Sylvio do Amaral Rocha Filho Previsibilidade Decisória
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Sylvio do Amaral Rocha Filho Previsibilidade Decisória
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP Sylvio do Amaral Rocha Filho Previsibilidade Decisória A Busca de Sentença que satisfaça os Atores do Direito MESTRADO EM DIREITO São Paulo 2002 Lembrando Eça e sorrindo de sua ironia, bom brasileiro, prefiro ser um agricultor bem resolvido a ser um doutor mal traduzido do francês... Previsibilidade Decisória A Busca de Sentença que satisfaça os Atores do Direito Dedicatória: À Cristina que sempre cola meus pedaços e que é minha eterna revisora. À Izabel, ao Sylvio, ao Marcos e ao Paulo pelo tanto que me ensinam. A todos pela paciência que me devotam. A eles meu grande amor. À Lucia Leomil, minha avó, minha grande lembrança. Aos meus Pais pela sua busca incansável e imparcial de Justiça. 2 Agradecimento: Ao Professor Doutor Tércio Sampaio Ferraz Jr., meu orientador. Este trabalho ampliou-se graças à cultura, à visão, ao domínio e à firmeza do Mestre que, ao mesmo tempo, permitia ao Mestrando imensa liberdade de ação e responsabilidade naquilo que fazia. Há que se procurar pessoa de igual rapidez de raciocínio, mas não se encontrará quem tenha tanta simpatia, generosidade e bondade de coração ao orientar um Mestrando na feitura de sua Dissertação de Mestrado. A ele meus sinceros agradecimentos. Agradecimentos: Pelo interesse, pela paciência, pelo apoio e pelas sugestões: Carlos Eduardo Stuart Gilda Castanho Franco Montoro Ilana Casoy Rudá K. Andrade Sergio Domingos Pitelli Sylvia Maria Caiuby Novaes Pelo interesse, pelo apoio, pelas sugestões e pelas pesquisas: Konstantin Gerber 3 Agradecimentos: Ao Grupo Graúna – GG – extraordinário grupo de estudos do qual participei de janeiro de 1997 a março de 2001 e que se reunia todas as quartas feiras à noite para um sarau filosófico, um simpósio mesmo, fértil época de espanto e de investigação (e de enogastronomia), período alegre, pleno de harmonia, breve infelizmente, em que mais me senti perto da liberdade de espírito, se é que isto existe, ambiente causado pelo respeito, pela civilização, pelo entendimento, pelos propósitos comuns, pela afeição dos integrantes, pelas conexões criadas pelo self. Foi com eles que tudo começou. A eles, meu amor. Raquel Gazolla, a Mestra E o grupo Hugo Ribeiro de Almeida Luciano Bossi Maria Cristina Muanis do Amaral Rocha Motaury Moreira Porto Renato Tebaldi Silvia Cury Vânia Ribeiro Hermeto Vitória Maria Mendonça de Barros 4 I.) Prefácio “Previsibilidade Decisória - A Busca de Sentença que satisfaça os Atores do Direito”, foi um tema que surgiu sem compromisso em nossa mente depois que, durante a nossa graduação, observamos o Direito ser sempre explicado pelo seu lado racional e nunca pelo seu lado irracional. O que seria este irracional no Direito? Seria mesmo irracional? E o lado racional em que consistiria? Esse assim chamado lado irracional era desconsiderado, até desprezado, e sobre ele pouco se falava, ou, como às vezes percebíamos, era tabu. Faltava-nos à época, e durante muito tempo, vontade para abordar o tema e rigor classificatório para estudar o assunto. Passados muitos anos, surgiu um fenômeno no Brasil: vários Juízes do Trabalho, no fim da década de 80 no século passado, começaram a sentenciar com base em suas próprias convicções políticas e sociais e não mais de acordo com a lei, a jurisprudência em voga, e, daí, o tema voltou, vivo, a nos preocupar. Este o fenômeno que nos interessou. Esta a nossa motivação. Esses senhores passaram a ignorar o Código de Processo Civil e a Constituição sem nenhuma oposição e suas sentenças foram se tornando cada vez mais ousadas e criativas. Jogavam a força do Poder Judiciário na solução de problemas não jurídicos. Por sentença visavam consertar o mundo transformando-o no que eles achavam que o mundo deveria ser. Estavam decretando – racional ou irracionalmente? - o fim da Dogmática e inaugurando um positivismo sui generis – o próprio, aquele de cada um. Estavam dando livre curso aos seus Sentimentos e abandonando a imparcialidade e a objetividade. Passaram a sentenciar via seus (re) sentimentos pessoais, convicções e consciência, mediante preconceitos profundamente enraizados e determinantes subjetivos de a sentença ser proferida desta maneira. Não que alguns destes sentimentos não estivessem conforme o desejo de muita gente. O palco escolhido para este debate ou para a implementação das soluções é que estava equivocado. Estes juizes esqueceram-se que atuavam no Judiciário e não no Parlamento ou no Executivo, como deveriam. Imaginamos que, muito rapidamente, tais Juízes e seus auxiliares seriam alvo de reação de pessoas desprotegidas, que, vendo-se vítimas de injustiça por parte da Justiça, não teriam, de outra forma, o seu desagravo. Juízes de algumas Varas Cíveis começaram a adotar o novo sistema e sentenças baseadas na consciência desses juízes e em seus códigos particulares de justiça passaram, transbordantemente, a jorrar. 5 Paralelamente, as leis, várias delas, deixaram de contemplar com justeza os fatos e, sem que o legislador viesse revê-las, perderam sua plena abrangência e atualidade, o que possibilitou àqueles juízes mais condição para inventar Direito. A máxima “Sentença não se discute, cumpre-se”, já plenamente integrada ao ideário de pessoas respeitáveis, deixou de contemplar o contexto de que se originara (é de se notar que temos sérias dúvidas quanto ao sentido absoluto da máxima) e passou a significar outra coisa. Coisas estranhas começaram a nos acontecer: perdemos uma ação no Rio de Janeiro porque a Juíza, na sentença, declarou que não achava ser a lei 8009, que protegia a dignidade de nosso “abastado” cliente, uma boa lei e, assim, e por isto, ela mantinha a penhora de bens impenhoráveis; o dono de um carro importado abalroado por trás foi declarado culpado desta colisão que foi provocada por um motorista que dirigia um carro nacional, antigo e pobre, porque, dizia, de novo, uma Juíza, não na letra, mas na essência, era dono de um importado; a mãe de um cliente (este caso definitivamente ofendeu meu pudor jurídico!) teve seu único imóvel penhorado, apartamento onde, viúva, residia sozinha, pelo enfático motivo processual de ser a mãe de um devedor ilíquido; um Ministro do TST nos dizia que “os prédios na e ao redor da Ipiranga, com os Juízes dentro, deviam ser dinamitados”; outro do TRT nos dizia saber que “120 Juízes recém contratados eram formados pela CUT”; Juízes, como prevíramos, começaram a ser ameaçados, bem como alguns peritos judiciais; de outro lado, a assessora de um famoso Ministro do Tribunal nos garantia estar amarga porque era obrigada, pela lei, a fazer muitas injustiças por mês. Tais fatos – graves – despertaram nossa vontade de pesquisa. O que se passava? Só neste país isto acontecia? Sabíamos que se falávamos do Brasil falávamos do mundo. O fenômeno, na nossa opinião, está além, muito além, da sentença contra legem (ou mesmo praeter legem). O Judiciário precisa ser rediscutido e a discussão deve começar no Juiz ou na Juíza que é aquele ser que, a final, põe término à disputa. A nossa análise corre longe da apregoada lerdeza da Justiça apesar de ser esse atualmente o grande e único problema na visão dos doutos, e, portanto, longe das necessárias medidas processuais e/ou de fluxo de papéis visando acelerar decisões. A demora da Justiça em se pronunciar é um enorme problema que pode ser resolvido por estudos que visem administrativamente facilitar o fluxo dos papéis com acurada análise de prazos, produção, utilização de súmulas vinculantes (ou do princípio do stare decisis) e impedimento da possibilidade de uso de recursos protelatórios e de má fé: são outros problemas com outras soluções. 6 Acelerar decisões não é garantia de que boas decisões serão proferidas. Acelerar decisões pode significar que más sentenças serão proferidas mais rapidamente. O problema que se põe, no nosso entender, está na tomada de decisão e na presidência da ação e não no processo que visa acelerar industrialmente a produção de decisões rápidas e limpas. Tem origem, a nosso ver, na natureza do homem e no que seja realmente decidir. Tem origem, também, na excessiva singularidade dos juízes e no ineditismo de algumas posturas que só adquirem hipótese a partir dos proclamados princípios fundamentais de ‘independência e livre convencimento’ do corpo judiciário. E este estado de coisas nos conduz à falta de previsibilidade decisória. Aí reside, no nosso entender, o cerne do problema com graves consequências para o mundo jurídico e dos negócios em geral, principalmente, os internacionais. Sofre as consequências qualquer nação que tenha juizes que pensem que suas obras particulares são universais, porque acreditam de maneira patológica na máxima kantiana que convidava o ser humano a agir como se de sua ação defluisse uma máxima universal. E assim caminha o andor. Sentenças inesperadas e desligadas do cenário jurídico conhecido passam a angustiar atores do direito com visão atrelada mais aos fundamentos tradicionalmente aceitos que à tomada singular de posição. Fatos graves começam a acontecer, todos, porém, em nome de boas intenções e perpetrados por pessoas que agem de acordo com sua própria consciência e sentimento de justiça. Justiça, que por ser apenas uma palavra, designa tantas coisas diferentes entre si, e que, por isto mesmo, adapta-se sempre à vontade de quem acredita que ela é assim e não de outro jeito. Está criada a desordem jurídica e surge a insegurança, mal a ser evitado. Definitivamente a imprevisibilidade faz-se presente nas decisões. A máxima “cada cabeça...” está despudoradamente real. Pessoas que perdem acham-se vítimas de flagrante injustiça; pessoas que ganham acham que a justiça, finalmente, está feita (ganhadores e perdedores falando de coisas diferentes, de justiças diferentes). Não há mais respeito à decisão: juízes criticando advogados, advogados criticando juízes, associações de classe refutando veementemente algumas sentenças; ‘coitadinhos hipossuficientes profissionais’, mantendo-se neste papel, nesta posição, muito esperta, aliás, criando situações para serem indenizados, criando fatos para, via expropriação da outra parte, terem um pouco da “parte que lhes cabe neste latifúndio”; alguns Juízes absolutamente desconectados da realidade, ignorantes dos assuntos constantes dos autos, sentenciando de acordo com sua visão e não de 7 acordo com a realidade dos autos e, o que é pior, da própria vida; outros, alegando economia processual e excesso de trabalho, tirando o problema da frente, negam a uma das partes o direito de defesa, e por estes meandros vai o andor. A Positivação do Direito está em crise. Começamos a pensar qual o motivo de estes Juízes procederem desta maneira (e, o que é grave, sem oposição ostensiva dos outros Juízes mais conectados com o sistema vigente). Começamos a pensar que a atuação dos advogados e dos membros do Ministério Público caminha atualmente no sentido de atrapalhar – e não de ajudar - o processo, o que compreensivelmente radicaliza mais a posição daqueles Juízes. Os problemas econômicos e políticos, de enorme relevância e importância, não podem ser abordados por nós num trabalho que visa, antes de tudo, ser jurídico (apesar de percebermos, em algumas sentenças, uma imensa, enorme ignorância de fatos econômicos, fatos políticos, fatos sociais, até históricos, por parte dos juízes); mas – como fazer? – se o tema sai pela porta da frente, volta pela dos fundos quando se analisa a função social da propriedade ou do contrato, por exemplo! As Escolas de Direito formando tribunos desconectados da realidade global apontam aos atores os cenários “um ganha-outro perde” e “pode-não pode”, o que não faz absolutamente parte do mundo concreto, pelo menos dessa maneira. Esses tribunos, levados ao terror, quando, confrontados com o mercado, percebem não estarem absolutamente preparados para siquer entender a linguagem com que se lhes falam os... “outros”. Tais escolas absolutamente capacitam os seus alunos a trabalhar com o conceito que ora se discute, o da Súmula Vinculante, fundado no caso a caso, e que nunca será apreendido por quem se informa através de aulas expositivas que não preparam o aluno para o caso concreto. Assim, a Justiça-em-si e seus inúmeros significados, um dos quais é “dar a cada um o que é seu”, podem ser pensados por nós. Alvo de reflexão pode ser, também, o Poder Judiciário, ou seu outro nome, a Justiça, o órgão da Administração que se encarrega de por fim às disputas por intermédio de uma sentença. Achamos que – sem nenhuma pretensão, claro, de apresentarmos um conceito universal, intersubjetivo da justiça-em-si, tarefa impossível a nosso ver e em que falharam mentes muito muito mais brilhantes que a nossa – podemos (1) falar sobre Justiça sim e, partindo da primeira análise (2) podemos apontar criticamente falhas conceituais que desumanizam a Justiça enquanto órgão que põe termo às disputas e (3) podemos opinar sobre o distanciamento dos países que, como o Brasil, afastam-se das regras mundiais de segurança jurídica. Achamos, também, que tais pensamentos seriam mais proveitosos se caminhassem pelo viés da “Justiça sempre mais próxima do que ela vier 8 valorar” e mais distante do viés da “Justiça como conceito estanque, pétreo, abstrato e superior, longe do que ela quer valorar”. Ou seja, humanizar, aproximar, contextualizar, focar a questão, desdivinizar o tema, considerando imparcialmente as partes envolvidas e sua relação jurídica, buscando desta relação particular os princípios mais genéricos que possam ajudar a esclarecer o caso; procurar buscar sempre a via do particular para o geral e não o contrário. Mostrar que é muito mais fácil desconsiderar a Justiça no seu sentido único, pétreo, infalível, regente das ações humanas e trabalhar a partir do sentimento de Justiça que todos temos no nosso íntimo, buscando aproximar, depois de muita dialética, com a boa fé e a lealdade que a maioria tem dentro de si, através deste denominador comum, a partir, portanto deste desejo de Justiça que todos temos, qual a que se aplicaria ao caso particular em questão. Em outras palavras, observando a Tópica e a Equidade, customizar a Justiça e torná-la, finalmente, previsível. Vamos passar nossas idéias pelo “sentimento” (adotando a definição de Jung e, a seguir, acolhendo integralmente as teses de Damásio) e nada, ou quase nada, pela “razão”, o que explica melhor os novos eventos e dá mais veracidade e originalidade ao nosso trabalho. Esse, no nosso entender, foi o maior desafio: explicar que o Sentimento é responsável pela decisão humana e que julga valores. O segundo foi colocar a Razão no seu devido lugar, ou seja, como faculdade humana que apenas verifica verdade e falsidade, descreve e detalha fatos e não os valora. O terceiro explicar o homem como animal semiótico. Adotamos o viés de mostrar as vantagens dos vasos comunicantes que aproximariam os diversos pensares das diversas instâncias judiciais entre si e com a sociedade. E partimos do ponto de vista, finalmente, de mostrar as desvantagens do pensamento jurídico diverso, improvável, impreciso, inesperado e incerto, o que torna esse sistema alvo de enorme desconfiança e desdém, dentro do país, por seus cidadãos e fora, por parte do mundo globalizado. Enfatizamos que Certeza e Segurança Jurídicas são pilares do Direito na visão de muitos doutos, mas ressaltamos que, na nossa visão, são quimeras. Enfatizamos que aqueles conceitos foram basicamente desenvolvidos como mitos, preenchendo lacuna ideal e romântica que foi despertada no homem comum do povo. E salientamos que a não-certeza e a não-segurança são próprias do ser humano. Justificamos que Certeza, Segurança e Previsibilidade são necessárias para o desenvolvimento humano e que, bem por isso, há que se criar um sistema que circunscreva no limite do possível as atitudes dos juízes de tal forma que torne as sentenças do Tribunal, Certas, Seguras e Previsíveis, ou seja, estáveis, até que desestabilizadas, harmonizem-se de novo e assim permaneçam enquanto não surgirem motivos para a próxima alteração. 9 Esta consideração toma relevância numa hora em que a Arbitragem vem sendo tão discutida como excelente alternativa às injustiças da Justiça. Foi assim que pensamos fazer uma DISSERTAÇÃO DE MESTRADO, com o título de Previsibilidade Decisória A Busca de Sentença que satisfaça os Atores do Direito A forma utilizada por nós não é bem a usual. Não vemos na Filosofia um mero exercício intelectual. Ela tem, é certo, menos força comunicativa e persuasiva que as Artes; pensamos, todavia, que a velha senhora indica caminhos e está sempre conectada com seu tempo, influenciando e sendo, reciprocamente, influenciada. E que tem, academicamente, estilo próprio de apresentação, que é caro aos seus cultores, mas que, imparcial, fotográfico e encadeado, distante, árido e hermético, afasta pessoas comuns, mesmo letradas, que percebem as coisas desde que venham com uma dose de leveza maior. Às vezes um trabalho é considerado do ramo apenas por se enquadrar rigidamente nas leis formais. Às vezes, a falta desta forma acadêmica desqualifica um trabalho que passa a ser não filosófico apenas pela maneira de se apresentar. Arendt, Foucault, Nietzsche, Platão, Alf Ross, para citar uns tantos poucos, mas brilhantes, geniais autores, lidaram com o problema e dele se desvencilharam com denodo, criando estilo próprio que, sem perda de profundidade, os aproximou das pessoas. Se o objetivo do autor é só a Academia que se valha apenas da linguagem própria; se, ao revés, pretende além da Academia atingir pessoas não acostumadas (juízes, promotores, advogados, estudantes...) deve, este autor, a nosso ver, procurar uma forma de abordagem mais ampla. Deparamo-nos na feitura deste trabalho com o problema: seguir a forma acadêmica ou abrandá-la. O tema escolhido era o grande complicador: além de ser tema novo, sem grandes referências anteriores, é de difícil apresentação, compreensão e aceitação. E é polêmico. Tentamos, assim, mesclar as duas formas com o objetivo de, sem perder de vista o academicismo, tornar mais palatável o nosso trabalho. II – Objetivo 10 Traçar, pois, um caminho da Ciência à Ética é a tarefa que se apresenta à reflexão filosófica contemporânea, o que é muito diferente e infinitamente mais árduo do que anexar a ciência a um sistema ético já constituído. H.C. de Lima Vaz As consequências das atitudes individuais e singulares, sempre que desconectadas de outra visão do outro, são funestas. Enquanto pensa estar sendo esperto e criativo, tal pessoa, na realidade, põe-se é à margem do sistema jurídico mundial, o que demonstra que, no fundo, falta esperteza e sobra ingenuidade. A vantagem da atitude individual e singular esboroa-se pelo vazio que esta atitude encerra em si mesma quando desvinculada e sem maiores compromissos. Sem uma Escola de Magistrados com a abrangência necessária para formar profissionais da decisão fomentando a uniformidade funcional e o conhecimento amplo de temas ligados ao mundo real, as decisões que põem fim aos conflitos tornam-se descoladas dos casos sobre os quais versam; as Escolas de Direito precisam formar profissionais conectados com as exigências de um mundo globalizado, rápido, ágil, criativo e mais interessado em fazer negócios que em eliminar os parceiros de negócio; sem comunicação entre os Juízes de Primeira Instância e os de Instâncias Superiores, inúmeras sentenças vão sendo substancialmente modificadas em cada instância por que passam; sem tempo para que os Juízes possam desenvolver bem sua função de julgar, o que redunda em sentenças açodadas e isto nas diversas instâncias; sem Justiça Distributiva entre os próprios Juízes, ou seja, sem quem distribua méritos aos que têm e encaminhe aqueles que se desviam; e, finalmente, sem se reconhecer que a função de julgar tornou-se tremendamente solitária o que permitiu a muitos Juizes desenvolverem a atitude de, através de suas sentenças, pretender mudar o mundo, a inconsistência e incerteza grassam no mundo jurídico. Criou-se a insegurança jurídica e a imprevisibilidade passou a ser a regra. Nos fóruns em que domina a imprevisibilidade vale a pena tentar uma ação: pode dar certo! Alea jacta est. Está criado o Direito Lotérico. Tais centros estão fora do circuito jurídico mundial, o que traz inúmeras consequências danosas – inclusive prejuízos - ao mundo dos negócios: falta de respeito ao Judiciário, falta de confiança no Judiciário, ausência de conhecimento das idéias jurídicas e, finalmente, total desdém pelo sistema jurídico como um todo e pela figura de seus atores, advogados, promotores, juízes, funcionários da Justiça em geral, o que, de per si, acarreta fuga de 11 capitais e dos negócios de que tanto se necessita para outros países que prometem e cumprem o voto de atuar com mais segurança, certeza e previsibilidade nas regras e normas negociais e jurídicas. Boa parte das sentenças judiciais pode ser meramente a expressão verbal de um sentimento não elaborado: o julgador não conclui, não reflete, não argumenta, não estuda, ele apenas julga conforme o sentimento primário que interiorizou e disso não se dá conta. A grande maioria das ações já está pré-julgada. É o uso da técnica jurídica para resolver um conflito – principalmente o conflito do juiz de Primeira Instância – e não o das partes envolvidas. É a busca de uma justiça cara ao julgador e não aquela adequada ao caso concreto. E pior e incompreensível para nós e para as partes, é a atitude de abstração (ou seja, do caso concreto à generalização, desta à abstração, para o final atingimento de uma idéia que já está muito distante e longe do caso concreto que está em julgamento, e que foi o ponto de partida) que se adota neste mundo jurídico: como a atitude de alguns médicos que tratam somente da doença e se esquecem do doente, esta atual ausência de virtude jurídica caminha tecnologicamente, como convém, ao sabor da forma, da processualidade sobre o conteúdo, o que nos leva a afirmar que estamos em um mundo muito estranho: a tecnologia descolou-se da ciência, a racionalidade descolou-se da razão, o direito da justiça: há total perda do sentido! E por falta de Paidéia - no exato sentido que lhe atribuímos no trabalho que pretendemos desenvolver. É pensando nesses assuntos que o presente trabalho visa despertar dúvidas onde sempre houve tanta confiança e problematizar questões aparentemente resolvidas, pretendendo discutir a busca de maior confiabilidade, tradição, certeza, dignidade e paz. De previsibilidade, enfim, que consideramos como a conseqüência natural de um estado de coisas em que funciona harmonicamente a Justiça. A nossa apresentação do Ser deixará a impressão de que não há alternativa ao fato de que cada pessoa deve mesmo decidir de acordo com seus critérios. Deixará a impressão de que é normal – e mais ainda, que é desejável por inevitável – a imprevisibilidade. Não é impressão. Isto é exato se a cada um for permitido decidir conforme seu livre convencimento. Tal manifestação não pode. O juiz ou a juíza deve decidir de acordo com o que pensa o corpo com o qual está conectado indelevelmente e não por liberdade e independência de postura que chega às raias da rebeldia. A imprevisibilidade gerada causa, assim, sensação de injustiça: caso a questão proposta, sorteada, venha a ser discutida perante um juiz ou um tribunal que rejeita a matéria embora haja outro que a acolha, resta no querelante a sensação de que recorrer à Justiça é um processo lotérico. A torcida pelo 12 sorteio será maior que pela decisão, pela justeza da postura, pela defesa da tese e pelos argumentos exarados. Tal situação é insuportável e mexe com o senso de dignidade do cidadão que, ferido, não verá mais sentido na Justiça e tornar-se-á apático ou revolucionário. Nosso corpo humano é previsível; assim em ambiente previsível (interno) vivemos nós: a doença é um desvio desta previsibilidade. O meio ambiente ou a natureza é previsível; assim em ambiente previsível (externo) vivemos nós: acidentes da natureza ou manifestações violentas são causa de imensos problemas. Imprevisível é a relação dos seres humanos entre si e entre o homem e a natureza. Este é o cerne do problema a resolver. Como viver na incerteza, na imprevisibilidade? Será possível ou desejável? De mais a mais, tornando prático o tema, como decidir questões triviais ou mesmo negociais sobre um investimento de retorno mais lento ou no âmbito da família sobre a educação dos filhos se o ambiente for de total imprevisibilidade? A imprevisibilidade, e não falamos daquela que está no bojo de qualquer atividade humana enquanto contingente, ou, de outra forma, a imprevisibilidade jamais prevista, aquela que não era provável é a que tem efeito danoso, descontinua o progresso advindo do risco, quebra a evolução normal e perpetua um cenário caótico. Como decidir questões e proferir sentenças judiciais que satisfaçam as partes e a sociedade? Como ser previsível? Diz Peter M. Hejl (O olhar do Observador – Paul Watzlawick e Peter Krieg – Editorial Psy II – 1995): “sociedades e, portanto, cada um de nós, necessitam (sic), ao menos para seu funcionamento interno, de realidades estabilizadas como referência presumível e previsível para procedimento e comunicação. Somente a trivialização, isto é, o tornar-previsível, torna comunicação e atuação coerente possíveis. Mas isto requer sobretudo realidades socialmente estabilizadas – e então, novamente, possibilidades de modificá-las. É necessário, portanto, estabilização e desestabilização, esta até mesmo na forma aparentemente paradoxal da desestabilização estabilizada ”. Esta atitude sempre em devir, no bojo dos debates, instrumentária de eleições, inclusive as partidárias, de seminários, de estudos, de diálogos, nos inúmeros níveis internos de uma nação, potencializa a máxima famosa de Heinz von Foerster: “aja sempre de modo a aumentar o número de possibilidades de opção”, o que é um imperativo ético. Finalmente explicar a expressão “Atores do Direito”: tentaremos em todo o decorrer do trabalho demonstrar que o Direito não é operado. Que não há, portanto, Operadores do Direito. Tentaremos mostrar que o Direito é vivido por advogados, juízes, promotores, funcionários da justiça, mas, principalmente, pelo cidadão comum, mesmo quando não estiver parte 13 integrante de um processo judicial; tentaremos demonstrar que ele está no íntimo do Ser de todas as pessoas envolvidas e que estas pessoas atuam de maneira a exibir a realidade que perceberam e que, portanto, vivenciam. Daí serem Atores do Direito. Um alerta: há alguns poucos textos que aparecem repetidos no curso desta dissertação: o motivo é que seu sentido originalmente dado alterou-se com o desenvolvimento do raciocínio, o que exige a sua reapresentação – e tal volta permite ao leitor analisar – e sentir - como um ponto de vista altera-se quando se amplia a visão do mirador. III- Limites Há moldura no trabalho. Ficaremos somente dentro do âmbito dos Sentimentos e de sua importância na decisão. Partimos da disposição de que os Sentimentos presidem a decisão, preparam o Homem para a vida e o previnem da dor. Não há, desde sempre, educação que ensine o ser do homem a trabalhar com os seus Sentimentos. Ele não sabe como funcionar com esses Sentimentos. Não os aproveita como deveria. É como se homem tivesse duas pernas para andar e fosse ensinado a andar somente com uma delas. Saci-Pererê, o homem saltita com uma perna só e se vale somente da Razão enquanto os Sentimentos ainda estão lá a funcionar normalmente e a exercer seu trabalho. Há um turbilhão desconhecido, incontrolado, a mover o íntimo do homem que não o reconhece nem sabe usar com sua plenitude o que se lhe conturba por dentro, salvo alguns muito afortunados e intuitivos que por usarem as duas faculdades se sobressaem muito além dos demais. Este desconhecimento e esta ignorância facilitam a incursão deletéria dos preconceitos, propiciam a ação nefasta dos outros Sentimentos (por exemplo da Cobiça sobre a Justiça), fazem aparecer a ideologia e a íntima convicção etc, tudo atrapalhando o homem em sua busca de tomar decisões corretas. Proporemos no fim uma saída problemática para o tema tentando trilhar um caminho com serenidade o de computar, computar infinitamente. Proporemos, também, sempre problematicamente, um método, um conjunto de regras que permitam afunilar atividades e aproximar a decisão do caso concreto harmonizando o reclamo das partes com as exigências da sociedade. 14 Não faremos nenhuma incursão de fôlego, apesar da sua importância, nos campos da Lógica na decisão, da Retórica na decisão, da Tópica na decisão, da Erística na decisão, da Heurística na decisão, das regras do Processo Civil e Penal na decisão, e não abordaremos aspectos históricos, políticos, sociológicos e psicológicos no ato decisório, nem qualquer outro aspecto, para nos mantermos absolutamente dentro dos limites rígidos da moldura pré-estabelecida. V - Metodologia Não pretendemos fazer rigoroso e científico trabalho de campo. O Método será misto: em um tempo, experimental ou indutivo, de outro, racional ou dedutivo. Às emoções e ao sentimento daremos livre curso. Será da natureza mesmo do ser do homem que se deduzirão os princípios gerais do presente trabalho. V - Sumário 1- Sentimento. pág 2Justiça. É uma palavra. pág 2.1-Uma construção humana: alguns mitos. pág 2.2- Outra construção humana: o logos e algumas concepções de diversos filósofos. pág 3- Ideologia. O Juiz e a Juíza resolvem mudar o mundo. pág 4- Dever-ser inventado. pág 5- A equidade em Aristóteles, na Retórica. A nova equidade dos juízes atuais. pág 6- Compreensão jurídica e capacidade jurídica de arcar com as consequências dos próprios atos. pág 7- Certeza. Segurança. Previsibilidade. pág 8- Que justiça esperar. Pág 9- Conclusão. Pág 15 VI – Resumo: Previsibilidade Decisória A Busca de Sentença que Satisfaça os Atores do Direito Tentaremos demonstrar, esta é a tarefa difícil, que é o Sentimento Humano que decide, sopesa, aprecia, estima, atribui valor, conclui, sentencia; que a Razão diz quanto mede e o Sentimento diz quanto vale; que a Realidade (e as coisas) são construídas por nós em nossa mente; que são avaliadas e especificadas pelo Sentimento. E que bem por isso não há Operadores do Direito, mas Atores do Direito. Afirmaremos que dado o culto da Razão ensinou-se que o Sentimento, atividade então apresentada como menor, deveria ser censurado, omitido, desprezado, engessado, manietado: mas, não adianta, ele está lá sempre a cumprir seu papel e que não há como ignorá-lo; que por não ter sido entendido seu papel, o Sentimento (ao contrário da Razão) não se desenvolveu nem se refinou o que é causa de problemas para o ser humano. Tentaremos demonstrar que em um conflito há falha na comunicação entre as partes; que o Sentimento é um meio de comunicação; que na análise do conflito aparecem os Sentimentos que causaram a ruptura; que esta comunicação precisa ser restabelecida; que os Atores do Direito (as partes, os advogados, os juizes...) apresentam-se no Processo com base em seus Sentimentos e que, afinal, no atual sistema judiciário, prevalecerá como solução definitiva a determinada pelo Sentimento do juiz que decidir a causa o que pode, ou não, provocar mais problemas. Procuraremos defender a posição de que a sentença não deve somente terminar o processo, mas deve terminá-lo satisfazendo as partes e a sociedade. Tentaremos estudar a questão de maneira a tornar previsível o ambiente jurídico de modo a proporcionar às partes conhecimento prévio do cenário real, que é este enquanto não for alterado, e que elas podem, via este conhecimento, planejar suas vidas e assumir seus riscos conscientemente. Tentaremos, ao final, copiando o sistema humano propor um sistema judicial que apure primeiro racionalmente a verdade envolvida nas proposições em debate, segundo que aplique a intuição humana ao assunto, terceiro que tente conciliar as partes e reconstituir sua comunicação atribuindo-lhes sua proporção de razão visto que em muitos processos as partes têm reciprocamente erros e acertos a ajustar não estando totalmente certas nem totalmente erradas o que quase nunca será contemplado em uma sentença judicial no atual modo de encarar o assunto e, por derradeiro, 16 aplicar o Sentimento elaborado e refinado às decisões judiciais de forma a contentar as partes envolvidas mais do que contenta o atual sistema. Para tanto optamos por apresentar nossas teses da seguinte maneira desenvolvendo-as nos seguintes capítulos: 1-sentimento: procuraremos demonstrar que o Sentimento é o responsável pelo ato de decidir, de escolher, de sopesar, de apreciar, de estimar, e que tem sede própria no organismo, situando-se no lobo frontal. Isto explica porque (valor nas coisas é o homem que põe; cada pessoa tem seus próprios sentimentos) cada cabeça uma sentença. O Sentimento é um meio de comunicação e não consegue ficar represado, daí o homem como ser semiótico e não como animal racional. O juiz e a juíza que prezam sua independência e seu livre convencimento como exibição de soberba, poder e particularismo não comprovam sua independência e seu livre convencimento. No capítulo seguinte daremos resumidamente um panorama dos Sentimentos Humanos eleitos como virtuosos, bons e justos, com ampla ênfase no Sentimento de Justiça como exemplo do que de mais edificante o homem construiu e comunicou aos seus pares como paradigma. 2-Justiça. É uma palavra: só uma palavra construída (inventada) pelo homem e daí as “obras” que ele criou a respeito. É um sentimento dos mais fortes e um dos que dá sentido à vida. Um apanhado nos mitos e no logos como exemplo do que o engenho humano produziu e com isso mostrar alguns dos limites sentimentais mais representativos a que chegou nossa civilização. Nos três capítulos seguintes dissertaremos sobre os obstáculos que elegemos como aqueles que podem arruinar um sistema que vise o justo entre as partes: a origem deletéria da ideologia (no sentido que lhe atribuímos) obscurecendo o Sentimento (e bem assim o Sentimento de Justiça) conferindo-lhe impureza; o dever-ser como manifestação formal de invenção humana que visa determinar o comportamento humano de acordo com o Sentimento de quem escreve a norma e equidade como a percebeu Aristóteles e como, via Sentimento, houve desvio deste instituto que é utilizado por pessoas que dele se valem para executar seus propósitos e não objetivamente o instituto. 3- Ideologia. O juiz e a juíza resolvem mudar o mundo: a ideologia no seu sentido mais lato agregando-se nefastamente ao sentimento de justiça do magistrado. Saída do campo jurídico e entrada no campo político. Ideologia alterando e impactando a sentença. 4- Dever ser inventado: valor na norma é o homem que põe; o que é o dever ser; se ele pertence ao mundo da ontologia ou não; se ele prescreve conduta ou se ele imputa responsabilidade (sanção e coerção); o dever ser é 17 inventado pelo homem e estabelece o que é proibido, permitido e obrigatório na conduta humana e se a ele devem obediência o juiz, a juíza e a sociedade. 5-A equidade em Aristóteles na Retórica. A nova equidade dos juizes atuais: que é isto: equidade? Qual a equidade dos juizes? Há como aproximar a justiça do caso concreto? É melhor a Justiça bipolar, legal e positivista do ‘pode não pode’ ou aquela que aproxima o dever ser inelutável ao caso concreto e particular. No capítulo seguinte uma criação problemática e totalmente arbitrária e não aprofundada de características que devem no ver do autor resolver os problemas anteriormente apontados e permear pessoas com Sentimentos nobres, refinados, cultos e evoluídos para que computados, computados indefinidamente possam constantemente avançar. 6-Compreensão jurídica e capacidade jurídica de arcar com as conseqüências dos próprios atos: autonomia, dignidade, fragilidade e integridade dentro da moldura da responsabilidade social e da solidariedade: uma visão européia a que agregamos a autenticidade e o amor à vida. Na medida em que evoluem os Sentimentos Humanos pode-se criar um cenário benfazejo ao homem que deseja segurança sem afrontar o espírito combativo dos que desejam assumir riscos? É o que procura definir o capítulo seguinte 7-Certeza. Segurança. Previsibilidade: formam um conjunto que é um dos três pilares do direito sendo os outros dois a Justiça e o Fim do Direito: não há previsibilidade no Judiciário. É causa de evolução e, eventualmente, de progresso. As diversas teorias do “realismo americano”. É desejável? Há previsibilidade em alguns países? O princípio do stare decisis. Os métodos atuais satisfazem esta busca de previsibilidade? Qual método deve conduzir esta nova busca? Há tal método? É o que procura inaugurar o capítulo seguinte. 8-Que justiça esperar: não há saída fora da máxima de Heinz von Foerster: conhecer é computar, é computar, é computar... e assim infinitamente (ou seja compartilhemos nossos sentimentos e nossas razões, nossas diferentes visões a respeito dos assuntos e tiremos seu denominador comum até a próxima alteração do ponto de vista). O sistema judiciário copiando o sistema humano para que humanas sejam as decisões judiciais. 9-Conclusão 18 1- Sentimento 1.1 – introduzindo o tema Não há possibilidade cientifica de podermos comparar um valor a outro e afirmar racionalmente qual o melhor. Não há, também, exceto pela fé, a possibilidade de elencarmos valores absolutos, como não podemos, exceto pela fé, crer em Deus e nos mistérios. Valores nos fatos são os homens que põem. Valores nas normas são os homens que põem. É tudo uma construção humana bem humana. Construir ou Inventar, nesta acepção é escolher através de um processo mental dentre as poucas alternativas úteis qual a melhor naquele instante e descartar todas as outras inúmeras alternativas pois dadas como inúteis. Fatos da Realidade são elencados, dispostos, descritos e detalhados pela Razão; mas são comparados, sopesados, valorados e, um dentre eles pinçado, e aplicado, como o melhor naquele instante, pelo Sentimento humano. A Razão estabelece quanto algo mede e o Sentimento quanto este algo vale. Sentimento cada homem tem o seu. Valores, assim, cada homem tem os seus. O fato, que em si é isento de valor, existe independentemente do pensamento humano ou do que dele pense o homem: a crença humana que descreve o fato e que se consubstancia numa proposição é que pode ser logicamente verdadeira ou falsa sem ser necessariamente boa ou má. Uma norma será valiosa (valente, válida, valorosa, com valor) se efetiva. Pensou-se muito tempo que era a Razão que nos ordenava a escolha certa. E por isso era a Razão (logos) tão cultuada e divinizada. Sabe-se agora que a Razão não tem essa função: cabe ao Sentimento (não confundir com emoção, nem com humores, nem com intuição) ou Feeling, ou seja, uma forma racional (por oposição a emocional) de pensar sem discurso, a tarefa de escolher dentre os valores decidindo por um. O Direito e a Moral são sentimentais quando prescrevem conduta e imputam responsabilidade; não são racionais a nosso ver. Sabe-se mais, sabe-se que a sede física do Sentimento está no lobo frontal e que esta é a parte do cérebro que é ativada quando um ser humano tem que se posicionar ou escolher ou decidir ou julgar ou sentenciar (não confundir, portanto, com concluir stricto sensu, ou seja, concluir pela técnica lógicoformal ou pela matemática, cuja sede física parece estar na região dorsolateral do cérebro1. A decisão, portanto, é, ab ovo, atividade 1 – conforme Damásio 2000 pág 215. 19 eminentemente pessoal, individual e intransferível. E é – cuidado –, porque fruto do Sentimento, presa fácil de pré-conceito e ideologia (e também de outros sentimentos que tenham postura dominante naquele instante: uma decisão sobre justiça pode ser modificada pela inveja ou pela soberba ou pela ira ou pela cobiça, por exemplo). Esta é a origem de sentenças se diferenciarem tanto umas das outras embora versando sobre fatos semelhantes – ou mesmo idênticos - e tendo por fundo a mesma norma, e é, ao mesmo tempo, a causa de várias sentenças proferidas por vários magistrados atingirem a mesma conclusão final apesar de cada juiz partir de uma motivação diferente. Esta a origem da imprevisibilidade decisória, mal a ser atacado. Modernamente não somos treinados para trabalhar com nossos Sentimentos nem para perceber neles a importância que têm em nossa vida. Somos ensinados a cultuar a Razão e a desconsiderar os Sentimentos. Somos treinados a escondê-los de nós e dos outros. Somos levados a reprimi-los. A realidade é uma percepção na mente e totalmente construída (inventada) pelo homem. Cabe ao homem, autônomo e autárquico, criar o seu universo: é sua responsabilidade2 , é sua faculdade, com exclusão de qualquer outro quadro ou entidade, poder construir, através de boas escolhas, um mundo justo e afastar o injusto. A base de valores será sempre uma escolha intransferível do homem. Nós somos o que decidimos ser, dentro de nossa limitada margem de manobra. Está na uniformização do método e na conseqüente procura das decisões certas (no sentido literal do latim), tornando-as éticas e objetivas, o mais que puderem ser, e, por um tempo, previsíveis, um dos grandes desafios que surgem no limiar do século XXI. Como enfrentá-lo? * 1.2 – ampliando o foco É fundamental, para dar início e abrir a proposta, novelar um pouco: Imagine um jogo (de sedução, por exemplo)3 do qual você não participa apesar de querer ser parte. Você não consegue estar dentro “naturalmente”. Não foi convidado. Inconformado você se esforça. Quer fazer parte. Daí você observa o jogo. Estuda o jogo. Suas variáveis, seu espectro, seu escopo, seus pontos em comum, o que causa o quê, o que é conforme e o que não é, o que afasta e o que aproxima, o que se relaciona com o quê, a teia de relações e de relacionamentos, as alianças, os blefes, os aspectos físicos e sensoriais, o cheiro, as partes envolvidas, a arte de representar: 2 3 (a responsabilidade é de quem escolhe dizia o arauto n’O Mito de Er) ou de decidir ou sentenciar, ou outro qualquer... 20 tudo enfim. Você se envolve. Faz escolhas. Comove-se. Fica com energia a flor da pele. Seus olhos brilham. Você retira suas conclusões. Dos casos particulares você extrai, desvela leis gerais. Você compara com o mesmo jogo jogado entre outras pessoas, de outras idades, de outros lugares. E desta análise você retira regras mais gerais. Até abstrai. Você passa a compreender o jogo – dentro da sua limitada capacidade de visão - e pode tornar-se naturalmente integrante: mas, se dele não puder participar, que pena, ao menos, você já pensa saber o por quê! É curioso saber que podemos observar algo e, ao mesmo tempo, nos observar como atores que atuam por dentro daquilo que se observa, ou seja, nós podemos observar algo e a nós mesmos enquanto parte, tudo enquanto estamos de fora como observadores. Inteligindo. Sentindo o que sentimos e sabendo que há um eu que está sentindo. Mas sempre inteligindo. E, daí, formulando regras que encontramos por nós mesmos como se as coisas se nos revelassem, que as leis da natureza estão implacáveis, inelutáveis, à nossa disposição 4. Desde sua origem que o ser humano começou a querer saber o que é a Inteligência (ou Razão, ou Logos, ou Verbo, ou...) e louvou-a sobre tudo o que existia, verdadeiro atributo humano, aquele que nos distingue: somos animais racionais, dizemos com soberbo orgulho. E a Razão foi separada da Emoção, esta dita parte menor de nossa constituição material, e que, aliás, deveria ser controlada e censurada pela outra. Mais tarde veio a teoria da convivência: uma precisa da outra e está na sua Harmonia o segredo. Teorias e teorias foram gastas; ficaram a dever a demonstração de que uma teoria era melhor que a outra e, nunca, a superioridade de qualquer delas ficou comprovada. Desde os pré-socráticos que o estudo das coisas e da natureza tem relevo: o logos investigava tudo. Inclusive a própria natureza: pensadores indagavam sua origem, sua constituição, suas leis gerais, sua relação. Usando a inteligência, cismavam; fazendo Filosofia – tudo é natureza e nela estamos todos em igualdade de condições - pretendiam, também, desvendar a Física, a Astronomia, etc. Só com pensar. Se Física for, simplesmente, o modo racional de estudar a Natureza foi com a mudança de método que o estudo se deslocou da Filosofia e constituiu, autarquicamente, uma ciência. O que antes era visto de um jeito, passou a ser visto de outro. O mesmo aconteceu com a Astronomia. A Filosofia não cessou sua atividade nestes campos, mas focou o assunto de outra maneira. 4 Sobre o tema já nos prevenia Heráclito de Éfeso: natureza ama esconder-se (pré-socráticos, 1978, 123 pág 91); e ainda: se não esperar o inesperado não se descobrirá, sendo indescobrível e inacessível (ibidem, 18 pág 81)). 21 A Inteligência continuava, entretanto, a ser analisada pela Inteligência. Primeiro pelo método próprio da Filosofia, depois pelo método do Direito, bem depois pelo método próprio da Psicologia. Recentemente, repete-se o evento: a Antropologia já havia descolado, a Zoologia também, daí vieram as Neurociências (Neurobiologia, Neurofisiologia, Neuroanatomia, Psiconeurologia) tentar desvendar o que é o cérebro humano e como ele se manifesta: mente, cérebro, self, consciência, conhecimento, saber, cultura, experiência, memória, razão, sentimento etc. Essas questões passaram a ser desvendadas por outro método, por ciências, que, autarquicamente, vinham definir novos caminhos até seu objeto (que enquanto tal não era novo). Começaram a descobrir no cérebro sedes de cada atividade (assim, nível físico), mapearam não um, mas três cérebros, ou quatro, ou cinco, dependendo de cada Autor, diferentemente trabalhando em conjunto integrado e em dois hemisférios distintos mas unidos entre si. Alterou-se essencialmente o jeito de tratar a coisa. E ampliou-se substancialmente (como antes com a Física, com a Astronomia...) o que se sabia a respeito do assunto por simples mudança de método. O corpo humano foi (re) integrado à realidade do mundo e não mais referido como o invólucro sujo, mero manto de carne, que se distinguia de nossa alma pura. Descartes foi abolido: Antonio Damásio, o brilhante cientista português trabalhando na Universidade de Iowa, nos EUA, ao falar da res cogitans e da res extensa, do cérebro, material, e do cogito, espiritual, provando que o pensamento, o sentimento e a emoção são processos físicos associados denuncia o erro de Descartes, nome de seu livro, aliás, e propõe que o famoso dito do pensador francês seja substituído por Sinto (tenho sentimento), ou seja, existo, logo penso5. Uma das novidades que tumultua nossas verdades estabelecidas informa que há no cérebro uma sede para o sentimento. O assunto é tormentoso. A palavra está carregada de...sentimentos! É emoção, coisa de mulheres, opõe-se e não tem nada a ver com a razão, só serve para nos fazer chorar, é pressentimento, é fonte de emoções baratas: quanta coisa se fala a respeito neste empedernido mundo, no jurídico inclusive! E nada a favor. Urge diferenciar. Nasceu, paralelamente, a Biociência que veio estudar a vida ela mesma. Com o código genético veio a possibilidade de entendimento e alteração da vida (transgênicos, clones, células tronco, suicídio assistido, abortos...). Livre arbítrio, responsabilidade, destino e, inclusive, características psíquicas antes havidas como autobiográficas, próprias (autônomas) de cada ser humano (alegria, depressão, alcoolismo, 5 - Na Física o dito já tinha sido substituído por “Caio, logo existo”. 22 tendências...) passam a ter outro tratamento (a genética é hereditária diz a distraída brasileira). A moldura em que está o ser humano e, assim, seus limites, ou seja, o quanto está, porque é animal, predeterminado, dá ao homem menor margem de manobra do que ele jamais pensou ter. Muito ainda a ciência falará deste tema. O Direito, ágil, cria nova categoria, a do Biodireito. O que era antes uma questão filosófica – seremos racionais, seremos irracionais, o que, afinal, somos – torna-se uma questão a ser resolvida pela neurofisiologia. E a Filosofia tem que repensar, mudar o foco e passar pelo assunto de outra maneira. "Até que ponto é verdade que os sentimentos humanos, as esperanças e temores do que é mais sagrado são um ingrediente necessário na elaboração das decisões e na motivação de sua implementação? Esta questão está ligada com o problema de ser ou não verdade que tal informação é necessariamente filtrada por áreas altamente programadas geneticamente no cérebro inferior, no tronco cerebral e no sistema límbico” pergunta, provocante, Victor Turner um eminente antropólogo e atento estudioso da matéria. As novidades trarão consequências. O cenário não ficará como antes. As áreas da Psicanálise e da Psicologia que sempre explicaram o que se passava e forneciam conceitos que elucidavam a matéria como ficam? E agora? E o Direito? E a Filosofia? Será que as novas descobertas – e que confirmam algumas idéias de alguns mais afinados e intuitivos e invalidam as de outros - vão se chocar com as teorias de Jung, Freud, Reich e Lacan para citar o mínimo, já que jurídico é o escopo deste trabalho? Vamos diferenciar. Os Humores são os vilões da história: tomam uma pessoa e fazem-na irracional, cega, insensata, destrutiva. O possuído pelos humores faz coisas sem reflexão das quais se arrepende para sempre. Moralmente neutra, a emoção é uma descarga de energia que é sempre provocada por uma experiência importante. E é ela que nos prepara para a ação. A pessoa entusiasmada está, como veremos depois, possuída por deus e em estado altamente criativo, para dizer o mínimo. Mais difícil, porém, é descrever ”feeling“. Feeling ou sentimento é o ato de valorar, de sopesar, de avaliar, de escolher, de decidir. É ato puramente racional de conhecer, porém sem pensamento (no sentido antigo) nem palavra. O que dirá Jung a respeito? É a sua definição de sentimento, bem como a sua maneira de classificar a matéria, aquela que adotamos para efeito desta Dissertação. 23 Carl G. Jung 6depois de afirmar sabiamente e com convicção que “o indivíduo é a realidade única. Quanto mais nos afastamos dele para nos aproximarmos de idéias abstratas sobre o homo sapiens mais probabilidades temos de erro”7 ataca o tema da seguinte forma8: “logo se me tornou evidente, no entanto, que as pessoas que utilizavam as suas mentes eram as que ”pensavam“ – isto é, aquelas que usavam as suas faculdades intelectuais tentando adaptar-se a genes e circunstâncias. As pessoas igualmente inteligentes que não pensavam, buscavam e encontravam o seu caminho através do “sentimento”. “Sentimento” é uma palavra que pede uma certa explicação. Por exemplo, falamos dos sentimentos que nos inspira uma pessoa ou uma coisa. Mas também empregamos a mesma palavra para definir uma opinião; por exemplo, um comunicado da Casa Branca pode dizer: “O Presidente sente...” Além disso, a palavra também pode ser usada para exprimir uma intuição: “Senti que...” Quando uso a palavra “sentimento” em oposição a “pensamento” refiro-me a uma apreciação, a um julgamento de valores – por exemplo, agradável ou desagradável, bom ou mau etc. O sentimento, de acordo com esta definição, não é uma emoção ( que é involuntária ) . O sentir, na significação que dou à palavra (como pensar) é uma função racional (isto é, organizadora), enquanto a intuição é uma função irracional (isto é, perceptiva). Na medida em que a intuição é um “palpite”, não será, logicamente, produto de um ato “voluntário”; é, antes, um fenômeno involuntário – que depende de diferentes circunstâncias externas ou internas – e não um ato de julgamento. A intuição é mais uma percepção sensorial que, por sua vez, também é um fenômeno irracional, já que depende essencialmente de estímulos objetivos oriundos de causas físicas e não mentais. Estes quatro tipos funcionais correspondem às quatro formas evidentes, através das quais a consciência se orienta em relação à experiência. A sensação (isto é, a percepção sensorial) nos diz que alguma coisa existe; o pensamento mostra-nos o que é esta coisa; o sentimento revela se ela é agradável ou não; e a intuição dir-nos-á de onde vem e para onde vai. O leitor deve compreender que estes quatro critérios, que definem tipos de conduta humana, são apenas quatro pontos de vista entre muitos outros, como a força de vontade, o temperamento, a imaginação, a memória, e assim por diante. Nada há de dogmático a respeito deles, mas seu caráter fundamental recomenda-os para uma classificação. Acho-os 6 em O Homem e seus Símbolos (1996) passim, ibidem, pág 58 8 ibidem, pág 61 e ss 7 24 particularmente úteis quando preciso explicar as reações dos pais aos filhos, as dos maridos às mulheres e vice versa. Ajudam-nos também a compreender nossos próprios preconceitos.” (nosso grifo) Há alguns outros filósofos, ousados, cada um com seu jeito próprio, que passaram corajosamente pelo assunto. Mas a maioria dos autores que, parece, considera o tema um tabu, escusa-se de falar a respeito. Avulta que o antigamente chamado lado irracional do homem desperta angústia nas pessoas porque não podiam explicá-lo bem e por isso dele se distanciavam ou, mesmo, ignoravam o tema como se ele não existisse. Mas Bertrand Russel falou deste assunto com magna franqueza: o matemático 9 no famoso debate que manteve em 1948 com o Pe. F. C. Copleston, S. J., transmitido pela BBC, sustentou o seguinte diálogo: R = O Sr. vê, sinto que algumas coisas são boas e que outras coisas são más. Amo as coisas que são boas, que penso serem boas, e odeio as coisas que penso serem más. Não digo que essas coisas são boas porque participam da bondade divina. C = Sim, porém qual é a sua justificação para distinguir entre o bem e o mal, ou como o Sr. visualiza a distinção entre eles? R = Não tenho qualquer justificação além daquela que tenho quando distingo entre o azul e o amarelo. Qual é minha justificação para distinguir entre o azul e o amarelo? Posso ver que são diferentes. C = Bem, esta é uma excelente justificação, concordo. O Sr. distingue o azul e o amarelo vendo-os, então distingue o bem e o mal através de que faculdade? R = Através de meus sentimentos. Hume 10 escreveu bastante sobre o tema e já dizia, em 1740, que o vício nos escapa por completo se não olharmos para nosso próprio íntimo e dermos com um sentimento de desaprovação que se forma em nós contra esse vício; esse fato, o vício, é visto pelo sentimento (feeling) e não pela razão pois está em nós e não no objeto. Compara o vício e a virtude a sons, cores, calor e frio, não como qualidades nos objetos mas como percepções na mente. Afirma que a impressão derivada da virtude é agradável e que a procedente do vício é desagradável; continua dizendo que as impressões distintivas que nos permitem conhecer o bem e o mal morais não são senão dores e prazeres particulares e que ter o senso da virtude é simplesmente sentir uma satisfação de um determinado tipo pela contemplação de um 9 10 Por que não sou cristão, Pensadores, Abril, 1978, pág 217 Tratado da Natureza Humana, Livro III, Unesp, 2001, pág 508 e ss 25 caráter, ou seja, o próprio sentimento constitui nosso elogio ou nossa admiração. Outros autores deram outra interpretação: Mesmo Bérgson 11 já dizia que a intuição é o órgão próprio da filosofia e exaltava essa faculdade como fundamental, básica mesmo, na tomada de decisão e na sentença judicial. Kelsen ao falar sobre o tema e imbricá-lo com a Justiça dizia que todo juízo de valor é irracional porque baseado na fé e que sentenciar é apenas um ato de vontade política. Ficamos, para não fugir de nosso escopo, com esses testemunhos que julgamos suficientes para emoldurar diversas tendências de autores seríssimos discorrendo sobre o que se convencionou denominar de “irracionalidade” no Direito. Esta posição, ousada, desses filósofos encontrou guarida no avanço da ciência? Será mesmo irracional essa postura? * 1.3 – a postura da neurofisiologia Depois do advento da Neurofisiologia e da Neuroanatomia, aspectos meramente físicos têm que passar a entrar na análise dos problemas relativos a este assunto, o da tomada de decisão12. 11 (vide em nosso país o estudo desenvolvido pelo prof. Luiz Antonio Rizzatto Nunes) 12 Leia-se a respeito inúmeras e diferentes abordagens em diversas edições da revista Nature Neuroscience, que pode ser acessada facilmente pela Internet. Além, conforme lista própria mesclada com a de um estudioso da matéria, o brasileiro e engenheiro Carlos Eduardo Stuart e com a lista de outro estudioso, o brasileiro, médico e advogado Sérgio Domingos Pitelli: Antonio Damasio: “The Feeling of What Happens” e “Descarte’s Error”: o debate entre res cogitans e res extensa, o erro de Descartes Barry S. Fogel, Randolph B. Schiffer, Stephen M. Rao Neuropsychiatry Eric Margolis e Stephen Laurence – Concepts – Israel Rosenfield – “A Invenção da Memória” – Jonathan Cole – About Face – Jonathan Shear – Consciousness Explained – M.-Marsel Mesulam – Principles of Behavioral and Cognitive Neurology Michael Gazzaniga - “The Mind´s Past” Raul Marino Jr – Fisiologia das Emoções Roberto Lent – Cem Bilhões de Neurônios, conceitos fundamentais de neurociência Rodolfo Llinás – “I of the vortex” – Stanislau Dehaene – The Number Sense – Steven Pinker, linguista canadense e professor do MIT, bastante controvertido, em seu último livro “The Blank Slate” 26 Não nos esqueçamos, como lembrança, que há muitos anos atrás pessoas provavam que era a alma a responsável pelo movimento físico humano – o erguer de um braço, por exemplo – e não se discutia muito a respeito. Descartes mesmo dizia que as partículas finas do sangue viravam algo como ‘espírito animal’ e faziam funcionar o corpo. Dentro do tema e depois de tanta falação sobre limitantes aspectos físicos envolvidos, certamente pessoas de fé podem querer trazer à colação, conceitos como alma, espírito, outra forma de inteligência, inteligência espiritual etc. mas em nada se alterará o que ficou dito, ou seja, o propósito das palavras anteriormente proferidas não se modifica com a adesão ou não de outras formas etéreas de inteligência. Podemos, até, forçar um desafio: aceita a indiscutível criatividade do homem, pode se lhe colocar um repto: há cores na natureza e são belíssimas, mas há outras? Pode haver outras? Pode o homem criativo inventar, portanto não a partir da mistura das já existentes, outra ou outras completamente diferentes? Pode o homem play God? Há querer, há criatividade que “compreende” o desafio: falta aparato físico (outros dirão que faltam cores), falta potência. A inteligência espiritual, o que quer que isto signifique, está limitada pelo físico. A natureza, ela mesmo, está limitada pela lei universal que, no dizer de Heráclito, é a lei de um só. Daí a dúvida de Einstein que queria angustiadamente saber se Deus tinha tido alternativas. A Neurofisiologia, a Neuroanatomia e a Psiconeurologia vieram autarquicamente estudar a matéria e surgem agora as primeiras conclusões.13 Uma delas afeta o conceito de Razão. A Razão, em si, não valora. “Sentimos” isto e aí está o motivo, por defesa, por passadismo de alguns quererem apregoar que as decisões, que as interpretações, no nosso campo jurídico, são isentas (ou podem ser isentas), são neutras, são imparciais e amplamente desconectadas de aspectos não científicos. Alguns chegam mesmo a exaltar como são técnicas as decisões e as interpretações. 13 À lista anterior, mais expandida, os seguintes acréscimos: Aaron Lynch – Thought Contagiom Antonio Damasio – Unity of Knowledge C.S. Lewis – Studies in Words David Perkins – The Eureka Effect David Ruelle – Acaso e Caos Karl R. Popper e John C. Eccles – O Eu e Seu Cérebro Oscar João Abdounur – Matemática e Música Steven Pinker – How the Mind Works Steven Pinker – The Language Instinct Steven Pinker – Words and Rules 27 Para alguns, como pudemos observar, é insuportável a idéia de que quem decide é o Sentimento. A defesa da Razão, por parte dessas pessoas, é fulminante, zangada e inevitável. O radical indogermânico men (pensar) é o mesmo que deu em latim mens (mente) e mensurare (medir): pensar guarda o sentido de medir, pesar, ponderar, tomar o peso: a Razão estabelece o quanto mede, ela mensura, toma a medida; o Sentimento estabelece o quanto vale. Valor é o homem que põe nas coisas. É por isso que Nietzsche chama o homem de estimador: “ estimar é criar: ouvi isto ó criadores! ...Ouvi isto ó criadores! Mutação dos valores – essa é a mutação daqueles que criam. Sempre aniquila, quem quer ser um criador” 14. E é assim que ocorre: Razão e Sentimento têm funções diferentes nas atitudes. Diz-nos Damásio 15 “limito-me a sugerir que certos aspectos do processo da emoção e do sentimento são indispensáveis para a racionalidade16. No que têm de melhor, os sentimentos encaminham-nos na direção correta, levam-nos para o lugar apropriado do espaço de tomada de decisão onde podemos tirar partido dos instrumentos da lógica. Somos confrontados com a incerteza quando temos de fazer um juízo moral, decidir o rumo de uma relação pessoal, escolher meios que impeçam a nossa pobreza na velhice ou planejar a vida que se nos apresenta pela frente. As emoções e os sentimentos, juntamente com a oculta maquinaria fisiológica que lhe está subjacente, auxiliam-nos na assustadora tarefa de fazer previsões relativamente a um futuro incerto e planejar as nossas ações com essas previsões”. Assim, e segundo Damásio (acompanhado de tantos outros) julga-se por Sentimento, o que tem aspectos positivos e tremendamente negativos. Há que diferenciar para o pleno e proveitoso aproveitamento da faculdade. Primeiro que é enorme a influência – o que pode atrapalhar ou ajudar de uns sentimentos sobre outros: os famosos 7 sentimentos: Luxúria, Preguiça, Gula, Ira, Inveja, Cobiça, Soberba atuam com vigor. Outros sentimentos: o Amor, a Responsabilidade, a Vingança, a Lealdade, a Amizade, a Justiça, a Liberdade, a Segurança, a Nacionalidade, o Poder, a Ordem, a Verdade, o Dinheiro, a Auto Estima, as Cores, os Cheiros, a Temperatura, e tantos outros, estão aí a influenciar a tomada de decisão. Será na verbalização desses Sentimentos, ou seja, na sua exteriorização, na comunicação desses Sentimentos a nós mesmos e aos outros, nos Sentimentos como meio de comunicação, como será dito no penúltimo 14 (Assim falava Zaratustra I, “Dois mil e um alvos”) 2000 pág 13 16 termo que ele usa para denotar a qualidade do pensamento e do comportamento que resulta da adaptação da razão a um contexto pessoal e social e razão para denotar a capacidade do pensar e fazer inferências de um modo ordenado e lógico 15 28 capítulo, que pode estar a solução para os problemas gerados pela imprevisibilidade.17 Os Sentimentos servem-nos como orientadores, como guias, como mentores internos e são comunicados às outras pessoas, por diversos meios, por diversos sinais, para que essas pessoas também se orientem pela experiência e reflexão alheia. São com os Sentimentos, nossa defesa, que tecemos um escudo contra o que nos provoca dor; são com eles que nos harmonizamos com a vida e buscamos o prazer. São com eles que filtramos a realidade como pensamos que ela seja e nos adequamos, aceitando alguns aspectos, rejeitando outros. São com os Sentimentos que planejamos nossas ações. Mas há mais: o fato de se julgar por Sentimento, e não pela Razão, favorece a eclosão do preconceito. O Sentimento é presa fácil do preconceito que adere a ele como parasita irredutível: a sentença vem embalada previamente em edulcorada apresentação. Além e como terceira observação, eclode no seu fulgor máximo a ideologia (tema ao qual damos tanta importância que o destacamos em capítulo próprio). Há que se cuidar muito. A bonita embalagem pode entregar produto diferente do que se pensa estar recebendo. Quando o tema é Moral, Direito, Justiça e assemelhados, que a temática favorece muito, os decadentes, os ressentidos, os dissimulados, os embusteiros, plenos de preconceitos, sempre distorcem a conclusão e obnubilam o resultado final. O uso cínico da Moral é fato bem conhecido das mentes esclarecidas. A indignação moral pode ser um discurso bem preparado. A justa indignação moral, então, brandida corrosivamente, dificilmente é o que parece ser (e em que ponto se localiza, cabe indagar. No meio termo entre a inveja e o despeito, diz esclarecedoramente Aristóteles18): há que pesquisar qual a intenção, qual o conteúdo de que o discurso é apenas o envoltório moral, qual o móvel afetivo, qual a sede, qual a fome de quem profere palavras que escondem palavras: com a Bíblia no peito são recitadas de cor as palavras do Livro da Sabedoria 5, 16-20: “Mas os justos viverão para sempre e a sua recompensa está no Senhor e o pensamento deles no Altíssimo. Portanto receberão da mão do Senhor um reino de honra e um diadema de formosura: porque os protegerá com a sua destra e com seu santo braço os defenderá. O seu zelo se vestirá de todas as suas armas: e Ele armará as suas criaturas para se vingar de seus inimigos. 17 Roosevelt, astuto, famoso no manejo dos sentimentos, dizia que não deixava sua mão direita saber o que pensava a esquerda! 18 Et.N., II, 7, 1108b, 35 29 Tomará por couraça a justiça e por capacete a inteireza do seu juízo: embraçará a equidade como escudo inexpugnável”.19 Resta saber o que está por detrás do declamador contrito. O falso sentimento bem esgrimido por estelionatários do verbo, costuma enganar os crédulos. Há outro aspecto, muito importante, e também raramente comentado: o da íntima convicção ou interna convicção. Não é a mesma coisa que preconceito. Ela é a Perspicácia aderindo ao Sentimento. Ela existe e conecta-se aos sentimentos. Pode ser sobre fatos genéricos, que já estão prejulgados (pré-conhecidos) pelo agente (assim tudo que cai neste tema tende a ser verificado e a ter uma solução igual e que já estava préformada) ou vir a ser formada lentamente no decorrer do processo de conhecimento de um fato (mas com íntima conexão com o modo como vemos casos desta natureza). Inexpugnável esta maneira de ser. Inevitável. Há um perigo (paradoxal), aliás: quanto mais estudo e curiosidade investigativa mais o agente sabe, mais descansa, mais passa a ter conceitos pré-formados. Ou pré-conceitos. O prejuízo para a tomada de decisão certa é impressionante. A rotina do já sabido torna cego o observador. O nobre, o aristocrata, descritos por Homero na Ilíada, não seriam capazes de discursar preconceituosamente: educados para proferir palavras educadas e realizar ações heróicas seriam incompetentes para falar com afetação e jamais expressariam o que não viesse diretamente do seu nobre sentimento. Como podemos classificar este sentimento para ter dele maior visão? Antes, porém uma explicação importante e que neste momento já pode ser dada: esclarecer a expressão “Atores do Direito”: tentaremos em todo o decorrer do trabalho demonstrar que enquanto sentimento o Direito não é operado. Que não há, portanto, Operadores do Direito. Tentaremos mostrar que o Direito é vivido, que ele está no íntimo do Ser de todas as pessoas envolvidas e que estas pessoas atuam de maneira a exibir a realidade que perceberam e que, portanto, vivenciam. Daí serem Atores do Direito. * 1.4 – classificação sumária dos sentimentos Os sentimentos em nossa classificação são ou 1-pueris (1.1-arbitrários: eu quero ou 1.2-ressentidos: há o mal e eu sou vítima dele) ou 2-maduros 19 As citações bíblicas serão sempre da Bíblia Sagrada, 24 a edição, editora Ave Maria Ltda, 1997 ou Bíblia Sagrada, edição ecumênica, Enciclopédia Britânica. 30 (refinados) ou são 3-escusos e escondem disfarçadamente em embalagem edulcorada a verdadeira intenção. Independentemente de sua classificação todos os sentimentos decidem? * 1.5 – Coração e Mente? Razão e Sentimento? Pelo bem ou pelo mal, não há como fugir: com os sentimentos decidimos. A escolha entre alternativas, a eleição de uma entre diferentes propostas não se dá pela Razão porque ela não está aparelhada para valorar e pinçar. A Razão não pode escolher entre azul e amarelo, entre dó, ré, mi, fá e sol, entre um vinho tinto de Bordeaux e um da Bourgogne, entre uma manhã de sol na praia e na montanha, entre belos corpos diferentes entre si, entre socialismo e liberalismo, lealdade e deslealdade, justo e injusto. A Razão verifica a verdade ou a falsidade das proposições. Ela não julga (nem justifica) o Sentimento: ela o esclarece. Ilumina-o por partes como um iluminador de uma peça de teatro ilumina as partes do cenário que servem à peça naquele instante. Se ela julgasse, o Sentimento serviria, então, como Instância Superior o que também não é o caso. A Razão separa as alternativas: ela identifica, classifica, analisa, parte em fatias, expõe, desnuda, coloca em ordem lógica, afirma falso ou verdadeiro, dá a verdadeira medida, esclarece, enfim. Aí o Sentimento saberá por quais alternativas passar, porque preferir uma à outra, o que foi feito, qual o esforço. Este é o trabalho da Razão, tirar da vala comum as alternativas e exibi-las em conjunto na prateleira onde podem ser mais bem observadas. A Razão estabelece a verdade ou a falsidade de uma afirmação: chove lá fora! Ponho meu braço fora da janela – ou vou para fora de casa – e se me molho, chove lá fora; se não me molho, não chove lá fora. Simples assim! Muito importante a absorção destes conceitos quando formos analisar a verdade ou falsidade das proposições que se referem a fatos exibidos em um processo judicial e a função dos sentimentos na decisão exarada por sentença no mesmo processo. A decisão tem alguma importância no viver humano? * 1.6 – sempre se escolhe um quid em detrimento de outro? Decide, sempre, o homem; decidir é necessário, vital. E sempre tem que preferir uma coisa à outra. Mais, muito mais do que se dá conta. Cada ato, cada passo. Se não o fizer não conseguirá levantar-se da cama de manhã. Sobre cousas mais triviais, de seu imediato interesse, e sobre assuntos mais gerais de interesse do universo que pretende dominar; valora, o homem: 31 Heráclito de Éfeso já apregoava a diferença: “para o deus são belas todas as coisas e boas e justas, mas homens umas tomam (como) injustas, outras (como) justas”20. O homem sempre julga. São os sentimentos humanos que nos fazem ver binariamente e a toda hora: bom e mau, justo e injusto, doloroso e prazeroso. O deus de Heráclito não percebe assim. Eles, os sentimentos, formam-se com a pessoa e, depois, com sua circunstância; cada pessoa vem com uma história genética diferente, com sua organização e constituição distintas. Os cérebros mesmo por estarem interligados por milhões de conexões possibilitam a cada um ter sua própria conexão, sua própria inteligência, sua própria sensação de espaço e de tempo e seu próprio funcionamento motor. Eis uma diferença palpável ente os seres humanos: a rede, a teia, a capilaridade que serve a um é diferente da que serve a outro. Tal constatação é uma das pistas do porque há tanta falha nas comunicações humanas. Cabe aqui introduzir um item da maior importância porque esclarecedor, porque paradigmático: dentre outros fatores, os cheiros determinam nossas simpatias e antipatias iniciais! Gostamos, ou não, de alguém baseados única, exclusiva e inicialmente no cheiro que exala da pessoa que recém conhecemos! Histórias de amor candente nascem assim. Se gostarmos do cheiro, pronto, gostamos da pessoa; se repudiarmos seu cheiro, lá se vai um relacionamento. Estão aí os feromônios a nos atrair. Sentimos, além, cheiro de medo, hostilidade, avareza, hipocrisia, falsidade, bondade, felicidade, candura... E estamos aparelhados para sentir e interpretar esses cheiros. Sem regra geral: um cheiro que provoca aversão em um, provoca afinidade em outro! Algumas espécies também estão aparelhadas para tal e até mais do que nós humanos. Quando temos medo de cães, por exemplo, somos atacados porque o cão sente cheiro de medo, do nosso medo e isso o faz iniciar o ataque. Logo na base já aparece uma diferença: o homem sente menos os cheiros que a mulher; o homem tem menos habilidade, menos nitidez, mas quando memoriza guarda bastante bem. A mulher tem muito melhor olfato que o homem; qualquer mulher é melhor nesta arte que um homem ótimo. Ultrapassada a digressão, podemos entender porque muitas frases conclusivas começam, por exemplo, com ‘sinto o cheiro do bom direito’. Ou: “ele tem faro para negócios”. Há estudos sobre a influência das cores também a impulsionar nossos sentimentos de calma, agressividade, ação guerreira etc. E não é necessário abordar os estímulos sonoros que todos reconhecem nele sua importância. Inúmeros, assim, os combustíveis. Os mais variados e das mais diversas origens. 20 102 pág 89 pré-socráticos 1978 32 Podemos arbitrariamente criar duas histórias, semelhantes entre si mas diferentes no final e que servem para ilustrar o que queremos dizer: A- imaginemos um menino de 6 anos que está passando férias na fazenda dos avós; sobe numa jabuticabeira e se farta de chupar jabuticaba no pé; chega a hora do almoço e sua avó o chama; ele desce da árvore, dá a mão para a avó e se dirige para a sede para fazer a sua refeição caminhando tranqüilo e sentindo o cheiro do forno a lenha: o sentimento desse rapazinho em relação ao cheiro (e à cor) da jabuticaba será sempre prazeroso, calmo, gostoso, seguro, tranqüilo, afetuoso, confortável. B- imaginemos outro menino da mesma idade que faz a mesma coisa, mas na hora do almoço vem sua avó e ralha com ele porque ele sujou a camisa com a jabuticaba, ele se atrapalha, cai da árvore e quebra o braço: o sentimento desse rapazinho em relação ao cheiro (e à cor) da jabuticaba será sempre doloroso, tenso, intranqüilo, desconfortável e ele tenderá a rejeitar tudo o que se referir a este cheiro e a esta cor. Assim, repetimos, escolhemos as trilhas que trilharemos sempre presos aos nossos sentimentos, eles nos fazendo tomar estas decisões e não outras. Mas, como dizia Hume, nada pode ser mais real para nós e manifestar-se de maneira mais contundente que os nossos próprios sentimentos de prazer e desconforto; e, se estes sentimentos tenderem à virtude e exibirem repulsa à maldade, nada mais é necessário para a regulação e controle da nossa conduta e comportamento. Grandes criminosos não sentem a ação que perpetram nem suas consequências. São insensíveis, no dizer geral. Isto posto, serão confiáveis os sentimentos? Servirão como guia, como norte para a humanidade? O sentimento humano reverberará algum valor divino? * 1.7 – Sentimento e Valor. Sede física. Não acreditamos em conceitos pétreos de Valor e distinguimos Valor do ato de Valorar: o Valor está dentro de nós e é valorado enquanto Valor Próprio (valorar já é julgar um Valor) e sentido diferentemente por cada um, vivido e vivenciado diferentemente por cada um. Não nos parece haver um exército só, constituído por toda a humanidade, como formigas, marchando em formação para um único destino atrás de um único Valor! Ao contrário, percebemos bem que cada um busca o seu caminho impulsionado pelos seus próprios Valores. A consciência se forma pela memória, pelo sentimento e pela razão. Os neurofisiólogos concordam que a primeira impressão se dá no lóbulo frontal, sede da decisão e do sentimento, e só depois é que a impressão vai para o pensamento. 33 O Sentimento funciona como se fosse um filme que passa cenas e enredos pleno de movimento e de cheiros e de sons e de cores e de caras dos envolvidos com julgamento bom/mau, prazeroso/doloroso, justo/injusto, útil/inútil, necessário/desnecessário, alegre/triste etc. A Razão faz diferente: ela passa sucessivamente retratos parados de forma fria, analítica, decomposta, classificada etc. O conjunto de todas as imagens mentais, perceptivas e sensoriais presentes em nosso cérebro tem um caráter inequivocamente idiossincrático e individual; toda biografia se apresenta justaposta à biografia dos que ligaram sua vida à do biografado. A natureza herdada e a natureza adquirida mesclam-se e constituem a pessoa ela mesma. Nos dias de hoje já é possível para os pesquisadores verem como os sentimentos exibem-se no cérebro. Dizia Damásio no seu livro Descarte´s error21: “o levantamento anterior das condições neurológicas em que limitações de raciocínio e tomada de decisão e de emoções e sentimentos ocorrem revela o seguinte: Primeiro, existe uma região do cérebro humano, constituída pelos córtices pré-frontais ventromedianos, cuja danificação compromete de maneira consistente, de uma forma tão depurada quanto é provável poder encontrarse, tanto o raciocínio e tomada de decisão como as emoções e sentimentos, em especial no domínio pessoal e social. Poder-se-ia dizer, metaforicamente, que a razão e a emoção ‘se cruzam’ nos córtices préfrontais ventromedianos e também na amígdala; Segundo, existe uma região do cérebro humano, o complexo de córtices somatossensoriais no hemisfério direito, cuja danificação compromete também o raciocínio e tomada de decisão e as emoções e sentimentos e, adicionalmente, destrói os processos de sinalização básica do corpo; Terceiro, existem regiões localizadas nos córtices pré-frontais para além do setor ventromediano cuja danificação compromete também o raciocínio e a tomada de decisões, mas segundo um padrão diferente: ou a deficiência é muito mais avassaladora, comprometendo operações intelectuais sobre todos os domínios, ou é mais seletiva, comprometendo mais as operações sobre palavras, números, objetos ou o espaço do que as operações no domínio pessoal e social. Em suma, parece existir um conjunto de sistemas no cérebro humano consistentemente dedicados ao processo de pensamento orientado para um determinado fim, ao qual chamamos raciocínio e à seleção de uma resposta a que chamamos tomada de decisão, com uma ênfase especial no domínio pessoal e social. Esse mesmo conjunto de sistemas está também envolvido 21 editado originalmente em 1994 – ou seja, trata-se de uma observação publicada já em 1994, há algum tempo pois, refletindo sobre anatomia e função 34 nas emoções e nos sentimentos e dedica-se em parte ao processamento dos sinais do corpo”.22 Arremata23 “a evidência relativa a seres humanos discutida nesta seção sugere uma ligação íntima entre um conjunto de regiões cerebrais e os processos de raciocínio e de tomada de decisão. Os estudos sobre animais revelaram algumas ligações similares envolvendo algumas regiões similares. Pela combinação dos dados surgidos de ambos os tipos de estudos, em seres humanos e animais, podemos agora alinhar alguns fatos acerca dos papéis desempenhados pelos sistemas neurais que identificamos. Primeiro, esses sistemas encontram-se certamente envolvidos nos processos da razão no sentido lato do termo De forma mais específica, encontram-se envolvidos na planificação e na decisão. Segundo, um subconjunto desses sistemas está associado aos comportamentos de planejamento e de decisão que poderíamos incluir na rubrica de “pessoais e sociais”. Eles estão relacionados com o aspecto da razão habitualmente designado por racionalidade (vide nota 16). Terceiro, os sistemas que identificamos desempenham um papel importante no processamento das emoções. Quarto, os sistemas são necessários para se poder reter na mente, por um período de tempo relativamente longo, a imagem de um objeto relevante que não se encontra mais presente”. Há, mais recentemente, uma nova pesquisa24 fornecendo a primeira evidência de neuro-imagem mostrando que o lóbulo frontal do cérebro desempenha um papel crítico na tomada de decisões, no planejamento e na escolha de ações. Recentes clamores 25 dão como certo que há no cérebro local determinado e células responsáveis pela geração da consciência e do senso-de-si dos indivíduos. Cada vez mais pontos específicos do cérebro são indicados como responsáveis por isto ou aquilo. Nada definitivo, ainda: mas que há um vento soprando nessa direção, há! Retornando ao tema, há inúmeros outros livros, artigos e depoimentos de diversos autores expondo suas teses a respeito de ser com o sentimento que decidimos e que ele, o sentimento, se processa na parte frontal do cérebro. Vale dizer que uma pessoa 26 que tiver afundamento do lóbulo frontal e mantiver intactas suas outras funções cerebrais, inclusive as responsáveis 22 2000 pág 95 ibidem, pág 104 24 publicada em 4 de novembro de 2002 na Nature Neuroscience com trabalho dos investigadores da Centre for Neuroscience Studies at Queen's University e do Centre for Brain and Mind da University of Western Ontario 25 Francis Crick, Prêmio Nobel, um dos dois descobridores do DNA e Christof Koch na Nature Science de fevereiro/março de 2003 26 v.g., caso Phineas P. Gage, ocorrido em 1848, descrito por Dr. J. M. Harlow em 1868, só para citar um de inúmeros casos descritos, mas o mais famoso por ser o primeiro 23 35 pelo pensamento e conseqüentemente por grande parte da assim chamada até agora Razão, não poderá entrar numa sanduicheria e ordenar um simples sanduíche. Desaparelhou-se. Não pode decidir nada. É muito divertida a descrição que faz Damásio 27 da resposta de um cliente seu com problemas decorrentes de lesões pré frontais que indagado sobre qual data dentre duas preferia para a próxima visita iniciou e prosseguiu durante meia hora um profundo, racional e detalhado exame das duas oportunidades sem conseguir escolher uma delas. Cansado de tanto esperar, o médico, completamente fora de si e exasperado, informou friamente qual seria a hora e o dia da próxima consulta com o que concordou imediatamente o paciente enquanto se levantava da cadeira de onde proferira tamanha conferência. Nietzsche advogava a idéia de que o intelecto humano surgiu e se desenvolveu enquanto meio para a sobrevivência 28. O filósofo, há 120 anos atrás, já sabia da relação do corpo com a mente e considerava, ao contrário de Descartes, tudo como uma unidade. Vinculava o conhecimento à fisiologia e à história e não tinha dúvida que a fisiologia esclarecia como o conhecimento era possível e como se dava. Dizia que a constituição biológica do homem dava o sentido do conhecimento porque o explicava e que a atividade avaliadora do homem dava sentido ao conhecimento porque lhe atribuía valor. Concebe a partir daí a sua ‘vontade de potência’ que é a vida propriamente. Mas entende que não está só no cérebro a produção de ‘pensamento, sentimento e vontade’ pois não só o querer, mas também o sentir e o pensar estariam disseminados pelo organismo todo (células, tecidos e órgãos) e a relação entre eles seria de tal ordem que no querer já estariam embutidos o sentir e o pensar. “Dominar é suportar o contrapeso da força mais fraca; é, pois, uma espécie de continuação da luta. Obedecer é também uma luta, desde que reste força capaz de resistir”.29 A vontade de potência está nos numerosos seres vivos e cada um quer prevalecer na sua relação com os demais. A consciência – a última e mais tardia evolução da vida orgânica – surge da relação do organismo com o mundo exterior, relação que implica ações e reações de parte a parte. No bojo desta dinâmica aparece como um ‘meio de comunicabilidade’, ‘um órgão de direção’. Dizia que consciência em geral só se desenvolve sob a pressão da necessidade de comunicação; dizia que o indivíduo mais fraco, aquele que se acredita o mais ameaçado, é compelido a pedir ajuda aos semelhantes a fim de conservar a própria vida; dizia que para tornar o seu pedido inteligível este indivíduo necessita tanto da linguagem quanto da consciência e que precisava lançar mão de signos para comunicar-se. Por tudo isso é que Foucault falava que, em decorrência da analítica da 27 2000 pág 226 Scarlett, 2000 pág 135 e ss 29 fragmento póstumo 26[276] do verão/outono de 1884 28 36 finitude, Nietzsche e Freud passaram a vincular o conhecimento à fisiologia e à história. As observações referidas acima devem bastar para que se acredite que algo de novo (não tão novo assim) surgiu num campo também novo. Como o escopo deste trabalho é jurídico fica aos interessados o desafio de ampliar sua leitura e sua pesquisa. A dúvida “serão confiáveis os sentimentos” permanece, ainda, depois do ensinamento de Nietzsche? * 1.8 – a luta pela sobrevivência; a diferença da luta entre homem e mulher; a independência. Desde Darwin que se sabe que a seleção natural das espécies deriva da luta dos organismos pela sobrevivência. Sabe-se também que o corpo humano, ou melhor, o organismo humano, está pré-determinado para atender tudo o que for necessário para o homem sobreviver nesta sua luta diária e lhe dá ordens que não pode desprezar 30 O organismo assim tem um jeito que não pode ser ignorado nem desprezado que estará se colocando em risco a sobrevivência da espécie e de cada indivíduo de per si. O amplo entendimento de quais são estas ordens e de como, em primeiro lugar, se processam os comandos dados e as ordens atendidas, dirá muito a respeito da vida ela mesma e, conseqüentemente, da nossa sobrevivência neste planeta. Estas observações, entretanto, todas elas fundadas em fatos recentes, trazem para o campo do Direito uma nova concepção. Como são mesmo muito novas podem sofrer uma que outra alteração e, certamente, muitas, muitas mesmo, adições. Mas comprovou-se o fato de que já se tinha tanta certeza através de alguns Psicólogos e da colocação de alguns Filósofos: as decisões são individuais e motivadas por fatores individuais através de sentimentos individuais que se processam numa área determinada do cérebro humano. As sentenças judiciais sempre mereceram respeito porque eram consideradas pelo vulgo como expressão exata da única verdade que surgia e era obtida através do processo judicial. Os juizes e juizas recitavam a verdade pétrea e faziam uma só justiça, aquela esculpida em pedra. E o vulgo acreditava. A doutrina, principalmente européia, não fazia muito esforço para desmentir este mito. Os juizes e as juizas como integrantes da raça humana e por estarem aparelhados fisiologicamente para decidir de uma maneira humana, vê-se agora, não podem proceder de outro jeito por total impossibilidade. 30 (o organismo tem algumas razões que a razão tem de utilizar – Damásio 2000 pág234). 37 Está, deste modo, justificada a imprevisibilidade e desfeito o mito da certeza jurídica e a farsa da segurança jurídica. Não são horizontes possíveis descortinados pela natureza humana, ou seja, como cada ser humano tem um ponto de vista próprio (bem como uma inteligência própria, sentimentos próprios etc) de cada cabeça emanará mesmo uma sentença. No caminhar do capítulo 7 esta matéria será mais bem dissecada. É possível, entretanto, adiantar a colocação: decisões tomadas por Juizes homens poderão ser bem diferentes, na base, de decisões tomadas por Juízas mulheres. Talvez até o resultado final seja o mesmo, mas certamente diferente será o tratamento do caso. A forma e a linguagem jurídica – e o medo de que não se pareçam - tenderão a igualar a apresentação das sentenças; mas claramente, no seu bojo, a partir do seu ponto de início, não são iguais as sentenças proferidas por homem e mulher! A da mulher brasileira é emotivo-intuitivo-sentimental-racional; a do homem brasileiro é racional-sentimental. E será paradoxo? A mulher é, quando resolve, mais prática, mais imediata, mais chão e escolhe mais rápido; o homem mais dialético, mais analítico, mais prudente, mais altaneiro e sobranceiro, demora mais para decidir e voa mais. Além de outras diferenças, é mera questão física: a mulher parece usar ao mesmo tempo os dois hemisférios do cérebro, o que não é possível para o homem, que usa um ou outro, sempre alternativamente.31 Se a formação de nosso cérebro é esta e não há como fugir, isto quer dizer que o normal é a imprevisibilidade? Adiantemos um pouco o que se explicará melhor no capítulo 7 deste trabalho: lembremo-nos que, em Latim, certo, enquanto advérbio quer dizer: na verdade, com certeza, realmente, sem dúvida, de maneira irrevogável; que certo, as, are, avi, atum quer dizer procurar obter uma decisão, debater, demandar; que certus, a , um quer dizer resolvido, decidido, determinado, fixo, preciso, constante, seguro, de confiança. Donde ‘certo’ quererá dizer algo como “depois de debatida uma questão é, sem dúvida, tomada uma decisão, que está determinada e é de confiança”. * 1.9 – a decisão pela forma silogística Com o conhecimento mais amplo do binômio Razão/Sentimento fica, não no âmbito estrito da Lógica, mas na prática e, deste modo, comprometido o formular clássico aristotélico de decidir/concluir/sentenciar pelas leis da Lógica Formal, de maneira 31 Voltando a Jung: caso a mulher não recepcione bem seu animus, ela se tornará dura, detalhista , cruel, personalista, tirânica, usuária de força e poder, até de violência; o homem caso não se relacione bem com sua anima agirá da mesma forma, mas, diga-se com menos intensidade que sua parceira, talvez pela necessidade de a mulher afirmar-se sem deixar margem à dúvida em universo ainda masculino. 38 Demonstrativa através do Silogismo: Premissa Maior (A Lei), Premissa Menor (o caso, o fato), Conclusão (na forma de uma sentença). A fórmula aristotélica exige a objetividade para atingimento do verdadeiro/falso. Sobrevindo a subjetividade surgiu outra figura, a do Entinema que ocorre quando se põe a Premissa Maior e ela flutua ficando à deriva por instantes e sem definição exata por causa da discussão interna que se trava dentro do sujeito em busca da interpretação daquilo que será, afinal, aplicado ao caso ou ao fato, que constitui a Premissa Menor, que também depende – e tanto - de interpretação, passando o verbo pela Argumentação Retórica, o que produz uma sentença não mais silogística mas retórica e persuasivamente produzida, esculpida de acordo com o objetivo final – a sentença – que se queria sentimentalmente atingir. Remarque-se que nossos sentimentos são formados pela nossa competência física, pela herança genética e pelo ambiente e circunstância em que vivemos: fossemos anfíbios, aquáticos ou aéreos nossa percepção seria diferente e, conseqüentemente, nossa visão das coisas, bem como nossa retórica, e daí o mundo como o vemos. A realidade seria outra. O uso exacerbado, desconexo e descontrolado do Sentimento gerou uma enorme atribulação na busca de um Fim para o Direito. Cada Sentimento pedia um Fim diferente e conforme o Sentimento de quem elegia. A própria Filosofia do Direito não ficou, nem poderia ficar, imune, havendo inúmeras teorias muito bem urdidas a respeito destes assuntos. Uma delas é de Hans Kelsen, que foi Juiz; com sua obra famosa (que teve a primeira edição em maio de 1934 e sua versão final em 1960), a Teoria Pura do Direito32 pretende “uma pura teoria do Direito, o que significa que ela se propõe garantir um conhecimento apenas dirigido ao Direito e excluir deste conhecimento tudo quanto não pertença ao seu objeto, tudo quanto não se possa, rigorosamente, determinar como Direito, querendo com isto dizer que ela pretende libertar a ciência jurídica de todos os elementos que lhe são estranhos, sendo esse seu princípio metodológico fundamental”. Kelsen faz ciência jurídica e não política do Direito. E com isso anima os espíritos científicos. Pois bem: no seu capítulo final, que trata exatamente de uma teoria da interpretação das normas (a interpretação é, portanto, uma operação mental que acompanha o processo da aplicação do Direito no seu progredir de um escalão superior para um escalão inferior), ou seja, quando parece que vai definir regras objetivas que apresentem uma teoria pura de interpretação,33 naquela exata hora em que o Direito é aplicado por um órgão jurídico que necessita fixar o sentido das normas que vai 32 33 2000, pág 1 as citações serão longas mas, a nosso ver, necessárias para melhor compreensão. 39 aplicar, o que faz através da interpretação destas normas (na aplicação do Direito por um órgão jurídico, a interpretação cognoscitiva – obtida por uma operação de conhecimento – do Direito a aplicar combina-se com um ato de vontade em que o órgão aplicador do Direito efetua uma escolha entre as possibilidades reveladas através daquela mesma interpretação cognoscitiva), (nosso grifo) surpreende, e, num assomo de sinceridade, afirma que “a interpretação jurídico-científica não pode fazer outra coisa senão estabelecer as possíveis significações de uma norma jurídica e tem de evitar, com o máximo cuidado, a ficção de que uma norma jurídica apenas permite, sempre e em todos os casos, uma só interpretação: a interpretação “correta”. Isto é uma ficção de que se serve a jurisprudência tradicional para consolidar o ideal da segurança jurídica. Em vista da plurissignificação da maioria das normas jurídicas, este ideal somente é realizável aproximativamente”. Afirma, ainda, surpreendendo igualmente que “não se pretende negar que esta ficção da univocidade das normas jurídicas, vista de uma certa posição política, pode ter grandes vantagens; mas nenhuma vantagem política pode justificar que se faça uso desta ficção numa exposição científica do Direito positivo, proclamando-se como única correta, de um ponto de vista científico objetivo, uma interpretação que, de um ponto de vista político subjetivo, é mais desejável do que uma outra, igualmente possível do ponto de vista lógico. Neste caso, com efeito, apresenta-se falsamente como uma verdade científica aquilo que é tão-somente um juízo de valor político”. “A teoria usual da interpretação quer fazer crer que a lei, aplicada ao caso concreto, poderia fornecer, em todas as hipóteses, apenas uma única solução correta (ajustada), e que a “justeza” (correção) jurídico-positiva desta decisão é fundada na própria lei. Configura o processo desta interpretação como se se tratasse tão-somente de um ato intelectual de clareza e de compreensão, como se o órgão aplicador do Direito apenas tivesse que por em ação o seu entendimento (razão), mas não a sua vontade,e, como se, através de uma pura atividade de intelecção, pudesse realizar-se entre as possibilidades que se apresentam, uma escolha que correspondesse ao Direito positivo, uma escolha correta (justa) no sentido do Direito positivo. Todos os métodos de interpretação até ao presente elaborados conduzem sempre a um resultado apenas possível, nunca a um resultado que seja o único correto”. Kelsen do seu jeito de observar a matéria, fulmina o dilema “voluntas legis” ou “voluntas legislatoris”, embola a argumentação jurídica, a tópica, a teoria da apreciação de interesses, a dogmática, tudo o mais34 e joga o problema na seara da vontade (do sentimento diríamos nós, que é o comborço e o êmulo da vontade, da maneira como pensamos). 34 ibidem, pág 392 40 Vale dizer: a questão após Kelsen, justamente quem pretendia cientificizar o Direito, dar-lhe regras e leis fixas e imutáveis, nunca ficou tão aberta, nunca esteve tão aberta. “Dizer que uma sentença judicial é fundada na lei, não significa, na verdade, senão que ela se contem dentro da moldura ou quadro que a lei representa – não significa que ela é a norma individual, mas apenas que é uma das normas individuais que podem ser produzidas dentro da moldura da norma geral”. Kelsen apresenta-nos o seu desafio: como interpretar e bem sentenciar? Ele mesmo se rende à questão e abandona o tablado. Joga a toalha, abandona o jogo. Aliás a mesma toalha que Kelsen joga é a bandeira que triunfante, Alf Ross levanta: vale aprender o debate. Ross coloca exatamente na efetividade da lei ou da norma a sua condição de validade, ou seja, aquilo que é aceito e praticado por todos é efetivo e válido.35 Em Kelsen, a sentença proferida (e a interpretação) é a melhor naquele instante porque revela quem manifestou mais poder, mais retórica, mais apego ao senso comum (normas morais, normas de justiça, juízos de valor corrente, juízos de valor social, ressentimentos camuflados, bom senso, apego a conceitos vagos como bem comum, progresso, nação, soberania, interesse coletivo sobre o individual etc), ou seja, se a sentença proferida é a melhor naquele instante porque dentre as várias soluções possíveis foi – sem qualquer outro julgamento de valor - a que prevaleceu, isto é que importa. Trata-se, dizemos nós, da prevalência de um sentimento sobre outros por qualquer motivo, inclusive escuso. Ou seja, dentro de um quadro político uma cabeça erigiu uma sentença que se afigurou uma dentre várias possíveis. Ou melhor, é através do sentimento que podemos julgar os valores que agregamos em nossa mente (qualidade) aos objetos, distinguir dentre eles qual o que elegemos e pinçálo, dando-lhe a aparência de único possível. Esta possibilidade confrange espíritos jurídicos muito ortodoxos e afronta o senso comum de que há uma justiça só, uma decisão correta só, uma razão só, e que só ganha o processo judicial aquele que tem ao seu lado a verdade, a razão, o certo. Razões quase sempre religiosas. Não era ao acaso, na idade média, que se entregava a sorte dos contendores em uma ação? Não haveria erro possível: as ordálias definiam quem estava com a razão e Deus garantia. 35 linhas adiante, em momento mais conforme, indicamos o debate havido entre os dois gigantes do Direito. 41 A Bíblia nos treinou e à nossa civilização: 36 e farei juízo com peso, e justiça com medida: e a saraiva derribará a esperança da mentira: e as enchentes das águas deixarão alagada a proteção. Além de religioso poderá o Direito, como quer Kelsen, ser científico? * 1.10 – a ciência do direito Além do motivo religioso podemos perceber, também, motivos racionais que confortam as mentes mais lucubrativas: se há consenso que Direito é uma ciência ela deve se valer de regras fixas e imutáveis tanto quanto se valem as outras ciências das leis gerais e descrições que lhe são imanentes: a água será sempre H2O e deveria ferver a tantos graus em tal lugar e a qualquer tempo. Com o Direito deve acontecer o mesmo. E será que acontece? Diz Marcelo Gleiser37 que uma das funções mais importantes da física é a busca de leis universais que sejam capazes de descrever fenômenos naturais observados tanto no dia a dia como no laboratório. Ao chamarmos essas leis de “universais”, estamos implicitamente supondo que elas são válidas não só em qualquer parte do Universo, mas também em qualquer momento de sua história. Essa suposição baseia-se na nossa crença de que a Natureza, em um nível mais profundo de análise, é de fato imutável, e que, portanto, as leis que concebemos ou descobrimos para descrever seu funcionamento são também imutáveis. O Direito para os que acreditam que ele é ciência deveria ter suas leis universais também, a exemplo da Física e da Química, por exemplo. Além, em outras circunstâncias, procurou o homem se consolar a si mesmo e, gênio criativo, fez surgir como verdade a lenda da certeza jurídica, da paz, da fé em decisão judicial isenta e sempre preocupada com o certo, com a Justiça e em dar a cada um o que é seu, e, precaução contra os inquisidores, fez o homem repetir tantas vezes até virar verdade pétrea a máxima de que sentença não se discute, cumpre-se: esta ilusão pode encobrir, sem contestação, outra realidade bem diferente. A questão tem sido enfrentada com denodo: a Dogmática estriba-se na teoria de que a interpretação correta é resolvida por quem tem autoridade, liderança e reputação, e, fazemos notar que nós estamos tomando tais palavras no seu sentido mais comum 38 . Ora, a solução confirma o problema. 36 37 Isaías 28,17: A dança do Universo, 1997, pág 52 38 (bom senso é o conjunto de todos os preconceitos que adquirimos durante nossos primeiros dezoito anos de vida, dizia com muita verve e graça Einstein, citado por Gleiser, pág 252). 42 É certo que a sentença judicial e a interpretação não são o fruto de uma técnica perfeita nem emanadas a partir de uma lei geral e incorruptível que trata magistralmente do assunto sem permitir erro ou falibilidade (se fosse porque tantos recursos processuais?) e é certo que elas são fruto de um sentimento de uma pessoa. A solução apenas desloca o problema, de maneira hábil, reconhecemos, de “apenas uma pessoa” para um conceito que nos é muito caro, o de “uma pessoa qualificada, com notório saber e reconhecida como tal”. Ou seja, aquele que tem profundos conhecimentos científicos sobre a ciência e sobre o objeto da ciência em questão. E sua pessoa confere status científico ao caso. Tal pessoa pode com franqueza e inocência recitar39: sigo o caminho da justiça, no meio da senda da equidade, que não será nunca contestada. Enorme responsabilidade uma pessoa chamar para si atribuições comunitárias; se esta responsabilidade pudesse ser assumida isoladamente o mesmo poderia fazer um juiz que agisse com independência e livre convencimento, o que contestamos. Distinguimos, com clareza, ‘chamar para si a responsabilidade’ de ‘influir’. Uma pista nos vem pelo mito. O nome hermenêutica vem do deus grego Hermes: aquele que interpreta os deuses e suas leis para os humanos. Mas não só. Quem vai mais a fundo no estudo do deus percebe que Hermes, o deus que não se perde na noite nem no caminho, deus dos pastores, protetor dos rebanhos, companheiro do homem, possuía um bastão mágico, o caduceu, com que tangia as almas para a outra vida; era o deus psicopompo, o condutor de almas, almas estas que não poderiam alcançar a eternidade e a felicidade sem a indicação segura do deus. Era o mensageiro predileto dos deuses, sobretudo de Zeus, seu pai. Cotejado por Apolo e instado por Zeus que o pegou em mentira, Hermes foi obrigado por seu pai a dizer que nunca mais faltaria com a verdade, com o que concordou, não sem antes acrescentar muito rapidamente, que não se obrigaria a dizer a verdade... por inteiro. Por causa do crime de que fora acusado por Apolo - o roubo de seu rebanho – é também considerado o deus da astúcia, do ardil, da trapaça: é um verdadeiro trickster, um trapaceiro, um velhaco, companheiro, amigo e protetor dos comerciantes e dos ladrões. É o senhor dos negócios que se realizam à noite, pelas caladas. Astuto, inteligente, inventivo, opera, antes, com a gnose e a magia. É o intérprete da vontade dos deuses, sua maior tarefa, daí hermenêutica, a arte de interpretar leis (quinto hino órfico: tu, mensageiro do deus, profeta do logos para os mortais...); mas do nome de Hermes deriva também hermetismo, que se cristaliza em ensinamento secreto e hermético, erudito, algo que é de compreensão muito difícil, algo 39 Prov. 8, 20: 43 inteiramente fechado como um vaso que não deixa penetrar o ar, por exemplo. Sempre os mitos a nos dar pistas. O que acontecerá com o Direito e a Justiça se lobos se travestirem de cordeiros e se deles passarem a emanar decisões e interpretações que lhes interessarem a eles e ao grupo que representam? A religião foi sempre particularmente preocupada com a possibilidade 40 , não farás curvar a justiça e não farás acepção de pessoas; 41 não aceitarás presentes, porque os presentes cegam os olhos do sábio e destroem a causa dos justos; mas o Senhor disse-lhe : não te deixes impressionar pelo seu belo aspecto nem pela sua alta estatura, porque eu o rejeitei. O que o homem vê não é o que importa: o homem vê a face, mas o Senhor olha o coração;42 quem cometer injustiça pagará pelo que fez injustamente; e não haverá distinção de pessoas. E nem à toa que, relata o Evangelho, Jesus se inflamou contra os sacerdotes do templo. E há, ainda e sempre, a gélida, aterrorizante experiência nazista. E por isto perguntamos: o Direito terá, afinal, suas leis imutáveis e eternas? Serão mesmo sacerdotes aqueles que lêem as leis e as interpretam segundo a vontade dos deuses? Hermes estará aí a cumprir sua função sem esperteza? A Natureza impacta mesmo o Direito e imprime sua marca indelével e sine qua non? Este é um velho problema que foi desnudado pelos sofistas na época de Sócrates. Os pensadores da época não pregavam haver oposição entre nómos e physis. A natureza tinha suas leis irrevogáveis e válidas em todo o universo. E havia o imbricamento das leis da physis e da polis: o nómos se integra na lei do universo que regula indiferentemente a natureza e os seres humanos pensantes. Pessoas, árvores, bichos, regatos, folhas, tudo está em comunhão padecendo o mesmo rejubilando-se pelo mesmo motivo, tudo é physis. O Direito continuava com sua característica místico-mítica. A dyke se insere no próprio ser do mundo e preside a harmonia do todo, do cosmos. Obedecia-se nómos porque se acreditava; a crença movia o sujeito. Nada mudava apenas evoluía. Os sofistas quebram esta unidade de pensamento. Eles são os primeiros, inaugurando uma nova Filosofia do Direito, a pensar sobre a lei e sua validade, sobre a justiça, sobre o direito. Eles não crêem que a apregoada unidade entre physis e nómos faça qualquer sentido: eles, questionando a validade das leis, concluíram que o fogo – sim - queimava igualmente na Pérsia e em Atenas, mas as leis humanas não eram iguais em toda a parte. 40 Deut. 16 I sam 16, 7 42 Col 3, 25 41 44 Quebraram toda uma lógica imensa de raciocínio que era dominante à época e introduzem a confusão e o relativismo no Direito. Diferenciam o ser do dever-ser, mas mantem o dever-ser como criação humana. As leis humanas, dizem eles, variam de cidade para cidade: enquanto a lei da natureza, a lei natural do mundo físico é a mesma sempre em qualquer lugar e submete igualmente a todos, as leis da polis variam e submetem os que estão nesta polis e não em outra. Um cidadão de uma obedece estas leis, o de outra obedece outras: a lei é expressão do poder que domina a cidade, do mais forte ou da classe dominante 43. Kelsen veio dizer isto muito tempo depois. A convivência social prescrita pelas leis da polis, tão diferentes entre si, descolam-se das leis ordinárias naturais sempre as mesmas em qualquer lugar e que a tudo e a todos sempre submete. Dizem os sofistas que se há obediência e submissão às leis dos homens, ao medo do castigo deve-se o fato e não a nada mais, o que indica que todos devem tratar do seu interesse com prejuízo do que preconiza a lei desde que possam fazê-lo de maneira discreta. É a primeira vez que o mandamento “nunca serás apanhado” aparece na literatura jurídica. Hípias, sofrendo com a questão, tentou harmonizar. Afirmando que o legal é justo, nota uma parecença entre várias leis de cidades diferentes. E atribui tal convergência à origem na divindade. Angustia-se com a existência de leis semelhantes sem que os homens das diversas cidades tivessem se reunido para promulgá-las. Mas distingue “natureza” de “convenção emanada dos donos do poder”. Considerando, como os sofistas consideravam, o homem igual a outro homem pela lei da natureza e não pela lei dos homens, não resiste e fulmina a lei tiranizadora que distorce a natureza e obriga, muitas vezes, os seres humanos contra a natureza. Nem Hípias, que tentou, conseguiu escapar do dilema. Estava instalado o sentimento do jurídico, o sentimento de justiça, que era inerente ao ser humano e distinto da ordem jurídica objetiva que, antes, pensava-se, era a que implicava toda a gente em toda a parte. Introduziu-se novo verbo – ele sempre esteve lá, só não tinha sido nomeado ainda - o do subjetivo no Direito. O drama de Antígona, genialmente referido por Sófocles, mostra a antinomia entre lei dos homens e lei dos deuses e mostra, também, o que é o Poder nesta relação nada incestuosa entre Direito e Poder. Os sofistas tinham compromisso com resultado: desde que ganhassem a discussão, o processo judicial, o que fosse, não se importavam com o grau de sofisticação maior ou menor, nem com os meios, que viessem a empregar. Utilizavam os meios suficientes para a vitória. Ajustavam-se ao cenário e ao momento. Eram práticos. O compromisso era com ganhar (o 43 sobre o tema já dizia Heráclito de Éfeso, pré-socráticos, 1978, 33, pág 82,: Lei (é) também persuadir-se à vontade de um só e 44, pág 83; - é preciso que lute o povo pela lei, tal como pelas muralhas. 45 processo, a atenção da assembléia...). Valiam-se do que bastava para atingimento do seu desideratum. E tinham, sim, enorme comprometimento com a Educação, entendida esta como erudição, conhecimento de artes, história, política, moral, fraseologia, recursos retóricos e a própria retórica em si, etc. Tudo, enfim, que contribuísse para o melhor discurso. Eram grandes informadores, focados no seu alvo: ganhar, distinguir-se. Já Sócrates, seu contemporâneo, não aceitava tais métodos: o compromisso não era com resultados, não era com ganhar o que quer que fosse, mas com o caminho que levava ao atingimento da Ética, da Verdade, da Justiça, não importasse o quê; para ele nada bastava, nada o contentava a não ser o caminho percorrido – que, ao contrário do caminho dos sofistas, era sempre o mesmo não importava quem fosse o interlocutor - para atingimento do objetivo: ele fustigava seus ouvintes, exasperava-os com sua persecução. Não se preocupava com o grau de desenvolvimento do ouvinte, rodeava-o como uma abelha, picando-o incessantemente. Não se preocupava se o interlocutor tinha ouvidos de ouvir ou interesse ou se queria, mesmo, adicionar outros problemas aos que já tinha, agora de ordem metafísica. Não se adaptava ao meio, não se preocupava com o grau de interesse ou compreensão: a Verdade era uma só e incumbia-lhe a ele acender a luz desse entendimento independentemente da luz interna daquele com quem dialogava. Sócrates preocupava-se com a Paidéia, mas não se interessava especificamente pelo seu aspecto cultural: valia-se de normas lógicas e de raciocínio que facilitassem o entendimento do companheiro de conversa a fim de que ele atingisse o conhecimento de si e, assim, se aproximasse da Idéia de Homem no conceito grego da palavra, sem se valer de eruditas citações ou da demonstração de ser o palrador pessoa fina e bem informada. Sócrates era um formador comprometido com o mundo metafísico. Ambas as escolas tinham na Razão, no seu antigo conceito, a sua base. Mas se uma pretendia valer-se dela para ganhar o que quer que fosse na exata medida necessária para seu gol, a outra clamava usá-la como meio de entendimento e eleição da grandes e universais valores. Justiça ou vitória, no clássico dilema de Goffredo. Não sabiam à época – embora pudessem por intuição - que primordialmente estavam trabalhando com sentimentos. A diferença de método entre eles, responsável pela profunda diferença pessoal que tinham, é muito útil na reflexão que somos obrigados a fazer na discussão do assunto proposto neste capítulo: se o Sentimento decidir, como decide, qual seu ferramental e daí como refinar os elementos usados no processo de decisão para que se obtenham decisões cada vez mais complexas que pacifiquem as partes envolvidas sempre, mas que, previsíveis e incontestes, sirvam de elemento de controle e educação da sociedade. O que pretendemos desenvolver aqui é como o Sentimento se 46 manifesta no intimo do ser. No último capítulo faremos a aproximação destes sentimentos individuais. Inicialmente deve-se aceitar que este processo é humanamente mais fácil de se por a caminho quanto mais próximo do objeto a valorar (visão de Mãe) está o ser que vai decidir. Contrariamente, pensam alguns, quanto maior, a generalização que se pretende para atingimento da abstração que permita a ampla visão do objeto mais facilmente será o processo decisório: há aqui um grande erro! Quanto maior a distância maior a possibilidade de erro (lembremo-nos da frase retro referida de Jung: “o indivíduo é a realidade única. Quanto mais nos afastamos dele para nos aproximarmos de idéias abstratas sobre o homo sapiens mais probabilidades temos de erro”). O sentimento de justo, aquele que reflete o conceito de justo que cada um tem dentro de si, o sentido de equilíbrio, a justa medida, a mais razoável naquele instante, cai como uma rede de gladiador jogada sobre o caso concreto e o abarca. Não há interveniência lógica, reflexiva ou analítica; há uma enorme compreensão do fato (e aqui pode haver um enorme engano quanto ao fato, lembremo-nos dos preconceitos, da ideologia e do íntimo convencimento) a que se adere o sentimento do justo. Nesta fase o uso da palavra é inexistente. O ideal é que o sentimento se veja livre e desimpedido de amarras e freios e esporas e âncoras. Nesta fase, espera-se, o sentimento que atua deve ser o refinado e não o pueril (bruto) ou escuso. Nessa hora, há que se cuidar, pode entrar a vontade de mudar o mundo e aí se cria outra confusão. Logo a seguir vem a intenção, a vontade firme e flamejante de realizar o justo, mais propriamente de cancelar o injusto Se o justo tiver sido sentido e aplicado ao caso concreto: acabou-se. Há um descanso, a tensão se esvai, a pessoa inala, nova tensão e vem o parto: sai a sentença prontinha que já pode ser objeto de reflexão pensada (sentimento mais consciente que o anterior), ocasião em que pode ser mudada. Agora a busca está em encontrar as motivações da decisão. Quanto mais vezes passar o ser que decide por processo idêntico, mais imediatamente ele “saberá” o que fazer e virá sua sentença. É muito elucidativa a descrição que nos faz Recaséns Siches em a sua Nueva Filosofia de la Interpretación Del Derecho da “confissão feita pelo juiz Hutcheson sobre o modo efetivo como a mente funciona no processo judicial”.44 Para espíritos mais curiosos recomenda-se, ainda, a descrição de Damásio 45 inclusive seus comentários de que o conhecimento factual necessário para o raciocínio e para a tomada de decisões chega à mente sob a forma de imagens, que essas diversas imagens – perceptivas, evocadas a partir do passado real e evocadas a partir de planos para o futuro – são construções 44 45 Citado por Lídia Reis de Almeida Prado em seu O Juiz e a Emoção, pág 15. A partir da página 123 de seu livro já citado, 47 do cérebro (nosso grifo) – o que nos remete à nossa historinha da jabuticaba - , como se formam as imagens perceptivas, etc. Se o processo por que passa o ser que decide for o que se descreveu muito grande é a chance de as partes saírem com a sensação de que justiça foi feita; ao revés se abstração tiver sido o caminho percorrido, enorme a possibilidade de ambas as partes, ou uma delas, estarem com o gosto amargo de injustiça na boca. Mas, continua a dúvida, pode o Direito ser científico? Há como decidir (ou interpretar) cientificamente escolhendo uma entre alternativas? Nosso comportamento humano é baseado na bipolarização, na dualização daquilo que disputa: dia/noite, quente/frio, bom/mau, justo/injusto. E não deixa de ser curioso que o nosso ideal de comportamento não se ajuste á oposição, não a aceite com naturalidade, não seja conforme a famosa máxima: é preciso saber que o combate é oque-é-com, e justiça (é) discórdia, e que todas (as coisas) vêm a ser segundo discórdia e necessidade. 46 Ignorante da tensão, sem saber trabalhar a discórdia, e, conseqüentemente, sem saber buscar a Justiça, o homem comum tende a aplicar em geral às leis, sentenças, máximas, interpretações e decisões o bom senso próprio! Não o senso comum, o que já foi testado e que se for aplicado ao caso em espécie ilumina-o, mas aquele preconceituoso e que tem origem no ponto mais obscurecido do ser. Como se quisesse deixar sua marca, escrever sua biografia. Diz-nos Damásio 47 que o trabalho desenvolvido por Amos Tversky e Daniel Kahneman demonstra que o raciocínio objetivo que usamos ns decisões do dia a dia é muito menos eficiente do que parece e do que deveria ser. Em termos simples, podemos dizer que nossas estratégias de raciocínios são defeituosas, e Stuart Sutherland toca num aspecto importante quando fala da irracionalidade como “um inimigo que vem de dentro”. Na qualidade de integrantes do problema, todos os atores têm possibilidade de influir; o Juiz e a Juíza não se livrarão do estigma sob o manto da imparcialidade. Eles ficam apenas na posição privilegiada de poderem observar os fatos e o processo até que, esgotado seu tempo, sejam chamados a decidir. Na física quântica, acontece algo que parecia sui generis: o observador tem um papel privilegiado, sua presença sendo de alguma forma responsável pelos resultados de um dado experimento 48 Daí a quinta máxima estranha da nova física: ao observarmos um sistema físico 46 47 Heráclito de Éfeso 80, pág 87, Pré-socráticos 1978 2000 pág 224 48 Gleiser pág 22 48 influenciamos seu comportamento; não existe mais uma separação clara entre observador e observado49 . Está prescrito um papel surpreendente para o observador de fenômenos físicos: no mundo do muito pequeno, o observador não tem um papel passivo na descrição dos fenômenos naturais; se a luz se comporta como onda ou partícula dependendo do experimento, então não podemos mais separar o observador do observado. Em outras palavras, no mundo quântico, o observador tem um papel fundamental na determinação da natureza física do que está sendo observado. A noção de que uma realidade objetiva existe independentemente da presença de um observador, parte fundamental da descrição clássica da Natureza, tem de ser abandonada. De certo modo, a realidade física observada (e apenas essa!), ao menos dentro do mundo do muito pequeno, é resultado de nossa escolha 50 nosso grifo. Da aplicação do nosso Sentimento, portanto, diríamos nós. Desta forma, vemos a impossibilidade de o Juiz ou a Juíza ser imparcial (aquele que vive um lado, “aspira”, sente, sai do papel, muda de lado, vive o outro lado, “aspira”, sente, sai da cena, retorna ao seu papel original de observador, abstrai, compreende a coisa na sua totalidade e julga sem tomar partido algum) ou objetivo (aquele que observa à distância, sem qualquer envolvimento com qualquer dos lados). Com isso muda o cenário do início deste capítulo: no jogo de sedução do nosso exemplo, o jogador – o ator - sempre será parte, e influirá, mesmo que jogue mal! O Juiz e a Juíza em alguns países não podem decidir se vão decidir ou não, pois há nesses países a proibição do non liquet. Mas, desde que não podem cancelar ou não cancelar o jogo, podem fazer de tudo, segundo seu convencimento, inclusive mudar as regras enquanto se joga o jogo, para que um time vença e o outro perca. O mesmo pode ocorrer nos países em que a possibilidade do non liquet existe: criar dúvidas onde não deveria haver pode ser a saída! Não afirmamos acacianamente que o processo finda-se com a sentença e que, portanto, sempre há uma decisão e que, claro, esta é sempre a favor de um lado em detrimento de outro; afirmamos, sim, que quando há a indefectível decisão a favor de um lado houve também um olhar mais benfazejo para esse lado do que aquele que foi enviado ao outro lado, algo neste lado chamou, atraiu mais a atenção, atenção esta que por natureza é monofásica, e dizemos isto com tanta gravidade que estendemos este olhar simpático do Juiz ou da Juíza até às causas mais simples e de decisões aparentemente menos problemáticas como a de uma cobrança de duplicata, 49 50 Gleiser pág 251. Gleiser pág 299 49 por exemplo; Juiz ou Juíza é aquele que toma partido – político e ideológico estritamente de acordo com seus sentimentos pessoais - e escolhe como decidir escolhe para que lado vai olhar, de que lado vai observar, qual o lado, qual o mirante, qual o ponto de vista, qual o corte epistemológico! É claro que um Juiz ou uma Juíza quando sentencia, foca, automaticamente, um lado e despreza o outro: e já por isso é parcial. Mas faz mais. Faz uma escolha política (Kelsen), ou seja, dentre tantas escolhas que poderiam ser certas, corretas, justas, razoáveis, pinça uma, por graduála, em detrimento das outras igualmente possíveis. E o faz baseado, repetimos, em seus sentimentos pessoais. Nesta acepção, sentenciar é tomar partido e, pode ser enorme, a importância da Retórica (pode ser enfatizamos). Mas pode não ser. Dizemos “pode” porque em alguns casos tão grande é o sentimento do Juiz ou da Juíza sobre tal fato, a favor ou contra, que nem a retórica perelmaniana mais aguda logrará êxito em convencer aquele que já estava adrede convencido. Quando cria a realidade, um escritor, por exemplo, um poeta, não cria a realidade, ele cria uma realidade, não há qualquer dúvida a respeito. Um jornalista e um historiador (segundo Bloch, Le Goff e tantos outros da Nova História) quando referem um fato não narram este fato objetivamente despido de qualquer nuance pessoal, ao contrário, relatam o fato a partir do seu ponto de vista ou daquilo que querem provar e, há casos, em que a parcialidade é evidente (a História como história da fofoca ou, então, a História pelo prisma do vencedor, para citar duas de inúmeras diferencialidades). É a flagrante oposição entre o neutro e impossível “era uma vez” e o testemunho do “aconteceu assim, senhores eu vi!”. Um tradutor escolhe palavras em sua língua procurando ser fiel ao propósito e ao estilo do autor, mas ao contrário (tradutor, traidor), traduz a partir do seu ponto de vista sobre a palavra – ou a frase - certa para aquela situação, mudando, ou alterando, muitas vezes o sentido original. Um ator interpreta o seu papel a partir do seu ponto de vista sobre a personalidade do personagem e sobre a sua reação diante do fato em questão, ocorrendo que cada ator, uma interpretação diversa. Um intérprete interpreta o fato (testemunhal, a prostituta das provas) do jeito que pensa que viu e a lei a partir do seu envolvimento ideológico e político com o caso. Um advogado não pode ser mais parcial e, portanto, compromissado apenas com a vitória no seu caso e com nada mais, não valendo, para ele, o fato, como se este pudesse ser descrito com isenção, mas sempre a sua versão na forma mais benigna, benfazeja, parcial e conforme o seu objetivo. Um Juiz e uma Juíza não podem ser diferentes: avaliam, como todo ser humano, a partir da projeção de si. 50 É o Sentimento em ação constante e a dominar e a marcar a atuação individual (a proveniente do papel social que representa naquele instante aquela pessoa) e a atuação singular51 das pessoas. Jung 52 dizia que “a psicologia é a única ciência que precisa levar em conta o fator valor (isto é, sentimento), pois é ele o elemento de ligação entre as ocorrências físicas e a vida”; o mestre esquecera-se do Direito! Há uma pesquisa que deve ser feita e que é muito importante, muito ilustrativa, finaliza, mesmo a questão: nosso Houaiss mostra que, em português (em inglês, em francês...), os verbetes sentir, sentimento, sentença, sen(t/s), têm a mesma raiz! Isto é: lá atrás na hora da configuração da língua, o homem sabia que “ter a sensação de”, “o ato ou efeito de sentir” e “a decisão, a resolução ou a solução dada por uma autoridade a toda e qualquer questão submetida à sua jurisdição”, querem, razoavelmente significar a mesma coisa e têm, portanto, a mesma raiz, sen(t/s), antepositivo do verbo latino sentio, is, sensi, sensum, tire. Com “acórdão” acontece a mesma coisa: sua raiz é cors, cordis: coração! Se considerarmos a Física Quântica, como ciência, porque parte de um todo inegavelmente científico, o nosso Direito, no âmbito do muito pequeno onde o colocamos, misturando observador (Juiz ou Juíza) e observado (o processo, ou seja, partes e seu relacionamento legal e factual) estará fazendo Ciência também. E livrar-nos-emos da busca desenfreada, angustiante e impossível de uma metodologia de interpretação das leis e de bem sentenciar deslocando o debate da “interpretação” para “quem, como, quando, onde, porque interpreta”. Com isto podemos perguntar: mas é profissional ou amadora a postura destes juizes ao julgar? * 1.11- o sentimento em ação Há no começo do século XXI, infelizmente, elementos de distúrbio na conclusão: porque se sabendo (inconscientemente) parte, alguns dos Juizes ou Juízas substituíram sentimentalmente seus sentimentos pela simpatia: hoje, como sempre, a sentença judicial é a expressão verbal de um sentimento: mas de um julgador que não conclui, não reflete, não argumenta, que apenas julga conforme o sentimento ideológico que o mundo lhe provoca. A grande maioria das ações já está pré-julgada por alguém53 o que amplia a imprevisibilidade que se pretende afastar do 51 como marca do estilo próprio da pessoa que “style c’est 1’ homme propre” no famoso dizer de Buffon 1996 pág 99 53 (afinal, como exemplo, dentre centenas de milhares de ações para serem julgadas no nosso STF, não passam, como afirmou um Ministro, de cem as teses em discussão) 52 51 mundo jurídico: nunca cada cabeça cada sentença confrontou tanto a previsibilidade da sentença normalmente emanada por um órgão colegiado que maduramente está conforme a sociedade e sem contradições inimizando seus membros. Por mais chocante que possa parecer é o uso da técnica jurídica para resolver um conflito – o do juiz – e não o das partes envolvidas. É a busca de uma justiça cara ao julgador e não aquela adequada ao caso concreto. E pior e incompreensível para nós e para as partes, é a atitude de abstração quintessencial (ou seja, do caso concreto à generalização, desta à abstração, para o final atingimento de uma idéia que já está muito distante e longe do caso concreto que está em julgamento, e que foi o ponto de partida, caso concreto este, aliás, que já veio como versão e não como fato, alterado que foi pelas advogados das partes) que se adota neste mundo jurídico: como a atitude de alguns médicos que tratam só da doença e se esquecem do doente, esta atual ausência de virtude jurídica caminha tecnologicamente, como convém aos seus admiradores, ao sabor da forma, da processualidade sobre o conteúdo, o que nos leva a afirmar que estamos em um mundo muito estranho: a tecnologia descolou-se da ciência, a racionalidade descolou-se da razão, o direito da justiça: é como se um governo investisse tudo na construção de estradas e desestimulasse de tal jeito que fosse reduzida a zero a produção de veículos! Há total perda do sentido! A Justiça, antes a doadora de sentido ao Direito, hoje é afastada do Direito para que o Direito se veja Puro! Para minimizar o tema cito dois casos verídicos em que houve clara interferência do sentimento no julgamento; mais, o sentimento está à flor da sentença como seu animador principal, mas, nunca, repetimos nunca, foi manifestado nem no Relatório, nem nas Motivações, nem na Decisão dos Juízes citados, ou seja, a sentença é um esmero e traduz o que de melhor há em técnica de redação como descrição objetiva, citação de leis e doutrina, alguma jurisprudência etc: IDisse-me um Juiz do Norte do país que julgou – conscientemente - a favor de um pobre a ação cível proposta (em 2000) por aquele pobre contra um rico apesar da falta de provas (aliás a única defesa alegada pelo rico: não há provas) porque jamais um pobre naquela região acionaria um rico se não tivesse mesmo razão (e, sorrindo acrescentou, convicto, que esta sentença, dentre tantas, era aquela de que mais se orgulhava, inclusive porque não foi objeto de apelação); tal sentimento (pobre só aciona rico se estiver mesmo injuriado e carregado de razão) é válido enquanto poucos 52 pobres com razão (e sob qual ponto de vista estes pobres têm razão, estamos nós, preocupados, a perguntar) acionarem alguns ricos sem razão: à medida que este conhecimento for difundido entre os pobres – de que eles ganham a ação por serem pobres acionando ricos – todo pobre (basta provar sê-lo) passará a acionar espertamente os ricos com ou sem razão, o que trará, esperamos, obrigatoriamente modificação no sentimento (pobre passará a ter que provar que tem razão e não que tem razão porque é pobre). IIOutro, Juiz Trabalhista (em 2002) do interior do estado de São Paulo, disse-me considerar o empresário que não paga os salários tanto ou mais ladrão que o pior assaltante que com revólver e violência rouba nos semáforos. Assim ele julgava: o empregador não pagou salários (por que? Tinha possibilidade, tinha recursos? Não cogitou...): basta! É culpado do pior dos crimes e, portanto, merecedor das piores penas possíveis ou impossíveis. E assim procedia, mesmo, se necessário, a seu ver, ao arrepio do Código de Processo Civil, desde que fizesse a sua justiça. Já há muito que a sapiência religiosa afastava54 o assunto: não farás nada contra a equidade, nem julgarás contra a justiça. Não consideres a pessoa do pobre, nem temas a presença do poderoso. Julga o teu próximo conforme a Justiça. Tais práticas que parecem hoje incorporadas ao nosso Judiciário como norma: cada um de acordo com sua consciência, parece ser o princípio jurídico inelutável. É o abandono da sentença jurídica e o advento da sentença ideológica, política e psicologicamente motivada. Os reality shows mundo afora mostram bem, dentre vários outros programas interativos, como o povo decide. Quando motivado a escolher sabe como ninguém como votar. E o voto é sempre, mostram os dados, moralmente motivado. 55 Quando decide e quando não decide, está a sinalizar sua habilidade decisória e alardear a sua virtude e a sua tolerância. Um dos povos mais tolerantes do planeta é o brasileiro: a assim dita tolerância do brasileiro, a proverbial aceitação que o brasileiro manifesta, a sua competência de conviver com diferenças, o respeito que manifesta pelas individualidades (se está bom para ele. Se 54 Lev 19, 15 - singelo exemplo: a audiência dos programas conhecidos como BBB, só para citar um caso, é bem clara em mostrar o fato (média de quase Três milhões de aparelhos só na cidade de São Paulo ligados por programa na semana de 8 a 14 de março de 2004 com conseqüente enxurrada de votos). 55 53 ele é feliz assim), estas manifestações, camuflam, nesta pregação do individual sobre o social, o desejo de não julgar para não ser julgado. É, na base, um acordo tácito: “não me aborreças nas minhas idiossincrasias que, em retorno, não te aborrecerei nas tuas”. Assim, não é a tolerância com o outro que está sendo manifestada, mas a que é consigo próprio, supremo egoísmo. Tal postura retirada da máxima “meu lar meu castelo”, projeta a visão feudal para a sociedade. Se, por exemplo, as mentes jurídicas estivessem preocupadas com o emprego e não com o empregado ou com o empregador, se estivessem, em última instância, preocupadas com o homem enquanto doador – e não donatário - de sentido e valor para todas coisas, mais o grau de cidadania do povo aumentaria e se refinariam os sentimentos. Deste jeito, enquanto finge que não decide, o homem decide a seu favor. Aliás, qualquer um, sempre alerta, órgão decisório solene e formal, separando as coisas, uma das outras, isto é bom, isto não é, todos se encontram capazes de decidir tão bem e tão camufladamente sobre qualquer assunto. Opinião (pré) formada sobre tudo, reage opinativamente, é verdade, sentimentalmente, é verdade, mas todo ser, togado ou não, sentencia sempre e a qualquer hora. Dentro dos seus limites, de suas possibilidades, de seus interesses. São opiniões, nada mais. Frágeis, volatilizam-se com facilidade. Cada uma em seu grau, a solene manifestação do sentimento de quem o profere. Nada mais. Claro que quando pensa com mais profundidade e isenção, produzindo episteme, a pessoa não opina, pois, já se disse, não há opiniões epistemológicas. Mas, episteme ou não, sempre no uso do aparelho físico, o cérebro, que indica até onde pode o homem chegar, com absoluta exclusão de qualquer outro poder que se existisse habitaria o mundo do sonho. Limite físico é o nome da impossibilidade. Para nós a sentença judicial e se bem baseada sentimentalmente ainda é meio do caminho. Carrega consigo a carga do ser humano a que nos referimos acima, mas mais uma. Explicamo-nos: muitas sentenças são repudiadas pela ignorância que contêm. Tantos e tão complexos são os fatos deste mundo globalizado e ágil que vários escapam ao Juiz ou Juíza menos cultos e experientes, ingênuos, mesmo, por vezes. A sociedade é, afinal, quem paga a (caríssima) conta: fatos econômicos decididos sem conhecimento de causa, fatos financeiros decididos por influência das ordálias, fatos políticos a favor do poder 56 ou de 56 pelos art. 84, XIV e 101, único, da Constituição Brasileira, os Ministros do Supremo Tribunal Federal e dos Tribunais Superiores são nomeados pelo Presidente da República, o que pode dar maioria nas Cortes, 54 ninguém, ou dos pobres, ou dos ricos, o caos total, a total ausência de ordem e composição. Este caos pode ser reorganizado? * 1.12- busca de Paidéia Já há filósofos que buscam na origem animal do homem as explicações . Em outras ciências esta busca não é novidade. Desmond Morris, famosíssimo zoólogo, diz na Introdução do seu fenomenal O Macaco Nu, que ele pretende estudar atentamente o Homem porque, apesar de se ter tornado tão erudito, o Homo Sapiens não deixou de ser um macaco pelado e, embora tenha adquirido motivações muitas requintadas, não perdeu nenhuma das mais primitivas e comezinhas. Isto causa-lhes muitas vezes certo embaraço, mas os velhos instintos não o largaram durante milhões de anos, enquanto os mais recentes não têm mais de alguns milhares de anos – e não resta a menor esperança de que venha a desembaraçar-se da herança genética que o acompanhou durante toda a sua evolução. Na verdade o Homo Sapiens andaria muito menos preocupado e sentir-seia muito mais satisfeito se fosse capaz de aceitar esse fato. Muitos textos de muitos autores inconformados, negando esse fato quiseram ir além, quiseram dizer que era possível mais. Quiseram descolar-se do limite físico do macaco pelado e alçar vôo: inteligência espiritual foi um dos nomes. Não concordamos. Achamos que com Paidéia, o ser humano brasileiro conseguirá romper um pouco mais seus limites físicos, empurrá-los um pouco mais, expandi-los, levá-los ao limite estendido, como fazem, por exemplo, os corredores de 100 metros rasos: sempre abaixando um pouquinho o Record, sempre melhorando até o ponto de total tensão, do qual não se passará. Não há como divinizar-nos. Mas há o alerta que nosso cérebro está se desenvolvendo e será outra coisa daqui a mil anos, por exemplo, se chegarmos como espécie a este tempo. Lá e nesta época o senso de realidade e o olhar para o passado serão muito diferentes do senso e do olhar que hoje temos. Paidéia ajudará a refinar os sentimentos e auxiliará nesta jornada. * 1.13 – a eterna busca de integração no divino Para finalizar este capítulo, mantê-lo inacabado (o que induz desdobramentos nos próximos capítulos) e transcrever uma mensagem eventualmente, ao detentor do Poder. 55 de esperança, útil até aqui e por enquanto, vale mostrar como clara e brilhantemente Hegel se manifestou a respeito de algumas posições heraclitianas sobre a matéria em questão57 “Heráclito diz ainda: “Tudo fazemos e dizemos segundo a participação do entendimento divino (logos). Por isso devemos seguir apenas a este entendimento universal. Muitos, porém, vivem como se tivessem um entendimento próprio (idían phrónesin); o entendimento, porém, (he dè), não é outra coisa que a interpretação (o tomar consciência, a exposição, a convicção) dos modos de ordenação (exégesis tou trópou) (organização) do todo. Por isso, na medida em que tomamos parte no saber dele (autou tes mnémes koinonésômen), estamos na verdade; mas, na medida em que temos coisas particulares (próprias) (idiásômen), estamos na ilusão”. Palavras muito grandes e importantes! Não é possível expressar-se de modo mais verdadeiro e mais espontâneo sobre a verdade. Somente a consciência como consciência do universal é consciência da verdade; mas consciência da particularidade e ação como individual, uma originalidade, que se torna característica do conteúdo e da forma, é o não-verdadeiro e o mau. O engano, portanto, consiste na particularização do pensamento – o mal e o engano residem no fato da separação do universal. Os homens acham em geral que quando devem pensar algo, isto teria que ser alguma coisa singular; isto é a ilusão. Por mais que Heráclito afirme que no saber sensível não há verdade, porque tudo o que é flui, o ser da certeza sensível não é, enquanto é, com a mesma força afirma ele que, no saber, é necessário o modo objetivo. O racional, o verdadeiro que eu sei é certamente um retroceder e sair do objetivo, enquanto sensível, individual, determinado, existente. Mas o que a razão em si sabe é também a necessidade ou a universalidade do ser; é a essência do pensamento, do mesmo modo como é a essência do mundo. É a mesma consideração da verdade que Espinoza denomina “uma consideração das coisas sob a forma de eternidade”. O ser para si da razão não é uma consciência sem objeto, um sonhar, mas um saber que é para si – mas de maneira tal que este ser para si seja desperto ou que seja objetivo e universal, sendo para todos o mesmo. O sonhar é um saber de algo de que somente eu sei. O imaginar e coisas semelhantes são também um tal sonhar. Do mesmo modo a sensação é a maneira de algo ser apenas para mim, de eu ter algo em mim, enquanto neste sujeito; por mais sublimes sentimentos que se tenham, é essencial que aquilo que sinto seja para mim, enquanto este sujeito – não como objeto, algo livre de mim. Na verdade, porém, o objeto é para mim, enquanto é livre em si, e eu sou para mim livre da subjetividade de mim; e do mesmo modo, é 57 Crítica Moderna , Georg W. F. Hegel, pré-socráticos, 1978, pág 101-102 56 este objeto de maneira alguma imaginado, transformado por mim em objeto, mas em si universal”. Como se vê a imersão no divino é aspiração antiga. Dentre os atributos divinos aspira-se a um em particular, o sentimento de justiça. Um dos maiores sentimentos humanos, um dos mais valorizados, um dos que é mais buscado e que dá um real sentido à vida é o sentimento de justiça que não se confunde com ser justo ou com o agir justo. Que será isto? Qual a obra humana a respeito? O que edificou o homem sobre o tema? 2 - Justiça. É uma palavra. Justiça é apenas uma palavra. Assim, um símbolo. E por isto mesmo provoca as mais apaixonadas contradições entre toda a gente. O símbolo – de que a palavra é um dos exemplos – é uma convenção arbitrária que visa especificar um quid de maneira objetiva. A palavra é ”a figuração de um estímulo nervoso em sons”, nos diz Nietzsche58. Denotar é um sonho: a palavra que provoca imediata compreensão, aquela que pode ser verificada intersubjetivamente, independentemente de tempo e espaço, aquela que confere com exatidão o significado, sem qualquer dúvida, ainda não existe. A palavra traz consigo um forte componente subjetivo. É na conotação que reside a origem dos problemas: um estudo de Bernard Pottier – lingüista francês – apresenta a tese de que a intersecção média entre emissor e receptor de um discurso situa-se na casa de apenas 13% . Somente no inconsciente coletivo é que as palavras, como herói, por exemplo, têm uma compreensão bastante similar, independentemente de onde sejam, ou a que tempo, pronunciadas. Há uma teoria em Lingüística denominada Sapir-Whorf (de Edward Sapir e Benjamin Lee Whorf) que sustenta que a linguagem que falamos dá estrutura ao jeito porque percebemos e pensamos o mundo externo. Segundo esta teoria nossa apreensão do mundo externo é determinada pelo jeito que nossa língua o expressa e que as diferenças entre as culturas é moldada por suas características lingüísticas únicas. A língua, aliás, não só expressa, mas ajuda a criar uma moldura conceitual da população fazendo com que as palavras sejam os conceitos59. Pensa-se o que as estruturas 58 59 (1978 pág 47). São quase 7.000 as diferentes línguas ainda em uso no planeta e recenseadas no começo do século XXI. 57 gramaticais permitem e o que as palavras indicam. Seria o motivo de a língua da Filosofia ser o alemão ou o grego, segundo alguns. A teoria levada ao extremo impediria a compreensão entre povos de línguas diferentes e admitiria a possibilidade de compreensão entre pessoas de mesma cultura e língua. É triste, entretanto, ver uma argumentação, freqüentemente, entre duas pessoas não levá-las nunca à compreensão, pelo simples fato de estarem falando, sem saber nem perceber, de coisas diferentes, muito diferentes entre si, enquanto julgam estarem conversando sobre a mesma coisa; no instante em que o emissor fala algo que pensa ser claro, facilmente inteligível, o receptor entende outra coisa, porque, exatamente, acha que aquele conceito é tão claro, que não comporta outra óbvia interpretação além da sua própria. É a Cizânia. Há um chiste, bastante chulo e primário, aliás, mas que ilustra o que os povos acham do tema; apesar de não acadêmico vale introduzir a piada de uso corrente e que identifica bem o problema: “A ONU querendo solucionar um sério problema mundial resolve fazer uma grande pesquisa endereçando uma pergunta aos diversos Parlamentos globo a fora: " Por favor, diga honestamente qual sua opinião sobre a escassez de alimentos no resto do mundo." As pessoas tiveram imensas dificuldades em perceber a questão e o resultado foi desastroso. Os europeus não entenderam o que é “escassez". Os africanos não sabiam o que era "alimentos". Os argentinos não captavam o significado de "por favor". Os norte americanos perguntaram o significado de "o resto do mundo". Os cubanos estranharam e pediram maiores explicações sobre "opinião". E o congresso brasileiro ainda está debatendo o que é "honestamente". 58 Por causa desse problema, da cizânia, criaram-se técnicas. A Neurolinguística é um bom exemplo. Estudou “circunstâncias” que visam “sintonizar” emissor e receptor para que se entendam ou para que um possa dominar o outro. Feroz arma na mão de quem sabe usá-la. Domínio da comunicação. Mortal. Justiça, assim, e de qualquer maneira, é apenas uma palavra e como tal, apresenta diferentes significados, dependendo de vários fatores: de quem a profere, onde, com que grau de consciência, com qual interesse e propósito, em que tempo, em que cenário, em que momento, com que grau de escolaridade, conforme a conotação tribal de quem pertence a este grupo social e não àquele, com que grau de desenvolvimento mental, intelectual e espiritual, com que emoção, sob qual ideologia, e para quem se destina o conceito, destinatário este que deverá ser avaliado sob as mesmas condições ditas antes do emissor. Ou seja: no cotejo inicial, qualquer conceito, a nosso ver, é individual e intransferível e, primariamente, deslocado de um pretenso significado geral, conferido por um grupo ou pela sociedade, em dado tempo. Incumbe ao grupo ou à sociedade equalizar o significado da melhor maneira possível. Para alguns, entretanto, a Justiça é um nome que designa algumas poucas coisas diferentes entre si e tem, portanto, poucos significados, mas, pretendem seus autores, todos eles objetivos. Estes significados, como tantos outros conceitos, devem obrigatoriamente ser apreciados pela Razão, que além de ser outra palavra, é percebida por essa gente como o único meio que temos para atingir o conhecimento de algo. É a opção fanática, e definitiva, pelo Logos, a certeza de que podemos conhecer um quid e, sem dúvida, alcançar a verdade. Faz pouco tempo que o Sentimento, outra palavra, entra na Filosofia como fonte de conhecimento: é através deste conhecimento racional, inicialmente sem palavras nem pensamento, mais especificamente como faculdade de decidir, que podemos dizer: eu sinto que...e ao proferir o juízo, expressar toda nossa certeza. Escolher por sentimento, outra fanática opção, é apanágio de outro tipo de gente. Poucas pessoas combinam as duas formas de conhecimento (no sentido moderno com o qual trabalharemos) com maestria e saber. Justiça, a palavra, provoca as mais estranhas e radicais atitudes, pelas quais se luta e se morre, pelas quais se ofende e se mata. 59 Porque pensamos justiça como criação humana, nos dois sub itens a seguir, estão listados aleatoriamente alguns resultados humanos: pelo lado do mito aonde chegou o nosso engenho e a nossa crença; do lado do logos aonde chegaram alguns filósofos com seus métodos visando descoberta de valores que, por isso mesmo, são escolhas sentimentais e não racionais. O tema continua apaixonante, segue candente e confuso. A palavra em si comunica vários significados, mas que sentimentos poderosos ela desperta, quanto frêmito, quanta energia, quanta emoção. Quando dizemos: isto é injusto! que confiança nos toma, que convicção inelutável imprimimos no nosso tom de voz, trêmulo e cheio de indignada certeza; se nos expressamos assim, sem dúvida comunicamos por falar deste modo quem de fato somos e expomos num átimo toda nossa carga genética e histórica. Rasgamo-nos. Mas, afinal, qual a nossa razão? Que motivos temos? O que nos permite dizer: sou contra a Injustiça, tenho a Justiça do meu lado? Uma pista pode ser dada pela observação da Natureza: segundo Darwin a evolução típica dos organismos é aquela que não tem a sustentação estrutural de um conjunto de finalidades predeterminadas. Como tudo está em devir não faria sentido um conjunto predeterminado de finalidade (por exemplo, se uma abelha está programada para só pousar em flores amarelas e por um fenômeno genético qualquer as flores amarelas se tornassem azuis as abelhas morreriam de fome; assim a natureza sábia ordena às abelhas que pousem em flores coloridas e que dentre elas escolham as mais doces e seguras naquele momento). A Natureza não é nem está engessada e imóvel. A ordem que cada organismo dá aos de sua espécie é inelutável e serve mais do que a outra coisa à sobrevivência do indivíduo e da espécie em questão. Mas não é uma ordem fechada (e nem é uma só para todas as espécies: há o jeito da pomba, do golfinho, da orquídea, do homem) e gera disputa. Há oposição entre os da espécie e entre espécies diferentes. A luta pela sobrevivência se dá através de um conflito e este conflito é o responsável pela seleção natural das espécies. Sobrevive o que passa pelo teste da vida e não o mais forte (Watzlawick). O nosso organismo está naturalmente programado para nos levar à nossa sobrevivência. E resolver nossos conflitos entre nós mesmos e entre nós e o meio ambiente. A verdade, como dizia Nietzsche é aquela que serve sempre, e só, à conservação da espécie. O Bem do homem é a sobrevivência como indivíduo e como espécie, e, daí, o Bem do homem é a sua evolução. Assim, fica a pista de que Justo para o Homem será sempre o que lhe permitir sobreviver como espécie e como indivíduo e depois evoluir (a abelha terá, portanto, outra visão, outra Justiça a pleitear se pudesse fazêlo). Justo será o que nos permitir sobreviver e evoluir e injusto será o que atentar contra a nossa sobrevivência e evolução. Justiça será, assim, o 60 ferramental posto naturalmente pelo organismo humano à disposição do ser do homem para que ele possa sobreviver e evoluir mais o ferramental que o próprio homem criou para alcançar seu Fim (O Fim do Homem é sobreviver e evoluir) com mais conforto, bem estar e prazer. Não há, destarte, Justiça sem o outro. De qualquer modo há que pensar um pouco mais, pois precisamos saber que Justiça é esta e quem a profere. * 2.1- Uma construção humana: alguns mitos. Para alguns, a palavra Justiça contem no seu, muito do significado de outras palavras: certo, correto, verdadeiro, legítimo, válido, justo, razoável e seus opostos errado, incorreto, mentiroso ou falso, ilegítimo, inválido, injusto, não-razoável e destes significados, que também são de difícil compreensão, nutre-se, o que, infelizmente, só faz aumentar a confusão quanto ao que se fala quando se pronuncia o termo. Assim quando se pede Justiça! visam-se conseqüências outras: Justiça assume um caráter vindicador, bem no sentido religioso do termo. É a reparação do ofendido. Quem prejudica deve sofrer o mesmo que sofreu o prejudicado: “se um homem ferir o seu próximo, assim como fez, assim se lhe fará a ele: fratura por fratura, olho por olho e dente por dente: ser-lhe-á feito o mesmo que ele fez ao seu próximo” .60 No nosso país o termo parece ser usado por reflexo: gritamos pela Justiça só quando, no nosso sentir, somos alvo de Injustiça: a Justiça não é oferecida por antecipação, não parte do agir cotidiano, das justas ações; ela é pedida como reparação de uma perturbação; ela não é dada, ela é reivindicada. Daí sofrer de um aspecto choroso. A Justiça, deste modo, só socorre os que não dormem. Para iniciar o processo de compreensão da palavra, saber o que o Homem inventou a respeito até agora – de maneira não taxativa - e o espectro de sua significação no tempo, achamos importante ir verificar o impacto primevo, aquele lá de trás, o protótipo dos que vieram depois. E de lá vir tecendo até o dia de hoje. 60 Lev. 24 19-20 61 O mito quer como “forma atenuada de intelectualidade”, quer como “forma autônoma de pensamento ou de vida”, quer como “instrumento de estudo social”61 vem socorrer e explicar. Os autores que investigam o Direito e a Justiça e que pretendem iniciar seus estudos desta maneira referem-se aos mitos, mas concentram-se sempre em Têmis e em Dike. Vamos além. E não pretendemos neste trabalho fazer cortes epistemológicos, apesar de necessários para a mais ampla compreensão global, pelos temas da Moral, do Poder, da Força, da Liberdade, da Violência, da Política, da Economia, da Sociologia, da Psicologia, nem passar por eles, a não ser de forma episódica ou quando inelutavelmente forem correlatos. O que nos interessa é o tema da Justiça; mas não ela em si e por si, inclusive porque não acreditamos no tema como tal. Interessa-nos investigar o tema da Justiça enquanto aquele quid que impacta a alma do homem. Interessa-nos saber como ela entra na alma, aninha-se e alimenta o sentimento; interessa-nos saber, depois, como este sentimento se manifesta. E – se é que há - qual o prejuízo para o mundo negocial, desta manifestação. Com 62 vários pensadores vamos ver como pensava o grego de outrora e quem foram e o que representaram os mitos de Têmis, das Horas, de Nêmesis, de Astréia, de Palas Atena, e, muito episodicamente, que correlação tiveram com o Poder, a Força, a Justiça, a Injustiça, a Punição, o Direito, e como estas palavras impactavam, segundo aqueles autores, os gregos de então. Muito importante dizer que os deuses míticos faziam parte, além do imaginário emocional desses gregos, da sua realidade vivida no dia a dia; a menor e mais corriqueira atividade contava com a participação do deus envolvido: a especialização do deus contava para sua presença! Eles, além de pressentidos, justificavam o acontecido e eram – mesmo - vistos próximos ao evento: a visão era para o grego seu mais importante sentido, aquele que lhe propiciava a sabedoria. E, tanto quanto possível estes eventos eram compreendidos objetivamente e com resignação. Não está muito distante do fato, apesar de diferente na essência, a maneira – fetiche? - de pedir a Deus sua divina intervenção em qualquer evento, qualquer mesmo, inclusive os egoísticos – oh deus: faça com que eu ganhe e ele perca! -, conseqüentemente pedindo algo para si em evidente detrimento do outro fiel (que faz o mesmo em mão contrária) e depois de atendido, dar graças a deus, o contrito e piedoso obrigado do servidor divino beneficiado. 61 Abbagnano, 1998 Junito de Souza Brandão (Mitologia Grega - volume I, 1998, volume II, 1999, volume III, 1998), Werner Jaeger (Paidéia – A Formação do Homem Grego – 1995) e Jean-Pierre Vernant (As Origens do Pensamento Grego –1996) 62 62 No Dictionnnaire Larousse de la Mythologie Grecque et Romaine 63, fomos procurar (nossa tradução) as explicações iniciais e simplificadas das palavras pretendidas (é de se notar sempre a preocupação com a abundância, o uso e os frutos da terra: as colheitas, as estações... como se o tema tivesse – e tem como depreenderemos – correlação com a Justiça): =filhas de Têmis e de Zeus, as Horas, Thallo, Carpo e Auxo, são antes de tudo as divindades que presidem a ordem da natureza e das estações. Elas representam, pois, dentro da tradição mais comum, a primavera, o verão e o inverno. = Têmis, filha de Urano e de Gaia, pertence à geração dos deuses primordiais. Ela é uma das esposas de Zeus e a mãe das Horas, das Moiras, das Ninfas de Eridan e, segundo alguns autores, das Hespérides. Segundo Homero, ela é a personificação da ordem estabelecida e das leis que regem a Justiça. Respeitada por todos os deuses d’Olimpo, ela assiste aos deuses e os homens em suas deliberações e preserva em todas as ocasiões a equidade das decisões que são tomadas. Ela é representada com uma balança e uma espada nas mãos (os dois emblemas da justiça). Mas, sobretudo, seus olhos vendados demonstram e simbolizam a imparcialidade das sentenças que profere.64 =Atena, uma das doze divindades do Olimpo, saída diretamente do crânio de Zeus, totalmente armada e proferindo imenso grito de guerra. Dotada de uma nobre razão assim como de grande senso de sabedoria, provinda de sua mãe Métis (deusa da sabedoria e da prudência). Protetora do Estado, era a deusa que garantia a equidade das leis, sua justa aplicação, tanto diante dos tribunais quanto da assembléia. Por isso deve, também, cuidar da prosperidade do país. Deste modo tem enorme influência sobre a agricultura, inventando diversos artefatos (arado...) e passando seus modelos aos homens o que potencializava o trabalho humano no campo. É o símbolo divino da civilização grega por sua força guerreira, por sua inteligência, por sua sabedoria, por sua moderação de costumes e pela estudada beleza de seus monumentos artísticos e literários, o que lhe permite se alastrar e se impor dominantemente sobre o mundo. =Nêmesis, divindade primitiva d’Ática passou a ser venerada em toda a Grécia. Filha da Noite, ela foi insistentemente perseguida por Zeus que estava tremendamente enamorado dela. Para conseguir escapar ela tomava todas as formas possíveis. Uma vez transformou-se em gansa e Zeus se transformou em ganso para se unir a ela. Desse encontro a deusa pôs um ovo que foi confiado à Leda e de onde provem Helena e os Dioscuros. As vinganças de Nêmesis não são cegas; ela vigia simplesmente para que os 63 1965 64 (atenção: isto é o que diz o Larousse; a deusa na realidade tinha seus olhos bem abertos... porque como diz Tércio Sampaio Ferraz Junior, de olhos abertos ela declarava existir o justo. Quem tinha os olhos vendados, segundo o autor, era deusa romana Iustitia) 63 orgulhosos mortais não tentem se igualar aos deuses. Ela humilha aqueles que receberam muitos dons e se envaidecem. Ela aconselha a moderação e a discrição. Ela é representada então com seu dedo indicador na frente de sua boca. =Astréia, justa e virtuosa, esta filha de Zeus e de Têmis, vivia no meio dos mortais nos momentos felizes da idade de ouro. Mas, quando a alma humana se perverte, ela se retira com sua irmã Pudor, da convivência dos viventes e, sob o nome de Virgem se fixa no Céu entre as estrelas. = Justiça (Iustitia) é uma divindade alegórica romana, severa e digna, foi identificada com Têmis. Ela habitava a Terra nos tempos em que os homens viviam com bondade e paz, na idade de ouro. Quando a iniqüidade e o crime se instalam no coração dos homens, a Justiça prefere desaparecer e ganhar os céus, onde se torna a constelação de Virgem. Para ampliar, todavia, nosso foco de compreensão, temos que aprender com Jaeger que “o tema essencial da história da formação grega é antes o conceito de Arete”.65 Agathós significa bom, notável, hábil para qualquer fim superior; seu superlativo é áristos, o mais notável, o mais valente; o verbo que daí advem é aristeúein, comportar-se como o primeiro. Arete vem dessa família etimológica: a superioridade, a excelência que se desvelam no campo de batalha pela arte da guerra e nas assembléias pela arte da palavra. Qual é o conceito grego de Arete da forma como foi concebido lá atrás dos tempos? Costuma-se traduzir por “virtude”. Mas não virtude pura e simples, mas aquela não ainda corrompida pelo uso moral e que expressa o mais alto ideal cavaleiresco (de que o gentleman inglês é filho), ou seja, a atitude gentil e cortês, distinta e própria, ligada indelevelmente ao mais puro espírito do guerreiro-herói.66 Jaeger firma “ser fato fundamental da história da formação que toda a cultura superior surge da diferenciação das classes sociais, que por sua vez se origina da diferença natural de valor espiritual e corporal dos indivíduos. A nobreza é a fonte do processo espiritual pelo qual nasce e se desenvolve a formação de uma nação. Mesmo quando uma brusca mudança arruína ou destrói as classes dominantes, forma-se rapidamente pela própria natureza das coisas, uma classe dirigente que se constitui em nova aristocracia. A história da formação grega – o aparecimento da personalidade nacional helênica, tão importante para o mundo inteiro – começa no mundo aristocrático da Grécia primitiva com o nascimento de um ideal definido de homem superior, ao qual aspira o escol da raça. Basta isso para concluirmos onde 65 1995 pág 25 66 (e bem por isso citamos, sem maiores delongas infelizmente por escapar do tema, apesar de insistirmos na sua leitura, o mito d’A Lenda do Graal por Chrétien de Troyes). 64 devemos buscar a origem da palavra Arete: é às concepções fundamentais da nobreza cavaleiresca que remonta sua raiz”.67 E o que espera aquele que tem Arete? O reconhecimento dos seus pares! E isto nos dá excelente pista sobre a justiça. A honra, nesse tempo, está O mais antigo testemunho da cultura aristocrática grega vem de Homero (séculos IX e VIII a.C.) quando Arete é usada em sentido amplo, a excelência humana dos senhores, a força dos deuses, a rapidez, a beleza dos cavalos de raça. O homem comum não tem Arete. Ela é atributo próprio da nobreza. A destreza e a força incomuns são sempre confundidas com a pessoa que naturalmente ocupa, pelas qualidades, posição dominante. E ao lado da força, a prudência, a astúcia, a coragem, formando um quadro de características próprias de alguém superior, alguém de escol, alguém da elite. Quem tem Arete descola-se das atividades tidas como normais para a burguesia e sua moral apequenada, e agiganta-se como só os grandes que têm estilo livre e pleno domínio da vida sabem ser. Não podemos deixar de ver aí os imensos pontos de contacto com Nietzsche, atividade e comando, ação e controle, portanto com a sua vontade de potência (will to power), e com Nietzsche e a moral do senhor, do mestre (master morality) e a moral do escravo (slave morality). O ideal de ser o primeiro, o primus inter pares, move, em guerra e em paz, os aristocratas no sentido de que disputem e façam valer sua ascendência e a consciência perante o dever que os impele a realizar sempre mais e melhor que os concorrentes. É Fênix quem aconselha Aquiles, o protótipo dos heróis gregos, que “para ambas as coisas (fostes educado): proferir palavras e realizar ações”. 68 intimamente ligada à Arete: a honra é a medida do valor próprio, da sua Arete. E qual a sua aspiração suprema? Serem honrados pelas pessoas distintas, por seus pares, pelas pessoas sensatas, serem reconhecidos em sociedade e terem remarcado o seu próprio valor. Em Homero a honra é o troféu da Arete. Tão grande a importância deste reconhecimento que a ordem social se assenta nesta particularidade. Se a honra merecida não for reconhecida, terrível será a vingança. Neste sentido a cólera de Aquiles e o suicídio de Ájax. O elogio e a reprovação como fonte de honra ou de desonra. Mais do que dinheiro e bens materiais, a honra, contanto que reconhecida. “O que é pernicioso para mim é pernicioso em si”, sabe-se o único que empresta honra às coisas, é criador de valores”. 69 Werner Jaeger em afirmação surpreendente diz-nos que “a idéia filosófica do “bem” esse modelo de validade universal, procede diretamente da idéia de modelo da ética da 67 68 1995 pág 24/25 I.443 69 Nietzsche, 1978, pág 292 65 Arete, própria da antiga nobreza. O desenvolvimento das formas espirituais da educação homérica da nobreza, através de Píndaro até a filosofia de Platão, é absolutamente orgânico, permanente e necessário. Não é uma “evolução” no sentido seminaturalista que a investigação histórica costuma empregar, mas um desenvolvimento essencial de uma forma original do espírito grego, que na sua estrutura fundamental, permaneceu idêntico a si próprio através de todas as fases da sua história”. 70 Se em Homero temos a nobreza impactando a ética Grega, temos em Hesíodo a resposta do camponês, que sem ser bronco nem desprovido de sensibilidade, dá sua marca de contribuição. Ao herói contrapõe-se o trabalhador, que trabalha duro uma terra dura, reúne-se no fim do dia com os outros homens comuns e critica livremente a conduta dos seus concidadãos e dos eminentes senhores a ponto de só ter prestigio real quem era aprovado pela massa. É o povo influenciando a Grécia e dando sua mensagem campestre que não se dobra diante da cultura citadina; são valores imensos, intensos, toda uma manifestação ética que não pode perecer. É, repetimos, a resposta à provocação dos nobres, como deve ser; se tem início, porém, nos valores aristocráticos, com que riqueza ética contribui a massa para o arcabouço da vida espiritual grega. Campônio não é sinônimo de inculto; o saber grego busca a confluência da espiritualidade com a informação, visando para além do “conhece-te a ti mesmo” o Homem visto como sua quintessência, sua superação, sua Idéia. A época lembra alguns países hodiernos que tem na elite – e usamos o termo sem conotações financeiras – o móvel de sua busca ética e na classe menos abastada e tão conservadora o depositário vivo das mais altas aspirações de um povo; a classe média e a classe média baixa só fazem por perturbar esta ordem tão clara com a sua visão pequeno-burguesa; voltadas para o ter, consumistas e exibidas ao extremo, snobs71, vazias de substância, pífias e cheias de ressentimentos: não são mais tão pobres de bens materiais como eram, e nem de longe tão ricas como alguns nortes em que se espelham: os valores ficaram pelo caminho espezinhados, abolidos, trocados, confusos, gerando a grande angústia que caracteriza estas duas classes perdidas, pressionadas e desprezadas pelas outras duas. Vem daí sua fixação na visão de futuro, de progresso, de porvir: não são mais nem são ainda! Imaginam ser...no futuro! Ainda assim, pode-se perguntar o que interessa ao homem saber de mitos gregos que têm mais de 1.000 anos de existência ou o que preocupava o grego daquela época até o ano 300 a.C. 70 71 op cit pág 60 nunca é demais lembrar que o inglês snob vem do latim sine nobilitate, sem nobreza... 66 Interessam pela convergência que têm com o nosso modo de ser e pela divergência que obriga imediatamente a comparação. Interessa porque os mitos se repetem independentemente da cultura na qual aparecem. Interessa mais pelo fato de a cultura grega ter permeado a cultura ocidental inexoravelmente. Reconhecem-se mitos similares entre povos distantes no tempo e no espaço.72 Com enorme paciência e generosidade, explicou-nos a Dra. Sylvia Maria Cayubi Novaes, eminente antropóloga da USP, que nossos índios, por exemplo, e para passar de leve, e antecipadamente, pelo tema desta dissertação, não têm um conceito pétreo, único de Justiça - nem isto lhes parece possa existir – e guiam-se pela tradição e pela equidade. Não conhecem um sistema administrativo de Justiça e não há um magistrado que ouve e profere sentenças e, menos ainda, um que as execute. Mas há sim códigos orais rigorosos de condutas consideradas justas e morais que, se quebrados, acarretam enorme discussão entre as partes envolvidas até que se chegue a uma solução. Se esta demorar ou não for cumprida pelo que se obrigou, a tribo funciona como uma imensa caixa de ressonância, comentando sem cessar o que se passa até que se pacifique a questão. É, deste modo, pela fofoca e pelo bzzzzz que se controla a sociedade. Este controle está sempre em consonância estreita com a tradição que, por sua vez, não prescinde, jamais, de seus mitos, dos ancestrais e do “foi assim que sempre fizemos, sempre deu certo e, sem discussões nem dúvidas de qualquer espécie, vamos continuar a fazer”. O mito na definição referida por Junito 73 “é a parole, a palavra revelada, o dito; é a narrativa de uma criação: conta-nos de que modo algo que não era começou a ser. É sentido e vivido antes de ser inteligido e formulado. Expressa o mundo e a realidade humana cuja essência é efetivamente uma representação coletiva, que chegou até nós através de várias gerações. Está no coração dos homens” e opõe-se ao Logos. Mas, Mito e Logos são, a nosso ver, duas faces da mesma moeda; sem ambos não há compreensão plena. Usando-os, Jung, manipulou o conceito de arquétipo e abriu para o mundo a linguagem simbólica que nos conduz ao conhecimento do consciente e do inconsciente coletivos. Mito é o tesouro guardado no coração dos homens e que, quando exposto, é imediatamente compreendido em toda a sua extensão; a herança que recebemos dos nossos ancestrais mais remotos que nos é, além de cara, fonte de vida e entendimento de nós mesmos, de nossos motivos, anseios e esperanças. É a explicação que nos conforta e nos acalenta. É a chave que abre nosso mundo para nós mesmos. 72 73 (Maias, Incas etc., nossos indígenas...). (op cit) 67 Mito não é como aconteceu – santa ingenuidade – mas como o homem falou, alegoricamente, de si mesmo! É uma pista. Nossa memória está estragada. O uso irredutível da Razão como única criadora de soluções e explicações definitivas e absolutas, fez, desde a base, colocar camada pós-camada cenários bem construídos cujo objetivo primeiro era aliviar as inseguranças e incertezas da frágil alma humana: era necessário dar respostas às perguntas sem resposta. Formar esperança. Temos que desconstruir arqueológicamente os sítios construídos pelo homem, gênio criativo, e retornar ao ponto de partida: lá está não a verdade mas o começo da busca. Em “Sobre Verdade e Mentira no Sentido Extra-Moral” 74 Nietzsche irracionaliza a questão: “Em algum remoto rincão do universo cintilante que se derrama em um sem número de sistemas solares, havia uma vez um astro, em que animais inteligentes inventaram o conhecimento. Foi o minuto mais soberbo e mais mentiroso da” história universal “: mas também foi somente um minuto. Passados poucos fôlegos da natureza congelou-se o astro, e os animais inteligentes tiveram de morrer”. Nietzsche pergunta 75 em sua famosa afirmação “o que é a verdade, portanto? Um batalhão móvel de metáforas, metonímias, antropomorfismos, enfim, uma soma de relações humanas, que foram enfatizadas poética e retoricamente, transpostas, enfeitadas, e que, após longo uso, parecem a um povo sólidas, canônicas e obrigatórias: as verdades são ilusões, das quais se esqueceu que o são, metáforas que se tornaram gastas e sem força sensível, moedas que perderam sua efígie e agora só entram em consideração como metal, não mais como moedas”. Inconformado, o Mestre acusa e bastante preocupado com o rumo das coisas, provoca o leitor: “coloca agora seu agir como ser ”racional” sob a regência das abstrações; não suporta mais ser arrastado pelas impressões súbitas, pelas intuições, universaliza antes todas essas impressões em conceitos mais descoloridos, mais frios, para atrelar a eles o carro de seu viver e agir”. 76 E arremata, como quem bem avisa do erro que está sendo cometido impunemente: “Esquece, pois, as metáforas intuitivas de origem, como metáforas, e as toma pelas coisas mesmas”. 77 Vamos tentar ler nos mitos as metáforas intuitivas de origem e não tomá-las pelas coisas mesmas. Nunca é inútil lembrar que quando Pôncio Pilatos, enquanto urrava a multidão ignara, perguntou a Jesus, mas então o que é a verdade? ficou, por qualquer motivo, sem reposta e nós, humanos indefesos, perdemos para sempre a oportunidade de saber. 74 (1978) (op cit pág 48) 76 (pág 49) 75 77 (pág 50) 68 Assim, retornando ao mito, que pensar da classificação de Hesíodo (que na Teogonia parte do Caos para a Justiça, simbolizada por Zeus e nos Trabalhos e Dias justapõe trabalho e Justiça): haverá mesmo o homem lograr, com o auxílio de Zeus, simbolizando díke, a Justiça, elevar-se, fugir, do caos social e reintegrar-se, de novo, na luz? Retornar à Idade de Ouro de onde saiu e abandonar a Idade de Ferro em que se instalou – triunfante logo após e com toda a ignorância que o caracteriza? Será, então, a Justiça a grande chave de abertura da porta que descerrada nos permitirá ir ao encontro da luz? Tendo em mente ser Hesíodo um poeta campestre e que falava dos que trabalhavam a terra, distante, muito distante, portanto, de Homero e de sua ética dos nobres, tomemos o mito como nos veio. Vamos aprender pela mão segura e pelos escritos dos diversos autores que escolhemos, cujos textos serviram para uma colagem na ordem que quisemos dar e à qual adicionamos nossos pensamentos. Façamos um passeio pela Grécia antiga: Direito: Não havia direito escrito no período micênico nem na época dória, mais ignorante ainda; Só entre os séculos IX e VIII a.C. é que apareceram no mundo grego vários alfabetos, que paulatinamente se unificaram, mas cuja origem é uma só: o alfabeto fenício. Pois bem, o direito grego oral, consuetudinário, estava nas mãos dos Eupátridas (os nobres) que por conhecimento hereditário pretendiam interpretá-lo e aplicálo. Era o direito baseado na thémis, “têmis” (Thémis, “Têmis”, a deusa da justiça), isto é, na justiça de caráter divino, uma espécie de ordálio, cujo depositário é o rei, o eupátrida, que decide em nome dos deuses. Por dívidas, um camponês era levado à hipoteca somática (a do próprio corpo!) e daí à escravidão. Não foi apenas Hesíodo que se queixou dos “reis comedores de presentes, que não raro julgavam em seu próprio proveito... Foi exatamente com este estado de coisas que Sólon tentou romper, substituindo a têmis pela díke, dique, isto é, pela justiça dos homens, baseada em leis escritas. Lamentavelmente, porém, enquanto as aristocracias não foram redimensionadas, a administração da justiça continuou a ser manipulada por magistrados e conselhos aristocráticos”. Consuetudo: justiça em latim Justiça: a novidade maior da Odisséia, todavia, está no embrião da idéia de culpa e castigo, em que a hýbris, a violência, a insolência, a ultrapassagem do métron, que será a mola mestra da tragédia começa a despontar. Uma fala de Zeus,78 no canto I da Ilíada, em que o pai dos deuses e dos homens afirma que os “mortais culpam os deuses dos males que lhes sucedem, quando somente eles, os homens, por loucura própria e 78 26-43 69 contra a vontade do destino, são os seus autores”. Eis aí a ponta do véu da díke, da justiça, que se levanta. O século VIII a.C. é marcado pelo pesado fardo dos Eupátridas, que manipulavam, além de outros poderes, a justiça, concebida sob forma temística. Ora, não é precisamente a díke, a justiça dos homens, a projeção de todo ideal de Hesíodo? Seu desejo é que a justiça, a paz e a disciplina (as Horas, portanto) reinem para sempre e que a Moîra não seja mais uma conseqüência do acaso, mas a vontade de Zeus. Observando-se as hierogamias, os casamentos sagrados de Zeus, nota-se que o grande deus “antropomorfizado”, após estabelecer com suas lutas e vitórias a justiça e a paz, tornou-se a síntese das qualidades divinas e humanas de um governante todo-poderoso, mas justo e civilizado. Com Têmis adquiriu não só a Equidade, traduzida nas Horas, a disciplina, a justiça e a paz, mas também o poder sobre a vida e a morte, cifradas nas Moiras. Foi com Pandora e com o crime de Prometeu que se iniciou a degradação da humanidade. Para explicá-la Hesíodo introduz o mito das Cinco Idades. Deste mito o poeta extraiu uma dupla lição: mostra a Perses, mais uma vez, a necessidade do trabalho e aos “reis”, aos juízes, como e por que suas sentenças deveriam estar em consonância com a justiça. Daí a fórmula hesiódica: “Ouve a díke, a justiça, e não deixes crescer a hýbris, o descomedimento” 79 No mito das Idades as raças parecem suceder-se segundo uma ordem de decadência progressiva e regular. De início, a humanidade gozava de uma vida paradisíaca, muito próxima da dos deuses, mas, foi se degenerando e decaindo até atingir a idade do ferro em que o poeta lamenta viver, pois nesta tudo é maldade: até a Vergonha (Pudor) e a Justiça abandonaram a Terra. Resumidamente (e não pretendemos abordar somente a decadência do homem, mas principalmente, a necessidade do trabalho e o dever de ser justo) cada uma das idades está aparentada com um metal: ouro, prata, bronze e ferro; surpreendentemente Hesíodo intercala entre as duas últimas, mais uma: a idade dos heróis, que não tem como se sabe qualquer relação com metal nenhum! Na fase do ouro e da prata predomina Díke, na idade do bronze e dos heróis predomina a Hýbris. A idade de ferro é ambígua e definida pela oposição dos contrários, o bem se contrapõe ao mal, o homem opõe-se à mulher, o nascimento à morte, a abundância à penúria, a felicidade à desgraça; Díke e Hýbris, Justiça e Violência, uma ao lado da outra, 79 (Trab., 2131) 70 oferecem ao homem duas opções igualmente possíveis uma das quais ele deve escolher. Na idade do ouro os homens não envelheciam, sua morte assemelhavase a um sono profundo, não trabalhavam, viviam como deuses e como reis, tranqüilos e em paz, a terra produzia espontaneamente o que o homem precisava. Após deixarem esta vida recebiam prêmios e tinham o privilégio real de se tornar intermediários aqui mesmo na terra entre os deuses e seus irmãos viventes (assim, de cima para baixo) e de zelar, como guardiães dos homens, pela observância da justiça, e, como dispensadores de riquezas, favorecer a fecundidade do solo e dos rebanhos. Na idade de prata, parecida com a do ouro, os homens mantém-se longe tanto da guerra quanto dos labores. Continuam intermediários, mas de baixo para cima, ou seja, dos homens para os deuses. Na idade do bronze já não mais se cogita de justiça, do justo e do injusto ou de culto aos deuses; os homens dessa idade não comem pão, ou seja, são de uma idade que não se ocupa do trabalho da terra, e sucumbem na guerra, incessantemente, uns sob os golpes dos outros. Na idade dos Heróis há uma raça mais justa e uma mais brava, raças divinas dos heróis que se denominam semideuses: são os que, como os homens da idade de bronze, se deixaram embriagar pela Hýbris, pela violência e pelo desprezo pelos deuses e os que, como guerreiros justos, reconhecendo seus limites, aceitaram submeter-se à ordem superior da Díke. Sobre a idade de ferro diz o poeta: “Oxalá não tivesse eu que viver entre os homens da quinta idade: melhor teria sido morrer mais cedo ou ter nascido mais tarde, porque agora é a idade de ferro...”. Há doenças, velhice, a morte, a ignorância do amanhã, as incertezas do futuro, a existência de Pandora, a mulher fatal, e a necessidade premente do trabalho. Da idade do ouro o homem se degenerou até atingir o extremo insuportável da idade de ferro: Hesíodo modela a evolução humana de modo inverso daquele que apresenta como o da evolução divina: esta, ao revés, partindo do Caos, elevou-se até Zeus que para Hesíodo personifica a Díke, a Justiça. Mas de que Justiça ele fala? Fala daquela que segundo ele poderia corrigir nos séculos VIII e VII a.C. as graves distorções sociais. Seria possível? “Somente para seu igual se tem deveres” diz Nietzsche80. E qual seu impulso afetivo, qual a sua fome, qual a sua sede? Qual o seu desejo mais profundo de que o discurso é apenas o rótulo, o invólucro intelectual do que está por dentro? “Cada filosofia esconde também uma 80 (1978 pág 292) 71 filosofia; cada opinião é também um esconderijo, cada palavra também uma máscara”.81 Ao mesmo tempo em que – inclusive para se defender da injustiça de que foi alvo - é seu desejo instruir, orientar, ensinar seu irmão Perses, dominado pela Hýbris, Hesíodo admoesta os Eupátridas, donos da polis e das melhores glebas, e também da religião, das leis, do sacerdócio... da Justiça. Pede que eles não trabalhem se não quiserem (surpresa em Hesíodo que tanto pregava a importância do trabalho), mas que administrem bem as pendengas, que solucionem com justiça as querelas, que arbitrem corretamente os processos. Pretende diminuir a distância entre os Eupátridas e o homem comum. Logo na Invocação do poema, mostrando a força de Zeus, canta o poeta, exaltando a Justiça divina: Facilmente Zeus concede a força e facilmente destrói o forte, Facilmente humilha o soberbo e exalta o humilde, Facilmente corrige as almas torcidas e esmaga o orgulhoso, Zeus que troveja nas alturas e habita as sublimes mansões. Ouve minha voz, olha, escuta, que a justiça guie tuas decisões. De minha parte, quero dizer a Perses palavras verdadeiras. 82 Ensinando Perses, apela à justiça: Mas tu, Perses, ouve a justiça, não deixes crescer O descomedimento. O descomedimento é funesto para Os pobres e até o poderoso tem dificuldade em suportá-lo E seu peso o esmaga, quando a desgraça se encontra Em seu caminho. É preferível seguir outro rumo, que, Passando do outro lado, conduz às obras da justiça. A justiça triunfa do descomedimento, quando É chegada sua hora: o tolo aprende sofrendo. 83 Mas Hesíodo não deseja que a justiça seja praticada apenas por Perses, mas também, e, sobretudo, por quem tem a função de aplicá-la. Estes, infelizmente, se deixam levar por suborno, por espírito de corpo, por rejeição, por preconcebimentos, que fazem soluçar a própria Justiça: De imediato o Juramento se apresenta em perseguição Às sentenças torcidas, elevam-se os clamores da Justiça 81 82 (Nietzsche, 1978, pág 294) (Trab., 5-10) 83 (Trab., 213-218) 72 Sobre o caminho por onde a arrastam os reis comedores De presentes, que fazem justiça à força de sentenças torcidas. Ela os segue chorando sobre a cidade e as habitações Dos homens, que a expulsaram e aplicaram sem critério. 84 Hesíodo ameaça os prepotentes e os corruptos do século VIII: Reis, meditai também acerca desta justiça, porque Imortais Estão aqui, perto de vós, misturados aos homens. Eles observam todos aqueles que, por suas sentenças torcidas, prejudicam ora um, ora outro, sem se preocupar com o temor dos deuses. São trinta mil Imortais, que sobre a terra nutridora, em nome de Zeus, guardam os mortais, vestidos de bruma, percorrendo a terra inteira, observando-lhes as sentenças e as más ações. 85 Mas apela para seu bom senso em nome das classes injustiçadas: É preciso que o povo pague pela loucura desses reis Que, com tristes desígnios, falsificam seus decretos Com fórmulas torcidas. 86 Meditai sobre isto, reis comedores de presentes, Sede justos em vossos julgamentos e renunciai para Sempre às sentenças torcidas 87 Para exibir este estado de coisas, Hesíodo arremata com o apólogo do gavião e do rouxinol (que aponta a vigência da lei do mais forte): Agora, aos reis, embora sábios, contarei uma história. Eis o que o gavião disse ao rouxinol de pescoço pintado, Enquanto o transportava lá no alto, no meio das nuvens, Preso em suas garras. O rouxinol, traspassado lastimavelmente Pelas garras aduncas, gemia, mas o gavião brutalmente lhe diz: “miserável, por que gritas? Pertences ao mais forte que tu. Irás para onde eu te conduzir, por melhor cantor que sejas: De ti farei meu jantar, se assim o quiser, 87 84 (Trab., 219-224) 85 (Trab., 219-224) 86 (Trab.,260-262) (Trab.,263-264) 73 Ou te deixarei em liberdade” 88 a que Hesíodo contrapõe a paz: ouve agora a justiça, esquece a violência para sempre. 89 Contra a opressão dos ricos, Hesíodo propõe a dignidade da pessoa humana: Jamais injuries um homem amaldiçoado pela pobreza, que corrói a alma: a pobreza é um dom dos deuses imortais. 90 Ouvimos um lamento que vem lá do século VIII antes de cristo: é o clamor contra a injustiça. Mas, afinal, de que Justiça fala o poeta? Da dele contra a dos Eupátridas? De uma outra justiça que se opõe ao sistema de justiça vigente? As palavras da canção poderiam ter sido proferidas hoje no planeta Terra. Será que a Justiça que se persegue em 2005 d.C. é (ainda) a mesma de Hesíodo? O cenário está confuso. Teremos que continuar nossa caminhada para tentar chegar a um quadro, pelo menos, mais claro. Um ponto desde já pode ser fixado: o Hesíodo de “Trabalhos e Dias” apresenta o métron, a medida, e esta é o ser, ou seja, o homem dimensionado pelo trabalho e pela necessidade de ser justo. Há duas leis neste poema: há que se trabalhar e há que se ser justo. O homem tem que trabalhar e com isto ele foge da violência, isto é, da injustiça: a força moral que empurra o homem para o trabalho é a emulação – é possível conquistar mais e melhores coisas - e a que o afasta é a inveja: estas duas forças que se opõem estão personificadas em Éris (Discórdia na religião Romana). Em Homero, com enorme importância ao kállos, beleza, e ao kosmos, ordem, o herói (o nobre, o guerreiro, o lutador, o esportista), é medido por sua areté, excelência e timé, honra pessoal, aquilo que se vê; em Hesíodo a areté e a timé se traduzem pelo trabalho e pela sede de justiça, ou aquilo que se é. Em Homero a excelência e a honra pessoais tinham que ser exibidas pelo homem e precisavam ser vistas pelos outros e reconhecidas por sinais exteriores: neste encontro produzia-se a Justiça e pacificava-se o exibidor. 88 89 (Trab., 202-209) (Trab., 275) 90 (Trab.,717-718) 74 Em Hesíodo a excelência e a honra pessoais tinham que existir de dentro do homem para fora dele, exibiam-se espontaneamente e precisavam ser reconhecidas: não bastava parecer, tinha que ser: aí a Justiça mostrava sua cara. Ainda assim faltam histórias até que tenhamos uma idéia um pouco mais abrangente sobre o tema. Vamos ver como os gregos identificavam as divindades relacionadas com a Justiça e o Direito, este considerado, para efeito deste trabalho, como o sistema humano encarregado de fazer prevalecer aquela. Quão profundo é o desejo de o homem ter e receber Justiça: seja lá o que isso for tem que existir! Quanto conforto... Que desespero por não alcançar e quando não alcança. Que horror quando o homem estende a mão para alcançá-la e ela lhe foge...para parar logo ali na frente e, de novo, quase ao alcance da mão. Uma hesitação, uma espiada, nova corrida e...a Justiça escapa de novo! O homem o lobo do homem. Consolo da nossa fragilidade a Justiça mitiga nossa miserabilidade e faz esquecer, por instantes, nossa desgraça: não pode ser humana, tem que ser um dom divino! Somente alguém superior pode saber o que é Justiça, pode concedê-la, ministrá-la e espalhá-la pelo universo. Só um deus pode administrar diferenças... sem injustiças. Um deus não, nem para um deus tal tarefa seria possível: só uma deusa, uma mulher, que conhece a compaixão, a piedade, a compreensão e que tem em si a maternidade, tem o amor de Mãe para dar. Têmis! Atena! Nêmesis! Têmis, em grego Thémis, do verbo tithénai, “estabelecer como norma”, donde o que é estabelecido como a regra, a lei divina ou moral, a justiça, a lei, o direito (em latim fas ou a expressão da vontade divina, ordem dos deuses, justiça divina, direito divino; daí o que é permitido, o que é justo, o que é legítimo, o que é direito), por oposição a nómos, lei humana (em latim 1-lex ou lei ou direito escrito e promulgado; conjunto de preceitos jurídicos aceitos pela assembléia dos cidadãos romanos depois de terem sido ouvidos sobre o assunto ou 2- ius ou jus ou títulos que estabelecem o direito, justiça, daí direito escrito, leis, legislação; lugar onde se ministra a justiça; direito em sentido genérico) e também por oposição a díke, maneira de ser ou de agir, donde o hábito, o costume, a regra, a lei, o direito, a justiça (em latim 1- justitia (iust.), ae, justiça, equidade, conformidade com o direito, daí sentimento de equidade, espírito de justiça, bondade, benignidade; 2-justum (iust.), i, ou o justo, a justiça, daí a medida justa, o que convém; 3- justus (iust), -a, -um, conforme o direito, justo, legítimo, daí, que tem a justa medida, conveniente, suficiente, razoável. Lembrando que justa (iusta), -orum são as cerimônias devidas, as 75 formalidades, os deveres e daí, em sentido particular o que é devido (aos escravos), sustento, salário, ração, e, ainda, honras fúnebres, exéquias). Têmis é a deusa das leis eternas, da justiça emanada dos deuses. Deusa da justiça divina, figura como segunda esposa de Zeus, logo após Métis. Com o pai dos deuses e dos homens, Têmis foi mãe das Horas e das Moiras. Uma variante que se encontra somente em Ésquilo, faz da deusa da justiça divina, mãe de Prometeu. Personificação da Justiça ou da Lei Eterna é tida como conselheira de Zeus. Foi ela quem o aconselhou a cobrir com a pele da Cabra Amaltéia o escudo, denominado, por isso mesmo, Égide, na luta contra os Gigantes. Atribuía-se a ela, também, a idéia da Guerra de Tróia, para se equilibrar a densidade demográfica da Terra. Apesar de ser uma Titânida, foi admitida entre os imortais. Era honrada não só por sua ligação com Zeus, mas ainda pelos inestimáveis serviços prestados a todos os deuses, no que se refere a oráculos, ritos e leis. O deus Apolo deve-lhe o conhecimento e os processos da mântica. Consta ainda que foi Têmis quem revelou a Zeus e a Posídon que não se unissem à Nereida Tétis, porque, se isso acontecesse, esta teria um filho mais poderoso que o pai. Na Teogonia 91de Zeus e Têmis nasceram somente as Horas e as Moiras, mas uma variante mais recente, faz também deles, pais da Virgem Astréia, em grego Astraía que se prende etimologicamente a áster, astro, estrela. É o nome da Virgem (a constelação) e viveu neste mundo à época da Idade do Ouro, difundindo entre os homens os sentimentos de paz, justiça e bondade. Mas, tendo os mortais se degenerado Astréia deixou a Terra e subiu ao céu, onde foi transformada na Constelação da Virgem. Sua volta á Terra é, por alguns, relacionada como sinal da volta dos homens à idade do ouro. Têmis aparenta-se com o direito natural, aquele que exprime a inteligência da natureza, a manifestação de Deus? E como fica a humanidade sem Astréia, sem Iustitia, sem Pudor? Conseguirá Dique impor seu dom? A Justiça, embora divina, não era sentida pelos homens: havia queixas contra a sua administração: juízes corruptos, pouco afeitos ao resultado final, interessados na causa, desleixados, havia enormes diferenças sociais... Se não chega a Justiça divina, há que existir um ersatz. Da junção do Poder com a Força com a Autoridade com a Justiça com a Ordem, desta sopa de letras, algo de bom deve surgir. 91 (901-905), 76 Surgiram as Horas: uma das mais célebres uniões é a de Zeus (a força, o poder e a autoridade) com Têmis (a justiça, a ordem eterna) que deu nascimento a Eunomia (a disciplina), Irene (a paz) e Dique (a justiça). São nomes diferentes dos que vimos acima e que nos apontou o Larousse: Thallo, Carpo e Auxo. Mas há motivos. Horas, em grego Hórai, plural de hora, “divisão do tempo”, período de tempo, estação. Foi por um abuso de tradução do latim que as Horas, que as estações, se tornaram horas. Só muito tardiamente é que as Horas passaram a personificar as horas do dia. Eunômia, a Disciplina, Dique, a Justiça e Irene, a Paz, eram chamadas pelos atenienses, respectivamente de Talo, a que faz brotar, Auxo, a que faz crescer e Carpo, a que faz frutificar. No mito elas se apresentam sob duplo aspecto: como divindades da natureza, presidem ao ciclo da vegetação, como divindades da ordem, asseguram o equilíbrio da vida em sociedade. No Olimpo sua função específica é guardar as portas de entrada na mansão dos deuses, além de servirem a Hera e a Apolo. Acompanham freqüentemente Afrodite e fazem parte do cortejo de Dioniso. Iconograficamente são representadas como três jovens graciosas, com uma flor ou uma planta nas mãos. Interessante, e a título ilustrativo (combina também a ordem segura da sucessão natural da terra com dons divinais), citar aqui a Cornucópia: Zeus, brincando, quebrou o chifre da cabra Amaltéia e para compensá-la prometeu que este corno, quando ela o desejasse, se encheria de todos os frutos da terra, o que faz da Cornucópia o símbolo da profusão gratuita dos dons divinos, mas mais que um símbolo, o atributo de felicidade pública, da diligência e da prudência, que são fonte da abundância, da esperança e da equidade. Mas se há justiça entre os homens, se há justiça entre os deuses, tem que haver também aquela que preside o relacionamento dos homens com os deuses, seus superiores. A justa medida impõe a cada um de acordo com sua natureza! Não se afronta a genética, nem o DNA, nem a própria condição e circunstância sem que as forças maiores não se levantem poderosas para enquadrar a ação desmedida. Nêmesis, em grego Némesis, do verbo némein, distribuir, donde Nêmesis é a justiça distributiva, daí a indignação pela injustiça praticada, a punição divina. A função essencial desta divindade é, pois, estabelecer o equilíbrio, quando a justiça deixa de ser equânime, em conseqüência da hýbris, de um excesso, de uma insolência praticada. Esta divindade tem que ser bem compreendida, segundo nossa visão, pois mostra o controle da sociedade em curso: Dioniso, deus do povo e da 77 universalidade social, deus da transformação, esse deus cuja experiência religiosa punha em risco todo um estilo de vida e um universo de valores, exatamente porque, entranhado no homem pelo êxtase e pelo entusiasmo, abolia a distância entre o mortal e os imortais, teve que ser desdionizado em seu conteúdo, punido em sua essência e exorcizado por Apolo, fenômeno que visivelmente aconteceu nas tragédias gregas, que se tornam mais apolíneas que dionisíacas, o que, se contraria suas origens, torna-as palatáveis e aceitas pelos deuses olímpicos. Moderação, comedimento, ética rigorosa, eis aí como a doutrina apolínea do “nada em demasia” e do “conhece-te a ti mesmo”, acabou por se apossar da tragédia e da poesia em geral (e bem assim da vida na polis). É o aviso prévio de Apolo para que o ánthropos, o simples mortal não ultrapasse o métron, não ultrapasse a sua medida: não te dionizes é o aviso! Os devotos de Dioniso, após dança vertiginosa, caem desfalecidos, e saem de si pelo processo do êxtase. O sair de si jogava-os em Dioniso, seu adorado, que os acolhia e, pelo entusiasmo, possuía-os. O homem simples e mortal, em êxtase e entusiasmo, tomado pelo deus, tornava-se herói, ultrapassava o métron, e virava imortal naquele instante. Esta ultrapassagem, esta hýbris, esse descomedimento, esta violência feita a si próprio e aos deuses imortais é que desencadeia a némesis, a punição pela injustiça praticada... que era, também, a exibição do ciúme divino. O sair de si significava a superação do ser humano e de sua condição miserável e, pela ultrapassagem do métron, a liberação total, a total autenticidade e transparência, a liberdade e a espontaneidade que não é própria dos seres humanos em geral. Essa superação significava abandono de tabus, de interditos, de regras, de proibições, de comprometimentos com convenções de caráter ético, moral, político e social. Mas, além, era, como seríssima experiência religiosa, e nada mais do que isso (precisaria?), a divinização do ser humano comum que, tomado pelo entusiasmo, e pelo êxtase, tinha um deus dentro de si. A mania (loucura sagrada, a possessão divina) e as órguia (posse do divino na celebração dos mistérios, orgia, agitação incontrolável), experiências religiosas fortíssimas, estabeleciam a comunhão com o deus e seguramente uma transformação, uma liberação, uma catarse, uma passagem, uma purificação. E nada disso poderia ser tolerado pelos deuses: a punição via némesis era a justa retribuição para o ánthropos atrevido. Os Eupátridas, senhores da terra, do governo, da justiça, da religião, exerciam seu poder de forma temística, expressa pela vontade divina: eram seus deuses Zeus, Apolo, Posídon, Ares, Atena, severos, repressivos e racionais, e com eles ao seu lado garantiam seus privilégios e status quo. 78 Assim, o êxtase e o entusiasmo dionisíacos não eram tolerados...Mas, uma vez, uma única vez por ano, as festas dionisíacas 92 em curto período, poderiam acontecer! A plebe se liberava, para depois, controlada, oprimida, poder voltar em ordem ao curral, até o ano que vem! E a permissão ocorria porque – eram tão rápidas - estas festas liberavam apenas os sentidos e não davam tempo à reflexão, e conseqüentemente a uma tomada política de posição, ou seja, não havia perigo de virem a se constituir em outra coisa: a permissividade, desde que controlada, era astuta, portanto! A comparação – imediata - com as festas do Carnaval é evidente e desnecessária. As Erínias nascem de Geia (assim, psicanaliticamente, do inconsciente), mas da seguinte maneira: instado por Geia Crono mutila Urano decepandolhe os testículos; do sangue de Urano que cai sobre Geia nascem dentre outros as Erínias. Eram identificadas com as Fúrias romanas. Deusas violentas, Aleto (a que não pára, a incessante, a implacável), Tisífone (a que avalia o homicídio, a vingadora do crime) e Megera (a que inveja, a que tem aversão por). Monstros alados, com os cabelos entremeados por serpentes, com chicotes e tochas acesas nas mãos, são as guardiãs das leis da natureza e da ordem das coisas no sentido físico e moral, o que as levava a punir todos os que ultrapassavam seus direitos em prejuízo dos outros, tanto entre os deuses quanto entre os homens. Mais tarde tornam-se especificamente as vingadoras do crime, particularmente do sangue parental derramado. Protetoras da ordem social punem todos os crimes suscetíveis de perturbá-la, bem como a hybris, através da qual o homem se esquece de que é húmus, terra, argila, um simples mortal. Por isso as Erínias não permitem que os adivinhos revelem o futuro com precisão e certeza a fim de que o homem, na dúvida, não se torne extremamente semelhante aos deuses. Depois que se estabeleceu uma crença mais forte na outra vida e que esta foi compartimentalizada em Érebo, Campos Elísios – dois impermanentes – e Tártaro – permanente – para os condenados a suplícios eternos, as Erínias aparecem como divindades da expiação e do remorso encarregadas de punir, no Tártaro, todos os grandes criminosos. Tisífone açoita os culpados, Aleto persegue com seus fachos acesos aqueles que devem e Megera (aliás, a Sogra dentre nós) grita-lhes sem cessar, dia e noite, as falhas que cometeram. Mas há saída... as Erínias – como se verá logo adiante - podem transformar-se em Eumênides, isto é, em Benevolentes, Benfazejas com o auxílio de Atena que as reconduz a uma apreciação mais equilibrada dos atos humanos: elas permitem que a culpa seja conscientizada, assumida, interiorizada e sublimada. Livre da culpa o homem, lúcido em função de si 92 (Dionísias Rurais, Lenéias, Dionísias Urbanas ou Grandes Dionísias e Antestérias) 79 próprio, refugia-se junto às Eumênides, cujo santuário em Atenas tinha o mesmo poder de salvação que o templo de Apolo com sua divisa Conhecete a ti mesmo. Esta profusão de mitos ainda não era o bastante: a Justiça como um bem em si tinha que ser controlada pela Razão, bem supremo, pois só controlada, regrada, metrificada, poderia produzir efeitos calmos, seguros, ordenados, previsíveis: Palas Atena (a Minerva romana) cuja ave predileta era a coruja, símbolo da reflexão que domina as trevas (e como tal sugere a filosofia) era a defensora e garante de Atenas. Dividia com Têmis a manutenção da Justiça e instituiu o Areópago, a assembléia dos Magistrados, o tribunal ateniense. Contemplando sua cidade, proclama sua fala de paz, de segurança, de democracia, de liberdade e de justiça. Pelos lábios de Ésquilo, no fecho do julgamento de Orestes, perseguido pelas Erínias, vencidas por Atena, a deusa, mais uma vez, agora com o escudo da Razão, restabelece o domínio da ordem sobre o caos, da luz sobre as trevas, do primado do “direito do homem” sobre o “direito das trevas”: Ouvi agora o que estabeleço, cidadãos de Atenas, que julgais a primeira causa de sangue. Doravante O povo de Egeu conservará este Conselho de Juízes, Sempre renovado, nesta colina de Ares. Nem anarquia, nem despotismo, esta é a norma Que a meus cidadãos aconselho observarem com respeito. Se respeitardes, como convém, esta augusta Instituição, tereis nela baluarte para o país, salvação para a Cidade. Incorruptível, venerável, inflexível, tal é o Tribunal, Que aqui instituo para vigiar, sempre acordado, sobre a Cidade que dorme. 93 E assim a Razão, pretextando segurança, invade, absoluta, a cena jurídica, institui o controle e salva de contestação os direitos dos Eupátridas. Surpreendentemente há sim como mesclar este longo escrito sobre os gregos e terminar com uma história bem brasileira – e tão melhor, pois é o Brasil, precoce, influenciando o mundo já no século XVI, época de seu descobrimento. 93 (Eum., 681-706) 80 A influência brasileira foi forte, principalmente na França: o nosso modo de ser (exótico, palavra difundida por Rabelais (1494/1533) quando admiradamente nos descrevia) obrigou as pessoas pensantes à grande reflexão sobre um modo de vida diferente que lá não operou uma nova civilização, mas influiu fortemente no surto de modernidade que iria aparecer na Europa. Já em Rabelais a utopia da Abbaye de Thélème é – dito pelo autor – bastante inspirada nos selvagens do Brasil. Todo o modo de ser dos nossos índios fez ver à Europa que ela havia esquecido valores fundamentais; as minorias perseguidas identificaram-se com eles e neles reconheceram o símbolo da liberdade que deveria ser brandida contra a intolerância, o sectarismo e a agressão e neles os pensadores da época (re) encontraram valores que redefinem o humanismo desta fantástica (e, então, esquecida) relação do homem com a natureza. O desenvolvimento das ciências humanas, neste tempo, inclusive o “terrível sentimento de culpa, a torturante noção de pecado e a amargura européia” versus o “brasileiro gosto pela vida, pela liberdade, pelo ócio, pela dança, pelas festas, pelos prazeres, pela alegria, pela simplificação, pelo divino, pelo dionisismo, enfim”, o reconhecimento de que estar vivo é um dom de Deus, se dá por causa deste olhar do europeu sobre o Novo Mundo. Isto lhe propicia adquirir enorme riqueza cultural pelo balanço da convergência deste olhar de velho mundo com o jeito do novo e a flagrante divergência com os valores falsos implantados na sociedade da época e que não atendiam aos anseios dos mais iluminados, dos mais autênticos, dos mais francos. Mas há mais: alguns índios brasileiros, em diversos momentos, foram levados à Europa para exibição, contatos e estudos; são protagonistas de várias histórias relatadas, dentre outros, por Michel de Montaigne 94que esteve com três deles em outubro de 1562, em Rouen. Estas histórias foram objeto de reflexão por parte de vários autores (até chegar – de volta! - com Oswald de Andrade) que vislumbraram uma nova maneira de ver o que era visto sempre do mesmo jeito – a Filosofia das Luzes, o estado de natureza e o estado do bom selvagem vem deste evento; o Huron de Voltaire (in L’Ingénu) tem aí sua origem; a crítica social vê aqui os fatos que devolve com insolência remarcável e assim por diante, até os conhecidos reflexos no século XVIII. Uma das histórias que afetou Montaigne e que ele relata com despudor em seus pensamentos trata da estupefação de nossos índios ao ver a enorme diferença de riqueza e qualidade de vida entre os nobres franceses (os Eupátridas de então) e o populacho. Disseram os índios – literalmente achar muito estranho que algumas pessoas sofressem tanta injustiça e que 94 (Essais, Les Cannibales, in Collection Littéraire Lagarde & Michard, XVIe siècle, II, 1965) 81 eles não compreendiam que estes necessitados não atacassem os mais afortunados pela garganta e lhes pusesse fogo às mansões. Quanto sentimento. Em 1789... 2.2- Outra construção humana: o logos e algumas concepções de diversos filósofos pinçados aleatoriamente O tema foi objeto das maiores reflexões das maiores cabeças pensantes que o gênero humano produziu. E foi sempre anseio das pessoas comuns. Pinçaremos a seguir, de forma não taxativa, alguns dos enunciados, sem aprofundá-los, apenas com o desejo de apresentá-los. Justiça é algo que todos sabem o que é e é algo em que todos acreditam. Não há dúvidas nem quanto à sua existência nem quanto à sua necessidade. Ela não é negada por quem quer que seja e é um dos fundamentos mais fortes e poderosos de uma das condições que nos mantém humanos. “Amai a Justiça, vós que governais a Terra, tende para com o Senhor sentimentos perfeitos, e procurai-o na simplicidade do coração...porque a Justiça é imortal” . 95 Não há, todavia, universalmente aceita, sequer uma definição do que seja Justiça. Passado o impacto inicial que a todos irmana – a Justiça existe, é fundamental e nela acreditamos com fervor – instala-se a confusão sobre o que ela seja exatamente, como se manifesta, qual sua característica, a quem, e como, atinge e aproveita, de que forma (se é que seria necessário) acioná-la, de que forma ativá-la. E é tema da maior importância: como as leis podem ser revogadas a qualquer momento (ainda mais hoje em que a lei, na acepção mais chula, é produto de consumo de uma sociedade voltada exclusivamente para o consumo) e podem se adaptar aos novos fatos sociais rapidamente fica tisnada (a sensação é desconfortável depois da experiência nazista na Alemanha) a sensação de perenidade do Direito e surge a pergunta: há Justiça no Direito? Há continuidade nas relações jurídicas de forma que se possa perpetuar o que é bom? Diz-nos Tércio Sampaio Ferraz Junior que desde a Antiguidade foi na idéia de Justiça que se buscou a estrutura de resistência à mudança e foi nela que se ancorou a segurança de que a 95 (Livro da Sabedoria, I, juntando 1 e 15 ). 82 experiência jurídica tem um sentido persistente. “A presença, pois, da justiça como uma espécie de código de ordem superior, cujo desrespeito ou violação produz resistência e cuja ausência conduz à desorientação e ao sem sentido das regras de convivência, pode-nos levar a admiti-la como um princípio doador de sentido para o universo jurídico.96 Como dito, pretendemos nesse trabalho vincular o sentimento de justiça à Paidéia de um povo porque a nosso ver cada Paidéia cada Justiça, esta, portanto, reflexo umbilical daquela; mas Paidéia no sentido grego como nos é referido por Jaeger: civilização, cidadania, dignidade, integridade, autonomia, senso da própria fragilidade e bem assim da dos outros, respeito, solidariedade, sentimento de que o individual se submete ao coletivo (assim como, no melhor sentido brasileiro, a mãe serve à família), cultura, tradição, artes, educação, autenticidade, amor à vida, informação e formação e sem cometer o erro ocidental de tomar cada palavra de per si como se cada significado fosse usado separadamente, tomando, aliás, ao mesmo tempo todas as palavras juntas, como se cada vez que se falasse em Paidéia, todos aqueles conceitos separados se amalgamassem em um e fossem compreendidos todos em conjunto e ao mesmo tempo, como uma coisa só. Talvez outra palavra pudesse ser o espírito de um povo. Sabemos bem que alinhar palavras vagas como o fizemos, pode produzir conceitos, definições e conclusões vagas e diversas. Pode produzir belos discursos, mas antípodas entre si. Mas é exatamente este o nosso desejo. Sua motivação aparecerá ao longo da exposição até o afunilamento das nossas idéias * Para começar o passeio pelas conquistas humanas na área escolhemos um registro jurídico importante, aquele que está no Código de Hamurabi, baseado em antigas leis semitas e sumerianas (Código de Dungi), um dos mais antigos documentos jurídicos conhecidos, muito importante para o direito asiático, para o babilônico e particularmente para o direito hebreu, entregue diretamente pelo deus Sol Chamash a Hamurabi ou Kamu-Rabi (2067-2025 antes de Cristo), rei da dinastia amorrita e reunificador da Mesopotâmia e fundador do primeiro império Babilônico que fala em 282 artigos de praticamente todos os aspectos da sociedade babilônica tais como comércio, família, propriedade, herança, escravidão, delitos e suas penas, tudo conforme a categoria social do 96 ( Introdução ao Estudo do Direito, 2001, pág 347) nosso grifo 83 infrator e da vítima. Pois bem, é no Prólogo que lemos que tal código vem “para implantar justiça na terra, para destruir os maus e o mal, para prevenir a opressão do fraco pelo forte”. “São os poderosos que entendem de honrar, essa é a sua arte, seu reino de invenção. A profunda veneração pela idade e pela tradição – o direito inteiro está contido nessa dupla veneração -, a crença e o preconceito em favor dos antepassados e em desfavor dos vindouros são típicos da moral dos poderosos; e se, inversamente, os homens das “idéias modernas” acreditam quase instintivamente no “progresso” e no “futuro” e carecem cada vez mais do respeito pela idade, com isso já se denuncia suficientemente a origem nãonobre dessas idéias”. 97 Não à toa Hanna Arendt nos brindou com seu excelente texto sobre Autoridade sobre o qual falaremos mais tarde. 98 Mas a “Justiça na Terra” é, e continua sendo, entretanto, o anseio. Não só na Babilônia, mas na Grécia e em toda a parte, em todo o tempo. Vernant 99 nos mostra como o conceito veio evoluindo de mito para logos na Grécia antiga. A Razão grega que visa influir nas pessoas nasce com a Polis e com suas inovações “é filha da cidade”. O autor nos diz que a efervescência religiosa na Grécia antiga dá nascimento ao Direito e à reflexão moral com especulação política. Surge uma nova Arete despojada de seu tradicional aspecto guerreiro (boas palavras e boas ações, como vimos) e com ênfase na virtude fruto de uma disciplina dura e severa, de um controle constante e rigoroso sobre si, de luta para escapar das tentações do prazer, da moleza e da sensualidade, dos exageros da riqueza e para perseguir uma vida voltada ao esforço, à prudência e à justa medida. A riqueza que não conhece limites, o descomedimento que é a hybris ela mesma, a demonstração de que ‘quem tem mais ambiciona o dobro ou quem possui quer mais ainda’, que a riqueza não tem outro objetivo senão ela mesma, que a riqueza se torna no homem loucura e causa a arrogância aristocrática que gera injustiça e cada vez mais injustiças, são pensamentos que passam a ser o mote moral do século VI e têm em Sólon 100 seu codificador. A justa medida, a temperança, a prudência, a proporção, o justo meio, “nada em excesso”, passam a ser a fórmula da sabedoria. Sólon fará da polis um local harmonioso, com equilíbrio das forças contrárias, do rico que tudo quer conservar 99 97 (Nietzsche 1978 pág 292 nosso grifo) 98 Entre o Passado e o Futuro, 2001, pág 127 e seguintes). Op. Cit. (pág 58 e ss) (eleito em 594 antes de Cristo e deposto em 560) 100 84 com o pobre que tudo quer obter, um acordo entre elementos rivais. Vem com força o império da lei escrita, do nomos que por sua relação com dike traz uma ressonância religiosa que nunca teve. O equilíbrio de forças sociais opostas, o ajuste de atitudes humanas antagônicas, preconiza o fim da hybris, do egoísmo dos que querem tudo para si e com crueldade pretendem dispor dos outros. A paz e o fim das disputas erradicará a desordem, implantará a ordem. É a suprema instalação da dike no reino grego e na ágora. Surgem duas correntes de pensamento: uma quer a harmonia individual, outra quer a harmonia da cidade. Uma tendência visa a pureza essencial e íntima como alvo; outra quer todos comprometidos com a vida pública. Em Esparta a sophrosyne aparece com feição social: o jovem tem que aparentar comedimento. Comedimento no olhar, no vestir, no andar, no beber, no tratar os mais velhos, as mulheres, a todos. Comedimento é a virtude desejada socialmente. Em Atenas a sophrosyne de Sólon pretende a igualdade. “O igual não pode engendrar guerra”, diz Sólon. Mas é uma igualdade geométrica e não aritmética que a noção essencial é a de proporção. Cada um dos componentes da cidade tem seu lugar e possui a proporção de poder que lhe cabe em função de sua própria virtude e aos melhores estão reservadas as melhores magistraturas. A igualdade está agora na lei que está fixada e que é a mesma para todos os cidadãos. É a dike que fixa a ordem e as leis escritas substituem a força que fazia os fortes sempre triunfarem. Sobrevém a equidade, o equilíbrio. As duas grandes classes sociais (eram quatro na realidade e dispostas por Sólon segundo uma medida de produtos agrícolas de que pudessem dispor), a dos ricos e a dos pobres, entendendo o projeto de que as leis da cidade devem compor relações entre indivíduos segundo os mesmos princípios de vantagem recíproca que presidem o estabelecimento de um contrato, reclamam igualmente a isotes, a equidade. A corrente aristocrática reclama uma igualdade como a que, acorde harmônico, dispõe notas diferentes em uma música bonita: 2/1, 3/2, etc., pois a justa medida deve conciliar forças naturalmente desiguais assegurando uma preponderância suave de uma sobre a outra. Platão repetirá a forma em A República. A elite não procurará riqueza e poder, mas, por conversão, os melhores não desejarão ter mais; a equidade é introduzida nas relações sociais graças a uma transformação psicológica da elite que é formada por uma Paidéia filosófica que visa a justa medida. As classes baixas ficam contidas na sua posição inferior sem sofrer nenhuma injustiça. A corrente democrática vai no sentido de uma igualdade 1/1. Define todos os cidadãos como iguais independentemente de fortuna ou 85 virtude e lhes assegura os mesmo direitos e a possibilidade de participar em igualdade de todos os aspectos da vida publica. Tal é o seu ideal de isonomia, a justa medida, a única medida, a de proporcionar entre os cidadãos a igualdade plena e total. Com Clístenes 101 o ideal igualitário que se exprime no conceito de isonomia passa para a realidade política: o mundo forma um sistema coerente, regulado por relações e correspondências que permitem aos cidadãos serem idênticos, entrar uns com os outros em relação simétrica, compondo um cosmos unido, homogêneo, sem hierarquia. A soberania, a liderança, passa de um grupo social a outro, incessantemente, de tal forma que mandar e obedecer passa a ser, antes de oposição, uma mesma relação. Pela isonomia o cosmos vira de um quid cheio de irregularidades para uma forma circular que cada cidadão vai percorrer ocupando cada espaço e todas as posições do círculo que tem a cidade em seu meio. Com Jaeger 102 vemos a mesma mudança fundamental: no tempo de Homero Zeus dava aos reis homéricos “cetro e themis”. Themis era o compêndio da grandeza cavaleiresca e significa “lei” etimologicamente. Os cavaleiros dos tempos dos patriarcas julgavam de acordo com a lei que recebiam de Zeus e criavam suas normas conforme seu saber e a tradição. Dike é um conceito tão velho quanto, mas que se incorporou ao falar cotidiano muito mais tarde: significava “dar a cada um o que lhe é devido”: as partes na disputa judicial “dão e recebem dike”. O culpado dá dike, ou seja, indeniza ou compensa. O afrontado “recebe dike”, o juiz “reparte dike”. O sentido, o imenso significado que a palavra toma a partir dos tempos homéricos deriva do fato de a lei, a norma, estar escrita e criar direitos e deveres para qualquer um. Cada um pode exigir. Enquanto themis significava mais a autoridade do direito, sua legalidade e validade, dike significava a justiça cumprida, implementada. Dike passa a ser a palavra de ordem, esgrimida por uma classe desprotegida que recebia themis, ou seja, o direito de cima para baixo: igualdade é o clamor! A idéia do vulgo é que há que se pagar o igual com o igual, há que devolver exatamente o que se recebeu, há que compensar exatamente o prejuízo causado. Dike resolve a luta de classes. Note-se que desde Hesíodo, mesmo que ele quisesse também resolver seu problema privado com seu irmão, já vinha o clamor contra os “devoradores de presentes”, contra uma injustiça que hoje pode ser reconhecida como Social; a aplicação da lei de cima para baixo, em Homero, resultava, também, em benefícios para os 101 102 (508-502 a C.) op. Cit. (pág 130 e ss) 86 aristocratas e em prejuízo para o povo. O sistema jurídico em vigor imbricava-se no sistema político e as partes em conflito conviviam no mesmo espaço físico em bastante proximidade. A ágora, principalmente depois de Sólon, fazia com que todos fossem efetivamente responsáveis. As injustiças sociais eram resultantes diretas das injustiças pessoais perpetradas por uns em seu próprio interesse em detrimento de outros menos poderosos. E estas pessoas eram perfeitamente identificáveis. É hoje, muito mais do que antes, que o Poder não tem rosto e ele é meramente sentido sem que se identifique com clareza de quem emana. Para efeito deste trabalho esta hoje chamada Justiça Social tem menos interesse porque o escopo deste estudo está centrado na decisão judicial e na sua repercussão para as partes. Ou seja, quando um ofendido requer ao Tribunal que seja aplicada justiça ao seu caso particular. Assim, sempre que possível distinguiremos, por corte artificial, a justiça que, em tribunal, as partes ofendidas visam da justiça que o corpo social almeja: esta será sempre encarada por nós como a vontade política dos que podem fazer desta maneira, dos que integram anonimamente o chamado Mercado e fazem assim por que querem e não de outro jeito; aquela como a implementação da vontade política de um juiz de proceder desta maneira e não de outra ou de como o juiz aplica seu Sentimento ao caso em questão. Não pretendemos aqui discutir senão a repercussão de uma sentença (mesmo que as partes sejam, como costumeiramente são em nosso país, governo ou estado contra particular), suas motivações e a harmonia ou a desarmonia que provocarem. Feita a observação que ajusta a estreiteza do nosso objetivo podemos retornar no tempo e recuperar os conceitos históricos para ampliar nossa concepção. O surgimento da idéia de um direito igualitário transforma o cenário. A primitiva experiência da igualdade perante um juiz ou perante a lei faz surgir a isonomia. Busca-se a medida para decidir questões como o seu e o meu, dar ou restituir o que já tem dono ao seu dono. O conceito de dike é esta medida. Pode significar a igualdade dos que não têm direito igual (o não nobre perante a lei ou o juiz), pode significar a participação de todos na justiça, a igualdade de votos nos assuntos de Estado, a igual participação nos postos diretivos que, antes, pertenciam somente aos nobres. É o embrião da democracia. A Arete deixa de ser falar boas palavras e praticar boas ações, a coragem guerreira, para obedecer às leis do estado: chegou-se ao critério de que a lei contem o justo e o injusto está em não praticá-la. O ideal espartano é substituído pelo ideal de justiça que substitui o agora antigo proceder guerreiro cavaleiresco. O conceito de justiça é 87 a Arete que compreende e superas as formas anteriores sem, todavia, abandoná-las. Desemboca em Aristóteles quando ele reconhece uma justiça em sentido estrito, em sentido jurídico e outra mais global que compreende o conjunto de normas políticas e morais. A lei converte-se em rei e com ela está afastado o arbítrio. Por isso que o homem deve lutar por ela como por suas muralhas como diria Heráclito. Está em Anaximandro, meados do século VI, inaugurando a Filosofia do Direito, a 103 “transposição para o reino da natureza da representação da dike da vida social da polis quando explica a conexão causal da geração e corrupção das coisas como contenda jurídica, em que, por sentença do tempo elas terão que expiar e pagar indenização conforme as injustiças que cometerem”. Jaeger afirma estar aí a origem da idéia filosófica do cosmos expressando a reta ordem do estado e de toda a comunidade; a experiência jurídica da lei e do direito coloca-se no centro do pensamento, permeia a existência e passa a ser fonte genuína da crença relativa ao sentido do mundo. A consciência filosófica e o Estado jurídico caminham juntos. O cidadão passa a ter vida própria e vida comum. Todos devem participar ativamente no estado e na vida pública com a consciência dos seus deveres cívicos distintos dos da esfera privada. Surgirá o homem político de Aristóteles que se distingue do animal por que é cidadão. E em Platão o estado como seu fim último e que precisa de um saber diferente do saber especializado dos negociantes, merceeiros ou lavradores, “a essência de toda a verdadeira educação ou Paidéia a qual é educação na Arete que enche o homem do desejo e de ânsia de se tornar um cidadão perfeito e o ensina a mandar e a obedecer sobre o fundamento da justiça”. Em Heráclito surge a unidade fundamental de todas as coisas: a “natureza que gosta de se ocultar”, a multiplicidade aparente, a unidade de tensões opostas indica a harmonia oculta das forças opostas “como a do arco e da lira” e o logos é a unidade nas mudanças e nas tensões a reger todos os planos da realidade. “O que varia está de acordo consigo mesmo” e a verdadeira justiça não é a que Anaximandro propôs com a extinção dos conflitos e das tensões através da compensação dos excessos de algo em relação a seu oposto. A justiça não significa apaziguamento, pois “o conflito é o pai de todas as coisas” e “o combate é o-que-é-com (isto é, o comum) e justiça é discórdia e as coisas vêm a ser segundo discórdia e necessidade”. 103 op. Cit. (pág 143) 88 Na nossa busca aleatória das noções sobre justiça damos, da Grécia, um salto enorme para Nietzsche 104que dizia que a justiça (equidade)105 tem sua origem naqueles que têm potência mais ou menos igual. Onde não há supremacia visível, onde o combate traria danos irreparáveis e mútuos, surge o desejo de apaziguamento, donde a troca é o caráter inicial da Justiça. “Dá-se a cada um o que ele quer ter, como doravante seu, e se recebe em compensação aquilo que se deseja”. “Justiça é autoconservação inteligente, portanto, retribuição e intercâmbio sob a pressuposição mais ou menos igual de potência”. Foi Kelsen que, em vários livros, estudou os diversos conceitos de justiça, suas diversas formas de apresentação e exarou crítica acerba a cada conceito reduzindo-os ao nada vazio que ele pretendia todos fossem. Em “O que é Justiça”, Hans Kelsen tem como premissa que “talvez por se tratar de uma dessas questões para as quais vale o resignado saber de que o homem nunca encontrará uma resposta definitiva, deverá apenas tentar perguntar melhor”. Neste livro 106 em diversos artigos e no livro “O Problema da Justiça” 107 Kelsen enumera os tipos de normas de justiça, que ele divide em “ normas de justiça do tipo racional “ e “ normas de justiça do tipo metafísico “. As primeiras apresentam-se como de fácil e universal entendimento, postas pela experiência e, assim, evidentes. As normas do tipo metafísico são absolutas e excluem, portanto, qualquer outro ideal e caracterizam-se por sua transcendência, ou seja, sem qualquer fundamento empírico informam seu conteúdo que depende da crença dos que nele acreditam. Cada uma delas merece uma crítica de Kelsen que as fulmina como vazias e inúteis. Deixaremos de apresentar seus motivos para não fugir do escopo deste trabalho. Mas deste estudo nos valemos para mostrar como cada sentimento produz cada visão do que é justo. São elas, resumidamente: A) do tipo racional a. a famosa suum cuique, norma segundo a qual a cada um se deve dar o que é seu, isto é, o que lhe é devido; b. a famosa regra de ouro, a que diz “ não faças aos outros o que não queres que te façam a ti “; 104 Que tanto estudou a Grécia! Op. Cit. (pág 98) 106 (que teve sua primeira edição em 1957), 107 (que teve sua primeira edição em 1960) 105 89 c. o imperativo categórico de Kant, parente da regra de ouro, que diz “ age sempre de tal modo que a máxima do teu agir possa por ti ser querida como lei universal “; d. os ditos, bem explorados por Tomás de Aquino na Summa Theologica, “ faz o bem e evita o mal “ e “ os homens devem ser bem tratados e não maltratados “ ; e. a máxima “ devemos tratar outrem tal como os membros da comunidade consuetudinariamente se tratam uns aos outros “; f. o método matemático-geométrico de Aristóteles que ensina que “ a virtude é o meio-termo entre dois vícios “ ou “ a conduta reta é o meio-termo entre praticar a injustiça e sofrer a injustiça “; g. o princípio retributivo como princípio de justiça; h. o princípio da equivalência entre prestação e contraprestação como norma de justiça ou “ a cada um segundo a sua prestação”; i. a proporcionalidade entre prestação e contraprestação e cálculo de salário; j. o princípio de Marx segundo o qual “ a igual prestação de trabalho cabe igual salário, isto é, cabe igual participação no produto do trabalho” ou “ cada um segundo as suas capacidades, a cada um segundo as suas necessidades “; k. o preceito do amor ao próximo ou “a cada um segundo as suas necessidades”; l. a liberdade como fundamento da justiça; m. o “ contrato social “ e o ideal de justiça da democracia liberal; n. a justiça e a igualdade como conseqüência lógica da generalidade da norma ou a igualdade perante a lei ou “todos os homens devem ser tratados por igual”. . B) do tipo metafísico: a. Justiça em Platão; b. Justiça e Amor a Deus ou a Justiça Divina; c. Justiça e felicidade; Lido o modelo classificatório de Kelsen já se tem visão do tamanho do problema! Giorgio Del Vecchio escreveu (A Justiça) um tratado histórico das principais teorias sobre justiça apresentadas por seus famosos autores e merece uma espiadinha para aumentar no leitor a confusão que o tema desperta. * 90 Há uma constatação que fizemos a partir dos estudos que desenvolvemos para formular este trabalho. A justiça, qualquer que seja seu modelo, tem um caminho insólito e permanente: ela nasce a partir de quem a proclama. Cada um é juiz de si mesmo e dos outros bem antes de ser julgado por um Juiz togado. Nesta acepção, Justiça é o sentimento que dá causa à posterior relação harmônica e satisfatória entre pessoas (físicas ou jurídicas de direito público ou privado, pessoas concretas ou entes abstratos) depois que a expectativa de uma foi frustrada pela ação ou pela omissão da outra. Daí termos dado tanta importância ao texto de Kelsen quando ele, bem no fim d’A Teoria Pura, apresenta seu trabalho (como um apêndice mesmo) sobre a hermenêutica. Quem se omite de algo ou faz algo em função exclusiva deste sentimento de justiça e, assim, antecipadamente, não frustra alguém, não age com justiça, mas com virtude. Interessante notar que cada concepção muda do ponto de vista de quem ‘descobriu’ o conceito. Assim, normalmente, a crítica ao conceito vem contra o fato de o seu autor pretender seja outorgado à sua descoberta status de máxima geral; a visão muda quando o mesmo conceito é particularizado. Daí a facilidade de compreender a equidade e sua definição de justiça aplicada ao caso concreto. Diante disto podemos formular, para efeito deste trabalho, nossa constatação de que a Justiça é um sentimento, próprio de cada ser humano, individual e singularmente considerado, e que expõe o que este ser humano julga, por si, ter a receber de outro, por crédito ou merecimento seu, ou que justifica o que este ser humano, por convencimento próprio, se obriga a dar a outrem por débito ou merecimento deste outro. Assim a previsibilidade, tema que perseguimos, parece fugir de nossa vista. 3 - Ideologia. O Juiz e a Juíza resolvem mudar o mundo Ideologia é uma palavra que será tratada aqui no sentido que lhe damos de conjunto nem sempre homogêneo e coerente de convicções, certezas e avaliações que um indivíduo recebe de outras pessoas e/ou adapta, forma, inventa e constrói para si, ao sabor de pré-verdades já absorvidas no 91 decorrer de sua vida adolescente e nas quais acredita como manifestação objetiva do bem e da beleza e da verdade e da justiça e pelas quais luta no limite das possibilidades e interesses que têm e conforme o modo de agir que traçou para sua existência. Não usamos, portanto, o termo somente na sua acepção política, mas na sua acepção a mais geral possível. Outras palavras como dignidade, honra, postura, respeito, educação, estilo, modo de ser, olhar lançado para o futuro, ou para o passado, vaidade, ressentimento, autocomiseração, caridade, piedade, complexo de superioridade, ou de inferioridade, complexo de autoridade, devaneios eufóricos e entusiasmados, se agasalham na ideologia, lá se instalam, lá se escondem, e ficam cutucando as atitudes do indivíduo. A palavra identifica, assim, diversas posturas do mesmo indivíduo que age deste modo, ou de outro, por convicções ideológicas e se vê sempre confortável porque recoberto de razão ideológica. Ter atitude ideológica (no esporte, na sociedade, na política, no direito, nos negócios...) é pertencer a um time, a uma facção, a uma tribo com a mesma visão do mundo, e isso conforta na medida em que a companhia de outras pessoas com o mesmo ideário facilita e alivia o caminhar do sujeito. Esta pessoa se vê conforme outras – todas se reconhecendo mutuamente e se dando suporte - e isto confere unidade à atitude que parecia singular. O time chancela o seu participante. Mas se há intenção de coerência, nem sempre é possível vestir o mesmo uniforme: quem age sempre tenta revestir de unidade coerente sua ação e por isso que suas convicções ideológicas tendem a uma homogeneidade teórica mas que nem sempre conseguem na prática se apresentar lineares: dependendo da circunstância a ação, às vezes, está sob uma capa ideológica e não de outra mais coerente com o todo original do sujeito (outro motivo para o mandamento “nunca serás apanhado” ter que funcionar), ou seja, nem sempre o agir justo está manifestado da mesma forma e as pessoas mudam ao sabor de sua conveniência. A ideologia apresenta-se apenas como uma crença capaz de controlar comportamentos. Nesse sentido é muito útil e, para isso, requer sempre um time, um partido, uma associação, que a convalide. Em sua defesa de sustentação clama ser a única a conhecer a realidade e, portanto, a única a apresentar as coisas como elas são, o que é um bom motivo para ideologias diferentes não se conciliarem nunca. Não queremos aqui abordar o conhecimento e sua origem, se ele é possível ou não, se alguém consegue apreender a realidade em sua essência ou em sua manifestação, se há conhecimento absoluto ou relativo: queremos mostrar apenas como se consubstancia o “senhores, eu sei” e como se manifesta a atitude. 92 Partindo do nosso pressuposto de que a realidade é uma percepção na mente, este é o sentido que damos à palavra ideologia: retórico de utilidade e persuasão. Remetemos seu sentido amplamente ao sentimento, ao valor, à fé e ao interesse. Autores, como Marx, diziam que as correntes ideológicas acreditam-se universais quando são o mero espelho das intenções da classe dominante. Para eles a ideologia e suas distorções não são obra de uma única fonte perversa a serviço da burguesia, mas conseqüência da perversa divisão da sociedade e da exploração de uma maioria pela minoria detentora dos meios de produção e do capital. Neste sentido o Direito não é um sistema de normas, mas o meio de imposição de uma classe dominante a uma classe dominada. É uma ideologia que falsifica a realidade para favorecer uma classe em detrimento da outra. Tal esquema necessita da coação para se perfazer e é exatamente o Estado que se incumbe da aplicação da coação para quem não cumpre as normas vigentes. Este Estado é conforme a classe dominante, está a seu serviço e só numa sociedade sem exploração é que haverá uma sociedade sem Estado nem Direito. Kelsen (que sustenta que o dever-ser não pode – segundo uma consideração meramente sociológica -, como ilusão ideológica, ter expressão numa descrição científica do Direito 108 ) fazia uma hábil distinção entre termos para explicar porque a sua Teoria Pura do Direito é isenta de ideologia: num primeiro sentido “somente quando se entenda ”ideologia” como oposição à realidade dos fatos da ordem do ser, isto é, quando por ideologia se entenda tudo que não seja realidade determinada por lei causal ou uma descrição desta realidade, é que o Direito, como norma – isto é, como sentido de atos da ordem do ser causalmente determinados mas diferente destes atos -, é uma ideologia. Se por “ideologia” se entende, porém, não tudo o que não é realidade natural ou a sua descrição, mas uma representação não objetiva, influenciada por juízos de valor subjetivos, que encobre, obscurece ou desfoca o objeto do conhecimento, e se se designa por “realidade”, não apenas a realidade natural como objeto da ciência da natureza, mas todo o objeto do conhecimento e, portanto, também o objeto da ciência jurídica, o Direito positivo como realidade jurídica, então também uma representação do Direito positivo se tem de manter isenta de ideologia (neste segundo sentido da palavra). Se se considera o Direito positivo, como ordem normativa, em contraposição com a realidade do acontecer fático que, segundo a pretensão do Direito positivo, deve corresponder a este (se bem que nem sempre lhe corresponda), então podemos qualificá-lo como ideologia no primeiro sentido da palavra. Se o consideramos em relação a uma ordem “superior” que tem a pretensão de ser o Direito “ideal”, o Direito “justo”, e exige que o Direito positivo lhe corresponda – em relação, por exemplo, com o Direito natural ou com uma 108 – 2000 pág 114 93 Justiça por qualquer forma concebida - , então o Direito positivo, isto é, o Direito estabelecido por atos humanos, o Direito vigente, o Direito que, de um modo geral é aplicado e seguido, apresenta-se como o Direito “real”, e uma teoria do Direito positivo que o confunda com um Direito natural ou com qualquer outra idéia de Justiça, com o intuito de justificar ou desqualificar aquele, tem de ser rejeitada como ideológica, no segundo sentido da palavra. A ciência tem, como conhecimento, a intenção imanente de desvendar o seu objeto. A ciência do Direito não pode preocupar-se nem com a ideologia que conserva a ordem posta nem com aquela que quer substituir esta ordem por outra”. Uma tal ciência jurídica é o que a Teoria Pura do Direito pretende ser“.109 Pretendendo distanciar sua ciência da dita ciência jurídica tradicional que, de um jeito ou de outro, legitima a ordem social vigente, Kelsen finge ignorar, todavia, que toda ordem posta é construída por alguém com algum objetivo que não se revestirá nunca da pretendida pureza kelseniana de buscar a verdade somente a verdade (do ponto de vista científico, a intenção imanente de desvendar o seu objeto) sem qualquer interesse outro porque o homem não sabe ainda (como ele mesmo reconhece em outros textos) o que é, nesse campo, a verdade. Assim, e no mesmo sentido, pelo nosso entendimento, verdade no sentido jurídico, portanto verdade no campo da axiologia jurídica, não existe nem pode ser alcançada por ser apenas um conceito construído de acordo com a época de sua formulação e não oferece possibilidade de verificação intersubjetiva independentemente de tempo/espaço. Há quem considere a ideologia como a quintessência do valor. Valores nas coisas são os homens que põem, fala a filosofia nietzschiana. “Bondade, as coisas a têm, desde que foram criadas, nos diz Goffredo. Valor, elas o adquirem, depois de serem apreciadas pelo homem”110. Usamos, pois, estas palavras no sentido de que os homens julgam o que lhes é objeto de interesse fazendo imediata comparação; eles escolhem após apreciar (conferir preço), estimar, sopesar, avaliar: algo vale mais que outra coisa, vale menos que outra coisa, vale o mesmo que outra coisa. Valor em si não há. E valor é sempre valor de algo para alguém. Assim nascem os juízos de valor que não se referem à existência, à essência ou ao modo de ser das coisas, mas apenas sobre o seu valor, sobre o valor dessas coisas. Goffredo nos diz que “são os juízos de valor que precedem e determinam os sentimentos”111; é através do sentimento que o valor é atribuído às coisas, dizemos nós. 109 (2000 pág 113 e segs) filosofia do direito, pág 197 111 obra citada pág 364 110 94 * 3.1- cada um nasce com seu modo de ser e ver o mundo A divisão socialismo/liberalismo estaria, antes que em diferenças consensuais, no jeito como olhamos o mundo, ou seja, como construímos o mundo a partir de nossos sentimentos. A atitude é um divisor de águas não só político: orienta a vida do prosélito como um todo. Há uma teoria dentre várias que são discutidas pelos novos estudiosos da matéria e que tem em Steven Pinker, lingüista canadense e professor do MIT, um dos arautos de uma solução bastante criativa. Em seu livro “The Blank Slate”, este controvertido autor (mais por seu estilo que por suas posições) e que discorre sobre a condição inata ou não inata do comportamento humano, fala da forte influência que o modo de aceitar ou recusar esta teoria tem sobre a forma de o ser humano se posicionar na sociedade. Expõe que de um lado estão aqueles que entendem que somos uma massa informe e que somos passíveis de sermos moldados, para o bem e para o mal, pelo meio. De outro lado, aqueles que acreditam na influência do meio, mas que o indivíduo nasce sob fortes características herdadas, inatas. O sistema cultural das últimas décadas (esquerda) tende a aceitar a primeira e o liberalismo e a ciência moderna (biologia, neurologia e a sociobiologia) tende a aceitar a última. A diferença básica é que, acreditando na idéia de que nascemos intrinsecamente bons, sem características definidas e que somos moldados pelo meio tendemos a acreditar em uma ação direta da justiça na distribuição dos direitos a que cada indivíduo teria, pois nascemos todos iguais. Além disso, seria injusto punir aqueles que pratiquem uma ilegalidade como fruto de sua condição desigual na sociedade. De outro lado, a idéia de que nascemos com fortes impulsos selecionados pela evolução nos leva a definir penas para contrabalançar a tendência para o egoísmo natural do homem. A adoção da teoria da massa informe resulta na criação de uma supra-entidade, a sociedade, com valores próprios e vida independente do indivíduo. Desta maneira, tornam-se válidas ações restritivas ao direito básico de liberdade, propriedade, desde que em benefício da sociedade. Na outra forma de entendimento, o indivíduo é o centro das ações. Seu coletivo, a sociedade, só tem sentido na elaboração de regras que visem uma relação “soma não zero”112. As ações sociais devem atender às necessidades de distribuição de renda e de responsabilidades, preservando a liberdade e punindo o comportamento que 112 São situações em que o ganho de um e o prejuízo de seu opositor não estão inversamente fixados não somando exatamente zero; podem ser diretamente fixados (colaboração pura) ou parcialmente fixados (motivo misto). Soma-zero define as situações em que o ganho de um e o prejuízo do seu opositor sempre somam zero, configurando pura competição na medida em que o prejuízo de um implica no lucro de outro. 95 se contraponha aos conceitos gerais de justiça, mas sempre visando o indivíduo e não uma “sociedade” que ele idealiza. Esses dois tipos de pensar, e seus adeptos, degladiam-se e não se encontrarão jamais. Fica pelo menos a certeza de como se moverão em sociedade e as exigências políticas de cada grupamento. Como dissemos mais do que escolha político-partidária, cada um dos adeptos de cada escola adota uma postura diante da vida. Como cada um olha a vida de modo diferente projeta um jeito de ser nas suas atitudes e na maneira como se relaciona com os outros e com o meio ambiente. Estas posturas impregnam os juízes e no que toca ao Judiciário estas exigências de vida mesmo além de políticas e ideológicas, que estão referidas nos nossos escritos, recebem uma confirmação bastante séria: Em O Estado de São Paulo 113 sob a manchete “Pesquisa indica que política contamina sentenças” numa reportagem assinada por Adriana Chiarini, e no mesmo jornal 114 num artigo assinado por Maílson da Nóbrega sob o título “O lado pouco debatido do Judiciário” há menção a uma pesquisa (Decisões Judiciais, Desenvolvimento Econômico e Crédito no Brasil) 115 com 741 juízes de todas as instâncias e vários empresários. A intenção do profissional é verificar o que as partes pretendem receber da Justiça e o que os juízes realmente querem dar. É mesmo uma pesquisa que corrobora os ditos da Escola Realista Americana sobre a qual se falará com vagar mais tarde. Este estudo será reduzido a um livro 116 e tem dados bastante preocupantes para quem deseja, do Tribunal, receber imparcialidade e previsibilidade. Nesse trabalho o economista verifica sob a rubrica “Perfil das transações econômicas” o que as partes querem receber da Justiça. Elas pretendem perceber: a) a Eficiência na Produção de Justiça: que virá através dos seguintes Produtos (que a Justiça tem que entregar): 1- Imparcialidade 2- Previsibilidade 3- Agilidade 4- Custo de acesso 5- Possibilidade de recurso sendo Imparcialidade, o não envolvimento com as Partes a postura que se espera de um juiz ou de uma juíza; Previsibilidade como aquilo que razoavelmente já se sabe que será a decisão por conforme ao 113 do dia 20 de julho de 2003, pág A6 – de 19 de outubro de 2003 115 feita pelo economista Armando Castelar Pinheiro, do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA – www.ipea.gov.br - temas especiais), 116 (A Reforma do Judiciário, a ser lançado pela Editora Book Link em futuro próximo) 114 96 pensamento dominante; Agilidade como a rapidez com que será proferida imparcialmente a decisão previsível; Custo de Acesso o que se gastará com a Administração da Justiça, seus funcionários, peritos, advogados etc e Possibilidade de Recurso a razoável apresentação da queixa do que se sentir prejudicado. A contrapartida do citado estudo não agrada aos que se valem da Justiça para dirimir suas questões. O que sucede é que a visão política do magistrado influi nas decisões da maioria deles. A politização é mais intensa na Primeira Instância que nos Tribunais Superiores. Esta postura dos juízes cria inúmeros problemas que transcendem as evidentes injustiças cometidas no seio do processo. A pesquisa aponta que essa politização da Justiça aumenta o risco de investir no país e, conseqüentemente, afasta os investidores numa hora em que os investimentos são o principal motivo de o Brasil crescer, na visão do economista. Por exemplo, 78,80% dos juízes acha mais importante fazer justiça social que seguir os termos do contrato. Prosseguindo, ao tentar saber se a visão política impacta qualquer decisão final chegou-se ao seguinte resultado: 02,0% nunca se deixa levar pela visão política 20,8% raramente 52,2% ocasionalmente 21,0% freqüentemente 04,1% muito freqüentemente, o que mostra a preponderância (77,30%) da decisão política sobra a jurídica. Por isto mesmo a avaliação do judiciário pelas empresas brasileiras aponta que 98,90% dos empresários acha a agilidade do sistema regular, ruim e péssima e 70% dos mesmos empresários taxa o judiciário de regular, ruim e péssimo no item imparcialidade Tal resultado está conforme a auto avaliação do judiciário pelos próprios magistrados: 88% deles se considera bom regular e ruim no quesito Previsibilidade (donde somente 12% se acha muito bom) e 39,3% se acha muito bom no quesito Imparcialidade (donde 60,70% não se acha). Quanto a saber se o mau funcionamento do Judiciário prejudica a Economia ? a resposta é igualmente preocupante, pois, 96,10% dos empresários acha que sim, que Prejudica seriamente e que Prejudica um pouco. Quanto a saber se o Mau funcionamento do judiciário prejudica o desempenho de cada empresa, 91,70% dos empresários acha que sim, que Prejudica seriamente e Prejudica um pouco. Outras conclusões: 97 1-)Impacto na Taxa de Crescimento do PIB: A partir do aumento do investimento é possível estimar que uma melhoria do desempenho do judiciário brasileiro, que o tornasse “equivalente em termos de agilidade, imparcialidade e custos à Justiça do Primeiro Mundo, incluindo-se aí sua capacidade de fazer respeitar com rapidez suas decisões, e que tirasse o poder da Justiça do Trabalho de decidir sobre reajustes salariais e outros conflitos econômicos entre empresas e empregados,” faria a taxa de crescimento do PIB ser mais alta cerca de 25%. 2-) Quanto às dívidas a receber, verifica-se um sério problema: os pesquisados afirmam que 2.1-) Leis e, principalmente, tribunais não protegem adequadamente os credores e que 2.2-) Parcialidade e falta de previsibilidade: as diferenças na interpretação da lei e a “politização” do judiciário interferem para pior. Os resultados acima referidos mostram o impacto ruim na economia que decorre da atitude de juízes que pensam estar fazendo o Bem, mas na realidade estão criando o caos, inibindo investimentos e criando desemprego. E, estarrecedor, muitas vezes sem a menor consciência do seu papel deletério. Tais porcentuais lembram-nos uma pergunta casual que fizemos a um jovem juiz recém concursado (porque escolheste esta carreira?) e de sua resposta triunfante (Para mudar o mundo!) que tanto espanto nos causou. Para escancarar a falta de Imparcialidade do Judiciário temos como ilustração mais um exemplo: um verdadeiro lapsus linguae está impresso no Jornal do TRT-SP117: a Presidente do TRT da 2a Região, juíza Maria Aparecida Pellegrina ao falar da presença do atual Presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, na inauguração do Fórum Trabalhista de 1a Instância de São Paulo disse: “Para nós será uma grande honra ter um Presidente da República que foi operário inaugurando essa Casa do Trabalhador”, comemorou. 118 * 3.2 – o que é estar livre de pressão para poder decidir com individualidade e livre convencimento? A independência. 117 (ano II, agosto/setembro/2003, no. 9) 118 (Não falou em Casa da Justiça ou da Lei ou da Ordem ou do Direito ou da Constituição... Falou em Casa do Trabalhador, aquele que é o Reclamante nas ações trabalhistas contra os Patrões e que agora reclama em sua própria casa!) 98 O Juiz e a Juíza não julgam por si, em si, para si, mas por mandato da sociedade, para outrem, portanto, conforme os ditames do mandato e dentro dos seus limites. As alegadas individualidade e independência do Juiz e da Juíza são mesmo fundamentos da função: mas estão sendo entendidas erradamente: estão sendo entendidas como “de cada um de acordo com seu convencimento próprio, livre, discricionário e independente”, como se cada um se orgulhasse de ter uma verdade inscrita dentro de si e valesse a pena mantêla e divulgá-la. Esta postura revela o individualismo elevado à sua máxima potência. É a soberba em movimento, a descrença nas limitações individuais, a rebeldia sendo exibida. A sentença como prova de que quem veio a o mundo veio para escrever sua biografia, mas, pior, divulgá-la. Não é este o sentido dos fundamentos: o verdadeiro sentido é que as decisões devem ser livres, devem ser desengajadas de pressão externa (interesses, poder...) e de pressão interna aquela provocada por sentimentos não devidamente elaborados ou não conforme o sentimento coletivo da sociedade. Além disso, as tais individualidades e independências podem esconder, e normalmente escondem, preguiça, desatualização, falta de leitura, desídia, contumácia e tantas outras desqualificações, o que, infelizmente, acontece amiúde. Muito interessante é, atualmente, e dentro da informalidade de uma conversa social, perguntar a um juiz ou a uma juíza qual deverá ser a decisão em determinado caso: a resposta é sempre a mesma: difícil, muito difícil prever, pois todo juiz tem uma interpretação própria dele e assim múltiplas podem ser as conclusões! O quadro que pintamos aqui é o que visa exibir o caos, o que advém das atitudes disparatadas e isoladas de cada membro do Poder Judiciário como se o mesmo quadro fosse pintado com estilos diferentes, motivos diferentes, com cores não compatíveis entre si. Muito diferente será o quadro se a corrente dominante defender uma postura e surgir, inicialmente, uma voz discordante, porém abalizada que conteste aquela postura com argumentos convincentes, coopte adeptos pela modernidade do novo jeito de olhar e a partir daí consiga alterar o rumo do pensamento. * 3.2 - todos por um O ser humano sozinho, como se sabe, tem pouca chance de sobrevivência: foi na união que se conferiu força à raça humana. Está na busca e não no atingimento de unanimidade 119 por parte da classe dos magistrados que se 119 (que nunca será atingida, o que é humano, mas que deverá sempre ser tentada, buscada, como atitude mesmo, isto é, as partes divergentes devem sempre se expor e encontrar seus pontos em comum e solução 99 alcançará, além da previsibilidade desejada pela sociedade, decisões mais compreensíveis e conforme à sociedade que outorga o mandato para que estas pessoas possam decidir. A engrenagem da Justiça deve obrigar a confluência de pensamento: o sistema 120 deve confluir para que um seja por todos e todos sejam por um, até que haja mudança de postura. Ou seja, postas as individualidades que sobrevenha, após o debate, o consenso, pois, como se verá em próximo capítulo, conhecer é computar é computar é computar... O que é importante saber neste momento 121 é que todas as partes envolvidas, mas, principalmente, os clientes do processo, isto é, as partes que se confrontam, estão insatisfeitas. A situação limite clama por mudança. Se há um taxpayer que financia o sistema, ele o faz para si, ou seja, para ter o devido processo legal (no sentido substantivo e no sentido adjetivo) que lhe é prometido pela Constituição de seu país. A ausência de Justiça contraria o objetivo dos que pagam para tê-la. Mais contraria a crença de que viver em sociedade é valioso, pois há mais vantagem em viver sob determinadas regras que sob a perspectiva de não ter regra nenhuma e que é exatamente a Justiça e o Judiciário que conferem sentido e validade à crença. Mas há outro fator a perturbar a ordem e amplificar o caos. Há um fato particular quer ocorre em alguns países entre os quais o Brasil: no nosso país 75% das ações judiciais tem o Estado em um de seus pólos (notando-se que o Estado não paga impostos para custeio da justiça nem paga as despesas diretas das ações, ao contrário, mantem uma imensa massa de funcionários para trabalhar nas ações em que é parte, pagando estas despesas e a folha destes funcionários com o produto dos impostos que arrecada daqueles a quem vai vitimizar mais tarde!). É o Estado “inimigo”, litigante de má fé, opressor, que se “defende” da sociedade que vitimiza, ou a “ataca”, valendo-se de todo seu aparato jurídico e judicial, das influências (afinal o Estado nomeia seus Juízes no STF) e da edição apressada de Medidas Provisórias que “confiram” legalidade a atos ilegais já perpetrados. É o caos, uma verdadeira guerra civil simbólica. E que tem que mudar, sendo o único modo (não falamos de ação penal, que tem tipicidade própria) o de responsabilizar pessoalmente os funcionários públicos dos Três Poderes (inclusive, claro, os Juízes e Juízas), hoje imunes por se defenderem das acusações de abusos, desídia, incompetência e má vontade, sob o argumento de que agem por excesso de zelo, e com este argumento obter absolvição judicial dos males que causam. Mas isto é outro assunto que apesar de se relacionar com Poder, Justiça, Liberdade e Direito deve ser objeto de estudo diverso (percebe-se que todo o custo, o para os seus pontos divergentes numa atitude conciliatória e tolerante) 120 (Juízes, advogados, promotores, doutrinadores, líderes, pensadores, empresários, associações...) 121 (2002/2004) 100 pessoal envolvido e os atrasos processuais por alegadamente falta de tempo e excesso de serviço, diminuiriam até 75% se o Estado deixasse de acionar e ser acionado, ou o fizesse minimamente dentro dos limites plausíveis). 25% do restante refere-se a litígios entre pessoas físicas e/ou jurídicas entre si. O resultado destes processos também não agrada as partes. Independentemente do aspecto formal de o valor estar na prescrição (que prescreve conduta) ou na imputação (sanção/coação) de responsabilidade, o que veremos no próximo capítulo, cabe perguntar se é possível verificar a ‘verdade’ ou ‘falsidade’ de um Juízo de Valor. Sabemos que a verdade ou falsidade de um Juízo pode ser verificada se este Juízo for lógico-formal, se for matemático ou se for empírico. Juízos de valor não têm verdade ou falsidade. Podem ter bondade. Podem ter validade. Podem ter vigência, eficiência, eficácia. Ou podem não ter. De suma importância que os Atores do Direito se conscientizem deste cenário e tentem se harmonizar sobre as questões ao invés de cada um proferir uma decisão monocrática descolada do contexto de vida em que se inserem. Goffredo 122 lança uma luz ao assunto ao distinguir Juízos de Ser (de existência=há petróleo no Brasil; de essência=o homem é um ser espiritual; de modo=o animal racional é bípede) de Juízos de Valor (o que situa um fato ou uma coisa numa escala hierárquica de coisas ou fatos=melhor o sonho do que a vida) de Juízos de Dever (mandamentos para o comportamento humano=não permitas que a vida sufoque teu sonho). Afirma que os Juízos de Dever não são Juízos sobre o valor das coisas mas sobre como deve o homem agir para alcançar bens a que se atribuiu valor, ou seja, bens que foram objeto de Juízos de Valor. Adianta-se mencionando que não pode haver Juízo de Dever relativamente ao mundo físico (a Terra gira em torno do Sol), pelo motivo muito simples de que não há dever onde não há liberdade. Assim, podemos falar de valor em relação a coisas de qualquer mundo, mas, de dever, só se pode falar em relação ao Mundo Ético, ou mundo do comportamento humano. Kelsen123 diz que “quando uma norma estatui uma determinada conduta devida (no sentido de ‘prescrita’), a conduta real (fática) pode corresponder à norma ou contrariá-la. Corresponde à norma quando é tal como deve ser de acordo com a norma; contraria a norma quando não é tal como, de acordo com a norma, deveria ser, porque é o contrário de uma conduta que corresponde à norma”. Afirma que no primeiro caso a conduta é “boa”; no segundo é “má”. 122 123 (pág 364) (2000 pag 18) 101 Kelsen encaminha, como sempre o faz, o assunto de maneira engenhosa124: os juízos de valor segundo os quais uma conduta real corresponde a uma norma considerada objetivamente válida e, neste sentido, é boa, isto é, valiosa, devem ser distinguidos dos juízos de realidade que enunciam que algo é ou como algo é. Ele contrapõe o valor, como dever-ser, à realidade, como ser. E compartimenta: o fato de algo poder ser tal como deve ser, o fato de uma realidade poder ser valiosa, resulta, portanto, de um quid, que é (especialmente uma conduta real) poder ser identificado com um quid, que deve ser (especialmente com uma conduta estatuída como norma devida) exceto quanto ao modo que, num caso, é ser e, no outro, dever-ser. Prosseguindo, distingue duas situações diferentes: uma a do valor constituído através de uma norma considerada objetivamente válida e outra o valor que consiste na adequação de um objeto ao desejo ou vontade de um ou de vários indivíduos que o objeto seja assim e não diferente. Nesta última acepção estamos diante de um juízo de realidade que estabelece a relação entre dois fatos da ordem do ser. Se o desejo de alguém é que algo, especialmente uma conduta, seja assim e fica verificado, para satisfação do que deseja, que esse algo é mesmo como ele queria, bom, portanto, estamos no campo do valor subjetivo (a que estão tão afeitos nossos juízes e juízas). O valor que consiste na relação de uma conduta com uma norma objetivamente válida é que é um valor objetivo. Prossegue a engenhosidade: os juízos de valor objetivos e subjetivos distinguem-se do juízo como função do conhecimento: Kelsen sustenta que podemos determinar a relação de uma determinada conduta humana com um ordenamento normativo, ou seja, dizer se esta conduta está ou não conforme o ordenamento sem que tenhamos que nos envolver emocionalmente aprovando ou desaprovando esta conduta ou esta norma. E, mais, sustenta que, diante da possível objeção de que a relação de um fato com uma norma também representaria uma relação entre fatos da realidade empírica, não procede, pois diferentes são as relações: fato é o ato de comando ou imperativo ou o costume e a norma, que através desses fatos é produzida, são coisas diversas, um é fato outra é conteúdo de sentido e assim a relação de uma conduta real com uma norma e a relação desta conduta com o fato da ordem do ser cujo sentido é a norma constituem relações diferentes. Prossegue Kelsen lembrando que como valor designa-se, às vezes, a relação entre um objeto (particularmente a conduta humana) e seu fim: adequação ao fim e temos um valor positivo, contradição com o fim e temos um valor negativo. O fim pode ser objetivo (que deve ser realizado para atender uma norma considerada objetivamente como válida) ou subjetivo (um fim que a pessoa deseja realizar porque se atribuiu tal tarefa). O valor que reside na correspondência-ao-fim é idêntico ao valor que 124 (2000 pag 18 e sgts) 102 consiste na correspondência-à-norma ou ao valor que consiste na correspondência-ao-desejo. Alguns usam a relação de meio ao seu fim como um dever-ser, no sentido de que quem quer o fim tem de querer o meio denotando necessidade causal que existe entre o meio (como causa) e o fim (como efeito). Quando se sabe que entre A e B existe a relação de causa e efeito é que se alcança o Juízo de valor subjetivo (se B é desejado como fim) ou objetivo (se B é estatuído numa norma como devido, como devendo ser). São comentários importantes que deveriam permear a vida dos Atores do Direito. A matéria o dever-ser será mais bem apresentada no próximo capítulo. Ficam neste campo ideológico, todavia, algumas questões que carecem de melhor análise. A primeira é a questão de saber se o ser, em sendo, deveser, ou seja, se há mesmo fatos do ser e do dever ser ou se ambos são fatos do ser. A segunda questão reclama atenção para perguntar se quem ajusta a conduta à norma pode realmente fazer isso, ou seja, se quem tipifica a conduta tem condição de dizer que tal conduta confirma ou contraria a norma e portanto, dizer se tal conduta é boa ou má segundo a norma. Quando alguém verifica se à uma norma corresponde uma conduta ou se esta conduta contraria a norma está fazendo um julgamento dos mais sérios. Primeiro interpreta a norma, depois interpreta a conduta, depois as relaciona e depois ainda, interpreta se a norma foi contrariada ou se foi confirmada e, a partir daí, aplica a sanção. Muito sério. “Quando a norma indica as circunstâncias nas quais uma conduta é boa, ela não determina como a conduta de fato é, mas como deve-ser. O conceito da boa conduta é: uma conduta que corresponda à uma norma. Este conceito contem três elementos: “norma”, “conduta” e “correspondência como relação entre norma e conduta”. Se dependermos do modelo que criamos para perceber o mundo à nossa volta, se fatores ideológicos interferirem nesta avaliação ou se sentimentos impuros, brutos, não souberem como lidar com a situação, se a razão a respeito não estiver clara, o que temos mesmo é uma tremenda confusão formada. Outro dado importante, que é meramente físico, comum a todos, portanto, é que há mesmo na memória uma sua característica que a faz reconstruir os fatos e não descrevê-los como uma sucessão de fatos devidamente registrados em seqüência. Quem vê um fato (conduta) faz sua análise de acordo com a percepção que teve do fato em sua mente: será que esta percepção equivale mesmo ao que aconteceu? Será que este fato pôde ser analisado sem paixão nem ideologia? Será que foi devida e corretamente contextualizado? Se quem vai examinar fato, valor e norma, e relacioná-los, quer através de sua função mudar o mundo (a realidade) e para tal, precisa ou reescrever o 103 fato ou reescrever o valor ou reescrever a norma, e, às vezes, alterar sua relação poderemos dizer que há falsidade na posição? Estamos entrando em labirinto. Se há dúvidas quanto ao fato e quanto ao valor, podemos, ao menos, ter certeza quanto à norma? 4- Dever-ser inventado. 4.1- será um fato do ser? Os fatos existem independentemente do que deles dizemos ou deles pensamos. Não são verdadeiros ou falsos, bons ou maus. Eles apenas existem. É nossa crença neles, estabelecida em proposições, que vai conferir sua existência para nós. Estas proposições, sem serem necessariamente boas ou más, é que serão verdadeiras ou falsas. Da nossa relação com outros seres humanos nasce o Direito aquele que busca a Justiça. Nossas crenças em Direito são postas pelo dever-ser. Direito é dever-ser que não é verdadeiro nem falso: é efetivo e válido. Será mesmo assim? Será o dever-ser um fato? Ontognoseologicamente considerado o dever-ser traz, ou deveria trazer, a crença humana na Justiça. É nossa humana forma de dizer “é assim” mas “pode ser assim” (Mata-se. Mas não matar é melhor). É nossa proposta, feita sempre pelo Sentimento, nunca pela Razão, para a melhoria da relação humana. É um plano de aperfeiçoamento. Uma meta. Um escopo. Sempre em devir. Uma prescrição de conduta que imputa responsabilidade e coerção. Há quem diga que do ser não se chega jamais ao dever-ser. Kelsen era desta opinião, acompanhado por inúmeros filósofos. “A Justiça 125é, portanto, a qualidade de uma conduta humana específica, de uma conduta que consiste no tratamento dado a outros homens. O juízo segundo o qual uma tal conduta é justa ou injusta representa uma apreciação, uma valoração da conduta. A conduta, que é um fato da ordem do ser existente no tempo e no espaço, é confrontada com uma norma de justiça, que estatui um dever-ser. O resultado é um juízo exprimido que a conduta é tal como – segundo a norma de justiça – deve ser, isto é, que a conduta é valiosa tem um valor de justiça positivo, ou que a conduta não é como – segundo a norma de justiça – deveria ser, 125 (O Problema da Justiça, Martins Fontes, 1998, pág 4) 104 porque é o contrário do que deveria ser, isto é, que a conduta é desvaliosa, tem um valor de justiça negativo. Objeto da apreciação ou valoração, é um fato da ordem do ser. Somente um fato da ordem do ser pode, quando confrontado com uma norma ser julgado como valioso ou desvalioso, pode ter um valor positivo ou negativo. Por outras palavras: o que é avaliado, o que pode ser valioso ou desvalioso, ter um valor positivo ou negativo é a realidade”. Diz-nos Losano 126: a teoria pura do direito tem por objeto a normatividade e não a realidade. Kelsen fundamenta a existência da norma em sentido jurídico recorrendo não à realidade ou ao valor, mas ao deverser (sollen), obscuro conceito de origem kantiana. O mundo da natureza é o mundo do ser; o mundo do direito é o mundo do dever-ser. O dever-ser permeia a ordenação jurídica, por conseguinte, é fundamento da validade de todas as suas normas jurídicas. Depois de construir uma estrutura hierárquica (a validade do inferior é inferida do superior) para manter a distinção entre o mundo do ser e o do dever-ser, a teoria pura do direito encontra-se diante de uma dificuldade: a coerência com seu pressuposto metodológico de pureza é inconciliável com a realidade jurídica que ela quer descrever. Realmente para que uma norma jurídica seja válida, é preciso que ela também seja eficaz: ou seja, não basta o respeito a certas formalidades no estabelecimento da norma, mas é preciso que, de fato, a norma assim estabelecida seja também efetivamente aplicada. Kelsen admitiu que uma norma deixa de ser válida quando deixa de ser eficaz127. Com isto ele precisa renunciar à rigorosa separação entre mundo natural e mundo normativo, entre ser e dever-ser. Da Constituição à lei e desta à sentença, está o dever-ser a nos indicar, a nos prescrever conduta e a nos imputar sanção e coerção. Este dever-ser é fruto do sentimento de uma pessoa ou de algumas pessoas. Deste sentimento nasce a vontade daquela pessoa ou daquelas pessoas de comandar o que foi sentimentalmente pinçado como bom, firme e valioso. Daí, da decisão sentimental, é que se origina a vontade de que algo deve ser feito desta maneira. A vontade sustenta este dever-ser que passa a ser assim porque foi querido assim e não de outra forma. A Constituição, a Lei e a Sentença refletem um valor escolhido pelo sentimento de uma ou mais pessoas dentre vários valores possíveis e com igual, maior ou menor grau de certeza; este valor é assumido pela vontade como único e que, por dever-ser, deve ser assim. Donde dizemos que o dever-ser é inventado pelo ser humano por razões puramente sentimentais, ou seja, a Constituição, a Lei e a Sentença são inventadas pelo sentimento humano. 126 na introdução (pág XVIII) de “O Problema da Justiça” Muito ilustrativo ler o próprio (o segundo Kelsen): Teoria Pura do Direito (Martins Fontes 2000), principalmente V- Dinâmica Jurídica, g) validade e eficácia pág 235 e o “diálogo” que ele mantém com Alf Ross a respeito do tema. 127 105 * 4.2 – simplesmente apresentado Dever-ser é palavra que provoca uma sensação de desconforto no estudante de Direito, pois os juristas não configuram exatamente seu significado. Para tê-lo enquadrado em seu contexto, recorremos a Abbagnano que define com simplicidade: 1. Ser na sua acepção comum de existência em geral; 1.1 existência como qualquer delimitação ou definição do ser, ou seja, um modo de ser de algum jeito delimitado e definido, o que nos conduz a três significados particulares: o modo de ser determinado ou determinável, o modo de ser real ou de fato (aquilo que na realidade é ou subsiste) e o modo de ser próprio do homem (o que como Vico observou reduziria o Cogito ergo sum a penso logo existo, e não a penso logo sou); 1.2 Fato como uma possibilidade objetiva de verificação, constatação ou averiguação, portanto também de descrição ou previsão. 2. Dever, no conceito clássico, genericamente descrito como a ação segundo uma ordem racional ou uma norma; 128 3. e, finalmente, Dever-ser como a grande vedete: como o possível normativo, aquilo que é bom que aconteça ou que se pode prever ou exigir com base em uma norma.129 É a pessoa humana que está exclusivamente no âmbito do Dever-ser. Se 130 toda pessoa é capaz de direitos e deveres na ordem civil 131 está no Dever-ser o que é proibido, permitido ou obrigatório. Assim, e neste sentido inicial, uma prescrição de conduta. 128 (mas, considerando-se que no século XXI vêm os neurofisiólogos contestar esta certeza de séculos e dizer que a emoção é que prepara o homem para a ação e que o sentimento (inclusive se atacado por preconceito) é que, avaliando, decidindo e julgando, é o centro que escolhe dentre as possibilidades, é esta nova maneira de ver as coisas, aquela a qual adotaremos; aliás neste conceito a Razão é dada como a faculdade de o Homem verificar a Verdade ou a Falsidade de algo, a capacidade de identificar a medida de algo e constatar se tal medida é Verdadeira ou Falsa). 129 (Platão, um de seus arautos, dizia que se Anaxágoras estava certo e se há mesmo uma inteligência - nous – que governa o mundo, o bem e o dever-ser sustentam e agregam todas as coisas, declaração, aliás, que não pode ser mais retumbante e clara quanto à intenção do Filósofo). 130 - art. 1o. NCCi., Lei 10.406, de 10.01.2002 (e CF do Brasil de 1988, art. 5o., XXXIX, não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal). 131 106 Diz nos Nietzsche132: “Os filósofos propriamente ditos, porém, são comandantes e legisladores: eles dizem ´Assim deve-ser´ ; são eles que determinam o Para-onde? e o Para-quê? do homem e para isso têm a seu dispor o trabalho prévio de todos os trabalhadores filosóficos, de todos os dominadores do passado – estendem sua mão criadora em direção ao futuro, e tudo o que é e foi se torna para eles meio, instrumento, martelo. Seu ´conhecer´ é criar, seu criar é uma legislação, sua vontade de verdade é – vontade de potência. – Há hoje tais filósofos? Houve já tais filósofos? Não é preciso haver tais filósofos?” Assim acautelemo-nos com as Leis e com a Dogmática e com as interpretações dos doutos e com as sentenças judiciais: elas delimitam nossas vidas, ou seja, como verificamos acima, definem a nossa existência. 133 Assim, vale aqui, prudentemente, sempre e sempre repetir: qual seu impulso afetivo, qual a sua fome, qual a sua sede? Qual o seu desejo mais profundo de que o discurso é apenas o rótulo, o invólucro intelectual do que está por dentro? “Cada filosofia esconde também uma filosofia; cada opinião é também um esconderijo, cada palavra também uma máscara”. 134 ou seja: o que contem o Dever-ser, qual a mensagem e a intenção de quem o escreve com palavras sob a forma de uma lei ou de uma norma (e que pode ser uma sentença do tribunal) ou de um parecer dogmático? Superada a digressão – mas não esquecida – cala-nos o formidável dizer de Tércio Sampaio Ferraz Junior 135 as questões dogmáticas são tipicamente tecnológicas. Nesse sentido, elas têm uma função diretiva explícita, pois a situação nelas captada é configurada como um dever-ser. Questões desse tipo visam possibilitar uma decisão e orientar a ação (nosso grifo) o que tem enorme ponto de contato com o tema deste nosso trabalho. Numa época em que tempo é dinheiro, e dinheiro é tudo, para alguns, as questões dogmáticas deixam de abordar reflexivamente o direito e se permitem navegar pela superficialidade do momento, conforme a exigência da lei de plantão. O Estado, que deveria promover o bem estar e a prosperidade da nação, preocupa-se com as questões emergentes daquele instante conforme a fórmula aplicada para resolver, decidir aqueles impasses. A ciência, a política e o direito, que deveriam estar preocupados com o bem comum da humanidade, funcionam, na fórmula de Kuhn, ao sabor da urgência e da oportunidade. Aos soluços. O progresso destas ciências dá-se por meio de revoluções e não de evoluções sem se preocuparem teleológica ou 132 Para além de Bem e Mal § 211 133 134 135 (e não cabe aqui enfocar o tópico Liberdade). (Nietzsche, 1978, pág 294), (2001, pág 89): 107 ontologicamente, que se preocupam, antes, com o que é factível naquele momento, sem compromisso com um conjunto estruturado para finalidades predeterminadas: se o governo vai construir uma ponte ou um hospital, se a política vai opinar sobre a inflação ou sobre o desenvolvimento, se a ciência vai estudar este aspecto do câncer no ser humano ou aquele outro mais conveniente à indústria de extração de mel, se o direito vai atentar à justiça ou à produção rápida de decisões judiciais, tudo isto, fica mais ao sabor da argumentação e da persuasão de grupos de interesse que a outro fator qualquer. Não são tomadas decisões com vistas ao Bem, fim a que tendem todas as coisas, no falar de Goffredo136. Porque são humanas as partes envolvidas e tomam humanamente decisões sentimentais particulares que para as decisões racionais não estamos aparelhados fisicamente. Daí o caráter eminentemente consumerista das leis atuais (precisamos desenvolver a indústria civil da construção e criar empregos: mexa-se já na lei de locação a favor do proprietário; no ano seguinte: precisamos, e rapidamente, dar mais condição de habitabilidade à população: mexa-se de novo e de pronto naquela mesma lei de locação mas agora de maneira a favorecer o inquilino) que fluem ao sabor da necessidade imediata. E nada disto choca uma sociedade que já é voltada para o consumo: é normal! Passa a ser normal! A ciência do direito que antes discutia intensamente aquilo que podia ser direito volta-se para se ocupar com a oportunidade de certas decisões, tendo em vista aquilo que deve ser direito enquanto relação de imputação, dando um novo sentido à ciência e, com isso, criando um problema: não se atenta mais à Verdade, nem à Justiça, mas sim à decidibilidade, no dizer de Tércio. Pelo menos no que toca à Verdade, ficou o Homem sem parâmetro quando o Cristo perguntado por Pilatos: Mas, o que é a Verdade? não respondeu. E então? Haveria Justiça no Direito? Há continuidade nas relações jurídicas de forma que se possa perpetuar o que é bom? Diz-nos Tércio Sampaio Ferraz Junior que desde a Antiguidade foi na idéia de Justiça que se buscou a estrutura de resistência à mudança e foi nela que se ancorou a segurança de que a experiência jurídica tem um sentido persistente. “A presença, pois, da justiça como uma espécie de código de ordem superior, cujo desrespeito ou violação produz resistência e cuja ausência conduz à desorientação e ao sem sentido das regras de convivência, pode-nos levar a admiti-la como um princípio doador de sentido para o universo jurídico”.137 136 obra citada pág 190 137 ( Introdução ao Estudo do Direito, 2001, pág 347 nosso grifo; já exposta na nossa nota 96) 108 E isto se dá e isto se configura no correto uso do dever-ser: o que ele é? Como configurá-lo? No prefácio de “Causalidade e Relação no Direito” nosso festejado Lourival Vilanova138 nos diz que “a causalidade normativa (“se A, então deve-ser B”, ou deve ser, “se A, então B”) que logicamente é um dever-ser de uma implicação, tem por pressuposto a existência de um sistema. Em que altura do processo histórico (da pré-politicidade até alcançar a politicidade estatal) o direito adquire a forma-de-sistema é problema que pomos entre parênteses. O que o sistema adquire, com sua efetividade subjacente, é o pressuposto empírico da causalidade estatuída pela norma. Só no interior de um sistema vale a causalidade normativa. Pressuposto supra-empírico, para conferir a unidade sistêmica, seria a norma fundamental, o postulado-limite. Além dele, o jurista ingressa em outras órbitas”. Kelsen já dizia que a distinção entre o “dever ser” e o “é” é fundamental para a descrição do Direito. 139 Muito se falou a respeito. Lembremos que entre dever – como idéia de um valor moral absoluto - e dever-ser em seu sentido jurídico pode haver um abismo : as pessoas tendem a achar que ambos se confundem, o que é mais esperança que fato. Às vezes coincidem, muitas vezes não. É importante este registro, pois ele serve como divisor de águas na compreensão do dever-ser-que-está-aí. Repitamos, por importante, que Platão tinha dito que o bem e o dever-ser sustentam e agregam todas as coisas. Esta a origem da mitificação do instituto. Hegel referia-se com desprezo ao dever-ser: “ao analisar que a introdução do possível normativo estabelecia a sua diferença em relação ao ser de fato e possibilitava o julgamento de uma questão com base no ser em cotejo com o dever-ser, dizia que este dever-ser era mero fantasma. Dizia que à realidade do racional contrapunha-se, de um lado, a visão de que as idéias e os ideais são apenas quimeras e que a filosofia é um sistema desses fantasmas cerebrais, e, de outro, a visão de que as idéias e os ideais são algo excelente demais para ter realidade ou que o homem é impotente demais para atingi-los. Mas, continuava, a separação entre realidade e idéia é muito apreciada pelo intelecto, que considera verazes os sonhos de suas abstrações e tem muito orgulho de seu dever-ser, que apregoa de bom grado até mesmo no campo político, como se o mundo houvesse esperado esses ditames para aprender como deve ser e não é: pois se fosse como deve ser, aonde iria parar o pedantismo desse dever-ser?” 138 (2000 pág 8) 139 (Teoria Geral do Direito e do Estado 2000 pág 52). 109 A filosofia nesse momento histórico (e hegeliano) queria fazer as pazes com a realidade. Mais tarde, Nicolau Hartmann, contemporizador, diria que o dever-ser só prescreve a realização daquilo que pode e deve necessariamente realizar-se quando nada mais falta para que se realize pois é a própria possibilidade real, que é sempre efetividade ainda que não pareça. A questão é realmente candente. Kant, pouco antes disso tudo, explicava sua tese de que o dever-ser exprime uma espécie de necessidade e uma relação com princípios que não se verificam absolutamente na natureza, pois na natureza o homem só poderá conhecer o que é, foi ou será. Quando se observa o curso da natureza o dever-ser não tem qualquer significado. Uma ação natural só pode ser um fenômeno. O dever-ser exprime uma ação possível, cujo princípio é apenas um conceito. A ação deve ser possível nas condições naturais se o dever-ser visar a elas e tais condições não atingem a determinação do arbítrio, mas apenas o efeito e a conseqüência dela no fenômeno. Isso equivale a dizer (Abbagnano) que, no mundo humano, a distinção entre o que acontece de fato e o que se poderia esperar que acontecesse, a partir das normas que o regulam, deve manter-se constante. Vilanova, explícito,140 arremata: como todo sistema de significações, o sistema de normas jurídicas só é viável (concretizando-se, realizando-se) se o sistema causal, a ele subjacente, é, por ele, modificável. Se o deverser do normativo não conta com o poder-ser da realidade, se defrontar-se com o impossível-de-ser ou com o que é necessário-de-ser, o sistema normativo é supérfluo, ou meaningless (observa Kelsen, General Theory of Law and State, p 41/44). Descabe querer impor uma causalidade normativa contrária à causalidade natural, ou contra a causalidade social. Observe-se que na alteração tecnológica do mundo (e até no mais humilde instrumento com que o homem primitivo modifica o seu contorno natural) é através de leis naturais que isso é possível. A atuação humana é mediante a relação meio/fim: o meio á causa idônea que leva ao efeito, que é fim da ação. Normar conduta humana importa em articular suas partes na relação meio/fim. Essa é a ontologia teleológica da ação. O mesmo autor 141 adverte que Kelsen contrasta a lei natural e a norma jurídica valendo-se de esquemas: para a primeira “se A é, B é” e para a segunda “se A é então B deve ser”. Em ambas, a hipótese descreve, prefigura um fato típico. Chamemos o descritor, na norma. Na segunda, a presença do ought to be caracteriza-a como o que podemos denominar o prescritor. 140 141 (2000 pág 11) (2000 pág 95) 110 Kelsen 142 vem esclarecer: “Visto que o sentido específico do ato através do qual é produzida a relação entre pressuposto e conseqüência numa lei moral ou jurídica é uma norma, pode falar-se de uma relação normativa – para a distinguir de uma relação causal.” Imputação“ designa uma relação normativa. É esta relação – e não qualquer outra – que é expressa na palavra dever-ser, sempre que esta é usada numa lei moral ou jurídica”. Kelsen retira, desse modo, a causalidade na norma: esta existe (se existir o que já configura outro assunto) na Natureza; na norma há a imputação: se A então B exprime a imputação não a causalidade. Vilanova 143 sempre preciso, estabelece uma extraordinária simplificação do problema, reduzindo-o com sua habitual perspicácia e afiado uso do vernáculo: da variedade de linguagens em que se exprime o direito positivo (multiplicidade de idiomas, de estilos, de técnicas de formulação linguística), passando da gramaticalidade expressional ou frásica para a forma lógica, o fazemos mediante a abstração formalizadora. Encontraremos a estrutura sintática reduzida. O que uma norma de direito positivo enuncia é que dado um fato, seguir-se-á uma relação jurídica entre sujeitos de direito, cabendo, a cada um, posição ativa ou passiva. Mais. Que, nessa relação jurídica primária, define-se o conteúdo da conduta, modalizando-a como obrigatória, permitida ou proibida. E que no caso de descumprimento, inobservância, inadimplência, por parte do sujeito passivo, o outro sujeito da relação pode exigir coativamente a prestação não-adimplida. Com isso, estabelece-se nova relação jurídica, na qual intervem outro sujeito, o órgão judicial, aplicador da sanção coacionada. Karl Engisch 144 diz que “pertence, com efeito, à hipótese legal tudo aquilo que se refere à situação a que vai conexionado o dever-ser (sollen), e à conseqüência jurídica tudo aquilo que determina o conteúdo deste deverser”. Tudo isto posto, percebemos, assim, que o dever-ser passa a ter, pelo menos, dois significados com objetivos similares mas com espectros bem diferentes, pois de pontos de vista diferentes partem seus comentadores. O primeiro significado estabelece a visão idealista (e ideológica) do seu autor (´Assim deve-ser´ ; são eles que determinam o Para-onde? e o Paraquê? do homem´), que pode até chegar a um impossível quimérico, um dever-ser totalmente desconectado da realidade, que ainda está, por isso, “aprendendo como deve ser e não é”. O segundo, coloca o dever ser na estrutura da norma, define-o e informa como ele funciona. E aqui se subdivide o conceito do que é o dever-ser: uns 142 (em Teoria Pura do Direito, 2000, pág 101) (2000 pág 101), 144 (Introdução ao Pensamento Jurídico, 2001, pág 55) 143 111 o colocam na prescrição da conduta (isto deve ser!), outros o colocam na imputação de sanção caso a conduta prescrita tenha sido contrariada (se há dano este deve ser indenizado desta forma). Simplificada a questão, chegamos ao ponto de nos permitirmos dizer, qualquer o sentido de dever-ser que queiramos adotar, que se alguns afirmam que direito é norma, podemos nós dizer que direito é dever-ser. É fato previsto e desejado com sanção em não ocorrência. O assunto retoma, porém, sua complexidade quando se filia o tema da justiça e o tema da verdade ao tema do dever-ser, pois está sempre no dever-ser a ordem para um comportamento desejado e a fórmula que será utilizada para restabelecer a harmonia da sociedade, através de sanção, depois que um ser humano adotar livremente comportamento contrario ao estatuído pela norma. Não é tarefa para amadores nem para idealistas com sentimentos pueris. O dever-ser, como pensamos, deve referir-se a uma possibilidade - ex facto oritur jus - a partir de um fato real e deve gerar efetividade. Explicamo-nos e para tal trabalharemos com dois exemplos diferentes, dentre tantos de que poderíamos nos valer: 1- Grandes leis são natimortas porque o sentimento que lhes dá vida já se manifesta edulcorado por legisladores bem intencionados ou porque seguem distantes da realidade que pretendem atacar: nossa Constituição Federal (no seu art. 1o inciso III-) afirma que o Brasil tem como fundamento a dignidade da pessoa humana; ousa mais pois (no seu art. 3º ) afirma que constituem objetivos fundamentais do Brasil construir uma sociedade livre, justa e solidária; garantir o desenvolvimento nacional; erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação. Absolutamente nada em desabono, pois, dificilmente, alguém vai se posicionar contra tais ideais. Mas, como se vê, há um emaranhado de palavras bonitas com pretensos significados elevados, que aparentemente são de compreensão comum, o que não é verdade e que sinalizam atitudes por parte das autoridades e da sociedade civil que não podem estar mais longe da realidade do nosso país. Um fiasco. Estão aí para que nos lembremos, dizem seus defensores. É um vade mecum, um roteiro, dizem os idealistas. Tratar a Constituição brasileira como um pro memória torna-a letra desprezível: se no fim de 2002 cogitou-se mudar a Constituição com a alteração da data da posse do Presidente da República por ser a nova data 112 mais confortável para os seus convidados internacionais, o fato mostra qual o perigo de tratar a nossa Constituição também como Agenda de Bolso para compromissos assumidos: troca-se a data na Agenda como se desmarca a hora no barbeiro. E esta Agenda pode ser, a qualquer momento, jogada fora e trocada por outra aparentemente melhor e mais chique naquele instante. 2- O segundo exemplo já parte da constatação de que legiferar sobre assuntos sobre os quais se desconhece normalmente redunda em sonoro fracasso. Inúmeros exemplos na nossa legislação de legisladores bem intencionados aplicando seus sentimentos em assuntos que são assim, mas foram desfigurados por um dever-ser totalmente desconectado da realidade a que se referem. Tais legisladores, por inúmeros motivos de ordem emocional, exibem a sua recusa imotivada do ser e permeam um dever-ser imaginário e impossível, ou desfigurado, quimérico, e, daí, inaceitável. Mas há, em seguimento, Juízes que não aceitam a lei pátria e a aplicam como eles acham que ela deveria ser: assim este nosso segundo exemplo vai buscar a mesma atitude em alguns Juízes que apagam o que há na legislação e ao sabor de suas convicções próprias reescrevem o artigo por eles extinto. Vejamos com um dentre vários exemplos que poderíamos pinçar: A alma do empresário ama o risco. Ninguém mais afeito ao risco que os empresários. E de suas idéias postas em prática surgem empregos, circulação de dinheiro, consumidores satisfeitos, impostos pagos, lucros. São promotores de desenvolvimento e cumprem sua função social. E por que correm riscos, sabem dos riscos de sua atitude. Quando empresariam destacam de seu patrimônio uma parcela que consideram suficiente para tocar o negócio que se propuseram desenvolver e comunicam à sociedade qual o capital que põem em risco. É do giro deste capital que advirá o lucro de sua atividade e, no caso de prejuízo, será esta parcela de seu patrimônio que aceitam perder. Sabem-no banqueiros, fornecedores, prestadores de serviço, sindicatos, empregados, governo e a sociedade em geral. Pode-se até discordar da decisão do empresário e considerar insuficiente o capital que ele destinou ao negócio. E não negociar com ele. O que bastaria para o caso. Pois bem, a ignorância e a não aceitação do que seja lucro fazem do empresário um ser mal visto por alguns setores da sociedade. Segue daí que na queda do empresário, quer ele esteja ilíquido ou insolvente, alguns Juízes do Trabalho começaram a aplicar, sob qualquer hipótese, a figura jurídica do Disregard of Legal Entity, sem atentar para seu fundamento. O NCCi trata do assunto no seu art. 50. O anterior de 1916 não o premiava com artigo específico. Só em casos particulares este instituto pode ser pinçado e não há empresário que venha contestar, em tais casos, a sua aplicação: nos casos de abuso, má fé, burla da lei ou do contrato social, 113 nada será objetado. O assunto é tão específico, que nem em caso de incompetência gerencial ele pode ser invocado: basta o fracasso do empresário, a perda do seu capital e o eventual desprezo da sociedade para que tenha fim o caso. Mas há Juízes que não só aplicam a despersonalização da pessoa jurídica em qualquer caso como vão além: sócio que fez parte da sociedade antes que o empregado fosse contratado, sócio minoritário ou sem poder de gestão, parentes de sócios, todos são enquadrados por esses Juízes que determinam penhora de seus bens pessoais, inclusive os impenhoráveis por força da lei 8009 ou por força do artigo 649 do CPCb. Há três resultados: 1- vários empresários deixam de empresariar com o inevitável prejuízo da sua ausência para a sociedade ou, o que é mais comum, blindam seu patrimônio, escondendo-o da sanha vindicante desses magistrados. O que antes era atividade lícita e às escâncaras, vira marginal: o empresário agora sabe que para se defender, antes, tem que esconder e esconder-se. 2- Empregados acionam por nada e por tudo. A luta de classes que deveria ficar restrita à luta das classes pelo emprego e não à luta das classes entre si, agora se torna mais presente que aquela descrita por Marx: espertos hipossuficientes profissionais sempre esperando, espreitando para obter uma vantagem indevida por conta de Juízes que vêm aplicar sua própria justiça aos casos que caem em suas mãos. E empresários que deixam de pagar o empregado que iria acioná-los de qualquer maneira, para em Juízo, com pretendidas vantagens, poderem usufruir uma situação que não criaram e com a qual não compactuavam inicialmente. Enorme acúmulo de ações, situações inesperadas, não desejadas, por causa exclusiva da atitude de Juízes que vieram escrever o dever-ser da sua maneira particular. Ou seja, uma aberração. Amplamente antinatural. 3- essas medidas “alcançam” apenas os microempresários, os pequenos e os médios empresários, os que são, segundo estatística provável os responsáveis por 93% dos empregos postos à disposição do mercado de trabalho; os outros 07%, as grandes empresas não são “alcançadas” com a mesma eficiência pelas atitudes violentas dos tribunais federais trabalhistas. Estas atitudes são explicadas pela posição que adota o responsável pelo bom uso do direito, pelo seu ponto de vista ao firmar-se perante as diversas possibilidades de atuação. 114 Miguel Reale 145 discorrendo sobre a correlação existente entre a compreensão filosófica e a científico-positiva da experiência jurídica discrimina três orientações fundamentais (pelo menos, alerta ele) sobre a maneira de se posicionar perante o tema: a- a posição imanente que é assumida pelos que afirmam que jamais podemos ir além do plano dos eventos históricos e consideram os problemas jurídicos permanentemente inseridos nele e só explicáveis segundo os valores inerentes às relações que os constituem. Tudo o que se elabora no mundo jurídico, quer pelo legislador, quer pelos tribunais ou através dos usos e costumes , resulta, segundo tais doutrinas, as relações sociais mesmas, sendo, o mais das vezes, as regras de direito explicadas indutivamente, segundo nexos de causalidade ou funcionalidade. Opera-se, nessa linha de pensamento, a redução do valor ao fato, do dever ser ao ser, visto como o valor não representa senão o resultado de um fenômeno psicológico, de ordem emocional ou volitiva, ou, tal como preferem dizer alguns, uma integração emocional-volitiva de sentimento e de desiderabilidade. O dever ser, sob esse ângulo, equivale a uma diretriz possível de comportamento, como que uma resultante enucleada do seio dos próprios fatos: os valores, dessarte, exerceriam função puramente indicativa e operacional, não ultrapassando o plano da mera sugestão tendente a facilitar ou determinar o advento de um dado resultado de ordem prática. b-) posição transcendente, posição daqueles autores segundo os quais, além dos fatos, num plano diverso do empírico e temporal, é necessário admitir alguns paradigmas ideais, certas exigências objetivas e imutáveis, à guisa das idéias de Platão; são modelos estáticos ou eternos, que não participam de nossas contingências histórico-sociais, a não ser quando nos reportamos a eles, procurando adequar àqueles arquétipos as expressões contingentes de nosso comportamento individual e coletivo. Assim, todo o drama da experiência jurídica não representaria senão um esforço constante de adequação a modelos transcendentes de justiça. Os adeptos dessa escola acreditam na transcendência da justiça e dos demais valores fundantes da experiência jurídica, ora sendo concebidos como realidades ontológicas, ora como expressões ou manifestações do valor Divino, fonte e fundamento e toda a vida ética. c-) posição transcendental, escola de Miguel Reale, daqueles que consideram que, transcendental e empírico são termos distintos, irredutíveis um ao outro, mas de tal modo implicados ou correlacionados entre si que se não compreendem fora de sua mútua dependência. Esta terceira posição afirma que o direito não resulta do 145 (em O Direito como Experiência, 1999, pág. 7) 115 processo fático, nem lhe é imanente, mas, por outro lado, também é inconcebível como valor em si, desvinculado do processo histórico ou sem referibilidade à experiência, havendo em todo fenômeno jurídico dois aspectos a serem analisados, um quanto à sua gênese, outro quanto as suas condições de possibilidade e de validade. Parafraseando Kant logo na página inicial da Crítica da Razão Pura, “no tempo, todo conhecimento do Direito começa com a experiência, mas nem por isso deriva da experiência”. Entretanto, e para rememorarmos posição acima descrita por nós, não nos parece que seja possível legislar ou julgar sem que os interessados conheçam profundamente o assunto e os interesses envolvidos. Não é possível, abstrair, como se faz, e, longe do caso concreto, sentimentalmente resolvê-lo que o resultado pode ser distorcido e sem qualquer conexão com o caso a que se refere, como já tivemos oportunidade de apontar. Fazer algo sem audição prévia das associações de classe, negar seguimento à Lex Mercatoria 146 não atentar para os usos e costumes, tudo isto causa enormes problemas à sociedade porque afronta a sabedoria dos que vivem o assunto no seu dia a dia. Mais do que isso nos parece que esta atitude idealista expõe o íntimo ressentido de quem a adota que é o de não acreditar no ser humano e na sua capacidade de com boa fé resolver abertamente seus impasses de maneira altiva e sobranceira. Imensas confusões são perpetradas a partir dessa posição equívoca. * 4.3- mitos sobre o dever-ser O conceito básico de que se parte é o de que o homem tem que se conformar à ordem racional do todo! Com este conceito parece que tudo se encaixa: o homem fica humilde diante do todo, perscruta-o com sua inteligência, compreende-o, admira-o, aceita-o, conforma-se e procura copiá-lo; a Razão tudo preside e tudo explica: tudo se encaixa! E o Homem é virtuoso. Ser e Existência que são termos correlatos e conforme a realidade, para estas pessoas, não valem em conjunto: a soberba interfere e o gênio criativo do homem surge. O Valor, aquele eterno, pétreo e divino, sugere o Dever e o Dever-Ser. Ou seja, o Ser que é, realmente não deveria ser assim, ele deveria ser outra coisa, conforme a ordem racional do todo que, 146 ver dentre vários, inúmeros autores (Direito Internacional Privado, Irineu Strenger, 2000, págs 795 e sgtes.), 116 casualmente, é sempre conforme a eleição de valor de quem sugere. O Ser que é não pode ser o que é, ele deve ser outra coisa; o Dever-Ser é o Ser como este deveria ser. Nada mais conforme o Sentimento de quem está falando. Joga-se fora a existência do que é em função do que deveria existir, dentro de um plano conceitual específico. O plano arquitetônico de quem apresenta sua concepção de dever-ser parte de princípios: primeiro que esta apresentação é exatamente conforme o Ser se este tivesse oportunidade de se manifestar deste outro jeito, mais desejável, aliás, logo, por inevitável, deve-se acelerar a sua ocorrência; segundo que esta é a única possibilidade e terceiro que da realidade pode-se inferir a única possibilidade. Valores morais podem ser extraídos de fatos puros pelo uso da Razão, é o que pensam estas pessoas. Hume já nos alertava desse imenso perigo, o de que subitamente, sem prévio aviso, as cópulas proposicionais usuais, como é e não é, repentinamente passassem a ser deve e não deve, expressando uma nova relação, sem qualquer explicação por parte do autor da sutil alteração e como se fosse possível deduzir a nova relação de outra completamente diferente. Não se leva em conta, para dizer o mínimo, que sistema em Biologia, não fica parado, ele evolui; mas elo a elo e na sua velocidade natural, que súbita mudança, ou desconforme, tem como conseqüência, inevitável, a sua destruição, a destruição do sistema. Donde se infere que a Natureza na sua busca evolucionista não liquida o sistema cuja evolução estimula. Mas, na Natureza, uma roseira deve produzir rosas! Pronto, simples assim. Não é compreensível uma lei (ou uma sentença) que determine que uma roseira deve, sob pena de prisão em caso contrário, produzir rosas, ou produzir tantas rosas, ou com tal pigmentação; ou outra lei que determine que uma roseira deve, sob pena de prisão em caso contrário, produzir abacates. Não há lei neste caso; na Natureza o ser é, não há prescrição e o dever-ser não é imputável. No mundo humano, ao revés, criam-se leis sobre o agir. O ser do homem tende ao seu Fim ou ao Bem: há vagueza no conceito? Mais fácil que dizer qual o Bem, ou o Fim, do homem é dizer que o Bem, ou o Fim da roseira é gerar rosas. Criam-se, no mundo humano, todavia, leis (quem já estabeleceu concretamente qual o Bem ou qual o Fim do ser do Homem?). A grande, abissal diferença está que umas leis são imaginadas outras são inventadas. As primeiras carecem de efetividade e são derrogadas pelo costume que sabiamente afasta o que não é natural; as segundas são dispostas, seguidas e usadas enquanto durar o motivo de sua invenção ou substituídas quando outro elo for acrescentado à corrente humana gerando outra ou nova necessidade. A Lei Natural mais evidente é a que demonstra que em primeiro lugar está a sobrevivência; a partir daí sobrevive o mais forte ou o mais hábil, aquele 117 que resiste, adapta-se, modifica-se, fortalece-se em evolução constante, lenta e gradual. Em poucas palavras, sobrevive o que passa no teste da vida (Watzlawick). A evolução, nesta hora, confunde-se com progresso – termos, modernamente, com significados diferentes – e progresso com profecia para o futuro, e, daí, os arautos do dever-ser manifestarem-se com sua visão diferente de mundo, mesmo correndo o risco de destruir o sistema no qual interferem (e sem mencionar que esses arautos ainda podem promulgar leis em próprio proveito). Pois bem, uma das conseqüências desta situação é que ocorrem duas situações superpostas: uma, já suficientemente descrita, a dos que agem dentro da lei por temor do castigo de Deus ou dos homens, ou a dos que agem independentemente da lei por entendê-la naturalmente na sua essência de maneira tão intensa que sentiam a lei pré-escrita em seu íntimo; segundo, a outra, a dos que por que têm poder para tanto, agem sob a norma, reescrevendo-a sublinearmente de acordo com seus propósitos, fingindo respeitá-la, mas agindo de acordo com seus próprios interesses, enquanto apregoam cumpri-la. É o estado marginal de coisas. E que se consubstancia na hipocrisia. Para estes é que funciona a norma do “nunca serás pego”. Esta desigualdade, uma, a dos estamentos que agem em proveito próprio e outra, a do Estado que age em proveito próprio na base do “eu”, o Estado, e “eles”, a sociedade, cria a base da corrupção e da impunidade. É no Estados Unidos da América que a lei impõe tanto respeito a ponto de ela mesma, law, a palavra que designa a lei, ser a mesma que designa Direito e Justiça. A lei, nosso entender, deveria permitir ao homem sua sobrevivência e evolução. * 4.4 – ubi societas Estranha raça, a humana; contra ela corriam as possibilidades de sobrevivência: não tem garras, dentes duros, força descomunal, rabo mortal, veneno, nada que a proteja dos ataques ou que a transforme em eficiente predadora; a pele dos seus integrantes não os protege do frio ou do calor ou dos inimigos; sozinhos, os homens, têm possibilidade de sobrevivência pequena. Precisam comer e fugir das doenças que senão sucumbem. Precisam dormir e enquanto dormem, temem, em sono, serem devorados por um outro animal com fome. Precisam fugir da dor e buscar o agradável, o prazimento. Como essa raça deu certo? A solidão, antes que um fardo era perigosa; a companhia de outros seres humanos era prudente e necessária: mesmo que os outros fossem o inferno (mas, afinal, porque 118 alguns incomodavam tanto? Que Sentimentos funestos eram atiçados com a proximidade?), era melhor com eles que sem. Além das ameaças físicas e da adversidade ambiental, o homem tem sua própria inconsistência interna: antes de ser, eventualmente, o lobo do homem, antes de ser, eventualmente, o deus do homem, o homem é o seu próprio algoz. Nunca em outro sentido que não esse foi a mensagem consubstanciada na divisa grega do Conhece-te a ti mesmo! Quanta carência de amor e de afeto e de reconhecimento tem este animal frágil! Quantos problemas correm no seu íntimo! Enquanto tratava da própria sobrevivência o homem enfrentava medos, os seus medos. Tinha medo que o céu lhe caísse sobre a cabeça; temia a tempestade, a noite, os raios, a vingança do espírito do animal que matara para comer, ou dos outros da mesma raça que viriam cobrar a morte do que se fora, temia a dor. Se tinha artefatos temia que algum preguiçoso viesse lhe retirar os seus objetos. Como se uniram os homens? Como vislumbraram que na Tática pura sucumbiriam e que na Estratégia residia a sua possibilidade? Tantos e tão bons pensadores já se manifestaram: Hobbes, Locke, Rousseau, Hume... Não podemos fazer um corte na história e subitamente dizer, aqui está, foi aqui! Nem – de novo – abstrair e projetar uma nuvem para um período imaginário da história e dizer era uma vez! Mas há historiadores que relatam que desde o neolítico o medo obnubilava o homem. Como isto punha o cenário? A nós nos parece que foi um duplo sentimento de horror que, primariamente, primevamente, uniu os seres humanos: horror cheio de espanto quanto à própria fragilidade (horror à vida mais propriamente) e horror cheio de espanto quanto à inexorabilidade da morte (horror ao fim da vida mais propriamente) como final de uma existência frágil. Como apesar de perguntar não encontrava respostas foi o homem tratar de ser prático. Com Hume vislumbramos que os homens temos que, inicialmente, proteger “três bens de espécies diferentes: a satisfação interior do espírito, as qualidades exteriores do nosso corpo e a fruição dos bens que adquirimos com nosso trabalho e nossa boa sorte”. 147 Mas, diferentemente do Mestre, pensamos que todos eles podem ser alvo da violência alheia Sabemos que vê-los como bens é um traço próprio da raça, individualista, 147 (2000 pág 528) 119 que outras raças não têm esse problema, preferindo normalmente a espécie ao indivíduo.148 As perguntas básicas: Quem somos? O que é tudo isto? O que fazemos aqui, como viemos parar aqui, porque viemos parar aqui? Para que ou a quem servimos? Para onde vamos? O Universo só pode ser infinito (se finito, após a borda do Universo, o Nada: que se pensado é algo!), então...? foram, sem nenhuma resposta, os móveis do horror. As necessidades básicas requeridas pelo corpo do homem tinham que ter satisfação confortável e acessível. O homem sozinho não se bastava. Era necessária uma equipe. A exteriorização, nessa fase, auxiliava o processo, por isso, era importante. E impunha uma equipe. Havia necessidade de comunicação. Criou-se, assim, a linguagem. Mas, havia o sentimento de fragilidade. A satisfação interior do espírito do homem carecia de algo. Paralisado pelo terror, gemia sua desgraça. Este assunto tinha que ser resolvido. O andarilho que supria suas necessidades sozinho precisava de um bando. Como solucionar? Moveu-o a necessidade e, depois, o interesse. A associação paliaria o sentimento de horror; nela encontraria proteção. A fragilidade seria amenizada pelo coletivo e a boa morte poderia ser tramada. Cada um com sua possibilidade, seu dom e sua habilidade contribuiria para que a humanidade tivesse bens e serviços à altura do necessário e do requerido. As trocas harmonizariam a relação. Um problema: a troca dos favores só se daria entre iguais, entre potências iguais; entre superiores e inferiores (os que não tinham nada a oferecer) a relação se encerraria na superioridade, no desprezo e no mando, que não havia vantagem recíproca que sustentasse o contacto. A associação teria também o lucro de possibilitar ao homem alienar-se, fechar-se em si e em sociedade e se esquecer do horror de sua própria fragilidade e finitude, que lembrar e esquecer são as vantagens da memória. Conviver com o horror não era suportável; era melhor esquecer. Por que perguntar se resposta não vinha? A cada pergunta a Natureza, o Além, o Nada e o Todo, respondiam com um angustiante e impenetrável silêncio. A sociedade era um manto que se sobrepunha ao horror e o abafava: a fragilidade estava superada e na morte nem mais precisava pensar. Passada essa fase, inventaria outra fase e não se recordaria do motivo inicial, que não precisava mais, não carecia mais. E, perigoso atalho vicinal, esta associação só seria válida e valorosa com seus iguais, com os seus; com os outros, os de outra tribo, os bárbaros, ah! estes não eram humanos da sua estirpe, estes eram bárbaros e mereciam a morte. Com a associação, sempre entre os seus, o homem logrou inventar 148 (Hume pensava que só os dois últimos podem ser tomados pelo outro). 120 caminhos que pudessem resolver os dois últimos problemas, os do corpo e o da posse que o homem exerce sobre coisas; o primeiro, o da paz interior, ainda não soube atacar e resolver até agora no limiar do século XXI. Basta ler Homero, Hesíodo, mas, principalmente, Tucídides, para perceber que o homem continua rigorosamente o mesmo desde o século X antes de Cristo, pelo menos. Pensamos que há aspectos macro e aspectos micro neste caso particular: o horror diante da existência e de seu fim seriam os aspectos macro; o seu desconhecimento de si próprio e as invenções que criaria para se descrever seriam os aspectos micro. E em ambos os aspectos não logrou o homem, ainda, conforto e linimento. Sua Razão - no sentido antigo - não o ajudou muito até agora. E mais, sempre quando em vias de resolver os problemas relativos ao corpo e posse, percebe que algo falta e surge o incômodo de não conseguir resolver a paz interior (por que, afinal, tantos suicídios nos países nórdicos?). Os problemas emocionais, psicológicos, religiosos, íntimos, enfim, que assolam, por exemplo, os brasileiros no século XXI são os mesmos ou quase os mesmos que os relatados por autores da tragédia grega do século V antes de Cristo ou os relatados por Shakespeare na sua época, fim da Idade Média. E estamos no limiar do século XXI ! Para aquietar a associação, a Polis, a nova vida, o que fosse, sistemas políticos foram concebidos, sistemas econômicos, sistemas jurídicos, falou-se de poder e de liberdade, de inviolabilidade e de dignidade, de justiça, de desenvolvimento, tudo para acomodar, aquietar aspectos relativos aos novos problemas, originados na associação, que o de saída fora já esquecido, jogado em arquivo fechado e secreto, mas, escondido continuava a incomodar: o Horror continuava lá a exibir sua face horrenda e assustadora. E a gerar revolta, raiva, ressentimento, medo, e daí, egoísmo, inveja, solidão, exigência com reconhecimento, carência de afeto, orgulho, vaidade; inventaram-se palavras: gratidão, honra, glória, dignidade, merecimento; inventaram-se patamares de merecimento, estamentos, castas, sentimento de superioridade e inferioridade; instalou-se a opressão física ou simbólica. Tudo em nome do esquecimento do Horror. Alienou-se o homem, drogou-se com outras prioridades que ele criou para substituir aquela, a do seu ponto de partida. O dizer homérico de ver e ser visto, tomou outra conotação. Camadas e camadas de civilização foram construídas, sobrepondo-se, afundando para sempre a lembrança de que a fragilidade humana e a morte inevitável ainda estão lá a incomodar um ser que se julga à imagem e semelhança de Deus. Este Sentimento de Horror que pensamos ser o original gerou os outros sentimentos: Luxúria, Preguiça, Gula, Ira, Inveja, Cobiça, Soberba, o Amor, a Responsabilidade, a Lealdade, a Amizade, o Medo, a Compaixão, o Ressentimento, a Malevolência, a Justiça, a Liberdade, a Segurança, a 121 Nacionalidade, o Poder, a Ordem, a Verdade, o Dinheiro, a Auto Estima, as Cores, os Cheiros, a Temperatura, e tantos outros, que estão aí a influenciar. O tema é tão importante e inquietador que vários desses sentimentos tomados isoladamente são a base de alguns sistemas filosóficos que se detiveram a estudá-los de per si como explicação muito interessante sobre os temas sobre que discorrem.149 Mas, enfim, é graças ao Sentimento de Horror que, pensamos, uniu-se a humanidade. Inegável que a associação tinha seus motivos claros e que o interesse era o móvel da união. Se o Horror continua a incomodar, outros problemas surgem e sugerem a Polis. Com a polis vem o dito latino: Ubi societas ibi jus; ubi jus ibi societas. O Direito se instala na sociedade. A vida em sociedade carece de regras e elas têm que ser construídas pelo Homem. A isto, em parte, chamou-se civilização. O homem extrativista, coletor, apanhador dos bens que a natureza lhe ofertava generosamente, aquele homem que comungava com a natureza suas benesses, e que se julgava em igualdade de condições com as folhas, os pássaros e os regatos, aquele homem assustado com sua posição e marcado pela ignorância, aquele homem não estava satisfeito: sua prudência indicava que era melhor escapar dos caprichos do meio ambiente para poder dirigi-lo! Havia que ser criada a abundância que esta naturalmente não existia. O apanhador virou produtor: ele informava à natureza o que queria dela e arrancava o que planejara. Com violência o homem passou a dirigir a natureza e abandonou a igualdade de condições que exercia antes; agora era superior e a natureza estava para seu conforto. O homem era a medida de todas as coisas. Tudo era para servi-lo: domine o mundo era o ensinamento bíblico. E o homem o fez. O senhor da natureza temia nada agora. O homem dirigia a Terra e logo dirigiria a vida. A soberba era o móvel. Nunca o homem esteve tão descolado da realidade. Tão invasor. Tão poderoso. Tão arrogante. Tão esquecido. 150Superior o homem, então, inferior a natureza. O homem, este sim, a causa da criação, o resto é o resto. E, eterno, feito para outra vida que esta que é não é, a outra é a verdadeira: o ensinamento de Jesus (o Cristo, o que viria para salvar, para responder, para esclarecer, aquele que dividiria a era em antes dele, depois dele!) promovido por Paulo não deixa margem à duvida: o homem é sim ser individual, que se salva individualmente, para viver em regozijo outra vida, que esta é passagem. Demos vivas à morte. O ponto 149 Veja-se, como um dos exemplos, citado por Tércio (2002 pág 226), a visão de Helmut Schoeck sobre a Inveja como um dos temas nucleares da existência ou da coexistência humana. 150 Profetas dizem que o maior problema da humanidade será em 2050 – fixam datas – e é a falta d´água! 122 central estava pela primeira vez suficientemente atacado: a fragilidade desta vida tinha propósito e assim também a morte. O confuso homem, o assustado homem não precisava mais se preocupar, pronto, lá estava a explicação. Estava salvo!151 De produtor a demiurgo foram vários séculos: o homem passou a ser parceiro da vida, podia curá-la, podia consertar. Podia mitigar o sofrimento físico do homem, podia extrair mais da natureza, podia melhorar a vida do homem. Daí, de demiurgo a deus foram alguns anos só: agora com as técnicas, com a biotecnologia, o homem pode criar vida, pode verificar na natureza o que não serve, o que não presta, o que está errado, o que afronta o plano humano e corrigir. Tanto desenvolvimento e a paz interna do homem ainda a incomodar: nada parece ter andado nestes últimos três mil anos, pelo menos! Mas, continuava o tema, ainda havia a passagem, esta vida ainda existia: como conciliar? E o chamamento da carne? E se se pudesse conciliar as benesses desta e da outra? Tão fácil agora, o homem já dirigia a Terra, a angústia da morte descartada. Ressurge o mágico da época neolítica: alguém, afinal, tem que conduzir a manada: as pessoas que se uniam não eram iguais. E, assim, os benefícios da associação não eram equivalentes. Os sócios não tinham o mesmo cacife. Quando nascem não são iguais e não podem ser sacrificados os inferiores nem os desnecessários. Quando se unem homem e mulher, quando a natureza joga seus dados, do lance pode sair uma jogada vencedora, ou quase, e a potência que diferencia uma pessoa da outra está definitiva e inelutavelmente instalada: alguns são mais capacitados ou mais bonitos ou mais ricos, ou tudo isso, ou uma combinação disso, mas não há mais dúvida que uns nascem mais aquinhoados que outros: a questão fica como fazer com os menos afortunados. O homem inventa sua realidade e, quando sofre oposição, precisa corrigir. Nietzsche 152 nos avisa que na relação pessoal, basicamente, a pessoa mede outra pessoa, faz preços, mede valores, inventa equivalentes, troca, compara potência com potência, calcula: o olho estava agora preparado para essa perspectiva: e, com aquela grotesca conseqüência que é peculiar ao pensar da antiga humanidade, que é difícil de por em movimento, mas 151 (cada religião vem explicar à sua maneira a solução para o Horror, que religião é meio de comunicação ou linguagem com o Além: assim como falamos em diversas línguas para nos comunicarmos entre nós, valemo-nos de várias línguas, ou religiões, a mais adaptada ao seu seguidor, para nos comunicarmos com Deus e recebermos respostas que nos curem o Horror) 152 (1978 pág 305) 123 que em seguida prossegue inexoravelmente na mesma direção, logo se chegou, com grande generalização, ao “cada coisa tem seu preço: tudo pode ser pago (no duplo sentido da palavra: fazer um pagamento e prestar uma compensação ou ser objeto de vingança, como em “Deus lhe pague” ou “você me paga”) – o mais antigo e mais ingênuo cânon moral da justiça, o início de toda a “bondade “ , de toda ”equidade”, de toda “boa vontade”, de toda “objetividade” sobre a terra. Justiça, nesse primeiro grau, é a boa vontade, entre os que têm potência mais ou menos igual, de se acomodarem uns aos outros, de, por meio de um igualamento (conciliação, compromisso), voltarem a se “entender” – e, em referência aos que têm menor potência, coagi-los, abaixo de si, a um igualamento. Em “Humano, Demasiado Humano”153 lá estava a tela enquadrada: crianças foram ensinadas a admirar e imitar tais ações, pouco a pouco surgiu a aparência de que uma ação justa é uma ação não egoísta. “A Justiça (equidade) tem sua origem entre aqueles que têm potência mais ou menos igual...; o caráter da troca é o caráter inicial da justiça. Cada um contenta o outro, na medida em que cada um obtém o que estima mais do que o outro. Dá-se a cada um o que ele quer ter, como doravante seu, e se recebe em compensação o que se deseja. Justiça é, portanto, retribuição e intercâmbio, sob a pressuposição de uma posição mais ou menos igual de potência; assim a vingança pertence originalmente ao domínio da justiça, ela é intercâmbio. Assim também a gratidão. – Justiça remete naturalmente ao ponto de vista de uma autoconservação inteligente, portanto, ao egoísmo daquela reflexão; “Para que haveria eu de me danificar inutilmente e talvez nem sequer alcançar meu alvo?” – Isso quanto à origem da justiça. Porque os homens, de acordo com seu hábito intelectual, esqueceram o fim originário das assim chamadas ações justas, eqüitativas, e, em especial, porque através de milênios as crianças foram ensinadas a admirar e imitar tais ações, pouco a pouco surgiu a aparência de que uma ação justa é uma ação não-egoista... Um poeta poderia dizer que Deus postou o esquecimento como guardião na soleira do templo da dignidade humana”. Ainda com Hume e se o homem tenta proteger seus “três bens de espécies diferentes: a satisfação interior do espírito, as qualidades exteriores do nosso corpo e a fruição dos bens que adquirimos com nosso trabalho e nossa boa sorte” 154 , se inevitável foi a associação, se ela se resolve, inicialmente entre iguais155, surge o derradeiro problema que é a diferente visão da realidade que têm entre si os homens, que não podemos ver que não vemos o que não vemos (Heinz von Foerster). 153 (1978, pág 98/99) (2000 pág 528) 155 (uns mais que outros, como nos apontou Nietzsche) 154 124 Quanto mais gente junta mais é a visão disjunta e tudo depende do ponto de vista, do mirador: eis mais um problema a resolver. Será possível estabelecer relação entre realidade, ficção e significado? “Objetividade é a ilusão de que as observações podem ser feitas sem um observador”, diz-nos Foerster. A realidade é uma percepção na mente e depende do espírito (no sentido nietzschiano) do perceptor. É através da linguagem que o perceptor vai comunicar sua visão; esta linguagem será percebida pelo outro perceptor da maneira como ele formar a percepção em sua mente. Apesar de estudo, longa profissionalização, atribuições de sentido previamente instruídas socialmente, ensino de significados, segurança normativa de textos ou palavras-chave, os perceptores percebem a realidade de maneira diferente. Palavras como dignidade, bem comum, justiça, igualdade-perante-a-lei, etc, são percebidas diferentemente não importa se por Juízes com longa ou pouca experiência ou advogados com formação idêntica, formados na mesma sala de aula e no mesmo ano, tendo tido os mesmos professores e freqüentado os mesmos grupos de estudo. A justaposição de fato-valor-norma nestas circunstâncias ocorre (testemunhal a prostituta das provas!), temos que reconhecer, diferentemente. Cada um cada fato cada valor cada norma. Com agravantes já vistas: a Razão mensura a(s) medida(s) e verifica falsidade ou verdade da(s) medida(s); o Sentimento avalia e decide entre as medidas, a melhor ou mais adequada naquele instante. Se for o homem a medida de todas as coisas, ou ao revés, se é o Bem a medida de todas as coisas 156, como ajustar a percepção de bem no maior número de perceptores e fazer uma justiça que seja compreendida, entendida e sentida como tal, como praticar o bom para? A receita atual é singela: a abstração, a ficção e a generalização, tão ao gosto presente dos que são convocados a decidir conflitos, viram suposições-como-se (Hejl ) de alcance e efeito limitado, necessárias à alternativas de julgamentos desejáveis e apoiadas pela legislação adaptada. Cria-se a “geração social” da realidade. Assim, nega-se o aprendizado, isto é, “norma-se” como recusa de modificar (Luhmann) uma construção da realidade e a conduta a ela atribuída por meio do aprendizado! É a arbitrariedade judicial, juiz a juiz, defesa em lei, verdadeira violência simbólica à parte carente de justiça, que está institucionalizada pela Justiça, sob o olhar complacente e cúmplice de todos os envolvidos no processo. 156 (e Bem para, não Bem-em-si, como nos ensina Hannah Arendt: a utilidade só poderia ser salva mediante a idéia do bem, já que “bem” no vocabulário grego sempre significou “bom para” ou “adequado”. Se a idéia máxima da qual todas as demais devem participar para que cheguem a ser idéias é a da adequação, então as idéias são aplicáveis por definição, e, nas mãos do filósofo, o que é versado em idéias, podem tornar-se regras e padrões ou, como posteriormente em Leis, se converter em leis – Entre o Passado e o Futuro – Editora Perspectiva – 2001 – pág 153/154). 125 Pensamos que a atitude é derivada da fuga do verdadeiro problema, empreendida pelos participantes da farsa. O construtivismo ao apontar a relatividade do ponto de vista em relação ao universo e a nós mesmos (a concepção do mundo sempre foi e continua sendo para todos uma construção intelectual; sua existência não pode ser comprovada de qualquer outra maneira – Schrödinger ) assim se expressa: 157 “O ponto de partida desse cálculo (...) é o estabelecimento de uma distinção. Com esse ato primitivo da dissociação, separamos aspectos que consideramos serem então o próprio universo. Partindo daí insistimos na prioridade do papel do observador, que faz suas distinções nos pontos que lhe convierem. Mas estas distinções que, por um lado criam nosso universo, por outro lado revelam justamente as distinções que nós fazemos e que se aplicam muito mais ao ponto de vista do observador que à real constituição do universo que, em conseqüência da dissociação de observador e observado, continua sempre incompreensível. A partir do instante em que observamos o universo na sua essência específica, esquecemos o que empreendemos para encontra-lo nessa essência; e se recuarmos na história até o ponto como isso ocorreu, não encontraremos nada além do reflexo de nós mesmos no universo e como universo. Ao contrário do que freqüentemente se supõe, a análise cuidadosa de uma observação revela as particularidades do observador. Nós, os observadores, nos distinguimos justamente pelo discernimento daquilo que, pelo visto, não somos, isto é , pelo universo”. É possível continuar a dizer com Protágoras que o homem é a medida de todas as coisas e que este homem determina o que elas são e como elas são. Pode haver atitude mais...natural? O místico irlandês John Scottus Eriugena158 diz sobriamente que: “Assim como o sábio artista cria sua arte de si e em si e nela prevê as coisas que criará... assim o intelecto cria sua razão de si e em si, na qual ele pressente e predestina todas as coisas que deseja realizar”. Destarte, e sem qualquer ironia, nada mais natural o que acontece hoje nos países já de per si altamente criativos e inovadores – com os Juízes inventando a realidade e afrontando a previsibilidade. Vico já dizia que Deus (re)conheceria o universo porque ele mesmo o criou, ele mesmo o fez: quando descrevemos “fatos” palavra que provem do latim “factum” (fato, ação, empresa, trabalho, obra) que por sua vez deriva de “facere”, que é fazer, percebemos que tratamos de coisas feitas, já realizadas. 157 (Francisco Varela , “A calculus for self-references” in O olhar do Observador, citado por Paul Watzlawick, editorial Psy II, 1995, pág 10) 158 (810/877 d.C.) citado por Ernst von Glasersfeld no mesmo O olhar do Observador 126 Talvez seja nesta acepção que somo feitos à imagem e semelhança de Deus: enquanto homens (re)conhecemos o universo que nós (re)criamos, que nós (re)fazemos! A Justiça não existiria objetivamente sem seu observador que é quem determina o quê, onde, como, quando, porquê, para que, para quem e que é quem lhe atribui, por sua vez, seu valor: ela é inventada. Basta observar o observador e não a realidade para identificarmos qual realidade do observador influenciou a ação. Ou seja, basta um mergulho lúcido para dentro de nós mesmos. Nestas circunstâncias o trabalho do juiz (do legislador, do dogmático, do intérprete...) consiste em, dentro do universo experiencial dele, atingir o seu objetivo de decidir o processo judicial dentro da realidade que ele construiu: isto explica o tremendo sentimento de injustiça que se apossa das partes: elas também dentro do universo experiencial delas esperam justiça. Em outros termos, o aparato judicial tem 1-como clientes as partes que se defrontam e 2-como objetivo decidir – terminar – a oposição em que estão as partes, os seus clientes; se estes estão insatisfeitos ao fim de processo isto significa que troca-se a decisão pela satisfação das partes. É a situação de Pôncio Pilatos: se o que a turba ignara quer é a crucificação, Seja! Ou, se a decidibilidade e não a Justiça – o que quer que isto seja – é o fim do processo, Decida-se! E não nos preocupemos mais com a satisfação dos clientes. Este mergulho para dentro é para alguns o Ego solus ipsus: o solipsismo (o self sozinho) é a posição dos que afirmam que nada existe senão dentro da própria consciência, ou que a mente não pode conhecer nada que não esteja dentro do sujeito; é a própria experiência como base do conhecimento (daí Wittgenstein dizer que os limites da minha linguagem constituem os limites do meu mundo). Se aceitarmos esta tese, a de que o mundo é o meu mundo, temos que aceitar a tese de que cada cabeça sua sentença. Mas a coisa não para aí, não se resolve aí. Não há saída, como nos ensina Foerster (ninguém pode ver que não vê o que não vê), senão na conjunção destas cabeças, na formação da comunidade: conhecer, diz ele, é computar é computar é computar é computar...(do latim cum : com, em companhia de, juntamente com + putare: limpar, purificar, daí desbastar, podar, cortar, daí, em sentido figurado: verificar uma conta, apurar, contar, calcular, avaliar, considerar, estimar, julgar, pensar, crer, imaginar, supor). Donde o Sentimento ser apresentado como meio de comunicação, uma constante troca de mensagens de um indivíduo para outro, dentro de códigos bem específicos e característicos, estabelecendo imenso e 127 fortíssimo canal de comunicação entre emissor e receptor, matéria que será mais bem apresentada no penúltimo capítulo. Finalmente, a Natureza tem no Post hoc ergo propter hoc : depois disso, logo por causa disso, a base do Se A é, B é. Não nos ateremos na natureza (logo por causa disso), a perquirir se há ou não causa e efeito: não nos perguntaremos se na natureza podemos mesmo garantir que amanhã o Sol sairá e nascerá um novo dia, e não nos fixaremos na teoria da probabilidade. No mundo do humano há outra coisa. Se A é, então B deve-ser é uma construção humana e nesta circunstância precisa ser decomposta. Sem qualquer relação de causa e efeito. É uma construção humana, demasiado humana, somente humana. Começamos no dever-ser para nele terminar: quando o homem se junta surge o direito e o dever-ser; defendemos a tese de que o dever-ser precisa se ater ao universo ôntico e que este, e assim o dever-ser, são uma invenção nossa a partir de medidas verificadas pela nossa Razão e que, axiologicamente, dentro das várias medidas possíveis, pinçamos com nosso Sentimento, aquela medida, a de nossa escolha, aquela que avaliamos como a melhor para aquele instante. O ser do homem, que é devir, tende a seu Fim ou ao Bem, termos comutativos; o comum do Bem (que o que não é comum é problema da felicidade individual de cada um) tem que ser contemporâneo para não ser póstumo nem antepassado sem o que não se resolveria e seria quimera: o comum do Bem é vir-a-ser. Fiquemos, para finalizar, com as máximas de von Foerster: a ética que diz: aja sempre de maneira a ampliar as possibilidades 159 e a estética que diz: se você deseja ver, aprenda como agir. Assim o princípio da independência e do livre convencimento do juiz e da juíza estará eticamente estimulado pelo aumento da compreensão e do foco de visão e não pela aplicação pura e simples do princípio ao caso concreto e de acordo com a parcial visão que o juiz e a juíza conseguiram solitariamente naquela etapa de sua vida (lembrando, mais uma vez, que não se pode ver que não se vê o que não se vê). É pouco? Julgar é meramente aplicar a norma de acordo com princípios técnicos ao caso concreto? 159 (que sempre chamamos, do nosso lado, de política da insegurança, ou seja, desafie as certezas postas, desafie-se a si, motive as mudanças, intercambie perspectivas e esteja preparado para as diferenças) 128 5 - A equidade em Aristóteles, na Retórica. A nova equidade dos juízes atuais. 5.1- o positivismo impacta a equidade O Direito visto pela ótica positivista como tecnologia gera comportamentos no mínimo interessantes por parte dos atores de direito (ou dos despachantes do direito, como os chamamos nestas ocasiões) que têm essa mentalidade técnica: há um caso relatado em O Estado de São Paulo 160 que espelha com largueza o que se passa. É a tradução de um artigo assinado por Adam Liptak e publicado em The New York Times. Nesse artigo está relatado que houve um debate entre a Juíza Laura Denvir Stith e Frank A . Jung, assistente do procurador geral do estado de Nova York. Esse senhor tentava impedir que um condenado à morte tivesse seu processo reaberto com base em novas evidências (exame de DNA, não disponível à época do julgamento e que se então utilizado como prova teria absolvido o réu!). “O senhor está sugerindo que mesmo que descubramos que o sr. Amrine é inocente, ele deve ser executado?” perguntou a Juíza ao imperturbável promotor. “Sim, isso mesmo Excelência”, foi a resposta que teve o condão de chocar a Juíza. A posição surpreendente foi avalizada pelo secretário de Justiça do Missouri, Jeremiah W. Nixon, que afirmou que a resposta de Jung a Stith fora juridicamente correta e acertadamente dada em retribuição a uma pergunta provocativa (grifamos!), pois, ele afirmou, “o que Jung tentou provar é a necessidade imperiosa de um processo chegar ao fim em um determinado momento”. Profissionais que vêm no Direito um modo de distribuir Justiça divergiram imediatamente: Mary Jo White, a mais importante promotora pública federal de Nova York, e uma das mais antigas declarou, referindo-se ao caso, que os promotores têm a obrigação contínua de avaliar alegações de inocência e que “o governo deve mover céu e terra para descobrir a verdade”. E emendou: “você está lá para absolver inocentes tanto quanto, senão mais, que para condenar culpados; não permitir que o sistema de absolvição avance é indefensável”. Verificando no Brasil casos como estes, que são “tecnicamente” resolvidos, o que nos provoca estupor e sempre a manifestação de nossa inconformidade através de freqüentes petições, um dia, fomos surpreendidos pela resposta de uma gabaritada assistente de um ministro do tribunal em Brasília, que nos disse “que ela estava muito amarga pelo fato de ser freqüentemente obrigada pela lei a promover injustiças flagrantes em diversos processos”. Isso demonstra que a boa técnica comanda atitudes que, em algumas oportunidades, contrariam o sentimento de justiça de 160 do dia 26 de fevereiro de 2003 129 quem é obrigado a atuar daquela maneira, o que está tão bem explicado na poesia famosa (in Fado Tropical161) : Sabe, no fundo eu sou um sentimental. Todos nós herdamos no sangue lusitano, uma boa dose de lirismo. Mesmo quando as minhas mãos estão ocupadas em torturar, esganar, trucidar, Meu coração fecha os olhos e, sinceramente, chora... Meu coração tem um sereno jeito E as minhas mãos o golpe duro e presto, De tal maneira que, depois de feito, Desencontrado, eu mesmo me contesto. Se trago as mãos distantes do meu peito É que há distância entre intenção e gesto. E se o meu coração nas mãos estreito Me assombra a súbita impressão d´ incesto. Quando me encontro no calor da luta, Ostento a aguda empunhadura à proa; Mas meu peito se desabotoa, E, se a sentença se anuncia bruta, Mais que depressa a mão cega executa, Pois que senão o coração perdoa. É de boa técnica para um juiz que, por função, deve julgar...julgar! É de boa técnica para um membro do Ministério Público que deve por função denunciar e condenar...denunciar e condenar! É de boa técnica para um advogado que deve por função defender...defender! Suas vidas resumem-se ao exercício técnico de suas funções que assim fazem jus ao seu salário e podem dormir bem todas as noites. Que me importa que a mula manque, o que eu quero é rosetar, diz o antiqüíssimo ditado. São os despachantes do Direito. Se a mula manca, se a sentença é produzida (Pré-escrita? Pré-feita? Por auxiliares do Juiz e da Juíza? Desconectada do caso em questão?), se um inocente é condenado, se um culpado é livre...isto já é outra história! Esta herança, amarga a nosso ver, é o resultado não desejado mas perverso da visão positivista que, pelo menos desde Rawls em 1971, o mundo jurídico tenta modificar, abrandar ao menos. Sempre estranho esse nosso mundo jurídico o que torna bem significativo que a história que relatamos no começo deste capítulo tenha ocorrido nos 161 Chico Buarque e Ruy Guerra, 1972/1973) 130 Estados Unidos da América, país onde, por influência inglesa, impera largamente o uso da equity! Summum jus summa injuria (excesso de justiça excesso de injustiça ou o mais alto direito a que se segue a mais alta injustiça, ou em interpretação livre do adágio latino citado por Cícero – De Officiis, I, 10, 33 – podem resultar consequências iníquas de uma aplicação nimiamente rigorosa da lei) é o que a equidade quer evitar. Vários filósofos, a partir de Aristóteles, abordaram o tema. Mas como isto começou, quando na prática começou a reação? * 5,2 – a reação Na Inglaterra desde o século XIII, época de formação da common law, e até o século XIX, não era importante chegar à uma solução justa e que findasse os litígios com satisfação das partes envolvidas: a atenção dos juristas estava voltada mais para o processo – remedies precede rights – mais para a atividade formal. O raciocínio era que se seguidas as fórmulas corretamente o resultado final seria obrigatoriamente justo. O sistema da common law, ou a necessidade de o requerente ir aos Tribunais Reais para ver seu pleito satisfeito, às vezes, não atendia aos anseios da parte: o tribunal dado o formalismo existente poderia não ser alcançado e, daí, nem consultado, não poderia dar a solução certa por apego ao rigor; poderia contrariar até o bom senso que se aplicado ao caso redundaria em decisão talvez oposta. Nessa ocasião o particular tinha o direito de apelar para o Rei, justiceiro e todo poderoso, que estudando e analisando com sua consciência a questão, decidiria (até por caridade) de maneira a atender o anseio de justiça imanente a quem litiga. O Chanceler (séculos XV e XVI) passou a substituir o Rei nestes casos e era ele quem decidia de acordo com sua consciência, ajustando o curso do Direito (nunca contra o Direito: equity follows the law) quando o Direito por excesso de formalismo engessava o assunto e conduzia a decisão para rumos claramente contrários ao bom senso. Respeitar o Direito não significa agir não eticamente ou ir contra os ditames da moral. A decisão começou a ser tomada ou pelas regras da common law ou pelas regras da equity. Esta tinha suas características baseadas no Direito Canônico mas não se contrapunha a common law: apenas uma solução poderia ser diferente da outra conforme o tribunal chamado para decidir a questão. Somente depois de 1873-1875 é que houve como que uma unificação de preceitos e o mesmo Tribunal poderia decidir de um jeito ou de outro. Mas logo surgiu a questão: há dois processos muito diferentes entre si, quer seja um caso tratado pela common law quer seja tratado por equity. Os Judicature Acts de 73/75 conservaram, então, ambos os sistemas: no seio do novo 131 Supremo Tribunal certos juízes seguem a common law agrupados na Divisão do Banco da Rainha e outros, os da Divisão da Chancelaria, seguem a antiga equity. Os juristas que advogam perante estas câmaras são também diferentes. Há os common lawyers e os equity lawyers. Seguindo o lema ’Justiça antes da Verdade’ (Justice before truth) os advogados ingleses preferem a administração da justiça à busca da própria. É óbvio que os dois conceitos estão imbricados mas perseguindo a idéia de que o réu deve ter um julgamento justo (fair trial), de que deve ser tratado com lealdade, de que as regras do processo devem ser seguidas pari passu, o jurista inglês pensa que é assim que a justiça será alcançada. Os seus colegas continentais (e romanos) têm certeza que eles é que devem dizer qual é a solução de justiça. Se o Juiz souber como chegar a esta solução justa ele deve ser ajudado pelo advogado a avançar e a alcançar mais rapidamente aquele ponto. Se o Juiz não souber aonde chegar ele deve ser encaminhado pela argúcia persuasiva do advogado. Diferenças de ponto de vista entre ilha e continente, o que nos faz refletir que diferentes aproximações geram diferentes soluções jurídicas, conseqüentemente diferentes sentenças, diferentes satisfações jurisdicionais prestadas às partes. A equity nos Estados Unidos foi imediatamente relacionada com a common law. Procurou-se abolir a dualidade de jurisdições encontrada na Inglaterra. A equity deve ser admitida quando o Direito não oferece nenhuma solução. Um exemplo citado (David) é o de que o Direito não apresentava nenhuma solução para os problemas conjugais, pois considerando marido e mulher como um só não admitia que um litigasse em face do outro. A equity veio salvar este estado absurdo de coisas criando na América, por expansão, um jeito de resolver o litígio conjugal que é estranho ao jurista inglês. * 5.3- ibi jus Ex facto oritur jus: do fato origina-se (o direito) a justiça, diz o adágio latino com o qual concordamos plenamente. Isto pode se relacionar (fatovalornorma) a leis e normas, mas também a interpretações, dogmatizações e sentenças judiciais. Bertrand Russel162 dizia que “é óbvio que não existe um dualismo entre fatos verdadeiros e falsos; existem única e exclusivamente fatos. Seria um erro, obviamente, dizer que todos os fatos são verdadeiros. Seria um erro porque verdadeiro e falso são correlativos, e somente diríamos de uma coisa que ela era verdadeira se ela fosse a espécie de coisa que poderia ser 162 (1978 pág 59) 132 falsa. Um fato não pode ser verdadeiro nem falso. Isto nos leva à questão dos enunciados, proposições ou juízos, a todas aquelas coisas que possuem a dualidade do verdadeiro e da falsidade”. Russel defendia a tese de que fatos são meramente fatos e que eles existem independentemente do que viermos a pensar sobre eles; por criação humana surgem as crenças, as nossas crenças, e que se referem aos fatos e que por isto mesmo, por serem referência aos fatos, as crenças – estas sim – são verdadeiras ou falsas. 163 Assim, sustentamos nós, expostas nossas crenças, o que fazemos na forma de proposições, estas, verificada sua falsidade ou verdade, passam a nos provocar um sentimento de prazer ou de desprazer. Isto é, uma proposição falsa pode nos provocar prazer ou desprazer e, igualmente, uma proposição verdadeira pode nos provocar também prazer ou desprazer. Mais, provocanos também sentimentos de bom/mau, conforto/desconforto, conveniência/inconveniência, correto/incorreto, razoabilidade/não razoabilidade etc. O fato, então, já na forma de uma proposição, passa por nosso crivo pessoal e é decomposto, cortado em fatias, na nossa mente jurídica implacável de modo que possamos compreendê-lo melhor. Se estivermos, conscientemente ou sem perceber, manejando uma proposição falsa, prosseguimos no equívoco e continuamos nele até o fim! Se estivermos com uma proposição verdadeira podemos também nos desviar e pegar um atalho que nos conduza a conclusão equívoca. Há que ter muito cuidado. O objetivo, todavia, é sempre manejar proposição verdadeira e retirar dela conclusão que, dentre as possíveis, seja a mais acertada, ou uma das mais acertadas, para o caso em questão. Dois caminhos se abrem neste instante: o da avaliação do caso por proximidade ou por generalização. É uma escolha do observador. A técnica tem encaminhado esta abordagem para a generalização. Observado, assim, o fato, e dentro de um processo altamente técnico, a mente jurídica do juiz ou da juíza inicia o caminho para a generalização: Heitor estuprou Helena, x estuprou Helena, x estuprou y, xRy. Não há mais pessoas envolvidas naquele estupro, o fato - ou os fatos - está desprovido de rosto, de cheiro, de cor: a questão está “limpa”, “asséptica”. Não há mais gente, não há mais humanidade, só o mundo frio e distante da formalização.164 163 (E nunca, de novo, é demais lembrar que a prostituta das provas é o testemunho: quantas vezes vemos algo que não aconteceu daquela forma!) 133 Daí, da generalização, parte-se para abstrações do tipo “sexo” (S), “libido incontrolável” (Li), “relação homem/mulher” (hRm), “estupro” (E), “violência” (V), “mulher provoca homem” (mRh) e etc., a mente humana vai num átimo e – pronto – já é enorme a distância entre o fato, sua crença, sua proposição e o rumo que tomou o pensamento jurídico do juiz ou da juíza que analisa o caso : daí uma sentença, pelo menos, descolada do fato de que se originou a causa, ser muito facilmente produzida. No caso de estupro que acima inventamos, pode sair algo assim: se mRh, se xRy, , então ix (declaro a inocência de x). Ou seja, entre o fato e sua crença, a partir daí uma proposição, que pode ser verdadeira ou falsa, interferência de valores próprios, uma generalização e abstrações: quanto exercício mental e quanta distância medeiam aquele fato e suas diversas versões em diversas instâncias do pensamento, com grande possibilidade de ser produzida uma aberração mental. Quanta falta faz o estudo aprofundado da lógica! A abertura da visão. Ou a abertura de tantas proposições quantas necessárias para o deslinde do caso e a verificação verdade/falsidade de cada uma delas. Entre produzir, de um lado, leis e normas (dever-ser) que tratam de questões, muitas das vezes, hipotéticas e requerem, portanto, generalizações e abstrações (o mesmo vale para interpretações genéricas e dogmatizações) e, de outro lado, sentenças e interpretações específicas que tratam de um caso concreto com pessoas, seres humanos de carne e osso que estão diretamente envolvidos, vai uma enorme distância. Métodos devem ser diferentes. O processo racional e sentimental envolvido deve ser diferente: um em um caso, o da feitura de leis e normas e de interpretações genéricas e dogmatizações (profundo conhecimento do assunto, distância, imparcialidade ou objetividade, generalização e abstração) e outro, (detalhado conhecimento dos fatos, envolvimento com o caso concreto e com a lei que prescreve conduta e imputa responsabilidade naquele caso além de conhecimento de decisões anteriores em casos semelhantes) no outro, o de feitura de sentenças e de interpretações específicas. Como temos apregoado, o envolvimento do juiz e da juíza, ao contrário do que se 164 (Não descaracterizamos o uso das abstrações formais, nem lhe atribuímos – bem pelo contrário aliás a pecha de atividade falha ou dispensável: o que sustentamos é que pessoas, que por estarem fisicamente constituídas assim e, portanto, ao usar seu sentimento para decidir, dão, por falta de preparo, exercício e estudo de lógica, saltos racionais e sentimentais tão grandes que podem cometer, e muitas vezes cometem, barbaridades factuais, depois jurídicas e, após, grandes incorreções. O erro está no mau uso da razão e do sentimento: visão obscurecida, ignorância, preconceito, ideologia, falta de lógica, tudo isso gerando erros conceituais gravíssimos e sentenças injustas totalmente desconexas e descoladas dos casos a que se referem. Há agravante: o ‘treino’ do juiz é para que use sua razão! Como usá-la se com ela, se com a razão, ele não pode dar conta desta tarefa, a de decidir, a de sentenciar? Não há ‘treino’ nem exercício nem ensino nos Colégios e nas Faculdades para uso do sentimento) 134 gosta de afirmar, está sempre presente, e via sentimento é mesmo necessário ao deslinde. Ora, a equidade é a justiça aplicada ao caso concreto. Aristóteles que declarou 165 “que as pessoas em disputa recorrem ao Juiz, que recorrer ao Juiz é recorrer à Justiça, pois a natureza do Juiz é ser uma espécie de Justiça animada”, na sua Ética a Nicômaco 166 trata da equidade: ”o eqüitativo, embora superior a uma espécie de justiça, é justo, e não é como coisa de classe diferente que é melhor do que o justo. A mesma coisa, pois, é justa e eqüitativa, e, embora ambos sejam bons, o eqüitativo é superior“. Vai além: “o que faz surgir o problema é que o eqüitativo é justo, porém não o legalmente justo, e sim uma correção da justiça legal”. “Por isso o eqüitativo é justo, superior a uma espécie de justiça – não à justiça absoluta, mas ao erro proveniente do caráter absoluto da disposição legal. E essa é a natureza do eqüitativo: uma correção da lei quando ela é deficiente em razão da sua universalidade”. “Torna-se assim bem claro o que seja o eqüitativo, que ele é justo e é melhor do que uma espécie de justiça. Evidencia-se também, pelo que dissemos, quem seja o homem eqüitativo: o homem que escolhe e pratica tais atos, que não se aferra aos seus direitos em mau sentido, mas tende a tomar menos do que seu quinhão embora tenha a lei por si, é eqüitativo (nosso grifo); e essa disposição de caráter é a eqüidade, que é uma diferente espécie de justiça e não uma diferente disposição de caráter”. O texto que parece confuso tenta explicar a equidade e torná-la superior à Justiça em si quando esta é técnica e legalmente aplicada. Mas é na Retórica (e muito sintomático que seja nesta obra, e não na outra, que o raciocínio venha mais bem terminado!) que o Estagirita explicita bem seu raciocínio: 167 “eqüidade deve ser aplicada às ações perdoáveis; e ela deve nos fazer distinguir entre ações criminosas em uma mão e erros de julgamento, ou infortúnios, na outra (um ‘infortúnio’ é um ato, não devido à maldade moral, que acarreta resultados inesperados: um ‘erro de julgamento’ é um ato, também não devido à maldade moral, que tem resultados que deveriam ser esperados: um ‘ato criminoso’ tem resultados que deveriam ser esperados, mas é devido à maldade moral, pois é fonte de todas as ações inspiradas por nossos apetites). Equidade comanda-nos a sermos misericordiosos com as fraquezas da natureza humana; a pensar menos nas leis e mais nos homens que as emolduraram, e menos no que disse o legislador e mais no que ele quis dizer; não considerar só as ações do acusado mas sua intenção, não este ou aquele detalhe tanto quanto a história inteira; não perguntar o que um homem é agora mas o que ele 165 (Ética a Nicômaco 1132a 20) (Livro V 10) 167 (nossa tradução – Britannica 1989 - Aristotle II 9, 1374b) 166 135 sempre foi ou usualmente é. Comanda-nos a lembrar benefícios ao invés de danos, e benefícios recebidos ao invés de benefícios concedidos; a sermos pacientes quando estamos errados; a por fim a uma disputa por negociação e não por força; a preferir arbitragem a litigância – pois um árbitro guia-se pela equidade de um caso, um juiz pela lei estrita, e arbitragem foi criada com o expresso propósito de assegurar força total à equidade”. Alguns juizes e juizas leram o texto com olhar próprio e adotam um tipo de equidade bem seu e preso aos seus próprios padrões e paradigmas. E vale um comentário por ora: todos nós já assistimos a filmes americanos sobre guerra em que há o claro contraste entre os que, de um lado, no Quartel General, têm a visão do todo num grande mapa e controlam o cenário com miniaturas de regimentos, esquadras, tanques, navios etc e/ou alfinetes com a cabeça colorida identificando as próprias forças e as do inimigo, e estão confortavelmente instalados em um escritório em que mortes e baixas são assepticamente classificadas pela odiosa expressão “casualties of war” e apenas consideradas para efeitos estatísticos e, de outro lado, no campo de batalha mesmo, as futuras casualties of war, as partes que se defrontam no calor da contenda que estão com sono, falta de higiene, fome, desconforto, dor, medo, valentia, bravura e lutam por palmo de terreno sentindo o hálito do inimigo e sofrendo barbaramente. Morrem, matam, são mutiladas, presas, vão para o Hospital e para Campos de Concentração e estão no centro do fato, geográfica e historicamente muito distantes dos mapas nos quais tais fatos são controlados. Esta é a distinção que fazemos entre a atitude dos juizes e juizas, o processo em si e as partes que se defrontam numa contenda judicial. Os juizes e juizas estão no quartel general, generalizando e abstraindo, e enquanto tomam seu café recém feito analisam os fatos metidos em roupas limpas em ambiente amplamente protegido; na frente da batalha os advogados e as partes sofrem na pele as agruras da contenda. Mais, não nos parece que juizes e juizas constituam-se em integrantes de um típico “quartel general” nem pelo seu desejo nem pelas disposições dos diversos Códigos de Processo. Os papéis foram sendo assumidos e inexplicavelmente aceitos pelos integrantes do meio jurídico, mas que têm que mudar, retornar ao seu estágio original e adquirir mais normalidade no trato diário, no relacionamento e no envolvimento, ganhará o Processo! E a Justiça! É muito fácil à distância tomar decisão no quartel general: vidas podem ser salvas, batalhas podem ser ganhas; mas erros de interpretação geram problemas tremendos, sofrimento e mortes desnecessárias, mortes de pessoas saudáveis que morrem sem saber por quê, vidas que não serão repostas. “A representação da dor não é o mesmo que o padecimento dela” dizia Nietzsche.168 168 (1978 pág 98). 136 Juizes e juizas têm que ter a visão distante do conjunto como de fato têm, mas não podem se olvidar de ir ao encontro dos fatos concretos para conhecê-los e saber se, de fato, os fatos reais batem com as crenças e as proposições que se referem a estes fatos reais e, portanto, se estas proposições que referem os fatos são verdadeiras ou falsas, e, mais se a norma valente é mesmo aquela, e daquele jeito, aplicada ao caso em tela. Este é um ponto no qual colocamos nossa maior ênfase. Quem mais que Napoleão ou Patton ou Rommel ou Péricles ou Guevara praticou com maestria esse papel? Todos os que se implicam sinceramente. Todos que não se esqueceram: endurézcase siendo tierno. Na vida real e negocial, por exemplo, há diferenças entre delinear, planejar a estratégia e a tática numa empresa e a auditoria dessa estratégia e a auditoria dessa tática, ou seja, a verificação entre o previsto e o real. Há mesmo enorme confronto entre as pessoas de campo (gerentes, executivos, vendedores, promotores, por exemplo) e os planejadores que não abandonam as suas mesas de escritório. E este é um dilema que precisa ser enfrentado internamente. Há mesmo teorias em Administração de Empresas que apregoam a morte da estratégia e a supremacia única da tática, o que, se nos parece exagero, é compreensível, pois os que trabalham no campo sentindo-se desassistidos, verificando in loco que na prática a teoria, muitas vezes, é outra, rebelam-se e querem para si o controle da situação para minimizar seus prejuízos e perdas. Trazendo a discussão para o campo jurídico, insurgimo-nos veementemente contra a solução meramente técnica e positivista do processo. Ela pode condenar à morte uma pessoa inocente; pode manter, como apresentado no início deste capítulo, esta condenação injusta mesmo quando surgem novas possibilidades de prova não existentes à época do processo em nome de uma regra que afirma que um processo tem que inexoravelmente chegar a um fim (algo que deve se realizar), sem atentar se este fim (o que deve se realizar é o término do processo) será ou não satisfatório: é a inversão que sustenta que um processo tem que encontrar sempre e necessariamente, a qualquer custo, o seu fim e não que um processo tem que restabelecer o mais harmoniosamente possível justiça entre as partes. Aliás, é tautológico perguntar: qual o fim do processo? E ter como resposta: o fim do processo é o seu fim! Há outro aspecto muito interessante a agregar. O sentimento vale-se de instrumentos para prosseguir em busca de sua verdade. Um deles são os lugares comuns, os topoi, por outros chamados ars inveniendi, euresis, inventio, e tantos outros, que se úteis carecem todavia de rigor lógico. Aristóteles em seu livro “Tópicos” estabelece padrões de raciocínio comuns, lugares comuns mesmo, que podem ajudar a tomada de posição. Este bom senso comum é largamente usado por toda a gente para se 137 manifestar. É a sabedoria popular. Dizia o Mestre grego: “nosso tratado se propõe encontrar um método de investigação graças ao qual possamos raciocinar, partindo de opiniões geralmente aceitas, sobre qualquer problema que nos seja proposto, e sejamos também capazes, quando replicamos a um argumento, de evitar dizer alguma coisa que nos cause embaraços”. Há cuidados com a experiência (banhos eram evitados, na antiguidade (até Nostradamus?), por fazerem mal à saúde; aquela que está menstruada não pode lavar o cabelo; Ruy Barbosa, nossa arguta águia, em 1903, era contra a vacina; é mortal misturar leite e manga; quem está resfriado não pode comer chuchu, abóbora e mandioca; é obrigatório tomar água depois de tomar sorvete para que este não faça mal ao corpo) e com crenças, misticismo e religião (passar embaixo da escada dá azar; cruzar com gato preto dá azar; quebrar espelho sete anos de azar; vassoura atrás da porta afasta visita chata). Mas, em geral, argumentos tópicos são bem aceitos pelas pessoas e geram entendimento e aprovação imediatos, pois têm uma carga sentimental de alto valor afetivo e efetivo. São, por isso, muito utilizados pelas pessoas na sua tomada de decisão, mesmo que não o sintam. O assunto é importante e mereceu desde a antiguidade a atenção de vários e prolíficos autores169: as premissas geralmente aceitas como verdadeiras pelas pessoas integrantes de uma sociedade, têm alto valor probatório e são recepcionadas imediatamente como mensagem sábia e não controversa. São raciocínios confortáveis que nos são transmitidos pela tradição, principalmente familiar, daí a opinião carinhosa dos avós etc., e são convenientes, porque já testados, conferem segurança a quem deles se utiliza na hora certa ou quando deles se vale o argumentador. Tão usado nos negócios por exemplo a célebre conta de que se valem os que querem fechar um negócio que está entravado e prestes a se concretizar se sofrer um “empurrãozinho” : queres 10 e eu 12? Somamos e dividimos por dois e pronto, alcançamos a conta justa: nem pra ti nem prá mim! Quem resistir há de? Divulgado pelo Professor Tércio Sampaio Ferraz Jr. o trabalho de Theodor Viehweg , Tópica e Jurisprudência, veio aumentar o conhecimento a respeito do tema:170 “A própria interpretação dos fatos exige o estilo tópico, pois os fatos de que cuida o aplicador do direito, sabidamente, dependem das versões que lhes são atribuídas. Ademais, o uso da linguagem cotidiana, com sua falta de rigor, suas ambigüidades e vaguezas, condiciona o jurista a pensar topicamente”. Palavras como ‘maioria’, ‘consenso’, ‘honestidade’, ‘bem comum’, ‘boa fé’, ‘ingenuidade’, ‘serenidade’, ‘objetividade’, ‘dignidade’, ‘soberania’, 169 170 (Cícero, Leibniz, Vico, Perelman...) (Introdução ao Estudo do Direito 2001 pág 325) 138 ‘interesse da justiça’, ‘justiça’, ‘imparcialidade’, etc., incorporam-se ao nosso ideário e ficam agarradas a ele condicionando-nos sentimentalmente. Mesmo que sem grande significado, dada a vagueza do conceito e a pouca profundidade com que nos dedicamos ao seu verdadeiro conteúdo, estas palavras quando pronunciadas têm o condão mágico de impressionar e criar unanimidade.171 Os topoi valem só por si e propiciam imediata compreensão intersubjetiva do que se afirma. É apenas o consenso que confere força persuasiva a eles? Uma voz isolada pode ser ouvida? Há, assim, também outro aspecto a considerar, o da Autoridade. Como explica Hannah Arendt 172 em seu estonteante ensaio “O que é Autoridade?” a autoridade sempre exige obediência entre o que manda e o que obedece pois sua relação é de hierarquia, nunca de persuasão nem de força (menos ainda de coerção). O verdadeiro conceito do termo é romano e é precisamente a autoridade que se constitui em um dos pilares básicos desta civilização tão rica e pujante. “No âmago da política romana, desde o início da República até virtualmente o fim da era imperial, encontra-se a convicção do caráter sagrado da fundação, no sentido de que, uma vez alguma coisa tenha sido fundada, ela permanece obrigatória para todas as gerações futuras”, diz-nos Arendt. O conteúdo político da religião romana e o culto aos ancestrais mostravam a intenção: religião como re-ligare, a tremenda ligação com o passado, até o momento em que a pedra angular, o instante da fundação, era o lançar para o futuro, o projetar-se para toda a eternidade. “Auctoritas deriva-se do verbo augere, aumentar, e aquilo que a autoridade ou os de posse dela constantemente aumentam é a fundação”. Por transmissão direta (tradição) daqueles que tinham depositado (e lançado) a pedra fundamental, os mais velhos e mais experientes recebiam a autoridade e não o poder: enquanto o poder reside no povo, a autoridade repousa no Senado.173 Ou seja, o Senado não ordena, não dá ordens, mas dele emanam posições e posturas que devem ser obedecidas porque vêm carregadas de certeza e experiência: imprudente seria não obedecer. É o costume, a memória do passado, aquilo que foi realizado com excelência que volta para ser refeito e mantido na sua bondade. “Ao contrário de nosso conceito de crescimento, em que se cresce para o futuro, para os romanos o crescimento dirigia-se no sentido do passado”. É o enaltecimento da tradição. O que uma geração preserva de bom passa para a outra; a 171 Claro que para nós tais topoi são Sentimentos aceitos e camuflados por palavras. (Entre o Passado e o Futuro 2001 pág 127 e ss) 173 (Cícero, De Legibus, 3, 12, 38) 172 139 autoridade dos pais fundadores passa pelos séculos intacta e prestigiada como um legado respeitável que dá força e legitimidade para os atos seguintes. É a tríade romana da religião, da autoridade e da tradição, base do poderio romano e da pax romana; é também a base de outros sistemas duradouros e, assim, motivo da romanização da Igreja Católica, Apostólica e Romana. Outro exemplo também impressionante é o Estados Unidos da América e sua devoção aos pais fundadores. Outro exemplo candente e estatístico é o das empresas que depois de muito tempo da sua fundação se afastam da idéia inicial que se lhe imprimiu seu fundador: é residual o número das que sobreviveram longe da sua essência inicial! Há desprezo pela tradição e enorme desrespeito para com a autoridade, o que é hoje a parte visível da questão, mas, inegável, a aderência de “verdades” que oralmente são passadas, geração pós-geração, e encampadas pelas novas gerações como demonstração absoluta e rigorosa de um norte que deve ser seguido, sem que o jovem saiba que esse seu lançar-se para o futuro está profundamente enraizado no passado. Há que ter cuidados: Nietzsche já alertava174 “Confia em teu sentimento!” – Mas, sentimentos não são nada de último, originário, por trás dos sentimentos há juízos e estimativas de valor, que nos foram legados na forma de sentimentos (propensões, aversões). A inspiração que provem do sentimento é o neto de um juízo – e muitas vezes de um juízo falso ! – e, em todo caso, não de teu próprio juízo! Confiar em seu sentimento – isto significa obedecer mais ao seu avô e à sua avó e aos avós deles do que aos deuses que estão em nós: nossa razão e nossa experiência”. Sempre vale o alerta175 e por ser de autoria de quem é tal aviso deve ser tomado em consideração, embora mais como advertência e tema de reflexão que como norte absoluto. Se a herança genética nos conforma (jogados os dados e sabida a combinação com que serei configurado, meu DNA determina não só como serei fisicamente, mas determina minha alegria, minha depressão, quão inteligente serei e em que campo, se serei médico ou advogado, esportista ou não, se terei liderança...) e se há enorme influência do meio (adotandose como adotamos que o meio é construído por outros e assim me é imposto, da mesma maneira que construo minha realidade e tento impô-la ou escondê-la dos outros) eu sou meu passado feito presente, meu presente feito meu futuro e não há como fugir. Não posso reescrever minha biografia nem usando minha vontade mais poderosa. Apenas posso influir no futuro trocando realidades, trocando construções, ou seja, se o homem 174 (1978 pág 163) (Nietzsche mesmo tendo lido Hume, um dos que antes de Jung soube diferenciar muito bem razão de sentimento e dar a cada uma das faculdades sua verdadeira função, previa, mas não conhecia a força do sentimento no seu fundamento como o conhecemos hoje e como ele se distinguia da razão) 175 140 não é um animal racional, mas sim um animal semiótico, a saída está em computar, computar, computar... Fora da comunicação entre os humanos, pois, não há possibilidade de consenso, evolução e progresso. E comunicação com Paideia que comunicação sem Paideia mais confunde e atrapalha, pois o que passa entre pessoas que estão em zonas de intersecção diferentes não gera qualquer aproximação, ao contrário, produz afastamento. Aqui somos obrigados a introduzir uma palavra que não foi usada até agora: Amor. No último capítulo falaremos mais do tema. Mas deixamos a porta aberta lembrando de BERTRAND RUSSEL (1872-1970), o matemático, o lógico, o formalista, o filósofo que dizia: “Busquei, primeiro, o amor, porque ele produz êxtase – um êxtase tão grande que, não raro, eu sacrificava todo o resto da minha vida por umas poucas horas dessa alegria” e que tinha “o anseio de amor, a busca do conhecimento e a dolorosa piedade pelo sofrimento da humanidade” como suas paixões. * 5.4- substituição das partes pelo juiz Nos dias de hoje em que decisões judiciais são relacionais, ou seja, as partes e sua manifestação de vontade não contam mais, pois o que vale é a visão do juiz e da juíza, são eles que contextualizam o ambiente e o momento em que o fato se deu e declaram (determinam) como é que pessoas cultas e avisadas, previsíveis mesmo, se portariam em situações daquela natureza no ver deles, magistrados; com esta postura, que varia de juiz para juiz, estes temas da equidade e do sentimento na tomada de decisão adquirem enorme e especial importância. As relações cíveis, trabalhistas e até penais (estas bem menos apesar das tentativas da igreja, dos chamados progressistas e afins) estão permeadas pela nova mentalidade. É uma nova equidade, estranha, não aplicada ao caso concreto; é uma equidade privada, própria, que abarca todos os casos concretos parecidos entre si. Tudo fruto de uma generalização e de uma abstração, processo mental que abarca todos os casos que caem naquela generalização e naquela abstração de acordo com critério prévio do juiz e da juíza. Alguns relacionam os eventos na órbita do seu cenário imediato, às vezes mediato, mas há outros que acham mesmo que o bater de asas de uma borboleta na Amazônia está intimamente conectado com o tufão na China! Assim, fica-se à mercê do juiz e da juíza, mas dentro do âmbito enormemente ampliado do poder discricionário daquelas pessoas que, pelo menos em Primeira Instância, é usado hoje de maneira imprevisível. 141 Os antigos modelos estão de ponta cabeça: a cláusula Pacta sunt servanda, base do contratualismo, está quase derrogada e sua antiga exceção, a cláusula (escrita ou não no contrato) Rebus sic stantibus, cláusula aliás extremamente eqüitativa, está, agora, reconhecida, confirmada e tornada geral por várias leis (CDC, NCCi, leis trabalhistas, etc). Mas mais do que isso, fica institucionalizada a ampla possibilidade – maior ainda depois que entrou em vigor o NCCi - da atuação jurisdicional abarcante e compreensiva por parte do juiz e da juíza. O que está em jogo agora é o antigo conceito de liberdade (um acordo de vontades faz lei entre as partes) e a própria concepção de livre arbítrio, nos quais o juiz e a juíza não mais acreditam. Os sujeitos de Direito são vistos como objetos (e o contrato de adesão a face perversa desta situação) e a sociedade não é mais a soma de seus indivíduos, mas um quid que os suplanta e supera. O marketing cria situações de consumo e provoca ‘vontades’ que antes não existiam ou sem ele não existiriam: via marketing alguém apresenta algo e lhe confere valor; a sociedade é seccionada em tantas tribos quantas interessem aos detentores das ofertas de mercadoria e serviço, são criados padrões a serem seguidos pelos integrantes da tribo e cada tribo é homogeneizada em comportamento, rostos, estilo, jeito de vestir etc. Mesmo produtos exclusivos, caros, raros e com pouca oferta são menos o que são, produtos, e mais o que não são, exibição de poder e exclusividade, prova de bom gosto, privilégio e honra pessoal, ou seja, de dinheiro. Tudo uma enorme ilusão criada pelo marketing. Não há maior prova de falta de liberdade que o consumidor poder escolher uma dentre seis marcas de jeans, por exemplo! O sujeito é definitivamente um objeto manipulável e instado a consumir, exigir novidades e ostentar. Generalizando tribos o jurista partiu para os grupos (aliás, fenômeno lingüístico também, pois sãos grupos que trazem dentro de si a ilusão de intersubjetividade porque seus integrantes pensam que se entendem!) e verificou, sempre dentro de seu critério atrás comentado, que há grupos que se relacionam com outros grupos e neste relacionar-se podem uns por em risco outros. Criou-se, assim, a proteção ao hipossuficiente, o despreparado e carente de proteção imediatamente referido ao meio social de que provém. É Tércio Sampaio Ferraz Junior 176 que nos traz comentários ao tema. Deste modo “a livre vontade como fonte de direitos e deveres perde peso e valor. Crescem, ao contrário, os direitos e deveres não voluntários, ou seja, o que vincula as partes é não tanto o compromisso (moral e livre), mas o cálculo de custo/benefício decorrente do engajamento”. 176 em Estudos de Filosofia do Direito (2002 – Direito e Liberdade – págs 122 e segs) 142 Pessoas vistas como objeto passam a ser percebidas em outra perspectiva. Objetos não contratam, não manifestam vontade; são tratados como se. Como se contratassem, como se pensassem, como se previssem. “No momento em que o contrato passa a um distribuidor de riscos, isto é, assume o sentido de um instrumento que aloca riscos, e a prática negocial usa a técnica jurídica como uma espécie de exercício de previsão de consequências possíveis em termos de custo/benefício, o sentido da liberdade deixa de se localizar na vontade e passa a repousar naquilo que as partes como homens razoáveis e calculadores (isto é, que não podem estar visando a interesse que redunde numa desvantagem, não importando o que tenham, de fato, querido), teriam presumivelmente acordado, ao fazerem uma série de previsões e provisões em caso de ocorrência de infortúnios”. Amplamente justificada, pois, a proteção aos hipossuficientes, nesta nova visão, pois são estes os que calculam menos segundo o que pensam os juizes. Objetos não contratam, não pensam, não prevêem consequências; os juizes e juizas, estes sim, como sujeitos e seres pensantes que são substituem as partes e reescrevem os ajustes, acordos e contratos; aliás, o liberalismo puro enquanto individualismo está abolido por esses juizes e juizas que, prezando a própria independência, como dito antes, exacerbam sua condição de indivíduos livres enquanto desconhecem a dos outros (que, aliás, submetem, em última análise). O juiz e a juíza vão, assim, em caso de conflito, reescrever o cenário como se ele fosse assim e não como realmente é ou foi. As partes serão reinterpretadas como se fossem seres calculistas e prudentes que em dada situação só poderiam agir assim e não da maneira como agiram (imaturos, infantis) e por isso o conflito. É a quintessência do dever-ser ao sabor do sentimento, das convicções e da experiência particular do juiz e da juíza em casos desta natureza. Do ser extraem imediatamente como deveria ser relacionalmente e sentenciam. De per si. As partes são abstraídas e não existem mais como indivíduos. Quem contratou não existe mais por ato de secção do juiz e da juíza. Não há mais sujeitos mas objetos, e objetos totalmente reformulados, seres fictícios, recriados pela visão do juiz e da juíza. Antonio não é Antonio nem um qualquer mas um A formal e ideal, Bendito não é Bendito nem um qualquer mas um B formal e ideal, e assim por diante. Está criado o teatro. As partes são extraídas do cenário real e são jogadas num ambiente pleno de lugares comuns (topoi): previsão correta, cálculos justos de custo/benefício, aspectos sociais a serem atingidos, funções sociais a serem desempenhadas, justiça social a ser alcançada, compensação, simplificação, teria-sido-assim-se-tivesse-sido-comodeveria-ser, ai-como-é-bom-meu-mundo-quando-a-minha-imaginação-orecria; a seguir, as partes na ação são relacionadas com partes e pessoas não 143 integrantes no processo, inventa-se relação dominante/dominado, mais forte/mais fraco, busca-se razoabilidade de conduta, tudo isso para que a cada um seja atribuído estritamente o papel fictício e previamente valorado que lhe cabe (no processo mental do juiz e da juíza) e não o que efetivamente viveu e representou e a tudo isso o juiz ou a juíza adiciona a sua inclinação ideológica e os móveis da sentença (sentimento) o que deixa, claro, sempre, uma das partes, ou ambas, zangada com o resultado. Dentro do padrão da independência e livre convencimento do juiz chegamos ao Direito Lotérico! Casos em que se discutem o direito de propriedade, posse e usucapião, contratos de parceria, casos trabalhistas, casos de contrato em área de saúde, seguros etc têm sido modificados pela intervenção cirúrgica do juiz e da juíza que ainda proíbem aumentos de preços ditos por eles abusivos, reescrevem cláusula de correção monetária trocando um índice por outro, proíbem fusões, cisões, incorporações e venda de empresas alegando direito de concorrência, protegem inquilinos inadimplentes, protegem devedores contra credores, acham que quem entra com ação de consignação em pagamento em princípio tem razão, e assim sucessivamente, alterando quadros pintados pelas partes (que já são, como se sabe, distantes da realidade!) como se cada quadro fosse analisado e o juiz e a juíza pegassem os quadros originais, pusessem-nos no cavalete de volta e eles fosse totalmente repintados e reformulados pelo pincel judicial de acordo com estereótipo previamente traçado por eles, ou seja, um quadro na petição inicial, outro na contestação, outro, o definitivo, o verdadeiro, na sentença. A responsabilidade judicial e o espectro de ação foram ampliados: enorme a possibilidade que se abriu. Como isto se processará? Como reagirão as partes? Um primeiro resultado é a enorme confiança inversa que se instalou em quem não quer cumprir com o que contratou ou que quer se valer de sua condição de hipossuficiente para tirar vantagens: ação judicial é o nome da vantagem! Como ficam as grandes corporações que tinham um cálculo de risco e agora se defrontam com outra realidade? Como ficam os verdadeiramente desprotegidos, os locadores que não recebem aluguéis, os que vendem, entregam e não recebem, os que sofreram dano, os que se vêm repentinamente obrigados judicialmente por prestações com que não contavam? Como reage a parte ofendida? O agir justo, a virtude, o ser justo, as ações justas, o pensar justo, o sentimento do justo estão em crise na sociedade. A justa e presta recomposição, nem que demore (o que é outro problema), não vem como deveria vir, vem de outra forma, ou definitivamente não vem. Vale a pena a malandragem. Grassa impunidade. O sistema garante. Afinal ele é lotérico. 144 Esta maneira de ser afugenta vários investidores internacionais que preferem bem investir suas economias em outras partes do globo onde se sentem mais seguras. Pesquisas de opinião são feitas e servem de base para aconselhamentos e tomadas de decisão. A consultoria norte-americana A. T. Kearney, uma das mais prestigiadas, divulgou 177 mais um de seus estudos que visa mostrar qual o grau de confiança dos investidores internacionais nos diversos países onde podem alocar recursos. De acordo com seus critérios, 54% dos investidores considera o Brasil um local de alto risco para se colocar dinheiro, contra 41% que considera o risco médio e 5% que acredita ser baixo o risco. Ainda de acordo com o estudo, que foi realizado com base em uma pesquisa junto às mil maiores empresas do mundo todo, o que mais preocupa o investidor quando ele pensa em aplicar dinheiro no Brasil são as regras do governo (72%). Em segundo lugar está o risco-país (67%), seguido pela instabilidade da moeda (63%), distúrbios políticos e sociais (62%) e a ausência de Justiça (34%). Como esta pesquisa se refere a um período bem crítico havido entre o fim do Governo de Fernando Henrique Cardoso e o início do de Lula da Silva, período este que foi bastante atenuado com a postura do novo governante, é de se supor que a ausência de Justiça seja praticamente a única grande reclamação das mil maiores empresas do mundo quando do novo estudo (já se sabe pelas declarações recentes dos grandes lideres empresariais, que enquanto as presentes linhas são escritas178, a grande grita será contra a falta de visão desenvolvimentista do novo governo, a que se adicionará a já divulgada veemente reclamação contra a Justiça, que é, aliás, uma das travas ao desenvolvimento). Para que se tenha uma idéia do que isso significa na prática, anexamos a lista dos dez países mais confiáveis para se colocar dinheiro novo, aquele que busca novos negócios, na opinião dos investidores pré-citados no referido estudo da A. T. Kearney: 1 - China 2 - EUA 3 - México 4 - Polônia 5 - Alemanha 6 - Índia 7 - Reino Unido 8 - Rússia 9 - Brasil 10 - Espanha 177 178 dia 17 de setembro de 2003 – janeiro de 2004 – 145 Temos na pesquisa acima o resultado prático e efetivo de um conjunto de ações que visam buscar a confiança de investidores e, claramente, como são vistos pelos mil maiores empresários do planeta os países interessantes. Para quem precisa de negócios há muito a fazer. E uma das mais importantes tarefas está em tornar a Justiça confiável. * O juiz ou a juíza fará bem em substituir qualquer homem e sua relação? Fará bem em, por romantizá-lo, proteger o hipossuficiente? Haverá suficiente discussão, compreensão e entendimento – cá e em outras partes do globo – sobre o que seja “social”? E o que neste campo há de importante para impactar outros campos, notadamente, o negocial? Há sentimentos maduros, e mesmo definidos, nesta área? Ou, ao revés, estarão cada juiz e cada juíza projetando nas sentenças os sentimentos individuais que têm a respeito? Quem precisa ser protegido? Quem precisa proteger? De que homem se fala, afinal? 6 - Compreensão jurídica e capacidade jurídica de arcar com as consequências dos próprios atos. 6.1- estabelecimento de bases O tema é genérico e visa englobar num mesmo capítulo atos e fatos jurídicos, abrangendo de uma penada só, todo e qualquer ato humano, desde a capacidade de contratar até a de julgar, decidir. Não abordaremos aqui, por fugir do escopo, o estudo da Liberdade e as sucessivas alterações do conceito desde que os gregos antigos “sabiam e podiam” até os dias de hoje. Vamos, ao revés, levantar alguns pontos sobre a compreensão jurídica dos diversos sujeitos e daí a sua capacidade de arcar com as conseqüências dos próprios atos que, livremente ou não, tomam, e com isso preparar o ‘salto’ para a conclusão do último capítulo. O problema da Justiça se imbrica na possibilidade de um não afrontar o sentimento de justiça do outro: como já dito, o que foi magoado acha mais fácil gritar por Socorro: ‘Houve injustiça! Quero Justiça! Quero reparação!’ que requerer antecipadamente o tema da Justiça ela mesma. É mais fácil um corpo ferido pedir Justiça depois que um corpo são exigi-la antes. É mais útil um corpo doente pedir remédio que um corpo são tomar remédio por prevenção do que possa vir. 146 Fazendo um Pro Memória, pensamos que a realidade para nós é uma percepção na mente e é construída (inventada) pelo ser do homem (Não é em Montaigne, mas em mim mesmo que acho tudo o que nele vejo )179, que Valores nas coisas e nas normas são os homens que põem; que o Sentimento (O homem se convence, em geral, melhor com os argumentos que ele mesmo encontra do que com os que ocorrem ao espírito dos outros)180 é encarregado de decidir e escolher dentre as possibilidades que nos traz a Razão (se caso ou não com esta moça, se dou um presente, e qual presente, para minha comadre Silvia, se alugo ou não este imóvel, se faço a lei deste modo ou de outro, se sentencio nesta ação desta forma e não daquela); que a Razão não escolhe nem decide (O coração tem suas razões, que a razão não conhece: percebe-se isso em mil coisas181); que tais atitudes são individuais e que está na computação (Todos erram tanto mais perigosamente quanto cada qual busca uma verdade. Seu erro não consiste em seguir uma falsidade, mas em não seguir outra verdade182) a saída do animal semiótico que naturalmente se comunica; que o Sentimento é um meio de comunicação; que são a sobrevivência e a evolução os únicos Bens do homem; que são Fins do homem sobreviver e evoluir e que sobreviver e evoluir, nesta acepção, tem um significado individual mas também, com igual peso e valor, o de sobrevivência e evolução da espécie; que a suprema Justiça está em ter à disposição o ferramental que possibilite a consecução do Fim do homem; que justo é tudo o que facilita a obtenção do Bem do homem e que injusto é tudo o que impede o homem de alcançar seu Bem. * 6.2- Há Bem na Ciência? Algumas descobertas espantam a humanidade: uns fogem das conseqüências do que se desvelou e, outros, perplexos, maravilham-se com o que virá! É o que acontece neste momento histórico em que o cenário sofre enorme e radical mudança paradigmática. Os conhecimentos científicos acumulados até agora podem propiciar uma verdadeira revolução. Os estudos antes visavam “melhorar” a natureza: era o apoio, o suporte para que as coisas se desenrolassem melhor. Uma técnica nova de produção agrícola, um remédio, combate às doenças, busca da maior felicidade para o homem, uma existência sem dor, ou, pelo menos, com dor minorada e 179 Pascal – 64, pág 50, 1979 – Pascal – 10, pág 40, 1979 181 – Pascal – 277, pág 107, 1979 182 – Pascal – 863, pág 266, 1979 180 147 mais e melhor abundância. Atuava-se, porém, perifericamente. Não havia a possibilidade de se agir por dentro dos eventos. O cientista estudava, compreendia e ajudava a natureza. Ajudava a natureza a se ajudar no processo dela, um processo evolutivo, em que a seleção natural é o verdadeiro e único caminho, em que a excelência é a capacidade de adaptação ao meio. Agora não: há pela primeira vez a possibilidade de o homem interferir no processo: ele pode criar, ele pode ajudar a criação, pode saltar o processo evolutivo: não é mais um coadjuvante, é autor! Pode recriar a soja; pode estimular em laboratório, por exemplo, um órgão do corpo humano e transplantá-lo depois; pode clonar um ser vivo. A coisa, entretanto, vai longe, além do físico. Pode-se detectar uma causa física - é o que se estuda no momento - para um dano psíquico e...zás-trás : leve alteração no DNA e some, por exemplo, uma depressão ! Os bebês podem ser manipulados antes de nascerem, renasce a eugenia! Há estudos que apresentam a tese de que a mulher se alcoólatra o é por transmissão genética e que não é, neste caso, responsável juridicamente por seus atos. Há estudos que informam que os gens determinam se um é líder, ou leal, ou generoso e que tal transmissão genética, puramente genética, pode ser abrandada ou exacerbada pelo meio ambiente. Imensa alteração no campo ético (Há liberdade? Há livre-arbítrio? Há responsabilidade? O que, afinal, já está escrito, predeterminado? O que poderá ser escrito, reescrito? Que é direito à vida? Que é, afinal, vida?). Tal poder, nunca antes experimentado, provoca enorme insegurança nas pessoas. E surge uma insuspeita religiosidade mesmo no mais empedernido agnóstico: é possível play God? O que Deus pensará desta concorrência? Era para ser assim? Aonde isto irá? Haverá limites? O Homem deixará de ser Homem para ser outra coisa? Será bom brincar com fogo? Se foi assim que Deus fez, quem somos nós para modificar? A ignorância humana está exposta provocando a reação politicamente correta: é melhor parar! Outros, ligeiramente mais entusiasmados, pedem para que não se pare, mas que, também, não se vá tão longe! E há outros, ainda, que não experimentam qualquer limite, que querem ir até aonde for possível. Como analisar? Pelo aspecto opinativo – doxa – a tomada de posição é inevitável e quer do ponto de vista do interesse e da sobrevivência, quer do ponto de vista do medo ao desconhecido, o posicionamento vem carregado de emoção. 148 Do ponto de vista da Sofia a análise é mais sutil. Há que se propor uma revisão do conceito do Homem e trazer a lembrança dos ideais, dos fundamentos ideais que tentaram descrever o Homem há séculos atrás. O mesmo deve acontecer com o método de abordagem deste Homem. Além, a ciência (e a Ciência do Direito está aí) deve ser perscrutada para saber em que medida ela contribui para o progresso humano; mais, ela mesma deve ser analisada para que se confie que a ciência serve mesmo com propósitos sadios ao progresso humano e, bem assim, saber se ela impacta mesmo a Filosofia. Sabe-se do conceito que tem a ciência e o cientista. Acredita-se que a ciência tenha objetivo ético e seja imparcial nas suas escolhas e que sempre, a todo instante tenha como objetivo o Homem, sua evolução e progresso. Mas será mesmo assim? Citado por Giovanni Reale183 Thomas Kuhn, apresenta a tese de que as mudanças de paradigmas não levam a fins prederteminados e preestabelecidos, e, de modo particular, nega que tais mudanças levem a uma aproximação cada vez maior da verdade em sentido ontológico: Kuhn pensa que o progresso científico é uma forma de evolução análoga à que Darwin considerava típica dos organismos, ou seja, sem a sustentação estrutural de um conjunto de finalidades predeterminadas; como a seleção natural deriva, segundo Darwin, da luta dos organismos pela sobrevivência, assim, através de um conflito que se desenvolve dentro da comunidade científica, se delineia a maneira mais idônea e mais conveniente de praticar a ciência no futuro. Kuhn não considera, assim, que a verdade no sentido ontológico seja progressivamente alcançada pelas mudanças nos paradigmas através das revoluções científicas. Não há na ciência, segundo o autor, um finalismo verdadeiro, um telos, mas assim como os organismos biológicos na sua evolução não caminham para a verdade, mas reafirmam sua sobrevivência e capacidade de adaptação, da mesma forma reage a comunidade científica. A verdade, ou o ajuste entre a inteligência humana e o objeto de sua investigação, é buscada pelos cientistas sempre através da coerência lógica dos vários conceitos de que se valem e da consistência que dão às suas teses através da melhor adequação entre os conceitos e os dados de fato que caracterizam o objeto pesquisado. Não, não ocorre, segundo o autor, o saber por acréscimo, mas, sim, por revoluções, o que contraria a “boa” imagem da ciência até o meio do século passado. 183 (in Para uma nova interpretação de Platão, Loyola, 1997, pg 19), o livro A estrutura das revoluções científicas (1962) 149 E o que é exatamente revolução científica? Como são referidas pelas comunidades científicas? Qual sua estrutura e como se sistematizam? Kuhn enumera seis conceitos fundamentais 184 que visam dar resposta a estas colocações: 1- “o conceito de estrutura de base de todo discurso científico, que se funda sobre “paradigmas”, os quais fornecem aos cientistas modelos para a formulação dos problemas e para a sua solução nos vários âmbitos de pesquisa; 2- “o conceito de “ciência normal “, entendida como fase típica das pesquisas, consistindo em sistemáticas tentativas de fazer os vários elementos, concernentes a determinada ciência, entrar nos compartimentos fornecidos pela educação profissional dos cientistas inspirados em determinado “ paradigma” , e precisamente nos quadros dos paradigmas naquele momento acolhidos concordemente pelos cientistas interessados naquelas temáticas; 3- “o conceito de “ciência extraordinária “, entendida como o momento do desenvolvimento da ciência no qual o encontro de várias “ anomalias “, e a impossibilidade de fazê-las entrar no quadro do “ paradigma “ dominante, põem em crise as convicções tradicionais e anunciam uma subversão delas; 4- “o conceito de “revolução científica “, entendida como complexa passagem da comunidade científica de teorias antes consideradas basilares a novas teorias incompatíveis com aquelas, ou seja, o conceito de revolução científica como “ mudança de paradigma “; 5- “o conceito segundo o qual os cientistas acolhem novos paradigmas por razões que são em certo sentido metalógicas, ou seja, por uma espécie de conversão, promovida por uma “fé”, vale dizer, por uma confiante expectativa de que o novo paradigma seja capaz de resolver problemas que os velhos paradigmas não puderam resolver; 6- “o conceito segundo o qual o progresso científico não se dirige para um fim predeterminado, mas desenvolve-se segundo as opções que concordam com a maneira considerada mais apta de praticar a ciência e fazê-la avançar “ . Esses comentários elucidam a surpresa de alguns que leram recentemente que, nos EUA, o lobby dos criadores de abelhas tinha sido mais eficiente que o lobby dos estudiosos de chimpanzés e que, por isto, a verba de pesquisa do DNA das abelhas tinha sido liberada e que o estudo do DNA dos chimpanzés ficava a espera de melhores dias, com eventual prejuízo do entendimento, por semelhança, de certos aspectos inerentes à condição humana, mas em favorecimento da melhor produção de mel silvestre. Há que se identificar uma relação entre a pesquisa científica e uma ordem ética. 184 (obra citada pág 6) 150 A pesquisa não pode ser desestimulada nem impedida por qualquer meio: nem os princípios éticos já estabelecidos e aceitos poderão ser a mordaça da pesquisa científica, que, segundo Kuhn, vem aos solavancos e conforme as possibilidades e interesses do momento. Se contrário fosse, lembra Lima Vaz185, princípios éticos que visam descobrir a razão profunda da physis, e romper sua mesmice com a liberdade que a práxis permite, seriam a causa da paralisação do movimento que, a partir da necessidade e do diferente, quer, pelo finalismo do Logus, chegar até o Bem. Lembremo-nos que a physis , como alerta Lima Vaz, é dita tou aei ( sempre ) e o ethos é tou pollákis ( muitas vezes ou quase sempre ) . Enorme o desafio, que tem que ser enfrentado, o de se encontrar o caminho que vai da ciência – econômica, política, física, jurídica...- à ética. Sem entrar nos diferentes conceitos que a palavra experimentou com o passar dos séculos, nem atentar para seus diferentes usos conforme a escola do utente, queremos lembrar o seu conceito original, como o aprendemos com Lima Vaz: ethos com eta inicial ou com epsilón inicial. A casa , a morada, o lugar acolhedor é o ethos com eta : é um espaço tomado pelo homem já que não lhe é dado; rompe-se o imobilismo da physis pela ação – práxis – do homem que conquista o que quer e instala o permitido, o proibido e o obrigatório, os costumes, os valores... Ethos anthrôpo daímon, disse Heráclito no seu célebre fragmento. A ação repetida, o hábito, o costume, a forma perfeita e acabada, a autarquia do agente, o controle e o domínio de si mesmo, a contraposição do desejo, a práxis pétrea, este é o ethos com epsilón inicial. O modo de agir do agente, seu caráter ético, é sua exibição. Finalmente um comentário: nossa ética é a que – nos seus contornos maiores – foi desenvolvida por Aristóteles, e tem na praxis sua motivação. Haverá Ética na Ciência do Direito? Serão éticas as leis desta Ciência e éticas as sentenças emanadas do Poder Judiciário? Na discussão com os Sofistas, Sócrates vincula, pela primeira vez, a ciência ao Bem: a intuição de que há uma lei não-escrita, que emana da physis, permeando o ethos, irá marcar o raciocínio. A questão inicial, o confronto, era: Como passar os conceitos aos mais jovens, como educá-los na virtude? Pela educação tradicional ou pela ciência e seus avanços? Sócrates afirma com certeza que não há possibilidade de haver uma ciência do mal e que a aparente neutralidade da ciência não existe, eis que ela é ética por fundamento. A ciência, enquanto fonte de verdade, será, também, fonte de virtude, encerrando-se o pensamento socrático, que cria aí uma nova ciência, baseada integralmente no finalismo do Bem, o que é a primeira forma de Ética na tradição ocidental. 185 Escritos de Filosofia II – Ética e Cultura, Henrique C. de Lima Vaz, 1993 151 Os contraditores desta assertiva continuam, dentre tantos, Cálicles (no Górgias), Trasímaco etc. (República I) e, principalmente, Nietzsche, que com sua teoria de vontade de potência confere à ação um estatuto próprio que a absolutiza e a faz caminhar por si mesma, com seu próprio desideratum, sem nenhum vínculo com a virtude (e que deságua na tese de Kuhn, como vimos). A areté – a virtude – em Sócrates comporta, segundo Lima Vaz, duas alternativas: ciência sobre a areté e ciência constitutiva da areté . De um lado a ênfase é posta sobre a palavra ciência, mandando que ela “estenda sobre a praxis virtuosa suas exigências de coerência e rigor “. De outro lado, é a própria “praxis que reclama para si um tipo de ciência adequada às suas exigências originais”. Cinde-se a posição socrática: Platão e Aristóteles, a partir daí, seguem trilhas diferentes, como se sabe. O primeiro, em teoria, conectando ciência e areté, desdobra em ontologia do Bem o logos socrático da virtude, colocando tudo sob a égide da mesma justiça, do mesmo fim. O Estagirita, fixando-se na prática - praxis - do homem enquanto portador do Logos confere ênfase à sabedoria prática (phrônesis, que antes de prudência é sabedoria, astúcia). Dois modelos fundamentais e conforme a questão socrática: um dedicado à ética da ciência, com princípios e normas totalmente conectados ao mundo das Idéias e outro prevendo uma ciência ética, cujo Logus prático volta-se para o bem viver e a felicidade do homem. Nietzsche, em modelo próprio, queria vincular a ciência ao que fosse útil para a sobrevivência do homem; o resto considerava inútil! A Téchne, à margem da physis em que se inspira, endeusa o Demiurgo que obra a physis como a imitação mais perfeita e acabada do modelo que é a Idéia. Surge ela com inelutável força e assume um papel que não possuía antes. O fazer, o produzir, seduzem o homem, que a par do logos contemplativo, assume o logos construtivo da ciência moderna, com indisfarçável satisfação. A physis, como se exibia aos sentidos, servia de paradigma; agora a Nova Natureza, sobre a qual atua a nova ciência, ocupa o lugar da antiga physis e é o domínio da verdade empíricamente verificável com status de intersubjetividade que lhe dá âmbito global. O ethos que deveria se submeter ao universalismo do logos da ciência na Ética Clássica, agora cede espaço ao experimento no qual se exerce a praxis que constitui o ethos, já remodelado pela razão técnica-científicaexata moderna que é estruturalmente matemática, verificável, inteligível e propriedade do saber-fazer técnico humano. 152 Desaparece a simbiose entre areté e ethos: o agir humano, cheio de técnica e saber científico transfere para o objeto, o produto, o feito, o valor da conduta. O Sábio socrático passa a ser o Sábio Cientista, que se, humanizado, ainda carrega algumas características do anterior; racionalizado, porém, objetivo, a-ético, exsurge como o novo Demiurgo que não mais copiando o modelo da Idéia, mas transformando a natureza, cria coisas novas e suplanta a Natureza, submetendo-a. O saber-fazer permeia a civilização moderna, altera os conceitos, inclusive éticos – antes, como se viu, o homem era parte da morada, hoje é acima e além do seu ethos e é centro plenipotenciário da criação - e instaura como grande valor o ter-fazer e não mais a verdade. Como instaurar uma ética da ciência que atenda aos objetivos finalísticos da verdade e se conjumine com a ética prática? A verdade continua um Bem para o Homem? Aliás, há sempre que se perguntar que Bem e quem o declara, o que nos trás Kuhn, de novo, à colação. A ciência não poderia declarar sem sentido a busca da verdade nas suas cinco acepções 186 : como correspondência (verdadeiro é o discurso que diz as coisas como são; falso é aquele que diz como não são – Platão), como revelação (sensação, intuição ou fenômeno), como conformidade a uma regra (acima da nossa mente há uma lei chamada verdade – Sto. Agostinho), como coerência (o que é contraditório não pode ser real) e como utilidade. Este último conceito teve em Nietzsche – inimigo de Sócrates - seu primeiro formulador: “Verdadeiro em geral significa apenas o que é apropriado à conservação da humanidade. O que me faz perecer quando lhe dou fé não é verdade para mim: é uma relação arbitrária e ilegítima do meu ser com as coisas externas”. A moderna ciência, longe da ontologia do Bem, busca em fato e valor próprios sua condição; na sua olímpica neutralidade ética abandona o homem como medida e o Bem como fim. Diz-nos Marc Sautet 187: “não apenas a filosofia não tem como objetivo ser mais eficaz do que a ciência, no que tange ao desvelamento dos segredos da natureza, como também foi pelo fato de os desempenhos da ciência em relação à natureza só serem igualados por sua impotência frente a o destino da cidade que ela ganhou impulso... O objetivo das ”ciências naturais”, bem como das “ciências humanas”, é fornecer uma resposta teórica sobre os segredos do Universo e uma resposta prática quanto ao curso dos acontecimentos humanos, respostas estas que sejam mais eficazes que as da religião”. 186 187 (Abbagagno) (1998 pág 116) 153 A relação entre Ética e Ciência situa-se, hoje, entre um espaço fora do campo conceitual da ciência (heteronomia e autonomia – guardem a palavra) um espaço dentro daquele campo conceitual, no qual ela possa elaborar seus fins como julgar mais adequados. A relação entre a comunidade científica e as demais são, como sempre, um exercício de estilo e um problema grave de linguagem. A distinção aristotélica entre praxis como ação e poíesis como produção parece expor uma enorme falha no atual modo de pensar: em sendo a atividade ética essencialmente praxis (realização do sujeito) e não poíesis (produção de um objeto) a atividade científica que modernamente tem que articular a theoría com a praxis com a poíesis num conhecimento que é contemplação, ação e produção, tem que repensar a poíesis para dar-lhe integração ética. Urge reencontrar a relação entre humanismo e ciência, recolocando o terreno firme do ethos a partir da atividade repensada. Para a Ciência Jurídica é mais que obrigação. Os três elementos de realidade que se mostram ao homem e tornam curiosa a atividade investigativa são a natureza, a vida e a sociedade. Neste sentido, e para clarificar o raciocínio, três são as atividades éticas referidas às atividades científicas: - ética da physis ou fisioética, que tem por objeto o conhecimento científico da natureza; - ética do ánthropos ou antropoética que tem por objeto o conhecimento científico do homem e da sociedade; - ética do bios ou bioética que tem por objeto o conhecimento científico da vida. Hegel sempre nos lembrou que o Direito é o reino da liberdade realizada. O sujeito de direitos, segundo o pensador alemão, o indivíduo político, o ser ético é aquele capaz de ser livre, de exercer a liberdade como bem fundamental. O homem deve ser pensado a partir de sua existência biológica e individual e na sua existência como ser universal e pleno de direitos e deveres para consigo mesmo e para com a sociedade e o cosmos. O conceito moderno extrai a phisis do panorama e coloca o Homem Racional como o Homem-que-faz: a relação técnica de fazer relaciona o homem e o mundo. A satisfação das necessidades impulsiona a humanidade e se torna o centro das discussões sociopolíticas. Cria-se o Homo Economicus, novo ser que visa dominar e explorar a natureza, extraindo dela a satisfação das necessidades. A natureza não é mais a physis imutável que sofre a ação do ethos humano com sua praxis Antes, o homem assegurara a possibilidade de exercer a virtude; agora visa a satisfação das necessidades. 154 Antes, o estado de natureza; agora, o estado de sociedade. E com ela a economia de mercado. O aumento dos conflitos, públicos e privados, leva à proteção do indivíduo, dos seus direitos e da sua autoconservação. Surgem os Direitos Humanos. O homem, antes integrado a physis, agindo em conformidade, agora pode, com técnica, sozinho, mudar a natureza: quem antes era parte, agora é senhor. Surge enorme e exacerbado individualismo ocasionado pela enorme sensação de poder oriundo da facilidade de produzir. Surgem em decorrência mais direitos humanos. A técnica, mais do que os discursos, mais do que as filosofias, mais do que a virtude entregou ao indivíduo a individualidade. O tecido social é imbricado pelas relações de trabalho, produção e pelo conflito de interesses: o egoísmo individual é a força elementar e atuante. Se antes physis e ethos estavam em uníssono, agora physis e o homo faber têm uma relação tremenda de dominação em que a physis está a serviço do rei da criação. Com as novas experiências biotecnológicas surge o Homo Demiurgus: este não olhará a natureza de cima como o Homo Faber. O novo ser vai olhar a natureza para saber onde ela errou e vai corrigi-la; vai olhar a natureza para perceber o que ela não facilitou na provisão das suas necessidades, dos seus desejos, e vai preencher a lacuna. A falta de preparo intelectual e emocional para a tarefa poderá prejudicar o intento: o antigo e verdadeiro Demiurgo olhou para o modelo perfeito das Idéias e criou a Physis; o novo dominou a natureza e produziu; o novíssimo, na falta da melhor modelo, olhará para si e para seu interior e decidirá! Estamos diante do desafio de reunir o Direito à Ética, dificílima tarefa. A vontade de potência, genialmente apresentada por Nietzsche, parece ser a explicação mais sensata: a vida vem por si com força tão avassaladora que ela surge com marca expressa de inelutabilidade. A sobrevivência, autoconservação, a força vital, a evolução são o mote (e Nietzsche, devemos dizer por respeito acadêmico, não concordaria bem com esta frase). Nada sufoca a vida, nada a censura, nada a detém. A busca científica, como vimos em Kuhn, não busca a verdade; ela procura, antes, preservar-se, e, com vida própria, luta pela sua sobrevivência. E a verdade, segundo Nietzsche, deve buscar a conservação da humanidade. Não é possível que qualquer princípio ético estranho ao corpo da ciência, possa limitá-la; a ciência, com vida própria deve se buscar e, mesmo com solavancos, procurar resposta para sua ansiedade. 155 Assim tem sido. Mas, significativamente, a ciência também não buscou seu código de ética. Não repensou sua praxis. Esqueceu seu humanismo. Reside aí a demonstração de que o novo Demiurgo quer poder e glória, o que instaura um conflito ético. O ser universal cede lugar, de novo e infelizmente, ao antigo ser que confere importância apenas à sua existência individual e biológica em detrimento das demais formas de vida. “ Traçar, pois, como ensina H.C. de Lima Vaz, um caminho da Ciência à Ética é a tarefa que se apresenta à reflexão filosófica contemporânea, o que é muito diferente e infinitamente mais árduo do que anexar a ciência a um sistema ético já constituído “. * 6.3 – a visão européia Pessoas há que se preocupam com o tema e tentam contribuir. Há imensas e salutares tratativas a respeito do assunto. Em sua totalidade apresentam princípios básicos, que os autores procuram conotar, encaminhando seu raciocínio e busca de solução. Mas são princípios básicos e genéricos, segundo pensamos, e que apontam para aspectos relevantes, sem dúvida, mas que, mesmo que bem compreendidos, prestam-se, pela sua natureza genérica, a diferentes usos, conforme a ideologia do utente, o que não dá tratamento objetivo e definitivo à matéria. E todos eles nos pareceram pretender atrelar a Ciência a um sistema ético já preestabelecido, depurado e testado, intelectualmente ao menos, o que contraria a citação de Limas Vaz a que nos referimos e que procuramos transcrever para propor nossa maneira de pensar. Como um dos modelos que pensamos atual, pinçamos (e traduzimos) os pensamentos de Jacob Dahl Rendtorff, da Universidade de Copenhagen,188 pensamentos estes que resumem a forma européia de ver o assunto que a americana pensa de maneira mais individualista a um jeito: Autonomia, dignidade, integridade e vulnerabilidade são os princípios investigados pelo autor que, emoldura estes princípios tendo como limites a solidariedade e a responsabilidade. Estes quatro conceitos falam mais ao nosso trabalho e partem sempre da análise do indivíduo solitário e fala menos de aspectos políticos ou econômicos, o que está abrangido pelos temas da solidariedade e da responsabilidade. O autor adverte que estes conceitos não são excludentes, mas interdependentes e se imbricam na proteção do ser humano. Além, tais 188 (http://www.bu.edu/wcp/Papers/Bioe/BioeRend.htm), 156 princípios serão relacionados com a solidariedade e a responsabilidade sociais analisadas dentro do estado de bem estar social no qual o autor percebe a transformação do sistema legal em direção de uma maior noção de responsabilidade estatal e preocupação e proteção de todos e dos fracos e vulneráveis nas sociedades européias. Os princípios não são hierarquizáveis, pois são diferentes dimensões da mesma preocupação em proteger os seres humanos e expressam o ideal comunitário de uma mesma moralidade européia. São relacionados com os Direitos Humanos e com as leis que têm por objeto a pessoa humana titular de liberdade e da possibilidade de questionar seus direitos sobre livre determinação do indivíduo e sobre proteção da vida e da existência. Pretendem servir de base para a norma que regerá o desenvolvimento bioético e biolegal e, ao mesmo tempo, ser um farol para a futura política européia em bioética, biomedicina e biodireito. A discussão sobre o tema teve início a partir do célebre “ Principles of Biomedical Ethics “189, de Beauchamp e Childress, nos aspectos da autonomia, do não-malefício, do benefício e do princípio da justiça, mas, principalmente, e sobre as outras dimensões, na autonomia como princípio maior na proteção dos seres humanos nos assuntos relativos a bioética e biolei. Os outros três princípios – dignidade, integridade e vulnerabilidade – são ditos mais fundamentais que a aproximação utilitária de “qualidade de vida” que ainda tem enorme importância nas decisões em biomédica e devem ser vistos sob a ótica do entendimento ético da pessoa humana no seu dia a dia e daí com a previsibilidade. * 6.4 – autonomia Autonomia (auto + nomos) é, na Grécia antiga, governar-se a si próprio. Nos dias de hoje o conceito está ligado com a liberdade individual e a possibilidade de harmonioso desenvolvimento da pessoa humana sempre de acordo com suas escolhas pessoais e seus desejos para o futuro (Puro Sentimento, portanto). Kant sempre impecável e com sua impressionante frase, dizia que a liberdade é um fim em si mesma, o que vale dizer que a liberdade moral e a autonomia são fins em si mesmas, ocasião em que as pessoas são suas próprias legisladoras. John Stuart Mill ensinava que a autonomia é a liberdade e a possibilidade de agir e decidir sozinho sem qualquer coerção (tanto quanto possível, dizemos, pois dos aspectos físicos pelo menos não há como escapar). O 189 ( Oxford University Press, Oxford, 1979 ) 157 Personalismo e o Existencialismo europeus remarcam a íntima conexão entre autonomia, moral, independência e desenvolvimento pessoal (Sartre, Mounier...) e encarecem a liberdade pessoal, o comprometimento, o engajamento e a responsabilidade moral de cada ser humano. A proteção da autonomia do indivíduo está presente em toda as constituições européias. Como já vimos, no Brasil, a teoria relacional dos contratos, aplicada por nossos juízes e juízas têm abjurado esta possibilidade de autonomia das partes. Além, a visão social dos juízes e juízas tem afastado o tema, desde que o social deve preponderar sobre o particular; mais além, ainda, já exibimos os dados da pesquisa do IPEA mostrando estatisticamente a cultura de nossos juízes e juízas que em número elevado (80% quase) prefere sentenças “sociais” às atreladas ao caso concreto, assunto de nosso capítulo dedicado à Eqüidade. Mas há críticas ao princípio também na Europa: primeiro – crítica elitista que ele pressupõe cultura bastante sólida do indivíduo para que ele possa refletir e decidir, o que nem sempre ocorre; segundo – crítica social - que ele não pode excluir as práticas sociais, os compromissos e obrigações sociais, a compaixão e o relacionamento com outras pessoas, não podendo se esquecer da frágil e vulnerável condição humana que merece cuidado e respeito. O problema estaria na esfera de saber se a autonomia pressupõe total e substancial procedimento independente, ou se seria possível ser autônomo e ao mesmo tempo ser confiável no chamamento dos valores comunitários, dos sistemas legais ou morais ou religiosos: a) seria possível agir autonomamente em situações que, fortemente, forem fechadas por determinações externas (uma ordem peremptória, um movimento tribal fulminante)? b) e em que condições uma decisão individual deve seguir a decisão de estranhos? São questões em aberto e às quais daremos nossa versão nos dois últimos capítulos deste trabalho. Neste ponto autonomia significa tomar suas próprias decisões, mas nada implica que não se ouçam as conclusões de outras pessoas nem que não se escutem seus valores e motivos. Sartre dizia que a autonomia não pressupõe necessariamente a própria idéia sobre lei moral. * 6.5 – dignidade Lembremo-nos, como dito antes, que o conceito dignidade integra a nossa Constituição Federal no seu artigo 1o. inciso III. 158 Palavra de difícil compreensão, apesar de todos pensarmos saber o que significa, faz com que Dahl Rendtorff recorra aos melhores recursos de linguagem para explicar-se. Começa dizendo que há estreita correlação entre autonomia e dignidade. O princípio da dignidade humana significa que os seres humanos têm uma posição especial que os coloca acima da posição natural e biológica na natureza. Escusado mencionar que esta posição advem da sua condição natural de observador. Diversos filósofos apresentaram inúmeras palavras a respeito; há, todavia, consenso sobre o fato de que a proteção da dignidade torna-se um enorme requerimento moral que é intimamente ligado ao conceito de autonomia pessoal, tendo mesmo, Sartre, na defesa do existencialismo como filosofia humanista, ter apresentado o argumento da conexão entre dignidade humana, liberdade e autonomia. Todos os que defendem os direitos humanos como universais e inalienáveis consideram essencial neste tipo de humanismo a proteção do que é “ humano” e como desenvolver as características da dignidade humana na vida social futura. Neste contexto consideram fundamental a dignidade como união do corpo e da alma, o que quer que isto signifique. O corpo humano e as partes do corpo humano podem ser vistos como algo que coloca a dignidade humana como expressão de pessoa humana e do que é especificamente humano. Mais uma vez afasta-se Descartes, como fizera Damásio! O entendimento da pessoa como um corpo encarnado é a primeira tarefa na regulamentação legal das ciências biomédicas, isto é, como diz a jurista francesa Noëlle Lenoir, que o objetivo da bioética e da biolei é proteger o que é humano, ou seja, proteger a dignidade humana do desenvolvimento tecnológico. O direito à vida, à justiça, tratamento equânime e outros direitos básicos inscritos na cultura constitucional européia, podem ser ditos ou vistos como o “gene cultural da humanidade”. * 6.6 – integridade Novamente Jacob Dahl Rendtorff tem que recorrer a malabarismos para apresentar o conceito integridade: Integridade é um conceito filosófico que está intimamente conectado com os conceitos de autonomia e dignidade. Integridade diz respeito ao centro da personalidade que não pode ser sujeita a intervenção externa não autorizada. Em contexto mais amplo isto implica na proteção da integridade pessoal do indivíduo, como por exemplo, da 159 proteção dos indivíduos em relação ao estoque público de arquivos pessoais. Mas a noção de integridade compreende também algumas características físicas: o corpo pessoal pertence ao sujeito como tal e assim é intocável. Isto significa que o corpo humano e suas partes formam uma esfera de integridade e têm que ser tratados com especial cuidado e compreensão: integridade aqui significa direito à vida e direito de decidir sobre a própria morte. O conceito também pode ser apresentado sob um ponto de vista legal que decorre do Direito Romano: intocável, imperturbável. A referência legal à integridade põe limites à biomédica, por exemplo, na intervenção no corpo dos pacientes. A referência à proteção da integridade física e psíquica da pessoa humana está se tornando mais e mais central na formulação das normas legais concernentes à manipulação genética e à proteção da estrutura genética humana. O direito de herdar uma substância genética que não tenha sido artificialmente mudada é um importante aspecto de integridade. Isto não diz respeito apenas às pessoas atualmente viventes, mas às futuras gerações também. Manipulações que alterem o corpo humano e mudem a identidade pessoal podem ser paralisadas pelo chamamento da integridade. Indo além, integridade também diz respeito à proteção da integridade econômica e social da pessoa. Especialmente o direito à não informação das características de uma pessoa, mas, além, o direito de grupos mais vulneráveis terem um mínimo de proteção social e econômica. As diferentes perspectivas de integridade conectam os conceitos de integridade, identidade pessoal e caráter. Desde o início da Filosofia, com Platão, por exemplo, a teoria ética da integridade significa virtude moral básica e caráter humano. Os aspectos psíquicos e físicos da integridade confirmam estes comentários e remetem o conceito de direito à privacidade, amparado pela integridade, aos conceitos de autonomia e dignidade. Finalmente integridade diz respeito ao direito de apelar ao sistema legal para defesa dos direitos e interesses. Ronald Dworkin usa o conceito de integridade para descrever a política moral de uma ordem legal justa. Assim os agentes jurídicos, juízes, advogados, etc. manifestam sua integridade quando tratam dos assuntos jurídicos com imparcialidade, correção e justiça. Em assim agindo, conferem respeito e preocupação a cada pessoa. * 6.7 – fragilidade 160 Extremamente interessante o conceito vulnerabilidade (preferimos a palavra fragilidade e ela que temos usado) introduzido por Dahl Rendtorff: o debate legal e ético não costumava abordar este tema. Recentemente ele começou a ser trazido às conversações e não mais pararam os comentários a respeito deste tema tão importante. O tema está intimamente conectado com o Sentimento de Horror a que tanto aludimos. Aliás, nada reverbera mais nossa fragilidade que os nossos Sentimentos: são com eles que nos defendemos. Pode-se dizer que antropologia filosófica da condição da vulnerabilidade humana é a base, o fundamento do conceito: vulnerabilidade pode ser vista como uma expressão da condição humana e longe de ser um conceito descritivo é um ponto essencial da questão, podendo mesmo alguns considerar que a lei é expedida para proteger seres humanos vulneráveis. Emmanuel Lévinas, filósofo francês, afirma que vulnerabilidade é o fundamento do entendimento da condição humana e mesmo da moral, pois, moralidade seria a compensação da vulnerabilidade humana. Neste sentido, sustenta, o imperativo moral seria o de ter cuidado com o outro, de ter responsabilidade ética com o outro. Lévinas propõe que o imperativo: “Não matarás” é o conceito básico de uma existência vulnerável, a exibição reconhecida da finitude corporal, da condição humana neste mundo. A vulnerabilidade manifesta, também, uma desarmonia entre o fraco e o forte (lembremo-nos de Hamurabi em 2000 antes de Cristo), o que requer um engajamento ético mais profundo (e que contraria Nietzsche, como vimos). O conceito é, assim, de extrema importância nas discussões éticas relacionadas a ter cuidado com o outro, ter responsabilidade com o outro, ter empatia pelo outro. Vulnerabilidade provoca interesse ético pela fragilidade humana, com sua finitude e mortalidade. A vulnerabilidade pode mesmo ser considerada como um importante conceito legal e como o fundamento do sistema legal; além, pode ser a base da associação e o motivo das regras sociais. * 6.8 – solidariedade e responsabilidade Dentro da moldura da solidariedade e da responsabilidade encontram-se os quatro princípios básicos que como tal constituem uma esfera de proteção da pessoa humana. O estado social europeu deve considerar estes princípios de proteção aos seres humanos vulneráveis como de enorme importância. 161 A sociedade de risco impõe problemas que geram correspondente necessidade de proteção aos homens; os mesmos princípios são ferramentas para assegurar o desenvolvimento da regras legais de direito na proteção do corpo dos indivíduos. Neste contexto o conceito de cuidado é correlativo aos conceitos de integridade, dignidade e vulnerabilidade da pessoa humana. Alerta-se para a possível dominação da natureza, que pode ser destruída, pela sociedade industrial e que tal prática mudou as condições éticas e suas regras. A sociedade tem que estar cônscia da sua obrigação em não destruir as formas de vida na Terra. O dever de proteger a vida, frágil e vulnerável, é uma aplicação do imperativo categórico em bioética e biodireito. E isto deve ser estendido às próximas gerações. É obrigatório que asseguremos a genuína vida humana no futuro. Isto significa que a proteção da autonomia, da integridade, da dignidade e da vulnerabilidade, estendida a outras formas de vida, possa propiciar a melhor condição de vida para as próximas gerações. Nisto consiste nossa responsabilidade. E dentro do moderno conceito de que é possível ter tido responsabilidade sem que se tivesse tido culpa, sem que se tivesse cometido um erro no estrito sentido jurídico do termo. O objetivo da lei deve ser proteger a autonomia, a dignidade, a integridade e fragilidade da personalidade humana. Na visão européia, o regulamento legal também não mais está construído sob bases de relações contratuais entre sujeitos, mas desenvolve-se dentro de conceitos de solidariedade social e responsabilidade coletiva que também compreendem os quatro princípios fundamentais. Sob este prisma a lei reconhece a autonomia individual, mas como sugerem os outros três princípios, a sociedade tem uma responsabilidade coletiva ao por limites aos direitos individuais sobre o próprio corpo, por exemplo. As noções de dignidade, integridade e vulnerabilidade são expressões da necessária proteção do corpo humano no presente desenvolvimento legal e motivam um direito humano orientado para o dever de proteger a esfera corpórea e personal do indivíduo no moderno estado de bem estar social. Na moldura da responsabilidade e da solidariedade os princípios básicos são confrontados com a enorme ameaça da intervenção do poder tecnológico na esfera da pessoa humana e constitui um esforço para formular uma humanística concepção do homem como fundamento de uma política e regulamentação legal dentro do estado de bem estar social. A ética de ter cuidado pelos outros não é simplesmente proteger aqueles que são incapazes de agir com autonomia – a mais vulnerável forma de vida – mas é uma ética que parte da premissa de que todos podemos ser 162 feridos pelas descuidadas, às vezes paternalistas, ações de outros. O paternalismo seria, destarte, um grande mal. Ao contrário, como se sabe e é objeto de repulsa de grande parte da comunidade internacional, conforme pesquisa que divulgamos atrás, a cultura paternalista de juízes e juízas criou uma mentalidade que favorece o inadimplente, o devedor e o hipossuficiente profissional. Cria monstros processuais. É sabida a posição Robin Hood de tirar de quem tem para outorgar a quem não tem, ferindo princípios éticos e muitas vezes, mais do que se pensa, a legislação pátria; o confisco puro e simples de quem tem (e nem sempre tem tanto assim, que a baixa burguesia já começa a ser atingida também) expõe com crueza uma retirada a fórceps de alguém para enriquecimento ilícito de outrem de maneira totalmente injustificada. Os conceitos de autonomia, integridade, dignidade e fragilidade foram torcidos por juizes que sob o pretexto de solidariedade e responsabilidade alteram situações de maneira paternalista ofendendo o expropriado pela violência de que é alvo e ofendendo o hipossuficiente pela ação deletéria da proteção que lhe é estendida e que, por mais que se pense o contrário, fere sua dignidade mais profunda e o imobiliza em miséria permanente. Mesmo quando amparado em lei deve a parte atentar para o caso concreto e não para a possibilidade “esperta” que se abre. Vale repetir o escrito de Aristóteles em Retórica atrás referido: o homem que escolhe e pratica tais atos, que não se aferra aos seus direitos em mau sentido, mas tende a tomar menos do que seu quinhão embora tenha a lei por si, é eqüitativo (nosso grifo); e essa disposição de caráter é a eqüidade, que é uma diferente espécie de justiça e não uma diferente disposição de caráter”. * 6.9 – sair da caverna A sociedade olha para o futuro com os mesmos olhos que contextualizaram o passado não querendo perceber que mudaram os paradigmas e que a nova realidade não deve mais ser analisada com os mesmo conceitos que nortearam outras conclusões, que foram boas para a sua época, mas que não podem ser eternizadas. O confronto entre as teses liberais e sociais, entre democracia e igualitarismo, permeia o cenário e não pode se afastar, mas coloca em questão o próprio conceito de “estado do bem estar social”. 163 A velha briga entre os sofistas e Sócrates continua em pleno vigor, apesar de já passados 2.400 anos de discussão permanente. Nietzsche e sua vontade de potência mostram que não se pode calar a vida e que ela busca se desenvolver a qualquer custo, simplesmente por ser vida, sem nenhum compromisso com a verdade, apenas com a sobrevivência. A justaposição de theoría, praxis e téchne (com a poíesis ensaiando status próprio), a oposição entre physis e nómos, a oposição entre logos contemplativo e o logos construtivo, a aparição do Homo Faber, tudo isto nos remete, de novo, e sempre, às questões fundamentais: quem somos? de onde viemos ? para onde iremos ? que é vida ? que é a morte ... Não há mais tempo, não há mais como contemporizar: o Homem tem que sair da Caverna e encarar o Sol. * 6.10 – autenticidade e amor à vida Há enorme possibilidade de uma visão brasileira influir neste debate. Como dissemos no fim do capítulo 2.1, a visão européia, francesa em particular, desde Rabelais e Montaigne, foi, naquela época, redirecionada por nossos índios. O europeu nos olhou e mudou. Agora, da mesma forma, lembrando Oswald, podemos olhar o caraíba e entrarmos nós no debate. Já há, novamente, redutos intelectuais franceses neste começo de século XXI que acham que a globalização tão falada deveria mudar seu nome para brazilianização do mundo: aproveitar-se-ia a experiência pátria na miscigenação de raças e culturas sem perda de identidade a que se adiciona a maneira brasileira de ser com sua alegria, tolerância, transparência, energia, amor à vida, facilitação de problemas. O debate como nos traz Jacob Dahl Rendtorff, está cheio da pompa e liturgia própria dos europeus e com ligeira pitada de autopiedade resignada no caso da vulnerabilidade. Há mesmo como o Brasil possa influir de maneira positiva. Em capítulo posterior daremos nossa visão sobre os temas. Mas já podemos iniciar nossa contribuição. Nosso conceito de fragilidade (e não de vulnerabilidade) está impregnado do amor fati a que se refere Nietzsche. E queremos acrescentar mais dois conceitos aos quatro já apresentados: autenticidade e amor à vida. Jung190 dizia que “o homem gosta de acreditar-se senhor da sua alma. Mas enquanto for incapaz de controlar os seus humores e emoções, ou de 190 (1996 pág 83) 164 tornar-se consciente das inúmeras maneiras secretas pelas quais os fatores inconscientes se insinuam nos seus projetos e decisões, certamente não é seu próprio dono”. O Mestre considera que cada ser humano porta um sentimento original de totalidade, um sentido poderoso e completo do self, o si-mesmo, a totalidade da psique, de onde emerge a consciência individualizada do ego à medida que o indivíduo cresce. Enquanto transita de um estado para outro (da infância para a meninice, etc) o ego precisa voltar para trás para restabelecer suas relações com o self com o fito de não perder sua saúde psíquica e manter o sentido original de totalidade. A mais elevada finalidade do homem e a plena realização das potencialidades do seu self é que fazem o homem ser. A consciência dos seus dons e da sua missão, não importa qual e em cada um diferente, a aceitação entusiasmada da Moira, a plena aceitação de si e, conseqüentemente, a aceitação da diversidade, a aceitação tolerante do outro, elevam cada homem ao seu píncaro. Autenticidade, portanto, é uma palavra que usamos no sentido de estar-se de acordo com seu eu profundo, ser-se total, pleno, sem qualquer consideração por quem quer seja, sem mentir nem para si nem para o outro. Poucos povos no mundo conseguem (quando não conseguem, haja hipocrisia!) ser autênticos. Como um povo faz para ser autêntico (na maioria das vezes, que se diga) é mérito seu que recebe a reverência dos outros. Esta uma das – se não for a maior – vantagem do ser brasileiro. O amor à vida significa recebê-la como ela nos vem: amor fati! Deve-se amar o próprio destino e, como no mito platônico, ter-se a consciência de que a responsabilidade é mesmo de quem escolhe, de quem elege. Quem foge do próprio destino não vive. Nem com dignidade, nem com autonomia, nem com integridade. Chora sua fragilidade. O instante é imortal e há delicadeza e criatividade no clichê que diz que a vida é estar vivo e que é um dom intransferível, circunstância e caminho próprio de cada um: viver a própria vida com desvelo, sinceridade e devoção. Contingência. Independentemente de nossa fragilidade e de nossa consciência da nossa fragilidade. Combinando ter e ser como causa da alegria de viver. Há muita energia envolvida e enorme competência para tirar problema da frente, enorme competência para facilitar a vida: o compromisso com o gozo é o mote. Não é uma posição ingênua, pelo contrário. É uma atitude sábia. Encobre leve nostalgia que está lá para contraponto, sempre a lembrar. Não há como não citar Nietzsche e seu além-do-homem. Ou Guevara repetindo endurézcase siendo tierno! O brasileiro tem a veleidade de considerar-se este tipo de ser humano e há europeus que o vêem assim. 165 * 6.11- Há espaço para tal Homem? A matéria de discussão e sua exata combinação podem ser manipuladas. Mas não mais como se fora uma receita exata que o boticário avia pra obter remédio salvador. Faltam, nesta receita, fármacos que ainda são desconhecidos: se nos valermos do material usual podemos produzir um placebo. Corremos, assim, o risco de enfocarmos nossos argumentos com ranço de conhecimento pretérito. Há que ter cuidado. São muitos os indícios de que a Moira está escrita – também – nos genes do seu portador e que o Dédalo pessoal está mapeado fisicamente. Herança genética, préconfigurada, portanto na hora em que aquele esperma e aquele óvulo juntam seus códigos próprios e particulares para produzir seu milagre específico comum. Contra o qual lutar inútil será. Amor fati? Este tema continua obscuro, e continuará, enquanto não pudermos precisar qual a verdadeira influência do DNA e do meio ambiente na configuração do ser humano individuado, sem o que não há possibilidade de comentário abrangente. Sabemos que ambos influem. Basta por enquanto. Mas, se cumprir com sua missão de sobreviver, evoluir e ser um, poderá o homem regular seu ethos? Poderá nele se instalar com conforto e prazer? Conseguirá viver em ambiente em que não se sinta ameaçado nem com desejo de ameaçar? 7- Certeza. Segurança. Previsibilidade 7.1- a visão européia Aqui debatem realidade e valor, ser e dever-ser. Aqui está mesmo o debate intestino do direito. Os professores, autores de teses em direito, os dogmáticos, os advogados, os juizes sempre pretenderam afirmar que o Direito deve ser certo, seguro e previsível e esta verdade incorporou-se ao ideário jurídico desde sempre. Gustav Radbruch 191 nos diz que são três os ingredientes ou elementos da idéia de Direito: Justiça, Certeza ou Segurança como condição da Paz Social e o Fim do Direito. 191 (1997, pág 160 e ss) 166 Debater Justiça, além do que já fizemos, e Fim do Direito extrapola o escopo deste trabalho. Basta mencionar que esses três ingredientes às vezes excluem-se, outras se harmonizam e que há pessoas que naturalmente tendem para fazer um prevalecer sobre os outros (dizem: é melhor que exista antes uma ordem jurídica que gastar tempo com discussões sobre justiça e reta finalidade: vários autores dão preferência à certeza sobre os outros valores declarando mesmo que este fundamento é primacial e os outros secundários; falam outros: excesso de zelo positivista pode dar nascimento a ordens injustas como o nazismo; afirmam alguns: é sempre a Justiça que deve prevalecer192; a finalidade diz respeito ao interesse e à utilidade logo desperta imediata adesão, falam outros ainda). Mas, por necessidade do próprio tema, é necessário abordar com mais vagar a Certeza Jurídica. É desejável que no mundo do direito não haja lugar para o arbítrio e que a sociedade não fique ao sabor do vai e vem das opiniões diferentes; grupos não podem prevalecer, legisladores não podem legislar em causa própria ou legislar a favor de suas causas e juizes não podem (apesar de aplicarem) aplicar sua ideologia política às sentenças. A ordem social deve prevalecer sobre as idiossincrasias e diversidade de opiniões e posturas. A ordem social está acima destas divergências. Radbruch diz que esta certeza exige a positividade do direito; que se não é possível fixar e estabelecer aquilo que é justo deve ao menos ser possível estabelecer aquilo que ficará sendo o direito. Tal estabelecimento deve fazê-lo uma autoridade que se ache em condições de poder impor a observância daquilo que precisamente foi estabelecido. A positividade do direito vem assim a ser, ela própria, um pressuposto de sua certeza. Impossível direito certo que não seja positivo. Radbruch já dizia que 193 quando se estuda o direito, o jurídico, há que distinguir dois momentos radicalmente diversos, o momento jurídico e o filosófico-jurídico do direito. No primeiro trata-se de estudar certas realidades referidas a certos valores que lhes imprimem uma significação especial. Tais realidades apresentam-se então como um mundo todo intelectual e pleno de significações cujo ‘sentido’ reside precisamente na entrevisão dos valores para que tendem. Aí é que se estudam as realidades jurídicas entre as quais está a jurisprudência como ciência dum ser normativo-positivo. No segundo não são as realidades que contam, mas o estudo dos próprios valores jurídicos absolutos em si mesmos considerados e entre eles o valor absoluto maior, o que dá sentido e significado ao Direito, a Justiça ela mesma. 192 193 aliás, como registro, a posição de Radbruch antes de falecer (1997 pág 20) 167 Miguel Reale194 pensa que a História do Direito revela-nos um ideal constante de adequação entre a ordem normativa e as múltiplas e cambiantes circunstâncias espaço-temporais, uma experiência dominada ao mesmo tempo pela dinamicidade do justo e pela estabilidade reclamada pela certeza e pela segurança. O mínimo de fundamento axiológico 195 que a sociedade em qualquer circunstância postula, põe e exige a certeza do Direito, põe e exige um Direito vigente. Para Miguel Reale196 , repetindo Radbruch, há um tríplice problema dos valores do Direito que são as três exigências contidas na idéia do Direito: Justiça, Certeza Jurídica (segurança e paz social) e Fim. O jurista, diz ele197 pensa em termos de segurança e certeza com aquilo que se costuma chamar forma; o Direito exige ‘estrutura formal’, racionalidade, distinção e clareza. Forma (a norma) é uma exigência de certeza 198 e esta depende de uma abstrata formulação normativa, mas clara o suficiente para torná-la objetiva e historicamente concreta. “A forma, assim entendida como tipificação garantidora dos comportamentos que prefigura e legitima, (e previsibilidade, já o dizia Reale, foi o fermento da cultura) reflete a plenitude da positividade jurídica, dado que esta não pode ser desligada do momento da vigência, para só se confundir com o outro momento, igualmente necessário e correlato, o da eficácia social dos preceitos”. O valor contido no dever-ser precisa ser claro, aceito e assumido de tal modo que possa ter possibilidade concreta e efetiva de realização histórica. O valor que legitima uma ordem jurídica é seu fundamento. “Há sempre um valor iluminando a regra jurídica como fonte primordial de sua obrigatoriedade199”. O assunto é explosivo, já se viu. Para a previsibilidade como forma de fermento da cultura (sic) há uma regra mínima, a de que ordem ou segurança seja condição primordial do Direito. Para alguns a idéia de Justiça contém a de ordem; aliás, em Goffredo ser e ordem se equivalem, pois se algo é se constitui numa ordem; como não há ser que não se manifeste de múltiplas maneiras e como não há ser que não exista em relação a outro (e relacional é a Justiça), há que haver unidade na multiplicidade, diz Goffredo, donde ordem é a unidade do múltiplo, o que lembra Heráclito. Tudo é conjunto. Da ordem resulta o próximo aperfeiçoamento e sobre este valor – o da ordem – repousa a noção de obrigatoriedade do Direito. Ordem e progresso. 194 (1953, pág 498) (1953, pág 521) 196 (1953, pág 466) 197 (1953, pág 481) 198 (1953, pág 523) 199 (1953 pág 515) 195 168 Daí para muitos200, o conceito de ordem e segurança poder afastar o conceito de liberdade. Para estes a liberdade seria um obstáculo para a ordem (paz). Liberdade e ordem seriam termos antitéticos. Mais, para outros ainda, como dito, até a ordem ou a segurança poderia se contrapor à Justiça e prevalecer. Vem deste modo de pensar a imensa ojeriza à desordem por ser fonte de insegurança e atentado à paz, a paz interna do indivíduo e a paz social. Esses são os conceitos mais gerais sobre o tema da certeza, da segurança e da previsibilidade e formaram-se ao longo dos anos principalmente por tradição européia. Tais conceitos confortam as almas mais necessitadas e têm servido ao propósito de manter aceso o mito de que precisa a sociedade para acreditar no Direito por estes motivos e não por outros mais candentes, porém difusos. Houve reação? Há algum outro pensamento mais afinado com a tendência deste trabalho? * 7.2 – o fim do mito: a visão americana Podíamos trazer a Teoria Egológica de Cossio, o Raciovitalismo de Ortega ou o Raciovitalismo jurídico de Recaséns: tocam nosso ponto, mas tem outro viés. Há, todavia, um movimento que surgiu nos anos ao redor de 1930 no Estados Unidos da América, chamado de “realismo jurídico”, que aglutinou, com teses semelhantes, mas não iguais, o que não configura uma escola, portanto, uma série muito grande de professores de direito, de juizes, de advogados e assemelhados. Este movimento visava antes de tudo saber como realmente o direito opera. Não pretendia se fixar em dogmas ou mitos aceitos (e desejados) pela falação tradicional. Em contraste com a dogmática européia o movimento deixou clara sua convicção de que devia atacar convencionalismos falsos que se perpetuavam mantendo uma tradição teórica que não se coadunava com a prática dos tribunais. Tais atitudes, chamemo-las assim, são fragmentárias e revelam ora intuições, ora verificações práticas e têm que ser contextualizadas para que não se transformem em críticas acerbas, incitações e pontos de vista rebeldes e contrários a uma situação que provoca injustiças. O movimento foi fértil em reagir e veio carregado de energia e vivacidade. Foi um ataque à mística da Common Law que se apresentava como corpo jurídico com possibilidade de compreender e solucionar todos os casos 200 mas não para Goffredo. 169 propostos. Foi uma forma de não trabalhar com fantasmas – eram ditos realistas, pois não? – e perceber a verdadeira conduta humana, a conduta dos juizes e dos funcionários dos tribunais da maneira como ela se operava e não através de teorias que objetivavam perceber os fatos em sua essência e que, por processos mentais, tinham em seus inventores criadores de teses distantes da realidade. Os destaques do movimento (citados por Recaséns Sichez) são Underhill Moore, Herman Oliphant, Walter W. Cook, Karl N. Llewellyn, Charles E. Clark e Jerome Frank. Além destes são citados também Joseph Walter Bingham, Arthur L. Corbin Max Radin, Leon Green, Joseph C. Hutcheson, Arnold Thurman e Hessel E. Yntema. Na explicação do que foi o realismo jurídico Recaséns 201 primeiro apresenta sucintamente o que foi a escola analítica de Austin 202 afirmando que o movimento veio em parte como uma reação a esta escola: a teoria analítica de Austin, seguindo de certo modo idéias apresentadas por Hobbes refere o Direito positivo à ordem do soberano. Mas resta um problema, o de saber se por soberano deve entender-se uma realidade ou, pelo contrário, tão somente um conceito mediante o qual ordenamos os dados jurídicos. Recaséns afirma que Austin nunca resolveu este problema e que se manteve indeciso em relação a ele. Se de um lado Austin fala do soberano como uma determinada pessoa ou um determinado grupo de pessoas, o que faz crer que se trata de uma realidade, de outro sua obra faz crer, por diversas passagens, que sua teoria representa somente uma construção jurídica dos fatos, o que leva o comentador a dizer que não pretende ser uma descrição mas uma interpretação. Adiante diz que o caráter de construção foi acentuado por outros autores da escola analítica que, seguindo outras vias, conseguiu no século passado, através da obra de Kelsen, uma nova expressão, depurada e rigorosamente fundada. Nos Estados Unidos havia pessoas descontentes com a postura, houve uma reação e surgem vários juristas que buscam outra linha, a da realidade efetiva sobre a qual se apóia o direito vigente e da qual ele emana; para tal se perguntam com insistência ‘que é na realidade o Direito vigente em um determinado país e em certo momento? Sobre isto dizem que tal pergunta surge com atualidade e com urgência quando se coloca um conflito ou dúvida a respeito das normas jurídicas. Nestes casos o que dizem as leis, os regulamentos, os precedentes judiciais, os costumes, etc., podem constituir fontes de presunção para que se possam fazer vaticínios prováveis mas não sugerem uma resposta absolutamente segura porque o Direito real e efetivo vai ser aquilo que sobre o caso colocado venha a resolver o órgão jurisdicional. Sobre isto escreveu em 1897 o juiz da Suprema Corte Americana Oliver Wendell Holmes: ‘um dever jurídico não é nada mais 201 202 (1963 pág 621) (1790-1859) 170 que predizer que se uma pessoa faz ou omite certas coisas será forçada a sofrer de uma determinada maneira a sentença do tribunal. Se o que se quer é conhecer o direito efetivo e nada mais então há que se observar este direito desde o ponto de vista de um homem mau que se preocupa somente com as conseqüências materiais que tal conhecimento lhe permita predizer. As profecias daquilo que os tribunais farão é o que entendo como direito’. O movimento realista desejou fazer uma demolidora crítica à concepção mecânica da função judicial como um silogismo. Contra esta concepção que joga o direito em uma região celestial é que se organizou a reação. Mas é estranho que a primeira reação dentro do mundo anglo-saxão tenha partido da tradição positivista da escola analítica: foi John Gray em sua obra sobre a natureza e as fontes do direito (de 1909) que deu um passo que seria levado muito adiante pelo realismo jurídico. Gray distingue entre direito efetivo e fontes do direito. O direito efetivo consiste nas regras assentadas e aplicadas pelos tribunais. Fontes do direito são os materiais (leis, precedentes jurisprudenciais, opiniões doutrinais, costumes e princípios éticos) nos quais o juiz se inspira para estabelecer as regras efetivas de sua sentença. Uma lei por si só ainda não é direito enquanto ainda não tiver sido apreciada por um tribunal. A lei é um conjunto de palavras que faladas pelo legislador tornam-se efetivas somente após as sentenças dos tribunais. Incumbe aos tribunais dizer o que estas palavras significam. Dentro dos limites da interpretação que são vagos e não estão definidos com precisão forma-se o direito efetivo que é aquele elaborado pelos tribunais. Os realistas partem destas palavras e vão muito longe. Apesar de não concordarem sempre entre si e de não constituírem pensamento homogêneo, adquirem o denominador comum de serem absolutamente céticos a respeito das descrições tradicionais da conduta real e efetiva do pessoal dos tribunais; não se entendem sempre quando o assunto é realidade mas quase todos buscam a realidade na conduta efetiva dos juizes e dos funcionários administrativos. Os realistas crêem que Gray, apesar de ter avançado, não foi longe o suficiente e não compreendeu exatamente o que dissera Holmes 12 anos antes. Gray definira o Direito efetivo como as regras assentadas pelo Tribunal. Há que se distinguir entre as regras que o Juiz estabelece em suas sentenças e o que o juiz decide efetivamente. Muitas vezes a regra fundamentada pelo juiz em sua decisão constitui somente uma espécie de disfarce para justificar a decisão efetiva que ele tomou e constitui uma justificação aparente de sua sentença ante a doutrina tradicional. Assim, importa menos o que o juiz diz e importa mais o que o juiz faz. Deste modo, se queremos saber o que efetivamente é o direito temos que obrigatoriamente indagar quais são os modos reais da conduta judicial. Os realistas declaram que os juizes não agem conforme as regras legislativas 171 nem de acordo com os ditames da doutrina nem de acordo com as regras que eles mesmos, juizes, expõem como certas; eles dizem que os juizes agem de uma maneira diferente e que esta conduta real é que determina o direito. A partir daí Recaséns estuda duas formas de realismo dentre outras menos expressivas: uma a que duvida da fala do juiz que garante basear-se em leis, em precedentes jurisprudenciais, em regulamentos, em técnicas conhecidas de interpretação, e busca as regras efetivas, mesmo que ocultas, aquelas pelas quais se norteia mesmo o juiz para decidir; outra que apesar de também duvidar da liturgia dos juizes procura ir mais longe e formula questões sobre o modo como os juizes enfocam as questões de fato. Alguns se preocuparam com as sentenças dos Tribunais de Apelação para, ao final, saber o que é mesmo Direito; outros se preocuparam com a conduta dos Tribunais de Primeira Instância e como eles estabelecem os fatos do caso em debate. Llewellyn e Jerome Frank, como expoentes do movimento, são a partir daí dissecados por Recaséns. Joseph W. Bingham e Thurman Arnold vem a seguir. Após, há um breve apanhado das teorias de Yntema, de Oliphant, de Moore, de Cook e de Cohen. Vamos ao trabalho: Professor da Universidade de Columbia e depois da de Chicago, Karl N. Llewellyn, 203 distingue o que ele denomina de regras no papel das regras efetivas; as primeiras são aquelas constantes de normas, leis e regulamentos que nem sempre são seguidas pelo juiz ao decidir e as segundas são aquelas que, declaradas ou não, são as que efetivamente o juiz segue para proferir suas decisões. Para investigar estes fatos Llewellyn estabelece alguns pontos fundamentais em que se baseia para chegar ao seu estudo final: 1- que o direito está em constante situação de fluidez; 2- que o direito significa um meio para fins sociais; 3- que a sociedade para cujos fins o direito é um meio se encontra em situação de fluidez maior que o direito ele mesmo; 4para objetivar suas investigações o teórico do direito deve analisar somente o que os tribunais, os funcionários e os cidadãos fazem efetivamente sem levar em conta aquilo que deveriam fazer, divorciando-se, mesmo que em aspectos temporais, o ser do dever-ser; 5- a investigação jurídica deve observar com imensa suspeita a suposição de que as lições ensinadas pelos livros são efetivamente seguidas pelos tribunais; 6- deve a investigação jurídica observar com igual suspeita a suposição de que as normas e regras de direito enunciadas formalmente são as que em realidade produzem as decisões e resoluções que alegadamente estariam baseadas nelas; 7- é necessário reconhecer a necessidade de agrupar os casos particulares em conceitos mais estreitos, isto é de menor área, alcance ou compreensão, 203 (1893-1962), 172 mas não se perdendo de vista que tais conceitos têm um simples alcance classificatório empírico, ou seja, seria ótimo ampliar a quantidade de conceitos que se empregam como instrumentos de trabalho; 8- cada setor particular do direito tem que ser valorado em termos de seus efeitos reais. A conclusão de Llewellyn é que o direito se ocupa da pacificação de disputas. E que há pessoas que devem se preocupar com estas disputas. Primeiro para que as partes que disputam se entendam, depois para que outras pessoas que são afetadas pelos disputantes encontrem também sua tranqüilidade. Mais além que quem se ocupa desta pacificação possa encontrar a melhor solução, a que seja mais suportável para as partes litigantes assim como para os espectadores desta. Esta gente – juizes, policiais, funcionários administrativos, carcereiros, advogados – são funcionários do direito; como tal devem trabalhar para por termo às disputas. Mas considerando-se que há outras disputas no seio da sociedade e que não demandam pessoal especializado, para que servem aqueles funcionários? Seriam mesmo necessários? Sim, responde, há necessidade destas pessoas para conflitos que não se resolveriam de outra maneira e que, pela manutenção da ordem perturbada têm que agir com autoridade executiva. As partes envolvidas pensam que há ordenamentos jurídicos a serem seguidos e que eles regulam mesmo as disputas quando chegam a esse nível; mais do que isso a sociedade pensa que tais normas devem ser obedecidas por todos porque são justas e com isso se mantem viva a sociedade que acredita. Se a maioria da sociedade não respaldasse os funcionários do direito com sua consideração o direito realmente não poderia existir. Esta crença na infalibilidade da justiça mantem vivo o direito. A maior parte das pessoas respira esta atmosfera e configura suas atitudes conforme esta crença. Se não fosse isto não se poderia viver em sociedade. A pergunta que ainda não cala é como reagem os juizes e funcionários administrativos para resolver estas disputas? A citada divisão entre regras efetivas e regras no papel não significa que careçam estas de importância. Há que se averiguar se o juiz segue ou não as regras vigentes; muitas vezes ele afirma seguir mas na realidade não o faz. Por vezes até menciona as regras que segue, mas tal declaração serve como disfarce, pois outras regras são aquelas que são atendidas na realidade. A investigação realista visa desnudar esta situação e expor o que sucede realmente; quer retirar esta ficção convencional que faz o juiz dizer que segue algo que efetivamente não segue. Llewellyn também analisou a questão de fato, tanto a que diz respeito à prova quanto aquela que qualifica e caracteriza os fatos jurídicos relevantes. Sua análise conclui que os fatos como se deram na realidade não estão colocados diante do juiz jamais. Chegam filtrados, reconstruídos, reapresentados. Chama também a atenção para o fato de juiz e júri 173 repararem em outros detalhes que não os eminentemente processuais (este advogado está bem vestido, deve ser pessoa honrada; a testemunha não tem cara de honesta com esta verruga no nariz e a falta de alguns dentes). Enfatiza que cada advogado apresenta sua versão ao fato e que esta versão é feita sempre se tendo em conta a lei que se pretende seja a que cabe ao caso em espécie. Que correspondência há entre os fatos como ocorreram e os fatos como são relatados na sentença? Esses fatos foram pinçados pelos advogados respectivos quando filtraram os pontos jurídicos que pensam relevantes; são filtrados quando as partes recorreram aos meios de prova admitidos; são filtrados mais ainda quando da apresentação de razões finais e são filtrados pelo juiz quando redige os dados da sua sentença. Nesta fase duvida-se que haja qualquer correspondência entre os fatos como ocorreram e como estão descritos na decisão final. Llewellyn também é um dos que defende que o juiz quando redige sua sentença pensa primeiro no que ele julga ser justo e depois vai construir o silogismo e apresentar as normas e as motivações de forma a justificar sua decisão que já estava tomada por antecipação. Assim a decisão e a norma ditam a interpretação dos fatos ou a decisão e a interpretação dos fatos determina a norma. Llewellyn conta que pesquisou os Tribunais de Apelação ingleses e verificou como cada um dos magistrados opina sobre o caso debatido: as observações sobre os fatos diferem freqüentemente. Estas diferenças estão na estrutura que se dá aos fatos e no modo como cada um destaca um aspecto destes fatos. Freqüentemente discrepam quanto ao argumento que parece conveniente. O que passa a ser muito estranho é que normalmente os magistrados concordam com a decisão final. É muito curioso, diz o autor, que na redação do seu voto cada magistrado tenha elencado argumentos que não são os mesmos que os que chamaram a atenção dos seus pares, que os fatos tenham sido observados diferentemente, mas a decisão final, com raras exceções, seja coincidentemente a mesma. Isto mostra que há mais segurança e certeza na decisão que na norma em que ela se baseia. Esta observação ajuda Llewellyn a confirmar sua idéia de que o importante não é analisar tanto o que os juizes dizem mas o que os juizes fazem. A norma efetiva não é muitas vezes aquela que está referida na sentença mas é outra que não aparece mencionada embora seja ela o real sustentáculo da decisão. A axiologia jurídica de Llewellyn busca firmar-se no mundo da ontologia. Diz que apesar de pessoas referirem o direito como um dever-ser ele preocupou-se com a análise fenomênica do direito, preocupou-se em descrever as realidades jurídicas tal como são e se manifestam. Mas a investigação não pode se circunscrever a esta análise pois deve levar em conta como a sociedade desejaria que fosse o Direito. Sempre haverá 174 alguém postulando que o direito se desenvolva para o justo. Sempre neste ponto surgirá a pergunta fatídica inquirindo sobre o que o justo é afinal. Mesmo sem resposta prossegue a indicação de que o direito se oriente do jeito como deve ser e não de outra maneira. Está certo que as pessoas não concordam sobre o que seja justo. Llewellyn procura esclarecer estabelecendo uma divisão da justiça em justiça social e justiça judicial; a primeira deve ser entendida como expressão que denomina a justiça de conjunto na totalidade da estrutura social e a segunda como a justiça que é possível dentro do marco que a sociedade instituiu em certo tempo e lugar. A justiça social abarca a justiça judicial e partindo do seu ponto de vista alguém pode criticá-la; após estabelecer sua crítica, o analista pode pedir reforma da legislação e, se desesperado, iniciar uma revolução. Enquanto estiver no campo da investigação ainda, o crítico deve pesquisar os tribunais e sua conduta. Sendo sensato se dará conta que os tribunais devem mover-se dentro do marco das normas estabelecidas. O máximo de liberdade que pode ter o tribunal é suavizar um pouco aqui e ali. Nada mais. Mas também aqui haverá disputa: alguns mais ousados e impacientes pedirão ao tribunal que se mova até o limite de seus poderes ou um pouco mais; outros assustados com a possibilidade não quererão que o tribunal se mova nem um milímetro para cá nem para lá. Jerome Frank204 foi professor universitário, juiz e magistrado do tribunal de apelações é um dos principais autores dentro do movimento realista. Como jusfilósofo dedicou-se a analisar a conduta efetiva do juiz e os problemas relacionados com a apreciação da prova. Em um de seus trabalhos procurou perceber porque toda a gente tem aversão pela justiça em geral e pelos advogados e juizes em particular. Há uma crença generalizada de que estas pessoas complicam desnecessariamente o que redunda que o direito deixa de ser claro, certo e exato; ora, diz ele, há um erro aqui: se o direito fosse certo e exato as críticas seriam procedentes: resulta que o direito não é assim. Nem as sociedades estáticas conseguiram escrever normas onicompreensivas que abarcassem todo o conjunto de necessidades e dessem respostas a todas as questões. Muito mais difícil seria pensar que tal projeto pudesse ser desenvolvido numa sociedade tão fluida como a nossa, com tantas novidades 205 como a nossa. Assim muito da incerteza do direito não é somente um acidente infeliz , não é somente uma deficiência ou uma falha, mas pelo contrário, tem um enorme valor social. Se as coisas são assim porque escondê-las? Porque o advogado afirma a certeza do direito? Porque o professor não se cansa de ensinar que o direito é certo? Porque os juizes não confessam quando disfarçam suas inovações 204 205 (1889-1957) (notem que ele falava no começo do século XX) 175 sob mantos velhos e gastos, porém tradicionais? Porque este pacto que visa esconder a realidade ? Esta mania de esconder o caráter plástico e mutável do direito traz conseqüências funestas. Ao esconder de toda a gente o caráter mutante do direito os profissionais causam mais confusão e prejuízo que outra coisa. O direito do presente porque compreende e protege todas as novidades, porque as acompanha e se despe das velharias que o amarram é garantia de sossego para as pessoas que se consagram a novos empreendimentos e cruzadas. As rápidas mudanças sociais apresentam novas situações que não estão nem remotamente contidas nas normas ainda vigentes: assim o juiz tem que formular novas normas ainda que as apresente sob o disfarce das velhas. Frank se propõe a analisar a realidade jurídica como ela é. Este encontro com a realidade mostra que o direito é muito diferente daquilo que dele se dizia. Sempre se garantiu que o direito era geral, uniforme, contínuo, igual, puro. Este é um ponto de vista falso. Sempre se imaginou o direito como um conjunto de regras estáveis que desde sempre existiam ou vinham lá de trás, lá de tanto tempo que pareciam permanentes. As modificações introduzidas pelo legislador só faziam aperfeiçoar o que já existia e dar um caráter de maior perenidade ao direito. Pensava-se que a função dos juizes consistia em descobrir o direito sem que pudessem contribuir com algo para criá-lo. Quando mudava a jurisprudência dizia-se que tinha havido uma correção de um ponto de vista tomado erroneamente e que a nova posição apenas trazia o conceito certo ao campo que tinha sido mal observado. Em uma sociedade simples é possível ter normas estáveis e que sejam aplicadas com relativa certeza e segurança. Tal não é possível na sociedade de nosso tempo dada a sua dinâmica. Havia o desejo de que o juiz fosse um aparato automático que repetisse no singular o que a lei tinha dito no plural. Assim, o juiz, seria somente um repetidor da lei; não havia desconfiança com o legislador pois sua tarefa era pronunciar-se sobre o futuro – tal não sucedia com o juiz pois este fala do presente e do passado: grande perigo em sua atitude pois. Houve enorme exagero nestas lições. A existência de uma lei prévia que, muito clara, compreendesse todos os fatos e se revestisse de certeza e segurança, não foi possível ainda. A verdade é que a experiência mostra que o direito não dá certeza nem segurança nem uniformidade nem clareza. Somente uma sentença pode reverberar o direito certo que é válido para as partes e para aquela situação particular; enquanto não se pronuncia um tribunal sobre uma questão não há direito certo e efetivo para o caso. Antes da sentença somente há uma suposição feita pelos advogados daquilo que provavelmente seria a sentença de um tribunal. Só suposição. Verdade é que o direito sobre uma situação definida será ou a sentença que se 176 pronunciar sobre o caso passado ou uma suposição do que dirá o direito no futuro. Antes que um tribunal se pronuncie sobre uma questão não se pode afirmar qual o direito envolvido. Como se parte do pressuposto que há normas preestabelecidas, que os fatos estão determinados, deduz-se que se pode falar de um direito certo. Mas não se pode. A verdade é que nenhum desses pressupostos se ajusta à realidade. Nem as normas estão estabelecidas com certeza de antemão nem os fatos são entidades objetivas determináveis com plena segurança. Quando se assina um contrato um bom advogado pode prever muita coisa e ajustar o negócio às normas vigentes e ao que está sendo decidido nos tribunais; mas ninguém pode garantir que os direitos e deveres previstos não venham a ser questionados em tribunal e ninguém pode garantir a sentença. Será sempre possível alcançar uma relativa dose de certeza e segurança; mas pedir mais será desnecessário, indesejável e difícil de alcançar. Segundo Frank a demanda por uma excessiva estabilidade jurídica não surge de necessidades práticas. Tal demanda não tem suas raízes na realidade mas sim nos sonhos míticos. A busca do que é justo e do que é injusto, da fala do Juiz Infalível, do Direito Eterno, é um sonho do homem, a busca do mundo perfeito em que nada se move, em que tudo é imóvel e perfeito, em que não há contrariedades nem surpresas, em que tudo se repete tudo sempre igual, em que não há guerra, pestes, planos econômicos e desavenças, em que tudo tem que ser conforme devia ser (mas não é) é um sonho de certa espécie de gente. A experiência frustra mas é negada por estas pessoas que se recusam a aceitar a realidade e proclamam o mundo como deveria ser e acreditam que ele será como deveria ser. As esperanças substituem o real. As verdades têm que bater com os valores destas pessoas. A realidade tem que ser tranqüila, confortável, amistosa, afetuosa, isenta de complicações, sem perturbações. Quando uma experiência frustra os valores esperados esta gente decreta que houve um desvio, um mal imaginário, uma ilusão. Tais aparências não podem impactar o homem que acredita na vida como Una, Eterna e Invariável. Com este embuste estas pessoas se enganam, enganam os outros e pretendem que a vida seja conforme os sonhos, que os valores sejam a realidade, que o desagradável que a vida contem seja mera aparência. Referindo-se às concepções jurídicas predominantes no século XIX, Frank diz que houve um retorno à atitude medieval que considerava os conceitos, as abstrações, os nomes gerais e genéricos como mais reais que as coisas concretas. Não se trata, claro, de abolir a lógica formal, mas de reconhecer que a decisão judicial está muito além dos limites da lógica formal porque o problema da decisão passa obrigatoriamente pelo problema de eleição de premissas. Enquanto o juiz busca eleger as premissas em que baseará sua decisão a lógica formal não é de nenhuma ajuda. Frank diz que com o uso 177 ilegítimo da lógica formal o que se conseguiu no século XIX foi disfarçar e até ocultar o problema de eleição de premissas. Ele não nega que haja regras jurídicas, mas diz que servem para alguma coisa, não para tudo como se apregoa. Ele nega que o Direito efetivo produzido pelos tribunais consista em conclusões retiradas das regras gerais. As normas gerais são só um dos ingredientes da decisão. O problema principal em uma ação judicial consiste na eleição dos princípios. É o juiz quem decide quais serão as premissas nas quais baseará sua decisão. Ele escolhe tanto as premissas relativas aos princípios quanto aquelas relativas aos fatos. A partir daí o juiz concluirá. Mas o juiz é um ser humano e costuma agir como tal. Quando entra em contato com o processo o juiz forma uma convicção do que é justo e do que não é no caso em questão. Somente depois procura os princípios que sustentarão sua conclusão. Se o Direito efetivo consiste nas decisões judiciais e temos que os juizes decidem por intuição ou sentimento a chave do problema consiste em averiguar como o juiz forma sua intuição ou sentimento. Um fator primário é a lei, os regulamentos, os precedentes, as doutrinas em voga. Novamente entra em campo o fator humano pois alguém tem que decidir, qual lei, qual regulamento, qual precedente, qual dentre as doutrinas a que está em voga ou a que é preferida pelo juiz. Volta-se ao ponto de partida. É o fator humano que influencia a decisão. É o juiz decidindo entre possibilidades igualmente válidas qual a melhor no seu julgamento pessoal. Muitas vezes há juizes que tentam fugir desta postura solitária e tentam orientar-se pelo que seja a orientação social predominante. Mas aí também há que se distinguir entre diversas correntes qual a predominante e novamente entra em cena a posição pessoal do juiz. Ademais nessa hora entram as convicções políticas pessoais do juiz e voltase ao ponto de partida de novo. Pior fica na escolha dos fatos: existe maior alcance prático na escolha dos fatos que na escolha das normas. Há que se ver bem que nesta fase múltiplos fatores subjetivos entram em ação. Como complicador, os fatos nunca são vistos, apreciados, diretamente pelo juiz que deles tem conhecimento indireto e já fabricado pelas partes. Sucede que nesta hora entram em campo diversos fatores subjetivos que influenciarão favorável ou desfavoravelmente: os juizes podem não gostar de mulheres, das loiras ou das morenas, das ruivas, dos homens com barba, dos italianos, dos africanos, dos médicos, dos advogados. Tudo, nesta hora, contribui para que o juiz tenha mais atenção a um fato, tenha melhor memória de outro, tenha mais simpatia por um detalhe, tudo influindo na credibilidade que o juiz sente a respeito do que está apresentado no processo. A decisão passará por estes fatores, sem dúvida. O direito efetivo se implementa, torna-se concreto, adquire realidade não por virtude de regras abstratas mas apenas e tão somente pela ação direta 178 dos seres humanos. A personalidade dos juizes é exclusivamente o fator central. Assim é como acontece. O juiz recebe influência decisiva de sua educação geral, de sua educação jurídica, de seus vínculos familiares e pessoais, de sua posição (e origem) econômica e social, de sua experiência política e jurídica, de sua filiação e de sua opinião política, características intelectuais e de temperamento: somente uma boa e desprendida atitude desses juizes ao se auto-analisarem (ou de se deixarem ajudar por profissionais) poderá desfazer os nós que amarram suas atitudes a fatores estranhos. Apesar de estas influências serem fundamentais sobre a mente do juiz quando vai decidir, e independentemente destas influências, é preciso reconhecer que o juiz sempre cria o direito efetivo. E tal constatação assusta todas as pessoas. Passa a ser muito poder na mão de um só. O juiz tem que estabelecer os fatos, sopesar as pretensões contraditórias, formular a qualificação jurídica destas pretensões, estabelecer a qualificação jurídica dos fatos, tem que rever – ou reajustar – as regras legais para que se encaixem nelas os fatos apresentados. Porque levar a cabo esta tarefa hercúlea de maneira escondida, clandestina, oculta? De outro lado exagerou-se muito a certeza e segurança do direito e, de outro, anatematizou-se em demasia os prejuízos da incerteza. Um pleito judicial é uma batalha e nada pode predizer o seu resultado final. Mas sempre será um fator muito importante, dos mais importantes, a personalidade do juiz. Como não são iguais os juizes nem são iguais em sua maneira de ser, Frank não dúvida que isto pode trazer consequências desagradáveis e prejudiciais. Mas assinala que a uniformidade traria consequências muito piores. Seria, desta forma, aconselhável ter nos juizes pessoas com mentes estereotipadas, rígidas, sem criatividade, pouco dispostas a adentrar cada caso para distinguir suas cores individuais, para perceber seus fatores concretos impossíveis de serem contemplados pela norma geral, sem o que não se praticará justiça na decisão? Seria conveniente ter nos juizes pessoas insensíveis às mudanças sociais? Sempre que, aduz Frank, os juizes forem inteligentes, sensatos e ilustrados o Direito terá menos uniformidade do que o Direito criado por juizes desprovidos de talento. Assim, então, teremos sempre menos certeza, menos segurança, menos uniformidade, menos previsibilidade, conclui Frank. Prosseguindo seu estudo Recaséns206 nos traz as considerações de Joseph W. Bingham que é considerado como um dos principais inspiradores do movimento. Foi iconoclasta em relação aos velhos mitos e ficções convencionais. Não aceita que o direito seja só um corpo de normas e princípios. Afirma que o direito é consideravelmente mais amplo e mais complexo que um sistema de normas estereotipadas. Considera que o 206 (1963 –pág 636) 179 direito é um campo para estudo científico análogo ao campo de qualquer outra ciência. As seqüências de fatos e seus efeitos jurídicos são fenômenos externos para investigação. O conhecimento das relações causais de tais seqüências e das causas, a organização e o modo de operar do mecanismo estatal que as rege, constituem o conhecimento do direito em um dos sentidos jurídicos desta palavra. Desenvolveram-se regras e princípios para uso neste campo e adotaram-se termos técnicos com definições mais ou menos estereotipadas. Tudo isto constitui um aparato de instrumentos mentais que são usados para classificar, expressar e comunicar de modo abreviado o conhecimento acumulado do direito do mesmo modo como em outras ciências são usadas também definições e generalizações. Seguindo caminho diferente de Llewellyn e Frank, Bingham afirma que as generalizações feitas pelos juizes são fatores eventuais que os ajudam a alcançar sua decisão. Mas não são o Direito. Os tribunais não hesitam em passar por cima de precedentes jurisprudenciais nem em ignorar aquelas generalizações judiciais quando os casos concretos em litígio assim o requerem. Aquilo que constitui a substância do Direito é o caso ele mesmo, o caso concreto, consistente nos fatos e nas conseqüências oficiais que se seguem a estes fatos. Interessa aos juristas práticos compreender a conduta dos tribunais e poder predizê-las mais tarde. Muitas vezes a conduta analisada não tem conformidade com o que ensinam os livros de direito. Diz que uma compreensão adequada dos fatos ensejará considerável melhora na educação jurídica, um melhor entendimento das altas funções do juiz e, conseqüentemente, um progresso na administração da justiça. Descrê dos sistemas filosóficos e de seus fundamentos que visam por ficção ditar o que é a realidade, dando-a como perfeita, partindo de princípios que expressam uma verdade eterna. Crê que tais sistemas, embora muito ambiciosos, assentam-se sobre falácias sobre a natureza e não levam em conta os utensílios do pensamento, os meios da inteligência humana e os fatos da vida social e política. Por mais bem intencionados que sejam estes sistemas, destacando-se os europeus nesta maneira de se apresentar, eles projetam uma esperança de que algo seja assim, ou de que algo deveria ser assim, e se distanciam da realidade causando mais danos que benefícios. Prosseguindo com o estudo do realismo americano Recaséns apresenta as teses de Thurman Arnold, juiz e professor, que, embora tenha teses parecidas com vários autores do movimento, sentiu-se mais atraído pelo enfoque semântico. Segundo ele uma palavra não tem o menor sentido a menos que tenha imediata conexão com a experiência. Adiante, sustenta que quando uma palavra tenha um estímulo emocional ela não pode ter valor como instrumento intelectual. Aduz que toda instituição social está baseada em 4 elementos comuns: 1um credo; 2- um conjunto de atitudes que determina que esse credo seja 180 eficaz; 3- uma série de hábitos institucionais; 4- uma tradição mitológica ou histórica que prove que aquele credo tenha sido ordenado por forças superiores ao homem. Exemplifica com a organização política que eventualmente seja um credo ao redor do qual tenham se fixado certas atitudes e hábitos inamovíveis. Esta organização se assenta sobre idéias e documentos escritos, desenvolvidos há já muito tempo, donde criou-se uma imensa tradição histórica de que este fato singular deveu-se a um grupo iluminado de pessoas excepcionais. E toda a gente acredita. Os crentes nesta instituição não percebem o folclore que se instituiu e reconhecem o credo como verdade, como acontecimento histórico magnífico, como direito natural, como um corpo de princípios inevitáveis. Assim o direito para Arnold é um corpo de princípios e ideais, que se situa acima dos homens, que sobrevive às custas de vasta literatura metafísica e em uma sucessão de juízos e processos cerimoniais. O homem comum precisa acreditar que o direito é simétrico e racional e precisa ter fé em uma filosofia do direito unificada. A literatura jurídica que se segue é ampla e vaga o suficiente para abarcar todos os princípios contraditórios e outorgar ao vulgo o céu atrás dos tribunais. A grande massa que não conhece os meandros dos tribunais pensa que o processo judicial simboliza o céu da justiça que se sobrepõe à insegurança, à crueldade e à irracionalidade do mundo cotidiano. O processo por controvérsia, o tribunal por combate, faz nascer outro mito, aquele que diz que o Direito que surge através de uma polêmica tem mais possibilidade de ser justo que as decisões obtidas por negociação amistosa. Arnold não crê que do combate surja a luz ou que das argumentações das partes se deduza a verdade. No conceito do Direito a figura que prepondera é a do homem comum. Assim a fonte do direito está no coração do homem comum cuja confiança na perfeição do direito lhe empresta poder como instituição. O desenvolvimento do direito acompanhará o que o homem comum continuar pensando a respeito dele, de seus mitos, símbolos e cerimonial. Para finalizar os estudo, Recaséns alude às teses de Yntema, Oliphant, Moore, Cook e Felix Cohen. Yntema considera que a ciência do direito deve partir de dois pressupostos: 1- que o efeito do direito sobre a conduta do homem é mensurável; 2- que, para os propósitos de uma investigação com nível científico, não é necessário considerar a conduta humana como algo que implique essencialmente no exercício do livre arbítrio. Seu propósito é o de melhorar a administração da Justiça e a elaboração do Direito. Caminha axiológicamente portanto. Sustenta que os ideais de justiça não relacionados com os ideais humanos não são verdadeiros ideais pois a justiça não consiste em uma efervescência inefável de um vazio lógico mas 181 em uma espécie de transbordar de específicas relações humanas, de particulares relações humanas e da vida. Oliphant trabalhou sobremaneira para melhorar a administração da justiça e fazer com que os advogados pudessem trabalhar melhor para seus clientes e para o Direito em geral. Underhill Moore tratou de dois tipos de problemas: 1- que correlação há entre as decisões judiciais e as práticas institucionais relacionadas com os fatos de tais decisões; 2- que relação há entre os símbolos jurídicos e a obediência que os leigos em direito prestam a tais símbolos. Seu campo é o da sociologia jurídica. Walter Wheeler Cook pretende não ser confundido com os realistas, ainda mais com os realistas que ele entende agressivos e iconoclastas. Reconhece que no direito não se pode obter certeza igual a que se obtém na física matemática. Sabe que o advogado, como o médico e o engenheiro, precisa predizer acontecimentos futuros. Para tal pode se valer de decisões pretéritas e de algumas generalizações. Mas não pode se esquecer que seu caso é “novo” em relação aos outros. O mesmo se pode falar dos juizes cuja tarefa não consiste tanto em achar as regras preexistentes mas em perceber os sentidos destas regras e referi-las a todos os fatores que integram o litígio. Posto que decidirá, deverá o juiz orientar-se em função de considerações políticas sociais e econômicas. O juiz, portanto, deve apreciar na maior medida as conseqüências que sua decisão trará. Para tal o juiz necessita saber duas coisas: 1- quais são os efeitos sociais que deve mirar? 2- de que maneira a decisão que vai proferir, qualquer que seja, afetará aqueles efeitos? O juiz deve se ilustrar nas ciências sociais para tal mister. Dizia que as leis humanas são instrumentos, utensílios, de que se vale a sociedade como um dos métodos para regular a conduta humana e para promover aqueles tipos de conduta que são desejáveis. No campo jurídico temos que nos encontrar com uma ciência sócio-humanista. Finalmente Felix Cohen. Trata-se de pensador original. Começou com ácida crítica contra as teorias tradicionais que tratam os conceitos jurídicos como entidades sobrenaturais e que não tem nenhuma realidade salvo para os que professam sua fé nestas crenças. Para facilitar seu caminho o direito aparece com independência da ética e das ciências positivas (economia, psicologia, sociologia) e resulta daí que o direito se isola e não pode ser confrontado por um princípio ético ou por um principio empírico. Contra esta postura Cohen defende que o pensamento jurídico deve levar em conta os fatos reais da conduta judicial. Deve empregar métodos estatísticos para a descrição científica e para a previsão da conduta judicial. Deve descobrir os meios ocultos das sentenças judiciais e ponderar as forças sociais que se fazem representar nas cortes de justiça. Indo além, o pensamento jurídico criador deverá ultrapassar os princípios de justiça e razão tradicionalmente aceitos para estimar, em termos éticos, 182 os valores sociais que estão em jogo quando se está diante do problema de eleger uma entre duas normas. O direito não requer obediência por ser racional, justo, bom mas apenas por causa do poder que está por trás dando-lhe suporte. Cohen propõe um estudo preliminar do direito com independência do valor justiça/injustiça. Mas aqui há um problema: o juiz tem seus valores e isto deve ser estudado tanto quanto se estudam os fatos sociais. O jurista não trabalha com ritos, com símbolos, com conceitos mas somente com valorações humanas em conflito. A função da ciência jurídica consiste em iluminar o significado real das normas jurídicas mediante a verificação dos efeitos que elas produzem na ordem social; a valoração destes efeitos não pertence à ciência jurídica, pertence à ética. Ao abordar os temas axiológicos – segurança, liberdade, justiça, paz etc – Cohen considera que estes temas não se imbricam com o direito. Não desconhece sua importância mas denuncia que cada sistema privilegia um contra os outros e que isto é causa de problemas reais pois a maior parte dos problemas sociais tem como móvel um conflito entre aqueles valores ou fins o que nos força a buscar um denominador comum para tratar de tais conflitos. Para o pensador esta pauta comum é o princípio da vida boa. Tal princípio é muito formalista e abstrato. Remete sua solução à ética. Sabe que o mundo filosófico enredou-se em explicar a realidade através de uma teoria relativista ou subjetiva ou de uma teoria absolutista e que nenhuma delas logrou explicar bem o que se passa. O resultado não satisfaz de nenhuma maneira, mas Cohen adverte que a meditação filosófica nem sempre alcança um resultado feliz. Mostramos aqui o confronto entre a escola européia e o movimento conhecido como realismo americano. Uma aborda as questões mitificando-as e disfarçando os fatos como se sucedem no mundo real, pretendendo gerar crença que esconda a incerteza em que vive o mundo jurídico. Outro expõe a incerteza como única realidade e denuncia a falha de exposição da escola européia. O primeiro movimento aliena a massa, o segundo passa-lhe angústia. Há solução? Haveria esperança? Está na lei e em sua cega obediência, a solução, como pretendem vários pensadores? * 7.3 – ainda o mito? 183 A lei, presumivelmente, deve ser conhecida pela sociedade, pelas partes e pelo juiz, o que é um postulado de razão prática, para que haja certeza e segurança no viver social. A lei (a norma) precisa ser interpretada segundo critério que a torne clara, aceita e assumida pela sociedade. É como que uma facilitação do tema: se difícil é exibir o que é Justiça, que se defina, ao menos, na ação do homem, o que é jurídico e o que não é, o que é lícito ou ilícito na ação humana. E que a isto se dê publicidade. Ou seja, que a definição do que é jurídico e do que não é, após longos debates, seja comunicada à sociedade. Deste modo, a dinamicidade dos valores e, conseqüentemente, da Justiça aliada à pretensa imobilidade social reclamada pela certeza e pela segurança jurídicas, constituem uma mescla e um stop and go formidáveis para a sobrevivência e evolução humanas. A questão da obrigatoriedade da norma, ou seja, dos valores que estão postos na norma, segundo propomos, confunde-se com a própria gênese deles, com a própria gênese dos valores: se mais do que age, o homem decide qual ação promoverá, ele o faz com base no sentimento que lhe aponta dentre valores qual o mais apropriado (e prazeroso, mais confortável e implicado com seu bem estar), o mais seguro, o que mais lhe permitirá sobreviver e evoluir. Vem daí a importância magna da autoridade: são princípios já testados, depurados e experimentados por pessoas com alto grau de envolvimento com a sobrevivência e evolução dos que lhe são pósteros e, portanto, passados para frente com amor, lealdade e boa vontade por quem é altamente comprometido com a seqüência que virá na cadeia da espécie; daí ser de bom alvitre obedecer. É prudente, para dizer o mínimo. * 7.4 – Certeza Certeza (Abbagnano) tem dois significados fundamentais não excludentes: 1- segurança subjetiva da verdade de um conhecimento (certitude) e 2garantia que um conhecimento oferece da sua verdade (certainty). “Chamamos de conhecer, diz Locke, o estar certo da verdade de uma proposição (Ensaios, IV, 6, 3)”. A segurança é a certeza de que tudo está conforme. Certeza e segurança jurídicas têm a ver com o devido processo legal, no sentido adjetivo e substantivo, merecido pelo cidadão. Pretende-se que um pode acionar ou ser acionado dentro de regras conhecidas e através de meios e recursos conhecidos. Pretende-se que um conflito será finalizado – sempre haverá uma decisão - com acerto e dentro de regras conhecidas, 184 dentro de conceitos conhecidos, dentro de limites conhecidos, dentro das posições dominantes e conhecidas e que os querelantes serão sempre tratados com respeito e como iguais perante a lei. Inversamente tem a ver com não ser necessário nem acionar nem ser acionado porque o conhecimento do que é lícito faz com que homem prudente planeje suas ações de modo a não incomodar nem ser incomodado. No mundo de hoje, certeza e segurança jurídicas, assim, e para os mais experientes, parecem se inserir no mundo da quimera apesar de bibliotecas inteiras tratarem do tema. Aliás, para fugir da pecha é que, certeza, no sentido que lhe damos e como dito atrás em outro capítulo, é para nós a convicção que se instala depois que um assunto é discutido e dado como certo, como já deliberado, como já discutido, como já decidido, é a proposição ‘verdadeira’ que surge no instante em que se diz ‘então está certo!’. E a previsibilidade relaciona-se com ver antecipadamente, com predizer, com cálculo cujo resultado já se conhece. Prever é saltar para o futuro progredindo para o passado. Se for a emoção, no sentido neurofisiológico, que nos prepara para a ação é a previsão o estímulo. É um dos “produtos” (o que se relacionaria na visão dos empresários consultados com fazer, produzir, com know how, com técnica, portanto) que, se espera, a Justiça deve entregar como vimos na Pesquisa do IPEA retro mencionada, ou seja, em caso de ação judicial a sentença deve ser naturalmente previsível. Mais que a certeza e a segurança jurídicas – no sentido tradicional dos termos - esta condição, a da previsibilidade, parece se inserir com mais praticidade no mundo social e negocial moderno. Confunde-se, aliás, com o nosso conceito de certeza que demos acima. Mas nunca será sinônimo de verdade pétrea e, portanto, imutável. Como diz Peter M. Hejl 207 : “sociedades e, portanto, cada um de nós, necessitam, ao menos para seu funcionamento interno, de realidades estabilizadas como referência presumível e previsível para procedimento e comunicação. Somente a trivialização, isto é, o tornar-previsível, torna comunicação e atuação coerente possíveis. Mas isto requer sobretudo realidades socialmente estabilizadas – e então, novamente, possibilidades de modificá-las. É necessário, portanto, estabilização e desestabilização, esta até mesmo na forma aparentemente paradoxal da desestabilização estabilizada ”. Esta atitude sempre em devir, instrumentária de eleições, até as partidárias, de seminários, de estudos, de diálogos, por exemplo, em inúmeros níveis internos de uma nação, potencializa a máxima famosa de Heinz von 207 (O olhar do Observador – Paul Watzlawick e Peter Krieg – Editorial Psy II – 1995): 185 Foerster: “aja sempre de modo a aumentar o número de possibilidades de opção”, o que é um imperativo ético. Nietzsche 208 já dizia: Uma vez que se tenha encontrado a si mesmo, é preciso saber, de tempo em tempo, perder-se e depois se reencontrar: pressuposto que se seja um pensador...Daquilo que sabes conhecer e medir, é preciso que te despeças, pelo menos por um tempo. Somente depois de teres deixado a cidade verás a que altura suas torres se elevam acima das casas. E quanto à cristalização das idéias, quanto ao imobilismo a que se chega depois que se pensa ter atingido a Verdade Absoluta dizia Nietzsche: As convicções são inimigas mais perigosas da verdade que as mentiras209. Ou seja, as verdades têm que ser revistas a todo tempo. Há que se praticar a Política da Insegurança. Mas enquanto não se mudar de verdade axiológica (e nunca se muda de repente!), quão confortável será conviver com o que está estabelecido sem inovações inesperadas a perturbar o cenário tão conhecido. Falando do cenário penal dizia Beccaria210 “com leis penais executadas à letra, cada cidadão pode calcular exatamente os inconvenientes de uma ação reprovável; e isso é útil, porque tal conhecimento poderá desviá-lo do crime. Gozará com segurança de sua liberdade e dos seus bens; e isso é justo, porque é esse o fim da reunião dos homens em sociedade. É verdade, também, que os cidadãos adquirirão assim um certo espírito de independência e serão menos escravos dos que ousaram dar o nome sagrado de virtude à cobardia, às fraquezas e às complacências cegas; estarão, porém, menos submetidos às leis e à autoridade dos magistrados”. Tal cenário controla a expectativa, dita comportamento e é fundamental para as pessoas saberem como agir, como reagir e como se programar. O mundo negocial, principalmente, não funciona sem essa condição. Como em sã consciência programar um investimento, por exemplo, cuja maturação, realização e desenvolvimento pode retornar em 15 anos? E no campo estritamente pessoal: Como gerar filhos? A norma, em principio, fará o serviço de influir na previsibilidade. Compete a ela proibir, permitir e obrigar de modo que a sociedade possa se organizar. Está, portanto, no sonho de feitura de boas normas, sábias, estáveis, longevas, o primeiro requisito para que se alcance a previsibilidade. E imensa a importância do sentimento na feitura destas normas, como vimos. E está na decidibilidade (sentenças) o segundo requisito para que o ordenamento social se torne previsível e disciplinado. A sentença do tribunal também é norma. 208 (1978 pág 150) 209 210 (aforismo 483 de Humano, demasiado Humano, citado por Scarlett, 2000, pág 184). (pág 38 186 É enorme neste campo a influência do sentimento e, portanto, cabe a pergunta: como aproveitar as boas qualidades do sentimento e descartar as más? As boas normas têm que ser interpretadas pelo tribunal. Como fazê-lo sem interferência de fatores internos que dos externos (interesse, poder...) estão tão conscientes os juízes e juízas? Alguns comentadores pensam que não se deve estudar a interpretação (o que), mas a pessoa (quem) de quem interpretou que lá estará – na pessoa - a verdadeira motivação. E isto ocorre mesmo. Como fugir da questão ‘quem interpretou’? Ou em outros termos, como tornar a interpretação conforme o momento e propiciar a pacificação dos juizes em torno de temas que incomodem a sociedade 211. Primeiro com Paidéia no sentido que demos no capítulo 2.2. Depois com boa escola que ensine como decidir e que ensine o que é decidir; depois com interdisciplinaridade que o que decide tem que ter noções de sociologia, psicologia, história, filosofia, literatura, semiótica e linguística, economia e administração de negócios para ser, no mínimo, informado dos efeitos econômicos e sociais de suas decisões; depois com o estabelecimento de vasos comunicantes, antes com a sociedade, a seguir com o próprio corpo decididor porque no seu final, depois de muitos recursos, a questão será sempre decidida pela visão dominante na última instância em que cair o processo, o que acarreta imensa insegurança à parte que clama por justiça e galga degraus até que chegue o resultado que está dentro do entendimento conhecido e publicado pela maior corte que vai ‘decidir’ mesmo a causa: enorme o desprezo às instâncias inferiores, portanto, e imensa irritação pelo tempo decorrido e perdido. Mais, o corpo judiciário tem que ser controlado por metas de produção e objetivos, por efetividade, por meios e fins técnico-administrativos, portanto (em que haja clara distinção entre a Direção do Cartório e a Administração da Justiça em um processo) e seus integrantes devem receber apoio psicológico para amenizar as agruras de uma posição tão solitária, angustiante e estafante (mesmo se a decisão for somente técnica a posição, ainda assim permanece solitária e angustiante). Mais além ainda, as decisões têm que ser premiadas pelo mérito (cultas, sábias, conforme o ordenamento jurídico e pensante vigente, criativas, inovadoras etc) e punidas pelo desmérito (sentenças que proferidas não visam senão escrever a biografia do juiz; sentenças totalmente reformadas em grau de recurso; as que forem contra legem, por exemplo, por mais criativas que forem as motivações elencadas para tal decisão, como serem inconstitucionais as leis em questão quando evidentemente não o forem, etc.) com penalidades aos 211 (e isso é mais importante ainda, e muito fácil de realizar, se atentarmos, como já dissemos antes, ao dito de um Juiz do STF que as teses em julgamento naquela Corte não são mais que 100 espalhadas em 2002 pelos 171.980 processos julgados naquele ano). 187 desgarrados e empedernidos e aos que fazem da magistratura um meio de praticar política partidária, por exemplo. E, finalmente, pela especialização 212 que não é possível um juiz ou uma juíza terem tantos processos versando sobre assuntos tão diferentes: a experiência, muito mais que a técnica, fará o bom julgador. Sem estes requisitos a pretendida velocidade decisória se alcançada não propiciará boas decisões213 e as reclamações continuarão. Como evitar as queixas? Como, no nosso jargão, customizar 214 as decisões caso a caso a partir de pontos de vista diferentes? É a sociedade que precisa fixar-se em pontos de concórdia que serão pinçados dentre vários possíveis e preservá-los enquanto forem valentes. É Tércio 215 que nos diz que “uma teoria dogmática geral da decisão não chegou a receber, na tradição, nenhuma forma de acabamento”. Problema? Em parte sim, mas uma indicação do por que as decisões, pelo menos no Brasil, serem tão contestadas. Falta, se não reflexão, acabamento. Segundo o Autor a decisão tem como finalidade última absorver a insegurança, ou seja, transformar incompatibilidades indecidíveis em alternativas decidíveis, ainda que, num momento subseqüente, venha a gerar novas situações de incompatibilidade eventualmente até mais complexas que as anteriores. Retira-se assim a idéia de harmonia ou consenso como se a decisão pudesse eliminar o conflito e trazer a paz. Decisões absorvem insegurança não por eliminarem o conflito, mas por o transformarem. E revestem-se de Poder para não serem contestadas, para serem acatadas e cumpridas. Sentença não se discute: cumpre-se! diz o jargão brasileiro. Aí o busílis: como contentar as partes e fazer justiça, ou seja, mostrar às partes que a sobrevivência de uma – ou de ambas - foi ou não foi ameaçada. Se tal situação num corpo ou num organismo, por exemplo, for tolerada pode surgir um câncer, ou uma enorme infecção, por exemplo. Alguém terá que se curvar para que se salve o corpo, Bem maior. O atual sistema jurídico faz proliferar os cânceres e infecções sem parecer se preocupar com isso a não ser aumentar o próprio Poder para manter e consolidar tal panorama. Aceitando que num conflito temos o sinal inequívoco de que a comunicação entre as partes foi interrompida, como restabelecer esta comunicação ou, pelo menos, como fazer com que as partes se entendam e volte a vigorar entre elas uma comunicação normal? Como acordá-las neste 212 (quantos juízes tem cada modalidade esportiva? Tênis, vôlei, futebol, etc têm seus especialistas em campo, freqüentemente mais de um, às vezes auxiliados por especialistas em um aspecto da quadra ou da partida, e não se vê um juiz de uma modalidade sendo juiz de outra!) 213 (parte-se hoje no Brasil do princípio que se bem aparelhados para decidir com rapidez nosso corpo judiciário naturalmente proferirá boas decisões com o que não concordamos) 214 (no caso da sentença, ampliando para as partes o sentido do inglês customize que significa ajustar a casos específicos, fazer de acordo com especificações individuais, atender a reclamos bem específicos) 215 (2001 pág 306) 188 processo e encaminhar a voz a cada uma para que se restabeleça o canal de comunicação como se elas se comunicassem deste modo e não do modo original causador de confusão e oposição? Como adicionar bom senso e prudências às partes que se desavieram? Certamente o atual sistema não é de grande colaboração quando lembra a atuação do velho mestre-escola ou do bedel que sem ouvir os adolescentes que brigaram nem analisar a briga ela mesma já os punia clamando pela ordem, a boa ordem! Assim parecem fazer muitos juizes que não ouvem as partes, não se enfronham na desavença, mas “sabem” muito bem qual a verdadeira sentença que conduzirá o caso a seus verdadeiros contornos. É a perpetuação da falta de comunicação: primeiro entre as partes, depois entre elas e seu magistrado. Conflitos sociais ocorrem porque emissores e receptores – reciprocamente considerados – interrompem sua comunicação. A decisão jurídica vem dar um fim a esta situação, ou seja, ao contrário dos conflitos sociais, políticos, religiosos, étnicos, etc., os conflitos jurídicos terminam, isto é, não continuam. Continua Tércio a nos dizer que a situação não sai de controle: o conflito é paralisado por decisão. Controle nesta acepção (Comparato) tem dois sentidos. Um forte, de dominação. Um fraco, de disciplina ou regulação. Entra aí o poder, o poder-dominação. Esta brutalidade que nos remete aos primórdios do Direito (poder força) vexa o jurista que prefere abordar o tema sob a ótica do poder jurídico, eufemismo que pretende passar o significado de que o arbítrio está castrado e esvaziado da brutalidade e da força, pois se conforma à obediência da lei. Assim, 216 “o problema dogmático do controle na correlação entre conflito e decisão nos aponta para dois aspectos distintos mas relacionados: o interno, como teoria dogmática da aplicação do direito, que encara a decisão jurídica como controle com base nos próprios instrumentos que o sistema normativo oferece (controle-disciplina) e o externo, como teoria dogmática da argumentação jurídica, que se refere a instrumentos que a retórica jurídica traz para o sistema (controle-dominação)”. Tradicionalmente a doutrina costuma entender que o aspecto interno se resolve numa construção silogística premissa maior, premissa menor, conclusão, tema que já foi abordado por nós. Pessoas há, entretanto, tema no qual já tocamos também, que sugerem que primeiro o julgador tem a decisão e depois, só depois, é que vai procurar regressivamente as premissas anteriores de modo a formar um silogismo perfeito. Terminando o assunto há que se distinguir a discussão jurídica que está no conflito entre ‘de direito’, ‘de fato’ e ‘de direito e de fato’. A prova e a retórica surgem assim com caráter privilegiado. E a análise do fato e a verificação de como ele “cai” sob a norma passa a ter uma 216 (2001 pág 310) 189 importância extraordinária, aliás, muito pouco comentada, pois as pessoas entendem que tipificar um fato e enquadrá-lo na lei é atividade exageradamente fácil sem se atentarem para a importância de que se reveste tal decisão e o perigo que representa tomá-la mal. Posta a questão, parece que o processo decisório tem um método e que, embora possa findar-se como demonstração de poder, porque deixa motivo, afinal, para reclamação das partes? Do que reclamam as partes? Não há possibilidade de argumentação? De contradição? Não há análise das provas? Das leis que tutelam a matéria? Já não houve a demonstração dogmática de que diante do impasse há, forçosamente, inclusive no interesse social, que surgir uma decisão que extinga o processo, que termine o conflito, que, pelo menos, transforme a questão, paralisando-a e encerrando-a sem volta? E o caso não é examinado por um magistrado que reúne em si toda uma carga arquetípica própria de quem ocupa tal função? Porque as partes, em geral, saem insatisfeitas do processo? E o processo afinal deve ser terminado manu militari por um juiz ou uma juíza ou deve satisfazer o reclamo de Justiça das Partes? Em sendo a decisão um ato de comunicação, como ação de alguém para alguém, não se considera que a decisão jurídica vem plena de discurso racional? Que se não obtém consenso, pelo menos, se valeu das regras que visam obter consenso? E que embora não necessariamente conquiste a adesão das partes, ou de uma delas, pode ser compreendida e entendida por quem estiver de fora que verificará muito rapidamente as condições de racionalidade em que o processo naturalmente transcorreu? Mas, infelizmente, não é assim que acontece no mundo real! Por quê? Há uma pista muito interessante no julgamento de Sócrates. Este famosíssimo julgamento que comoveu os mais endurecidos corações tem provocado a atenção e a súbita admiração das pessoas que se envolvem com ele. Porque Sócrates foi condenado? Como a cidade matou seu filho mais ilustre, inocente das acusações acima de tudo? Um dos (não o único) aspectos está no processo judicial à época de Péricles e em suas regras. Não era bem judicial como o vemos hoje: o Arconte-rei, supremo magistrado da administração da justiça, tinha à sua direita os acusadores, sempre atenienses, à sua esquerda o acusado e à sua frente a platéia que uivava, torcia, urrava, manifestava predileção por um lado ou por outro (e claro que cada parte levava sua própria torcida para apoiar sua fala, além de filhos, mulher, parentes, velhos e doentes, amigos etc. para comover os juizes) e que depois, ao final, festejava ruidosamente a vitória do ganhador como se fosse o fim de um torneio esportivo. Os eliastas, os que fazem parte da Elieia, ou dicastas, juizes populares, os julgadores, todos cidadãos atenienses, tinham uma tribuna especial que lhes era designada e eram 190 aceitos desde que, maiores de trinta anos, jurassem observar as leis e ouvir imparcialmente os acusados. Era muito requisitado este ofício de eliasta. Eram 6.000 cidadãos neste papel, subdivididos em seções de 501 membros cada uma; cada seção tinha uma causa distribuída por sorteio bem como por sorteio era montada cada seção de tal forma que o juiz popular era informado somente no ultimo momento qual causa era sua responsabilidade julgar. Estes artifícios visavam evitar corrupção e constam bem definidos na Constituição de Atenas comentada por Aristóteles. Cada causa podia durar só um dia: o processo tinha início de manhã bem cedo, mais ou menos entre 7 e 8 horas e devia concluir-se com a sentença antes do por do sol (ações que podiam resultar em condenação à morte em Esparta obrigatoriamente deviam durar dias e dias para que a decisão final, irrecorrível, fosse fruto de longa meditação; mas isto não ocorria em Atenas); esta norma impedia delongas e tortuosos meandros judiciais, mas, se rápida, impedia uma decisão mais madura. Isto explica o caráter eminentemente “emotivo” dos processos atenienses: era menos importante demonstrar objetivamente os fatos e sua prova pois não havia tempo nem modo; era mais importante demonstrar subjetivamente a culpa ou a inocência e era necessário convencer os juizes pela piedade, pela simpatia, pela comoção, pelo desdém. A eloqüência era cultivada e era uma mania nacional, como era, também, uma mania nacional abrir processo contra alguém. Era assunto que provocava o maior espanto e admiração a pessoa dizer em roda social ‘abri mais de 70 processos nos últimos Quatro anos’. Como normalmente o processo se resolvia em multa, e não eram baratas, era prova de prestígio e riqueza ter tantos processos, não importando se ganhos ou perdidos, importava o seu número; pagava a multa ou o acusado, o réu, ou o acusador que não tivesse logrado obter pelo menos um quinto dos votos favoráveis à sua tese. Como de praxe era lida a acusação e vinha falar o acusador em pessoa. No caso de Sócrates, e corria o ano de 399 antes de Cristo (maio), a acusação era de impiedade (asèbeia) ou corrupção de jovens. Não era comum tal acusação naqueles dias visto que as antigas tradições estavam afastadas; tal tema era meio deslocado dado que os assuntos religiosos e morais dos cidadãos estavam sendo discutidos em outras esferas. Mas, enfim, a acusação, embora estranha, fora feita e recebida. Para que a verdade viesse a tona mais rapidamente, bem como ficasse evidenciada a sinceridade de quem acusava e de quem defendia, o discurso era feito pelo interessado em pessoa. Como nem todos eram hábeis nesta arte, tais discursos eram encomendados e pagos para os ‘advogados’ de então, os logógrafos ou escritores de discursos. Com isso evitava-se que a pessoa fosse condenada por ignorância e não por culpa. Na época cada um tinha seu estilo: um privilegiava mais a emoção; outro a sutileza lógica da argumentação; outro ainda investia contra as provas de acusação e surgia 191 triunfante a palrar sobre as suas próprias provas; vias mais complicadas , vias mais simples, tudo era motivo de festa e de eloqüência. Era um torneio e o povo sabia reconhecer que logógrafo tinha escrito qual peça que os estilos eram inconfundíveis, mas também cada autor passava a informação que tinha escrito este ou aquele discurso o que já assanhava a sua própria claque. Os discursos não podiam ser lidos e eram recitados de cor por aquele que emprestava a boca e a memória à fala que precisava parecer de improviso. O réu era sempre informado do texto de acusação no dia anterior para que pudesse se preparar e decorar o seu discurso de defesa. Primeiro falou o jovem e insignificante poeta Meleto, o autor da acusação. Depois suas duas testemunhas. Depois os que apoiavam a acusação, Licão, um orador inexpressivo e Anito. Anito era quem contava: em 403 ele e Trasíbulo tinham regressado a Atenas para expulsar os Trinta Tiranos e tentar refazer a antiga democracia e as velhas virtudes. Falaram Licão e Anito e a eles segue-se Sócrates. Sócrates não se submeteu ao costume. Não levou discurso feito, estudado e memorizado e falou mesmo de improviso. Não cabe aqui discutir os motivos políticos do processo. Mas cabe dizer que Sócrates não se curvou à tradição: contanto que se livrasse das dificuldades de um processo o réu chorava, trincava os dentes, implorava, fazia rir e clamava por misericórdia. Sócrates não o fez. O espírito do Tribunal não era aquele. E esse espírito não era novo nem se inaugurou com Sócrates. Ao contrário era antiqüíssimo: Sócrates proclamao com clareza quando lembra aos juizes que eles devem julgar com justiça e não se deixar levar por futilidades e astúcias que encobrem e escondem a real finalidade de seu ofício, bem como o réu, ou o bom orador, deve preocupar-se apenas com a verdade e com mais nada. Não seria através dele, Sócrates, que a cidade se regozijaria com o uso de artifícios para ganhar o processo: importava a verdade. Só a verdade. Sócrates levanta o mesmo dilema que tanto incomodou Goffredo 2400 anos depois e a que já nos referimos: Justiça ou Vitória? Nesse ponto um dos seus desacordos com os Sofistas. Estes, os sabedores, vendiam seu saber, fixavam-se nos problemas prático-sociais do homem, abjuravam o padrão obscuro e metafísico de alguns filósofos e demonstravam eficiência. Buscavam, antes de tudo, a arte de falar bem: inventaram a retórica; depois a arte de refutar as teses dos outros e de fazer prevalecer as próprias (erística), estudavam a lógica com a finalidade de convencer, ciência que tem neles sua origem, aprofundam a gramática, a sintaxe, a sinonímia, tudo da maior utilidade para um povo que precisava da palavra como nenhum outro. 192 Já falamos deles em outro capítulo. Vale referir que eles sabiam que nada é verdadeiro ou falso em absoluto pois que tudo depende da opinião humana e que são os nossos sentimentos que definem o verdadeiro axiológico e o distinguem do falso. Assim diante do dilema Justiça ou Vitória, sendo Vitória a opção escolhida, vale qualquer engendramento para alcançá-la: artifícios, teatralizações, forte oratória, encobrimento da verdade. Há que mover os sentimentos. Sócrates não: propunha outro método. A todos repetia que não basta possuir o saber técnico, o saber fazer, mas é necessário conhecer as razões, as verdadeiras razões pelas quais se fazem as coisas. Estas razões verdadeiras poucos as conhecem mas ninguém adverte que não as conhece. Exemplifica-se com o político profissional, o que aceita os homens como eles são, com suas fraquezas e contradições, com seus vícios e virtudes, sobre os quais ele edifica sua obra e sua pequena realidade histórica determinada; aquele que age ao sabor do momento, do instante e apela para mentira, hipocrisia, elogio, bajulação, o que for necessário, para quem os meios justificam os fins, faz tudo para conseguir seu objetivo; tal ser difere do filosofo político, o que quer transformar os homens e, indiferente às realizações imediatas e formais, tem como instrumento a razão, o sentimento, a boa fé, a verdade a todo custo. Sempre, no instante, prevalece o político profissional sobre o filosofo político e intenso o seu debate, típico de pessoas que não se suportam e tem tempos diferentes: o de um é o presente, o do outro é o futuro. O político sabe fazer política, sabe como se faz, mas não sabe verdadeiramente o que é política e nunca se perguntou. O político profissional com suas vitórias, com sua astúcia em conseguir votos, em retirar apoio da massa, prossegue com seus expedientes e não pratica a verdadeira política (a arte da politeia) a arte de fazer e promover o bem de todos segundo uma unidade de formas humanas, justas e sábias. O mesmo se pode dizer dos juizes: os juizes administram a justiça e é lamentável que eles se contentem com as aparências, com os discursos fáceis, com a encenação, com discursos hábeis e preparados, astutos e coloridos, em suma, com a técnica judicial. Estes juizes mostram ter esquecido o que é a justiça e que desvirtuaram o sentido da sua função. Não são homens que julgam conforme a justiça, são profissionais, são máscaras profissionais tão ridículas e vazias como as máscaras de comédia porque o homem que devia enchê-las desapareceu. No extremo limite poderemos ter um bom juiz no sentido técnico profissional da palavra que não seja em si mesmo, na sua vida, um homem justo. Mas que importa? O juiz não precisa ser um homem justo, basta que saiba administrar bem a justiça, conhecendo-lhe minuciosamente as regras, os meandros, as firulas, o que é uma coisa totalmente diferente. Mas que significa isso senão o 193 divórcio entre justo e justiça e que ao exercer esta última o juiz não sabe o que faz, julga saber, e afinal ignora? Só um louco da genialidade de Sócrates para se defender assim e julgar ele os juizes e o tribunal da época e correr riscos. Era sua maneira de expor-se e repetir sua característica tese, quase a única: interrogar a todos para saber se tinham consciência de seus atos, se sabiam o que faziam, se sabiam que sabiam ou se sabiam que não sabiam. Após o pasmo que se seguiu, Sócrates, exercendo seu direito de réu, chama Meleto para debater com ele a acusação. Meleto é demolido, claro. Mas nem essa posição vai mais favorecer a Sócrates. O fato é que ele não pensa em se defender, não quer se defender de um ponto de vista estritamente jurídico; quer provar quem é e quanto vale. Só. Sócrates termina sua fala e judiciosamente evita entrar em temas que poderiam salvá-lo, mas que se nomeados comoveriam os juizes: suas lutas políticas, sua luta em guerras, os atenienses que salvou em guerra, seus inúmeros e importantes amigos que, se chamados, poderiam testemunhar por ele, sua coerência política ao passar dos anos, sua não sujeição aos tiranos etc Termina dizendo que todos se esqueceram do sentido do que fazem e que é verdadeiramente ridículo acusá-lo de corromper o próximo quando os costumes estão todos corrompidos eles mesmos e são tão superficiais. Ao contrário é ele, Sócrates, que continua a ensinar aos seus conterrâneos e salvar os poucos que podem ser salvos. Depois da fala os dicastas vão em fila votar: bola branca é absolvição, bola preta é condenação. Demora a votação; o público sai, vai tomar vinho, esticar as pernas, tagarelar. Depois de cuidadosa apuração o resultado: para culpado 281 votos, para inocente 220 votos. Quase tinha se inocentado. Sócrates que se recusara a acompanhar e fiscalizar a votação recebe o resultado com calma. Segundo a lei ateniense depois de ser considerado culpado o réu podia se atribuir uma pena; os juizes não podiam escolher uma terceira: ficavam entre a pena pedida pelo acusador e a pena que o réu tinha se atribuído. Sócrates tinha que falar. Ele não se atribui uma pena, ele pede um prêmio, aliás, o mais alto que se podia receber à época. Podia ter pedido o exílio que era o que queriam seus opositores: mas não. Pede um prêmio. Os juizes saem para votar. Sócrates é condenado à morte por 361 contra 140: o tribunal tinha se sentido ofendido em sua dignidade, não tinha compreendido a fina ironia de Sócrates nem compreendido seu sentido. 80 juizes tinham mudado de lado. Estava acabado. 194 Esta história que realmente aconteceu comove as pessoas até hoje. Também pudera. Que pista nos dá este acontecimento verídico? Temos aqui, inicialmente, a separação da técnica no sentido moderno (poíesis ou produção no sentido antigo) da arte ou techné (ars como Cícero também chamava o direito). O meio de produção exige a técnica, um processo, o saber fazer; quando este se descola da arte e da ciência, quando a forma supera o conteúdo, a aparência rege o sentido, quando o ser não vale porque parecer e aparecer é que vale, surge um sentimento de enorme frustração, tudo deixa de ter sentido: é o que se sente hoje em relação à Justiça. Para dizer mais, os integrantes do aparato judicial sentem que não estão suprindo as necessidades da função e se escondem atrás de pretensos pruridos de autoridade, respeito e dignidade que meramente ocultam seu senso deficiente. O rosto cheio de zanga, de severidade não satisfaz mais a população. Demonstra o que está por trás. Não se pensa no sentimento do justo e na justiça. Fiquemos por enquanto com estes comentários sobre a técnica e superficialidade dos juizes. Mas algo aparece imediatamente e incomoda: é o problema da Verdade. Imbricam-se Justiça e Verdade? * 7.5 – verdade Justiça e Verdade não caminham necessariamente juntas, lembremo-nos do julgamento de Sócrates, apesar de seu pungente protesto, quando a questão foi posta e do lema Justice before truth, antes abordado. A verdade (Reale) tem três sentidos: o lógico-formal – o ser ideal estudado pelos lógicos e pelos matemáticos-, o empírico – o ser real sobre o qual se debruçam os cientistas experienciais -, e o existencial – o dever ser das ciências humanas, o mundo dos valores. Os dois primeiros são verificáveis racionalmente e o último não é. Entendemos Verdade, para os efeitos deste trabalho, como a adequação da proposição ao fato a que se refere. Em um processo a proposição que relata um fato pode ser verdadeira, mas ser tratada como falsa, pode ser falsa, mas tratada como verdadeira, pode ser falsa e tratada como falsa e pode ser verdadeira e ser tratada como verdadeira e a conclusão judicial pode ser descolada da proposição que relata o fato qualquer seja sua condição de verdadeira/falsa. Quando a sentença trata a proposição falsa que relata um fato e lhe dá atributo de verdadeira (alguém ser condenado por adultério quando nunca esteve em outra casa e cama que não a sua própria e sempre com sua 195 legítima mulher) está criada uma comoção. Há um evidente mau uso da prerrogativa judicial. Tércio 217 coloca que um abuso nas condições de uso se revela no cometimento normativo (relação de autoridade) quando ocorre uma perversão do ato de falar. Se o enunciado normativo anula o sujeito, destruindo o sentido unificador de seu próprio existir, dir-se-á que houve um abuso das condições de exercício potestativo de autoridade; este ato será defeituoso (na divisão de Tércio entre ato defeituoso e malogrado) embora não seja malogrado (a norma injusta é válida) e a percepção da sua defeituosidade está na realização do ato de falar (sua eficácia) que denuncia a carência de poder do emissor pela carência de sentido existencial do sujeito-destinatário. Exemplificando, Tércio relata que uma condenação de alguém por sonegação quando sonegação não houve, não é injusta porque a sonegação não foi demonstrada mas porque a eficácia da condenação põe a descoberto a insuportabilidade existencial da situação do condenado como sujeito; o que a declaração da injustiça assevera não é a falta de demonstração da culpa, mas a refutação da própria autoridade por uma revogação: embora válida, a relação autoridade/sujeito será desconhecida. É a insuportabilidade do desprezo de que é alvo o sujeito como cidadão, caso em que a injustiça se dá por total falta de cuidado com o outro; o outro não conta, não faz diferença: é indiferente. A autoridade não levando em conta o outro pratica a injustiça. E isto se dá independentemente de ser o fato verdadeiro ou falso. Nos nossos termos há, por parte do magistrado, um sentimento de indiferença (ou de rejeição ou de aversão, de afastamento do outro) que contrasta imediatamente a dignidade do outro. Há como evitar ou como minimizar esta injustiça? Há comparando ações idênticas ou obrigando o magistrado a emitir uma nova decisão em caso novo vinculando seu nome ao que foi decidido. * 7.6 – stare decisis A verdade de uma proposição que foi aceita e está consubstanciada numa súmula sábia e que possa orientar outras decisões em casos semelhantes será sonho? Há como se aproveitar da experiência prévia dos outros que bem sentenciaram? Como será que este problema foi resolvido em outros países? Ou em outras palavras como será que o problema da falta de coerência no judiciário, ou, de como editar sentenças semelhantes para casos 217 (2002 pág 268) 196 semelhantes e que não deixem de satisfazer as partes envolvidas e a sociedade tem sido tratado no mundo? Como combinar estabilidade e dinâmica? A busca da jurisprudência mansa e pacífica, enquanto perdurarem os motivos que levam àquela tomada de posição é comum no mundo todo. Mas há uma regra que sobressai. Fiquemos com ela, com a regra do stare decisis e vamos estudá-la. Cabem observações anteriores, entretanto: primeiro lembrar a frase de um magistrado aposentado que nos disse que no nosso país a sentença de primeira instância, estágio inútil do processo, era tão inócua que deveria ser decidida pela sorte e num átimo para não atrapalhar as partes e fazer a causa andar mais rapidamente; segundo218 que no Brasil a súmula vinculante já existe na prática se pensarmos que um processo findar-se-á somente na última instância a que lhe conduzir o recurso cabível e que será nesta instância, e de acordo com a posição adrede conhecida e publicada, que será mesmo e sem mais recurso, decidido o processo, ou seja, os juizes de instâncias inferiores não estão adstritos à forma de pensar das instâncias superiores mas o processo está; terceiro que a posição dominante deve conduzir o trabalho dos juizes mas também o dos advogados e demais intervenientes no processo, promotores, procuradores, etc. o que não acontece no nosso atual estágio; quarto que se engana muito quem pensa que a súmula vinculante, ou o princípio do stare decisis, retira a liberdade dos juizes de instâncias inferiores, pelo contrário até pois estimula a criatividade; quinto que este sistema não será de fácil implantação no Brasil porque as faculdades de ensino adotam o método expositivo que é incompatível com o princípio e sexto que se o sistema fosse transparente e desse publicidade às sentenças a moda brasileira de praticar Justiça Social no caso particular seria atenuada ou impedida pelo uso do sistema. Antes de adentrar a apresentação da regra, entretanto, temos que tangenciar o assunto lembrando as críticas que o Realismo Americano apresentou ao sistema judiciário da common law. Os comentários que faremos a seguir para explicar o princípio da stare decisis apresentarão o tema dentro do seu contorno crítico, porém ideal. Fica aqui, entretanto, o nosso registro de que se a nós (e aos realistas) tanto interessa o que os juizes realmente fazem, motivou-nos sempre neste trabalho apresentar nossa tese de como fazem e sugerir que o verdadeiro esforço argumentativo do advogado deve se preocupar com o Sentimento que leva o juiz ou a juíza à sua conclusão final; é o Sentimento que deve ser atacado e não a conclusão final, pois esta já está adrede escrita. Normalmente não aparece – ou não transparece – o Sentimento. É a conclusão final que é a ponta visível do processo, mas não o Sentimento 218 (mas afinal o artigo 557 do CPCb que teve sua atual redação determinada pela lei 9756/1998 vale ou não vale? Por enquanto parece ser uma “lei que não pegou”) 197 que a moveu. O excerto, o extrato da sentença apresentará a conclusão e esta é que aparece, ou seja, a conclusão final é conhecida, mas nem sempre são conhecidos os verdadeiros motivos que a ela levaram. Se a conclusão de um processo induz um advogado a pensar que em outro caso parecido o juiz vai julgar da mesma maneira que julgou o caso anterior ele pode estar muito enganado (afinal a Justiça Social é aplicada caso a caso!) e por desconhecer os reais motivos do juiz ou da juíza ele pode soçobrar em caso semelhante. Aliás, a regra do stare decisis, como se aduzirá, quando apresenta a questão da ratio decidendi, visa exatamente isto: dar a razão da decisão mais que apresentar a decisão ela mesma; o ponto está que, como dizem os realistas americanos, nem sempre os motivos estão às claras e muitas vezes os verdadeiros motivos estão disfarçados. Isto posto vamos ao tema: A regra do precedente no Direito Inglês não é exatamente a mesma que a do Direito Norte-americano. Vamos falar primeiro da regra inglesa. Depois da conquista normanda os juizes ingleses estavam na sua própria dependência para exercer sua atividade judicante. Os problemas práticos eram examinados de per si e não havia nem uma legislação edificada nem um vade mecum possível. Os costumes locais, e variavam de região para região, disputavam entre si a primazia e não havia uma norma sob a qual o caso concreto caísse. Já demos atrás uma pincelada histórica nessa fase e fica, pois, fácil ver que há diferenças entre o case-law e o direito continental de que o brasileiro é um dos ramos. Os juristas ingleses não tinham a ampla influência do Direito Romano e, assim, careciam de um bloco uno de situações codificadas (como a do Corpus Júris Civilis) o que os obrigou a desbravar o caminho e criar a cada passo as regras que solucionariam os conflitos e prescreveriam as condutas aceitáveis. Surgiu deste modo a regra do precedente no Direito Inglês e sua função estabilizadora como parâmetro para o agir do Judiciário. Foram séculos de bem agir até que se consolidasse a regra cujos conceitos evoluem sem parar até hoje, não tendo atingido – e nem atingirá – forma definitiva. Diz Ferreira da Silva que três foram as etapas: a- entre 1283 e 1535 valiam as anotações – em francês – feitas por advogados e estudantes que assistiam aos julgamentos; b- depois vieram os repertórios privados elaborados por juizes para seu próprio uso, entre meados do século XVI a meados do século XIX e c- a partir de 1865 com a criação do General Council of Law Reporting até os dias de hoje com a compilação das decisões em repertórios oficiais além do repertório constante das publicações particulares o que amplia o alcance e a confiabilidade das citações. 198 Hoje em dia muito importante é conhecer a estrutura da regra (1- razões contidas no julgamento; 2- afirmações incidentais e próprias do julgador; 3seu elemento vinculante) e, compreendida sua força vinculante, ir buscar as exceções à regra. Não se pode dizer que toda e qualquer decisão vincule, ou seja, que apresente elementos configuradores das próximas decisões que abordarem casos semelhantes, nem que todas as partes de uma decisão devam ser tidas como vinculantes obrigatoriamente. Na época da ‘declaratory theory’, que tem sua importância bastante relativizada nos dias de hoje, dizia-se que, como essência do case-law, os juizes declaravam o direito que estava latente no seio da comunidade. Esta teoria que perdeu sua força por causa do realismo americano (já visto por nós) e pelo sociologismo de Roscoe Pound (descobrir através da engenharia social o que é bom para a sociedade), edificou o mito que os juizes não criavam o direito mas aplicavam ao caso concreto aquilo que estava no entendimento da sociedade e era por ela querido, ou seja, o juiz aplicava o direito que era posto pela sociedade e nela estava em potência. Assim estas decisões extrapolavam os fatos a que se referiam e tinham validade além do caso concreto. Era importante retirar destas decisões a sua validade mais genérica, a sua verdadeira razão jurídica, o princípio legal da decisão e estendê-las. Era importante captar a ratio decidendi das sentenças. Não é muito fácil retirar de uma determinada decisão sua ratio decidendi, ou seja, a razão do decisum e limpá-la do que não é essencial, daquilo que é perfunctório e emoldura o seu fulcro. E este falar perfunctório é exatamente o que se chamou de “Obiter Dictum”. As afirmações – Obiter Dicta - que fazem os julgadores que não são tidas como componentes das rationes decidendi mas têm relevância no conjunto das afirmações são juridicamente irrelevantes para efeito vinculante. Pode-se entender que dados os fatos ao julgador ele percorrerá uma linha de raciocínio, linha esta essencial para que ele, julgador, alcance sua decisão. Quando houver um colegiado de juizes a questão pode se complicar, pois cada juiz, mesmo que todos cheguem no fim à mesma conclusão, considerando qual fato é material e qual não é, pode apresentar uma linha de raciocínio diferente da do outro membro do colegiado e assim, pode-se numa ação, ter se duas ou mais rationes decidendi, o que é amplamente conforme a nossa teoria de que é o Sentimento que encaminha cada juiz à sua conclusão. Ao revés há aquelas afirmações que se forem retiradas da sentença não alterarão o resultado final (por isso que os americanos dizem que obiter dictum é aquilo que não pode nunca ser uma premissa maior dos fatos), são afirmações não componentes da ratio: estas são as obiter dicta. 199 As sentenças bem exaradas criam escola e – porque não? – devem ser estudadas e seguidas enquanto as condições permanecerem as mesmas. A regra que vincula as decisões, aquela que indica ao julgador do caso presente que adote a postura anteriormente tomada por juizes em casos semelhantes chama-se stare decisis219. Segundo Ferreira da Silva há uma hierarquia na aplicação da regra na Inglaterra: considerando-se uma pirâmide coloque-se no ápice a House of Lords; um grau jurisdicional abaixo está a Court of Appeal, vinculada aos precedentes da House of Lords e vinculando as decisões das Divisional Courts, das Crown Courts e da High Court. O juiz pode se afastar da regra, em princípio, sempre que algum fato novo surgir e turbar o cenário em que se constituiu o preceito anterior. O autor encontra três espécies de precedentes: “a- os que obrigam o juiz a considerar as decisões anteriores com parte do material necessário para a presente decisão; b- os que obrigam o juiz a decidir no mesmo sentido do caso anterior a menos que existam razões fundadas para não o fazer; c- os que obrigam o juiz a decidir da mesma maneira mesmo que haja boas razões para não o fazer”._ A hipótese “c” é o precedente vinculativo (stare decisis, binding precedent, authoritative) ele mesmo e as duas outras são precedentes persuasivos (persuasive, unauthoritative). O juiz passa a raciocinar por analogia porque as razões afirmadas em um caso (ratione decidendi) são estendidas a casos similares. Assim o juiz vai buscar sempre casos similares que tiveram suas decisões exaradas por juizes respeitáveis e com autoridade. Quando se defrontar com uma decisão vinculante ela a seguirá a menos que criativamente possa separar os fatos e inventar uma distinção significativa e que torne diferente este caso daquele que foi tratado anteriormente. Esta técnica das distinções é o caminho que percorrem os juizes mais avançados ou destemidos para se desvincular da regra pelos motivos pessoais que tiverem. A força vinculante do stare decisis vai sendo abrandada por uma série de cases que pedem solução própria (quando a severidade da aplicação da regra conduzir a uma injustiça no caso concreto, por exemplo) e a regra não tem tanta força nas Criminal Division da Court of Appeal em que a busca da verdade real e a efetivação de uma justiça material são maiores que a busca da similaridade com casos anteriores. 219 Segundo Edward D. Re a regra tem a seguinte formulação: stare decisis et non quieta movere (persevere-se na decisão e não se provoque o que está em repouso). Já segundo Luis Renato Ferreira da Silva é uma elipse de stare rationibus decidendis (persevere-se na razão da decisão). Nossa tradução. 200 Já nos Estados Unidos do Norte 220, segundo Edward D. Re, a regra vem com a atribuição precípua de combinar objetivos aparentemente contraditórios: estabilidade e mudança. É uma pedra de sustentação do sistema do common law e carrega consigo vantagens: 1- permite a cada juiz se aproveitar da experiência de um outro juiz; 2- torna mais uniforme a aplicação do Direito e 3- apresenta a grande vantagem de tornar este Direito mais previsível. Promove imparcial e consistente desenvolvimento dos princípios legais, fomenta confiança nas decisões judiciais e contribui para a integridade do processo judicial. Indica que há justiça quando casos semelhantes são decididos de forma sempre similar retirando das decisões qualquer cunho arbitrário. Conduz ao aprimoramento do processo decisório judicial e a um fortalecimento institucional do Judiciário. Preserva uma reserva preciosa que é a decisão em caso semelhante: quando o homem comum vê que o Tribunal trata as partes em situações semelhantes da mesma forma passa um enorme nível de confiança e ajuda a desenvolver um elevado senso de fé no Judiciário que se traduz em fortalecimento do Sentimento de Justiça. Impõe mais responsabilidade aos juizes, pois a boa decisão judicial de hoje será certamente o precedente de amanhã e incentiva os juizes a proferirem sentenças com maior cuidado. Mas não o condena a cada sentença sentenciar como se ela fosse virar um precedente o que aquieta o espírito do julgador. Além, visa estabilizar o Direito e possibilitar às pessoas um razoável grau de planejamento e certeza quanto às conseqüências jurídicas de seus atos pelo motivo de estarem os fatos atuais em conexão com o passado; não descontinua a mudança que é a alteração do que está fixo ou estável, pois sem mudança não há progresso o que possibilita ao Direito conectar-se amplamente com as flutuações exigidas pela sociedade. A decisão judicial nos Estados Unidos tem dupla função: antes de tudo define a controvérsia, pois de acordo com a teoria da res judicata as partes não podem renovar sua disputa sobre o que já foi decidido e, de outro lado, conforme a teoria do stare decisis a decisão judicial tem um valor de precedente, ou seja, há um princípio de Direito deduzido através de uma decisão judicial que será aplicado no futuro a um caso semelhante. Este último preceito é essencial num sistema em que o Direito é enunciado e desenvolvido através de decisões judiciais. A regra permite que ao mesmo tempo em que se prestigia o passado e assim a estabilidade, autoriza o porvir de um direito consistente e coerente 220 Toni M. Fine nos dá uma simplificada explicação da forma que toma o sistema judiciário americano: são três níveis hierárquicos: US District Courts, juízos de primeira instância, US Courts of Appeal, Tribunais intermediários de Apelação e US Supreme Court, equivalente ao nosso Supremo Tribunal Federal. O sistema judicial norte-americano é na verdade muito mais complexo do que nos dá a entender esta simplificada abordagem. 201 com a tradição: preserva a continuidade, manifesta respeito pelo passado, assegura igualdade de tratamento aos querelantes em idêntica situação, poupa aos juizes a tarefa de reexaminar, reestudar e repensar os princípios de Direito a cada caso subseqüente e assegura à lei uma desejável medida de previsibilidade e conhecimento prévio. É um princípio dogmático (e somente a Suprema Corte pode derrogar seu próprio precedente), pois a regra do precedente é um ponto de partida, um começo na acepção da palavra. É uma suposição que não é obstáculo a maiores indagações; ao dele fazer uso o juiz ou a juíza afirma a pertinência de um princípio extraído do precedente. Esse princípio é, depois, adaptado ao caso concreto que ele ou ela tem diante de si e isto pode resultar numa expansão ou numa restrição do princípio e representa a contribuição do juiz ou da juíza para o desenvolvimento e evolução do Direito. Num sistema que está muito desenvolvido como o sistema americano os precedentes já cobriram um vasto campo de atuação de forma que eles normalmente fixam o ponto de partida, aquele a partir do qual começa o trabalho judicial. Nesta hora o juiz ou a juíza determina a autoridade desse precedente e declara que o precedente é vinculativo ou persuasivo. Se ele for vinculativo o princípio precedente define o julgamento; se ele for persuasivo o juiz ou a juíza está livre para adicionar fatores que ampliarão a possibilidade do julgado anterior. O exame das questões suscitadas e apresentadas ao Tribunal e que tenham sido levadas em consideração e decididas, determina se uma sentença faz autoridade. Se estas questões não foram consideradas, embora pudessem ter sido, a decisão anterior não vincula. Dá-se amplo espectro ao adágio latino ex facto oritur jus, mas considera-se que nenhuma sentença é proferida com o fim precípuo de servir de precedente no futuro; é emanada de um Tribunal que principalmente quer solucionar aquela questão e naquela hora entre os litigantes. Sua utilização posterior é incidental e depende de seu brilho próprio, mas está sempre limitada aos fatos e condições particulares do caso que o processo anterior pretendeu abranger. Os precedentes, destarte, não são aplicados automaticamente. São cuidadosamente analisados para que se estabeleçam as similaridades de fato e de direito e dispor a posição atual do Tribunal em relação ao caso anterior. Busca-se a ratio decidendi e o dictum. A primeira vincula, o segundo traz força persuasiva. Em resumo os Tribunais podem recusar uma decisão anterior se: a- o caso anteriormente decidido envolver uma questão de direito distinta; b- o escopo do caso anteriormente decidido for tão limitado que não se aplica ao caso em pauta; c- os fatos do caso anteriormente decidido forem distintos daqueles a que se refere o caso atual; ou d- rejeitarem a decisão anterior porque o princípio nela inserido: 1- deve ser revogado; 2- a decisão reflete 202 dicta, isto é, pronunciamentos e opiniões do juiz. O princípio também não se aplica a casos, mesmo com circunstâncias essencialmente idênticas, em que são apresentadas questões de direito completamente diferentes. Num sistema constitucional que proíbe opiniões judiciais que visem aconselhar as partes e que tem como requisito básico a solução da controvérsia, nem sempre é fácil determinar o escopo ou o impacto pretendido pela regra de direito ou princípio anunciado num caso. Há situações, entretanto, em que a regra de direito implícita pode não ser precisamente a mesma, mas pode ser parte de uma estrutura legal semelhante ou ainda de provisões legais que devem ser lidas in pari materia (as que se referem a uma mesma matéria e devem ser interpretadas com referência a cada uma delas); se, no entanto, uma estrutura legal ou corpo de leis distinto é envolvido, o juiz está livre para desconsiderar a regra de direito estabelecida nos casos precedentes. Os Tribunais americanos são obrigados a basear suas decisões exclusivamente nos fatos apresentados pelas partes. Daí as decisões judiciais raramente interpretarem regras de direito que, em tese, poderiam ser aplicadas a todos e quaisquer fatos trazidos a juízo. Pelo que atrás se expôs é que surgiram as críticas acerbas ao sistema do precedente: ele vai aos solavancos e depende de acidentes; pontos muito importantes podem permanecer obscuros se ninguém quis pinçá-los; um julgamento errôneo ou superficial pode adquirir injustificada divulgação simplesmente porque a parte vencida não teve fôlego para prosseguir ou recorrer; se o direito foi mal compreendido, se foi mal aplicado, se a decisão é manifestamente injusta ou contrária aos fatos constantes do caso, esta decisão torna-se paradigma para caso semelhante porque se constitui na única evidência de análise dos fatos em questão e os juizes devem estudar esta decisão exatamente para superá-la. A doutrina do stare decisis não demanda obediência cega; ela apenas permite que os Tribunais se beneficiem da sabedoria ou dos desacertos do passado, mantendo o certo ou rejeitando o desarrazoado ou errôneo. O Tribunal sempre determinará se o princípio deduzido através do caso anterior é aplicável e em que extensão. O sistema assim não privilegia estabilidade e uniformidade somente, mas suas restrições e limitações incluem a pretendida flexibilidade indispensável para mudança e progresso. O princípio declara que um Tribunal é uma instituição requisitada para aplicar um corpo de leis e não meramente um conjunto de juizes que são chamados para proferir decisões isoladas e conforme seu convencimento pessoal ao caso que lhes são submetidos. Assim as regras de direito não devem mudar caso a caso e de juiz a juiz. Segundo Toni M. Fine o sistema do stare decisis enquanto restringe o poder dos juizes lhes concede maior controle sobre a interpretação e aplicação das leis e implica numa responsabilidade especial, a de as Cortes tenderem a seguir as decisões anteriores e com isso confiarem aos futuros juizes os 203 princípios estabelecidos naquele sentido embora estes possam – como fazem em situações especiais - recusar a aplicação. A imensa legiferação americana própria do mundo moderno e global impõe uma mudança no sistema: o que era sempre calcado na força vinculativa dos casos precedentes tem hoje enorme transformação pela necessidade de o juiz e a juíza se aterem ao que manda a lei, hoje uma nova fonte de direito para os modernos juizes norte-americanos. Em virtude de ter se desenvolvido no caso-a-caso o sistema do common law tinha na lei presença mínima; tal não ocorre nos dias de hoje em que a legislação antes campo estranho pode agora determinar abruptamente, alterar ou repelir, manter ou inovar, uma definição legal, um princípio, uma regra. Ainda incumbe aos Tribunais legislar, mas somente para preencher lacuna ou omissão na previsão legal. Não são todos os juizes que se sentem confortáveis com a limitação visto terem aprendido desde sempre partir das decisões anteriores para empreender a sua. Atualmente a lei cobre extensamente o campo e compreende todos os ramos do Direito. O ponto de partida hoje não é mais o precedente judicial, mas a lei. Os tribunais devem naturalmente interpretar a lei. Assim o sistema exige que se examine como os Tribunais interpretaram a lei e como a aplicaram estabelecendo precedentes. Este é um novo precedente. Surge, portanto, um ponto muito sério que tem que ser examinado: os juizes podem atribuir maior significado aos precedentes que à legislação que aqueles precedentes pretenderam interpretar. Os Tribunais estão hoje, portanto, determinando o peso relativo a ser atribuído à política legislativa de um lado e ao precedente jurisprudencial de outro. Como o sistema de governo é tripartite, os juizes não podem se esquecer que há três poderes e que ao decidir o processo eles estão decidindo para cumprir uma função institucional. A lei tem agora função derrogatória e a política de precedentes deve se curvar ao seu império. Num sistema como o brasileiro em que o juiz e a juíza têm, principalmente depois que entrou em vigor o NCC, enorme liberdade de ação, sistema em que o juiz e a juíza não prestam contas a ninguém, nem à sociedade, em que não há ninguém que aplauda suas boas decisões ou critique as ruins, há muito material de reflexão nas linhas anteriores para que não repitamos erros de outros ou venhamos irrefletidamente a criar novos. Há, ainda, dois pontos que devem ser destacados: o primeiro diz respeito ao fato que, como ensina Charles D. Cole, os advogados na cultura jurídica americana não apostam na Justiça Lotérica nem na Temerária e agem com enorme previsibilidade, pois são altamente treinados para oferecerem em suas peças na primeira instância, durante a fase postulatória e de instrução do feito, toda a autoridade aplicável ao caso (citações de constituições, leis, 204 precedentes, decisões judiciais, regras, regulamentos, livros de texto, artigos e o que mais seja útil ao desenvolvimento da argumentação das questões visando fundamentar as posições jurídicas em litígio); o segundo que enquanto a prática do direito e o processo decisório obteriam imenso benefício pela previsibilidade das decisões que o precedente vinculante oferece, advogados e magistrados precisam estar devidamente adaptados ao uso do precedente vinculante na prática para poderem operar adequadamente. O ensino jurídico brasileiro não habilita tal prática. A cultura jurídica americana exige que se ensine ao estudante de direito como analisar casos e como determinar questões relevantes, questões de direito e os fundamentos que são apropriados. O ensino do direito de forma expositiva não oferece base satisfatória para que os alunos entendam as situações fáticas como são apresentadas com o objetivo de análise, pesquisa ou previsibilidade. O uso apressado da súmula vinculante ou do princípio do stare decisis traria, nestes casos, sério distúrbio pela impossibilidade intelectual de ser compreendido e, conseqüentemente, não poderia ser bem usado, com a esperada utilidade para o sistema. Há que dar tempo para absorção do princípio se ele vier a ser integrado ao sistema. * 7.7 – contradições intestinas dentro do Poder Judiciário Enorme o desespero do profissional e do homem comum quando se defrontam com a avalanche de decisões emanadas dos Tribunais. Se os problemas fossem convergentes estaria na explicação da cultura subjacente a cada uma das decisões a sua pronta compreensão. O problema real é que as divergências são muito grandes. Como explicar ao homem comum que o mesmo fato, que cai sob a mesma norma, é num tribunal decidido de um jeito que difere do jeito do outro tribunal. Como explicar ao homem comum que a sorte mais do que a boa argumentação e o bom caso (o bom direito) resolvem a questão no tribunal? Nasce o Direito Lotérico: se a sorte encaminhar o caso para um juiz que o acolhe a questão estará ganha e se, ao revés, a sorte encaminhar a questão para um juiz que a rejeita ela estará perdida. Não há uniformidade, parecença ou semelhança de pensamento. Como explicar? É sabida a divergência de juizes e de turmas do mesmo ramo do Direito (Cível, Penal etc) sobre casos e fatos semelhantes ou idênticos e que mostra quão difícil é resolver as questões quando trazidas a um órgão da Justiça ou, de outro modo, quão pessoalmente estão sendo resolvidas aquelas questões. Existe uma tendência à unificação e mesmo o CPCb (art 476 caput e ss.) trata do assunto e institui o dever de qualquer membro do órgão julgador suscitá-lo de ofício. 205 Mas há outro aspecto menos comentado, que choca mais por apresentar posições antípodas e imensas contradições entre juizes de ramos diferentes do Direito. Um assunto é visto de um jeito na Justiça Cível e de forma totalmente diferente na Justiça Trabalhista ou na Penal, para dar um exemplo, como se as Justiças fossem diferentes entre si, tivessem objetivos diferentes, tratassem do Direito de forma diferente e fossem aplicadas em países diferentes com Constituições diferentes e CPC diferentes. Não há um Poder Judiciário: há vários Poderes Judiciários. Exemplifiquemos. ‘No Brasil a Justiça é uma: uma diferente da outra’. ‘Cada Justiça aplica seu próprio critério de Justiça aos seus casos específicos’. ‘Uma Justiça é uma Justiça, outra Justiça é outra Justiça’. Estas são frases que ouvimos costumeiramente para falar do Poder Judiciário, do órgão administrativo que se encarrega de distribuir Justiça, que se chama igualmente de Justiça e que são formuladas por pessoas (Juizes, advogados, policiais, etc.) que trabalham numa Justiça e não em outra, como se fossem várias e não uma só. As Justiças aplicam Justiças diferentes. A Cível, a Federal, a Eleitoral e a Militar estranham-se muitas vezes. Quando se fala de Justiça, aquelas pessoas, os Tribunais, não aceitam um mesmo critério do que ela seja, qual seu fim e de como se manifesta. Não estamos nos referindo a diferentes interpretações; estamos falando que o mesmo assunto tem um tratamento completamente diferente como se numa Justiça ele fosse uma coisa e em outra justiça fosse outra. Explicamos: os critérios, v.g., que balizam a Justiça Cível não são os mesmos da Justiça Trabalhista; a Justiça Penal tem seus próprios critérios; as Varas de Família têm sua própria visão, etc. Mudam categoricamente as interpretações sobre as mesmas leis. Mudam, também, os modos de aplicação da lei adjetiva, de Justiça para Justiça, apesar de utilizado nos mesmos casos o mesmo CPCb. A Justiça Trabalhista adapta o CPCb à sua realidade (equidade privada do Juiz) e encara cada como caso um caso diferente e não segue o Código como ele na letra é seguido na Justiça Cível, por exemplo. Outra realidade: o instituto do Disregard of Legal Entity tem diferentes e radicais interpretações dependendo de o caso estar na órbita da Justiça Cível ou de estar sendo observado pela ótica da Justiça Trabalhista. Outra ainda: a lei 8009, a que determina a impenhorabilidade da casa própria destinada para fim residencial da entidade familiar, vale na esfera Cível, em qualquer instância, mas não vale na Primeira Instância da Justiça Federal do Trabalho, mesmo sendo sua origem, a sua base, o seu fundamento, a exemplo do CDC, a Constituição Federal brasileira, artigo 1o. III, ou seja, a dignidade humana. 206 O mesmo para o artigo 649 do CPCb: vale na Justiça Cível, não vale na Justiça Trabalhista. Mais um exemplo conflitante é o do penhor mercantil. A palavra penhor denota várias coisas diferentes entre si; assim é analógica, nos ensina Goffredo da Silva Telles Junior, pois designa conceitos diversos, mas conexos e exige tantas definições quantos são os conceitos a que se referem 221 . Na Justiça Cível cada Penhor tem um tratamento adequado à sua natureza. O penhor mercantil, principalmente se for constituído de itens do estoque para venda regular, na esfera cível, é encarado isoladamente de per si e como um dos inúmeros tipos de penhor (Exemplificando: Garantia Pignoratícia, Direito Real sobre Coisa Alheia, Penhor Agrícola, Penhor Mercantil, Penhor Industrial, Penhor Legal, Penhor Pecuário, Penhor Rural, Penhor Judicial, e mais alguns outros) e na ausência dos itens constantes deste penhor na época da necessidade de sua exibição a relação entre as partes transforma-se em mútuo (CCi velho art 1280 ou 645 do novo: aplicam-se as regras do mútuo CCi velho art 1256 a 1264 e 586 a 592 do novo) e não mais existe, desde o Pacto de São José (Decreto Legislativo n. 27 de 26.05.92), prisão civil para o pretenso depositário infiel (apesar da CF art 5o. LXVII; CPC art 904, 558; CCi antigo art 1287, 1273 ou novo art 652, 638, respectivamente não excedente a um ano). Pois bem, na Justiça Penal muda o entendimento e todo penhor é encarado como um instituto só e na ausência dos itens constantes de qualquer penhor (mesmo o mercantil e de itens do estoque regular do garantidor) à época de sua necessidade o depositário infiel corre o risco de ir, e provavelmente irá, para a prisão por força do artigo 171 § 2o. III do CP. Logo a pessoa escapa da prisão civil na Justiça Cível, mas sofre uma sanção penal para o mesmo fato o que a conduzirá para a cadeia na Justiça Criminal. Há uma enormidade de exemplos, mas os que foram citados acima bastam para apresentação de nossa posição frente ao problema de ‘mesmo fato/mesma norma/diferentes enfoques e maneiras de enquadramento’ a que aludimos. Tal fenômeno ocorre pela diferença de entendimento, cultura, visão, ideologia, profundidade e experiência que se verifica entre os profissionais que se especializam e trabalham numa esfera judicial e não em outra. O mito da Justiça única e pétrea, o mito do valor absoluto de uma única Justiça, a que aparece sempre igual quando necessário, fica seriamente comprometido com estas constatações e afronta o entendimento do homem comum. O que se compreende é que a Justiça nem como valor uno nem como valor absoluto nem como valor relativo existe efetivamente nos Tribunais 221 (Filosofia do Direito, Max Limonad, 2o. Tomo, pág524) 207 brasileiros. Em outras palavras é a coisa observada, a lei e o fato, sendo qualificados e valorados diferentemente por cada observador. O observador, aquele que trabalha com o conceito, é quem determina quem ele é e o que é Justiça, o quanto ela vale, para quem ela vale, onde, quando, como e por que. Temos, assim, a pessoalização da Justiça, mal a ser evitado. * 7.8 – sentimento como meio de comunicação O Sentimento é um meio de comunicação, o mais forte e poderoso que existe. São seres humanos que decidem suas vidas valendo-se dos sentimentos e que se comunicam através destes sentimentos e que se apresentam por intermédio deles, que se orientam por eles e procuram com eles orientar outras pessoas destinatárias de suas mensagens. São com os Sentimentos que as pessoas se defendem das agruras da vida e traçam seus objetivos práticos e filosóficos, estruturam suas personalidades. Isto vale quando as pessoas exibem com facilidade seus sentimentos ou, o que é mais comum, quando os escondem e lhes dão roupagens (comunicase quem avisa que não comunica - Watzlawick). Sendo a realidade uma percepção na mente e filtrada pelo Sentimento, quem fala de algo, porque tomado de si, porque cheio de si, fala de si e não de algo. Sempre que alguém propõe um juízo a respeito de algo, inicialmente, coloca-se a si; o Sentimento como meio de comunicação provoca isto: tendo que comunicar, o agente comunica o próprio Sentimento a respeito de algo. Assim cada um comunica o seu, mesmo que camufladamente. Não se foge deste acontecimento na Sentença Judicial. Ela reverbera o Sentimento do juiz ou da juíza sobre o que está nos Autos do processo. Isto explica algumas colocações de alguns dos Realistas americanos (por exemplo, a constatação de que, nos Tribunais apontados, a conclusão era indefectivelmente a mesma apesar de diferentes terem sido as premissas de que partiram os Juizes para o atingimento daquela conclusão) O que tem que ser buscado é o grau de evolução do Sentimento de cada um. Como cada um é cada um e, portanto, diferente do outro, resta saber qual o grau do Sentimento que está comunicado na Sentença. Este o motivo de cada sentença ser, ab ovo, eminentemente pessoal. Se cada pessoa for uma ilha cada pessoa estará comunicando apenas o seu sentimento pessoal. Há que se provocar, para evolução geral, a troca de posições, a troca dos pontos de vista. Só assim evoluirá o Homem. 208 Um bebê logo que nasce não “sabe” nada além de que precisa respirar, comer, beber, dormir e excretar. São essas suas necessidades e por elas luta desenvolvendo a partir daí suas habilidades. A necessidade sexual logo vem se agregar às outras. Neste desenvolvimento o ser humano elege o prazer e a dor como seus guias. Desta tentará escapar; ao outro dirigir-se-á com espantosa inocência. O prazer, o Bem, será sempre aquilo que, com conforto e bem estar, contribuir para a sua sobrevivência e evolução. O mal, a dor, será sempre o oposto. Ao prazer reagirá sempre com alegria e felicidade; a dor recusará com horror estampado em seu íntimo. Enquanto lida com estes Sentimentos, nesta fase, aprenderá ou não o ser do homem a amar e a ser amado e, nesta hora, definirá sua vida. Ao montar o conjunto de Sentimentos que regerá sua vida não age com ampla liberdade: seu corpo já emoldura aquele conjunto, está determinado e segue suas regras físicas inexoráveis e inelutáveis; com seu físico ele poderá contar dentro dos seus limites e possibilidades. Se fosse, como afirmado antes, anfíbio, aquático ou aéreo, outras seriam suas determinabilidades 222. Mesmo o que se chama de livre arbítrio tem suas limitações claras e elas são, principalmente, físicas. Rege-se este ser, dentro de suas características físicas, pela Razão, pelo Sentimento e pela Experiência e necessita comunicar-se. Não nasce sabendo nada além de que precisa respirar, comer, beber, dormir e excretar e, logo após, fazer sexo. Não irá mais longe do ponto aonde leválo o seu interesse de agir e adquire pela observação e pela tradição o que julga necessário à obtenção do maior prazer e ao afastamento da dor. Suas faculdades, usar a Razão, usar o Sentimento, aproveitar-se da Experiência (dentro dos limites que lhe impõem seu físico e seu próprio interesse) são movimentos físico-cerebrais. Considerando-se que cada ser humano tem sua própria malha cerebral e que o caminho do cérebro de um não é, nem de longe, o caminho de outro (nem se cogitar de universal, portanto!), diferenciando um do outro como impressão digital e que cada pessoa tem seu Sentimento (e que segue cerebralmente seu caminho próprio nunca igual ao caminho de outro ao processar o mesmo Sentimento) é certo mesmo que cada cabeça, cada Sentimento, cada caminho cerebral, cada sentença, o que explica o que disse Llewellyn, um dos realistas americanos, quando mencionou que um juiz atingia a mesma conclusão de outros, como no caso do Tribunal no exemplo dado, partindo cada um dos juizes de seus próprios caminhos, ou seja, partindo de caminhos diferentes o grupo chegava ao mesmo lugar, à mesma sentença. 222 preferimos esta palavra a determinações. 209 O racionalizar, o sentimentalizar, o experienciar são movimentos cerebrais e a cada um o seu. Na comunicação, o ser do homem oferece publicamente seu Sentimento ou o esconde de todos (quem não se comunica alerta que não comunica); na comunicação o ser do homem pode verificar se a Razão é verdadeira ou falsa e estabelece sua certeza (depois de discutido, acertamos que...); na comunicação a Experiência se desnuda, se transmite e dela se aproveita quem a viveu e os outros que por ela se interessam. Parece estar aí o motivo de o homem no limiar do século XXI parecer-se tanto com o homem do século X antes de Cristo. São trinta e um séculos em que o ser do homem procura evoluir na Razão, mas não no Sentimento e, pouco, com a Experiência 223. Cabe a ele agora exacerbar a Comunicação para fazer evoluir seus Sentimentos e sua Experiência e continuar verificando, como faz habitualmente, o erro, a falsidade, a verdade, o acerto, que a Razão lhe aponta. Só caminhará para a humana sabedoria aquele que se comunicar, aquele que como emissor influencie e como receptor seja influenciado. Só aí o ser do homem poderá inserir-se com calma, com paz, com harmonia, com alegria, com felicidade, no caminhar idêntico e mecânico do Cosmo. Só aí o ser do homem aproveitará em sua plenitude sua maravilhosa potência embora finita e limitada pelos aspectos físicos. Consideramos limitação em seu duplo aspecto: o primeiro aquela limitação própria da raça humana, aquele ponto que mesmo o mais privilegiado não poderá ultrapassar; o segundo a limitação própria de cada um que quando a natureza joga seus dados sai um resultado que é único e não há um homem que se pareça com o outro que uns estão mais próximos do limite inferior do que é possível para a raça humana, outros ascendem em gradação, cada um no seu grau, e outros se destacam tendendo ao limite superior. E só então, nos limites técnicos da sua condição física, será ético o ser do homem no duplo sentido que demos à palavra no capítulo VI ao reproduzir lição de Lima Vaz. A realidade é uma percepção na mente; nasce com o homem a possibilidade física de execução, mas não nasce com o homem nenhum referencial nem ponto inato de apoio e comparação, exceto aqueles que são úteis, por exemplo, ao ato de comer, beber, dormir, excretar e fazer sexo, e que se manifestam através de alarmes físicos. O que aprendemos, aprendemos por experiência, tentativa e erro, e porque alguém nos ensina – e motiva – pela tradição do seu conhecimento. Só então podemos duvidar e criar algo novo. O confronto daquilo que criamos ou aceitamos com a posição que o outro cria ou aceita é que gera evolução e entendimento. O homem que só visa a 223 (História como chance de não repetir os mesmos erros) 210 Razão e não se comunica é um animal mutilado. Conforme tanto reverberamos antes, não se pode ver que não se vê o que não se vê. Assim pelo menos a desconfiança deveria estar instalada e sempre a alarmar aquele que pensa saber algo, ou seja, sempre se deve praticar a política da insegurança. O contraponto é: só se vê que se vê aquilo que se vê, e quem confia na sua verdade como absoluta corre o risco de cometer os maiores equívocos. * 7.9 – a construção A Literatura, a Música, o Cinema, a Televisão, as Artes em geral, o Judiciário, enquanto linguagens, passam seu assunto pelos Sentimentos que exibem e bem por isso agregam as vantagens técnicas a esse foco. Watzlawick 224 apresenta-nos dois axiomas referentemente à comunicação: o primeiro diz que ‘não se pode não se comunicar’ e o segundo diz que ‘qualquer comunicação implica um cometimento, um compromisso, e define a relação; isto é uma maneira de dizer que uma comunicação não só transmite informação, mas, ao mesmo tempo, impõe um comportamento. São os aspectos de “relato” e de “ordem”, respectivamente, de qualquer comunicação’(em Tércio relato e cometimento). Note-se – muito importante - que, para o autor, comunicação e comportamento são sinônimos. O aspecto relato de uma mensagem transmite informação e é sinônimo de, na comunicação humana, do conteúdo da mensagem, conteúdo este que pode ser verdadeiro, falso, válido, inválido ou indeterminável. O aspecto ordem refere-se à espécie da mensagem e de como deve ser considerada, ou seja, refere-se às relações entre os que se comunicam: como sabem bem os que têm mania de discutir a relação (pai/filho, namorado/namorada), quanto mais espontânea e saudável é uma relação mais o aspecto relacional da comunicação pula para um campo secundário; ao revés quanto mais doentia a relação, quanto mais se luta sobre a natureza destas relações, cada vez mais se torna menos importante o aspecto de conteúdo da comunicação e salta no lugar poder, dominação, submissão etc. Bem fácil de fazer analogia com um processo de decisão por parte de um juiz ou de uma juíza e ver a sentença como a linguagem de que se vale o decididor para comunicar – com Poder – o seu sentimento, com a agravante de que seu processo decisório, o que lhe é particular, deu-se em grande parte em linguagem analógica (comunicação não verbal por semelhança auto-explicativa; para uso externo, posturas, gestos, expressão facial, movimento corporal, inflexão de voz, cadência, ritmo, qualquer outra manifestação não verbal; para uso interno, muitas vezes a linguagem própria da pessoa, aquela de uso exclusivamente interno e impossível de 224 (2002 pág 47) 211 ser passada para um receptor) e a comunicação exclusivamente em linguagem digital (feita por palavras e regras gramaticais) o que aumenta a confusão entre receptor e emissor da mensagem. Watzlawick adota as áreas de subdivisão da semiótica, proposta por Charles W. Morris e aceita por Carnap, como as áreas de sintaxe, semântica e pragmática. Sintaxe como as regras que unem de maneira predeterminada as palavras entre si de modo a gerar entendimento; semântica como aquela área que se interessa pelo significado dos símbolos da mensagem; pragmática como aquela que afeta o comportamento na comunicação, pois os dados da pragmática são não só as palavras, suas configurações e significados que constituem os dados da sintaxe e da semântica, mas também os seus concomitantes não verbais e a linguagem do corpo e as pistas de comunicação inerentes ao contexto em que ela ocorre, ou seja, tudo que emana do emissor para o receptor. O autor, entretanto, interessase para além: interessa-se pelo efeito da reação do receptor sobre o emissor, ou melhor, na relação emissor-receptor tal como é medida pela comunicação. Sob este prisma temos, então, uma pista para explicar o descontentamento das partes após a emissão de algumas sentenças que põem termo ao conflito e com a enorme angústia e insatisfação que gera a falta de previsibilidade destas sentenças. Qualquer organismo para sobreviver tem que satisfazer não só seu metabolismo, mas também obter informações adequadas sobre o mundo em torno o que faz comunicação e existência conceitos inseparáveis. O meio, deste modo, é subjetivamente experimentado como um conjunto de instruções a que se somam as instruções do código biológico inscritas no próprio corpo da pessoa. Se estas são compreendidas e mesmo obedecidas quase sempre mecanicamente, as instruções do meio nem sempre são claras e bem compreendidas. Deste modo a existência é uma função das relações no corpo e entre o corpo e o meio e, no nível humano, tem imensa complexidade. Mesmo entendendo-se que no atual estágio a sobrevivência biológica tenha diminuído de importância se comparada com a importância que tinha em épocas primevas e mesmo entendendo-se que o meio está relativamente sob controle, percebemos que as mensagens do meio têm hoje importância mais psicológica que biológica. “A vida – ou a realidade, destino, Deus, natureza, existência ou qualquer outro nome que se prefira dar-lhe – é um sócio a quem aceitamos ou rejeitamos e pelo qual nos sentimos aceitos ou rejeitados, apoiados ou traídos. A esse sócio existencial, talvez tanto quanto ocorreria com um sócio humano, o homem propõe a sua definição do eu e vê-a então 212 confirmada ou desconfirmada; e esforça-se por receber desse sócio indícios sobra a natureza ”real” das suas relações”225. (sic) Aquelas mensagens do meio que se apresentam com obscuridade ou porque são mesmo obscuras ou porque o homem não as compreende como deveria, como podem ser decodificadas para garantir a sobrevivência do decodificador? Está aí o problema do conhecimento da realidade. Cheio de Horror como falamos, Horror com sua fragilidade e finitude, o homem cria conceitos para sobreviver e esquecer. O homem jogado em um ambiente nem amistoso nem inamistoso, mas que, ele pensa, sugere ser frio, distante, que parece, portanto, hostil e que não lhe fala compreensivelmente cria sua situação e circunstância. Sua maneira de ser no mundo é conectar-se com o que ele escolhe como realidade, é o significado que ele confere ao que está mais distante de si. Por força de experimentação e com o auxílio do sentimento cria um microcosmo no qual desenvolve as premissas que lhe são caras, aquelas com que cria seu modo de ser no mundo; não pode, entretanto, sobreviver psicologicamente num universo em que suas premissas sejam carentes de sentido. O desespero advém quando o que é e o que deveria ser discrepam. Esta aí a imensa importância que o sentimento de justiça adquire como doador de sentido, um deles, mas um dos mais importantes, para a sobrevivência do homem. “Para entender-se a si mesmo, o homem precisa ser entendido por um outro. Para ser entendido por um outro, ele precisa entender o outro226 . O método está em aprender com os outros, interrogar aqueles que estão empenhados em perguntar e buscar um padrão, um modelo, que sirva de base para as regras de comportamento e, portanto, de comunicação. Podemos neste ponto saltar para o entendimento do porque nos desesperamos com a imprevisibilidade decisória nos tribunais. O decididor que aplica seu próprio código de justiça (por ideologia, por preconceito, por sentimentos mal aplicados) tudo sob o manto da independência e da liberdade de convencimento desconecta-se do todo, abandona seu próximo, escapa da civilização, é mentor do caos e da desordem. A pessoalização da sentença é causa de incompreensão e desespero e grande mal a ser evitado. Quando enfocamos o debate certeza/incerteza não queremos defender a posição imobilista do Direito que repousa na certeza de que tudo permanecerá como sempre (como fazem os silvícolas brasileiros). A dinâmica social exige a pronta adaptação do Direito; afinal ex facto oritur jus. 225 (Watzlawick, 2002, pág 236) 226 (Hora citado por Watzlawick 202 pág 32) 213 Esta incerteza (como enfocada pelos realistas americanos), esta incerteza do Direito, nasce, assim, da constatação que Direito é devir. Não se contesta, também, a incerteza que deflue do fato de ser o juiz um ser humano e de agir como tal, ou seja, de decidir por Sentimento, com os problemas que isto traz. Não se pode compactuar, e aí a perplexidade do homem comum, com os individualismos daqueles que fazem da sentença um elogio à sua biografia. Não se pode aceitar a incerteza da decisão lotérica, fortuita, e daquela que é paternalista, protetora, voluntariosa, desencontrada, sem cultura sobre a realidade que trava debate nos autos ou fruto do livre arbítrio exclusivo do decididor e contrária ao espírito e ao bom senso da época. Os Sentimentos do juiz e da juíza enquanto exercem seu ofício têm que ser expostos, cotejados, rasgados, aprofundados, e expressar a circunstância social. Lembremos de novo de Sartre no já citado trecho que lembra que a autonomia do ser humano não pressupõe necessariamente a própria idéia sobre lei moral. Quem agir com integridade, dignidade, autonomia, respeito por si e pela fragilidade própria e alheia, responsabilidade social e solidariedade ao ser humano, autenticidade e amor à vida, encontrará no Processo Judicial um método que o auxilie a buscar seu objetivo? Há, enfim, como não ignorar o outro? 8 – Que Justiça esperar A certeza de que o sentimento decidia e, a partir daí, a curiosidade sobre o tema nos vieram em 1997 durante uma abordagem nossa junto a um grupo de filosofia. Mas, a inspiração deste texto surgiu, depois da leitura, em 2002, do trabalho de António Damásio e da maneira como ele apresenta suas descobertas científicas. Parece acontecer com aqueles que o lêem. Bem depois que este capítulo estava pronto soubemos de outra influência. O que acontecera conosco, aconteceu com David Servan-Schreiber, neuropsiquiatra francês, autor do famoso “Guérir le Stress, l´Anxieté et la 214 Dépression sans Médicaments ni Psychanalyse”227, grande sucesso editorial, motivador de estudos e polêmicas discussões. Discípulo e amigo do reputado neurologista português radicado nos EUA David Servan-Schreiber estudou e trabalhou durante 20 anos no Canadá e nos Estados Unidos, onde foi um dos fundadores — depois, diretor— do Centro de Medicina Complementar da Universidade de Pittsburgh. Doutor em ciências neurocognitivas pela Universidade Carnegie Mellon, sob a orientação de Herbert Simon, pai da inteligência artificial e Nobel de Economia, e de James McClelland, pioneiro da teoria das redes de neurônios, ele teve sua tese publicada na prestigiada revista "Science" e foi eleito melhor psiquiatra clínico da Pensilvânia em 2003. Defensor da "medicina integral" ("mind-body medicine"), a "nova medicina emocional", Servan-Schreiber baseou suas pesquisas nas teorias de Damásio sobre a divisão do cérebro em duas partes: a cognitiva —relacionada à linguagem — e a emocional — responsável pelo controle da fisiologia do corpo (ritmo cardíaco, tensão arterial, apetite, sono, libido e sistema imunológico). Para combater de forma mais eficaz o estresse, a depressão e a ansiedade, três conhecidos males dos tempos modernos, ele descarta os ensinamentos de Freud ou Jung e as proezas químicas do celebrado Prozac e de seus sucessores. Seu receituário propõe sete métodos testados por cinco anos no Centro de Medicina Complementar. Os métodos naturais que sugere, conhecidos há muito tempo, não podem ser definidos como revolucionários, como ele mesmo admite. Na sua opinião, o repentino sucesso obtido pela sua "cartilha" se deve ao fato de as técnicas propostas terem, cada vez mais, sua eficácia comprovada de forma científica. Servan-Schreiber não considera ser objetivo da psicanálise curar (guérir). A ele, como médico, interessa curar. Ele busca a cura acima de tudo. Daí ter estudado métodos naturais que pudessem tratar do cérebro emocional e curá-lo, adaptá-lo, cicatrizá-lo. Ele estuda com profundidade as teses de Damásio e passa pelo corpo, pela fisiologia, a transformação e a cura dos problemas das perturbações emocionais. Ele coloca no limite, no dizer do próprio 227 Literalmente “Curar o Stress, a ansiedade e a depressão sem medicamentos nem psicanálise” que será lançado no Brasil pela Sá Editora sob o título “A Nova Medicina das Emoções – O Estresse, a Ansiedade e a Depressão sem Psicanálise nem Medicamentos”. 215 Damásio, as idéias do cientista português; torna a sua teoria, prática. O mind-body medicine visa curar com métodos naturais conhecidos da humanidade há séculos. É o cérebro em conexão para deixar a fisiologia em seu estado ótimo. Como isto nos influenciou no Direito? Como as teses de Damásio nos inspiraram a nós? Da mesma maneira que a Servan-Schreiber. As comprovações de António Damásio sobre o cérebro e seu funcionamento imediatamente parecem influenciar seu leitor a adaptar o jeito descrito à profissão daquele que lê. É a maneira de melhor usar a ferramenta, de potencializar o instrumento, de tirar dele o máximo que pode dar: copiá-lo em outro sistema, em outro ambiente, é o corolário imediato. É o melhor modo, e o mais fácil, de tornar corpo, mente, coração, método, uso, bancada e ferramenta uma coisa só. Foi assim que nos atrevemos propor que o Corpo Judiciário copiasse o Corpo Humano. Pelo menos nele se inspirasse. Seria, assim, em ambiente conhecido, amistoso, confortável e propício que o Homem poderia buscar com naturalidade a sua busca de verdade e justiça, o seu encontro com o outro. I– A vida é um jogo que não se submete a um só conjunto de regras; inelutável é a vida. Mas as regras são formuladas e surgem com a face de seu criador. O que resolve a oposição aparente entre as regras é o sentimento de quem decide por qual delas optar. Problematizar228 o tema e pinçar uma possibilidade foi nossa opção. Há na doutrina diversos métodos já apresentados anteriormente (alguns dos quais levantados em artigo titulado Os Standards do Convencimento Judicial: paradigmas para o seu possível controle: evidence beyond a reasonable doubt, preponderance of evidence, mínima atividade probatória, modelo das dúvidas positivo-concretas, doutrina do absurdo e da arbitrariedade, congruência narrativa, défaut de motifs, modelos matemático-probabilísticos etc).229 228 Aliás, problematizar os temas está bem de acordo com o espírito desta dissertação, pois possibilita a apresentação dos pontos de vista 229 conforme o texto de Danilo Knijnik referido na Bibliografia 216 Toda nossa Dissertação deságua e amarra-se neste capítulo final. É sensível que em todo o decorrer deste trabalho levantamos algumas questões que conscientemente ficaram no ar. Parecia que levantávamos o problema para dele fugir e tentar esquecê-lo. A leitura de vários pontos dava, algumas vezes, a sensação de inacabamento. Restava a impressão de que viria uma fala conforme o problema levantado... mas sobrevinha silêncio. Assim, exatamente assim é que nos sentimos ao analisar o atual sistema judiciário. Que as respostas não vêm porque nem são perseguidas. Está bom se assim está bom parece ser a divisa atual. As sentenças são livres. Têm que ser rápidas. A imprevisibilidade é encarada como inevitável. Tudo é aceito com naturalidade: não será diferente dizem conformados alguns dos Atores do Direito, não sem suspirar depois da fala. Como chegar o mais próximo possível da verdade processual, adentrar o caso concreto, satisfazer as partes e fugir das questões meramente técnicas e perfunctórias? Como abandonar as imperfeições do método atual? Como bem decidir? Como tornar as boas decisões previsíveis? Deve a Justiça descolar-se da Verdade? Ou, de outro modo, pode a Justiça descolar-se da Verdade? Pode um juiz ou uma juíza não levar em conta o outro? Surge o problema. Pretendemos propor um método, diferente do atual, que só não é criativo por que se inspirou no sistema fisiológico humano de apuração e conhecimento descrito por Damásio230. Adicionamos o princípio orientador da fórmula inglesa remedies precede rights que busca condicionar o procedimento de forma a obrigar os Atores do Direito a perseguir objetivamente o gol de justiça e de verdade. Demonstra desconfiar claramente do ser humano (que se enfastia, que tem preguiça, que se refugia na técnica, que foge do problema, que não se aprofunda, que não estuda, que se desestimula) e de sua busca (que abandona): visa enquadrá-lo em sistema que pelo menos o obrigue a passar por etapas que se bem executadas poderão conduzi-lo mais adequadamente. É um vade mecum. Em outras palavras, reconhecendo, ou aceitando, o jeito da Natureza, ou dela não podendo fugir, o método posto propõe ajustar o Corpo Judiciário ao Corpo Humano. Pretendemos que cada etapa seja entendida como compartimentalizada . Percebemos que as partes em uma ação, ou a partir da ação, opõem-se e implicam-se reciprocamente, atam-se pela ação, paralisam-se e não prosperam uma sem a outra. É o que faz da sentença uma manifestação que deveria ser erótica: devendo produzir harmonia, Eros, desejo puro do que 230 - conforme explicitado ns notas 15/16/21/22/23/27 e 30 atrás, ou se preferirem, por ser mais fácil, na fórmula descritiva desenvolvida por Jung e referida na nota 8 retro. 217 se carece, torna concordante o que era discordante, provoca a síntese dos opostos dialeticamente cindidos, reúne-os na paz. Este o objetivo da sentença. Libertar as partes dos laços que as agarram remetendo-as cada qual para seu lugar sem maior sofrimento. Mas vamos ao método. A petição inicial deveria sucintamente apresentar o plano da ação subdividido em quatro partes sobre as quais se falará a seguir; ela seria analisada pelo Tribunal que eventualmente vier a julgá-la e que decretaria sua admissibilidade ou não sob o prisma do Direito, ou seja, declararia se há direito envolvido ou não. Com isso ações que visam procrastinar um pagamento claramente devido, ou ações temerárias, ou ações lotéricas, contra a orientação jurisprudencial dominante (não objetar com o imobilismo do Direito, mal a ser evitado e sobre o qual tanto falamos atrás), por exemplo, seriam rejeitadas liminarmente. Se aceita a inicial, recolher-se-iam as custas do processo e a ação teria início propriamente dito com a apresentação de uma primeira petição. Primeiramente a busca deveria ser somente racional, ou seja, o problema deveria ser posto de maneira totalmente isenta e imparcial, meramente descritiva, de apresentação de medidas. O processo buscaria identificar o fato ou o direito, ou ambos, e saber que crenças, sob a forma de proposições, estariam sendo apresentadas pelas partes. A partir daí, por métodos lógicos e empíricos, saber quais seriam verdadeiras e quais seriam falsas. Perícias e pareceres poderiam ser apresentados, mas sempre sob a forma descritiva, nunca valorativa. Método empírico seria absolutamente necessário, ou seja, o juiz ou a juíza não se restringiria a permanecer na sala de trabalho, donde saídas do tribunal e visitas a locais, verificações, medidas que servissem para conferir, conhecer o que se declarou, seriam muito bem vindas e, mesmo, consideradas necessárias. Assim o juiz ou a juíza aproximaria a proposição do fato buscando a verdade e punindo a mentira ou a falsidade com severa multa pecuniária. Após, qual a norma incidente e como se descreve a queda daquele fato na norma regente com comentários. O limite seria sempre lógico. Esta etapa seria presidida por um juiz.(1) Com característica diferente da atual, de maneira emotivo-intuitiva, uma audiência de instrução e conhecimento, presidida por outro juiz (2), em que falariam as partes e suas testemunhas, conselheiros, experts e assessores, seria outra etapa, que contaria com o olho certeiro do juiz e sua intuição para ver e pressentir o certo. Esta configuraria a parte mais irracional do processo. Depois, uma etapa de conciliação comme il faut, presidida por outro juiz (3). Esta fase poderia ser demorada (em alguns casos previdenciários, tributários, casos mais lógico-formais, etc poderia ser muito rápida): há 218 muitas ações em que não há como atribuir a uma parte o monopólio da verdade; ao revés, há muitas ações em que as partes estão reciprocamente certas e erradas ao mesmo tempo: a conciliação serviria para aproximar as partes, exibir em que pontos de sua comunicação se separaram e quais pontos de contacto e de rejeição estão em foco e como resolvê-los. Assim o que as partes têm de certo poderia ser guardado e o que têm de errado seria descartado num trabalho real de conciliação. O objetivo é reconstituir sua comunicação atribuindo-lhes sua proporção de razão visto que em muitos processos as partes têm reciprocamente erros e acertos a ajustar não estando totalmente certas nem totalmente erradas o que quase nunca será contemplado em uma sentença judicial no atual modo de encarar o assunto. Se o processo não se paralisasse via conciliação (inclusive por cessão, transação etc), viria a busca da decisão propriamente dita o que se daria via sentimento, ou seja, valoração dos fatos e das ações, a valoração da norma e dos artigos incidentes, com uso de retórica, momento em que seriam apresentadas as escolhas possíveis e dentre elas a escolhida por cada parte. Esta fase seria presidida por outro juiz (4), e seria este juiz o responsável pelo grupo e pelas questões incidentais durante o processo (levantamento de guias, etc). Finda a fase valorativa a sentença seria dada pelo grupo de quatro juizes. Os advogados, os promotores (e é de se notar que cada ação poderia contar com quatro diferentes de cada lado) e as partes teriam como limite a sua verdade e não poderiam mentir, fugir da lei, extrapolar os limites do pedido, enganar e esconder provas, fatos e atos do tribunal (aliás, tudo em obediência ao preceito constante do art. 14 e ss. até 18 do CPCb). O tribunal seria tremendamente especializado nas questões sob sua jurisdição. O compromisso das partes e dos juizes seria com a busca da verdade processual e aplicação da justiça ao caso concreto. Os limites seriam impostos pela lei (por exemplo, um advogado que sabe que seu cliente é culpado não trabalharia para ‘nenhuma pena’ ou ‘inocência do réu’ mas pela ‘pena mínima’ atribuída ao caso em questão; o que não sabe que seu cliente é culpado trabalharia pela absolvição e o réu, se condenado, teria sua pena aumentada pelo trabalho extra que deu ao tribunal), pela doutrina (a mais descritiva possível ou a menos política possível) e pela jurisprudência (a postura pacífica ou dominante – princípio do stare decisis - seria previamente apontada pelos advogados das partes e pelo promotor, se for o caso, que só poderiam trabalhar dentro destes limites, a não ser que tivessem seguramente tese nova que pudesse mudar a postura dominante). A postura das partes, dos advogados, do Ministério Público e dos Juizes seria proativa, igualitária e visaria facilitar sempre o caminho da Justiça. O Estado seria extremamente limitado no seu poder de litigar e recorrer e as pessoas diretamente responsáveis seriam penalizadas pessoalmente no descumprimento da sentença. 219 A sentença seria dada pelos quatro juizes, sempre por consenso. Descumprida a sentença a execução se daria numa vara de execuções e instaurada sem mais delongas e a partir de um prazo muito rápido. A defesa na execução não poderia suscitar questões já tratadas na ação de conhecimento e seriam preservadas a dignidade do devedor e a urgência do credor. O recurso seria caro (custoso) e só em casos bem específicos ou de direito ou de erro flagrante na apreciação das provas durante o conhecimento ou de contradição ou de omissão ou de obscuridade ou de conflito com precedente, o que serviria para derrogar precedentes desatualizados. Aí, como se vê, o trabalho dos juizes seria cotejado. II - Qualquer Direito em Tese poderia ser suscitado por associações de classe que poriam o fato hipotético, a lei sob a qual caiu tal fato, pediriam o chamamento de outras partes envolvidas e aguardariam o resultado. Este Tribunal Especial, verdadeiro Fórum Consultivo, diria o Direito para aquele caso hipotético, apontando, se não o justo, o jurídico para o problema em tela. A dinâmica da vida social seria incorporada rapidamente e leis poderiam ser mais adaptadas socialmente, mas, principalmente, os tribunais estariam mais aptos a decidir futuramente situações novas por disporem de Precedente em Tese. Uma Associação de Bancos poderia, por exemplo, propor àquele Tribunal o que seria o amplo espectro do Direito de Consumo na relação dos Bancos e das Instituições Financeiras com o Consumidor. Certamente a Associação dos Consumidores seria chamada a opinar e aceitar, modificar ou contestar a postura da Associação Bancária. Outros órgãos, inclusive governamentais, poderiam ser convocados a participar do debate. O mundo jurídico sairia tremendamente enriquecido do entrechoque em tese porque não seria necessário esperar longo tempo até que a Jurisprudência se pacificasse a respeito de fato controvertido, evitando-se os prejuízos decorrentes. Neste entretempo os interessados teriam hipótese de influir no debate ajustando-o à sua visão e aos seus interesses. O justo interesse é moral no ponto de partida, mas pode não ser moral no ponto de chegada. A cada pessoa (e por via de conseqüência, por ampliação, a cada Associação de Classe) corresponde seu direito, seu dever e seu interesse que nasce de sua individualidade e é comunicado (Sentimento) aos demais participantes. Esta comunicação reverbera o ponto de vista, aquele do qual se descortina o cenário. Sem oposição será prevalecente este ponto de vista. É amplamente moral a exibição de si mesmo como projeto e como realização. A busca de se ser quem se é, é um imperativo moral. A medida, neste caso, deve ser ‘de cada um consigo mesmo’. Se houver reivindicação de tese conflitante estará criada a oposição. A reivindicação de um nasce onde começa a reivindicação do 220 outro. Do entrechoque nascerá a síntese que buscará abarcar os pontos em comum. O imobilismo e o mesmo lugar comum serão exorcizados. O setor em comento avançará neste debate, evoluirá com maior compreensão. Ganha a sociedade. É por isso que (von Foerster) se deve computar, computar, computar indefinidamente (do latim cum : com, em companhia de, juntamente com + putare: limpar, purificar, daí desbastar, podar, cortar, daí, em sentido figurado: verificar uma conta, apurar, contar, calcular, avaliar, considerar, estimar, julgar, pensar, crer, imaginar, supor). Não há como computar sem o Sentimento, com o que a contribuição de cada um, de seus morais motivos e de cada ponto de vista engrandecerão o debate, iluminarão o cenário, acrescentarão nuances e aspectos antes insuspeitos. A humanidade neste ponto de contacto evoluirá. Os aspectos de formação (morais, éticos, característicos) e informação (o conhecimento técnico, adjetivo e processual aliado ao conhecimento pleno de conteúdo que serão exibidos no caso em questão) entrarão no debate e os Sentimentos a respeito se refinarão e amadurecerão; os Sentimentos Pueris (os arbitrários e os ressentidos) e os Escusos serão suprimidos naturalmente. Rememoremos que certo, enquanto advérbio quer dizer: na verdade, com certeza, realmente, sem dúvida, de maneira irrevogável; que certo, as, are, avi, atum quer dizer procurar obter uma decisão, debater, demandar; que certus, a , um quer dizer resolvido, decidido, determinado, fixo, preciso, constante, seguro, de confiança. Donde ‘certo’ quererá dizer algo como “depois de debatida uma questão é, sem dúvida, tomada uma decisão, que está determinada e é de confiança”. A Certeza (se está certo é porque tal afirmação teve seu conteúdo discutido e sobre ele chegou-se a um acordo) estará estabelecida até seu ponto de alteração. E será Previsível enquanto durar aquilo sobre o que se tem Certeza. III – a Associação dos Magistrados sempre em conjunto com a Ordem dos Advogados e Associações de Profissionais da Administração da Justiça, Associação dos Promotores, Membros do Ministério Público e Advogados do Estado, estariam em constante dinâmica suscitando temas jurídicos, debates, seminários, estudos, convidando expoentes de outras áreas, visando pleno e constante aprofundamento do conhecimento específico dos diversos assuntos, constituindo-se em verdadeiro curso permanente de mestrado lato sensu. Tal dinâmica poderia ser suscitada por Associação de classe que, inconformada com os rumos, patrocinaria um seminário para esclarecer 221 seus pontos de vista e informar aos demais profissionais sua visão a respeito. Estes encontros teriam seu foco na informação. Muitas sentenças são repudiadas por lhe faltarem aspectos técnicos, conhecimento e por ignorarem – lex mercatoria – aspectos da vida ela mesma. Estes fóruns seriam a oportunidade de todas as Associações poderem esclarecer as pressões que sofrem e a verdadeira origem natural de seus reclamos. Esclareceriam as suas posições e com tal atitude de cunho docente todas elas tentariam evitar as críticas de que certas sentenças são descoladas dos aspectos a que se referem porque o juiz e a juíza não têm a menor idéia do que tratam os autos. IV - Como alguém não pode ver que não vê o que não vê (von Foerster) as fases anteriores visam estabelecer condições para aumentar o foco de visão (já que só se vê que se vê o que se vê). Possibilitam também (mesmo autor) que a sociedade “aja sempre de modo a aumentar o número de possibilidades de opção”, o que é um imperativo ético. Pleno de Paidéia. V – Falamos todo o tempo do Sentimento de Justiça. Mas, não há como ser no mundo sem Amor. Este grande Sentimento é verdadeiramente aquele que preenche carências e impulsiona a Humanidade. Não falamos do Amor como caritas na acepção cristã. Se falamos do amor que se coloca nas coisas, nas ações, nas realizações, nos objetivos, nos sonhos, naquele que cada um se dedica a si e à sua família, falamos mais, falamos do único e grande Sentimento de que tanto precisa qualquer ser humano porque se ele tende naturalmente a dá-lo tende naturalmente a recebê-lo: “O amor que tende para as coisas boas e se faz acompanhar da temperança e da justiça, seja em nós seja nos deuses, este tem um poder ainda maior, e nos proporciona toda a felicidade, tornandonos capazes de estar juntos uns com os outros, fazendo-nos ser amigos dos seres que estão acima de nós, isto, é dos deuses “. (Banquete, 188 D – Para uma nova Interpretação de Platão, Giovanni Reale, 1997, tradução de Marcelo Perine, pág 349) Sobre isto dizia o já citado Bertrand Russel (1872-1970), o matemático, o lógico, o formalista, o filósofo: “Busquei, primeiro, o amor, porque ele produz êxtase – um êxtase tão grande que, não raro, eu sacrificava todo o resto da minha vida por umas poucas horas dessa alegria” e que tinha “o anseio de amor, a busca do conhecimento e a dolorosa piedade pelo sofrimento da humanidade” como suas paixões. E isto tem tudo a ver com a nossa dissertação. 222 9 – Conclusão Partindo de um tema altamente polêmico e sobre o qual há pouca literatura tentamos demonstrar que as decisões judiciais são a exata manifestação que se lhes imprime cada juiz prolator de sentença e que tal atitude, na nossa visão, não pode. A importância, para a sociedade, de uma sentença bem prolatada e que satisfaça as partes envolvidas é enorme e, além de causa de paz social, é atrativo para negócios e investimentos que geram empregos e progresso. Acreditamos ter desenvolvido os temas de que qualquer sentença é determinada pelo uso do Sentimento; de que o Sentimento pode ser atrapalhado pela Ideologia, pelo Preconceito, pela íntima convicção e pela independência/livre convencimento, pelo mau uso da Equidade e pelo Dever-ser com o qual o juiz não concorda ou que não aceita. Pensamos ter dado uma receita aceitável, porém arbitrária, do ideal de Homem que deveria viver em Sociedade e julgamos ter colocado em termos os ideais de Certeza, Segurança e Previsibilidade, tendo abordado a temática, com a qual não concordamos, de que a sociedade atual aceita a imprevisibilidade por inevitável e que isto deve, e pode, ser evitado. Apresentamos o problema e criamos um método original, dentre vários possíveis, que visa conduzir o(s) julgador(es) em sua caminhada profissional a buscar a Verdade e a Justiça, nortes de qualquer decisão judicial, na nossa opinião, satisfazendo sempre, e sempre, o que é sua obrigação, todos os Atores do Direito com os quais se relaciona(m). Pensamos ter exibido a enorme angústia, insatisfação e insegurança que se impõem às partes envolvidas quando cada cabeça gera cada sentença e que está em computar indefinidamente a saída da pessoa que por função vai julgar um caso, mesmo que inteligente e culta, mas permanentemente limitada pela sua biografia solitária e pela pouca experiência vivida (por maior que seja, será sempre pequena diante de tal desafio). É muita ousadia da sociedade (senão ingenuidade) outorgar a uma simples pessoa, a um simples ser humano, tanta responsabilidade, tanto poder. Há que se manter a função, mas rodeá-la de cuidados, muitos cuidados. Como o desenvolvimento do tema nos conduz à obrigação de computar, computar indefinidamente, não quisemos, por congruência, fechar nenhuma conclusão de maneira mais estreita por sabê-la válida enquanto durarem os motivos que lhe deram nascimento. Encaminhamos, todavia, 223 cada pensamento sempre com envolvimento pessoal e opinião própria que nunca nos furtamos de dar. Na medida em que o tema não tem grande reflexão na literatura mundial e nenhum acabamento, longe disso, aliás, se cabeças pensantes começarem a se debruçar sobre o assunto ele terá, pela sua importância, a atenção que merece e evoluirão imensamente os conceitos. Este trabalho estará, então, anacrônico e merecerá – se merecer – uma que outra simpática citação, o que demonstrará que atingimos o que ambicionamos, ou seja, a ampliação do conhecimento sobre a decidibilidade. 224 BIBLIOGRAFIA ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia – São Paulo: Martins Fontes, 1998 ANDRADE, Oswald de. 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