Cênicas, o Palhaço Mímico. Tal escolha deu-se em
função da característica similar entre os dois objetos: a ausência do texto
representado pela linguagem verbal. Esta abordagem consiste em analisar o Livro
de Imagem sob a perspectiva dessa ausência textual como alternativa à tradição da
teoria e crítica narrativa que privilegia o texto verbal.
Palavras-chave
Livro de Imagem, Palhaço Mímico, Teatro, Livro Ilustrado, Ausência,
Linguagem, Discurso e Narrativa.
Abstract
Carvalho, Miguel Santos de; Gamba Jr., Nilton Gonçalves (Advisor)
Picturebook and Clown Mime: wordless narrative? Study about the
narrative construction by image. Rio de Janeiro, 2012. 137p. MSc.
Dissertation – Departamento de Artes e Design, Pontifícia Universidade
Católica do Rio de Janeiro.
Research on the visual narrative that has as its object of study the
Picturebook. The proposal is an analysis based on the hypothesis of a proximity
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between the Illustration and the Performing Arts. The choice of Picturebook has a
counterpoint in the area of Performing Arts, the Clown Mime. This choice was
made because of the similar characteristics between the two objects: the text
represented by the absence of verbal language. This approach involves analyzing
the picture book from the perspective of textual absence as an alternative to the
tradition of critical and theory of narrative that privileges the verbal text.
Key-words
Picturebook, Clown Mime, Theatre, Illustrated Book, Absense, Language,
Discourse and Narrative.
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Sumário
1. Introdução
14
2. Ausência, uma abordagem
21
2.1 Linguagem, Discurso e Narrativa
27
2.2 Inclinação Afirmativa da Linguagem
37
2.3 Um olhar para a ausência
42
3. Livro de Imagem e Palhaço Mímico
511
3.1 Marginalização
544
3.2 Gênero e Exclusão
70
3.3 Imagem e texto
812
4. Categorias de Análise
1012
4.1 Relação espaço e tempo na imagem
1045
4.2 Sugestão de abstração conceitual
1168
4.3 Ausência na Imagem
1235
5. Considerações finais
130
6. Referencias bibliográficas
132
7. Anexos
1336
Lista de figuras
Figura 1 – Oficina Designers da Alegria em Vitória/ES e Brasília/DF....... 53
Figura 2 – The Old Garden (1894) e Le Calife Cigogne (1948)................ 55
Figura 3 – Idéias de Jéca Tatu (1948) e A Bolsa Amarela (1976)......... . 556
Figura 4 – Arlechino e Pierrot (Pagliaccio ou Clown) ............................. 612
Figura 5 – Billy Vaughn (Augusto) e Mike Snider (Branco)..................... 634
Figura 6 – Teotônio (Augusto) e Carolino (Branco) – LUME Campinas/SP .
............................................................................................................... . 634
Figura 7 – Marcel Marceau....................................................................... 84
Figura 8 – Exemplo de sequência de imagens e códigos convencionais .....
..................................................................................................................
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834
Figura 9 – Esquema ilustrativo da relação das linguagens – Visual, ............
Textual e Gestual; e a natureza dos signos em questão – Iconicidade,.......
Abstração e Movimento. ......................................................................... 100
Figura 10 – Tabela da relação entre as linguagens e questões próprias à ..
narrativa...................................................................................... .......... 1023
Figura 11 –Sugestão de movimento do quadro................................... 1045
Figura 12 – Exemplo de ponto fixo ....................................................... 1056
Figura 13 – Exemplo de âncora ............................................................ 1057
Figura 14 – Exemplo de âncora .............................................................. 106
Figura 15 – Exemplo de quadro fixo ....................................................... 106
Figura 16 – Exemplo História em quadrinhos ......................................... 107
Figura 17 – Exemplo de plano e contraplano ......................................... 108
Figura 18 – Exemplo de deslocamento temporal – analepse ou .. flashback
.......................................................................................... ...................... 110
Figura 19 – Exemplo de posições corporais ........................................... 109
Figura 20 – Exemplos de linhas de ação no corpo ................................. 109
Figura 21 – Linha construída pela composição ...................................... 110
Figura 22 – Distorção do corpo do personagem ..................................... 110
Figura 23 – Exemplo de representação pela parte ................................. 111
Figura 24 – Exemplo de distorção .......................................................... 111
Figura 25 – Linhas de direção do movimento ......................................... 112
Figura 26 – A repetição do personagem em diferentes posições ........... 113
Figura 27 – Uso de linhas como exemplo de códigos gráficos. .............. 113
Figura 28 – Exemplo de narrativa cíclica. ............................................... 114
Figura 29 – Sugestão de continuidade da narrativa. .............................. 114
Figura 30 – Exemplo de narrativa cíclica. ............................................... 115
Figura 31 – Exemplo de narrativa cíclica ................................................ 115
Figura 32 – Onomatopeias ..................................................................... 116
Figura 33 – Exemplo de ausência de representação do cenário ............ 117
Figura 34 – Exemplo de não representação de personagens ................ 117
Figura 35 – Exemplo de alteração da técnica e das cores ..................... 118
Figura 36 – Alteração gráfica .................................................................. 118
Figura 37 – Recursos gráficos de alteração da paleta de cor ................. 118
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Figura 38 – Desenhos de Jacques Lecoq............................................... 119
Figura 39 – Sequência de gestos ........................................................... 119
Figura 40 – Representação do estado emocional pela linguagem ...............
gestual ................................................................................................... .....................122
Figura 41 – Semelhança na gestualidade .............................................. 120
Figura 42 – Exemplo códigos gráficos convencionais ............................ 121
Figura 43 – Exemplo de convenção interna da narrativa ........................ 122
Figura 44 – Distorção formal da personagem ......................................... 123
Figura 45 – Representação de personagens como animais ................... 123
Figura 46 – Dois exemplos de ausência pelo ponto de vista. ................. 124
Figura 47 – Dobra na página que esconde/revela determinado espaço .......
dentro da narrativa ................................................................................. 124
Figura 48 – Exemplo de recursos do suporte. ........................................ 125
Figura 49 – Ausência total do cenário .................................................... 125
Figura 50 – Representações da materialidade do suporte (papel) ........ 125
13
1.
Introdução
A pesquisa que resulta neste trabalho dedica-se a aprofundar os estudos
sobre o Livro de Imagem – objeto específico caracterizado por uma sequência de
imagens, sem veiculação de texto escrito, com conteúdo narrativo, organizada no
suporte livro. O interesse por esse objeto e, portanto, pela possibilidade narrativa
das imagens, nasce em meio ao curso de Programação Visual na Escola de Belas
Artes da Universidade Federal do Rio de Janeiro durante os estudos em ilustração
para livros, coordenados pelo professor Dr. Rui de Oliveira1.
O interesse pela possibilidade de contar histórias através das imagens
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conduziu a uma busca por complementar a formação, até então estritamente
visual, na Literatura. O curso escolhido foi o de Pós-Graduação em Literatura
Infanto-Juvenil, na Universidade Federal Fluminense. A monografia produzida
para a conclusão do curso foi importante por evidenciar certo descompasso no
estudo teórico e crítico à potencialidade narrativa das imagens em relação ao
texto.
Outro aspecto importante, oriundo dos estudos da especialização, foi a
proximidade existente entre a Ilustração e as Artes Cênicas, sugerida por alguns
autores. Esta proximidade encontra-se principalmente na construção híbrida da
narrativa – composição entre texto e imagem. Tanto no livro ilustrado como numa
peça de teatro, ambas as linguagens – verbal e visual – são organizadas de
maneira a conduzir uma narrativa. Em paralelo, minha formação na área de Artes
Cênicas e posteriormente uma complementação específica dessa formação2 deram
suporte para vivenciar essa proximidade na prática.
Diante da experiência interdisciplinar que conjuga a área da Literatura, das
Artes Cênicas e do Design, foi possível constatar que a tradição da teoria e técnica
1
Rui de Oliveira é Designer e Ilustrador, professor da UFRJ e doutor pela ECA-USP. Ministrou
aulas no curso de Comunicação Visual na EBA-UFRJ, além de projetos de pesquisa em ilustração.
2
Curso de Expressão Corporal e Teatro (1999) – Diretório Central dos Estudantes da UFF –
ministrado por Anja Bittencourt, Mary Cardoso e Renato Sampaio; Onde eu Botei no Meu Nariz
(2006) – Casa da Gávea – Curso de Palhaço Ministrado por Karla Koncá (As Marias da Graça);
Oficina Riso e a Carícia (2006) – V Anjos do Picadeiro – Curso Ministrado pelo Palhaço Aziz Gual
(México); Oficina de Mímica (2007) ministrada por Jiddu Saldanha; Interpretação Aplicada a
Performance Circense (2010) – Ministrada por Rodrigo Robleño.
14
narrativa privilegia a linguagem textual ou, quando aborda a narrativa híbrida,
hierarquiza o texto em relação à imagem. Nesse contexto, a narrativa que
contempla imagens acaba por ainda demandar estudos que deem conta não só das
suas especificidades, mas das suas relações contemporâneas com outras
linguagens.
A possibilidade de aprofundar essas questões deu-se no contato oportuno
com o Laboratório de Design de histórias, da PUC-Rio, coordenado pelo Prof. Dr.
Nilton Gamba Jr. Oportuno porque a proposta do laboratório já contemplava um
aprofundamento dos estudos da narrativa, que viria dar uma continuidade aos
estudos iniciados na pós-graduação. E por estar inserido dentro do Departamento
de Artes e Design, ter a perspectiva de Projeto e de Comunicação Visual na
construção narrativa. Também oportuno porque contempla em seus estudos outras
linguagens – cinema, vídeo, animação e teatro, principalmente pela parceria com a
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Cia. NósNosNós tragédias e comedias aéreas.
Por tratar-se de uma pesquisa interdisciplinar, foi necessário um recorte nas
áreas contempladas que pudesse viabilizar maior aprofundamento no estudo. Se
na área da Literatura iremos encontrar o Livro Ilustrado, e especificamente o
Livro de Imagem, como exemplar de um objeto composto unicamente por
imagens, na área das Artes Cênicas iremos investigar os estudos do Palhaço, mais
detalhadamente aqueles que adotam como técnica a mímica: o Palhaço Mímico.
A escolha se deu por duas questões específicas: a primeira diz respeito à
natureza semelhante entre as duas linguagens (visual e gestual): a ausência da
linguagem textual na construção narrativa. Tanto no Livro de Imagem como no
Palhaço Mímico, temos a narrativa calcada em linguagens não verbais: imagética
e gestual. A segunda, por tratar-se de duas linguagens com as quais tive contato
em experiências profissionais: tanto na ilustração de livros e criação de livro de
imagens, como na atuação como Palhaço Mímico e ator.
Apesar de trabalhar com diferentes linguagens e áreas, a proposta é estudar
o objeto Livro de Imagem e suas especificidades. O Palhaço Mímico servirá como
apoio a uma investigação interdisciplinar, buscando compreender como se dá a
experiência narrativa em linguagens que não utilizam a palavra como suporte ao
texto. A escolha do Livro de Imagem como objeto de estudo, e o Palhaço Mímico
como contraponto, dá-se pelo fato de que ambos possuem uma característica em
15
comum: a ausência de um elemento culturalmente esperado no livro e na cena: a
representação do texto – escrita e oral, respectivamente.
Assim, as narrativas construídas exclusivamente por imagens são um
fenômeno exemplar da questão e trazem em si o desafio de uma metodologia
alternativa para o panorama de dependência do texto. Espera-se ao final deste
trabalho uma compreensão maior do Livro de Imagem e sua construção, que
possibilite também contribuir para os estudos teóricos e críticos da Narrativa, em
um âmbito maior.
Ao campo do Design a discussão torna-se interessante por abordar
características próprias à linguagem no que se refere à construção narrativa
unicamente visual. Assim, uma discussão sobre as características próprias da
linguagem visual em relação à linguagem textual tornam-se por si só questões
referentes à reflexão e prática do Design.
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Por outro lado, pensar na narrativa estruturada unicamente na linguagem
visual traz também contribuição à reflexão sobre a metodologia projetual.
Principalmente pela perspectiva de não mais privilegiar a função como elemento
principal do projeto, nem, contudo, trabalhar no caminho inverso de acreditar na
perspectiva somente da forma como uma análise alternativa – dicotomia presente
nas diversas discussões no campo do Design. É justamente na ideia de que ambas
encontram-se de tal maneira indissociáveis, no contexto do Livro de Imagem, que
se procurará pensar não mais na dicotomia como divergentes e contraditórias, mas
na fruição estética em conjunto com uma função prática, como questões
complementares na construção de uma experiência narrativa.
O enfoque proposto para essa abordagem se estrutura numa reflexão sobre a
ausência do texto verbal na construção narrativa em ambos os casos. Como cada
linguagem responde a essa ausência e de que maneira lida com ela. Como o olhar
sobre a ausência do texto verbal no Palhaço Mímico pode contribuir para um
olhar sobre a mesma ausência no Livro de Imagem e vice-versa, para ampliarmos
a compreensão da experiência narrativa. Para isso, iniciaremos com uma
abordagem específica do termo Narrativa, e de dois termos que nessa discussão
são inevitáveis de se delinear: Discurso e Linguagem. Ainda dentro dessa
reflexão, buscaremos entender as características próprias de cada noção, em
especial a característica afirmativa da Linguagem. Opta-se, como enfrentamento à
característica apontada da linguagem, pela ausência como abordagem para a
16
pesquisa. Dessa reflexão surgem três categorias mais gerais de ausência e com as
quais iremos analisar os dois objetos deste trabalho.
A partir dessa análise encontramos neles uma certa marginalização relativa à
área (Literatura e Artes Cênicas) e à inserção no mercado. Da marginalização, sob
a ótica da ausência, emergem dois aspectos: a dificuldade na nomenclatura e a
delimitação de gênero e exclusão. Em seguida, uma discussão sobre a relação
texto e imagem na perspectiva da ausência do texto e de suas propostas de
substituição ou transgressão por outra linguagem (visual ou gestual).
Diante desse panorama é proposta a metodologia de análise dos Livros de
Imagem, a seleção dos livros e os resultados encontrados por essa forma de olhar
esses objetos. Aqui cabe relembrar que se optou por utilizar o Palhaço Mímico
como contraponto ao Livro de Imagem. Ou seja, apesar da ideia de que as
reflexões possam ser dirigidas para uma leitura de ambos os objetos, este trabalho
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se ocupará somente de uma abordagem sobre os Livros de Imagem.
Como sugestão da banca na ocasião da defesa, finalizo esta introdução com
o infográfico utilizado na apresentação do trabalho, que buscou apresentar um
panorama geral de como foi a trajetória percorrida pela pesquisa.
17
Na primeira parte do infográfico procurou-se dar conta dos antecedentes a
pesquisa, em primeiro lugar o tema geral e o problema que procurou-se enfrentar:
o livro ilustrado e a narrativa por imagem. Aponta-se em seguida os objetos da
pesquisa: Livro de Imagem e Palhaço Mímico. De posse das hipóteses e
predições, colocadas anteriormente por outros autores ou por experiência prática
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(breve trajetória da minha formação) chegamos aos objetivos do trabalho.
Num segundo momento (marcado pela estrela verde no infográfico), temos o
inicio propriamente dito do curso de Mestrado. Para isso foi necessário
primeiramente um aprofundamento nos principais conceitos utilizados na pesquisa
– Linguagem, Discurso e Narrativa.
Se por um lado esse aprofundamento conduziu ao encontro de questões próprias a
cada conceito apresentado, principalmente a idéia de uma “inclinação afirmativa da linguagem” e com ela a idéia também de “ausência”, por outro fez refletir sobre o potencial narrativo das imagens e a especificidade das narrativas sem
texto verbal. A noção de ausência foi percebida no estudo mais detalhado dos
objetos em questão, fazendo emergir questões comuns como a “marginalização” e uma relação do gênero com certa “exclusão”.
18
Tanto o potencial narrativo das imagens, como o aprofundamento das questões
comuns a ambos os objetos, se encontraram na discussão quanto a relação entre
texto, imagem e gesto (movimento) no Palhaço Mímico e no Livro de Imagem.
Em seguida, então, é apresentado o pequeno gráfico apresentando essas três
linguagens, trazendo uma relação entre elas, focando nos potenciais que cada uma
delas tinha de representação. Dessa relação surge a tabela ao final desse percurso
que aponta para os potenciais e as deficiências próprias de cada linguagem na
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busca por uma representação narrativa.
Como o cerne da pesquisa baseou-se na noção de ausência, a partir dessa tabela
buscou-se observar de que maneira os livros de imagem propunham estratégias e
19
recursos para compensar a ausência da linguagem textual e gestual, na imagem.
Dessa observação foram extraídas e definidas categorias para análise das obras.
Essas categorias foram organizadas em três grupos, de maneira que em cada grupo
estivessem presentes as que melhor propunham uma compensação de determinada
linguagem: Relação Espaço Tempo na Imagem (ausência do movimento, do
deslocamento, da ação – próprios do gesto); Sugestão de Abstração Conceitual
(ausência da linguagem textual) e por fim, Ausência da Imagem.
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Também foram apresentados os livros consultados e as considerações finais.
20
2.
Ausência, uma abordagem
Interessando-se pela narrativa de modo geral, independente do seu suporte expressivo ou
do seu prestígio sociocultural, a narratologia não tem que limitar a sua atenção aos textos
narrativos literários. Mas é verdade que aqui são sobretudo esses os privilegiados:
sabendo-se que é na narrativa verbal que se tem apoiado o desenvolvimento da
narratologia e que a narrativa literária desfruta de uma projeção que não se pode ignorar,
não se estranhará que os conceitos com ela relacionados apareçam largamente
contemplados. (Reis & Lopes, 1988 p. 8-9)
A teoria e a crítica narrativa, por privilegiarem o texto em suas abordagens,
refletem decisivamente nas duas áreas de interesse desse estudo – as Artes
Cênicas e a Literatura. Nas Artes Cênicas o texto, na forma do diálogo, é um
elemento culturalmente encontrado e esperado numa peça teatral. O registro e a
documentação de peças de teatro normalmente ocorrem textualmente no roteiro.
Diálogos, rubricas são características desse tipo de documento. Se nas Artes
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Cênicas a presença do texto é de fato evidente, é na Literatura (aqui como grande
área) que ele se torna inegável.
Tanto as Artes Cênicas como a Literatura, portanto, apresentam uma
característica comum: a presença do texto como elemento com o qual e pelo qual
é construída e transmitida a narrativa. A contribuição pretendida neste trabalho ao
estudo da narrativa se fundamenta na possibilidade de considerar como objetos de
estudo o Palhaço Mímico dentro das Artes Cênicas e o Livro de Imagem dentro da
Literatura – justamente pela ausência do texto no suporte, escrito ou falado.
O que se pretende dizer com ausência de texto, aqui, não significa ausência
de discurso. O que culturalmente se tem em ambas as situações citadas é a
ausência de texto representado pela linguagem verbal (escrita ou oral).
Obviamente, a narrativa apresenta um discurso, mas este não é representado ou
veiculado sob a forma verbal. Nas Artes Cênicas, o Palhaço Mímico lança mão da
linguagem corporal/gestual, de códigos da pantomima e de diversos outros
recursos para construir o discurso narrativo que pretende. Igualmente, no Livro de
Imagem a ausência de texto escrito leva o autor a revelar o discurso narrativo
apenas no desencadear das imagens. Logo, pelo discurso não ser transmitido
textualmente, por permanecer em silêncio no palhaço e no livro, é que vai
interessar aqui sua análise narrativa. Quando a linguagem textual/verbal é retirada
do objeto no qual culturalmente seria encontrada, e mantém-se o discurso
narrativo, como podemos obter uma análise que venha contribuir para o campo da
21
narrativa? O que pode ser útil ao estudo da narrativa quando é retirado o elemento
principal de sua análise?
Para admitir a possibilidade de se estudar e analisar a narrativa sem a
representação do texto verbal é necessário reconhecer de antemão o potencial
narrativo de imagens e objetos. É justamente para analisar essa possibilidade que
recorreremos aos estudos de Pier Paolo Pasolini, um autor que traz para esta
pesquisa as vozes de duas áreas em particular: da Semiologia do Cinema e da
Pedagogia. Tal contribuição vai ser bastante significativa porque traz em si uma
afinidade com o estudo: a tensão entre duas áreas distintas, o Cinema e a
Literatura. Apesar de não apontar essa tensão especificamente com as Artes
Cênicas, Pasolini traz questões bastante interessantes quando analisa as
especificidades da linguagem visual, no Cinema, em contraponto com a
linguagem textual na Literatura. Assim, mesmo não coincidindo com as áreas
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abordadas, sua análise trará contribuições importantes para se pensar a relação
entre a Literatura Ilustrada e as Artes Cênicas.
Em Os Jovens Infelizes, Pasolini (1990) aponta para a existência de uma
linguagem própria dos objetos, das coisas. Portanto, uma linguagem que é
apreendida visualmente:
As primeiras lembranças da vida são lembranças visuais. A vida, na lembrança, torna-se
um filme mudo. Todos nós temos na mente a imagem que é a primeira, ou uma das
primeiras, da nossa vida. Essa imagem é um signo, e, para sermos exatos um signo
lingüístico. Portanto, se é um signo lingüístico, comunica ou expressa alguma coisa. (...) A
primeira imagem da minha vida é uma cortina, branca, transparente, que pende – imóvel,
creio – de uma janela que dá para um beco bastante triste e escuro. Essa cortina me
aterroriza e me angustia: não como alguma coisa ameaçadora ou desagradável, mas como
algo cósmico. Naquela cortina se resume e toma corpo todo o espírito da casa em que
nasci. Era uma casa burguesa em Bolonha. (...) Mas se nos objetos e nas coisas cujas
imagens ficam gravadas na minha lembrança, como as de um sonho indelével, se
condensa e se concentra todo um mundo de ‘memórias’ que essas imagens evocam num só instante... (Pasolini, 1990 p. 125-26)
Outros autores também apontam para uma linguagem presente em objetos,
não se tratando exatamente de uma ideia original no que concerne a uma “leitura de mundo”. Mas a forma como essa linguagem é lida, as características próprias dessa linguagem que são colocadas por Pasolini, é que traz uma contribuição
diferenciada para o trabalho. O fato de a linguagem das coisas nos chegar de
forma visual, e mesmo quando não dominamos ainda a linguagem verbal,
determina um modo de olhar e de apreender. Um “aprender”, como defende Pasolini, que não nos permite resposta – no âmbito do texto verbal apenas.
22
O conteúdo das minhas lembranças não se sobrepunha de fato a eles: o conteúdo deles
era somente deles. E me era comunicado por eles. Sua comunicação era, portanto,
essencialmente pedagógica. Ensinavam-me onde eu tinha nascido, em que mundo vivia e,
acima de tudo, como devia conceber meu nascimento e minha vida. Em se tratando de um
discurso pedagógico inarticulado, fixo, incontestável, não pode deixar de ser, como se diz
hoje, autoritário e repressivo. O que aquela cortina me disse e me ensinou não admitia (e
não admite) réplicas. (Pasolini, 1990 p. 126)
Ao passo que não permite réplica, esse tipo de discurso, portanto, inscrevese na totalidade da construção subjetiva do leitor e não somente na formação
intelectual, ou, nas próprias palavras do autor, “o que é educada é a sua carne, como forma do seu espírito”. Mais do que salientar a forma impositiva desse tipo de linguagem, o interessante é perceber seu caráter inarticulado. O domínio da
linguagem verbal, que permite posteriormente resposta, discussão, análise, está
associado a um conhecimento da linguagem e de seu mecanismo de construção.
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Sua articulação, quando conhecida, permite não só compreender os mecanismos
sob os quais essas informações são comunicadas, como permite também resposta.
O não domínio, o desconhecimento dos mecanismos da linguagem pedagógica
das coisas e a maneira como ela atua precocemente na psicologia do indivíduo a
caracterizam como uma linguagem inarticulada. E, por isso, sua imposição.
Como fato agravante para a situação, em paralelo a essa formação do
indivíduo, a nossa cultura como um todo ainda não tem uma preocupação na
educação visual, quando comparada ao texto verbal. Alguns autores apontam para
tal deficiência como um “analfabetismo visual”, que sugere uma falta de estudo da linguagem visual como parte do currículo escolar.
Como esclarecimento da diferença entre uma representação pela linguagem
textual e visual, Pasolini, como cineasta, propõe-nos uma análise sob o ponto de
vista conflitante entre a visão e a representação própria do literato e do cineasta.
Se o primeiro, a partir de seu olhar, reconstrói simbolicamente aquele mundo, “os ‘signos’ do sistema cinematográfico são evidentemente as próprias coisas, na sua materialidade e na sua realidade. É verdade que essas coisas se tornam ‘signos’, mas são ‘signos’, por assim dizer vivos.” (Pasolini, 1990 p.128) Se para o literato é necessária uma “tradução” da linguagem das coisas, para transmissão e comunicação, no cinema essa representação dá-se por meio da própria
representação da imagem das coisas. E é claro que isso tem consequências
inevitáveis e que vão proporcionar a riqueza poética própria de cada linguagem,
23
incluindo suas subversões e contaminações. O que, porém, não exclui a
possibilidade de se apropriar de uma linguagem, mas trabalhar as especificidades
dela em outra linguagem diferente, ou em outro suporte.1
A diferença da prática profissional do literato e do cineasta analisada por
Pasolini, no entanto, não exclui uma convergência entre as duas linguagens. O
literato, ao procurar representar a realidade vivida e percebida visualmente por
meio de palavras, terá no contexto de consumo a possibilidade de sua inversão:
imaginação decorrente da leitura do texto. O cineasta, por outro lado, ao expor a
realidade pela própria representação visual das coisas, não impede a produção
textual pelo seu expectador. Assim, também no livro produzido exclusivamente
com palavras, o leitor, no ato de fruição, reconstrói o texto em imagens. Ou seja,
cria imagens para os cenários e personagens narrados no texto. Portanto, imagens
podem ser consequência de uma leitura de um texto verbal. Um produtor de
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discurso que utiliza a linguagem visual – cineasta, ilustrador, palhaço etc. – pode
ter como resultado da fruição de sua obra uma produção textual. E é por isso que
as linguagens híbridas – o cinema, artes cênicas, o livro ilustrado – buscam nessa
tensão entre a imagem e o texto uma construção conjunta, para que não só evitem
um discurso redundante (apesar de questionável a equivalência precisa entre
linguagens diferentes), como também para tirar partido das potencialidades
próprias de cada linguagem. Aqui voltamos ao tema da ausência, agora naquilo
que a especificidade de uma complementa a outra.
Portanto, considerando a produção textual a partir das imagens, propõe-se
nesse trabalho o termo “ausência”, não com o significado de “ausência de discurso”, mas como uma não representação do texto na experiência de leitura. Assim, ao nos referirmos à ausência do texto no Livro de Imagem, por exemplo,
não significa que este não possua um discurso, mas que o discurso pode ser de
forma diferente como usualmente e culturalmente o encontramos. É essa ausência
que Pasolini reconhece quando exemplifica a lembrança da vida como um filme
mudo, mesmo ao explicitar a quantidade de informação, discurso e ensinamentos
contidos nas coisas. A mudez à qual se refere Pasolini não é a mudez da ausência
Pasolini entende que o literato pode apresentar uma abordagem em sua produção textual que
traz características próprias do cinema e vice-versa. Quando apontamos para as características
próprias, e as especificidades de uma linguagem, não estamos restringindo a possibilidade de outras
dentro dessa linguagem. Pelo contrário, prevemos possibilidades de relativização e de outras maneiras
de se trabalhar a linguagem que não seja só “obedecendo” aos princípios próprios dela.
1
24
de discurso, mas a de um discurso que é feito na ausência do texto como código.
Outro exemplo que talvez seja ainda mais contundente é o trecho extraído do
texto “O ‘discurso’ dos cabelos” (In: Pasolini, 1990) em que o autor expõe a presença de dois jovens, com cabelos compridos, no hall de um hotel onde estava
hospedado. O que esses jovens diziam não era expresso por palavras, era tudo
narrado pelos cabelos:
Naquela situação particular – que era plenamente política, ou social, e, até diria, oficial –
eles não tinham, na verdade, nenhuma necessidade de falar. Seu silêncio era
rigorosamente funcional. E isso simplesmente porque a fala era supérflua. Ambos, de fato,
usavam para se comunicar, com os presentes, com os observadores – com seus irmãos
daquele momento –, uma linguagem diferente daquela composta de palavras.
Aquilo que substituía a tradicional linguagem verbal, tornando-a supérflua – e encontrando,
de resto, um lugar imediato no amplo domínio dos ‘signos’, ou seja, no âmbito da semiologia –, era a linguagem dos seus cabelos. (Pasolini, 1990 p. 37-8)
No Discurso dos Cabelos, Pasolini aborda a linguagem contida nos jovens
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dos anos 1960, especificamente a linguagem contida no cabelo dos jovens daquela
época. Os cabelos compridos, adotados pela juventude revolucionária, traziam,
para o autor, um discurso ‘silencioso’, revolucionário, político, ideológico etc.
Aqueles
cabelos
longos
eram
uma
linguagem,
por
produzir
códigos
compartilhados e com eles um discurso próprio também. Além disso, essa
linguagem física, material, aponta para algo diferente da linguagem verbal, mais
comum: a linguagem inarticulada. Uma linguagem à qual não temos acesso
integralmente aos seus mecanismos, a sua articulação. (Pasolini, 1990 p. 38)
Um outro enfoque sobre a ausência é feito por Roland Barthes (2003), em
seu livro O Neutro. Desdobrando o enfoque de Pasolini, que defende uma
ausência da linguagem textual, Barthes procura demonstrar que mesmo na
ausência absoluta de código, ainda se mantém algo ‘falante’. Esse silêncio é absorvido como código. O autor considera que na denominada “semiologia da
moral mundana, o silêncio tem de fato uma substância ‘faladeira’ ou ‘falante’: ele é sempre o implícito”. (Barthes, 2003 p. 54) Sendo inclusive interpretado como discursos de diversas ordens: ora como direito, como defesa, como arma, como
crime etc. Portanto, no silêncio – a que explicitamente se refere Barthes, o silêncio
da fala – não está necessariamente ausente um discurso. Ao contrário, nele pode
estar presente de forma implícita, dissimulada.
25
Pode-se dizer que nenhum dos escritores que partiram de um combate assaz solitário
contra o poder da língua pôde ou pode evitar ser recuperado por ele, quer sob a forma
presente póstuma de uma inscrição na cultura oficial, quer sob a forma presente de uma
moda que impõe sua imagem e lhe prescreve a conformidade com aquilo que dele se
espera. (Barthes, 1988 p. 26)
E, por fim, dentro do próprio estudo da Literatura em geral, a noção de
elipse – como figura de linguagem – traz em si a característica de algo que é
silenciado, mas que (dentro do contexto) é subentendido. Ou seja, uma ausência
textual que também ajuda a produzir o discurso narrativo.
O silêncio, assim, reúne dentro do próprio termo algo de temível e de belo.
Um termo que permite dentro de si uma ambivalência. O silêncio que me permite
concentração, um foco dentro do meu pensamento e só nele, até o silêncio que
preciso fazer para escutar o outro, dar a palavra. Para ouvir com toda atenção o
que o outro me tem a dizer. O silêncio no qual é de direito permanecer, até o
silêncio que me é imposto, obrigado. O silêncio que permanece diante de uma
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beleza onde não são encontradas palavras que a traduzam até o silêncio do horror,
onde não se tem nada a dizer. O silêncio na cerimônia como sinal de respeito, até
o silêncio que é feito por precaução. Silêncio por negligência até o silêncio
exigido na cumplicidade. E tantos outros que poderíamos listar aqui.
Em resumo, quando Pasolini aponta para a mudez da linguagem presente
nos cabelos, está se referindo a uma mudez de código textual, mas que através das
imagens (cabelo) é produzido um discurso. Assim, na ausência do código textual,
temos as imagens como portadoras de signo e matéria-prima do discurso. Por
outro lado, Barthes vai apontar que mesmo na ausência absoluta de códigos, o
discurso ainda é produzido. Ou seja, a ausência de código é absorvida pela
linguagem como signo.
A narrativa, tanto no Livro de Imagem quanto na cena do Palhaço Mímico,
prescinde da palavra em sua construção, mas não a ignora. Pelo contrário, tem
consciência da sua falta, da importância cultural dada ao seu uso – daí sua
subversão. E é justamente no jogo e na compreensão do silêncio, proposto nos
dois casos, que funciona a fruição estética e a experiência narrativa nos objetos
escolhidos. É através da análise dessa experiência narrativa, calcada na tensão
entre a expectativa e a ausência, na criação, na veiculação e na recepção, que
procuraremos nortear o trabalho. Não só nortear, mas fazer dessa tensão uma
forma de abordagem alternativa.
26
Para compreendermos de que maneira será conduzida essa abordagem é
necessária, primeiramente, a fundamentação de três termos com os quais
inevitavelmente se trabalhará ao longo de todo o estudo: Linguagem, Discurso e
Narrativa.
Em seguida, uma abordagem sobre as características da Linguagem, em
especial seu caráter afirmativo, e sobre a potencialização dessas características no
contexto de uso (discurso) e no encontro com as especificidades do gênero
(narrativa).
É diante desse panorama que buscaremos inserir a noção de ausência. Como
contraponto complementar, e não contrário, como poderíamos suspeitar. A noção
de ausência e a característica afirmativa da linguagem serão ambas contempladas,
proporcionando assim uma abordagem que se estabeleça nesse contraponto.
Sabendo de antemão da impossibilidade de uma abordagem teórica exclusiva para
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as noções de Linguagem, Discurso e Narrativa, explicitamos a escolha feita neste
estudo, sem pensar ser ela a única possibilidade de enfrentamento da questão.
2.1
Linguagem, Discurso e Narrativa
Como o objetivo deste trabalho é estudar a experiência narrativa em duas
linguagens específicas, faz-se necessário uma abordagem mais aprofundada do
termo Narrativa, o que inevitavelmente nos leva aos outros dois termos: Discurso
e Linguagem. Por isso, buscaremos referências que nos permitam maior clareza e
justificar a escolha dos termos nesta pesquisa. Verificando entre os principais
autores com os quais iremos trabalhar se temos coerência na acepção dos termos,
mesmo que respeitadas as nuances de abordagem própria a cada obra.
Entendendo a Narrativa como um gênero do Discurso, sendo este a
Linguagem no seu contexto de uso e a linguagem o conjunto de códigos,
poderíamos então entender a Linguagem como substrato do Discurso e este como
substrato da Narrativa.
Porém, cabe apontar que a forma de abordagem, usualmente associada aos
estruturalistas, que entende Linguagem, Discurso e Narrativa como sendo uma
sequência gradativa de complexidade já foi questionada e revista. Autores mais
recentes, com alguns dos quais iremos trabalhar, apontam a sequência de maneira
27
inversa: a Narrativa como substrato do Discurso, e este como substrato da
Linguagem. O que propõe a nova organização é entender que o ser humano possui
em si uma pulsão à Narrativa que o conduz no caminho inverso, a produzir
Discurso, e é daí que surge a produção de Linguagem. Ou seja, que a necessidade
da expressão narrativa na comunicação é que, em última instância, levou à
produção do código. Apesar das proposições históricas, entendemos que ambas as
posições não são contraditórias, nem se invalidam mutuamente, e, dentro dessa
perspectiva, procuraremos lidar com ambas de maneira complementar. Essa
abordagem, em que não se propõe o confronto que resulta numa polarização,
deverá ser buscada porque não se entende a ciência como um discurso de
trajetória retilínea e contínua.2
Apesar de aprofundados em áreas de estudos específicas (Linguística,
Análise de Discurso e Narratologia), é importante frisar a característica
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indissociável que possuem os termos entre si. O que significa dizer que uma
análise aprofundada que se possa fazer sobre qualquer uma das três áreas acabará
por buscar referências nas outras duas. Assim, os estudos que versam sobre
Linguagem, Discurso e Narrativa necessitarão de um foco interdisciplinar, não só
pela relação entre os três campos, mas também pela relação deles com o sujeito e
seu contexto social. Para este estudo, portanto, também será necessário transitar
entre as áreas e refletir sobre as questões próprias de cada termo e de sua relação
com os outros.
Para iniciarmos essa análise, usamos a obra Análise de Discurso, cuja
autora, Eni Orlandi (2005), aponta as diferenças entre essa área e a análise de duas
outras áreas que também se ocupam da linguagem: uma delas que a trata como
código – Linguística –, e a outra como normas – Gramática. A Linguística procura
pensar a Linguagem como código, como matéria-prima com a qual se procurará
trabalhar e produzir enunciados e, portanto, discurso. A Gramática, como “normas de bem dizer”. A linguagem seria, então, “a materialidade do discurso”, o conjunto de elementos básicos com os quais se produz enunciados discursivos.
A preocupação de Eni Orlandi é sobre a análise de discurso, por isso, a
autora vai se ater de forma abrangente não à matéria-prima, mas ao contexto
social onde ela é usada. O que fica claro na passagem a seguir.
2
Tal discussão é aprofundada no artigo escrito por Gamba Jr, e Eliane Garcia apresentado
no ??? Congresso de Desenvolvimento e Pesquisa em Design ???, em que segundo o autor o
desafio é conseguir lidar com a complementaridade de visões diferentes.
28
... não se trabalha, como na Linguística, com a língua fechada nela mesma mas com o
discurso, que é um objeto sócio-histórico em que o linguístico intervém como pressuposto.
Nem se trabalha, por outro lado, com a história e a sociedade como se elas fossem
independentes do fato de que elas significam.
Nessa confluência, a Análise de Discurso critica a prática das Ciências Sociais e a da
Linguística, refletindo sobre a maneira como a linguagem está materializada na ideologia e
como a ideologia se manifesta na língua.
Partindo da ideia de que a materialidade específica da ideologia é o discurso e a
materialidade específica do discurso é a língua, trabalha a relação língua-discursoideologia. (Orlandi, 2005 p. 16-7)
Apesar de não termos uma equivalência direta entre os termos Linguagem e
Língua, encontraremos em alguns autores o uso quase como sinônimos. Serão
compreendidos aqui: a língua como código e a linguagem como a qualidade desse
código. Ou de maneira exemplar para Barthes: “A linguagem é uma legislação, a língua é seu código.” (Barthes, 1988 p. 12)
Por conta dessa questão, neste estudo teremos a preocupação de quando
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falar da linguagem explicitar a natureza do código (icônico, textual, gestual). Por
isso a adjetivação de linguagem nesta pesquisa sempre remete ao tipo de código:
linguagem visual, textual, híbrida etc.
O discurso para Eni Orlandi é a palavra em curso, o processo, a linguagem
produzindo sentido. O que, portanto, inevitavelmente levará em consideração o
seu contexto de uso, caracterizando-se como uma área do conhecimento que é
fundamentalmente interdisciplinar.3
Para ilustrar, Eni Orlandi cita um evento ocorrido em uma eleição
universitária em que uma faixa (preta com letras brancas) fora colocada para
tranquilizar os eleitores de que o processo de votação seria seguro, pois os votos
não seriam identificados. A análise feita pela autora parte não só da frase “vote
sem medo”, mas também da maneira como ela foi apresentada e do contexto onde
ela estava. Segundo Eni, a faixa na cor preta nos anos 1960 trazia uma memória,
que não se pode negar numa análise do discurso. A cor preta, do ponto de vista da
cromatografia política da época, era associada ao fascismo, aos conservadores, à
“direita” política. As palavras “sem medo” trazem em si características implícitas: a de que há uma suspeita sobre algum candidato – que supostamente estaria
3
A autora procura trabalhar sua obra sobre três pilares que considera fundamentais para a
abordagem: a Linguística – pela abordagem mais específica que faz do código, da língua; o
Materialismo Histórico, por pressupor o contexto social e o “legado do materialismo histórico”, onde o homem é parte actante da história; e a Psicanálise, pois leva em consideração também a
construção subjetiva (do leitor e do autor).
29
ameaçando o eleitor que não votasse a seu favor e, portanto, sugerem uma
ameaça.
Como contraponto para explicitar melhor o exemplo, Eni propõe que na
mesma situação a faixa tivesse configurações diferentes: fosse branca e escrita em
cores vermelhas: “vote com coragem!”. A cor vermelha ligaria historicamente a posições revolucionárias, transformadoras (referenciada ao comunismo e ao
socialismo da época), e o termo coragem faze apelo à disposição de luta. Assim,
as duas situações colocariam condições diferentes de leituras, o que implicaria em
estabelecer condições políticas diferentes. Se no primeiro caso estaríamos
associando à faixa negra e ao texto uma posição fascista, conservadora, isso
significa dizer que independentemente da posição política de quem colocou a
faixa, o discurso seria analisado agregando a ele questões políticas bem
determinadas.
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Ficam nítidas com esse exemplo, portanto, as contribuições que a análise de
discurso pode dar ao campo do Design. Justamente por sua característica
fundamentalmente interdisciplinar é que uma análise que busca esse tipo de
abordagem torna-se relevante para uma pesquisa voltada ao Projeto. Uma análise
que se propõe a pensar as imagens, as cores, o contexto, além do conteúdo textual,
está intimamente ligada ao pensamento projetual. E assim:
Os dizeres não são, como dissemos, apenas mensagens a serem decodificadas. São
efeitos de sentidos que são produzidos em condições determinadas e que estão de alguma
forma presentes no modo como se diz, deixando vestígios que o analista de discurso tem
de apreender. São pistas que ele aprende a seguir para compreender os sentidos aí
produzidos, pondo em relação o dizer com sua exterioridade, suas condições de produção.
Esses sentidos tem a ver com o que é dito ali mas também em outros lugares, assim como
com o que não é dito, e com o que poderia ser dito e não foi. Desse modo, as margens do
dizer, do texto, também fazem parte dele. (Orlandi, 2005 p. 30)
No Dicionário de Teoria Narrativa, de Carlos Reis e Ana Cristina Lopes
(1988), sob o ponto de vista de Benevistes encontra-se uma noção do termo
Discurso, que é determinante “pela introdução do sujeito e da situação como parâmetros decisivos da descrição da atividade verbal”. Eles entendem o discurso dessa maneira, diferentemente da língua, pois segundo eles a língua é o “sistema de sinais formais que só se atualiza quando assumidos por um sujeito no ato da
enunciação”. O discurso, porém, é o uso dessa língua, que também “faculta uma referência ao mundo e comporta marcas mais ou menos explícitas da situação em
30
que emerge” (Reis & Lopes, 1988 p. 28). Ou, em outras palavras, concebe-se o
discurso como uma enunciação que é fundamentada no seu contexto de produção.
Na esteira desta abertura, encontra-se a concepção de discurso como enunciado
considerado em função das suas condições de produção. Com esta formulação, pretende
sublinhar-se que os locutores não são meros pólos de um circuito comunicativo, mas sim
entidades situadas num tempo histórico e num espaço sociocultural bem definido que
condicionam o seu comportamento lingüístico. (Reis & Lopes, 1988 p. 28)
E a narrativa, por sua vez, como gênero discursivo se especifica por três
características
fundamentais:
alteridade,
sequencialidade
e
dimensão
temporal/espacial. A característica da alteridade nos remete a uma narração de
fatos que estão objetivamente colocados diante do sujeito. E, nessa situação, o
sujeito formula uma narrativa, transmitindo aquela experiência para outro. A
forma como se desenvolve essa narrativa é sequencial, ou seja, pressupõe uma
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apresentação organizada numa sequência factual. Inclui por fim a dimensão
temporal (tempo de leitura, tempo da narrativa, ritmo) e espacial (deslocamento,
cenários etc.).
É importante diferenciar um segundo aspecto, que diz respeito ao gênero:
lírico e narrativo. O que essa separação propõe é pensar na dimensão lírica e
poética como uma perspectiva subjetiva da produção de discurso. Apesar de
diferenciar-se da narrativa pela alteridade, isso não impossibilita que possamos ter
uma visão poética inserida em uma narrativa, mas que essa, prioritariamente, nos
apresenta a dimensão temporal, sequencial, factual, espacial e numa perspectiva
da alteridade.
A partir de então podemos pensar em outro processo de classificação que
por vezes será usado nesta dissertação: os gêneros narrativos. A primeira grande
divisão é quanto ao caráter real ou ficcional da narrativa. Sobre essa ótica pode-se
colocar a divergência entre a perspectiva filosófica – a qual faz referência à
realidade como sendo percebida pelo sujeito e, portanto, inevitavelmente
reelaborada e transformada: o que implica numa inexistência de uma realidade
objetiva, já que toda realidade é mediada;; portanto, “tudo é ficcional” – e a
perspectiva cultural, que pressupõe uma circunstância de provas que legitima a
veracidade dos fatos colocados. Dessa discussão, no campo da ficcionalidade
emerge a ideia de Verossimilhança: semelhança intuitiva com a verdade que
31
satisfaz a perspectiva cultural, sem, contudo, desfazer a noção da ficcionalidade –
uma “suspensão da prova”, como aponta Umberto Eco (1994). Outra divisão proposta é segundo o destino do conteúdo, ou seja, seu
receptor: Infantil ou Adulto. Posteriormente, gêneros historicamente construídos
que pertencem também à ordem da fruição, mas que pressupõe muitas vezes
características intrínsecas à obra e sua estrutura: Narrativa Trágica, Cômica e
Dramática. Por fim, numa perspectiva de uso aplicado: Narrativa Informacional,
de Entretenimento, Didática e Cultural.
Acrescenta-se enfim a ideia de que a narrativa pode ainda ser expressa nos
mais diferentes suportes fazendo uso comumente da linguagem verbal (texto
escrito ou oral), mas também icônica (Livro de Imagem, Cinema Mudo etc.),
inclusive em situações híbridas (Livros Ilustrados, Histórias em Quadrinhos,
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Cinema, Artes Cênicas etc.).
Elementos Narrativos
Dentro da narrativa levamos em consideração os seguintes elementos
estruturais que a caracterizam: Universo temático, Personagens, Cenário, Trama,
Matriz Temporal e Narrador. Apesar de procurarmos trazer uma definição
específica de cada um deles, vale sublinhar que tratam-se de elementos
indissociáveis entre si. Em diversos momentos poderemos notar que na tentativa
de uma definição de um determinado elemento, inevitavelmente conduziremos a
uma abordagem em conjunto com um ou mais elementos diferentes.
O Universo temático caracteriza a atmosfera em que está inserida a
narrativa, atravessando todos os outros elementos. É assim, talvez, o elemento de
maior amplitude dentro da narrativa, criando uma harmonia entre os elementos.
A personagem é o actante da história, ou seja, aquele que vive os fatos e age
dentro da narrativa. Mesmo que este não seja um humano, comumente adota-se
uma perspectiva antropomorfa sobre ele. Num sentido mais amplo, pois
antropomorfizar aqui não se resume somente a dar formas físicas, mas também
características subjetivas, culturais, psicológicas, cognitivas e de personalidade.
Dotada, então, da capacidade de agir como um ser humano. Pode haver diversas
personagens, distribuídos numa hierarquia de importância ao longo da história.
O cenário é o ambiente em que se desenvolve a narrativa. O plano de fundo,
o local ou os locais onde transcorrem os fatos vividos pelos personagens.
32
A trama é o sequenciamento dos fatos a que o personagem se depara. A
construção da narrativa dá-se nesse encadeamento, onde um fato tem sempre
relação com o seguinte, o anterior e o contexto geral da narrativa.
A este último está ligado, principalmente, o tempo – estrutura de uma matriz
sob a qual se organizam os fatos, sequenciadamente. A disposição sequencial não
implica pensar que se organizam necessariamente em ordem cronológica linear.
O Narrador é quem nos apresenta os fatos. Este pode ser também um
personagem da história, que vivencia os fatos e os transmite para o leitor, ou um
ser onisciente que apresenta a história sem participar efetivamente dela como
actante. Podemos classificá-lo em diferentes categorias de acordo com seu
envolvimento mais ou menos distanciado da narrativa: narrador autodiegético –
entidade que relata os fatos de sua própria experiência; heterodiegético – aquele
que narra fatos vivenciados por uma terceira pessoa, não fazendo parte da história
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como actante; homodiegético – entendido como um participante dos fatos
narrados, sem, contudo, se colocar na figura central que protagoniza a história.
Aproxima-se assim do autodiegético, pela vivência dos fatos narrados, mas
distancia-se por não tratar-se da personagem central da narrativa.
A partir desses elementos é importante perceber as relações construídas
internamente na narrativa, por cada um deles ou pelo conjunto. A matriz temporal,
por exemplo, permite uma reorganização factual, que não obedece literalmente à
ordem dos fatos naturalmente vividos. O que conduz à ideia de analepse (ex.
flashback), um deslocamento temporal dentro da história. O que interfere
decisivamente no ritmo da narrativa, ou seja, na relação entre o tempo da história
(o tempo de duração dos fatos) e o tempo da narração (tempo gasto para se narrar
os fatos). Uma história que transcorra em um ano pode ser transmitida em apenas
alguns minutos. Por outro lado, a experiência de uma situação de risco, que dure
alguns segundos, pode levar horas para ser narrada. Assim, deparamo-nos com
duas ideias de tempo: o tempo de leitura (tempo gasto para receber a narrativa) e o
tempo da narrativa (aquele a que faz referencia a história).4
Diante dessa breve apresentação do que compreendemos por Linguagem,
Discurso e Narrativa, cabe partirmos agora para as questões mais recentes que a
eles estão colocadas. Diversos foram os autores que levantaram questões e
4
Sobre essa questão, consultar a obra Seus passeios pelos bosques da ficção, de Umberto Eco (1994).
33
relacionaram esses três termos com outros contextos de estudo. Alguns desses
foram escolhidos por trazerem questões pertinentes à perspectiva que se pretende
nesse trabalho.
Relacionando Narrativa e Ciência, temos um autor que traz contribuições
importantes para a pesquisa: Jean-François Lyotard (2006). Em seu livro A
Condição Pós-Moderna, ele aponta para a ciência como uma espécie de discurso,
inclusive protagonizando reflexões acerca da linguagem e também sendo afetada
diretamente por ela. Este é um dos pontos principais abordados por Lyotard, pois
sendo o saber uma espécie de discurso, o saber científico não é todo o saber, pois
além de diretamente ligado, compete com outro saber ao qual Lyotard denomina
de saber narrativo. Assim, narrativa e ciência, segundo o autor, encontram-se
equiparados, no que tange à terminologia adotada, traduzidos como produtos
discursivos.
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Lyotard, ao adotar como método de seu estudo os Jogos de Linguagem de
Wittgenstein, vai também propor um olhar sobre a linguagem como regras
promovidas a partir da constituição de um contrato social. Ou seja, sob a ótica dos
Jogos de Linguagens, que
centraliza sua atenção sobre os efeitos dos discursos, chama os diversos tipos de
enunciados que ele caracteriza desta maneira, e dos quais enumerou-se alguns, de jogos
de linguagem. Por este termo quer dizer que cada uma destas diversas categorias de
enunciados deve poder ser determinada por regras que especifique suas propriedades e o
uso que delas se pode fazer. Exatamente como o jogo de xadrez se define como um
conjunto de regras que determinam as propriedades das peças, ou o modo conveniente de
deslocá-las. (Lyotard, 2006 p. 16-7)
E assim considera três observações: as regras dos jogos de linguagem não
possuem sua legitimação em si mesmas, constituem um objeto de contrato entre
os jogadores; sem regras não há jogo e se modificadas, modifica a natureza do
jogo, portanto se um lance não satisfaz as regras, não pertence ao jogo; por último
considera-se cada enunciado como um lance. A última observação entende, assim,
a fala, o discurso, no sentido de jogo, como atos que provém de uma agonística. E
essa agonística, o “espírito competitivo” está na natureza do homem e que este portanto só estabelece as regras para que o jogo, a disputa, possa ser realizada.
Entendendo então discurso como produção de sentido e linguagem como o seu
processo de uso.
34
Por outro lado, Umberto Eco (2005), em a Obra Aberta, considera a
Linguagem como uma organização de estímulos efetuada pelo homem, portanto
não natural, e baseando-se em definições da Linguística, compreende que “a linguagem não é um meio de comunicação entre outros;; é o ‘fundamento de toda comunicação’;; melhor ainda, ‘a linguagem é realmente o próprio fundamento da cultura’.” (Eco, 2005 p. 73) Ao longo do texto, ele utiliza-se dessa terminologia
para analisar o conceito de “discurso aberto” em uma obra de arte. Este caracterizado pela ambiguidade permitida numa organização da linguagem que dá
abertura a leituras e significações diversas. A possibilidade de significações
diferentes para a mesma obra dá-se, para Eco, na relação de fruição, ou seja, no
contexto em que se dá sua recepção.
Giovanni Cutolo, autor que escreve a apresentação de Obra Aberta, nos
mostra como Umberto Eco se coloca mediante essa discussão. Segundo ele, Eco
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não se apóia sobre a teoria estruturalista ao descrever o que entende por obra
aberta, apesar de utilizar-se de alguns conceitos e termos, como vistos acima. Para
Cutolo,
Eco, na realidade, sustenta um ‘modelo teórico’ de obra aberta, que não reproduza uma
presumida estrutura objetiva de certas obras, mas represente antes a estrutura de uma
relação fruitiva, isto independentemente da existência prática, factual, de obras
caracterizáveis como ‘abertas’. Ele não nos oferece o ‘modelo’ de um dado grupo de obras,
mas sim de um grupo de relações de fruição entre estas e seus receptores. Trata-se
portanto da tentativa de estatuir uma nova ordem de valores que extraia os seus próprios
elementos de juízo e os seus próprios parâmetros da análise do contexto no qual a obra de
arte se coloca, movendo-se em suas indagações para antes e depois dela, a fim de
individuar aquilo que na verdade interessa: não a obra-definição, mas o mundo de relações
de que esta se origina; não a obra-resultado, mas o processo que preside a sua formação;
… (Cutolo, A abertura de Obra Aberta. In: Eco, 2005 p. 9-10)
Assim, Eco demonstra não considerar a obra de arte como uma estrutura na
qual se pode separar as partes, e separá-la do contexto. E, além disso, percebe uma
obra como a manifestação de uma pulsão anterior à criação e sua fruição, ou seja,
sua relação com a recepção, como parte dessa criação. Parte da obra estaria sendo
construída na relação de fruição, e não apresentada como resultado de uma
organização de uma estrutura mais elementar. A linguagem viria a serviço do
discurso, na qual torna-se significativa, não o contrário. Representaria a torção
pós-estruturalista que mencionamos no início.
Também em Barthes é nítida a concepção de Linguagem como matériaprima, principalmente no texto Aula (Barthes, 1988), em que discute
35
fundamentalmente sobre Linguagem e Poder. Para o autor, o poder está
“emboscado em todo e qualquer discurso”. O que permite ao autor a generalização da presença de poder no discurso é que para ele o poder não está somente no
discurso, mas engendrado na própria matéria-prima da qual ele é feito
(linguagem). Assim, estando o poder presente na própria linguagem, todo
discurso, toda comunicação está impregnada inevitavelmente dele.
Em outro momento interessante, Barthes chama atenção para a necessidade
de “representação de alguma coisa” pelo homem, como pulsão à constituição, e, posteriormente, transgressão da linguagem. Para o autor, desde tempos antigos até
as tentativas mais recentes o homem busca, talvez inutilmente, como afirma o
autor, a representação do real. Assim, aponta então para uma recusa do homem
em acreditar na impossibilidade do real ser representado pela linguagem e,
portanto, sua produção discursiva incessante. O desejo então de representar o real
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seria o motor para a manutenção, recriação e criação da linguagem.
É ainda fundamental a abordagem de Michel Lahud (1993) no que tange a
discussão sobre o cinema e sua linguagem. Nele podemos perceber a visão
contrária à de uma linguagem pronta com a qual o homem trabalha, organiza e se
comunica. Segundo Lahud, Pasolini reconhecia na linguagem cinematográfica
uma certa realidade, “uma expressão da realidade através da própria realidade”. A experiência linguística do cinema seria portanto uma experiência filosófica, de um
olhar sobre o real. Assim, “se as coisas podem ser significantes quando
reproduzidas, é porque certamente já são, mesmo antes de se tornarem imagens
cinematográficas, elas próprias sempre significativas” (Lahud, 1993 p. 40-2).
Ainda mais radical, Pasolini afirmaria que nada escapa à esfera do simbólico, não
existindo uma realidade natural e muda, transformável em discurso através do
processo artístico ou cultural, mas que tudo já é “naturalmente” percebido como signo de si mesmo, ou seja, ela mesmo, a realidade, é linguagem. Linguagem que
se dá no confronto dessa realidade com o homem. E conclui que na natureza do
homem existe uma pulsão discursiva que conduz a uma tradução da natureza e
portanto uma produção de linguagem.
Assim, a inclinação humana ao discurso impulsionaria a elaboração,
tradução e percepção de linguagem.
Em resumo, teríamos esquematicamente duas reflexões:
36
-
Linguagem como matéria-prima do discurso e narrativa como gênero
discursivo.
-
Pulsão narrativa de organização do espaço/tempo como uma demanda de
produção de sentido discursivo e a partir daí a estruturação do código.
Nessa dupla visão sobre os termos Linguagem, Discurso e Narrativa é que
conduziremos a abordagem deste trabalho levando em consideração ambas as
vertentes. Não entendidas como contraditórias, mas como complementares, já que
suas definições não se alteram ao se modificar essa relação. Permitindo-se
compreender de forma mais complexa e plástica: Linguagem como a estrutura do
código, Discurso como produção de sentido pela Linguagem e Narrativa como
produção discursiva numa organização específica que inclui os elementos:
alteridade, sequência e relação espaço/tempo.
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Dentre as diversas reflexões já feitas sobre a Linguagem, uma questão
emerge de maneira oportuna para a perspectiva desse trabalho e que justifica uma
análise mais aprofundada: a inclinação afirmativa, ou assertiva, da linguagem.
2.2
Inclinação Afirmativa da Linguagem
As discussões sobre essa questão envolvem diversas áreas que dialogam
nessa pesquisa com o campo do design, sendo elas: a área da filosofia em Barthes
(1988 e 2003) na Aula e em O Neutro; da produção científica (entendendo a
ciência como produto discursivo), como aponta Lyotard (2006) em A Condição
Pós-Moderna; a área da comunicação nos estudos de Umberto Eco (2005) em
Obra Aberta; e finalmente no âmbito das relações sociais e das artes com Pasolini
(1990) em Jovens Infelizes.
Barthes (1988) abre o seu texto Aula discorrendo sobre o poder e vai chegar
à linguagem como sendo o lugar onde se instala o poder que atravessa a história
da humanidade:
A razão dessa resistência e dessa ubiquidade é que o poder é o parasita de um organismo
trans-social, ligado à história inteira do homem, e não somente à sua história política,
histórica. Esse objeto em que se inscreve o poder, desde toda eternidade humana, é: a
linguagem – ou, para ser mais preciso, sua expressão obrigatória: a língua. (Barthes, 1988
p. 12)
37
Mais adiante, ainda aponta na linguagem uma “voz dominadora, teimosa, implacável”, em cuja característica “fascista” dois outros aspectos se colocam: “a autoridade da asserção, o gregarismo da repetição” (Barthes, 1988 p. 14,15). Assim, segundo o autor, somos forçados pela linguagem a nos comunicar,
pensar e produzir conhecimento de maneira assertiva. A comunicação por signos
também traz em si uma característica fundamental: a de reconhecimento dos
signos. Um signo torna-se signo à medida que é reconhecido. Para tanto é
necessária sua repetição. Essa repetição dita a segunda característica apontada.
A ciência se coloca no centro dessa discussão porque, entendida como
discurso, e impregnada das duas características citadas (e potencializadas por
estarem em movimento, em uso), tende agir de maneira afirmativa – excluindo a
dúvida, a incerteza. A discussão sobre o confronto de dados quantitativos e
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qualitativos, a produção acadêmica e o mercado, método teórico-crítico e prático,
podem servir aqui de exemplo à perspectiva abordada – se entendermos que das
discussões não se assume a adoção de um, em detrimento do outro, definindo
portanto o enfoque interdisciplinar. Além disso, concordam tanto Barthes (1988)
como Eco (2005), que ao rediscutir na ciência sua inclinação assertiva esbarram
em uma outra característica da linguagem: sua capacidade de absorção, de rápida
significação, de readaptação. Ou seja, qualquer ruptura, qualquer proposta que
trapaceie a linguagem, tende a ser reabsorvida como linguagem. O que quer dizer
que a alternativa proposta por Barthes de “trapacear a língua” encontra um obstáculo: o de que nenhum combate contra o poder da linguagem pode evitar ser
reabsorvido por ela sob a “inscrição na cultura oficial”. “Não há outra saída (...) senão o deslocamento – ou a teimosia – ou os dois ao mesmo tempo.” (Barthes, 1988 p. 26) Eco aponta para uma “constante ruptura” necessária à tensão no discurso.
No âmbito da comunicação podemos perceber também uma situação
parecida, justamente porque, como afirma Eco, a linguagem não é só um meio de
comunicação, mas o fundamento dela e num âmbito maior, o fundamento da
cultura. A questão então está entranhada, como previa Barthes e como reforça
Eco, dentro da trajetória da humanidade, pois está inserida na cultura.
Ao mesmo tempo então que a linguagem empresta suas características ao
discurso, e portanto à narrativa, estes últimos, por serem organizações mais
38
complexas, tendem a potencializar e intensificar tais características. Mas, por
tratar-se da linguagem em curso, em processo, é o momento também onde tornase possível o enfrentamento proposto. Ao mesmo tempo em que se complexifica,
se abre a possibilidade de enfrentamento.
Alguns autores apontam para essa ruptura, esse enfrentamento do afirmativo
da linguagem, uma chance à dupla leitura. Numa tentativa de transgressão, pela
possibilidade de se construir um discurso que possa conter diversos sentidos numa
mesma leitura. Assim, em vez de termos uma definição e uma transparência do
discurso, própria da assertividade da linguagem, teríamos uma abertura a
diferentes leituras, diferentes entendimentos de uma mesma enunciação e também
a dúvida, a incerteza. A essa ideia, está intimamente associada a noção cunhada
por Bakhtin (2003) de Inacabamento, que será de grande importância para o
trabalho. A ideia de Inacabamento nasce da percepção da necessidade de um
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complemento (acabamento) no ato da fruição estética da obra. Ou seja, a noção de
que a obra só se faz completa na medida em que encontra um espectador que a
preenche de sentido. E assim, o entendimento de que o acabamento presente no
ato da fruição depende do sujeito e do contexto em que ele a observa permite
leituras distintas de uma mesma obra. Como na Obra Aberta de Umberto Eco.
“É nossa relação que define o objeto e não o contrário.” (Bakhtin, 2003 p. 4) Segundo Bakhtin, a vida é um acontecimento inacabado, sendo isso uma condição
necessária à vida. Mas na Arte, o autor no ato de criação de um personagem
precisa dar-lhe uma vida esteticamente acabada. Precisar criá-lo integralmente.
Esse “excedente” na criação, ou seja, esse complemento axiológico proposto por Bakhtin, é o que ele vai chamar de Acabamento. É o excedente de visão, essa
visão externa – “sempre verei e saberei algo que ele, da sua posição fora e diante de mim, não pode ver” (Bakhtin, 2003 p. 21) – que não posso ter de mim mesmo
na vida, só no encontro com o outro. “O autor vivencia a vida da personagem em categorias axiológicas inteiramente diversas daquelas em que vivencia sua própria
vida e a vida de outras pessoas.” (Bakhtin, 2003 p. 13) Ou seja, o que vejo no outro, só o outro tem o poder de ver em mim. Da mesma maneira como o
vivenciamento interno, só eu posso ter da vida. E é no jogo entre a visão que
contempla o vivenciamento interno que Bakhtin vai dar o nome de “volitivoemocional” e o “excedente de visão”, que permitirá o acabamento estético, ou seja, o ato de dar forma ao objeto de criação, que se dará a criação estética.
39
Diversas foram as discussões sobre a pluralidade de leituras de uma mesma
obra, sobre um mesmo texto ou sobre uma imagem. Umberto Eco torna-se
referência com a Obra Aberta por esclarecer de que maneira ele compreende essa
pluralidade de sentido. Especialmente na área da Literatura Ilustrada, muitos
autores abordam a questão, em especial pela relação entre o texto e a imagem e a
possibilidade de leitura híbrida. Nesse ponto em especial, poderíamos destacar um
fator presente na maior parte dessas abordagens: a construção conjunta permite
que o texto e as imagens se complementem mutuamente. Assim, o que é dito no
texto é complementado pelas informações visuais e vice-versa, numa construção
em que já não se torna mais possível separar as duas linguagens sem que altere o
sentido da história. Uma das possíveis maneiras de se construir essa relação é no
contraponto de linguagem: enquanto uma linguagem propõe parte das
informações sobre a narrativa, mantém em suspenso outras que serão apresentadas
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pela outra linguagem. Logo, funcionando numa espécie de jogo onde na ausência
de uma linguagem a outra se faz presente.
Veremos que a noção de Inacabamento está presente também no humor – na
ideia de duplo sentido, por exemplo. Freud (1905) aponta a questão da
possibilidade de múltipla leitura, justamente quando aborda a questão do chiste. O
autor subdivide a sua análise em três partes, nas quais procurou estudar e observar
a técnica, os propósitos, os motivos e o processo social dos chistes. Diante da obra
pudemos verificar algumas características apontadas por Freud que nos permitem
compreender melhor o fenômeno e relacioná-lo com a questão.
O chiste seria um mecanismo de “transgressão e liberdade”, uma forma de desconcertar as pessoas diante das regras, normas e moral. Essa transgressão é
possível por uma outra forma de leitura das regras e normas, o que conduz a um
deslocamento de sentido e o desconserto. As brechas que podem haver nas regras
sociais são exploradas no chiste. A essa possibilidade de duplo sentido, ou de
multiuso, como chama o autor, está ligada então a ideia de uma abertura que
permite outra leitura. Muitas vezes, como no caso do Palhaço, esse deslocamento
é feito por uma visão estúpida ou absurda do mundo, o que provoca o riso. Há
ainda a possibilidade da representação pelo oposto, partindo de uma ótica
invertida ou a possibilidade de alusão.
O mecanismo de transgressão, de possibilidades de novas leituras, de
rompimento de leituras e olhares “pré-estabelecidos”, é furar os procedimentos e 40
normas que constroem e codificam um determinado modo de enxergar certa
situação. Mas não somente de furar os procedimentos. Também é preciso
reconhecer que a multiplicidade de leituras está presente no discurso, ou ainda
pode ser proposto no discurso. O que deixa implícita a ideia de que há, nos
discursos, lacunas ou brechas que serão “preenchidas” ou “acabadas” de diferentes maneiras. A possibilidade do Palhaço romper com a rigidez pelo humor
é a mostra de que há múltiplas possibilidades de ler um discurso, uma situação e,
por fim, de ver o mundo.
Podemos perceber o Inacabamento quando pensamos nos intervalos
presentes na narrativa dos livros ilustrados. Sendo de natureza elíptica (Linden,
2011), implica uma complementação pelo leitor. Assim como na narrativa textual
podemos perceber informações que estão contidas nas “entrelinhas”, que não estão presente mas são subentendidas, também nos livros de imagem, mesmo sem
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o texto escrito, perceberemos o jogo estabelecido pelo autor com informações que
estão ausentes mas são subentendidas. Quer seja na passagem de uma ilustração
para outra – que pressupondo a noção de sequencialidade, provoca o
preenchimento da lacuna temporal entre as páginas/imagens –, quer seja pelo
recorte feito pelo ponto de vista proposto na ilustração – que contempla parte da
realidade narrada, enquanto inevitavelmente omite outras. E é nesse jogo,
sequencial, de ausência e complementação que se desenvolve a narrativa.
É a partir dessas questões que Sophie Van der Linden vai compreender o
Livro Ilustrado (e também o Livro de Imagem), especialmente como um objeto de
natureza “elíptica e incompleta” (Linden, 2011 p. 48). Em diversos momentos os autores referenciados neste trabalho abordam essa questão, seja pelo aspecto das
“lacunas e brechas” preenchidas pela outra linguagem (textual/visual), seja pelas lacunas existentes entre uma página dupla e outra – numa espécie de
“entrepáginas”, parodiando a noção de “entrelinhas”. Sendo assim, o que “não é dito” é também de potencial importância para o texto. Como as pausas e silêncios destacados por Linden para a composição do ritmo (Linden, 2011 p. 147), ou nas
formas “inacabadas”, bem como nos “brancos” (Linden, 2011 p. 150):
Textos e imagens manifestamente trabalham em conjunto, mas também
sabem, por sua vez, criar alguns ‘brancos’. Aos do texto correspondem a vaporosidade da imagem, seja quando mantém indefinição, seja quando
41
revela a carência à custa de muita observação ou interpretação subjetiva.
(...)
Os ‘brancos’ não são sistematicamente preenchidos e, na maioria das vezes, texto e imagem lançam seus não ditos um para o outro. (Linden,
2011 p. 152, 153)
Cabe ressaltar que a ideia de uma natureza elíptica e incompleta não se
limita somente ao objeto em questão. Poderíamos verificar além dos livros
ilustrados, também nos livros sem imagens a ideia de uma natureza elíptica que
complementaria a narrativa, como propusemos num paralelo entre os termos
“entrepáginas” e “entrelinhas”. A ideia, portanto, é perceber na ausência, no que não é dito, a potencialização de múltiplas leituras. É explorando as brechas de
regras e normas que o Palhaço constrói seus números e é explorando as imagens e
suas ausências (o que está fora do quadro, ou que está “entre as páginas”) que também se constrói a narrativa no Livro de Imagem. E mais visível ainda no
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Palhaço Mímico, que constrói sua narrativa no que não mostra, utilizando-se de
elementos que não estão presentes para produção de discurso e sentido. É,
portanto, na ausência que trabalha o Palhaço Mímico – na ausência da fala, como
é de costume associá-lo, mas muitas vezes também na ausência de objetos
(elementos de cena, de cenários etc.).
Na ideia de ausência duas questões estão colocadas. A primeira corresponde
a certa competência de leitura – a ideia de que o leitor compreende o mecanismo
de que na sequência de imagens é apresentada uma narrativa. E que as imagens
mostradas não são necessariamente todas as ações dessa narrativa, mas o
suficiente para que sejam compreendidas. Na junção entre as informações
apresentadas com as informações que não são ditas na sequência visual, o leitor
constrói um sentido para o discurso narrativo. A segunda, de que o leitor está
diante dos fatos no momento em que eles acontecem. Sendo assim a história não
está escrita, está em processo de construção.
Destacando a característica afirmativa da linguagem, a ela propomos um
contraponto, uma abordagem alternativa pretendida neste trabalho: um olhar para
um objeto cuja característica é a ausência do elemento sob o qual esse objeto é
normalmente analisado e criticado. A narrativa, tanto no Livro de Imagem quanto
na cena do Palhaço Mímico, prescinde da palavra em sua construção. E é
justamente partindo da ideia de que no jogo e na compreensão do silêncio,
propostos nos dois casos, funcionam a fruição estética e a experiência narrativa.
42
Assim, a ausência como forma de abordagem se coloca como uma busca por
enfrentar a característica afirmativa da linguagem, sem contudo entendê-la como
oposta. Mas, na concepção de que nesse jogo de complementaridade se estabelece
uma condição oportuna para a análise.
2.3
Um olhar para a ausência
Para darmos início a abordagem sobre ausência, iremos primeiramente
pensá-la como forma de Silêncio. Utilizaremos o termo silêncio apesar de
encontrarmos em diferentes autores a mesma noção nomeada de maneira diversa.
A partir de então, averiguaremos as razões desses silêncios e o que eles teriam em
comum entre si, de tal maneira que permitissem uma organização.
O caminho escolhido para essa organização se deu a partir de três categorias
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em que o uso da palavra silêncio poderia ser pensado: o que é indizível, o que não
deve ser dito e o que não é dito. Em todos os casos iremos, por simplificação,
conduzir o silêncio como ausência de discurso representado pela linguagem verbal
(oral ou escrita). O que não limita a perceber o silêncio somente no âmbito dessa
linguagem. A discussão que se estabelece poderia ser expandida a outras
linguagens diferentes, sem contudo perder sua essência.
O vácuo do indizível
Axel Honneth (2009), através dos estudos da psicanálise, traz uma análise
da relação entre mãe e filho chamando atenção, principalmente, pela maneira
como essa relação é construída, já que a criança ainda não possui domínio da
linguagem verbal. A partir do exemplo de Honneth, podemos dar início à reflexão
sobre essa categoria do silêncio: o indizível. No exemplo dado acima, em que a
criança ainda não possui o domínio da linguagem verbal para traduzir seus
sentimentos e ânsias, está presente o indizível. O que buscamos entender desse
vácuo é a ausência (como desconhecimento) do código.
Bem próximo a esse tipo de silêncio imposto pela ausência do código temos
o silêncio pela limitação de um código. Uma expressão sensível diante da qual
diríamos como consenso que “não temos palavras para descrevê-lo” é o motivo, 43
por exemplo, para o silêncio indizível por limitação. É uma experiência que pode
ser percebida em uma obra de arte, na fruição, no prazer, na alegria, no gozo. Mas
como o silêncio é ambivalente e convive bem com o diferente e o contrário,
também encontramos o silêncio na violência, na feiúra, na tristeza, na dor –
também muitas vezes rompido com grunhidos e sons que na tentativa de exprimir
o sentimento, só encontra sons sem significado verbal.
Cabe ressaltar que no silêncio por limitação da linguagem, quando não
encontramos recursos suficientes, muitas vezes lançamos mão de outras
linguagens que possibilitem o escape. É uma espécie de complementação à lacuna
deixada por uma linguagem. Ou ainda conjugamos informações de linguagens
distintas produzindo construções na tentativa de possibilitar a expressividade
nesse hibridismo. O que veremos em muitos casos é que há mudança de
linguagem no discurso, na busca por uma expressão mais fiel, ou viável, ao que se
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pretende.
Como outro exemplo, poderíamos citar os filmes mudos do princípio do
século XX. O som, os diálogos, nas películas projetadas, eram pouco utilizados
(por demandar cartelas) ou não eram utilizados. O silêncio – genialmente
trabalhado por artistas como Charlie Chaplin e Buster Keaton – muitas vezes foi
inevitável, por impossibilidades técnicas. Os sistemas de reprodução de som, na
época, não tinham potência nem desempenho suficientes que dessem conta de
serem utilizados nas salas de projeção. Assim, como não havia no momento
aparelhos com tecnologia para gravar e reproduzir o som com qualidade e
sincronia suficientes para serem utilizados, os filmes ficaram conhecidos como
“mudos”. Muitas vezes esse silêncio era interrompido por orquestras ou músicos que tocavam ao vivo, acompanhando a projeção. Apesar disso, continuamos a
chamá-los de “mudos”. O silêncio nesses casos não é colocado por uma limitação
da linguagem, mas por uma limitação técnica de reproduzi-lo, e é por isso alocado
aqui na categoria de indizível.
Poderíamos também apontar o Indizível na exclusão proposta por uma
prática cultural. Um exemplo disso é a dicotomia “racional x irracional”. Sobre isso, Maffesoli (2005) em seu texto Elogio da Razão Sensível pontua diversos
aspectos dessa dicotomia e o que ela acabou gerando dentro do racionalismo, que
para a discussão é bem representativo. Essa dicotomia evocada pelo racionalismo
científico, não só determina a separação entre esses dois polos da inteligência
44
humana – que por si só já conduz a uma fragilidade de ambos –, como também
negligencia a forma de pensar sensível. Assim, como o próprio Maffesoli coloca:
podemos insistir sobre o fato de que foi no rastro da dicotomia evocada mais acima que se
constituiu o racionalismo científico; e isso, tanto no que diz respeito à realidade individual
quanto à realidade social. Como bom representante de tal tendência, Freud nota que a
oposição eu/não-eu, sujeito/objeto, e poderíamos prosseguir com cultura/natureza,
corpo/espírito, funda-se sobre o espírito de dominação. (Maffesoli, 2005 p. 40)
A dicotomia que exclui do pensamento científico o polo sensível/emocional
demonstra a incapacidade de se levar em consideração questões da subjetividade
dentro desse método de produção de conhecimento. O polo sensível/emocional é
então contido, silenciado para valorização do pensamento racional. O que não é
possível de ser dito, expresso, traduzível pela razão, não interessa ao discurso
científico.
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Gianni Vattimo (2004) é outro autor que também traz uma boa contribuição
para o tema silêncio, quando trata do silêncio que existe na definição de Deus para
a Filosofia. Em seu livro Depois da Cristandade, ele salienta que é preciso
retomar a discussão a respeito de Deus, interrompida na Filosofia – ilustrada por
Nietzsche no seu anúncio da Morte de Deus. Essa interrupção, segundo Vattimo, é
resultado do
crepúsculo das grandes metanarrativas (segundo a expressão de Lyotard) – das filosofias
sistemáticas persuadidas de terem apreendido a verdadeira estrutura do real, as leis da
história, o método para o conhecimento da única verdade –, também perderam o valor
todas as razões fortes para um ateísmo filosófico. Se não é mais válida a metanarrativa do
positivismo, não se pode mais pensar que Deus não existe porque este não é um fato
demonstrável cientificamente. (Vattimo, 2004 p. 109)
O silêncio que se instaura na filosofia, quando o tema é Deus, também se
aproxima do que estamos chamando de Indizível. Nada mais complexo – e
arrisca-se a dizer “impossível” de ser traduzido em linguagem – do que a
experiência e a crença da existência divina. O silêncio que se estabelece é, para
Nietzsche, o mesmo silêncio diante da Morte. Um encontro com Deus não poderia
ser descrito, não teria linguagem que daria conta de representá-lo.
O silêncio do que não deve ser dito
Neste tópico o que chama atenção para a discussão é a palavra “deve”, colocada antes do dizer. O que deixa implícito uma ação desejada pelo outro,
45
construída socialmente, internalizada ou não pelo próprio sujeito. Trata-se de
regras mais ou menos ocultas, porque levaremos em consideração regras
explícitas – normas, leis; bem como as implícitas ou não claras –, moral, ética,
valores. Uma pontuação bastante interessante para a discussão é colocada por
Pasolini (1990). O autor aponta para uma diferença entre as regras colocadas em
regimes ditatoriais e as regras do sistema capitalista. Nas duas situações temos
repressões e regras de conduta a serem obedecidas. A diferença para Pasolini está
na natureza dessas regras. O que para o autor fica claro nos regimes políticos
ditatoriais (censura, violência, repressão, autoritarismo), também está presente no
sistema capitalista, mas de maneira não clara. Para o autor, o capitalismo de
consumo concede ao sujeito uma “liberdade”. Mas essa liberdade, na leitura de Pasolini, não se trata de uma “ausência de regras”, ausência da violência, da repressão e da censura – visíveis nos sistemas ditatoriais, trata-se agora de regras
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não claras. Portanto, o silêncio do que não deve ser dito trata do sujeito diante da
sociedade, e o que esta espera dele como atitude ou reserva, segundo regras claras
ou não.
Ainda segundo Honneth (2009), podemos verificar o silêncio do que não se
deve ser dito nas Artes, sob a forma da Censura. Como exemplo oportuno,
podemos trazer a Commedia dell’ Arte Italiana, que durante a Idade Média sofreu
com a repressão e censura. Nesse caso, a censura era uma norma estabelecida
pelos governantes contra à prática artística desses indivíduos. Atores, diretores,
artistas em geral foram ameaçados e perseguidos. E por isso, fugindo percorriam
diversas cidades e países encenando suas peças, que na maioria das vezes eram
compostas sobre a temática das fraquezas humanas. Assim, não raros apareciam
temas como adultério, roubo, chantagem, corrupção e diversos outros que iriam de
encontro à moral, aos bons costumes ou aos poderosos e as leis, o que na época,
para os governantes, justificava a censura. Curiosamente a censura muitas vezes
dava-se sobre a palavra, sobre o diálogo. Como resposta desenvolveu-se nessa
época a técnica da mímica na Comedia dell’Arte, como alternativa à encenação
sem palavras. E acredita-se que por conta disso vincula-se à mímica o palhaço e
os artistas de rua e do circo.
Figuras muito comuns durante a Idade Média, e que tiveram bastante
influência da Commedia dell’Arte, foram os bobos da corte e bufões – que por
força de simplificação chamaremos todos de palhaços. Em contrapartida, esses
46
personagens – que para Bakhtin (1993) não se despiam de seus papéis em nenhum
momento, tornando vida e cena instâncias inseparáveis – eram os únicos que
podiam – possuíam a permissão dos reis – dizer certas “verdades proibidas”. Essas verdades já eram de conhecimento geral muitas vezes, mas ninguém ousava
comentar por medo de retaliações. Essas verdades proibidas, ou melhor, o silêncio
dessas verdades é o que podemos chamar de silêncio do que não deve ser dito.
Apenas alguns, naquela ocasião, tinham certa liberdade de falar. Que por sinal
possuíam somente por não obter credibilidade social. Eram vistos como sujeitos
confundidos com loucos e desprovidos de dignidade humana. Obviamente por
isso poderiam tecer tais comentários sem receber punições tão severas quanto as
que seriam impostas a qualquer outro cidadão. Isso não retira, obviamente, a
possibilidade de muitos deles terem sido castigados – ou por passarem dos limites,
ou simplesmente por perderem a liberdade concedida pelo rei.
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Dentro de sistemas autoritários, que são um risco presente sempre que há
radicalismo e inflexibilidade ao lidar com o diferente, a censura é muito comum.
No texto Interdependência e Sensibilidade Solidária de Hugo Asmann e Jung Mo
Sung (2000), os autores afirmaram que a cultura na qual vivemos sempre abre e
fecha janelas, permitindo e impedindo visões de mundo. Limitando, selecionando
a forma de se perceber a realidade. Repudiando e ignorando o diferente. Assim
abrindo espaço ao preconceito, à marginalização e a diversas maneiras silenciosas
(ou não) de rejeitar o diferente. Podendo em casos mais graves chegar à violência
– não faltando exemplos no fascismo, nazismo, ditaduras no Brasil e América
Latina, regime de escravidão e conflitos religiosos espalhados ao redor do mundo.
Há também as regras estabelecidas silenciosamente dentro da sociedade que
dizem respeito à conduta social, à maneira de agir em grupo, à polidez. De forma
mais branda, mais ainda uma conduta que “deve ser respeitada”, é o que no Brasil dá-se o nome de “politicamente correto”. O que “não deve ser dito” aqui aparece dentro da dicotomia do certo/errado. São “pactos sociais”, são contratos
estabelecidos no silêncio (por vezes) onde o que fica calado tem um significado e
uma repressão externa e não oficializada. Não é assim, uma norma, uma regra,
mas um “senso comum”. E podemos citar também as regras de etiqueta, a educação, tabus etc. São todas formas não normativas de se limitar certas ações –
condutas esperadas.
47
Novamente em Asmann & Sung (2000), a temática do silêncio se mostra
presente também na questão da Solidariedade e nas questões relativas a valores. A
breve análise do uso da palavra solidariedade recorrente na sociedade traz como
exemplo os Parâmetros Curriculares Nacionais do Ensino Médio. Nesse contexto,
os autores destacam a palavra solidariedade, que aparece com dois significados
distintos. O primeiro é a solidariedade entendida como um fato e uma necessidade
de compreensão da interdependência na vida social; o segundo, mais normativo e
propositivo, é “um chamado à superação da exclusão e da segmentação social através da educação” (Asmann & Sung, 2000 p. 75).
Estes dois sentidos estão interligados na medida em que a solidariedade como atitude, ou a
solidariedade como uma questão ética, nasce de reconhecimento de que a
solidariedade/interdependência é um fato, uma necessidade para a vida da e na sociedade.
(Asmann & Sung, 2000 p. 75)
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O que chama atenção com relação ao tema silêncio aqui está nos exemplos
apresentados no texto em que duas pessoas cientes do risco de causarem acidentes
graves a outras, continuam agindo como se suas ações não fossem interferir na
vida alheia. A forma de interpretar essa recusa em ser solidário, pelo autor, é
figurada como um “tipo de cegueira”, que impede a percepção das relações de interdependência de todos os seres vivos, o que provoca a recusa de agir “de acordo com o esperado” – de tal forma a manter a coesão social. (Asmann &
Sung, 2000 p. 78)
Essa recusa, essa não ação ou não atitude – para utilizar as palavras dos
autores, é num certo sentido voluntária, ou seja, um ato que parte da própria
vontade do agente em recusar-se a fazer. Aqui percebemos a alocação dessa
recusa no “não dito”, o silêncio que parte do sujeito – que me é confortável ou
oportuno.
Poderíamos lançar mão de André Comte-Sponville (1995), que aborda a
virtude como uma tentativa de, na ação, nos tornarmos “mais humanos”, o “esforço de nos portar bem” (Comte-Sponville, 1995 p.9). E então pontuamos a
lacuna como boa conduta, polidez. Assim, aqui poderíamos compreender que o
que seria calado seria o que não deve ser dito, para ser mantida em equilíbrio o
que o autor chama de “relação simétrica”. A necessidade do outro e do reconhecimento é parte do ato de fazer, da escolha e dos valores adotados.
48
Claro vê-se que esse tema tem relação direta com “bom convívio social”. Regras de boa convivência são condutas (apoiada em itens já revelados: moral,
ética, valores etc.) que geram no interior da sociedade uma implícita
normatização. O silêncio que é imposto e colocado segundo a lei e respeitado sob
penas previstas. Assim, como o próprio Honneth coloca, trata-se das relações
sociais discutidas no campo jurídico.
Se o indizível não encontra na linguagem maneira de ser expresso, o
silêncio do que não deve ser dito cala por regras e normas estabelecidas. A lacuna
do não dito se coloca como um contraponto a essas duas situações.
A lacuna do não dito
Diferentemente do indizível, é uma categoria que recusa a ação. Não se trata
de uma impossibilidade de organização do código ou mais ainda, uma limitação,
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nem uma proibição que não permita traduzir a experiência vivida. Trata-se de um
silêncio oriundo do arbítrio. O que é dizível, mas não é dito, tem razões diversas.
Poderíamos classificar como razões de ordem emocional, psíquicas, sensíveis,
traumáticas etc. Bem como estratégica, poética etc. De qualquer modo, a lacuna
do não dito passa pela retenção subjetiva.
Para dar início à discussão traremos uma forma de visualizar a lacuna do
não dito no início de qualquer processo. Ou, em outras palavras, a lacuna original.
O silêncio tratado como uma folha branca, alva, pura e virgem, é para alguns um
ambiente sagrado onde nele se procurará manter a sacralidade. A folha em branco,
onde a partir dela tudo pode ser desenhado, pintado, reproduzido e criado, traz
uma representação de originalidade. E utilizamos aqui, para definir essa palavra, o
sentido de retorno à origem, ao início.
Cabe também abordar a lacuna como expressão. E nesse caso ressaltaríamos
a expressão artística. A escolha do termo “lacuna” no nome dessa categoria traz em si a ideia de uma falta. De algo que deveria estar ali, mas não está. E por conta
disso, a ideia de algo que é esperado mas não se confirma. O silêncio que envolve
uma expectativa. Esse silêncio como “frustração” pode ser uma provocação poética. Uma intencionalidade na supressão de algum termo, com a esperança de
que no ato de fruição essa lacuna seja preenchida pelo próprio espectador. Como
no caso da elipse, citada anteriormente. Pode ser assim, uma provocação do autor
49
em fragmentar a obra, fragmentar um texto, para uma reconstrução no ato da
fruição.
E aí, estamos diante da lacuna como subversão, como transgressão. Barthes
em Aula (1988), quando aponta para a característica assertiva da linguagem,
apesar de acreditar que uma língua se caracteriza mais pelo que ela obriga e
menos pelo que ela impede de dizer, e por isso a chama de fascista, não deixa de
considerar as restrições da língua. O que chamamos de silêncio do indizível, em
Barthes encontraríamos claramente ao que ele se refere de “liberdade impossível”. Ou seja,
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Na língua, portanto, servidão e poder se confundem inelutavelmente. Se chamamos de
liberdade não só a potência de subtrair-se ao poder, mas também e sobretudo a de não
submeter ninguém, não pode então haver liberdade senão fora da linguagem. Infelizmente,
a linguagem humana é sem exterior: é um lugar fechado. Só se pode sair dela pelo preço
do impossível. (Barthes, 1988 p. 15-6)
A solução proposta pelo autor é encontrar maneiras de trapacear com a
língua, trapacear a língua. E dá a essa “revolução permanente da linguagem”, essa “trapaça salutar, essa esquiva, esse logro magnífico que permite ouvir a língua
fora do poder” o nome de: Literatura.
Claro que toda categorização é em si mesma uma forma de exclusão, e,
portanto, gera as tão discutidas sombras e silêncios. Aqui, o esforço de categorizar
se deu em função de perceber as proximidades dos motivos que geravam cada
silêncio, mas compreendendo ser possíveis áreas de transição entre categorias, que
impossibilitariam uma delimitação de forma rígida e definitiva. Um silêncio
limitado pela linguagem pode muitas vezes não ser possível devido ao
desconhecimento de outros mecanismos dessa linguagem. E retomando o exemplo
de fechar e abrir janelas, de Asmann & Sung (2000): “cremos que o que vemos é toda a realidade ou toda a verdade”. O não dito voluntário, por vezes, pode ser
apenas uma “norma oculta” já tão interiorizada que não nos damos conta que a vontade foi conduzida pela norma. Assim, as categorias aqui descritas não são,
nem devem ser, de qualquer maneira restritivas. Podendo haver mesclas,
hibridismo e contaminações.
Portanto, o silêncio pode ser gerado a partir de motivações poéticas –
quando se procura no silêncio a reflexão e a participação do espectador no
momento da fruição. Motivação intelectual – como momento de reflexão,
50
pensamento, em que me silencio para o exterior, mas direciono atenção para
minha subjetivdade. Na religião – onde a prece, a meditação necessita do silêncio
como encontro com o espiritual, ou o respeito ao ritual, à cerimônia, à ideia de
transcendência. Até num campo mais violento, como o silêncio da repressão, da
censura. O silêncio da destruição, da degradação, da desumanização, da violência.
Assim, colocamos a possibilidade de se analisar um objeto pela ausência de
determinada linguagem. Também a possibilidade de um olhar que leve em
consideração o que não é mostrado, parte para uma abordagem que não só
considera o que é visível, dito, como o que permanece oculto. E essa é a proposta
para a abordagem do Livro de Imagem com apoio no Palhaço Mímico, quando
ambos apresentam a ausência do elemento textual esperado culturalmente.
Cabe a partir de agora um olhar mais detalhado sobre ambos os objetos de
estudo para perceber, ao longo de sua trajetória histórica e de sua práxis, o que
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poderíamos extrair de questões úteis para uma análise da narrativa – no seu
contexto de produção, transmissão e consumo. De tal forma que leve em
consideração os aspectos próprios da Linguagem – principalmente seu caráter
afirmativo; ao Discurso por levar em consideração o contexto de uso da
linguagem; e então compreendermos de que maneira se processa o
desenvolvimento da experiência Narrativa nos dois campos.
51
3.
Livro de Imagem e Palhaço Mímico
A opção pelo Livro de Imagem deu-se em virtude de algumas questões,
principalmente voltadas a um aprimoramento na prática da Ilustração. O impulso
de conhecer melhor o Livro de Imagem e suas possibilidades levou-me ao
interesse pela narrativa sem palavras, o que conduziu-me despretensiosamente à
aproximação do Palhaço Mímico.
A experiência profissional com o Livro de Imagem revelou uma
possibilidade de construção narrativa sem o texto escrito, e com ela um grande
interesse e desafio. Ao mesmo tempo em que esse objeto desafiava a contação de
uma história por imagens, ele trazia a possibilidade de uma nova forma de autoria,
por desvincular o trabalho do ilustrador da necessidade de um texto escrito e,
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portanto, de um escritor (autor). Essa ausência proporciona uma liberdade e uma
autonomia artística ao ilustrador. Mas com ela a ausência também do “ponto de partida” tradicional do trabalho de ilustração. Enquanto me agradava a possibilidade de autonomia, percebia também a dificuldade de criar histórias por
imagens. Nesse sentido remetemos em primeiro lugar à lacuna do não dito, a
lacuna como expressão poética – entendendo a ausência do texto como desafio,
como opção do ilustrador; e em segundo pela lacuna original, ausência do ponto
de partida em que culturalmente se inicia o trabalho do ilustrador – o texto.
Em paralelo à experiência como ilustrador, nasce a curiosidade pelo
personagem palhaço. A experiência oriunda da formação nas Artes Cênicas foi
suficiente para conduzir uma pesquisa pessoal sobre essa personagem. O encontro
com profissionais, a participação em eventos e o contato com espetáculos foram
aos poucos revelando algo em comum entre os profissionais da área das Artes
Cênicas e da Ilustração: ambos tinham um vínculo com a Literatura e a
preocupação de uma composição híbrida (texto e imagem) que contassem uma
história. O que não se limita somente a essas duas áreas, pois também poderíamos
citar o teatro de bonecos, o cinema, a história em quadrinhos, a animação, entre
outros. No entanto, o que fundamentou uma pesquisa mais aprofundada sobre
essas duas áreas específicas, além do interesse pessoal, foi a argumentação teórica
de alguns autores que já apontavam para essa proximidade.
52
Rui de Oliveira, conhecido e premiado ilustrador brasileiro, autor também
de livros de imagens e teórico, cita em seu livro dirigido à arte de ilustrar Pelos
Jardins Boboli (Oliveira, 2008) que “assim como o trabalho de um ator que interpreta vários papéis (...) vejo o ato de ilustrar como um processo de criação
semelhante”. (Oliveira, 2008 p. 149) O autor ainda conduz a discussão, apontando
grandes referências do teatro, como Konstatin Stanislavsky e Bertold Brecht, em
que aborda por exemplo a discussão mais tradicional sobre o distanciamento do
ator e da personagem. Em outro momento também aponta para o cinema, mas
prefere a aproximação com o teatro: “As convenções e sintaxes do teatro e a relação do ator com o texto levaram-me a me aproximar mais do teatro do que do
cinema, com o intuito de entender o ofício de ilustrar”. (Oliveira, 2008 p. 151)
A discussão de Rui de Oliveira segue na direção de propor uma
interpretação própria para cada texto, relacionando com uma espécie de
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laboratório1 para construção da personagem, e ele acredita que interpretações
diferentes para cada texto interferem decisivamente, por exemplo, na linguagem e
técnica adotadas.
Aqui novamente percebemos uma especificidade nas Artes Cênicas que as
aproximam da ilustração literária. O contato com a obra textual (tanto no livro
como no palco) resulta numa interpretação do diretor e do ilustrador, que
proporciona montagens diferentes da mesma peça e edições diferentes do mesmo
livro. E aqui nos afastamos um pouco do cinema e da animação, pois em ambas as
situações essa realidade não é tão comum.
Um outro autor que dedicou bastante atenção teórica e prática à ilustração,
com grande experiência na narrativa visual, é Uri Shulevitz. Em seu texto Writing
with Pictures (Shulevitz, 1985), o autor aponta diversas questões que envolvem
uma narrativa visual; algumas delas serão abordadas com mais profundidade
adiante. Uri concorda com uma certa proximidade do livro ilustrado com as Artes
Cênicas. O autor aponta também para essa proximidade com o cinema, mas
especifica o cinema mudo. “A pictures book is closer to theater and film, silent
film in particular, than to the other kinds of book.” (Shulevitz, 1985 p. 16) Outro
aspecto, porém, destaca-se na análise de Uri: o fato do autor afirmar uma
Termo originário do teatro, no qual o ator busca a proximidade com o contexto onde a sua
personagem viveria, oportunidade e fonte de pesquisa para a construção desta.
1
53
semelhança direta entre o Livro de Imagem e a Pantomima. (Shulevitz, 1985 p.
18)
De maneira geral, podemos considerar que o vínculo com a Literatura era o
ponto inicial de aproximação entre as Artes Cênicas e a Ilustração. O que nos
permite dizer que o vínculo, portanto, que aproxima as duas áreas é o vínculo com
o texto verbal. Com o intuito, porém, de uma perspectiva alternativa, este estudo
buscou um recorte específico dentro de cada área, o que resultou na escolha do
Palhaço dentro da área das Artes Cênicas e na Ilustração, o Livro Ilustrado. A
partir de então, a proposta é analisá-los na situação desvinculada do texto verbal,
na ausência da palavra. Nas Artes Cênicas, portanto, o Palhaço Mímico e, na
Ilustração, o Livro de Imagem.
Durante encontros de estudantes frequentados nos anos posteriores à
conclusão da graduação, arriscou-se a provocar uma discussão entre eles sobre a
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relação entre o personagem Palhaço e o campo do Design. Elaborou-se uma
oficina, que não era voltada para a aprendizagem de uma técnica específica, mas
tinha o objetivo de propor uma reflexão sobre o campo do Design que partisse da
experiência do trabalho como Palhaço. A oficina intitulada Designers da Alegria
foi ministrada primeiramente na Universidade Federal do Espírito Santo, no II
Encontro Regional dos Estudantes de Design RJ/ES, em Vitória, em 2006.
Percebeu-se um grande interesse despertado, proporcionado principalmente pela
visibilidade da oficina, já que os estudantes eram levados às ruas caracterizados,
mas também pelo aprofundamento das discussões posteriores a essa experiência.
Por isso, a oficina foi levada a diversos outros encontros em diferentes cidades e
regiões do país, sempre em encontros destinados a estudantes de Design: VIII
Interdesigners na UNESP em Bauru/SP, XVI Encontro Nacional dos Estudantes
de Design na UNB em Brasília/DF, II Encontro Regional de Estudantes de Design
CO/MG na UEMG em Belo Horizonte/MG e no IV Encontro Regional dos
Estudantes de Design na UFBA em Salvador/BA, todos no ano de 2006.
54
Figura 1 –
À esquerda e ao centro: participantes e grupo de discussão posterior à vivência
da oficina Designers da Alegria em Vitória/ES; à direita: participantes da oficina em Brasília/DF .
Assim, com estudos teóricos e práticos na área da Ilustração, bem como das
Artes Cênicas, me volto ao Livro de Imagem e Palhaço Mímico, percebendo a
proximidade que ambos possuíam no que tange à ausência de texto oral ou escrito
na construção da narrativa; e, assim, realizo experimentação prática e reflexiva
proporcionada pela oficina no ano de 2006, base para uma busca por
aprofundamento que resultou, em parte, neste trabalho. O que pretende este
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capítulo é, portanto, visualizar os dois campos mencionados, procurando ora na
trajetória histórica, ora na especificidade técnica e criativa de ambos, pontes e
características comuns ou destoantes e questões que provocassem uma reflexão
mais abrangente da construção de narrativas na ausência do texto escrito ou oral.
3.1
Marginalização
Uma primeira característica comum entre os dois campos abordados foi a
carência de material teórico e crítico. Uma contextualização histórica de ambas as
áreas nos permitirá visualizar essa questão com maior clareza e perceber nela
certa marginalização.
Inserção no mercado
Podemos perceber que ambos os profissionais (ilustrador e palhaço)
deparam com certa marginalização quando são vistos dentro do âmbito comercial.
E através de uma perspectiva histórica, poderemos dar visibilidade a essa
marginalização relativa e que, sob a ótica do trabalho, aponta já para uma primeira
manifestação de ausência.
O breve relato do surgimento do Livro de Imagem feito por Rosângela
Ferraro (2001) destaca o cenário europeu dos anos 1930, posteriormente no Brasil
no final da década de 1960 e principalmente no chamado Boom dos anos 1970 da
55
Literatura Infantil Brasileira. Antes disso, eram raros os livros dedicados ao
público infantil com as características que encontramos comumente hoje:
“ricamente ilustrado, leve, pouco volumoso, adaptado ao porte físico e aos interesses da criança pequena”. (Ferraro, 2001 p. 31)
Segundo Nelly Novaes Coelho (Coelho, 2000), na Europa, nas décadas de
1920 e 1930 tal mudança deveu-se ao impulso dado pelas “inovações propostas pela Escola Nova” (Coelho, 2000 p.186), fundamentadas pelas pesquisas da
psicanálise, ligadas à pedagogia, que apontam e asseguram as imagens como os
“mediadores mais eficazes para estabelecer relações de prazer, de descoberta ou de conhecimento”. E aponta Paul Faucher como o protagonista desse
desenvolvimento, principalmente pela idealização dos Albums du Père Castor,
resultado de suas atividades oficiais como educador e pedagogo no controle e
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seleção de livros didáticos. (Coelho, 2000)
Figura 2 –
Diferença dos livros produzidos antes e depois das inovações da Escola Nova:
The Old Garden,1894, à esquerda, e Le Calife Cigogne - Albuns du Pére Castor, 1948.
No Brasil, o reflexo dessas mudanças europeias só vai ser percebido no final
da década de 1960 e início dos anos 1970. Impulsionada pelas propostas
educacionais trazidas pela Escola Nova e principalmente pelo incentivo
governamental, os livros infantis passaram a ter grande visibilidade no cenário
brasileiro. A partir do interesse comercial de editoras brasileiras com o incentivo,
estas passam a exigir mão de obra especializada – não só de escritores, mas
principalmente de ilustradores e designers.
56
Figura 3 –
Influências das inovações propostas pela Escola
À esquerda, exemplar de Monteiro Lobato Idéias de Jéca Tatu, de 1948.
À direita, A Bolsa Amarela, de Lygia Bojunga, 1976.
Nova
no
Brasil:
Com o visível crescimento da qualidade dos livros infantis, destacando aqui
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a parte visual – design gráfico, diagramação e ilustrações –, a teoria e a crítica
literária infantil é obrigada a formular categorias e reformulá-las constantemente
para darem conta de classificar e estudar os inúmeros tipos de livros que se
desenvolveram nessa época: livros jogos, livros brinquedos, formatos diferentes,
com texturas, coloridos etc. Verifica-se, nesse sentido, um descompasso de
aprofundamento teórico e crítico que desse conta de acompanhar o
desenvolvimento, principalmente com relação à imagem e sua contribuição ao
campo da literatura.
Consequências dessa lacuna podem ser percebidas em diversas situações. A
primeira delas é que a partir do momento em que o ilustrador passa a ter uma
participação importante e reconhecida nos livros – e na narrativa –, não há tempo
de reflexão e, portanto, de estudos teóricos voltados para a linguagem visual
dentro da Literatura. Esse descompasso
gera, consequentemente, uma
marginalização da atividade também nas reflexões teóricas da área.
No palhaço também podemos perceber certa marginalização quando
Bakhtin (1993) se debruça sobre a cultura cômica popular da Idade Média para
constatar alguns aspectos relacionados não só a essa personagem, mas à área das
Artes Cênicas em geral. Segundo ele, o grande acontecimento dessa época, que
contemplaria esses personagens e serviria como reflexão para o contexto em
questão, era o Carnaval. Sua riqueza de festas públicas, ritos e cultos, e
personagens como anões, bufões, palhaços irão contribuir para o riso
57
carnavalesco.
Este
último,
que
contagiava
rapidamente
a
população
independentemente de classe ou posição social, tinha como característica mais
forte justamente o rompimento com as relações hierárquicas. Igualando pessoas
de diferentes classes sociais, propunha uma “segunda vida” – termo utilizado pelo
autor para conceituar um momento em que as relações sociais marcadas pelo
regime feudal eram desestruturadas e ignoradas –, que “era contrária a toda perpetuação, a toda idéia de acabamento e perfeição, mostrando a relatividade das
verdades e autoridades no poder”. (Burnier, 2009 p. 206) O Carnaval apresentado como fenômeno social para a manifestação do
cômico é apresentado como uma possibilidade de contraposição à ordem vigente.
Uma alternativa ao oficial (Igreja e Estado), ao estabelecido, ao cotidiano.
Seguindo essa perspectiva o cômico apresenta-se assim como a possibilidade do
oposto ao sério, ao culto, ao protocolo. Cabe destacar que Bakhtin não considera o
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Carnaval uma manifestação puramente teatral, artística. Para ele o Carnaval situase na fronteira entre a arte e a vida. Assim, personagens e espectadores se
encontravam indistinguíveis. Não existia a separação entre o público e o palco.
Aliás, não existia o público. “Os espectadores não assistem ao Carnaval, eles o vivem.” Durante o Carnaval, segundo Bakhtin, não se pode fugir, pois este é ilimitado espacialmente, e as leis que reinam durante a festa são as leis da
Liberdade. E é na ânsia pela liberdade, na fuga ao oficial, à vida cotidiana
ordinária, que o povo está imerso nessa “segunda vida”, mesmo que efêmera. Aqui, prazer e necessidade humanos se misturam. Simbolismo até hoje mantido
pela tradição de “passagem das chaves” do prefeito para o Rei Momo –
representante do Carnaval, numa simbólica transferência de autoridade.
...triunfo de uma espécie de liberação temporária da narrativa dominante e do regime
vigente, de abolição provisória de todas as relações hierárquicas, privilégios, regras e
tabus. (...) Opunha-se a toda perpetuação, a todo aperfeiçoamento e regulamentação,
apontava para um futuro ainda incompleto. (Bakhtin, 1993 p. 8-9)
Aqui, pontualmente, percebemos novamente a questão da ausência, mais
especificamente a lacuna como expressão e subversão, mas também embutido um
silêncio da expectativa social, da censura, da polidez e do bom convívio social,
pois o Carnaval, visto como alternativa à ordem e à vida social cotidiana, se
estabelece como uma fuga. A busca por uma alternativa, mesmo que temporária,
58
se inscreve nas Artes Cênicas e especificamente no Palhaço, de maneira
fundamental. Inclusive, alguns de seus personagens mantinham-se na sociedade
como permanentemente representantes do princípio carnavalesco dentro da vida
cotidiana. Como entidades que mantinham acesa a possibilidade de uma outra
forma de vida, da liberdade. Dentre eles, Bobos, Bufões. E sendo assim,
localizados numa “esfera indeterminada”, numa zona ausente de classificações:
Não eram atores que desempenhavam seu papel no palco. Pelo contrário, eles
continuavam sendo bufões e bobos em todas as circunstâncias da vida. Como tais,
encarnavam uma forma especial da vida, ao mesmo tempo real e ideal. Situavam-se na
fronteira entre a vida e a arte (numa esfera indeterminada), nem personagens excêntricos
ou estúpidos nem atores cômicos. (Bakhtin, 1993 p. 7)
Na França do século XVII, por razões políticas, a Commedie Française
recebe o privilégio de ser a única companhia dentro da França a ter permissão do
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Rei para representar no idioma francês. Em todas as outras encenações foram
proibidos atos e diálogos, numa resposta aos teatros populares de feira e aos
artistas de rua pelas suas encenações quase sempre críticas da política dominante
– silêncio pela censura. Retrucando às proibições, os artistas de rua criam as
peças curtas nas quais não existiam os atos. Desenvolveram monólogos, evitando
assim o uso de diálogos, e imaginaram uma série de alternativas para continuarem
encenando suas peças: dentre elas cabe destacar principalmente a mímica –
narrativas contadas sem o uso de diálogo ou palavras –, mímica como lacuna
subversiva e expressiva.
Sobre essa questão Jacques Lecoq (2010) traz uma leitura bastante
significativa para a perspectiva da ausência. O autor, ao classificar a linguagem
gestual em categorias, aponta a primeira delas como a Pantomima. Para Lecoq,
trata-se da “técnica-limite – os gestos substituem as palavras”. Assim, na ausência da palavra adota-se um gesto que comunique o que a palavra deveria dizer. Mas
principalmente, destaca o autor, que essa linguagem tem origem no teatro das
feiras por dois motivos: “fazer-se compreender num ambiente muito barulhento,
mas sobretudo devido à interdição de falar, imposta à sociedade dos atores
italianos. (...) A pantomima nasceu de uma restrição, como a existente nas
prisões, onde os detentos se comunicam por meio de gestos; ou, ainda, como se
faz na Bolsa de Valores nos dias atuais”. (Lecoq, 2010 p. 157-8) Aqui podemos
perceber as três categorias da ausência: o vácuo do indizível, quando a opção pela
59
mímica dava-se devido à limitação – impostação de voz em ambiente barulhento
como feiras, Bolsa de Valores, ou uso da linguagem gestual nos presídios; o
silêncio do que não deve ser dito, quando a mímica se coloca como resistência e
subversão a interdições; e por fim a lacuna do não dito quando a técnica, usada
por Lecoq, se coloca à disposição do ator como expressão, como um desafio de
comunicar-se no palco sem o uso de palavras.
Numa abordagem bem interessante, Mario Fernando Bolognesi (2003) nos
mostra que a construção do circo, como conhecemos hoje, vai sendo feita em
pequenas entradas de figuras e artistas oriundos de contextos marginais à alta
aristocracia (inicialmente quem apreciava e frequentava os circo destinados a
acrobacias e exibições equestres). Num primeiro momento, oriundo das feiras
(proibidas ou falidas) os artistas saltimbancos, malabaristas e palhaços, que
tinham nela sua fonte de renda, passaram a fazer parte dos espetáculos circenses,
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participando principalmente de números associados à má performance e cômicos.
Tentativas frustradas de reproduzir as acrobacias equestres. Percebe-se que
mesmo absorvendo o contingente das feiras, para os espetáculos até então
consagrados e admirados pela aristocracia, esses artistas ainda permaneciam na
marginalidade, fazendo exibições cômicas, demonstrando sua inabilidade para
aquele tipo de atividade. Em contrapartida, esses artistas vieram quebrar a
monotonia e o tédio, gerados pelas apresentações com cavalos, o que sem dúvida
sustentou e manteve o interesse sobre o espetáculo circense. Pontuamos
novamente as categorias do Indizível pela limitação técnica, como exclusão pela
prática cultural, mas também, dentro da lacuna do não dito, novamente como
expressão e subversão à ordem. E imerso nessas ausências nasce o palhaço
tradicionalmente de circo.
Com a entrada de novos artistas, principalmente os palhaços, Bolognesi
descreve uma necessidade de rever a nomenclatura, já que grande parte do
espetáculo nesse momento não mais eram números com cavalos. As cenas
giravam mais em torno do teatro. Nessa época, algumas restrições políticas ainda
proibiam as exibições intituladas de Teatro, dando concessão somente a algumas
companhias e óperas da época. “Ao teatro das feiras, prioritariamente gestual, restou a busca de outros termos, tais como ‘pièce muttes’, ‘à écriteaux’ etc.” (Bolognesi, 2003 p.37) Apesar disso, ainda hoje pode-se perceber certo
distanciamento entre o Circo e o Teatro. Aparentemente o que se percebe é que
60
culturalmente ao Circo está ligada a ideia de virtuosismo técnico, enquanto ao
Teatro está associada a noção de dramaturgia, narrativa e representação.
No final do século XVIII, apesar de uma breve suspensão, é retomada a
censura e o controle do funcionamento dos teatros. Todos os outros espetáculos
tiveram que adotar nomes variados. Assim, unem-se em espetáculos artistas de
rua, saltimbancos, palhaços e militares, todos desempregados. Aqui, pontua-se
uma constante ao longo da história do teatro, a exclusão de espetáculos que não
tinham autorização para serem encenados. E mais ainda, não considerados, não
contemplados nem legitimados pela aristocracia e, posteriormente, como
consequência, pela história oficial do teatro. É constante a percepção de que esses
artistas encontram-se comumente em situação de exclusão por prática cultural.
Sobre essa questão podemos retomar o problema da Legitimação
apresentado por Lyotard (2006), em que, segundo o autor, na consequência da
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falência das metanarrativas há o risco do mercado se apropriar dessa Legitimação.
O que podemos perceber tanto nas Artes Cênicas como na Literatura é uma certa
marginalização decorrente tanto de aspectos sociais, políticos e culturais, mas
principalmente de aspectos ligados ao mercado. O Palhaço tem no seu contexto
histórico censuras oficiais instauradas como repressão política. As apresentações
na rua, em praças, feiras e circos apontam para uma exclusão das casas de
espetáculos oficiais, o que os posiciona numa categoria malvista, em relação aos
espetáculos que eram legitimados como dignos de apresentarem naqueles espaços.
Na Literatura, a submissão do trabalho do ilustrador à narrativa textual
aponta para uma legitimação de autoria da obra pelo texto, o que impacta
diretamente na sua posição dentro do mercado editorial e de seu reconhecimento
profissional e social.
Nomenclatura
Outra marca que podemos identificar na trajetória de ambas as áreas que
reflete sua marginalização no mercado e na teoria e crítica é na problemática
encontrada
na
nomenclatura.
Divergências
de
termos
não
apontam
necessariamente para uma diversidade crítica com relação à área, mas, como
veremos, a uma lacuna na herança de reflexão teórica.
Nas Artes Cênicas: Clown, Clown Branco, Augusto, Bufão, Bobo, Palhaço
são alguns nomes que povoam esta área. É claro que no campo da arte, procurar
61
delimitações que definam alguma atividade é sempre incômodo e ineficiente, mas
neste caso percebe-se que o problema pode se fundamentar na pouca atenção
dispensada à atividade.
Para constatar essa inconsistência do termo, trazemos como exemplo o não
aparecimento da palavra ‘Palhaço’ no Dicionário de Teatro escrito por Luiz Paulo
Vasconcellos. (Vasconcellos, 2009) Apesar disso, encontraremos no mesmo
dicionário alguns verbetes que trarão definições muito próximas do que
popularmente conhecemos como palhaço. Uma delas seria o “Bufão”: Personagem burlesco de comédia cuja raiz remonta à comedia grega e à Fábula Arellana.
Caracteriza-se pela mímica exagerada, pela utilização de recursos corporais circenses e
pelas deformações físicas do que resulta um humor espalhafatoso e grotesco. Muito
embora o teor das críticas feitas seja sério, a linguagem utilizada mostra-se vulgar,
resultando num saudável confronto entre a paródia da forma e a crítica do discurso. Veja
também Clown e Fool (Vasconcellos, 2009 p. 44)
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Curiosamente, apesar de não termos o verbete palhaço, encontramos o
termo Clown, que seria em inglês a tradução de Palhaço. No verbete Clown
vemos:
Personagem de comédia encontrado em algumas dramaturgias, especialmente no Teatro
Elisabetano. Ingênuo e irreverente, o clown tem humor, simplicidade e sabedoria popular,
com o que alimenta uma situação cômica geralmente construída de acasos, coincidências e
repetições. Shakespeare (1564-1616) escreveu alguns bons papéis de clown, como
Bottom, de Sonho de uma noite de verão (1595-1596). Os antecessores do clown podem
ser encontrados na comédia greco-romana e na Commedia Dell’Arte. Modernamente, o
clown inspirou grandes comediantes do cinema – Charles Chaplin, Buster Keaton, os
Irmãos Marx, Jacques Tati –, servindo de base para uma série de estudos teóricos e de
formação de atores no século XX – Jacques Lecoq, Thomas Leabhart e Philippe Gaulier,
entre outros. Veja também Bufão e Fool. (Vasconcellos, 2009)
Como veremos adiante, provavelmente esta separação dá-se pela
divergência entre estudos voltados para o Teatro e o Circo, que apesar de
semelhanças e proximidades históricas, mantém-se em separado estudos voltados
para cada área específica, evitando sobreposições. Salvo, é claro, alguns casos
excepcionais. Por conta dessa divisão, preferiu-se adotar o termo Artes Cênicas.
Similar a este último, no livro O Corpo Poético – Uma pedagogia da
criação teatral, de Jacques Lecoq (2010), também não encontramos a palavra
Clown traduzida para o português, “Palhaço”. Alguns outros autores parecem tratar a questão criando uma diferenciação entre o termo Palhaço e o termo
Clown, mas sem aprofundar a questão. É o caso, por exemplo, de Dario Fo
(2004), no seu Manual Mínimo do Ator, no qual comenta sobre o personagem
62
Clown, diferenciando-o do Pagliaccio (palhaço) pela forma da maquiagem ou tipo
de personagem: “Já vimos que o Arlecchino, em sua origem, usava uma PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1011889/CA
maquiagem de clown, mas também de Pagliaccio (Palhaço)” (Fo, 2004 p. 305). Figura 4 –
À esquerda, Arlechino, e à direita, Pierrot (Pagliaccio ou Clown). Ilustrações de
Maurice Sand para seu próprio livro Masques et Buffons – comedie italienne (1862).
Mário Fernando Bolognesi, por sua vez, parece tratar os termos palhaço e
clown com certa distinção, mas sem detalhamento. Isso fica claro quando comenta
sobre os primeiros artistas cômicos do Circo:
Nos momentos iniciais, entretanto, não se tratavam de palhaços, tais como os de hoje.
Esses primeiros cômicos restringiam-se a reproduzir, às avessas, um determinado número
circense, principalmente os de montaria. Haveria necessidade de outras ingerências para a
formação do clown. Dentre essas, destacaram-se a pantomima inglesa e a commedia
dell’arte. (Bolognesi 2006 p. 62)
Mais à frente, ele traz a origem inglesa do termo clown, que era o cômico
principal na pantomima inglesa do século XVI, e afirma que no universo do circo
o termo é utilizado para um artista cômico que em cena busca explorar sua
excentricidade e tolice. Mas talvez a informação mais relevante seja que, segundo
Bolognesi, o clown moderno teria sua origem no encontro da tradicional
pantomima inglesa com os cômicos da Commedia dell’Arte italiana, ressaltando
que a fusão “se deu a partir da caracterização externa (indumentária e maquiagem, principalmente) e do estilo de interpretação dos atores”. (Bolognesi, 2003 p. 63) E assim, parece se aproximar da união entre clown e pagliaccio descrita também por
63
Dario Fo, em que o clown seria referente ao artista cômico da pantomima inglesa
e o pagliaccio ao personagem da Commedia dell’Arte italiana. Percebe-se então
uma origem mista do palhaço moderno, o que justificaria a confusão dos termos.
Porém, Renato Ferracini (2003) traz, citando dois outros autores – Roberto
Ruiz e Luis Otávio Burnier –, outra perspectiva na diferenciação dos termos:
Outra característica de clown é que ele nunca interpreta, ele simplesmente é. Ele não é
uma personagem, ele é o próprio ator expondo seu ridículo, mostrando sua ingenuidade.
Por esse motivo, usamos o conceito de clown e não de palhaço. Palhaço vem do italiano
paglia (palha), material usado no revestimento de colchões. Isto porque a primitiva roupa
deste cômico era feita de mesmo pano dos colchões: um tecido grosso e listrado, e afofada
nas partes mais salientes do corpo, fazendo de quem a vestia um verdadeiro ‘colchão’ ambulante, protegendo-o de suas constantes quedas (Ruiz, 1987, p.12). Assim, o palhaço é
hoje um tipo que tenta fazer graça e divertir seu público por meio de suas extravagâncias;
ao passo que o clown tenta ser sincero e honesto consigo mesmo (Burnier, 1994, apud
Ferracini, 2003 p. 218)
Luiz Otávio Burnier, em seu livro A Arte do Ator (2009), dedica boa parte
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de sua reflexão ao tema dos palhaços. No oitavo capítulo, “O clown e a improvisação codificada”, de forma até contraditória ilustra a confusão de definir
ou denominar a atividade dos palhaços, ao ressalta que os termos “palhaço” e “clown” são “termos distintos para designar a mesma coisa”, apesar de que “Existem, sim, diferenças quanto às linhas de trabalho”. (Burnier, 2009 p. 205) Mais adiante Burnier apresenta as duas linhas principais de trabalho que acusou
como diferentes: uma corrente (segundo ele principalmente encontrada nos
Estados Unidos) que dá valor ao número, ao que o clown vai fazer; enquanto a
outra se preocupa por como será feito, não importando exatamente o quê. Este
último, segundo ele, exige a valorização de uma “lógica individual”, um estudo da sua personalidade, tendendo para um trabalho mais pessoal (encontrado com mais
facilidade entre os clowns europeus).
Novamente esbarramos na questão da Linguagem. Tentar perceber
diferenciações sutis entre atividades tão próximas, para cair no Indizível. Porém,
independentemente da definição, os autores parecem admitir que existe, dentro da
forma de atuação, uma divisão em duas categorias de palhaços: Clown Branco e
Augusto.
O clown branco é a encarnação do patrão, o intelectual, a pessoa cerebral.
Tradicionalmente, tem o rosto branco, vestimenta de lantejoulas (herdada do Arlequim da
commedia dell’arte), chapéu cônico e está sempre pronto a ludibriar seu parceiro em cena.
Mais modernamente ele se apresenta de smoking e gravatinha borboleta e é chamado de
cabaretier. No Brasil, é conhecido como escada.
64
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O Augusto (no Brasil, tony, ou tony-excêntrico) é o bobo, o eterno perdedor, o ingênuo de
boa-fé, o emocional. Ele está sempre sujeito ao domínio do branco, mas, geralmente,
supera-o, fazendo triunfar a pureza sobre a malícia, o bem sobre o mal. (Burnier, 2009
p.206)
Figura 5 –
Figura 6 –
À esquerda Billy Vaughn (Augusto) and Mike Snider (Branco), EUA.
À direita Teotônio (Augusto) e Carolino (Branco) – LUME Campinas/SP
O que se percebe, também, é que o surgimento dessa divisão nasce na
própria prática. O encontro com o outro profissional, parceiro de cena, possibilita
uma construção conjunta, numa tarefa de ajuda mútua. Sendo representantes de
polos opostos (racional e irracional), tanto Augusto quanto Branco se
complementam e se fortalecem.
“Palhaço e clown” vão interessar a este estudo, principalmente porque trazem consigo aspectos complementares entre si no que se refere à maneira de
atuar ou características históricas, culturais e sociais que veremos a seguir. Ambos
irão contribuir para a construção do universo do palhaço popularmente conhecido
hoje. Para facilitar a nossa leitura e explanação, procurei ao longo do trabalho
utilizar somente o termo “Palhaço”, exceto quando houver alguma necessidade específica de diferenciação.
Em paralelo também percebemos uma dificuldade no que compete à
nomenclatura do Livro Ilustrado. O que normalmente encontramos nos autores é
uma proposta de classificação que prioriza a relação entre o texto e as imagens.
Perry Nodelman (1988), em seu livro Words about Pictures – The Narrative
Art of Children’s Picture Books, esclarece que o que ele vai chamar de picture
books são “livros para o público infantil que comunicam informações ou contam 65
histórias através de uma série de imagens combinadas com relativamente pouco
ou nenhum texto”. (Nodelman, 1988 p. vii – tradução livre) A princípio, portanto,
parece não diferenciar os livros com pouco texto verbal daqueles cujo conteúdo
não possui texto verbal nenhum. Porém, mais adiante, refinando sua nomenclatura
ele já utiliza o termo wordless books (Nodelman, 1988 p. 45) sem, contudo,
definir se nestes ainda possuem texto escrito. Ainda na mesma obra, parece
esclarecer que o que chama de picture-book é o tipo de livro cujo conteúdo
mescla-se entre texto e imagem de tal maneira a tornar-se indissociável para a
leitura. Termo que iremos rever em outros autores adiante. (Nodelman, 1988 p.
193)
Vale destacar aqui que, embora apresente três termos distintos: picture
book, picture-book e wordless books, cada um vai procurar reconhecer uma
característica específica no livro, principalmente no que concerne a relação textoPUC-Rio - Certificação Digital Nº 1011889/CA
imagem. Aqui percebemos uma coerência entre os autores de nomear picture book
os livros que contêm texto e ilustração, traduzidos como “livros com ilustrações”2.
Quando procura-se especificar a relação entre o texto e a imagem – seja de
predominância, quantidade, volume de informação ou importância narrativa –
surgem diferentes termos. Sem, contudo, verificarmos um consenso entre os
autores.
No Brasil, um dos primeiros autores que destacaram este tipo de livro foi
Luis Camargo (1995) em Ilustração do Livro Infantil, que abre um capítulo
comentando sobre o Livro de Imagem e definindo-o como “livros sem texto. As imagens é que contam a história”. (Camargo, 1995 p. 66) Apesar de apresentar
com bastante simplicidade a definição acima, logo em seguida acrescenta a
problemática que gira em torno do tema: “A expressão livro de imagem não é de uso generalizado (...) várias outras expressões têm sido usadas: álbum de figuras,
álbum ilustrado, história muda, história sem palavras, livro de estampas, livro de
figuras, livro mudo, livro sem texto, texto visual, etc.” Alguns desses termos destacam uma narrativa contada por imagens ou contada sem o uso do texto
verbal: história muda, história sem palavras; outras consideram que apesar da
ausência do verbo, ainda permanece o texto – texto visual; outras provavelmente
2
Ao longo do trabalho seguiremos a tradução dos termos feita pela editora Cosac Naify ,
para os livros Crítica, teoria e literatura infantil de Peter Hunt (2010), e Livro ilustrado: palavras e
imagens de Maria Nikolajeva e Carle Scott (2011), pela data recente de publicação, por terem o
mesmo tradutor (Cid Knipel) e por serem parte integrante da bibliografia deste trabalho, prezando
assim pela coerência e atualidade.
66
foram buscar no cinema uma nomenclatura que desse conta dessa especificidade,
encontrando no Cinema Mudo uma similaridade – Livro mudo, história muda;
outras procuram destacar o suporte ou qualificando pela especificidade do
conteúdo (ausência do conteúdo naturalmente esperado – texto verbal) – livro de
estampas, livro de figuras, livro sem texto. Mas, mesmo apresentando essa gama
de nomenclaturas, ele prefere utilizar Livro de Imagem para os livros que narram
histórias unicamente por imagens – entretanto, sem procurar especificar o porquê
da sua opção.
Como comentado anteriormente, a tradução usada para picture book e
picture-book foi a da editora Cosac Naify, que no ano de 2010 para o texto de
Peter Hunt – Crítica, Teoria e Literatura Infantil (2010) traduz como LivroIlustrado o termo “picture books, tipo de livro no qual texto e ilustração
combinam-se de tal maneira que a relação entre eles torna-se essencial para a
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compreensão da narrativa. (...) Opõem-se ao livro com ilustração, quando a
informação da imagem é meramente decorativa ou redundante ao texto.” (Hunt, 2010 p. 39 - nota do editor)
No capítulo 10 – A Crítica e o Livro-Ilustrado –, o autor reforça a diferença
entre o Livro-Ilustrado e o Livro com Ilustrações, pois os “livros-ilustrados lidam
na realidade com dois argumentos, o visual e o verbal; (...) Eles têm um grande
potencial semiótico/semântico; decididamente não são simples coleções de
imagens”. E vai ao extremo de comentar a respeito do que chamou de livroilustrado “puro” e que os editores compreenderam e traduziram como livroimagem “cuja narrativa é construída apenas com ilustrações, sem a presença do
texto” (Hunt, 2010 p. 248 nota do editor)
De forma semelhante a Luis Camargo, Nelly Novaes Coelho em Literatura
Infantil (Coelho, 2000) deflagra também a gama de opções para se denominar o
Livro de Imagem: “Desde os anos 20 (...) surgem os álbuns de figuras (livros de
estampas, livros de imagens ou como quer que os rotulem)”. (Coelho, 2000 p. 186)
Maria Nikolajeva e Carole Scott (2011), assinando a obra Livro Ilustrado:
Palavras e Imagens, procuram através de uma análise de diversos autores mapear
uma nomenclatura que caracteriza os diferentes tipos de livros segundo níveis de
relação entre texto e imagem.
67
Os editores salientam ainda que, como essa nomenclatura no Brasil é
“controversa”, apresentam as seguintes alternativas para tradução dos termos:
picturebook – livro ilustrado; illustrated book, picture book e book with pictures –
livro com ilustração. Sendo essas três últimas denominações dadas às obras em
que “não apresenta inter-relação explícita entre palavra e imagem”. Além disso, destacam que as autoras deste livro distinguem picturebook de picture book,
diferindo de outros autores – o que também mostra controvérsia não só no Brasil,
como em outros países.
Ainda acompanhando o texto de Nikolajeva e Scott, pode-se perceber que
ao realizarem uma sucinta revisão bibliográfica em que buscaram, principalmente,
a relação entre texto e imagem, surgem pontos interessantes para a questão
terminológica. Neste levantamento surgem categorias bastante interessantes,
embora somente algumas das tentativas
levaram em consideração e,
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principalmente, destacaram o Livro de Imagem como uma categoria à parte.
Dentre os que fizeram essa diferenciação, encontram-se: Kristin Hallberg, Joseph
Schwarcz e Joanne M. Golden. Apesar de trazerem categorias e noções
interessantes, eles parecem sempre se importar com a presença do texto verbal;
Ulla Rhedin, segundo as autoras, parece criar categorias muito gerais, dificultando
a classificação de exemplos específicos, como o Livro de Imagem. Somente o já
citado Perry Nodelman e o autor Torben Gregersen, que propõe, dentre outras, a
categoria de “narrativa pictórica: sem ou com pouquíssimas palavras”, parecem criar uma categoria específica para livros que não possuem uma narrativa com
linguagem textual.
Para finalizar, as duas autoras também fazem a sua proposta de tipologia,
baseada na relação entre texto e imagem (como veremos adiante). Estas, porém,
criam duas categorias para descrever os livros em que o texto verbal não é
presente: “narrativa de imagens sem palavras (sequencial)” e “livro-imagem ou
livro de imagem”. Apesar do esquema bastante interessante e detalhado de classificação segundo a importância do texto e da imagem, não definem
exatamente o porquê da criação dessas duas categorias, que aparentemente não
têm diferenças.
Outra autora que contribui com uma classificação dos livros ilustrados é
Sophie Van der Linden – Para ler o livro ilustrado (2011):
68
O que é o livro ilustrado?
Designação pouco conhecida do grande público, não há em muitos países um termo fixo
para definir o livro ilustrado infantil. Conforme o contexto, em francês recebe o nome de
album ou livre d'images, em Portugal álbum ilustrado, em espanhol álbun e em língua
inglesa picturebook, picture book e picture-book. (Linden, 2011 p. 22-3)
Sophie Van der Linden vai priorizar em suas classificações os livros
ilustrados quanto a sua organização interna, ou seja, a organização dos elementos
textuais e imagéticos dentro do objeto livro. A primeira classificação que a autora
estabelece é:
- livros com ilustração
- primeiras leituras
- livro ilustrado
- história em quadrinhos
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- livros pop-up
- livros-brinquedo
- livro interativo
- imaginativos
A autora reconhece a dificuldade, ou impossibilidade, de se criar categorias
para dar conta da diversidade de tipos de livro, mas o esforço não é em vão.
(Linden, 2011 pag. 23-4)
Para finalizarmos, a maioria dos autores até então parece concordar em
chamar picture book – Livro com ilustração – a gama diversa de livros que
contêm ilustração (Nodelman, Linden, Nokolajeva e Scott, Gregersen, Hallberg,
Golden). Para diversos outros autores, quando o livro possui uma inter-relação
entre texto e imagem, o denominam picture-book – Livro Ilustrado – (Nodelman,
Hunt, Linden, Nikolajeva e Scott). Por fim, os brasileiros chamam Livro de
Imagem (ou livro-imagem como tradução feita pela Cosac Naify para
picturebook) e parecem concordar tanto Nelly Novaes Coelho quanto Luis
Camargo e Rosângela Ferraro. É importante ressaltar que para a Fundação
Nacional do Livro Infantil e Juvenil3 esta é a nomenclatura utilizada, inclusive
tendo um prêmio específico previsto para esse tipo de livro.
Instituição brasileira voltada para o Livro Infantil e Juvenil, representante nacional do International
Board on Books for Young People – IBBY.
3
69
Como mencionado anteriormente, a confusão na nomenclatura não diz
respeito somente ao Brasil, mas aos estudos gerais da Literatura Infantil. Muitas
das categorizações que vimos aqui valem-se da quantidade de informação
visual/verbal, ou mesmo da área preenchida na página pelo texto, ou pela imagem,
e por fim, a importância, o peso de cada linguagem para a narrativa geral do livro.
Isso ilustra de forma bastante contundente a dificuldade de categorizar esse gênero
literário. E é nessa diversidade de olhares e análises que reside a tentativa de
compreender o campo estudado, onde cada categoria criada tem a sua importância
dentro da análise geral. Portanto, nos diz respeito exatamente perceber as diversas
características interessantes encontradas nos critérios propostos pelos autores em
suas análises. Além, é claro, de perceber que a dificuldade nessa organização está
contida na falta de uma dedicação ao estudo da ilustração e da imagem nos livros,
como temos com relação ao texto. Essa defasagem, esse descompasso que gera a
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dificuldade de compreender os livros ilustrados é que apontamos como uma
ausência.
Fica claro, assim, que o que se pretende com esse olhar sobre as
nomenclaturas tanto do Palhaço como do Livro de Imagem não é a busca de um
nome que dê conta de definir os objetos aos quais nos referimos. O problema da
linguagem e de sua característica afirmativa é a necessidade de definição e de
nomenclaturas que em si mesmas já provocam exclusões e marginalizações. O
importante é perceber que em parte o problema de classificação nesse caso não
está só na impossibilidade da linguagem de categorizar de maneira definitiva os
objetos. Fato que esbarraria no Vácuo do Indizível, por não encontrar um termo
que dê conta de todas as nuances e sobreposições de linguagens que esses objetos
podem conter. Mas não podemos ignorar que uma parcela da dificuldade em
pensar nomenclaturas para os objetos em questão parte da lacuna de pesquisas e
reflexões acerca dos temas que fundamentem uma classificação.
Existe, no entanto, uma ideia de liberdade autoral, concedida aos
profissionais que encontram nessa marginalização um terreno fértil para sua
manifestação – Lacuna do Não Dito.
No Livro de Imagem, no qual a provocação maior é a retirada do elemento
textual e o desafio de ainda sim narrar, é justamente na ideia de explorar novas
maneiras, novos modos de narrar, que se potencializa a liberdade do ilustrador.
Diante da possibilidade de desenvolver um livro somente com a linguagem que
70
ele está mais habituado a trabalhar, surge uma amplitude de possibilidades que
concede-lhe certa autonomia, e com ela a liberdade.
Quanto ao palhaço, será interessante a abordagem sobre os propósitos do
chiste, em que Freud (2006) vai refletir sobre características de hostilidade ou de
desnudamento. Ambos podem ser encontrados em situações de agressão,
repressão ou ainda de rebaixamento. Quanto à característica hostil, o autor relata
que esta é também reprimida (assim como a repressão sexual) e que encontra por
meio do chiste uma maneira de substituir a agressão física. “Tornando nosso inimigo pequeno, inferior, desprezível ou cômico, conseguimos, por linhas
transversas, o prazer de vencê-lo.” (Freud, 2006 p. 103)
Esse propósito nos remete à característica de libertação bem como à ideia de
ausência. Liberdade de “agredir”, como no exemplo acima, e de revelar algo que
não se poderia dizer abertamente, utilizando das técnicas de “alusão” ou PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1011889/CA
“omissão”, se protegendo na possibilidade de multileituras – Silêncio do que não
deve ser dito e Lacuna do não dito. “Um chiste nos permite explorar no inimigo algo de ridículo que não poderíamos tratar aberta ou conscientemente.” (Freud, 2006 p.103) E ainda “trazer os que riem para o nosso lado”. Essa liberdade vai estar presente a todo momento no palhaço. Seja a liberdade de poder transgredir a
ordem e as normas, ou encenar uma rebelião, uma fuga da autoridade (da
sociedade, mas representada figurativamente no Dono do Circo ou no Clown
Branco, por exemplo). A essa liberdade também são abordados outras situações
na sociedade, que muito frequentemente são ligados à imagem do palhaço: o
bêbado (sua liberdade de “espírito”, seu descompromisso) e a loucura (libertação de normas sociais).
Portanto, encontraremos na ausência do “não dito” (omissão do texto no livro e alusão e duplo sentido na situação cômica) uma liberdade concedida ao
Ilustrador e ao Palhaço. E tanto a marginalização quanto a liberdade são também
visíveis na análise dos gêneros popular, cômico e infantil, proposta a seguir.
3.2
Gênero e Exclusão
Há na categorização em gêneros um aspecto que envolve o contexto
sociocultural de recepção. Bem como a interação autor/leitor e o que pressupõe
71
uma competência de leitura. Carlos Reis e Ana Cristina Lopes (1988) apresentam
essa questão no âmbito da Narrativa. Assim, aspectos relativos ao sujeito leitor
(predições, competência de leitura, condição econômica, classe social etc.) estão
diretamente ligados à categorização de gêneros. Segundo os autores o romance,
por exemplo, “é o gênero que sobretudo se justifica quando um público burguês e cada vez mais ocioso tem acesso à cultura como preenchimento do lazer”. O conto, por sua vez, corresponde “pela sua característica de brevidade e de relato oralizado, a certas circunstâncias de comunicação e de público (narrativa que se
consuma numa única narração, receptor infantil ou culturalmente menos exigente
etc.)”. (Reis & Lopes, 1988 p. 48)
Os autores apontam ainda para a perspectiva histórica e a diversidade de
“imposições” reveladas nos gêneros narrativos, apontando alguns “mecanismos coercivos mais ou menos discretos (academia, poética etc.)” e em outras situações PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1011889/CA
crises de um gênero, por exemplo, que o subdivide ou o modifica. Assim, os
gêneros não são fixos, são dependentes do contexto sociocultural e de consumo.
Se por um lado os Palhaços não foram incorporados ao discurso oficial do
teatro (censura, desqualificação ou exclusão), por outro os livros com ilustração
são normalmente classificados como de gênero infantil. O que temos em comum
entre essas duas situações é uma espécie de desqualificação de conteúdo. Os
palhaços foram excluídos dos teatros por apresentarem conteúdos de cunho
menor, imoral, superficial etc. ou estarem presentes em outros contextos: na rua,
no circo, nas feiras. Os livros ilustrados, por sua vez, tratados como infantis por
uma suposta ingenuidade de conteúdo, volume de texto pequeno e ilustrações. O
que ambos têm em comum é uma desqualificação de conteúdo por supor um
público com competência e/ou exigência de leitura limitada.
Além disso, a imagem está também historicamente associada a um
“facilitador” de leitura. Na Idade Média os vitrais das igrejas eram imagens que
traduziam visualmente parte da história de Cristo, para que mesmo os analfabetos
pudessem acompanhar a narrativa. A ideia de livro voltado para crianças,
analfabetos e/ou com pouca facilidade de leitura também é um bom exemplo
dessa questão. Entende-se assim que a Literatura Infantil está associada à
educação das crianças, logo, um público menos familiarizado com a linguagem
textual e, portanto, com exigência menor.
72
Sobre esse aspecto Nelly Novaes Coelho (2000) traz uma importante
contribuição ao esclarecer-nos sobre a natureza da Literatura dirigida às crianças.
Claro que o que entenderemos como Literatura hoje é uma leitura presente do que
essa área representa socialmente. Portanto, sempre teremos uma ideia de
Literatura localizada social e historicamente, e inevitavelmente atravessada por
uma opção ideológica, política etc. Apesar disso, não impede compreender de que
maneira se construiu o que hoje chamamos de Literatura Infantil, e que tipo de
especificidade ela traz, que nos auxiliará na compreensão do que envolve o gênero
infantil.
Nelly destaca que o que vai diferenciar a Literatura Infantil da Literatura
Adulta são as características do receptor. Numa visão mais superficial e imediata,
a ideia de Literatura Infantil está ligada a livros coloridos, finos e voltados à
distração e prazer das crianças. Por conta dessa associação mais vulgar, a
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Literatura Infantil acabou sendo “minimizada como criação literária e tratada pela cultura oficial como um gênero menor”. (Coelho, 2000 p. 29)
O entendimento de infância como uma fase do desenvolvimento humano
relativa a uma faixa etária específica e com características distintas dos adultos é
recente. Tem suas origens com o surgimento da burguesia, com ela a escola, e
principalmente
de
um
público
consumidor
com
demandas
peculiares.
Anteriormente, crianças eram vistas como “adultos em miniatura”, não tendo nenhum tratamento diferenciado. Por conta disso, os primeiros textos literários
destinados ao público infantil eram na verdade adaptações de textos adultos.
Como nos aponta Nelly:
E como a criança era vista como um “adulto em miniatura”, os primeiros textos infantis resultaram da adaptação (ou da minimização) de textos escritos para adultos. Expurgadas
as dificuldades de linguagem, as digressões ou reflexões que estariam acima da
compreensão infantil; retirada as situações ou os conflitos não-exemplares e realçando
principalmente as ações ou peripécias de caráter aventuresco ou exemplar... as obras
literárias eram reduzidas em seu valor intrínseco, mas atingiam o novo objetivo: atrair o
pequeno leitor/ouvinte e levá-lo a participar das diferentes experiências que a vida pode
proporcionar, no campo do real ou do maravilhoso. (Coelho, 2000 p. 29-0)
O que os grifos destacam é exemplar para ilustrar o que chamamos de
“ausência”. Seja a ideia de Vácuo do Indizível, quando aponta a dificuldade de linguagens, digressões e reflexões que estariam acima da compreensão infantil; ou
a do Silêncio, em conjunturas como “retiradas as situações ou os conflitos nãoexemplares”;; e mais ainda no que entendemos, no geral, pela “redução” das obras 73
literárias para adultos, como a forma de adaptação para o público infantil. O que
tudo apresenta em comum é a supressão, a ausência de determinadas passagens,
conteúdos etc.
Portanto, segundo a autora, até pouco tempo atrás a literatura infantil foi
concebida pela crítica como um gênero secundário, e visto pela ótica do adulto
como pueril, simplificada, nivelada ao brinquedo, ou útil, com a ideia de
aprendizagem, ou moralizante.
No século XX, surge a redescoberta da Literatura Infantil, apoiada
principalmente sobre as ideias da psicologia e a nova noção de infância. Com ela,
formas inovadoras de se produzir literatura direcionada às especificidades do
público infantil.
Essas mudanças serão visíveis nos textos literários voltados para as crianças,
e principalmente no olhar crítico e teórico sobre eles. Mas o mesmo não podemos
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afirmar com tanta certeza sobre as imagens. Na própria obra de Nelly Novaes
Coelho, a ideia de ilustrações e imagens no livro parece ainda seguir a ótica de um
auxílio ao aprendizado infantil. O que nos indica sua classificação entre tipos de
leitores e nos permite perceber a redução das imagens à medida que a idade do
leitor avança e seu domínio pela leitura se sedimenta. E culmina quando, aos
10/11 anos, o leitor é considerado fluente, e a essa fluência está associada a noção
de que “as imagens já não são indispensáveis;; o texto começa a valer por si. Entretanto, uma ou outra ilustração adequada ainda é elemento de atração”. (Coelho, 2000 p. 38) Em seguida, quando o leitor já possui domínio sobre a
linguagem textual (“leitor crítico”), as imagens já nem mais são previstas pela autora. O que parece estabelecer um vínculo da imagem como “auxiliadora” da aprendizagem da leitura escrita – tarefa destinada culturalmente à educação
infantil. Aqui destacamos que à imagem estaria vinculada a ideia de um
complemento ao não domínio da linguagem textual (Vácuo do Indizível).
Outra questão que explica a relação entre a imagem e o gênero infantil
apontada por Nelly é o vínculo deste gênero com o popular. Questão também
percebida no contexto do Palhaço. Segundo a autora, no percurso histórico podese perceber que muitas das narrativas adultas adaptadas ao público infantil têm
sua origem no gênero popular.
74
Dentre os fatores que podem ser apontados como comuns às obras adultas que falaram
(ou falam) às crianças, estão os da popularidade e da exemplaridade. Todas as que se
haviam transformado em clássicos da literatura infantil nasceram no meio popular. (...) Em
todas elas havia a intenção de passar determinados valores e padrões a serem respeitados
pela comunidade ou incorporados pelo indivíduo em seu comportamento. (Coelho, 2000 p.
41)
A autora destaca que o vínculo estabelecido entre o popular e o infantil é
oriundo da ideia de uma similaridade no público receptor. O que de maneira geral
levaria a dizer que, tanto no povo como na criança, o “conhecimento da realidade
se dá através do sensível, do emotivo, da intuição... e não através do racional ou da
inteligência intelectiva, como acontece na mente adulta e culta”. (Coelho, 2000 p. 41) A ideia, portanto, também está vinculada a uma noção de ausência de domínio
da linguagem e de seus mecanismos mais sofisticados.
Ampliando a discussão, Nelly afirma que o que caracteriza esse vínculo
entre o popular e o infantil é a relação entre a noção de história e natureza. A
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primeira, segundo O. Spengler (1952 apud Coelho, 2000 p. 42) está vinculada à
vida culta e a segunda à vida instintiva. O que defende o autor é que o
desconhecimento da linguagem pelo homem primitivo impossibilita “estruturar seus conhecimentos de forma histórica e racional”. E baseada nisso, Nelly conclui
dizendo que
o homem rudimentar como a criança manifestam uma consciência a-histórica da realidade
em que estão situados, pois não compreendem a vida senão no presente. Como diz
Spengler, “existe uma grande diferença entre viver uma coisa e conhecer uma coisa, entre
a certeza imediata, proporcionada pelas várias classes de intuição e o conhecimento que
resulta da experiência intelectual da técnica experimental. Para comunicar a primeira,
servem a comparação, a imagem, o símbolo; para as últimas servem as fórmulas, leis,
conceitos, esquemas”. (Coelho, 2000 p. 42-3)
No caso dos Livros de Imagens e do Palhaço Mímico essas questões ainda
se intensificam. Em conjunto com uma linguagem que constrói uma narrativa a
partir de imagens e gestos, sem uso da palavra falada ou escrita, a problemática se
reforça.
Verificamos nas últimas décadas do século XX certa tendência à
valorização do contexto da recepção, e por conseguinte ao ato de fruição. O que
essa valorização traz em si, e que veremos com maior clareza no próximo tópico,
é uma valorização do intérprete, que consigo trará importantes contribuições para
o desenvolvimento da experiência narrativa tanto do Palhaço Mímico quanto no
Livro de Imagem.
75
Veremos que tanto a ideia de uma comunicação não verbal, de uma
apreensão “imediata” da realidade e, portanto, de presença, quanto a marginalização estão vinculadas ao gênero cômico.
O palhaço traz na sua performance a ideia de jogo com o púbico. Jogo que
permite uma interação mais próxima e com ela a construção da narrativa e do riso,
como veremos a seguir. Para construir o jogo é necessário que o palhaço encontre
no público em geral, ou em algum espectador específico, a pessoa que vai apontar
para o próprio ridículo do palhaço, ou seja, o público torna-se cúmplice e, pela
interação direta esbarra na espontaneidade. É nesse ponto de apoio que o palhaço
encontra a base para a próxima ação e nessa dinâmica se estabelece o jogo. Uma
espécie de jogo no limiar entre a arte (na representação) e a vida (pela experiência
se sustentar num jogo presente e contar com elementos imprevistos e
espontâneos)4.
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Essa cumplicidade por certo é o ponto de onde o público cria a empatia com
o palhaço e também onde o público acredita tratar-se não de uma representação,
mas de um momento real em que o palhaço não atua, mas vive. E sobre isso, nos
fala Burnier: “o clown é como uma criança que, quando brinca, acredita
integralmente em sua brincadeira: a criança não faz de conta que é o SuperHomem durante a brincadeira. Depois da brincadeira, ela sabe que aquilo tudo
foi um jogo.” (Burnier, 2009 p. 217)
Outro autor que contribui para a discussão de gênero e exclusão é Henri
Bergson (2007). E justamente onde ele e Freud se encontram, acredito estar o
mais proveitoso de ambas as análises. Os dois autores relacionam o espontâneo à
infância, à espontaneidade da infância, também ao desamparo infantil em uma
situação de “embaraço”, e à ingenuidade, que Freud vai analisar a partir de “jogos infantis com palavras e pensamentos, que tenham sido frustrados pela crítica
racional” (Freud, 2006 p. 207). E, portanto:
Se se pudesse generalizar, seria muito atraente colocar a característica específica do
cômico como o ‘último riso da infância’ restabelecido. Podia-se então dizer: “Rio-me da
diferença da despesa entre uma outra pessoa e eu próprio cada vez que redescubro a
criança nela”. (Freud, 2006 p. 209)
4
Relação estabelecida por Bakhtin em Estética da Criação Verbal (BAKHTIN, 2003).
76
Bergson (2007) vai se aprofundar em questões relativas ao que chamou de
“procedimentos de formatação” do riso também situando o tema no limite entre a Vida e a Arte. Inicia seu primeiro artigo5 destacando três pontos por onde a
comicidade deve ser procurada. O primeiro revela que a comicidade é própria do
humano. E que se rirmos de algo que não seja da esfera do humano – animal,
objeto etc. – é porque nele encontramos ou percebemos uma atitude própria do ser
humano, e nessa surpresa é que mora o risível. Coloca-se também uma condição,
para que se desenvolva o cômico, a ausência de emoção, afeição etc. “Calar a piedade” e se dedicar ao insensível, ao intelecto, são condições básicas para se dar o cômico.
Ao colocar como condição que o espectador se afaste da vida, assistindo-a
de fora, percebemos uma proximidade por Bakhtin (2003) diferenciar
interpretação e representação. O riso se dá à medida que estamos cientes do
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contexto, conhecemos o ambiente e comungamos da situação. Sem contudo ser
sujeito dela, sem pertencer a ela sendo “vítima” dos acontecimentos, com o risco de reverter em trágico.
Mas, mesmo afastados da situação e das emoções que ela fomenta, para os
participantes, o “nosso riso é sempre o riso de um grupo”. (Bergson, 2007 p.5) O riso necessita de muito mais do que um eco, ele necessita de uma compreensão, de
um compartilhamento, uma cumplicidade.
Na Literatura Infantil, Nikolajeva & Scott discutem uma questão, à qual
deram o nome de dupla audiência, que aponta para uma especificidade
relacionada tanto com o gênero cômico como o infantil. À dupla audiência
acredita-se também pertencer a ideia de uma cumplicidade na leitura. Mostram as
autoras que muitos livros, mesmo com as características que o fariam comumente
ser classificado de infantil, apresentam níveis de leituras que atendem também a
um público adulto, possibilitando níveis de leituras diferenciados.
Os adultos estão completamente embebidos nas convenções do livro e são experientes em
decodificar texto de forma tradicional, seguindo o esperado desenrolar temporal de
acontecimentos e leitura da esquerda para a direita. Mas os intrincados iconotextos de
Thompson, com ilustrações abrangendo uma multiplicidade de minicenas e eventos
pictóricos tangenciais, são perfeitamente adequados ao olhar menos exercitado, porém,
perspicaz, da criança. (Nikolajeva & Scott, 2011)
5
O livro citado O Riso – ensaio sobre a significação da comicidade é a reunião de três artigos
o
publicados na Revue de Paris, 1º. e 15 de fevereiro, 1 . de março de 1899.
77
Interessante observar que pelo apontamento das autoras, de um lado temos o
leitor adulto, experiente, que compreende o código e o processo de leitura, e que
já está familiarizado com o mecanismo, mas é surpreendido por um livro que não
apresenta o texto. Por outro lado, aponta que o olhar “menos exercitado” da criança, ou “certa ingenuidade” dela, permitem uma leitura mais fluida por ainda não estar acostumada aos padrões de leitura culturalmente compartilhados.
Por outro lado, Linden ressalta que originalmente sendo o livro ilustrado um
objeto destinado à criança, traz consigo a característica de atingir esse público
através de mediadores que além de comprar os livros, muitas vezes fazem a leitura
em voz alta, ou seja, participam da leitura. Diversos autores, já conscientes disso,
produzem seus livros dando margem à multiplicidade de leituras que dependem
não só da idade, mas de experiência de vida, do reconhecimento de códigos
(habilidade e conhecimento prévio da linguagem e suas convenções) etc. Seja por
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questões pragmáticas de mercado (compreendendo os mediadores como
consumidores dos livros), seja por status (jurados e curadores que premiam livros,
indicam para compras governamentais ou para mostras internacionais, professores
e pedagogos, pesquisadores e teóricos), o fato é que o livro ilustrado já não é mais
produzido somente para o público infantil. Cada vez mais prevê uma diversidade
de público e de leituras. Com isso, críticos norte-americanos foram levados a
cunhar o termo duas address (destinatário duplo). (Linden, 2011 p. 29)
Talvez a característica mais marcante apresentada por Linden é o fato de a
mediação ser feita em voz alta, ou seja, a leitura do livro (texto verbal) é realizada
oralmente, gerando uma experiência multissensorial para a criança. O pequeno
leitor apreende a narrativa verbal por intermédio da audição – com todas as
possibilidades de nuances, pausas dramáticas, entonações etc. presentes numa
interpretação feita pelo mediador –, enquanto acompanha a narrativa visual nas
ilustrações. A experiência sonora e visual a que é submetida a criança gera,
segundo a autora, “um modo de recepção próximo ao do espetáculo”. (Linden, 2011 p. 119) O que aponta para a aproximação com o Cinema, mas
principalmente com as Artes Cênicas, pois ao mesmo tempo fortalece a ideia de
uma narrativa que está se acompanhando presencialmente.
Sobre outra ótica, Bergson vai explorar qual o ponto em particular que
desperta o riso. E este vai nos propor uma análise bastante apropriada para a
discussão: importância da presença cênica do Palhaço. Partindo de alguns
78
exemplos práticos, ele vai se aproximando do que vê como “rigidez”, involuntariedade, nos movimentos, principalmente. Uma figura que remeta a essa
involuntariedade é o distraído. O ato de fazer, agir involuntariamente, mesmo
quando se está a pensar em outra coisa, com a atenção voltada para outro assunto,
o estado de ação involuntária acaba por desencadear o riso. “Mais risível será a distração que tivermos visto nascer e crescer diante de nossos olhos, cuja origem
conheceremos e cuja história poderemos reconstituir.” (Bergson, 2007 p.9) E poderíamos dizer, em outras palavras: “mais risível será a distração, se esta for presencial”.
A partir de então, percebe-se uma divisão no ser humano, no que concerne à
mecanicidade, ao que chamou de “vício”. Quando se trata de um vício associado à alma, ao espírito, e este é exposto em uma peça, estamos diante de um vício
trágico. Porém, quando este pertence ao corpo, ao carnal, material, se transforma
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em cômico.
O vício se manifesta como um automatismo corporal, um “automatismo muito próximo de uma simples distração”. (Bergson, 2007 p.12) Para Bergson, assim como para Burnier, a comicidade se aloca no corpo. Ela encontra sua forma
de registrar-se na corporeidade.
O que a vida e a sociedade exigem de cada um de nós é uma atenção constantemente
vigilante, a discernir os contornos da situação presente, é também certa elasticidade do
corpo e do espírito, que nos dê condições de adaptar-nos a ela. (Bergson, 2007 p.13)
É como se o corpo se equipasse de movimentos mecânicos, hábitos
repetidos e involuntários, que provocam o riso pela percepção de algo “não humano” preenchido por uma alma humana. Preocupados em dar conta de tanta exigência, acaba-se por mecanizar,
automatizar certos aspectos e/ou movimentos, e daí surgem o desvio à regra, a
fuga ao comum, ao normal e inevitavelmente constata-se sua posição de
excentricidade. E essa ameaça, esse desvio de padrão, que a sociedade teme por
necessitar de ordem para progredir, e diante do temível, ela a reprime. Reprime de
que maneira? Através do riso. Portanto, aqui o riso também é entendido como
censura, e o Silêncio do que não deve ser dito, como censura, polidez, conduta ou
bom convívio social.
79
Bergson traz outra relação quanto à imagem, que nos será interessante. A
relação que revela o “corpo que sobrepuja a alma” é comparável à “forma querendo se impor ao fundo”. E assim no cômico “os meios substituem os fins” (Bergson, 2007 p.39). Não seria coincidência que, ao analisarmos diversas
performances de palhaços, percebemos que o motivo pelo qual aparentemente ele
surge em cena – seja para tocar um instrumento, demonstrar alguma habilidade
etc. – torna-se o menos importante para o espetáculo, reservando ao público o
momento de maior comicidade justamente os meios pelos quais ele tentará atingir
o fim, que seria realizar a ação destinada com êxito.
Levando a extremos, verificamos que se o corpo mecanizado for sendo
exagerado, chegaremos ao ponto de identificar o que Bergson chamou de “uma pessoa que nos dá a impressão de coisa”. É quando percebemos a vida, a humanidade em algo que nos parece um objeto inanimado. Uma mágica parecida,
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mas inversa, acontece na animação, na qual objetos a princípios “não vivos” são representados “animados”, com alma. Essa relação de “maravilhamento” que nos aparece na animação, quando invertida nos detona o riso.
Retornaremos a Freud, no estudo sobre o chiste, que destaca um aspecto
interessante, o da condensação – capacidade de reunir na mesma fala ato, gesto,
palavra, múltiplas possibilidades de leitura. O que ele vai chamar também de
economia, que procurará enxugar o volume de informação, ou ocultar, que
potencializa uma leitura mais ampliada. Quando, na formação do chiste, o seu
elaborador consegue reunir ou fazer alusão a outras questões na mesma palavra ou
citação. O que poderia ser visto num espetáculo de palhaço em suas ações, gestos,
movimentos que trazem não só o necessário à execução de uma tarefa, mas a
possibilidade de traçar outros caminhos possíveis de leitura e compreensão da
mesma cena. O fato de não usar palavras e de não ter elementos cênicos nem
cenário proporciona uma economia de informação que segundo Freud e Benjamin
expande as possibilidades de leitura. Este é o caso do Palhaço Mímico, por
exemplo, que muitas vezes está presente no palco só com sua indumentária. Sem
cenários, elementos de cena, objetos, nada. E nessa “economia máxima” constrói a narrativa.
Uma questão interessante sobre a expansão das possibilidades de leitura é o
fato de que em algumas ocasiões utiliza-se da lacuna do não dito como
subterfúgio a censuras e regras implícitas (Silencio do que não deve ser dito), com
80
a alternância de linguagens. O que poderia soar desrespeitoso, ou até proibido
numa linguagem, é traduzido e dito de outra maneira. Assim, não só pontuamos
uma possibilidade de expansão de leitura como também uma expansão da escrita.
Tanto no ato da produção como no consumo, verificamos essa possibilidade de
abertura de leituras.
Por último, ainda analisando as técnicas de construção de chistes, temos a
característica da “espontaneidade”, por Freud apontada como “automatismo psíquico”, relacionado ao cômico, ou “respostas prontas”, “estabelecer uma inesperada unidade entre ataque e contra-ataque”. Ou ainda na característica involuntária destacada por Freud para o acontecimento do chiste. (Freud, 2006
p.72) Dentro desta, ainda encontraremos a característica de surpresa, do
inesperado, que implica numa impossibilidade de repetição com o mesmo êxito.
Esta característica também será percebida por Bergson, como veremos mais
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adiante, e ambos teriam origem num momento presente necessário ao inesperado,
ao espontâneo. Como se só pudéssemos assistir, participar ou sermos atingidos
pelo riso, se estamos diante do fenômeno que ocorre no exato momento, sem a
possibilidade de uma repetição, ou pelo menos que obtenha o mesmo êxito. E isso
se verifica tanto para a surpresa de quem recebe o chiste quanto de quem o envia.
No contexto do palhaço, seria a resposta à participação necessária do público, no
espetáculo, que se aproxima da relação cotidiana, da vida, pelo desconhecimento
de sua aparição. O palhaço deve estar pronto à resposta imediata, o corpo deve
estar preparado para esta resposta.
Ou seja, não se pode ensaiar um número de palhaço inteiramente, com todas
as marcas, sem dar margem ao improviso e às respostas do público. O palhaço vai
trabalhar justamente na resposta à resposta dada pelo público. Ele pode, sim,
preparar o palhaço, trazer algumas cenas prontas, preparar seu corpo, sua voz e
outras características próprias do personagem, ou seja, se “preparar” para o jogo que irá se estabelecer no palco. Mas nunca encerrar a questão fora do palco e
trazê-la ao público pronta, encerrada, acabada.
Claro que o teatro também depende da encenação e do público, mas as
marcas e rubricas já estão previamente ensaiadas. Se isso não fosse verdade, não
existiriam termos como “cacos” próprios de inserções de improvisação, feitas pelo ator no momento da cena. Mas por outro lado, torna a se aproximar do teatro, na
medida em que o texto literário, a peça escrita, só faz sentido quando lhe é dado o
81
acabamento estético e a junção de tudo: texto, figurino, cenário, personagens etc.,
no palco. Porém, este depende menos de um público participativo. Já o palhaço
necessita essencialmente.
Ainda sobre o tema repetição, podemos trazer como importante contribuição
o texto A repetição na cultura de Luiz Antônio L. Coelho, publicado no livro
Mosaico: imagens do conhecimento organizado por Solange Jobim e Souza
(Souza, 2000). Para o autor, temos uma relação contraditória com a repetição. Se
por um lado nos dá prazer, por outro nos repudia. Ora à repetição estão associados
valores negativos, pejorativos (estereótipos, clichês, lugar comum etc.), ora
valores positivos (ritual, controle social etc.). Desdobrando principalmente os
valores positivos, Coelho vai apontar que o que diverge os valores associados às
repetições são outros elementos criativos que acompanham essas recorrências.
Diferenciando assim as “repetições criativas” das “repetições estéreis”. De PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1011889/CA
maneira geral, ele aponta para a repetição presente na Natureza e também na
Religião, mas é quando aborda a repetição na Cultura que mais traz elementos
importantes para a discussão deste trabalho.
Em primeiro lugar, pontuamos a repetição na linguagem como processo de
reconhecimento e aí nos reportamos imediatamente ao já citado Barthes.
Posteriormente o autor aponta também para a repetição no Teatro. A repetição que
gera prazer na expectativa por reconhecer momentos específicos numa encenação
do Kabuki e também o reconhecimento na cenografia padrão do teatro Noh –
ambos manifestações específicas do teatro japonês. Lembra-nos também a já
comentada repetição na remontagem de peças teatrais. O prazer de
reconhecimento ao observar as alterações feitas ao modelo.
Traz ainda com objetivo de ênfase a repetição da mensagem. Como veremos
mais adiante em algumas das categorias, a repetição está vinculada assim à ideia
de reforço, de ênfase em determinada cena ou elemento. Bem como na repetição
no riso, e aí retornamos a Freud, como o prazer na economia de energia e a ideia
de condensação. (Coelho in: Souza, 2000)
Aqui vale ressaltar que quando comentamos as categorias, elas não foram
exatamente citadas por Freud como técnica, mas foram reunidas livremente, no
decorrer da leitura, ao perceber-se certa unidade funcional entre elas. Isso justifica
uma divisão mais ampla, abarcando algumas categorias pelo autor mencionadas.
82
Temos assim uma noção mais aprofundada dos gêneros Infantil, Cômico e
Popular, e suas respectivas ausências – indizível, silenciado ou não dito. Bem
como os reflexos da marginalização apontada anteriormente e vista sob a ótica da
inserção no mercado e da dificuldade de nomenclatura (também analisadas como
ausência). Consciente da estrutura na qual estão inseridos os objetos desta
pesquisa, partiremos para uma análise da ausência na relação entre imagem e
texto.
3.3
Imagem e texto
A ausência do elemento textual, num suporte onde ele é culturalmente
esperado, conduz a uma ideia de uma lacuna de informação que seria necessária à
compreensão. Nesta ausência se coloca o desafio da compreensão com “menos” PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1011889/CA
informação. Uma sensação de falta, que dificultaria a compreensão cognitiva e
fruição estética – ausência ou limitação do código. Para isso trabalharemos a
noção de que tanto o Livro de Imagem quanto o Palhaço Mímico lidam com um
volume de informação condensada, que possibilita múltiplas leituras.
Algumas incursões mais voltadas para a forma trarão certas questões
próprias à construção do livro e à maneira de enquadrar as imagens. O que conduz
a uma reflexão sobre sua proximidade com o espetáculo e assim entender de que
maneira essas duas questões se envolvem com o narrar.
Mais adiante, teremos uma reflexão sobre a maneira como se estabelece um
jogo de interação público/leitor (no Palhaço e no Livro de Imagem) de maneira a
pensar como uma experiência visual, na presença física do espectador na cena
narrada. A partir de então, como estabelecemos também as competências de
leitura e o que elas exigem do leitor/espectador, partindo da ideia de uma
cumplicidade entre o leitor e o livro, bem como espectador e palhaço. Dessa
maneira, dentro do jogo, verificarmos que questões estão envolvidas nessa
situação que permitem um olhar diferenciado à narrativa.
A partir disso se provoca a rediscussão da tensão entre texto e imagem, num
primeiro momento. E, posteriormente, a reflexão já apontada dentro do campo de
estudo da Narrativa, da discussão entre os gêneros Realidade e Ficção. A proposta
83
é refletir sobre a natureza da prova em que pese o uso de diferentes linguagens e
de suas diferenças de leituras no contexto cultural.
Como característica da obra de Linden, a análise dos aspectos formais do
livro nos traz questões interessantes a esse respeito. A autora faz um estudo
específico sobre a moldura. A característica fundamental encontrada nesse estudo
aponta para a moldura como uma forma de recorte ou delimitação do que está
sendo mostrado.
Por outro lado, as imagens que são trazidas ao livro e reproduzidas em
página inteira, ou, como o termo técnico “sangram” a página, geram, segundo Linden, uma espécie de espetacularização. “A imagem tende então a anular o
suporte.” (Linden, 2011 p. 73) E mais, quando essas imagens são dispostas dessa maneira e sequenciais, se assemelham a uma tela. Dessa forma as imagens
sangradas, diferentemente das molduras, criam uma sensação de que aquela é só
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parte da realidade possível de ser vista daquele ângulo. Estamos assim diante de
um artifício formal que cria o efeito cinético (tela) e, portanto, provoca uma
sensação de presença na narrativa. Logo, a moldura seria uma espécie de recorte
da realidade narrada, “anulando” outros elementos dessa história, enquanto a
sangria seria a possibilidade “máxima” de perspectiva da cena. Porém, o que ambas tem em comum, mesmo com a diferença, é a não
representação de toda a realidade. Mesmo o recorte da moldura ou o corte da
sangria ainda excluem certos dados da realidade, podendo inclusive aproveitar-se
dessa ausência como recurso – lacuna como expressão.
A esse respeito, novamente retornaremos à mímica e a Jacques Lecoq
(2010). Dessa vez pontua-se duas categorias de linguagens em que percebemos
certa proximidade com a questão: a representação física e espacial na “figuração mímica” e a dinâmica interna das imagens nos “quadros mímicos”. A primeira, “figuração mímica”, consiste em representar pelo corpo não mais o texto escrito, palavras, mas sim espaços e objetos. Esses espaços só são visualizados à medida
que o ator mímico os representa fisicamente em seu corpo com gestos etc. O que
não está sendo representado pelo ator, pelos gestos, não é visível na cena como
cenário, espaço físico ou objeto. Assim, a ausência dos elementos e dos espaços é
invertida pela representação gestual do mímico. Uma parede que antes não era
visível, a partir de alguns gestos do mímico passa a ter uma presença física na
cena, mesmo que invisível.
84
Figura 7 –
Fotografia do mímico Marcel Marceau simulando apoio com o braço.
MARTIN, Ben. Marcel Marceau – Master of Mime. Ed. Penguin, 1978.
Portanto, à medida que cada elemento vai sendo representado, assim como
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no Livro de Imagem, ele passa a ser percebido pelo espectador, ele “entra em cena”. Já os “quadros mímicos”, no fluxo dessa dinâmica, acrescentam o fator tempo e deslocamento espacial. Numa sequência de “quadros” (referência à pintura ou ao cinema), demonstra o deslocamento do personagem por ambientes e
cenários diferentes, compreendendo “planos”, “travellings”, ritmos, closes. Muito próxima dos Livros de Imagem, essa categoria apresenta para nós a ideia de uma
sequência de imagens, de cenas encadeadas que, no conjunto, no jogo silencioso,
proporcionam uma experiência narrativa. Porém, o que diverge as duas linguagens
é o movimento: possível na encenação mímica, mas só sugerido na ilustração.
Figura 8 –
Exemplo de sequência de imagens e códigos convencionais – linhas e borrões,
como tentativa de representação do movimento pela imagem. Fonte: King, Stephen Michael.
Folha. São Paulo: Brinque-Book, 2008.
85
É claro que não é só a moldura que será responsável por essa questão. O
ponto de vista, o ângulo de visão e outros aspectos formais como técnica e efeitos
visuais também trarão contribuições para provocar uma sensação de presença
dentro da realidade narrada ou um distanciamento. Essa presença poderia ser lida
pela ótica da especificidade da linguagem cinematográfica trazida por Pasolini, na
qual os elementos, objetos e atos com os quais se trabalha o cinema, são
pertencentes à realidade e não representações. Sem, contudo, pretender uma
equivalência da representação fotográfica do cinema com a linguagem do desenho
na ilustração, a ideia é perceber uma aproximação da linguagem da ilustração nos
livros de imagem como visualização de uma narrativa próxima da tela de cinema e
da linguagem cinematográfica ou teatral.
Outro aspecto importante para a discussão sobre a relação entre texto e
imagem é a produção discursiva – tanto na linguagem textual quanto imagética. A
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sequência de imagens no Livro de Imagens e da performance cênica do Palhaço
Mímico, apesar da ausência do texto falado ou escrito, não impede a produção
discursiva na linguagem textual. Assim, a produção textual por ser resultado da
narrativa visual. Como se nesse processo de leitura das imagens estivessem
presentes as ideias de Benjamin no que diz respeito a evitar dar explicações 6 e
assim permitir o máximo de pluralidade de leituras possíveis. E por outro lado a
ideia de uma leitura sempre fresca e nova, a narrativa “se assemelha a essas sementes de trigo que durante milhares de anos ficaram fechadas hermeticamente
nas câmaras das pirâmides e que conservam até hoje suas forças germinativas.” (Benjamin, 1987 p. 204)
E nisso, esbarramos novamente nos estudos voltados ao livro ilustrado, pois
alguns autores consideram justamente essa dupla produção pressuposto para
categorizações diversas.
Categorizações comparativas entre texto e imagem
Sophie Van der Linden estabelece uma categorização que leva em conta
aspectos organizacionais do texto e da imagem. Numa primeira classificação
Linden se debruça sobre o “status da imagem” para perceber essa relação dentro do livro. O resultado foi organizado da seguinte maneira:
6
Crítica que Benjamin faz à Imprensa e à natureza da informação – “Metade da arte narrativa está em evitar explicações.” (O Narrador, in: BENJAMIN, 1987)
86
- imagens isoladas: imagens isoladas do ponto de vista da expressão e da
narrativa. Esse isolamento é marcado pela organização da imagem na página
(diagramação).
- imagens sequênciais: imagens justapostas e articuladas.
- imagens associadas: são as imagens que possuem uma autonomia e ao
mesmo tempo uma dependência. Nesse movimento contraditório, se estabelece
um trecho entre as imagens isoladas e as sequênciais onde se localizam as
imagens que não são nem totalmente isoladas, nem solidárias. (Linden, 2011 p.
44-5)
Outra forma de categorização encontrada por Linden se refere ao tipo de
diagramação:
- Dissociação: alternância de leitura do texto e da imagem separadamente –
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ritmo vagaroso de leitura.
- Associação: associação espacial entre o texto e a imagem – leitura mais
dinâmica.
- Compartimentação: imagem e texto associados, mas em compartimentos
(molduras).
- Conjunção: texto e imagens não se encontram em espaços reservados,
mas se confundem na página.
As três classificações apresentadas pela autora até agora, apesar de
trabalharem com aspectos diferentes, se fundamentam na questão espacial, na
distribuição de texto e imagem ao longo das páginas do livro. Parece, portanto,
que a perspectiva de Linden sobre os livros ilustrados atravessa principalmente a
quantidade (ou volume) e a organização espacial entre as duas linguagens. Esses
tipos de classificações buscam pelo aspecto espacial dar conta da diversidade de
organizações (diagramação) presentes na complexidade que se estabelece nesse
hibridismo. Apesar do objeto em estudo não trabalhar com a linguagem textual e,
portanto, não ser necessário uma análise sobre a sua organização espacial em
conjunto com as imagens, uma interessante abordagem poderia ser feita a partir da
proposta da autora: levando-se em conta que a imagem conduz no leitor uma
produção de sentido e também uma construção narrativa, é comum que este
traduza essa narrativa verbalmente. A questão que se coloca é qual o volume de
87
texto produzido por uma imagem específica? Ou ainda, é possível analisarmos
imagens que proporcionem a produção de uma quantidade maior de texto do que
outra? Que características devem ter essas imagens para que isso ocorra? Ou seja,
seria uma organização que poderíamos pensar entre o texto e a imagem, mesmo
quando o texto não está presente no livro de forma escrita. E na área do Palhaço,
poderíamos também pensar na quantidade, no volume de texto que determinada
performance produziria? E seria realmente possível uma “tradução” na íntegra entre linguagens? Claro que há impossibilidade de tradução literal, mas será que é
possível alguma construção narrativa por imagens que não teria palavras para
traduzi-la? E de que maneira então poderia ser lida? E mais ainda, é possível uma
reconstrução visual das sugestões de imagens (cenários, elementos e objetos de
cena) feitas pelo Palhaço Mímico?
Aqui retornamos a Jaques Lecoq (2010) para trazer mais uma categoria de
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sua classificação: a de “Linguagens do Gesto”, que será útil para percebermos essas questões no Palhaço Mímico. A chamada pantomima branca (termo
cunhado pelo autor) é traduzida por Lecoq como a pantomima que se limita a
traduzir palavras em gestos. Para o autor, essa tradução de linguagens “impõe, inevitavelmente, uma sintaxe diferente daquela da linguagem falada”. Destacando uma construção diferente da linguagem textual, como no exemplo: “Você é bonita, venha comigo, vamos nadar” para “você e eu”, “você bonita”, “ir juntos”, “nadar ali”. Para Lecoq, isso implica numa economia (condensação), numa precisão (na escolha do termo a ser traduzido) e num tempo também diferente.
(Lecoq, 2010 p. 158)
Encontraremos na Literatura algumas classificações que buscam abordar o
livro justamente na relação entre o texto e a imagem. Não necessariamente como
tradução de linguagem, mas como complemento, colaboração.
Linden traz uma categorização levando em conta principalmente os aspectos
narrativos de ambos:
- relação de redundância: a autora define como o “grau zero” da relação entre texto e imagem onde os conteúdos narrativos em ambas as linguagens se
encontram total ou parcialmente sobrepostos. (Não ignorando a impossibilidade
de se terem conteúdos “idênticos” em linguagens diferentes.)
- relação de colaboração: construção conjunta entre texto e imagem, de
forma articulada, gerando a noção de complementariedade.
88
- relação de disjunção: texto e imagens não necessariamente se
contradizem, mas não apresentam pontos de convergência, podendo assumir
inclusive a característica de “narrativas paralelas”.
Aprofundando essa última categoria, Linden apresenta a necessidade de
mostrar também uma classificação de como os elementos textuais e imagéticos se
relacionam, ou seja, “de que maneira interagem um com o outro”.
- função de repetição
- função de seleção
- função de revelação
- função completiva
- função de contraponto
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- função de amplificação
De forma diferente, encontramos as tentativas de tipologias dos livros
ilustrados apontadas por Nikolajeva & Scott. Nelas as autoras têm um esforço
significativo em procurar descrever a gama de possibilidades de interação entre o
texto a imagem, no que se refere à dependência das duas linguagens para a
produção de sentido na narrativa. Inclusive com algumas propostas de termos para
nomear este tipo de relação: “Iconotexto” (Hallberg);; “dueto”, “polissistemia” (Lawrence R. Spice);; “sinergia”, “imagem-texto” (W.J.T. Mitchell). (Nikolajeva & Scott, 2011 p. 23) Na maior parte dos casos analisados, as tipologias geram
uma espécie de gradação que vai desde a independência completa do texto, em
relação à imagem (a ilustração não é necessária à compreensão da narrativa) até o
seu inverso. Apesar de muitos autores trazerem categorias bastante interessantes e
levarem em consideração, em alguns casos, os livros que não possuem texto
verbal, estes últimos quase não são abordados de forma mais aprofundada.
Sustentando ainda a presença do texto dentro do livro.
Ao analisar os tipos de livros em que a narrativa é contada unicamente pelas
imagens, Nikolajeva & Scott também não aprofundam nem apontam qualquer
característica específica dos livros, exceto a necessidade de verbalização da
narrativa. Ou seja, ainda nos livros de imagem o texto torna-se “necessário”, mesmo que ausente, e a quantidade de lacunas presentes nas histórias permitem
89
uma contribuição do leitor, estimulando sua imaginação com mais amplitude –
apesar dessa característica não ser exclusiva desse tipo de livro.
O interessante na classificação proposta pelas autoras, no entanto, é a
gradação em que divide os livros segundo “a dinâmica palavra-imagem”, colocando como extremos um texto sem imagens e um livro-imagem. A primeira
divisão proposta é entre livros narrativos e não narrativos. Para este trabalho,
como o objetivo apoia-se na narrativa, propôs-se trabalhar unicamente com a
classificação de livros narrativos.
TEXTO
- texto narrativo
- texto narrativo com poucas ilustrações
- texto narrativo com pelo menos uma imagem por página dupla (não é
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dependente da imagem)
- livro ilustrado simétrico (duas narrativas mutuamente redundantes)
- livro ilustrado complementar (palavra e imagem preenchem uma a
lacuna da outra)
- livro ilustrado expansivo ou reforçador (a narrativa visual apoia a
verbal, a narrativa verbal dependa da visual)
-
livro
ilustrado
de
contraponto
(duas
narrativas
mutuamente
dependentes)
- livro ilustrado siléptico
- narrativa de imagem com palavras (sequencial)
- narrativa de imagem sem palavras (sequencial)
- livro de imagem ou livro-imagem
IMAGEM
Apesar de a classificação ser interessante justamente por trazer como
perspectiva a dinâmica imagem e texto em relação à narrativa, percebe-se uma
dificuldade de compreender a diferença entre duas categorias específicas. Por
exemplo, as autoras não deixam claro a diferença entre as duas últimas categorias:
“narrativa de imagem sem palavras (sequencial)” e “livro de imagem”. O que teríamos de diferença entre uma narrativa de imagem sem palavras e um Livro de
Imagem? Seria a narrativa – está ou não presente nos Livros de Imagem? Uma
90
tirinha de jornal, um filme, uma sequência de imagens se enquadraria na categoria
narrativa de imagem sem palavras, e um livro cujo conteúdo se desenrolasse numa
narrativa somente por imagens seria qualificado como um Livro de Imagem?
Seria uma linguagem específica que o Livro de Imagem possui que o qualifica
separadamente?
Por outro lado, o Livro de Imagem também não carrega o termo “ilustrado”, como nas categorias anteriores. Será então que o Livro de Imagem não é
considerado “ilustrado”? Segundo a tradução de ilustração subentende-se uma
imagem que possa esclarecer um texto, iluminá-lo. O termo ilustrado não se
enquadraria então no Livro de Imagem justamente pela ausência do texto verbal?
Ou seja, em livros desprovidos do texto verbal não é possível ter ilustrações?
Do esquema proposto no livro, temos as seguintes categorias que foram
abordadas com mais detalhamento e exemplos:
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- Livros Ilustrados Simétricos: caráter mutuamente redundante na
interação texto-imagem – “as palavras nos contam exatamente a mesma história que a ‘lida’ nas ilustrações”. (Nikolajeva & Scott, 2010 p. 29) As autoras comentam que esse tipo de livro são muito “estáticos” no texto visual, utilizando
ilustrações de forma apenas decorativa. E citam o distanciamento do escritor e o
ilustrador como questão principal para resultar em um livro com ilustração e não
livro ilustrado. Esta categoria parece ser consenso entre os teóricos – Linden
(redundância), Schwarcz (congruência), Golden (simétricos) etc.
- Livros Ilustrados Complementares: palavras e imagens preenchem as
lacunas deixadas pela outra, limitando assim o espaço para a imaginação do leitor.
- Livros Ilustrados Contrapontos: “palavras e imagens fornecem
informações alternativas ou de algum modo se contradizem”, proporcionando uma diversidade de leitura e interpretações. Pontua ainda que neste caso os livros mais
estimulantes foram produzidos por um só autor, que elaborou texto e imagem de
forma conjunta. Nesse caso destacam o fator da Ironia, apontado também por
Nodelman e Linden, quando o texto e a imagem se contradizem.
- Livros Ilustrados Expansivos ou Reforçadores: as ilustrações não fazem
contraponto às palavras, as “expandem”, “reforçam” ou “elaboram”. Sendo assim, o texto é absolutamente dependente das imagens, mas estas não trazem em si a
narrativa. “Palavras e imagens contam duas histórias diferentes.”
91
Sobre isso, poderíamos destacar mais uma categoria proposta por Lecoq ao
tratar da mímica. Para ele os contadores-mímicos procuram trabalhar com as duas
linguagens em conjunto – verbal, na narrativa oral, e gestual –, reverberando e
interpretando as ações ou emoções dos personagens. Segundo Lecoq, esses
contadores podem conciliar as duas linguagens numa mesma narrativa ou alternálas, como pudemos perceber também na relação texto e imagem dos livros
ilustrados. (Lecoq, 2010 p. 161)
Outro aspecto interessante, destaca Linden, é o fato de ela observar que
geralmente em leituras em que texto e imagem narram histórias diferentes e
principalmente contraditórias (irônicas), as imagens são lidas como verdadeiras
em relação ao texto. “De acordo com minhas investigações, é sempre a imagem que parece falar ‘a verdade’.” (Linden 2011 p. 125)
Essa noção de múltipla leitura apresenta uma diferença quanto à forma de
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leitura, caso os fatos sejam narrados verbalmente ou visualmente. Talvez porque
historicamente a imagem esteve associada à ideia de “registro” (pinturas na Idade Média, fotografia etc.) e, por conta disso, implicaria numa leitura dela
condicionada a “falar sempre a verdade” e se caracterizar sempre como “prova dos fatos”. Esse grau de veracidade também é percebido nas Artes Cênicas, onde não está presente a imagem técnica como reprodução, mas sim o ator
representando uma personagem. Claro que em ambos os casos, tanto no Cinema
como nas Artes Cênicas, o público está ciente da representação, mas se dispõe a
assistir o fato como real, utilizando-se do que Umberto Eco chamou de
“suspensão das provas”. Porém, ainda que vistos como representação, existe
principalmente nas Artes Cênicas uma presença do ator inegável. Para um
espectador não ciente do jogo estabelecido no palco, como as crianças que por
ventura desconhecem o mecanismo por trás de uma encenação, aquela presença
física do personagem é vista como verdade. E não só em crianças, o público
adulto, seja pela suspensão das provas, seja por uma excelente atuação, crê na
presença do personagem ao visualizar o ator em cena.
A relação, portanto, entre real e fictício permanece, mas com algumas
questões curiosas. Sendo a imagem portadora, digamos, de uma “veracidade maior do que o texto, nos casos em que estes se contradizem” há, pelo leitor, a compreensão de que existe uma narrativa falsa e outra “verdadeira”. E essa característica à qual está associada a imagem deve-se ao fato de ela “mostrar” em 92
vez de contar. Quando o que está sendo narrado textualmente não corresponder à
imagem, desloca-se esta para um status de prova dos fatos. “Se está sendo visto,
está acontecendo.” E se está acontecendo, eu estou presente nesse fato, sou testemunha, sou cúmplice. Novamente perceberemos a cumplicidade em jogo.
Nikolajeva & Scott, por exemplo, ao abordarem a perspectiva narrativa
dentro dos livros ilustrados, trazem uma diferenciação no modo de narração do
texto e da imagem.
Em narratologia, o termo ‘ponto de vista’ é empregado em uma acepção mais ou menos metafórica, para denotar a posição assumida pelo narrador, pelo personagem e pelo leitor
implícito (...). Há também uma distinção entre o ponto de vista literal (pelos olhos de quem
os eventos são apresentados), o ponto de vista figurativo (transmitindo ideologia ou visão
de mundo) e o ponto de vista transferido (como o narrador se beneficia com o relato da
história). (...) Com as imagens, podemos falar de perspectiva em um sentido literal: como
leitores/espectadores, vemos a ilustração de um ponto de vista fixo, que nos é imposto pelo
artista. (Nikolajeva & Scott, 2011 p. 155)
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Mais adiante, ainda se baseando na Narratologia, as autoras relembram uma
distinção essencial entre “ponto de vista (quem vê) e voz narrativa (quem fala)”. Assim, concluem as autoras, o texto fica primordialmente com a função da voz e
as imagens do ponto de vista. O que mais chama atenção nessa diferenciação é a
forma como se transmite a narrativa. A veracidade presente na imagem muito
mais do que no texto, apontada por Linden, está contida na presença do
espectador na cena. Ou seja, mais do que espectador, é como se ele estivesse
presente no momento da ação, ou vendo uma fotografia do fato. Tratando-se de
uma sequência de imagens, o Livro de Imagem fica então caracterizado como um
grupo de imagens que registrou um determinado momento ou diversos momentos
de uma história da qual procuramos, como leitores, compreender o fio narrativo.
Esse estado de presença, como já vimos, também é verificado no Palhaço,
que aponta para a mesma direção. Se ele não está exatamente atuando, então tudo
que acontece aqui é real. Portanto, como na vida, as possibilidades são
imprevisíveis. Não é a toa que à figura do Palhaço é comumente associada a do
louco, a do bêbado. Acredita-se que esse vínculo se estabeleça pela relação de
uma presença real percebida, onde se estabelece um vínculo em que as
possibilidades são reais e presentes, onde não há atuação. E sendo o louco ou o
bêbado “capaz de agir irracionalmente”, logo à figura do Palhaço também é associada um certo temor.
93
Para Michel Lahud (1993), Pasolini considera a realidade trazida também
pela imagem no Cinema, quando aponta para a característica dessa linguagem
como sendo um sistema “menos simbólico, arbitrário e convencional. Ela expressa a realidade com a própria realidade; que, ao invés de evocar, ou de
representar, ou mesmo de copiar o real, ela simplesmente o reproduz (som e
imagem)”. (Lahud, 1993 p. 41) Ou ainda:
o cinema como experiência de linguagem que recompõe a fratura entre a matéria da
expressão e a realidade expressa acaba de fato se confundindo com a experiência
filosófica fundamental, para Pasolini, da própria existência humana: a de uma relação direta
do eu com os outros e a da presença imediata do mundo para a consciência. (Lahud, 1993
p. 41)
Parece que inevitavelmente, apesar de percorrer diferentes caminhos, iremos
nos aproximar também do Cinema. Sobre esse aspecto, porém, merece ser feita
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uma abordagem à parte mais aprofundada. Cabe aqui destacarmos uma passagem
da obra de Arlindo Machado, Pré-cinemas e Pós-cinemas (1997), que é bastante
interessante para discussão. Segundo o autor, a característica da sala de cinema de
hoje é similar ou idêntica às primeiras salas concebidas: “O cinema foi concebido, desde suas origens, como um lugar (em geral escuro) onde se pode espiar o
outro.” Tal característica vem no entanto da dita “pulsão de tomar o outro como
objeto”, que Arlindo Machado credita a Freud – escopofilia. (Machado, 1997
p.125) A partir daí, Arlindo Machado destaca a quantidade de filmes com
temática erótica produzidos no princípio do século XX, mas sobretudo para
demarcar o trajeto de preparação do espectador para uma “nova experiência do olhar, que hoje chamaríamos de subjetiva”. (Machado, 1997 p. 126) O autor esclarece-nos que alguns recursos (como vinheta simulando buracos de fechadura,
lunetas e binóculos) foram utilizados muitas vezes para gerar no espectador essa
presença subjetiva dentro da cena, pois na época ainda não se tinham
popularizados os códigos cinematográficos conhecidos hoje.
A aproximação da câmera tem inicialmente um apelo erótico indisfarçável: trata-se de retirar
o espectador da posição cômoda, mas pouco aventurosa, do cavalheiro da platéia (...) e
colocá-lo ‘em contato’ com os protagonistas, como se ele fosse subir ao ‘palco’ e vivenciar a ação como alguém que faz parte dela. (Machado, 1997 p. 127)
94
Para o autor, portanto, há uma nítida busca por uma inserção do espectador
dentro da cena.
O que de certa forma todas essas questões têm em comum é algo não só
restrito à área da Literatura, muito menos do Livro de Imagem. Trata-se de uma
“exigência de participação do leitor”, já abordada por Bakhtin como “Inacabamento” – a noção de que uma obra de arte necessita da participação do
outro – alteridade na criação – para se tornar uma obra de arte. Há assim uma
‘parte da obra’ que falta, uma lacuna só preenchida no ato da fruição. E mais do
que isso, uma obra de arte, mesmo não deixando lacunas ao observador, acaba
sendo complementada por ele.
A noção de “excedente de visão” – um olhar só possível pelo outro –,
recoloca uma importância à recepção da obra, mas não só isso, dota o leitor de
uma autoridade (alteridade prevista por Bakhtin) na narrativa. Essa autoridade, em
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comum acordo ao leitor, ou seja, uma construção mútua e partilhada, propõe ao
“espectador-leitor” uma cumplicidade. Sobre essa característica Linden nos traz
algumas observações com bastante propriedade:
A contradição entre texto e imagem faz do leitor um cúmplice. Ele restabelece a “verdade” que, aliás, como já observei, é quase sempre vinculada pela imagem... (Linden, 2011 p.
135)
Dando continuidade, Bakhtin (2003) discute a estética expressiva, que
segundo ele “procura ao máximo excluir o autor como elemento essencialmente autônomo em face da personagem, restringindo-lhe as funções à mera técnica da
expressividade”. (Bakhtin, 2003 p. 68) Ele vai chegar a discutir a diferença entre
interpretar e representar. Principalmente nas Artes Cênicas, onde essas duas
palavras podem ser confundidas como sinônimos, ele vai procurar trazer as
especificidades de cada uma. O que vai nos ajudar a compreender o presencial
necessário à atividade do palhaço, citada acima. Do ponto de vista do
interpretador, segundo Bakhtin, não é prevista a existência de um espectador, ou
seja, alguém fora do ato encenado, apreciando a cena de um ponto externo a ela.
Para ilustrar, traz o exemplo interessante de um grupo de crianças que brinca de
“chefe de bandidos”. A criança, nessa ocasião, assume a vida de bandido, vivencia ela, enxerga pelos olhos do bandido, seu horizonte é o horizonte do bandido. O
mesmo acontece com os outros participantes que também o enxergam como
95
bandido e vivenciam juntos a mesma situação. Dessa maneira não se dá a
experiência estética, e sim um acontecimento da vida, de interpretação da vida.
A interpretação realmente começa a aproximar-se da arte, justamente da ação dramática,
quando surge um participante novo, apático – o espectador –, que começa a deliciar-se
com a interpretação das crianças do ponto de vista do todo do acontecimento da vida aí
representado. (Bakhtin, 2003 p.69)
E a partir daí a situação, mesmo com a presença de um espectador, pode
retornar ao estado de interpretação, desde que o espectador assuma um papel
dentro da brincadeira ou assuma um dos personagens já existentes. Mesmo
permanecendo na cadeira onde está sentado. “Assim, não existe elemento estético
imanente à própria interpretação, ele pode ser aí inserido por um espectador que
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observa com ativismo.” (Bakhtin, 2003 p.69)
O que a interpretação tem mesmo em comum com a arte? Apenas o elemento puramente
negativo, o fato de que aqui e agora não está presente a vida real mas tão-somente a sua
representação; mas nem isso pode ser afirmado, porque só na arte ela é representada, na
interpretação é imaginada, como já observamos; ela só se torna representada na
contemplação ativo-criadora do espectador. (Bakhtin, 2003 p.69)
Mimese
Nikolaveja & Scott tratam a questão sob outra ótica. No capítulo em que
abordam o tema, as autoras fazem a distinção entre “representação mimética e não mimética”. O primeiro caso trata-se de uma representação literal e o segundo
simbólico. Ou seja, uma representação por imitação direta da realidade (mimética)
ou a simbólica da qual se permite uma interpretação em diferentes níveis
(simbólica ou abstrata). Para os livros ilustrados, e a partir do conceito de
modalidade – “conceito da linguística que abrange categorias como possibilidade, impossibilidade, contingência ou necessidade de afirmação” (Nikolajeva & Scott, 2011 p. 237) – as autoras propõem uma classificação:
- Interpretação mimética ou modalidade indicativa “isso aconteceu” - decodificação da informação como verdadeira.
- Interpretação simbólica, transferida, não mimética - estímulo à
decodificação como possibilidade de uma verdade.
96
Curiosamente a escolha das autoras em trabalhar com o conceito de
modalidade se fundamenta na possibilidade de examinar “os modos complexos pelos quais os livros ilustrados transmitem a apreensão da realidade, que sempre
envolve aspectos subjetivos, sem recorrer à divisão um tanto artificial das
narrativas em fantásticas e realistas. (...) a interação palavra-imagem cria uma
aspecto muito mais amplo que essa binaridade”. (Nikolajeva & Scott, 2011 p. 237)
Mais adiante, procurarão demonstrar o quão complexas pode ser a
modalidade através da interação entre texto e imagem. Em resumo, as autoras
destacam o quão difícil é saber se o que vemos é real ou irreal, quando se trata de
imagens desacompanhadas de palavras.
Esse estado de interpretação, sem contudo perder o caráter de representação
artística, esse grau de “vivenciamento interno” à narrativa, essa participação do PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1011889/CA
leitor diante dos fatos, essa cumplicidade, irá se desenvolver por todo o livro e
será de fundamental importância para a construção narrativa. Vimos essa
abordagem em Linden, quando traz a noção de cumplicidade e uma relação com
uma “verdade” proposta, e muitas vezes contradita, entre texto e imagem. Vimos essa “verdade” também em Bakhtin quando ele associa a interpretação com a vida e não como representação e por fim, ao analisarmos a classificação de Nikolajeva
& Scott segundo a apreensão mimética e simbólica como graus diferentes de
“veracidade”, bem como em Freud e Bergson ao analisar o cômico, bem como em Pasolini ao olhar para o cinema.
A discussão aqui não se propõe a avaliar o grau de veracidade de uma
imagem, nem questioná-la. O importante para o presente estudo é que a
veracidade percebida por Linden nas imagens, também discutida por Bakhtin na
interpretação como vivência e por Nikolajeva & Scott na complexidade de
modalidades que essa verdade pode provocar a imaginação, fortalece a noção de
presença.
O livro ilustrado com frequência se apresenta como uma proposta aberta (representações
dissimuladas nas fronteiras do livro, percursos de leitura implícitos dentro da imagem,
funcionamento interno subjacente...) em que o espírito de brincadeira e o carinho ocupam
um lugar primordial.
(...)
a confissão recíproca entre o criador e o leitor irá permitir a existência do livro. (Linden,
2011 p. 158, 159)
97
Diante então dessas reflexões, emergem algumas questões relevantes para a
continuidade do estudo e para um outro olhar diante dos Livros de Imagens,
acreditando que essas questões sejam as bases para uma reflexão mais debruçada
sobre certas obras, permitindo uma análise crítica que expanda o olhar sobre esse
objeto.
Em primeiro lugar poderíamos apontar a ideia central, de ausência, e o que a
partir dela se percebeu ao longo do texto. Passando pela noção de marginalização
relativa, em que os dois objetos se colocam num contexto histórico, social e
comercial, chegamos a questões que envolvem omissão, alusão e condensação,
próprias do cômico, analisado por Freud. Mas também bastante oportuno para se
pensar o Livro de Imagem e sua característica de redução do volume de texto em
fragmentos visuais narrativos, presente no que chamamos de “entrepáginas”, ou “brancos”, “lacunas” etc. Assim, a redução, ou melhor, condensação de PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1011889/CA
informações em algumas imagens sequênciais, proporcionam leituras diversas
(quando pensada dupla audiência, ou multiplicidade de leitura) ou ainda
experiências narrativas diversas (se imaginarmos que o adulto, acostumado com o
livro, depara com outra proposta sem o texto, que o conduz a um desafio de ler e
narrar só com imagens, e também a experiência da criança proporcionada por uma
leitura multissensorial).
Uma outra perspectiva é a da condição de leitura, ou modo de leitura. Nesse
caminho verificamos uma sensação de presença física do espectador/leitor na cena
narrada, como se estivesse ele próprio diante dos fatos e deles fossem extraídos a
narrativa. Dessa reflexão, pudemos perceber aspectos como cumplicidade
estabelecida entre o Palhaço e o espectador, o que em paralelo percebemos numa
certa “espetacularização” própria dos Livros de Imagem. Por outro lado, apresentou-se a distinção feita por Bakhtin entre Interpretação e Representação
que foi útil para por em foco o ato de fruição do leitor, como sendo uma
experiência no limiar entre a Arte e a Vida. Isso traz novamente a ideia de uma
experiência narrativa e a sensação de testemunha dos fatos, o que provocou, no
encontro com informações contraditórias, no caso de livros com texto, a revelação
de uma característica diferenciada entre a linguagem visual e a textual. E no
encontro com o Palhaço Mímico, questões próprias da linguagem gestual.
O desafio que percebo como ilustrador ao produzir um Livro de Imagem
está na dificuldade de desenvolver integralmente uma narrativa somente com a
98
linguagem visual. O que de certa maneira deflagra que a linguagem verbal possui
em sua ontologia características que permitem tratar determinados elementos da
narrativa com maior eficiência do que a linguagem visual. O seu inverso também
é válido. E é provavelmente a junção dessas duas linguagens nos livros ilustrados
o que proporciona tamanha riqueza e diversidade.
Spengler (apud Coelho, 2000) aponta para uma característica diferente entre
a criança e o adulto no que se refere à leitura, já apontada anteriormente. Segundo
o autor, essa característica está ligada à diferença de domínio da linguagem –
normalmente mais precário e limitado na criança do que no adulto. Enquanto a
criança pratica a leitura prioritariamente pela experiência sensível, o adulto o faz
também de maneira intelectual e abstrata.
O que de certa maneira atravessa essa questão é a diferença entre a
característica ontológica do texto de representar simbolicamente e da imagem de
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representar iconicamente. Sobre isso, Pasolini nos esclarece muito bem quando
diferencia a maneira de retratar um ambiente pelo literato e pelo cineasta. É claro
que não se trata de características próprias a essas linguagens, nem estanques, mas
apontamos como características ontológicas pela maneira como cada linguagem se
apresenta – uma sob a forma de um código previamente combinado e outra pela
representação por semelhança. Nikolajeva & Scott (2011) abrem sua análise dos
livros ilustrados apontando também para essa diferença:
O caráter ímpar dos livros ilustrados como forma de arte baseia-se em combinar dois níveis
de comunicação, o visual e o verbal. Empregando a terminologia semiótica, podemos dizer
que os livros ilustrados comunicam por meio de dois conjuntos de signos, o icônico e o
convencional. (Nikolajeva e Scott, 2011 p. 13)
As autoras ainda esclarecem que por conta dessa diferença a função
atribuída às figuras nos livros ilustrados é prioritariamente de mimese (mostrar).
Por outro lado, a função das palavras é principalmente de diegese (contar). Isso
fica claro quando aponta para a facilidade encontrada nas imagens de apresentar o
cenário, a ambientação, a caracterização e os elementos de cena7; e nas palavras,
de representar questões abstratas como emoções, descrição psicológica e diálogo.
Já o movimento, apesar da linguagem textual ter maior facilidade para tratar a
questão temporal, permanece um desafio para ambas as linguagens. Se na textual
7
Nikolajeva e Scott (2011) desdobram essa questão em diferentes capítulos: Ambientação,
Caracterização de personagens, Tempo e Movimento, Mimese e Modalidade, Linguagem figurada,
metaficção e intertexto.
99
é preciso descrever o movimento, na linguagem visual ele só é possível mediante
codificações ou sugestões – por exemplo, pelos traços ou esfumaçado que
reforçam a direção do movimento de um carro, ou ainda a sequência de imagens
em diferentes posições do mesmo personagem.
Assim, em resumo, Nikolajeva & Scott nos auxiliam novamente:
Se considerarmos o que cada um, imagem e palavra, faz de melhor, é claro que a
descrição física pertence ao domínio do ilustrador, que pode, em um instante, comunicar
informações sobre aparência que exigiriam muitas palavras e muito tempo de leitura. Mas a
descrição psicológica, embora possa ser sugerida em imagens, necessita das sutilezas das
palavras para captar emoções e motivações complexas. O discurso externo e interno como
meio de caracterizar personagens é, por definição, verbal (embora alguns dispositivos
visuais interessantes possam ser utilizados para transmitir discurso, a exemplo do que
frequentemente vemos nas histórias em quadrinhos), como o são quaisquer declarações de
terceiros sobre algum personagem que esteja sendo “analisado”, enquanto os comentários dos narrados podem ser tanto verbais como visuais. E, ao contrário de filmes, os livros
ilustrados não podem fornecer o movimento no mesmo tempo oferecido pelo simbolismo
das palavras. (Nikolajeva e Scott, 2011 p. 113)
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Para finalizar, retomamos o contraponto neste estudo, o Palhaço Mímico,
que na sua construção narrativa utiliza-se da linguagem gestual prioritariamente.
Nesse contexto, assim como a linguagem visual, a linguagem gestual apresenta
certa dificuldade de contar, quando comparada à linguagem verbal. A pantomima
branca, descrita por Lecoq (2010 p. 158), aponta para essa dificuldade quando o
autor vê na linguagem gestual a necessidade de uma sintaxe própria para tentar
reproduzir as palavras, pela impossibilidade do uso na sua integridade, da sintaxe
própria da linguagem textual. O que torna também difícil, por consequência, a
tarefa de representar conteúdos abstratos, psicológicos etc. Por outro lado, a
linguagem gestual também não contempla a totalidade dos recursos próprios da
linguagem visual, porque diferentemente dessa linguagem, não mostra os objetos,
ambientes e cenários com os quais está trabalhando. Mas busca através do gesto,
através do corpo, sugerir a presença de todos esses elementos – o que chamou de
figuração mímica. (Lecoq, 2010 p. 158) Como contraponto à linguagem verbal e
visual, no entanto, a linguagem gestual possui mais eficiência para representar o
movimento, pela característica própria da performance. Por tratar-se de uma
representação presencial, nela estão presentes especificidades dessa condição
como o improviso e a espontaneidade. Assim, ilustramos no esquema abaixo três
polos onde cada linguagem se coloca segundo sua maior ou menor eficiência de
articulação e representação quanto à descrição icônica, abstrata e de movimento:
100
Figura 9 –
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Esquema ilustrativo da relação de proximidade das linguagens – Visual, Textual
e Gestual; e a natureza dos signos em questão – Iconicidade, Abstração e Movimento.
Veremos, no entanto, em publicações de livros de texto, descrições que
criam abstratamente uma ambientação e promovem a imaginação de cenários,
elementos de cena, caracterizações e movimento que enriquecem e expandem-no
textualmente. Bem como também encontraremos livros de imagem que
conseguem, apenas no uso das imagens, apresentar cenas com movimento e
representar sutilezas emocionais, psicológicas e abstratas. Por fim, iremos
igualmente encontrar palhaços mímicos que conseguem, com o corpo, transmitir
emoções e descrever cenários, elementos e objetos. Isso se dá à medida que
entendemos não se tratar de características exclusivas de cada linguagem, mas
lacunas, ausências que podem ser mutuamente preenchidas e complementadas ou
“trapaceadas” – como nos colocou Barthes e como veremos no objeto de estudo
proposto. Ou ainda na mistura, nos hibridismos possíveis entre linguagens. Neste
caso, temos os livros ilustrados, os contadores mímicos, o cinema, a animação e
tantos outros.
Como resultado deste trabalho, propõe-se uma análise fundamentada no
cruzamento entre essas diferentes características das linguagens apresentadas, bem
como as questões próprias a cada uma, buscando compreender, no Livro de
Imagem, de que maneira as ausências percebidas na perspectiva histórica, bem
como as ausências próprias da linguagem – com a qual ele se coloca o desafio de
101
produzir um livro sem a linguagem textual –, estão presentes e interferem na
construção narrativa. E ainda, de que maneira questões históricas, da ausência e
especificidades da linguagem gestual no Palhaço Mímico, colocam-se como
contraponto e contribuições para essa análise. É a partir, então, do cruzamento
entre os três polos e suas respectivas características, apontadas no quadro anterior,
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que veremos emergir as categorias de análise.
102
4.
Categorias de Análise
Como fechamento deste estudo e contribuição para uma análise crítica e
teórica da narrativa, proponho a elaboração de categorias que possibilitem uma
perspectiva analítica do Livro de Imagem. Como ponto de partida para a
elaboração das categorias, temos a reflexão anterior, a relação entre as três
linguagens – verbal, visual e gestual –, e as características e/ou recursos para o
desenvolvimento de narrativas que ontologicamente pertencem a cada uma dessas
linguagens especificamente. O que não exclui, nem impossibilita, como explicado
anteriormente, observarmos o uso recorrente em linguagens diferentes da
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originária. Mas o que constatamos é que o surgimento de determinado recurso
narrativo está vinculado a uma linguagem específica ou por conta da eficiência
com que tal linguagem utiliza-o, ou pelas circunstâncias em que aquela linguagem
foi desenvolvida – contexto histórico-social, suporte tecnológico etc.
Dito isso, podemos colocar que a abstração conceitual – como a definição
de uma dimensão psicológica, emocional, de um personagem, bem como a
atmosfera e a classificação de um estado diferenciado de consciência como o
sonho, o delírio, a fantasia – é própria da linguagem verbal. A possibilidade de
descrever questões abstratas conceituais verbalmente é mais usual, culturalmente,
do que tentar demonstrar isso visualmente ou por gestos.
Por outro lado, questões que envolvem representação de movimento, do
deslocamento tempo x espaço, possuem recursos mais imediatos na linguagem
gestual. É inegável a eficácia de representar o movimento pela linguagem gestual
– pelo corpo – quando comparada às linguagens verbal ou visual. Questões
colocadas como improviso e espontaneidade – como vimos no palhaço – também
são mais bem observadas numa representação presencial (performance, encenação
teatral etc.) do que em objetos como o livro, onde a imagem permanece estática
(sendo ele de linguagem puramente verbal, visual ou mista).
E cabe à imagem, como bem nos esclareceu Nikolajeva & Scott,
características voltadas à representação espacial/visual – cenários, figurinos,
aspectos físicos do personagem, elementos de cena, iluminação. O ato de
103
“mostrar” encontra na linguagem visual uma eficácia maior na representação do que as propostas de representar um objeto, um cenário, pelo gesto ou mesmo
descrever uma cena, um aspecto físico do personagem na linguagem textual.
Como resultado do cruzamento entre estas questões e as três linguagens,
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temos a tabela a seguir:
Figura 1 –
Tabela da relação entre as linguagens e questões próprias à narrativa.
A partir desse cruzamento e levando em consideração que o objeto principal
deste estudo só utiliza a linguagem visual, dirigimos o foco de atenção para as
questões que estão ou não presentes ontologicamente na linguagem visual, mas
que são igualmente importantes para o desenvolvimento da narrativa. Assim,
procuraremos fazer uma abordagem que parta da ausência de determinadas
características na linguagem visual, para compreender de que maneira essas
questões são resolvidas em uma narrativa exclusivamente visual. Ou seja, como o
autor/ilustrador tenta suprir a carência de questões próprias à linguagem verbal e
gestual quando constrói uma narrativa por imagens no livro. Em seguida,
buscaremos compreender porque em alguns casos o autor propõe determinadas
ausências também na própria linguagem visual, sendo essa exclusiva do Livro de
Imagem.
Os livros analisados
Os livros escolhidos para serem analisados foram organizados pelo autor
deste trabalho de maneira não sistemática. Adquiridos livremente, reúnem
publicações nacionais e internacionais, incluindo diversos exemplares premiados
104
tanto no Brasil1 quanto no exterior. Outra questão presente nessa organização é
que a maioria foi publicada na última década. O fato de não apresentarem nenhum
critério específico na sua organização e seleção não foi encarado como um
problema na pesquisa, visto que as categorias desenvolvidas buscam possibilitar
uma análise dos livros de imagem na sua diversidade. Sendo assim não teremos,
durante a análise, nenhum juízo de valor sobre os livros analisados, sendo suas
imagens apresentadas apenas pelo fato de serem bons exemplos para a categoria
em questão. As referências das imagens analisadas serão colocadas na legenda das
mesmas, e a bibliografia contendo todos os livros analisados segue anexada a este
trabalho. (Anexo I)
Cabe pontuar que alguns dos livros não apresentam a narrativa unicamente
por imagens.
Apesar
disso, optou-se por analisá-los
também
porque
independentemente de fazerem pequeno uso da linguagem verbal, apresentavam
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excelentes exemplos para ilustrar algumas das categorias.
Os grupos de categorias
Por questões didáticas procuraremos reunir todas essas questões em três
grupos e na seguinte ordem: Relação tempo e espaço na imagem, Sugestão de
abstração conceitual e Ausência na imagem. Cada grupo ficará assim responsável
por reunir questões próprias à ausência respectivamente da linguagem gestual,
textual e visual. Essa organização deu-se em função da prioridade dada à análise
do movimento – deslocamento tempo x espaço, entendido como característica
fundamental no Livro de Imagem para a construção narrativa –, e, em seguida,
aspectos próprios para suprir a ausência da linguagem verbal. Por fim, observouse que curiosamente alguns livros de imagens propunham certa ausência também
na linguagem visual, o que de certa forma chamou atenção, e procurou-se
perceber quais as questões que envolviam essa omissão.
Nesses três grupos estarão, portanto, presentes as categorias de ausência: o
Vácuo do indizível (ausência ou limitação do código, limitação técnica), o
Silêncio do que não deve ser dito (expectativa social, censura, polidez) e a Lacuna
do não dito (lacuna original, como expressão, subversão ou provocação).
1
Prêmio da Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil – O Melhor para Criança,
promovido desde 1975 e que abrange diversas categorias incluindo especificamente a categoria
para livros de imagem.
105
Apesar da enorme contribuição de Linden (2011) e Nikolajeva & Scott
(2011) para a compreensão da expressão do tempo e do espaço, esses conjuntos de
categorias abordam algumas das questões colocadas em ambas as análises. Mas
busca, somando a elas, compreender de que outras maneiras são propostas pelos
autores de livros de imagens a relação e representação do tempo e do espaço.
Assim questões como “instante capital”, “instante qualquer”, “instante movimento”, “códigos gráficos”, “sucessão simultânea” repercutirão nas categorias propostas sem contudo uma exata similaridade.
4.1
Relação espaço e tempo na imagem
Esse grupo trata da ausência na linguagem visual de questões relacionadas
ontologicamente à linguagem gestual. Portanto, procurará abrigar questões
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principalmente da representação do movimento e consequentemente da relação
entre tempo e espaço.
Movimento do Quadro: Deslocamento espacial semelhante com o
proposto pela câmera de cinema. A ideia de que a imagem é uma janela que
delimita um ponto de vista, e que seu movimento sugere a noção de que ela
acompanha o deslocamento do personagem no espaço. Como se o quadro (janela)
acompanhasse o percurso dessa trajetória.
Figura 2 –
Sugestão de movimento do quadro no livro A Toalha Vermelha. Fonte: VILELA,
Fernando. A toalha vermelha. São Paulo: Brinque-Book, 2007.
Nesse movimento do quadro estarão presentes diferentes questões
analisadas anteriormente. A primeira delas é a ideia de moldura e anulação do
suporte, analisada por Linden. Também estará embutida a noção da presença
(como testemunha da narrativa) e, por conta dela, a de “espetacularização”, ou 106
como “interpretação mimética ou modalidade indicativa” apontada por Nikolajeva.
Pelo caráter fixo do livro impresso, o movimento só pode ser
sugerido/aludido pela sequência de imagens (limitação técnica). Nessa sugestão
outros elementos estarão intimamente ligados e, portanto, são importantes de se
analisar.
Ponto fixo ou Âncora: Como na Física, onde só é possível analisar o
movimento e o deslocamento de determinado objeto segundo uma referência, aqui
essa referência chamamos de âncora ou ponto fixo. O nome dado ao elemento
encontra semelhança com a mímica, pois esta também apresenta um referencial
fixo para se perceber o movimento (deslocamento). Apesar de terem
essencialmente objetivos parecidos, criamos nomes diferentes para as seguintes
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situações:
Como ponto fixo caracterizamos determinado elemento que torna-se
referencial para perceber na sequência de imagem a sugestão de movimento.
Figura 3 –
Exemplo de ponto fixo. A rotatória com a estátua ao centro serve de referência
para sugestão de movimento dos carros e do protagonista. Fonte: MERVEILLE, David. Na garupa
do meu tio. São Paulo: Cosac Naify, 2009. Titulo original: Le Jacquot de Monsieur Hulot.
A Âncora também dá a ideia de referencial para a continuidade narrativa,
mas, diferentemente do ponto fixo, pode apresentar alterações ao longo do passar
das páginas – alteração no próprio elemento, ou mudança de elemento. É claro
que pela proximidade desses dois elementos e pela sutileza em sua diferenciação,
pode haver sobreposições em alguns casos.
107
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Figura 4 –
Exemplo de âncora encontrado na sequência de imagens no fundo do mar. Da
primeira imagem no alto a esquerda, até a terceira imagem permanence a imagem da jangada
como referência de profundidade e deslocamento. Em seguida a figura da baleia assume a
característica de âncora e por fim o barco. Fonte: VILELA, Fernando. A toalha vermelha. São
Paulo: Brinque-Book, 2007.
Figura 5 –
O pequeno barco à esquerda da imagem serve de âncora por fazer referência de
deslocamento espaçotemporal da narrativa e que permite o reconhecimento do personagem.
Fonte: CÁRCAMO, Gonzalo. Gelo nos trópicos. São Paulo: Companhia das Letrinhas, 2011.
Ambos estão também associados à ideia de repetição, pois justamente lidam
com sua recorrente apresentação na sequência de imagens. A alusão de
movimento é feita pela sequência de imagem, ele é percebido pelo encontro de
uma referência (elemento repetido) à imagem anterior. A elipse suprimiu a
representação direta do movimento que fica aqui apenas como índice.
Quadro fixo: Este é um caso característico que utiliza o próprio quadro
(formato da página dupla) como ponto fixo. Assim, funcionando de maneira
semelhante ao palco italiano clássico no teatro, que tem o espaço físico fixo e
determinado, onde os atores entram e saem da cena2 – caixa preta. Portanto, a
2
Apesar de algumas produções cenográficas possibilitarem a simulação de pontos de
vistas diferentes em cada cena, o mais comum é termos um ponto de vista fixo.
108
perspectiva do quadro permanece fixa enquanto os personagens se deslocam por
esse espaço.
Figura 6 –
Exemplo de quadro fixo, em que o enquadramento da cena se mantém apesar
do movimento dos personagens. Percebe-se o movimento pelas relações distintas do personagem
com o quadro. Fonte: MELLO, Roger. A flor do lado de lá. Rio de Janeiro: Salamandra, 1991.
História em Quadrinhos: Também percebemos uma sugestão de
movimento pela sequência de imagens delimitadas por molduras internas ao
quadro. Assim como fizemos referência a características comuns no Cinema e no
Teatro, aqui percebemos uma semelhança com a linguagem das histórias em
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quadrinhos – conjunto de pequenos quadros com imagens sequênciais. Este é um
caso em que procura-se pontuar um determinado movimento, dentro da cena geral
que está sendo mostrada pelo quadro da página inteira. Aqui, como em diversas
outras categorias, teremos a noção de condensação bastante presente. A ideia de
condensação, proposta por Freud e observada pelos diversos autores, está
vinculada à noção de duplo sentido, da economia que amplia as potencialidades
interpretativas. E nesse caso, um recurso que isola e condensa um movimento que
o autor julga merecer destaque.
Figura 7 –
Quadro geral dividido em diferentes cenas. Exemplo de sugestão do movimento
pela sequência de pequenos quadros menores dentro da página. Fonte: DOUZOU, Oliver.
Esquimó. São Paulo: Hedra, 2007.
Plano e Contra Plano: A noção de plano e contra plano no cinema,
segundo Arlindo Machado (1997), origina-se da sugestão de representar a
perseguição. E de maneira geral as possibilidades encontradas na edição e
montagem da narrativa no cinema proporcionaram o desenvolvimento de diversos
109
outros recursos cinematográficos que serão utilizados largamente em outras
linguagens e suportes – como é o caso dos livros de imagem. Nessa situação
percebe-se tanto a ideia de perseguição quanto, de maneira geral, o deslocamento
dos personagens pelo espaço.
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Figura 8 –
Exemplo de plano e contraplano para sugerir deslocamento do personagem –
referência à perseguição no cinema. Fonte: VINCENT, Gabrielle. A pequena marionete. São Paulo:
Ed. 34, 2007.
Descontinuidade temporal: Este ponto apresenta a ideia, também comum
no cinema, de um deslocamento para um momento específico no tempo – noção
conhecida como analepse. Como bem nos pontuou Linden (2011), não é um
recurso frequentemente encontrado, e diferentemente da Narrativa Cíclica, esse
recurso não necessariamente aponta para a noção de um movimento contínuo –
cíclico ou de repetição –, mas apenas um reorganizar dos fatos que não obedece a
uma linearidade.
Figura 9 –
A carta escrita pelo personagem principal no início da narrativa é reapresentada
ao final, em um momento anterior à primeira cena, num exemplo de deslocamento temporal –
analepse ou flashback. Fonte: MCPHAIL, David. Não!. São Paulo: Farol Literário, 2011. Título
original: No!.
110
Gestual: Talvez o elemento que faça mais referência à técnica da mímica,
pois propõe na representação do gesto, da posição corporal, a sugestão de
movimento. Neste caso, cabe relembrar os estudos de Lecoq (2010) para o
desenho do movimento corporal, e as linhas de ação que orientam a posição do
corpo na preparação, antecipação ou execução do movimento. Essas linhas de
ação foram estudadas também nos desenhos animados, por exemplo, como
reforço à representação do movimento. Em ambos os casos é presente a sugestão
do movimento pela representação de uma posição não natural do corpo – que
implicaria um esforço enorme ou uma impossibilidade de sustentação. Como no
exemplo colocado anteriormente, da ilusão proposta pelo mímico Marcel Marceau
de estar apoiado em algum objeto. Essa ilusão é feita por um posicionamento do
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corpo que naturalmente só poderia ser sustentado quando apoiado.
Figura 10 –
Exemplo de posições corporais que sugerem desequilíbrio e, consequentemente,
o movimento, pela impossibilidade de sustentação do corpo nessa posição. Fonte: MORAES,
Odilon. O presente. São Paulo: Cosac Naify, 2010.
Figura 11 –
O corpo do personagem à esquerda da cena inclina-se em direção ao objetivo
(alcançar a fruta) assim como a inclinação do personagem segurando a fruta, que sugere um
movimento de fuga. Ambos são exemplos de linhas de ação no corpo. Fonte: CÁRCAMO,
Gonzalo. Gelo nos trópicos. São Paulo: Companhia das Letrinhas, 2011.
111
Linhas de leitura: As linhas às quais nos referimos no ponto acima, além
de se aplicarem ao movimento específico do personagem na ação, também estão
associadas à composição geral do quadro. Esse ponto foi abordado com bastante
profundidade e exemplos por Rui de Oliveira (2008). As linhas proporcionam um
caminho de leitura no qual pode estar presente não só a noção de movimento –
inclusive reforçando a linha de ação do corpo do personagem –, mas também a
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ideia de sequência, de continuidade.
Figura 12 –
Linha construída pela composição, para reforçar a trajetória do movimento na
ação. Fonte: MELLO, Roger. A flor do lado de lá. Rio de Janeiro: Salamandra, 1991
Distorção da forma: A distorção da forma tem relação direta com as duas
categorias anteriores. No cinema de animação essa distorção é amplamente
utilizada e conhecida como sendo um dos princípios da animação tradicional para
reforço da representação de movimento: Squash and Stretch. Esse recurso é
utilizado tanto na gestualidade do personagem como reforçado pela linha de ação.
A esse recurso poderíamos também recuperar a ideia de exagero corporal próprio
do personagem Palhaço, para gerar o riso. Tanto no que diz respeito a exageros
corporais, na sua construção física e psicológica, como exagero dos movimentos
apontados por Freud, no gasto exagerado de energia para executar determinada
ação.
112
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Figura 13 –
Distorção do corpo do personagem, representando a queda e sugerindo, assim,
movimento. Fonte: BLAKE, Quentin. Clown. EUA: Henry Holt and Company, 1998.
Representação pela parte: Também de maneira similar às categorias
anteriores, temos a Representação pela parte, que sugere o movimento por uma
representação como índice3. Nesse caso poderíamos visualizar alguns exemplos:
um elemento que por não ser apresentado de maneira integral sugere uma
movimentação – a omissão de determinada parte é consequência de um
movimento específico. Ou a posição de uma parte desse elemento só seria
possível através do movimento, também como consequência dele. E novamente
podemos recorrer às ideias de Freud com relação a economia e condensação.
Mostrar somente uma parte do personagem para aludir movimento nos permite ler
essa relação como condensação – economia de energia.
3
Fazendo referência à semiótica e os modos de representação – símbolo, ícone e índice.
113
Figura 14 –
Pedaço do pé do personagem principal. Exemplo de representação pela parte
que sugere a saída do personagem pela direita da cena, numa espécie de coxia do teatro. Fonte:
GEDOVIUS, Juan. Trucas. México: FCE, 1997.
Figura 15 –
Posição do cabelo do personagem, cuja inclinação sugere a movimentação da
esquerda para a direita da cena como exemplo de distorção (categoria anterior), e o fogo, que
sugere a presença ainda do dragão (apresentado na página anterior). Fonte: GEDOVIUS, Juan.
Trucas. México: FCE, 1997.
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Representação Corporal da trajetória: Recurso bastante utilizado na
mímica, propõe reproduzir no corpo a trajetória de determinado movimento. A
ideia, portanto, é de espelhar o movimento de um elemento em outro – numa
espécie de ressonância visual – com intuito de reforçar sua representação. Um
bom exemplo desse tipo de representação é com a movimentação de uma plateia
que assiste a um jogo de tênis. O movimento do corpo, e principalmente da
cabeça, sugerem o movimento da bola.
Figura 16 –
Personagem segue a fruta acompanhando a direção do movimento da mesma,
sugerindo com a cabeça e o corpo a trajetória que ela faria. Fonte: CÁRCAMO, Gonzalo. Gelo nos
trópicos. São Paulo: Companhia das Letrinhas, 2011.
114
Repetição do elemento: A repetição neste caso, diferentemente da ideia de
narrativa cíclica, é a de reproduzir na mesma cena o elemento (personagem por
exemplo) em diferentes posições, que no conjunto sugerem a noção de movimento
ou o deslocamento temporal x espacial. Essa categoria difere também da História
em Quadrinhos porque não apresenta o recurso dos pequenos quadros que isolam
a sequência de movimento. Neste caso, a sequência é apresentada sem nenhum
tipo de delimitação formal. Essa categoria foi abordada por Linden de forma
esclarecedora. Essa situação, como a autora aborda, trata-se de uma espécie de
convenção simbólica comum nos livros ilustrados. E convenções simbólicas
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também serão encontradas nas duas últimas categorias.
Figura 17 –
A repetição do personagem em diferentes posições sugere diferentes momentos
de sua movimentação no espaço. Fonte: KING, Stephen Michael. Folha. trad. Gilda de Aquino.
São Paulo: Brinque-Book, 2008.
Códigos gráficos: O que chamamos de códigos gráficos são referências
específicas a elementos visuais abstratos, que por convenção representam
determinado tipo de movimento ou ação. É o caso, por exemplo, de linhas que
demarcam a trajetória ou reforçam o movimento, borrões e “nuvens de fumaça” que sugerem a poeira levantada pelo movimento etc. Aqui podemos trazer uma
das categorias apresentadas por Nikolajeva & Scott que trata a respeito da
interpretação simbólica, transferida, não mimética.
115
Figura 18 –
Uso de linhas que representam a trajetória do movimento do personagem, como
exemplo de códigos gráficos. Fonte: Idem.
Narrativa Cíclica: Incluímos aqui os casos em que foi observada a ideia de
repetição da narrativa, ou ideia de um ciclo de tempo contínuo. Classificamos
como cíclico ou repetição quando percebemos dentro da narrativa dois trechos
bem semelhantes no que diz respeito ao conteúdo da história narrada. O que
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alarga a sensação de tempo da narrativa ou reforça determinada ação.
Figura 19 –
Cena repetida dentro do livro Um dia, um pássaro…, como exemplo de narrativa
cíclica. Fonte: JUNQUEIRA, Sonia & ABU, Angelo. Um dia, um pássaro… São Paulo: Peirópolis,
2009.
Um caso específico é o retorno do conflito principal da narrativa ao final da
história, o que possibilita a sensação de ciclo completo da narrativa. Ou, quando
apresenta o mesmo conflito, mas com características diferentes da primeira
narrativa, traz a ideia de continuidade.
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116
Figura 20 –
A cena em que a semente cai na cabeça do personagem principal é repetida ao
final da narrativa, mas dessa vez na cabeça do personagem coadjuvante, sugerindo uma
continuidade da narrativa. Fonte: KING, Stephen Michael. Folha. trad. Gilda de Aquino. São Paulo:
Brinque-Book, 2008.
Figura 21 –
Outro exemplo de narrativa cíclica. O livro vermelho é perdido e reencontrado
repetidamente, por diferentes personagens, sugerindo continuidade. Fonte: LEHMAN, Barbara.
Red book. EUA: Houghton Mifflin Company, 2004.
117
Casos extremos que ilustram bem esse último ponto são quando o final da
história coincide exatamente com o momento inicial do livro (mesma imagem).
Neste caso, podem percebe-se a ideia de um tempo que se repete: analepse
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(flashback) – deslocamento temporal.
Figura 22 –
Caso exemplar em que a primeira cena da narrativa, no livro Cena de rua, é
exatamente a mesma cena do final do livro. LAGO, Angela. Cena de rua. Belo Horizonte: RHJ,
1994.
Nessa categoria podemos ver emergir a noção de repetição, colocada tanto
por Freud e Bérgson quando analisam o riso, como por Coelho ao enxergar as
diferentes questões que envolvem a noção de repetição na sociedade,
principalmente na cultura. Reencontraremos a noção de repetição também em
Linden e Nikolajeva & Scott, apesar de abordarem a questão da repetição na
análise da relação texto e imagem nos livros ilustrados. De todo modo, veremos
que tanto nos livros de imagem como nos livros ilustrados a repetição está
bastante presente.
Onomatopeias: Essa categoria foi propositalmente deixada para o
encerramento deste grupo, pois inclui elementos textuais e, portanto, estariam fora
do recorte estabelecido por esse trabalho. Porém, optou-se por fazer também uma
abordagem sobre essa categoria porque as onomatopeias aqui foram consideradas
como códigos visuais abstratos – sem vínculo com nenhum significado específico
que não a reprodução sonora. E apesar de serem códigos da linguagem textual não
trazem consigo significados denotativos – somente reforçam determinados
movimentos, pelo som que representam. Apesar de essa questão ter sido analisada
118
por Linden (2011), aqui pontua-se o uso da onomatopeia como recurso para
representação do movimento ou deslocamento espaço x tempo.
Figura 23 –
Onomatopeias que sugerem o barulho feito pela manipulação da tesoura
cortando os cabelos do personagem. Fonte: Idem.
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4.2
Sugestão de abstração conceitual
Nesse conjunto analisaremos a ausência da representação que na cultura
caberia ontologicamente à linguagem verbal. Assim, encontraremos as questões
voltadas à abstração conceitual que inclui também a atmosfera e o estado de
consciência.
Isolamento de elemento narrativo: Nessa categoria reúnem-se as situações
em que o isolamento de certo elemento gráfico proporciona uma espécie de foco
em determinada ação ou situação, bem como o foco em algum conceito abstrato
relativo ao personagem – emocional/psicológico. Aqui perceberemos questões
discutidas anteriormente no que diz respeito à espetacularização – pela
proximidade com o cinema e o teatro e seus recursos, bem como a ideia geral de
omissão e redução –, pela ausência de determinada parte do todo da cena.
Esse isolamento pode se caracterizar pela ausência do cenário transmitindo
a ideia de foco. Recorte de determinada ação ou situação à qual o autor julgou
merecer destaque. Encontraremos similaridade novamente no teatro com a ribalta,
ou foco de luz que destaca certo elemento ou momento da cena. Também teremos
recursos de câmera e de iluminação no cinema que traz semelhante destaque.
119
Figura 24 –
Exemplo de ausência de representação do cenário sugerindo o isolamento e a
solidão da personagem. Fonte: LEE, Suzy. Espelho. São Paulo: Cosac Naify, 2009 Titulo Original:
Mirror
Outro tipo de isolamento é o inverso do citado acima, onde a ausência é do
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personagem e o foco está na ambientação e no clima dado à cena. Em muitos
casos encontra-se esse recurso na introdução à narrativa.
Figura 25 –
Exemplo de não representação de personagens, dando foco ao cenário, para
representar uma atmosfera de frieza e isolamento. Fonte: LEHMAN, Barbara. Red book. EUA:
Houghton Mifflin Company, 2004.
Alteração gráfica: Essa categoria diz respeito a uma situação bastante
recorrente nos livros analisados. É comum perceber uma mudança de técnica, ou
mudanças na paleta de cor, da iluminação, do estilo e diversas outras alterações de
ordem gráfica, que proporcionam um estranhamento visual em um determinado
trecho da narrativa. Esse estranhamento tem objetivos, em sua maioria, de
procurar transmitir questões conceituais ou abstratas: sugestões de mudança de
clima
ou
atmosfera
diferente
na
cena;
representação
do
estado
120
psicológico/emocional da personagem, ou alteração no seu estado de consciência
– perspectiva onírica, delírios, fantasias etc.
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Figura 26 –
Exemplo de alteração da técnica e das cores, pelo autor, para sugerir o momento
de transformação da realidade em fantasia. Fonte: CRUZ, Nelson. Leonardo. São Paulo: Scipione,
2006.
Figura 27 –
Alteração gráfica para reforçar a sugestão da emoção do personagem – tristeza
em tons de cinza e alegria colorida. Fonte: MELLO, Roger. A flor do lado de lá. Rio de Janeiro:
Salamandra, 1991.
Figura 28 –
Recursos gráficos de alteração da paleta de cor como exemplo para representar
o sonho do personagem. Fonte: KING, Stephen Michael. Folha. trad. Gilda de Aquino. São Paulo:
Brinque-Book, 2008.
Gestual: Já vimos anteriormente a possibilidade de transmitir sugestão de
movimento pelo gestual. Além disso, veremos nessa categoria a possibilidade de
também sugerir conceitos abstratos. Essa sugestão pode ser feita de diferentes
maneiras, dentre elas: sequência de imagens – construção visual da emoção da
personagem de maneira gradual e sequencial; linguagem corporal – expressões
corporais pontuais que sugerem determinada emoção. Sobre isso Lecoq, quando
aprofunda o estudo dos quadros mímicos, pontua a tentativa de representar
121
estados emocionais do personagem. (Lecoq, 2010 p. 160) E mais ao final do livro
traz alguns desenhos que buscam representar graficamente esses estados
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emocionais/psicológicos no corpo.
Figura 29 –
Desenhos de Jacques Lecoq representando o estado emocional e psicológico
dos personagens pela linguagem gestual (linha de ação). Fonte: LECOQ, JACQUES. O Corpo
Poético: Uma pedagogia da criação teatral. Tradução: Marcelo Gomes. São Paulo: Editora SENAC
São Paulo: Edições SESC SP, 2010. Título Original: Le corps poétique: un enseignement de la
création théatrale.
122
Figura 30 –
No exemplo podemos ver as manifestações de apreensão e decepção que
acumulam-se sugerindo o resultado do jogo e posteriormente o estado emocional do personagem
pela sequência de imagens que representa gestos diferentes. Fonte: MORAES, Odilon. O
presente. São Paulo: Cosac Naify, 2010.
Figura 31 –
Representação do estado emocional dos personagens pela linguagem gestual.
Fonte: DOUZOU, Oliver. Esquimó. São Paulo: Hedra, 2007.
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Reforço por semelhança: A maneira como representa os aspectos
psicológicos e emocionais do personagem na categoria anterior (através da
sequência de imagens e da linguagem corporal) podem ser reforçados na
semelhança formal (normalmente com a linha de ação do personagem) de outro
elemento igualmente importante na narrativa. Numa espécie de paralelismo,
proporcionado pela repetição ou similaridade da forma geral dos dois elementos.
Assim novamente podemos trazer aqui a questão da repetição, principalmente
quando colocada por Coelho (2000) na ideia de ressonância e por fim de reforço à
ação.
Figura 32 –
Semelhança entre gestualidade do personagem e a forma geral da planta
reforçando a representação de alteração do humor. Fonte: KING, Stephen Michael. Folha. trad.
Gilda de Aquino. São Paulo: Brinque-Book, 2008.
123
Convenções gráficas: Assim como os códigos gráficos no grupo anterior
demonstravam o movimento por convenção, essa categoria busca apontar para a
utilização de convenções gráficas para a representação de questões abstratas
conceituais. Encontraremos dentre os livros analisados elementos como estrelas,
corações, traços, nuvens, raios, que procuram de maneira codificada representar
questões abstratas como: tontura, dor, amor, raiva, felicidade etc. Apesar de
alguns elementos serem próprios da linguagem gestual, são hoje comumente
utilizados pela linguagem gráfica como códigos já estabelecidos e, por isso,
enquadrados nessa categoria, como: aperto de mão, braços cruzados ou
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representação de expressões fisionômicas – como o sorriso na figura anterior.
Figura 33 –
Exemplo de representação de questões emocionais dos personagens por
códigos gráficos convencionais. Fonte: PACHECO, Marcelo. O menino, o jabuti e o menino. São
Paulo: Panda Books, 2008.
Convenções Internas: As convenções gráficas da categoria anterior
supõem um conhecimento prévio ao contato com a narrativa. Essa categoria, no
entanto, aponta para convenções produzidas dentro da própria narrativa. Isso
significa que em alguns casos determinadas imagens na narrativa são construídas
e posteriormente utilizadas como códigos no desenvolvimento da própria
narrativa. O que dá a entender que fora da narrativa tais códigos não teriam
necessariamente o mesmo significado. E por isso, optou-se por chamar
convenções internas. A essa convenções estão ligadas as ideias de Barthes – no
sentido de absorção dos códigos pela linguagem e também seu fator de repetição.
Repetição que traz em si o reconhecimento e, portanto, a possibilidade do
funcionamento do código. E somado a ele podemos pontuar tanto Burnier
(improvisação codificada), Freud (repetição) e Bérgson (vício), que apontam para
a repetição como codificação que proporciona o riso. Bem como Coelho pelo
prazer cultural do reconhecimento na repetição.
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124
Figura 34 –
Exemplo de referência a um momento da narrativa, pelo uso repetido da
imagem, apresentada anteriormente, dos bonecos no cesto de lixo. Exemplo de convenção interna
da narrativa. Fonte; BLAKE, Quentin. Clown. EUA: Henry Holt and Company, 1998.
Distorção formal: Similar à categoria do conjunto anterior, essa distorção
tem o objetivo de sugerir questões abstratas conceituais pelo estranhamento.
Poderíamos perceber deformações na ordem da proporção – o tamanho de um
personagem apresenta-se de maneira desproporcional em relação aos outros, ou ao
espaço: como possibilidade de sugestão de força, liderança, imposição e ameaça
(grande), ou no contrário (menor) medo, vergonha, por exemplo. Na ordem da
forma – sugestão de estados psicológicos emocionais pela deformação física:
deformação da expressão facial, deformações corporais, inclusive mesclando as
características físicas originais da personagem com aspectos monstruosos,
animalescos, grotescos. E metafórica – representação total do personagem por um
objeto,
animal
ou
outro
elemento
que
sugira
que
a
condição
emocional/psicológica do personagem seja parecida com as características do
elemento metafórico escolhido para sua representação. A essas deformações
podemos relembrar os aspectos grotescos analisados por Bakhtin (1993), que
estão intimamente ligados ao personagem palhaço. Bem como a ideia de alusão e
125
duplo sentido colocadas por Freud (2006), além, é claro, das múltiplas leituras
pontuadas pelos diversos autores voltados à Literatura Ilustrada. E por fim, à
noção de espetacularização e ao modo de interpretação não mimética, simbólica e
transferida, apresentada por Nikolajeva & Scott (2011).
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Figura 35 –
Distorção formal da personagem para sugerir seu estado emocional. Fonte:
LAGO, Angela. Cena de rua. Belo Horizonte: RHJ, 1994.
Figura 36 –
Fonte: Idem.
Representação de personagens como animais, para sugerir estado emocional.
4.3
Ausência na Imagem
Neste último grupo, analisaremos a ausência de elementos próprios à
linguagem visual. Curiosamente encontraremos também a ausência nos aspectos
físicos e de representação espacial – neste trabalho entendidos como próprios à
linguagem visual. Alguns deles já pontuamos anteriormente, mas com objetivos
de suprir a falta de alguma das outras duas linguagens apontadas. Nesse caso
específico temos a ausência da linguagem visual sem, contudo, uma relação direta
126
com representação de movimento ou questões abstratas. E é por conta dessa
singularidade que emergiu a organização desse grupo.
Ausência pelo ponto de vista: Entende-se que nessa categoria alguns
elementos da narrativa ficam fora do quadro. Essa omissão é entendida como um
recorte da realidade – onde nem toda a cena é mostrada, apenas uma parte que
interessa à narrativa (por opção ou limitação do quadro), revelada em momento
oportuno ou gradualmente. Aqui estão pontuadas questões como omissão e
condensação, bem como acabamento e complementaridade. Quando se trata do
recorte pela opção do autor, está embutida nessa questão a noção de onisciência
do narrador. E nessa omissão e revelação a noção de expectativa e surpresa
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colocadas por Bérgson.
Figura 37 –
Dois exemplos na mesma obra de ausência pelo ponto de vista. No primeiro
exemplo, o que aparentemente parecia ser uma pedra, na mudança de perspectiva revelou-se
uma baleia. Em seguida, o deslocamento do ponto de vista do quadro revelou diversas flores
próximas ao personagem sem que ele desse conta do fato. Fonte: MELLO, Roger. A flor do lado
de lá. Rio de Janeiro: Salamandra, 1991.
Omissão por recursos do suporte: Esse tipo de omissão/revelação pode ser
proporcionado por recursos do suporte livro, que permitem esconder/mostrar
determinados elementos – dobras, pop-ups, facas, entre outros.
127
Figura 38 –
Dobra na página que esconde/revela determinado espaço dentro da narrativa.
Fonte: MERVEILLE, David. Na garupa do meu tio. São Paulo: Cosac Naify, 2009. Titulo original: Le
Jacquot de Monsieur Hulot.
Tanto a Omissão por recursos do suporte como a Ausência pelo ponto de
vista podem proporcionar surpresa – na revelação de algum elemento ou
personagem que estava presente mas não era mostrado pelo quadro, ou na
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reelaboração da significação da cena pela revelação da parte omitida.
Figura 39 –
Neste exemplo o livro é apresentado com imagens compostas pela sobreposição
de duas outras imagens. A obra é acompanhada por um acetado com tarjas, que ao colocá-lo
sobre a imagem, permite a visualização das imagens separadamente, possibilitando assim seu
reconhecimento. Fonte: FOLL, Dobroslav. Assim ou Assado?. São Paulo: Cosac Naify, 2011.
Título Original: Co se cemu podobá?.
Ausência total ou parcial da imagem: A ausência total de elementos na
página podem sugerir pausa, interrupções ou silêncio. A ausência total ou parcial
(como o exemplo da retirada total do cenário) pode proporcionar a ideia de
metalinguagem, por representar a materialidade do suporte (papel) em sua
condição original – lacuna original.
128
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Figura 40 –
Ausência total do cenário (brancura e rasgo do papel) como proposta de
metalinguagem. Fonte: MARCEAU, Marcel & GOLDSTONE, Bruce. Bip in Book. EUA: Stewart,
Tabori & Chang, 2001.
Figura 41 –
Representações de partes amassadas e queimadas da página, reforçando a
ausência que remete à materialidade do suporte (papel). Fonte: GEDOVIUS, Juan. Trucas.
México: FCE, 1997.
Em alguns casos foi importante pontuar a mesma categoria em mais de um
grupo, por proporcionar questões específicas relativas àquele conjunto. O que isso
demonstra é que um elemento ou recurso específico pode apontar para objetivos
diferentes. Pode propor noções e ideias de diversas ordens. Assim, podemos então
afirmar que essa organização não exclui a possibilidade de sobreposições entre as
categorias analisadas, nem muito menos a conjunção de diferentes categorias no
mesmo elemento. O que implica dizer que essa organização deu-se em função de
uma proposta de análise que leva em consideração uma delimitação imprecisa das
categorias e a possibilidade de outros olhares e outras categorias possíveis.
O que se espera, portanto, com esses três conjuntos é abarcar uma
quantidade de categorias que permitam analisar os livros de imagem no seu
desafio original de narrar uma história sem o texto escrito. Procurando através da
129
perspectiva da ausência, buscar representar somente na linguagem visual questões
que estariam ligadas ontologicamente às outras duas linguagens – verbal ou
gestual. E ainda, para finalizar, buscar, na perspectiva da ausência, analisar a
omissão da própria linguagem visual no objeto cuja proposta é narrar somente por
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imagens.
130
5.
Considerações finais
O desafio maior deste trabalho foi procurar estudar e analisar a narrativa em
um suporte onde a linguagem textual não estivesse presente. Encaramos o desafio
por acreditar que a linguagem visual pode dar conta de proporcionar uma
experiência narrativa e que esta experiência pode trazer contribuições,
evidenciando como foco diferenciado um olhar não para o texto escrito ou falado
– como tradicionalmente se fez ao longo dos diversos estudos nessa área –, mas
um olhar justamente sobre a ausência da linguagem textual na narrativa.
Admitimos que mesmo na ausência do texto escrito as imagens conduzem a
uma experiência que acaba por resultar muitas vezes em uma produção verbal. E
que assim, mesmo procurando trabalhar sob a ótica da ausência da linguagem
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gestual, ela tornava a se manifestar. Por outro lado, pode-se também perceber que
essa questão não se restringe apenas à Literatura Ilustrada, nem ao Livro de
Imagem. Quando nos deparamos com livros que narram unicamente pelo texto,
também encontramos exemplos de produção imagética (imaginação) de
ambientes, personagens, cenários etc. Assim, portanto, ao olhar para os objetos
que nos propusemos a analisar, encontramos na narrativa imagética do Livro de
Imagem e no contraponto com a narrativa gestual, corporal, do Palhaço Mímico
uma espécie de carência. Uma lacuna deixada pela linguagem textual, que, porém,
não impossibilitava a narrativa.
Desdobrando esse cenário, pudemos também perceber que na linguagem
textual, portanto, igualmente encontraríamos a carência deixada pela linguagem
visual. E que ambas ficavam esvaziadas de movimento – característica mais
comumente encontrada na linguagem gestual. Assim, no cruzamento entre as
linguagens gestual, textual e visual, pudemos pontuar questões próprias
ontologicamente a cada uma dessas linguagens, e que em sua ausência, era preciso
recorrer a recursos que sugerissem ou aludissem, maneiras de preencher essa
lacuna.
Com isso, pudemos olhar para o Livro de Imagem como objeto de análise e
verificar nas construções narrativas propostas em cada um deles que recursos
eram identificados como recorrentes, para então categorizá-los. Apesar do fato
deste trabalho focar o Livro de Imagem como objeto de estudo, e as análises
131
estarem voltadas para esse tipo de livro, acredito que as reflexões, as questões
levantadas e as categorias possam contribuir não só para o Livro de Imagem mas
para os Livros Ilustrados de maneira geral, bem como para o Palhaço Mímico e às
Artes Cênicas. E acredita-se, como possível desdobramento deste estudo, que uma
análise sobre as construções narrativas no Palhaço Mímico, assim como feita no
Livro de Imagem, pode também trazer novas contribuições para estudo da
Narrativa, da Literatura Ilustrada e, por fim, à Comunicação Visual e ao Design.
Pelas três linguagens citadas fazerem parte da minha trajetória e prática
profissional – como ator, palhaço, ilustrador, autor, designer –, e pela interação
possível entre elas, vista neste trabalho, bem como o melhor entendimento sobre a
narrativa, este estudo também contribuiu e contribuirá pessoalmente para minha
formação e para um aprimoramento do meu fazer artístico.
Cabe repetirmos que a perspectiva da ausência não se constitui como
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exclusiva possibilidade de visão sobre a narrativa visual. Outras formas de ver o
Livro de Imagem serão igualmente ou mais importantes para a compreensão
maior do universo da narrativa. Aproveitamos para pontuar que a perspectiva da
ausência também pode ter seu desdobramento em estudos voltados para outras
áreas, objetos e linguagens. Assim, espera-se que cada vez mais tenhamos
trabalhos voltados à narrativa e principalmente à imagem.
Cabe pontuarmos e agradecermos a colaboração dos autores citados neste
trabalho. Principalmente aqueles que voltaram seu olhar para a imagem narrativa,
a ilustração e o palhaço, pela carência de publicações nessas áreas. E também
registrar a surpresa primorosa provocada pelos lançamentos de livros teóricos no
Brasil nos últimos anos e principalmente durante o desenvolvimento deste
trabalho. Obras fundamentais para esta pesquisa e para a redução do descompasso
apontado no início deste trabalho entre os estudos da linguagem visual e textual
voltados à narrativa.
Espera-se, ao final, que este trabalho tenha realmente contribuído para todas
as questões a que se propôs no início do seu desenvolvimento, como contribuiu
para o meu aprendizado e aprimoramento profissional durante a sua realização.
132
6.
Referencias bibliográficas
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A Cultura Popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de
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Aula. Editora Cultrix, São Paulo: 1988
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Ivone Castilho Benedetti São Paulo: Martins Fontes, 2007. Título original: Le
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Baldovino e Carlos David Szlak. – São Paulo: Editora Senac São Paulo, 2004.
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136
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