Sylvio do Amaral Rocha Filho Previsibilidade Decisória

Transcrição

Sylvio do Amaral Rocha Filho Previsibilidade Decisória
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC-SP
Sylvio do Amaral Rocha Filho
Previsibilidade Decisória
A Busca de Sentença que satisfaça os Atores do Direito
MESTRADO EM DIREITO
São Paulo
2002
Lembrando Eça
e sorrindo de sua ironia,
bom brasileiro,
prefiro ser um agricultor bem resolvido
a ser um doutor mal traduzido do francês...
Previsibilidade Decisória
A Busca de Sentença que satisfaça os Atores do Direito
Dedicatória:
À Cristina que sempre cola meus pedaços e que é minha eterna revisora. À
Izabel, ao Sylvio, ao Marcos e ao Paulo pelo tanto que me ensinam. A
todos pela paciência que me devotam. A eles meu grande amor.
À Lucia Leomil, minha avó, minha grande lembrança.
Aos meus Pais pela sua busca incansável e imparcial de Justiça.
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Agradecimento:
Ao Professor Doutor Tércio Sampaio Ferraz Jr., meu orientador.
Este trabalho ampliou-se graças à cultura, à visão, ao domínio e à firmeza
do Mestre que, ao mesmo tempo, permitia ao Mestrando imensa liberdade
de ação e responsabilidade naquilo que fazia. Há que se procurar pessoa de
igual rapidez de raciocínio, mas não se encontrará quem tenha tanta
simpatia, generosidade e bondade de coração ao orientar um Mestrando na
feitura de sua Dissertação de Mestrado.
A ele meus sinceros agradecimentos.
Agradecimentos:
Pelo interesse, pela paciência, pelo apoio e pelas sugestões:
Carlos Eduardo Stuart
Gilda Castanho Franco Montoro
Ilana Casoy
Rudá K. Andrade
Sergio Domingos Pitelli
Sylvia Maria Caiuby Novaes
Pelo interesse, pelo apoio, pelas sugestões e pelas pesquisas:
Konstantin Gerber
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Agradecimentos:
Ao Grupo Graúna – GG – extraordinário grupo de estudos do qual
participei de janeiro de 1997 a março de 2001 e que se reunia todas as
quartas feiras à noite para um sarau filosófico, um simpósio mesmo, fértil
época de espanto e de investigação (e de enogastronomia), período alegre,
pleno de harmonia, breve infelizmente, em que mais me senti perto da
liberdade de espírito, se é que isto existe, ambiente causado pelo respeito,
pela civilização, pelo entendimento, pelos propósitos comuns, pela afeição
dos integrantes, pelas conexões criadas pelo self. Foi com eles que tudo
começou. A eles, meu amor.
Raquel Gazolla, a Mestra
E o grupo
Hugo Ribeiro de Almeida
Luciano Bossi
Maria Cristina Muanis do Amaral Rocha
Motaury Moreira Porto
Renato Tebaldi
Silvia Cury
Vânia Ribeiro Hermeto
Vitória Maria Mendonça de Barros
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I.)
Prefácio
“Previsibilidade Decisória - A Busca de Sentença que satisfaça os
Atores do Direito”, foi um tema que surgiu sem compromisso em nossa
mente depois que, durante a nossa graduação, observamos o Direito ser
sempre explicado pelo seu lado racional e nunca pelo seu lado irracional.
O que seria este irracional no Direito? Seria mesmo irracional? E o lado
racional em que consistiria?
Esse assim chamado lado irracional era desconsiderado, até desprezado, e
sobre ele pouco se falava, ou, como às vezes percebíamos, era tabu.
Faltava-nos à época, e durante muito tempo, vontade para abordar o tema e
rigor classificatório para estudar o assunto.
Passados muitos anos, surgiu um fenômeno no Brasil: vários Juízes do
Trabalho, no fim da década de 80 no século passado, começaram a
sentenciar com base em suas próprias convicções políticas e sociais e não
mais de acordo com a lei, a jurisprudência em voga, e, daí, o tema voltou,
vivo, a nos preocupar.
Este o fenômeno que nos interessou. Esta a nossa motivação.
Esses senhores passaram a ignorar o Código de Processo Civil e a
Constituição sem nenhuma oposição e suas sentenças foram se tornando
cada vez mais ousadas e criativas. Jogavam a força do Poder Judiciário na
solução de problemas não jurídicos. Por sentença visavam consertar o
mundo transformando-o no que eles achavam que o mundo deveria ser.
Estavam decretando – racional ou irracionalmente? - o fim da Dogmática e
inaugurando um positivismo sui generis – o próprio, aquele de cada um.
Estavam dando livre curso aos seus Sentimentos e abandonando a
imparcialidade e a objetividade.
Passaram a sentenciar via seus (re) sentimentos pessoais, convicções e
consciência, mediante preconceitos profundamente enraizados e
determinantes subjetivos de a sentença ser proferida desta maneira.
Não que alguns destes sentimentos não estivessem conforme o desejo de
muita gente. O palco escolhido para este debate ou para a implementação
das soluções é que estava equivocado. Estes juizes esqueceram-se que
atuavam no Judiciário e não no Parlamento ou no Executivo, como
deveriam.
Imaginamos que, muito rapidamente, tais Juízes e seus auxiliares seriam
alvo de reação de pessoas desprotegidas, que, vendo-se vítimas de injustiça
por parte da Justiça, não teriam, de outra forma, o seu desagravo.
Juízes de algumas Varas Cíveis começaram a adotar o novo sistema e
sentenças baseadas na consciência desses juízes e em seus códigos
particulares de justiça passaram, transbordantemente, a jorrar.
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Paralelamente, as leis, várias delas, deixaram de contemplar com justeza os
fatos e, sem que o legislador viesse revê-las, perderam sua plena
abrangência e atualidade, o que possibilitou àqueles juízes mais condição
para inventar Direito.
A máxima “Sentença não se discute, cumpre-se”, já plenamente integrada
ao ideário de pessoas respeitáveis, deixou de contemplar o contexto de que
se originara (é de se notar que temos sérias dúvidas quanto ao sentido
absoluto da máxima) e passou a significar outra coisa.
Coisas estranhas começaram a nos acontecer: perdemos uma ação no Rio
de Janeiro porque a Juíza, na sentença, declarou que não achava ser a lei
8009, que protegia a dignidade de nosso “abastado” cliente, uma boa lei e,
assim, e por isto, ela mantinha a penhora de bens impenhoráveis; o dono de
um carro importado abalroado por trás foi declarado culpado desta colisão
que foi provocada por um motorista que dirigia um carro nacional, antigo e
pobre, porque, dizia, de novo, uma Juíza, não na letra, mas na essência, era
dono de um importado; a mãe de um cliente (este caso definitivamente
ofendeu meu pudor jurídico!) teve seu único imóvel penhorado,
apartamento onde, viúva, residia sozinha, pelo enfático motivo processual
de ser a mãe de um devedor ilíquido; um Ministro do TST nos dizia que
“os prédios na e ao redor da Ipiranga, com os Juízes dentro, deviam ser
dinamitados”; outro do TRT nos dizia saber que “120 Juízes recém
contratados eram formados pela CUT”; Juízes, como prevíramos,
começaram a ser ameaçados, bem como alguns peritos judiciais; de outro
lado, a assessora de um famoso Ministro do Tribunal nos garantia estar
amarga porque era obrigada, pela lei, a fazer muitas injustiças por mês.
Tais fatos – graves – despertaram nossa vontade de pesquisa.
O que se passava? Só neste país isto acontecia?
Sabíamos que se falávamos do Brasil falávamos do mundo.
O fenômeno, na nossa opinião, está além, muito além, da sentença contra
legem (ou mesmo praeter legem).
O Judiciário precisa ser rediscutido e a discussão deve começar no Juiz ou
na Juíza que é aquele ser que, a final, põe término à disputa.
A nossa análise corre longe da apregoada lerdeza da Justiça apesar de ser
esse atualmente o grande e único problema na visão dos doutos, e, portanto,
longe das necessárias medidas processuais e/ou de fluxo de papéis visando
acelerar decisões.
A demora da Justiça em se pronunciar é um enorme problema que pode ser
resolvido por estudos que visem administrativamente facilitar o fluxo dos
papéis com acurada análise de prazos, produção, utilização de súmulas
vinculantes (ou do princípio do stare decisis) e impedimento da
possibilidade de uso de recursos protelatórios e de má fé: são outros
problemas com outras soluções.
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Acelerar decisões não é garantia de que boas decisões serão proferidas.
Acelerar decisões pode significar que más sentenças serão proferidas mais
rapidamente.
O problema que se põe, no nosso entender, está na tomada de decisão e na
presidência da ação e não no processo que visa acelerar industrialmente a
produção de decisões rápidas e limpas.
Tem origem, a nosso ver, na natureza do homem e no que seja realmente
decidir. Tem origem, também, na excessiva singularidade dos juízes e no
ineditismo de algumas posturas que só adquirem hipótese a partir dos
proclamados princípios fundamentais de ‘independência e livre
convencimento’ do corpo judiciário.
E este estado de coisas nos conduz à falta de previsibilidade decisória.
Aí reside, no nosso entender, o cerne do problema com graves
consequências para o mundo jurídico e dos negócios em geral,
principalmente, os internacionais.
Sofre as consequências qualquer nação que tenha juizes que pensem que
suas obras particulares são universais, porque acreditam de maneira
patológica na máxima kantiana que convidava o ser humano a agir como se
de sua ação defluisse uma máxima universal.
E assim caminha o andor. Sentenças inesperadas e desligadas do cenário
jurídico conhecido passam a angustiar atores do direito com visão atrelada
mais aos fundamentos tradicionalmente aceitos que à tomada singular de
posição.
Fatos graves começam a acontecer, todos, porém, em nome de boas
intenções e perpetrados por pessoas que agem de acordo com sua própria
consciência e sentimento de justiça.
Justiça, que por ser apenas uma palavra, designa tantas coisas diferentes
entre si, e que, por isto mesmo, adapta-se sempre à vontade de quem
acredita que ela é assim e não de outro jeito.
Está criada a desordem jurídica e surge a insegurança, mal a ser evitado.
Definitivamente a imprevisibilidade faz-se presente nas decisões.
A máxima “cada cabeça...” está despudoradamente real.
Pessoas que perdem acham-se vítimas de flagrante injustiça; pessoas que
ganham acham que a justiça, finalmente, está feita (ganhadores e
perdedores falando de coisas diferentes, de justiças diferentes).
Não há mais respeito à decisão: juízes criticando advogados, advogados
criticando juízes, associações de classe refutando veementemente algumas
sentenças; ‘coitadinhos hipossuficientes profissionais’, mantendo-se neste
papel, nesta posição, muito esperta, aliás, criando situações para serem
indenizados, criando fatos para, via expropriação da outra parte, terem um
pouco da “parte que lhes cabe neste latifúndio”; alguns Juízes
absolutamente desconectados da realidade, ignorantes dos assuntos
constantes dos autos, sentenciando de acordo com sua visão e não de
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acordo com a realidade dos autos e, o que é pior, da própria vida; outros,
alegando economia processual e excesso de trabalho, tirando o problema da
frente, negam a uma das partes o direito de defesa, e por estes meandros vai
o andor.
A Positivação do Direito está em crise.
Começamos a pensar qual o motivo de estes Juízes procederem desta
maneira (e, o que é grave, sem oposição ostensiva dos outros Juízes mais
conectados com o sistema vigente). Começamos a pensar que a atuação dos
advogados e dos membros do Ministério Público caminha atualmente no
sentido de atrapalhar – e não de ajudar - o processo, o que
compreensivelmente radicaliza mais a posição daqueles Juízes.
Os problemas econômicos e políticos, de enorme relevância e importância,
não podem ser abordados por nós num trabalho que visa, antes de tudo, ser
jurídico (apesar de percebermos, em algumas sentenças, uma imensa,
enorme ignorância de fatos econômicos, fatos políticos, fatos sociais, até
históricos, por parte dos juízes); mas – como fazer? – se o tema sai pela
porta da frente, volta pela dos fundos quando se analisa a função social da
propriedade ou do contrato, por exemplo!
As Escolas de Direito formando tribunos desconectados da realidade global
apontam aos atores os cenários “um ganha-outro perde” e “pode-não pode”,
o que não faz absolutamente parte do mundo concreto, pelo menos dessa
maneira. Esses tribunos, levados ao terror, quando, confrontados com o
mercado, percebem não estarem absolutamente preparados para siquer
entender a linguagem com que se lhes falam os... “outros”.
Tais escolas absolutamente capacitam os seus alunos a trabalhar com o
conceito que ora se discute, o da Súmula Vinculante, fundado no caso a
caso, e que nunca será apreendido por quem se informa através de aulas
expositivas que não preparam o aluno para o caso concreto.
Assim, a Justiça-em-si e seus inúmeros significados, um dos quais é “dar a
cada um o que é seu”, podem ser pensados por nós. Alvo de reflexão pode
ser, também, o Poder Judiciário, ou seu outro nome, a Justiça, o órgão da
Administração que se encarrega de por fim às disputas por intermédio de
uma sentença.
Achamos que – sem nenhuma pretensão, claro, de apresentarmos um
conceito universal, intersubjetivo da justiça-em-si, tarefa impossível a
nosso ver e em que falharam mentes muito muito mais brilhantes que a
nossa – podemos (1) falar sobre Justiça sim e, partindo da primeira análise
(2) podemos apontar criticamente falhas conceituais que desumanizam a
Justiça enquanto órgão que põe termo às disputas e (3) podemos opinar
sobre o distanciamento dos países que, como o Brasil, afastam-se das
regras mundiais de segurança jurídica.
Achamos, também, que tais pensamentos seriam mais proveitosos se
caminhassem pelo viés da “Justiça sempre mais próxima do que ela vier
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valorar” e mais distante do viés da “Justiça como conceito estanque, pétreo,
abstrato e superior, longe do que ela quer valorar”. Ou seja, humanizar,
aproximar, contextualizar, focar a questão, desdivinizar o tema,
considerando imparcialmente as partes envolvidas e sua relação jurídica,
buscando desta relação particular os princípios mais genéricos que possam
ajudar a esclarecer o caso; procurar buscar sempre a via do particular para o
geral e não o contrário. Mostrar que é muito mais fácil desconsiderar a
Justiça no seu sentido único, pétreo, infalível, regente das ações humanas e
trabalhar a partir do sentimento de Justiça que todos temos no nosso íntimo,
buscando aproximar, depois de muita dialética, com a boa fé e a lealdade
que a maioria tem dentro de si, através deste denominador comum, a partir,
portanto deste desejo de Justiça que todos temos, qual a que se aplicaria ao
caso particular em questão. Em outras palavras, observando a Tópica e a
Equidade, customizar a Justiça e torná-la, finalmente, previsível.
Vamos passar nossas idéias pelo “sentimento” (adotando a definição de
Jung e, a seguir, acolhendo integralmente as teses de Damásio) e nada, ou
quase nada, pela “razão”, o que explica melhor os novos eventos e dá mais
veracidade e originalidade ao nosso trabalho.
Esse, no nosso entender, foi o maior desafio: explicar que o Sentimento é
responsável pela decisão humana e que julga valores. O segundo foi
colocar a Razão no seu devido lugar, ou seja, como faculdade humana que
apenas verifica verdade e falsidade, descreve e detalha fatos e não os
valora. O terceiro explicar o homem como animal semiótico.
Adotamos o viés de mostrar as vantagens dos vasos comunicantes que
aproximariam os diversos pensares das diversas instâncias judiciais entre si
e com a sociedade.
E partimos do ponto de vista, finalmente, de mostrar as desvantagens do
pensamento jurídico diverso, improvável, impreciso, inesperado e incerto,
o que torna esse sistema alvo de enorme desconfiança e desdém, dentro do
país, por seus cidadãos e fora, por parte do mundo globalizado.
Enfatizamos que Certeza e Segurança Jurídicas são pilares do Direito na
visão de muitos doutos, mas ressaltamos que, na nossa visão, são quimeras.
Enfatizamos que aqueles conceitos foram basicamente desenvolvidos como
mitos, preenchendo lacuna ideal e romântica que foi despertada no homem
comum do povo.
E salientamos que a não-certeza e a não-segurança são próprias do ser
humano.
Justificamos que Certeza, Segurança e Previsibilidade são necessárias para
o desenvolvimento humano e que, bem por isso, há que se criar um sistema
que circunscreva no limite do possível as atitudes dos juízes de tal forma
que torne as sentenças do Tribunal, Certas, Seguras e Previsíveis, ou seja,
estáveis, até que desestabilizadas, harmonizem-se de novo e assim
permaneçam enquanto não surgirem motivos para a próxima alteração.
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Esta consideração toma relevância numa hora em que a Arbitragem vem
sendo tão discutida como excelente alternativa às injustiças da Justiça.
Foi assim que pensamos fazer uma DISSERTAÇÃO DE MESTRADO,
com o título de
Previsibilidade Decisória
A Busca de Sentença que satisfaça os Atores do Direito
A forma utilizada por nós não é bem a usual.
Não vemos na Filosofia um mero exercício intelectual.
Ela tem, é certo, menos força comunicativa e persuasiva que as Artes;
pensamos, todavia, que a velha senhora indica caminhos e está sempre
conectada com seu tempo, influenciando e sendo, reciprocamente,
influenciada. E que tem, academicamente, estilo próprio de apresentação,
que é caro aos seus cultores, mas que, imparcial, fotográfico e encadeado,
distante, árido e hermético, afasta pessoas comuns, mesmo letradas, que
percebem as coisas desde que venham com uma dose de leveza maior. Às
vezes um trabalho é considerado do ramo apenas por se enquadrar
rigidamente nas leis formais. Às vezes, a falta desta forma acadêmica
desqualifica um trabalho que passa a ser não filosófico apenas pela maneira
de se apresentar.
Arendt, Foucault, Nietzsche, Platão, Alf Ross, para citar uns tantos poucos,
mas brilhantes, geniais autores, lidaram com o problema e dele se
desvencilharam com denodo, criando estilo próprio que, sem perda de
profundidade, os aproximou das pessoas.
Se o objetivo do autor é só a Academia que se valha apenas da linguagem
própria; se, ao revés, pretende além da Academia atingir pessoas não
acostumadas (juízes, promotores, advogados, estudantes...) deve, este autor,
a nosso ver, procurar uma forma de abordagem mais ampla.
Deparamo-nos na feitura deste trabalho com o problema: seguir a forma
acadêmica ou abrandá-la.
O tema escolhido era o grande complicador: além de ser tema novo, sem
grandes referências anteriores, é de difícil apresentação, compreensão e
aceitação. E é polêmico.
Tentamos, assim, mesclar as duas formas com o objetivo de, sem perder de
vista o academicismo, tornar mais palatável o nosso trabalho.
II – Objetivo
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Traçar, pois, um caminho da Ciência à Ética
é a tarefa que se apresenta à reflexão filosófica contemporânea,
o que é muito diferente e infinitamente mais árduo
do que anexar a ciência a um sistema ético já constituído.
H.C. de Lima Vaz
As consequências das atitudes individuais e singulares, sempre que
desconectadas de outra visão do outro, são funestas. Enquanto pensa estar
sendo esperto e criativo, tal pessoa, na realidade, põe-se é à margem do
sistema jurídico mundial, o que demonstra que, no fundo, falta esperteza e
sobra ingenuidade. A vantagem da atitude individual e singular esboroa-se
pelo vazio que esta atitude encerra em si mesma quando desvinculada e
sem maiores compromissos.
Sem uma Escola de Magistrados com a abrangência necessária para formar
profissionais da decisão fomentando a uniformidade funcional e o
conhecimento amplo de temas ligados ao mundo real, as decisões que
põem fim aos conflitos tornam-se descoladas dos casos sobre os quais
versam; as Escolas de Direito precisam formar profissionais conectados
com as exigências de um mundo globalizado, rápido, ágil, criativo e mais
interessado em fazer negócios que em eliminar os parceiros de negócio;
sem comunicação entre os Juízes de Primeira Instância e os de Instâncias
Superiores, inúmeras sentenças vão sendo substancialmente modificadas
em cada instância por que passam; sem tempo para que os Juízes possam
desenvolver bem sua função de julgar, o que redunda em sentenças
açodadas e isto nas diversas instâncias; sem Justiça Distributiva entre os
próprios Juízes, ou seja, sem quem distribua méritos aos que têm e
encaminhe aqueles que se desviam; e, finalmente, sem se reconhecer que a
função de julgar tornou-se tremendamente solitária o que permitiu a
muitos Juizes desenvolverem a atitude de, através de suas sentenças,
pretender mudar o mundo, a inconsistência e incerteza grassam no mundo
jurídico.
Criou-se a insegurança jurídica e a imprevisibilidade passou a ser a regra.
Nos fóruns em que domina a imprevisibilidade vale a pena tentar uma
ação: pode dar certo! Alea jacta est. Está criado o Direito Lotérico.
Tais centros estão fora do circuito jurídico mundial, o que traz inúmeras
consequências danosas – inclusive prejuízos - ao mundo dos negócios:
falta de respeito ao Judiciário, falta de confiança no Judiciário, ausência de
conhecimento das idéias jurídicas e, finalmente, total desdém pelo sistema
jurídico como um todo e pela figura de seus atores, advogados, promotores,
juízes, funcionários da Justiça em geral, o que, de per si, acarreta fuga de
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capitais e dos negócios de que tanto se necessita para outros países que
prometem e cumprem o voto de atuar com mais segurança, certeza e
previsibilidade nas regras e normas negociais e jurídicas.
Boa parte das sentenças judiciais pode ser meramente a expressão verbal de
um sentimento não elaborado: o julgador não conclui, não reflete, não
argumenta, não estuda, ele apenas julga conforme o sentimento primário
que interiorizou e disso não se dá conta.
A grande maioria das ações já está pré-julgada.
É o uso da técnica jurídica para resolver um conflito – principalmente o
conflito do juiz de Primeira Instância – e não o das partes envolvidas. É a
busca de uma justiça cara ao julgador e não aquela adequada ao caso
concreto. E pior e incompreensível para nós e para as partes, é a atitude de
abstração (ou seja, do caso concreto à generalização, desta à abstração, para
o final atingimento de uma idéia que já está muito distante e longe do caso
concreto que está em julgamento, e que foi o ponto de partida) que se adota
neste mundo jurídico: como a atitude de alguns médicos que tratam
somente da doença e se esquecem do doente, esta atual ausência de virtude
jurídica caminha tecnologicamente, como convém, ao sabor da forma, da
processualidade sobre o conteúdo, o que nos leva a afirmar que estamos em
um mundo muito estranho: a tecnologia descolou-se da ciência, a
racionalidade descolou-se da razão, o direito da justiça: há total perda do
sentido!
E por falta de Paidéia - no exato sentido que lhe atribuímos no trabalho que
pretendemos desenvolver.
É pensando nesses assuntos que o presente trabalho visa despertar dúvidas
onde sempre houve tanta confiança e problematizar questões
aparentemente resolvidas, pretendendo discutir a busca de maior
confiabilidade, tradição, certeza, dignidade e paz. De previsibilidade,
enfim, que consideramos como a conseqüência natural de um estado de
coisas em que funciona harmonicamente a Justiça.
A nossa apresentação do Ser deixará a impressão de que não há alternativa
ao fato de que cada pessoa deve mesmo decidir de acordo com seus
critérios. Deixará a impressão de que é normal – e mais ainda, que é
desejável por inevitável – a imprevisibilidade. Não é impressão. Isto é
exato se a cada um for permitido decidir conforme seu livre
convencimento.
Tal manifestação não pode. O juiz ou a juíza deve decidir de acordo com o
que pensa o corpo com o qual está conectado indelevelmente e não por
liberdade e independência de postura que chega às raias da rebeldia. A
imprevisibilidade gerada causa, assim, sensação de injustiça: caso a questão
proposta, sorteada, venha a ser discutida perante um juiz ou um tribunal
que rejeita a matéria embora haja outro que a acolha, resta no querelante a
sensação de que recorrer à Justiça é um processo lotérico. A torcida pelo
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sorteio será maior que pela decisão, pela justeza da postura, pela defesa da
tese e pelos argumentos exarados. Tal situação é insuportável e mexe com
o senso de dignidade do cidadão que, ferido, não verá mais sentido na
Justiça e tornar-se-á apático ou revolucionário.
Nosso corpo humano é previsível; assim em ambiente previsível (interno)
vivemos nós: a doença é um desvio desta previsibilidade. O meio ambiente
ou a natureza é previsível; assim em ambiente previsível (externo) vivemos
nós: acidentes da natureza ou manifestações violentas são causa de imensos
problemas.
Imprevisível é a relação dos seres humanos entre si e entre o homem e a
natureza. Este é o cerne do problema a resolver.
Como viver na incerteza, na imprevisibilidade? Será possível ou desejável?
De mais a mais, tornando prático o tema, como decidir questões triviais ou
mesmo negociais sobre um investimento de retorno mais lento ou no
âmbito da família sobre a educação dos filhos se o ambiente for de total
imprevisibilidade?
A imprevisibilidade, e não falamos daquela que está no bojo de qualquer
atividade humana enquanto contingente, ou, de outra forma, a
imprevisibilidade jamais prevista, aquela que não era provável é a que tem
efeito danoso, descontinua o progresso advindo do risco, quebra a evolução
normal e perpetua um cenário caótico.
Como decidir questões e proferir sentenças judiciais que satisfaçam as
partes e a sociedade? Como ser previsível?
Diz Peter M. Hejl (O olhar do Observador – Paul Watzlawick e Peter Krieg
– Editorial Psy II – 1995): “sociedades e, portanto, cada um de nós,
necessitam (sic), ao menos para seu funcionamento interno, de realidades
estabilizadas como referência presumível e previsível para procedimento e
comunicação. Somente a trivialização, isto é, o tornar-previsível, torna
comunicação e atuação coerente possíveis. Mas isto requer sobretudo
realidades socialmente estabilizadas – e então, novamente, possibilidades
de modificá-las. É necessário, portanto, estabilização e desestabilização,
esta até mesmo na forma aparentemente paradoxal da desestabilização
estabilizada ”.
Esta atitude sempre em devir, no bojo dos debates, instrumentária de
eleições, inclusive as partidárias, de seminários, de estudos, de diálogos,
nos inúmeros níveis internos de uma nação, potencializa a máxima famosa
de Heinz von Foerster: “aja sempre de modo a aumentar o número de
possibilidades de opção”, o que é um imperativo ético.
Finalmente explicar a expressão “Atores do Direito”: tentaremos em todo o
decorrer do trabalho demonstrar que o Direito não é operado. Que não há,
portanto, Operadores do Direito. Tentaremos mostrar que o Direito é vivido
por advogados, juízes, promotores, funcionários da justiça, mas,
principalmente, pelo cidadão comum, mesmo quando não estiver parte
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integrante de um processo judicial; tentaremos demonstrar que ele está no
íntimo do Ser de todas as pessoas envolvidas e que estas pessoas atuam de
maneira a exibir a realidade que perceberam e que, portanto, vivenciam.
Daí serem Atores do Direito.
Um alerta: há alguns poucos textos que aparecem repetidos no curso desta
dissertação: o motivo é que seu sentido originalmente dado alterou-se com
o desenvolvimento do raciocínio, o que exige a sua reapresentação – e tal
volta permite ao leitor analisar – e sentir - como um ponto de vista altera-se
quando se amplia a visão do mirador.
III-
Limites
Há moldura no trabalho.
Ficaremos somente dentro do âmbito dos Sentimentos e de sua importância
na decisão.
Partimos da disposição de que os Sentimentos presidem a decisão,
preparam o Homem para a vida e o previnem da dor.
Não há, desde sempre, educação que ensine o ser do homem a trabalhar
com os seus Sentimentos. Ele não sabe como funcionar com esses
Sentimentos. Não os aproveita como deveria. É como se homem tivesse
duas pernas para andar e fosse ensinado a andar somente com uma delas.
Saci-Pererê, o homem saltita com uma perna só e se vale somente da Razão
enquanto os Sentimentos ainda estão lá a funcionar normalmente e a
exercer seu trabalho. Há um turbilhão desconhecido, incontrolado, a mover
o íntimo do homem que não o reconhece nem sabe usar com sua plenitude
o que se lhe conturba por dentro, salvo alguns muito afortunados e
intuitivos que por usarem as duas faculdades se sobressaem muito além dos
demais. Este desconhecimento e esta ignorância facilitam a incursão
deletéria dos preconceitos, propiciam a ação nefasta dos outros
Sentimentos (por exemplo da Cobiça sobre a Justiça), fazem aparecer a
ideologia e a íntima convicção etc, tudo atrapalhando o homem em sua
busca de tomar decisões corretas.
Proporemos no fim uma saída problemática para o tema tentando trilhar um
caminho com serenidade o de computar, computar infinitamente.
Proporemos, também, sempre problematicamente, um método, um
conjunto de regras que permitam afunilar atividades e aproximar a decisão
do caso concreto harmonizando o reclamo das partes com as exigências da
sociedade.
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Não faremos nenhuma incursão de fôlego, apesar da sua importância, nos
campos da Lógica na decisão, da Retórica na decisão, da Tópica na
decisão, da Erística na decisão, da Heurística na decisão, das regras do
Processo Civil e Penal na decisão, e não abordaremos aspectos históricos,
políticos, sociológicos e psicológicos no ato decisório, nem qualquer outro
aspecto, para nos mantermos absolutamente dentro dos limites rígidos da
moldura pré-estabelecida.
V - Metodologia
Não pretendemos fazer rigoroso e científico trabalho de campo.
O Método será misto: em um tempo, experimental ou indutivo, de outro,
racional ou dedutivo. Às emoções e ao sentimento daremos livre curso.
Será da natureza mesmo do ser do homem que se deduzirão os princípios
gerais do presente trabalho.
V - Sumário
1- Sentimento. pág
2Justiça. É uma palavra. pág
2.1-Uma construção humana: alguns mitos. pág
2.2- Outra construção humana: o logos e algumas concepções de
diversos filósofos. pág
3- Ideologia. O Juiz e a Juíza resolvem mudar o mundo. pág
4- Dever-ser inventado. pág
5- A equidade em Aristóteles, na Retórica. A nova equidade dos
juízes atuais. pág
6- Compreensão jurídica e capacidade jurídica de arcar com as
consequências dos próprios atos. pág
7- Certeza. Segurança. Previsibilidade. pág
8- Que justiça esperar. Pág
9- Conclusão. Pág
15
VI – Resumo:
Previsibilidade Decisória
A Busca de Sentença que Satisfaça os Atores do Direito
Tentaremos demonstrar, esta é a tarefa difícil, que é o Sentimento Humano
que decide, sopesa, aprecia, estima, atribui valor, conclui, sentencia; que a
Razão diz quanto mede e o Sentimento diz quanto vale; que a Realidade (e
as coisas) são construídas por nós em nossa mente; que são avaliadas e
especificadas pelo Sentimento. E que bem por isso não há Operadores do
Direito, mas Atores do Direito.
Afirmaremos que dado o culto da Razão ensinou-se que o Sentimento,
atividade então apresentada como menor, deveria ser censurado, omitido,
desprezado, engessado, manietado: mas, não adianta, ele está lá sempre a
cumprir seu papel e que não há como ignorá-lo; que por não ter sido
entendido seu papel, o Sentimento (ao contrário da Razão) não se
desenvolveu nem se refinou o que é causa de problemas para o ser humano.
Tentaremos demonstrar que em um conflito há falha na comunicação entre
as partes; que o Sentimento é um meio de comunicação; que na análise do
conflito aparecem os Sentimentos que causaram a ruptura; que esta
comunicação precisa ser restabelecida; que os Atores do Direito (as partes,
os advogados, os juizes...) apresentam-se no Processo com base em seus
Sentimentos e que, afinal, no atual sistema judiciário, prevalecerá como
solução definitiva a determinada pelo Sentimento do juiz que decidir a
causa o que pode, ou não, provocar mais problemas. Procuraremos
defender a posição de que a sentença não deve somente terminar o
processo, mas deve terminá-lo satisfazendo as partes e a sociedade.
Tentaremos estudar a questão de maneira a tornar previsível o ambiente
jurídico de modo a proporcionar às partes conhecimento prévio do cenário
real, que é este enquanto não for alterado, e que elas podem, via este
conhecimento, planejar suas vidas e assumir seus riscos conscientemente.
Tentaremos, ao final, copiando o sistema humano propor um sistema
judicial que apure primeiro racionalmente a verdade envolvida nas
proposições em debate, segundo que aplique a intuição humana ao assunto,
terceiro que tente conciliar as partes e reconstituir sua comunicação
atribuindo-lhes sua proporção de razão visto que em muitos processos as
partes têm reciprocamente erros e acertos a ajustar não estando totalmente
certas nem totalmente erradas o que quase nunca será contemplado em uma
sentença judicial no atual modo de encarar o assunto e, por derradeiro,
16
aplicar o Sentimento elaborado e refinado às decisões judiciais de forma a
contentar as partes envolvidas mais do que contenta o atual sistema.
Para tanto optamos por apresentar nossas teses da seguinte maneira
desenvolvendo-as nos seguintes capítulos:
1-sentimento: procuraremos demonstrar que o Sentimento é o responsável
pelo ato de decidir, de escolher, de sopesar, de apreciar, de estimar, e que
tem sede própria no organismo, situando-se no lobo frontal. Isto explica
porque (valor nas coisas é o homem que põe; cada pessoa tem seus próprios
sentimentos) cada cabeça uma sentença. O Sentimento é um meio de
comunicação e não consegue ficar represado, daí o homem como ser
semiótico e não como animal racional. O juiz e a juíza que prezam sua
independência e seu livre convencimento como exibição de soberba, poder
e particularismo não comprovam sua independência e seu livre
convencimento.
No capítulo seguinte daremos resumidamente um panorama dos
Sentimentos Humanos eleitos como virtuosos, bons e justos, com ampla
ênfase no Sentimento de Justiça como exemplo do que de mais edificante o
homem construiu e comunicou aos seus pares como paradigma.
2-Justiça. É uma palavra: só uma palavra construída (inventada) pelo
homem e daí as “obras” que ele criou a respeito. É um sentimento dos mais
fortes e um dos que dá sentido à vida. Um apanhado nos mitos e no logos
como exemplo do que o engenho humano produziu e com isso mostrar
alguns dos limites sentimentais mais representativos a que chegou nossa
civilização.
Nos três capítulos seguintes dissertaremos sobre os obstáculos que
elegemos como aqueles que podem arruinar um sistema que vise o justo
entre as partes: a origem deletéria da ideologia (no sentido que lhe
atribuímos) obscurecendo o Sentimento (e bem assim o Sentimento de
Justiça) conferindo-lhe impureza; o dever-ser como manifestação formal
de invenção humana que visa determinar o comportamento humano de
acordo com o Sentimento de quem escreve a norma e equidade como a
percebeu Aristóteles e como, via Sentimento, houve desvio deste instituto
que é utilizado por pessoas que dele se valem para executar seus
propósitos e não objetivamente o instituto.
3- Ideologia. O juiz e a juíza resolvem mudar o mundo: a ideologia no seu
sentido mais lato agregando-se nefastamente ao sentimento de justiça do
magistrado. Saída do campo jurídico e entrada no campo político. Ideologia
alterando e impactando a sentença.
4- Dever ser inventado: valor na norma é o homem que põe; o que é o
dever ser; se ele pertence ao mundo da ontologia ou não; se ele prescreve
conduta ou se ele imputa responsabilidade (sanção e coerção); o dever ser é
17
inventado pelo homem e estabelece o que é proibido, permitido e
obrigatório na conduta humana e se a ele devem obediência o juiz, a juíza e
a sociedade.
5-A equidade em Aristóteles na Retórica. A nova equidade dos juizes
atuais: que é isto: equidade? Qual a equidade dos juizes? Há como
aproximar a justiça do caso concreto? É melhor a Justiça bipolar, legal e
positivista do ‘pode não pode’ ou aquela que aproxima o dever ser
inelutável ao caso concreto e particular.
No capítulo seguinte uma criação problemática e totalmente arbitrária e
não aprofundada de características que devem no ver do autor resolver
os problemas anteriormente apontados e permear pessoas com
Sentimentos nobres, refinados, cultos e evoluídos para que computados,
computados indefinidamente possam constantemente avançar.
6-Compreensão jurídica e capacidade jurídica de arcar com as
conseqüências dos próprios atos: autonomia, dignidade, fragilidade e
integridade dentro da moldura da responsabilidade social e da
solidariedade: uma visão européia a que agregamos a autenticidade e o
amor à vida.
Na medida em que evoluem os Sentimentos Humanos pode-se criar um
cenário benfazejo ao homem que deseja segurança sem afrontar o
espírito combativo dos que desejam assumir riscos? É o que procura
definir o capítulo seguinte
7-Certeza. Segurança. Previsibilidade: formam um conjunto que é um
dos três pilares do direito sendo os outros dois a Justiça e o Fim do
Direito: não há previsibilidade no Judiciário. É causa de evolução e,
eventualmente, de progresso. As diversas teorias do “realismo
americano”. É desejável? Há previsibilidade em alguns países? O
princípio do stare decisis.
Os métodos atuais satisfazem esta busca de previsibilidade? Qual
método deve conduzir esta nova busca? Há tal método? É o que procura
inaugurar o capítulo seguinte.
8-Que justiça esperar: não há saída fora da máxima de Heinz von
Foerster: conhecer é computar, é computar, é computar... e assim
infinitamente (ou seja compartilhemos nossos sentimentos e nossas
razões, nossas diferentes visões a respeito dos assuntos e tiremos seu
denominador comum até a próxima alteração do ponto de vista). O
sistema judiciário copiando o sistema humano para que humanas sejam
as decisões judiciais.
9-Conclusão
18
1- Sentimento
1.1 – introduzindo o tema
Não há possibilidade cientifica de podermos comparar um valor a outro e
afirmar racionalmente qual o melhor. Não há, também, exceto pela fé, a
possibilidade de elencarmos valores absolutos, como não podemos, exceto
pela fé, crer em Deus e nos mistérios.
Valores nos fatos são os homens que põem.
Valores nas normas são os homens que põem.
É tudo uma construção humana bem humana. Construir ou Inventar, nesta
acepção é escolher através de um processo mental dentre as poucas
alternativas úteis qual a melhor naquele instante e descartar todas as outras
inúmeras alternativas pois dadas como inúteis.
Fatos da Realidade são elencados, dispostos, descritos e detalhados pela
Razão; mas são comparados, sopesados, valorados e, um dentre eles
pinçado, e aplicado, como o melhor naquele instante, pelo Sentimento
humano.
A Razão estabelece quanto algo mede e o Sentimento quanto este algo vale.
Sentimento cada homem tem o seu. Valores, assim, cada homem tem os
seus.
O fato, que em si é isento de valor, existe independentemente do
pensamento humano ou do que dele pense o homem: a crença humana que
descreve o fato e que se consubstancia numa proposição é que pode ser
logicamente verdadeira ou falsa sem ser necessariamente boa ou má.
Uma norma será valiosa (valente, válida, valorosa, com valor) se efetiva.
Pensou-se muito tempo que era a Razão que nos ordenava a escolha certa.
E por isso era a Razão (logos) tão cultuada e divinizada. Sabe-se agora que
a Razão não tem essa função: cabe ao Sentimento (não confundir com
emoção, nem com humores, nem com intuição) ou Feeling, ou seja, uma
forma racional (por oposição a emocional) de pensar sem discurso, a tarefa
de escolher dentre os valores decidindo por um. O Direito e a Moral são
sentimentais quando prescrevem conduta e imputam responsabilidade; não
são racionais a nosso ver.
Sabe-se mais, sabe-se que a sede física do Sentimento está no lobo frontal e
que esta é a parte do cérebro que é ativada quando um ser humano tem que
se posicionar ou escolher ou decidir ou julgar ou sentenciar (não confundir,
portanto, com concluir stricto sensu, ou seja, concluir pela técnica lógicoformal ou pela matemática, cuja sede física parece estar na região dorsolateral do cérebro1. A decisão, portanto, é, ab ovo,
atividade
1
– conforme Damásio 2000 pág 215.
19
eminentemente pessoal, individual e intransferível. E é – cuidado –, porque
fruto do Sentimento, presa fácil de pré-conceito e ideologia (e também de
outros sentimentos que tenham postura dominante naquele instante: uma
decisão sobre justiça pode ser modificada pela inveja ou pela soberba ou
pela ira ou pela cobiça, por exemplo). Esta é a origem de sentenças se
diferenciarem tanto umas das outras embora versando sobre fatos
semelhantes – ou mesmo idênticos - e tendo por fundo a mesma norma, e é,
ao mesmo tempo, a causa de várias sentenças proferidas por vários
magistrados atingirem a mesma conclusão final apesar de cada juiz partir
de uma motivação diferente. Esta a origem da imprevisibilidade decisória,
mal a ser atacado.
Modernamente não somos treinados para trabalhar com nossos Sentimentos
nem para perceber neles a importância que têm em nossa vida. Somos
ensinados a cultuar a Razão e a desconsiderar os Sentimentos. Somos
treinados a escondê-los de nós e dos outros. Somos levados a reprimi-los.
A realidade é uma percepção na mente e totalmente construída (inventada)
pelo homem. Cabe ao homem, autônomo e autárquico, criar o seu universo:
é sua responsabilidade2 , é sua faculdade, com exclusão de qualquer outro
quadro ou entidade, poder construir, através de boas escolhas, um mundo
justo e afastar o injusto. A base de valores será sempre uma escolha
intransferível do homem.
Nós somos o que decidimos ser, dentro de nossa limitada margem de
manobra.
Está na uniformização do método e na conseqüente procura das decisões
certas (no sentido literal do latim), tornando-as éticas e objetivas, o mais
que puderem ser, e, por um tempo, previsíveis, um dos grandes desafios
que surgem no limiar do século XXI.
Como enfrentá-lo?
*
1.2 – ampliando o foco
É fundamental, para dar início e abrir a proposta, novelar um pouco:
Imagine um jogo (de sedução, por exemplo)3 do qual você não participa
apesar de querer ser parte. Você não consegue estar dentro “naturalmente”.
Não foi convidado. Inconformado você se esforça. Quer fazer parte. Daí
você observa o jogo. Estuda o jogo. Suas variáveis, seu espectro, seu
escopo, seus pontos em comum, o que causa o quê, o que é conforme e o
que não é, o que afasta e o que aproxima, o que se relaciona com o quê, a
teia de relações e de relacionamentos, as alianças, os blefes, os aspectos
físicos e sensoriais, o cheiro, as partes envolvidas, a arte de representar:
2
3
(a responsabilidade é de quem escolhe dizia o arauto n’O Mito de Er)
ou de decidir ou sentenciar, ou outro qualquer...
20
tudo enfim. Você se envolve. Faz escolhas. Comove-se. Fica com energia a
flor da pele. Seus olhos brilham. Você retira suas conclusões. Dos casos
particulares você extrai, desvela leis gerais. Você compara com o mesmo
jogo jogado entre outras pessoas, de outras idades, de outros lugares. E
desta análise você retira regras mais gerais. Até abstrai. Você passa a
compreender o jogo – dentro da sua limitada capacidade de visão - e pode
tornar-se naturalmente integrante: mas, se dele não puder participar, que
pena, ao menos, você já pensa saber o por quê!
É curioso saber que podemos observar algo e, ao mesmo tempo,
nos observar como atores que atuam por dentro daquilo que se observa,
ou seja, nós podemos observar algo e a nós mesmos enquanto parte,
tudo enquanto estamos de fora como observadores. Inteligindo.
Sentindo o que sentimos e sabendo que há um eu que está sentindo. Mas
sempre inteligindo. E, daí, formulando regras que encontramos por nós
mesmos como se as coisas se nos revelassem, que as leis da natureza
estão implacáveis, inelutáveis, à nossa disposição 4.
Desde sua origem que o ser humano começou a querer saber o que é a
Inteligência (ou Razão, ou Logos, ou Verbo, ou...) e louvou-a sobre tudo
o que existia, verdadeiro atributo humano, aquele que nos distingue:
somos animais racionais, dizemos com soberbo orgulho. E a Razão foi
separada da Emoção, esta dita parte menor de nossa constituição
material, e que, aliás, deveria ser controlada e censurada pela outra.
Mais tarde veio a teoria da convivência: uma precisa da outra e está na
sua Harmonia o segredo. Teorias e teorias foram gastas; ficaram a dever
a demonstração de que uma teoria era melhor que a outra e, nunca, a
superioridade de qualquer delas ficou comprovada.
Desde os pré-socráticos que o estudo das coisas e da natureza tem
relevo: o logos investigava tudo. Inclusive a própria natureza:
pensadores indagavam sua origem, sua constituição, suas leis gerais, sua
relação. Usando a inteligência, cismavam; fazendo Filosofia – tudo é
natureza e nela estamos todos em igualdade de condições - pretendiam,
também, desvendar a Física, a Astronomia, etc. Só com pensar. Se
Física for, simplesmente, o modo racional de estudar a Natureza foi com
a mudança de método que o estudo se deslocou da Filosofia e constituiu,
autarquicamente, uma ciência. O que antes era visto de um jeito, passou
a ser visto de outro. O mesmo aconteceu com a Astronomia. A Filosofia
não cessou sua atividade nestes campos, mas focou o assunto de outra
maneira.
4
Sobre o tema já nos prevenia Heráclito de Éfeso: natureza ama esconder-se (pré-socráticos, 1978,
123 pág 91); e ainda: se não esperar o inesperado não se descobrirá, sendo indescobrível e inacessível
(ibidem, 18 pág 81)).
21
A Inteligência continuava, entretanto, a ser analisada pela Inteligência.
Primeiro pelo método próprio da Filosofia, depois pelo método do
Direito, bem depois pelo método próprio da Psicologia. Recentemente,
repete-se o evento: a Antropologia já havia descolado, a Zoologia
também, daí vieram as Neurociências (Neurobiologia, Neurofisiologia,
Neuroanatomia, Psiconeurologia) tentar desvendar o que é o cérebro
humano e como ele se manifesta: mente, cérebro, self, consciência,
conhecimento, saber, cultura, experiência, memória, razão, sentimento
etc. Essas questões passaram a ser desvendadas por outro método, por
ciências, que, autarquicamente, vinham definir novos caminhos até seu
objeto (que enquanto tal não era novo). Começaram a descobrir no
cérebro sedes de cada atividade (assim, nível físico), mapearam não um,
mas três cérebros, ou quatro, ou cinco, dependendo de cada Autor,
diferentemente trabalhando em conjunto integrado e em dois
hemisférios distintos mas unidos entre si. Alterou-se essencialmente o
jeito de tratar a coisa. E ampliou-se substancialmente (como antes com a
Física, com a Astronomia...) o que se sabia a respeito do assunto por
simples mudança de método. O corpo humano foi (re) integrado à
realidade do mundo e não mais referido como o invólucro sujo, mero
manto de carne, que se distinguia de nossa alma pura. Descartes foi
abolido: Antonio Damásio, o brilhante cientista português trabalhando
na Universidade de Iowa, nos EUA, ao falar da res cogitans e da res
extensa, do cérebro, material, e do cogito, espiritual, provando que o
pensamento, o sentimento e a emoção são processos físicos associados
denuncia o erro de Descartes, nome de seu livro, aliás, e propõe que o
famoso dito do pensador francês seja substituído por Sinto (tenho
sentimento), ou seja, existo, logo penso5.
Uma das novidades que tumultua nossas verdades estabelecidas informa
que há no cérebro uma sede para o sentimento. O assunto é tormentoso.
A palavra está carregada de...sentimentos! É emoção, coisa de mulheres,
opõe-se e não tem nada a ver com a razão, só serve para nos fazer
chorar, é pressentimento, é fonte de emoções baratas: quanta coisa se
fala a respeito neste empedernido mundo, no jurídico inclusive! E nada
a favor.
Urge diferenciar.
Nasceu, paralelamente, a Biociência que veio estudar a vida ela mesma.
Com o código genético veio a possibilidade de entendimento e alteração
da vida (transgênicos, clones, células tronco, suicídio assistido,
abortos...). Livre arbítrio, responsabilidade, destino e, inclusive,
características psíquicas antes havidas como autobiográficas, próprias
(autônomas) de cada ser humano (alegria, depressão, alcoolismo,
5
- Na Física o dito já tinha sido substituído por “Caio, logo existo”.
22
tendências...) passam a ter outro tratamento (a genética é hereditária diz
a distraída brasileira). A moldura em que está o ser humano e, assim,
seus limites, ou seja, o quanto está, porque é animal, predeterminado, dá
ao homem menor margem de manobra do que ele jamais pensou ter.
Muito ainda a ciência falará deste tema.
O Direito, ágil, cria nova categoria, a do Biodireito. O que era antes uma
questão filosófica – seremos racionais, seremos irracionais, o que,
afinal, somos – torna-se uma questão a ser resolvida pela
neurofisiologia. E a Filosofia tem que repensar, mudar o foco e passar
pelo assunto de outra maneira.
"Até que ponto é verdade que os sentimentos humanos, as esperanças e
temores do que é mais sagrado são um ingrediente necessário na
elaboração das decisões e na motivação de sua implementação? Esta
questão está ligada com o problema de ser ou não verdade que tal
informação é necessariamente filtrada por áreas altamente
programadas geneticamente no cérebro inferior, no tronco cerebral e
no sistema límbico” pergunta, provocante, Victor Turner um eminente
antropólogo e atento estudioso da matéria.
As novidades trarão consequências. O cenário não ficará como antes. As
áreas da Psicanálise e da Psicologia que sempre explicaram o que se
passava e forneciam conceitos que elucidavam a matéria como ficam? E
agora? E o Direito? E a Filosofia?
Será que as novas descobertas – e que confirmam algumas idéias de
alguns mais afinados e intuitivos e invalidam as de outros - vão se
chocar com as teorias de Jung, Freud, Reich e Lacan para citar o
mínimo, já que jurídico é o escopo deste trabalho?
Vamos diferenciar.
Os Humores são os vilões da história: tomam uma pessoa e fazem-na
irracional, cega, insensata, destrutiva. O possuído pelos humores faz
coisas sem reflexão das quais se arrepende para sempre.
Moralmente neutra, a emoção é uma descarga de energia que é sempre
provocada por uma experiência importante. E é ela que nos prepara para
a ação.
A pessoa entusiasmada está, como veremos depois, possuída por deus e
em estado altamente criativo, para dizer o mínimo.
Mais difícil, porém, é descrever ”feeling“. Feeling ou sentimento é o
ato de valorar, de sopesar, de avaliar, de escolher, de decidir. É ato
puramente racional de conhecer, porém sem pensamento (no sentido
antigo) nem palavra.
O que dirá Jung a respeito? É a sua definição de sentimento, bem como
a sua maneira de classificar a matéria, aquela que adotamos para efeito
desta Dissertação.
23
Carl G. Jung 6depois de afirmar sabiamente e com convicção que “o
indivíduo é a realidade única. Quanto mais nos afastamos dele para nos
aproximarmos de idéias abstratas sobre o homo sapiens mais
probabilidades temos de erro”7 ataca o tema da seguinte forma8: “logo se
me tornou evidente, no entanto, que as pessoas que utilizavam as suas
mentes eram as que ”pensavam“ – isto é, aquelas que usavam as suas
faculdades intelectuais tentando adaptar-se a genes e circunstâncias.
As pessoas igualmente inteligentes que não pensavam, buscavam e
encontravam o seu caminho através do “sentimento”.
“Sentimento” é uma palavra que pede uma certa explicação. Por
exemplo, falamos dos sentimentos que nos inspira uma pessoa ou uma
coisa. Mas também empregamos a mesma palavra para definir uma
opinião; por exemplo, um comunicado da Casa Branca pode dizer: “O
Presidente sente...” Além disso, a palavra também pode ser usada para
exprimir uma intuição: “Senti que...”
Quando uso a palavra “sentimento” em oposição a “pensamento”
refiro-me a uma apreciação, a um julgamento de valores – por exemplo,
agradável ou desagradável, bom ou mau etc. O sentimento, de acordo com
esta definição, não é uma emoção ( que é involuntária ) . O sentir, na
significação que dou à palavra (como pensar) é uma função racional (isto
é, organizadora), enquanto a intuição é uma função irracional (isto é,
perceptiva). Na medida em que a intuição é um “palpite”, não será,
logicamente, produto de um ato “voluntário”; é, antes, um fenômeno
involuntário – que depende de diferentes circunstâncias externas ou
internas – e não um ato de julgamento. A intuição é mais uma percepção
sensorial que, por sua vez, também é um fenômeno irracional, já que
depende essencialmente de estímulos objetivos oriundos de causas físicas e
não mentais.
Estes quatro tipos funcionais correspondem às quatro formas evidentes,
através das quais a consciência se orienta em relação à experiência.
A sensação (isto é, a percepção sensorial) nos diz que alguma coisa
existe; o pensamento mostra-nos o que é esta coisa; o sentimento revela se
ela é agradável ou não; e a intuição dir-nos-á de onde vem e para onde
vai.
O leitor deve compreender que estes quatro critérios, que definem tipos
de conduta humana, são apenas quatro pontos de vista entre muitos
outros, como a força de vontade, o temperamento, a imaginação, a
memória, e assim por diante. Nada há de dogmático a respeito deles, mas
seu caráter fundamental recomenda-os para uma classificação. Acho-os
6
em O Homem e seus Símbolos (1996) passim,
ibidem, pág 58
8
ibidem, pág 61 e ss
7
24
particularmente úteis quando preciso explicar as reações dos pais aos
filhos, as dos maridos às mulheres e vice versa.
Ajudam-nos também a compreender nossos próprios preconceitos.”
(nosso grifo)
Há alguns outros filósofos, ousados, cada um com seu jeito próprio, que
passaram corajosamente pelo assunto.
Mas a maioria dos autores que, parece, considera o tema um tabu,
escusa-se de falar a respeito.
Avulta que o antigamente chamado lado irracional do homem desperta
angústia nas pessoas porque não podiam explicá-lo bem e por isso dele se
distanciavam ou, mesmo, ignoravam o tema como se ele não existisse.
Mas Bertrand Russel falou deste assunto com magna franqueza: o
matemático 9 no famoso debate que manteve em 1948 com o Pe. F. C.
Copleston, S. J., transmitido pela BBC, sustentou o seguinte diálogo:
R = O Sr. vê, sinto que algumas coisas são boas e que outras coisas são
más. Amo as coisas que são boas, que penso serem boas, e odeio as coisas
que penso serem más. Não digo que essas coisas são boas porque
participam da bondade divina.
C = Sim, porém qual é a sua justificação para distinguir entre o bem e o
mal, ou como o Sr. visualiza a distinção entre eles?
R = Não tenho qualquer justificação além daquela que tenho quando
distingo entre o azul e o amarelo. Qual é minha justificação para distinguir
entre o azul e o amarelo? Posso ver que são diferentes.
C = Bem, esta é uma excelente justificação, concordo. O Sr. distingue o
azul e o amarelo vendo-os, então distingue o bem e o mal através de que
faculdade?
R = Através de meus sentimentos.
Hume 10 escreveu bastante sobre o tema e já dizia, em 1740, que o vício
nos escapa por completo se não olharmos para nosso próprio íntimo e
dermos com um sentimento de desaprovação que se forma em nós contra
esse vício; esse fato, o vício, é visto pelo sentimento (feeling) e não pela
razão pois está em nós e não no objeto. Compara o vício e a virtude a sons,
cores, calor e frio, não como qualidades nos objetos mas como percepções
na mente. Afirma que a impressão derivada da virtude é agradável e que a
procedente do vício é desagradável; continua dizendo que as impressões
distintivas que nos permitem conhecer o bem e o mal morais não são senão
dores e prazeres particulares e que ter o senso da virtude é simplesmente
sentir uma satisfação de um determinado tipo pela contemplação de um
9
10
Por que não sou cristão, Pensadores, Abril, 1978, pág 217
Tratado da Natureza Humana, Livro III, Unesp, 2001, pág 508 e ss
25
caráter, ou seja, o próprio sentimento constitui nosso elogio ou nossa
admiração.
Outros autores deram outra interpretação:
Mesmo Bérgson 11 já dizia que a intuição é o órgão próprio da filosofia e
exaltava essa faculdade como fundamental, básica mesmo, na tomada de
decisão e na sentença judicial.
Kelsen ao falar sobre o tema e imbricá-lo com a Justiça dizia que todo
juízo de valor é irracional porque baseado na fé e que sentenciar é apenas
um ato de vontade política.
Ficamos, para não fugir de nosso escopo, com esses testemunhos que
julgamos suficientes para emoldurar diversas tendências de autores
seríssimos discorrendo sobre o que se convencionou denominar de
“irracionalidade” no Direito.
Esta posição, ousada, desses filósofos encontrou guarida no avanço da
ciência? Será mesmo irracional essa postura?
*
1.3 – a postura da neurofisiologia
Depois do advento da Neurofisiologia e da Neuroanatomia, aspectos
meramente físicos têm que passar a entrar na análise dos problemas
relativos a este assunto, o da tomada de decisão12.
11
(vide em nosso país o estudo desenvolvido pelo prof. Luiz Antonio Rizzatto Nunes)
12
Leia-se a respeito inúmeras e diferentes abordagens em diversas edições da revista
Nature Neuroscience, que pode ser acessada facilmente pela Internet. Além, conforme
lista própria mesclada com a de um estudioso da matéria, o brasileiro e engenheiro
Carlos Eduardo Stuart e com a lista de outro estudioso, o brasileiro, médico e advogado
Sérgio Domingos Pitelli:
Antonio Damasio: “The Feeling of What Happens” e “Descarte’s Error”:
o debate entre res cogitans e res extensa, o erro de Descartes
Barry S. Fogel, Randolph B. Schiffer, Stephen M. Rao Neuropsychiatry
Eric Margolis e Stephen Laurence – Concepts –
Israel Rosenfield – “A Invenção da Memória” –
Jonathan Cole – About Face –
Jonathan Shear – Consciousness Explained –
M.-Marsel Mesulam – Principles of Behavioral and Cognitive Neurology
Michael Gazzaniga - “The Mind´s Past”
Raul Marino Jr – Fisiologia das Emoções
Roberto Lent – Cem Bilhões de Neurônios, conceitos fundamentais de
neurociência
Rodolfo Llinás – “I of the vortex” –
Stanislau Dehaene – The Number Sense –
Steven Pinker, linguista canadense e professor do MIT, bastante controvertido,
em seu último livro “The Blank Slate”
26
Não nos esqueçamos, como lembrança, que há muitos anos atrás
pessoas provavam que era a alma a responsável pelo movimento físico
humano – o erguer de um braço, por exemplo – e não se discutia muito a
respeito.
Descartes mesmo dizia que as partículas finas do sangue viravam algo
como ‘espírito animal’ e faziam funcionar o corpo.
Dentro do tema e depois de tanta falação sobre limitantes aspectos
físicos envolvidos, certamente pessoas de fé podem querer trazer à colação,
conceitos como alma, espírito, outra forma de inteligência, inteligência
espiritual etc. mas em nada se alterará o que ficou dito, ou seja, o propósito
das palavras anteriormente proferidas não se modifica com a adesão ou não
de outras formas etéreas de inteligência.
Podemos, até, forçar um desafio: aceita a indiscutível criatividade do
homem, pode se lhe colocar um repto: há cores na natureza e são
belíssimas, mas há outras? Pode haver outras? Pode o homem criativo
inventar, portanto não a partir da mistura das já existentes, outra ou outras
completamente diferentes? Pode o homem play God? Há querer, há
criatividade que “compreende” o desafio: falta aparato físico (outros dirão
que faltam cores), falta potência. A inteligência espiritual, o que quer que
isto signifique, está limitada pelo físico. A natureza, ela mesmo, está
limitada pela lei universal que, no dizer de Heráclito, é a lei de um só. Daí a
dúvida de Einstein que queria angustiadamente saber se Deus tinha tido
alternativas.
A Neurofisiologia, a Neuroanatomia e a Psiconeurologia vieram
autarquicamente estudar a matéria e surgem agora as primeiras
conclusões.13
Uma delas afeta o conceito de Razão. A Razão, em si, não valora.
“Sentimos” isto e aí está o motivo, por defesa, por passadismo de alguns
quererem apregoar que as decisões, que as interpretações, no nosso campo
jurídico, são isentas (ou podem ser isentas), são neutras, são imparciais e
amplamente desconectadas de aspectos não científicos. Alguns chegam
mesmo a exaltar como são técnicas as decisões e as interpretações.
13
À lista anterior, mais expandida, os seguintes acréscimos:
Aaron Lynch – Thought Contagiom
Antonio Damasio – Unity of Knowledge
C.S. Lewis – Studies in Words
David Perkins – The Eureka Effect
David Ruelle – Acaso e Caos
Karl R. Popper e John C. Eccles – O Eu e Seu Cérebro
Oscar João Abdounur – Matemática e Música
Steven Pinker – How the Mind Works
Steven Pinker – The Language Instinct
Steven Pinker – Words and Rules
27
Para alguns, como pudemos observar, é insuportável a idéia de que
quem decide é o Sentimento. A defesa da Razão, por parte dessas pessoas,
é fulminante, zangada e inevitável.
O radical indogermânico men (pensar) é o mesmo que deu em latim
mens (mente) e mensurare (medir): pensar guarda o sentido de medir,
pesar, ponderar, tomar o peso: a Razão estabelece o quanto mede, ela
mensura, toma a medida; o Sentimento estabelece o quanto vale. Valor é o
homem que põe nas coisas. É por isso que Nietzsche chama o homem de
estimador: “ estimar é criar: ouvi isto ó criadores! ...Ouvi isto ó criadores!
Mutação dos valores – essa é a mutação daqueles que criam. Sempre
aniquila, quem quer ser um criador” 14.
E é assim que ocorre: Razão e Sentimento têm funções diferentes nas
atitudes.
Diz-nos Damásio 15 “limito-me a sugerir que certos aspectos do
processo da emoção e do sentimento são indispensáveis para a
racionalidade16. No que têm de melhor, os sentimentos encaminham-nos na
direção correta, levam-nos para o lugar apropriado do espaço de tomada de
decisão onde podemos tirar partido dos instrumentos da lógica. Somos
confrontados com a incerteza quando temos de fazer um juízo moral,
decidir o rumo de uma relação pessoal, escolher meios que impeçam a
nossa pobreza na velhice ou planejar a vida que se nos apresenta pela
frente. As emoções e os sentimentos, juntamente com a oculta maquinaria
fisiológica que lhe está subjacente, auxiliam-nos na assustadora tarefa de
fazer previsões relativamente a um futuro incerto e planejar as nossas ações
com essas previsões”.
Assim, e segundo Damásio (acompanhado de tantos outros) julga-se por
Sentimento, o que tem aspectos positivos e tremendamente negativos. Há
que diferenciar para o pleno e proveitoso aproveitamento da faculdade.
Primeiro que é enorme a influência – o que pode atrapalhar ou ajudar de uns sentimentos sobre outros: os famosos 7 sentimentos: Luxúria,
Preguiça, Gula, Ira, Inveja, Cobiça, Soberba atuam com vigor. Outros
sentimentos: o Amor, a Responsabilidade, a Vingança, a Lealdade, a
Amizade, a Justiça, a Liberdade, a Segurança, a Nacionalidade, o Poder, a
Ordem, a Verdade, o Dinheiro, a Auto Estima, as Cores, os Cheiros, a
Temperatura, e tantos outros, estão aí a influenciar a tomada de decisão.
Será na verbalização desses Sentimentos, ou seja, na sua exteriorização,
na comunicação desses Sentimentos a nós mesmos e aos outros, nos
Sentimentos como meio de comunicação, como será dito no penúltimo
14
(Assim falava Zaratustra I, “Dois mil e um alvos”)
2000 pág 13
16
termo que ele usa para denotar a qualidade do pensamento e do comportamento que resulta da
adaptação da razão a um contexto pessoal e social e razão para denotar a capacidade do pensar e fazer
inferências de um modo ordenado e lógico
15
28
capítulo, que pode estar a solução para os problemas gerados pela
imprevisibilidade.17
Os Sentimentos servem-nos como orientadores, como guias, como
mentores internos e são comunicados às outras pessoas, por diversos meios,
por diversos sinais, para que essas pessoas também se orientem pela
experiência e reflexão alheia. São com os Sentimentos, nossa defesa, que
tecemos um escudo contra o que nos provoca dor; são com eles que nos
harmonizamos com a vida e buscamos o prazer. São com eles que filtramos
a realidade como pensamos que ela seja e nos adequamos, aceitando alguns
aspectos, rejeitando outros. São com os Sentimentos que planejamos nossas
ações.
Mas há mais: o fato de se julgar por Sentimento, e não pela Razão,
favorece a eclosão do preconceito. O Sentimento é presa fácil do
preconceito que adere a ele como parasita irredutível: a sentença vem
embalada previamente em edulcorada apresentação.
Além e como terceira observação, eclode no seu fulgor máximo a
ideologia (tema ao qual damos tanta importância que o destacamos em
capítulo próprio).
Há que se cuidar muito. A bonita embalagem pode entregar produto
diferente do que se pensa estar recebendo.
Quando o tema é Moral, Direito, Justiça e assemelhados, que a temática
favorece muito, os decadentes, os ressentidos, os dissimulados, os
embusteiros, plenos de preconceitos, sempre distorcem a conclusão e
obnubilam o resultado final. O uso cínico da Moral é fato bem conhecido
das mentes esclarecidas. A indignação moral pode ser um discurso bem
preparado. A justa indignação moral, então, brandida corrosivamente,
dificilmente é o que parece ser (e em que ponto se localiza, cabe indagar.
No meio termo entre a inveja e o despeito, diz esclarecedoramente
Aristóteles18): há que pesquisar qual a intenção, qual o conteúdo de que o
discurso é apenas o envoltório moral, qual o móvel afetivo, qual a sede,
qual a fome de quem profere palavras que escondem palavras: com a Bíblia
no peito são recitadas de cor as palavras do Livro da Sabedoria 5, 16-20:
“Mas os justos viverão para sempre e a sua recompensa está no Senhor e o
pensamento deles no Altíssimo. Portanto receberão da mão do Senhor um
reino de honra e um diadema de formosura: porque os protegerá com a sua
destra e com seu santo braço os defenderá. O seu zelo se vestirá de todas as
suas armas: e Ele armará as suas criaturas para se vingar de seus inimigos.
17
Roosevelt, astuto, famoso no manejo dos sentimentos, dizia que não deixava sua mão direita saber
o que pensava a esquerda!
18
Et.N., II, 7, 1108b, 35
29
Tomará por couraça a justiça e por capacete a inteireza do seu juízo:
embraçará a equidade como escudo inexpugnável”.19
Resta saber o que está por detrás do declamador contrito. O falso
sentimento bem esgrimido por estelionatários do verbo, costuma enganar
os crédulos.
Há outro aspecto, muito importante, e também raramente comentado: o
da íntima convicção ou interna convicção. Não é a mesma coisa que
preconceito. Ela é a Perspicácia aderindo ao Sentimento. Ela existe e
conecta-se aos sentimentos. Pode ser sobre fatos genéricos, que já estão
prejulgados (pré-conhecidos) pelo agente (assim tudo que cai neste tema
tende a ser verificado e a ter uma solução igual e que já estava préformada) ou vir a ser formada lentamente no decorrer do processo de
conhecimento de um fato (mas com íntima conexão com o modo como
vemos casos desta natureza). Inexpugnável esta maneira de ser. Inevitável.
Há um perigo (paradoxal), aliás: quanto mais estudo e curiosidade
investigativa mais o agente sabe, mais descansa, mais passa a ter conceitos
pré-formados. Ou pré-conceitos. O prejuízo para a tomada de decisão certa
é impressionante. A rotina do já sabido torna cego o observador.
O nobre, o aristocrata, descritos por Homero na Ilíada, não seriam
capazes de discursar preconceituosamente: educados para proferir palavras
educadas e realizar ações heróicas seriam incompetentes para falar com
afetação e jamais expressariam o que não viesse diretamente do seu nobre
sentimento.
Como podemos classificar este sentimento para ter dele maior visão?
Antes, porém uma explicação importante e que neste momento já pode ser
dada: esclarecer a expressão “Atores do Direito”: tentaremos em todo o
decorrer do trabalho demonstrar que enquanto sentimento o Direito não é
operado. Que não há, portanto, Operadores do Direito. Tentaremos mostrar
que o Direito é vivido, que ele está no íntimo do Ser de todas as pessoas
envolvidas e que estas pessoas atuam de maneira a exibir a realidade que
perceberam e que, portanto, vivenciam. Daí serem Atores do Direito.
*
1.4 – classificação sumária dos sentimentos
Os sentimentos em nossa classificação são ou 1-pueris (1.1-arbitrários:
eu quero ou 1.2-ressentidos: há o mal e eu sou vítima dele) ou 2-maduros
19
As citações bíblicas serão sempre da Bíblia Sagrada, 24 a edição, editora Ave Maria Ltda, 1997 ou
Bíblia Sagrada, edição ecumênica, Enciclopédia Britânica.
30
(refinados) ou são 3-escusos e escondem disfarçadamente em embalagem
edulcorada a verdadeira intenção.
Independentemente de sua classificação todos os sentimentos decidem?
*
1.5 – Coração e Mente? Razão e Sentimento?
Pelo bem ou pelo mal, não há como fugir: com os sentimentos
decidimos. A escolha entre alternativas, a eleição de uma entre diferentes
propostas não se dá pela Razão porque ela não está aparelhada para valorar
e pinçar. A Razão não pode escolher entre azul e amarelo, entre dó, ré, mi,
fá e sol, entre um vinho tinto de Bordeaux e um da Bourgogne, entre uma
manhã de sol na praia e na montanha, entre belos corpos diferentes entre si,
entre socialismo e liberalismo, lealdade e deslealdade, justo e injusto.
A Razão verifica a verdade ou a falsidade das proposições. Ela não julga
(nem justifica) o Sentimento: ela o esclarece. Ilumina-o por partes como
um iluminador de uma peça de teatro ilumina as partes do cenário que
servem à peça naquele instante. Se ela julgasse, o Sentimento serviria,
então, como Instância Superior o que também não é o caso. A Razão separa
as alternativas: ela identifica, classifica, analisa, parte em fatias, expõe,
desnuda, coloca em ordem lógica, afirma falso ou verdadeiro, dá a
verdadeira medida, esclarece, enfim. Aí o Sentimento saberá por quais
alternativas passar, porque preferir uma à outra, o que foi feito, qual o
esforço. Este é o trabalho da Razão, tirar da vala comum as alternativas e
exibi-las em conjunto na prateleira onde podem ser mais bem observadas.
A Razão estabelece a verdade ou a falsidade de uma afirmação: chove lá
fora! Ponho meu braço fora da janela – ou vou para fora de casa – e se me
molho, chove lá fora; se não me molho, não chove lá fora. Simples assim!
Muito importante a absorção destes conceitos quando formos analisar a
verdade ou falsidade das proposições que se referem a fatos exibidos em
um processo judicial e a função dos sentimentos na decisão exarada por
sentença no mesmo processo.
A decisão tem alguma importância no viver humano?
*
1.6 – sempre se escolhe um quid em detrimento de outro?
Decide, sempre, o homem; decidir é necessário, vital. E sempre tem que
preferir uma coisa à outra. Mais, muito mais do que se dá conta. Cada ato,
cada passo. Se não o fizer não conseguirá levantar-se da cama de manhã.
Sobre cousas mais triviais, de seu imediato interesse, e sobre assuntos mais
gerais de interesse do universo que pretende dominar; valora, o homem:
31
Heráclito de Éfeso já apregoava a diferença: “para o deus são belas todas as
coisas e boas e justas, mas homens umas tomam (como) injustas, outras
(como) justas”20. O homem sempre julga. São os sentimentos humanos que
nos fazem ver binariamente e a toda hora: bom e mau, justo e injusto,
doloroso e prazeroso. O deus de Heráclito não percebe assim.
Eles, os sentimentos, formam-se com a pessoa e, depois, com sua
circunstância; cada pessoa vem com uma história genética diferente, com
sua organização e constituição distintas. Os cérebros mesmo por estarem
interligados por milhões de conexões possibilitam a cada um ter sua própria
conexão, sua própria inteligência, sua própria sensação de espaço e de
tempo e seu próprio funcionamento motor. Eis uma diferença palpável ente
os seres humanos: a rede, a teia, a capilaridade que serve a um é diferente
da que serve a outro. Tal constatação é uma das pistas do porque há tanta
falha nas comunicações humanas.
Cabe aqui introduzir um item da maior importância porque esclarecedor,
porque paradigmático: dentre outros fatores, os cheiros determinam nossas
simpatias e antipatias iniciais! Gostamos, ou não, de alguém baseados
única, exclusiva e inicialmente no cheiro que exala da pessoa que recém
conhecemos! Histórias de amor candente nascem assim. Se gostarmos do
cheiro, pronto, gostamos da pessoa; se repudiarmos seu cheiro, lá se vai um
relacionamento. Estão aí os feromônios a nos atrair. Sentimos, além, cheiro
de medo, hostilidade, avareza, hipocrisia, falsidade, bondade, felicidade,
candura... E estamos aparelhados para sentir e interpretar esses cheiros.
Sem regra geral: um cheiro que provoca aversão em um, provoca afinidade
em outro! Algumas espécies também estão aparelhadas para tal e até mais
do que nós humanos. Quando temos medo de cães, por exemplo, somos
atacados porque o cão sente cheiro de medo, do nosso medo e isso o faz
iniciar o ataque.
Logo na base já aparece uma diferença: o homem sente menos os cheiros
que a mulher; o homem tem menos habilidade, menos nitidez, mas quando
memoriza guarda bastante bem. A mulher tem muito melhor olfato que o
homem; qualquer mulher é melhor nesta arte que um homem ótimo.
Ultrapassada a digressão, podemos entender porque muitas frases
conclusivas começam, por exemplo, com ‘sinto o cheiro do bom direito’.
Ou: “ele tem faro para negócios”.
Há estudos sobre a influência das cores também a impulsionar nossos
sentimentos de calma, agressividade, ação guerreira etc.
E não é necessário abordar os estímulos sonoros que todos reconhecem
nele sua importância.
Inúmeros, assim, os combustíveis. Os mais variados e das mais diversas
origens.
20
102 pág 89 pré-socráticos 1978
32
Podemos arbitrariamente criar duas histórias, semelhantes entre si mas
diferentes no final e que servem para ilustrar o que queremos dizer:
A- imaginemos um menino de 6 anos que está passando férias na fazenda
dos avós; sobe numa jabuticabeira e se farta de chupar jabuticaba no pé;
chega a hora do almoço e sua avó o chama; ele desce da árvore, dá a mão
para a avó e se dirige para a sede para fazer a sua refeição caminhando
tranqüilo e sentindo o cheiro do forno a lenha: o sentimento desse
rapazinho em relação ao cheiro (e à cor) da jabuticaba será sempre
prazeroso, calmo, gostoso, seguro, tranqüilo, afetuoso, confortável.
B- imaginemos outro menino da mesma idade que faz a mesma coisa, mas
na hora do almoço vem sua avó e ralha com ele porque ele sujou a camisa
com a jabuticaba, ele se atrapalha, cai da árvore e quebra o braço: o
sentimento desse rapazinho em relação ao cheiro (e à cor) da jabuticaba
será sempre doloroso, tenso, intranqüilo, desconfortável e ele tenderá a
rejeitar tudo o que se referir a este cheiro e a esta cor.
Assim, repetimos, escolhemos as trilhas que trilharemos sempre presos aos
nossos sentimentos, eles nos fazendo tomar estas decisões e não outras.
Mas, como dizia Hume, nada pode ser mais real para nós e manifestar-se de
maneira mais contundente que os nossos próprios sentimentos de prazer e
desconforto; e, se estes sentimentos tenderem à virtude e exibirem repulsa
à maldade, nada mais é necessário para a regulação e controle da nossa
conduta e comportamento. Grandes criminosos não sentem a ação que
perpetram nem suas consequências. São insensíveis, no dizer geral.
Isto posto, serão confiáveis os sentimentos? Servirão como guia, como
norte para a humanidade?
O sentimento humano reverberará algum valor divino?
*
1.7 – Sentimento e Valor. Sede física.
Não acreditamos em conceitos pétreos de Valor e distinguimos Valor do
ato de Valorar: o Valor está dentro de nós e é valorado enquanto Valor
Próprio (valorar já é julgar um Valor) e sentido diferentemente por cada
um, vivido e vivenciado diferentemente por cada um. Não nos parece haver
um exército só, constituído por toda a humanidade, como formigas,
marchando em formação para um único destino atrás de um único Valor!
Ao contrário, percebemos bem que cada um busca o seu caminho
impulsionado pelos seus próprios Valores.
A consciência se forma pela memória, pelo sentimento e pela razão. Os
neurofisiólogos concordam que a primeira impressão se dá no lóbulo
frontal, sede da decisão e do sentimento, e só depois é que a impressão vai
para o pensamento.
33
O Sentimento funciona como se fosse um filme que passa cenas e
enredos pleno de movimento e de cheiros e de sons e de cores e de caras
dos envolvidos com julgamento bom/mau, prazeroso/doloroso,
justo/injusto, útil/inútil, necessário/desnecessário, alegre/triste etc.
A Razão faz diferente: ela passa sucessivamente retratos parados de
forma fria, analítica, decomposta, classificada etc.
O conjunto de todas as imagens mentais, perceptivas e sensoriais
presentes em nosso cérebro tem um caráter inequivocamente
idiossincrático e individual; toda biografia se apresenta justaposta à
biografia dos que ligaram sua vida à do biografado. A natureza herdada e a
natureza adquirida mesclam-se e constituem a pessoa ela mesma.
Nos dias de hoje já é possível para os pesquisadores verem como os
sentimentos exibem-se no cérebro.
Dizia Damásio no seu livro Descarte´s error21: “o levantamento anterior das
condições neurológicas em que limitações de raciocínio e tomada de
decisão e de emoções e sentimentos ocorrem revela o seguinte:
Primeiro, existe uma região do cérebro humano, constituída pelos córtices
pré-frontais ventromedianos, cuja danificação compromete de maneira
consistente, de uma forma tão depurada quanto é provável poder encontrarse, tanto o raciocínio e tomada de decisão como as emoções e sentimentos,
em especial no domínio pessoal e social. Poder-se-ia dizer,
metaforicamente, que a razão e a emoção ‘se cruzam’ nos córtices préfrontais ventromedianos e também na amígdala;
Segundo, existe uma região do cérebro humano, o complexo de córtices
somatossensoriais no hemisfério direito, cuja danificação compromete
também o raciocínio e tomada de decisão e as emoções e sentimentos e,
adicionalmente, destrói os processos de sinalização básica do corpo;
Terceiro, existem regiões localizadas nos córtices pré-frontais para além do
setor ventromediano cuja danificação compromete também o raciocínio e a
tomada de decisões, mas segundo um padrão diferente: ou a deficiência é
muito mais avassaladora, comprometendo operações intelectuais sobre
todos os domínios, ou é mais seletiva, comprometendo mais as operações
sobre palavras, números, objetos ou o espaço do que as operações no
domínio pessoal e social.
Em suma, parece existir um conjunto de sistemas no cérebro humano
consistentemente dedicados ao processo de pensamento orientado para um
determinado fim, ao qual chamamos raciocínio e à seleção de uma resposta
a que chamamos tomada de decisão, com uma ênfase especial no domínio
pessoal e social. Esse mesmo conjunto de sistemas está também envolvido
21
editado originalmente em 1994 – ou seja, trata-se de uma observação publicada já em 1994, há algum
tempo pois, refletindo sobre anatomia e função
34
nas emoções e nos sentimentos e dedica-se em parte ao processamento dos
sinais do corpo”.22
Arremata23 “a evidência relativa a seres humanos discutida nesta seção
sugere uma ligação íntima entre um conjunto de regiões cerebrais e os
processos de raciocínio e de tomada de decisão. Os estudos sobre animais
revelaram algumas ligações similares envolvendo algumas regiões
similares. Pela combinação dos dados surgidos de ambos os tipos de
estudos, em seres humanos e animais, podemos agora alinhar alguns fatos
acerca dos papéis desempenhados pelos sistemas neurais que identificamos.
Primeiro, esses sistemas encontram-se certamente envolvidos nos
processos da razão no sentido lato do termo De forma mais específica,
encontram-se envolvidos na planificação e na decisão.
Segundo, um subconjunto desses sistemas está associado aos
comportamentos de planejamento e de decisão que poderíamos incluir na
rubrica de “pessoais e sociais”. Eles estão relacionados com o aspecto da
razão habitualmente designado por racionalidade (vide nota 16).
Terceiro, os sistemas que identificamos desempenham um papel importante
no processamento das emoções.
Quarto, os sistemas são necessários para se poder reter na mente, por um
período de tempo relativamente longo, a imagem de um objeto relevante
que não se encontra mais presente”.
Há, mais recentemente, uma nova pesquisa24 fornecendo a primeira
evidência de neuro-imagem mostrando que o lóbulo frontal do cérebro
desempenha um papel crítico na tomada de decisões, no planejamento e na
escolha de ações.
Recentes clamores 25 dão como certo que há no cérebro local determinado e
células responsáveis pela geração da consciência e do senso-de-si dos
indivíduos.
Cada vez mais pontos específicos do cérebro são indicados como
responsáveis por isto ou aquilo. Nada definitivo, ainda: mas que há um
vento soprando nessa direção, há!
Retornando ao tema, há inúmeros outros livros, artigos e depoimentos de
diversos autores expondo suas teses a respeito de ser com o sentimento que
decidimos e que ele, o sentimento, se processa na parte frontal do cérebro.
Vale dizer que uma pessoa 26 que tiver afundamento do lóbulo frontal e
mantiver intactas suas outras funções cerebrais, inclusive as responsáveis
22
2000 pág 95
ibidem, pág 104
24
publicada em 4 de novembro de 2002 na Nature Neuroscience com trabalho dos investigadores da
Centre for Neuroscience Studies at Queen's University e do Centre for Brain and Mind da University of
Western Ontario
25
Francis Crick, Prêmio Nobel, um dos dois descobridores do DNA e Christof Koch na Nature Science de
fevereiro/março de 2003
26
v.g., caso Phineas P. Gage, ocorrido em 1848, descrito por Dr. J. M. Harlow em 1868, só para citar um
de inúmeros casos descritos, mas o mais famoso por ser o primeiro
23
35
pelo pensamento e conseqüentemente por grande parte da assim chamada
até agora Razão, não poderá entrar numa sanduicheria e ordenar um
simples sanduíche. Desaparelhou-se. Não pode decidir nada.
É muito divertida a descrição que faz Damásio 27 da resposta de um
cliente seu com problemas decorrentes de lesões pré frontais que indagado
sobre qual data dentre duas preferia para a próxima visita iniciou e
prosseguiu durante meia hora um profundo, racional e detalhado exame
das duas oportunidades sem conseguir escolher uma delas. Cansado de
tanto esperar, o médico, completamente fora de si e exasperado, informou
friamente qual seria a hora e o dia da próxima consulta com o que
concordou imediatamente o paciente enquanto se levantava da cadeira de
onde proferira tamanha conferência.
Nietzsche advogava a idéia de que o intelecto humano surgiu e se
desenvolveu enquanto meio para a sobrevivência 28. O filósofo, há 120 anos
atrás, já sabia da relação do corpo com a mente e considerava, ao contrário
de Descartes, tudo como uma unidade. Vinculava o conhecimento à
fisiologia e à história e não tinha dúvida que a fisiologia esclarecia como o
conhecimento era possível e como se dava. Dizia que a constituição
biológica do homem dava o sentido do conhecimento porque o explicava e
que a atividade avaliadora do homem dava sentido ao conhecimento porque
lhe atribuía valor. Concebe a partir daí a sua ‘vontade de potência’ que é a
vida propriamente. Mas entende que não está só no cérebro a produção de
‘pensamento, sentimento e vontade’ pois não só o querer, mas também o
sentir e o pensar estariam disseminados pelo organismo todo (células,
tecidos e órgãos) e a relação entre eles seria de tal ordem que no querer já
estariam embutidos o sentir e o pensar. “Dominar é suportar o contrapeso
da força mais fraca; é, pois, uma espécie de continuação da luta. Obedecer
é também uma luta, desde que reste força capaz de resistir”.29
A vontade de potência está nos numerosos seres vivos e cada um quer
prevalecer na sua relação com os demais. A consciência – a última e mais
tardia evolução da vida orgânica – surge da relação do organismo com o
mundo exterior, relação que implica ações e reações de parte a parte.
No bojo desta dinâmica aparece como um ‘meio de comunicabilidade’,
‘um órgão de direção’. Dizia que consciência em geral só se desenvolve
sob a pressão da necessidade de comunicação; dizia que o indivíduo mais
fraco, aquele que se acredita o mais ameaçado, é compelido a pedir ajuda
aos semelhantes a fim de conservar a própria vida; dizia que para tornar o
seu pedido inteligível este indivíduo necessita tanto da linguagem quanto
da consciência e que precisava lançar mão de signos para comunicar-se.
Por tudo isso é que Foucault falava que, em decorrência da analítica da
27
2000 pág 226
Scarlett, 2000 pág 135 e ss
29
fragmento póstumo 26[276] do verão/outono de 1884
28
36
finitude, Nietzsche e Freud passaram a vincular o conhecimento à fisiologia
e à história.
As observações referidas acima devem bastar para que se acredite que
algo de novo (não tão novo assim) surgiu num campo também novo. Como
o escopo deste trabalho é jurídico fica aos interessados o desafio de ampliar
sua leitura e sua pesquisa.
A dúvida “serão confiáveis os sentimentos” permanece, ainda, depois
do ensinamento de Nietzsche?
*
1.8 – a luta pela sobrevivência; a diferença da luta entre homem e
mulher; a independência.
Desde Darwin que se sabe que a seleção natural das espécies deriva da
luta dos organismos pela sobrevivência.
Sabe-se também que o corpo humano, ou melhor, o organismo humano,
está pré-determinado para atender tudo o que for necessário para o homem
sobreviver nesta sua luta diária e lhe dá ordens que não pode desprezar 30 O
organismo assim tem um jeito que não pode ser ignorado nem desprezado
que estará se colocando em risco a sobrevivência da espécie e de cada
indivíduo de per si. O amplo entendimento de quais são estas ordens e de
como, em primeiro lugar, se processam os comandos dados e as ordens
atendidas, dirá muito a respeito da vida ela mesma e, conseqüentemente, da
nossa sobrevivência neste planeta.
Estas observações, entretanto, todas elas fundadas em fatos recentes,
trazem para o campo do Direito uma nova concepção.
Como são mesmo muito novas podem sofrer uma que outra alteração e,
certamente, muitas, muitas mesmo, adições. Mas comprovou-se o fato de
que já se tinha tanta certeza através de alguns Psicólogos e da colocação de
alguns Filósofos: as decisões são individuais e motivadas por fatores
individuais através de sentimentos individuais que se processam numa área
determinada do cérebro humano.
As sentenças judiciais sempre mereceram respeito porque eram
consideradas pelo vulgo como expressão exata da única verdade que surgia
e era obtida através do processo judicial. Os juizes e juizas recitavam a
verdade pétrea e faziam uma só justiça, aquela esculpida em pedra. E o
vulgo acreditava. A doutrina, principalmente européia, não fazia muito
esforço para desmentir este mito.
Os juizes e as juizas como integrantes da raça humana e por estarem
aparelhados fisiologicamente para decidir de uma maneira humana, vê-se
agora, não podem proceder de outro jeito por total impossibilidade.
30
(o organismo tem algumas razões que a razão tem de utilizar – Damásio 2000 pág234).
37
Está, deste modo, justificada a imprevisibilidade e desfeito o mito da
certeza jurídica e a farsa da segurança jurídica. Não são horizontes
possíveis descortinados pela natureza humana, ou seja, como cada ser
humano tem um ponto de vista próprio (bem como uma inteligência
própria, sentimentos próprios etc) de cada cabeça emanará mesmo uma
sentença. No caminhar do capítulo 7 esta matéria será mais bem dissecada.
É possível, entretanto, adiantar a colocação: decisões tomadas por
Juizes homens poderão ser bem diferentes, na base, de decisões tomadas
por Juízas mulheres. Talvez até o resultado final seja o mesmo, mas
certamente diferente será o tratamento do caso. A forma e a linguagem
jurídica – e o medo de que não se pareçam - tenderão a igualar a
apresentação das sentenças; mas claramente, no seu bojo, a partir do seu
ponto de início, não são iguais as sentenças proferidas por homem e
mulher! A da mulher brasileira é emotivo-intuitivo-sentimental-racional; a
do homem brasileiro é racional-sentimental. E será paradoxo? A mulher é,
quando resolve, mais prática, mais imediata, mais chão e escolhe mais
rápido; o homem mais dialético, mais analítico, mais prudente, mais
altaneiro e sobranceiro, demora mais para decidir e voa mais. Além de
outras diferenças, é mera questão física: a mulher parece usar ao mesmo
tempo os dois hemisférios do cérebro, o que não é possível para o homem,
que usa um ou outro, sempre alternativamente.31
Se a formação de nosso cérebro é esta e não há como fugir, isto quer
dizer que o normal é a imprevisibilidade?
Adiantemos um pouco o que se explicará melhor no capítulo 7 deste
trabalho: lembremo-nos que, em Latim, certo, enquanto advérbio quer
dizer: na verdade, com certeza, realmente, sem dúvida, de maneira
irrevogável; que certo, as, are, avi, atum quer dizer procurar obter uma
decisão, debater, demandar; que certus, a , um quer dizer resolvido,
decidido, determinado, fixo, preciso, constante, seguro, de confiança.
Donde ‘certo’ quererá dizer algo como “depois de debatida uma questão é,
sem dúvida, tomada uma decisão, que está determinada e é de confiança”.
*
1.9 – a decisão pela forma silogística
Com o conhecimento mais amplo do binômio Razão/Sentimento fica,
não no âmbito estrito da Lógica, mas na prática e, deste modo,
comprometido
o
formular
clássico
aristotélico
de
decidir/concluir/sentenciar pelas leis da Lógica Formal, de maneira
31
Voltando a Jung: caso a mulher não recepcione bem seu animus, ela se tornará dura, detalhista , cruel,
personalista, tirânica, usuária de força e poder, até de violência; o homem caso não se relacione bem com
sua anima agirá da mesma forma, mas, diga-se com menos intensidade que sua parceira, talvez pela
necessidade de a mulher afirmar-se sem deixar margem à dúvida em universo ainda masculino.
38
Demonstrativa através do Silogismo: Premissa Maior (A Lei), Premissa
Menor (o caso, o fato), Conclusão (na forma de uma sentença).
A fórmula aristotélica exige a objetividade para atingimento do
verdadeiro/falso.
Sobrevindo a subjetividade surgiu outra figura, a do Entinema que
ocorre quando se põe a Premissa Maior e ela flutua ficando à deriva por
instantes e sem definição exata por causa da discussão interna que se trava
dentro do sujeito em busca da interpretação daquilo que será, afinal,
aplicado ao caso ou ao fato, que constitui a Premissa Menor, que também
depende – e tanto - de interpretação, passando o verbo pela Argumentação
Retórica, o que produz uma sentença não mais silogística mas retórica e
persuasivamente produzida, esculpida de acordo com o objetivo final – a
sentença – que se queria sentimentalmente atingir.
Remarque-se que nossos sentimentos são formados pela nossa
competência física, pela herança genética e pelo ambiente e circunstância
em que vivemos: fossemos anfíbios, aquáticos ou aéreos nossa percepção
seria diferente e, conseqüentemente, nossa visão das coisas, bem como
nossa retórica, e daí o mundo como o vemos. A realidade seria outra.
O uso exacerbado, desconexo e descontrolado do Sentimento gerou uma
enorme atribulação na busca de um Fim para o Direito. Cada Sentimento
pedia um Fim diferente e conforme o Sentimento de quem elegia. A própria
Filosofia do Direito não ficou, nem poderia ficar, imune, havendo inúmeras
teorias muito bem urdidas a respeito destes assuntos.
Uma delas é de Hans Kelsen, que foi Juiz; com sua obra famosa (que
teve a primeira edição em maio de 1934 e sua versão final em 1960), a
Teoria Pura do Direito32 pretende “uma pura teoria do Direito, o que
significa que ela se propõe garantir um conhecimento apenas dirigido ao
Direito e excluir deste conhecimento tudo quanto não pertença ao seu
objeto, tudo quanto não se possa, rigorosamente, determinar como Direito,
querendo com isto dizer que ela pretende libertar a ciência jurídica de
todos os elementos que lhe são estranhos, sendo esse seu princípio
metodológico fundamental”.
Kelsen faz ciência jurídica e não política do Direito. E com isso anima
os espíritos científicos.
Pois bem: no seu capítulo final, que trata exatamente de uma teoria da
interpretação das normas (a interpretação é, portanto, uma operação
mental que acompanha o processo da aplicação do Direito no seu
progredir de um escalão superior para um escalão inferior), ou seja,
quando parece que vai definir regras objetivas que apresentem uma teoria
pura de interpretação,33 naquela exata hora em que o Direito é aplicado por
um órgão jurídico que necessita fixar o sentido das normas que vai
32
33
2000, pág 1
as citações serão longas mas, a nosso ver, necessárias para melhor compreensão.
39
aplicar, o que faz através da interpretação destas normas (na aplicação do
Direito por um órgão jurídico, a interpretação cognoscitiva – obtida por
uma operação de conhecimento – do Direito a aplicar combina-se com um
ato de vontade em que o órgão aplicador do Direito efetua uma escolha
entre as possibilidades reveladas através daquela mesma interpretação
cognoscitiva), (nosso grifo) surpreende, e, num assomo de sinceridade,
afirma que “a interpretação jurídico-científica não pode fazer outra coisa
senão estabelecer as possíveis significações de uma norma jurídica e tem
de evitar, com o máximo cuidado, a ficção de que uma norma jurídica
apenas permite, sempre e em todos os casos, uma só interpretação: a
interpretação “correta”.
Isto é uma ficção de que se serve a
jurisprudência tradicional para consolidar o ideal da segurança jurídica.
Em vista da plurissignificação da maioria das normas jurídicas, este ideal
somente é realizável aproximativamente”.
Afirma, ainda, surpreendendo igualmente que “não se pretende negar
que esta ficção da univocidade das normas jurídicas, vista de uma certa
posição política, pode ter grandes vantagens; mas nenhuma vantagem
política pode justificar que se faça uso desta ficção numa exposição
científica do Direito positivo, proclamando-se como única correta, de um
ponto de vista científico objetivo, uma interpretação que, de um ponto de
vista político subjetivo, é mais desejável do que uma outra, igualmente
possível do ponto de vista lógico. Neste caso, com efeito, apresenta-se
falsamente como uma verdade científica aquilo que é tão-somente um juízo
de valor político”.
“A teoria usual da interpretação quer fazer crer que a lei, aplicada ao
caso concreto, poderia fornecer, em todas as hipóteses, apenas uma única
solução correta (ajustada), e que a “justeza” (correção) jurídico-positiva
desta decisão é fundada na própria lei. Configura o processo desta
interpretação como se se tratasse tão-somente de um ato intelectual de
clareza e de compreensão, como se o órgão aplicador do Direito apenas
tivesse que por em ação o seu entendimento (razão), mas não a sua
vontade,e, como se, através de uma pura atividade de intelecção, pudesse
realizar-se entre as possibilidades que se apresentam, uma escolha que
correspondesse ao Direito positivo, uma escolha correta (justa) no sentido
do Direito positivo. Todos os métodos de interpretação até ao presente
elaborados conduzem sempre a um resultado apenas possível, nunca a um
resultado que seja o único correto”.
Kelsen do seu jeito de observar a matéria, fulmina o dilema “voluntas
legis” ou “voluntas legislatoris”, embola a argumentação jurídica, a tópica,
a teoria da apreciação de interesses, a dogmática, tudo o mais34 e joga o
problema na seara da vontade (do sentimento diríamos nós, que é o
comborço e o êmulo da vontade, da maneira como pensamos).
34
ibidem, pág 392
40
Vale dizer: a questão após Kelsen, justamente quem pretendia
cientificizar o Direito, dar-lhe regras e leis fixas e imutáveis, nunca ficou
tão aberta, nunca esteve tão aberta.
“Dizer que uma sentença judicial é fundada na lei, não significa, na
verdade, senão que ela se contem dentro da moldura ou quadro que a lei
representa – não significa que ela é a norma individual, mas apenas que é
uma das normas individuais que podem ser produzidas dentro da moldura
da norma geral”.
Kelsen apresenta-nos o seu desafio: como interpretar e bem sentenciar?
Ele mesmo se rende à questão e abandona o tablado. Joga a toalha,
abandona o jogo.
Aliás a mesma toalha que Kelsen joga é a bandeira que triunfante, Alf
Ross levanta: vale aprender o debate. Ross coloca exatamente na
efetividade da lei ou da norma a sua condição de validade, ou seja, aquilo
que é aceito e praticado por todos é efetivo e válido.35
Em Kelsen, a sentença proferida (e a interpretação) é a melhor naquele
instante porque revela quem manifestou mais poder, mais retórica, mais
apego ao senso comum (normas morais, normas de justiça, juízos de valor
corrente, juízos de valor social, ressentimentos camuflados, bom senso,
apego a conceitos vagos como bem comum, progresso, nação, soberania,
interesse coletivo sobre o individual etc), ou seja, se a sentença proferida é
a melhor naquele instante porque dentre as várias soluções possíveis foi –
sem qualquer outro julgamento de valor - a que prevaleceu, isto é que
importa.
Trata-se, dizemos nós, da prevalência de um sentimento sobre outros
por qualquer motivo, inclusive escuso.
Ou seja, dentro de um quadro político uma cabeça erigiu uma sentença
que se afigurou uma dentre várias possíveis. Ou melhor, é através do
sentimento que podemos julgar os valores que agregamos em nossa mente
(qualidade) aos objetos, distinguir dentre eles qual o que elegemos e pinçálo, dando-lhe a aparência de único possível.
Esta possibilidade confrange espíritos jurídicos muito ortodoxos e
afronta o senso comum de que há uma justiça só, uma decisão correta só,
uma razão só, e que só ganha o processo judicial aquele que tem ao seu
lado a verdade, a razão, o certo. Razões quase sempre religiosas. Não era
ao acaso, na idade média, que se entregava a sorte dos contendores em uma
ação? Não haveria erro possível: as ordálias definiam quem estava com a
razão e Deus garantia.
35
linhas adiante, em momento mais conforme, indicamos o debate havido entre os dois gigantes do
Direito.
41
A Bíblia nos treinou e à nossa civilização: 36 e farei juízo com peso, e
justiça com medida: e a saraiva derribará a esperança da mentira: e as
enchentes das águas deixarão alagada a proteção.
Além de religioso poderá o Direito, como quer Kelsen, ser científico?
*
1.10 – a ciência do direito
Além do motivo religioso podemos perceber, também, motivos
racionais que confortam as mentes mais lucubrativas: se há consenso que
Direito é uma ciência ela deve se valer de regras fixas e imutáveis tanto
quanto se valem as outras ciências das leis gerais e descrições que lhe são
imanentes: a água será sempre H2O e deveria ferver a tantos graus em tal
lugar e a qualquer tempo.
Com o Direito deve acontecer o mesmo. E será que acontece?
Diz Marcelo Gleiser37 que uma das funções mais importantes da física é a
busca de leis universais que sejam capazes de descrever fenômenos
naturais observados tanto no dia a dia como no laboratório. Ao
chamarmos essas leis de “universais”, estamos implicitamente supondo
que elas são válidas não só em qualquer parte do Universo, mas também
em qualquer momento de sua história. Essa suposição baseia-se na nossa
crença de que a Natureza, em um nível mais profundo de análise, é de fato
imutável, e que, portanto, as leis que concebemos ou descobrimos para
descrever seu funcionamento são também imutáveis.
O Direito para os que acreditam que ele é ciência deveria ter suas leis
universais também, a exemplo da Física e da Química, por exemplo.
Além, em outras circunstâncias, procurou o homem se consolar a si
mesmo e, gênio criativo, fez surgir como verdade a lenda da certeza
jurídica, da paz, da fé em decisão judicial isenta e sempre preocupada com
o certo, com a Justiça e em dar a cada um o que é seu, e, precaução contra
os inquisidores, fez o homem repetir tantas vezes até virar verdade pétrea a
máxima de que sentença não se discute, cumpre-se: esta ilusão pode
encobrir, sem contestação, outra realidade bem diferente.
A questão tem sido enfrentada com denodo: a Dogmática estriba-se na
teoria de que a interpretação correta é resolvida por quem tem autoridade,
liderança e reputação, e, fazemos notar que nós estamos tomando tais
palavras no seu sentido mais comum 38 . Ora, a solução confirma o
problema.
36
37
Isaías 28,17:
A dança do Universo, 1997, pág 52
38
(bom senso é o conjunto de todos os preconceitos que adquirimos durante nossos primeiros
dezoito anos de vida, dizia com muita verve e graça Einstein, citado por Gleiser, pág 252).
42
É certo que a sentença judicial e a interpretação não são o fruto de uma
técnica perfeita nem emanadas a partir de uma lei geral e incorruptível que
trata magistralmente do assunto sem permitir erro ou falibilidade (se fosse
porque tantos recursos processuais?) e é certo que elas são fruto de um
sentimento de uma pessoa. A solução apenas desloca o problema, de
maneira hábil, reconhecemos, de “apenas uma pessoa” para um conceito
que nos é muito caro, o de “uma pessoa qualificada, com notório saber e
reconhecida como tal”. Ou seja, aquele que tem profundos conhecimentos
científicos sobre a ciência e sobre o objeto da ciência em questão. E sua
pessoa confere status científico ao caso. Tal pessoa pode com franqueza e
inocência recitar39: sigo o caminho da justiça, no meio da senda da
equidade, que não será nunca contestada.
Enorme responsabilidade uma pessoa chamar para si atribuições
comunitárias; se esta responsabilidade pudesse ser assumida isoladamente
o mesmo poderia fazer um juiz que agisse com independência e livre
convencimento, o que contestamos.
Distinguimos, com clareza, ‘chamar para si a responsabilidade’ de
‘influir’.
Uma pista nos vem pelo mito.
O nome hermenêutica vem do deus grego Hermes: aquele que interpreta os
deuses e suas leis para os humanos. Mas não só. Quem vai mais a fundo no
estudo do deus percebe que Hermes, o deus que não se perde na noite nem
no caminho, deus dos pastores, protetor dos rebanhos, companheiro do
homem, possuía um bastão mágico, o caduceu, com que tangia as almas
para a outra vida; era o deus psicopompo, o condutor de almas, almas estas
que não poderiam alcançar a eternidade e a felicidade sem a indicação
segura do deus. Era o mensageiro predileto dos deuses, sobretudo de Zeus,
seu pai. Cotejado por Apolo e instado por Zeus que o pegou em mentira,
Hermes foi obrigado por seu pai a dizer que nunca mais faltaria com a
verdade, com o que concordou, não sem antes acrescentar muito
rapidamente, que não se obrigaria a dizer a verdade... por inteiro. Por causa
do crime de que fora acusado por Apolo - o roubo de seu rebanho – é
também considerado o deus da astúcia, do ardil, da trapaça: é um
verdadeiro trickster, um trapaceiro, um velhaco, companheiro, amigo e
protetor dos comerciantes e dos ladrões. É o senhor dos negócios que se
realizam à noite, pelas caladas. Astuto, inteligente, inventivo, opera, antes,
com a gnose e a magia. É o intérprete da vontade dos deuses, sua maior
tarefa, daí hermenêutica, a arte de interpretar leis (quinto hino órfico: tu,
mensageiro do deus, profeta do logos para os mortais...); mas do nome de
Hermes deriva também hermetismo, que se cristaliza em ensinamento
secreto e hermético, erudito, algo que é de compreensão muito difícil, algo
39
Prov. 8, 20:
43
inteiramente fechado como um vaso que não deixa penetrar o ar, por
exemplo.
Sempre os mitos a nos dar pistas. O que acontecerá com o Direito e a
Justiça se lobos se travestirem de cordeiros e se deles passarem a emanar
decisões e interpretações que lhes interessarem a eles e ao grupo que
representam? A religião foi sempre particularmente preocupada com a
possibilidade 40 , não farás curvar a justiça e não farás acepção de pessoas;
41
não aceitarás presentes, porque os presentes cegam os olhos do sábio e
destroem a causa dos justos; mas o Senhor disse-lhe : não te deixes
impressionar pelo seu belo aspecto nem pela sua alta estatura, porque eu o
rejeitei. O que o homem vê não é o que importa: o homem vê a face, mas o
Senhor olha o coração;42 quem cometer injustiça pagará pelo que fez
injustamente; e não haverá distinção de pessoas.
E nem à toa que, relata o Evangelho, Jesus se inflamou contra os sacerdotes
do templo.
E há, ainda e sempre, a gélida, aterrorizante experiência nazista.
E por isto perguntamos: o Direito terá, afinal, suas leis imutáveis e eternas?
Serão mesmo sacerdotes aqueles que lêem as leis e as interpretam segundo
a vontade dos deuses? Hermes estará aí a cumprir sua função sem
esperteza? A Natureza impacta mesmo o Direito e imprime sua marca
indelével
e
sine
qua
non?
Este é um velho problema que foi desnudado pelos sofistas na época de
Sócrates.
Os pensadores da época não pregavam haver oposição entre nómos e
physis. A natureza tinha suas leis irrevogáveis e válidas em todo o
universo. E havia o imbricamento das leis da physis e da polis: o nómos se
integra na lei do universo que regula indiferentemente a natureza e os seres
humanos pensantes. Pessoas, árvores, bichos, regatos, folhas, tudo está em
comunhão padecendo o mesmo rejubilando-se pelo mesmo motivo, tudo é
physis. O Direito continuava com sua característica místico-mítica. A dyke
se insere no próprio ser do mundo e preside a harmonia do todo, do
cosmos. Obedecia-se nómos porque se acreditava; a crença movia o sujeito.
Nada mudava apenas evoluía.
Os sofistas quebram esta unidade de pensamento. Eles são os primeiros,
inaugurando uma nova Filosofia do Direito, a pensar sobre a lei e sua
validade, sobre a justiça, sobre o direito. Eles não crêem que a apregoada
unidade entre physis e nómos faça qualquer sentido: eles, questionando a
validade das leis, concluíram que o fogo – sim - queimava igualmente na
Pérsia e em Atenas, mas as leis humanas não eram iguais em toda a parte.
40
Deut. 16
I sam 16, 7
42
Col 3, 25
41
44
Quebraram toda uma lógica imensa de raciocínio que era dominante à
época e introduzem a confusão e o relativismo no Direito.
Diferenciam o ser do dever-ser, mas mantem o dever-ser como criação
humana.
As leis humanas, dizem eles, variam de cidade para cidade: enquanto a lei
da natureza, a lei natural do mundo físico é a mesma sempre em qualquer
lugar e submete igualmente a todos, as leis da polis variam e submetem os
que estão nesta polis e não em outra. Um cidadão de uma obedece estas
leis, o de outra obedece outras: a lei é expressão do poder que domina a
cidade, do mais forte ou da classe dominante 43. Kelsen veio dizer isto
muito tempo depois. A convivência social prescrita pelas leis da polis, tão
diferentes entre si, descolam-se das leis ordinárias naturais sempre as
mesmas em qualquer lugar e que a tudo e a todos sempre submete. Dizem
os sofistas que se há obediência e submissão às leis dos homens, ao medo
do castigo deve-se o fato e não a nada mais, o que indica que todos devem
tratar do seu interesse com prejuízo do que preconiza a lei desde que
possam fazê-lo de maneira discreta. É a primeira vez que o mandamento
“nunca serás apanhado” aparece na literatura jurídica.
Hípias, sofrendo com a questão, tentou harmonizar. Afirmando que o legal
é justo, nota uma parecença entre várias leis de cidades diferentes. E atribui
tal convergência à origem na divindade. Angustia-se com a existência de
leis semelhantes sem que os homens das diversas cidades tivessem se
reunido para promulgá-las. Mas distingue “natureza” de “convenção
emanada dos donos do poder”. Considerando, como os sofistas
consideravam, o homem igual a outro homem pela lei da natureza e não
pela lei dos homens, não resiste e fulmina a lei tiranizadora que distorce a
natureza e obriga, muitas vezes, os seres humanos contra a natureza.
Nem Hípias, que tentou, conseguiu escapar do dilema.
Estava instalado o sentimento do jurídico, o sentimento de justiça, que era
inerente ao ser humano e distinto da ordem jurídica objetiva que, antes,
pensava-se, era a que implicava toda a gente em toda a parte. Introduziu-se
novo verbo – ele sempre esteve lá, só não tinha sido nomeado ainda - o do
subjetivo no Direito.
O drama de Antígona, genialmente referido por Sófocles, mostra a
antinomia entre lei dos homens e lei dos deuses e mostra, também, o que é
o Poder nesta relação nada incestuosa entre Direito e Poder.
Os sofistas tinham compromisso com resultado: desde que ganhassem a
discussão, o processo judicial, o que fosse, não se importavam com o grau
de sofisticação maior ou menor, nem com os meios, que viessem a
empregar. Utilizavam os meios suficientes para a vitória. Ajustavam-se ao
cenário e ao momento. Eram práticos. O compromisso era com ganhar (o
43
sobre o tema já dizia Heráclito de Éfeso, pré-socráticos, 1978, 33, pág 82,: Lei (é) também persuadir-se
à vontade de um só e 44, pág 83; - é preciso que lute o povo pela lei, tal como pelas muralhas.
45
processo, a atenção da assembléia...). Valiam-se do que bastava para
atingimento do seu desideratum. E tinham, sim, enorme comprometimento
com a Educação, entendida esta como erudição, conhecimento de artes,
história, política, moral, fraseologia, recursos retóricos e a própria retórica
em si, etc. Tudo, enfim, que contribuísse para o melhor discurso. Eram
grandes informadores, focados no seu alvo: ganhar, distinguir-se.
Já Sócrates, seu contemporâneo, não aceitava tais métodos: o compromisso
não era com resultados, não era com ganhar o que quer que fosse, mas com
o caminho que levava ao atingimento da Ética, da Verdade, da Justiça, não
importasse o quê; para ele nada bastava, nada o contentava a não ser o
caminho percorrido – que, ao contrário do caminho dos sofistas, era sempre
o mesmo não importava quem fosse o interlocutor - para atingimento do
objetivo: ele fustigava seus ouvintes, exasperava-os com sua persecução.
Não se preocupava com o grau de desenvolvimento do ouvinte, rodeava-o
como uma abelha, picando-o incessantemente. Não se preocupava se o
interlocutor tinha ouvidos de ouvir ou interesse ou se queria, mesmo,
adicionar outros problemas aos que já tinha, agora de ordem metafísica.
Não se adaptava ao meio, não se preocupava com o grau de interesse ou
compreensão: a Verdade era uma só e incumbia-lhe a ele acender a luz
desse entendimento independentemente da luz interna daquele com quem
dialogava. Sócrates preocupava-se com a Paidéia, mas não se interessava
especificamente pelo seu aspecto cultural: valia-se de normas lógicas e de
raciocínio que facilitassem o entendimento do companheiro de conversa a
fim de que ele atingisse o conhecimento de si e, assim, se aproximasse da
Idéia de Homem no conceito grego da palavra, sem se valer de eruditas
citações ou da demonstração de ser o palrador pessoa fina e bem
informada. Sócrates era um formador comprometido com o mundo
metafísico.
Ambas as escolas tinham na Razão, no seu antigo conceito, a sua base. Mas
se uma pretendia valer-se dela para ganhar o que quer que fosse na exata
medida necessária para seu gol, a outra clamava usá-la como meio de
entendimento e eleição da grandes e universais valores. Justiça ou vitória,
no clássico dilema de Goffredo.
Não sabiam à época – embora pudessem por intuição - que
primordialmente estavam trabalhando com sentimentos.
A diferença de método entre eles, responsável pela profunda diferença
pessoal que tinham, é muito útil na reflexão que somos obrigados a fazer na
discussão do assunto proposto neste capítulo: se o Sentimento decidir,
como decide, qual seu ferramental e daí como refinar os elementos usados
no processo de decisão para que se obtenham decisões cada vez mais
complexas que pacifiquem as partes envolvidas sempre, mas que,
previsíveis e incontestes, sirvam de elemento de controle e educação da
sociedade. O que pretendemos desenvolver aqui é como o Sentimento se
46
manifesta no intimo do ser. No último capítulo faremos a aproximação
destes sentimentos individuais.
Inicialmente deve-se aceitar que este processo é humanamente mais fácil
de se por a caminho quanto mais próximo do objeto a valorar (visão de
Mãe) está o ser que vai decidir. Contrariamente, pensam alguns, quanto
maior, a generalização que se pretende para atingimento da abstração que
permita a ampla visão do objeto mais facilmente será o processo decisório:
há aqui um grande erro! Quanto maior a distância maior a possibilidade de
erro (lembremo-nos da frase retro referida de Jung: “o indivíduo é a
realidade única. Quanto mais nos afastamos dele para nos aproximarmos
de idéias abstratas sobre o homo sapiens mais probabilidades temos de
erro”). O sentimento de justo, aquele que reflete o conceito de justo que
cada um tem dentro de si, o sentido de equilíbrio, a justa medida, a mais
razoável naquele instante, cai como uma rede de gladiador jogada sobre o
caso concreto e o abarca. Não há interveniência lógica, reflexiva ou
analítica; há uma enorme compreensão do fato (e aqui pode haver um
enorme engano quanto ao fato, lembremo-nos dos preconceitos, da
ideologia e do íntimo convencimento) a que se adere o sentimento do justo.
Nesta fase o uso da palavra é inexistente. O ideal é que o sentimento se
veja livre e desimpedido de amarras e freios e esporas e âncoras. Nesta
fase, espera-se, o sentimento que atua deve ser o refinado e não o pueril
(bruto) ou escuso. Nessa hora, há que se cuidar, pode entrar a vontade de
mudar o mundo e aí se cria outra confusão. Logo a seguir vem a intenção, a
vontade firme e flamejante de realizar o justo, mais propriamente de
cancelar o injusto Se o justo tiver sido sentido e aplicado ao caso concreto:
acabou-se. Há um descanso, a tensão se esvai, a pessoa inala, nova tensão e
vem o parto: sai a sentença prontinha que já pode ser objeto de reflexão
pensada (sentimento mais consciente que o anterior), ocasião em que pode
ser mudada. Agora a busca está em encontrar as motivações da decisão.
Quanto mais vezes passar o ser que decide por processo idêntico, mais
imediatamente ele “saberá” o que fazer e virá sua sentença.
É muito elucidativa a descrição que nos faz Recaséns Siches em a sua
Nueva Filosofia de la Interpretación Del Derecho da “confissão feita pelo
juiz Hutcheson sobre o modo efetivo como a mente funciona no processo
judicial”.44
Para espíritos mais curiosos recomenda-se, ainda, a descrição de Damásio
45
inclusive seus comentários de que o conhecimento factual necessário
para o raciocínio e para a tomada de decisões chega à mente sob a forma de
imagens, que essas diversas imagens – perceptivas, evocadas a partir do
passado real e evocadas a partir de planos para o futuro – são construções
44
45
Citado por Lídia Reis de Almeida Prado em seu O Juiz e a Emoção, pág 15.
A partir da página 123 de seu livro já citado,
47
do cérebro (nosso grifo) – o que nos remete à nossa historinha da
jabuticaba - , como se formam as imagens perceptivas, etc.
Se o processo por que passa o ser que decide for o que se descreveu muito
grande é a chance de as partes saírem com a sensação de que justiça foi
feita; ao revés se abstração tiver sido o caminho percorrido, enorme a
possibilidade de ambas as partes, ou uma delas, estarem com o gosto
amargo de injustiça na boca.
Mas, continua a dúvida, pode o Direito ser científico? Há como decidir (ou
interpretar) cientificamente escolhendo uma entre alternativas?
Nosso comportamento humano é baseado na bipolarização, na
dualização daquilo que disputa: dia/noite, quente/frio, bom/mau,
justo/injusto. E não deixa de ser curioso que o nosso ideal de
comportamento não se ajuste á oposição, não a aceite com naturalidade,
não seja conforme a famosa máxima: é preciso saber que o combate é oque-é-com, e justiça (é) discórdia, e que todas (as coisas) vêm a ser
segundo discórdia e necessidade. 46
Ignorante da tensão, sem saber trabalhar a discórdia, e,
conseqüentemente, sem saber buscar a Justiça, o homem comum tende a
aplicar em geral às leis, sentenças, máximas, interpretações e decisões o
bom senso próprio! Não o senso comum, o que já foi testado e que se for
aplicado ao caso em espécie ilumina-o, mas aquele preconceituoso e que
tem origem no ponto mais obscurecido do ser. Como se quisesse deixar sua
marca, escrever sua biografia.
Diz-nos Damásio 47 que o trabalho desenvolvido por Amos Tversky e
Daniel Kahneman demonstra que o raciocínio objetivo que usamos ns
decisões do dia a dia é muito menos eficiente do que parece e do que
deveria ser. Em termos simples, podemos dizer que nossas estratégias de
raciocínios são defeituosas, e Stuart Sutherland toca num aspecto
importante quando fala da irracionalidade como “um inimigo que vem de
dentro”.
Na qualidade de integrantes do problema, todos os atores têm
possibilidade de influir; o Juiz e a Juíza não se livrarão do estigma sob o
manto da imparcialidade. Eles ficam apenas na posição privilegiada de
poderem observar os fatos e o processo até que, esgotado seu tempo, sejam
chamados a decidir.
Na física quântica, acontece algo que parecia sui generis: o observador
tem um papel privilegiado, sua presença sendo de alguma forma
responsável pelos resultados de um dado experimento 48 Daí a quinta
máxima estranha da nova física: ao observarmos um sistema físico
46
47
Heráclito de Éfeso 80, pág 87, Pré-socráticos 1978
2000 pág 224
48
Gleiser pág 22
48
influenciamos seu comportamento; não existe mais uma separação clara
entre observador e observado49 .
Está prescrito um papel surpreendente para o observador de fenômenos
físicos: no mundo do muito pequeno, o observador não tem um papel
passivo na descrição dos fenômenos naturais; se a luz se comporta como
onda ou partícula dependendo do experimento, então não podemos mais
separar o observador do observado. Em outras palavras, no mundo
quântico, o observador tem um papel fundamental na determinação da
natureza física do que está sendo observado. A noção de que uma
realidade objetiva existe independentemente da presença de um
observador, parte fundamental da descrição clássica da Natureza, tem de
ser abandonada. De certo modo, a realidade física observada (e apenas
essa!), ao menos dentro do mundo do muito pequeno, é resultado de nossa
escolha 50 nosso grifo.
Da aplicação do nosso Sentimento, portanto, diríamos nós.
Desta forma, vemos a impossibilidade de o Juiz ou a Juíza ser imparcial
(aquele que vive um lado, “aspira”, sente, sai do papel, muda de lado, vive
o outro lado, “aspira”, sente, sai da cena, retorna ao seu papel original de
observador, abstrai, compreende a coisa na sua totalidade e julga sem tomar
partido algum) ou objetivo (aquele que observa à distância, sem qualquer
envolvimento com qualquer dos lados).
Com isso muda o cenário do início deste capítulo: no jogo de sedução
do nosso exemplo, o jogador – o ator - sempre será parte, e influirá, mesmo
que jogue mal!
O Juiz e a Juíza em alguns países não podem decidir se vão decidir ou
não, pois há nesses países a proibição do non liquet. Mas, desde que não
podem cancelar ou não cancelar o jogo, podem fazer de tudo, segundo seu
convencimento, inclusive mudar as regras enquanto se joga o jogo, para
que um time vença e o outro perca. O mesmo pode ocorrer nos países em
que a possibilidade do non liquet existe: criar dúvidas onde não deveria
haver pode ser a saída!
Não afirmamos acacianamente que o processo finda-se com a sentença
e que, portanto, sempre há uma decisão e que, claro, esta é sempre a favor
de um lado em detrimento de outro; afirmamos, sim, que quando há a
indefectível decisão a favor de um lado houve também um olhar mais
benfazejo para esse lado do que aquele que foi enviado ao outro lado, algo
neste lado chamou, atraiu mais a atenção, atenção esta que por natureza é
monofásica, e dizemos isto com tanta gravidade que estendemos este olhar
simpático do Juiz ou da Juíza até às causas mais simples e de decisões
aparentemente menos problemáticas como a de uma cobrança de duplicata,
49
50
Gleiser pág 251.
Gleiser pág 299
49
por exemplo; Juiz ou Juíza é aquele que toma partido – político e
ideológico estritamente de acordo com seus sentimentos pessoais - e
escolhe como decidir escolhe para que lado vai olhar, de que lado vai
observar, qual o lado, qual o mirante, qual o ponto de vista, qual o corte
epistemológico! É claro que um Juiz ou uma Juíza quando sentencia, foca,
automaticamente, um lado e despreza o outro: e já por isso é parcial. Mas
faz mais. Faz uma escolha política (Kelsen), ou seja, dentre tantas escolhas
que poderiam ser certas, corretas, justas, razoáveis, pinça uma, por graduála, em detrimento das outras igualmente possíveis.
E o faz baseado, repetimos, em seus sentimentos pessoais.
Nesta acepção, sentenciar é tomar partido e, pode ser enorme, a
importância da Retórica (pode ser enfatizamos). Mas pode não ser.
Dizemos “pode” porque em alguns casos tão grande é o sentimento do Juiz
ou da Juíza sobre tal fato, a favor ou contra, que nem a retórica
perelmaniana mais aguda logrará êxito em convencer aquele que já estava
adrede convencido.
Quando cria a realidade, um escritor, por exemplo, um poeta, não cria a
realidade, ele cria uma realidade, não há qualquer dúvida a respeito. Um
jornalista e um historiador (segundo Bloch, Le Goff e tantos outros da
Nova História) quando referem um fato não narram este fato objetivamente
despido de qualquer nuance pessoal, ao contrário, relatam o fato a partir do
seu ponto de vista ou daquilo que querem provar e, há casos, em que a
parcialidade é evidente (a História como história da fofoca ou, então, a
História pelo prisma do vencedor, para citar duas de inúmeras
diferencialidades). É a flagrante oposição entre o neutro e impossível “era
uma vez” e o testemunho do “aconteceu assim, senhores eu vi!”. Um
tradutor escolhe palavras em sua língua procurando ser fiel ao propósito e
ao estilo do autor, mas ao contrário (tradutor, traidor), traduz a partir do seu
ponto de vista sobre a palavra – ou a frase - certa para aquela situação,
mudando, ou alterando, muitas vezes o sentido original. Um ator interpreta
o seu papel a partir do seu ponto de vista sobre a personalidade do
personagem e sobre a sua reação diante do fato em questão, ocorrendo que
cada ator, uma interpretação diversa. Um intérprete interpreta o fato
(testemunhal, a prostituta das provas) do jeito que pensa que viu e a lei a
partir do seu envolvimento ideológico e político com o caso. Um advogado
não pode ser mais parcial e, portanto, compromissado apenas com a vitória
no seu caso e com nada mais, não valendo, para ele, o fato, como se este
pudesse ser descrito com isenção, mas sempre a sua versão na forma mais
benigna, benfazeja, parcial e conforme o seu objetivo. Um Juiz e uma Juíza
não podem ser diferentes: avaliam, como todo ser humano, a partir da
projeção de si.
50
É o Sentimento em ação constante e a dominar e a marcar a atuação
individual (a proveniente do papel social que representa naquele instante
aquela pessoa) e a atuação singular51 das pessoas.
Jung 52 dizia que “a psicologia é a única ciência que precisa levar em
conta o fator valor (isto é, sentimento), pois é ele o elemento de ligação
entre as ocorrências físicas e a vida”; o mestre esquecera-se do Direito!
Há uma pesquisa que deve ser feita e que é muito importante, muito
ilustrativa, finaliza, mesmo a questão: nosso Houaiss mostra que, em
português (em inglês, em francês...), os verbetes sentir, sentimento,
sentença, sen(t/s), têm a mesma raiz! Isto é: lá atrás na hora da
configuração da língua, o homem sabia que “ter a sensação de”, “o ato
ou efeito de sentir” e “a decisão, a resolução ou a solução dada por uma
autoridade a toda e qualquer questão submetida à sua jurisdição”,
querem, razoavelmente significar a mesma coisa e têm, portanto, a
mesma raiz, sen(t/s), antepositivo do verbo latino sentio, is, sensi,
sensum, tire.
Com “acórdão” acontece a mesma coisa: sua raiz é cors, cordis:
coração!
Se considerarmos a Física Quântica, como ciência, porque parte de um
todo inegavelmente científico, o nosso Direito, no âmbito do muito
pequeno onde o colocamos, misturando observador (Juiz ou Juíza) e
observado (o processo, ou seja, partes e seu relacionamento legal e factual)
estará fazendo Ciência também. E livrar-nos-emos da busca desenfreada,
angustiante e impossível de uma metodologia de interpretação das leis e de
bem sentenciar deslocando o debate da “interpretação” para “quem, como,
quando, onde, porque interpreta”.
Com isto podemos perguntar: mas é profissional ou amadora a postura
destes juizes ao julgar?
*
1.11- o sentimento em ação
Há no começo do século XXI, infelizmente, elementos de distúrbio na
conclusão: porque se sabendo (inconscientemente) parte, alguns dos Juizes
ou Juízas substituíram sentimentalmente seus sentimentos pela simpatia:
hoje, como sempre, a sentença judicial é a expressão verbal de um
sentimento: mas de um julgador que não conclui, não reflete, não
argumenta, que apenas julga conforme o sentimento ideológico que o
mundo lhe provoca. A grande maioria das ações já está pré-julgada por
alguém53 o que amplia a imprevisibilidade que se pretende afastar do
51
como marca do estilo próprio da pessoa que “style c’est 1’ homme propre” no famoso dizer de Buffon
1996 pág 99
53
(afinal, como exemplo, dentre centenas de milhares de ações para serem julgadas no nosso STF, não
passam, como afirmou um Ministro, de cem as teses em discussão)
52
51
mundo jurídico: nunca cada cabeça cada sentença confrontou tanto a
previsibilidade da sentença normalmente emanada por um órgão colegiado
que maduramente está conforme a sociedade e sem contradições
inimizando seus membros.
Por mais chocante que possa parecer é o uso da técnica jurídica para
resolver um conflito – o do juiz – e não o das partes envolvidas. É a busca
de uma justiça cara ao julgador e não aquela adequada ao caso concreto. E
pior e incompreensível para nós e para as partes, é a atitude de abstração
quintessencial (ou seja, do caso concreto à generalização, desta à abstração,
para o final atingimento de uma idéia que já está muito distante e longe do
caso concreto que está em julgamento, e que foi o ponto de partida, caso
concreto este, aliás, que já veio como versão e não como fato, alterado que
foi pelas advogados das partes) que se adota neste mundo jurídico: como a
atitude de alguns médicos que tratam só da doença e se esquecem do
doente, esta atual ausência de virtude jurídica caminha tecnologicamente,
como convém aos seus admiradores, ao sabor da forma, da processualidade
sobre o conteúdo, o que nos leva a afirmar que estamos em um mundo
muito estranho: a tecnologia descolou-se da ciência, a racionalidade
descolou-se da razão, o direito da justiça: é como se um governo investisse
tudo na construção de estradas e desestimulasse de tal jeito que fosse
reduzida a zero a produção de veículos! Há total perda do sentido! A
Justiça, antes a doadora de sentido ao Direito, hoje é afastada do Direito
para que o Direito se veja Puro!
Para minimizar o tema cito dois casos verídicos em
que houve clara interferência do sentimento no julgamento; mais, o
sentimento está à flor da sentença como seu animador principal, mas,
nunca, repetimos nunca, foi manifestado nem no Relatório, nem nas
Motivações, nem na Decisão dos Juízes citados, ou seja, a sentença é um
esmero e traduz o que de melhor há em técnica de redação como descrição
objetiva, citação de leis e doutrina, alguma jurisprudência etc:
IDisse-me um Juiz do Norte do país que julgou –
conscientemente - a favor de um pobre a ação cível
proposta (em 2000) por aquele pobre contra um
rico apesar da falta de provas (aliás a única defesa
alegada pelo rico: não há provas) porque jamais um
pobre naquela região acionaria um rico se não
tivesse mesmo razão (e, sorrindo acrescentou,
convicto, que esta sentença, dentre tantas, era
aquela de que mais se orgulhava, inclusive porque
não foi objeto de apelação); tal sentimento (pobre
só aciona rico se estiver mesmo injuriado e
carregado de razão) é válido enquanto poucos
52
pobres com razão (e sob qual ponto de vista estes
pobres têm razão, estamos nós, preocupados, a
perguntar) acionarem alguns ricos sem razão: à
medida que este conhecimento for difundido entre
os pobres – de que eles ganham a ação por serem
pobres acionando ricos – todo pobre (basta provar
sê-lo) passará a acionar espertamente os ricos com
ou sem razão, o que trará, esperamos,
obrigatoriamente modificação no sentimento
(pobre passará a ter que provar que tem razão e
não que tem razão porque é pobre).
IIOutro, Juiz Trabalhista (em 2002) do interior do
estado de São Paulo, disse-me considerar o
empresário que não paga os salários tanto ou mais
ladrão que o pior assaltante que com revólver e
violência rouba nos semáforos. Assim ele julgava:
o empregador não pagou salários (por que? Tinha
possibilidade, tinha recursos? Não cogitou...):
basta! É culpado do pior dos crimes e, portanto,
merecedor das piores penas possíveis ou
impossíveis. E assim procedia, mesmo, se
necessário, a seu ver, ao arrepio do Código de
Processo Civil, desde que fizesse a sua justiça.
Já há muito que a sapiência religiosa afastava54 o assunto: não farás nada
contra a equidade, nem julgarás contra a justiça. Não consideres a pessoa
do pobre, nem temas a presença do poderoso. Julga o teu próximo
conforme a Justiça. Tais práticas que parecem hoje incorporadas ao nosso
Judiciário como norma: cada um de acordo com sua consciência, parece ser
o princípio jurídico inelutável.
É o abandono da sentença jurídica e o advento da sentença ideológica,
política e psicologicamente motivada.
Os reality shows mundo afora mostram bem, dentre vários outros
programas interativos, como o povo decide. Quando motivado a
escolher sabe como ninguém como votar. E o voto é sempre, mostram
os dados, moralmente motivado. 55 Quando decide e quando não decide,
está a sinalizar sua habilidade decisória e alardear a sua virtude e a sua
tolerância. Um dos povos mais tolerantes do planeta é o brasileiro: a
assim dita tolerância do brasileiro, a proverbial aceitação que o
brasileiro manifesta, a sua competência de conviver com diferenças, o
respeito que manifesta pelas individualidades (se está bom para ele. Se
54
Lev 19, 15
- singelo exemplo: a audiência dos programas conhecidos como BBB, só para citar um caso, é bem
clara em mostrar o fato (média de quase Três milhões de aparelhos só na cidade de São Paulo ligados por
programa na semana de 8 a 14 de março de 2004 com conseqüente enxurrada de votos).
55
53
ele é feliz assim), estas manifestações, camuflam, nesta pregação do
individual sobre o social, o desejo de não julgar para não ser julgado. É,
na base, um acordo tácito: “não me aborreças nas minhas idiossincrasias
que, em retorno, não te aborrecerei nas tuas”. Assim, não é a tolerância
com o outro que está sendo manifestada, mas a que é consigo próprio,
supremo egoísmo. Tal postura retirada da máxima “meu lar meu
castelo”, projeta a visão feudal para a sociedade. Se, por exemplo, as
mentes jurídicas estivessem preocupadas com o emprego e não com o
empregado ou com o empregador, se estivessem, em última instância,
preocupadas com o homem enquanto doador – e não donatário - de
sentido e valor para todas coisas, mais o grau de cidadania do povo
aumentaria e se refinariam os sentimentos.
Deste jeito, enquanto finge que não decide, o homem decide a seu favor.
Aliás, qualquer um, sempre alerta, órgão decisório solene e formal,
separando as coisas, uma das outras, isto é bom, isto não é, todos se
encontram capazes de decidir tão bem e tão camufladamente sobre
qualquer assunto. Opinião (pré) formada sobre tudo, reage
opinativamente, é verdade, sentimentalmente, é verdade, mas todo ser,
togado ou não, sentencia sempre e a qualquer hora. Dentro dos seus
limites, de suas possibilidades, de seus interesses.
São opiniões, nada mais. Frágeis, volatilizam-se com facilidade. Cada
uma em seu grau, a solene manifestação do sentimento de quem o
profere.
Nada mais.
Claro que quando pensa com mais profundidade e isenção, produzindo
episteme, a pessoa não opina, pois, já se disse, não há opiniões
epistemológicas.
Mas, episteme ou não, sempre no uso do aparelho físico, o cérebro, que
indica até onde pode o homem chegar, com absoluta exclusão de
qualquer outro poder que se existisse habitaria o mundo do sonho.
Limite físico é o nome da impossibilidade.
Para nós a sentença judicial e se bem baseada sentimentalmente ainda é
meio do caminho. Carrega consigo a carga do ser humano a que nos
referimos acima, mas mais uma. Explicamo-nos: muitas sentenças são
repudiadas pela ignorância que contêm. Tantos e tão complexos são os
fatos deste mundo globalizado e ágil que vários escapam ao Juiz ou
Juíza menos cultos e experientes, ingênuos, mesmo, por vezes.
A sociedade é, afinal, quem paga a (caríssima) conta: fatos econômicos
decididos sem conhecimento de causa, fatos financeiros decididos por
influência das ordálias, fatos políticos a favor do poder 56 ou de
56
pelos art. 84, XIV e 101, único, da Constituição Brasileira, os Ministros do Supremo Tribunal Federal e
dos Tribunais Superiores são nomeados pelo Presidente da República, o que pode dar maioria nas Cortes,
54
ninguém, ou dos pobres, ou dos ricos, o caos total, a total ausência de
ordem e composição.
Este caos pode ser reorganizado?
*
1.12- busca de Paidéia
Já há filósofos que buscam na origem animal do homem as explicações .
Em outras ciências esta busca não é novidade.
Desmond Morris, famosíssimo zoólogo, diz na Introdução do seu
fenomenal O Macaco Nu, que ele pretende estudar atentamente o
Homem porque, apesar de se ter tornado tão erudito, o Homo Sapiens
não deixou de ser um macaco pelado e, embora tenha adquirido
motivações muitas requintadas, não perdeu nenhuma das mais
primitivas e comezinhas. Isto causa-lhes muitas vezes certo embaraço,
mas os velhos instintos não o largaram durante milhões de anos,
enquanto os mais recentes não têm mais de alguns milhares de anos – e
não resta a menor esperança de que venha a desembaraçar-se da
herança genética que o acompanhou durante toda a sua evolução. Na
verdade o Homo Sapiens andaria muito menos preocupado e sentir-seia muito mais satisfeito se fosse capaz de aceitar esse fato.
Muitos textos de muitos autores inconformados, negando esse fato
quiseram ir além, quiseram dizer que era possível mais. Quiseram
descolar-se do limite físico do macaco pelado e alçar vôo: inteligência
espiritual foi um dos nomes.
Não concordamos. Achamos que com Paidéia, o ser humano brasileiro
conseguirá romper um pouco mais seus limites físicos, empurrá-los um
pouco mais, expandi-los, levá-los ao limite estendido, como fazem, por
exemplo, os corredores de 100 metros rasos: sempre abaixando um
pouquinho o Record, sempre melhorando até o ponto de total tensão, do
qual não se passará. Não há como divinizar-nos. Mas há o alerta que
nosso cérebro está se desenvolvendo e será outra coisa daqui a mil anos,
por exemplo, se chegarmos como espécie a este tempo. Lá e nesta época
o senso de realidade e o olhar para o passado serão muito diferentes do
senso e do olhar que hoje temos.
Paidéia ajudará a refinar os sentimentos e auxiliará nesta jornada.
*
1.13 – a eterna busca de integração no divino
Para finalizar este capítulo, mantê-lo inacabado (o que induz
desdobramentos nos próximos capítulos) e transcrever uma mensagem
eventualmente, ao detentor do Poder.
55
de esperança, útil até aqui e por enquanto, vale mostrar como clara e
brilhantemente Hegel se manifestou a respeito de algumas posições
heraclitianas sobre a matéria em questão57 “Heráclito diz ainda: “Tudo
fazemos e dizemos segundo a participação do entendimento divino
(logos). Por isso devemos seguir apenas a este entendimento universal.
Muitos, porém, vivem como se tivessem um entendimento próprio (idían
phrónesin); o entendimento, porém, (he dè), não é outra coisa que a
interpretação (o tomar consciência, a exposição, a convicção) dos
modos de ordenação (exégesis tou trópou) (organização) do todo. Por
isso, na medida em que tomamos parte no saber dele (autou tes mnémes
koinonésômen), estamos na verdade; mas, na medida em que temos
coisas particulares (próprias) (idiásômen), estamos na ilusão”.
Palavras muito grandes e importantes! Não é possível expressar-se de
modo mais verdadeiro e mais espontâneo sobre a verdade. Somente a
consciência como consciência do universal é consciência da verdade;
mas consciência da particularidade e ação como individual, uma
originalidade, que se torna característica do conteúdo e da forma, é o
não-verdadeiro e o mau. O engano, portanto, consiste na
particularização do pensamento – o mal e o engano residem no fato da
separação do universal. Os homens acham em geral que quando devem
pensar algo, isto teria que ser alguma coisa singular; isto é a ilusão.
Por mais que Heráclito afirme que no saber sensível não há verdade,
porque tudo o que é flui, o ser da certeza sensível não é, enquanto é,
com a mesma força afirma ele que, no saber, é necessário o modo
objetivo. O racional, o verdadeiro que eu sei é certamente um
retroceder e sair do objetivo, enquanto sensível, individual,
determinado, existente. Mas o que a razão em si sabe é também a
necessidade ou a universalidade do ser; é a essência do pensamento, do
mesmo modo como é a essência do mundo. É a mesma consideração da
verdade que Espinoza denomina “uma consideração das coisas sob a
forma de eternidade”. O ser para si da razão não é uma consciência
sem objeto, um sonhar, mas um saber que é para si – mas de maneira
tal que este ser para si seja desperto ou que seja objetivo e universal,
sendo para todos o mesmo. O sonhar é um saber de algo de que
somente eu sei. O imaginar e coisas semelhantes são também um tal
sonhar. Do mesmo modo a sensação é a maneira de algo ser apenas
para mim, de eu ter algo em mim, enquanto neste sujeito; por mais
sublimes sentimentos que se tenham, é essencial que aquilo que sinto
seja para mim, enquanto este sujeito – não como objeto, algo livre de
mim. Na verdade, porém, o objeto é para mim, enquanto é livre em si,
e eu sou para mim livre da subjetividade de mim; e do mesmo modo, é
57
Crítica Moderna , Georg W. F. Hegel, pré-socráticos, 1978, pág 101-102
56
este objeto de maneira alguma imaginado, transformado por mim em
objeto, mas em si universal”.
Como se vê a imersão no divino é aspiração antiga. Dentre os atributos
divinos aspira-se a um em particular, o sentimento de justiça.
Um dos maiores sentimentos humanos, um dos mais valorizados, um
dos que é mais buscado e que dá um real sentido à vida é o sentimento
de justiça que não se confunde com ser justo ou com o agir justo.
Que será isto? Qual a obra humana a respeito? O que edificou o homem
sobre o tema?
2 - Justiça. É uma palavra.
Justiça é apenas uma palavra. Assim, um símbolo. E por isto mesmo
provoca as mais apaixonadas contradições entre toda a gente.
O símbolo – de que a palavra é um dos exemplos – é uma convenção
arbitrária que visa especificar um quid de maneira objetiva. A palavra é ”a
figuração de um estímulo nervoso em sons”, nos diz Nietzsche58.
Denotar é um sonho: a palavra que provoca imediata compreensão,
aquela que pode ser verificada intersubjetivamente, independentemente de
tempo e espaço, aquela que confere com exatidão o significado, sem
qualquer dúvida, ainda não existe.
A palavra traz consigo um forte componente subjetivo. É na conotação
que reside a origem dos problemas: um estudo de Bernard Pottier –
lingüista francês – apresenta a tese de que a intersecção média entre
emissor e receptor de um discurso situa-se na casa de apenas 13% .
Somente no inconsciente coletivo é que as palavras, como herói, por
exemplo, têm uma compreensão bastante similar, independentemente de
onde sejam, ou a que tempo, pronunciadas.
Há uma teoria em Lingüística denominada Sapir-Whorf (de Edward
Sapir e Benjamin Lee Whorf) que sustenta que a linguagem que falamos dá
estrutura ao jeito porque percebemos e pensamos o mundo externo.
Segundo esta teoria nossa apreensão do mundo externo é determinada pelo
jeito que nossa língua o expressa e que as diferenças entre as culturas é
moldada por suas características lingüísticas únicas. A língua, aliás, não só
expressa, mas ajuda a criar uma moldura conceitual da população fazendo
com que as palavras sejam os conceitos59. Pensa-se o que as estruturas
58
59
(1978 pág 47).
São quase 7.000 as diferentes línguas ainda em uso no planeta e recenseadas no começo do século XXI.
57
gramaticais permitem e o que as palavras indicam. Seria o motivo de a
língua da Filosofia ser o alemão ou o grego, segundo alguns. A teoria
levada ao extremo impediria a compreensão entre povos de línguas
diferentes e admitiria a possibilidade de compreensão entre pessoas de
mesma cultura e língua.
É triste, entretanto, ver uma argumentação, freqüentemente, entre duas
pessoas não levá-las nunca à compreensão, pelo simples fato de estarem
falando, sem saber nem perceber, de coisas diferentes, muito diferentes
entre si, enquanto julgam estarem conversando sobre a mesma coisa; no
instante em que o emissor fala algo que pensa ser claro, facilmente
inteligível, o receptor entende outra coisa, porque, exatamente, acha que
aquele conceito é tão claro, que não comporta outra óbvia interpretação
além da sua própria.
É a Cizânia.
Há um chiste, bastante chulo e primário, aliás, mas que ilustra o que os
povos acham do tema; apesar de não acadêmico vale introduzir a piada de
uso corrente e que identifica bem o problema:
“A ONU querendo solucionar um sério problema mundial resolve fazer
uma grande pesquisa endereçando uma pergunta aos diversos Parlamentos
globo a fora:
" Por favor, diga honestamente qual sua opinião
sobre a escassez de alimentos no resto do mundo."
As pessoas tiveram imensas dificuldades em perceber a questão e o
resultado foi desastroso.
Os europeus não entenderam o que é “escassez".
Os africanos não sabiam o que era "alimentos".
Os argentinos não captavam o significado de "por favor".
Os norte americanos perguntaram o significado de
"o resto do mundo".
Os cubanos estranharam e pediram maiores explicações sobre
"opinião".
E o congresso brasileiro ainda está debatendo o que é
"honestamente".
58
Por causa desse problema, da cizânia, criaram-se técnicas. A
Neurolinguística é um bom exemplo. Estudou “circunstâncias” que visam
“sintonizar” emissor e receptor para que se entendam ou para que um possa
dominar o outro. Feroz arma na mão de quem sabe usá-la. Domínio da
comunicação. Mortal.
Justiça, assim, e de qualquer maneira, é apenas uma palavra e como tal,
apresenta diferentes significados, dependendo de vários fatores: de quem a
profere, onde, com que grau de consciência, com qual interesse e propósito,
em que tempo, em que cenário, em que momento, com que grau de
escolaridade, conforme a conotação tribal de quem pertence a este grupo
social e não àquele, com que grau de desenvolvimento mental, intelectual e
espiritual, com que emoção, sob qual ideologia, e para quem se destina o
conceito, destinatário este que deverá ser avaliado sob as mesmas
condições ditas antes do emissor.
Ou seja: no cotejo inicial, qualquer conceito, a nosso ver, é individual e
intransferível e, primariamente, deslocado de um pretenso significado
geral, conferido por um grupo ou pela sociedade, em dado tempo. Incumbe
ao grupo ou à sociedade equalizar o significado da melhor maneira
possível.
Para alguns, entretanto, a Justiça é um nome que designa algumas
poucas coisas diferentes entre si e tem, portanto, poucos significados, mas,
pretendem seus autores, todos eles objetivos.
Estes significados, como tantos outros conceitos, devem
obrigatoriamente ser apreciados pela Razão, que além de ser outra palavra,
é percebida por essa gente como o único meio que temos para atingir o
conhecimento de algo.
É a opção fanática, e definitiva, pelo Logos, a certeza de que podemos
conhecer um quid e, sem dúvida, alcançar a verdade.
Faz pouco tempo que o Sentimento, outra palavra, entra na Filosofia
como fonte de conhecimento: é através deste conhecimento racional,
inicialmente sem palavras nem pensamento, mais especificamente como
faculdade de decidir, que podemos dizer: eu sinto que...e ao proferir o
juízo, expressar toda nossa certeza.
Escolher por sentimento, outra fanática opção, é apanágio de outro tipo
de gente.
Poucas pessoas combinam as duas formas de conhecimento (no sentido
moderno com o qual trabalharemos) com maestria e saber.
Justiça, a palavra, provoca as mais estranhas e radicais atitudes, pelas
quais se luta e se morre, pelas quais se ofende e se mata.
59
Porque pensamos justiça como criação humana, nos dois sub itens a
seguir, estão listados aleatoriamente alguns resultados humanos: pelo lado
do mito aonde chegou o nosso engenho e a nossa crença; do lado do logos
aonde chegaram alguns filósofos com seus métodos visando descoberta de
valores que, por isso mesmo, são escolhas sentimentais e não racionais.
O tema continua apaixonante, segue candente e confuso.
A palavra em si comunica vários significados, mas que sentimentos
poderosos ela desperta, quanto frêmito, quanta energia, quanta emoção.
Quando dizemos: isto é injusto! que confiança nos toma, que convicção
inelutável imprimimos no nosso tom de voz, trêmulo e cheio de indignada
certeza; se nos expressamos assim, sem dúvida comunicamos por falar
deste modo quem de fato somos e expomos num átimo toda nossa carga
genética e histórica. Rasgamo-nos. Mas, afinal, qual a nossa razão? Que
motivos temos?
O que nos permite dizer: sou contra a Injustiça, tenho a Justiça do meu
lado?
Uma pista pode ser dada pela observação da Natureza: segundo Darwin
a evolução típica dos organismos é aquela que não tem a sustentação
estrutural de um conjunto de finalidades predeterminadas. Como tudo está
em devir não faria sentido um conjunto predeterminado de finalidade (por
exemplo, se uma abelha está programada para só pousar em flores amarelas
e por um fenômeno genético qualquer as flores amarelas se tornassem azuis
as abelhas morreriam de fome; assim a natureza sábia ordena às abelhas
que pousem em flores coloridas e que dentre elas escolham as mais doces e
seguras naquele momento). A Natureza não é nem está engessada e imóvel.
A ordem que cada organismo dá aos de sua espécie é inelutável e serve
mais do que a outra coisa à sobrevivência do indivíduo e da espécie em
questão. Mas não é uma ordem fechada (e nem é uma só para todas as
espécies: há o jeito da pomba, do golfinho, da orquídea, do homem) e gera
disputa. Há oposição entre os da espécie e entre espécies diferentes. A luta
pela sobrevivência se dá através de um conflito e este conflito é o
responsável pela seleção natural das espécies. Sobrevive o que passa pelo
teste da vida e não o mais forte (Watzlawick). O nosso organismo está
naturalmente programado para nos levar à nossa sobrevivência. E resolver
nossos conflitos entre nós mesmos e entre nós e o meio ambiente. A
verdade, como dizia Nietzsche é aquela que serve sempre, e só, à
conservação da espécie. O Bem do homem é a sobrevivência como
indivíduo e como espécie, e, daí, o Bem do homem é a sua evolução.
Assim, fica a pista de que Justo para o Homem será sempre o que lhe
permitir sobreviver como espécie e como indivíduo e depois evoluir (a
abelha terá, portanto, outra visão, outra Justiça a pleitear se pudesse fazêlo). Justo será o que nos permitir sobreviver e evoluir e injusto será o que
atentar contra a nossa sobrevivência e evolução. Justiça será, assim, o
60
ferramental posto naturalmente pelo organismo humano à disposição do ser
do homem para que ele possa sobreviver e evoluir mais o ferramental que o
próprio homem criou para alcançar seu Fim (O Fim do Homem é
sobreviver e evoluir) com mais conforto, bem estar e prazer. Não há,
destarte, Justiça sem o outro.
De qualquer modo há que pensar um pouco mais, pois precisamos saber
que Justiça é esta e quem a profere.
*
2.1- Uma construção humana: alguns mitos.
Para alguns, a palavra Justiça contem no seu, muito do significado de
outras palavras: certo, correto, verdadeiro, legítimo, válido, justo, razoável
e seus opostos errado, incorreto, mentiroso ou falso, ilegítimo, inválido,
injusto, não-razoável e destes significados, que também são de difícil
compreensão, nutre-se, o que, infelizmente, só faz aumentar a confusão
quanto ao que se fala quando se pronuncia o termo.
Assim quando se pede Justiça! visam-se conseqüências outras:
Justiça assume um caráter vindicador, bem no sentido religioso do
termo. É a reparação do ofendido. Quem prejudica deve sofrer o mesmo
que sofreu o prejudicado: “se um homem ferir o seu próximo, assim
como fez, assim se lhe fará a ele: fratura por fratura, olho por olho e
dente por dente: ser-lhe-á feito o mesmo que ele fez ao seu próximo” .60
No nosso país o termo parece ser usado por reflexo: gritamos pela
Justiça só quando, no nosso sentir, somos alvo de Injustiça: a Justiça
não é oferecida por antecipação, não parte do agir cotidiano, das justas
ações; ela é pedida como reparação de uma perturbação; ela não é dada,
ela é reivindicada. Daí sofrer de um aspecto choroso. A Justiça, deste
modo, só socorre os que não dormem.
Para iniciar o processo de compreensão da palavra, saber o que o
Homem inventou a respeito até agora – de maneira não taxativa - e o
espectro de sua significação no tempo, achamos importante ir verificar o
impacto primevo, aquele lá de trás, o protótipo dos que vieram depois. E
de lá vir tecendo até o dia de hoje.
60
Lev. 24 19-20
61
O mito quer como “forma atenuada de intelectualidade”, quer como
“forma autônoma de pensamento ou de vida”, quer como “instrumento de
estudo social”61 vem socorrer e explicar.
Os autores que investigam o Direito e a Justiça e que pretendem iniciar
seus estudos desta maneira referem-se aos mitos, mas concentram-se
sempre em Têmis e em Dike.
Vamos além.
E não pretendemos neste trabalho fazer cortes epistemológicos, apesar
de necessários para a mais ampla compreensão global, pelos temas da
Moral, do Poder, da Força, da Liberdade, da Violência, da Política, da
Economia, da Sociologia, da Psicologia, nem passar por eles, a não ser de
forma episódica ou quando inelutavelmente forem correlatos.
O que nos interessa é o tema da Justiça; mas não ela em si e por si,
inclusive porque não acreditamos no tema como tal. Interessa-nos
investigar o tema da Justiça enquanto aquele quid que impacta a alma do
homem. Interessa-nos saber como ela entra na alma, aninha-se e alimenta o
sentimento; interessa-nos saber, depois, como este sentimento se manifesta.
E – se é que há - qual o prejuízo para o mundo negocial, desta
manifestação.
Com 62 vários pensadores vamos ver como pensava o grego de outrora e
quem foram e o que representaram os mitos de Têmis, das Horas, de
Nêmesis, de Astréia, de Palas Atena, e, muito episodicamente, que
correlação tiveram com o Poder, a Força, a Justiça, a Injustiça, a Punição, o
Direito, e como estas palavras impactavam, segundo aqueles autores, os
gregos de então.
Muito importante dizer que os deuses míticos faziam parte, além do
imaginário emocional desses gregos, da sua realidade vivida no dia a dia; a
menor e mais corriqueira atividade contava com a participação do deus
envolvido: a especialização do deus contava para sua presença! Eles, além
de pressentidos, justificavam o acontecido e eram – mesmo - vistos
próximos ao evento: a visão era para o grego seu mais importante sentido,
aquele que lhe propiciava a sabedoria. E, tanto quanto possível estes
eventos eram compreendidos objetivamente e com resignação. Não está
muito distante do fato, apesar de diferente na essência, a maneira – fetiche?
- de pedir a Deus sua divina intervenção em qualquer evento, qualquer
mesmo, inclusive os egoísticos – oh deus: faça com que eu ganhe e ele
perca! -, conseqüentemente pedindo algo para si em evidente detrimento do
outro fiel (que faz o mesmo em mão contrária) e depois de atendido, dar
graças a deus, o contrito e piedoso obrigado do servidor divino beneficiado.
61
Abbagnano, 1998
Junito de Souza Brandão (Mitologia Grega - volume I, 1998, volume II, 1999, volume III, 1998),
Werner Jaeger (Paidéia – A Formação do Homem Grego – 1995) e Jean-Pierre Vernant (As Origens do
Pensamento Grego –1996)
62
62
No Dictionnnaire Larousse de la Mythologie Grecque et Romaine 63,
fomos procurar (nossa tradução) as explicações iniciais e simplificadas das
palavras pretendidas (é de se notar sempre a preocupação com a
abundância, o uso e os frutos da terra: as colheitas, as estações... como se o
tema tivesse – e tem como depreenderemos – correlação com a Justiça):
=filhas de Têmis e de Zeus, as Horas, Thallo, Carpo e Auxo, são antes
de tudo as divindades que presidem a ordem da natureza e das estações.
Elas representam, pois, dentro da tradição mais comum, a primavera, o
verão e o inverno.
= Têmis, filha de Urano e de Gaia, pertence à geração dos deuses
primordiais. Ela é uma das esposas de Zeus e a mãe das Horas, das Moiras,
das Ninfas de Eridan e, segundo alguns autores, das Hespérides. Segundo
Homero, ela é a personificação da ordem estabelecida e das leis que regem
a Justiça. Respeitada por todos os deuses d’Olimpo, ela assiste aos deuses e
os homens em suas deliberações e preserva em todas as ocasiões a
equidade das decisões que são tomadas. Ela é representada com uma
balança e uma espada nas mãos (os dois emblemas da justiça). Mas,
sobretudo, seus olhos vendados demonstram e simbolizam a imparcialidade
das sentenças que profere.64
=Atena, uma das doze divindades do Olimpo, saída diretamente do
crânio de Zeus, totalmente armada e proferindo imenso grito de guerra.
Dotada de uma nobre razão assim como de grande senso de sabedoria,
provinda de sua mãe Métis (deusa da sabedoria e da prudência). Protetora
do Estado, era a deusa que garantia a equidade das leis, sua justa aplicação,
tanto diante dos tribunais quanto da assembléia. Por isso deve, também,
cuidar da prosperidade do país. Deste modo tem enorme influência sobre a
agricultura, inventando diversos artefatos (arado...) e passando seus
modelos aos homens o que potencializava o trabalho humano no campo. É
o símbolo divino da civilização grega por sua força guerreira, por sua
inteligência, por sua sabedoria, por sua moderação de costumes e pela
estudada beleza de seus monumentos artísticos e literários, o que lhe
permite se alastrar e se impor dominantemente sobre o mundo.
=Nêmesis, divindade primitiva d’Ática passou a ser venerada em toda a
Grécia. Filha da Noite, ela foi insistentemente perseguida por Zeus que
estava tremendamente enamorado dela. Para conseguir escapar ela tomava
todas as formas possíveis. Uma vez transformou-se em gansa e Zeus se
transformou em ganso para se unir a ela. Desse encontro a deusa pôs um
ovo que foi confiado à Leda e de onde provem Helena e os Dioscuros. As
vinganças de Nêmesis não são cegas; ela vigia simplesmente para que os
63
1965
64
(atenção: isto é o que diz o Larousse; a deusa na realidade tinha seus olhos bem abertos... porque
como diz Tércio Sampaio Ferraz Junior, de olhos abertos ela declarava existir o justo. Quem tinha os
olhos vendados, segundo o autor, era deusa romana Iustitia)
63
orgulhosos mortais não tentem se igualar aos deuses. Ela humilha aqueles
que receberam muitos dons e se envaidecem. Ela aconselha a moderação e
a discrição. Ela é representada então com seu dedo indicador na frente de
sua boca.
=Astréia, justa e virtuosa, esta filha de Zeus e de Têmis, vivia no meio
dos mortais nos momentos felizes da idade de ouro. Mas, quando a alma
humana se perverte, ela se retira com sua irmã Pudor, da convivência dos
viventes e, sob o nome de Virgem se fixa no Céu entre as estrelas.
= Justiça (Iustitia) é uma divindade alegórica romana, severa e digna,
foi identificada com Têmis. Ela habitava a Terra nos tempos em que os
homens viviam com bondade e paz, na idade de ouro. Quando a iniqüidade
e o crime se instalam no coração dos homens, a Justiça prefere desaparecer
e ganhar os céus, onde se torna a constelação de Virgem.
Para ampliar, todavia, nosso foco de compreensão, temos que aprender
com Jaeger que “o tema essencial da história da formação grega é antes o
conceito de Arete”.65 Agathós significa bom, notável, hábil para qualquer
fim superior; seu superlativo é áristos, o mais notável, o mais valente; o
verbo que daí advem é aristeúein, comportar-se como o primeiro. Arete
vem dessa família etimológica: a superioridade, a excelência que se
desvelam no campo de batalha pela arte da guerra e nas assembléias pela
arte da palavra.
Qual é o conceito grego de Arete da forma como foi concebido lá atrás
dos tempos? Costuma-se traduzir por “virtude”. Mas não virtude pura e
simples, mas aquela não ainda corrompida pelo uso moral e que expressa o
mais alto ideal cavaleiresco (de que o gentleman inglês é filho), ou seja, a
atitude gentil e cortês, distinta e própria, ligada indelevelmente ao mais
puro espírito do guerreiro-herói.66 Jaeger firma “ser fato fundamental da
história da formação que toda a cultura superior surge da diferenciação
das classes sociais, que por sua vez se origina da diferença natural de
valor espiritual e corporal dos indivíduos. A nobreza é a fonte do processo
espiritual pelo qual nasce e se desenvolve a formação de uma nação.
Mesmo quando uma brusca mudança arruína ou destrói as classes
dominantes, forma-se rapidamente pela própria natureza das coisas, uma
classe dirigente que se constitui em nova aristocracia. A história da
formação grega – o aparecimento da personalidade nacional helênica, tão
importante para o mundo inteiro – começa no mundo aristocrático da
Grécia primitiva com o nascimento de um ideal definido de homem
superior, ao qual aspira o escol da raça. Basta isso para concluirmos onde
65
1995 pág 25
66
(e bem por isso citamos, sem maiores delongas infelizmente por escapar do tema, apesar de
insistirmos na sua leitura, o mito d’A Lenda do Graal por Chrétien de Troyes).
64
devemos buscar a origem da palavra Arete: é às concepções fundamentais
da nobreza cavaleiresca que remonta sua raiz”.67
E o que espera aquele que tem Arete? O reconhecimento dos seus pares!
E isto nos dá excelente pista sobre a justiça. A honra, nesse tempo, está O
mais antigo testemunho da cultura aristocrática grega vem de Homero
(séculos IX e VIII a.C.) quando Arete é usada em sentido amplo, a
excelência humana dos senhores, a força dos deuses, a rapidez, a beleza dos
cavalos de raça. O homem comum não tem Arete. Ela é atributo próprio da
nobreza. A destreza e a força incomuns são sempre confundidas com a
pessoa que naturalmente ocupa, pelas qualidades, posição dominante. E ao
lado da força, a prudência, a astúcia, a coragem, formando um quadro de
características próprias de alguém superior, alguém de escol, alguém da
elite. Quem tem Arete descola-se das atividades tidas como normais para a
burguesia e sua moral apequenada, e agiganta-se como só os grandes que
têm estilo livre e pleno domínio da vida sabem ser. Não podemos deixar de
ver aí os imensos pontos de contacto com Nietzsche, atividade e comando,
ação e controle, portanto com a sua vontade de potência (will to power), e
com Nietzsche e a moral do senhor, do mestre (master morality) e a moral
do escravo (slave morality).
O ideal de ser o primeiro, o primus inter pares, move, em guerra e em
paz, os aristocratas no sentido de que disputem e façam valer sua
ascendência e a consciência perante o dever que os impele a realizar
sempre mais e melhor que os concorrentes. É Fênix quem aconselha
Aquiles, o protótipo dos heróis gregos, que “para ambas as coisas (fostes
educado): proferir palavras e realizar ações”. 68 intimamente ligada à
Arete: a honra é a medida do valor próprio, da sua Arete. E qual a sua
aspiração suprema? Serem honrados pelas pessoas distintas, por seus pares,
pelas pessoas sensatas, serem reconhecidos em sociedade e terem
remarcado o seu próprio valor. Em Homero a honra é o troféu da Arete.
Tão grande a importância deste reconhecimento que a ordem social se
assenta nesta particularidade. Se a honra merecida não for reconhecida,
terrível será a vingança. Neste sentido a cólera de Aquiles e o suicídio de
Ájax. O elogio e a reprovação como fonte de honra ou de desonra. Mais do
que dinheiro e bens materiais, a honra, contanto que reconhecida. “O que é
pernicioso para mim é pernicioso em si”, sabe-se o único que empresta
honra às coisas, é criador de valores”. 69 Werner Jaeger em afirmação
surpreendente diz-nos que “a idéia filosófica do “bem” esse modelo de
validade universal, procede diretamente da idéia de modelo da ética da
67
68
1995 pág 24/25
I.443
69
Nietzsche, 1978, pág 292
65
Arete, própria da antiga nobreza. O desenvolvimento das formas
espirituais da educação homérica da nobreza, através de Píndaro até a
filosofia de Platão, é absolutamente orgânico, permanente e necessário.
Não é uma “evolução” no sentido seminaturalista que a investigação
histórica costuma empregar, mas um desenvolvimento essencial de uma
forma original do espírito grego, que na sua estrutura fundamental,
permaneceu idêntico a si próprio através de todas as fases da sua
história”. 70
Se em Homero temos a nobreza impactando a ética Grega, temos em
Hesíodo a resposta do camponês, que sem ser bronco nem desprovido de
sensibilidade, dá sua marca de contribuição. Ao herói contrapõe-se o
trabalhador, que trabalha duro uma terra dura, reúne-se no fim do dia com
os outros homens comuns e critica livremente a conduta dos seus
concidadãos e dos eminentes senhores a ponto de só ter prestigio real quem
era aprovado pela massa. É o povo influenciando a Grécia e dando sua
mensagem campestre que não se dobra diante da cultura citadina; são
valores imensos, intensos, toda uma manifestação ética que não pode
perecer. É, repetimos, a resposta à provocação dos nobres, como deve ser;
se tem início, porém, nos valores aristocráticos, com que riqueza ética
contribui a massa para o arcabouço da vida espiritual grega. Campônio não
é sinônimo de inculto; o saber grego busca a confluência da espiritualidade
com a informação, visando para além do “conhece-te a ti mesmo” o
Homem visto como sua quintessência, sua superação, sua Idéia.
A época lembra alguns países hodiernos que tem na elite – e usamos
o termo sem conotações financeiras – o móvel de sua busca ética e na
classe menos abastada e tão conservadora o depositário vivo das mais altas
aspirações de um povo; a classe média e a classe média baixa só fazem por
perturbar esta ordem tão clara com a sua visão pequeno-burguesa; voltadas
para o ter, consumistas e exibidas ao extremo, snobs71, vazias de
substância, pífias e cheias de ressentimentos: não são mais tão pobres de
bens materiais como eram, e nem de longe tão ricas como alguns nortes em
que se espelham: os valores ficaram pelo caminho espezinhados, abolidos,
trocados, confusos, gerando a grande angústia que caracteriza estas duas
classes perdidas, pressionadas e desprezadas pelas outras duas. Vem daí
sua fixação na visão de futuro, de progresso, de porvir: não são mais nem
são ainda! Imaginam ser...no futuro!
Ainda assim, pode-se perguntar o que interessa ao homem saber de
mitos gregos que têm mais de 1.000 anos de existência ou o que
preocupava o grego daquela época até o ano 300 a.C.
70
71
op cit pág 60
nunca é demais lembrar que o inglês snob vem do latim sine nobilitate, sem nobreza...
66
Interessam pela convergência que têm com o nosso modo de ser e pela
divergência que obriga imediatamente a comparação. Interessa porque os
mitos se repetem independentemente da cultura na qual aparecem. Interessa
mais pelo fato de a cultura grega ter permeado a cultura ocidental
inexoravelmente.
Reconhecem-se mitos similares entre povos distantes no tempo e no
espaço.72
Com enorme paciência e generosidade, explicou-nos a Dra. Sylvia
Maria Cayubi Novaes, eminente antropóloga da USP, que nossos índios,
por exemplo, e para passar de leve, e antecipadamente, pelo tema desta
dissertação, não têm um conceito pétreo, único de Justiça - nem isto lhes
parece possa existir – e guiam-se pela tradição e pela equidade. Não
conhecem um sistema administrativo de Justiça e não há um magistrado
que ouve e profere sentenças e, menos ainda, um que as execute. Mas há
sim códigos orais rigorosos de condutas consideradas justas e morais que,
se quebrados, acarretam enorme discussão entre as partes envolvidas até
que se chegue a uma solução. Se esta demorar ou não for cumprida pelo
que se obrigou, a tribo funciona como uma imensa caixa de ressonância,
comentando sem cessar o que se passa até que se pacifique a questão. É,
deste modo, pela fofoca e pelo bzzzzz que se controla a sociedade. Este
controle está sempre em consonância estreita com a tradição que, por sua
vez, não prescinde, jamais, de seus mitos, dos ancestrais e do “foi assim
que sempre fizemos, sempre deu certo e, sem discussões nem dúvidas de
qualquer espécie, vamos continuar a fazer”.
O mito na definição referida por Junito 73 “é a parole, a palavra
revelada, o dito; é a narrativa de uma criação: conta-nos de que modo
algo que não era começou a ser. É sentido e vivido antes de ser inteligido
e formulado. Expressa o mundo e a realidade humana cuja essência é
efetivamente uma representação coletiva, que chegou até nós através de
várias gerações. Está no coração dos homens” e opõe-se ao Logos.
Mas, Mito e Logos são, a nosso ver, duas faces da mesma moeda; sem
ambos não há compreensão plena. Usando-os, Jung, manipulou o conceito
de arquétipo e abriu para o mundo a linguagem simbólica que nos conduz
ao conhecimento do consciente e do inconsciente coletivos.
Mito é o tesouro guardado no coração dos homens e que, quando
exposto, é imediatamente compreendido em toda a sua extensão; a herança
que recebemos dos nossos ancestrais mais remotos que nos é, além de cara,
fonte de vida e entendimento de nós mesmos, de nossos motivos, anseios e
esperanças. É a explicação que nos conforta e nos acalenta. É a chave que
abre nosso mundo para nós mesmos.
72
73
(Maias, Incas etc., nossos indígenas...).
(op cit)
67
Mito não é como aconteceu – santa ingenuidade – mas como o homem
falou, alegoricamente, de si mesmo! É uma pista.
Nossa memória está estragada. O uso irredutível da Razão como única
criadora de soluções e explicações definitivas e absolutas, fez, desde a
base, colocar camada pós-camada cenários bem construídos cujo objetivo
primeiro era aliviar as inseguranças e incertezas da frágil alma humana: era
necessário dar respostas às perguntas sem resposta. Formar esperança.
Temos que desconstruir arqueológicamente os sítios construídos pelo
homem, gênio criativo, e retornar ao ponto de partida: lá está não a verdade
mas o começo da busca.
Em “Sobre Verdade e Mentira no Sentido Extra-Moral” 74 Nietzsche
irracionaliza a questão: “Em algum remoto rincão do universo cintilante
que se derrama em um sem número de sistemas solares, havia uma vez um
astro, em que animais inteligentes inventaram o conhecimento. Foi o
minuto mais soberbo e mais mentiroso da” história universal “: mas
também foi somente um minuto. Passados poucos fôlegos da natureza
congelou-se o astro, e os animais inteligentes tiveram de morrer”.
Nietzsche pergunta 75 em sua famosa afirmação “o que é a verdade,
portanto? Um batalhão móvel de metáforas, metonímias,
antropomorfismos, enfim, uma soma de relações humanas, que foram
enfatizadas poética e retoricamente, transpostas, enfeitadas, e que, após
longo uso, parecem a um povo sólidas, canônicas e obrigatórias: as
verdades são ilusões, das quais se esqueceu que o são, metáforas que se
tornaram gastas e sem força sensível, moedas que perderam sua efígie e
agora só entram em consideração como metal, não mais como moedas”.
Inconformado, o Mestre acusa e bastante preocupado com o rumo das
coisas, provoca o leitor: “coloca agora seu agir como ser ”racional” sob a
regência das abstrações; não suporta mais ser arrastado pelas impressões
súbitas, pelas intuições, universaliza antes todas essas impressões em
conceitos mais descoloridos, mais frios, para atrelar a eles o carro de seu
viver e agir”. 76 E arremata, como quem bem avisa do erro que está sendo
cometido impunemente: “Esquece, pois, as metáforas intuitivas de
origem, como metáforas, e as toma pelas coisas mesmas”. 77
Vamos tentar ler nos mitos as metáforas intuitivas de origem e não
tomá-las pelas coisas mesmas.
Nunca é inútil lembrar que quando Pôncio Pilatos, enquanto urrava a
multidão ignara, perguntou a Jesus, mas então o que é a verdade? ficou, por
qualquer motivo, sem reposta e nós, humanos indefesos, perdemos para
sempre a oportunidade de saber.
74
(1978)
(op cit pág 48)
76
(pág 49)
75
77
(pág 50)
68
Assim, retornando ao mito, que pensar da classificação de Hesíodo (que
na Teogonia parte do Caos para a Justiça, simbolizada por Zeus e nos
Trabalhos e Dias justapõe trabalho e Justiça): haverá mesmo o homem
lograr, com o auxílio de Zeus, simbolizando díke, a Justiça, elevar-se, fugir,
do caos social e reintegrar-se, de novo, na luz? Retornar à Idade de Ouro
de onde saiu e abandonar a Idade de Ferro em que se instalou – triunfante logo após e com toda a ignorância que o caracteriza? Será, então, a Justiça
a grande chave de abertura da porta que descerrada nos permitirá ir ao
encontro da luz?
Tendo em mente ser Hesíodo um poeta campestre e que falava dos que
trabalhavam a terra, distante, muito distante, portanto, de Homero e de sua
ética dos nobres, tomemos o mito como nos veio.
Vamos aprender pela mão segura e pelos escritos dos diversos autores
que escolhemos, cujos textos serviram para uma colagem na ordem que
quisemos dar e à qual adicionamos nossos pensamentos. Façamos um
passeio pela Grécia antiga:
Direito: Não havia direito escrito no período micênico nem na época
dória, mais ignorante ainda; Só entre os séculos IX e VIII a.C. é que
apareceram no mundo grego vários alfabetos, que paulatinamente se
unificaram, mas cuja origem é uma só: o alfabeto fenício. Pois bem, o
direito grego oral, consuetudinário, estava nas mãos dos Eupátridas (os
nobres) que por conhecimento hereditário pretendiam interpretá-lo e aplicálo. Era o direito baseado na thémis, “têmis” (Thémis, “Têmis”, a deusa da
justiça), isto é, na justiça de caráter divino, uma espécie de ordálio, cujo
depositário é o rei, o eupátrida, que decide em nome dos deuses. Por
dívidas, um camponês era levado à hipoteca somática (a do próprio corpo!)
e daí à escravidão. Não foi apenas Hesíodo que se queixou dos “reis
comedores de presentes, que não raro julgavam em seu próprio proveito...
Foi exatamente com este estado de coisas que Sólon tentou romper,
substituindo a têmis pela díke, dique, isto é, pela justiça dos homens,
baseada em leis escritas. Lamentavelmente, porém, enquanto as
aristocracias não foram redimensionadas, a administração da justiça
continuou a ser manipulada por magistrados e conselhos aristocráticos”.
Consuetudo: justiça em latim
Justiça: a novidade maior da Odisséia, todavia, está no embrião da idéia
de culpa e castigo, em que a hýbris, a violência, a insolência, a
ultrapassagem do métron, que será a mola mestra da tragédia começa a
despontar. Uma fala de Zeus,78 no canto I da Ilíada, em que o pai dos
deuses e dos homens afirma que os “mortais culpam os deuses dos males
que lhes sucedem, quando somente eles, os homens, por loucura própria e
78
26-43
69
contra a vontade do destino, são os seus autores”. Eis aí a ponta do véu da
díke, da justiça, que se levanta.
O século VIII a.C. é marcado pelo pesado fardo dos Eupátridas, que
manipulavam, além de outros poderes, a justiça, concebida sob forma
temística. Ora, não é precisamente a díke, a justiça dos homens, a projeção
de todo ideal de Hesíodo? Seu desejo é que a justiça, a paz e a disciplina
(as Horas, portanto) reinem para sempre e que a Moîra não seja mais uma
conseqüência do acaso, mas a vontade de Zeus. Observando-se as
hierogamias, os casamentos sagrados de Zeus, nota-se que o grande deus
“antropomorfizado”, após estabelecer com suas lutas e vitórias a justiça e a
paz, tornou-se a síntese das qualidades divinas e humanas de um
governante todo-poderoso, mas justo e civilizado. Com Têmis adquiriu
não só a Equidade, traduzida nas Horas, a disciplina, a justiça e a paz, mas
também o poder sobre a vida e a morte, cifradas nas Moiras.
Foi com Pandora e com o crime de Prometeu que se iniciou a
degradação da humanidade. Para explicá-la Hesíodo introduz o mito das
Cinco Idades. Deste mito o poeta extraiu uma dupla lição: mostra a Perses,
mais uma vez, a necessidade do trabalho e aos “reis”, aos juízes, como e
por que suas sentenças deveriam estar em consonância com a justiça. Daí a
fórmula hesiódica:
“Ouve a díke, a justiça, e não deixes crescer
a hýbris, o descomedimento”
79
No mito das Idades as raças parecem suceder-se segundo uma ordem de
decadência progressiva e regular. De início, a humanidade gozava de uma
vida paradisíaca, muito próxima da dos deuses, mas, foi se degenerando e
decaindo até atingir a idade do ferro em que o poeta lamenta viver, pois
nesta tudo é maldade: até a Vergonha (Pudor) e a Justiça abandonaram a
Terra.
Resumidamente (e não pretendemos abordar somente a decadência do
homem, mas principalmente, a necessidade do trabalho e o dever de ser
justo) cada uma das idades está aparentada com um metal: ouro, prata,
bronze e ferro; surpreendentemente Hesíodo intercala entre as duas últimas,
mais uma: a idade dos heróis, que não tem como se sabe qualquer relação
com metal nenhum!
Na fase do ouro e da prata predomina Díke, na idade do bronze e dos
heróis predomina a Hýbris. A idade de ferro é ambígua e definida pela
oposição dos contrários, o bem se contrapõe ao mal, o homem opõe-se à
mulher, o nascimento à morte, a abundância à penúria, a felicidade à
desgraça; Díke e Hýbris, Justiça e Violência, uma ao lado da outra,
79
(Trab., 2131)
70
oferecem ao homem duas opções igualmente possíveis uma das quais ele
deve escolher.
Na idade do ouro os homens não envelheciam, sua morte assemelhavase a um sono profundo, não trabalhavam, viviam como deuses e como reis,
tranqüilos e em paz, a terra produzia espontaneamente o que o homem
precisava. Após deixarem esta vida recebiam prêmios e tinham o privilégio
real de se tornar intermediários aqui mesmo na terra entre os deuses e seus
irmãos viventes (assim, de cima para baixo) e de zelar, como guardiães dos
homens, pela observância da justiça, e, como dispensadores de riquezas,
favorecer a fecundidade do solo e dos rebanhos.
Na idade de prata, parecida com a do ouro, os homens mantém-se longe
tanto da guerra quanto dos labores. Continuam intermediários, mas de
baixo para cima, ou seja, dos homens para os deuses.
Na idade do bronze já não mais se cogita de justiça, do justo e do injusto
ou de culto aos deuses; os homens dessa idade não comem pão, ou seja, são
de uma idade que não se ocupa do trabalho da terra, e sucumbem na guerra,
incessantemente, uns sob os golpes dos outros.
Na idade dos Heróis há uma raça mais justa e uma mais brava, raças
divinas dos heróis que se denominam semideuses: são os que, como os
homens da idade de bronze, se deixaram embriagar pela Hýbris, pela
violência e pelo desprezo pelos deuses e os que, como guerreiros justos,
reconhecendo seus limites, aceitaram submeter-se à ordem superior da
Díke.
Sobre a idade de ferro diz o poeta: “Oxalá não tivesse eu que viver
entre os homens da quinta idade: melhor teria sido morrer mais cedo ou
ter nascido mais tarde, porque agora é a idade de ferro...”. Há doenças,
velhice, a morte, a ignorância do amanhã, as incertezas do futuro, a
existência de Pandora, a mulher fatal, e a necessidade premente do
trabalho.
Da idade do ouro o homem se degenerou até atingir o extremo
insuportável da idade de ferro: Hesíodo modela a evolução humana de
modo inverso daquele que apresenta como o da evolução divina: esta, ao
revés, partindo do Caos, elevou-se até Zeus que para Hesíodo personifica a
Díke, a Justiça.
Mas de que Justiça ele fala?
Fala daquela que segundo ele poderia corrigir nos séculos VIII e VII
a.C. as graves distorções sociais. Seria possível? “Somente para seu igual
se tem deveres” diz Nietzsche80.
E qual seu impulso afetivo, qual a sua fome, qual a sua sede? Qual o seu
desejo mais profundo de que o discurso é apenas o rótulo, o invólucro
intelectual do que está por dentro? “Cada filosofia esconde também uma
80
(1978 pág 292)
71
filosofia; cada opinião é também um esconderijo, cada palavra também
uma máscara”.81
Ao mesmo tempo em que – inclusive para se defender da injustiça de
que foi alvo - é seu desejo instruir, orientar, ensinar seu irmão Perses,
dominado pela Hýbris, Hesíodo admoesta os Eupátridas, donos da polis e
das melhores glebas, e também da religião, das leis, do sacerdócio... da
Justiça.
Pede que eles não trabalhem se não quiserem (surpresa em Hesíodo que
tanto pregava a importância do trabalho), mas que administrem bem as
pendengas, que solucionem com justiça as querelas, que arbitrem
corretamente os processos. Pretende diminuir a distância entre os
Eupátridas e o homem comum.
Logo na Invocação do poema, mostrando a força de Zeus, canta o poeta,
exaltando a Justiça divina:
Facilmente Zeus concede a força e facilmente destrói o forte,
Facilmente humilha o soberbo e exalta o humilde,
Facilmente corrige as almas torcidas e esmaga o orgulhoso,
Zeus que troveja nas alturas e habita as sublimes mansões.
Ouve minha voz, olha, escuta, que a justiça guie tuas decisões.
De minha parte, quero dizer a Perses palavras verdadeiras.
82
Ensinando Perses, apela à justiça:
Mas tu, Perses, ouve a justiça, não deixes crescer
O descomedimento. O descomedimento é funesto para
Os pobres e até o poderoso tem dificuldade em suportá-lo
E seu peso o esmaga, quando a desgraça se encontra
Em seu caminho. É preferível seguir outro rumo, que,
Passando do outro lado, conduz às obras da justiça.
A justiça triunfa do descomedimento, quando
É chegada sua hora: o tolo aprende sofrendo.
83
Mas Hesíodo não deseja que a justiça seja praticada apenas por Perses,
mas também, e, sobretudo, por quem tem a função de aplicá-la. Estes,
infelizmente, se deixam levar por suborno, por espírito de corpo, por
rejeição, por preconcebimentos, que fazem soluçar a própria Justiça:
De imediato o Juramento se apresenta em perseguição
Às sentenças torcidas, elevam-se os clamores da Justiça
81
82
(Nietzsche, 1978, pág 294)
(Trab., 5-10)
83
(Trab., 213-218)
72
Sobre o caminho por onde a arrastam os reis comedores
De presentes, que fazem justiça à força de sentenças torcidas.
Ela os segue chorando sobre a cidade e as habitações
Dos homens, que a expulsaram e aplicaram sem critério.
84
Hesíodo ameaça os prepotentes e os corruptos do século VIII:
Reis, meditai também acerca desta justiça, porque Imortais
Estão aqui, perto de vós, misturados aos homens.
Eles observam todos aqueles que, por suas sentenças
torcidas, prejudicam ora um, ora outro, sem se preocupar
com o temor dos deuses. São trinta mil Imortais, que sobre
a terra nutridora, em nome de Zeus, guardam os mortais,
vestidos de bruma, percorrendo a terra inteira,
observando-lhes as sentenças e as más ações.
85
Mas apela para seu bom senso em nome das classes injustiçadas:
É preciso que o povo pague pela loucura desses reis
Que, com tristes desígnios, falsificam seus decretos
Com fórmulas torcidas.
86
Meditai sobre isto, reis comedores de presentes,
Sede justos em vossos julgamentos e renunciai para
Sempre às sentenças torcidas
87
Para exibir este estado de coisas, Hesíodo arremata com o apólogo do
gavião e do rouxinol (que aponta a vigência da lei do mais forte):
Agora, aos reis, embora sábios, contarei uma história.
Eis o que o gavião disse ao rouxinol de pescoço pintado,
Enquanto o transportava lá no alto, no meio das nuvens,
Preso em suas garras. O rouxinol, traspassado lastimavelmente
Pelas garras aduncas, gemia, mas o gavião brutalmente lhe diz:
“miserável, por que gritas? Pertences ao mais forte que tu.
Irás para onde eu te conduzir, por melhor cantor que sejas:
De ti farei meu jantar, se assim o quiser,
87
84
(Trab., 219-224)
85
(Trab., 219-224)
86
(Trab.,260-262)
(Trab.,263-264)
73
Ou te deixarei em liberdade”
88
a que Hesíodo contrapõe a paz:
ouve agora a justiça, esquece a violência para sempre.
89
Contra a opressão dos ricos, Hesíodo propõe a dignidade da pessoa
humana:
Jamais injuries um homem amaldiçoado pela pobreza,
que corrói a alma: a pobreza é um dom dos deuses imortais.
90
Ouvimos um lamento que vem lá do século VIII antes de cristo: é o
clamor contra a injustiça.
Mas, afinal, de que Justiça fala o poeta? Da dele contra a dos
Eupátridas? De uma outra justiça que se opõe ao sistema de justiça
vigente?
As palavras da canção poderiam ter sido proferidas hoje no planeta
Terra.
Será que a Justiça que se persegue em 2005 d.C. é (ainda) a mesma de
Hesíodo?
O cenário está confuso. Teremos que continuar nossa caminhada para
tentar chegar a um quadro, pelo menos, mais claro.
Um ponto desde já pode ser fixado: o Hesíodo de “Trabalhos e Dias”
apresenta o métron, a medida, e esta é o ser, ou seja, o homem
dimensionado pelo trabalho e pela necessidade de ser justo. Há duas leis
neste poema: há que se trabalhar e há que se ser justo. O homem tem que
trabalhar e com isto ele foge da violência, isto é, da injustiça: a força moral
que empurra o homem para o trabalho é a emulação – é possível conquistar
mais e melhores coisas - e a que o afasta é a inveja: estas duas forças que se
opõem estão personificadas em Éris (Discórdia na religião Romana).
Em Homero, com enorme importância ao kállos, beleza, e ao kosmos,
ordem, o herói (o nobre, o guerreiro, o lutador, o esportista), é medido por
sua areté, excelência e timé, honra pessoal, aquilo que se vê; em Hesíodo a
areté e a timé se traduzem pelo trabalho e pela sede de justiça, ou aquilo
que se é.
Em Homero a excelência e a honra pessoais tinham que ser exibidas pelo
homem e precisavam ser vistas pelos outros e reconhecidas por sinais
exteriores: neste encontro produzia-se a Justiça e pacificava-se o exibidor.
88
89
(Trab., 202-209)
(Trab., 275)
90
(Trab.,717-718)
74
Em Hesíodo a excelência e a honra pessoais tinham que existir de dentro do
homem para fora dele, exibiam-se espontaneamente e precisavam ser
reconhecidas: não bastava parecer, tinha que ser: aí a Justiça mostrava sua
cara.
Ainda assim faltam histórias até que tenhamos uma idéia um pouco
mais abrangente sobre o tema.
Vamos ver como os gregos identificavam as divindades relacionadas
com a Justiça e o Direito, este considerado, para efeito deste trabalho,
como o sistema humano encarregado de fazer prevalecer aquela.
Quão profundo é o desejo de o homem ter e receber Justiça: seja lá o
que isso for tem que existir! Quanto conforto...
Que desespero por não alcançar e quando não alcança. Que horror
quando o homem estende a mão para alcançá-la e ela lhe foge...para parar
logo ali na frente e, de novo, quase ao alcance da mão. Uma hesitação, uma
espiada, nova corrida e...a Justiça escapa de novo!
O homem o lobo do homem.
Consolo da nossa fragilidade a Justiça mitiga nossa miserabilidade e faz
esquecer, por instantes, nossa desgraça: não pode ser humana, tem que ser
um dom divino! Somente alguém superior pode saber o que é Justiça, pode
concedê-la, ministrá-la e espalhá-la pelo universo. Só um deus pode
administrar diferenças... sem injustiças. Um deus não, nem para um deus
tal tarefa seria possível: só uma deusa, uma mulher, que conhece a
compaixão, a piedade, a compreensão e que tem em si a maternidade, tem o
amor de Mãe para dar. Têmis! Atena! Nêmesis!
Têmis, em grego Thémis, do verbo tithénai, “estabelecer como norma”,
donde o que é estabelecido como a regra, a lei divina ou moral, a justiça, a
lei, o direito (em latim fas ou a expressão da vontade divina, ordem dos
deuses, justiça divina, direito divino; daí o que é permitido, o que é justo, o
que é legítimo, o que é direito), por oposição a nómos, lei humana (em
latim 1-lex ou lei ou direito escrito e promulgado; conjunto de preceitos
jurídicos aceitos pela assembléia dos cidadãos romanos depois de terem
sido ouvidos sobre o assunto ou 2- ius ou jus ou títulos que estabelecem o
direito, justiça, daí direito escrito, leis, legislação; lugar onde se ministra a
justiça; direito em sentido genérico) e também por oposição a díke,
maneira de ser ou de agir, donde o hábito, o costume, a regra, a lei, o
direito, a justiça (em latim 1- justitia (iust.), ae, justiça, equidade,
conformidade com o direito, daí sentimento de equidade, espírito de justiça,
bondade, benignidade; 2-justum (iust.), i, ou o justo, a justiça, daí a medida
justa, o que convém; 3- justus (iust), -a, -um, conforme o direito, justo,
legítimo, daí, que tem a justa medida, conveniente, suficiente, razoável.
Lembrando que justa (iusta), -orum são as cerimônias devidas, as
75
formalidades, os deveres e daí, em sentido particular o que é devido (aos
escravos), sustento, salário, ração, e, ainda, honras fúnebres, exéquias).
Têmis é a deusa das leis eternas, da justiça emanada dos deuses.
Deusa da justiça divina, figura como segunda esposa de Zeus, logo após
Métis. Com o pai dos deuses e dos homens, Têmis foi mãe das Horas e das
Moiras.
Uma variante que se encontra somente em Ésquilo, faz da deusa da
justiça divina, mãe de Prometeu.
Personificação da Justiça ou da Lei Eterna é tida como conselheira de
Zeus. Foi ela quem o aconselhou a cobrir com a pele da Cabra Amaltéia o
escudo, denominado, por isso mesmo, Égide, na luta contra os Gigantes.
Atribuía-se a ela, também, a idéia da Guerra de Tróia, para se equilibrar a
densidade demográfica da Terra. Apesar de ser uma Titânida, foi admitida
entre os imortais. Era honrada não só por sua ligação com Zeus, mas ainda
pelos inestimáveis serviços prestados a todos os deuses, no que se refere a
oráculos, ritos e leis. O deus Apolo deve-lhe o conhecimento e os processos
da mântica. Consta ainda que foi Têmis quem revelou a Zeus e a Posídon
que não se unissem à Nereida Tétis, porque, se isso acontecesse, esta teria
um filho mais poderoso que o pai.
Na Teogonia 91de Zeus e Têmis nasceram somente as Horas e as Moiras,
mas uma variante mais recente, faz também deles, pais da Virgem Astréia,
em grego Astraía que se prende etimologicamente a áster, astro, estrela. É o
nome da Virgem (a constelação) e viveu neste mundo à época da Idade do
Ouro, difundindo entre os homens os sentimentos de paz, justiça e
bondade. Mas, tendo os mortais se degenerado Astréia deixou a Terra e
subiu ao céu, onde foi transformada na Constelação da Virgem. Sua volta á
Terra é, por alguns, relacionada como sinal da volta dos homens à idade do
ouro.
Têmis aparenta-se com o direito natural, aquele que exprime a
inteligência da natureza, a manifestação de Deus? E como fica a
humanidade sem Astréia, sem Iustitia, sem Pudor? Conseguirá Dique impor
seu dom?
A Justiça, embora divina, não era sentida pelos homens: havia queixas
contra a sua administração: juízes corruptos, pouco afeitos ao resultado
final, interessados na causa, desleixados, havia enormes diferenças
sociais...
Se não chega a Justiça divina, há que existir um ersatz.
Da junção do Poder com a Força com a Autoridade com a Justiça com a
Ordem, desta sopa de letras, algo de bom deve surgir.
91
(901-905),
76
Surgiram as Horas: uma das mais célebres uniões é a de Zeus (a força, o
poder e a autoridade) com Têmis (a justiça, a ordem eterna) que deu
nascimento a Eunomia (a disciplina), Irene (a paz) e Dique (a justiça). São
nomes diferentes dos que vimos acima e que nos apontou o Larousse:
Thallo, Carpo e Auxo. Mas há motivos.
Horas, em grego Hórai, plural de hora, “divisão do tempo”, período de
tempo, estação.
Foi por um abuso de tradução do latim que as Horas, que as estações, se
tornaram horas. Só muito tardiamente é que as Horas passaram a
personificar as horas do dia.
Eunômia, a Disciplina, Dique, a Justiça e Irene, a Paz, eram chamadas
pelos atenienses, respectivamente de Talo, a que faz brotar, Auxo, a que faz
crescer e Carpo, a que faz frutificar. No mito elas se apresentam sob duplo
aspecto: como divindades da natureza, presidem ao ciclo da vegetação,
como divindades da ordem, asseguram o equilíbrio da vida em sociedade.
No Olimpo sua função específica é guardar as portas de entrada na
mansão dos deuses, além de servirem a Hera e a Apolo. Acompanham
freqüentemente Afrodite e fazem parte do cortejo de Dioniso.
Iconograficamente são representadas como três jovens graciosas, com uma
flor ou uma planta nas mãos.
Interessante, e a título ilustrativo (combina também a ordem segura da
sucessão natural da terra com dons divinais), citar aqui a Cornucópia: Zeus,
brincando, quebrou o chifre da cabra Amaltéia e para compensá-la
prometeu que este corno, quando ela o desejasse, se encheria de todos os
frutos da terra, o que faz da Cornucópia o símbolo da profusão gratuita dos
dons divinos, mas mais que um símbolo, o atributo de felicidade pública,
da diligência e da prudência, que são fonte da abundância, da esperança e
da equidade.
Mas se há justiça entre os homens, se há justiça entre os deuses, tem que
haver também aquela que preside o relacionamento dos homens com os
deuses, seus superiores.
A justa medida impõe a cada um de acordo com sua natureza! Não se
afronta a genética, nem o DNA, nem a própria condição e circunstância
sem que as forças maiores não se levantem poderosas para enquadrar a
ação desmedida.
Nêmesis, em grego Némesis, do verbo némein, distribuir, donde
Nêmesis é a justiça distributiva, daí a indignação pela injustiça praticada, a
punição divina. A função essencial desta divindade é, pois, estabelecer o
equilíbrio, quando a justiça deixa de ser equânime, em conseqüência da
hýbris, de um excesso, de uma insolência praticada.
Esta divindade tem que ser bem compreendida, segundo nossa visão,
pois mostra o controle da sociedade em curso: Dioniso, deus do povo e da
77
universalidade social, deus da transformação, esse deus cuja experiência
religiosa punha em risco todo um estilo de vida e um universo de valores,
exatamente porque, entranhado no homem pelo êxtase e pelo entusiasmo,
abolia a distância entre o mortal e os imortais, teve que ser desdionizado
em seu conteúdo, punido em sua essência e exorcizado por Apolo,
fenômeno que visivelmente aconteceu nas tragédias gregas, que se tornam
mais apolíneas que dionisíacas, o que, se contraria suas origens, torna-as
palatáveis e aceitas pelos deuses olímpicos.
Moderação, comedimento, ética rigorosa, eis aí como a doutrina
apolínea do “nada em demasia” e do “conhece-te a ti mesmo”, acabou por
se apossar da tragédia e da poesia em geral (e bem assim da vida na polis).
É o aviso prévio de Apolo para que o ánthropos, o simples mortal não
ultrapasse o métron, não ultrapasse a sua medida: não te dionizes é o aviso!
Os devotos de Dioniso, após dança vertiginosa, caem desfalecidos, e
saem de si pelo processo do êxtase. O sair de si jogava-os em Dioniso, seu
adorado, que os acolhia e, pelo entusiasmo, possuía-os. O homem simples e
mortal, em êxtase e entusiasmo, tomado pelo deus, tornava-se herói,
ultrapassava o métron, e virava imortal naquele instante. Esta
ultrapassagem, esta hýbris, esse descomedimento, esta violência feita a si
próprio e aos deuses imortais é que desencadeia a némesis, a punição pela
injustiça praticada... que era, também, a exibição do ciúme divino.
O sair de si significava a superação do ser humano e de sua condição
miserável e, pela ultrapassagem do métron, a liberação total, a total
autenticidade e transparência, a liberdade e a espontaneidade que não é
própria dos seres humanos em geral. Essa superação significava abandono
de tabus, de interditos, de regras, de proibições, de comprometimentos com
convenções de caráter ético, moral, político e social. Mas, além, era, como
seríssima experiência religiosa, e nada mais do que isso (precisaria?), a
divinização do ser humano comum que, tomado pelo entusiasmo, e pelo
êxtase, tinha um deus dentro de si.
A mania (loucura sagrada, a possessão divina) e as órguia (posse do
divino na celebração dos mistérios, orgia, agitação incontrolável),
experiências religiosas fortíssimas, estabeleciam a comunhão com o deus e
seguramente uma transformação, uma liberação, uma catarse, uma
passagem, uma purificação.
E nada disso poderia ser tolerado pelos deuses: a punição via némesis
era a justa retribuição para o ánthropos atrevido.
Os Eupátridas, senhores da terra, do governo, da justiça, da religião,
exerciam seu poder de forma temística, expressa pela vontade divina: eram
seus deuses Zeus, Apolo, Posídon, Ares, Atena, severos, repressivos e
racionais, e com eles ao seu lado garantiam seus privilégios e status quo.
78
Assim, o êxtase e o entusiasmo dionisíacos não eram tolerados...Mas,
uma vez, uma única vez por ano, as festas dionisíacas 92 em curto período,
poderiam acontecer! A plebe se liberava, para depois, controlada, oprimida,
poder voltar em ordem ao curral, até o ano que vem! E a permissão ocorria
porque – eram tão rápidas - estas festas liberavam apenas os sentidos e não
davam tempo à reflexão, e conseqüentemente a uma tomada política de
posição, ou seja, não havia perigo de virem a se constituir em outra coisa: a
permissividade, desde que controlada, era astuta, portanto!
A comparação – imediata - com as festas do Carnaval é evidente e
desnecessária.
As Erínias nascem de Geia (assim, psicanaliticamente, do inconsciente),
mas da seguinte maneira: instado por Geia Crono mutila Urano decepandolhe os testículos; do sangue de Urano que cai sobre Geia nascem dentre
outros as Erínias. Eram identificadas com as Fúrias romanas. Deusas
violentas, Aleto (a que não pára, a incessante, a implacável), Tisífone (a que
avalia o homicídio, a vingadora do crime) e Megera (a que inveja, a que
tem aversão por). Monstros alados, com os cabelos entremeados por
serpentes, com chicotes e tochas acesas nas mãos, são as guardiãs das leis
da natureza e da ordem das coisas no sentido físico e moral, o que as levava
a punir todos os que ultrapassavam seus direitos em prejuízo dos outros,
tanto entre os deuses quanto entre os homens. Mais tarde tornam-se
especificamente as vingadoras do crime, particularmente do sangue
parental derramado. Protetoras da ordem social punem todos os crimes
suscetíveis de perturbá-la, bem como a hybris, através da qual o homem se
esquece de que é húmus, terra, argila, um simples mortal. Por isso as
Erínias não permitem que os adivinhos revelem o futuro com precisão e
certeza a fim de que o homem, na dúvida, não se torne extremamente
semelhante aos deuses. Depois que se estabeleceu uma crença mais forte na
outra vida e que esta foi compartimentalizada em Érebo, Campos Elísios –
dois impermanentes – e Tártaro – permanente – para os condenados a
suplícios eternos, as Erínias aparecem como divindades da expiação e do
remorso encarregadas de punir, no Tártaro, todos os grandes criminosos.
Tisífone açoita os culpados, Aleto persegue com seus fachos acesos aqueles
que devem e Megera (aliás, a Sogra dentre nós) grita-lhes sem cessar, dia e
noite, as falhas que cometeram.
Mas há saída... as Erínias – como se verá logo adiante - podem
transformar-se em Eumênides, isto é, em Benevolentes, Benfazejas com o
auxílio de Atena que as reconduz a uma apreciação mais equilibrada dos
atos humanos: elas permitem que a culpa seja conscientizada, assumida,
interiorizada e sublimada. Livre da culpa o homem, lúcido em função de si
92
(Dionísias Rurais, Lenéias, Dionísias Urbanas ou Grandes Dionísias e Antestérias)
79
próprio, refugia-se junto às Eumênides, cujo santuário em Atenas tinha o
mesmo poder de salvação que o templo de Apolo com sua divisa Conhecete a ti mesmo.
Esta profusão de mitos ainda não era o bastante: a Justiça como um bem
em si tinha que ser controlada pela Razão, bem supremo, pois só
controlada, regrada, metrificada, poderia produzir efeitos calmos, seguros,
ordenados, previsíveis:
Palas Atena (a Minerva romana) cuja ave predileta era a coruja,
símbolo da reflexão que domina as trevas (e como tal sugere a filosofia) era
a defensora e garante de Atenas.
Dividia com Têmis a manutenção da Justiça e instituiu o Areópago, a
assembléia dos Magistrados, o tribunal ateniense.
Contemplando sua cidade, proclama sua fala de paz, de segurança, de
democracia, de liberdade e de justiça.
Pelos lábios de Ésquilo, no fecho do julgamento de Orestes, perseguido
pelas Erínias, vencidas por Atena, a deusa, mais uma vez, agora com o
escudo da Razão, restabelece o domínio da ordem sobre o caos, da luz
sobre as trevas, do primado do “direito do homem” sobre o “direito das
trevas”:
Ouvi agora o que estabeleço, cidadãos de Atenas,
que julgais a primeira causa de sangue. Doravante
O povo de Egeu conservará este Conselho de Juízes,
Sempre renovado, nesta colina de Ares.
Nem anarquia, nem despotismo, esta é a norma
Que a meus cidadãos aconselho observarem com respeito.
Se respeitardes, como convém, esta augusta Instituição,
tereis nela baluarte para o país, salvação para a Cidade.
Incorruptível, venerável, inflexível, tal é o Tribunal,
Que aqui instituo para vigiar, sempre acordado,
sobre a Cidade que dorme.
93
E assim a Razão, pretextando segurança, invade, absoluta, a cena
jurídica, institui o controle e salva de contestação os direitos dos
Eupátridas.
Surpreendentemente há sim como mesclar este longo escrito sobre os
gregos e terminar com uma história bem brasileira – e tão melhor, pois é o
Brasil, precoce, influenciando o mundo já no século XVI, época de seu
descobrimento.
93
(Eum., 681-706)
80
A influência brasileira foi forte, principalmente na França: o nosso
modo de ser (exótico, palavra difundida por Rabelais (1494/1533) quando
admiradamente nos descrevia) obrigou as pessoas pensantes à grande
reflexão sobre um modo de vida diferente que lá não operou uma nova
civilização, mas influiu fortemente no surto de modernidade que iria
aparecer na Europa. Já em Rabelais a utopia da Abbaye de Thélème é –
dito pelo autor – bastante inspirada nos selvagens do Brasil.
Todo o modo de ser dos nossos índios fez ver à Europa que ela havia
esquecido valores fundamentais; as minorias perseguidas identificaram-se
com eles e neles reconheceram o símbolo da liberdade que deveria ser
brandida contra a intolerância, o sectarismo e a agressão e neles os
pensadores da época (re) encontraram valores que redefinem o humanismo
desta fantástica (e, então, esquecida) relação do homem com a natureza.
O desenvolvimento das ciências humanas, neste tempo, inclusive o
“terrível sentimento de culpa, a torturante noção de pecado e a amargura
européia” versus o “brasileiro gosto pela vida, pela liberdade, pelo ócio,
pela dança, pelas festas, pelos prazeres, pela alegria, pela simplificação,
pelo divino, pelo dionisismo, enfim”, o reconhecimento de que estar vivo é
um dom de Deus, se dá por causa deste olhar do europeu sobre o Novo
Mundo.
Isto lhe propicia adquirir enorme riqueza cultural pelo balanço da
convergência deste olhar de velho mundo com o jeito do novo e a flagrante
divergência com os valores falsos implantados na sociedade da época e que
não atendiam aos anseios dos mais iluminados, dos mais autênticos, dos
mais francos.
Mas há mais: alguns índios brasileiros, em diversos momentos, foram
levados à Europa para exibição, contatos e estudos; são protagonistas de
várias histórias relatadas, dentre outros, por Michel de Montaigne 94que
esteve com três deles em outubro de 1562, em Rouen. Estas histórias foram
objeto de reflexão por parte de vários autores (até chegar – de volta! - com
Oswald de Andrade) que vislumbraram uma nova maneira de ver o que era
visto sempre do mesmo jeito – a Filosofia das Luzes, o estado de natureza
e o estado do bom selvagem vem deste evento; o Huron de Voltaire (in
L’Ingénu) tem aí sua origem; a crítica social vê aqui os fatos que devolve
com insolência remarcável e assim por diante, até os conhecidos reflexos
no século XVIII.
Uma das histórias que afetou Montaigne e que ele relata com despudor
em seus pensamentos trata da estupefação de nossos índios ao ver a enorme
diferença de riqueza e qualidade de vida entre os nobres franceses (os
Eupátridas de então) e o populacho. Disseram os índios – literalmente achar muito estranho que algumas pessoas sofressem tanta injustiça e que
94
(Essais, Les Cannibales, in Collection Littéraire Lagarde & Michard, XVIe siècle, II, 1965)
81
eles não compreendiam que estes necessitados não atacassem os mais
afortunados pela garganta e lhes pusesse fogo às mansões.
Quanto sentimento.
Em 1789...
2.2- Outra construção humana: o logos e algumas concepções de
diversos filósofos pinçados aleatoriamente
O tema foi objeto das maiores reflexões das maiores cabeças pensantes
que o gênero humano produziu. E foi sempre anseio das pessoas
comuns.
Pinçaremos a seguir, de forma não taxativa, alguns dos enunciados, sem
aprofundá-los, apenas com o desejo de apresentá-los.
Justiça é algo que todos sabem o que é e é algo em que todos
acreditam. Não há dúvidas nem quanto à sua existência nem quanto à
sua necessidade. Ela não é negada por quem quer que seja e é um dos
fundamentos mais fortes e poderosos de uma das condições que nos
mantém humanos. “Amai a Justiça, vós que governais a Terra, tende
para com o Senhor sentimentos perfeitos, e procurai-o na simplicidade
do coração...porque a Justiça é imortal” . 95
Não há, todavia, universalmente aceita, sequer uma definição do que
seja Justiça.
Passado o impacto inicial que a todos irmana – a Justiça existe, é
fundamental e nela acreditamos com fervor – instala-se a confusão
sobre o que ela seja exatamente, como se manifesta, qual sua
característica, a quem, e como, atinge e aproveita, de que forma (se é
que seria necessário) acioná-la, de que forma ativá-la.
E é tema da maior importância: como as leis podem ser revogadas a
qualquer momento (ainda mais hoje em que a lei, na acepção mais
chula, é produto de consumo de uma sociedade voltada
exclusivamente para o consumo) e podem se adaptar aos novos fatos
sociais rapidamente fica tisnada (a sensação é desconfortável depois
da experiência nazista na Alemanha) a sensação de perenidade do
Direito e surge a pergunta: há Justiça no Direito? Há continuidade
nas relações jurídicas de forma que se possa perpetuar o que é bom?
Diz-nos Tércio Sampaio Ferraz Junior que desde a Antiguidade foi
na idéia de Justiça que se buscou a estrutura de resistência à
mudança e foi nela que se ancorou a segurança de que a
95
(Livro da Sabedoria, I, juntando 1 e 15 ).
82
experiência jurídica tem um sentido persistente. “A presença, pois,
da justiça como uma espécie de código de ordem superior, cujo
desrespeito ou violação produz resistência e cuja ausência conduz à
desorientação e ao sem sentido das regras de convivência, pode-nos
levar a admiti-la como um princípio doador de sentido para o
universo jurídico.96
Como dito, pretendemos nesse trabalho vincular o sentimento de
justiça à Paidéia de um povo porque a nosso ver cada Paidéia cada
Justiça, esta, portanto, reflexo umbilical daquela; mas Paidéia no
sentido grego como nos é referido por Jaeger: civilização, cidadania,
dignidade, integridade, autonomia, senso da própria fragilidade e
bem assim da dos outros, respeito, solidariedade, sentimento de que
o individual se submete ao coletivo (assim como, no melhor sentido
brasileiro, a mãe serve à família), cultura, tradição, artes, educação,
autenticidade, amor à vida, informação e formação e sem cometer o
erro ocidental de tomar cada palavra de per si como se cada
significado fosse usado separadamente, tomando, aliás, ao mesmo
tempo todas as palavras juntas, como se cada vez que se falasse em
Paidéia, todos aqueles conceitos separados se amalgamassem em um
e fossem compreendidos todos em conjunto e ao mesmo tempo,
como uma coisa só. Talvez outra palavra pudesse ser o espírito de
um povo. Sabemos bem que alinhar palavras vagas como o fizemos,
pode produzir conceitos, definições e conclusões vagas e diversas.
Pode produzir belos discursos, mas antípodas entre si. Mas é
exatamente este o nosso desejo. Sua motivação aparecerá ao longo
da exposição até o afunilamento das nossas idéias
*
Para começar o passeio pelas conquistas humanas na área
escolhemos um registro jurídico importante, aquele que está no
Código de Hamurabi, baseado em antigas leis semitas e sumerianas
(Código de Dungi), um dos mais antigos documentos jurídicos
conhecidos, muito importante para o direito asiático, para o
babilônico e particularmente para o direito hebreu, entregue
diretamente pelo deus Sol Chamash a Hamurabi ou Kamu-Rabi
(2067-2025 antes de Cristo), rei da dinastia amorrita e reunificador
da Mesopotâmia e fundador do primeiro império Babilônico que fala
em 282 artigos de praticamente todos os aspectos da sociedade
babilônica tais como comércio, família, propriedade, herança,
escravidão, delitos e suas penas, tudo conforme a categoria social do
96
( Introdução ao Estudo do Direito, 2001, pág 347) nosso grifo
83
infrator e da vítima. Pois bem, é no Prólogo que lemos que tal código
vem “para implantar justiça na terra, para destruir os maus e o mal,
para prevenir a opressão do fraco pelo forte”.
“São os poderosos que entendem de honrar, essa é a sua arte, seu
reino de invenção. A profunda veneração pela idade e pela tradição
– o direito inteiro está contido nessa dupla veneração -, a crença e
o preconceito em favor dos antepassados e em desfavor dos
vindouros são típicos da moral dos poderosos; e se, inversamente,
os homens das “idéias modernas” acreditam quase instintivamente
no “progresso” e no “futuro” e carecem cada vez mais do respeito
pela idade, com isso já se denuncia suficientemente a origem nãonobre dessas idéias”. 97 Não à toa Hanna Arendt nos brindou com
seu excelente texto sobre Autoridade sobre o qual falaremos mais
tarde. 98
Mas a “Justiça na Terra” é, e continua sendo, entretanto, o anseio.
Não só na Babilônia, mas na Grécia e em toda a parte, em todo o
tempo.
Vernant 99 nos mostra como o conceito veio evoluindo de mito para
logos na Grécia antiga. A Razão grega que visa influir nas pessoas
nasce com a Polis e com suas inovações “é filha da cidade”.
O autor nos diz que a efervescência religiosa na Grécia antiga dá
nascimento ao Direito e à reflexão moral com especulação política.
Surge uma nova Arete despojada de seu tradicional aspecto guerreiro
(boas palavras e boas ações, como vimos) e com ênfase na virtude
fruto de uma disciplina dura e severa, de um controle constante e
rigoroso sobre si, de luta para escapar das tentações do prazer, da
moleza e da sensualidade, dos exageros da riqueza e para perseguir
uma vida voltada ao esforço, à prudência e à justa medida. A riqueza
que não conhece limites, o descomedimento que é a hybris ela
mesma, a demonstração de que ‘quem tem mais ambiciona o dobro
ou quem possui quer mais ainda’, que a riqueza não tem outro
objetivo senão ela mesma, que a riqueza se torna no homem loucura
e causa a arrogância aristocrática que gera injustiça e cada vez mais
injustiças, são pensamentos que passam a ser o mote moral do século
VI e têm em Sólon 100 seu codificador. A justa medida, a temperança,
a prudência, a proporção, o justo meio, “nada em excesso”, passam a
ser a fórmula da sabedoria. Sólon fará da polis um local harmonioso,
com equilíbrio das forças contrárias, do rico que tudo quer conservar
99
97
(Nietzsche 1978 pág 292 nosso grifo)
98
Entre o Passado e o Futuro, 2001, pág 127 e seguintes).
Op. Cit. (pág 58 e ss)
(eleito em 594 antes de Cristo e deposto em 560)
100
84
com o pobre que tudo quer obter, um acordo entre elementos rivais.
Vem com força o império da lei escrita, do nomos que por sua
relação com dike traz uma ressonância religiosa que nunca teve. O
equilíbrio de forças sociais opostas, o ajuste de atitudes humanas
antagônicas, preconiza o fim da hybris, do egoísmo dos que querem
tudo para si e com crueldade pretendem dispor dos outros. A paz e o
fim das disputas erradicará a desordem, implantará a ordem. É a
suprema instalação da dike no reino grego e na ágora.
Surgem duas correntes de pensamento: uma quer a harmonia
individual, outra quer a harmonia da cidade. Uma tendência visa a
pureza essencial e íntima como alvo; outra quer todos
comprometidos com a vida pública. Em Esparta a sophrosyne
aparece com feição social: o jovem tem que aparentar comedimento.
Comedimento no olhar, no vestir, no andar, no beber, no tratar os
mais velhos, as mulheres, a todos. Comedimento é a virtude desejada
socialmente. Em Atenas a sophrosyne de Sólon pretende a igualdade.
“O igual não pode engendrar guerra”, diz Sólon. Mas é uma
igualdade geométrica e não aritmética que a noção essencial é a de
proporção. Cada um dos componentes da cidade tem seu lugar e
possui a proporção de poder que lhe cabe em função de sua própria
virtude e aos melhores estão reservadas as melhores magistraturas. A
igualdade está agora na lei que está fixada e que é a mesma para
todos os cidadãos. É a dike que fixa a ordem e as leis escritas
substituem a força que fazia os fortes sempre triunfarem. Sobrevém a
equidade, o equilíbrio.
As duas grandes classes sociais (eram quatro na realidade e dispostas
por Sólon segundo uma medida de produtos agrícolas de que
pudessem dispor), a dos ricos e a dos pobres, entendendo o projeto
de que as leis da cidade devem compor relações entre indivíduos
segundo os mesmos princípios de vantagem recíproca que presidem
o estabelecimento de um contrato, reclamam igualmente a isotes, a
equidade. A corrente aristocrática reclama uma igualdade como a
que, acorde harmônico, dispõe notas diferentes em uma música
bonita: 2/1, 3/2, etc., pois a justa medida deve conciliar forças
naturalmente desiguais assegurando uma preponderância suave de
uma sobre a outra. Platão repetirá a forma em A República. A elite
não procurará riqueza e poder, mas, por conversão, os melhores não
desejarão ter mais; a equidade é introduzida nas relações sociais
graças a uma transformação psicológica da elite que é formada por
uma Paidéia filosófica que visa a justa medida. As classes baixas
ficam contidas na sua posição inferior sem sofrer nenhuma injustiça.
A corrente democrática vai no sentido de uma igualdade 1/1. Define
todos os cidadãos como iguais independentemente de fortuna ou
85
virtude e lhes assegura os mesmo direitos e a possibilidade de
participar em igualdade de todos os aspectos da vida publica. Tal é o
seu ideal de isonomia, a justa medida, a única medida, a de
proporcionar entre os cidadãos a igualdade plena e total.
Com Clístenes 101 o ideal igualitário que se exprime no conceito de
isonomia passa para a realidade política: o mundo forma um sistema
coerente, regulado por relações e correspondências que permitem aos
cidadãos serem idênticos, entrar uns com os outros em relação
simétrica, compondo um cosmos unido, homogêneo, sem hierarquia.
A soberania, a liderança, passa de um grupo social a outro,
incessantemente, de tal forma que mandar e obedecer passa a ser,
antes de oposição, uma mesma relação. Pela isonomia o cosmos vira
de um quid cheio de irregularidades para uma forma circular que
cada cidadão vai percorrer ocupando cada espaço e todas as posições
do círculo que tem a cidade em seu meio.
Com Jaeger 102 vemos a mesma mudança fundamental: no tempo
de Homero Zeus dava aos reis homéricos “cetro e themis”. Themis
era o compêndio da grandeza cavaleiresca e significa “lei”
etimologicamente. Os cavaleiros dos tempos dos patriarcas julgavam
de acordo com a lei que recebiam de Zeus e criavam suas normas
conforme seu saber e a tradição. Dike é um conceito tão velho
quanto, mas que se incorporou ao falar cotidiano muito mais tarde:
significava “dar a cada um o que lhe é devido”: as partes na disputa
judicial “dão e recebem dike”. O culpado dá dike, ou seja, indeniza
ou compensa. O afrontado “recebe dike”, o juiz “reparte dike”. O
sentido, o imenso significado que a palavra toma a partir dos tempos
homéricos deriva do fato de a lei, a norma, estar escrita e criar
direitos e deveres para qualquer um. Cada um pode exigir. Enquanto
themis significava mais a autoridade do direito, sua legalidade e
validade, dike significava a justiça cumprida, implementada. Dike
passa a ser a palavra de ordem, esgrimida por uma classe
desprotegida que recebia themis, ou seja, o direito de cima para
baixo: igualdade é o clamor!
A idéia do vulgo é que há que se pagar o igual com o igual, há que
devolver exatamente o que se recebeu, há que compensar exatamente
o prejuízo causado. Dike resolve a luta de classes.
Note-se que desde Hesíodo, mesmo que ele quisesse também
resolver seu problema privado com seu irmão, já vinha o clamor
contra os “devoradores de presentes”, contra uma injustiça que hoje
pode ser reconhecida como Social; a aplicação da lei de cima para
baixo, em Homero, resultava, também, em benefícios para os
101
102
(508-502 a C.)
op. Cit. (pág 130 e ss)
86
aristocratas e em prejuízo para o povo. O sistema jurídico em vigor
imbricava-se no sistema político e as partes em conflito conviviam
no mesmo espaço físico em bastante proximidade. A ágora,
principalmente depois de Sólon, fazia com que todos fossem
efetivamente responsáveis. As injustiças sociais eram resultantes
diretas das injustiças pessoais perpetradas por uns em seu próprio
interesse em detrimento de outros menos poderosos. E estas pessoas
eram perfeitamente identificáveis. É hoje, muito mais do que antes,
que o Poder não tem rosto e ele é meramente sentido sem que se
identifique com clareza de quem emana.
Para efeito deste trabalho esta hoje chamada Justiça Social tem
menos interesse porque o escopo deste estudo está centrado na
decisão judicial e na sua repercussão para as partes. Ou seja, quando
um ofendido requer ao Tribunal que seja aplicada justiça ao seu caso
particular. Assim, sempre que possível distinguiremos, por corte
artificial, a justiça que, em tribunal, as partes ofendidas visam da
justiça que o corpo social almeja: esta será sempre encarada por nós
como a vontade política dos que podem fazer desta maneira, dos que
integram anonimamente o chamado Mercado e fazem assim por que
querem e não de outro jeito; aquela como a implementação da
vontade política de um juiz de proceder desta maneira e não de outra
ou de como o juiz aplica seu Sentimento ao caso em questão. Não
pretendemos aqui discutir senão a repercussão de uma sentença
(mesmo que as partes sejam, como costumeiramente são em nosso
país, governo ou estado contra particular), suas motivações e a
harmonia ou a desarmonia que provocarem.
Feita a observação que ajusta a estreiteza do nosso objetivo podemos
retornar no tempo e recuperar os conceitos históricos para ampliar
nossa concepção.
O surgimento da idéia de um direito igualitário transforma o cenário.
A primitiva experiência da igualdade perante um juiz ou perante a lei
faz surgir a isonomia. Busca-se a medida para decidir questões como
o seu e o meu, dar ou restituir o que já tem dono ao seu dono. O
conceito de dike é esta medida. Pode significar a igualdade dos que
não têm direito igual (o não nobre perante a lei ou o juiz), pode
significar a participação de todos na justiça, a igualdade de votos nos
assuntos de Estado, a igual participação nos postos diretivos que,
antes, pertenciam somente aos nobres. É o embrião da democracia.
A Arete deixa de ser falar boas palavras e praticar boas ações, a
coragem guerreira, para obedecer às leis do estado: chegou-se ao
critério de que a lei contem o justo e o injusto está em não praticá-la.
O ideal espartano é substituído pelo ideal de justiça que substitui o
agora antigo proceder guerreiro cavaleiresco. O conceito de justiça é
87
a Arete que compreende e superas as formas anteriores sem, todavia,
abandoná-las. Desemboca em Aristóteles quando ele reconhece uma
justiça em sentido estrito, em sentido jurídico e outra mais global que
compreende o conjunto de normas políticas e morais.
A lei converte-se em rei e com ela está afastado o arbítrio. Por isso
que o homem deve lutar por ela como por suas muralhas como diria
Heráclito.
Está em Anaximandro, meados do século VI, inaugurando a
Filosofia do Direito, a 103 “transposição para o reino da natureza da
representação da dike da vida social da polis quando explica a
conexão causal da geração e corrupção das coisas como contenda
jurídica, em que, por sentença do tempo elas terão que expiar e pagar
indenização conforme as injustiças que cometerem”. Jaeger afirma
estar aí a origem da idéia filosófica do cosmos expressando a reta
ordem do estado e de toda a comunidade; a experiência jurídica da
lei e do direito coloca-se no centro do pensamento, permeia a
existência e passa a ser fonte genuína da crença relativa ao sentido
do mundo. A consciência filosófica e o Estado jurídico caminham
juntos. O cidadão passa a ter vida própria e vida comum. Todos
devem participar ativamente no estado e na vida pública com a
consciência dos seus deveres cívicos distintos dos da esfera privada.
Surgirá o homem político de Aristóteles que se distingue do animal
por que é cidadão. E em Platão o estado como seu fim último e que
precisa de um saber diferente do saber especializado dos
negociantes, merceeiros ou lavradores, “a essência de toda a
verdadeira educação ou Paidéia a qual é educação na Arete que
enche o homem do desejo e de ânsia de se tornar um cidadão perfeito
e o ensina a mandar e a obedecer sobre o fundamento da justiça”.
Em Heráclito surge a unidade fundamental de todas as coisas: a
“natureza que gosta de se ocultar”, a multiplicidade aparente, a
unidade de tensões opostas indica a harmonia oculta das forças
opostas “como a do arco e da lira” e o logos é a unidade nas
mudanças e nas tensões a reger todos os planos da realidade. “O que
varia está de acordo consigo mesmo” e a verdadeira justiça não é a
que Anaximandro propôs com a extinção dos conflitos e das tensões
através da compensação dos excessos de algo em relação a seu
oposto. A justiça não significa apaziguamento, pois “o conflito é o
pai de todas as coisas” e “o combate é o-que-é-com (isto é, o
comum) e justiça é discórdia e as coisas vêm a ser segundo discórdia
e necessidade”.
103
op. Cit. (pág 143)
88
Na nossa busca aleatória das noções sobre justiça damos, da Grécia,
um salto enorme para Nietzsche 104que dizia que a justiça
(equidade)105 tem sua origem naqueles que têm potência mais ou
menos igual. Onde não há supremacia visível, onde o combate traria
danos irreparáveis e mútuos, surge o desejo de apaziguamento,
donde a troca é o caráter inicial da Justiça. “Dá-se a cada um o que
ele quer ter, como doravante seu, e se recebe em compensação aquilo
que se deseja”. “Justiça é autoconservação inteligente, portanto,
retribuição e intercâmbio sob a pressuposição mais ou menos igual
de potência”.
Foi Kelsen que, em vários livros, estudou os diversos conceitos de
justiça, suas diversas formas de apresentação e exarou crítica acerba
a cada conceito reduzindo-os ao nada vazio que ele pretendia todos
fossem.
Em “O que é Justiça”, Hans Kelsen tem como premissa que “talvez
por se tratar de uma dessas questões para as quais vale o resignado
saber de que o homem nunca encontrará uma resposta definitiva,
deverá apenas tentar perguntar melhor”.
Neste livro 106 em diversos artigos e no livro “O Problema da
Justiça” 107 Kelsen enumera os tipos de normas de justiça, que ele
divide em “ normas de justiça do tipo racional “ e “ normas de
justiça do tipo metafísico “.
As primeiras apresentam-se como de fácil e universal entendimento,
postas pela experiência e, assim, evidentes.
As normas do tipo metafísico são absolutas e excluem, portanto,
qualquer outro ideal e caracterizam-se por sua transcendência, ou
seja, sem qualquer fundamento empírico informam seu conteúdo que
depende da crença dos que nele acreditam.
Cada uma delas merece uma crítica de Kelsen que as fulmina como
vazias e inúteis. Deixaremos de apresentar seus motivos para não
fugir do escopo deste trabalho. Mas deste estudo nos valemos para
mostrar como cada sentimento produz cada visão do que é justo.
São elas, resumidamente:
A) do tipo racional
a. a famosa suum cuique, norma segundo a qual a cada um se
deve dar o que é seu, isto é, o que lhe é devido;
b. a famosa regra de ouro, a que diz “ não faças aos outros o que
não queres que te façam a ti “;
104
Que tanto estudou a Grécia!
Op. Cit. (pág 98)
106
(que teve sua primeira edição em 1957),
107
(que teve sua primeira edição em 1960)
105
89
c. o imperativo categórico de Kant, parente da regra de ouro,
que diz “ age sempre de tal modo que a máxima do teu agir
possa por ti ser querida como lei universal “;
d. os ditos, bem explorados por Tomás de Aquino na Summa
Theologica, “ faz o bem e evita o mal “ e “ os homens devem
ser bem tratados e não maltratados “ ;
e. a máxima “ devemos tratar outrem tal como os membros da
comunidade consuetudinariamente se tratam uns aos outros “;
f. o método matemático-geométrico de Aristóteles que ensina
que “ a virtude é o meio-termo entre dois vícios “ ou “ a
conduta reta é o meio-termo entre praticar a injustiça e sofrer a
injustiça “;
g. o princípio retributivo como princípio de justiça;
h. o princípio da equivalência entre prestação e contraprestação
como norma de justiça ou “ a cada um segundo a sua
prestação”;
i. a proporcionalidade entre prestação e contraprestação e
cálculo de salário;
j. o princípio de Marx segundo o qual “ a igual prestação de
trabalho cabe igual salário, isto é, cabe igual participação no
produto do trabalho” ou “ cada um segundo as suas
capacidades, a cada um segundo as suas necessidades “;
k. o preceito do amor ao próximo ou “a cada um segundo as suas
necessidades”;
l. a liberdade como fundamento da justiça;
m. o “ contrato social “ e o ideal de justiça da democracia liberal;
n. a justiça e a igualdade como conseqüência lógica da
generalidade da norma ou a igualdade perante a lei ou “todos
os homens devem ser tratados por igual”. .
B) do tipo metafísico:
a. Justiça em Platão;
b. Justiça e Amor a Deus ou a Justiça Divina;
c. Justiça e felicidade;
Lido o modelo classificatório de Kelsen já se tem visão do tamanho
do problema!
Giorgio Del Vecchio escreveu (A Justiça) um tratado histórico das
principais teorias sobre justiça apresentadas por seus famosos autores e
merece uma espiadinha para aumentar no leitor a confusão que o tema
desperta.
*
90
Há uma constatação que fizemos a partir dos estudos que desenvolvemos
para formular este trabalho.
A justiça, qualquer que seja seu modelo, tem um caminho insólito e
permanente: ela nasce a partir de quem a proclama.
Cada um é juiz de si mesmo e dos outros bem antes de ser julgado por um
Juiz togado.
Nesta acepção, Justiça é o sentimento que dá causa à posterior relação
harmônica e satisfatória entre pessoas (físicas ou jurídicas de direito
público ou privado, pessoas concretas ou entes abstratos) depois que a
expectativa de uma foi frustrada pela ação ou pela omissão da outra.
Daí termos dado tanta importância ao texto de Kelsen quando ele, bem no
fim d’A Teoria Pura, apresenta seu trabalho (como um apêndice mesmo)
sobre a hermenêutica.
Quem se omite de algo ou faz algo em função exclusiva deste sentimento
de justiça e, assim, antecipadamente, não frustra alguém, não age com
justiça, mas com virtude.
Interessante notar que cada concepção muda do ponto de vista de quem
‘descobriu’ o conceito. Assim, normalmente, a crítica ao conceito vem
contra o fato de o seu autor pretender seja outorgado à sua descoberta status
de máxima geral; a visão muda quando o mesmo conceito é
particularizado. Daí a facilidade de compreender a equidade e sua definição
de justiça aplicada ao caso concreto.
Diante disto podemos formular, para efeito deste trabalho, nossa
constatação de que a Justiça é um sentimento, próprio de cada ser humano,
individual e singularmente considerado, e que expõe o que este ser humano
julga, por si, ter a receber de outro, por crédito ou merecimento seu, ou que
justifica o que este ser humano, por convencimento próprio, se obriga a dar
a outrem por débito ou merecimento deste outro.
Assim a previsibilidade, tema que perseguimos, parece fugir de nossa
vista.
3 - Ideologia. O Juiz e a Juíza resolvem mudar o mundo
Ideologia é uma palavra que será tratada aqui no sentido que lhe damos de
conjunto nem sempre homogêneo e coerente de convicções, certezas e
avaliações que um indivíduo recebe de outras pessoas e/ou adapta, forma,
inventa e constrói para si, ao sabor de pré-verdades já absorvidas no
91
decorrer de sua vida adolescente e nas quais acredita como manifestação
objetiva do bem e da beleza e da verdade e da justiça e pelas quais luta no
limite das possibilidades e interesses que têm e conforme o modo de agir
que traçou para sua existência.
Não usamos, portanto, o termo somente na sua acepção política, mas na sua
acepção a mais geral possível.
Outras palavras como dignidade, honra, postura, respeito, educação, estilo,
modo de ser, olhar lançado para o futuro, ou para o passado, vaidade,
ressentimento, autocomiseração, caridade, piedade, complexo de
superioridade, ou de inferioridade, complexo de autoridade, devaneios
eufóricos e entusiasmados, se agasalham na ideologia, lá se instalam, lá se
escondem, e ficam cutucando as atitudes do indivíduo.
A palavra identifica, assim, diversas posturas do mesmo indivíduo que age
deste modo, ou de outro, por convicções ideológicas e se vê sempre
confortável porque recoberto de razão ideológica. Ter atitude ideológica
(no esporte, na sociedade, na política, no direito, nos negócios...) é
pertencer a um time, a uma facção, a uma tribo com a mesma visão do
mundo, e isso conforta na medida em que a companhia de outras pessoas
com o mesmo ideário facilita e alivia o caminhar do sujeito. Esta pessoa se
vê conforme outras – todas se reconhecendo mutuamente e se dando
suporte - e isto confere unidade à atitude que parecia singular. O time
chancela o seu participante.
Mas se há intenção de coerência, nem sempre é possível vestir o mesmo
uniforme: quem age sempre tenta revestir de unidade coerente sua ação e
por isso que suas convicções ideológicas tendem a uma homogeneidade
teórica mas que nem sempre conseguem na prática se apresentar lineares:
dependendo da circunstância a ação, às vezes, está sob uma capa
ideológica e não de outra mais coerente com o todo original do sujeito
(outro motivo para o mandamento “nunca serás apanhado” ter que
funcionar), ou seja, nem sempre o agir justo está manifestado da mesma
forma e as pessoas mudam ao sabor de sua conveniência.
A ideologia apresenta-se apenas como uma crença capaz de controlar
comportamentos. Nesse sentido é muito útil e, para isso, requer sempre um
time, um partido, uma associação, que a convalide.
Em sua defesa de sustentação clama ser a única a conhecer a realidade e,
portanto, a única a apresentar as coisas como elas são, o que é um bom
motivo para ideologias diferentes não se conciliarem nunca.
Não queremos aqui abordar o conhecimento e sua origem, se ele é possível
ou não, se alguém consegue apreender a realidade em sua essência ou em
sua manifestação, se há conhecimento absoluto ou relativo: queremos
mostrar apenas como se consubstancia o “senhores, eu sei” e como se
manifesta a atitude.
92
Partindo do nosso pressuposto de que a realidade é uma percepção na
mente, este é o sentido que damos à palavra ideologia: retórico de utilidade
e persuasão. Remetemos seu sentido amplamente ao sentimento, ao valor, à
fé e ao interesse.
Autores, como Marx, diziam que as correntes ideológicas acreditam-se
universais quando são o mero espelho das intenções da classe dominante.
Para eles a ideologia e suas distorções não são obra de uma única fonte
perversa a serviço da burguesia, mas conseqüência da perversa divisão da
sociedade e da exploração de uma maioria pela minoria detentora dos
meios de produção e do capital. Neste sentido o Direito não é um sistema
de normas, mas o meio de imposição de uma classe dominante a uma
classe dominada. É uma ideologia que falsifica a realidade para favorecer
uma classe em detrimento da outra. Tal esquema necessita da coação para
se perfazer e é exatamente o Estado que se incumbe da aplicação da coação
para quem não cumpre as normas vigentes. Este Estado é conforme a classe
dominante, está a seu serviço e só numa sociedade sem exploração é que
haverá uma sociedade sem Estado nem Direito.
Kelsen (que sustenta que o dever-ser não pode – segundo uma consideração
meramente sociológica -, como ilusão ideológica, ter expressão numa
descrição científica do Direito 108 ) fazia uma hábil distinção entre termos
para explicar porque a sua Teoria Pura do Direito é isenta de ideologia:
num primeiro sentido “somente quando se entenda ”ideologia” como
oposição à realidade dos fatos da ordem do ser, isto é, quando por ideologia
se entenda tudo que não seja realidade determinada por lei causal ou uma
descrição desta realidade, é que o Direito, como norma – isto é, como
sentido de atos da ordem do ser causalmente determinados mas diferente
destes atos -, é uma ideologia. Se por “ideologia” se entende, porém, não
tudo o que não é realidade natural ou a sua descrição, mas uma
representação não objetiva, influenciada por juízos de valor subjetivos, que
encobre, obscurece ou desfoca o objeto do conhecimento, e se se designa
por “realidade”, não apenas a realidade natural como objeto da ciência da
natureza, mas todo o objeto do conhecimento e, portanto, também o objeto
da ciência jurídica, o Direito positivo como realidade jurídica, então
também uma representação do Direito positivo se tem de manter isenta de
ideologia (neste segundo sentido da palavra). Se se considera o Direito
positivo, como ordem normativa, em contraposição com a realidade do
acontecer fático que, segundo a pretensão do Direito positivo, deve
corresponder a este (se bem que nem sempre lhe corresponda), então
podemos qualificá-lo como ideologia no primeiro sentido da palavra. Se o
consideramos em relação a uma ordem “superior” que tem a pretensão de
ser o Direito “ideal”, o Direito “justo”, e exige que o Direito positivo lhe
corresponda – em relação, por exemplo, com o Direito natural ou com uma
108
– 2000 pág 114
93
Justiça por qualquer forma concebida - , então o Direito positivo, isto é, o
Direito estabelecido por atos humanos, o Direito vigente, o Direito que, de
um modo geral é aplicado e seguido, apresenta-se como o Direito “real”, e
uma teoria do Direito positivo que o confunda com um Direito natural ou
com qualquer outra idéia de Justiça, com o intuito de justificar ou
desqualificar aquele, tem de ser rejeitada como ideológica, no segundo
sentido da palavra. A ciência tem, como conhecimento, a intenção
imanente de desvendar o seu objeto. A ciência do Direito não pode
preocupar-se nem com a ideologia que conserva a ordem posta nem com
aquela que quer substituir esta ordem por outra”. Uma tal ciência jurídica é
o que a Teoria Pura do Direito pretende ser“.109
Pretendendo distanciar sua ciência da dita ciência jurídica tradicional que,
de um jeito ou de outro, legitima a ordem social vigente, Kelsen finge
ignorar, todavia, que toda ordem posta é construída por alguém com algum
objetivo que não se revestirá nunca da pretendida pureza kelseniana de
buscar a verdade somente a verdade (do ponto de vista científico, a
intenção imanente de desvendar o seu objeto) sem qualquer interesse outro
porque o homem não sabe ainda (como ele mesmo reconhece em outros
textos) o que é, nesse campo, a verdade.
Assim, e no mesmo sentido, pelo nosso entendimento, verdade no sentido
jurídico, portanto verdade no campo da axiologia jurídica, não existe nem
pode ser alcançada por ser apenas um conceito construído de acordo com a
época de sua formulação e não oferece possibilidade de verificação
intersubjetiva independentemente de tempo/espaço.
Há quem considere a ideologia como a quintessência do valor.
Valores nas coisas são os homens que põem, fala a filosofia nietzschiana.
“Bondade, as coisas a têm, desde que foram criadas, nos diz Goffredo.
Valor, elas o adquirem, depois de serem apreciadas pelo homem”110.
Usamos, pois, estas palavras no sentido de que os homens julgam o que
lhes é objeto de interesse fazendo imediata comparação; eles escolhem
após apreciar (conferir preço), estimar, sopesar, avaliar: algo vale mais que
outra coisa, vale menos que outra coisa, vale o mesmo que outra coisa.
Valor em si não há. E valor é sempre valor de algo para alguém.
Assim nascem os juízos de valor que não se referem à existência, à
essência ou ao modo de ser das coisas, mas apenas sobre o seu valor, sobre
o valor dessas coisas.
Goffredo nos diz que “são os juízos de valor que precedem e determinam
os sentimentos”111; é através do sentimento que o valor é atribuído às
coisas, dizemos nós.
109
(2000 pág 113 e segs)
filosofia do direito, pág 197
111
obra citada pág 364
110
94
*
3.1- cada um nasce com seu modo de ser e ver o mundo
A divisão socialismo/liberalismo estaria, antes que em diferenças
consensuais, no jeito como olhamos o mundo, ou seja, como construímos o
mundo a partir de nossos sentimentos. A atitude é um divisor de águas não
só político: orienta a vida do prosélito como um todo.
Há uma teoria dentre várias que são discutidas pelos novos estudiosos da
matéria e que tem em Steven Pinker, lingüista canadense e professor do
MIT, um dos arautos de uma solução bastante criativa.
Em seu livro “The Blank Slate”, este controvertido autor (mais por seu
estilo que por suas posições) e que discorre sobre a condição inata ou não
inata do comportamento humano, fala da forte influência que o modo de
aceitar ou recusar esta teoria tem sobre a forma de o ser humano se
posicionar na sociedade. Expõe que de um lado estão aqueles que
entendem que somos uma massa informe e que somos passíveis de sermos
moldados, para o bem e para o mal, pelo meio. De outro lado, aqueles que
acreditam na influência do meio, mas que o indivíduo nasce sob fortes
características herdadas, inatas. O sistema cultural das últimas décadas
(esquerda) tende a aceitar a primeira e o liberalismo e a ciência moderna
(biologia, neurologia e a sociobiologia) tende a aceitar a última. A
diferença básica é que, acreditando na idéia de que nascemos
intrinsecamente bons, sem características definidas e que somos moldados
pelo meio tendemos a acreditar em uma ação direta da justiça na
distribuição dos direitos a que cada indivíduo teria, pois nascemos todos
iguais. Além disso, seria injusto punir aqueles que pratiquem uma
ilegalidade como fruto de sua condição desigual na sociedade. De outro
lado, a idéia de que nascemos com fortes impulsos selecionados pela
evolução nos leva a definir penas para contrabalançar a tendência para o
egoísmo natural do homem. A adoção da teoria da massa informe resulta na
criação de uma supra-entidade, a sociedade, com valores próprios e vida
independente do indivíduo. Desta maneira, tornam-se válidas ações
restritivas ao direito básico de liberdade, propriedade, desde que em
benefício da sociedade. Na outra forma de entendimento, o indivíduo é o
centro das ações. Seu coletivo, a sociedade, só tem sentido na elaboração
de regras que visem uma relação “soma não zero”112. As ações sociais
devem atender às necessidades de distribuição de renda e de
responsabilidades, preservando a liberdade e punindo o comportamento que
112
São situações em que o ganho de um e o prejuízo de seu opositor não estão inversamente fixados não
somando exatamente zero; podem ser diretamente fixados (colaboração pura) ou parcialmente fixados
(motivo misto). Soma-zero define as situações em que o ganho de um e o prejuízo do seu opositor sempre
somam zero, configurando pura competição na medida em que o prejuízo de um implica no lucro de
outro.
95
se contraponha aos conceitos gerais de justiça, mas sempre visando o
indivíduo e não uma “sociedade” que ele idealiza.
Esses dois tipos de pensar, e seus adeptos, degladiam-se e não se
encontrarão jamais. Fica pelo menos a certeza de como se moverão em
sociedade e as exigências políticas de cada grupamento.
Como dissemos mais do que escolha político-partidária, cada um dos
adeptos de cada escola adota uma postura diante da vida.
Como cada um olha a vida de modo diferente projeta um jeito de ser nas
suas atitudes e na maneira como se relaciona com os outros e com o meio
ambiente.
Estas posturas impregnam os juízes e no que toca ao Judiciário estas
exigências de vida mesmo além de políticas e ideológicas, que estão
referidas nos nossos escritos, recebem uma confirmação bastante séria:
Em O Estado de São Paulo 113 sob a manchete “Pesquisa indica que política
contamina sentenças” numa reportagem assinada por Adriana Chiarini, e
no mesmo jornal 114 num artigo assinado por Maílson da Nóbrega sob o
título “O lado pouco debatido do Judiciário” há menção a uma pesquisa
(Decisões Judiciais, Desenvolvimento Econômico e Crédito no Brasil)
115
com 741 juízes de todas as instâncias e vários empresários.
A intenção do profissional é verificar o que as partes pretendem receber da
Justiça e o que os juízes realmente querem dar. É mesmo uma pesquisa que
corrobora os ditos da Escola Realista Americana sobre a qual se falará com
vagar mais tarde.
Este estudo será reduzido a um livro 116 e tem dados bastante
preocupantes para quem deseja, do Tribunal, receber imparcialidade e
previsibilidade.
Nesse trabalho o economista verifica sob a rubrica “Perfil das transações
econômicas” o que as partes querem receber da Justiça.
Elas pretendem perceber:
a) a Eficiência na Produção de Justiça:
que virá através dos seguintes Produtos (que a Justiça tem que entregar):
1- Imparcialidade
2- Previsibilidade
3- Agilidade
4- Custo de acesso
5- Possibilidade de recurso
sendo Imparcialidade, o não envolvimento com as Partes a postura que
se espera de um juiz ou de uma juíza; Previsibilidade como aquilo que
razoavelmente já se sabe que será a decisão por conforme ao
113
do dia 20 de julho de 2003, pág A6
– de 19 de outubro de 2003 115
feita pelo economista Armando Castelar Pinheiro, do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada
(IPEA – www.ipea.gov.br - temas especiais),
116
(A Reforma do Judiciário, a ser lançado pela Editora Book Link em futuro próximo)
114
96
pensamento dominante; Agilidade como a rapidez com que será
proferida imparcialmente a decisão previsível; Custo de Acesso o que se
gastará com a Administração da Justiça, seus funcionários, peritos,
advogados etc e Possibilidade de Recurso a razoável apresentação da
queixa do que se sentir prejudicado.
A contrapartida do citado estudo não agrada aos que se valem da Justiça
para dirimir suas questões. O que sucede é que a visão política do
magistrado influi nas decisões da maioria deles.
A politização é mais intensa na Primeira Instância que nos Tribunais
Superiores.
Esta postura dos juízes cria inúmeros problemas que transcendem as
evidentes injustiças cometidas no seio do processo.
A pesquisa aponta que essa politização da Justiça aumenta o risco de
investir no país e, conseqüentemente, afasta os investidores numa hora em
que os investimentos são o principal motivo de o Brasil crescer, na visão do
economista. Por exemplo, 78,80% dos juízes acha mais importante fazer
justiça social que seguir os termos do contrato.
Prosseguindo, ao tentar saber se a visão política impacta qualquer
decisão final chegou-se ao seguinte resultado:
02,0% nunca se deixa levar pela visão política
20,8% raramente
52,2% ocasionalmente
21,0% freqüentemente
04,1% muito freqüentemente,
o que mostra a preponderância (77,30%) da decisão política sobra a
jurídica.
Por isto mesmo a avaliação do judiciário pelas empresas brasileiras aponta
que 98,90% dos empresários acha a agilidade do sistema regular, ruim e
péssima e 70% dos mesmos empresários taxa o judiciário de regular, ruim e
péssimo no item imparcialidade
Tal resultado está conforme a auto avaliação do judiciário pelos próprios
magistrados: 88% deles se considera bom regular e ruim no quesito
Previsibilidade (donde somente 12% se acha muito bom) e 39,3% se acha
muito bom no quesito Imparcialidade (donde 60,70% não se acha).
Quanto a saber se o mau funcionamento do Judiciário prejudica a
Economia ? a resposta é igualmente preocupante, pois, 96,10% dos
empresários acha que sim, que Prejudica seriamente e que Prejudica um
pouco.
Quanto a saber se o Mau funcionamento do judiciário prejudica o
desempenho de cada empresa, 91,70% dos empresários acha que sim, que
Prejudica seriamente e Prejudica um pouco.
Outras conclusões:
97
1-)Impacto na Taxa de Crescimento do PIB:
A partir do aumento do investimento é possível estimar que uma melhoria
do desempenho do judiciário brasileiro, que o tornasse “equivalente em
termos de agilidade, imparcialidade e custos à Justiça do Primeiro
Mundo, incluindo-se aí sua capacidade de fazer respeitar com rapidez
suas decisões, e que tirasse o poder da Justiça do Trabalho de decidir
sobre reajustes salariais e outros conflitos econômicos entre empresas e
empregados,” faria a taxa de crescimento do PIB ser mais alta cerca de
25%.
2-) Quanto às dívidas a receber, verifica-se um sério problema:
os pesquisados afirmam que
2.1-) Leis e, principalmente, tribunais não protegem adequadamente os
credores
e que
2.2-) Parcialidade e falta de previsibilidade: as diferenças na interpretação
da lei e a “politização” do judiciário interferem para pior.
Os resultados acima referidos mostram o impacto ruim na economia que
decorre da atitude de juízes que pensam estar fazendo o Bem, mas na
realidade estão criando o caos, inibindo investimentos e criando
desemprego. E, estarrecedor, muitas vezes sem a menor consciência do seu
papel deletério.
Tais porcentuais lembram-nos uma pergunta casual que fizemos a um
jovem juiz recém concursado (porque escolheste esta carreira?) e de sua
resposta triunfante (Para mudar o mundo!) que tanto espanto nos causou.
Para escancarar a falta de Imparcialidade do Judiciário temos como
ilustração mais um exemplo: um verdadeiro lapsus linguae está impresso
no Jornal do TRT-SP117: a Presidente do TRT da 2a Região, juíza Maria
Aparecida Pellegrina ao falar da presença do atual Presidente da República,
Luiz Inácio Lula da Silva, na inauguração do Fórum Trabalhista de 1a
Instância de São Paulo disse: “Para nós será uma grande honra ter um
Presidente da República que foi operário inaugurando essa Casa do
Trabalhador”, comemorou. 118
*
3.2 – o que é estar livre de pressão para poder decidir com
individualidade e livre convencimento? A independência.
117
(ano II, agosto/setembro/2003, no. 9)
118
(Não falou em Casa da Justiça ou da Lei ou da Ordem ou do Direito ou da Constituição... Falou em
Casa do Trabalhador, aquele que é o Reclamante nas ações trabalhistas contra os Patrões e que agora
reclama em sua própria casa!)
98
O Juiz e a Juíza não julgam por si, em si, para si, mas por mandato da
sociedade, para outrem, portanto, conforme os ditames do mandato e dentro
dos seus limites.
As alegadas individualidade e independência do Juiz e da Juíza são mesmo
fundamentos da função: mas estão sendo entendidas erradamente: estão
sendo entendidas como “de cada um de acordo com seu convencimento
próprio, livre, discricionário e independente”, como se cada um se
orgulhasse de ter uma verdade inscrita dentro de si e valesse a pena mantêla e divulgá-la. Esta postura revela o individualismo elevado à sua máxima
potência. É a soberba em movimento, a descrença nas limitações
individuais, a rebeldia sendo exibida. A sentença como prova de que quem
veio a o mundo veio para escrever sua biografia, mas, pior, divulgá-la. Não
é este o sentido dos fundamentos: o verdadeiro sentido é que as decisões
devem ser livres, devem ser desengajadas de pressão externa (interesses,
poder...) e de pressão interna aquela provocada por sentimentos não
devidamente elaborados ou não conforme o sentimento coletivo da
sociedade. Além disso, as tais individualidades e independências podem
esconder, e normalmente escondem, preguiça, desatualização, falta de
leitura, desídia, contumácia e tantas outras desqualificações, o que,
infelizmente, acontece amiúde.
Muito interessante é, atualmente, e dentro da informalidade de uma
conversa social, perguntar a um juiz ou a uma juíza qual deverá ser a
decisão em determinado caso: a resposta é sempre a mesma: difícil, muito
difícil prever, pois todo juiz tem uma interpretação própria dele e assim
múltiplas podem ser as conclusões!
O quadro que pintamos aqui é o que visa exibir o caos, o que advém das
atitudes disparatadas e isoladas de cada membro do Poder Judiciário como
se o mesmo quadro fosse pintado com estilos diferentes, motivos
diferentes, com cores não compatíveis entre si.
Muito diferente será o quadro se a corrente dominante defender uma
postura e surgir, inicialmente, uma voz discordante, porém abalizada que
conteste aquela postura com argumentos convincentes, coopte adeptos pela
modernidade do novo jeito de olhar e a partir daí consiga alterar o rumo do
pensamento.
*
3.2 - todos por um
O ser humano sozinho, como se sabe, tem pouca chance de sobrevivência:
foi na união que se conferiu força à raça humana. Está na busca e não no
atingimento de unanimidade 119 por parte da classe dos magistrados que se
119
(que nunca será atingida, o que é humano, mas que deverá sempre ser tentada, buscada, como atitude
mesmo, isto é, as partes divergentes devem sempre se expor e encontrar seus pontos em comum e solução
99
alcançará, além da previsibilidade desejada pela sociedade, decisões mais
compreensíveis e conforme à sociedade que outorga o mandato para que
estas pessoas possam decidir. A engrenagem da Justiça deve obrigar a
confluência de pensamento: o sistema 120 deve confluir para que um seja
por todos e todos sejam por um, até que haja mudança de postura. Ou seja,
postas as individualidades que sobrevenha, após o debate, o consenso, pois,
como se verá em próximo capítulo, conhecer é computar é computar é
computar...
O que é importante saber neste momento 121 é que todas as partes
envolvidas, mas, principalmente, os clientes do processo, isto é, as partes
que se confrontam, estão insatisfeitas. A situação limite clama por
mudança. Se há um taxpayer que financia o sistema, ele o faz para si, ou
seja, para ter o devido processo legal (no sentido substantivo e no sentido
adjetivo) que lhe é prometido pela Constituição de seu país. A ausência de
Justiça contraria o objetivo dos que pagam para tê-la. Mais contraria a
crença de que viver em sociedade é valioso, pois há mais vantagem em
viver sob determinadas regras que sob a perspectiva de não ter regra
nenhuma e que é exatamente a Justiça e o Judiciário que conferem sentido
e validade à crença.
Mas há outro fator a perturbar a ordem e amplificar o caos.
Há um fato particular quer ocorre em alguns países entre os quais o Brasil:
no nosso país 75% das ações judiciais tem o Estado em um de seus pólos
(notando-se que o Estado não paga impostos para custeio da justiça nem
paga as despesas diretas das ações, ao contrário, mantem uma imensa
massa de funcionários para trabalhar nas ações em que é parte, pagando
estas despesas e a folha destes funcionários com o produto dos impostos
que arrecada daqueles a quem vai vitimizar mais tarde!). É o Estado
“inimigo”, litigante de má fé, opressor, que se “defende” da sociedade que
vitimiza, ou a “ataca”, valendo-se de todo seu aparato jurídico e judicial,
das influências (afinal o Estado nomeia seus Juízes no STF) e da edição
apressada de Medidas Provisórias que “confiram” legalidade a atos ilegais
já perpetrados. É o caos, uma verdadeira guerra civil simbólica. E que tem
que mudar, sendo o único modo (não falamos de ação penal, que tem
tipicidade própria) o de responsabilizar pessoalmente os funcionários
públicos dos Três Poderes (inclusive, claro, os Juízes e Juízas), hoje imunes
por se defenderem das acusações de abusos, desídia, incompetência e má
vontade, sob o argumento de que agem por excesso de zelo, e com este
argumento obter absolvição judicial dos males que causam. Mas isto é
outro assunto que apesar de se relacionar com Poder, Justiça, Liberdade e
Direito deve ser objeto de estudo diverso (percebe-se que todo o custo, o
para os seus pontos divergentes numa atitude conciliatória e tolerante)
120
(Juízes, advogados, promotores, doutrinadores, líderes, pensadores, empresários, associações...)
121
(2002/2004)
100
pessoal envolvido e os atrasos processuais por alegadamente falta de tempo
e excesso de serviço, diminuiriam até 75% se o Estado deixasse de acionar
e ser acionado, ou o fizesse minimamente dentro dos limites plausíveis).
25% do restante refere-se a litígios entre pessoas físicas e/ou jurídicas entre
si.
O resultado destes processos também não agrada as partes.
Independentemente do aspecto formal de o valor estar na prescrição (que
prescreve conduta) ou na imputação (sanção/coação) de responsabilidade, o
que veremos no próximo capítulo, cabe perguntar se é possível verificar a
‘verdade’ ou ‘falsidade’ de um Juízo de Valor.
Sabemos que a verdade ou falsidade de um Juízo pode ser verificada se este
Juízo for lógico-formal, se for matemático ou se for empírico.
Juízos
de
valor
não
têm
verdade
ou
falsidade.
Podem ter bondade. Podem ter validade. Podem ter vigência, eficiência,
eficácia. Ou podem não ter.
De suma importância que os Atores do Direito se conscientizem deste
cenário e tentem se harmonizar sobre as questões ao invés de cada um
proferir uma decisão monocrática descolada do contexto de vida em que se
inserem.
Goffredo 122 lança uma luz ao assunto ao distinguir Juízos de Ser (de
existência=há petróleo no Brasil; de essência=o homem é um ser espiritual;
de modo=o animal racional é bípede) de Juízos de Valor (o que situa um
fato ou uma coisa numa escala hierárquica de coisas ou fatos=melhor o
sonho do que a vida) de Juízos de Dever (mandamentos para o
comportamento humano=não permitas que a vida sufoque teu sonho).
Afirma que os Juízos de Dever não são Juízos sobre o valor das coisas mas
sobre como deve o homem agir para alcançar bens a que se atribuiu valor,
ou seja, bens que foram objeto de Juízos de Valor. Adianta-se mencionando
que não pode haver Juízo de Dever relativamente ao mundo físico (a Terra
gira em torno do Sol), pelo motivo muito simples de que não há dever onde
não há liberdade. Assim, podemos falar de valor em relação a coisas de
qualquer mundo, mas, de dever, só se pode falar em relação ao Mundo
Ético, ou mundo do comportamento humano.
Kelsen123 diz que “quando uma norma estatui uma determinada conduta
devida (no sentido de ‘prescrita’), a conduta real (fática) pode corresponder
à norma ou contrariá-la. Corresponde à norma quando é tal como deve ser
de acordo com a norma; contraria a norma quando não é tal como, de
acordo com a norma, deveria ser, porque é o contrário de uma conduta que
corresponde à norma”. Afirma que no primeiro caso a conduta é “boa”; no
segundo é “má”.
122
123
(pág 364)
(2000 pag 18)
101
Kelsen encaminha, como sempre o faz, o assunto de maneira engenhosa124:
os juízos de valor segundo os quais uma conduta real corresponde a uma
norma considerada objetivamente válida e, neste sentido, é boa, isto é,
valiosa, devem ser distinguidos dos juízos de realidade que enunciam que
algo é ou como algo é. Ele contrapõe o valor, como dever-ser, à realidade,
como ser. E compartimenta: o fato de algo poder ser tal como deve ser, o
fato de uma realidade poder ser valiosa, resulta, portanto, de um quid, que é
(especialmente uma conduta real) poder ser identificado com um quid,
que deve ser (especialmente com uma conduta estatuída como norma
devida) exceto quanto ao modo que, num caso, é ser e, no outro, dever-ser.
Prosseguindo, distingue duas situações diferentes: uma a do valor
constituído através de uma norma considerada objetivamente válida e outra
o valor que consiste na adequação de um objeto ao desejo ou vontade de
um ou de vários indivíduos que o objeto seja assim e não diferente. Nesta
última acepção estamos diante de um juízo de realidade que estabelece a
relação entre dois fatos da ordem do ser. Se o desejo de alguém é que algo,
especialmente uma conduta, seja assim e fica verificado, para satisfação do
que deseja, que esse algo é mesmo como ele queria, bom, portanto, estamos
no campo do valor subjetivo (a que estão tão afeitos nossos juízes e juízas).
O valor que consiste na relação de uma conduta com uma norma
objetivamente válida é que é um valor objetivo.
Prossegue a engenhosidade: os juízos de valor objetivos e subjetivos
distinguem-se do juízo como função do conhecimento: Kelsen sustenta que
podemos determinar a relação de uma determinada conduta humana com
um ordenamento normativo, ou seja, dizer se esta conduta está ou não
conforme o ordenamento sem que tenhamos que nos envolver
emocionalmente aprovando ou desaprovando esta conduta ou esta norma.
E, mais, sustenta que, diante da possível objeção de que a relação de um
fato com uma norma também representaria uma relação entre fatos da
realidade empírica, não procede, pois diferentes são as relações: fato é o ato
de comando ou imperativo ou o costume e a norma, que através desses
fatos é produzida, são coisas diversas, um é fato outra é conteúdo de
sentido e assim a relação de uma conduta real com uma norma e a relação
desta conduta com o fato da ordem do ser cujo sentido é a norma
constituem relações diferentes.
Prossegue Kelsen lembrando que como valor designa-se, às vezes, a
relação entre um objeto (particularmente a conduta humana) e seu fim:
adequação ao fim e temos um valor positivo, contradição com o fim e
temos um valor negativo. O fim pode ser objetivo (que deve ser realizado
para atender uma norma considerada objetivamente como válida) ou
subjetivo (um fim que a pessoa deseja realizar porque se atribuiu tal tarefa).
O valor que reside na correspondência-ao-fim é idêntico ao valor que
124
(2000 pag 18 e sgts)
102
consiste na correspondência-à-norma ou ao valor que consiste na
correspondência-ao-desejo. Alguns usam a relação de meio ao seu fim
como um dever-ser, no sentido de que quem quer o fim tem de querer o
meio denotando necessidade causal que existe entre o meio (como causa) e
o fim (como efeito). Quando se sabe que entre A e B existe a relação de
causa e efeito é que se alcança o Juízo de valor subjetivo (se B é desejado
como fim) ou objetivo (se B é estatuído numa norma como devido, como
devendo ser).
São comentários importantes que deveriam permear a vida dos Atores do
Direito.
A matéria o dever-ser será mais bem apresentada no próximo capítulo.
Ficam neste campo ideológico, todavia, algumas questões que carecem de
melhor análise. A primeira é a questão de saber se o ser, em sendo, deveser, ou seja, se há mesmo fatos do ser e do dever ser ou se ambos são fatos
do ser. A segunda questão reclama atenção para perguntar se quem ajusta a
conduta à norma pode realmente fazer isso, ou seja, se quem tipifica a
conduta tem condição de dizer que tal conduta confirma ou contraria a
norma e portanto, dizer se tal conduta é boa ou má segundo a norma.
Quando alguém verifica se à uma norma corresponde uma conduta ou se
esta conduta contraria a norma está fazendo um julgamento dos mais
sérios. Primeiro interpreta a norma, depois interpreta a conduta, depois as
relaciona e depois ainda, interpreta se a norma foi contrariada ou se foi
confirmada e, a partir daí, aplica a sanção. Muito sério.
“Quando a norma indica as circunstâncias nas quais uma conduta é boa, ela
não determina como a conduta de fato é, mas como deve-ser. O conceito da
boa conduta é: uma conduta que corresponda à uma norma. Este conceito
contem três elementos: “norma”, “conduta” e “correspondência como
relação entre norma e conduta”.
Se dependermos do modelo que criamos para perceber o mundo à nossa
volta, se fatores ideológicos interferirem nesta avaliação ou se sentimentos
impuros, brutos, não souberem como lidar com a situação, se a razão a
respeito não estiver clara, o que temos mesmo é uma tremenda confusão
formada.
Outro dado importante, que é meramente físico, comum a todos, portanto, é
que há mesmo na memória uma sua característica que a faz reconstruir os
fatos e não descrevê-los como uma sucessão de fatos devidamente
registrados em seqüência.
Quem vê um fato (conduta) faz sua análise de acordo com a percepção que
teve do fato em sua mente: será que esta percepção equivale mesmo ao que
aconteceu? Será que este fato pôde ser analisado sem paixão nem
ideologia? Será que foi devida e corretamente contextualizado?
Se quem vai examinar fato, valor e norma, e relacioná-los, quer através de
sua função mudar o mundo (a realidade) e para tal, precisa ou reescrever o
103
fato ou reescrever o valor ou reescrever a norma, e, às vezes, alterar sua
relação poderemos dizer que há falsidade na posição?
Estamos entrando em labirinto.
Se há dúvidas quanto ao fato e quanto ao valor, podemos, ao menos, ter
certeza quanto à norma?
4- Dever-ser inventado.
4.1- será um fato do ser?
Os fatos existem independentemente do que deles dizemos ou deles
pensamos. Não são verdadeiros ou falsos, bons ou maus. Eles apenas
existem.
É nossa crença neles, estabelecida em proposições, que vai conferir sua
existência para nós. Estas proposições, sem serem necessariamente boas ou
más, é que serão verdadeiras ou falsas.
Da nossa relação com outros seres humanos nasce o Direito aquele que
busca a Justiça.
Nossas crenças em Direito são postas pelo dever-ser. Direito é dever-ser
que não é verdadeiro nem falso: é efetivo e válido.
Será mesmo assim? Será o dever-ser um fato?
Ontognoseologicamente considerado o dever-ser traz, ou deveria trazer,
a crença humana na Justiça. É nossa humana forma de dizer “é assim” mas
“pode ser assim” (Mata-se. Mas não matar é melhor). É nossa proposta,
feita sempre pelo Sentimento, nunca pela Razão, para a melhoria da relação
humana. É um plano de aperfeiçoamento. Uma meta. Um escopo. Sempre
em devir. Uma prescrição de conduta que imputa responsabilidade e
coerção.
Há quem diga que do ser não se chega jamais ao dever-ser. Kelsen era
desta opinião, acompanhado por inúmeros filósofos.
“A Justiça 125é, portanto, a qualidade de uma conduta humana
específica, de uma conduta que consiste no tratamento dado a outros
homens. O juízo segundo o qual uma tal conduta é justa ou injusta
representa uma apreciação, uma valoração da conduta. A conduta, que é
um fato da ordem do ser existente no tempo e no espaço, é confrontada
com uma norma de justiça, que estatui um dever-ser. O resultado é um
juízo exprimido que a conduta é tal como – segundo a norma de justiça –
deve ser, isto é, que a conduta é valiosa tem um valor de justiça positivo,
ou que a conduta não é como – segundo a norma de justiça – deveria ser,
125
(O Problema da Justiça, Martins Fontes, 1998, pág 4)
104
porque é o contrário do que deveria ser, isto é, que a conduta é desvaliosa,
tem um valor de justiça negativo. Objeto da apreciação ou valoração, é um
fato da ordem do ser. Somente um fato da ordem do ser pode, quando
confrontado com uma norma ser julgado como valioso ou desvalioso, pode
ter um valor positivo ou negativo. Por outras palavras: o que é avaliado, o
que pode ser valioso ou desvalioso, ter um valor positivo ou negativo é a
realidade”.
Diz-nos Losano 126: a teoria pura do direito tem por objeto a
normatividade e não a realidade. Kelsen fundamenta a existência da norma
em sentido jurídico recorrendo não à realidade ou ao valor, mas ao deverser (sollen), obscuro conceito de origem kantiana. O mundo da natureza é o
mundo do ser; o mundo do direito é o mundo do dever-ser. O dever-ser
permeia a ordenação jurídica, por conseguinte, é fundamento da validade
de todas as suas normas jurídicas. Depois de construir uma estrutura
hierárquica (a validade do inferior é inferida do superior) para manter a
distinção entre o mundo do ser e o do dever-ser, a teoria pura do direito
encontra-se diante de uma dificuldade: a coerência com seu pressuposto
metodológico de pureza é inconciliável com a realidade jurídica que ela
quer descrever. Realmente para que uma norma jurídica seja válida, é
preciso que ela também seja eficaz: ou seja, não basta o respeito a certas
formalidades no estabelecimento da norma, mas é preciso que, de fato, a
norma assim estabelecida seja também efetivamente aplicada. Kelsen
admitiu que uma norma deixa de ser válida quando deixa de ser eficaz127.
Com isto ele precisa renunciar à rigorosa separação entre mundo natural e
mundo normativo, entre ser e dever-ser.
Da Constituição à lei e desta à sentença, está o dever-ser a nos indicar, a
nos prescrever conduta e a nos imputar sanção e coerção. Este dever-ser é
fruto do sentimento de uma pessoa ou de algumas pessoas. Deste
sentimento nasce a vontade daquela pessoa ou daquelas pessoas de
comandar o que foi sentimentalmente pinçado como bom, firme e valioso.
Daí, da decisão sentimental, é que se origina a vontade de que algo deve ser
feito desta maneira. A vontade sustenta este dever-ser que passa a ser assim
porque foi querido assim e não de outra forma. A Constituição, a Lei e a
Sentença refletem um valor escolhido pelo sentimento de uma ou mais
pessoas dentre vários valores possíveis e com igual, maior ou menor grau
de certeza; este valor é assumido pela vontade como único e que, por
dever-ser, deve ser assim. Donde dizemos que o dever-ser é inventado pelo
ser humano por razões puramente sentimentais, ou seja, a Constituição, a
Lei e a Sentença são inventadas pelo sentimento humano.
126
na introdução (pág XVIII) de “O Problema da Justiça”
Muito ilustrativo ler o próprio (o segundo Kelsen): Teoria Pura do Direito (Martins Fontes 2000),
principalmente V- Dinâmica Jurídica, g) validade e eficácia pág 235 e o “diálogo” que ele mantém com
Alf Ross a respeito do tema.
127
105
*
4.2 – simplesmente apresentado
Dever-ser é palavra que provoca uma sensação de desconforto no estudante
de Direito, pois os juristas não configuram exatamente seu significado.
Para tê-lo enquadrado em seu contexto, recorremos a Abbagnano que
define com simplicidade:
1. Ser na sua acepção comum de existência em geral;
1.1 existência como qualquer delimitação ou definição do ser, ou
seja, um modo de ser de algum jeito delimitado e definido, o
que nos conduz a três significados particulares: o modo de
ser determinado ou determinável, o modo de ser real ou de
fato (aquilo que na realidade é ou subsiste) e o modo de ser
próprio do homem (o que como Vico observou reduziria o
Cogito ergo sum a penso logo existo, e não a penso logo
sou);
1.2 Fato como uma possibilidade objetiva de verificação,
constatação ou averiguação, portanto também de descrição
ou previsão.
2. Dever, no conceito clássico, genericamente descrito como a
ação segundo uma ordem racional ou uma norma; 128
3. e, finalmente, Dever-ser como a grande vedete: como o
possível normativo, aquilo que é bom que aconteça ou que se
pode prever ou exigir com base em uma norma.129
É a pessoa humana que está exclusivamente no âmbito do Dever-ser.
Se 130 toda pessoa é capaz de direitos e deveres na ordem civil 131 está no
Dever-ser o que é proibido, permitido ou obrigatório.
Assim, e neste sentido inicial, uma prescrição de conduta.
128
(mas, considerando-se que no século XXI vêm os neurofisiólogos contestar esta
certeza de séculos e dizer que a emoção é que prepara o homem para a ação e que o
sentimento (inclusive se atacado por preconceito) é que, avaliando, decidindo e
julgando, é o centro que escolhe dentre as possibilidades, é esta nova maneira de ver
as coisas, aquela a qual adotaremos; aliás neste conceito a Razão é dada como a
faculdade de o Homem verificar a Verdade ou a Falsidade de algo, a capacidade de
identificar a medida de algo e constatar se tal medida é Verdadeira ou Falsa).
129
(Platão, um de seus arautos, dizia que se Anaxágoras estava certo e se há mesmo uma
inteligência - nous – que governa o mundo, o bem e o dever-ser sustentam e agregam todas
as coisas, declaração, aliás, que não pode ser mais retumbante e clara quanto à intenção do
Filósofo).
130
- art. 1o. NCCi., Lei 10.406, de 10.01.2002 (e CF do Brasil de 1988, art. 5o., XXXIX, não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem
prévia cominação legal).
131
106
Diz nos Nietzsche132: “Os filósofos propriamente ditos, porém, são
comandantes e legisladores: eles dizem ´Assim deve-ser´ ; são eles que
determinam o Para-onde? e o Para-quê? do homem e para isso têm a seu
dispor o trabalho prévio de todos os trabalhadores filosóficos, de todos os
dominadores do passado – estendem sua mão criadora em direção ao
futuro, e tudo o que é e foi se torna para eles meio, instrumento, martelo.
Seu ´conhecer´ é criar, seu criar é uma legislação, sua vontade de verdade
é – vontade de potência. – Há hoje tais filósofos? Houve já tais filósofos?
Não é preciso haver tais filósofos?”
Assim acautelemo-nos com as Leis e com a Dogmática e com as
interpretações dos doutos e com as sentenças judiciais: elas delimitam
nossas vidas, ou seja, como verificamos acima, definem a nossa existência.
133
Assim, vale aqui, prudentemente, sempre e sempre repetir: qual seu
impulso afetivo, qual a sua fome, qual a sua sede? Qual o seu desejo mais
profundo de que o discurso é apenas o rótulo, o invólucro intelectual do
que está por dentro? “Cada filosofia esconde também uma filosofia; cada
opinião é também um esconderijo, cada palavra também uma máscara”. 134
ou seja: o que contem o Dever-ser, qual a mensagem e a intenção de quem
o escreve com palavras sob a forma de uma lei ou de uma norma (e que
pode ser uma sentença do tribunal) ou de um parecer dogmático?
Superada a digressão – mas não esquecida – cala-nos o formidável dizer de
Tércio Sampaio Ferraz Junior 135 as questões dogmáticas são tipicamente
tecnológicas. Nesse sentido, elas têm uma função diretiva explícita, pois a
situação nelas captada é configurada como um dever-ser. Questões desse
tipo visam possibilitar uma decisão e orientar a ação (nosso grifo) o que
tem enorme ponto de contato com o tema deste nosso trabalho.
Numa época em que tempo é dinheiro, e dinheiro é tudo, para alguns, as
questões dogmáticas deixam de abordar reflexivamente o direito e se
permitem navegar pela superficialidade do momento, conforme a exigência
da lei de plantão.
O Estado, que deveria promover o bem estar e a prosperidade da nação,
preocupa-se com as questões emergentes daquele instante conforme a
fórmula aplicada para resolver, decidir aqueles impasses. A ciência, a
política e o direito, que deveriam estar preocupados com o bem comum da
humanidade, funcionam, na fórmula de Kuhn, ao sabor da urgência e da
oportunidade. Aos soluços. O progresso destas ciências dá-se por meio de
revoluções e não de evoluções sem se preocuparem teleológica ou
132
Para além de Bem e Mal § 211
133
134
135
(e não cabe aqui enfocar o tópico Liberdade).
(Nietzsche, 1978, pág 294),
(2001, pág 89):
107
ontologicamente, que se preocupam, antes, com o que é factível naquele
momento, sem compromisso com um conjunto estruturado para finalidades
predeterminadas: se o governo vai construir uma ponte ou um hospital, se a
política vai opinar sobre a inflação ou sobre o desenvolvimento, se a
ciência vai estudar este aspecto do câncer no ser humano ou aquele outro
mais conveniente à indústria de extração de mel, se o direito vai atentar à
justiça ou à produção rápida de decisões judiciais, tudo isto, fica mais ao
sabor da argumentação e da persuasão de grupos de interesse que a outro
fator qualquer. Não são tomadas decisões com vistas ao Bem, fim a que
tendem todas as coisas, no falar de Goffredo136. Porque são humanas as
partes envolvidas e tomam humanamente decisões sentimentais particulares
que para as decisões racionais não estamos aparelhados fisicamente. Daí o
caráter eminentemente consumerista das leis atuais (precisamos
desenvolver a indústria civil da construção e criar empregos: mexa-se já na
lei de locação a favor do proprietário; no ano seguinte: precisamos, e
rapidamente, dar mais condição de habitabilidade à população: mexa-se de
novo e de pronto naquela mesma lei de locação mas agora de maneira a
favorecer o inquilino) que fluem ao sabor da necessidade imediata. E nada
disto choca uma sociedade que já é voltada para o consumo: é normal!
Passa a ser normal!
A ciência do direito que antes discutia intensamente aquilo que podia ser
direito volta-se para se ocupar com a oportunidade de certas decisões,
tendo em vista aquilo que deve ser direito enquanto relação de imputação,
dando um novo sentido à ciência e, com isso, criando um problema: não se
atenta mais à Verdade, nem à Justiça, mas sim à decidibilidade, no dizer de
Tércio.
Pelo menos no que toca à Verdade, ficou o Homem sem parâmetro quando
o Cristo perguntado por Pilatos: Mas, o que é a Verdade? não respondeu. E
então? Haveria Justiça no Direito? Há continuidade nas relações jurídicas
de forma que se possa perpetuar o que é bom? Diz-nos Tércio Sampaio
Ferraz Junior que desde a Antiguidade foi na idéia de Justiça que se
buscou a estrutura de resistência à mudança e foi nela que se ancorou a
segurança de que a experiência jurídica tem um sentido persistente. “A
presença, pois, da justiça como uma espécie de código de ordem superior,
cujo desrespeito ou violação produz resistência e cuja ausência conduz à
desorientação e ao sem sentido das regras de convivência, pode-nos levar
a admiti-la como um princípio doador de sentido para o universo
jurídico”.137
136
obra citada pág 190
137
( Introdução ao Estudo do Direito, 2001, pág 347 nosso grifo; já exposta na nossa nota 96)
108
E isto se dá e isto se configura no correto uso do dever-ser: o que ele é?
Como configurá-lo?
No prefácio de “Causalidade e Relação no Direito” nosso festejado
Lourival Vilanova138 nos diz que “a causalidade normativa (“se A, então
deve-ser B”, ou deve ser, “se A, então B”) que logicamente é um dever-ser
de uma implicação, tem por pressuposto a existência de um sistema. Em
que altura do processo histórico (da pré-politicidade até alcançar a
politicidade estatal) o direito adquire a forma-de-sistema é problema que
pomos entre parênteses. O que o sistema adquire, com sua efetividade
subjacente, é o pressuposto empírico da causalidade estatuída pela norma.
Só no interior de um sistema vale a causalidade normativa. Pressuposto
supra-empírico, para conferir a unidade sistêmica, seria a norma
fundamental, o postulado-limite. Além dele, o jurista ingressa em outras
órbitas”.
Kelsen já dizia que a distinção entre o “dever ser” e o “é” é fundamental
para a descrição do Direito. 139
Muito se falou a respeito.
Lembremos que entre dever – como idéia de um valor moral absoluto - e
dever-ser em seu sentido jurídico pode haver um abismo : as pessoas
tendem a achar que ambos se confundem, o que é mais esperança que fato.
Às vezes coincidem, muitas vezes não. É importante este registro, pois ele
serve como divisor de águas na compreensão do dever-ser-que-está-aí.
Repitamos, por importante, que Platão tinha dito que o bem e o dever-ser
sustentam e agregam todas as coisas. Esta a origem da mitificação do
instituto.
Hegel referia-se com desprezo ao dever-ser: “ao analisar que a introdução
do possível normativo estabelecia a sua diferença em relação ao ser de fato
e possibilitava o julgamento de uma questão com base no ser em cotejo
com o dever-ser, dizia que este dever-ser era mero fantasma. Dizia que à
realidade do racional contrapunha-se, de um lado, a visão de que as idéias e
os ideais são apenas quimeras e que a filosofia é um sistema desses
fantasmas cerebrais, e, de outro, a visão de que as idéias e os ideais são
algo excelente demais para ter realidade ou que o homem é impotente
demais para atingi-los. Mas, continuava, a separação entre realidade e idéia
é muito apreciada pelo intelecto, que considera verazes os sonhos de suas
abstrações e tem muito orgulho de seu dever-ser, que apregoa de bom
grado até mesmo no campo político, como se o mundo houvesse esperado
esses ditames para aprender como deve ser e não é: pois se fosse como
deve ser, aonde iria parar o pedantismo desse dever-ser?”
138
(2000 pág 8)
139
(Teoria Geral do Direito e do Estado 2000 pág 52).
109
A filosofia nesse momento histórico (e hegeliano) queria fazer as pazes
com a realidade.
Mais tarde, Nicolau Hartmann, contemporizador, diria que o dever-ser só
prescreve a realização daquilo que pode e deve necessariamente realizar-se
quando nada mais falta para que se realize pois é a própria possibilidade
real, que é sempre efetividade ainda que não pareça.
A questão é realmente candente.
Kant, pouco antes disso tudo, explicava sua tese de que o dever-ser
exprime uma espécie de necessidade e uma relação com princípios que não
se verificam absolutamente na natureza, pois na natureza o homem só
poderá conhecer o que é, foi ou será. Quando se observa o curso da
natureza o dever-ser não tem qualquer significado. Uma ação natural só
pode ser um fenômeno. O dever-ser exprime uma ação possível, cujo
princípio é apenas um conceito. A ação deve ser possível nas condições
naturais se o dever-ser visar a elas e tais condições não atingem a
determinação do arbítrio, mas apenas o efeito e a conseqüência dela no
fenômeno. Isso equivale a dizer (Abbagnano) que, no mundo humano, a
distinção entre o que acontece de fato e o que se poderia esperar que
acontecesse, a partir das normas que o regulam, deve manter-se constante.
Vilanova, explícito,140 arremata: como todo sistema de significações, o
sistema de normas jurídicas só é viável (concretizando-se, realizando-se)
se o sistema causal, a ele subjacente, é, por ele, modificável. Se o deverser do normativo não conta com o poder-ser da realidade, se defrontar-se
com o impossível-de-ser ou com o que é necessário-de-ser, o sistema
normativo é supérfluo, ou meaningless (observa Kelsen, General Theory of
Law and State, p 41/44). Descabe querer impor uma causalidade
normativa contrária à causalidade natural, ou contra a causalidade social.
Observe-se que na alteração tecnológica do mundo (e até no mais humilde
instrumento com que o homem primitivo modifica o seu contorno natural)
é através de leis naturais que isso é possível. A atuação humana é
mediante a relação meio/fim: o meio á causa idônea que leva ao efeito,
que é fim da ação. Normar conduta humana importa em articular suas
partes na relação meio/fim. Essa é a ontologia teleológica da ação.
O mesmo autor 141 adverte que Kelsen contrasta a lei natural e a norma
jurídica valendo-se de esquemas: para a primeira “se A é, B é” e para a
segunda “se A é então B deve ser”. Em ambas, a hipótese descreve,
prefigura um fato típico. Chamemos o descritor, na norma. Na segunda, a
presença do ought to be caracteriza-a como o que podemos denominar o
prescritor.
140
141
(2000 pág 11)
(2000 pág 95)
110
Kelsen 142 vem esclarecer: “Visto que o sentido específico do ato através
do qual é produzida a relação entre pressuposto e conseqüência numa lei
moral ou jurídica é uma norma, pode falar-se de uma relação normativa –
para a distinguir de uma relação causal.” Imputação“ designa uma
relação normativa. É esta relação – e não qualquer outra – que é expressa
na palavra dever-ser, sempre que esta é usada numa lei moral ou
jurídica”.
Kelsen retira, desse modo, a causalidade na norma: esta existe (se existir o
que já configura outro assunto) na Natureza; na norma há a imputação: se
A então B exprime a imputação não a causalidade.
Vilanova 143 sempre preciso, estabelece uma extraordinária simplificação
do problema, reduzindo-o com sua habitual perspicácia e afiado uso do
vernáculo: da variedade de linguagens em que se exprime o direito
positivo (multiplicidade de idiomas, de estilos, de técnicas de formulação
linguística), passando da gramaticalidade expressional ou frásica para a
forma lógica, o fazemos mediante a abstração formalizadora.
Encontraremos a estrutura sintática reduzida. O que uma norma de direito
positivo enuncia é que dado um fato, seguir-se-á uma relação jurídica
entre sujeitos de direito, cabendo, a cada um, posição ativa ou passiva.
Mais. Que, nessa relação jurídica primária, define-se o conteúdo da
conduta, modalizando-a como obrigatória, permitida ou proibida. E que
no caso de descumprimento, inobservância, inadimplência, por parte do
sujeito passivo, o outro sujeito da relação pode exigir coativamente a
prestação não-adimplida. Com isso, estabelece-se nova relação jurídica,
na qual intervem outro sujeito, o órgão judicial, aplicador da sanção
coacionada.
Karl Engisch 144 diz que “pertence, com efeito, à hipótese legal tudo aquilo
que se refere à situação a que vai conexionado o dever-ser (sollen), e à
conseqüência jurídica tudo aquilo que determina o conteúdo deste deverser”.
Tudo isto posto, percebemos, assim, que o dever-ser passa a ter, pelo
menos, dois significados com objetivos similares mas com espectros bem
diferentes, pois de pontos de vista diferentes partem seus comentadores.
O primeiro significado estabelece a visão idealista (e ideológica) do seu
autor (´Assim deve-ser´ ; são eles que determinam o Para-onde? e o Paraquê? do homem´), que pode até chegar a um impossível quimérico, um
dever-ser totalmente desconectado da realidade, que ainda está, por isso,
“aprendendo como deve ser e não é”.
O segundo, coloca o dever ser na estrutura da norma, define-o e informa
como ele funciona. E aqui se subdivide o conceito do que é o dever-ser: uns
142
(em Teoria Pura do Direito, 2000, pág 101)
(2000 pág 101),
144
(Introdução ao Pensamento Jurídico, 2001, pág 55)
143
111
o colocam na prescrição da conduta (isto deve ser!), outros o colocam na
imputação de sanção caso a conduta prescrita tenha sido contrariada (se há
dano este deve ser indenizado desta forma).
Simplificada a questão, chegamos ao ponto de nos permitirmos dizer,
qualquer o sentido de dever-ser que queiramos adotar, que se alguns
afirmam que direito é norma, podemos nós dizer que direito é dever-ser. É
fato previsto e desejado com sanção em não ocorrência.
O assunto retoma, porém, sua complexidade quando se filia o tema da
justiça e o tema da verdade ao tema do dever-ser, pois está sempre no
dever-ser a ordem para um comportamento desejado e a fórmula que será
utilizada para restabelecer a harmonia da sociedade, através de sanção,
depois que um ser humano adotar livremente comportamento contrario ao
estatuído pela norma.
Não é tarefa para amadores nem para idealistas com sentimentos pueris.
O dever-ser, como pensamos, deve referir-se a uma possibilidade - ex
facto oritur jus - a partir de um fato real e deve gerar efetividade.
Explicamo-nos e para tal trabalharemos com dois exemplos diferentes,
dentre tantos de que poderíamos nos valer:
1- Grandes leis são natimortas porque o sentimento que lhes dá vida já
se manifesta edulcorado por legisladores bem intencionados ou
porque seguem distantes da realidade que pretendem atacar: nossa
Constituição Federal (no seu art. 1o inciso III-) afirma que o Brasil
tem como fundamento a dignidade da pessoa humana; ousa mais
pois (no seu art. 3º ) afirma que constituem objetivos fundamentais
do Brasil construir uma sociedade livre, justa e solidária; garantir o
desenvolvimento nacional; erradicar a pobreza e a marginalização e
reduzir as desigualdades sociais e regionais; promover o bem de
todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer
outras formas de discriminação.
Absolutamente nada em desabono, pois, dificilmente, alguém vai se
posicionar contra tais ideais.
Mas, como se vê, há um emaranhado de palavras bonitas com pretensos
significados elevados, que aparentemente são de compreensão comum, o
que não é verdade e que sinalizam atitudes por parte das autoridades e da
sociedade civil que não podem estar mais longe da realidade do nosso país.
Um fiasco.
Estão aí para que nos lembremos, dizem seus defensores. É um vade
mecum, um roteiro, dizem os idealistas.
Tratar a Constituição brasileira como um pro memória torna-a letra
desprezível: se no fim de 2002 cogitou-se mudar a Constituição com a
alteração da data da posse do Presidente da República por ser a nova data
112
mais confortável para os seus convidados internacionais, o fato mostra qual
o perigo de tratar a nossa Constituição também como Agenda de Bolso
para compromissos assumidos: troca-se a data na Agenda como se
desmarca a hora no barbeiro. E esta Agenda pode ser, a qualquer momento,
jogada fora e trocada por outra aparentemente melhor e mais chique
naquele instante.
2- O segundo exemplo já parte da constatação de que legiferar sobre
assuntos sobre os quais se desconhece normalmente redunda em
sonoro fracasso. Inúmeros exemplos na nossa legislação de
legisladores bem intencionados aplicando seus sentimentos em
assuntos que são assim, mas foram desfigurados por um dever-ser
totalmente desconectado da realidade a que se referem. Tais
legisladores, por inúmeros motivos de ordem emocional, exibem a
sua recusa imotivada do ser e permeam um dever-ser imaginário e
impossível, ou desfigurado, quimérico, e, daí, inaceitável.
Mas há, em seguimento, Juízes que não aceitam a lei pátria e a aplicam
como eles acham que ela deveria ser: assim este nosso segundo exemplo
vai buscar a mesma atitude em alguns Juízes que apagam o que há na
legislação e ao sabor de suas convicções próprias reescrevem o artigo por
eles extinto.
Vejamos com um dentre vários exemplos que poderíamos pinçar:
A alma do empresário ama o risco. Ninguém mais afeito ao risco que os
empresários. E de suas idéias postas em prática surgem empregos,
circulação de dinheiro, consumidores satisfeitos, impostos pagos, lucros.
São promotores de desenvolvimento e cumprem sua função social. E por
que correm riscos, sabem dos riscos de sua atitude. Quando empresariam
destacam de seu patrimônio uma parcela que consideram suficiente para
tocar o negócio que se propuseram desenvolver e comunicam à sociedade
qual o capital que põem em risco. É do giro deste capital que advirá o lucro
de sua atividade e, no caso de prejuízo, será esta parcela de seu patrimônio
que aceitam perder. Sabem-no banqueiros, fornecedores, prestadores de
serviço, sindicatos, empregados, governo e a sociedade em geral. Pode-se
até discordar da decisão do empresário e considerar insuficiente o capital
que ele destinou ao negócio. E não negociar com ele. O que bastaria para o
caso. Pois bem, a ignorância e a não aceitação do que seja lucro fazem do
empresário um ser mal visto por alguns setores da sociedade. Segue daí que
na queda do empresário, quer ele esteja ilíquido ou insolvente, alguns
Juízes do Trabalho começaram a aplicar, sob qualquer hipótese, a figura
jurídica do Disregard of Legal Entity, sem atentar para seu fundamento. O
NCCi trata do assunto no seu art. 50. O anterior de 1916 não o premiava
com artigo específico. Só em casos particulares este instituto pode ser
pinçado e não há empresário que venha contestar, em tais casos, a sua
aplicação: nos casos de abuso, má fé, burla da lei ou do contrato social,
113
nada será objetado. O assunto é tão específico, que nem em caso de
incompetência gerencial ele pode ser invocado: basta o fracasso do
empresário, a perda do seu capital e o eventual desprezo da sociedade para
que tenha fim o caso.
Mas há Juízes que não só aplicam a
despersonalização da pessoa jurídica em qualquer caso como vão além:
sócio que fez parte da sociedade antes que o empregado fosse contratado,
sócio minoritário ou sem poder de gestão, parentes de sócios, todos são
enquadrados por esses Juízes que determinam penhora de seus bens
pessoais, inclusive os impenhoráveis por força da lei 8009 ou por força do
artigo 649 do CPCb.
Há três resultados:
1- vários empresários deixam de empresariar com o inevitável prejuízo
da sua ausência para a sociedade ou, o que é mais comum, blindam
seu patrimônio, escondendo-o da sanha vindicante desses
magistrados. O que antes era atividade lícita e às escâncaras, vira
marginal: o empresário agora sabe que para se defender, antes, tem
que esconder e esconder-se.
2- Empregados acionam por nada e por tudo. A luta de classes que
deveria ficar restrita à luta das classes pelo emprego e não à luta das
classes entre si, agora se torna mais presente que aquela descrita por
Marx: espertos hipossuficientes profissionais sempre esperando,
espreitando para obter uma vantagem indevida por conta de Juízes
que vêm aplicar sua própria justiça aos casos que caem em suas
mãos. E empresários que deixam de pagar o empregado que iria
acioná-los de qualquer maneira, para em Juízo, com pretendidas
vantagens, poderem usufruir uma situação que não criaram e com a
qual não compactuavam inicialmente.
Enorme acúmulo de ações, situações inesperadas, não desejadas, por
causa exclusiva da atitude de Juízes que vieram escrever o dever-ser da
sua
maneira particular. Ou seja, uma aberração. Amplamente
antinatural.
3- essas medidas “alcançam” apenas os microempresários, os pequenos
e os médios empresários, os que são, segundo estatística provável os
responsáveis por 93% dos empregos postos à disposição do mercado de
trabalho; os outros 07%, as grandes empresas não são “alcançadas” com
a mesma eficiência pelas atitudes violentas dos tribunais federais
trabalhistas.
Estas atitudes são explicadas pela posição que adota o responsável pelo
bom uso do direito, pelo seu ponto de vista ao firmar-se perante as
diversas possibilidades de atuação.
114
Miguel Reale 145 discorrendo sobre a correlação existente entre a
compreensão filosófica e a científico-positiva da experiência jurídica
discrimina três orientações fundamentais (pelo menos, alerta ele) sobre
a maneira de se posicionar perante o tema:
a- a posição imanente que é assumida pelos que afirmam que jamais
podemos ir além do plano dos eventos históricos e consideram os
problemas jurídicos permanentemente inseridos nele e só explicáveis
segundo os valores inerentes às relações que os constituem. Tudo o que
se
elabora no mundo jurídico, quer pelo legislador, quer pelos
tribunais ou através dos usos e costumes , resulta, segundo tais
doutrinas, as relações sociais mesmas, sendo, o mais das vezes, as
regras de direito explicadas indutivamente, segundo nexos de
causalidade ou funcionalidade. Opera-se, nessa linha de pensamento, a
redução do valor ao fato, do dever ser ao ser, visto como o valor não
representa senão o resultado de um fenômeno psicológico, de ordem
emocional ou volitiva, ou, tal como preferem dizer alguns, uma
integração emocional-volitiva de sentimento e de desiderabilidade. O
dever ser, sob esse ângulo, equivale a uma diretriz possível de
comportamento, como que uma resultante enucleada do seio dos
próprios fatos: os valores, dessarte, exerceriam função puramente
indicativa e operacional, não ultrapassando o plano da mera sugestão
tendente a facilitar ou determinar o advento de um dado resultado de
ordem prática.
b-) posição transcendente, posição daqueles autores segundo os quais,
além dos fatos, num plano diverso do empírico e temporal, é necessário
admitir alguns paradigmas ideais, certas exigências objetivas e
imutáveis, à guisa das idéias de Platão; são modelos estáticos ou
eternos, que não participam de nossas contingências histórico-sociais,
a não ser quando nos reportamos a eles, procurando adequar àqueles
arquétipos as expressões contingentes de nosso comportamento
individual e coletivo. Assim, todo o drama da experiência jurídica não
representaria senão um esforço constante de adequação a modelos
transcendentes de justiça. Os adeptos dessa escola acreditam na
transcendência da justiça e dos demais valores fundantes da
experiência jurídica, ora sendo concebidos como realidades
ontológicas, ora como expressões ou manifestações do valor Divino,
fonte e fundamento e toda a vida ética.
c-) posição transcendental, escola de Miguel Reale, daqueles que
consideram que, transcendental e empírico são termos distintos,
irredutíveis um ao outro, mas de tal modo implicados ou
correlacionados entre si que se não compreendem fora de sua mútua
dependência. Esta terceira posição afirma que o direito não resulta do
145
(em O Direito como Experiência, 1999, pág. 7)
115
processo fático, nem lhe é imanente, mas, por outro lado, também é
inconcebível como valor em si, desvinculado do processo histórico ou
sem referibilidade à experiência, havendo em todo fenômeno jurídico
dois aspectos a serem analisados, um quanto à sua gênese, outro
quanto as suas condições de possibilidade e de validade.
Parafraseando Kant logo na página inicial da Crítica da Razão Pura,
“no tempo, todo conhecimento do Direito começa com a experiência,
mas nem por isso deriva da experiência”.
Entretanto, e para rememorarmos posição acima descrita por nós, não
nos parece que seja possível legislar ou julgar sem que os interessados
conheçam profundamente o assunto e os interesses envolvidos. Não é
possível, abstrair, como se faz, e, longe do caso concreto,
sentimentalmente resolvê-lo que o resultado pode ser distorcido e sem
qualquer conexão com o caso a que se refere, como já tivemos
oportunidade de apontar.
Fazer algo sem audição prévia das associações de classe, negar
seguimento à Lex Mercatoria 146 não atentar para os usos e costumes,
tudo isto causa enormes problemas à sociedade porque afronta a
sabedoria dos que vivem o assunto no seu dia a dia. Mais do que isso
nos parece que esta atitude idealista expõe o íntimo ressentido de quem
a adota que é o de não acreditar no ser humano e na sua capacidade de
com boa fé resolver abertamente seus impasses de maneira altiva e
sobranceira.
Imensas confusões são perpetradas a partir dessa posição equívoca.
*
4.3- mitos sobre o dever-ser
O conceito básico de que se parte é o de que o homem tem que se
conformar à ordem racional do todo! Com este conceito parece que tudo se
encaixa: o homem fica humilde diante do todo, perscruta-o com sua
inteligência, compreende-o, admira-o, aceita-o, conforma-se e procura
copiá-lo; a Razão tudo preside e tudo explica: tudo se encaixa! E o Homem
é virtuoso.
Ser e Existência que são termos correlatos e conforme a realidade, para
estas pessoas, não valem em conjunto: a soberba interfere e o gênio criativo
do homem surge. O Valor, aquele eterno, pétreo e divino, sugere o Dever e
o Dever-Ser. Ou seja, o Ser que é, realmente não deveria ser assim, ele
deveria ser outra coisa, conforme a ordem racional do todo que,
146
ver dentre vários, inúmeros autores (Direito Internacional Privado, Irineu Strenger, 2000, págs 795 e
sgtes.),
116
casualmente, é sempre conforme a eleição de valor de quem sugere. O Ser
que é não pode ser o que é, ele deve ser outra coisa; o Dever-Ser é o Ser
como este deveria ser. Nada mais conforme o Sentimento de quem está
falando.
Joga-se fora a existência do que é em função do que deveria existir, dentro
de um plano conceitual específico. O plano arquitetônico de quem
apresenta sua concepção de dever-ser parte de princípios: primeiro que esta
apresentação é exatamente conforme o Ser se este tivesse oportunidade de
se manifestar deste outro jeito, mais desejável, aliás, logo, por inevitável,
deve-se acelerar a sua ocorrência; segundo que esta é a única possibilidade
e terceiro que da realidade pode-se inferir a única possibilidade. Valores
morais podem ser extraídos de fatos puros pelo uso da Razão, é o que
pensam estas pessoas.
Hume já nos alertava desse imenso perigo, o de que subitamente, sem
prévio aviso, as cópulas proposicionais usuais, como é e não é,
repentinamente passassem a ser deve e não deve, expressando uma nova
relação, sem qualquer explicação por parte do autor da sutil alteração e
como se fosse possível deduzir a nova relação de outra completamente
diferente.
Não se leva em conta, para dizer o mínimo, que sistema em Biologia, não
fica parado, ele evolui; mas elo a elo e na sua velocidade natural, que súbita
mudança, ou desconforme, tem como conseqüência, inevitável, a sua
destruição, a destruição do sistema. Donde se infere que a Natureza na sua
busca evolucionista não liquida o sistema cuja evolução estimula.
Mas, na Natureza, uma roseira deve produzir rosas! Pronto, simples assim.
Não é compreensível uma lei (ou uma sentença) que determine que uma
roseira deve, sob pena de prisão em caso contrário, produzir rosas, ou
produzir tantas rosas, ou com tal pigmentação; ou outra lei que determine
que uma roseira deve, sob pena de prisão em caso contrário, produzir
abacates. Não há lei neste caso; na Natureza o ser é, não há prescrição e o
dever-ser não é imputável. No mundo humano, ao revés, criam-se leis
sobre o agir. O ser do homem tende ao seu Fim ou ao Bem: há vagueza no
conceito? Mais fácil que dizer qual o Bem, ou o Fim, do homem é dizer
que o Bem, ou o Fim da roseira é gerar rosas. Criam-se, no mundo humano,
todavia, leis (quem já estabeleceu concretamente qual o Bem ou qual o Fim
do ser do Homem?). A grande, abissal diferença está que umas leis são
imaginadas outras são inventadas. As primeiras carecem de efetividade e
são derrogadas pelo costume que sabiamente afasta o que não é natural; as
segundas são dispostas, seguidas e usadas enquanto durar o motivo de sua
invenção ou substituídas quando outro elo for acrescentado à corrente
humana gerando outra ou nova necessidade.
A Lei Natural mais evidente é a que demonstra que em primeiro lugar está
a sobrevivência; a partir daí sobrevive o mais forte ou o mais hábil, aquele
117
que resiste, adapta-se, modifica-se, fortalece-se em evolução constante,
lenta e gradual. Em poucas palavras, sobrevive o que passa no teste da vida
(Watzlawick). A evolução, nesta hora, confunde-se com progresso –
termos, modernamente, com significados diferentes – e progresso com
profecia para o futuro, e, daí, os arautos do dever-ser manifestarem-se com
sua visão diferente de mundo, mesmo correndo o risco de destruir o sistema
no qual interferem (e sem mencionar que esses arautos ainda podem
promulgar leis em próprio proveito).
Pois bem, uma das conseqüências desta situação é que ocorrem duas
situações superpostas: uma, já suficientemente descrita, a dos que agem
dentro da lei por temor do castigo de Deus ou dos homens, ou a dos que
agem independentemente da lei por entendê-la naturalmente na sua
essência de maneira tão intensa que sentiam a lei pré-escrita em seu íntimo;
segundo, a outra, a dos que por que têm poder para tanto, agem sob a
norma, reescrevendo-a sublinearmente de acordo com seus propósitos,
fingindo respeitá-la, mas agindo de acordo com seus próprios interesses,
enquanto apregoam cumpri-la. É o estado marginal de coisas. E que se
consubstancia na hipocrisia. Para estes é que funciona a norma do “nunca
serás pego”. Esta desigualdade, uma, a dos estamentos que agem em
proveito próprio e outra, a do Estado que age em proveito próprio na base
do “eu”, o Estado, e “eles”, a sociedade, cria a base da corrupção e da
impunidade.
É no Estados Unidos da América que a lei impõe tanto respeito a ponto de
ela mesma, law, a palavra que designa a lei, ser a mesma que designa
Direito e Justiça.
A lei, nosso entender, deveria permitir ao homem sua sobrevivência e
evolução.
*
4.4 – ubi societas
Estranha raça, a humana; contra ela corriam as possibilidades de
sobrevivência: não tem garras, dentes duros, força descomunal, rabo
mortal, veneno, nada que a proteja dos ataques ou que a transforme em
eficiente predadora; a pele dos seus integrantes não os protege do frio ou do
calor ou dos inimigos; sozinhos, os homens, têm possibilidade de
sobrevivência pequena. Precisam comer e fugir das doenças que senão
sucumbem. Precisam dormir e enquanto dormem, temem, em sono, serem
devorados por um outro animal com fome. Precisam fugir da dor e buscar o
agradável, o prazimento. Como essa raça deu certo? A solidão, antes que
um fardo era perigosa; a companhia de outros seres humanos era prudente e
necessária: mesmo que os outros fossem o inferno (mas, afinal, porque
118
alguns incomodavam tanto? Que Sentimentos funestos eram atiçados com a
proximidade?), era melhor com eles que sem.
Além das ameaças físicas e da adversidade ambiental, o homem tem sua
própria inconsistência interna: antes de ser, eventualmente, o lobo do
homem, antes de ser, eventualmente, o deus do homem, o homem é o seu
próprio algoz. Nunca em outro sentido que não esse foi a mensagem
consubstanciada na divisa grega do Conhece-te a ti mesmo! Quanta
carência de amor e de afeto e de reconhecimento tem este animal frágil!
Quantos problemas correm no seu íntimo!
Enquanto tratava da própria sobrevivência o homem enfrentava medos, os
seus medos. Tinha medo que o céu lhe caísse sobre a cabeça; temia a
tempestade, a noite, os raios, a vingança do espírito do animal que matara
para comer, ou dos outros da mesma raça que viriam cobrar a morte do que
se fora, temia a dor.
Se tinha artefatos temia que algum preguiçoso viesse lhe retirar os seus
objetos.
Como se uniram os homens? Como vislumbraram que na Tática pura
sucumbiriam e que na Estratégia residia a sua possibilidade?
Tantos e tão bons pensadores já se manifestaram: Hobbes, Locke,
Rousseau, Hume...
Não podemos fazer um corte na história e subitamente dizer, aqui está, foi
aqui! Nem – de novo – abstrair e projetar uma nuvem para um período
imaginário da história e dizer era uma vez!
Mas há historiadores que relatam que desde o neolítico o medo obnubilava
o homem.
Como isto punha o cenário?
A nós nos parece que foi um duplo sentimento de horror que,
primariamente, primevamente, uniu os seres humanos: horror cheio de
espanto quanto à própria fragilidade (horror à vida mais propriamente) e
horror cheio de espanto quanto à inexorabilidade da morte (horror ao fim
da vida mais propriamente) como final de uma existência frágil.
Como apesar de perguntar não encontrava respostas foi o homem tratar de
ser prático.
Com Hume vislumbramos que os homens temos que, inicialmente,
proteger “três bens de espécies diferentes: a satisfação interior do espírito,
as qualidades exteriores do nosso corpo e a fruição dos bens que
adquirimos com nosso trabalho e nossa boa sorte”. 147 Mas, diferentemente
do Mestre, pensamos que todos eles podem ser alvo da violência alheia
Sabemos que vê-los como bens é um traço próprio da raça, individualista,
147
(2000 pág 528)
119
que outras raças não têm esse problema, preferindo normalmente a espécie
ao indivíduo.148
As perguntas básicas: Quem somos? O que é tudo isto? O que fazemos
aqui, como viemos parar aqui, porque viemos parar aqui? Para que ou a
quem servimos? Para onde vamos? O Universo só pode ser infinito (se
finito, após a borda do Universo, o Nada: que se pensado é algo!), então...?
foram, sem nenhuma resposta, os móveis do horror.
As necessidades básicas requeridas pelo corpo do homem tinham que ter
satisfação confortável e acessível. O homem sozinho não se bastava. Era
necessária uma equipe.
A exteriorização, nessa fase, auxiliava o processo, por isso, era importante.
E impunha uma equipe. Havia necessidade de comunicação. Criou-se,
assim, a linguagem.
Mas, havia o sentimento de fragilidade. A satisfação interior do espírito do
homem carecia de algo. Paralisado pelo terror, gemia sua desgraça.
Este assunto tinha que ser resolvido.
O andarilho que supria suas necessidades sozinho precisava de um bando.
Como solucionar? Moveu-o a necessidade e, depois, o interesse. A
associação paliaria o sentimento de horror; nela encontraria proteção. A
fragilidade seria amenizada pelo coletivo e a boa morte poderia ser
tramada. Cada um com sua possibilidade, seu dom e sua habilidade
contribuiria para que a humanidade tivesse bens e serviços à altura do
necessário e do requerido. As trocas harmonizariam a relação. Um
problema: a troca dos favores só se daria entre iguais, entre potências
iguais; entre superiores e inferiores (os que não tinham nada a oferecer) a
relação se encerraria na superioridade, no desprezo e no mando, que não
havia vantagem recíproca que sustentasse o contacto. A associação teria
também o lucro de possibilitar ao homem alienar-se, fechar-se em si e em
sociedade e se esquecer do horror de sua própria fragilidade e finitude, que
lembrar e esquecer são as vantagens da memória. Conviver com o horror
não era suportável; era melhor esquecer. Por que perguntar se resposta não
vinha? A cada pergunta a Natureza, o Além, o Nada e o Todo, respondiam
com um angustiante e impenetrável silêncio. A sociedade era um manto
que se sobrepunha ao horror e o abafava: a fragilidade estava superada e na
morte nem mais precisava pensar. Passada essa fase, inventaria outra fase e
não se recordaria do motivo inicial, que não precisava mais, não carecia
mais.
E, perigoso atalho vicinal, esta associação só seria válida e valorosa com
seus iguais, com os seus; com os outros, os de outra tribo, os bárbaros, ah!
estes não eram humanos da sua estirpe, estes eram bárbaros e mereciam a
morte. Com a associação, sempre entre os seus, o homem logrou inventar
148
(Hume pensava que só os dois últimos podem ser tomados pelo outro).
120
caminhos que pudessem resolver os dois últimos problemas, os do corpo e
o da posse que o homem exerce sobre coisas; o primeiro, o da paz interior,
ainda não soube atacar e resolver até agora no limiar do século XXI. Basta
ler Homero, Hesíodo, mas, principalmente, Tucídides, para perceber que o
homem continua rigorosamente o mesmo desde o século X antes de Cristo,
pelo menos.
Pensamos que há aspectos macro e aspectos micro neste caso particular: o
horror diante da existência e de seu fim seriam os aspectos macro; o seu
desconhecimento de si próprio e as invenções que criaria para se descrever
seriam os aspectos micro. E em ambos os aspectos não logrou o homem,
ainda, conforto e linimento.
Sua Razão - no sentido antigo - não o ajudou muito até agora.
E mais, sempre quando em vias de resolver os problemas relativos ao corpo
e posse, percebe que algo falta e surge o incômodo de não conseguir
resolver a paz interior (por que, afinal, tantos suicídios nos países
nórdicos?). Os problemas emocionais, psicológicos, religiosos, íntimos,
enfim, que assolam, por exemplo, os brasileiros no século XXI são os
mesmos ou quase os mesmos que os relatados por autores da tragédia grega
do século V antes de Cristo ou os relatados por Shakespeare na sua época,
fim da Idade Média. E estamos no limiar do século XXI ! Para aquietar a
associação, a Polis, a nova vida, o que fosse, sistemas políticos foram
concebidos, sistemas econômicos, sistemas jurídicos, falou-se de poder e
de liberdade, de inviolabilidade e de dignidade, de justiça, de
desenvolvimento, tudo para acomodar, aquietar aspectos relativos aos
novos problemas, originados na associação, que o de saída fora já
esquecido, jogado em arquivo fechado e secreto, mas, escondido
continuava a incomodar: o Horror continuava lá a exibir sua face horrenda
e assustadora. E a gerar revolta, raiva, ressentimento, medo, e daí, egoísmo,
inveja, solidão, exigência com reconhecimento, carência de afeto, orgulho,
vaidade; inventaram-se palavras: gratidão, honra, glória, dignidade,
merecimento; inventaram-se patamares de merecimento, estamentos,
castas, sentimento de superioridade e inferioridade; instalou-se a opressão
física ou simbólica. Tudo em nome do esquecimento do Horror. Alienou-se
o homem, drogou-se com outras prioridades que ele criou para substituir
aquela, a do seu ponto de partida. O dizer homérico de ver e ser visto,
tomou outra conotação. Camadas e camadas de civilização foram
construídas, sobrepondo-se, afundando para sempre a lembrança de que a
fragilidade humana e a morte inevitável ainda estão lá a incomodar um ser
que se julga à imagem e semelhança de Deus.
Este Sentimento de Horror que pensamos ser o original gerou os outros
sentimentos: Luxúria, Preguiça, Gula, Ira, Inveja, Cobiça, Soberba, o
Amor, a Responsabilidade, a Lealdade, a Amizade, o Medo, a Compaixão,
o Ressentimento, a Malevolência, a Justiça, a Liberdade, a Segurança, a
121
Nacionalidade, o Poder, a Ordem, a Verdade, o Dinheiro, a Auto Estima, as
Cores, os Cheiros, a Temperatura, e tantos outros, que estão aí a
influenciar.
O tema é tão importante e inquietador que vários desses sentimentos
tomados isoladamente são a base de alguns sistemas filosóficos que se
detiveram a estudá-los de per si como explicação muito interessante sobre
os temas sobre que discorrem.149
Mas, enfim, é graças ao Sentimento de Horror que, pensamos, uniu-se a
humanidade.
Inegável que a associação tinha seus motivos claros e que o interesse era o
móvel da união. Se o Horror continua a incomodar, outros problemas
surgem e sugerem a Polis.
Com a polis vem o dito latino: Ubi societas ibi jus; ubi jus ibi societas. O
Direito se instala na sociedade.
A vida em sociedade carece de regras e elas têm que ser construídas pelo
Homem. A isto, em parte, chamou-se civilização.
O homem extrativista, coletor, apanhador dos bens que a natureza lhe
ofertava generosamente, aquele homem que comungava com a natureza
suas benesses, e que se julgava em igualdade de condições com as folhas,
os pássaros e os regatos, aquele homem assustado com sua posição e
marcado pela ignorância, aquele homem não estava satisfeito: sua
prudência indicava que era melhor escapar dos caprichos do meio ambiente
para poder dirigi-lo! Havia que ser criada a abundância que esta
naturalmente não existia. O apanhador virou produtor: ele informava à
natureza o que queria dela e arrancava o que planejara. Com violência o
homem passou a dirigir a natureza e abandonou a igualdade de condições
que exercia antes; agora era superior e a natureza estava para seu conforto.
O homem era a medida de todas as coisas. Tudo era para servi-lo: domine o
mundo era o ensinamento bíblico. E o homem o fez. O senhor da natureza
temia nada agora. O homem dirigia a Terra e logo dirigiria a vida.
A soberba era o móvel. Nunca o homem esteve tão descolado da realidade.
Tão invasor. Tão poderoso. Tão arrogante. Tão esquecido. 150Superior o
homem, então, inferior a natureza. O homem, este sim, a causa da criação,
o resto é o resto. E, eterno, feito para outra vida que esta que é não é, a
outra é a verdadeira: o ensinamento de Jesus (o Cristo, o que viria para
salvar, para responder, para esclarecer, aquele que dividiria a era em antes
dele, depois dele!) promovido por Paulo não deixa margem à duvida: o
homem é sim ser individual, que se salva individualmente, para viver em
regozijo outra vida, que esta é passagem. Demos vivas à morte. O ponto
149
Veja-se, como um dos exemplos, citado por Tércio (2002 pág 226), a visão de Helmut Schoeck sobre a
Inveja como um dos temas nucleares da existência ou da coexistência humana.
150
Profetas dizem que o maior problema da humanidade será em 2050 – fixam datas – e é a falta d´água!
122
central estava pela primeira vez suficientemente atacado: a fragilidade
desta vida tinha propósito e assim também a morte. O confuso homem, o
assustado homem não precisava mais se preocupar, pronto, lá estava a
explicação. Estava salvo!151
De produtor a demiurgo foram vários séculos: o homem passou a ser
parceiro da vida, podia curá-la, podia consertar. Podia mitigar o sofrimento
físico do homem, podia extrair mais da natureza, podia melhorar a vida do
homem.
Daí, de demiurgo a deus foram alguns anos só: agora com as técnicas, com
a biotecnologia, o homem pode criar vida, pode verificar na natureza o que
não serve, o que não presta, o que está errado, o que afronta o plano
humano e corrigir.
Tanto desenvolvimento e a paz interna do homem ainda a incomodar: nada
parece ter andado nestes últimos três mil anos, pelo menos!
Mas, continuava o tema, ainda havia a passagem, esta vida ainda existia:
como conciliar? E o chamamento da carne? E se se pudesse conciliar as
benesses desta e da outra? Tão fácil agora, o homem já dirigia a Terra, a
angústia da morte descartada.
Ressurge o mágico da época neolítica: alguém, afinal, tem que conduzir a
manada: as pessoas que se uniam não eram iguais. E, assim, os benefícios
da associação não eram equivalentes. Os sócios não tinham o mesmo
cacife. Quando nascem não são iguais e não podem ser sacrificados os
inferiores nem os desnecessários.
Quando se unem homem e mulher, quando a natureza joga seus dados, do
lance pode sair uma jogada vencedora, ou quase, e a potência que
diferencia uma pessoa da outra está definitiva e inelutavelmente instalada:
alguns são mais capacitados ou mais bonitos ou mais ricos, ou tudo isso, ou
uma combinação disso, mas não há mais dúvida que uns nascem mais
aquinhoados que outros: a questão fica como fazer com os menos
afortunados.
O homem inventa sua realidade e, quando sofre oposição, precisa corrigir.
Nietzsche 152 nos avisa que na relação pessoal, basicamente, a pessoa mede
outra pessoa, faz preços, mede valores, inventa equivalentes, troca,
compara potência com potência, calcula: o olho estava agora preparado
para essa perspectiva: e, com aquela grotesca conseqüência que é peculiar
ao pensar da antiga humanidade, que é difícil de por em movimento, mas
151
(cada religião vem explicar à sua maneira a solução para o Horror, que religião é meio de
comunicação ou linguagem com o Além: assim como falamos em diversas línguas para nos
comunicarmos entre nós, valemo-nos de várias línguas, ou religiões, a mais adaptada ao seu seguidor,
para nos comunicarmos com Deus e recebermos respostas que nos curem o Horror)
152
(1978 pág 305)
123
que em seguida prossegue inexoravelmente na mesma direção, logo se
chegou, com grande generalização, ao “cada coisa tem seu preço: tudo
pode ser pago (no duplo sentido da palavra: fazer um pagamento e prestar
uma compensação ou ser objeto de vingança, como em “Deus lhe pague”
ou “você me paga”) – o mais antigo e mais ingênuo cânon moral da
justiça, o início de toda a “bondade “ , de toda ”equidade”, de toda “boa
vontade”, de toda “objetividade” sobre a terra. Justiça, nesse primeiro
grau, é a boa vontade, entre os que têm potência mais ou menos igual, de
se acomodarem uns aos outros, de, por meio de um igualamento
(conciliação, compromisso), voltarem a se “entender” – e, em referência
aos que têm menor potência, coagi-los, abaixo de si, a um igualamento.
Em “Humano, Demasiado Humano”153 lá estava a tela enquadrada: crianças
foram ensinadas a admirar e imitar tais ações, pouco a pouco surgiu a
aparência de que uma ação justa é uma ação não egoísta. “A Justiça
(equidade) tem sua origem entre aqueles que têm potência mais ou menos
igual...; o caráter da troca é o caráter inicial da justiça. Cada um contenta
o outro, na medida em que cada um obtém o que estima mais do que o
outro. Dá-se a cada um o que ele quer ter, como doravante seu, e se recebe
em compensação o que se deseja. Justiça é, portanto, retribuição e
intercâmbio, sob a pressuposição de uma posição mais ou menos igual de
potência; assim a vingança pertence originalmente ao domínio da justiça,
ela é intercâmbio. Assim também a gratidão. – Justiça remete
naturalmente ao ponto de vista de uma autoconservação inteligente,
portanto, ao egoísmo daquela reflexão; “Para que haveria eu de me
danificar inutilmente e talvez nem sequer alcançar meu alvo?” – Isso
quanto à origem da justiça. Porque os homens, de acordo com seu hábito
intelectual, esqueceram o fim originário das assim chamadas ações justas,
eqüitativas, e, em especial, porque através de milênios as crianças foram
ensinadas a admirar e imitar tais ações, pouco a pouco surgiu a aparência
de que uma ação justa é uma ação não-egoista... Um poeta poderia dizer
que Deus postou o esquecimento como guardião na soleira do templo da
dignidade humana”.
Ainda com Hume e se o homem tenta proteger seus “três bens de espécies
diferentes: a satisfação interior do espírito, as qualidades exteriores do
nosso corpo e a fruição dos bens que adquirimos com nosso trabalho e
nossa boa sorte” 154 , se inevitável foi a associação, se ela se resolve,
inicialmente entre iguais155, surge o derradeiro problema que é a diferente
visão da realidade que têm entre si os homens, que não podemos ver que
não vemos o que não vemos (Heinz von Foerster).
153
(1978, pág 98/99)
(2000 pág 528)
155
(uns mais que outros, como nos apontou Nietzsche)
154
124
Quanto mais gente junta mais é a visão disjunta e tudo depende do ponto de
vista, do mirador: eis mais um problema a resolver. Será possível
estabelecer relação entre realidade, ficção e significado?
“Objetividade é a ilusão de que as observações podem ser feitas sem um
observador”, diz-nos Foerster.
A realidade é uma percepção na mente e depende do espírito (no sentido
nietzschiano) do perceptor. É através da linguagem que o perceptor vai
comunicar sua visão; esta linguagem será percebida pelo outro perceptor da
maneira como ele formar a percepção em sua mente. Apesar de estudo,
longa profissionalização, atribuições de sentido previamente instruídas
socialmente, ensino de significados, segurança normativa de textos ou
palavras-chave, os perceptores percebem a realidade de maneira diferente.
Palavras como dignidade, bem comum, justiça, igualdade-perante-a-lei, etc,
são percebidas diferentemente não importa se por Juízes com longa ou
pouca experiência ou advogados com formação idêntica, formados na
mesma sala de aula e no mesmo ano, tendo tido os mesmos professores e
freqüentado os mesmos grupos de estudo.
A justaposição de fato-valor-norma nestas circunstâncias ocorre
(testemunhal a prostituta das provas!), temos que reconhecer,
diferentemente. Cada um cada fato cada valor cada norma. Com
agravantes já vistas: a Razão mensura a(s) medida(s) e verifica falsidade ou
verdade da(s) medida(s); o Sentimento avalia e decide entre as medidas, a
melhor ou mais adequada naquele instante. Se for o homem a medida de
todas as coisas, ou ao revés, se é o Bem a medida de todas as coisas 156,
como ajustar a percepção de bem no maior número de perceptores e fazer
uma justiça que seja compreendida, entendida e sentida como tal, como
praticar o bom para?
A receita atual é singela: a abstração, a ficção e a generalização, tão ao
gosto presente dos que são convocados a decidir conflitos, viram
suposições-como-se (Hejl ) de alcance e efeito limitado, necessárias à
alternativas de julgamentos desejáveis e apoiadas pela legislação adaptada.
Cria-se a “geração social” da realidade. Assim, nega-se o aprendizado, isto
é, “norma-se” como recusa de modificar (Luhmann) uma construção da
realidade e a conduta a ela atribuída por meio do aprendizado! É a
arbitrariedade judicial, juiz a juiz, defesa em lei, verdadeira violência
simbólica à parte carente de justiça, que está institucionalizada pela Justiça,
sob o olhar complacente e cúmplice de todos os envolvidos no processo.
156
(e Bem para, não Bem-em-si, como nos ensina Hannah Arendt: a utilidade só poderia ser salva
mediante a idéia do bem, já que “bem” no vocabulário grego sempre significou “bom para” ou
“adequado”. Se a idéia máxima da qual todas as demais devem participar para que cheguem a ser idéias é
a da adequação, então as idéias são aplicáveis por definição, e, nas mãos do filósofo, o que é versado em
idéias, podem tornar-se regras e padrões ou, como posteriormente em Leis, se converter em leis – Entre o
Passado e o Futuro – Editora Perspectiva – 2001 – pág 153/154).
125
Pensamos que a atitude é derivada da fuga do verdadeiro problema,
empreendida pelos participantes da farsa.
O construtivismo ao apontar a relatividade do ponto de vista em relação ao
universo e a nós mesmos (a concepção do mundo sempre foi e continua
sendo para todos uma construção intelectual; sua existência não pode ser
comprovada de qualquer outra maneira – Schrödinger ) assim se expressa:
157
“O ponto de partida desse cálculo (...) é o estabelecimento de uma
distinção. Com esse ato primitivo da dissociação, separamos aspectos que
consideramos serem então o próprio universo. Partindo daí insistimos na
prioridade do papel do observador, que faz suas distinções nos pontos que
lhe convierem. Mas estas distinções que, por um lado criam nosso
universo, por outro lado revelam justamente as distinções que nós fazemos
e que se aplicam muito mais ao ponto de vista do observador que à real
constituição do universo que, em conseqüência da dissociação de
observador e observado, continua sempre incompreensível. A partir do
instante em que observamos o universo na sua essência específica,
esquecemos o que empreendemos para encontra-lo nessa essência; e se
recuarmos na história até o ponto como isso ocorreu, não encontraremos
nada além do reflexo de nós mesmos no universo e como universo. Ao
contrário do que freqüentemente se supõe, a análise cuidadosa de uma
observação
revela as particularidades do observador. Nós, os
observadores, nos distinguimos justamente pelo discernimento daquilo
que, pelo visto, não somos, isto é , pelo universo”.
É possível continuar a dizer com Protágoras que o homem é a medida de
todas as coisas e que este homem determina o que elas são e como elas são.
Pode haver atitude mais...natural?
O místico irlandês John Scottus Eriugena158 diz sobriamente que: “Assim
como o sábio artista cria sua arte de si e em si e nela prevê as coisas que
criará... assim o intelecto cria sua razão de si e em si, na qual ele
pressente e predestina todas as coisas que deseja realizar”.
Destarte, e sem qualquer ironia, nada mais natural o que acontece hoje nos
países já de per si altamente criativos e inovadores – com os Juízes
inventando a realidade e afrontando a previsibilidade.
Vico já dizia que Deus (re)conheceria o universo porque ele mesmo o
criou, ele mesmo o fez: quando descrevemos “fatos” palavra que provem
do latim “factum” (fato, ação, empresa, trabalho, obra) que por sua vez
deriva de “facere”, que é fazer, percebemos que tratamos de coisas feitas, já
realizadas.
157
(Francisco Varela , “A calculus for self-references” in O olhar do Observador, citado por Paul
Watzlawick, editorial Psy II, 1995, pág 10)
158
(810/877 d.C.) citado por Ernst von Glasersfeld no mesmo O olhar do Observador
126
Talvez seja nesta acepção que somo feitos à imagem e semelhança de
Deus: enquanto homens (re)conhecemos o universo que nós (re)criamos,
que nós (re)fazemos!
A Justiça não existiria objetivamente sem seu observador que é quem
determina o quê, onde, como, quando, porquê, para que, para quem e que é
quem lhe atribui, por sua vez, seu valor: ela é inventada. Basta observar o
observador e não a realidade para identificarmos qual realidade do
observador influenciou a ação. Ou seja, basta um mergulho lúcido para
dentro de nós mesmos.
Nestas circunstâncias o trabalho do juiz (do legislador, do dogmático, do
intérprete...) consiste em, dentro do universo experiencial dele, atingir o seu
objetivo de decidir o processo judicial dentro da realidade que ele
construiu: isto explica o tremendo sentimento de injustiça que se apossa das
partes: elas também dentro do universo experiencial delas esperam justiça.
Em outros termos, o aparato judicial tem 1-como clientes as partes que se
defrontam e 2-como objetivo decidir – terminar – a oposição em que estão
as partes, os seus clientes; se estes estão insatisfeitos ao fim de processo
isto significa que troca-se a decisão pela satisfação das partes. É a situação
de Pôncio Pilatos: se o que a turba ignara quer é a crucificação, Seja! Ou,
se a decidibilidade e não a Justiça – o que quer que isto seja – é o fim do
processo, Decida-se! E não nos preocupemos mais com a satisfação dos
clientes.
Este mergulho para dentro é para alguns o Ego solus ipsus: o solipsismo (o
self sozinho) é a posição dos que afirmam que nada existe senão dentro da
própria consciência, ou que a mente não pode conhecer nada que não esteja
dentro do sujeito; é a própria experiência como base do conhecimento (daí
Wittgenstein dizer que os limites da minha linguagem constituem os limites
do meu mundo).
Se aceitarmos esta tese, a de que o mundo é o meu mundo, temos que
aceitar a tese de que cada cabeça sua sentença.
Mas a coisa não para aí, não se resolve aí.
Não há saída, como nos ensina Foerster (ninguém pode ver que não vê o
que não vê), senão na conjunção destas cabeças, na formação da
comunidade: conhecer, diz ele, é computar é computar é computar é
computar...(do latim cum : com, em companhia de, juntamente com +
putare: limpar, purificar, daí desbastar, podar, cortar, daí, em sentido
figurado: verificar uma conta, apurar, contar, calcular, avaliar, considerar,
estimar, julgar, pensar, crer, imaginar, supor).
Donde o Sentimento ser apresentado como meio de comunicação, uma
constante troca de mensagens de um indivíduo para outro, dentro de
códigos bem específicos e característicos, estabelecendo imenso e
127
fortíssimo canal de comunicação entre emissor e receptor, matéria que será
mais bem apresentada no penúltimo capítulo.
Finalmente, a Natureza tem no Post hoc ergo propter hoc : depois disso,
logo por causa disso, a base do Se A é, B é.
Não nos ateremos na natureza (logo por causa disso), a perquirir se há ou
não causa e efeito: não nos perguntaremos se na natureza podemos mesmo
garantir que amanhã o Sol sairá e nascerá um novo dia, e não nos fixaremos
na teoria da probabilidade.
No mundo do humano há outra coisa.
Se A é, então B deve-ser é uma construção humana e nesta circunstância
precisa ser decomposta. Sem qualquer relação de causa e efeito. É uma
construção humana, demasiado humana, somente humana.
Começamos no dever-ser para nele terminar: quando o homem se junta
surge o direito e o dever-ser; defendemos a tese de que o dever-ser precisa
se ater ao universo ôntico e que este, e assim o dever-ser, são uma invenção
nossa a partir de medidas verificadas pela nossa Razão e que,
axiologicamente, dentro das várias medidas possíveis, pinçamos com nosso
Sentimento, aquela medida, a de nossa escolha, aquela que avaliamos como
a melhor para aquele instante.
O ser do homem, que é devir, tende a seu Fim ou ao Bem, termos
comutativos; o comum do Bem (que o que não é comum é problema da
felicidade individual de cada um) tem que ser contemporâneo para não ser
póstumo nem antepassado sem o que não se resolveria e seria quimera: o
comum do Bem é vir-a-ser.
Fiquemos, para finalizar, com as máximas de von Foerster: a ética que diz:
aja sempre de maneira a ampliar as possibilidades 159 e a estética que diz: se
você deseja ver, aprenda como agir.
Assim o princípio da independência e do livre convencimento do juiz e da
juíza estará eticamente estimulado pelo aumento da compreensão e do foco
de visão e não pela aplicação pura e simples do princípio ao caso concreto
e de acordo com a parcial visão que o juiz e a juíza conseguiram
solitariamente naquela etapa de sua vida (lembrando, mais uma vez, que
não se pode ver que não se vê o que não se vê).
É pouco?
Julgar é meramente aplicar a norma de acordo com princípios técnicos ao
caso concreto?
159
(que sempre chamamos, do nosso lado, de política da insegurança, ou seja, desafie as certezas postas,
desafie-se a si, motive as mudanças, intercambie perspectivas e esteja preparado para as diferenças)
128
5 - A equidade em Aristóteles, na Retórica. A nova equidade dos juízes
atuais.
5.1- o positivismo impacta a equidade
O Direito visto pela ótica positivista como tecnologia gera
comportamentos no mínimo interessantes por parte dos atores de direito
(ou dos despachantes do direito, como os chamamos nestas ocasiões) que
têm essa mentalidade técnica: há um caso relatado em O Estado de São
Paulo 160 que espelha com largueza o que se passa. É a tradução de um
artigo assinado por Adam Liptak e publicado em The New York Times.
Nesse artigo está relatado que houve um debate entre a Juíza Laura Denvir
Stith e Frank A . Jung, assistente do procurador geral do estado de Nova
York. Esse senhor tentava impedir que um condenado à morte tivesse seu
processo reaberto com base em novas evidências (exame de DNA, não
disponível à época do julgamento e que se então utilizado como prova teria
absolvido o réu!). “O senhor está sugerindo que mesmo que descubramos
que o sr. Amrine é inocente, ele deve ser executado?” perguntou a Juíza ao
imperturbável promotor. “Sim, isso mesmo Excelência”, foi a resposta que
teve o condão de chocar a Juíza. A posição surpreendente foi avalizada
pelo secretário de Justiça do Missouri, Jeremiah W. Nixon, que afirmou
que a resposta de Jung a Stith fora juridicamente correta e acertadamente
dada em retribuição a uma pergunta provocativa (grifamos!), pois, ele
afirmou, “o que Jung tentou provar é a necessidade imperiosa de um
processo chegar ao fim em um determinado momento”.
Profissionais que vêm no Direito um modo de distribuir Justiça divergiram
imediatamente: Mary Jo White, a mais importante promotora pública
federal de Nova York, e uma das mais antigas declarou, referindo-se ao
caso, que os promotores têm a obrigação contínua de avaliar alegações de
inocência e que “o governo deve mover céu e terra para descobrir a
verdade”. E emendou: “você está lá para absolver inocentes tanto quanto,
senão mais, que para condenar culpados; não permitir que o sistema de
absolvição avance é indefensável”.
Verificando no Brasil casos como estes, que são “tecnicamente” resolvidos,
o que nos provoca estupor e sempre a manifestação de nossa
inconformidade através de freqüentes petições, um dia, fomos
surpreendidos pela resposta de uma gabaritada assistente de um ministro do
tribunal em Brasília, que nos disse “que ela estava muito amarga pelo fato
de ser freqüentemente obrigada pela lei a promover injustiças flagrantes em
diversos processos”. Isso demonstra que a boa técnica comanda atitudes
que, em algumas oportunidades, contrariam o sentimento de justiça de
160
do dia 26 de fevereiro de 2003
129
quem é obrigado a atuar daquela maneira, o que está tão bem explicado na
poesia famosa (in Fado Tropical161) :
Sabe, no fundo eu sou um sentimental.
Todos nós herdamos no sangue lusitano, uma boa dose de lirismo.
Mesmo quando as minhas mãos estão ocupadas em torturar, esganar,
trucidar,
Meu coração fecha os olhos e, sinceramente, chora...
Meu coração tem um sereno jeito
E as minhas mãos o golpe duro e presto,
De tal maneira que, depois de feito,
Desencontrado, eu mesmo me contesto.
Se trago as mãos distantes do meu peito
É que há distância entre intenção e gesto.
E se o meu coração nas mãos estreito
Me assombra a súbita impressão d´ incesto.
Quando me encontro no calor da luta,
Ostento a aguda empunhadura à proa;
Mas meu peito se desabotoa,
E, se a sentença se anuncia bruta,
Mais que depressa a mão cega executa,
Pois que senão o coração perdoa.
É de boa técnica para um juiz que, por função, deve julgar...julgar! É de
boa técnica para um membro do Ministério Público que deve por função
denunciar e condenar...denunciar e condenar! É de boa técnica para um
advogado que deve por função defender...defender! Suas vidas resumem-se
ao exercício técnico de suas funções que assim fazem jus ao seu salário e
podem dormir bem todas as noites. Que me importa que a mula manque, o
que eu quero é rosetar, diz o antiqüíssimo ditado. São os despachantes do
Direito.
Se a mula manca, se a sentença é produzida (Pré-escrita? Pré-feita? Por
auxiliares do Juiz e da Juíza? Desconectada do caso em questão?), se um
inocente é condenado, se um culpado é livre...isto já é outra história!
Esta herança, amarga a nosso ver, é o resultado não desejado mas perverso
da visão positivista que, pelo menos desde Rawls em 1971, o mundo
jurídico tenta modificar, abrandar ao menos.
Sempre estranho esse nosso mundo jurídico o que torna bem significativo
que a história que relatamos no começo deste capítulo tenha ocorrido nos
161
Chico Buarque e Ruy Guerra, 1972/1973)
130
Estados Unidos da América, país onde, por influência inglesa, impera
largamente o uso da equity!
Summum jus summa injuria (excesso de justiça excesso de injustiça ou o
mais alto direito a que se segue a mais alta injustiça, ou em interpretação
livre do adágio latino citado por Cícero – De Officiis, I, 10, 33 – podem
resultar consequências iníquas de uma aplicação nimiamente rigorosa da
lei) é o que a equidade quer evitar.
Vários filósofos, a partir de Aristóteles, abordaram o tema.
Mas como isto começou, quando na prática começou a reação?
*
5,2 – a reação
Na Inglaterra desde o século XIII, época de formação da common law, e
até o século XIX, não era importante chegar à uma solução justa e que
findasse os litígios com satisfação das partes envolvidas: a atenção dos
juristas estava voltada mais para o processo – remedies precede rights –
mais para a atividade formal. O raciocínio era que se seguidas as fórmulas
corretamente o resultado final seria obrigatoriamente justo.
O sistema da common law, ou a necessidade de o requerente ir aos
Tribunais Reais para ver seu pleito satisfeito, às vezes, não atendia aos
anseios da parte: o tribunal dado o formalismo existente poderia não ser
alcançado e, daí, nem consultado, não poderia dar a solução certa por apego
ao rigor; poderia contrariar até o bom senso que se aplicado ao caso
redundaria em decisão talvez oposta. Nessa ocasião o particular tinha o
direito de apelar para o Rei, justiceiro e todo poderoso, que estudando e
analisando com sua consciência a questão, decidiria (até por caridade) de
maneira a atender o anseio de justiça imanente a quem litiga. O Chanceler
(séculos XV e XVI) passou a substituir o Rei nestes casos e era ele quem
decidia de acordo com sua consciência, ajustando o curso do Direito (nunca
contra o Direito: equity follows the law) quando o Direito por excesso de
formalismo engessava o assunto e conduzia a decisão para rumos
claramente contrários ao bom senso. Respeitar o Direito não significa agir
não eticamente ou ir contra os ditames da moral. A decisão começou a ser
tomada ou pelas regras da common law ou pelas regras da equity. Esta
tinha suas características baseadas no Direito Canônico mas não se
contrapunha a common law: apenas uma solução poderia ser diferente da
outra conforme o tribunal chamado para decidir a questão. Somente depois
de 1873-1875 é que houve como que uma unificação de preceitos e o
mesmo Tribunal poderia decidir de um jeito ou de outro. Mas logo surgiu a
questão: há dois processos muito diferentes entre si, quer seja um caso
tratado pela common law quer seja tratado por equity. Os Judicature Acts
de 73/75 conservaram, então, ambos os sistemas: no seio do novo
131
Supremo Tribunal certos juízes seguem a common law agrupados na
Divisão do Banco da Rainha e outros, os da Divisão da Chancelaria,
seguem a antiga equity. Os juristas que advogam perante estas câmaras são
também diferentes. Há os common lawyers e os equity lawyers.
Seguindo o lema ’Justiça antes da Verdade’ (Justice before truth) os
advogados ingleses preferem a administração da justiça à busca da própria.
É óbvio que os dois conceitos estão imbricados mas perseguindo a idéia de
que o réu deve ter um julgamento justo (fair trial), de que deve ser tratado
com lealdade, de que as regras do processo devem ser seguidas pari passu,
o jurista inglês pensa que é assim que a justiça será alcançada. Os seus
colegas continentais (e romanos) têm certeza que eles é que devem dizer
qual é a solução de justiça. Se o Juiz souber como chegar a esta solução
justa ele deve ser ajudado pelo advogado a avançar e a alcançar mais
rapidamente aquele ponto. Se o Juiz não souber aonde chegar ele deve ser
encaminhado pela argúcia persuasiva do advogado. Diferenças de ponto de
vista entre ilha e continente, o que nos faz refletir que diferentes
aproximações geram diferentes soluções jurídicas, conseqüentemente
diferentes sentenças, diferentes satisfações jurisdicionais prestadas às
partes.
A equity nos Estados Unidos foi imediatamente relacionada com a
common law. Procurou-se abolir a dualidade de jurisdições encontrada na
Inglaterra. A equity deve ser admitida quando o Direito não oferece
nenhuma solução. Um exemplo citado (David) é o de que o Direito não
apresentava nenhuma solução para os problemas conjugais, pois
considerando marido e mulher como um só não admitia que um litigasse
em face do outro. A equity veio salvar este estado absurdo de coisas
criando na América, por expansão, um jeito de resolver o litígio conjugal
que é estranho ao jurista inglês.
*
5.3- ibi jus
Ex facto oritur jus: do fato origina-se (o direito) a justiça, diz o adágio
latino com o qual concordamos plenamente.
Isto pode se relacionar (fatovalornorma) a leis e normas, mas também
a interpretações, dogmatizações e sentenças judiciais.
Bertrand Russel162 dizia que “é óbvio que não existe um dualismo entre
fatos verdadeiros e falsos; existem única e exclusivamente fatos. Seria um
erro, obviamente, dizer que todos os fatos são verdadeiros. Seria um erro
porque verdadeiro e falso são correlativos, e somente diríamos de uma
coisa que ela era verdadeira se ela fosse a espécie de coisa que poderia ser
162
(1978 pág 59)
132
falsa. Um fato não pode ser verdadeiro nem falso. Isto nos leva à questão
dos enunciados, proposições ou juízos, a todas aquelas coisas que possuem
a dualidade do verdadeiro e da falsidade”.
Russel defendia a tese de que fatos são meramente fatos e que eles existem
independentemente do que viermos a pensar sobre eles; por criação
humana surgem as crenças, as nossas crenças, e que se referem aos fatos e
que por isto mesmo, por serem referência aos fatos, as crenças – estas sim –
são verdadeiras ou falsas. 163
Assim, sustentamos nós, expostas nossas crenças, o que fazemos na forma
de proposições, estas, verificada sua falsidade ou verdade, passam a nos
provocar um sentimento de prazer ou de desprazer. Isto é, uma proposição
falsa pode nos provocar prazer ou desprazer e, igualmente, uma proposição
verdadeira pode nos provocar também prazer ou desprazer. Mais, provocanos também sentimentos de bom/mau, conforto/desconforto,
conveniência/inconveniência,
correto/incorreto,
razoabilidade/não
razoabilidade etc.
O fato, então, já na forma de uma proposição, passa por nosso crivo pessoal
e é decomposto, cortado em fatias, na nossa mente jurídica implacável de
modo que possamos compreendê-lo melhor. Se estivermos,
conscientemente ou sem perceber, manejando uma proposição falsa,
prosseguimos no equívoco e continuamos nele até o fim! Se estivermos
com uma proposição verdadeira podemos também nos desviar e pegar um
atalho que nos conduza a conclusão equívoca. Há que ter muito cuidado.
O objetivo, todavia, é sempre manejar proposição verdadeira e retirar dela
conclusão que, dentre as possíveis, seja a mais acertada, ou uma das mais
acertadas, para o caso em questão.
Dois caminhos se abrem neste instante: o da avaliação do caso por
proximidade ou por generalização. É uma escolha do observador.
A técnica tem encaminhado esta abordagem para a generalização.
Observado, assim, o fato, e dentro de um processo altamente técnico, a
mente jurídica do juiz ou da juíza inicia o caminho para a generalização:
Heitor estuprou Helena,
x estuprou Helena,
x estuprou y,
xRy.
Não há mais pessoas envolvidas naquele estupro, o fato - ou os fatos - está
desprovido de rosto, de cheiro, de cor: a questão está “limpa”, “asséptica”.
Não há mais gente, não há mais humanidade, só o mundo frio e distante da
formalização.164
163
(E nunca, de novo, é demais lembrar que a prostituta das provas é o testemunho: quantas vezes vemos
algo que não aconteceu daquela forma!)
133
Daí, da generalização, parte-se para abstrações do tipo “sexo” (S), “libido
incontrolável” (Li), “relação homem/mulher” (hRm), “estupro” (E),
“violência” (V), “mulher provoca homem” (mRh) e etc., a mente humana
vai num átimo e – pronto – já é enorme a distância entre o fato, sua crença,
sua proposição e o rumo que tomou o pensamento jurídico do juiz ou da
juíza que analisa o caso : daí uma sentença, pelo menos, descolada do fato
de que se originou a causa, ser muito facilmente produzida. No caso de
estupro que acima inventamos, pode sair algo assim: se mRh, se xRy, ,
então ix (declaro a inocência de x).
Ou seja, entre o fato e sua crença, a partir daí uma proposição, que pode ser
verdadeira ou falsa, interferência de valores próprios, uma generalização e
abstrações: quanto exercício mental e quanta distância medeiam aquele fato
e suas diversas versões em diversas instâncias do pensamento, com grande
possibilidade de ser produzida uma aberração mental.
Quanta falta faz o estudo aprofundado da lógica! A abertura da visão. Ou a
abertura de tantas proposições quantas necessárias para o deslinde do caso
e a verificação verdade/falsidade de cada uma delas.
Entre produzir, de um lado, leis e normas (dever-ser) que tratam de
questões, muitas das vezes, hipotéticas e requerem, portanto,
generalizações e abstrações (o mesmo vale para interpretações genéricas e
dogmatizações) e, de outro lado, sentenças e interpretações específicas que
tratam de um caso concreto com pessoas, seres humanos de carne e osso
que estão diretamente envolvidos, vai uma enorme distância. Métodos
devem ser diferentes.
O processo racional e sentimental envolvido deve ser diferente: um em um
caso, o da feitura de leis e normas e de interpretações genéricas e
dogmatizações (profundo conhecimento do assunto, distância,
imparcialidade ou objetividade, generalização e abstração) e outro,
(detalhado conhecimento dos fatos, envolvimento com o caso concreto e
com a lei que prescreve conduta e imputa responsabilidade naquele caso
além de conhecimento de decisões anteriores em casos semelhantes) no
outro, o de feitura de sentenças e de interpretações específicas. Como
temos apregoado, o envolvimento do juiz e da juíza, ao contrário do que se
164
(Não descaracterizamos o uso das abstrações formais, nem lhe atribuímos – bem pelo contrário aliás a pecha de atividade falha ou dispensável: o que sustentamos é que pessoas, que por estarem fisicamente
constituídas assim e, portanto, ao usar seu sentimento para decidir, dão, por falta de preparo, exercício e
estudo de lógica, saltos racionais e sentimentais tão grandes que podem cometer, e muitas vezes
cometem, barbaridades factuais, depois jurídicas e, após, grandes incorreções. O erro está no mau uso da
razão e do sentimento: visão obscurecida, ignorância, preconceito, ideologia, falta de lógica, tudo isso
gerando erros conceituais gravíssimos e sentenças injustas totalmente desconexas e descoladas dos casos
a que se referem. Há agravante: o ‘treino’ do juiz é para que use sua razão! Como usá-la se com ela, se
com a razão, ele não pode dar conta desta tarefa, a de decidir, a de sentenciar? Não há ‘treino’ nem
exercício nem ensino nos Colégios e nas Faculdades para uso do sentimento)
134
gosta de afirmar, está sempre presente, e via sentimento é mesmo
necessário ao deslinde.
Ora, a equidade é a justiça aplicada ao caso concreto.
Aristóteles que declarou 165 “que as pessoas em disputa recorrem ao Juiz,
que recorrer ao Juiz é recorrer à Justiça, pois a natureza do Juiz é ser uma
espécie de Justiça animada”, na sua Ética a Nicômaco 166 trata da equidade:
”o eqüitativo, embora superior a uma espécie de justiça, é justo, e não é
como coisa de classe diferente que é melhor do que o justo. A mesma
coisa, pois, é justa e eqüitativa, e, embora ambos sejam bons, o eqüitativo é
superior“.
Vai além: “o que faz surgir o problema é que o eqüitativo é justo, porém
não o legalmente justo, e sim uma correção da justiça legal”. “Por isso o
eqüitativo é justo, superior a uma espécie de justiça – não à justiça
absoluta, mas ao erro proveniente do caráter absoluto da disposição legal. E
essa é a natureza do eqüitativo: uma correção da lei quando ela é deficiente
em razão da sua universalidade”. “Torna-se assim bem claro o que seja o
eqüitativo, que ele é justo e é melhor do que uma espécie de justiça.
Evidencia-se também, pelo que dissemos, quem seja o homem eqüitativo: o
homem que escolhe e pratica tais atos, que não se aferra aos seus direitos
em mau sentido, mas tende a tomar menos do que seu quinhão embora
tenha a lei por si, é eqüitativo (nosso grifo); e essa disposição de caráter é
a eqüidade, que é uma diferente espécie de justiça e não uma diferente
disposição de caráter”.
O texto que parece confuso tenta explicar a equidade e torná-la superior à
Justiça em si quando esta é técnica e legalmente aplicada.
Mas é na Retórica (e muito sintomático que seja nesta obra, e não na outra,
que o raciocínio venha mais bem terminado!) que o Estagirita explicita
bem seu raciocínio: 167 “eqüidade deve ser aplicada às ações perdoáveis; e
ela deve nos fazer distinguir entre ações criminosas em uma mão e erros de
julgamento, ou infortúnios, na outra (um ‘infortúnio’ é um ato, não devido
à maldade moral, que acarreta resultados inesperados: um ‘erro de
julgamento’ é um ato, também não devido à maldade moral, que tem
resultados que deveriam ser esperados: um ‘ato criminoso’ tem resultados
que deveriam ser esperados, mas é devido à maldade moral, pois é fonte de
todas as ações inspiradas por nossos apetites). Equidade comanda-nos a
sermos misericordiosos com as fraquezas da natureza humana; a pensar
menos nas leis e mais nos homens que as emolduraram, e menos no que
disse o legislador e mais no que ele quis dizer; não considerar só as ações
do acusado mas sua intenção, não este ou aquele detalhe tanto quanto a
história inteira; não perguntar o que um homem é agora mas o que ele
165
(Ética a Nicômaco 1132a 20)
(Livro V 10)
167
(nossa tradução – Britannica 1989 - Aristotle II 9, 1374b)
166
135
sempre foi ou usualmente é. Comanda-nos a lembrar benefícios ao invés de
danos, e benefícios recebidos ao invés de benefícios concedidos; a sermos
pacientes quando estamos errados; a por fim a uma disputa por negociação
e não por força; a preferir arbitragem a litigância – pois um árbitro guia-se
pela equidade de um caso, um juiz pela lei estrita, e arbitragem foi criada
com o expresso propósito de assegurar força total à equidade”.
Alguns juizes e juizas leram o texto com olhar próprio e adotam um tipo de
equidade bem seu e preso aos seus próprios padrões e paradigmas.
E vale um comentário por ora: todos nós já assistimos a filmes americanos
sobre guerra em que há o claro contraste entre os que, de um lado, no
Quartel General, têm a visão do todo num grande mapa e controlam o
cenário com miniaturas de regimentos, esquadras, tanques, navios etc e/ou
alfinetes com a cabeça colorida identificando as próprias forças e as do
inimigo, e estão confortavelmente instalados em um escritório em que
mortes e baixas são assepticamente classificadas pela odiosa expressão
“casualties of war” e apenas consideradas para efeitos estatísticos e, de
outro lado, no campo de batalha mesmo, as futuras casualties of war, as
partes que se defrontam no calor da contenda que estão com sono, falta de
higiene, fome, desconforto, dor, medo, valentia, bravura e lutam por palmo
de terreno sentindo o hálito do inimigo e sofrendo barbaramente. Morrem,
matam, são mutiladas, presas, vão para o Hospital e para Campos de
Concentração e estão no centro do fato, geográfica e historicamente muito
distantes dos mapas nos quais tais fatos são controlados.
Esta é a distinção que fazemos entre a atitude dos juizes e juizas, o
processo em si e as partes que se defrontam numa contenda judicial. Os
juizes e juizas estão no quartel general, generalizando e abstraindo, e
enquanto tomam seu café recém feito analisam os fatos metidos em roupas
limpas em ambiente amplamente protegido; na frente da batalha os
advogados e as partes sofrem na pele as agruras da contenda.
Mais, não nos parece que juizes e juizas constituam-se em integrantes de
um típico “quartel general” nem pelo seu desejo nem pelas disposições dos
diversos Códigos de Processo. Os papéis foram sendo assumidos e
inexplicavelmente aceitos pelos integrantes do meio jurídico, mas que têm
que mudar, retornar ao seu estágio original e adquirir mais normalidade no
trato diário, no relacionamento e no envolvimento, ganhará o Processo! E a
Justiça!
É muito fácil à distância tomar decisão no quartel general: vidas podem ser
salvas, batalhas podem ser ganhas; mas erros de interpretação geram
problemas tremendos, sofrimento e mortes desnecessárias, mortes de
pessoas saudáveis que morrem sem saber por quê, vidas que não serão
repostas. “A representação da dor não é o mesmo que o padecimento dela”
dizia Nietzsche.168
168
(1978 pág 98).
136
Juizes e juizas têm que ter a visão distante do conjunto como de fato têm,
mas não podem se olvidar de ir ao encontro dos fatos concretos para
conhecê-los e saber se, de fato, os fatos reais batem com as crenças e as
proposições que se referem a estes fatos reais e, portanto, se estas
proposições que referem os fatos são verdadeiras ou falsas, e, mais se a
norma valente é mesmo aquela, e daquele jeito, aplicada ao caso em tela.
Este é um ponto no qual colocamos nossa maior ênfase. Quem mais que
Napoleão ou Patton ou Rommel ou Péricles ou Guevara praticou com
maestria esse papel? Todos os que se implicam sinceramente. Todos que
não se esqueceram: endurézcase siendo tierno.
Na vida real e negocial, por exemplo, há diferenças entre delinear, planejar
a estratégia e a tática numa empresa e a auditoria dessa estratégia e a
auditoria dessa tática, ou seja, a verificação entre o previsto e o real. Há
mesmo enorme confronto entre as pessoas de campo (gerentes, executivos,
vendedores, promotores, por exemplo) e os planejadores que não
abandonam as suas mesas de escritório. E este é um dilema que precisa ser
enfrentado internamente. Há mesmo teorias em Administração de
Empresas que apregoam a morte da estratégia e a supremacia única da
tática, o que, se nos parece exagero, é compreensível, pois os que
trabalham no campo sentindo-se desassistidos, verificando in loco que na
prática a teoria, muitas vezes, é outra, rebelam-se e querem para si o
controle da situação para minimizar seus prejuízos e perdas.
Trazendo a discussão para o campo jurídico, insurgimo-nos veementemente
contra a solução meramente técnica e positivista do processo. Ela pode
condenar à morte uma pessoa inocente; pode manter, como apresentado no
início deste capítulo, esta condenação injusta mesmo quando surgem novas
possibilidades de prova não existentes à época do processo em nome de
uma regra que afirma que um processo tem que inexoravelmente chegar a
um fim (algo que deve se realizar), sem atentar se este fim (o que deve se
realizar é o término do processo) será ou não satisfatório: é a inversão que
sustenta que um processo tem que encontrar sempre e necessariamente, a
qualquer custo, o seu fim e não que um processo tem que restabelecer o
mais harmoniosamente possível justiça entre as partes. Aliás, é tautológico
perguntar: qual o fim do processo? E ter como resposta: o fim do processo
é o seu fim!
Há outro aspecto muito interessante a agregar. O sentimento vale-se de
instrumentos para prosseguir em busca de sua verdade. Um deles são os
lugares comuns, os topoi, por outros chamados ars inveniendi, euresis,
inventio, e tantos outros, que se úteis carecem todavia de rigor lógico.
Aristóteles em seu livro “Tópicos” estabelece padrões de raciocínio
comuns, lugares comuns mesmo, que podem ajudar a tomada de posição.
Este bom senso comum é largamente usado por toda a gente para se
137
manifestar. É a sabedoria popular. Dizia o Mestre grego: “nosso tratado se
propõe encontrar um método de investigação graças ao qual possamos
raciocinar, partindo de opiniões geralmente aceitas, sobre qualquer
problema que nos seja proposto, e sejamos também capazes, quando
replicamos a um argumento, de evitar dizer alguma coisa que nos cause
embaraços”.
Há cuidados com a experiência (banhos eram evitados, na antiguidade (até
Nostradamus?), por fazerem mal à saúde; aquela que está menstruada não
pode lavar o cabelo; Ruy Barbosa, nossa arguta águia, em 1903, era contra
a vacina; é mortal misturar leite e manga; quem está resfriado não pode
comer chuchu, abóbora e mandioca; é obrigatório tomar água depois de
tomar sorvete para que este não faça mal ao corpo) e com crenças,
misticismo e religião (passar embaixo da escada dá azar; cruzar com gato
preto dá azar; quebrar espelho sete anos de azar; vassoura atrás da porta
afasta visita chata). Mas, em geral, argumentos tópicos são bem aceitos
pelas pessoas e geram entendimento e aprovação imediatos, pois têm uma
carga sentimental de alto valor afetivo e efetivo. São, por isso, muito
utilizados pelas pessoas na sua tomada de decisão, mesmo que não o
sintam.
O assunto é importante e mereceu desde a antiguidade a atenção de vários e
prolíficos autores169: as premissas geralmente aceitas como verdadeiras
pelas pessoas integrantes de uma sociedade, têm alto valor probatório e são
recepcionadas imediatamente como mensagem sábia e não controversa.
São raciocínios confortáveis que nos são transmitidos pela tradição,
principalmente familiar, daí a opinião carinhosa dos avós etc., e são
convenientes, porque já testados, conferem segurança a quem deles se
utiliza na hora certa ou quando deles se vale o argumentador.
Tão usado nos negócios por exemplo a célebre conta de que se valem os
que querem fechar um negócio que está entravado e prestes a se concretizar
se sofrer um “empurrãozinho” : queres 10 e eu 12? Somamos e dividimos
por dois e pronto, alcançamos a conta justa: nem pra ti nem prá mim!
Quem resistir há de?
Divulgado pelo Professor Tércio Sampaio Ferraz Jr. o trabalho de Theodor
Viehweg , Tópica e Jurisprudência, veio aumentar o conhecimento a
respeito do tema:170 “A própria interpretação dos fatos exige o estilo tópico,
pois os fatos de que cuida o aplicador do direito, sabidamente, dependem
das versões que lhes são atribuídas. Ademais, o uso da linguagem
cotidiana, com sua falta de rigor, suas ambigüidades e vaguezas,
condiciona o jurista a pensar topicamente”.
Palavras como ‘maioria’, ‘consenso’, ‘honestidade’, ‘bem comum’, ‘boa
fé’, ‘ingenuidade’, ‘serenidade’, ‘objetividade’, ‘dignidade’, ‘soberania’,
169
170
(Cícero, Leibniz, Vico, Perelman...)
(Introdução ao Estudo do Direito 2001 pág 325)
138
‘interesse da justiça’, ‘justiça’, ‘imparcialidade’, etc., incorporam-se ao
nosso ideário e ficam agarradas a ele condicionando-nos sentimentalmente.
Mesmo que sem grande significado, dada a vagueza do conceito e a pouca
profundidade com que nos dedicamos ao seu verdadeiro conteúdo, estas
palavras quando pronunciadas têm o condão mágico de impressionar e criar
unanimidade.171
Os topoi valem só por si e propiciam imediata compreensão intersubjetiva
do que se afirma. É apenas o consenso que confere força persuasiva a eles?
Uma voz isolada pode ser ouvida?
Há, assim, também outro aspecto a considerar, o da Autoridade.
Como explica Hannah Arendt 172 em seu estonteante ensaio “O que é
Autoridade?” a autoridade sempre exige obediência entre o que manda e o
que obedece pois sua relação é de hierarquia, nunca de persuasão nem de
força (menos ainda de coerção).
O verdadeiro conceito do termo é romano e é precisamente a autoridade
que se constitui em um dos pilares básicos desta civilização tão rica e
pujante.
“No âmago da política romana, desde o início da República até
virtualmente o fim da era imperial, encontra-se a convicção do caráter
sagrado da fundação, no sentido de que, uma vez alguma coisa tenha sido
fundada, ela permanece obrigatória para todas as gerações futuras”, diz-nos
Arendt.
O conteúdo político da religião romana e o culto aos ancestrais mostravam
a intenção: religião como re-ligare, a tremenda ligação com o passado, até
o momento em que a pedra angular, o instante da fundação, era o lançar
para o futuro, o projetar-se para toda a eternidade.
“Auctoritas deriva-se do verbo augere, aumentar, e aquilo que a autoridade
ou os de posse dela constantemente aumentam é a fundação”. Por
transmissão direta (tradição) daqueles que tinham depositado (e lançado) a
pedra fundamental, os mais velhos e mais experientes recebiam a
autoridade e não o poder: enquanto o poder reside no povo, a autoridade
repousa no Senado.173 Ou seja, o Senado não ordena, não dá ordens, mas
dele emanam posições e posturas que devem ser obedecidas porque vêm
carregadas de certeza e experiência: imprudente seria não obedecer. É o
costume, a memória do passado, aquilo que foi realizado com excelência
que volta para ser refeito e mantido na sua bondade. “Ao contrário de nosso
conceito de crescimento, em que se cresce para o futuro, para os romanos o
crescimento dirigia-se no sentido do passado”. É o enaltecimento da
tradição. O que uma geração preserva de bom passa para a outra; a
171
Claro que para nós tais topoi são Sentimentos aceitos e camuflados por palavras.
(Entre o Passado e o Futuro 2001 pág 127 e ss)
173
(Cícero, De Legibus, 3, 12, 38)
172
139
autoridade dos pais fundadores passa pelos séculos intacta e prestigiada
como um legado respeitável que dá força e legitimidade para os atos
seguintes.
É a tríade romana da religião, da autoridade e da tradição, base do poderio
romano e da pax romana; é também a base de outros sistemas duradouros e,
assim, motivo da romanização da Igreja Católica, Apostólica e Romana.
Outro exemplo também impressionante é o Estados Unidos da América e
sua devoção aos pais fundadores. Outro exemplo candente e estatístico é o
das empresas que depois de muito tempo da sua fundação se afastam da
idéia inicial que se lhe imprimiu seu fundador: é residual o número das que
sobreviveram longe da sua essência inicial!
Há desprezo pela tradição e enorme desrespeito para com a autoridade, o
que é hoje a parte visível da questão, mas, inegável, a aderência de
“verdades” que oralmente são passadas, geração pós-geração, e
encampadas pelas novas gerações como demonstração absoluta e rigorosa
de um norte que deve ser seguido, sem que o jovem saiba que esse seu
lançar-se para o futuro está profundamente enraizado no passado.
Há que ter cuidados: Nietzsche já alertava174 “Confia em teu sentimento!” –
Mas, sentimentos não são nada de último, originário, por trás dos
sentimentos há juízos e estimativas de valor, que nos foram legados na
forma de sentimentos (propensões, aversões). A inspiração que provem do
sentimento é o neto de um juízo – e muitas vezes de um juízo falso ! – e,
em todo caso, não de teu próprio juízo! Confiar em seu sentimento – isto
significa obedecer mais ao seu avô e à sua avó e aos avós deles do que aos
deuses que estão em nós: nossa razão e nossa experiência”.
Sempre vale o alerta175 e por ser de autoria de quem é tal aviso deve ser
tomado em consideração, embora mais como advertência e tema de
reflexão que como norte absoluto.
Se a herança genética nos conforma (jogados os dados e sabida a
combinação com que serei configurado, meu DNA determina não só como
serei fisicamente, mas determina minha alegria, minha depressão, quão
inteligente serei e em que campo, se serei médico ou advogado, esportista
ou não, se terei liderança...) e se há enorme influência do meio (adotandose como adotamos que o meio é construído por outros e assim me é
imposto, da mesma maneira que construo minha realidade e tento impô-la
ou escondê-la dos outros) eu sou meu passado feito presente, meu presente
feito meu futuro e não há como fugir. Não posso reescrever minha
biografia nem usando minha vontade mais poderosa. Apenas posso influir
no futuro trocando realidades, trocando construções, ou seja, se o homem
174
(1978 pág 163)
(Nietzsche mesmo tendo lido Hume, um dos que antes de Jung soube diferenciar muito bem razão de
sentimento e dar a cada uma das faculdades sua verdadeira função, previa, mas não conhecia a força do
sentimento no seu fundamento como o conhecemos hoje e como ele se distinguia da razão)
175
140
não é um animal racional, mas sim um animal semiótico, a saída está em
computar, computar, computar...
Fora da comunicação entre os humanos, pois, não há possibilidade de
consenso, evolução e progresso.
E comunicação com Paideia que comunicação sem Paideia mais confunde
e atrapalha, pois o que passa entre pessoas que estão em zonas de
intersecção diferentes não gera qualquer aproximação, ao contrário, produz
afastamento.
Aqui somos obrigados a introduzir uma palavra que não foi usada até
agora: Amor. No último capítulo falaremos mais do tema.
Mas deixamos a porta aberta lembrando de BERTRAND RUSSEL
(1872-1970), o matemático, o lógico, o formalista, o filósofo que dizia:
“Busquei, primeiro, o amor, porque ele produz êxtase – um êxtase tão
grande que, não raro, eu sacrificava todo o resto da minha vida por umas
poucas horas dessa alegria” e que tinha “o anseio de amor, a busca do
conhecimento e a dolorosa piedade pelo sofrimento da humanidade” como
suas paixões.
*
5.4- substituição das partes pelo juiz
Nos dias de hoje em que decisões judiciais são relacionais, ou seja, as
partes e sua manifestação de vontade não contam mais, pois o que vale é a
visão do juiz e da juíza, são eles que contextualizam o ambiente e o
momento em que o fato se deu e declaram (determinam) como é que
pessoas cultas e avisadas, previsíveis mesmo, se portariam em situações
daquela natureza no ver deles, magistrados; com esta postura, que varia de
juiz para juiz, estes temas da equidade e do sentimento na tomada de
decisão adquirem enorme e especial importância.
As relações cíveis, trabalhistas e até penais (estas bem menos apesar das
tentativas da igreja, dos chamados progressistas e afins) estão permeadas
pela nova mentalidade.
É uma nova equidade, estranha, não aplicada ao caso concreto; é uma
equidade privada, própria, que abarca todos os casos concretos parecidos
entre si. Tudo fruto de uma generalização e de uma abstração, processo
mental que abarca todos os casos que caem naquela generalização e
naquela abstração de acordo com critério prévio do juiz e da juíza.
Alguns relacionam os eventos na órbita do seu cenário imediato, às vezes
mediato, mas há outros que acham mesmo que o bater de asas de uma
borboleta na Amazônia está intimamente conectado com o tufão na China!
Assim, fica-se à mercê do juiz e da juíza, mas dentro do âmbito
enormemente ampliado do poder discricionário daquelas pessoas que, pelo
menos em Primeira Instância, é usado hoje de maneira imprevisível.
141
Os antigos modelos estão de ponta cabeça: a cláusula Pacta sunt servanda,
base do contratualismo, está quase derrogada e sua antiga exceção, a
cláusula (escrita ou não no contrato) Rebus sic stantibus, cláusula aliás
extremamente eqüitativa, está, agora, reconhecida, confirmada e tornada
geral por várias leis (CDC, NCCi, leis trabalhistas, etc). Mas mais do que
isso, fica institucionalizada a ampla possibilidade – maior ainda depois que
entrou em vigor o NCCi - da atuação jurisdicional abarcante e
compreensiva por parte do juiz e da juíza.
O que está em jogo agora é o antigo conceito de liberdade (um acordo de
vontades faz lei entre as partes) e a própria concepção de livre arbítrio, nos
quais o juiz e a juíza não mais acreditam.
Os sujeitos de Direito são vistos como objetos (e o contrato de adesão a
face perversa desta situação) e a sociedade não é mais a soma de seus
indivíduos, mas um quid que os suplanta e supera.
O marketing cria situações de consumo e provoca ‘vontades’ que antes não
existiam ou sem ele não existiriam: via marketing alguém apresenta algo e
lhe confere valor; a sociedade é seccionada em tantas tribos quantas
interessem aos detentores das ofertas de mercadoria e serviço, são criados
padrões a serem seguidos pelos integrantes da tribo e cada tribo é
homogeneizada em comportamento, rostos, estilo, jeito de vestir etc.
Mesmo produtos exclusivos, caros, raros e com pouca oferta são menos o
que são, produtos, e mais o que não são, exibição de poder e exclusividade,
prova de bom gosto, privilégio e honra pessoal, ou seja, de dinheiro. Tudo
uma enorme ilusão criada pelo marketing. Não há maior prova de falta de
liberdade que o consumidor poder escolher uma dentre seis marcas de
jeans, por exemplo! O sujeito é definitivamente um objeto manipulável e
instado a consumir, exigir novidades e ostentar.
Generalizando tribos o jurista partiu para os grupos (aliás, fenômeno
lingüístico também, pois sãos grupos que trazem dentro de si a ilusão de
intersubjetividade porque seus integrantes pensam que se entendem!) e
verificou, sempre dentro de seu critério atrás comentado, que há grupos que
se relacionam com outros grupos e neste relacionar-se podem uns por em
risco outros. Criou-se, assim, a proteção ao hipossuficiente, o despreparado
e carente de proteção imediatamente referido ao meio social de que
provém.
É Tércio Sampaio Ferraz Junior 176 que nos traz comentários ao tema.
Deste modo “a livre vontade como fonte de direitos e deveres perde peso e
valor. Crescem, ao contrário, os direitos e deveres não voluntários, ou seja,
o que vincula as partes é não tanto o compromisso (moral e livre), mas o
cálculo de custo/benefício decorrente do engajamento”.
176
em Estudos de Filosofia do Direito (2002 – Direito e Liberdade – págs 122 e segs)
142
Pessoas vistas como objeto passam a ser percebidas em outra perspectiva.
Objetos não contratam, não manifestam vontade; são tratados como se.
Como se contratassem, como se pensassem, como se previssem.
“No momento em que o contrato passa a um distribuidor de riscos, isto é,
assume o sentido de um instrumento que aloca riscos, e a prática negocial
usa a técnica jurídica como uma espécie de exercício de previsão de
consequências possíveis em termos de custo/benefício, o sentido da
liberdade deixa de se localizar na vontade e passa a repousar naquilo que as
partes como homens razoáveis e calculadores (isto é, que não podem estar
visando a interesse que redunde numa desvantagem, não importando o que
tenham, de fato, querido), teriam presumivelmente acordado, ao fazerem
uma série de previsões e provisões em caso de ocorrência de infortúnios”.
Amplamente justificada, pois, a proteção aos hipossuficientes, nesta nova
visão, pois são estes os que calculam menos segundo o que pensam os
juizes.
Objetos não contratam, não pensam, não prevêem consequências; os juizes
e juizas, estes sim, como sujeitos e seres pensantes que são substituem as
partes e reescrevem os ajustes, acordos e contratos; aliás, o liberalismo
puro enquanto individualismo está abolido por esses juizes e juizas que,
prezando a própria independência, como dito antes, exacerbam sua
condição de indivíduos livres enquanto desconhecem a dos outros (que,
aliás, submetem, em última análise).
O juiz e a juíza vão, assim, em caso de conflito, reescrever o cenário como
se ele fosse assim e não como realmente é ou foi. As partes serão
reinterpretadas como se fossem seres calculistas e prudentes que em dada
situação só poderiam agir assim e não da maneira como agiram (imaturos,
infantis) e por isso o conflito. É a quintessência do dever-ser ao sabor do
sentimento, das convicções e da experiência particular do juiz e da juíza em
casos desta natureza. Do ser extraem imediatamente como deveria ser
relacionalmente e sentenciam. De per si.
As partes são abstraídas e não existem mais como indivíduos. Quem
contratou não existe mais por ato de secção do juiz e da juíza. Não há mais
sujeitos mas objetos, e objetos totalmente reformulados, seres fictícios,
recriados pela visão do juiz e da juíza. Antonio não é Antonio nem um
qualquer mas um A formal e ideal, Bendito não é Bendito nem um
qualquer mas um B formal e ideal, e assim por diante.
Está criado o teatro. As partes são extraídas do cenário real e são jogadas
num ambiente pleno de lugares comuns (topoi): previsão correta, cálculos
justos de custo/benefício, aspectos sociais a serem atingidos, funções
sociais a serem desempenhadas, justiça social a ser alcançada,
compensação,
simplificação,
teria-sido-assim-se-tivesse-sido-comodeveria-ser, ai-como-é-bom-meu-mundo-quando-a-minha-imaginação-orecria; a seguir, as partes na ação são relacionadas com partes e pessoas não
143
integrantes no processo, inventa-se relação dominante/dominado, mais
forte/mais fraco, busca-se razoabilidade de conduta, tudo isso para que a
cada um seja atribuído estritamente o papel fictício e previamente valorado
que lhe cabe (no processo mental do juiz e da juíza) e não o que
efetivamente viveu e representou e a tudo isso o juiz ou a juíza adiciona a
sua inclinação ideológica e os móveis da sentença (sentimento) o que
deixa, claro, sempre, uma das partes, ou ambas, zangada com o resultado.
Dentro do padrão da independência e livre convencimento do juiz
chegamos ao Direito Lotérico!
Casos em que se discutem o direito de propriedade, posse e usucapião,
contratos de parceria, casos trabalhistas, casos de contrato em área de
saúde, seguros etc têm sido modificados pela intervenção cirúrgica do juiz
e da juíza que ainda proíbem aumentos de preços ditos por eles abusivos,
reescrevem cláusula de correção monetária trocando um índice por outro,
proíbem fusões, cisões, incorporações e venda de empresas alegando
direito de concorrência, protegem inquilinos inadimplentes, protegem
devedores contra credores, acham que quem entra com ação de
consignação em pagamento em princípio tem razão, e assim
sucessivamente, alterando quadros pintados pelas partes (que já são, como
se sabe, distantes da realidade!) como se cada quadro fosse analisado e o
juiz e a juíza pegassem os quadros originais, pusessem-nos no cavalete de
volta e eles fosse totalmente repintados e reformulados pelo pincel judicial
de acordo com estereótipo previamente traçado por eles, ou seja, um
quadro na petição inicial, outro na contestação, outro, o definitivo, o
verdadeiro, na sentença.
A responsabilidade judicial e o espectro de ação foram ampliados: enorme
a possibilidade que se abriu. Como isto se processará? Como reagirão as
partes?
Um primeiro resultado é a enorme confiança inversa que se instalou em
quem não quer cumprir com o que contratou ou que quer se valer de sua
condição de hipossuficiente para tirar vantagens: ação judicial é o nome da
vantagem!
Como ficam as grandes corporações que tinham um cálculo de risco e
agora se defrontam com outra realidade?
Como ficam os verdadeiramente desprotegidos, os locadores que não
recebem aluguéis, os que vendem, entregam e não recebem, os que
sofreram dano, os que se vêm repentinamente obrigados judicialmente por
prestações com que não contavam? Como reage a parte ofendida?
O agir justo, a virtude, o ser justo, as ações justas, o pensar justo, o
sentimento do justo estão em crise na sociedade. A justa e presta
recomposição, nem que demore (o que é outro problema), não vem como
deveria vir, vem de outra forma, ou definitivamente não vem. Vale a pena a
malandragem. Grassa impunidade. O sistema garante. Afinal ele é lotérico.
144
Esta maneira de ser afugenta vários investidores internacionais que
preferem bem investir suas economias em outras partes do globo onde se
sentem mais seguras.
Pesquisas de opinião são feitas e servem de base para aconselhamentos e
tomadas de decisão.
A consultoria norte-americana A. T. Kearney, uma das mais prestigiadas,
divulgou 177 mais um de seus estudos que visa mostrar qual o grau de
confiança dos investidores internacionais nos diversos países onde podem
alocar recursos. De acordo com seus critérios, 54% dos investidores
considera
o Brasil
um local de alto
risco
para
se
colocar dinheiro, contra 41% que considera o risco médio e 5% que
acredita ser baixo o risco. Ainda de acordo com o estudo, que foi realizado
com base em uma pesquisa junto às mil maiores empresas do mundo todo,
o que mais preocupa o investidor quando ele pensa em aplicar dinheiro no
Brasil são as regras do governo (72%). Em segundo lugar está o risco-país
(67%), seguido pela instabilidade da moeda (63%), distúrbios políticos e
sociais (62%) e a ausência de Justiça (34%).
Como esta pesquisa se refere a um período bem crítico havido entre o fim
do Governo de Fernando Henrique Cardoso e o início do de Lula da Silva,
período este que foi bastante atenuado com a postura do novo governante, é
de se supor que a ausência de Justiça seja praticamente a única grande
reclamação das mil maiores empresas do mundo quando do novo estudo (já
se sabe pelas declarações recentes dos grandes lideres empresariais, que
enquanto as presentes linhas são escritas178, a grande grita será contra a
falta de visão desenvolvimentista do novo governo, a que se adicionará a já
divulgada veemente reclamação contra a Justiça, que é, aliás, uma das
travas ao desenvolvimento).
Para que se tenha uma idéia do que isso significa na prática, anexamos a
lista dos dez países mais confiáveis para se colocar dinheiro novo, aquele
que busca novos negócios, na opinião dos investidores pré-citados no
referido estudo da A. T. Kearney:
1 - China
2 - EUA
3 - México
4 - Polônia
5 - Alemanha
6 - Índia
7 - Reino Unido
8 - Rússia
9 - Brasil
10 - Espanha
177
178
dia 17 de setembro de 2003
– janeiro de 2004 –
145
Temos na pesquisa acima o resultado prático e efetivo de um conjunto de
ações que visam buscar a confiança de investidores e, claramente, como
são vistos pelos mil maiores empresários do planeta os países interessantes.
Para quem precisa de negócios há muito a fazer. E uma das mais
importantes tarefas está em tornar a Justiça confiável.
*
O juiz ou a juíza fará bem em substituir qualquer homem e sua relação?
Fará bem em, por romantizá-lo, proteger o hipossuficiente? Haverá
suficiente discussão, compreensão e entendimento – cá e em outras partes
do globo – sobre o que seja “social”? E o que neste campo há de importante
para impactar outros campos, notadamente, o negocial? Há sentimentos
maduros, e mesmo definidos, nesta área? Ou, ao revés, estarão cada juiz e
cada juíza projetando nas sentenças os sentimentos individuais que têm a
respeito? Quem precisa ser protegido? Quem precisa proteger? De que
homem se fala, afinal?
6 - Compreensão jurídica e capacidade jurídica de arcar com as
consequências dos próprios atos.
6.1- estabelecimento de bases
O tema é genérico e visa englobar num mesmo capítulo atos e fatos
jurídicos, abrangendo de uma penada só, todo e qualquer ato humano,
desde a capacidade de contratar até a de julgar, decidir.
Não abordaremos aqui, por fugir do escopo, o estudo da Liberdade e as
sucessivas alterações do conceito desde que os gregos antigos “sabiam e
podiam” até os dias de hoje.
Vamos, ao revés, levantar alguns pontos sobre a compreensão jurídica
dos diversos sujeitos e daí a sua capacidade de arcar com as
conseqüências dos próprios atos que, livremente ou não, tomam, e com
isso preparar o ‘salto’ para a conclusão do último capítulo.
O problema da Justiça se imbrica na possibilidade de um não afrontar o
sentimento de justiça do outro: como já dito, o que foi magoado acha mais
fácil gritar por Socorro: ‘Houve injustiça! Quero Justiça! Quero reparação!’
que requerer antecipadamente o tema da Justiça ela mesma. É mais fácil
um corpo ferido pedir Justiça depois que um corpo são exigi-la antes. É
mais útil um corpo doente pedir remédio que um corpo são tomar remédio
por prevenção do que possa vir.
146
Fazendo um Pro Memória, pensamos que a realidade para nós é uma
percepção na mente e é construída (inventada) pelo ser do homem (Não é
em Montaigne, mas em mim mesmo que acho tudo o que nele vejo )179, que
Valores nas coisas e nas normas são os homens que põem; que o
Sentimento (O homem se convence, em geral, melhor com os argumentos
que ele mesmo encontra do que com os que ocorrem ao espírito dos
outros)180 é encarregado de decidir e escolher dentre as possibilidades que
nos traz a Razão (se caso ou não com esta moça, se dou um presente, e qual
presente, para minha comadre Silvia, se alugo ou não este imóvel, se faço a
lei deste modo ou de outro, se sentencio nesta ação desta forma e não
daquela); que a Razão não escolhe nem decide (O coração tem suas razões,
que a razão não conhece: percebe-se isso em mil coisas181); que tais atitudes
são individuais e que está na computação (Todos erram tanto mais
perigosamente quanto cada qual busca uma verdade. Seu erro não consiste
em seguir uma falsidade, mas em não seguir outra verdade182) a saída do
animal semiótico que naturalmente se comunica; que o Sentimento é um
meio de comunicação; que são a sobrevivência e a evolução os únicos Bens
do homem; que são Fins do homem sobreviver e evoluir e que sobreviver e
evoluir, nesta acepção, tem um significado individual mas também, com
igual peso e valor, o de sobrevivência e evolução da espécie; que a
suprema Justiça está em ter à disposição o ferramental que possibilite a
consecução do Fim do homem; que justo é tudo o que facilita a obtenção
do Bem do homem e que injusto é tudo o que impede o homem de alcançar
seu Bem.
*
6.2- Há Bem na Ciência?
Algumas descobertas espantam a humanidade: uns fogem das
conseqüências do que se desvelou e, outros, perplexos, maravilham-se com
o que virá!
É o que acontece neste momento histórico em que o cenário sofre enorme e
radical mudança paradigmática.
Os conhecimentos científicos acumulados até agora podem propiciar uma
verdadeira revolução.
Os estudos antes visavam “melhorar” a natureza: era o apoio, o suporte
para que as coisas se desenrolassem melhor. Uma técnica nova de produção
agrícola, um remédio, combate às doenças, busca da maior felicidade para
o homem, uma existência sem dor, ou, pelo menos, com dor minorada e
179
Pascal – 64, pág 50, 1979
– Pascal – 10, pág 40, 1979
181
– Pascal – 277, pág 107, 1979
182
– Pascal – 863, pág 266, 1979
180
147
mais e melhor abundância. Atuava-se, porém, perifericamente. Não havia a
possibilidade de se agir por dentro dos eventos. O cientista estudava,
compreendia e ajudava a natureza. Ajudava a natureza a se ajudar no
processo dela, um processo evolutivo, em que a seleção natural é o
verdadeiro e único caminho, em que a excelência é a capacidade de
adaptação ao meio.
Agora não: há pela primeira vez a possibilidade de o homem interferir no
processo: ele pode criar, ele pode ajudar a criação, pode saltar o processo
evolutivo: não é mais um coadjuvante, é autor!
Pode recriar a soja; pode estimular em laboratório, por exemplo, um órgão
do corpo humano e transplantá-lo depois; pode clonar um ser vivo.
A coisa, entretanto, vai longe, além do físico.
Pode-se detectar uma causa física - é o que se estuda no momento - para
um dano psíquico e...zás-trás : leve alteração no DNA e some, por
exemplo, uma depressão ! Os bebês podem ser manipulados antes de
nascerem, renasce a eugenia!
Há estudos que apresentam a tese de que a mulher se alcoólatra o é por
transmissão genética e que não é, neste caso, responsável juridicamente por
seus atos. Há estudos que informam que os gens determinam se um é líder,
ou leal, ou generoso e que tal transmissão genética, puramente genética,
pode ser abrandada ou exacerbada pelo meio ambiente.
Imensa alteração no campo ético (Há liberdade? Há livre-arbítrio? Há
responsabilidade? O que, afinal, já está escrito, predeterminado? O que
poderá ser escrito, reescrito? Que é direito à vida? Que é, afinal, vida?).
Tal poder, nunca antes experimentado, provoca enorme insegurança nas
pessoas. E surge uma insuspeita religiosidade mesmo no mais empedernido
agnóstico: é possível play God? O que Deus pensará desta concorrência?
Era para ser assim? Aonde isto irá? Haverá limites? O Homem deixará de
ser Homem para ser outra coisa? Será bom brincar com fogo? Se foi assim
que Deus fez, quem somos nós para modificar?
A ignorância humana está exposta provocando a reação politicamente
correta: é melhor parar!
Outros, ligeiramente mais entusiasmados, pedem para que não se pare, mas
que, também, não se vá tão longe!
E há outros, ainda, que não experimentam qualquer limite, que querem ir
até aonde for possível.
Como analisar?
Pelo aspecto opinativo – doxa – a tomada de posição é inevitável e quer do
ponto de vista do interesse e da sobrevivência, quer do ponto de vista do
medo ao desconhecido, o posicionamento vem carregado de emoção.
148
Do ponto de vista da Sofia a análise é mais sutil.
Há que se propor uma revisão do conceito do Homem e trazer a lembrança
dos ideais, dos fundamentos ideais que tentaram descrever o Homem há
séculos atrás. O mesmo deve acontecer com o método de abordagem deste
Homem. Além, a ciência (e a Ciência do Direito está aí) deve ser
perscrutada para saber em que medida ela contribui para o progresso
humano; mais, ela mesma deve ser analisada para que se confie que a
ciência serve mesmo com propósitos sadios ao progresso humano e, bem
assim, saber se ela impacta mesmo a Filosofia. Sabe-se do conceito que
tem a ciência e o cientista. Acredita-se que a ciência tenha objetivo ético e
seja imparcial nas suas escolhas e que sempre, a todo instante tenha como
objetivo o Homem, sua evolução e progresso.
Mas será mesmo assim?
Citado por Giovanni Reale183 Thomas Kuhn, apresenta a tese de que as
mudanças de paradigmas não levam a fins prederteminados e
preestabelecidos, e, de modo particular, nega que tais mudanças levem a
uma aproximação cada vez maior da verdade em sentido ontológico: Kuhn
pensa que o progresso científico é uma forma de evolução análoga à que
Darwin considerava típica dos organismos, ou seja, sem a sustentação
estrutural de um conjunto de finalidades predeterminadas; como a seleção
natural deriva, segundo Darwin, da luta dos organismos pela sobrevivência,
assim, através de um conflito que se desenvolve dentro da comunidade
científica, se delineia a maneira mais idônea e mais conveniente de praticar
a ciência no futuro.
Kuhn não considera, assim, que a verdade no sentido ontológico seja
progressivamente alcançada pelas mudanças nos paradigmas através das
revoluções científicas.
Não há na ciência, segundo o autor, um finalismo verdadeiro, um telos,
mas assim como os organismos biológicos na sua evolução não caminham
para a verdade, mas reafirmam sua sobrevivência e capacidade de
adaptação, da mesma forma reage a comunidade científica.
A verdade, ou o ajuste entre a inteligência humana e o objeto de sua
investigação, é buscada pelos cientistas sempre através da coerência lógica
dos vários conceitos de que se valem e da consistência que dão às suas
teses através da melhor adequação entre os conceitos e os dados de fato que
caracterizam o objeto pesquisado.
Não, não ocorre, segundo o autor, o saber por acréscimo, mas, sim, por
revoluções, o que contraria a “boa” imagem da ciência até o meio do século
passado.
183
(in Para uma nova interpretação de Platão, Loyola, 1997, pg 19), o livro A estrutura das revoluções
científicas (1962)
149
E o que é exatamente revolução científica? Como são referidas pelas
comunidades científicas? Qual sua estrutura e como se sistematizam?
Kuhn enumera seis conceitos fundamentais 184 que visam dar resposta a
estas colocações:
1- “o conceito de estrutura de base de todo discurso científico, que se
funda sobre “paradigmas”, os quais fornecem aos cientistas modelos
para a formulação dos problemas e para a sua solução nos vários
âmbitos de pesquisa;
2- “o conceito de “ciência normal “, entendida como fase típica das
pesquisas, consistindo em sistemáticas tentativas de fazer os vários
elementos, concernentes a determinada ciência, entrar nos
compartimentos fornecidos pela educação profissional dos cientistas
inspirados em determinado “ paradigma” , e precisamente nos
quadros dos paradigmas naquele momento acolhidos concordemente
pelos cientistas interessados naquelas temáticas;
3- “o conceito de “ciência extraordinária “, entendida como o momento
do desenvolvimento da ciência no qual o encontro de várias “
anomalias “, e a impossibilidade de fazê-las entrar no quadro do “
paradigma “ dominante, põem em crise as convicções tradicionais e
anunciam uma subversão delas;
4- “o conceito de “revolução científica “, entendida como complexa
passagem da comunidade científica de teorias antes consideradas
basilares a novas teorias incompatíveis com aquelas, ou seja, o
conceito de revolução científica como “ mudança de paradigma “;
5- “o conceito segundo o qual os cientistas acolhem novos paradigmas
por razões que são em certo sentido metalógicas, ou seja, por uma
espécie de conversão, promovida por uma “fé”, vale dizer, por uma
confiante expectativa de que o novo paradigma seja capaz de
resolver problemas que os velhos paradigmas não puderam resolver;
6- “o conceito segundo o qual o progresso científico não se dirige para
um fim predeterminado, mas desenvolve-se segundo as opções que
concordam com a maneira considerada mais apta de praticar a
ciência e fazê-la avançar “ .
Esses comentários elucidam a surpresa de alguns que leram recentemente
que, nos EUA, o lobby dos criadores de abelhas tinha sido mais eficiente
que o lobby dos estudiosos de chimpanzés e que, por isto, a verba de
pesquisa do DNA das abelhas tinha sido liberada e que o estudo do DNA
dos chimpanzés ficava a espera de melhores dias, com eventual prejuízo do
entendimento, por semelhança, de certos aspectos inerentes à condição
humana, mas em favorecimento da melhor produção de mel silvestre.
Há que se identificar uma relação entre a pesquisa científica e uma ordem
ética.
184
(obra citada pág 6)
150
A pesquisa não pode ser desestimulada nem impedida por qualquer meio:
nem os princípios éticos já estabelecidos e aceitos poderão ser a mordaça
da pesquisa científica, que, segundo Kuhn, vem aos solavancos e conforme
as possibilidades e interesses do momento.
Se contrário fosse, lembra Lima Vaz185, princípios éticos que visam
descobrir a razão profunda da physis, e romper sua mesmice com a
liberdade que a práxis permite, seriam a causa da paralisação do
movimento que, a partir da necessidade e do diferente, quer, pelo finalismo
do Logus, chegar até o Bem.
Lembremo-nos que a physis , como alerta Lima Vaz, é dita tou aei
( sempre ) e o ethos é tou pollákis ( muitas vezes ou quase sempre ) .
Enorme o desafio, que tem que ser enfrentado, o de se encontrar o caminho
que vai da ciência – econômica, política, física, jurídica...- à ética.
Sem entrar nos diferentes conceitos que a palavra experimentou com o
passar dos séculos, nem atentar para seus diferentes usos conforme a escola
do utente, queremos lembrar o seu conceito original, como o aprendemos
com Lima Vaz: ethos com eta inicial ou com epsilón inicial.
A casa , a morada, o lugar acolhedor é o ethos com eta : é um espaço
tomado pelo homem já que não lhe é dado; rompe-se o imobilismo da
physis pela ação – práxis – do homem que conquista o que quer e instala o
permitido, o proibido e o obrigatório, os costumes, os valores... Ethos
anthrôpo daímon, disse Heráclito no seu célebre fragmento.
A ação repetida, o hábito, o costume, a forma perfeita e acabada, a
autarquia do agente, o controle e o domínio de si mesmo, a contraposição
do desejo, a práxis pétrea, este é o ethos com epsilón inicial. O modo de
agir do agente, seu caráter ético, é sua exibição.
Finalmente um comentário: nossa ética é a que – nos seus contornos
maiores – foi desenvolvida por Aristóteles, e tem na praxis sua motivação.
Haverá Ética na Ciência do Direito? Serão éticas as leis desta Ciência e
éticas as sentenças emanadas do Poder Judiciário?
Na discussão com os Sofistas, Sócrates vincula, pela primeira vez, a ciência
ao Bem: a intuição de que há uma lei não-escrita, que emana da physis,
permeando o ethos, irá marcar o raciocínio. A questão inicial, o confronto,
era: Como passar os conceitos aos mais jovens, como educá-los na virtude?
Pela educação tradicional ou pela ciência e seus avanços? Sócrates afirma
com certeza que não há possibilidade de haver uma ciência do mal e que a
aparente neutralidade da ciência não existe, eis que ela é ética por
fundamento. A ciência, enquanto fonte de verdade, será, também, fonte de
virtude, encerrando-se o pensamento socrático, que cria aí uma nova
ciência, baseada integralmente no finalismo do Bem, o que é a primeira
forma de Ética na tradição ocidental.
185
Escritos de Filosofia II – Ética e Cultura, Henrique C. de Lima Vaz, 1993
151
Os contraditores desta assertiva continuam, dentre tantos, Cálicles (no
Górgias), Trasímaco etc. (República I) e, principalmente, Nietzsche, que
com sua teoria de vontade de potência confere à ação um estatuto próprio
que a absolutiza e a faz caminhar por si mesma, com seu próprio
desideratum, sem nenhum vínculo com a virtude (e que deságua na tese de
Kuhn, como vimos).
A areté – a virtude – em Sócrates comporta, segundo Lima Vaz, duas
alternativas: ciência sobre a areté e ciência constitutiva da areté .
De um lado a ênfase é posta sobre a palavra ciência, mandando que ela
“estenda sobre a praxis virtuosa suas exigências de coerência e rigor “.
De outro lado, é a própria “praxis que reclama para si um tipo de ciência
adequada às suas exigências originais”.
Cinde-se a posição socrática: Platão e Aristóteles, a partir daí, seguem
trilhas diferentes, como se sabe.
O primeiro, em teoria, conectando ciência e areté, desdobra em ontologia
do Bem o logos socrático da virtude, colocando tudo sob a égide da mesma
justiça, do mesmo fim.
O Estagirita, fixando-se na prática - praxis - do homem enquanto portador
do Logos confere ênfase à sabedoria prática (phrônesis, que antes de
prudência é sabedoria, astúcia).
Dois modelos fundamentais e conforme a questão socrática: um dedicado à
ética da ciência, com princípios e normas totalmente conectados ao mundo
das Idéias e outro prevendo uma ciência ética, cujo Logus prático volta-se
para o bem viver e a felicidade do homem.
Nietzsche, em modelo próprio, queria vincular a ciência ao que fosse útil
para a sobrevivência do homem; o resto considerava inútil!
A Téchne, à margem da physis em que se inspira, endeusa o Demiurgo
que obra a physis como a imitação mais perfeita e acabada do modelo que é
a Idéia.
Surge ela com inelutável força e assume um papel que não possuía antes.
O fazer, o produzir, seduzem o homem, que a par do logos contemplativo,
assume o logos construtivo da ciência moderna, com indisfarçável
satisfação.
A physis, como se exibia aos sentidos, servia de paradigma; agora a Nova
Natureza, sobre a qual atua a nova ciência, ocupa o lugar da antiga physis e
é o domínio da verdade empíricamente verificável com status de
intersubjetividade que lhe dá âmbito global.
O ethos que deveria se submeter ao universalismo do logos da ciência na
Ética Clássica, agora cede espaço ao experimento no qual se exerce a
praxis que constitui o ethos, já remodelado pela razão técnica-científicaexata moderna que é estruturalmente matemática, verificável, inteligível e
propriedade do saber-fazer técnico humano.
152
Desaparece a simbiose entre areté e ethos: o agir humano, cheio de técnica
e saber científico transfere para o objeto, o produto, o feito, o valor da
conduta.
O Sábio socrático passa a ser o Sábio Cientista, que se, humanizado, ainda
carrega algumas características do anterior; racionalizado, porém, objetivo,
a-ético, exsurge como o novo Demiurgo que não mais copiando o modelo
da Idéia, mas transformando a natureza, cria coisas novas e suplanta a
Natureza, submetendo-a.
O saber-fazer permeia a civilização moderna, altera os conceitos, inclusive
éticos – antes, como se viu, o homem era parte da morada, hoje é acima e
além do seu ethos e é centro plenipotenciário da criação - e instaura como
grande valor o ter-fazer e não mais a verdade.
Como instaurar uma ética da ciência que atenda aos objetivos finalísticos
da verdade e se conjumine com a ética prática?
A verdade continua um Bem para o Homem?
Aliás, há sempre que se perguntar que Bem e quem o declara, o que nos
trás Kuhn, de novo, à colação.
A ciência não poderia declarar sem sentido a busca da verdade nas suas
cinco acepções 186 : como correspondência (verdadeiro é o discurso que diz
as coisas como são; falso é aquele que diz como não são – Platão), como
revelação (sensação, intuição ou fenômeno), como conformidade a uma
regra (acima da nossa mente há uma lei chamada verdade – Sto.
Agostinho), como coerência (o que é contraditório não pode ser real) e
como utilidade.
Este último conceito teve em Nietzsche – inimigo de Sócrates - seu
primeiro formulador: “Verdadeiro em geral significa apenas o que é
apropriado à conservação da humanidade. O que me faz perecer quando lhe
dou fé não é verdade para mim: é uma relação arbitrária e ilegítima do meu
ser com as coisas externas”.
A moderna ciência, longe da ontologia do Bem, busca em fato e valor
próprios sua condição; na sua olímpica neutralidade ética abandona o
homem como medida e o Bem como fim.
Diz-nos Marc Sautet 187: “não apenas a filosofia não tem como objetivo ser
mais eficaz do que a ciência, no que tange ao desvelamento dos segredos
da natureza, como também foi pelo fato de os desempenhos da ciência em
relação à natureza só serem igualados por sua impotência frente a o
destino da cidade que ela ganhou impulso... O objetivo das ”ciências
naturais”, bem como das “ciências humanas”, é fornecer uma resposta
teórica sobre os segredos do Universo e uma resposta prática quanto ao
curso dos acontecimentos humanos, respostas estas que sejam mais
eficazes que as da religião”.
186
187
(Abbagagno)
(1998 pág 116)
153
A relação entre Ética e Ciência situa-se, hoje, entre um espaço fora do
campo conceitual da ciência (heteronomia e autonomia – guardem a
palavra) um espaço dentro daquele campo conceitual, no qual ela possa
elaborar seus fins como julgar mais adequados.
A relação entre a comunidade científica e as demais são, como sempre, um
exercício de estilo e um problema grave de linguagem.
A distinção aristotélica entre praxis como ação e poíesis como produção
parece expor uma enorme falha no atual modo de pensar: em sendo a
atividade ética essencialmente praxis (realização do sujeito) e não poíesis
(produção de um objeto) a atividade científica que modernamente tem que
articular a theoría com a praxis com a poíesis num conhecimento que é
contemplação, ação e produção, tem que repensar a poíesis para dar-lhe
integração ética.
Urge reencontrar a relação entre humanismo e ciência, recolocando o
terreno firme do ethos a partir da atividade repensada.
Para a Ciência Jurídica é mais que obrigação.
Os três elementos de realidade que se mostram ao homem e tornam curiosa
a atividade investigativa são a natureza, a vida e a sociedade.
Neste sentido, e para clarificar o raciocínio, três são as atividades éticas
referidas às atividades científicas:
- ética da physis ou fisioética, que tem por objeto o conhecimento
científico da natureza;
- ética do ánthropos ou antropoética que tem por objeto o
conhecimento científico do homem e da sociedade;
- ética do bios ou bioética que tem por objeto o conhecimento
científico da vida.
Hegel sempre nos lembrou que o Direito é o reino da liberdade realizada. O
sujeito de direitos, segundo o pensador alemão, o indivíduo político, o ser
ético é aquele capaz de ser livre, de exercer a liberdade como bem
fundamental.
O homem deve ser pensado a partir de sua existência biológica e individual
e na sua existência como ser universal e pleno de direitos e deveres para
consigo mesmo e para com a sociedade e o cosmos.
O conceito moderno extrai a phisis do panorama e coloca o Homem
Racional como o Homem-que-faz: a relação técnica de fazer relaciona o
homem e o mundo. A satisfação das necessidades impulsiona a
humanidade e se torna o centro das discussões sociopolíticas.
Cria-se o Homo Economicus, novo ser que visa dominar e explorar a
natureza, extraindo dela a satisfação das necessidades. A natureza não é
mais a physis imutável que sofre a ação do ethos humano com sua praxis
Antes, o homem assegurara a possibilidade de exercer a virtude; agora visa
a satisfação das necessidades.
154
Antes, o estado de natureza; agora, o estado de sociedade.
E com ela a economia de mercado.
O aumento dos conflitos, públicos e privados, leva à proteção do indivíduo,
dos seus direitos e da sua autoconservação. Surgem os Direitos Humanos.
O homem, antes integrado a physis, agindo em conformidade, agora pode,
com técnica, sozinho, mudar a natureza: quem antes era parte, agora é
senhor. Surge enorme e exacerbado individualismo ocasionado pela
enorme sensação de poder oriundo da facilidade de produzir. Surgem em
decorrência mais direitos humanos. A técnica, mais do que os discursos,
mais do que as filosofias, mais do que a virtude entregou ao indivíduo a
individualidade.
O tecido social é imbricado pelas relações de trabalho, produção e pelo
conflito de interesses: o egoísmo individual é a força elementar e atuante.
Se antes physis e ethos estavam em uníssono, agora physis e o homo faber
têm uma relação tremenda de dominação em que a physis está a serviço do
rei da criação.
Com as novas experiências biotecnológicas surge o Homo Demiurgus: este
não olhará a natureza de cima como o Homo Faber. O novo ser vai olhar a
natureza para saber onde ela errou e vai corrigi-la; vai olhar a natureza para
perceber o que ela não facilitou na provisão das suas necessidades, dos seus
desejos, e vai preencher a lacuna.
A falta de preparo intelectual e emocional para a tarefa poderá prejudicar o
intento: o antigo e verdadeiro Demiurgo olhou para o modelo perfeito das
Idéias e criou a Physis; o novo dominou a natureza e produziu; o
novíssimo, na falta da melhor modelo, olhará para si e para seu interior e
decidirá!
Estamos diante do desafio de reunir o Direito à Ética, dificílima tarefa.
A vontade de potência, genialmente apresentada por Nietzsche, parece ser a
explicação mais sensata: a vida vem por si com força tão avassaladora que
ela surge com marca expressa de inelutabilidade.
A sobrevivência, autoconservação, a força vital, a evolução são o mote (e
Nietzsche, devemos dizer por respeito acadêmico, não concordaria bem
com esta frase).
Nada sufoca a vida, nada a censura, nada a detém.
A busca científica, como vimos em Kuhn, não busca a verdade; ela
procura, antes, preservar-se, e, com vida própria, luta pela sua
sobrevivência.
E a verdade, segundo Nietzsche, deve buscar a conservação da
humanidade.
Não é possível que qualquer princípio ético estranho ao corpo da ciência,
possa limitá-la; a ciência, com vida própria deve se buscar e, mesmo com
solavancos, procurar resposta para sua ansiedade.
155
Assim tem sido.
Mas, significativamente, a ciência também não buscou seu código de ética.
Não repensou sua praxis. Esqueceu seu humanismo.
Reside aí a demonstração de que o novo Demiurgo quer poder e glória, o
que instaura um conflito ético. O ser universal cede lugar, de novo e
infelizmente, ao antigo ser que confere importância apenas à sua existência
individual e biológica em detrimento das demais formas de vida.
“ Traçar, pois, como ensina H.C. de Lima Vaz, um caminho da Ciência à
Ética é a tarefa que se apresenta à reflexão filosófica contemporânea, o que
é muito diferente e infinitamente mais árduo do que anexar a ciência a um
sistema ético já constituído “.
*
6.3 – a visão européia
Pessoas há que se preocupam com o tema e tentam contribuir.
Há imensas e salutares tratativas a respeito do assunto. Em sua totalidade
apresentam princípios básicos, que os autores procuram conotar,
encaminhando seu raciocínio e busca de solução.
Mas são princípios básicos e genéricos, segundo pensamos, e que apontam
para aspectos relevantes, sem dúvida, mas que, mesmo que bem
compreendidos, prestam-se, pela sua natureza genérica, a diferentes usos,
conforme a ideologia do utente, o que não dá tratamento objetivo e
definitivo à matéria.
E todos eles nos pareceram pretender atrelar a Ciência a um sistema ético já
preestabelecido, depurado e testado, intelectualmente ao menos, o que
contraria a citação de Limas Vaz a que nos referimos e que procuramos
transcrever para propor nossa maneira de pensar.
Como um dos modelos que pensamos atual, pinçamos (e traduzimos) os
pensamentos de Jacob Dahl Rendtorff, da Universidade de Copenhagen,188
pensamentos estes que resumem a forma européia de ver o assunto que a
americana pensa de maneira mais individualista a um jeito:
Autonomia, dignidade, integridade e vulnerabilidade são os princípios
investigados pelo autor que, emoldura estes princípios tendo como limites a
solidariedade e a responsabilidade.
Estes quatro conceitos falam mais ao nosso trabalho e partem sempre da
análise do indivíduo solitário e fala menos de aspectos políticos ou
econômicos, o que está abrangido pelos temas da solidariedade e da
responsabilidade.
O autor adverte que estes conceitos não são excludentes, mas
interdependentes e se imbricam na proteção do ser humano. Além, tais
188
(http://www.bu.edu/wcp/Papers/Bioe/BioeRend.htm),
156
princípios serão relacionados com a solidariedade e a responsabilidade
sociais analisadas dentro do estado de bem estar social no qual o autor
percebe a transformação do sistema legal em direção de uma maior noção
de responsabilidade estatal e preocupação e proteção de todos e dos fracos
e vulneráveis nas sociedades européias.
Os princípios não são hierarquizáveis, pois são diferentes dimensões da
mesma preocupação em proteger os seres humanos e expressam o ideal
comunitário de uma mesma moralidade européia.
São relacionados com os Direitos Humanos e com as leis que têm por
objeto a pessoa humana titular de liberdade e da possibilidade de questionar
seus direitos sobre livre determinação do indivíduo e sobre proteção da
vida e da existência.
Pretendem servir de base para a norma que regerá o desenvolvimento
bioético e biolegal e, ao mesmo tempo, ser um farol para a futura política
européia em bioética, biomedicina e biodireito.
A discussão sobre o tema teve início a partir do célebre “ Principles of
Biomedical Ethics “189, de Beauchamp e Childress, nos aspectos da
autonomia, do não-malefício, do benefício e do princípio da justiça, mas,
principalmente, e sobre as outras dimensões, na autonomia como princípio
maior na proteção dos seres humanos nos assuntos relativos a bioética e
biolei.
Os outros três princípios – dignidade, integridade e vulnerabilidade – são
ditos mais fundamentais que a aproximação utilitária de “qualidade de
vida” que ainda tem enorme importância nas decisões em biomédica e
devem ser vistos sob a ótica do entendimento ético da pessoa humana no
seu dia a dia e daí com a previsibilidade.
*
6.4 – autonomia
Autonomia (auto + nomos) é, na Grécia antiga, governar-se a si próprio.
Nos dias de hoje o conceito está ligado com a liberdade individual e a
possibilidade de harmonioso desenvolvimento da pessoa humana sempre
de acordo com suas escolhas pessoais e seus desejos para o futuro (Puro
Sentimento, portanto). Kant sempre impecável e com sua impressionante
frase, dizia que a liberdade é um fim em si mesma, o que vale dizer que a
liberdade moral e a autonomia são fins em si mesmas, ocasião em que as
pessoas são suas próprias legisladoras.
John Stuart Mill ensinava que a autonomia é a liberdade e a possibilidade
de agir e decidir sozinho sem qualquer coerção (tanto quanto possível,
dizemos, pois dos aspectos físicos pelo menos não há como escapar). O
189
( Oxford University Press, Oxford, 1979 )
157
Personalismo e o Existencialismo europeus remarcam a íntima conexão
entre autonomia, moral, independência e desenvolvimento pessoal (Sartre,
Mounier...) e encarecem a liberdade pessoal, o comprometimento, o
engajamento e a responsabilidade moral de cada ser humano.
A proteção da autonomia do indivíduo está presente em toda as
constituições européias.
Como já vimos, no Brasil, a teoria relacional dos contratos, aplicada por
nossos juízes e juízas têm abjurado esta possibilidade de autonomia das
partes. Além, a visão social dos juízes e juízas tem afastado o tema, desde
que o social deve preponderar sobre o particular; mais além, ainda, já
exibimos os dados da pesquisa do IPEA mostrando estatisticamente a
cultura de nossos juízes e juízas que em número elevado (80% quase)
prefere sentenças “sociais” às atreladas ao caso concreto, assunto de nosso
capítulo dedicado à Eqüidade.
Mas há críticas ao princípio também na Europa: primeiro – crítica elitista que ele pressupõe cultura bastante sólida do indivíduo para que ele possa
refletir e decidir, o que nem sempre ocorre; segundo – crítica social - que
ele não pode excluir as práticas sociais, os compromissos e obrigações
sociais, a compaixão e o relacionamento com outras pessoas, não podendo
se esquecer da frágil e vulnerável condição humana que merece cuidado e
respeito.
O problema estaria na esfera de saber se a autonomia pressupõe total e
substancial procedimento independente, ou se seria possível ser autônomo
e ao mesmo tempo ser confiável no chamamento dos valores comunitários,
dos sistemas legais ou morais ou religiosos: a) seria possível agir
autonomamente em situações que, fortemente, forem fechadas por
determinações externas (uma ordem peremptória, um movimento tribal
fulminante)?
b) e em que condições uma decisão individual deve seguir a decisão de
estranhos? São questões em aberto e às quais daremos nossa versão nos
dois últimos capítulos deste trabalho.
Neste ponto autonomia significa tomar suas próprias decisões, mas nada
implica que não se ouçam as conclusões de outras pessoas nem que não se
escutem seus valores e motivos. Sartre dizia que a autonomia não
pressupõe necessariamente a própria idéia sobre lei moral.
*
6.5 – dignidade
Lembremo-nos, como dito antes, que o conceito dignidade integra a nossa
Constituição Federal no seu artigo 1o. inciso III.
158
Palavra de difícil compreensão, apesar de todos pensarmos saber o que
significa, faz com que Dahl Rendtorff recorra aos melhores recursos de
linguagem para explicar-se.
Começa dizendo que há estreita correlação entre autonomia e dignidade.
O princípio da dignidade humana significa que os seres humanos têm uma
posição especial que os coloca acima da posição natural e biológica na
natureza. Escusado mencionar que esta posição advem da sua condição
natural de observador.
Diversos filósofos apresentaram inúmeras palavras a respeito; há, todavia,
consenso sobre o fato de que a proteção da dignidade torna-se um enorme
requerimento moral que é intimamente ligado ao conceito de autonomia
pessoal, tendo mesmo, Sartre, na defesa do existencialismo como filosofia
humanista, ter apresentado o argumento da conexão entre dignidade
humana, liberdade e autonomia.
Todos os que defendem os direitos humanos como universais e inalienáveis
consideram essencial neste tipo de humanismo a proteção do que é “
humano” e como desenvolver as características da dignidade humana na
vida social futura.
Neste contexto consideram fundamental a dignidade como união do corpo
e da alma, o que quer que isto signifique. O corpo humano e as partes do
corpo humano podem ser vistos como algo que coloca a dignidade humana
como expressão de pessoa humana e do que é especificamente humano.
Mais uma vez afasta-se Descartes, como fizera Damásio!
O entendimento da pessoa como um corpo encarnado é a primeira tarefa na
regulamentação legal das ciências biomédicas, isto é, como diz a jurista
francesa Noëlle Lenoir, que o objetivo da bioética e da biolei é proteger o
que é humano, ou seja, proteger a dignidade humana do desenvolvimento
tecnológico.
O direito à vida, à justiça, tratamento equânime e outros direitos básicos
inscritos na cultura constitucional européia, podem ser ditos ou vistos como
o “gene cultural da humanidade”.
*
6.6 – integridade
Novamente Jacob Dahl Rendtorff tem que recorrer a malabarismos para
apresentar o conceito integridade:
Integridade é um conceito filosófico que está intimamente conectado com
os conceitos de autonomia e dignidade.
Integridade diz respeito ao centro da personalidade que não pode ser sujeita
a intervenção externa não autorizada. Em contexto mais amplo isto implica
na proteção da integridade pessoal do indivíduo, como por exemplo, da
159
proteção dos indivíduos em relação ao estoque público de arquivos
pessoais.
Mas a noção de integridade compreende também algumas características
físicas: o corpo pessoal pertence ao sujeito como tal e assim é intocável.
Isto significa que o corpo humano e suas partes formam uma esfera de
integridade e têm que ser tratados com especial cuidado e compreensão:
integridade aqui significa direito à vida e direito de decidir sobre a própria
morte.
O conceito também pode ser apresentado sob um ponto de vista legal que
decorre do Direito Romano: intocável, imperturbável.
A referência legal à integridade põe limites à biomédica, por exemplo, na
intervenção no corpo dos pacientes.
A referência à proteção da integridade física e psíquica da pessoa humana
está se tornando mais e mais central na formulação das normas legais
concernentes à manipulação genética e à proteção da estrutura genética
humana. O direito de herdar uma substância genética que não tenha sido
artificialmente mudada é um importante aspecto de integridade. Isto não
diz respeito apenas às pessoas atualmente viventes, mas às futuras gerações
também. Manipulações que alterem o corpo humano e mudem a identidade
pessoal podem ser paralisadas pelo chamamento da integridade.
Indo além, integridade também diz respeito à proteção da integridade
econômica e social da pessoa. Especialmente o direito à não informação
das características de uma pessoa, mas, além, o direito de grupos mais
vulneráveis terem um mínimo de proteção social e econômica.
As diferentes perspectivas de integridade conectam os conceitos de
integridade, identidade pessoal e caráter. Desde o início da Filosofia, com
Platão, por exemplo, a teoria ética da integridade significa virtude moral
básica e caráter humano. Os aspectos psíquicos e físicos da integridade
confirmam estes comentários e remetem o conceito de direito à
privacidade, amparado pela integridade, aos conceitos de autonomia e
dignidade.
Finalmente integridade diz respeito ao direito de apelar ao sistema legal
para defesa dos direitos e interesses. Ronald Dworkin usa o conceito de
integridade para descrever a política moral de uma ordem legal justa.
Assim os agentes jurídicos, juízes, advogados, etc. manifestam sua
integridade quando tratam dos assuntos jurídicos com imparcialidade,
correção e justiça. Em assim agindo, conferem respeito e preocupação a
cada pessoa.
*
6.7 – fragilidade
160
Extremamente interessante o conceito vulnerabilidade (preferimos a
palavra fragilidade e ela que temos usado) introduzido por Dahl Rendtorff:
o debate legal e ético não costumava abordar este tema. Recentemente ele
começou a ser trazido às conversações e não mais pararam os comentários
a respeito deste tema tão importante.
O tema está intimamente conectado com o Sentimento de Horror a que
tanto aludimos. Aliás, nada reverbera mais nossa fragilidade que os nossos
Sentimentos: são com eles que nos defendemos.
Pode-se dizer que antropologia filosófica da condição da vulnerabilidade
humana é a base, o fundamento do conceito: vulnerabilidade pode ser vista
como uma expressão da condição humana e longe de ser um conceito
descritivo é um ponto essencial da questão, podendo mesmo alguns
considerar que a lei é expedida para proteger seres humanos vulneráveis.
Emmanuel Lévinas, filósofo francês, afirma que vulnerabilidade é o
fundamento do entendimento da condição humana e mesmo da moral, pois,
moralidade seria a compensação da vulnerabilidade humana. Neste sentido,
sustenta, o imperativo moral seria o de ter cuidado com o outro, de ter
responsabilidade ética com o outro. Lévinas propõe que o imperativo: “Não
matarás” é o conceito básico de uma existência vulnerável, a exibição
reconhecida da finitude corporal, da condição humana neste mundo.
A vulnerabilidade manifesta, também, uma desarmonia entre o fraco e o
forte (lembremo-nos de Hamurabi em 2000 antes de Cristo), o que requer
um engajamento ético mais profundo (e que contraria Nietzsche, como
vimos).
O conceito é, assim, de extrema importância nas discussões éticas
relacionadas a ter cuidado com o outro, ter responsabilidade com o outro,
ter empatia pelo outro.
Vulnerabilidade provoca interesse ético pela fragilidade humana, com sua
finitude e mortalidade.
A vulnerabilidade pode mesmo ser considerada como um importante
conceito legal e como o fundamento do sistema legal; além, pode ser a base
da associação e o motivo das regras sociais.
*
6.8 – solidariedade e responsabilidade
Dentro da moldura da solidariedade e da responsabilidade encontram-se os
quatro princípios básicos que como tal constituem uma esfera de proteção
da pessoa humana.
O estado social europeu deve considerar estes princípios de proteção aos
seres humanos vulneráveis como de enorme importância.
161
A sociedade de risco impõe problemas que geram correspondente
necessidade de proteção aos homens; os mesmos princípios são ferramentas
para assegurar o desenvolvimento da regras legais de direito na proteção do
corpo dos indivíduos.
Neste contexto o conceito de cuidado é correlativo aos conceitos de
integridade, dignidade e vulnerabilidade da pessoa humana.
Alerta-se para a possível dominação da natureza, que pode ser destruída,
pela sociedade industrial e que tal prática mudou as condições éticas e suas
regras. A sociedade tem que estar cônscia da sua obrigação em não destruir
as formas de vida na Terra.
O dever de proteger a vida, frágil e vulnerável, é uma aplicação do
imperativo categórico em bioética e biodireito. E isto deve ser estendido às
próximas gerações.
É obrigatório que asseguremos a genuína vida humana no futuro. Isto
significa que a proteção da autonomia, da integridade, da dignidade e da
vulnerabilidade, estendida a outras formas de vida, possa propiciar a
melhor condição de vida para as próximas gerações.
Nisto consiste nossa responsabilidade.
E dentro do moderno conceito de que é possível ter tido responsabilidade
sem que se tivesse tido culpa, sem que se tivesse cometido um erro no
estrito sentido jurídico do termo.
O objetivo da lei deve ser proteger a autonomia, a dignidade, a integridade
e fragilidade da personalidade humana.
Na visão européia, o regulamento legal também não mais está construído
sob bases de relações contratuais entre sujeitos, mas desenvolve-se dentro
de conceitos de solidariedade social e responsabilidade coletiva que
também compreendem os quatro princípios fundamentais.
Sob este prisma a lei reconhece a autonomia individual, mas como sugerem
os outros três princípios, a sociedade tem uma responsabilidade coletiva ao
por limites aos direitos individuais sobre o próprio corpo, por exemplo. As
noções de dignidade, integridade e vulnerabilidade são expressões da
necessária proteção do corpo humano no presente desenvolvimento legal e
motivam um direito humano orientado para o dever de proteger a esfera
corpórea e personal do indivíduo no moderno estado de bem estar social.
Na moldura da responsabilidade e da solidariedade os princípios básicos
são confrontados com a enorme ameaça da intervenção do poder
tecnológico na esfera da pessoa humana e constitui um esforço para
formular uma humanística concepção do homem como fundamento de uma
política e regulamentação legal dentro do estado de bem estar social.
A ética de ter cuidado pelos outros não é simplesmente proteger aqueles
que são incapazes de agir com autonomia – a mais vulnerável forma de
vida – mas é uma ética que parte da premissa de que todos podemos ser
162
feridos pelas descuidadas, às vezes paternalistas, ações de outros. O
paternalismo seria, destarte, um grande mal.
Ao contrário, como se sabe e é objeto de repulsa de grande parte da
comunidade internacional, conforme pesquisa que divulgamos atrás, a
cultura paternalista de juízes e juízas criou uma mentalidade que favorece o
inadimplente, o devedor e o hipossuficiente profissional. Cria monstros
processuais.
É sabida a posição Robin Hood de tirar de quem tem para outorgar a quem
não tem, ferindo princípios éticos e muitas vezes, mais do que se pensa, a
legislação pátria; o confisco puro e simples de quem tem (e nem sempre
tem tanto assim, que a baixa burguesia já começa a ser atingida também)
expõe com crueza uma retirada a fórceps de alguém para enriquecimento
ilícito de outrem de maneira totalmente injustificada.
Os conceitos de autonomia, integridade, dignidade e fragilidade foram
torcidos por juizes que sob o pretexto de solidariedade e responsabilidade
alteram situações de maneira paternalista ofendendo o expropriado pela
violência de que é alvo e ofendendo o hipossuficiente pela ação deletéria da
proteção que lhe é estendida e que, por mais que se pense o contrário, fere
sua dignidade mais profunda e o imobiliza em miséria permanente.
Mesmo quando amparado em lei deve a parte atentar para o caso concreto e
não para a possibilidade “esperta” que se abre.
Vale repetir o escrito de Aristóteles em Retórica atrás referido: o homem
que escolhe e pratica tais atos, que não se aferra aos seus direitos em mau
sentido, mas tende a tomar menos do que seu quinhão embora tenha a lei
por si, é eqüitativo (nosso grifo); e essa disposição de caráter é a eqüidade,
que é uma diferente espécie de justiça e não uma diferente disposição de
caráter”.
*
6.9 – sair da caverna
A sociedade olha para o futuro com os mesmos olhos que contextualizaram
o passado não querendo perceber que mudaram os paradigmas e que a nova
realidade não deve mais ser analisada com os mesmo conceitos que
nortearam outras conclusões, que foram boas para a sua época, mas que
não podem ser eternizadas.
O confronto entre as teses liberais e sociais, entre democracia e
igualitarismo, permeia o cenário e não pode se afastar, mas coloca em
questão o próprio conceito de “estado do bem estar social”.
163
A velha briga entre os sofistas e Sócrates continua em pleno vigor, apesar
de já passados 2.400 anos de discussão permanente.
Nietzsche e sua vontade de potência mostram que não se pode calar a vida
e que ela busca se desenvolver a qualquer custo, simplesmente por ser vida,
sem nenhum compromisso com a verdade, apenas com a sobrevivência.
A justaposição de theoría, praxis e téchne (com a poíesis ensaiando status
próprio), a oposição entre physis e nómos, a oposição entre logos
contemplativo e o logos construtivo, a aparição do Homo Faber, tudo isto
nos remete, de novo, e sempre, às questões fundamentais: quem somos? de
onde viemos ? para onde iremos ? que é vida ? que é a morte ...
Não há mais tempo, não há mais como contemporizar: o Homem tem que
sair da Caverna e encarar o Sol.
*
6.10 – autenticidade e amor à vida
Há enorme possibilidade de uma visão brasileira influir neste debate.
Como dissemos no fim do capítulo 2.1, a visão européia, francesa em
particular, desde Rabelais e Montaigne, foi, naquela época, redirecionada
por nossos índios. O europeu nos olhou e mudou.
Agora, da mesma forma, lembrando Oswald, podemos olhar o caraíba e
entrarmos nós no debate.
Já há, novamente, redutos intelectuais franceses neste começo de século
XXI que acham que a globalização tão falada deveria mudar seu nome para
brazilianização do mundo: aproveitar-se-ia a experiência pátria na
miscigenação de raças e culturas sem perda de identidade a que se adiciona
a maneira brasileira de ser com sua alegria, tolerância, transparência,
energia, amor à vida, facilitação de problemas.
O debate como nos traz Jacob Dahl Rendtorff, está cheio da pompa e
liturgia própria dos europeus e com ligeira pitada de autopiedade resignada
no caso da vulnerabilidade. Há mesmo como o Brasil possa influir de
maneira positiva.
Em capítulo posterior daremos nossa visão sobre os temas.
Mas já podemos iniciar nossa contribuição. Nosso conceito de fragilidade
(e não de vulnerabilidade) está impregnado do amor fati a que se refere
Nietzsche. E queremos acrescentar mais dois conceitos aos quatro já
apresentados: autenticidade e amor à vida.
Jung190 dizia que “o homem gosta de acreditar-se senhor da sua alma. Mas
enquanto for incapaz de controlar os seus humores e emoções, ou de
190
(1996 pág 83)
164
tornar-se consciente das inúmeras maneiras secretas pelas quais os fatores
inconscientes se insinuam nos seus projetos e decisões, certamente não é
seu próprio dono”.
O Mestre considera que cada ser humano porta um sentimento original de
totalidade, um sentido poderoso e completo do self, o si-mesmo, a
totalidade da psique, de onde emerge a consciência individualizada do ego
à medida que o indivíduo cresce. Enquanto transita de um estado para outro
(da infância para a meninice, etc) o ego precisa voltar para trás para
restabelecer suas relações com o self com o fito de não perder sua saúde
psíquica e manter o sentido original de totalidade. A mais elevada
finalidade do homem e a plena realização das potencialidades do seu self é
que fazem o homem ser.
A consciência dos seus dons e da sua missão, não importa qual e em cada
um diferente, a aceitação entusiasmada da Moira, a plena aceitação de si e,
conseqüentemente, a aceitação da diversidade, a aceitação tolerante do
outro, elevam cada homem ao seu píncaro.
Autenticidade, portanto, é uma palavra que usamos no sentido de estar-se
de acordo com seu eu profundo, ser-se total, pleno, sem qualquer
consideração por quem quer seja, sem mentir nem para si nem para o outro.
Poucos povos no mundo conseguem (quando não conseguem, haja
hipocrisia!) ser autênticos.
Como um povo faz para ser autêntico (na maioria das vezes, que se diga) é
mérito seu que recebe a reverência dos outros.
Esta uma das – se não for a maior – vantagem do ser brasileiro.
O amor à vida significa recebê-la como ela nos vem: amor fati! Deve-se
amar o próprio destino e, como no mito platônico, ter-se a consciência de
que a responsabilidade é mesmo de quem escolhe, de quem elege. Quem
foge do próprio destino não vive. Nem com dignidade, nem com
autonomia, nem com integridade. Chora sua fragilidade. O instante é
imortal e há delicadeza e criatividade no clichê que diz que a vida é estar
vivo e que é um dom intransferível, circunstância e caminho próprio de
cada um: viver a própria vida com desvelo, sinceridade e devoção.
Contingência.
Independentemente de nossa fragilidade e de nossa consciência da nossa
fragilidade. Combinando ter e ser como causa da alegria de viver. Há muita
energia envolvida e enorme competência para tirar problema da frente,
enorme competência para facilitar a vida: o compromisso com o gozo é o
mote. Não é uma posição ingênua, pelo contrário. É uma atitude sábia.
Encobre leve nostalgia que está lá para contraponto, sempre a lembrar.
Não há como não citar Nietzsche e seu além-do-homem.
Ou Guevara repetindo endurézcase siendo tierno!
O brasileiro tem a veleidade de considerar-se este tipo de ser humano e há
europeus que o vêem assim.
165
*
6.11- Há espaço para tal Homem?
A matéria de discussão e sua exata combinação podem ser manipuladas.
Mas não mais como se fora uma receita exata que o boticário avia pra obter
remédio salvador. Faltam, nesta receita, fármacos que ainda são
desconhecidos: se nos valermos do material usual podemos produzir um
placebo. Corremos, assim, o risco de enfocarmos nossos argumentos com
ranço de conhecimento pretérito. Há que ter cuidado. São muitos os
indícios de que a Moira está escrita – também – nos genes do seu portador
e que o Dédalo pessoal está mapeado fisicamente. Herança genética,
préconfigurada, portanto na hora em que aquele esperma e aquele óvulo
juntam seus códigos próprios e particulares para produzir seu milagre
específico comum. Contra o qual lutar inútil será. Amor fati?
Este tema continua obscuro, e continuará, enquanto não pudermos precisar
qual a verdadeira influência do DNA e do meio ambiente na configuração
do ser humano individuado, sem o que não há possibilidade de comentário
abrangente. Sabemos que ambos influem. Basta por enquanto.
Mas, se cumprir com sua missão de sobreviver, evoluir e ser um, poderá o
homem regular seu ethos? Poderá nele se instalar com conforto e prazer?
Conseguirá viver em ambiente em que não se sinta ameaçado nem com
desejo de ameaçar?
7- Certeza. Segurança. Previsibilidade
7.1- a visão européia
Aqui debatem realidade e valor, ser e dever-ser.
Aqui está mesmo o debate intestino do direito.
Os professores, autores de teses em direito, os dogmáticos, os advogados,
os juizes sempre pretenderam afirmar que o Direito deve ser certo, seguro e
previsível e esta verdade incorporou-se ao ideário jurídico desde sempre.
Gustav Radbruch 191 nos diz que são três os ingredientes ou elementos da
idéia de Direito: Justiça, Certeza ou Segurança como condição da Paz
Social e o Fim do Direito.
191
(1997, pág 160 e ss)
166
Debater Justiça, além do que já fizemos, e Fim do Direito extrapola o
escopo deste trabalho. Basta mencionar que esses três ingredientes às vezes
excluem-se, outras se harmonizam e que há pessoas que naturalmente
tendem para fazer um prevalecer sobre os outros (dizem: é melhor que
exista antes uma ordem jurídica que gastar tempo com discussões sobre
justiça e reta finalidade: vários autores dão preferência à certeza sobre os
outros valores declarando mesmo que este fundamento é primacial e os
outros secundários; falam outros: excesso de zelo positivista pode dar
nascimento a ordens injustas como o nazismo; afirmam alguns: é sempre a
Justiça que deve prevalecer192; a finalidade diz respeito ao interesse e à
utilidade logo desperta imediata adesão, falam outros ainda).
Mas, por necessidade do próprio tema, é necessário abordar com mais
vagar a Certeza Jurídica.
É desejável que no mundo do direito não haja lugar para o arbítrio e que a
sociedade não fique ao sabor do vai e vem das opiniões diferentes; grupos
não podem prevalecer, legisladores não podem legislar em causa própria ou
legislar a favor de suas causas e juizes não podem (apesar de aplicarem)
aplicar sua ideologia política às sentenças. A ordem social deve prevalecer
sobre as idiossincrasias e diversidade de opiniões e posturas. A ordem
social está acima destas divergências.
Radbruch diz que esta certeza exige a positividade do direito; que se não é
possível fixar e estabelecer aquilo que é justo deve ao menos ser possível
estabelecer aquilo que ficará sendo o direito. Tal estabelecimento deve
fazê-lo uma autoridade que se ache em condições de poder impor a
observância daquilo que precisamente foi estabelecido. A positividade do
direito vem assim a ser, ela própria, um pressuposto de sua certeza.
Impossível direito certo que não seja positivo.
Radbruch já dizia que 193 quando se estuda o direito, o jurídico, há que
distinguir dois momentos radicalmente diversos, o momento jurídico e o
filosófico-jurídico do direito. No primeiro trata-se de estudar certas
realidades referidas a certos valores que lhes imprimem uma significação
especial. Tais realidades apresentam-se então como um mundo todo
intelectual e pleno de significações cujo ‘sentido’ reside precisamente na
entrevisão dos valores para que tendem. Aí é que se estudam as realidades
jurídicas entre as quais está a jurisprudência como ciência dum ser
normativo-positivo. No segundo não são as realidades que contam, mas o
estudo dos próprios valores jurídicos absolutos em si mesmos considerados
e entre eles o valor absoluto maior, o que dá sentido e significado ao
Direito, a Justiça ela mesma.
192
193
aliás, como registro, a posição de Radbruch antes de falecer
(1997 pág 20)
167
Miguel Reale194 pensa que a História do Direito revela-nos um ideal
constante de adequação entre a ordem normativa e as múltiplas e
cambiantes circunstâncias espaço-temporais, uma experiência dominada ao
mesmo tempo pela dinamicidade do justo e pela estabilidade reclamada
pela certeza e pela segurança. O mínimo de fundamento axiológico 195 que
a sociedade em qualquer circunstância postula, põe e exige a certeza do
Direito, põe e exige um Direito vigente.
Para Miguel Reale196 , repetindo Radbruch, há um tríplice problema dos
valores do Direito que são as três exigências contidas na idéia do Direito:
Justiça, Certeza Jurídica (segurança e paz social) e Fim. O jurista, diz ele197
pensa em termos de segurança e certeza com aquilo que se costuma chamar
forma; o Direito exige ‘estrutura formal’, racionalidade, distinção e clareza.
Forma (a norma) é uma exigência de certeza 198 e esta depende de uma
abstrata formulação normativa, mas clara o suficiente para torná-la objetiva
e historicamente concreta.
“A forma, assim entendida como tipificação garantidora dos
comportamentos que prefigura e legitima, (e previsibilidade, já o dizia
Reale, foi o fermento da cultura) reflete a plenitude da positividade
jurídica, dado que esta não pode ser desligada do momento da vigência,
para só se confundir com o outro momento, igualmente necessário e
correlato, o da eficácia social dos preceitos”.
O valor contido no dever-ser precisa ser claro, aceito e assumido de tal
modo que possa ter possibilidade concreta e efetiva de realização histórica.
O valor que legitima uma ordem jurídica é seu fundamento. “Há sempre
um valor iluminando a regra jurídica como fonte primordial de sua
obrigatoriedade199”.
O assunto é explosivo, já se viu.
Para a previsibilidade como forma de fermento da cultura (sic) há uma
regra mínima, a de que ordem ou segurança seja condição primordial do
Direito. Para alguns a idéia de Justiça contém a de ordem; aliás, em
Goffredo ser e ordem se equivalem, pois se algo é se constitui numa ordem;
como não há ser que não se manifeste de múltiplas maneiras e como não há
ser que não exista em relação a outro (e relacional é a Justiça), há que haver
unidade na multiplicidade, diz Goffredo, donde ordem é a unidade do
múltiplo, o que lembra Heráclito. Tudo é conjunto. Da ordem resulta o
próximo aperfeiçoamento e sobre este valor – o da ordem – repousa a
noção de obrigatoriedade do Direito. Ordem e progresso.
194
(1953, pág 498)
(1953, pág 521)
196
(1953, pág 466)
197
(1953, pág 481)
198
(1953, pág 523)
199
(1953 pág 515)
195
168
Daí para muitos200, o conceito de ordem e segurança poder afastar o
conceito de liberdade. Para estes a liberdade seria um obstáculo para a
ordem (paz). Liberdade e ordem seriam termos antitéticos. Mais, para
outros ainda, como dito, até a ordem ou a segurança poderia se contrapor à
Justiça e prevalecer. Vem deste modo de pensar a imensa ojeriza à
desordem por ser fonte de insegurança e atentado à paz, a paz interna do
indivíduo e a paz social.
Esses são os conceitos mais gerais sobre o tema da certeza, da segurança e
da previsibilidade e formaram-se ao longo dos anos principalmente por
tradição européia. Tais conceitos confortam as almas mais necessitadas e
têm servido ao propósito de manter aceso o mito de que precisa a sociedade
para acreditar no Direito por estes motivos e não por outros mais candentes,
porém difusos.
Houve reação? Há algum outro pensamento mais afinado com a tendência
deste trabalho?
*
7.2 – o fim do mito: a visão americana
Podíamos trazer a Teoria Egológica de Cossio, o Raciovitalismo de Ortega
ou o Raciovitalismo jurídico de Recaséns: tocam nosso ponto, mas tem
outro viés.
Há, todavia, um movimento que surgiu nos anos ao redor de 1930 no
Estados Unidos da América, chamado de “realismo jurídico”, que
aglutinou, com teses semelhantes, mas não iguais, o que não configura uma
escola, portanto, uma série muito grande de professores de direito, de
juizes, de advogados e assemelhados.
Este movimento visava antes de tudo saber como realmente o direito opera.
Não pretendia se fixar em dogmas ou mitos aceitos (e desejados) pela
falação tradicional.
Em contraste com a dogmática européia o movimento deixou clara sua
convicção de que devia atacar convencionalismos falsos que se
perpetuavam mantendo uma tradição teórica que não se coadunava com a
prática dos tribunais. Tais atitudes, chamemo-las assim, são fragmentárias e
revelam ora intuições, ora verificações práticas e têm que ser
contextualizadas para que não se transformem em críticas acerbas,
incitações e pontos de vista rebeldes e contrários a uma situação que
provoca injustiças.
O movimento foi fértil em reagir e veio carregado de energia e vivacidade.
Foi um ataque à mística da Common Law que se apresentava como corpo
jurídico com possibilidade de compreender e solucionar todos os casos
200
mas não para Goffredo.
169
propostos. Foi uma forma de não trabalhar com fantasmas – eram ditos
realistas, pois não? – e perceber a verdadeira conduta humana, a conduta
dos juizes e dos funcionários dos tribunais da maneira como ela se operava
e não através de teorias que objetivavam perceber os fatos em sua essência
e que, por processos mentais, tinham em seus inventores criadores de teses
distantes da realidade.
Os destaques do movimento (citados por Recaséns Sichez) são Underhill
Moore, Herman Oliphant, Walter W. Cook, Karl N. Llewellyn, Charles E.
Clark e Jerome Frank. Além destes são citados também Joseph Walter
Bingham, Arthur L. Corbin Max Radin, Leon Green, Joseph C. Hutcheson,
Arnold Thurman e Hessel E. Yntema.
Na explicação do que foi o realismo jurídico Recaséns 201 primeiro
apresenta sucintamente o que foi a escola analítica de Austin 202 afirmando
que o movimento veio em parte como uma reação a esta escola: a teoria
analítica de Austin, seguindo de certo modo idéias apresentadas por
Hobbes refere o Direito positivo à ordem do soberano. Mas resta um
problema, o de saber se por soberano deve entender-se uma realidade ou,
pelo contrário, tão somente um conceito mediante o qual ordenamos os
dados jurídicos. Recaséns afirma que Austin nunca resolveu este problema
e que se manteve indeciso em relação a ele. Se de um lado Austin fala do
soberano como uma determinada pessoa ou um determinado grupo de
pessoas, o que faz crer que se trata de uma realidade, de outro sua obra faz
crer, por diversas passagens, que sua teoria representa somente uma
construção jurídica dos fatos, o que leva o comentador a dizer que não
pretende ser uma descrição mas uma interpretação. Adiante diz que o
caráter de construção foi acentuado por outros autores da escola analítica
que, seguindo outras vias, conseguiu no século passado, através da obra de
Kelsen, uma nova expressão, depurada e rigorosamente fundada.
Nos Estados Unidos havia pessoas descontentes com a postura, houve uma
reação e surgem vários juristas que buscam outra linha, a da realidade
efetiva sobre a qual se apóia o direito vigente e da qual ele emana; para tal
se perguntam com insistência ‘que é na realidade o Direito vigente em um
determinado país e em certo momento? Sobre isto dizem que tal pergunta
surge com atualidade e com urgência quando se coloca um conflito ou
dúvida a respeito das normas jurídicas. Nestes casos o que dizem as leis, os
regulamentos, os precedentes judiciais, os costumes, etc., podem constituir
fontes de presunção para que se possam fazer vaticínios prováveis mas não
sugerem uma resposta absolutamente segura porque o Direito real e efetivo
vai ser aquilo que sobre o caso colocado venha a resolver o órgão
jurisdicional. Sobre isto escreveu em 1897 o juiz da Suprema Corte
Americana Oliver Wendell Holmes: ‘um dever jurídico não é nada mais
201
202
(1963 pág 621)
(1790-1859)
170
que predizer que se uma pessoa faz ou omite certas coisas será forçada a
sofrer de uma determinada maneira a sentença do tribunal. Se o que se quer
é conhecer o direito efetivo e nada mais então há que se observar este
direito desde o ponto de vista de um homem mau que se preocupa somente
com as conseqüências materiais que tal conhecimento lhe permita predizer.
As profecias daquilo que os tribunais farão é o que entendo como direito’.
O movimento realista desejou fazer uma demolidora crítica à concepção
mecânica da função judicial como um silogismo.
Contra esta concepção que joga o direito em uma região celestial é que se
organizou a reação. Mas é estranho que a primeira reação dentro do mundo
anglo-saxão tenha partido da tradição positivista da escola analítica: foi
John Gray em sua obra sobre a natureza e as fontes do direito (de 1909) que
deu um passo que seria levado muito adiante pelo realismo jurídico. Gray
distingue entre direito efetivo e fontes do direito. O direito efetivo consiste
nas regras assentadas e aplicadas pelos tribunais. Fontes do direito são os
materiais (leis, precedentes jurisprudenciais, opiniões doutrinais, costumes
e princípios éticos) nos quais o juiz se inspira para estabelecer as regras
efetivas de sua sentença. Uma lei por si só ainda não é direito enquanto
ainda não tiver sido apreciada por um tribunal. A lei é um conjunto de
palavras que faladas pelo legislador tornam-se efetivas somente após as
sentenças dos tribunais. Incumbe aos tribunais dizer o que estas palavras
significam. Dentro dos limites da interpretação que são vagos e não estão
definidos com precisão forma-se o direito efetivo que é aquele elaborado
pelos tribunais.
Os realistas partem destas palavras e vão muito longe. Apesar de não
concordarem sempre entre si e de não constituírem pensamento
homogêneo, adquirem o denominador comum de serem absolutamente
céticos a respeito das descrições tradicionais da conduta real e efetiva do
pessoal dos tribunais; não se entendem sempre quando o assunto é
realidade mas quase todos buscam a realidade na conduta efetiva dos juizes
e dos funcionários administrativos.
Os realistas crêem que Gray, apesar de ter avançado, não foi longe o
suficiente e não compreendeu exatamente o que dissera Holmes 12 anos
antes. Gray definira o Direito efetivo como as regras assentadas pelo
Tribunal. Há que se distinguir entre as regras que o Juiz estabelece em suas
sentenças e o que o juiz decide efetivamente. Muitas vezes a regra
fundamentada pelo juiz em sua decisão constitui somente uma espécie de
disfarce para justificar a decisão efetiva que ele tomou e constitui uma
justificação aparente de sua sentença ante a doutrina tradicional. Assim,
importa menos o que o juiz diz e importa mais o que o juiz faz. Deste
modo, se queremos saber o que efetivamente é o direito temos que
obrigatoriamente indagar quais são os modos reais da conduta judicial. Os
realistas declaram que os juizes não agem conforme as regras legislativas
171
nem de acordo com os ditames da doutrina nem de acordo com as regras
que eles mesmos, juizes, expõem como certas; eles dizem que os juizes
agem de uma maneira diferente e que esta conduta real é que determina o
direito.
A partir daí Recaséns estuda duas formas de realismo dentre outras menos
expressivas: uma a que duvida da fala do juiz que garante basear-se em
leis, em precedentes jurisprudenciais, em regulamentos, em técnicas
conhecidas de interpretação, e busca as regras efetivas, mesmo que ocultas,
aquelas pelas quais se norteia mesmo o juiz para decidir; outra que apesar
de também duvidar da liturgia dos juizes procura ir mais longe e formula
questões sobre o modo como os juizes enfocam as questões de fato. Alguns
se preocuparam com as sentenças dos Tribunais de Apelação para, ao final,
saber o que é mesmo Direito; outros se preocuparam com a conduta dos
Tribunais de Primeira Instância e como eles estabelecem os fatos do caso
em debate.
Llewellyn e Jerome Frank, como expoentes do movimento, são a partir daí
dissecados por Recaséns. Joseph W. Bingham e Thurman Arnold vem a
seguir. Após, há um breve apanhado das teorias de Yntema, de Oliphant, de
Moore, de Cook e de Cohen.
Vamos ao trabalho:
Professor da Universidade de Columbia e depois da de Chicago, Karl N.
Llewellyn, 203 distingue o que ele denomina de regras no papel das regras
efetivas; as primeiras são aquelas constantes de normas, leis e regulamentos
que nem sempre são seguidas pelo juiz ao decidir e as segundas são aquelas
que, declaradas ou não, são as que efetivamente o juiz segue para proferir
suas decisões.
Para investigar estes fatos Llewellyn estabelece alguns pontos
fundamentais em que se baseia para chegar ao seu estudo final: 1- que o
direito está em constante situação de fluidez; 2- que o direito significa um
meio para fins sociais; 3- que a sociedade para cujos fins o direito é um
meio se encontra em situação de fluidez maior que o direito ele mesmo; 4para objetivar suas investigações o teórico do direito deve analisar somente
o que os tribunais, os funcionários e os cidadãos fazem efetivamente sem
levar em conta aquilo que deveriam fazer, divorciando-se, mesmo que em
aspectos temporais, o ser do dever-ser; 5- a investigação jurídica deve
observar com imensa suspeita a suposição de que as lições ensinadas pelos
livros são efetivamente seguidas pelos tribunais; 6- deve a investigação
jurídica observar com igual suspeita a suposição de que as normas e regras
de direito enunciadas formalmente são as que em realidade produzem as
decisões e resoluções que alegadamente estariam baseadas nelas; 7- é
necessário reconhecer a necessidade de agrupar os casos particulares em
conceitos mais estreitos, isto é de menor área, alcance ou compreensão,
203
(1893-1962),
172
mas não se perdendo de vista que tais conceitos têm um simples alcance
classificatório empírico, ou seja, seria ótimo ampliar a quantidade de
conceitos que se empregam como instrumentos de trabalho; 8- cada setor
particular do direito tem que ser valorado em termos de seus efeitos reais.
A conclusão de Llewellyn é que o direito se ocupa da pacificação de
disputas. E que há pessoas que devem se preocupar com estas disputas.
Primeiro para que as partes que disputam se entendam, depois para que
outras pessoas que são afetadas pelos disputantes encontrem também sua
tranqüilidade. Mais além que quem se ocupa desta pacificação possa
encontrar a melhor solução, a que seja mais suportável para as partes
litigantes assim como para os espectadores desta. Esta gente – juizes,
policiais, funcionários administrativos, carcereiros, advogados – são
funcionários do direito; como tal devem trabalhar para por termo às
disputas. Mas considerando-se que há outras disputas no seio da sociedade
e que não demandam pessoal especializado, para que servem aqueles
funcionários? Seriam mesmo necessários? Sim, responde, há necessidade
destas pessoas para conflitos que não se resolveriam de outra maneira e
que, pela manutenção da ordem perturbada têm que agir com autoridade
executiva.
As partes envolvidas pensam que há ordenamentos jurídicos a serem
seguidos e que eles regulam mesmo as disputas quando chegam a esse
nível; mais do que isso a sociedade pensa que tais normas devem ser
obedecidas por todos porque são justas e com isso se mantem viva a
sociedade que acredita. Se a maioria da sociedade não respaldasse os
funcionários do direito com sua consideração o direito realmente não
poderia existir. Esta crença na infalibilidade da justiça mantem vivo o
direito. A maior parte das pessoas respira esta atmosfera e configura suas
atitudes conforme esta crença. Se não fosse isto não se poderia viver em
sociedade. A pergunta que ainda não cala é como reagem os juizes e
funcionários administrativos para resolver estas disputas?
A citada divisão entre regras efetivas e regras no papel não significa que
careçam estas de importância. Há que se averiguar se o juiz segue ou não as
regras vigentes; muitas vezes ele afirma seguir mas na realidade não o faz.
Por vezes até menciona as regras que segue, mas tal declaração serve como
disfarce, pois outras regras são aquelas que são atendidas na realidade. A
investigação realista visa desnudar esta situação e expor o que sucede
realmente; quer retirar esta ficção convencional que faz o juiz dizer que
segue algo que efetivamente não segue.
Llewellyn também analisou a questão de fato, tanto a que diz respeito à
prova quanto aquela que qualifica e caracteriza os fatos jurídicos
relevantes. Sua análise conclui que os fatos como se deram na realidade
não estão colocados diante do juiz jamais. Chegam filtrados, reconstruídos,
reapresentados. Chama também a atenção para o fato de juiz e júri
173
repararem em outros detalhes que não os eminentemente processuais (este
advogado está bem vestido, deve ser pessoa honrada; a testemunha não tem
cara de honesta com esta verruga no nariz e a falta de alguns dentes).
Enfatiza que cada advogado apresenta sua versão ao fato e que esta versão
é feita sempre se tendo em conta a lei que se pretende seja a que cabe ao
caso em espécie.
Que correspondência há entre os fatos como ocorreram e os fatos como são
relatados na sentença? Esses fatos foram pinçados pelos advogados
respectivos quando filtraram os pontos jurídicos que pensam relevantes;
são filtrados quando as partes recorreram aos meios de prova admitidos;
são filtrados mais ainda quando da apresentação de razões finais e são
filtrados pelo juiz quando redige os dados da sua sentença. Nesta fase
duvida-se que haja qualquer correspondência entre os fatos como
ocorreram e como estão descritos na decisão final.
Llewellyn também é um dos que defende que o juiz quando redige sua
sentença pensa primeiro no que ele julga ser justo e depois vai construir o
silogismo e apresentar as normas e as motivações de forma a justificar sua
decisão que já estava tomada por antecipação. Assim a decisão e a norma
ditam a interpretação dos fatos ou a decisão e a interpretação dos fatos
determina a norma.
Llewellyn conta que pesquisou os Tribunais de Apelação ingleses e
verificou como cada um dos magistrados opina sobre o caso debatido: as
observações sobre os fatos diferem freqüentemente. Estas diferenças estão
na estrutura que se dá aos fatos e no modo como cada um destaca um
aspecto destes fatos. Freqüentemente discrepam quanto ao argumento que
parece conveniente. O que passa a ser muito estranho é que normalmente
os magistrados concordam com a decisão final. É muito curioso, diz o
autor, que na redação do seu voto cada magistrado tenha elencado
argumentos que não são os mesmos que os que chamaram a atenção dos
seus pares, que os fatos tenham sido observados diferentemente, mas a
decisão final, com raras exceções, seja coincidentemente a mesma. Isto
mostra que há mais segurança e certeza na decisão que na norma em que
ela se baseia. Esta observação ajuda Llewellyn a confirmar sua idéia de que
o importante não é analisar tanto o que os juizes dizem mas o que os juizes
fazem. A norma efetiva não é muitas vezes aquela que está referida na
sentença mas é outra que não aparece mencionada embora seja ela o real
sustentáculo da decisão.
A axiologia jurídica de Llewellyn busca firmar-se no mundo da ontologia.
Diz que apesar de pessoas referirem o direito como um dever-ser ele
preocupou-se com a análise fenomênica do direito, preocupou-se em
descrever as realidades jurídicas tal como são e se manifestam. Mas a
investigação não pode se circunscrever a esta análise pois deve levar em
conta como a sociedade desejaria que fosse o Direito. Sempre haverá
174
alguém postulando que o direito se desenvolva para o justo. Sempre neste
ponto surgirá a pergunta fatídica inquirindo sobre o que o justo é afinal.
Mesmo sem resposta prossegue a indicação de que o direito se oriente do
jeito como deve ser e não de outra maneira. Está certo que as pessoas não
concordam sobre o que seja justo. Llewellyn procura esclarecer
estabelecendo uma divisão da justiça em justiça social e justiça judicial; a
primeira deve ser entendida como expressão que denomina a justiça de
conjunto na totalidade da estrutura social e a segunda como a justiça que é
possível dentro do marco que a sociedade instituiu em certo tempo e lugar.
A justiça social abarca a justiça judicial e partindo do seu ponto de vista
alguém pode criticá-la; após estabelecer sua crítica, o analista pode pedir
reforma da legislação e, se desesperado, iniciar uma revolução. Enquanto
estiver no campo da investigação ainda, o crítico deve pesquisar os
tribunais e sua conduta. Sendo sensato se dará conta que os tribunais devem
mover-se dentro do marco das normas estabelecidas. O máximo de
liberdade que pode ter o tribunal é suavizar um pouco aqui e ali. Nada
mais. Mas também aqui haverá disputa: alguns mais ousados e impacientes
pedirão ao tribunal que se mova até o limite de seus poderes ou um pouco
mais; outros assustados com a possibilidade não quererão que o tribunal se
mova nem um milímetro para cá nem para lá.
Jerome Frank204 foi professor universitário, juiz e magistrado do tribunal de
apelações é um dos principais autores dentro do movimento realista. Como
jusfilósofo dedicou-se a analisar a conduta efetiva do juiz e os problemas
relacionados com a apreciação da prova.
Em um de seus trabalhos procurou perceber porque toda a gente tem
aversão pela justiça em geral e pelos advogados e juizes em particular. Há
uma crença generalizada de que estas pessoas complicam
desnecessariamente o que redunda que o direito deixa de ser claro, certo e
exato; ora, diz ele, há um erro aqui: se o direito fosse certo e exato as
críticas seriam procedentes: resulta que o direito não é assim. Nem as
sociedades estáticas conseguiram escrever normas onicompreensivas que
abarcassem todo o conjunto de necessidades e dessem respostas a todas as
questões. Muito mais difícil seria pensar que tal projeto pudesse ser
desenvolvido numa sociedade tão fluida como a nossa, com tantas
novidades 205 como a nossa. Assim muito da incerteza do direito não é
somente um acidente infeliz , não é somente uma deficiência ou uma falha,
mas pelo contrário, tem um enorme valor social.
Se as coisas são assim porque escondê-las? Porque o advogado afirma a
certeza do direito? Porque o professor não se cansa de ensinar que o direito
é certo? Porque os juizes não confessam quando disfarçam suas inovações
204
205
(1889-1957)
(notem que ele falava no começo do século XX)
175
sob mantos velhos e gastos, porém tradicionais? Porque este pacto que visa
esconder a realidade ?
Esta mania de esconder o caráter plástico e mutável do direito traz
conseqüências funestas. Ao esconder de toda a gente o caráter mutante do
direito os profissionais causam mais confusão e prejuízo que outra coisa.
O direito do presente porque compreende e protege todas as novidades,
porque as acompanha e se despe das velharias que o amarram é garantia de
sossego para as pessoas que se consagram a novos empreendimentos e
cruzadas. As rápidas mudanças sociais apresentam novas situações que não
estão nem remotamente contidas nas normas ainda vigentes: assim o juiz
tem que formular novas normas ainda que as apresente sob o disfarce das
velhas.
Frank se propõe a analisar a realidade jurídica como ela é. Este encontro
com a realidade mostra que o direito é muito diferente daquilo que dele se
dizia. Sempre se garantiu que o direito era geral, uniforme, contínuo, igual,
puro. Este é um ponto de vista falso. Sempre se imaginou o direito como
um conjunto de regras estáveis que desde sempre existiam ou vinham lá de
trás, lá de tanto tempo que pareciam permanentes. As modificações
introduzidas pelo legislador só faziam aperfeiçoar o que já existia e dar um
caráter de maior perenidade ao direito. Pensava-se que a função dos juizes
consistia em descobrir o direito sem que pudessem contribuir com algo
para criá-lo. Quando mudava a jurisprudência dizia-se que tinha havido
uma correção de um ponto de vista tomado erroneamente e que a nova
posição apenas trazia o conceito certo ao campo que tinha sido mal
observado. Em uma sociedade simples é possível ter normas estáveis e que
sejam aplicadas com relativa certeza e segurança. Tal não é possível na
sociedade de nosso tempo dada a sua dinâmica. Havia o desejo de que o
juiz fosse um aparato automático que repetisse no singular o que a lei tinha
dito no plural. Assim, o juiz, seria somente um repetidor da lei; não havia
desconfiança com o legislador pois sua tarefa era pronunciar-se sobre o
futuro – tal não sucedia com o juiz pois este fala do presente e do passado:
grande perigo em sua atitude pois.
Houve enorme exagero nestas lições. A existência de uma lei prévia que,
muito clara, compreendesse todos os fatos e se revestisse de certeza e
segurança, não foi possível ainda.
A verdade é que a experiência mostra que o direito não dá certeza nem
segurança nem uniformidade nem clareza.
Somente uma sentença pode reverberar o direito certo que é válido para as
partes e para aquela situação particular; enquanto não se pronuncia um
tribunal sobre uma questão não há direito certo e efetivo para o caso. Antes
da sentença somente há uma suposição feita pelos advogados daquilo que
provavelmente seria a sentença de um tribunal. Só suposição. Verdade é
que o direito sobre uma situação definida será ou a sentença que se
176
pronunciar sobre o caso passado ou uma suposição do que dirá o direito no
futuro. Antes que um tribunal se pronuncie sobre uma questão não se pode
afirmar qual o direito envolvido. Como se parte do pressuposto que há
normas preestabelecidas, que os fatos estão determinados, deduz-se que se
pode falar de um direito certo. Mas não se pode. A verdade é que nenhum
desses pressupostos se ajusta à realidade. Nem as normas estão
estabelecidas com certeza de antemão nem os fatos são entidades objetivas
determináveis com plena segurança.
Quando se assina um contrato um bom advogado pode prever muita coisa e
ajustar o negócio às normas vigentes e ao que está sendo decidido nos
tribunais; mas ninguém pode garantir que os direitos e deveres previstos
não venham a ser questionados em tribunal e ninguém pode garantir a
sentença.
Será sempre possível alcançar uma relativa dose de certeza e segurança;
mas pedir mais será desnecessário, indesejável e difícil de alcançar.
Segundo Frank a demanda por uma excessiva estabilidade jurídica não
surge de necessidades práticas. Tal demanda não tem suas raízes na
realidade mas sim nos sonhos míticos. A busca do que é justo e do que é
injusto, da fala do Juiz Infalível, do Direito Eterno, é um sonho do homem,
a busca do mundo perfeito em que nada se move, em que tudo é imóvel e
perfeito, em que não há contrariedades nem surpresas, em que tudo se
repete tudo sempre igual, em que não há guerra, pestes, planos econômicos
e desavenças, em que tudo tem que ser conforme devia ser (mas não é) é
um sonho de certa espécie de gente. A experiência frustra mas é negada por
estas pessoas que se recusam a aceitar a realidade e proclamam o mundo
como deveria ser e acreditam que ele será como deveria ser. As esperanças
substituem o real. As verdades têm que bater com os valores destas
pessoas. A realidade tem que ser tranqüila, confortável, amistosa, afetuosa,
isenta de complicações, sem perturbações. Quando uma experiência frustra
os valores esperados esta gente decreta que houve um desvio, um mal
imaginário, uma ilusão. Tais aparências não podem impactar o homem que
acredita na vida como Una, Eterna e Invariável. Com este embuste estas
pessoas se enganam, enganam os outros e pretendem que a vida seja
conforme os sonhos, que os valores sejam a realidade, que o desagradável
que a vida contem seja mera aparência.
Referindo-se às concepções jurídicas predominantes no século XIX, Frank
diz que houve um retorno à atitude medieval que considerava os conceitos,
as abstrações, os nomes gerais e genéricos como mais reais que as coisas
concretas. Não se trata, claro, de abolir a lógica formal, mas de reconhecer
que a decisão judicial está muito além dos limites da lógica formal porque
o problema da decisão passa obrigatoriamente pelo problema de eleição de
premissas. Enquanto o juiz busca eleger as premissas em que baseará sua
decisão a lógica formal não é de nenhuma ajuda. Frank diz que com o uso
177
ilegítimo da lógica formal o que se conseguiu no século XIX foi disfarçar e
até ocultar o problema de eleição de premissas.
Ele não nega que haja regras jurídicas, mas diz que servem para alguma
coisa, não para tudo como se apregoa. Ele nega que o Direito efetivo
produzido pelos tribunais consista em conclusões retiradas das regras
gerais. As normas gerais são só um dos ingredientes da decisão.
O problema principal em uma ação judicial consiste na eleição dos
princípios. É o juiz quem decide quais serão as premissas nas quais baseará
sua decisão. Ele escolhe tanto as premissas relativas aos princípios quanto
aquelas relativas aos fatos. A partir daí o juiz concluirá. Mas o juiz é um ser
humano e costuma agir como tal. Quando entra em contato com o processo
o juiz forma uma convicção do que é justo e do que não é no caso em
questão. Somente depois procura os princípios que sustentarão sua
conclusão.
Se o Direito efetivo consiste nas decisões judiciais e temos que os juizes
decidem por intuição ou sentimento a chave do problema consiste em
averiguar como o juiz forma sua intuição ou sentimento.
Um fator primário é a lei, os regulamentos, os precedentes, as doutrinas em
voga. Novamente entra em campo o fator humano pois alguém tem que
decidir, qual lei, qual regulamento, qual precedente, qual dentre as
doutrinas a que está em voga ou a que é preferida pelo juiz. Volta-se ao
ponto de partida. É o fator humano que influencia a decisão. É o juiz
decidindo entre possibilidades igualmente válidas qual a melhor no seu
julgamento pessoal. Muitas vezes há juizes que tentam fugir desta postura
solitária e tentam orientar-se pelo que seja a orientação social
predominante. Mas aí também há que se distinguir entre diversas correntes
qual a predominante e novamente entra em cena a posição pessoal do juiz.
Ademais nessa hora entram as convicções políticas pessoais do juiz e voltase ao ponto de partida de novo. Pior fica na escolha dos fatos: existe maior
alcance prático na escolha dos fatos que na escolha das normas. Há que se
ver bem que nesta fase múltiplos fatores subjetivos entram em ação. Como
complicador, os fatos nunca são vistos, apreciados, diretamente pelo juiz
que deles tem conhecimento indireto e já fabricado pelas partes. Sucede
que nesta hora entram em campo diversos fatores subjetivos que
influenciarão favorável ou desfavoravelmente: os juizes podem não gostar
de mulheres, das loiras ou das morenas, das ruivas, dos homens com barba,
dos italianos, dos africanos, dos médicos, dos advogados. Tudo, nesta hora,
contribui para que o juiz tenha mais atenção a um fato, tenha melhor
memória de outro, tenha mais simpatia por um detalhe, tudo influindo na
credibilidade que o juiz sente a respeito do que está apresentado no
processo. A decisão passará por estes fatores, sem dúvida.
O direito efetivo se implementa, torna-se concreto, adquire realidade não
por virtude de regras abstratas mas apenas e tão somente pela ação direta
178
dos seres humanos. A personalidade dos juizes é exclusivamente o fator
central. Assim é como acontece.
O juiz recebe influência decisiva de sua educação geral, de sua educação
jurídica, de seus vínculos familiares e pessoais, de sua posição (e origem)
econômica e social, de sua experiência política e jurídica, de sua filiação e
de sua opinião política, características intelectuais e de temperamento:
somente uma boa e desprendida atitude desses juizes ao se auto-analisarem
(ou de se deixarem ajudar por profissionais) poderá desfazer os nós que
amarram suas atitudes a fatores estranhos.
Apesar de estas influências serem fundamentais sobre a mente do juiz
quando vai decidir, e independentemente destas influências, é preciso
reconhecer que o juiz sempre cria o direito efetivo. E tal constatação
assusta todas as pessoas. Passa a ser muito poder na mão de um só. O juiz
tem que estabelecer os fatos, sopesar as pretensões contraditórias, formular
a qualificação jurídica destas pretensões, estabelecer a qualificação jurídica
dos fatos, tem que rever – ou reajustar – as regras legais para que se
encaixem nelas os fatos apresentados. Porque levar a cabo esta tarefa
hercúlea de maneira escondida, clandestina, oculta?
De outro lado exagerou-se muito a certeza e segurança do direito e, de
outro, anatematizou-se em demasia os prejuízos da incerteza.
Um pleito judicial é uma batalha e nada pode predizer o seu resultado final.
Mas sempre será um fator muito importante, dos mais importantes, a
personalidade do juiz. Como não são iguais os juizes nem são iguais em
sua maneira de ser, Frank não dúvida que isto pode trazer consequências
desagradáveis e prejudiciais. Mas assinala que a uniformidade traria
consequências muito piores. Seria, desta forma, aconselhável ter nos juizes
pessoas com mentes estereotipadas, rígidas, sem criatividade, pouco
dispostas a adentrar cada caso para distinguir suas cores individuais, para
perceber seus fatores concretos impossíveis de serem contemplados pela
norma geral, sem o que não se praticará justiça na decisão? Seria
conveniente ter nos juizes pessoas insensíveis às mudanças sociais? Sempre
que, aduz Frank, os juizes forem inteligentes, sensatos e ilustrados o
Direito terá menos uniformidade do que o Direito criado por juizes
desprovidos de talento. Assim, então, teremos sempre menos certeza,
menos segurança, menos uniformidade, menos previsibilidade, conclui
Frank.
Prosseguindo seu estudo Recaséns206 nos traz as considerações de Joseph
W. Bingham que é considerado como um dos principais inspiradores do
movimento. Foi iconoclasta em relação aos velhos mitos e ficções
convencionais. Não aceita que o direito seja só um corpo de normas e
princípios. Afirma que o direito é consideravelmente mais amplo e mais
complexo que um sistema de normas estereotipadas. Considera que o
206
(1963 –pág 636)
179
direito é um campo para estudo científico análogo ao campo de qualquer
outra ciência. As seqüências de fatos e seus efeitos jurídicos são fenômenos
externos para investigação. O conhecimento das relações causais de tais
seqüências e das causas, a organização e o modo de operar do mecanismo
estatal que as rege, constituem o conhecimento do direito em um dos
sentidos jurídicos desta palavra. Desenvolveram-se regras e princípios para
uso neste campo e adotaram-se termos técnicos com definições mais ou
menos estereotipadas. Tudo isto constitui um aparato de instrumentos
mentais que são usados para classificar, expressar e comunicar de modo
abreviado o conhecimento acumulado do direito do mesmo modo como em
outras ciências são usadas também definições e generalizações.
Seguindo caminho diferente de Llewellyn e Frank, Bingham afirma que as
generalizações feitas pelos juizes são fatores eventuais que os ajudam a
alcançar sua decisão. Mas não são o Direito. Os tribunais não hesitam em
passar por cima de precedentes jurisprudenciais nem em ignorar aquelas
generalizações judiciais quando os casos concretos em litígio assim o
requerem. Aquilo que constitui a substância do Direito é o caso ele mesmo,
o caso concreto, consistente nos fatos e nas conseqüências oficiais que se
seguem a estes fatos. Interessa aos juristas práticos compreender a conduta
dos tribunais e poder predizê-las mais tarde. Muitas vezes a conduta
analisada não tem conformidade com o que ensinam os livros de direito.
Diz que uma compreensão adequada dos fatos ensejará considerável
melhora na educação jurídica, um melhor entendimento das altas funções
do juiz e, conseqüentemente, um progresso na administração da justiça.
Descrê dos sistemas filosóficos e de seus fundamentos que visam por
ficção ditar o que é a realidade, dando-a como perfeita, partindo de
princípios que expressam uma verdade eterna. Crê que tais sistemas,
embora muito ambiciosos, assentam-se sobre falácias sobre a natureza e
não levam em conta os utensílios do pensamento, os meios da inteligência
humana e os fatos da vida social e política. Por mais bem intencionados
que sejam estes sistemas, destacando-se os europeus nesta maneira de se
apresentar, eles projetam uma esperança de que algo seja assim, ou de que
algo deveria ser assim, e se distanciam da realidade causando mais danos
que benefícios.
Prosseguindo com o estudo do realismo americano Recaséns apresenta as
teses de Thurman Arnold, juiz e professor, que, embora tenha teses
parecidas com vários autores do movimento, sentiu-se mais atraído pelo
enfoque semântico. Segundo ele uma palavra não tem o menor sentido a
menos que tenha imediata conexão com a experiência. Adiante, sustenta
que quando uma palavra tenha um estímulo emocional ela não pode ter
valor como instrumento intelectual.
Aduz que toda instituição social está baseada em 4 elementos comuns: 1um credo; 2- um conjunto de atitudes que determina que esse credo seja
180
eficaz; 3- uma série de hábitos institucionais; 4- uma tradição mitológica ou
histórica que prove que aquele credo tenha sido ordenado por forças
superiores ao homem. Exemplifica com a organização política que
eventualmente seja um credo ao redor do qual tenham se fixado certas
atitudes e hábitos inamovíveis. Esta organização se assenta sobre idéias e
documentos escritos, desenvolvidos há já muito tempo, donde criou-se uma
imensa tradição histórica de que este fato singular deveu-se a um grupo
iluminado de pessoas excepcionais. E toda a gente acredita. Os crentes
nesta instituição não percebem o folclore que se instituiu e reconhecem o
credo como verdade, como acontecimento histórico magnífico, como
direito natural, como um corpo de princípios inevitáveis.
Assim o direito para Arnold é um corpo de princípios e ideais, que se situa
acima dos homens, que sobrevive às custas de vasta literatura metafísica e
em uma sucessão de juízos e processos cerimoniais.
O homem comum precisa acreditar que o direito é simétrico e racional e
precisa ter fé em uma filosofia do direito unificada. A literatura jurídica que
se segue é ampla e vaga o suficiente para abarcar todos os princípios
contraditórios e outorgar ao vulgo o céu atrás dos tribunais.
A grande massa que não conhece os meandros dos tribunais pensa que o
processo judicial simboliza o céu da justiça que se sobrepõe à insegurança,
à crueldade e à irracionalidade do mundo cotidiano. O processo por
controvérsia, o tribunal por combate, faz nascer outro mito, aquele que diz
que o Direito que surge através de uma polêmica tem mais possibilidade de
ser justo que as decisões obtidas por negociação amistosa. Arnold não crê
que do combate surja a luz ou que das argumentações das partes se deduza
a verdade.
No conceito do Direito a figura que prepondera é a do homem comum.
Assim a fonte do direito está no coração do homem comum cuja confiança
na perfeição do direito lhe empresta poder como instituição. O
desenvolvimento do direito acompanhará o que o homem comum continuar
pensando a respeito dele, de seus mitos, símbolos e cerimonial.
Para finalizar os estudo, Recaséns alude às teses de Yntema, Oliphant,
Moore, Cook e Felix Cohen.
Yntema considera que a ciência do direito deve partir de dois pressupostos:
1- que o efeito do direito sobre a conduta do homem é mensurável; 2- que,
para os propósitos de uma investigação com nível científico, não é
necessário considerar a conduta humana como algo que implique
essencialmente no exercício do livre arbítrio. Seu propósito é o de melhorar
a administração da Justiça e a elaboração do Direito. Caminha
axiológicamente portanto. Sustenta que os ideais de justiça não
relacionados com os ideais humanos não são verdadeiros ideais pois a
justiça não consiste em uma efervescência inefável de um vazio lógico mas
181
em uma espécie de transbordar de específicas relações humanas, de
particulares relações humanas e da vida.
Oliphant trabalhou sobremaneira para melhorar a administração da justiça e
fazer com que os advogados pudessem trabalhar melhor para seus clientes e
para o Direito em geral.
Underhill Moore tratou de dois tipos de problemas: 1- que correlação há
entre as decisões judiciais e as práticas institucionais relacionadas com os
fatos de tais decisões; 2- que relação há entre os símbolos jurídicos e a
obediência que os leigos em direito prestam a tais símbolos. Seu campo é o
da sociologia jurídica.
Walter Wheeler Cook pretende não ser confundido com os realistas, ainda
mais com os realistas que ele entende agressivos e iconoclastas. Reconhece
que no direito não se pode obter certeza igual a que se obtém na física
matemática. Sabe que o advogado, como o médico e o engenheiro, precisa
predizer acontecimentos futuros. Para tal pode se valer de decisões
pretéritas e de algumas generalizações. Mas não pode se esquecer que seu
caso é “novo” em relação aos outros. O mesmo se pode falar dos juizes
cuja tarefa não consiste tanto em achar as regras preexistentes mas em
perceber os sentidos destas regras e referi-las a todos os fatores que
integram o litígio. Posto que decidirá, deverá o juiz orientar-se em função
de considerações políticas sociais e econômicas. O juiz, portanto, deve
apreciar na maior medida as conseqüências que sua decisão trará. Para tal o
juiz necessita saber duas coisas: 1- quais são os efeitos sociais que deve
mirar? 2- de que maneira a decisão que vai proferir, qualquer que seja,
afetará aqueles efeitos? O juiz deve se ilustrar nas ciências sociais para tal
mister. Dizia que as leis humanas são instrumentos, utensílios, de que se
vale a sociedade como um dos métodos para regular a conduta humana e
para promover aqueles tipos de conduta que são desejáveis. No campo
jurídico temos que nos encontrar com uma ciência sócio-humanista.
Finalmente Felix Cohen. Trata-se de pensador original.
Começou com ácida crítica contra as teorias tradicionais que tratam os
conceitos jurídicos como entidades sobrenaturais e que não tem nenhuma
realidade salvo para os que professam sua fé nestas crenças. Para facilitar
seu caminho o direito aparece com independência da ética e das ciências
positivas (economia, psicologia, sociologia) e resulta daí que o direito se
isola e não pode ser confrontado por um princípio ético ou por um principio
empírico. Contra esta postura Cohen defende que o pensamento jurídico
deve levar em conta os fatos reais da conduta judicial. Deve empregar
métodos estatísticos para a descrição científica e para a previsão da conduta
judicial. Deve descobrir os meios ocultos das sentenças judiciais e ponderar
as forças sociais que se fazem representar nas cortes de justiça.
Indo além, o pensamento jurídico criador deverá ultrapassar os princípios
de justiça e razão tradicionalmente aceitos para estimar, em termos éticos,
182
os valores sociais que estão em jogo quando se está diante do problema de
eleger uma entre duas normas. O direito não requer obediência por ser
racional, justo, bom mas apenas por causa do poder que está por trás
dando-lhe suporte.
Cohen propõe um estudo preliminar do direito com independência do valor
justiça/injustiça. Mas aqui há um problema: o juiz tem seus valores e isto
deve ser estudado tanto quanto se estudam os fatos sociais. O jurista não
trabalha com ritos, com símbolos, com conceitos mas somente com
valorações humanas em conflito.
A função da ciência jurídica consiste em iluminar o significado real das
normas jurídicas mediante a verificação dos efeitos que elas produzem na
ordem social; a valoração destes efeitos não pertence à ciência jurídica,
pertence à ética.
Ao abordar os temas axiológicos – segurança, liberdade, justiça, paz etc –
Cohen considera que estes temas não se imbricam com o direito. Não
desconhece sua importância mas denuncia que cada sistema privilegia um
contra os outros e que isto é causa de problemas reais pois a maior parte
dos problemas sociais tem como móvel um conflito entre aqueles valores
ou fins o que nos força a buscar um denominador comum para tratar de tais
conflitos. Para o pensador esta pauta comum é o princípio da vida boa.
Tal princípio é muito formalista e abstrato. Remete sua solução à ética.
Sabe que o mundo filosófico enredou-se em explicar a realidade através de
uma teoria relativista ou subjetiva ou de uma teoria absolutista e que
nenhuma delas logrou explicar bem o que se passa. O resultado não satisfaz
de nenhuma maneira, mas Cohen adverte que a meditação filosófica nem
sempre alcança um resultado feliz.
Mostramos aqui o confronto entre a escola européia e o movimento
conhecido como realismo americano.
Uma aborda as questões mitificando-as e disfarçando os fatos como se
sucedem no mundo real, pretendendo gerar crença que esconda a incerteza
em que vive o mundo jurídico.
Outro expõe a incerteza como única realidade e denuncia a falha de
exposição da escola européia.
O primeiro movimento aliena a massa, o segundo passa-lhe angústia.
Há solução? Haveria esperança?
Está na lei e em sua cega obediência, a solução, como pretendem vários
pensadores?
*
7.3 – ainda o mito?
183
A lei, presumivelmente, deve ser conhecida pela sociedade, pelas partes e
pelo juiz, o que é um postulado de razão prática, para que haja certeza e
segurança no viver social. A lei (a norma) precisa ser interpretada segundo
critério que a torne clara, aceita e assumida pela sociedade. É como que
uma facilitação do tema: se difícil é exibir o que é Justiça, que se defina, ao
menos, na ação do homem, o que é jurídico e o que não é, o que é lícito ou
ilícito na ação humana. E que a isto se dê publicidade. Ou seja, que a
definição do que é jurídico e do que não é, após longos debates, seja
comunicada à sociedade.
Deste modo, a dinamicidade dos valores e, conseqüentemente, da Justiça
aliada à pretensa imobilidade social reclamada pela certeza e pela
segurança jurídicas, constituem uma mescla e um stop and go formidáveis
para a sobrevivência e evolução humanas.
A questão da obrigatoriedade da norma, ou seja, dos valores que estão
postos na norma, segundo propomos, confunde-se com a própria gênese
deles, com a própria gênese dos valores: se mais do que age, o homem
decide qual ação promoverá, ele o faz com base no sentimento que lhe
aponta dentre valores qual o mais apropriado (e prazeroso, mais confortável
e implicado com seu bem estar), o mais seguro, o que mais lhe permitirá
sobreviver e evoluir. Vem daí a importância magna da autoridade: são
princípios já testados, depurados e experimentados por pessoas com alto
grau de envolvimento com a sobrevivência e evolução dos que lhe são
pósteros e, portanto, passados para frente com amor, lealdade e boa
vontade por quem é altamente comprometido com a seqüência que virá na
cadeia da espécie; daí ser de bom alvitre obedecer. É prudente, para dizer o
mínimo.
*
7.4 – Certeza
Certeza (Abbagnano) tem dois significados fundamentais não excludentes:
1- segurança subjetiva da verdade de um conhecimento (certitude) e 2garantia que um conhecimento oferece da sua verdade (certainty).
“Chamamos de conhecer, diz Locke, o estar certo da verdade de uma
proposição (Ensaios, IV, 6, 3)”.
A segurança é a certeza de que tudo está conforme.
Certeza e segurança jurídicas têm a ver com o devido processo legal, no
sentido adjetivo e substantivo, merecido pelo cidadão. Pretende-se que um
pode acionar ou ser acionado dentro de regras conhecidas e através de
meios e recursos conhecidos. Pretende-se que um conflito será finalizado –
sempre haverá uma decisão - com acerto e dentro de regras conhecidas,
184
dentro de conceitos conhecidos, dentro de limites conhecidos, dentro das
posições dominantes e conhecidas e que os querelantes serão sempre
tratados com respeito e como iguais perante a lei.
Inversamente tem a ver com não ser necessário nem acionar nem ser
acionado porque o conhecimento do que é lícito faz com que homem
prudente planeje suas ações de modo a não incomodar nem ser
incomodado.
No mundo de hoje, certeza e segurança jurídicas, assim, e para os mais
experientes, parecem se inserir no mundo da quimera apesar de bibliotecas
inteiras tratarem do tema.
Aliás, para fugir da pecha é que, certeza, no sentido que lhe damos e como
dito atrás em outro capítulo, é para nós a convicção que se instala depois
que um assunto é discutido e dado como certo, como já deliberado, como já
discutido, como já decidido, é a proposição ‘verdadeira’ que surge no
instante em que se diz ‘então está certo!’.
E a previsibilidade relaciona-se com ver antecipadamente, com predizer,
com cálculo cujo resultado já se conhece. Prever é saltar para o futuro
progredindo para o passado. Se for a emoção, no sentido neurofisiológico,
que nos prepara para a ação é a previsão o estímulo.
É um dos “produtos” (o que se relacionaria na visão dos empresários
consultados com fazer, produzir, com know how, com técnica, portanto)
que, se espera, a Justiça deve entregar como vimos na Pesquisa do IPEA
retro mencionada, ou seja, em caso de ação judicial a sentença deve ser
naturalmente previsível.
Mais que a certeza e a segurança jurídicas – no sentido tradicional dos
termos - esta condição, a da previsibilidade, parece se inserir com mais
praticidade no mundo social e negocial moderno.
Confunde-se, aliás, com o nosso conceito de certeza que demos acima.
Mas nunca será sinônimo de verdade pétrea e, portanto, imutável.
Como diz Peter M. Hejl 207 : “sociedades e, portanto, cada um de nós,
necessitam, ao menos para seu funcionamento interno, de realidades
estabilizadas como referência presumível e previsível para procedimento e
comunicação. Somente a trivialização, isto é, o tornar-previsível, torna
comunicação e atuação coerente possíveis. Mas isto requer sobretudo
realidades socialmente estabilizadas – e então, novamente, possibilidades
de modificá-las. É necessário, portanto, estabilização e desestabilização,
esta até mesmo na forma aparentemente paradoxal da desestabilização
estabilizada ”.
Esta atitude sempre em devir, instrumentária de eleições, até as partidárias,
de seminários, de estudos, de diálogos, por exemplo, em inúmeros níveis
internos de uma nação, potencializa a máxima famosa de Heinz von
207
(O olhar do Observador – Paul Watzlawick e Peter Krieg – Editorial Psy II – 1995):
185
Foerster: “aja sempre de modo a aumentar o número de possibilidades de
opção”, o que é um imperativo ético.
Nietzsche 208 já dizia: Uma vez que se tenha encontrado a si mesmo, é
preciso saber, de tempo em tempo, perder-se e depois se reencontrar:
pressuposto que se seja um pensador...Daquilo que sabes conhecer e medir,
é preciso que te despeças, pelo menos por um tempo. Somente depois de
teres deixado a cidade verás a que altura suas torres se elevam acima das
casas.
E quanto à cristalização das idéias, quanto ao imobilismo a que se chega
depois que se pensa ter atingido a Verdade Absoluta dizia Nietzsche: As
convicções são inimigas mais perigosas da verdade que as mentiras209. Ou
seja, as verdades têm que ser revistas a todo tempo. Há que se praticar a
Política da Insegurança.
Mas enquanto não se mudar de verdade axiológica (e nunca se muda de
repente!), quão confortável será conviver com o que está estabelecido sem
inovações inesperadas a perturbar o cenário tão conhecido.
Falando do cenário penal dizia Beccaria210 “com leis penais executadas à
letra, cada cidadão pode calcular exatamente os inconvenientes de uma
ação reprovável; e isso é útil, porque tal conhecimento poderá desviá-lo do
crime. Gozará com segurança de sua liberdade e dos seus bens; e isso é
justo, porque é esse o fim da reunião dos homens em sociedade. É verdade,
também, que os cidadãos adquirirão assim um certo espírito de
independência e serão menos escravos dos que ousaram dar o nome
sagrado de virtude à cobardia, às fraquezas e às complacências cegas;
estarão, porém, menos submetidos às leis e à autoridade dos magistrados”.
Tal cenário controla a expectativa, dita comportamento e é fundamental
para as pessoas saberem como agir, como reagir e como se programar. O
mundo negocial, principalmente, não funciona sem essa condição. Como
em sã consciência programar um investimento, por exemplo, cuja
maturação, realização e desenvolvimento pode retornar em 15 anos? E no
campo estritamente pessoal: Como gerar filhos?
A norma, em principio, fará o serviço de influir na previsibilidade.
Compete a ela proibir, permitir e obrigar de modo que a sociedade possa se
organizar. Está, portanto, no sonho de feitura de boas normas, sábias,
estáveis, longevas, o primeiro requisito para que se alcance a
previsibilidade. E imensa a importância do sentimento na feitura destas
normas, como vimos. E está na decidibilidade (sentenças) o segundo
requisito para que o ordenamento social se torne previsível e disciplinado.
A sentença do tribunal também é norma.
208
(1978 pág 150)
209
210
(aforismo 483 de Humano, demasiado Humano, citado por Scarlett, 2000, pág 184).
(pág 38
186
É enorme neste campo a influência do sentimento e, portanto, cabe a
pergunta: como aproveitar as boas qualidades do sentimento e descartar as
más?
As boas normas têm que ser interpretadas pelo tribunal. Como fazê-lo sem
interferência de fatores internos que dos externos (interesse, poder...) estão
tão conscientes os juízes e juízas? Alguns comentadores pensam que não se
deve estudar a interpretação (o que), mas a pessoa (quem) de quem
interpretou que lá estará – na pessoa - a verdadeira motivação. E isto ocorre
mesmo. Como fugir da questão ‘quem interpretou’? Ou em outros termos,
como tornar a interpretação conforme o momento e propiciar a pacificação
dos juizes em torno de temas que incomodem a sociedade 211.
Primeiro com Paidéia no sentido que demos no capítulo 2.2.
Depois com boa escola que ensine como decidir e que ensine o que é
decidir; depois com interdisciplinaridade que o que decide tem que ter
noções de sociologia, psicologia, história, filosofia, literatura, semiótica e
linguística, economia e administração de negócios para ser, no mínimo,
informado dos efeitos econômicos e sociais de suas decisões; depois com o
estabelecimento de vasos comunicantes, antes com a sociedade, a seguir
com o próprio corpo decididor porque no seu final, depois de muitos
recursos, a questão será sempre decidida pela visão dominante na última
instância em que cair o processo, o que acarreta imensa insegurança à parte
que clama por justiça e galga degraus até que chegue o resultado que está
dentro do entendimento conhecido e publicado pela maior corte que vai
‘decidir’ mesmo a causa: enorme o desprezo às instâncias inferiores,
portanto, e imensa irritação pelo tempo decorrido e perdido.
Mais, o corpo judiciário tem que ser controlado por metas de produção e
objetivos, por efetividade, por meios e fins técnico-administrativos,
portanto (em que haja clara distinção entre a Direção do Cartório e a
Administração da Justiça em um processo) e seus integrantes devem
receber apoio psicológico para amenizar as agruras de uma posição tão
solitária, angustiante e estafante (mesmo se a decisão for somente técnica a
posição, ainda assim permanece solitária e angustiante). Mais além ainda,
as decisões têm que ser premiadas pelo mérito (cultas, sábias, conforme o
ordenamento jurídico e pensante vigente, criativas, inovadoras etc) e
punidas pelo desmérito (sentenças que proferidas não visam senão escrever
a biografia do juiz; sentenças totalmente reformadas em grau de recurso; as
que forem contra legem, por exemplo, por mais criativas que forem as
motivações elencadas para tal decisão, como serem inconstitucionais as leis
em questão quando evidentemente não o forem, etc.) com penalidades aos
211
(e isso é mais importante ainda, e muito fácil de realizar, se atentarmos, como já dissemos antes, ao
dito de um Juiz do STF que as teses em julgamento naquela Corte não são mais que 100 espalhadas em
2002 pelos 171.980 processos julgados naquele ano).
187
desgarrados e empedernidos e aos que fazem da magistratura um meio de
praticar política partidária, por exemplo.
E, finalmente, pela especialização 212 que não é possível um juiz ou uma
juíza terem tantos processos versando sobre assuntos tão diferentes: a
experiência, muito mais que a técnica, fará o bom julgador.
Sem estes requisitos a pretendida velocidade decisória se alcançada não
propiciará boas decisões213 e as reclamações continuarão.
Como evitar as queixas? Como, no nosso jargão, customizar 214 as decisões
caso a caso a partir de pontos de vista diferentes?
É a sociedade que precisa fixar-se em pontos de concórdia que serão
pinçados dentre vários possíveis e preservá-los enquanto forem valentes.
É Tércio 215 que nos diz que “uma teoria dogmática geral da decisão não
chegou a receber, na tradição, nenhuma forma de acabamento”.
Problema? Em parte sim, mas uma indicação do por que as decisões, pelo
menos no Brasil, serem tão contestadas. Falta, se não reflexão, acabamento.
Segundo o Autor a decisão tem como finalidade última absorver a
insegurança, ou seja, transformar incompatibilidades indecidíveis em
alternativas decidíveis, ainda que, num momento subseqüente, venha a
gerar novas situações de incompatibilidade eventualmente até mais
complexas que as anteriores. Retira-se assim a idéia de harmonia ou
consenso como se a decisão pudesse eliminar o conflito e trazer a paz.
Decisões absorvem insegurança não por eliminarem o conflito, mas por o
transformarem. E revestem-se de Poder para não serem contestadas, para
serem acatadas e cumpridas. Sentença não se discute: cumpre-se! diz o
jargão brasileiro.
Aí o busílis: como contentar as partes e fazer justiça, ou seja, mostrar às
partes que a sobrevivência de uma – ou de ambas - foi ou não foi
ameaçada. Se tal situação num corpo ou num organismo, por exemplo, for
tolerada pode surgir um câncer, ou uma enorme infecção, por exemplo.
Alguém terá que se curvar para que se salve o corpo, Bem maior. O atual
sistema jurídico faz proliferar os cânceres e infecções sem parecer se
preocupar com isso a não ser aumentar o próprio Poder para manter e
consolidar tal panorama.
Aceitando que num conflito temos o sinal inequívoco de que a
comunicação entre as partes foi interrompida, como restabelecer esta
comunicação ou, pelo menos, como fazer com que as partes se entendam e
volte a vigorar entre elas uma comunicação normal? Como acordá-las neste
212
(quantos juízes tem cada modalidade esportiva? Tênis, vôlei, futebol, etc têm seus especialistas em
campo, freqüentemente mais de um, às vezes auxiliados por especialistas em um aspecto da quadra ou da
partida, e não se vê um juiz de uma modalidade sendo juiz de outra!)
213
(parte-se hoje no Brasil do princípio que se bem aparelhados para decidir com rapidez nosso corpo
judiciário naturalmente proferirá boas decisões com o que não concordamos)
214
(no caso da sentença, ampliando para as partes o sentido do inglês customize que significa ajustar a
casos específicos, fazer de acordo com especificações individuais, atender a reclamos bem específicos)
215
(2001 pág 306)
188
processo e encaminhar a voz a cada uma para que se restabeleça o canal de
comunicação como se elas se comunicassem deste modo e não do modo
original causador de confusão e oposição? Como adicionar bom senso e
prudências às partes que se desavieram?
Certamente o atual sistema não é de grande colaboração quando lembra a
atuação do velho mestre-escola ou do bedel que sem ouvir os adolescentes
que brigaram nem analisar a briga ela mesma já os punia clamando pela
ordem, a boa ordem! Assim parecem fazer muitos juizes que não ouvem as
partes, não se enfronham na desavença, mas “sabem” muito bem qual a
verdadeira sentença que conduzirá o caso a seus verdadeiros contornos. É a
perpetuação da falta de comunicação: primeiro entre as partes, depois entre
elas e seu magistrado.
Conflitos sociais ocorrem porque emissores e receptores – reciprocamente
considerados – interrompem sua comunicação. A decisão jurídica vem dar
um fim a esta situação, ou seja, ao contrário dos conflitos sociais, políticos,
religiosos, étnicos, etc., os conflitos jurídicos terminam, isto é, não
continuam.
Continua Tércio a nos dizer que a situação não sai de controle: o conflito é
paralisado por decisão. Controle nesta acepção (Comparato) tem dois
sentidos. Um forte, de dominação. Um fraco, de disciplina ou regulação.
Entra aí o poder, o poder-dominação. Esta brutalidade que nos remete aos
primórdios do Direito (poder força) vexa o jurista que prefere abordar o
tema sob a ótica do poder jurídico, eufemismo que pretende passar o
significado de que o arbítrio está castrado e esvaziado da brutalidade e da
força, pois se conforma à obediência da lei.
Assim, 216 “o problema dogmático do controle na correlação entre conflito e
decisão nos aponta para dois aspectos distintos mas relacionados: o interno,
como teoria dogmática da aplicação do direito, que encara a decisão
jurídica como controle com base nos próprios instrumentos que o sistema
normativo oferece (controle-disciplina) e o externo, como teoria dogmática
da argumentação jurídica, que se refere a instrumentos que a retórica
jurídica traz para o sistema (controle-dominação)”.
Tradicionalmente a doutrina costuma entender que o aspecto interno se
resolve numa construção silogística premissa maior, premissa menor,
conclusão, tema que já foi abordado por nós. Pessoas há, entretanto, tema
no qual já tocamos também, que sugerem que primeiro o julgador tem a
decisão e depois, só depois, é que vai procurar regressivamente as
premissas anteriores de modo a formar um silogismo perfeito.
Terminando o assunto há que se distinguir a discussão jurídica que está no
conflito entre ‘de direito’, ‘de fato’ e ‘de direito e de fato’.
A prova e a retórica surgem assim com caráter privilegiado. E a análise do
fato e a verificação de como ele “cai” sob a norma passa a ter uma
216
(2001 pág 310)
189
importância extraordinária, aliás, muito pouco comentada, pois as pessoas
entendem que tipificar um fato e enquadrá-lo na lei é atividade
exageradamente fácil sem se atentarem para a importância de que se
reveste tal decisão e o perigo que representa tomá-la mal.
Posta a questão, parece que o processo decisório tem um método e que,
embora possa findar-se como demonstração de poder, porque deixa motivo,
afinal, para reclamação das partes? Do que reclamam as partes? Não há
possibilidade de argumentação? De contradição? Não há análise das
provas? Das leis que tutelam a matéria? Já não houve a demonstração
dogmática de que diante do impasse há, forçosamente, inclusive no
interesse social, que surgir uma decisão que extinga o processo, que
termine o conflito, que, pelo menos, transforme a questão, paralisando-a e
encerrando-a sem volta? E o caso não é examinado por um magistrado que
reúne em si toda uma carga arquetípica própria de quem ocupa tal função?
Porque as partes, em geral, saem insatisfeitas do processo? E o processo
afinal deve ser terminado manu militari por um juiz ou uma juíza ou deve
satisfazer o reclamo de Justiça das Partes?
Em sendo a decisão um ato de comunicação, como ação de alguém para
alguém, não se considera que a decisão jurídica vem plena de discurso
racional? Que se não obtém consenso, pelo menos, se valeu das regras que
visam obter consenso? E que embora não necessariamente conquiste a
adesão das partes, ou de uma delas, pode ser compreendida e entendida por
quem estiver de fora que verificará muito rapidamente as condições de
racionalidade em que o processo naturalmente transcorreu?
Mas, infelizmente, não é assim que acontece no mundo real!
Por quê?
Há uma pista muito interessante no julgamento de Sócrates.
Este famosíssimo julgamento que comoveu os mais endurecidos corações
tem provocado a atenção e a súbita admiração das pessoas que se envolvem
com ele. Porque Sócrates foi condenado? Como a cidade matou seu filho
mais ilustre, inocente das acusações acima de tudo?
Um dos (não o único) aspectos está no processo judicial à época de Péricles
e em suas regras.
Não era bem judicial como o vemos hoje: o Arconte-rei, supremo
magistrado da administração da justiça, tinha à sua direita os acusadores,
sempre atenienses, à sua esquerda o acusado e à sua frente a platéia que
uivava, torcia, urrava, manifestava predileção por um lado ou por outro (e
claro que cada parte levava sua própria torcida para apoiar sua fala, além de
filhos, mulher, parentes, velhos e doentes, amigos etc. para comover os
juizes) e que depois, ao final, festejava ruidosamente a vitória do ganhador
como se fosse o fim de um torneio esportivo. Os eliastas, os que fazem
parte da Elieia, ou dicastas, juizes populares, os julgadores, todos cidadãos
atenienses, tinham uma tribuna especial que lhes era designada e eram
190
aceitos desde que, maiores de trinta anos, jurassem observar as leis e ouvir
imparcialmente os acusados.
Era muito requisitado este ofício de eliasta. Eram 6.000 cidadãos neste
papel, subdivididos em seções de 501 membros cada uma; cada seção tinha
uma causa distribuída por sorteio bem como por sorteio era montada cada
seção de tal forma que o juiz popular era informado somente no ultimo
momento qual causa era sua responsabilidade julgar. Estes artifícios
visavam evitar corrupção e constam bem definidos na Constituição de
Atenas comentada por Aristóteles. Cada causa podia durar só um dia: o
processo tinha início de manhã bem cedo, mais ou menos entre 7 e 8 horas
e devia concluir-se com a sentença antes do por do sol (ações que podiam
resultar em condenação à morte em Esparta obrigatoriamente deviam durar
dias e dias para que a decisão final, irrecorrível, fosse fruto de longa
meditação; mas isto não ocorria em Atenas); esta norma impedia delongas
e tortuosos meandros judiciais, mas, se rápida, impedia uma decisão mais
madura. Isto explica o caráter eminentemente “emotivo” dos processos
atenienses: era menos importante demonstrar objetivamente os fatos e sua
prova pois não havia tempo nem modo; era mais importante demonstrar
subjetivamente a culpa ou a inocência e era necessário convencer os juizes
pela piedade, pela simpatia, pela comoção, pelo desdém. A eloqüência era
cultivada e era uma mania nacional, como era, também, uma mania
nacional abrir processo contra alguém. Era assunto que provocava o maior
espanto e admiração a pessoa dizer em roda social ‘abri mais de 70
processos nos últimos Quatro anos’. Como normalmente o processo se
resolvia em multa, e não eram baratas, era prova de prestígio e riqueza ter
tantos processos, não importando se ganhos ou perdidos, importava o seu
número; pagava a multa ou o acusado, o réu, ou o acusador que não tivesse
logrado obter pelo menos um quinto dos votos favoráveis à sua tese.
Como de praxe era lida a acusação e vinha falar o acusador em pessoa. No
caso de Sócrates, e corria o ano de 399 antes de Cristo (maio), a acusação
era de impiedade (asèbeia) ou corrupção de jovens. Não era comum tal
acusação naqueles dias visto que as antigas tradições estavam afastadas; tal
tema era meio deslocado dado que os assuntos religiosos e morais dos
cidadãos estavam sendo discutidos em outras esferas.
Mas, enfim, a acusação, embora estranha, fora feita e recebida.
Para que a verdade viesse a tona mais rapidamente, bem como ficasse
evidenciada a sinceridade de quem acusava e de quem defendia, o discurso
era feito pelo interessado em pessoa. Como nem todos eram hábeis nesta
arte, tais discursos eram encomendados e pagos para os ‘advogados’ de
então, os logógrafos ou escritores de discursos. Com isso evitava-se que a
pessoa fosse condenada por ignorância e não por culpa. Na época cada um
tinha seu estilo: um privilegiava mais a emoção; outro a sutileza lógica da
argumentação; outro ainda investia contra as provas de acusação e surgia
191
triunfante a palrar sobre as suas próprias provas; vias mais complicadas ,
vias mais simples, tudo era motivo de festa e de eloqüência. Era um torneio
e o povo sabia reconhecer que logógrafo tinha escrito qual peça que os
estilos eram inconfundíveis, mas também cada autor passava a informação
que tinha escrito este ou aquele discurso o que já assanhava a sua própria
claque. Os discursos não podiam ser lidos e eram recitados de cor por
aquele que emprestava a boca e a memória à fala que precisava parecer de
improviso.
O réu era sempre informado do texto de acusação no dia anterior para que
pudesse se preparar e decorar o seu discurso de defesa.
Primeiro falou o jovem e insignificante poeta Meleto, o autor da acusação.
Depois suas duas testemunhas. Depois os que apoiavam a acusação, Licão,
um orador inexpressivo e Anito.
Anito era quem contava: em 403 ele e Trasíbulo tinham regressado a
Atenas para expulsar os Trinta Tiranos e tentar refazer a antiga democracia
e as velhas virtudes.
Falaram Licão e Anito e a eles segue-se Sócrates.
Sócrates não se submeteu ao costume. Não levou discurso feito, estudado e
memorizado e falou mesmo de improviso.
Não cabe aqui discutir os motivos políticos do processo. Mas cabe dizer
que Sócrates não se curvou à tradição: contanto que se livrasse das
dificuldades de um processo o réu chorava, trincava os dentes, implorava,
fazia rir e clamava por misericórdia. Sócrates não o fez.
O espírito do Tribunal não era aquele. E esse espírito não era novo nem se
inaugurou com Sócrates. Ao contrário era antiqüíssimo: Sócrates proclamao com clareza quando lembra aos juizes que eles devem julgar com justiça
e não se deixar levar por futilidades e astúcias que encobrem e escondem a
real finalidade de seu ofício, bem como o réu, ou o bom orador, deve
preocupar-se apenas com a verdade e com mais nada. Não seria através
dele, Sócrates, que a cidade se regozijaria com o uso de artifícios para
ganhar o processo: importava a verdade. Só a verdade.
Sócrates levanta o mesmo dilema que tanto incomodou Goffredo 2400 anos
depois e a que já nos referimos: Justiça ou Vitória?
Nesse ponto um dos seus desacordos com os Sofistas. Estes, os sabedores,
vendiam seu saber, fixavam-se nos problemas prático-sociais do homem,
abjuravam o padrão obscuro e metafísico de alguns filósofos e
demonstravam eficiência. Buscavam, antes de tudo, a arte de falar bem:
inventaram a retórica; depois a arte de refutar as teses dos outros e de fazer
prevalecer as próprias (erística), estudavam a lógica com a finalidade de
convencer, ciência que tem neles sua origem, aprofundam a gramática, a
sintaxe, a sinonímia, tudo da maior utilidade para um povo que precisava
da palavra como nenhum outro.
192
Já falamos deles em outro capítulo. Vale referir que eles sabiam que nada é
verdadeiro ou falso em absoluto pois que tudo depende da opinião humana
e que são os nossos sentimentos que definem o verdadeiro axiológico e o
distinguem do falso.
Assim diante do dilema Justiça ou Vitória, sendo Vitória a opção escolhida,
vale qualquer engendramento para alcançá-la: artifícios, teatralizações,
forte oratória, encobrimento da verdade. Há que mover os sentimentos.
Sócrates não: propunha outro método. A todos repetia que não basta
possuir o saber técnico, o saber fazer, mas é necessário conhecer as razões,
as verdadeiras razões pelas quais se fazem as coisas. Estas razões
verdadeiras poucos as conhecem mas ninguém adverte que não as conhece.
Exemplifica-se com o político profissional, o que aceita os homens como
eles são, com suas fraquezas e contradições, com seus vícios e virtudes,
sobre os quais ele edifica sua obra e sua pequena realidade histórica
determinada; aquele que age ao sabor do momento, do instante e apela para
mentira, hipocrisia, elogio, bajulação, o que for necessário, para quem os
meios justificam os fins, faz tudo para conseguir seu objetivo; tal ser difere
do filosofo político, o que quer transformar os homens e, indiferente às
realizações imediatas e formais, tem como instrumento a razão, o
sentimento, a boa fé, a verdade a todo custo.
Sempre, no instante, prevalece o político profissional sobre o filosofo
político e intenso o seu debate, típico de pessoas que não se suportam e tem
tempos diferentes: o de um é o presente, o do outro é o futuro.
O político sabe fazer política, sabe como se faz, mas não sabe
verdadeiramente o que é política e nunca se perguntou. O político
profissional com suas vitórias, com sua astúcia em conseguir votos, em
retirar apoio da massa, prossegue com seus expedientes e não pratica a
verdadeira política (a arte da politeia) a arte de fazer e promover o bem de
todos segundo uma unidade de formas humanas, justas e sábias.
O mesmo se pode dizer dos juizes: os juizes administram a justiça e é
lamentável que eles se contentem com as aparências, com os discursos
fáceis, com a encenação, com discursos hábeis e preparados, astutos e
coloridos, em suma, com a técnica judicial. Estes juizes mostram ter
esquecido o que é a justiça e que desvirtuaram o sentido da sua função.
Não são homens que julgam conforme a justiça, são profissionais, são
máscaras profissionais tão ridículas e vazias como as máscaras de comédia
porque o homem que devia enchê-las desapareceu. No extremo limite
poderemos ter um bom juiz no sentido técnico profissional da palavra que
não seja em si mesmo, na sua vida, um homem justo. Mas que importa? O
juiz não precisa ser um homem justo, basta que saiba administrar bem a
justiça, conhecendo-lhe minuciosamente as regras, os meandros, as firulas,
o que é uma coisa totalmente diferente. Mas que significa isso senão o
193
divórcio entre justo e justiça e que ao exercer esta última o juiz não sabe o
que faz, julga saber, e afinal ignora?
Só um louco da genialidade de Sócrates para se defender assim e julgar ele
os juizes e o tribunal da época e correr riscos. Era sua maneira de expor-se
e repetir sua característica tese, quase a única: interrogar a todos para saber
se tinham consciência de seus atos, se sabiam o que faziam, se sabiam que
sabiam ou se sabiam que não sabiam.
Após o pasmo que se seguiu, Sócrates, exercendo seu direito de réu, chama
Meleto para debater com ele a acusação.
Meleto é demolido, claro. Mas nem essa posição vai mais favorecer a
Sócrates. O fato é que ele não pensa em se defender, não quer se defender
de um ponto de vista estritamente jurídico; quer provar quem é e quanto
vale. Só.
Sócrates termina sua fala e judiciosamente evita entrar em temas que
poderiam salvá-lo, mas que se nomeados comoveriam os juizes: suas lutas
políticas, sua luta em guerras, os atenienses que salvou em guerra, seus
inúmeros e importantes amigos que, se chamados, poderiam testemunhar
por ele, sua coerência política ao passar dos anos, sua não sujeição aos
tiranos etc
Termina dizendo que todos se esqueceram do sentido do que fazem e que é
verdadeiramente ridículo acusá-lo de corromper o próximo quando os
costumes estão todos corrompidos eles mesmos e são tão superficiais. Ao
contrário é ele, Sócrates, que continua a ensinar aos seus conterrâneos e
salvar os poucos que podem ser salvos.
Depois da fala os dicastas vão em fila votar: bola branca é absolvição, bola
preta é condenação. Demora a votação; o público sai, vai tomar vinho,
esticar as pernas, tagarelar.
Depois de cuidadosa apuração o resultado: para culpado 281 votos, para
inocente 220 votos. Quase tinha se inocentado.
Sócrates que se recusara a acompanhar e fiscalizar a votação recebe o
resultado com calma.
Segundo a lei ateniense depois de ser considerado culpado o réu podia se
atribuir uma pena; os juizes não podiam escolher uma terceira: ficavam
entre a pena pedida pelo acusador e a pena que o réu tinha se atribuído.
Sócrates tinha que falar. Ele não se atribui uma pena, ele pede um prêmio,
aliás, o mais alto que se podia receber à época. Podia ter pedido o exílio
que era o que queriam seus opositores: mas não. Pede um prêmio. Os juizes
saem para votar.
Sócrates é condenado à morte por 361 contra 140: o tribunal tinha se
sentido ofendido em sua dignidade, não tinha compreendido a fina ironia
de Sócrates nem compreendido seu sentido. 80 juizes tinham mudado de
lado. Estava acabado.
194
Esta história que realmente aconteceu comove as pessoas até hoje. Também
pudera.
Que pista nos dá este acontecimento verídico?
Temos aqui, inicialmente, a separação da técnica no sentido moderno
(poíesis ou produção no sentido antigo) da arte ou techné (ars como Cícero
também chamava o direito). O meio de produção exige a técnica, um
processo, o saber fazer; quando este se descola da arte e da ciência, quando
a forma supera o conteúdo, a aparência rege o sentido, quando o ser não
vale porque parecer e aparecer é que vale, surge um sentimento de enorme
frustração, tudo deixa de ter sentido: é o que se sente hoje em relação à
Justiça. Para dizer mais, os integrantes do aparato judicial sentem que não
estão suprindo as necessidades da função e se escondem atrás de pretensos
pruridos de autoridade, respeito e dignidade que meramente ocultam seu
senso deficiente. O rosto cheio de zanga, de severidade não satisfaz mais a
população. Demonstra o que está por trás. Não se pensa no sentimento do
justo e na justiça.
Fiquemos por enquanto com estes comentários sobre a técnica e
superficialidade dos juizes.
Mas algo aparece imediatamente e incomoda: é o problema da Verdade.
Imbricam-se Justiça e Verdade?
*
7.5 – verdade
Justiça e Verdade não caminham necessariamente juntas, lembremo-nos do
julgamento de Sócrates, apesar de seu pungente protesto, quando a questão
foi posta e do lema Justice before truth, antes abordado.
A verdade (Reale) tem três sentidos: o lógico-formal – o ser ideal estudado
pelos lógicos e pelos matemáticos-, o empírico – o ser real sobre o qual se
debruçam os cientistas experienciais -, e o existencial – o dever ser das
ciências humanas, o mundo dos valores. Os dois primeiros são verificáveis
racionalmente e o último não é.
Entendemos Verdade, para os efeitos deste trabalho, como a adequação da
proposição ao fato a que se refere.
Em um processo a proposição que relata um fato pode ser verdadeira, mas
ser tratada como falsa, pode ser falsa, mas tratada como verdadeira, pode
ser falsa e tratada como falsa e pode ser verdadeira e ser tratada como
verdadeira e a conclusão judicial pode ser descolada da proposição que
relata o fato qualquer seja sua condição de verdadeira/falsa.
Quando a sentença trata a proposição falsa que relata um fato e lhe dá
atributo de verdadeira (alguém ser condenado por adultério quando nunca
esteve em outra casa e cama que não a sua própria e sempre com sua
195
legítima mulher) está criada uma comoção. Há um evidente mau uso da
prerrogativa judicial.
Tércio 217 coloca que um abuso nas condições de uso se revela no
cometimento normativo (relação de autoridade) quando ocorre uma
perversão do ato de falar. Se o enunciado normativo anula o sujeito,
destruindo o sentido unificador de seu próprio existir, dir-se-á que houve
um abuso das condições de exercício potestativo de autoridade; este ato
será defeituoso (na divisão de Tércio entre ato defeituoso e malogrado)
embora não seja malogrado (a norma injusta é válida) e a percepção da sua
defeituosidade está na realização do ato de falar (sua eficácia) que denuncia
a carência de poder do emissor pela carência de sentido existencial do
sujeito-destinatário. Exemplificando, Tércio relata que uma condenação de
alguém por sonegação quando sonegação não houve, não é injusta porque a
sonegação não foi demonstrada mas porque a eficácia da condenação põe a
descoberto a insuportabilidade existencial da situação do condenado como
sujeito; o que a declaração da injustiça assevera não é a falta de
demonstração da culpa, mas a refutação da própria autoridade por uma
revogação: embora válida, a relação autoridade/sujeito será desconhecida.
É a insuportabilidade do desprezo de que é alvo o sujeito como cidadão,
caso em que a injustiça se dá por total falta de cuidado com o outro; o outro
não conta, não faz diferença: é indiferente. A autoridade não levando em
conta o outro pratica a injustiça. E isto se dá independentemente de ser o
fato verdadeiro ou falso.
Nos nossos termos há, por parte do magistrado, um sentimento de
indiferença (ou de rejeição ou de aversão, de afastamento do outro) que
contrasta imediatamente a dignidade do outro.
Há como evitar ou como minimizar esta injustiça?
Há comparando ações idênticas ou obrigando o magistrado a emitir uma
nova decisão em caso novo vinculando seu nome ao que foi decidido.
*
7.6 – stare decisis
A verdade de uma proposição que foi aceita e está consubstanciada numa
súmula sábia e que possa orientar outras decisões em casos semelhantes
será sonho? Há como se aproveitar da experiência prévia dos outros que
bem sentenciaram?
Como será que este problema foi resolvido em outros países?
Ou em outras palavras como será que o problema da falta de coerência no
judiciário, ou, de como editar sentenças semelhantes para casos
217
(2002 pág 268)
196
semelhantes e que não deixem de satisfazer as partes envolvidas e a
sociedade tem sido tratado no mundo? Como combinar estabilidade e
dinâmica?
A busca da jurisprudência mansa e pacífica, enquanto perdurarem os
motivos que levam àquela tomada de posição é comum no mundo todo.
Mas há uma regra que sobressai.
Fiquemos com ela, com a regra do stare decisis e vamos estudá-la.
Cabem observações anteriores, entretanto: primeiro lembrar a frase de um
magistrado aposentado que nos disse que no nosso país a sentença de
primeira instância, estágio inútil do processo, era tão inócua que deveria ser
decidida pela sorte e num átimo para não atrapalhar as partes e fazer a
causa andar mais rapidamente; segundo218 que no Brasil a súmula
vinculante já existe na prática se pensarmos que um processo findar-se-á
somente na última instância a que lhe conduzir o recurso cabível e que será
nesta instância, e de acordo com a posição adrede conhecida e publicada,
que será mesmo e sem mais recurso, decidido o processo, ou seja, os juizes
de instâncias inferiores não estão adstritos à forma de pensar das instâncias
superiores mas o processo está; terceiro que a posição dominante deve
conduzir o trabalho dos juizes mas também o dos advogados e demais
intervenientes no processo, promotores, procuradores, etc. o que não
acontece no nosso atual estágio; quarto que se engana muito quem pensa
que a súmula vinculante, ou o princípio do stare decisis, retira a liberdade
dos juizes de instâncias inferiores, pelo contrário até pois estimula a
criatividade; quinto que este sistema não será de fácil implantação no
Brasil porque as faculdades de ensino adotam o método expositivo que é
incompatível com o princípio e sexto que se o sistema fosse transparente e
desse publicidade às sentenças a moda brasileira de praticar Justiça Social
no caso particular seria atenuada ou impedida pelo uso do sistema.
Antes de adentrar a apresentação da regra, entretanto, temos que tangenciar
o assunto lembrando as críticas que o Realismo Americano apresentou ao
sistema judiciário da common law.
Os comentários que faremos a seguir para explicar o princípio da stare
decisis apresentarão o tema dentro do seu contorno crítico, porém ideal.
Fica aqui, entretanto, o nosso registro de que se a nós (e aos realistas) tanto
interessa o que os juizes realmente fazem, motivou-nos sempre neste
trabalho apresentar nossa tese de como fazem e sugerir que o verdadeiro
esforço argumentativo do advogado deve se preocupar com o Sentimento
que leva o juiz ou a juíza à sua conclusão final; é o Sentimento que deve
ser atacado e não a conclusão final, pois esta já está adrede escrita.
Normalmente não aparece – ou não transparece – o Sentimento. É a
conclusão final que é a ponta visível do processo, mas não o Sentimento
218
(mas afinal o artigo 557 do CPCb que teve sua atual redação determinada pela lei 9756/1998 vale ou
não vale? Por enquanto parece ser uma “lei que não pegou”)
197
que a moveu. O excerto, o extrato da sentença apresentará a conclusão e
esta é que aparece, ou seja, a conclusão final é conhecida, mas nem sempre
são conhecidos os verdadeiros motivos que a ela levaram. Se a conclusão
de um processo induz um advogado a pensar que em outro caso parecido o
juiz vai julgar da mesma maneira que julgou o caso anterior ele pode estar
muito enganado (afinal a Justiça Social é aplicada caso a caso!) e por
desconhecer os reais motivos do juiz ou da juíza ele pode soçobrar em caso
semelhante. Aliás, a regra do stare decisis, como se aduzirá, quando
apresenta a questão da ratio decidendi, visa exatamente isto: dar a razão da
decisão mais que apresentar a decisão ela mesma; o ponto está que, como
dizem os realistas americanos, nem sempre os motivos estão às claras e
muitas vezes os verdadeiros motivos estão disfarçados.
Isto posto vamos ao tema:
A regra do precedente no Direito Inglês não é exatamente a mesma que a
do Direito Norte-americano.
Vamos falar primeiro da regra inglesa.
Depois da conquista normanda os juizes ingleses estavam na sua própria
dependência para exercer sua atividade judicante. Os problemas práticos
eram examinados de per si e não havia nem uma legislação edificada nem
um vade mecum possível. Os costumes locais, e variavam de região para
região, disputavam entre si a primazia e não havia uma norma sob a qual o
caso concreto caísse. Já demos atrás uma pincelada histórica nessa fase e
fica, pois, fácil ver que há diferenças entre o case-law e o direito
continental de que o brasileiro é um dos ramos. Os juristas ingleses não
tinham a ampla influência do Direito Romano e, assim, careciam de um
bloco uno de situações codificadas (como a do Corpus Júris Civilis) o que
os obrigou a desbravar o caminho e criar a cada passo as regras que
solucionariam os conflitos e prescreveriam as condutas aceitáveis. Surgiu
deste modo a regra do precedente no Direito Inglês e sua função
estabilizadora como parâmetro para o agir do Judiciário.
Foram séculos de bem agir até que se consolidasse a regra cujos conceitos
evoluem sem parar até hoje, não tendo atingido – e nem atingirá – forma
definitiva.
Diz Ferreira da Silva que três foram as etapas: a- entre 1283 e 1535 valiam
as anotações – em francês – feitas por advogados e estudantes que
assistiam aos julgamentos; b- depois vieram os repertórios privados
elaborados por juizes para seu próprio uso, entre meados do século XVI a
meados do século XIX e c- a partir de 1865 com a criação do General
Council of Law Reporting até os dias de hoje com a compilação das
decisões em repertórios oficiais além do repertório constante das
publicações particulares o que amplia o alcance e a confiabilidade das
citações.
198
Hoje em dia muito importante é conhecer a estrutura da regra (1- razões
contidas no julgamento; 2- afirmações incidentais e próprias do julgador; 3seu elemento vinculante) e, compreendida sua força vinculante, ir buscar as
exceções à regra.
Não se pode dizer que toda e qualquer decisão vincule, ou seja, que
apresente elementos configuradores das próximas decisões que abordarem
casos semelhantes, nem que todas as partes de uma decisão devam ser tidas
como vinculantes obrigatoriamente.
Na época da ‘declaratory theory’, que tem sua importância bastante
relativizada nos dias de hoje, dizia-se que, como essência do case-law, os
juizes declaravam o direito que estava latente no seio da comunidade. Esta
teoria que perdeu sua força por causa do realismo americano (já visto por
nós) e pelo sociologismo de Roscoe Pound (descobrir através da
engenharia social o que é bom para a sociedade), edificou o mito que os
juizes não criavam o direito mas aplicavam ao caso concreto aquilo que
estava no entendimento da sociedade e era por ela querido, ou seja, o juiz
aplicava o direito que era posto pela sociedade e nela estava em potência.
Assim estas decisões extrapolavam os fatos a que se referiam e tinham
validade além do caso concreto. Era importante retirar destas decisões a sua
validade mais genérica, a sua verdadeira razão jurídica, o princípio legal da
decisão e estendê-las. Era importante captar a ratio decidendi das
sentenças.
Não é muito fácil retirar de uma determinada decisão sua ratio decidendi,
ou seja, a razão do decisum e limpá-la do que não é essencial, daquilo que é
perfunctório e emoldura o seu fulcro.
E este falar perfunctório é exatamente o que se chamou de “Obiter
Dictum”. As afirmações – Obiter Dicta - que fazem os julgadores que não
são tidas como componentes das rationes decidendi mas têm relevância no
conjunto das afirmações são juridicamente irrelevantes para efeito
vinculante.
Pode-se entender que dados os fatos ao julgador ele percorrerá uma linha
de raciocínio, linha esta essencial para que ele, julgador, alcance sua
decisão. Quando houver um colegiado de juizes a questão pode se
complicar, pois cada juiz, mesmo que todos cheguem no fim à mesma
conclusão, considerando qual fato é material e qual não é, pode apresentar
uma linha de raciocínio diferente da do outro membro do colegiado e
assim, pode-se numa ação, ter se duas ou mais rationes decidendi, o que é
amplamente conforme a nossa teoria de que é o Sentimento que encaminha
cada juiz à sua conclusão.
Ao revés há aquelas afirmações que se forem retiradas da sentença não
alterarão o resultado final (por isso que os americanos dizem que obiter
dictum é aquilo que não pode nunca ser uma premissa maior dos fatos), são
afirmações não componentes da ratio: estas são as obiter dicta.
199
As sentenças bem exaradas criam escola e – porque não? – devem ser
estudadas e seguidas enquanto as condições permanecerem as mesmas. A
regra que vincula as decisões, aquela que indica ao julgador do caso
presente que adote a postura anteriormente tomada por juizes em casos
semelhantes chama-se stare decisis219. Segundo Ferreira da Silva há uma
hierarquia na aplicação da regra na Inglaterra: considerando-se uma
pirâmide coloque-se no ápice a House of Lords; um grau jurisdicional
abaixo está a Court of Appeal, vinculada aos precedentes da House of
Lords e vinculando as decisões das Divisional Courts, das Crown Courts e
da High Court.
O juiz pode se afastar da regra, em princípio, sempre que algum fato novo
surgir e turbar o cenário em que se constituiu o preceito anterior.
O autor encontra três espécies de precedentes:
“a- os que obrigam o juiz a considerar as decisões anteriores com parte do
material necessário para a presente decisão;
b- os que obrigam o juiz a decidir no mesmo sentido do caso anterior a
menos que existam razões fundadas para não o fazer;
c- os que obrigam o juiz a decidir da mesma maneira mesmo que haja boas
razões para não o fazer”._
A hipótese “c” é o precedente vinculativo (stare decisis, binding precedent,
authoritative) ele mesmo e as duas outras são precedentes persuasivos
(persuasive, unauthoritative).
O juiz passa a raciocinar por analogia porque as razões afirmadas em um
caso (ratione decidendi) são estendidas a casos similares. Assim o juiz vai
buscar sempre casos similares que tiveram suas decisões exaradas por
juizes respeitáveis e com autoridade. Quando se defrontar com uma decisão
vinculante ela a seguirá a menos que criativamente possa separar os fatos e
inventar uma distinção significativa e que torne diferente este caso daquele
que foi tratado anteriormente. Esta técnica das distinções é o caminho que
percorrem os juizes mais avançados ou destemidos para se desvincular da
regra pelos motivos pessoais que tiverem.
A força vinculante do stare decisis vai sendo abrandada por uma série de
cases que pedem solução própria (quando a severidade da aplicação da
regra conduzir a uma injustiça no caso concreto, por exemplo) e a regra não
tem tanta força nas Criminal Division da Court of Appeal em que a busca
da verdade real e a efetivação de uma justiça material são maiores que a
busca da similaridade com casos anteriores.
219
Segundo Edward D. Re a regra tem a seguinte formulação: stare decisis et non quieta movere
(persevere-se na decisão e não se provoque o que está em repouso). Já segundo Luis Renato Ferreira da
Silva é uma elipse de stare rationibus decidendis (persevere-se na razão da decisão). Nossa tradução.
200
Já nos Estados Unidos do Norte 220, segundo Edward D. Re, a regra vem
com a atribuição precípua de combinar objetivos aparentemente
contraditórios: estabilidade e mudança.
É uma pedra de sustentação do sistema do common law e carrega consigo
vantagens: 1- permite a cada juiz se aproveitar da experiência de um outro
juiz; 2- torna mais uniforme a aplicação do Direito e 3- apresenta a grande
vantagem de tornar este Direito mais previsível.
Promove imparcial e consistente desenvolvimento dos princípios legais,
fomenta confiança nas decisões judiciais e contribui para a integridade do
processo judicial. Indica que há justiça quando casos semelhantes são
decididos de forma sempre similar retirando das decisões qualquer cunho
arbitrário. Conduz ao aprimoramento do processo decisório judicial e a um
fortalecimento institucional do Judiciário. Preserva uma reserva preciosa
que é a decisão em caso semelhante: quando o homem comum vê que o
Tribunal trata as partes em situações semelhantes da mesma forma passa
um enorme nível de confiança e ajuda a desenvolver um elevado senso de
fé no Judiciário que se traduz em fortalecimento do Sentimento de Justiça.
Impõe mais responsabilidade aos juizes, pois a boa decisão judicial de hoje
será certamente o precedente de amanhã e incentiva os juizes a proferirem
sentenças com maior cuidado. Mas não o condena a cada sentença
sentenciar como se ela fosse virar um precedente o que aquieta o espírito
do julgador.
Além, visa estabilizar o Direito e possibilitar às pessoas um razoável grau
de planejamento e certeza quanto às conseqüências jurídicas de seus atos
pelo motivo de estarem os fatos atuais em conexão com o passado; não
descontinua a mudança que é a alteração do que está fixo ou estável, pois
sem mudança não há progresso o que possibilita ao Direito conectar-se
amplamente com as flutuações exigidas pela sociedade.
A decisão judicial nos Estados Unidos tem dupla função: antes de tudo
define a controvérsia, pois de acordo com a teoria da res judicata as partes
não podem renovar sua disputa sobre o que já foi decidido e, de outro lado,
conforme a teoria do stare decisis a decisão judicial tem um valor de
precedente, ou seja, há um princípio de Direito deduzido através de uma
decisão judicial que será aplicado no futuro a um caso semelhante. Este
último preceito é essencial num sistema em que o Direito é enunciado e
desenvolvido através de decisões judiciais.
A regra permite que ao mesmo tempo em que se prestigia o passado e
assim a estabilidade, autoriza o porvir de um direito consistente e coerente
220
Toni M. Fine nos dá uma simplificada explicação da forma que toma o sistema judiciário americano:
são três níveis hierárquicos: US District Courts, juízos de primeira instância, US Courts of Appeal,
Tribunais intermediários de Apelação e US Supreme Court, equivalente ao nosso Supremo Tribunal
Federal. O sistema judicial norte-americano é na verdade muito mais complexo do que nos dá a entender
esta simplificada abordagem.
201
com a tradição: preserva a continuidade, manifesta respeito pelo passado,
assegura igualdade de tratamento aos querelantes em idêntica situação,
poupa aos juizes a tarefa de reexaminar, reestudar e repensar os princípios
de Direito a cada caso subseqüente e assegura à lei uma desejável medida
de previsibilidade e conhecimento prévio.
É um princípio dogmático (e somente a Suprema Corte pode derrogar seu
próprio precedente), pois a regra do precedente é um ponto de partida, um
começo na acepção da palavra. É uma suposição que não é obstáculo a
maiores indagações; ao dele fazer uso o juiz ou a juíza afirma a pertinência
de um princípio extraído do precedente. Esse princípio é, depois, adaptado
ao caso concreto que ele ou ela tem diante de si e isto pode resultar numa
expansão ou numa restrição do princípio e representa a contribuição do juiz
ou da juíza para o desenvolvimento e evolução do Direito.
Num sistema que está muito desenvolvido como o sistema americano os
precedentes já cobriram um vasto campo de atuação de forma que eles
normalmente fixam o ponto de partida, aquele a partir do qual começa o
trabalho judicial.
Nesta hora o juiz ou a juíza determina a autoridade desse precedente e
declara que o precedente é vinculativo ou persuasivo.
Se ele for vinculativo o princípio precedente define o julgamento; se ele for
persuasivo o juiz ou a juíza está livre para adicionar fatores que ampliarão a
possibilidade do julgado anterior.
O exame das questões suscitadas e apresentadas ao Tribunal e que tenham
sido levadas em consideração e decididas, determina se uma sentença faz
autoridade. Se estas questões não foram consideradas, embora pudessem ter
sido, a decisão anterior não vincula. Dá-se amplo espectro ao adágio latino
ex facto oritur jus, mas considera-se que nenhuma sentença é proferida com
o fim precípuo de servir de precedente no futuro; é emanada de um
Tribunal que principalmente quer solucionar aquela questão e naquela hora
entre os litigantes. Sua utilização posterior é incidental e depende de seu
brilho próprio, mas está sempre limitada aos fatos e condições particulares
do caso que o processo anterior pretendeu abranger. Os precedentes,
destarte, não são aplicados automaticamente. São cuidadosamente
analisados para que se estabeleçam as similaridades de fato e de direito e
dispor a posição atual do Tribunal em relação ao caso anterior. Busca-se a
ratio decidendi e o dictum. A primeira vincula, o segundo traz força
persuasiva.
Em resumo os Tribunais podem recusar uma decisão anterior se: a- o caso
anteriormente decidido envolver uma questão de direito distinta; b- o
escopo do caso anteriormente decidido for tão limitado que não se aplica ao
caso em pauta; c- os fatos do caso anteriormente decidido forem distintos
daqueles a que se refere o caso atual; ou d- rejeitarem a decisão anterior
porque o princípio nela inserido: 1- deve ser revogado; 2- a decisão reflete
202
dicta, isto é, pronunciamentos e opiniões do juiz. O princípio também não
se aplica a casos, mesmo com circunstâncias essencialmente idênticas, em
que são apresentadas questões de direito completamente diferentes. Num
sistema constitucional que proíbe opiniões judiciais que visem aconselhar
as partes e que tem como requisito básico a solução da controvérsia, nem
sempre é fácil determinar o escopo ou o impacto pretendido pela regra de
direito ou princípio anunciado num caso. Há situações, entretanto, em que a
regra de direito implícita pode não ser precisamente a mesma, mas pode ser
parte de uma estrutura legal semelhante ou ainda de provisões legais que
devem ser lidas in pari materia (as que se referem a uma mesma matéria e
devem ser interpretadas com referência a cada uma delas); se, no entanto,
uma estrutura legal ou corpo de leis distinto é envolvido, o juiz está livre
para desconsiderar a regra de direito estabelecida nos casos precedentes.
Os Tribunais americanos são obrigados a basear suas decisões
exclusivamente nos fatos apresentados pelas partes. Daí as decisões
judiciais raramente interpretarem regras de direito que, em tese, poderiam
ser aplicadas a todos e quaisquer fatos trazidos a juízo.
Pelo que atrás se expôs é que surgiram as críticas acerbas ao sistema do
precedente: ele vai aos solavancos e depende de acidentes; pontos muito
importantes podem permanecer obscuros se ninguém quis pinçá-los; um
julgamento errôneo ou superficial pode adquirir injustificada divulgação
simplesmente porque a parte vencida não teve fôlego para prosseguir ou
recorrer; se o direito foi mal compreendido, se foi mal aplicado, se a
decisão é manifestamente injusta ou contrária aos fatos constantes do caso,
esta decisão torna-se paradigma para caso semelhante porque se constitui
na única evidência de análise dos fatos em questão e os juizes devem
estudar esta decisão exatamente para superá-la.
A doutrina do stare decisis não demanda obediência cega; ela apenas
permite que os Tribunais se beneficiem da sabedoria ou dos desacertos do
passado, mantendo o certo ou rejeitando o desarrazoado ou errôneo. O
Tribunal sempre determinará se o princípio deduzido através do caso
anterior é aplicável e em que extensão. O sistema assim não privilegia
estabilidade e uniformidade somente, mas suas restrições e limitações
incluem a pretendida flexibilidade indispensável para mudança e progresso.
O princípio declara que um Tribunal é uma instituição requisitada para
aplicar um corpo de leis e não meramente um conjunto de juizes que são
chamados para proferir decisões isoladas e conforme seu convencimento
pessoal ao caso que lhes são submetidos. Assim as regras de direito não
devem mudar caso a caso e de juiz a juiz.
Segundo Toni M. Fine o sistema do stare decisis enquanto restringe o poder
dos juizes lhes concede maior controle sobre a interpretação e aplicação das
leis e implica numa responsabilidade especial, a de as Cortes tenderem a
seguir as decisões anteriores e com isso confiarem aos futuros juizes os
203
princípios estabelecidos naquele sentido embora estes possam – como
fazem em situações especiais - recusar a aplicação.
A imensa legiferação americana própria do mundo moderno e global impõe
uma mudança no sistema: o que era sempre calcado na força vinculativa
dos casos precedentes tem hoje enorme transformação pela necessidade de
o juiz e a juíza se aterem ao que manda a lei, hoje uma nova fonte de
direito para os modernos juizes norte-americanos.
Em virtude de ter se desenvolvido no caso-a-caso o sistema do common
law tinha na lei presença mínima; tal não ocorre nos dias de hoje em que a
legislação antes campo estranho pode agora determinar abruptamente,
alterar ou repelir, manter ou inovar, uma definição legal, um princípio, uma
regra. Ainda incumbe aos Tribunais legislar, mas somente para preencher
lacuna ou omissão na previsão legal.
Não são todos os juizes que se sentem confortáveis com a limitação visto
terem aprendido desde sempre partir das decisões anteriores para
empreender a sua.
Atualmente a lei cobre extensamente o campo e compreende todos os
ramos do Direito. O ponto de partida hoje não é mais o precedente judicial,
mas a lei.
Os tribunais devem naturalmente interpretar a lei. Assim o sistema exige
que se examine como os Tribunais interpretaram a lei e como a aplicaram
estabelecendo precedentes. Este é um novo precedente. Surge, portanto, um
ponto muito sério que tem que ser examinado: os juizes podem atribuir
maior significado aos precedentes que à legislação que aqueles precedentes
pretenderam interpretar. Os Tribunais estão hoje, portanto, determinando o
peso relativo a ser atribuído à política legislativa de um lado e ao
precedente jurisprudencial de outro.
Como o sistema de governo é tripartite, os juizes não podem se esquecer
que há três poderes e que ao decidir o processo eles estão decidindo para
cumprir uma função institucional. A lei tem agora função derrogatória e a
política de precedentes deve se curvar ao seu império.
Num sistema como o brasileiro em que o juiz e a juíza têm, principalmente
depois que entrou em vigor o NCC, enorme liberdade de ação, sistema em
que o juiz e a juíza não prestam contas a ninguém, nem à sociedade, em
que não há ninguém que aplauda suas boas decisões ou critique as ruins, há
muito material de reflexão nas linhas anteriores para que não repitamos
erros de outros ou venhamos irrefletidamente a criar novos.
Há, ainda, dois pontos que devem ser destacados: o primeiro diz respeito ao
fato que, como ensina Charles D. Cole, os advogados na cultura jurídica
americana não apostam na Justiça Lotérica nem na Temerária e agem com
enorme previsibilidade, pois são altamente treinados para oferecerem em
suas peças na primeira instância, durante a fase postulatória e de instrução
do feito, toda a autoridade aplicável ao caso (citações de constituições, leis,
204
precedentes, decisões judiciais, regras, regulamentos, livros de texto,
artigos e o que mais seja útil ao desenvolvimento da argumentação das
questões visando fundamentar as posições jurídicas em litígio); o segundo
que enquanto a prática do direito e o processo decisório obteriam imenso
benefício pela previsibilidade das decisões que o precedente vinculante
oferece, advogados e magistrados precisam estar devidamente adaptados ao
uso do precedente vinculante na prática para poderem operar
adequadamente. O ensino jurídico brasileiro não habilita tal prática. A
cultura jurídica americana exige que se ensine ao estudante de direito como
analisar casos e como determinar questões relevantes, questões de direito e
os fundamentos que são apropriados. O ensino do direito de forma
expositiva não oferece base satisfatória para que os alunos entendam as
situações fáticas como são apresentadas com o objetivo de análise, pesquisa
ou previsibilidade. O uso apressado da súmula vinculante ou do princípio
do stare decisis traria, nestes casos, sério distúrbio pela impossibilidade
intelectual de ser compreendido e, conseqüentemente, não poderia ser bem
usado, com a esperada utilidade para o sistema. Há que dar tempo para
absorção do princípio se ele vier a ser integrado ao sistema.
*
7.7 – contradições intestinas dentro do Poder Judiciário
Enorme o desespero do profissional e do homem comum quando se
defrontam com a avalanche de decisões emanadas dos Tribunais. Se os
problemas fossem convergentes estaria na explicação da cultura subjacente
a cada uma das decisões a sua pronta compreensão. O problema real é que
as divergências são muito grandes. Como explicar ao homem comum que o
mesmo fato, que cai sob a mesma norma, é num tribunal decidido de um
jeito que difere do jeito do outro tribunal. Como explicar ao homem
comum que a sorte mais do que a boa argumentação e o bom caso (o bom
direito) resolvem a questão no tribunal? Nasce o Direito Lotérico: se a sorte
encaminhar o caso para um juiz que o acolhe a questão estará ganha e se,
ao revés, a sorte encaminhar a questão para um juiz que a rejeita ela estará
perdida. Não há uniformidade, parecença ou semelhança de pensamento.
Como explicar?
É sabida a divergência de juizes e de turmas do mesmo ramo do Direito
(Cível, Penal etc) sobre casos e fatos semelhantes ou idênticos e que mostra
quão difícil é resolver as questões quando trazidas a um órgão da Justiça
ou, de outro modo, quão pessoalmente estão sendo resolvidas aquelas
questões. Existe uma tendência à unificação e mesmo o CPCb (art 476
caput e ss.) trata do assunto e institui o dever de qualquer membro do órgão
julgador suscitá-lo de ofício.
205
Mas há outro aspecto menos comentado, que choca mais por apresentar
posições antípodas e imensas contradições entre juizes de ramos diferentes
do Direito. Um assunto é visto de um jeito na Justiça Cível e de forma
totalmente diferente na Justiça Trabalhista ou na Penal, para dar um
exemplo, como se as Justiças fossem diferentes entre si, tivessem objetivos
diferentes, tratassem do Direito de forma diferente e fossem aplicadas em
países diferentes com Constituições diferentes e CPC diferentes.
Não há um Poder Judiciário: há vários Poderes Judiciários.
Exemplifiquemos.
‘No Brasil a Justiça é uma: uma diferente da outra’. ‘Cada Justiça aplica
seu próprio critério de Justiça aos seus casos específicos’. ‘Uma Justiça é
uma Justiça, outra Justiça é outra Justiça’.
Estas são frases que ouvimos costumeiramente para falar do Poder
Judiciário, do órgão administrativo que se encarrega de distribuir Justiça,
que se chama igualmente de Justiça e que são formuladas por pessoas
(Juizes, advogados, policiais, etc.) que trabalham numa Justiça e não em
outra, como se fossem várias e não uma só. As Justiças aplicam Justiças
diferentes. A Cível, a Federal, a Eleitoral e a Militar estranham-se muitas
vezes.
Quando se fala de Justiça, aquelas pessoas, os Tribunais, não aceitam um
mesmo critério do que ela seja, qual seu fim e de como se manifesta.
Não estamos nos referindo a diferentes interpretações; estamos falando que
o mesmo assunto tem um tratamento completamente diferente como se
numa Justiça ele fosse uma coisa e em outra justiça fosse outra.
Explicamos: os critérios, v.g., que balizam a Justiça Cível não são os
mesmos da Justiça Trabalhista; a Justiça Penal tem seus próprios critérios;
as Varas de Família têm sua própria visão, etc. Mudam categoricamente as
interpretações sobre as mesmas leis. Mudam, também, os modos de
aplicação da lei adjetiva, de Justiça para Justiça, apesar de utilizado nos
mesmos casos o mesmo CPCb.
A Justiça Trabalhista adapta o CPCb à sua realidade (equidade privada do
Juiz) e encara cada como caso um caso diferente e não segue o Código
como ele na letra é seguido na Justiça Cível, por exemplo.
Outra realidade: o instituto do Disregard of Legal Entity tem diferentes e
radicais interpretações dependendo de o caso estar na órbita da Justiça
Cível ou de estar sendo observado pela ótica da Justiça Trabalhista.
Outra ainda: a lei 8009, a que determina a impenhorabilidade da casa
própria destinada para fim residencial da entidade familiar, vale na esfera
Cível, em qualquer instância, mas não vale na Primeira Instância da Justiça
Federal do Trabalho, mesmo sendo sua origem, a sua base, o seu
fundamento, a exemplo do CDC, a Constituição Federal brasileira, artigo
1o. III, ou seja, a dignidade humana.
206
O mesmo para o artigo 649 do CPCb: vale na Justiça Cível, não vale na
Justiça Trabalhista.
Mais um exemplo conflitante é o do penhor mercantil. A palavra penhor
denota várias coisas diferentes entre si; assim é analógica, nos ensina
Goffredo da Silva Telles Junior, pois designa conceitos diversos, mas
conexos e exige tantas definições quantos são os conceitos a que se referem
221
. Na Justiça Cível cada Penhor tem um tratamento adequado à sua
natureza. O penhor mercantil, principalmente se for constituído de itens do
estoque para venda regular, na esfera cível, é encarado isoladamente de per
si e como um dos inúmeros tipos de penhor (Exemplificando: Garantia
Pignoratícia, Direito Real sobre Coisa Alheia, Penhor Agrícola, Penhor
Mercantil, Penhor Industrial, Penhor Legal, Penhor Pecuário, Penhor Rural,
Penhor Judicial, e mais alguns outros) e na ausência dos itens constantes
deste penhor na época da necessidade de sua exibição a relação entre as
partes transforma-se em mútuo (CCi velho art 1280 ou 645 do novo:
aplicam-se as regras do mútuo CCi velho art 1256 a 1264 e 586 a 592 do
novo) e não mais existe, desde o Pacto de São José (Decreto Legislativo n.
27 de 26.05.92), prisão civil para o pretenso depositário infiel (apesar da
CF art 5o. LXVII; CPC art 904, 558; CCi antigo art 1287, 1273 ou novo art
652, 638, respectivamente não excedente a um ano). Pois bem, na Justiça
Penal muda o entendimento e todo penhor é encarado como um instituto só
e na ausência dos itens constantes de qualquer penhor (mesmo o mercantil
e de itens do estoque regular do garantidor) à época de sua necessidade o
depositário infiel corre o risco de ir, e provavelmente irá, para a prisão por
força do artigo 171 § 2o. III do CP. Logo a pessoa escapa da prisão civil na
Justiça Cível, mas sofre uma sanção penal para o mesmo fato o que a
conduzirá para a cadeia na Justiça Criminal.
Há uma enormidade de exemplos, mas os que foram citados acima bastam
para apresentação de nossa posição frente ao problema de ‘mesmo
fato/mesma norma/diferentes enfoques e maneiras de enquadramento’ a
que aludimos.
Tal fenômeno ocorre pela diferença de entendimento, cultura, visão,
ideologia, profundidade e experiência que se verifica entre os profissionais
que se especializam e trabalham numa esfera judicial e não em outra.
O mito da Justiça única e pétrea, o mito do valor absoluto de uma única
Justiça, a que aparece sempre igual quando necessário, fica seriamente
comprometido com estas constatações e afronta o entendimento do homem
comum.
O que se compreende é que a Justiça nem como valor uno nem como valor
absoluto nem como valor relativo existe efetivamente nos Tribunais
221
(Filosofia do Direito, Max Limonad, 2o. Tomo, pág524)
207
brasileiros. Em outras palavras é a coisa observada, a lei e o fato, sendo
qualificados e valorados diferentemente por cada observador.
O observador, aquele que trabalha com o conceito, é quem determina quem
ele é e o que é Justiça, o quanto ela vale, para quem ela vale, onde, quando,
como e por que.
Temos, assim, a pessoalização da Justiça, mal a ser evitado.
*
7.8 – sentimento como meio de comunicação
O Sentimento é um meio de comunicação, o mais forte e poderoso que
existe. São seres humanos que decidem suas vidas valendo-se dos
sentimentos e que se comunicam através destes sentimentos e que se
apresentam por intermédio deles, que se orientam por eles e procuram com
eles orientar outras pessoas destinatárias de suas mensagens.
São com os Sentimentos que as pessoas se defendem das agruras da vida e
traçam seus objetivos práticos e filosóficos, estruturam suas
personalidades.
Isto vale quando as pessoas exibem com facilidade seus sentimentos ou, o
que é mais comum, quando os escondem e lhes dão roupagens (comunicase quem avisa que não comunica - Watzlawick).
Sendo a realidade uma percepção na mente e filtrada pelo Sentimento,
quem fala de algo, porque tomado de si, porque cheio de si, fala de si e não
de algo.
Sempre que alguém propõe um juízo a respeito de algo, inicialmente,
coloca-se a si; o Sentimento como meio de comunicação provoca isto:
tendo que comunicar, o agente comunica o próprio Sentimento a respeito
de algo. Assim cada um comunica o seu, mesmo que camufladamente.
Não se foge deste acontecimento na Sentença Judicial. Ela reverbera o
Sentimento do juiz ou da juíza sobre o que está nos Autos do processo.
Isto explica algumas colocações de alguns dos Realistas americanos (por
exemplo, a constatação de que, nos Tribunais apontados, a conclusão era
indefectivelmente a mesma apesar de diferentes terem sido as premissas de
que partiram os Juizes para o atingimento daquela conclusão)
O que tem que ser buscado é o grau de evolução do Sentimento de cada
um. Como cada um é cada um e, portanto, diferente do outro, resta saber
qual o grau do Sentimento que está comunicado na Sentença.
Este o motivo de cada sentença ser, ab ovo, eminentemente pessoal.
Se cada pessoa for uma ilha cada pessoa estará comunicando apenas o seu
sentimento pessoal.
Há que se provocar, para evolução geral, a troca de posições, a troca dos
pontos de vista.
Só assim evoluirá o Homem.
208
Um bebê logo que nasce não “sabe” nada além de que precisa respirar,
comer, beber, dormir e excretar. São essas suas necessidades e por elas luta
desenvolvendo a partir daí suas habilidades.
A necessidade sexual logo vem se agregar às outras.
Neste desenvolvimento o ser humano elege o prazer e a dor como seus
guias. Desta tentará escapar; ao outro dirigir-se-á com espantosa inocência.
O prazer, o Bem, será sempre aquilo que, com conforto e bem estar,
contribuir para a sua sobrevivência e evolução. O mal, a dor, será sempre o
oposto. Ao prazer reagirá sempre com alegria e felicidade; a dor recusará
com horror estampado em seu íntimo.
Enquanto lida com estes Sentimentos, nesta fase, aprenderá ou não o ser do
homem a amar e a ser amado e, nesta hora, definirá sua vida.
Ao montar o conjunto de Sentimentos que regerá sua vida não age com
ampla liberdade: seu corpo já emoldura aquele conjunto, está determinado
e segue suas regras físicas inexoráveis e inelutáveis; com seu físico ele
poderá contar dentro dos seus limites e possibilidades. Se fosse, como
afirmado antes, anfíbio, aquático ou aéreo, outras seriam suas
determinabilidades 222. Mesmo o que se chama de livre arbítrio tem suas
limitações claras e elas são, principalmente, físicas.
Rege-se este ser, dentro de suas características físicas, pela Razão, pelo
Sentimento e pela Experiência e necessita comunicar-se.
Não nasce sabendo nada além de que precisa respirar, comer, beber, dormir
e excretar e, logo após, fazer sexo. Não irá mais longe do ponto aonde leválo o seu interesse de agir e adquire pela observação e pela tradição o que
julga necessário à obtenção do maior prazer e ao afastamento da dor.
Suas faculdades, usar a Razão, usar o Sentimento, aproveitar-se da
Experiência (dentro dos limites que lhe impõem seu físico e seu próprio
interesse) são movimentos físico-cerebrais.
Considerando-se que cada ser humano tem sua própria malha cerebral e
que o caminho do cérebro de um não é, nem de longe, o caminho de outro
(nem se cogitar de universal, portanto!), diferenciando um do outro como
impressão digital e que cada pessoa tem seu Sentimento (e que segue
cerebralmente seu caminho próprio nunca igual ao caminho de outro ao
processar o mesmo Sentimento) é certo mesmo que cada cabeça, cada
Sentimento, cada caminho cerebral, cada sentença, o que explica o que
disse Llewellyn, um dos realistas americanos, quando mencionou que um
juiz atingia a mesma conclusão de outros, como no caso do Tribunal no
exemplo dado, partindo cada um dos juizes de seus próprios caminhos, ou
seja, partindo de caminhos diferentes o grupo chegava ao mesmo lugar, à
mesma sentença.
222
preferimos esta palavra a determinações.
209
O racionalizar, o sentimentalizar, o experienciar são movimentos cerebrais
e a cada um o seu.
Na comunicação, o ser do homem oferece publicamente seu Sentimento ou
o esconde de todos (quem não se comunica alerta que não comunica); na
comunicação o ser do homem pode verificar se a Razão é verdadeira ou
falsa e estabelece sua certeza (depois de discutido, acertamos que...); na
comunicação a Experiência se desnuda, se transmite e dela se aproveita
quem a viveu e os outros que por ela se interessam.
Parece estar aí o motivo de o homem no limiar do século XXI parecer-se
tanto com o homem do século X antes de Cristo. São trinta e um séculos
em que o ser do homem procura evoluir na Razão, mas não no Sentimento
e, pouco, com a Experiência 223. Cabe a ele agora exacerbar a Comunicação
para fazer evoluir seus Sentimentos e sua Experiência e continuar
verificando, como faz habitualmente, o erro, a falsidade, a verdade, o
acerto, que a Razão lhe aponta.
Só caminhará para a humana sabedoria aquele que se comunicar, aquele
que como emissor influencie e como receptor seja influenciado.
Só aí o ser do homem poderá inserir-se com calma, com paz, com
harmonia, com alegria, com felicidade, no caminhar idêntico e mecânico do
Cosmo.
Só aí o ser do homem aproveitará em sua plenitude sua maravilhosa
potência embora finita e limitada pelos aspectos físicos.
Consideramos limitação em seu duplo aspecto: o primeiro aquela limitação
própria da raça humana, aquele ponto que mesmo o mais privilegiado não
poderá ultrapassar; o segundo a limitação própria de cada um que quando a
natureza joga seus dados sai um resultado que é único e não há um homem
que se pareça com o outro que uns estão mais próximos do limite inferior
do que é possível para a raça humana, outros ascendem em gradação, cada
um no seu grau, e outros se destacam tendendo ao limite superior.
E só então, nos limites técnicos da sua condição física, será ético o ser do
homem no duplo sentido que demos à palavra no capítulo VI ao reproduzir
lição de Lima Vaz.
A realidade é uma percepção na mente; nasce com o homem a
possibilidade física de execução, mas não nasce com o homem nenhum
referencial nem ponto inato de apoio e comparação, exceto aqueles que são
úteis, por exemplo, ao ato de comer, beber, dormir, excretar e fazer sexo, e
que se manifestam através de alarmes físicos.
O que aprendemos, aprendemos por experiência, tentativa e erro, e porque
alguém nos ensina – e motiva – pela tradição do seu conhecimento.
Só então podemos duvidar e criar algo novo.
O confronto daquilo que criamos ou aceitamos com a posição que o outro
cria ou aceita é que gera evolução e entendimento. O homem que só visa a
223
(História como chance de não repetir os mesmos erros)
210
Razão e não se comunica é um animal mutilado.
Conforme tanto reverberamos antes, não se pode ver que não se vê o que
não se vê. Assim pelo menos a desconfiança deveria estar instalada e
sempre a alarmar aquele que pensa saber algo, ou seja, sempre se deve
praticar a política da insegurança. O contraponto é: só se vê que se vê
aquilo que se vê, e quem confia na sua verdade como absoluta corre o risco
de cometer os maiores equívocos.
*
7.9 – a construção
A Literatura, a Música, o Cinema, a Televisão, as Artes em geral, o
Judiciário, enquanto linguagens, passam seu assunto pelos Sentimentos que
exibem e bem por isso agregam as vantagens técnicas a esse foco.
Watzlawick 224 apresenta-nos dois axiomas referentemente à comunicação:
o primeiro diz que ‘não se pode não se comunicar’ e o segundo diz que
‘qualquer comunicação implica um cometimento, um compromisso, e
define a relação; isto é uma maneira de dizer que uma comunicação não só
transmite informação, mas, ao mesmo tempo, impõe um comportamento.
São os aspectos de “relato” e de “ordem”, respectivamente, de qualquer
comunicação’(em Tércio relato e cometimento). Note-se – muito
importante - que, para o autor, comunicação e comportamento são
sinônimos. O aspecto relato de uma mensagem transmite informação e é
sinônimo de, na comunicação humana, do conteúdo da mensagem,
conteúdo este que pode ser verdadeiro, falso, válido, inválido ou
indeterminável. O aspecto ordem refere-se à espécie da mensagem e de
como deve ser considerada, ou seja, refere-se às relações entre os que se
comunicam: como sabem bem os que têm mania de discutir a relação
(pai/filho, namorado/namorada), quanto mais espontânea e saudável é uma
relação mais o aspecto relacional da comunicação pula para um campo
secundário; ao revés quanto mais doentia a relação, quanto mais se luta
sobre a natureza destas relações, cada vez mais se torna menos importante
o aspecto de conteúdo da comunicação e salta no lugar poder, dominação,
submissão etc. Bem fácil de fazer analogia com um processo de decisão por
parte de um juiz ou de uma juíza e ver a sentença como a linguagem de que
se vale o decididor para comunicar – com Poder – o seu sentimento, com a
agravante de que seu processo decisório, o que lhe é particular, deu-se em
grande parte em linguagem analógica (comunicação não verbal por
semelhança auto-explicativa; para uso externo, posturas, gestos, expressão
facial, movimento corporal, inflexão de voz, cadência, ritmo, qualquer
outra manifestação não verbal; para uso interno, muitas vezes a linguagem
própria da pessoa, aquela de uso exclusivamente interno e impossível de
224
(2002 pág 47)
211
ser passada para um receptor) e a comunicação exclusivamente em
linguagem digital (feita por palavras e regras gramaticais) o que aumenta a
confusão entre receptor e emissor da mensagem.
Watzlawick adota as áreas de subdivisão da semiótica, proposta por
Charles W. Morris e aceita por Carnap, como as áreas de sintaxe, semântica
e pragmática. Sintaxe como as regras que unem de maneira predeterminada
as palavras entre si de modo a gerar entendimento; semântica como aquela
área que se interessa pelo significado dos símbolos da mensagem;
pragmática como aquela que afeta o comportamento na comunicação, pois
os dados da pragmática são não só as palavras, suas configurações e
significados que constituem os dados da sintaxe e da semântica, mas
também os seus concomitantes não verbais e a linguagem do corpo e as
pistas de comunicação inerentes ao contexto em que ela ocorre, ou seja,
tudo que emana do emissor para o receptor. O autor, entretanto, interessase para além: interessa-se pelo efeito da reação do receptor sobre o emissor,
ou melhor, na relação emissor-receptor tal como é medida pela
comunicação.
Sob este prisma temos, então, uma pista para explicar o descontentamento
das partes após a emissão de algumas sentenças que põem termo ao
conflito e com a enorme angústia e insatisfação que gera a falta de
previsibilidade destas sentenças.
Qualquer organismo para sobreviver tem que satisfazer não só seu
metabolismo, mas também obter informações adequadas sobre o mundo em
torno o que faz comunicação e existência conceitos inseparáveis. O meio,
deste modo, é subjetivamente experimentado como um conjunto de
instruções a que se somam as instruções do código biológico inscritas no
próprio corpo da pessoa. Se estas são compreendidas e mesmo obedecidas
quase sempre mecanicamente, as instruções do meio nem sempre são claras
e bem compreendidas. Deste modo a existência é uma função das relações
no corpo e entre o corpo e o meio e, no nível humano, tem imensa
complexidade. Mesmo entendendo-se que no atual estágio a sobrevivência
biológica tenha diminuído de importância se comparada com a importância
que tinha em épocas primevas e mesmo entendendo-se que o meio está
relativamente sob controle, percebemos que as mensagens do meio têm
hoje importância mais psicológica que biológica.
“A vida – ou a realidade, destino, Deus, natureza, existência ou qualquer
outro nome que se prefira dar-lhe – é um sócio a quem aceitamos ou
rejeitamos e pelo qual nos sentimos aceitos ou rejeitados, apoiados ou
traídos. A esse sócio existencial, talvez tanto quanto ocorreria com um
sócio humano, o homem propõe a sua definição do eu e vê-a então
212
confirmada ou desconfirmada; e esforça-se por receber desse sócio indícios
sobra a natureza ”real” das suas relações”225. (sic)
Aquelas mensagens do meio que se apresentam com obscuridade ou porque
são mesmo obscuras ou porque o homem não as compreende como deveria,
como podem ser decodificadas para garantir a sobrevivência do
decodificador?
Está aí o problema do conhecimento da realidade. Cheio de Horror como
falamos, Horror com sua fragilidade e finitude, o homem cria conceitos
para sobreviver e esquecer. O homem jogado em um ambiente nem
amistoso nem inamistoso, mas que, ele pensa, sugere ser frio, distante, que
parece, portanto, hostil e que não lhe fala compreensivelmente cria sua
situação e circunstância. Sua maneira de ser no mundo é conectar-se com o
que ele escolhe como realidade, é o significado que ele confere ao que está
mais distante de si. Por força de experimentação e com o auxílio do
sentimento cria um microcosmo no qual desenvolve as premissas que lhe
são caras, aquelas com que cria seu modo de ser no mundo; não pode,
entretanto, sobreviver psicologicamente num universo em que suas
premissas sejam carentes de sentido. O desespero advém quando o que é e
o que deveria ser discrepam. Esta aí a imensa importância que o sentimento
de justiça adquire como doador de sentido, um deles, mas um dos mais
importantes, para a sobrevivência do homem.
“Para entender-se a si mesmo, o homem precisa ser entendido por um
outro. Para ser entendido por um outro, ele precisa entender o outro226 .
O método está em aprender com os outros, interrogar aqueles que estão
empenhados em perguntar e buscar um padrão, um modelo, que sirva de
base para as regras de comportamento e, portanto, de comunicação.
Podemos neste ponto saltar para o entendimento do porque nos
desesperamos com a imprevisibilidade decisória nos tribunais. O decididor
que aplica seu próprio código de justiça (por ideologia, por preconceito, por
sentimentos mal aplicados) tudo sob o manto da independência e da
liberdade de convencimento desconecta-se do todo, abandona seu próximo,
escapa da civilização, é mentor do caos e da desordem.
A pessoalização da sentença é causa de incompreensão e desespero e
grande mal a ser evitado.
Quando enfocamos o debate certeza/incerteza não queremos defender a
posição imobilista do Direito que repousa na certeza de que tudo
permanecerá como sempre (como fazem os silvícolas brasileiros).
A dinâmica social exige a pronta adaptação do Direito; afinal ex facto
oritur jus.
225
(Watzlawick, 2002, pág 236)
226
(Hora citado por Watzlawick 202 pág 32)
213
Esta incerteza (como enfocada pelos realistas americanos), esta incerteza
do Direito, nasce, assim, da constatação que Direito é devir.
Não se contesta, também, a incerteza que deflue do fato de ser o juiz um ser
humano e de agir como tal, ou seja, de decidir por Sentimento, com os
problemas que isto traz.
Não se pode compactuar, e aí a perplexidade do homem comum, com os
individualismos daqueles que fazem da sentença um elogio à sua biografia.
Não se pode aceitar a incerteza da decisão lotérica, fortuita, e daquela que é
paternalista, protetora, voluntariosa, desencontrada, sem cultura sobre a
realidade que trava debate nos autos ou fruto do livre arbítrio exclusivo do
decididor e contrária ao espírito e ao bom senso da época.
Os Sentimentos do juiz e da juíza enquanto exercem seu ofício têm que ser
expostos, cotejados, rasgados, aprofundados, e expressar a circunstância
social.
Lembremos de novo de Sartre no já citado trecho que lembra que a
autonomia do ser humano não pressupõe necessariamente a própria idéia
sobre lei moral.
Quem agir com integridade, dignidade, autonomia, respeito por si e pela
fragilidade própria e alheia, responsabilidade social e solidariedade ao ser
humano, autenticidade e amor à vida, encontrará no Processo Judicial um
método que o auxilie a buscar seu objetivo?
Há, enfim, como não ignorar o outro?
8 – Que Justiça esperar
A certeza de que o sentimento decidia e, a partir daí, a curiosidade sobre o
tema nos vieram em 1997 durante uma abordagem nossa junto a um grupo
de filosofia.
Mas, a inspiração deste texto surgiu, depois da leitura, em 2002, do
trabalho de António Damásio e da maneira como ele apresenta suas
descobertas científicas.
Parece acontecer com aqueles que o lêem.
Bem depois que este capítulo estava pronto soubemos de outra influência.
O que acontecera conosco, aconteceu com David Servan-Schreiber,
neuropsiquiatra francês, autor do famoso “Guérir le Stress, l´Anxieté et la
214
Dépression sans Médicaments ni Psychanalyse”227, grande sucesso
editorial, motivador de estudos e polêmicas discussões.
Discípulo e amigo do reputado neurologista português radicado nos
EUA David Servan-Schreiber estudou e trabalhou durante 20 anos
no Canadá e nos Estados Unidos, onde foi um dos fundadores —
depois, diretor— do Centro de Medicina Complementar da
Universidade de Pittsburgh.
Doutor em ciências
neurocognitivas pela Universidade Carnegie Mellon, sob a
orientação de Herbert Simon, pai da inteligência artificial e Nobel de
Economia, e de James McClelland, pioneiro da teoria das redes de
neurônios, ele teve sua tese publicada na prestigiada revista
"Science" e foi eleito melhor psiquiatra clínico da Pensilvânia em
2003.
Defensor da "medicina integral" ("mind-body medicine"), a "nova
medicina emocional", Servan-Schreiber baseou suas pesquisas nas
teorias de Damásio sobre a divisão do cérebro em duas partes: a
cognitiva —relacionada à linguagem — e a emocional —
responsável pelo controle da fisiologia do corpo (ritmo cardíaco,
tensão arterial, apetite, sono, libido e sistema imunológico).
Para combater de forma mais eficaz o estresse, a depressão e a
ansiedade, três conhecidos males dos tempos modernos, ele
descarta os ensinamentos de Freud ou Jung e as proezas químicas
do celebrado Prozac e de seus sucessores. Seu receituário propõe
sete métodos testados por cinco anos no Centro de Medicina
Complementar. Os métodos naturais que sugere, conhecidos há
muito tempo, não podem ser definidos como revolucionários, como
ele mesmo admite. Na sua opinião, o repentino sucesso obtido pela
sua "cartilha" se deve ao fato de as técnicas propostas terem, cada
vez mais, sua eficácia comprovada de forma científica.
Servan-Schreiber não considera ser objetivo da psicanálise curar
(guérir).
A ele, como médico, interessa curar. Ele busca a cura acima de
tudo.
Daí ter estudado métodos naturais que pudessem tratar do cérebro
emocional e curá-lo, adaptá-lo, cicatrizá-lo.
Ele estuda com profundidade as teses de Damásio e passa pelo
corpo, pela fisiologia, a transformação e a cura dos problemas das
perturbações emocionais. Ele coloca no limite, no dizer do próprio
227
Literalmente “Curar o Stress, a ansiedade e a depressão sem medicamentos nem psicanálise” que será
lançado no Brasil pela Sá Editora sob o título “A Nova Medicina das Emoções – O Estresse, a Ansiedade
e a Depressão sem Psicanálise nem Medicamentos”.
215
Damásio, as idéias do cientista português; torna a sua teoria,
prática.
O mind-body medicine visa curar com métodos naturais conhecidos
da humanidade há séculos. É o cérebro em conexão para deixar a
fisiologia em seu estado ótimo.
Como isto nos influenciou no Direito? Como as teses de Damásio
nos inspiraram a nós?
Da mesma maneira que a Servan-Schreiber.
As comprovações de António Damásio sobre o cérebro e seu
funcionamento imediatamente parecem influenciar seu leitor a
adaptar o jeito descrito à profissão daquele que lê. É a maneira de
melhor usar a ferramenta, de potencializar o instrumento, de tirar
dele o máximo que pode dar: copiá-lo em outro sistema, em outro
ambiente, é o corolário imediato. É o melhor modo, e o mais fácil,
de tornar corpo, mente, coração, método, uso, bancada e
ferramenta uma coisa só.
Foi assim que nos atrevemos propor que o Corpo Judiciário
copiasse o Corpo Humano. Pelo menos nele se inspirasse.
Seria, assim, em ambiente conhecido, amistoso, confortável e propício que
o Homem poderia buscar com naturalidade a sua busca de verdade e
justiça,
o
seu
encontro
com
o
outro.
I–
A vida é um jogo que não se submete a um só conjunto de regras;
inelutável é a vida.
Mas as regras são formuladas e surgem com a face de seu criador. O que
resolve a oposição aparente entre as regras é o sentimento de quem decide
por qual delas optar.
Problematizar228 o tema e pinçar uma possibilidade foi nossa opção.
Há na doutrina diversos métodos já apresentados anteriormente (alguns dos
quais levantados em artigo titulado Os Standards do Convencimento
Judicial: paradigmas para o seu possível controle: evidence beyond a
reasonable doubt, preponderance of evidence, mínima atividade probatória,
modelo das dúvidas positivo-concretas, doutrina do absurdo e da
arbitrariedade, congruência narrativa, défaut de motifs, modelos
matemático-probabilísticos etc).229
228
Aliás, problematizar os temas está bem de acordo com o espírito desta dissertação, pois possibilita a
apresentação dos pontos de vista
229
conforme o texto de Danilo Knijnik referido na Bibliografia
216
Toda nossa Dissertação deságua e amarra-se neste capítulo final.
É sensível que em todo o decorrer deste trabalho levantamos algumas
questões que conscientemente ficaram no ar. Parecia que levantávamos o
problema para dele fugir e tentar esquecê-lo. A leitura de vários pontos
dava, algumas vezes, a sensação de inacabamento. Restava a impressão de
que viria uma fala conforme o problema levantado... mas sobrevinha
silêncio.
Assim, exatamente assim é que nos sentimos ao analisar o atual sistema
judiciário. Que as respostas não vêm porque nem são perseguidas. Está
bom se assim está bom parece ser a divisa atual. As sentenças são livres.
Têm que ser rápidas. A imprevisibilidade é encarada como inevitável. Tudo
é aceito com naturalidade: não será diferente dizem conformados alguns
dos Atores do Direito, não sem suspirar depois da fala.
Como chegar o mais próximo possível da verdade processual, adentrar o
caso concreto, satisfazer as partes e fugir das questões meramente técnicas
e perfunctórias? Como abandonar as imperfeições do método atual? Como
bem decidir? Como tornar as boas decisões previsíveis? Deve a Justiça
descolar-se da Verdade? Ou, de outro modo, pode a Justiça descolar-se da
Verdade? Pode um juiz ou uma juíza não levar em conta o outro?
Surge o problema.
Pretendemos propor um método, diferente do atual, que só não é criativo
por que se inspirou no sistema fisiológico humano de apuração e
conhecimento descrito por Damásio230. Adicionamos o princípio
orientador da fórmula inglesa remedies precede rights que busca
condicionar o procedimento de forma a obrigar os Atores do Direito a
perseguir objetivamente o gol de justiça e de verdade. Demonstra
desconfiar claramente do ser humano (que se enfastia, que tem preguiça,
que se refugia na técnica, que foge do problema, que não se aprofunda, que
não estuda, que se desestimula) e de sua busca (que abandona): visa
enquadrá-lo em sistema que pelo menos o obrigue a passar por etapas que
se bem executadas poderão conduzi-lo mais adequadamente. É um vade
mecum.
Em outras palavras, reconhecendo, ou aceitando, o jeito da Natureza, ou
dela não podendo fugir, o método posto propõe ajustar o Corpo Judiciário
ao Corpo Humano.
Pretendemos que cada etapa seja entendida como compartimentalizada .
Percebemos que as partes em uma ação, ou a partir da ação, opõem-se e
implicam-se reciprocamente, atam-se pela ação, paralisam-se e não
prosperam uma sem a outra. É o que faz da sentença uma manifestação que
deveria ser erótica: devendo produzir harmonia, Eros, desejo puro do que
230
- conforme explicitado ns notas 15/16/21/22/23/27 e 30 atrás, ou se preferirem, por ser mais fácil, na
fórmula descritiva desenvolvida por Jung e referida na nota 8 retro.
217
se carece, torna concordante o que era discordante, provoca a síntese dos
opostos dialeticamente cindidos, reúne-os na paz. Este o objetivo da
sentença. Libertar as partes dos laços que as agarram remetendo-as cada
qual para seu lugar sem maior sofrimento.
Mas vamos ao método.
A petição inicial deveria sucintamente apresentar o plano da ação
subdividido em quatro partes sobre as quais se falará a seguir; ela seria
analisada pelo Tribunal que eventualmente vier a julgá-la e que decretaria
sua admissibilidade ou não sob o prisma do Direito, ou seja, declararia se
há direito envolvido ou não. Com isso ações que visam procrastinar um
pagamento claramente devido, ou ações temerárias, ou ações lotéricas,
contra a orientação jurisprudencial dominante (não objetar com o
imobilismo do Direito, mal a ser evitado e sobre o qual tanto falamos
atrás), por exemplo, seriam rejeitadas liminarmente. Se aceita a inicial,
recolher-se-iam as custas do processo e a ação teria início propriamente
dito com a apresentação de uma primeira petição.
Primeiramente a busca deveria ser somente racional, ou seja, o problema
deveria ser posto de maneira totalmente isenta e imparcial, meramente
descritiva, de apresentação de medidas. O processo buscaria identificar o
fato ou o direito, ou ambos, e saber que crenças, sob a forma de
proposições, estariam sendo apresentadas pelas partes. A partir daí, por
métodos lógicos e empíricos, saber quais seriam verdadeiras e quais seriam
falsas. Perícias e pareceres poderiam ser apresentados, mas sempre sob a
forma descritiva, nunca valorativa. Método empírico seria absolutamente
necessário, ou seja, o juiz ou a juíza não se restringiria a permanecer na
sala de trabalho, donde saídas do tribunal e visitas a locais, verificações,
medidas que servissem para conferir, conhecer o que se declarou, seriam
muito bem vindas e, mesmo, consideradas necessárias. Assim o juiz ou a
juíza aproximaria a proposição do fato buscando a verdade e punindo a
mentira ou a falsidade com severa multa pecuniária.
Após, qual a norma incidente e como se descreve a queda daquele fato na
norma regente com comentários.
O limite seria sempre lógico.
Esta etapa seria presidida por um juiz.(1)
Com característica diferente da atual, de maneira emotivo-intuitiva, uma
audiência de instrução e conhecimento, presidida por outro juiz (2), em que
falariam as partes e suas testemunhas, conselheiros, experts e assessores,
seria outra etapa, que contaria com o olho certeiro do juiz e sua intuição
para ver e pressentir o certo. Esta configuraria a parte mais irracional do
processo.
Depois, uma etapa de conciliação comme il faut, presidida por outro juiz
(3). Esta fase poderia ser demorada (em alguns casos previdenciários,
tributários, casos mais lógico-formais, etc poderia ser muito rápida): há
218
muitas ações em que não há como atribuir a uma parte o monopólio da
verdade; ao revés, há muitas ações em que as partes estão reciprocamente
certas e erradas ao mesmo tempo: a conciliação serviria para aproximar as
partes, exibir em que pontos de sua comunicação se separaram e quais
pontos de contacto e de rejeição estão em foco e como resolvê-los. Assim o
que as partes têm de certo poderia ser guardado e o que têm de errado seria
descartado num trabalho real de conciliação. O objetivo é reconstituir sua
comunicação atribuindo-lhes sua proporção de razão visto que em muitos
processos as partes têm reciprocamente erros e acertos a ajustar não
estando totalmente certas nem totalmente erradas o que quase nunca será
contemplado em uma sentença judicial no atual modo de encarar o assunto.
Se o processo não se paralisasse via conciliação (inclusive por cessão,
transação etc), viria a busca da decisão propriamente dita o que se daria via
sentimento, ou seja, valoração dos fatos e das ações, a valoração da norma
e dos artigos incidentes, com uso de retórica, momento em que seriam
apresentadas as escolhas possíveis e dentre elas a escolhida por cada parte.
Esta fase seria presidida por outro juiz (4), e seria este juiz o responsável
pelo grupo e pelas questões incidentais durante o processo (levantamento
de guias, etc).
Finda a fase valorativa a sentença seria dada pelo grupo de quatro juizes.
Os advogados, os promotores (e é de se notar que cada ação poderia contar
com quatro diferentes de cada lado) e as partes teriam como limite a sua
verdade e não poderiam mentir, fugir da lei, extrapolar os limites do
pedido, enganar e esconder provas, fatos e atos do tribunal (aliás, tudo em
obediência ao preceito constante do art. 14 e ss. até 18 do CPCb). O
tribunal seria tremendamente especializado nas questões sob sua jurisdição.
O compromisso das partes e dos juizes seria com a busca da verdade
processual e aplicação da justiça ao caso concreto. Os limites seriam
impostos pela lei (por exemplo, um advogado que sabe que seu cliente é
culpado não trabalharia para ‘nenhuma pena’ ou ‘inocência do réu’ mas
pela ‘pena mínima’ atribuída ao caso em questão; o que não sabe que seu
cliente é culpado trabalharia pela absolvição e o réu, se condenado, teria
sua pena aumentada pelo trabalho extra que deu ao tribunal), pela doutrina
(a mais descritiva possível ou a menos política possível) e pela
jurisprudência (a postura pacífica ou dominante – princípio do stare decisis
- seria previamente apontada pelos advogados das partes e pelo promotor,
se for o caso, que só poderiam trabalhar dentro destes limites, a não ser que
tivessem seguramente tese nova que pudesse mudar a postura dominante).
A postura das partes, dos advogados, do Ministério Público e dos Juizes
seria proativa, igualitária e visaria facilitar sempre o caminho da Justiça. O
Estado seria extremamente limitado no seu poder de litigar e recorrer e as
pessoas diretamente responsáveis seriam penalizadas pessoalmente no
descumprimento da sentença.
219
A sentença seria dada pelos quatro juizes, sempre por consenso.
Descumprida a sentença a execução se daria numa vara de execuções e
instaurada sem mais delongas e a partir de um prazo muito rápido. A defesa
na execução não poderia suscitar questões já tratadas na ação de
conhecimento e seriam preservadas a dignidade do devedor e a urgência do
credor.
O recurso seria caro (custoso) e só em casos bem específicos ou de direito
ou de erro flagrante na apreciação das provas durante o conhecimento ou
de contradição ou de omissão ou de obscuridade ou de conflito com
precedente, o que serviria para derrogar precedentes desatualizados. Aí,
como se vê, o trabalho dos juizes seria cotejado.
II - Qualquer Direito em Tese poderia ser suscitado por associações de
classe que poriam o fato hipotético, a lei sob a qual caiu tal fato, pediriam o
chamamento de outras partes envolvidas e aguardariam o resultado. Este
Tribunal Especial, verdadeiro Fórum Consultivo, diria o Direito para
aquele caso hipotético, apontando, se não o justo, o jurídico para o
problema em tela. A dinâmica da vida social seria incorporada rapidamente
e leis poderiam ser mais adaptadas socialmente, mas, principalmente, os
tribunais estariam mais aptos a decidir futuramente situações novas por
disporem de Precedente em Tese.
Uma Associação de Bancos poderia, por exemplo, propor àquele Tribunal
o que seria o amplo espectro do Direito de Consumo na relação dos Bancos
e das Instituições Financeiras com o Consumidor. Certamente a Associação
dos Consumidores seria chamada a opinar e aceitar, modificar ou contestar
a postura da Associação Bancária. Outros órgãos, inclusive
governamentais, poderiam ser convocados a participar do debate.
O mundo jurídico sairia tremendamente enriquecido do entrechoque em
tese porque não seria necessário esperar longo tempo até que a
Jurisprudência se pacificasse a respeito de fato controvertido, evitando-se
os prejuízos decorrentes. Neste entretempo os interessados teriam hipótese
de influir no debate ajustando-o à sua visão e aos seus interesses.
O justo interesse é moral no ponto de partida, mas pode não ser moral no
ponto de chegada. A cada pessoa (e por via de conseqüência, por
ampliação, a cada Associação de Classe) corresponde seu direito, seu dever
e seu interesse que nasce de sua individualidade e é comunicado
(Sentimento) aos demais participantes. Esta comunicação reverbera o ponto
de vista, aquele do qual se descortina o cenário. Sem oposição será
prevalecente este ponto de vista. É amplamente moral a exibição de si
mesmo como projeto e como realização. A busca de se ser quem se é, é um
imperativo moral. A medida, neste caso, deve ser ‘de cada um consigo
mesmo’. Se houver reivindicação de tese conflitante estará criada a
oposição. A reivindicação de um nasce onde começa a reivindicação do
220
outro. Do entrechoque nascerá a síntese que buscará abarcar os pontos em
comum. O imobilismo e o mesmo lugar comum serão exorcizados. O setor
em comento avançará neste debate, evoluirá com maior compreensão.
Ganha a sociedade.
É por isso que (von Foerster) se deve computar, computar, computar
indefinidamente (do latim cum : com, em companhia de, juntamente com +
putare: limpar, purificar, daí desbastar, podar, cortar, daí, em sentido
figurado: verificar uma conta, apurar, contar, calcular, avaliar, considerar,
estimar, julgar, pensar, crer, imaginar, supor).
Não há como computar sem o Sentimento, com o que a contribuição de
cada um, de seus morais motivos e de cada ponto de vista engrandecerão o
debate, iluminarão o cenário, acrescentarão nuances e aspectos antes
insuspeitos. A humanidade neste ponto de contacto evoluirá.
Os aspectos de formação (morais, éticos, característicos) e informação
(o conhecimento técnico, adjetivo e processual aliado ao conhecimento
pleno de conteúdo que serão exibidos no caso em questão) entrarão no
debate e os Sentimentos a respeito se refinarão e amadurecerão; os
Sentimentos Pueris (os arbitrários e os ressentidos) e os Escusos serão
suprimidos naturalmente.
Rememoremos que certo, enquanto advérbio quer dizer: na verdade,
com certeza, realmente, sem dúvida, de maneira irrevogável; que certo, as,
are, avi, atum quer dizer procurar obter uma decisão, debater, demandar;
que certus, a , um quer dizer resolvido, decidido, determinado, fixo,
preciso, constante, seguro, de confiança. Donde ‘certo’ quererá dizer algo
como “depois de debatida uma questão é, sem dúvida, tomada uma decisão,
que está determinada e é de confiança”.
A Certeza (se está certo é porque tal afirmação teve seu conteúdo
discutido e sobre ele chegou-se a um acordo) estará estabelecida até seu
ponto de alteração. E será Previsível enquanto durar aquilo sobre o que se
tem Certeza.
III – a Associação dos Magistrados sempre em conjunto com a Ordem dos
Advogados e Associações de Profissionais da Administração da Justiça,
Associação dos Promotores, Membros do Ministério Público e Advogados
do Estado, estariam em constante dinâmica suscitando temas jurídicos,
debates, seminários, estudos, convidando expoentes de outras áreas,
visando pleno e constante aprofundamento do conhecimento específico dos
diversos assuntos, constituindo-se em verdadeiro curso permanente de
mestrado lato sensu.
Tal dinâmica poderia ser suscitada por Associação de classe que,
inconformada com os rumos, patrocinaria um seminário para esclarecer
221
seus pontos de vista e informar aos demais profissionais sua visão a
respeito. Estes encontros teriam seu foco na informação.
Muitas sentenças são repudiadas por lhe faltarem aspectos técnicos,
conhecimento e por ignorarem – lex mercatoria – aspectos da vida ela
mesma. Estes fóruns seriam a oportunidade de todas as Associações
poderem esclarecer as pressões que sofrem e a verdadeira origem natural de
seus reclamos. Esclareceriam as suas posições e com tal atitude de cunho
docente todas elas tentariam evitar as críticas de que certas sentenças são
descoladas dos aspectos a que se referem porque o juiz e a juíza não têm a
menor idéia do que tratam os autos.
IV - Como alguém não pode ver que não vê o que não vê (von Foerster) as
fases anteriores visam estabelecer condições para aumentar o foco de visão
(já que só se vê que se vê o que se vê). Possibilitam também (mesmo autor)
que a sociedade “aja sempre de modo a aumentar o número de
possibilidades de opção”, o que é um imperativo ético. Pleno de Paidéia.
V – Falamos todo o tempo do Sentimento de Justiça.
Mas, não há como ser no mundo sem Amor.
Este grande Sentimento é verdadeiramente aquele que preenche carências e
impulsiona a Humanidade.
Não falamos do Amor como caritas na acepção cristã.
Se falamos do amor que se coloca nas coisas, nas ações, nas realizações,
nos objetivos, nos sonhos, naquele que cada um se dedica a si e à sua
família, falamos mais, falamos do único e grande Sentimento de que tanto
precisa qualquer ser humano porque se ele tende naturalmente a dá-lo tende
naturalmente a recebê-lo: “O amor que tende para as coisas boas e se faz
acompanhar da temperança e da justiça, seja em nós seja nos deuses, este
tem um poder ainda maior, e nos proporciona toda a felicidade, tornandonos capazes de estar juntos uns com os outros, fazendo-nos ser amigos dos
seres que estão acima de nós, isto, é dos deuses “. (Banquete, 188 D – Para
uma nova Interpretação de Platão, Giovanni Reale, 1997, tradução de
Marcelo Perine, pág 349)
Sobre isto dizia o já citado Bertrand Russel (1872-1970), o matemático, o
lógico, o formalista, o filósofo: “Busquei, primeiro, o amor, porque ele
produz êxtase – um êxtase tão grande que, não raro, eu sacrificava todo o
resto da minha vida por umas poucas horas dessa alegria” e que tinha “o
anseio de amor, a busca do conhecimento e a dolorosa piedade pelo
sofrimento da humanidade” como suas paixões.
E isto tem tudo a ver com a nossa dissertação.
222
9 – Conclusão
Partindo de um tema altamente polêmico e sobre o qual há pouca literatura
tentamos demonstrar que as decisões judiciais são a exata manifestação que
se lhes imprime cada juiz prolator de sentença e que tal atitude, na nossa
visão, não pode.
A importância, para a sociedade, de uma sentença bem prolatada e que
satisfaça as partes envolvidas é enorme e, além de causa de paz social, é
atrativo para negócios e investimentos que geram empregos e progresso.
Acreditamos ter desenvolvido os temas de que qualquer sentença é
determinada pelo uso do Sentimento; de que o Sentimento pode ser
atrapalhado pela Ideologia, pelo Preconceito, pela íntima convicção e pela
independência/livre convencimento, pelo mau uso da Equidade e pelo
Dever-ser com o qual o juiz não concorda ou que não aceita. Pensamos ter
dado uma receita aceitável, porém arbitrária, do ideal de Homem que
deveria viver em Sociedade e julgamos ter colocado em termos os ideais de
Certeza, Segurança e Previsibilidade, tendo abordado a temática, com a
qual não concordamos, de que a sociedade atual aceita a imprevisibilidade
por inevitável e que isto deve, e pode, ser evitado.
Apresentamos o problema e criamos um método original, dentre vários
possíveis, que visa conduzir o(s) julgador(es) em sua caminhada
profissional a buscar a Verdade e a Justiça, nortes de qualquer decisão
judicial, na nossa opinião, satisfazendo sempre, e sempre, o que é sua
obrigação, todos os Atores do Direito com os quais se relaciona(m).
Pensamos ter exibido a enorme angústia, insatisfação e insegurança que se
impõem às partes envolvidas quando cada cabeça gera cada sentença e que
está em computar indefinidamente a saída da pessoa que por função vai
julgar um caso, mesmo que inteligente e culta, mas permanentemente
limitada pela sua biografia solitária e pela pouca experiência vivida (por
maior que seja, será sempre pequena diante de tal desafio). É muita ousadia
da sociedade (senão ingenuidade) outorgar a uma simples pessoa, a um
simples ser humano, tanta responsabilidade, tanto poder. Há que se manter
a função, mas rodeá-la de cuidados, muitos cuidados.
Como o desenvolvimento do tema nos conduz à obrigação de computar,
computar indefinidamente, não quisemos, por congruência, fechar
nenhuma conclusão de maneira mais estreita por sabê-la válida enquanto
durarem os motivos que lhe deram nascimento. Encaminhamos, todavia,
223
cada pensamento sempre com envolvimento pessoal e opinião própria que
nunca nos furtamos de dar.
Na medida em que o tema não tem grande reflexão na literatura mundial e
nenhum acabamento, longe disso, aliás, se cabeças pensantes começarem a
se debruçar sobre o assunto ele terá, pela sua importância, a atenção que
merece e evoluirão imensamente os conceitos.
Este trabalho estará, então, anacrônico e merecerá – se merecer – uma que
outra simpática citação, o que demonstrará que atingimos o que
ambicionamos, ou seja, a ampliação do conhecimento sobre a
decidibilidade.
224
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