(fúnebre) individual do neurótico em tempos de - PUC-SP

Transcrição

(fúnebre) individual do neurótico em tempos de - PUC-SP
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC-SP
Míriam Ximenes Pinho
O rito (fúnebre) individual do neurótico em tempos de dessocialização da
morte e do luto: Uma leitura psicanalítica das tatuagens in memoriam
DOUTORADO EM PSICOLOGIA SOCIAL
SÃO PAULO
2015
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC-SP
Míriam Ximenes Pinho
O rito (fúnebre) individual do neurótico em tempos de dessocialização da morte e do
luto: Uma leitura psicanalítica das tatuagens in memoriam
DOUTORADO EM PSICOLOGIA SOCIAL
Tese apresentada à Banca Examinadora da
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo,
como exigência parcial para obtenção do título de
Doutora em Psicologia Social, sob a orientação
da Professora Doutora Miriam Debieux Rosa.
SÃO PAULO
2015
Pinho, Miriam Ximenes
O rito (fúnebre) individual do neurótico em tempos de dessocialização da
morte e do luto: Uma leitura psicanalítica das tatuagens in memoriam /
Miriam Ximenes Pinho; orientadora: Miriam Debieux Rosa. - - São Paulo,
2015.
260f.
Tese (Doutorado – Programa de Estudos Pós-Graduados em Psicologia
Social) - Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP).
Título em inglês: The neurotic’s individual (funeral) rite in times of
desocialization of death and mourning: A psychoanalytic reading of in
loving memory tattoos.
1. Luto 2. Rito fúnebre 3. Tatuagem in memoriam 4. Psicanálise
Banca Examinadora
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Este estudo foi realizado com o auxílio financeiro
do Conselho Nacional de Pesquisa do Brasil
(CNPq) – Processo no. 143405/2011-0.
O estágio doutoral contou com o auxílio
financeiro da Coordenação de Aperfeiçoamento
de Pessoal de Nível Superior (CAPES) através do
Programa de Doutorado Sanduíche no Exterior
(PDSE) – Processo no. 6142-13-3/2013.
Para o leigo, o luto pela perda de algo que amamos ou
admiramos parece tão natural, que ele o considera evidente
por si mesmo. Para o psicólogo, porém, o luto é um grande
enigma, um desses fenômenos que em si não são
explicados, mas a que se relacionam outras coisas obscuras.
Freud, A transitoriedade, 1916.
Ao Luka, com amor.
AGRADECIMENTOS
Não se faz rito sozinho, nem luto. Tese tão pouco. Foram muitas as presenças generosas e
pacientes que compartilharam saberes, experiências, referências bibliográficas, críticas,
sugestões, apoio e amizade durante o longo curso dessa pesquisa. A todos os meus sinceros
agradecimentos e em especial:
À Profa. Miriam Debieux Rosa por ter me acolhido e caucionado este projeto, pelo apoio
integral quando do estágio-doutoral e pelos ensinamentos, incentivo e orientações que muito
contribuíram para a minha formação e andamento da pesquisa.
Ao Prof. Eric Bidaud, Maître de Conférences à Université Paris 13-Nord (Sorbonne/(Paris),
pela gentil acolhida durante a realização do Estágio-Doutoral em Paris.
Aos professores doutores Ana Costa e Christian Dunker pelos preciosos apontamentos e
encaminhamentos que contribuíram para reconfigurar os rumos da pesquisa quando do Exame
de qualificação ao doutorado. E ainda aos professores doutores José Agnaldo Gomes e Tereza
Cristina Endo pelo aceite em participar de minha banca de defesa.
Ao Programa de Estudos Pós-Graduados em Psicologia Social da PUC-SP e seu corpo
docente pela implicação ética e política na produção de conhecimento. Em especial (in
memoriam) à Profa. Fúlvia Rosemberg pelos ensinamentos e comprometimento com a
formação dos pós-graduandos. À Marlene Camargo, secretária da pós-graduação, pelas
orientações precisas e ajuda durante todo o doutorado.
À Sandra Berta pela escuta cuidadosa de meus brados, mas e principalmente pela sua
insistência em me fazer escutar... os silêncios, minhas “falas amordaçadas”. Agradeço ainda
pela leitura crítica e sugestões referentes ao capítulo dedicado à versão lacaniana de luto.
Ao Conrado Ramos pela leitura cuidadosa e pelas sugestões de parte do material aqui
apresentado. Agradeço ainda pelo generoso acompanhamento supervisionado de minhas
construções teóricas e clínicas, pelos caminhos apontados e leituras sugeridas.
Ao Jean Allouch por compartilhar seu percurso teórico e clínico, agradeço especialmente pela
obra Erótica do luto que inspirou, em parte, essa pesquisa. Agradeço ainda pelo convite para
acompanhar seus seminários em Paris.
Aos meus pais Fredy e Maria pelos ensinamentos e presença carinhosa. Em especial à minha
querida mãe “madrinha” dessa jornada pelo apoio inestimável, cuidadosa presença,
ensinamentos e afetos. E ainda aos meus irmãos Fredy Jr. e Marcos e pela ajuda de minha
sobrinha Ilana.
À minha querida irmã Marcia por caucionar as minhas escolhas e pela ajuda essencial quando
do estágio doutoral e ainda pela boa parceria, presença, ensinamentos generosos, amizade e
carinho sem fim, e ao cunhadão Edgar Makdisse pela acolhida sempre generosa, pelos bons
passeios e debates provocadores.
Ao querido Luka pela presença amorosa, incentivo e paciência especialmente durante a etapa
final do doutorado. Agradeço ainda por ter-me traduzido o universo das criaturas do Além.
À saudosa vó Esmeralda que cultivava, lá na Ilha do Marajó, essa familiaridade com os
mortos, “as visagens” que, segundo contava, se mostram para aqueles que amam e os mais
temidos podem surpreender atrás da igreja nas noites escuras. Junto a ela, minha irmã e eu,
aprendemos a confeccionar coroas de flores (lilás) para o Dia dos finados.
Au Adel dont la présence, plein de bon-heur, soleil et tendresse a été une expérience
irrémédiable d'être “lost in translation”. Tu me manque bc.
Et à Audrey Laurent, ma bonne professeur, par la transmission douce et précise de la langue
et de la culture française. Je remercie également Philippe mon premier professeur de français.
À Cibele Barbará pela amizade e interlocução teórica, pelo acompanhamento dos
desdobramentos dessa pesquisa, por compartir as experiências e, em especial, pela presença
carinhosa nesse fim de tese e pelas sugestões quanto ao capítulo final.
Aos queridos cuja presença faz toda a diferença: Ana Augusta, Beatriz Gutierra, Carla
Bohmer, Eliane Costa, Edna Chernicharo, Olinda Miura, Marcelo Tavella, Monica Jabbour,
Renata Ghislene: “Oh, I’ll get by with a little help from my friends…”
Ao grande Cezi (naldo) amigo constante que deixa tudo leve e risonho: “pas de moleza”!
Aos bons abrigos encontrados em Paris: Braulio, Edna, Cezi, Maria, Pedro, Miguel, Paulo.
À querida Ieda pela boa parceria, atenção e cuidados para comigo e minha família.
Ao Sergio Prudente pela boa parceria durante o percurso do doutorado e bons comentários
sobre os rumos da pesquisa, sugestão bibliográfica e envio de material encontrado na internet.
A todos os participantes do Núcleo de Pesquisa Psicanálise e Politica pelo partilhamento das
experiências e acaloradas discussões teóricas. Em especial, à Emília Broide, Aline Martins,
Jaquelina Ibrizi, Isabel Tatit e Ana Musatti pelos comentários e sugestões quanto à tese.
Aos queridos Ede e Maria Ignez pelo acolhimento generoso, presença carinhosa e boa
parceria em consultório, e ainda à Aurora pelas trocas afetivas e profissionais e à Francisca
(Fran) amiga das boas risadas e cafés nos intervalos de agenda.
À Daniela Uga pela amizade, carinho e apoio durante todo o tempo em que trabalhei na
Uninove e após. Saudades. E ainda à Maria, amiga dos bons passeios e risadas.
Aos seminaristas das formações clínicas do Fórum do Campo Lacaniano São Paulo. Em
especial: Ana Laura Prates, Conrado Ramos, Dominique Finguerman, Gonçalo Ramos,
Sandra Berta; e ainda a todos os colegas participantes pela interlocução.
Ao estimado Welson Barbato por partilhar generosamente seus conhecimentos teóricos e
clínicos.
À Clarissa Metzger que leu o primeiro esboço desse projeto e ao querido Agnaldo que tanto
me incentivou nesse início e fez a gentileza de me apresentar à Profa. Miriam Debieux.
À coordenação da Universidade Uninove agradeço o acolhimento durante o tempo em que lá
trabalhei: Lucia Barbosa, Renata Molina, Marcia Marteletto, Daniela Uga, Maria Maciel. Aos
queridos alunos da Uninove por tudo que com eles aprendi, em especial aos dos Estágios
Básicos com quem tive a felicidade de compartilhar as minhas inquietações e investigações
acerca do luto.
Aos pacientes que partilharam e partilham suas histórias, desejos, obscuridades, sonhos e
enigmas.
Ao Miguel Yoshida pelo trabalho paciente e atencioso de revisão dessa escrita.
Ao CNPq e à CAPES pelo inestimável apoio financeiro.
SUMÁRIO
AGRADECIMENTOS ...................................................................................................................................... 8
PROLEGÔMENOS ........................................................................................................................................ 15
Três constatações sobre o luto nos dias atuais .............................................................................................. 17
1. A dessocialização da morte e desritualização do luto ....................................................................... 17
2. Novas modalidades de tributo fúnebre .............................................................................................. 19
3. A disseminação das tatuagens in memoriam .................................................................................... 19
Do percurso de pesquisa................................................................................................................................ 21
Do desenho do estudo.................................................................................................................................... 26
PARTE I. A DESSOCIALIZAÇÃO DA MORTE (E DO LUTO) NO OCIDENTE CRISTÃO .................. 29
1. DA MORTE COMO FATO PÚBLICO À MORTE ESCONDIDA ......................................................... 32
1.1 A morte de si ........................................................................................................................................... 32
1.2 A morte do outro ou os tempos românticos ............................................................................................ 39
1.3 A dessacralização da morte ou os tempos selvagens............................................................................... 43
2. LUTO DESRITUALIZADO, LUTO PRIVADO ...................................................................................... 49
2.1 A privatização do luto ............................................................................................................................. 49
2.2 Do culto público ao culto intimista dos mortos ....................................................................................... 56
2.3 Luto prescrito .......................................................................................................................................... 65
3. A MORTE REDESCOBERTA ................................................................................................................... 70
3.1 Saindo da clandestinidade: a morte em discurso ..................................................................................... 70
3.2 As novas escatologias ............................................................................................................................. 75
3.3 The “horror show”: O retorno dos mortos selvagens .............................................................................. 77
PARTE II. O LUTO EM SEU CARÁTER PÚBLICO OU O LUTO COMO RITUAL SOCIAL ............... 82
1. UM POUCO DE ETNOGRAFIA: O QUE SÃO RITOS? ........................................................................ 84
1.1 Em busca de um conceito ........................................................................................................................ 85
1.2 O fazer e o dizer: Ritos e Mitos............................................................................................................... 87
Mito e rito em Psicanálise ..................................................................................................................... 90
2. RITOS FÚNEBRES: REVISITANDO OS CLÁSSICOS ......................................................................... 94
2.1 Robert Hertz e a prática do duplo funeral (1907) .................................................................................... 95
2.2 Arnold van Gennep e os ritos de passagem (1909) ................................................................................. 99
3. FUNÇÃO E EFICÁCIA DOS RITOS FÚNEBRES ................................................................................ 103
3.1 A eficácia simbólica .............................................................................................................................. 103
3.2 A função dos ritos fúnebres................................................................................................................... 107
Ritos de morte para a paz dos viventes ............................................................................................... 107
Da vertigem à transcendência: A função mediadora dos ritos fúnebres segundo Lacan..................... 112
3.3. Quatro fatores estruturais dos ritos fúnebres ........................................................................................ 118
As representações. .............................................................................................................................. 118
O Lugar do público ............................................................................................................................. 119
A ação ritual ........................................................................................................................................ 121
O fator temporal .................................................................................................................................. 122
4. PELO DIREITO AO RITO ...................................................................................................................... 124
5. RECONFIGURAÇÕES DOS RITOS NO CONTEMPORÂNEO ......................................................... 130
PARTE III. “ESSAS COISAS TÊM DE SUBSISTIR DE ALGUMA FORMA”: O TRABALHO DE
REMEMORAÇÃO E A NECESSIDADE DO MONUMENTO .................................................................... 135
1. DOIS MODOS DE TRATAR A TRANSITORIEDADE: A PROCRIAÇÃO [GÉNESIS] E A GLÓRIA
[KLÉOS] OU O NOME E O RENOME ....................................................................................................... 138
2. DOS MEMORIAIS PÉTREOS AOS TÚMULOS VOLANTES ............................................................ 143
3. O TRABALHO DE REMEMORAÇÃO .................................................................................................. 152
PARTE IV. MAIS-ALÉM DO TRABALHO DE REMEMORAÇÃO ......................................................... 163
1. DOS LIMITES DA REMEMORAÇÃO: NO MEIO DA TRAVESSIA, O REAL ................................ 165
2. HAMLET E O LUTO: UMA LEITURA DE LACAN ............................................................................ 171
I) A cena do encontro com o fantasma ........................................................................................................ 174
II) A cena de rejeição de Ofélia ................................................................................................................... 177
III) A cena no quarto de Gertrudes .............................................................................................................. 179
IV) A cena do cemitério .............................................................................................................................. 180
3. UMA ESCRITA DO LUTO E A EXPOSIÇÃO ....................................................................................... 192
3.1 A escrita e a exposição .......................................................................................................................... 196
PARTE V. O RITO (FÚNEBRE) INDIVIDUAL DO NEURÓTICO:
A TATUAGEM IN MEMORIAM..................................................................................................................... 200
1. O TRIBUTO ENCARNADO: A ESCRITA DO LUTO NO CORPO .................................................... 202
1.1 A escritura corporal: Uma breve apresentação ...................................................................................... 203
1.2. O tributo encarnado: “A tatuagem é um memorial que vai ficar com você para sempre” ................... 210
1.3 A escrita do luto no corpo ..................................................................................................................... 220
2. O RITO (FÚNEBRE) INDIVIDUAL DO NEURÓTICO: A TATUAGEM IN MEMORIAM ............. 234
2.1 A dimensão do sacrifício na produção da tatuagem .............................................................................. 237
2.2 A exposição: scripta manent e scripta volant ....................................................................................... 240
CONSIDERAÇÕES FINAIS ........................................................................................................................ 245
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ......................................................................................................... 250
ANEXO 1 – APROVAÇÃO DA PESQUISA PELO COMITÊ DE ÉTICA ................................................................ 260
Resumo
PINHO, M.X. O rito (fúnebre) individual do neurótico em tempos de dessocialização da
morte e do luto: Uma leitura psicanalítica das tatuagens in memoriam. 2015. Tese
(Doutorado – Programa de Estudos Pós-Graduados em Psicologia Social) – Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), São Paulo, 2015.
Durante séculos, a morte foi tratada como um fato social e público que ocorria acompanhado
por ritos sagrados. Logo após a Primeira Guerra, observou-se a precipitação do
desmantelamento dos modelos tradicionais de cuidados aos agonizantes e amparo aos
enlutados. A morte tornou-se tabu e essa mesma interdição atingiu tudo o que a ela se refere,
incluindo o luto que se tornou uma experiência íntima e solitária. A dessacralização da morte
levou à desritualização do luto, porém isso não implicou em abandono ou esquecimento dos
mortos. Ao contrário, observamos a emergência de novas modalidades de relação com os
mortos em que os ritos aparecem reconfigurados, ao modo de um bricolage. Com o intuito de
estudar essas novas configurações, optamos por investigar uma delas, as chamadas “tatuagens
in memoriam” produzidas em decorrência de um luto. Essa pesquisa sugere que as tatuagens
in memoriam se constituem em “um rito fúnebre individual do neurótico”, isto é, um modo
privado de ritualizar o luto e prestar tributo fúnebre em tempos de dessocialização da morte e
desritualização do luto. Ao considerarmos a produção das tatuagens in memoriam um rito
privado coube-nos investigar a função desse rito que pode tanto servir como tratamento
possível do real pelo simbólico em forma de uma escrita do luto grafada no corpo, quanto um
rito que visa prolongar a relação com o ser perdido, produzindo um luto interminável em que
a escrita do luto não se conclui.
Palavras-chave: Luto, rito fúnebre, tatuagem in memoriam, psicanálise.
Abstract
PINHO, M.X. The neurotic’s individual (funeral) rite in times of desocialization of death
and mourning: A psychoanalytic reading of in loving memory tattoos. 2015. Thesis
(Doctorate - Program of Postgraduate Studies in Social Psychology) - Pontifical Catholic
University of São Paulo (PUC-SP), São Paulo, 2015.
For centuries, the death was treated as a social and public event taking place accompanied by
sacred rites. Right after the World War I, a precipitation of the dismantling of the traditional
models of care for the dying and the bereaved just occurred. Death has become taboo and that
same ban hit everything that it refers, including the mourning that has become an intimate and
lonely experience. The desecration of death led to unritualized mourning, however, this did
not imply neglect or abandonment of the Dead. Instead, we observe the emergence of new
forms of relationship with the Dead in which the rites appear reconfigured, the manner of a
bricolage. In order to study these new configurations we have chosen to investigate one of
them that is called "in loving memory tattoos" produced due to a bereavement. This research
suggests that in loving memory tattoos constitute an “neurotic’s individual (funeral) rite”, that
is, a private way of ritualizing mourning and paying funeral tribute in times of suppression of
the death of social spaces and unritualized mourning. As we consider the making of a
memorial tattoo a private rite, it was important to investigate the function of this rite that can
both serve as a possible treatment of the real by the symbolic order in a kind of mourning
written on the skin, as a rite that it aims to prolong the relationship with the departed one,
producing an endless mourning in which the writing of the mourning never ends.
Keywords: Mourning, funeral rite, in loving memory tattoo, psychoanalysis.
PROLEGÔMENOS
Em todos os grupos humanos, a morte, assim como o sol, não se encara de frente. Ela
é paramentada por um sistema de crenças e práticas fúnebres sagradas. As relações do homem
com a morte – nossa última passagem – e com os mortos – esses que nos precederam e que
nos legaram ao partir, independentemente da vontade deles e da nossa, aquelas milhões de
marcas invisíveis, nem sempre benevolentes – é um tema imemorial que suscita em nós, os
(sobre)viventes, as mais antigas inquietações tanatológicas: A morte é o fim? O que acontece
com os mortos? Subsistem em algum outro lugar? De que modo? Como lidar com eles?
Enfim, o que fazer para ficarmos em paz com eles?
Iniciamos nosso percurso traçando um panorama histórico acerca das relações do
homem com a morte no ocidente cristão. Com isso, pretendemos evitar uma visão ingênua ou
enganosa de que algumas concepções, sentimentos e atitudes coletivas em relação à morte –
de tão popularizados e difundidos – remontam a eras muito antigas da humanidade e que,
portanto, sempre foram assim e apenas bem recentemente é que estariam sob ameaça de
desaparecimento como efeito de uma nova ordem social. Consultar as obras de historiadores
como Philippe Ariès e Michel Vovelle foi fundamental para desconstruir uma visão de luto
não tão antiga assim, com início por volta do fim do século XVIII, e que segue o modelo do
luto burguês (Vovelle) ou romântico (Ariès). Nesse modelo herdado por nossos avós cabem
as grandes dramatizações das expressões de pesar, o uso de trajes pesados de luto, o culto
romântico dos mortos, a exaltação e cuidado com a morte do outro em detrimento das
preocupações com a própria morte, as pompas fúnebres, o pesar íntimo e prolongado.
Retrocedendo a esse modelo, pudemos encontrar outros nos quais a morte de uma criança não
era considerada como a perda maior, os corpos eram abandonados aos cuidados da Igreja, os
túmulos eram coletivos e anônimos e o luto era eminentemente uma experiência social.
Foi marcadamente após a primeira grande guerra que se precipitou o
desmantelamento dos modelos tradicionais de cuidados aos agonizantes e amparo aos
enlutados. O predomínio de um pensamento de cunho racional-cientifico favoreceu a
secularização da vida social e as mudanças na relação com a morte e com os mortos. No
século XX, as ciências médicas alcançaram o que antes era cogitado apenas em obra de ficção
ou como fruto milagroso de intervenção divina: a prevenção, controle ou mesmo cura de
inúmeras patologias e o consequente aumento considerável da expectativa de vida. A
medicina substituiu a noção de morte pela de doença, de modo tal que mesmo diante de uma
situação grave, ainda é possível viver mesmo que mutilado (ARIÈS, 1981). Com a
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secularização da vida social, os discursos de dominação do corpo passaram das mãos dos
sacerdotes para as mãos das ciências médicas (FOUCAULT, 1979).
Em contrapartida, uma notável mudança ocorreu nas representações e atitudes
coletivas da morte no ocidente: a morte foi transferida para o hospital, os ritos foram
abreviados ou suprimidos, o luto assumiu um caráter íntimo, a incineração do corpo cada vez
mais substitui a inumação, as visitas aos cemitérios rarearam e os túmulos jazem
abandonados. Há muito que, principalmente para as gerações mais jovens, o Dia de Finados
deixou de ser um dia de compromisso obrigatório para com os mortos. Hoje em dia, pensar
em demasia na própria morte ou nos mortos tornou-se sintoma de alguma condição mórbida a
ser investigada e tratada. A morte tornou-se pornográfica deslocando o sexo (GORER, 1967).
No inicio do século XX, Freud (1915/2010, p. 230) havia observado essa tendência
cultural-convencional, que se tornou logo depois dominante, de reduzirmos a morte ao
silêncio, excluindo-a dos cálculos da vida. É que no fundo, diz Freud, “ninguém acredita na
própria morte”, para o inconsciente somos imortais. A morte, assim como o sexo, é da ordem
do irrepresentável e por mais que tentemos imaginá-la, só o conseguimos na condição de
expectadores. Enquanto vivos, portanto. É somente no mundo da ficção que encontramos as
condições sob as quais uma reconciliação com a morte se tornaria possível. Através da
identificação imaginária com os personagens da trama, uma pluralidade de vidas e mortes
pode ocorrer sem danos; já que se trata de um roteiro fictício, o aniquilamento absoluto da
existência está excluído: “morremos na identificação com um herói, mas sobrevivemos a ele e
já estamos prontos a morrer uma segunda vez com outro, igualmente incólumes”, em outros
termos, é como se “por trás de todas as vicissitudes da vida nos restasse ainda uma vida
intacta” (p. 230, 233).
De todo modo, ainda que ficções, dissimulações e interditos sejam erguidos para nos
fazer crer que a morte é obra do acaso em vez de inevitável, não é possível negar sempre a
finitude da vida, no final “temos de crer nela. As pessoas morrem de fato” (FREUD,
1915/2010, p. 233). A partir de meados do século XX, um espantoso movimento de
reinvestimento da morte tornou-a loquaz através de um coro de especialistas que a tomou
como objeto de pesquisas, publicações e debates que invadiram os meios midiáticos. Esse
movimento passou a questionar não só as representações referentes à morte como também as
práticas de tratamento oferecidas aos enfermos, agonizantes e enlutados.
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Três constatações sobre o luto nos dias atuais
1. A dessocialização da morte e desritualização do luto
Os modos de expressar o pesar e lidar com o luto na atualidade foram certamente o
nosso leitmotiv inicial depreendido de diferentes experiências de atendimento clínico. O
germe desta pesquisa nasceu da experiência de atendimento de idosos no Ambulatório de
Cardiologia/Setor de Cardiogeriatria da Escola Paulista de Medicina durante o
desenvolvimento da pesquisa de Mestrado (2002-2009) que visava investigar a presença de
quadros depressivos nesta população uma vez que, segundo a literatura especializada,
depressão está fortemente associada com o aumento do risco de morbidade e mortalidade
entre pacientes portadores de Doença Arterial Coronária (PINHO; CUSTÓDIO; MAKDISSE
et al., 2010). Ao longo desses atendimentos, perdas de diversas ordens (da saúde, da condição
financeira, do lugar de habitação, morte de parentes e amigos...) e luto eram temas tão
presentes e tão prementes que me levaram, ao final da pesquisa, a deslocar meu interesse para
o luto, especialmente o decorrente da perda de um ser significativo, pois sentia a imperativa
necessidade de me instruir sobre as versões psicanalíticas sobre o luto para reconsiderar a
minha intervenção clínica.
Paralela a essa experiência, participei como psicóloga da equipe de uma Unidade de
Referência à Saúde do Idoso, serviço inserido em uma Unidade Básica de Saúde onde tive a
oportunidade de atender inúmeros adultos, idosos e seus familiares em equipe
multidisciplinar. Durante esse tempo, pude confirmar a justeza das afirmações de Philippe
Ariès (2012) de que a morte, com efeito, havia se tornado “selvagem” e uma interdição
cercava tudo o que a ela se referisse incluindo aí as expressões de luto. O enlutado aparecia
esmagado por um luto solitário, discreto, silencioso e privado.
Acompanhei alguns idosos mergulhados em um luto não autorizado por familiares
que temiam o agravamento da saúde caso eles se “entregassem”... ao luto. Para poupar os
familiares ou para se pouparem de repreensões, o pranto e a rememoração do morto eram
vividos de modo clandestino, escondido.
O distanciamento das questões referentes à morte, a falta de ritos para marcar a
duração do pesar, prestar honra à memória do morto e orientar o modo de tratar os enlutados
fazia com que muitos nem sequer se dessem conta que aquela perda lhes abalava, pareciam
não se saber de luto. A um jovem recém-viúvo, os amigos recomendaram retomar a “vida
noturna” porque “a fila anda”. Em meio às “baladas”, álcool, flertes e um grave acidente de
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carro, o jovem tentava fazer a “fila andar” enquanto se consumia de culpa por avaliar que
como marido fora extremamente negligente.
Em outro atendimento, uma mãe que havia acabado de perder o filho pequeno
questionou o motivo pelo qual foi encaminhada pelo profissional da saúde para consultar um
psicólogo: “Não é normal uma mãe chorar pelo filho? Não posso chorar pelo meu filho?”.
Diante do embaraço e constrangimento que hoje sentimos diante de expressões efusivas de
pesar, uma resposta imediata é escapar ou despachar o mais depressa possível essas situações.
Em meio a tendência atual à normatização de condutas a partir de um saber médico, muitos
vinham em busca de um tratamento “anti-luto” que pudesse suturar, seja pela via do
diagnóstico, medicação ou orientação, a dor da perda.
Havia também queixas referentes às fórmulas convencionais de consolo, tais como
“minhas mais profundas condolências”, “ele está nos braços de Deus”, “agora ele descansou”,
“Deus sabe o que faz” etc. Se no passado essas frases convencionais eram proferidas e
recebidas de modo natural, hoje elas se tornaram suspeitas, caducas ou fonte de embaraço
para a maioria das pessoas.
Em tantos outros casos, me deparei com um luto melancolizado em que os objetos do
morto eram preservados intactos do jeito que foram deixados (escova de dentes, roupas,
chinelos, cadeira de balanço...) por meses a fio; e ainda a peregrinação desesperada de alguns
outros em busca de alguma resposta ou alívio para a dor: visitas ao cemitério, missas, centro
espírita, médicos, psicólogo, psiquiatra, entre outros.
A característica comum entre esses casos era a solidão, a sensação de desamparo ante
a falta de reconhecimento do pesar e apoio afetuoso da comunidade. Durante séculos, os ritos
foram os responsáveis por gerir de modo satisfatório as grandes mudanças da vida e os
momentos de crise. A vida social era organizada em torno de rituais. A dessacralização da
morte está intimamente associada com a privatização da morte e do luto; não estamos mais
habituados a conviver com os agonizantes ou a assistir mortes no leito, nem a acompanhar
velórios, enterros ou prestar visitas aos familiares do morto. Se no passado havia a exigência
social dos ritos fúnebres, atualmente os cerimoniais, se ocorrem, são privativos, econômicos,
discretos, entregues aos eficientes agentes das casas funerárias. O luto tornou-se um drama
pessoal, um momento solitário e retraído para o sobrevivente, e para os demais, um momento
embaraçoso por não se saber mais o que dizer ou como se portar. O banimento da morte
natural do campo social e a interdição das expressões públicas de luto têm por contrapartida o
silenciamento da dor e o incremento de casos de sujeitos adoecidos por um luto interminável,
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às vezes insabido, outras vezes clandestino e em outros casos amordaçado sob algum
diagnóstico e/ou medicação.
2. Novas modalidades de tributo fúnebre
A despeito de um contexto aparentemente indiferente aos mortos observamos a
emergência de diversos tipos de tributos que lhes prestam homenagens fúnebres. Há os
clássicos em forma de poemas, livros e obras de arte; em 1992, a canção “Tears in Heaven”
de Eric Clapton comoveu o mundo ao prestar tributo à memória de seu filho morto aos quatro
anos de idade. Mais recentemente chama a atenção a invasão dos espaços públicos pelos
tributos espontâneos: há a bicicleta fantasma [ghost bike], as cruzes e flores depositadas em
lugares onde ocorreu alguma tragédia e as tatuagens. Nos espaços virtuais encontramos os
sites que tem sido chamado de “cemitérios virtuais” e ainda as páginas em redes sociais
mantidas por familiares e amigos.
3. A disseminação das tatuagens in memoriam
Hoje as manipulações irreversíveis do corpo são um fenômeno bastante comum entre
jovens. As tatuagens são realizadas por inúmeros motivos particulares, mas de modo geral
servem como um marco de memória. Um jovem relatou que realiza tatuagem a cada vez que
quer marcar um momento “bom” de sua vida e a tatuagem lhe serve para referendar esse
momento do qual irá sempre se lembrar. Nesse sentido a tatuagem é um marco memorial, uma
tatuagem memorial que serve como suporte físico da lembrança.
Já a tatuagem in memoriam tem a especificidade de ser um tributo fúnebre que visa
prestar homenagem e ao mesmo tempo preservar a memória de um ser desaparecido usando a
pele como suporte. Muito popular nos Estados Unidos, lá recebem o nome de in loving
memory tattoo, memorial tattoo, remembrance tattoo ou in memory of tattoo. Embora nos
falte dados para precisar quando as tatuagens in memoriam começaram a se popularizar no
ocidente, apostamos que foi durante a primeira década do século XXI com a ajuda de
programas televisivos e das redes sociais virtuais. De nossa parte, o primeiro encontro com
esse tipo de tributo encarnado ocorreu em um “reality show” norte-americano intitulado
“Miami Ink”1, nos idos de 2007. Alguns episódios acompanhavam a produção de tatuagens in
memory.
1
Reality show norte-americano que foi ao ar entre 2005 e 2008 e exibido pelo extinto canal “People and Arts”.
Disponível em: http://pt.wikipedia.org/wiki/Miami_Ink. Acesso em: 1/5/2015.
19
Em nossa pesquisa pelo mundo virtual, os tipos mais comuns de homenagem tatuada
são os seguintes: o nome do morto acompanhado com algum desenho e/ou com data de
nascimento e morte; o nome do morto acompanhado de data mais a palavra R.I.P. [rest in
peace ou requiescat in pace]; tatuagens com símbolos religiosos (geralmente anjo ou cruz);
tatuagens realista de retratos [portraits tattoo]; tatuagem de fita de câncer quando essa foi a
causa da morte [ribbon cancer tattoo]; epígrafes acompanhadas ou não de algum desenho;
reprodução de frases ou dedicatórias escritas à mão pelo falecido; memoriais de guerra
realizados por ex-combatentes. Abaixo três exemplos ilustrativos de tatuagens in memoriam
em forma de tatuagem escrita (ou escritural), desenhada e verbo-icônica.
Figura 1. Tatuagem em forma escrita ou escritural
“Melhor ter amado e perdido que nunca ter realmente amado”
Fonte: Memorial tattoos2
Figura 2. Tatuagem desenhada
Fonte: Memorial tattoos3
2
Fonte: https://www.pinterest.com/explore/memorial-tattoos/. Acesso em: 15/01/2015, tradução nossa.
20
Figura 3. Tatuagem verbo-icônica
“Até nos vermos novamente”
Fonte: Memorial tattoos4
Inicialmente, ao nos deparamos com os tributos em forma de tatuagem nos
indagamos: da onde vinha esse costume? Trata-se de modismo? Uma recusa frente ao luto
nesses tempos de supressão da morte?
Após estudarmos um pouco mais de perto esse fenômeno, nossas questões tomaram
outro rumo. Passamos a nos indagar se haveria alguma relação entre a popularização da
tatuagem in memoriam e a desritualização do luto. Essa questão nos levou à pergunta central
de nossa pesquisa referente ao objeto de estudo: poderíamos considerar a produção de uma
tatuagem in memoriam um modo privado, pessoal, de rito fúnebre?
Do percurso de pesquisa
Essas constatações foram inferidas ao longo do percurso da pesquisa e ajudaram a
circunscrever nosso tema e objeto de estudo. Iniciamos nossa investigação motivados pelo
interesse que nos despertavam o luto e os novos modos de expressar o pesar no
contemporâneo.
De um lado, havíamos observado que a proscrição das expressões públicas de luto e
a ausência de ritos que pudessem aliviá-lo potencializavam consideravelmente o sofrimento
dos enlutados que tinham de arcar solitariamente com o peso de sua dor. Diante desse deserto
3
4
Fonte: https://www.pinterest.com/explore/memorial-tattoos/. Acesso em: 15/01/2015.
Fonte: https://www.pinterest.com/explore/memorial-tattoos/. Acesso em: 15/01/2015, tradução nossa.
21
afetivo e pouco favorável à fala, o reconhecimento da dor é frequentemente buscado junto a
profissionais médicos, psiquiatras, psicólogos, psicanalistas. Por outro, observamos a
emergência no espaço social de novos modos de relação com os mortos, formas particulares
de expressar o pesar no lugar deixado vazio pelos ritos tradicionais. Partimos então da
hipótese de que diante do atual interdito social que cerca a morte e da supressão ou queda dos
valores rituais, ao enlutado caberia fabricar ou inventar uma maneira particular de ritualizar
seu luto. Nesse primeiro momento, a obra do psicanalista francês Jean Allouch, Erótica do
luto no tempo da morte seca, publicada em 2004 no Brasil, serviu de guia para as nossas
investigações.
Decidimos iniciar nosso percurso investigativo com a tarefa de traçar primeiramente
um panorama histórico acerca das relações do homem com a morte e, sobretudo, com seus
mortos. Já que tínhamos a intenção de discutir o luto no contemporâneo levando em
consideração os elementos sociais envolvidos, nossa preocupação era de não nos deixar levar
por uma visão ingênua ou mesmo romântica de luto que deixaria de fora a sua relatividade
histórica. As obras de Philippe Ariès e Michel Volvelle, historiadores de referência no tema,
serviram de fonte histórica principal. Fizemos uso também da obra do antropólogo social
Geoffrey Gorer pioneiro quanto à observação de que a morte havia se tornado tabu em
substituição ao sexo. De modo mais breve do que gostaríamos, inserimos algumas pequenas
notas acerca de costumes e práticas referentes à morte e o luto no Brasil recorrendo
principalmente à obra A morte é uma festa do historiador João José Reis e a um texto do
antropólogo Roberto daMatta, A morte nas sociedades relacionais: reflexões a partir do caso
brasileiro. Nessa primeira parte, partimos de uma incursão histórica em torno da
dessocialização da morte e do luto no ocidente, e terminamos com o espantoso reinvestimento
da morte (tema hoje de estudos e debates) e os modos (selváticos) de retorno dos mortos.
Em seguida tornava-se necessário investigar o conceito de rito, sua função, estrutura
e eficácia. Interessava-nos saber se esses modos particulares de expressar o pesar poderiam
ser considerados ou chamados de ritos fúnebres. Partimos em busca de estudos e autores
oriundos do campo antropológico/sociológico. O encontro com as obras de Mariza Peirano,
antropóloga brasileira especialista no tema, foi fundamental. A autora apresenta um conceito
ampliado e relativo de ritual que nos instruiu quanto à capacidade dos ritos de se
transformarem a partir da combinação de elementos diversos, mecanismo definido por LéviStrauss como bricolage. Os ritos, portanto, são abertos às mudanças e reapropriações
criativas. Essas ideias nos permitiram avançar em relação à consideração de que os novos
modos de expressar o pesar podem operar como ritos fúnebres recompostos de modo
22
particular. Os estudos das obras clássicas sobre os ritos fúnebres de Robert Hertz e Arnold
van Gennep foram preciosos para a compreensão destes como ritos de passagem que visam
processar as mudanças de status social dos viventes e dos mortos.
Por essa época, a partir das sugestões advindas do exame de qualificação da
pesquisa, os rumos de nossa investigação foram redefinidos: de um lado, acatamos a sugestão
da Profa. Ana Costa de tomarmos as tatuagens in memoriam como nosso objeto de estudo.
Até então, não tínhamos um objeto delimitado e nos dedicávamos a estudar de modo geral
esses novos modos de expressão de luto; e de outro, o Prof. Christian Dunker nos fez a
seguinte sugestão: “Por que não pensar essas modalidades privadas como ‘um rito individual
do neurótico’?” Um trocadilho com o texto lacaniano O mito individual do neurótico. Essa
sugestão acabou servindo de inspiração para o título da tese.
Essas e outras sugestões dilataram nossas investigações acerca dos ritos. Revisitamos
a parte dedicada aos ritos fúnebres para melhor circunscrever sua função e eficácia. No campo
antropológico/sociológico, recorremos aos seguintes estudos de Lévi-Strauss sobre eficácia
simbólica: A eficácia simbólica, O feiticeiro e sua magia, Sur les rapports entre la mythologie
et le rituel. E ainda à obra Rites de mort, pour la paix des vivants de Thomas e também aos
estudos de Marcel Mauss e Henri Hubert, Sobre o sacrifício e Esboço de uma teoria geral da
magia. Em relação à psicanálise acrescentamos os estudos de Freud, Totem e tabu e Atos
obsessivos e práticas religiosas; e de Lacan precisamos melhor a sua proposta quanto à
função dos ritos fúnebres, recorrendo principalmente aos seguintes textos: O mito individual
do neurótico, O simbólico, o imaginário e o real, Do símbolo e de sua função religiosa,
Intervenção depois de uma exposição de Claude Lévi-Strauss na Sociedade Francesa de
Filosofia, ‘Sobre as relações entre a mitologia e o ritual’, com uma resposta dele e O
seminário 6: O desejo e sua interpretação. Essa nova volta nos permitiu melhorar a proposta
quanto aos fatores estruturais essenciais que contribuem para a eficácia dos ritos fúnebres
pensados a partir de um modelo quatour em que “representações”, “público”, “ação ritual” e
“fator temporal” participam compondo uma totalidade.
Um artigo do antropólogo social J-P Albert, Les rites funéraires. Approches
anthropologiques, nos ajudou a pensar sobre essa demanda por rito ou mesmo reinvindicação
de um “direito ao rito” que se mantém em uma população aparentemente bem menos
religiosa. O encontro com o texto da socióloga portuguesa Helena Vilaça, Recomposições dos
rituais contemporâneos: a peregrinação e do livro da socióloga francesa Daniele HervieuLéger, Le pèlerin et le converti – la religion en mouvement, foram essenciais para
fundamentar a ideia de que os ritos fúnebres longe de desaparecerem estão simplesmente
23
sendo reconfigurados a partir da combinação de elementos diversos, sagrados e laicos, ao
modo de um bricolage.
A terceira parte de nossa pesquisa nos é muito preciosa. Ela é permeada por algumas
questões e inquietações surgidas durante o atendimento clínico de pessoas de luto. O fio
condutor do capítulo foi a possibilidade de se pensar sobre o destino dado aos mortos, seja o
destino psíquico realizado, segundo Freud, a partir do trabalho de luto, de rememoração e
desinvestimento do objeto perdido, seja o trabalho de erigir tributos fúnebres para se preservar
a memória do morto para a posteridade. Partimos do texto A transitoriedade de Freud para
indagarmos sobre o modo como os homens respondem à transitoriedade da vida. Em O
banquete, Platão responde, através de Diotima, que há dois modos de se fazer lembrar: pela
fama do nome ou pela procriação. Continuamos nossa discussão a partir da obra do helenista
sueco Jesper Svenbro, Phrasikleia: An Anthropology of Reading in Ancient Greece, esse livro
se constituiu uma fonte preciosa de informação sobre os monumentos sepulcrais e lápides
gregas. Diante da morte de filhos, os pais gregos lhes dedicavam monumentos em cujas
lápides as letras grafadas asseguravam posteridade ao nome da linhagem. Os tributos fúnebres
visam perenizar a memória dos mortos sejam eles erguidos em forma de pedra, letras ou
tatuagens. Quanto à versão freudiana de luto, analisamos principalmente os textos de Freud,
Considerações atuais sobre a guerra e a morte, Luto e melancolia, A transitoriedade,
Inibições, sintomas e ansiedade e O ego e o id. Encerramos esse capítulo, marcando os limites
do trabalho de rememoração para avançarmos, no capítulo seguinte, com as contribuições de
Lacan referente ao luto.
A quarta parte foi dedicada ao estudo da versão lacaniana de luto. Primeiramente
retomamos os limites do trabalho rememorativo recorrendo ao conceito de repetição de Freud
a Lacan. Em Freud, analisamos o texto Repetir, recordar e elaborar e avançamos para o
Seminário 11: Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise de Lacan para destacarmos o
encontro do real que rompe o funcionamento automático da cadeia significante. No capítulo
seguinte, empreendemos um estudo detalhado da versão de luto proposta por Lacan a partir de
sua leitura de Hamlet presente no Seminário 6: O desejo e sua interpretação. Para melhor
acompanharmos esse estudo recorremos à ajuda de outros leitores desse seminário tais como
Jean Allouch, Erik Porge e Sandra Berta. Procuramos circunscrever a versão lacaniana de luto
a partir de quatro cenas: “a cena do encontro com o fantasma”, “a cena de rejeição de Ofélia”,
“a cena no quarto de Gertrudes” e “a cena do cemitério”. Ainda que tenhamos nos dedicado a
explorar melhor a cena do cemitério do que as antecedentes, optamos por manter esse
percurso de leitura por considerarmos que ele é essencial para a compreensão da interpretação
24
de Lacan da cena do cemitério, ápice da peça e fundamental por ser nela que o autor
apresentará sua versão de luto. No capítulo final, abordamos a versão de luto proposta por
Jean Allouch, na obra Erótica de luto, a partir da interpretação lacaniana de Hamlet. Nossa
leitura delimitou três pontos básicos: a tese princeps do autor quanto ao luto; a sugestão
quanto a uma escrita mínima de luto grafada em álgebra lacaniana; e a proposta quanto à
função da exposição no fechamento do luto.
Após esse longo itinerário de leitura chegamos enfim à análise de nosso objeto de
estudo, as tatuagens in memoriam. Optamos por ilustrar esses tributos fúnebres com algumas
imagens, mas nosso principal foco de interesse dizia respeito às falas concernentes às marcas
produzidas, pois a partir delas nos foi possível tecer e enriquecer as articulações teóricas
apresentadas. Todo o material foi coletado a partir de publicações lançadas em internet. Em
nossa incursão pelo mundo das tatuagens, fomos ajudados principalmente pelas obras de Ana
Costa, Tatuagens e marcas corporais; Paola Mieli, Sobre as manipulações irreversíveis sobre
o corpo; Marie-Anne Paveau, Uma enunciação sem comunicação: As tatuagens escriturais; e
Pierrat e Guillon, Les hommes illustrés, le tatouage des origins a nos jours. Em nossa
pesquisa não nos dedicamos a uma análise psicanalítica aprofundada da tatuagem per si como
tem sido feita por alguns dos autores de cujos estudos nos beneficiamos. Nosso interesse de
análise esteve focado no estatuto da tatuagem in memoriam como escrita do luto e sua função
como um rito fúnebre. Até onde pudemos investigar, não encontramos nenhum estudo
psicanalítico dedicado ao tema da tatuagem como modo de prestar tributo fúnebre. Fora do
campo psicanalítico localizamos uma obra recentemente publicada, Grieving the dead in the
twenty-first century – virtual afterlifes, que se dedica a apresentar as novas e contemporâneas
formas de honrar a memória dos mortos nos Estados Unidos, entre elas as tatuagens in
memoriam.
De modo geral, essa pesquisa se dedicou a investigar se as tatuagens in memoriam
poderiam ser consideradas como um “rito fúnebre individual do neurótico”. Dividimos a
análise de nosso objeto em duas partes principais: a primeira concerniu ao exame da tatuagem
enquanto tributo fúnebre e ao estatuto dessa escrita particular do luto; a segunda, ao estudo da
produção e exposição da tatuagem como um modo particular de ritualizar o luto. Duas
questões principais nos inquietaram e ao mesmo tempo nos ajudaram a traçar os caminhos da
análise. A primeira dizia respeito à função desse rito fúnebre reconfigurado, se se trataria de
um rito de passagem, um tratamento possível do real com a intenção de marcar uma mudança
de relação com o ser desaparecido, ou se se constituiria em um rito incansavelmente repetido
tal como Freud descreveu a cerca do cerimonial do obsessivo. Nesse último caso, tratar-se-ia
25
de um rito que visaria mais a preservação da relação com o morto do que marcar uma
separação.
A outra questão era referente à possibilidade ou impossibilidade de se abandonar ou
deixar cair um tributo fúnebre que, de partida, havia sido produzido para se constituir como
uma marca corporal irreversível tal como uma cicatriz. Perguntávamos-vos sobre como seria
possível deixar essa marca apagar-se, cair em poubellication ou, de outro modo, qual poderia
ser o estatuto dessa marca, dessa escrita do luto no corpo, ao fim do luto.
Do desenho do estudo
Trata-se de uma investigação teórico-conceitual em Psicanálise em interface com
outros campos do saber, principalmente a Antropologia, a Sociologia e a História. Em relação
à leitura e interpretação dos textos consultados, buscamos seguir as considerações
metodológicas preconizadas por Figueiredo (1999, p. 19) para pesquisas em psicanálise. Em
vez de uma modalidade de “leitura próxima sistemática” que visa essencialmente
contextualizar um texto, o autor sugere uma leitura “próxima e desconstrutiva” que explora as
suas tensões entre aquilo que o autor intenciona transmitir e seus produtos não intencionais,
isto é, sua “homogeneidade perseguida e construída pela leitura sistemática e as
heterogeneidades que a leitura sistemática recalca”:
A leitura próxima e desconstrutiva exige a atenção detida no que a
leitura sistemática omite, esquece, exclui, expulsa, marginaliza, ignora
etc., ou seja, nos elementos deslegitimizados do texto, isto é, os traços
diferenciais que permanecem como fundo invisível nas leituras
sistemáticas, mas sem os quais nenhuma “tese” se forma
(FIGUEIREDO, 1999, p. 19).
A leitura desconstrutiva se mostra, portanto, transgressora a uma leitura sistemática
fechada em uma busca de homogeneidade de sentido de um texto. Mas essa transgressão não
significa apoio em alguma transcendência (um “significado magno” que estaria subjacente ao
texto) e nem um movimento aleatório aos caprichos do leitor (FIGUEIREDO, 1999, p. 20).
Campos e Coelho Jr. (2010, p. 253) sugerem que a leitura “próxima e desconstrutiva” não se
fecha em uma suposta unidade, mas para tanto “é necessário admitir um fato até então
ignorado ou subdimensionado na tradição hermenêutica, a saber, de que o texto seja outro
para si mesmo”. Ele permanece estrangeiro para si mesmo a despeito da intenção do autor de
compô-lo como um texto coerente e unívoco. A metodologia desconstrutiva parte do
pressuposto de que não há uma unidade ideal de sentido e afirma a “alteridade radical no seio
26
do próprio horizonte interno da obra” possibilitando uma relação com o texto em que o leitor
pode desdobrar uma série de articulações intra e intertextuais sem a pretensão de extrair teses
totalizantes do texto que o fechariam em um sentido único (CAMPOS; COELHO Jr., 2010).
Ainda segundo os autores:
A metodologia desconstrutiva traz de novidade a ideia de que o texto é
constituído de ambiguidades suplementares, desdobrando-se sobre
uma série de articulações intra e intertextuais criadoras de tensão. Um
texto, nessa perspectiva, não é um horizonte instrínseco fechado e
unidimensional, mas a verdadeira arena em que as tradições da obra e
do leitor se digladiam. Assim, a desconstrução é o recurso por
excelência de investigação da dimensão de alteridade que resiste à
sistematização, uma verdadeira tática de guerrilha ao desejo
totalizante de conhecimento (CAMPOS; COELHO Jr., 2010, p. 254).
Dez anos antes, Garcia-Roza (1991, p. 16) já havia assinalado que o trabalho de
“releitura” presente nas pesquisas teórico-conceituais “não implica em se proceder ao
redobramento especular do texto. Reler um texto não é reproduzir monotonamente o seu
conteúdo original, o seu conteúdo literal, mas produzir a partir dele um outro discurso”. O
leitor deve, portanto, atentar para o fato de que o conceito ou termo investigado se inscreve
em um panorama histórico ou mesmo geográfico e foi elaborado em referência a um campo
conceitual, opositor ou confluente, que participa intrinsecamente de sua construção. Nessa
mesma direção, Rosa (2004, p. 342) destaca que um conceito nasce da “necessidade própria
da trama a que pertence” e o pesquisador não deve descuidar de averiguar como este conceito
“se firma no solo da teoria selecionada para a investigação; os elementos comuns vão sendo
destacados desse material, a fim de constituir a questão a ser estudada”.
A partir dessas coordenadas metodológicas de leitura, intentamos realizar nessa
pesquisa uma “leitura próxima e desconstrutiva” dos estudos aqui investigados de modo a
produzir a partir das homogeneidades e heterogeneidades encontradas, um discurso próprio.
Porém, um discurso que se sabe também portador da divisão própria do sujeito que o enuncia
e que segue ao mesmo tempo em que produz um trilhamento furado.
Participantes da pesquisa
Primeiramente cabe-nos informar que essa pesquisa foi aprovada pelo Comitê de
Ética em Pesquisa da PUC-SP via Plataforma Brasil (vide anexo 1).
Com o intuito de ilustrar e fundamentar as teses propostas, recorremos a imagens e
enunciados relacionados com as tatuagens in memoriam provenientes de espaços virtuais
(sites e rede sociais). Priorizamos a internet como fonte de dados em decorrência da facilidade
27
de acesso. Quando iniciamos a busca digital por material relacionado ao nosso objeto de
pesquisa, encontramos, na época, uma maior disponibilidade de material hospedada em sites
norte-americanos localizados a partir das seguintes palavras-chave: in loving memory tattoo,
in memory of tattoo, memorial tattoo. Optamos por restringir nossa pesquisa a três sites:
https://www.pinterest.com/explore/memorial-tattoos
http://voices.yahoo.com/memorial-tattoos-help-grieving-process
http://becauseilive.hubpages.com/hub/In-Loving-Memory-Memorial-RIP-Tattoos
Indicamos a fonte de todas as imagens, enunciados e informações recolhidas da
internet. Porém, tomamos o cuidado de excluir dos enunciados referentes às tatuagens in
memoriam os nomes, lugares e datas, ainda que expostos livremente pelos próprios autores
nos sites pesquisados. Os nomes foram substituídos por letras aleatórias do alfabeto (Y, Z,
X...).
Utilizamos também pequenos recortes de enunciados oriundos do atendimento
clínico de pessoas de luto que foram selecionados, recortados e apresentados em forma de
“vinheta clínica”, e restritos unicamente à questão que nos interessa abordar: o luto decorrente
da morte de alguém significativo. Deixamos de fora os dados biográficos que pudessem
identificar seus autores de modo a se preservar seu sigilo e privacidade.
Nossa intenção é que os materiais coletados e apresentados possam potencializar as
discussões teóricas e contribuir para a prática clínica psicanalítica. Finalizamos com a
observação de Rosa (2004, p. 341) que o método investigativo presente na psicanálise busca
integrar teoria, pesquisa e prática clínica: “o método psicanalítico vai do fenômeno ao
conceito, e constrói uma metapsicologia não isolada, mas fruto da escuta psicanalítica, que
não enfatiza ou prioriza a interpretação, a teoria por si só, mas integra teoria, prática e
pesquisa”.
28
PARTE I. A DESSOCIALIZAÇÃO DA MORTE (E DO LUTO) NO OCIDENTE
CRISTÃO
O que passou, passou?
Paulo Leminski, La vie en close, 1984
Antigamente, se morria.
1907, digamos, aquilo sim
é que era morrer.
Morria gente todo dia,
e morria com muito prazer,
já que todo mundo sabia
que o Juízo, afinal, viria
e todo o mundo ia renascer.
Morria-se praticamente de tudo.
De doença, de parto, de tosse.
E ainda se morria de amor,
como se amar morte fosse.
Pra morrer, bastava um susto,
um lenço no vento, um suspiro e pronto,
lá se ia nosso defunto
para a terra dos pés juntos.
Dia de anos, casamento, batizado,
morrer era um tipo de festa,
uma das coisas da vida,
como ser ou não ser convidado.
O escândalo era de praxe.
Mas os danos eram pequenos.
Descansou. Partiu. Deus o tenha.
Sempre alguém tinha uma frase
que deixava aquilo mais ou menos [...]
Hoje, a morte está difícil.
Tem recursos, tem asilos, tem remédios.
Agora, a morte tem limites.
E, em caso de necessidade,
a ciência da eternidade
inventou a criônica.
Hoje, sim, pessoal, a vida é crônica.
29
Nessa primeira parte, por se tratar de um tema muito amplo, optou-se por explorar a
dessocialização da morte e do luto por um viés específico: a partir das mudanças históricosociais ocorridas nas relações do homem com a morte (e com seus mortos) no ocidente
cristão. Para captar as mudanças – ora em ritmo lento, ora em ritmo acelerado – que
intervieram e deslocaram as atitudes coletivas diante da morte e dos mortos, tomamos como
principais fontes históricas as obras clássicas de dois historiadores franceses das
mentalidades5: Philippe Ariès e Michel Vovelle. Philippe Ariès (1914-1984) é considerado
um pioneiro na tentativa de organizar a história da morte na longa duração; e Michel Vovelle
(1933- ), se dedicou, além da história da morte, a investigar as expressões no imaginário
popular de uma nova coabitação com o mundo dos mortos.
Em sua obra, Vovelle (1991, p. 136) registrou a advertência de que qualquer pretensão
de propor uma “história da morte” deve levar em consideração que ela nada tem de linear; é
antes uma história “convulsiva” que se delineia em uma curva com períodos de ascensão e
declínio. Esses fenômenos são observáveis no domínio da demografia, mas sem a esta se
reduzir, e também nos sentimentos da morte que, de tempos em tempos, se exacerbam. No
século XV, por exemplo, a eclosão das artes macabras surgiu no declínio da Idade Média e
logo após a peste negra. Mas há também os períodos tecidos em silêncio (voluntários e
involuntários) em que os homens se calam sobre a própria morte, como nos tempos atuais, e
fazem dela “uma nova categoria do obsceno” (p. 138). Apreender a morte na História e na
longa duração possibilita captar essas respirações, ora ruidosas ora silenciosas, com fases de
aparente inércia e outras em que reviravoltas se precipitam, mas que refletem de maneira
direta ou não, o clima social de uma época: “a morte é o reflexo privilegiado de uma visão de
mundo” (p. 148).
No primeiro capítulo interessou-nos centrar nossas investigações em três figuras da
morte no ocidente sugeridas por Ariès: A morte de si, a morte do outro e a morte selvagem.
Essas figuras servirão de fio condutor de nossa breve apresentação das mudanças nas atitudes
e representações coletivas da relação com a morte que culminou, nos dias atuais, na
dessocialização da morte e do luto. Prosseguiremos mostrando a supressão das expressões
públicas de pesar e a desritualização do luto, antes uma experiência eminentemente pública
agora tratada como um assunto íntimo, privativo e, se persistente, mórbido. Hoje o enlutado
5
“História das mentalidades” é descrita por Vovelle (1991) como um campo relativamente recente da História.
De forma simplificada pode-se dizer que esses historiadores se interessam por uma história ao nível das atitudes,
dos comportamentos, das motivações e das representações coletivas, conscientes ou não, em torno de um tema
de interesse: infância, família, sexualidade, morte etc. Para os interessados, recomendamos a leitura da obra
Ideologias e Mentalidades em que Michel Vovelle não apenas declara sua perspectiva da história das
mentalidades, mas também estabelece as diferenças entre sua abordagem e a de Philippe Ariès.
30
jaz entregue aos próprios recursos na busca de um modo de sobreviver à dor inerente à perda
de alguém significativo. Veremos ainda a atual báscula do luto entre proscrição e prescrição
inscrita nessa exigência atual de normatizar as condutas a partir de um discurso médicocientífico. Por fim, examinaremos, junto a Michel Vovelle, o duplo movimento contraditório
em torno da morte e do luto nos dias atuais: de um lado o triunfo de sua interdição; de outro,
os insistentes modos de “retorno do recalcado”, o surpreendente reinvestimento da morte e
retorno dos mortos nas últimas décadas.
31
1. DA MORTE COMO FATO PÚBLICO À MORTE ESCONDIDA
1.1 A morte de si
A obra de Philippe Ariès (1981, p. 7) se inicia com uma imagem da morte extraída da
literatura cavaleiresca: A morte dos bravos cavaleiros da alta Idade Média.
O rei Ban sofreu uma queda feia do cavalo. Arruinado, expulso das
suas terras e do seu castelo, fugiu com a mulher e o filho. Parou para
ver de longe arder-lhe o castelo “que era todo o seu consolo”. Não
resistiu ao desgosto: “O rei Ban assim refletia. Pôs as mãos diante dos
olhos e um desgosto tão grande o invadiu e oprimiu que, não podendo
verter lágrimas, o coração o asfixou e ele desmaiou. Caiu do cavalo de
modo tão desastroso...” [...] quando o rei Ban voltou a si, percebeu
que saía sangue da boca, do nariz, dos ouvidos. “Olhou para o céu e
pronunciou como pôde... ah, senhor Deus... acudi-me porque vejo e
sei que chegou o meu fim”.
Observa-se que não se morria de qualquer maneira: “A morte era regulamentada por
um ritual costumeiro descrito com benevolência” (p. 7). A morte comum tinha como
característica o fato de que dava tempo de ser percebida, mesmo quando acidental em
decorrência de ferimentos ou efeito de demasiada carga de emoção (como acontecia na
época). Eles viam e sabiam que iam morrer. Da mesma forma se comportavam os cavaleiros,
reis, monges piedosos e pessoas comuns que pressentiam a morte que se aproximava. Os
homens eram advertidos não por alguma entidade divina descida do céu ou algum outro
acontecimento maravilhoso, mas porque eles – conhecedores de si próprios – sabiam ler, em
signos naturais, os fatos que avisavam banalmente o fim. Em uma época em que o natural e o
sobrenatural se confundiam, e muito embora premonições do fim também ocorressem de
forma prodigiosa, os sinais mais frequentemente invocados para anunciar a morte eram os
fatos comuns da vida diária e perceptíveis pelos sentidos. Pressentimentos que na era moderna
serão considerados superstições populares desacreditadas pelo saber científico.
Para que a morte se fizesse anunciar, não poderia ser súbita [mors repentina]. Ao
contrário do que se considera hoje, a morte súbita era a mais temível e vergonhosa, pois era
vista como obra obscura do acaso ou manifestação da cólera divina que rompia com a ordem
natural das coisas. Eles viam, sabiam e anunciavam francamente aos próximos a chegada da
morte. Ninguém sabia - nem mesmo companheiros ou sacerdotes - tão bem quanto tempo lhe
restava senão aquele que morria. A crença de que a morte avisa perdurou por muitos séculos
nas mentalidades populares. Ariès evoca Leon Tolstói que no leito de morte – cercado por
alguns familiares, amigos e seguidores –, numa remota estação de trem pergunta: “E os
32
mujiques6? Como morrem então os mujiques?”. Ariès responde que os mujiques morriam
como os cavaleiros, os monges e as pessoas comuns: Eles sabiam e morriam de maneira
simples e prática.
A morte era certamente “um tema mais aberto e frequente nas conversas na Idade
Média do que hoje. [...] a morte naquela época era, para jovens e velhos, menos oculta, mais
presente, mais familiar. Isso não quer dizer que fosse mais pacífica” (ELIAS, 2001, p. 19, 21).
Pois se morria em grande sofrimento, todavia a presença de amigos, familiares ou até mesmo
da comunidade inteira ajudava a amenizar a agonia.
Após lamentar a perda da vida e sentindo o fim próximo, o moribundo medieval
tomava as suas providências que seguiam paramentadas pelos tradicionais ritos de morte.
Jacente no leito, reunia os familiares e/ou conhecidos para as últimas recomendações, pedidos
de perdão e despedidas assim como estava previsto e como ele mesmo já havia testemunhado.
Nas últimas orações, o morrente recomendava os sobreviventes que lhe eram caros a Deus e,
por fim, recomendava a própria alma. Só restava agora aguardar a morte com a face para o
céu – voltado para o Oriente –, as mãos cruzadas no peito seguindo um cerimonial assim
transmitido de forma oral, e que mais tarde será incorporado pela Igreja Católica como um
sacramento7 de preparação para a morte constando nos testamentos medievais: a profissão de
fé, a confissão dos pecados, o perdão dos sobreviventes, as disposições piedosas, a
recomendação da alma a Deus e a eleição da sepultura.
Além da simplicidade familiar com a morte, Ariès destaca a sua publicidade. A morte
constituía-se em um fato social e público. O homem dessa época era profundamente
socializado desde o nascimento, talvez porque dependesse mais do que hoje de seus
companheiros para fazer frente às forças brutais da natureza, contra a qual só conseguia,
quando muito, vociferar em conjunto e/ou suplicar amparo e proteção de forças divinas.
Não só todos morriam em público, como Luís XIV, mas também a
morte de cada um constituía acontecimento público que comovia, nos
dois sentidos da palavra – o etimológico e o derivado –, a sociedade
6
Denominação dada ao camponês russo, um personagem frequentemente homenageado nos escritos de Tolstói e
considerado por ele o ideal de uma vida simples próxima da natureza. Cf.: “The last station: A novel of Tolstoy’s
final year” de Jay Parini (1990).
7
A “extrema-unção” ou “sagra viático” compõe um dos sete sacramentos, o último em vida. No início era
reservado apenas aos clérigos e depois se estendeu a todos os que estavam a ponto de morrer. O Concílio
Vaticano II (30 de novembro de 1972) o modificou para a “Sagrada Unção dos enfermos” [Sacram Untionem
Infirmorum] retirando dele o sentido de rito associado à morte e podendo ser administrado diversas vezes em
caso de doença. Recentemente, o papa Francisco recomendou aos católicos que recorressem com maior
frequência ao sacramento: “Temos a ideia errada de que, quando um padre visita um doente, as pompas fúnebres
vêm em seguida. Isso não é verdade. O padre pode ajudar o enfermo (...). É o mesmo Jesus que chega para
aliviar o doente, para lhe dar forças, esperança, ajudá-lo”. Fonte: http://noticias.terra.com.br/papa-franciscouncao-dos-enfermos-nao-significa-preparacao-para-a-morte. Acesso em: 24/2/2015.
33
inteira: não era apenas um indivíduo que desaparecia, mas a sociedade
que era atingida e que precisava ser cicatrizada (ARIÈS, 1981, p. 6123).
Não se tratava, portanto, a morte como um drama pessoal. O quarto do morrente se
convertia em um lugar público no qual se entrava livremente – parentes, amigos, vizinhos,
padres e até crianças. O autor lembra que os médicos que estabeleceram as primeiras regras
de higiene no fim do século XVIII queixavam-se do excesso de visitantes que se prostravam
em torno do leito dos doentes.
No século XII aparece uma maior preocupação dos homens com a própria existência.
Curiosamente ali mesmo, no momento da própria morte, surge uma preocupação nova
traduzida por Ariès na fórmula “a morte de si mesmo”. Até o século XI prevalecia uma
concepção escatológica coletiva da humanidade que pouco levava em conta a biografia
particular de cada homem, que esperava o fim dos tempos sem temer a severidade do Juízo.
Aqueles que dormiam em paz nas terras da Igreja – “os santos”8 – aguardavam esperançosos a
volta do Cristo e o despertar em uma ressureição gloriosa no Paraíso, sem julgamento e nem
condenação.
Entre os séculos XI e XII, aos poucos começa a predominar as novas inquietações dos
ricos, poderosos e letrados com o destino que os aguarda. Eleva-se nestes a ideia de que cada
um possui uma biografia pessoal que seria submetida ao julgamento final. No fim dos tempos
uma corte divina de justiça avaliaria os feitos de cada alma registrados no “livro da vida”
[liber vitae] e separaria de forma definitiva os justos dos malditos: “As ações de cada homem
não se perdem no espaço ilimitado das transcendências, ou ainda, em outras palavras, no
destino coletivo da espécie. Ei-los dora em diante individualizados” (ARIÈS, 1981, p. 112).
Para Ariès, esta concepção é o sinal de uma mentalidade nova em que aparece a ideia da vida
como biografia. De agora em diante, cada momento vivido será contabilizado e, no pós-vida,
examinado em uma solene audiência. O “livro da vida” é uma biografia e ao mesmo tempo
um livro de contas que determinará o destino pessoal de cada um.
Por volta do século XV, fim da Idade Média, o drama se deslocará do juízo do último
dia para o quarto do morrente: Deus ou o Diabo consultam o livro à cabeceira do agonizante
enquanto disputam a sua alma. A ideia do julgamento descolou-se da ideia de ressureição da
carne que se esvaziou de importância. A separação do julgamento e da ressureição tem
consequências muito importantes para a mentalidade escatológica: há o desaparecimento do
intervalo de tempo consentido entre a morte física e o Julgamento Final. De forma que
8
Santos eram todos os crentes ou fiéis que repousavam nas terras da Igreja (ARIÈS, 1981).
34
enquanto este intervalo existia, o falecido não estava completamente morto, pois o balanço de
sua vida não havia sido fechado: “Meio vivo, meio morto, tinha sempre o recurso de
‘retornar’, reclamar aos homens da terra assistência, sacrifícios ou orações que lhe faltavam”
(ARIÈS, 1981, p. 115). Cada vez menos haverá espaço para a manifestação das almas do
outro mundo, enquanto, por outro lado e não à toa, cresce na mentalidade popular a crença no
purgatório, que mais tarde substituirá a ideia de sono e repouso.
Dali pra frente, o destino da alma imortal será decidido no momento da morte física e
não mais no Além. Na iconografia da época, nas artes moriendi [A arte de morrer], aparece
um tipo de mentalidade pedagógica com foco no indivíduo; aparece a ideia da última prova, a
“última tentação”, apresentada ao doente in hora mortis, e sua atitude neste instante final dará
a sua biografia o grande fechamento que sobrepujará as ações boas ou más que tiver realizado
ao longo da vida. O Além que antes não inspirava medo agora é pululado por imagens de
suplícios eternos que invadem o momento da própria morte, momento da decisão suprema em
que o morrente, elevado à condição de ator principal, pode neste instante tudo ganhar ou tudo
perder.
Habitados pela questão da própria morte e destinação no Além, cada homem
preocupava-se com a sua existência e com o fechamento de sua conta na hora final. Em
decorrência, a solenidade dos ritos de morte no leito assumiu um caráter dramático que até o
fim da Idade Média não possuía. Esta transformação reforçou o papel do agonizante na
condução das cerimônias de sua própria morte, determinando aí as suas vontades.
As preocupações com a questão da morte podem ser claramente observadas na rica
produção das artes macabras9 surgida no declínio da Idade Média e depois da peste negra,
pandemia que devastou a Europa no século XIV. Em meio à crise feudal com guerras, fome,
precárias condições de saúde e higiene, a peste negra não encontrou resistências e se propagou
rapidamente dizimando um terço da população da Europa. Chamam-se “macabras” as
representações realistas do corpo humano durante a sua
decomposição. O macabro medieval, que tanto perturbou os
historiadores desde Michelet, começa depois da morte e para no
esqueleto dessecado, la morte secca, frequente no século XVII e ainda
no século XVIII, não pertence à iconografia característica desde o
século XIV ao século XVI. Ela é dominada pelas imagens repugnantes
da corrupção: “Oh! Carniça que já não é homem!” (ARIÈS, 1981, p.
118).
9
A origem e sentido do termo macabro podem estar associados ao nome dos santos Macabeus. Por volta do
século XIV se dava ao corpo morto o nome de Macabeus – raramente se usava cadáver. Os santos Macabeus já
eram então há muito cultuados como patronos dos mortos por serem considerados os autores das primeiras
orações e oferendas por intercessão dos mortos (ARIÈS,1981). Cf. Macabeus, 12: 38-45.
35
Na visão de Ariès, apesar de contemporânea das artes moriendi, a arte macabra
expressa um sentimento novo, uma mensagem diferente. Há o retorno de uma reflexão que já
havia inspirado os artistas romanos: diante da constatação da fragilidade da vida humana,
exalta-se o carpe diem10. Nos séculos XI e XII, em meio às preocupações com a salvação ou
danação no Além-mundo surgem reflexões sobre as vãs ambições e vaidades da vida terrestre.
Os poetas latinos assim como os monges nos claustros, que serão seguidos mais tardes pelos
monges mendicantes, lembram sem cessar a transitoriedade da vida e as grandes vaidades que
ameaçam a alma, a saber: o poder, a beleza e a riqueza: “Onde se encontra agora a Babilônia
triunfante, onde estão Nabucodonosor, o terrível, e o poder de Dário? (...) eles apodrecem...
(...) Ide ao cemitério e contemplai-os” (apud Ariès, 1981, p. 119).
Estas vozes terroristas antecedem a grande eclosão Macabra nos séculos XIV e XV. O
cadáver semidecomposto, chamado trespassado, tornar-se-á o tipo de figuração de morte mais
frequente na iconografia macabra se impondo aos fabricantes de túmulos, às obras de grande
arte e às ilustrações dos livros destinados aos devotos, em especial o ofício dos mortos. A
“dança macabra” foi um tema que obteve sucesso extraordinário neste período. Surgida no
norte da França, ela se espalhou rapidamente por quase toda a Europa cobrindo afrescos
decorativos de muros de igrejas e cemitérios.
A arte reside no contraste entre o ritmo dos mortos e a paralisia dos
vivos. O objetivo moral é ao mesmo tempo lembrar a incerteza da
hora da morte e a igualdade dos homens diante dela. Todas as idades e
todos os estados desfilam numa ordem que é a da hierarquia social, tal
como dela se tinha consciência (ARIÈS, 1981, p. 124).
A dança é geralmente composta de uma ronda em que se alterna um casal, um vivo
estupefato e um morto animado. Quem conduz a dança é um morto – figura putrefata e
assexuada – que parece ser o único a se divertir, e dança chamando os vivos relutantes a
participar.
10
Carpe diem é uma frase em latim de um poema de Horácio e é popularmente traduzida por “colha o dia” ou
“aproveite o momento”. O filme “Sociedade dos poetas mortos” popularizou a frase no fim da década de 1980.
Fonte: http://pt.wikipedia.org/wiki/Carpe_diem. Acesso em: 10/7/2013.
36
Figura 4. Pormenor da Dança Macabra (1539), Simone II Baschenis,
afresco decorativo no lado exterior da igreja de São Vigilio, Pinzolo, Italia.11
Fonte: http://commons.wikimedia.org/wiki/File:Simone_Baschenis_Danza_Macabra_01_Pinzolo.jpg
A mensagem de cunho moral versa sobre a incerteza da hora última e a igualdade
diante da morte que arrebata príncipes, camponeses e o prelado. Todos compartilham o
mesmo destino. Vovelle (1991) lê na dança macabra, manifestos da cultura popular, um
“contrassistema” que, entre risos e zombarias, se apoia na morte para criticar e “inverter
simbolicamente a hierarquia dos poderes” (p. 148-9).
Pregadores e moralistas da época usavam essas imagens terrificantes para
impressionar, comover e converter os vivos inspirando-lhes horror diante da morte. Já os
poetas estabeleciam uma associação entre as matérias e líquidos expulsos do corpo
diariamente e a decomposição do cadáver: “Considerai o que se esconde nas narinas, na
garganta, no ventre: sujidades em toda parte...” (Odon de Cluny, século XI, apud Ariès, 1981,
p. 118). A velhice, a doença e a morte são transbordamentos da podridão interior. A repulsa
maior suscitada é que a podridão que se apodera do cadáver não lhe é exterior, ela vem de
dentro. De outro modo, a morte está desde sempre presente, ela habita o próprio interior da
vida.
No final da Idade Média, a morte é o aniquilamento físico. As imagens da morte física
substituíram a do Juízo Final. O homem desta época se defrontava com novas exigências de
que começava a ter consciência. Se de um lado o sentimento da morte em vida pode inspirar o
asceticismo religioso, por outro acaba por valorar a vida terrestre. Ou seja, o macabro em vez
de suscitar temor e repulsa da vida acabou por suscitar o contrário, o desejo pelas coisas
terrenas e “uma consciência dolorosa do fracasso a que cada vida de homem está condenada”
(ARIÈS, 1981, p. 139). O amor à vida expressava um apego apaixonado às coisas que
resistiam ao aniquilamento da morte. No fim era “preciso deixar casas, pomares e jardins”,
11
Acesso em 12/01/2014.
37
todos os bens acumulados. Alguns, mesmo sob a ameaça do inferno, não abriam mão de seus
tesouros, levando para o túmulo sacos com moedas de ouro, como ilustrado em algumas
iconografias da época. Segundo Ariès, “O cavaleiro da Idade Média morria ingenuamente
como Lázaro. O homem da baixa Idade Média e do início dos tempos modernos ficava
tentado a morrer como o mau rico” (ARIÈS, 1981, p. 140).
Por volta do século XII, como visto anteriormente, entre os ricos e letrados constrói-se
a ideia de que cada um possui uma biografia pessoal constituída, no início, de atos bons e
maus a serem submetidos ao julgamento final. Prevalecia uma ideia de ser. Lentamente
deslizou-se para uma ideia de ter (seres e coisas amadas e também uma reputação), a
avaritia12. No fim da Idade Média a consciência de si mesmo e da biografia confundiu-se com
um amor exaltado à vida. A morte não é mais apenas a conclusão do ser, mas uma separação
dolorosa do possuir:
Em plena saúde, em plena juventude, o gozo das coisas ficou alterado
pela visão da morte. Então a morte deixou de ser balanço, liquidação
de contas, julgamento, ou ainda sono, para se tornar carniça e
podridão, não mais o fim da vida e o último suspiro, mas morte física,
sofrimento e decomposição (ARIÈS, 1981, p. 148).
As imagens religiosas da morte também mudaram. Em vez de uma concepção da
morte como efeito do pecado original, surgem imagens novas e emocionantes retratando uma
morte física dolorosa e sangrenta assim como imagens de separações aflitivas. A Pietá13, por
exemplo, é um tema frequente da arte cristã nos tempos macabros. As primeiras imagens
surgiram no fim do século XIII na Alemanha e se expandiram para outras regiões da Europa
durante a Idade Média. Em tom realista, essas imagens apresentam Maria em aflição [mater
dolorosa] amparando o corpo esquálido e ensanguentado do filho logo após a crucificação:
“Deslizou-se, assim, ao mesmo tempo, tanto nas representações religiosas como nas atitudes
naturais, de uma morte consciência e condensação de uma vida, para uma morte consciência
e amor desesperado dessa vida” (ARIÈS, 1981, p. 148, grifo do autor).
De todo modo, em um caso e outro, a morte de si mesmo ainda se constituía como
uma preocupação individual. A partir de fins do século XVIII, desde que a afetividade se
12
Avaritia não é a avareza que conhecemos como desejo de acumular bens e resistência de gastar, mas é amor
ávido, apego excessivo pela vida, pelos seres e pelas coisas (ARIÈS, 1981).
13
A versão mais famosa da Pietá é a escultura de Michelangelo datada de 1499. Diferentemente das versões da
época, Michelangelo optou por uma imagem idealizada em que Jesus aparece em tamanho menor que Maria de
modo a caber em seu regaço, um filho no colo da mãe. Além disso, a dor de Maria é representada sem desespero,
em
seu
semblante
triste
aparece
uma
nobre
resignação.
Fonte:
http://pt.wikipedia.org/wiki/Piet%C3%A0_(Michelangelo). Acesso em: 20/04/2013.
38
centrou em alguns poucos seres cuja perda tornaria a vida insuportável, uma nova figura da
morte aparecerá deslocando o foco das preocupações: a morte do outro.
1.2 A morte do outro ou os tempos românticos
Em fins do século XVIII, a finitude da vida assumirá um sentido novo: o homem a
dramatiza e chega até mesmo a exaltá-la e almejá-la ardentemente. Porém, ao mesmo tempo
se ocupa cada vez menos com o próprio fim na mesma medida em que passa a se voltar para o
do outro. Nos tempos do romantismo a morte do outro é intolerável, e a falta e a saudade
deste inspirarão até os nossos dias – respeitando-se os diferentes modos de expressão ao longo
do tempo – o culto dos mortos e de seus referentes (objetos pessoais, sepulturas pétreas e hoje
virtuais etc.).
Na época em que os Estados europeus passavam por profundas modificações
econômicas, políticas e sociais em decorrência das revoluções francesa e industrial, o
romantismo – movimento artístico, político e filosófico – surgiu expressando uma nova onda
de sensibilidade passional incontrolável em reação à filosofia racionalista e à objetividade do
Iluminismo. O sujeito romântico é impulsionado pela “tormenta e ímpeto” [sturm und
drang]14, o mote do movimento literário romântico em contraposição aos ideais racionalistas.
Nascido nas últimas décadas do século XVIII, em plena ascensão da classe burguesa, vale
ressaltar que o romantismo é considerado “uma escola da burguesia, pela burguesia e para a
burguesia” (De NICOLA, 1985, p. 54).
A exaltação da morte no romantismo tem suas raízes no pensamento iluminista de
Rousseau que contrastava a vida simples do homem do campo com a corrupção nas cidades.
Se nos campos ainda se preservava a tradicional familiaridade com a morte, nas cidades, as
novas sensibilidades do homem rico e instruído o faziam desviar o olhar do fim último para a
vida inteira. O homem das Luzes almeja se livrar das influências clericais e suas propagandas
terrificantes do fim dos tempos, bem como de outras superstições para recuperar a
significação e as virtualidades da morte outrora próxima e familiar. Uma nostalgia da morte
simples misturada ao desejo de experimentar a sua paz (ARIÈS, 1981).
Porém, a fascinação pela morte da era romântica difere significativamente daquela dos
tempos macabros em que predominavam discursos e figurações realistas da decomposição
14
Sturm und Drang foi usado pela primeira vez pelo autor alemão Friedrich Maximilian Klinger como título de
uma peça sobre a “Revolução Americana” em 1776. Fonte: http://pt.wikipedia.org/wiki/Sturm_und_Drang.
Acesso em 20/07/2013.
39
depois da morte. O romantismo desloca esses discursos para a pré-morte, para a agonia do
doente em seu leito e para o sofrimento daqueles que dele se despedem. As imagens da
decrepitude física do cadáver são diluídas pela beleza retórica das palavras: “Os traços
paternos tinham adquirido, no caixão, qualquer coisa de sublime” (Chateaubriand15 apud
Ariès, 1981, p. 446).
O romantismo é o “tempo das belas mortes”. Tempos em que os estertores da agonia
são encobertos pelos véus da “doçura narcótica” que se almeja experimentar (ARIÈS, 1981, p.
446). A morte é o encerramento suave das desilusões e calamidades da vida. A lírica
romântica exalta o primado do subjetivismo, a livre expressão das emoções e o desejo de
escapismo, seja pelo álcool, ópio ou suicídio. Figurações da morte, esta sim é a mais ansiada
das fugas românticas (De NICOLA, 1985).
Se o atormentado Hamlet, no limiar do século XVI, lamentava que o Todo-Poderoso
tivesse gravado um mandamento contra o suicídio, o romântico Werther16, sem qualquer
preocupação com o inferno, resolveu a tormenta com um ato suicida, apesar de se mostrar, ao
longo do romance, um profundo devoto dos Evangelhos. O clássico romance de Goethe é
permeado pelo debate da época que contrapõe os ímpetos do coração humano à lógica da
razão e da reflexão. Werther é o porta-voz de uma nova geração que concebia a natureza
humana como que sacudida por paixões violentas a tal nível insuportável que poderiam
alquebrar o espírito não havendo outra saída a não ser evadir-se deste mundo.
O suicídio, nesse sentido, é menos um ato de fraqueza – saída fácil dos covardes,
como tenderiam a pensar os racionalistas – do que um ato nobre diante de uma dor ou paixão
que se apresenta intolerável e de outro modo insolúvel.
Está decidido, Carlota, quero morrer, e escrevo-te sem nenhuma
exaltação romanesca, sossegado, na manhã do dia em que te verei pela
última vez. [...] Não é desespero, é a certeza inabalável de que termino
minha carreira e me sacrifico por ti. Sim, Carlota! Por que eu haveria
de ocultá-lo? Um de nós três tem de morrer, e eu quero ser eu!
(GOETHE, 2011, p. 147-8).
Nos versos do jovem poeta romântico Keats encontramos igualmente o mesmo anseio
por se perder no espaço infinito da morte. Em “Ode a um rouxinol”, a beleza do canto da ave
15
Extraído do romance René publicado em 1802 e que teve tanto impacto no Romantismo quanto O sofrimento
do jovem Werther de Goethe lançado em 1774.
16
O sofrimento do jovem Werther é considerada a obra-prima do romantismo publicada por Goethe quando este
contava apenas 25 anos. A trágica história de amor do protagonista desencadeou uma onda de suicídio entre os
jovens Europeus. Segundo o tradutor da obra consultada, no romance tudo “é construído para afirmar o sujeito.
[...] E Werther torna-se, assim, o primeiro romance da História da Literatura Universal em que um personagem
vai em busca do absoluto através de suas próprias experiências e vivências íntimas neste mundo, através do amor
ao próximo e do amor à natureza” (BACKES in GOETHE, 2011, p. 8-9).
40
que celebra o verão convida o poeta a esvair-se para suavemente dissolver-se (na morte) e
esquecer toda a fadiga, febre e inquietação da vida:
Darkingly I listen; and, for many a time
I have been half in love with easeful Death,
Call’d him soft names in many a mused rhyme,
To take into the air my quiet breath;
Now more than ever seems it rich to die,
To cease upon the midnight with no pain […]17
Nesses tempos de complacência com a morte, duas tendências se enlaçam: de um lado,
uma atração irresistível pela bela morte à qual se aspira e, de outro, a dor dos que ficam, o
luto exaltado dos sobreviventes. Para estes últimos, a separação se mostra mais deplorável do
que a morte em si. Ao repouso antigo, misturam-se ideias novas de paz maravilhosa e reunião,
na eternidade, dos seres que se amaram em vida. Em Werther já encontramos essa ideia de
que a beleza da morte está no (re)encontro, um encontro imediato junto ao “Pai” e com os
queridos, sem menção alguma ao julgamento final: “Vou ter com meu Pai, com teu Pai.
Queixar-me-ei a ele, e ele haverá de me consolar até tua chegada, quando voarei ao teu
encontro, cingir-te-ei, ficando unido a ti em presença do Eterno, num abraço infinito”
(GOETHE, 2011, p. 165).
Ariès localizou nas cartas e documentos dos La Ferronays, uma família aristocrata
francesa do século XIX, o caso paradigmático da exaltação da morte como felicidade e
promessa de reencontro. A história familiar foi publicada por Pauline de La Ferronays sob o
título Récit d’un souer, em 1867. Nas cartas, observam-se sentimentos religiosos sobre a
morte e o Além misturados com o amor. Albert, irmão de Pauline, escreveu à esposa: “Eu lhe
juro que, quando estou perto de você, o que sinto me parece ser um presságio de uma outra
vida. Como é que emoções desse gênero não ultrapassam o túmulo?” (LA FERRONAYS
apud ARIÈS, 1981, p. 453).
Quando da morte de Albert, sua esposa Alexandrine escreveu: “Seus olhos, já fixos,
tinham-se voltado para mim (...), e eu, sua mulher, senti o que jamais teria imaginado, senti
que a morte era a felicidade...” (LA FERRONAYS apud ARIÈS, 1981, p. 457, grifo do
autor). Tanto mais doce e suave por conter o brilho do reencontro:
Fechei os olhos e minha alma se encheu de uma doçura [...], e
imaginei [...] a minha morte: um instante de noite fechada e dentro
dessa noite, sentindo a presença de um anjo, vendo também
indistintamente uma espécie de brancura, e esse anjo me conduzindo a
17
“Às escuras escuto, e muitas vezes, / Quase que enamorado da tranquila Morte,/ Doces nomes chamei-lhe em
versos meditados,/ Para que dissipasse no ar o meu alento;/ Agora como nunca eu acho que morrer é uma
riqueza:/ Findar à meia-noite sem nenhuma dor [...]” (KEATS, 2010, grifo nosso).
41
Albert [...]. E nossos corpos eram transparentes e dourados (LA
FERRONAYS apud ARIÈS, 1981, p. 458).
O túmulo de Albert logo se converteu no destino de uma peregrinação familiar diária
em que se reza pela paz de sua alma e também se pede que interceda pelos vivos que o
amaram. Uma cova para Alexandrine é aberta ao lado da dele. Uma única laje cobrirá os dois
túmulos e ela devaneia enquanto contempla com alegria aquela cova vazia. Alexandrine segue
com seu luto apaixonado. Mantém-se reclusa no quarto de Albert e almeja ardentemente
morrer ali. Alguns se inquietam se não seria um tipo de ofensa a Deus entregar-se dessa forma
a um luto tão profundo. Outros passam a considerá-lo como parte de sua natureza de viúva, de
agora em diante triste para o resto da vida que não será longa. Dez anos após a morte do
esposo por tuberculose, é chegada a hora de Alexandrine, ela também tuberculosa. A família
reúne-se em torno de seu leito para a cerimônia de adeus. Pauline narra os seus últimos
momentos:
Quando pensávamos que já estivesse inconsciente, ainda avançava os
lábios para beijar o crucifixo. Enfim, deixa de respirar às oito e meia.
Que anjo! Estava reunida para sempre com seu Albert, com todos os
nossos queridos santos [os mortos da família são equiparados a santos.
Eles são o paraíso], e chorávamos apenas por nós mesmos (LA
FERRONAYS apud ARIÈS, 1981, p. 466).
Ora, se a doença e a morte se erguem como muros a separar os amantes, esses
obstáculos são recompensados pela promessa do reestabelecimento dos laços rompidos. Há no
céu dos românticos a esperança de comunhão, restituição para toda a eternidade dos amores
terrenos perdidos. Em suma, a morte romântica celebra “bon-heur”, a boa-hora, a boa-sorte, a
felicidade, o bom encontro (ALLOUCH, 2009). Lamento e choro pela separação, saudade
pungente que torna a vida cotidiana intolerável. Morrer deixou aos poucos de ser o descanso
dos justos à espera do fim dos tempos para se tornar um tipo de recompensa que possibilita a
reunião daqueles que se amaram. Segundo Ariès (1981), o verdadeiro Paraíso consiste agora
na satisfação de um reencontro que fará perdurar por toda a eternidade as afeições terrenas.
Este é o tema principal das divagações de Pauline que não cessa de descrever as mortes de
familiares e suas esperanças quanto à outra vida, a “felicidade infinita de ali reencontrar
aqueles que eu tinha amado na terra” (p. 459).
Nesta “revolução de sentimentos”, o afeto domina o comportamento e a mentalidade
coletiva. Em outros tempos, nas antigas sociedades tradicionais, a afetividade se distribuía
muito além do círculo familiar nuclear. A partir do século XVIII, a afetividade passa a se
concentrar, desde a infância, apenas em alguns seres, familiares e amigos, cujo
desaparecimento desencadeia uma dramática reação. No final da Idade Média, a família toma
42
o lugar de afetividade absoluta substituindo ao mesmo tempo a comunidade e o próprio
sujeito: “A morte de si mesmo já não tinha sentido. O medo da morte, gerado pelos fantasmas
dos séculos XVII e XVIII, foi desviado de si mesmo para o outro, o ser amado” (ARIÈS,
1981, p. 666).
O sentimento do outro assumiu uma primazia inédita de modo a fazer deslizar a
relação do homem com a morte: “O amor sem limites aos entes queridos, que deles tudo exige
e quer dar tudo de si; a morte que arrebata e restitui” (ARIÈS, 1981, p. 459). Da preocupação
e cuidados com a própria morte passou-se para o cuidado e preservação da vida do outro, ser
essencial, objeto insubstituível, cuja falta é impossível de suportar.
Os tempos românticos contribuíram para o aparecimento e difusão do culto dos
cemitérios e das sepulturas que expressam a nova sensibilidade popular. Tantos os devotos
quanto os secularizados inventam, segundo Ariès, um paraíso antropomorfo em que os laços
terrenos – livres das ameaças escatológicas do passado – se reestabelecerão para toda a
eternidade. Nos “tempos da bela morte” ainda se preservava uma coexistência entre morte,
sofrimento, agonia, presença piedosa de um público, preservação de ritos de luto e amparo
compreensivo aos enlutados. Mas logo isso irá mudar, e a piedade se converterá em
repugnância...
1.3 A dessacralização da morte ou os tempos selvagens
O antropólogo Geoffrey Gorer é considerado um precursor quanto às reflexões e
pesquisas no campo sociológico acerca das mudanças nas práticas, atitudes e representações
coletivas da morte e do luto nas sociedades industriais. Quando em 1955 ele lançou o curto
ensaio “The pornography of death”18 não imaginou o sucesso que teria a sua sagaz
observação, influenciado pela obra de Freud, de que a morte tornara-se pornográfica, o grande
tabu do século XX, deslocando o sexo.
Durante muitos séculos, a copulação e o nascimento foram cobertos de pudor, eram
experiências humanas “inomináveis” [unmentionables], temas de fantasias e manifestos
pornográficos. Durante a maior parte desse período, épocas de grande mortalidade,
testemunhar mortes no leito bem como frequentar funerais era certamente muito comum. No
século XX, um deslocamento sutil ocorreu em relação ao pudor: A cópula se tornou um
18
“The pornography of death” [A pornografia da morte], ainda inédito no Brasil, foi inicialmente publicado na
revista Encounter em outubro de 1955 e subsequentemente impresso em diferentes meios na Inglaterra e Estados
Unidos, além de ter sido traduzido para diversos idiomas. Usamos aqui a versão que aparece como apêndice no
livro Death, grief and mourning, tradução nossa.
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assunto cada vez mais “nomeável” enquanto a morte, como processo natural, se tornou
“inominável” (GORER, 1967, p. 195). Na literatura, aos poucos desapareceram as dramáticas
cenas de agonia em que os personagens vitorianos morriam no leito por causas naturais. Ora,
desapareceram porque se tornou raro testemunhar tais mortes desde que o hospital assumiu os
cuidados dos doentes.
Em meados do século XX, a morte natural e a putrefação física inerente já causavam
tanta repugnância quanto a cópula e o nascimento um século antes. Preocupar-se em demasia
com tais assuntos já era considerado pouco saudável e deveria ser desencorajado. Segundo
Ariès (1981, p. 31), essa reviravolta brusca na relação com a morte ocorreu notadamente após
a Primeira Guerra Mundial; o autor chamou de “morte selvagem” essa nova atitude que
inverteu completamente a tradicional relação com a morte, antes tomada como um fato
público. Segundo o autor, durante muitos séculos, “em todo o ocidente de cultura latina,
católica e protestante, a morte de um homem modificava solenemente o tempo e o espaço de
um grupo social, podendo se estender a uma comunidade inteira” (p. 612). Morria-se na
presença de terceiros e muito embora este modelo tradicional não tenha desaparecido por
completo, certamente perdeu o caráter de generalidade absoluta de então, independente da
cultura ou credo religioso.
Nos grandes centros urbanos nada mais anuncia que alguém morreu. A morte foi
expulsa dos espaços públicos. A transferência da morte para o hospital contribuiu para fazer
dela um ato íntimo reservado aos próximos. Desapareceram os cortejos fúnebres solenes e as
pompas que paravam as ruas e interrompiam a continuidade da vida social. Com exceção da
morte de Estadistas e outros ídolos populares19, “nada mais anuncia ter acontecido alguma
coisa na cidade [...] A sociedade já não faz uma pausa: o desaparecimento de um indivíduo
não mais lhe perturba a continuidade. Tudo se passa na cidade como se ninguém morresse
mais” (ARIÈS, 1981, p. 613). Destino pior é o dos anônimos (mendigos, moradores de ruas...)
aqueles cujas “vidas precárias”20 não valem luto, eles desaparecem em vias públicas sem
comoções nem flores.
A expulsão da morte dos espaços públicos implicou em sua dessocialização. Um efeito
da dessacralização (e consequente desritualização) dos momentos finais e dos avanços na área
médica que corroboraram para a transferência dos cuidados dos doentes para os hospitais. Se,
de um lado, a medicalização da morte permitiu aos doentes abrandarem a agonia, por outro, a
19
O cortejo fúnebre de Airton Senna parou o Brasil em 1994 e levou milhões de pessoas às ruas de São Paulo.
Cf. Judith Butler (2004, p. 20): “Quem conta como humano? Que vidas valem como vidas? E finalmente, que
vidas são merecedoras de luto?”.
20
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grande maioria passou a morrer de forma silenciosa na presença de estranhos, privados de
afeto e das confidências e acertos das últimas horas. O acompanhamento dos agonizantes
ficou sob a responsabilidade dos profissionais de saúde, principalmente da equipe de
enfermagem, que se torna, para a grande maioria, as únicas testemunhas dos momentos finais.
Durante séculos, o homem foi “o senhor soberano de sua morte e das circunstâncias
das mesmas” (ARIÈS, 1981, p. 215). Cabia a ele presidir a cerimônia fazendo suas
recomendações, mesmo quando se era muito jovem. Nos novos costumes, aquele que está
morrendo renunciou, voluntariamente na maioria das vezes, ao direito de exercer suas
vontades no fim da vida em favor da família que passa a assumir a responsabilidade pelo seu
cuidado. Porém, ao se colocar sob a dependência familiar, há o risco de ser tratado como uma
criança, ou pior, como um “moribundo” do qual se espera que se comporte como tal. Ariès
(1981) notou que essa comunhão feita de silêncios e dissimulações inibe a comunicação das
últimas horas e põe em evidência a crença atual de que é sempre possível disfarçar a morte
pela doença. Mas já não é o silêncio a própria morte?
No ensaio “A solidão dos moribundos”, Norbert Elias (2001) exorta os leitores a não
se deixarem assustar pela decadência física dos agonizantes, pois a necessidade de querer ter
outros por perto não se extingue, pelo contrário, anseia-se mais ainda pela presença dos
próximos, aqueles que são os mais ternamente amados. A ocultação dos morrentes do
convívio social está intimamente relacionada com o desconforto peculiar que sentimos na
presença deles. Figurações da morte em espelho, frente a eles nos comportamos como os
antigos imperadores romanos que se julgavam imortais e por isso recebiam a seguinte
saudação dos gladiadores quando estes entravam na arena:
Morituri te salutant (Os que vão morrer te saúdam). Alguns dos
imperadores sem dúvida se acreditavam imortais. De todo modo, teria
sido mais apropriado se os gladiadores dissessem: Morituri moriturum
salutant (Os que vão morrer saúdam aquele que vai morrer) (ELIAS,
2001, p. 9).
Diante do declínio das crenças sagradas, faltam os ritos convencionais e suas fórmulas
e orientações. O embaraço acaba afastando as visitas que passam a ser raras. O moribundo
perdeu o status social de outrora que conferia solenidade aos seus últimos momentos e
pronunciamentos, sua dignidade se mantinha não só no leito de morte como se extendia a
outra vida onde se acreditava que continuaria a existir. Hoje o exílio forçado dos moribundos
é uma experiência bem amarga, pois “ainda vivos já haviam sido abandonados” (ELIAS,
2001, p. 31). Uma reação comum é tratá-los como se já estivessem mortos, ignorando suas
45
vontades e mesmo sua presença. Por essa razão, Paul Ricouer (2012, p. 12) recusou a
nomeação de “moribundo” por considerá-la uma imagem deturpada. O “moribundo”
só o é para quem assiste à sua agonia, que talvez o assista em sua
agonia [...] enquanto lúcidos, os doentes que estão morrendo não se
percebem como moribundos como logo mortos, mas como ainda
vivos, e isso aprendi com madame Hacpille meia hora antes de ela
morrer.
Preocupado com a solidão que hoje cerca os momentos finais, Ricoeur (2012) propõe
distinguir o “agonizante” do “moribundo” de modo a limpar um imaginário, que por contágio,
faz do vivo um moribundo e de um moribundo, um morto. A recorrência ao significante
“agonizante”, aquele que sofre, mas está “vivo-ainda”, pode nos ajudar a reatar
simbolicamente com aqueles que estão morrendo. Ante a dessocialização que cerca a morte e
que deixa a maioria dos agonizantes acompanhada somente pelo olhar treinado dos
profissionais, o autor recorre ao modelo da morte do passado, o “morrer-com”, a morte
acompanhada pela “presença fraterna dos verdadeiros próximos” que podem oferecer nos
últimos instantes um aperto de mão ou uma “palavra não médica, não confessional, poética e,
nesse sentido, próxima do essencial, o agonizante não moribundo” (p. 18). O morrer
acompanhado preserva no agonizante a dignidade, a presença dos companheiros o humaniza.
Reis (1999, p. 101) encontrou em um relato, oriundo da Bahia do século XIX, um exemplo
mais que ilustrativo de que “a morte bonita” faz parte de um “esforço coletivo”:
Ao primeiro sinal de que alguém estava “se concluindo”, os vizinhos
vinham reunir-se ao agonizante e sua família. As mulheres se
lançavam a muitas tarefas, cozinhando, lavando, fervendo e passando
roupa para o doente, costurando sua mortalha. Ajudavam também no
elaborado banho de água misturada a cachaça e álcool, no abanar e
mover o acamado. Em meio à fumaça de incenso, os homens se
reuniam na sala a conversar sobre doença e morte. Havia doentes
“sem força para morrer”, que necessitavam de um empurrão dos
vivos, como a queima de velas, rezas, certas beberagens.
Na atualidade, impera o “constrangimento impiedoso da sociedade” em relação aos
agonizantes e enlutados (ARIÈS, 1981, p. 635). Que diferença das dramatizações românticas
em que os momentos finais assim como o luto eram acompanhados por ritos e pela presença,
por vezes até excessiva e inconveniente, dos próximos e conhecidos. Hoje as lágrimas do luto
se tornaram tão repugnantes quanto uma doença. Não há mais convenções sociais para
determinar o tempo do pesar, nem signos para sinalizar aos outros o luto, nem as orientações
quanto às palavras, gestos ou atitudes mais propícias para essas ocasiões. Essa observação
casa com a experiência pessoal de Gorer (1967, p. 33, tradução nossa) por quando perdeu seu
irmão em meados do século XX:
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Algumas vezes eu recusei convites para festas, explicando que eu
estava de luto; as pessoas que me convidaram responderam a essa
enunciação com espanto embaraçoso, como se eu tivesse falado algum
tipo de obscenidade. De fato, tive a impressão de que, se eu tivesse
recusado o convite por causa de algum misterioso festim orgiático que
eu estivesse organizando, teria me beneficiado de compreensão e
incentivo jocoso. De qualquer forma, essas pessoas educadas e
sofisticadas cujo convite eu recusava, silenciavam e saiam
apressadamente. Claramente elas não tinham indicações vindas de um
ritual que dissesse como tratar uma pessoa que se dizia de luto; e,
suspeito, que elas estavam atemorizadas com a possibilidade de eu me
deixar levar pela minha aflição, e envolvê-las em uma desagradável
onda de emoções.
O luto tornou-se uma experiência silenciosa. Não só porque uma perda significativa
nos absorve de tal maneira que nos emudece, mas porque hoje a própria comunidade
silenciou. As pessoas tendem a evitar o contato com quem está de luto, por embaraço ou por
não querer incomodá-lo. O luto passou a ser uma experiência solitária.
Impressiona a rapidez com que o modelo romântico da morte e do luto, que ainda
predominava até meados do século XIX, ruiu gradativamente até culminar hoje com a
supressão pública da morte (notadamente a morte natural, a morte no leito), e tudo o que a ela
remete (incluindo aí o luto). Durante a era romântica, as grandes dramatizações preservavam
estreitos os laços com os doentes e com os enlutados. Havia ainda o recurso às crenças
religiosas e às promessas de continuidade e reencontros no outro mundo. Até fins do século
XIX as crenças religiosas subsistiam. Segundo Gorer (1967), a grande maioria da comunidade
cristã ainda adotava a crença Paulina21 acerca do pecado do corpo e a certeza da vida após a
morte. Em meados do século XX, as crenças escatológicas enquadradas por instituições
religiosas oficiais já não eram mais os referentes absolutos.
No século XX, o pensamento racional e a secularização da vida social tornaram-se
traços marcantes. Sem o seu envoltório retórico sagrado, as imagens repugnantes da
decrepitude e decomposição física da era macabra começaram a refluir. O recurso ao universo
religioso possibilitava tolerar de outro modo a morte e o luto. Sofria-se com a separação, por
certo, mas havia o conforto advindo da esperança de reencontro, como pode ser inferido no
depoimento comovedor de uma mulher idosa entrevistada por Gorer (1967, p. 28, tradução
nosa) que, na década de 1950, ainda preservava as antigas crenças escatológicas.
21
“Os que vivem segundo a carne gostam do que é carnal; mas os que vivem segundo o espírito apreciam as
coisas do espírito. Ora, a aspiração da carne é a morte, enquanto que a aspiração do espírito é a vida e a paz”.
São Paulo na carta aos Romanos (8: 5-8).
Todos os trechos bíblicos citados nesta tese são extraídos da seguinte versão: Bíblia Sagrada tradução dos
originais hebraico, aramaico e grego, mediante a versão francesa dos Monges Beneditinos de Maredsous
(Bélgica) pelo Centro Bíblico de São Paulo. 12ª. edição. São Paulo: Ave Maria, 1968.
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Ele foi morto na Força Aérea durante a guerra, meu filho mais novo, e
com frequência ele volta e fala comigo... eu estava deitada – sentindo
a falta dele – [...] e todo o tempo pensava, tomara que ele tenha sido
salvo; e uma voz disse, “está tudo bem, mãe”; e eu pensei obrigada
meu Deus por ele estar bem; mas ele se foi. Ainda assim, eu penso que
o verei novamente um dia. Isso me faz continuar.
Segundo Allouch (2004, p. 351), enquanto Deus “mantinha as contas – contas que sua
transcendência nos deixava essencialmente incapazes de saber o que quer que seja –, o luto
podia ser bem mais regrado”. O seu regramento se associava com as crenças no Além, o
processo ritual e a participação confortante de um público.
48
2. LUTO DESRITUALIZADO, LUTO PRIVADO
Morin (1970, p. 17) escreveu que a morte é aquilo que assemelha o homem do animal
e ao mesmo tempo aquilo que os diferencia: “a espécie humana é a única para quem a morte
está presente ao longo da vida, a única que acompanha a morte com um ritual fúnebre, a única
que crê na sobrevivência ou renascimento dos mortos”. A sepultura, os ritos fúnebres, o
batismo e a circuncisão são símbolos de humanidade. Do berço à tumba, esses símbolos
marcam as passagens dos seres no campo social. As práticas rituais correspondem assim a um
exercício de dignidade humana do mesmo modo que a ausência de qualquer tipo de cuidado
do cadáver, em tempos de guerra, de regimes ditatoriais ou de extermínio, implica em uma
das mais cruéis formas de “negação de humanidade” (ALBERT, 2009, p. 141).
A desritualização do luto no ocidente esta intimamente relacionada com a
dessacralização da morte. Esse fenômeno se conjuga com o declínio do domínio hegemônico
das instituições religiosas sobre os saberes e fazeres dos homens na sociedade. A
modernidade e secularização da vida social fizeram deslizar a devoção pública dos mortos
para os espaços privados. Desde os fins do século XVIII que o luto foi, aos poucos, tornandose uma experiência íntima, privativa e fetichista. No século XX, assumiu também um caráter
prescritivo. É o que veremos a seguir.
2.1 A privatização do luto
Tratar da privatização do luto é falar de sua desritualização e da perda de seu caráter
público e social. Até recentemente, o luto era “a dor por excelência cuja manifestação era
legítima e necessária” (ARIÈS, 1981, p. 227). O silenciamento em torno da morte nos grandes
centros industrializados criou uma intolerância ante as manifestações públicas e espontâneas
de pesar. Na Alta Idade Média, os soberanos e os guerreiros prostravam-se publicamente
diante de corpos de amigos e parentes, e sem nenhum pudor rasgavam as vestes, arrancavam a
barba, desmaiavam, batiam no peito, gritavam em desespero. O luto dos sobreviventes era
desmedido ou ao menos deveria parecer sê-lo. Mas, uma vez passado o período de maior
manifestação dramática, salvo algumas raras exceções, os sobreviventes retomavam o curso
da vida.
Nessa época remota não havia ainda uma cerimônia propriamente religiosa, o luto e o
cortejo seguiam apenas com leigos, os eclesiásticos não participavam, a menos que o morto
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fosse um clérigo. Os ritos fúnebres eram dominados pelos lamentos dos sobreviventes e pelas
homenagens que prestavam ao defunto. Os ritos eram civis, a Igreja não intervinha senão para
absolver.
Enquanto os ritos de planctus prosseguiam em seus excessos, entre os séculos VIII e X
começa a se formar um culto ritualizado dos mortos limitado à sociedade fechada dos padres e
monges: missas em intenção dos defuntos, orações perpétuas, registros dos mortos nos
chamados obituários etc., cultos contidos realizados na mais perfeita paz dos claustros e
igrejas. Por volta do século XIII, as expressões desmedidas de luto começam a perder a
espontaneidade. A Igreja reprovava esses estardalhaços, mais ainda quando eram animados
pelas mercenárias carpideiras. Junto com as novas concepções escatológicas – medo do Juízo
final, da condenação eterna etc. – passou-se, como já visto, do destino coletivo para o destino
particular. A vontade de se interceder pelos mortos parece ter sido a principal razão para as
mudanças na estrutura das missas que passam a incluir uma lista com os nomes dos mortos e
também a dos ofertantes (ARIÈS, 1981).
Um luto “clericalizado” começa a se propagar vindo a atenuar as efusivas
demonstrações de pesar e o luto, dali por diante, tendia para a dignidade e autocontrole. O que
antes era expresso pelos gestos ou palavras passa agora para o vestuário e a cor, sendo
adotada a cor preta. Segundo Ariès (1981), no século XII, Baudry – o abade e historiador de
Bourgueil – registrou seu estranhamento ao ver que os espanhóis se vestiam de preto por
ocasião da morte de seus próximos. Em 1514, o rei francês Luís XII vestiu-se de preto por
ocasião da morte de Ana de Bretanha e obrigou a corte a fazer o mesmo. Na Europa do século
XVI, a roupa preta já se impunha como expressão pública de luto dispensando as expressões
dramáticas de outrora. A família e os amigos estão agora silenciosos e calmos. O morto não
pertence mais à família ou a seus próximos, mas à Igreja que se torna a protagonista principal
na condução dos ritos de morte. A vigília tornou-se eclesiástica, a leitura do “ofício dos
mortos” substituiu as grandes lamentações. Após a vigília começa o cortejo fúnebre,
cerimônia antes conduzida por familiares e amigos que mitigavam seu luto prestando ao
morto as últimas homenagens.
No novo modelo, o cortejo segue em procissão eclesiástica solene. Familiares e
amigos ainda participam, mas de modo discreto. À família impõem-se um período de reclusão
e penitência durante o qual as relações sociais e os prazeres da vida mundana eram deixados
de lado. Entre os séculos XVI e XVII prevalece a sensibilidade barroca com os grandes
cerimoniais públicos que beiram ao espetáculo. A morte se encontra valorizada como o
coroamento de toda uma existência, desse momento depende a salvação ou danação eterna.
50
Há de um lado o respeito pelo momento da morte e por outro uma tentação à exacerbação
dramática que inspira toda uma literatura de Memórias [littérature des Mémoires], forte na
época. Os grandes cerimoniais que cercam a agonia se prolongam nas pompas fúnebres que a
aristocracia carrega de ostentação. Porém, a morte continua ainda um profundo exercício
espiritual que segue estritamente os códigos e regras fúnebres da época (VOVELLE, 1974).
A morte barroca, segundo Reis (1991, p. 91), é o que melhor representa o ideal do bem
morrer do Brasil de outrora: “Era uma morte marcada por uma extraordinária mobilização
ritual, coerente com um catolicismo que enfatizava as manifestações exteriores de
religiosidade: a pompa, as procissões festivas, a decoração elaborada dos templos”. No
apogeu do barroco colonial, as mortes espetaculares eram diligentemente preparadas pelo
próprio moribundo que presidia seu fim. Assim, em 1675, o governador da Bahia Afonso
Furtado de Mendonça tão logo sentiu o fim se aproximar, providenciou uma boa partida:
durante seu tempo de agonia ele cuidou dos assuntos do Estado e indicou uma junta
sucessora, fez consultas e reuniões, tomou providências quanto ao pagamento de seus
empregados e, como não poderia deixar de ser na época, cuidou de coisas da alma, tais como
confissões, pedidos de missa, distribuição de esmolas e orações. A boa morte significava
prestar contas aos que ficavam e também fornecer orientações quanto aos cuidados com seu
cadáver, com sua alma e bens terrenos. Essa preparação facilitava a espera da morte e aliviava
a agonia do morrente.
Entretanto, as extravagâncias barrocas geravam grandes despesas com o cortejo, o
culto e o enterro, e ainda com as vestimentas custosas de luto quanto maior fosse a posição
social da pessoa, uma vez que cada detalhe da toalete implicava uma posição na hierarquia
social. Essas manifestações tinham caráter obrigatório e as dramatizações nem sempre eram
espontâneas, nem sempre expressavam a dor da separação. Mesmo que belas e custosas, as
práticas rituais poderiam ser absolutamente impessoais e concernidas mais a uma satisfação a
ser dada à sociedade do que a uma expressão pessoal de dor. Ariès (1981) relatou o caso da
marquesa de Noe, uma viúva de Toulouse (França), que em 1757 moveu um processo contra
sua cunhada para pedir 8 mil libras como reembolso de suas despesas de luto. A cunhada lhe
ofereceu cerca de um terço do valor pedido. A réplica da viúva aparece em um memorial:
A decência pública exigindo que as mulheres ponham luto pelos
maridos, era justo lhes dar para as provas de suas roupas de luto o
mesmo privilégio que para as despesas fúnebres (...). Essas roupas
fornecidas à viúva não são para ela uma vantagem nem um ganho
nupcial. Submetida pela lei à necessidade do luto, e não devendo
fazer-lhe as despesas, cabe ao herdeiro do marido lhas fornecer
(ARIÈS, 1981, p. 357, grifo do autor).
51
Porém, isso não significa que não houvesse também saudade e tristeza canalizadas
para os rituais. Em inscrições tumulares e elegias da época já aparecem expressões de dor que
permanecerão bastante efusivas até o século XIX. Mas passado o período de luto, o costume
não mais tolerava essas manifestações pessoais, e aquele que permanecia ainda preso às
aflições não teria outra opção a não ser se retirar do mundo onde era conhecido, ou seja, se
recolher a um convento ou ao campo. Assim, os cerimoniais de luto de então embora
espetaculosos, nem sempre significavam a possibilidade de dar livre curso à expressão de
pesar. Rígidos e impessoais, eles ditavam o modo de expressão da dor bem como o vestuário
e período de luto (ARIÈS, 1981).
As pompas fúnebres da idade barroca se estenderão até o início do século XX. Gorer
(1967), quando criança, testemunhou os elaborados cerimoniais ingleses mesmo entre as
classes trabalhadoras que chegavam a comprometer uma pequena parte do salário semanal
com assistência funerária, dado o horror de ser enterrado como indigente, ou pior se tornar
objeto de estudo nas escolas médicas.
A partir do século XVIII, o romantismo apresenta a oportunidade de se dar,
novamente, livre curso aos impulsos da dor. Está no ar um novo tipo de sentimentalidade
baseado na impossibilidade de se esquecer dos mortos: as manifestações dramáticas de dor, o
culto exaltado das lembranças e a peregrinação aos túmulos se constituem manifestações
novas na cena do luto. Há um retorno, portanto, à espontaneidade dos grandes lutos da Alta
Idade Média, porém conservando-se a moldura do ritual. O rigor da reclusão foi preservado,
muito embora seja considerado agora mais um direito a expressar do que uma quarentena
imposta. Véus, cortinas de crepe e panos negros eram usados para marcar que a morte havia
visitado aquela casa. As expressões de pesar são manifestadas principalmente diante do
túmulo, “que se torna então o que não era, o lugar privilegiado da lembrança e da saudade”
(ARIÈS, 1981, p. 577).
Outra mudança importante foi a participação de mulheres no ofício fúnebre. Os
antigos protocolos prescreviam que elas não tinham permissão para acompanhar o ofício e
deveriam permanecer reclusas em suas casas. Algumas o assistiam às escondidas, depois
abertamente quebrando o protocolo. No início do século XIX, este costume era seguido
apenas pela aristocracia. Na era vitoriana, as mulheres também adotaram o costume, já em
voga na burguesia, de usar vestidos de luto sob véus e crepes negros. Uma tendência que se
firmou e se propagou após a Rainha Vitória adotar de modo permanente os trajes de luto em
memória de seu esposo, o Príncipe Albert, em 1861. Essa atitude influenciou a moda e a
etiqueta de luto da época, e a cor preta se tornou sinônimo de decência e recato. Muitas
52
mulheres passaram a adotar trajes lutuosos muito para além dos dois anos previstos pelos
costumes.
Na Inglaterra vitoriana, as regras eram bem precisas: o luto público de viúvas durava
dois anos e meio. No primeiro, usava-se uma vestimenta completa chamada de full mourning
[luto fechado] em que vestidos de crepe e véus escuros cobriam o corpo da viúva. Com o
avançar do tempo, gradualmente o crepe ia sendo abandonado por seda ou veludo preto e era
permitido o uso de adornos como fitas, franjas e rendas. Nos últimos seis meses começava o
período chamado de half mourning [luto parcial] em que roupas comuns de cores suaves
(cinza, roxo, branco etc.) podiam ser usadas22. No Brasil do século XIX, há registros de regras
muito parecidas em algumas regiões: o luto das viúvas podia ser aliviado após três anos, mas
havia também o costume de se manter as vestimentas pesadas até o fim da vida (REIS, 1991).
Em um escrito autobiográfico, Geoffrey Gorer rememorou o impacto que sentiu
quando, aos cinco anos de idade, o Rei da Inglaterra Eduardo VII faleceu. Era o ano de 1910 e
ele teve a oportunidade de ver, no domingo após a morte do rei, a praça pública repleta de
transeuntes vestidos de luto. No almoço familiar, a sua mãe também apareceu usando aqueles
“trajes horríveis” que geraram protestos do pequeno Gorer que insistiu que ela os tirasse, mas
ela lhe explicou que o monarca havia sido “um bom rei, e sentimos muito a sua morte, usar
preto é um sinal de que o respeitamos e sentimos a sua falta e compartilhamos o pesar de sua
família” (GORER, 1967, p. 15).
Tal como a mãe de Gorer o fez, cabia às mulheres dar o tom do luto à família; como
representantes sociais de seus maridos, elas eram responsáveis por mostrar à comunidade o
quanto aquela perda era sentida através do seguimento estrito de regras de etiqueta social23.
Quando o pai de Gorer morreu em 1915, sua mãe portou véu e vestido negro por pelo menos
dois anos. Ela seguiu estritamente o costume de então que regulava o abandono progressivo
dos trajes de luto. “Era inconcebível naquela época fazer de outra maneira” (p. 20).
Essas cenas comuns do “luto vitoriano” ou “luto burguês”, como Vovelle (1999) o
nomeia, desaparecerão quase por completo após a Primeira Grande Guerra. Já durante a
guerra, com tantos mortos em tão pouco tempo somado às restrições econômicas da época
tornaram necessariamente exíguos os funerais. Uma prática aos poucos adotada por quase
todo o Reino Unido e que se proliferou pelo mundo Ocidental. Além disso, o massacre de
milhares de homens gerou a necessidade de se convocar o enorme contingente de viúvas para
atuar em fábricas e hospitais, abreviando assim o tempo clássico de reclusão de luto. A
22
23
Fonte: http://www.fashion-era.com/mourning_fashion.htm. Acesso em: 20/05/2013.
Fonte: http://www.fashion-era.com/mourning_fashion.htm. Acesso em: 20/05/2013.
53
própria mãe de Gorer, recém-viúva, nunca havia trabalhado antes, mas atendeu ao apelo do
governo e candidatou-se para atuar em tempo integral em hospitais para soldados feridos.
O vazio de sua vida foi adequadamente preenchido com trabalho
qualificado e útil. Se isso tivesse ocorrido em um tempo anterior, ela
não teria tido tal recurso; e se tivesse sido um tempo depois, ela não
teria tido o suporte dos rituais de luto, que a liberaram de muitas
decisões tediosas (GORER, 1967, p. 21, tradução nossa).
No século XX, juntamente com o descrédito das crenças religiosas oficiais, os grandes
cerimoniais fúnebres foram, progressivamente, se tornando acontecimentos excepcionais
vistos nas mortes de estadistas ou celebridades. Uma atitude privada e discreta, restrita aos
familiares, passou a ser apreciada e valorizada como sendo a mais “normal”. Aos poucos
desapareceram os signos que marcavam que a família estava de luto, assim como as visitas
que vinham oferecer condolências.
Ao perder o irmão, Gorer (1967) tomou todas as providências para atender ao seu
pedido testamentário que solicitava um serviço religioso para acompanhar sua cremação. A
grande maioria dos amigos e familiares compareceu, mas curiosamente a viúva e os filhos
pequenos não. E por que não? A recém-viúva ficou com receio de “se descontrolar e deixar os
outros verem a sua aflição” e “queria poupar as crianças daquele sofrimento”. Preferiu, então,
passar o dia do funeral no campo: “Elizabeth [a viúva] me assegurou que ela e as crianças
haviam tido um dia agradável. Elas fizeram um piquenique no campo e cortaram a grama” (p.
31).
Assim, a morte do pai passou em branco, completamente desritualizada. Por meses a
fio, essa morte continuou sendo tratada como um segredo pela viúva que não tolerava sequer
que o nome do falecido fosse mencionado em sua presença. Mas, por outro lado, queixava-se
que agora seus conhecidos, antes tão próximos do casal, evitavam-na. Seu isolamento social
forçado a fazia se sentir como uma “leprosa”; em decorrência disso ela se esforçava para agir
como se nada de importante houvesse acontecido, para ser tratada normalmente pelo seu
grupo social. A sua atitude heroica diante da morte do marido era uma tentativa de
corresponder aos imperativos de discrição e força de caráter que agora eram exigíveis para
essas ocasiões.
Expressões efusivas de pesar tendem a causar constrangimentos e aumentar o
isolamento social dos enlutados. Gorer (1967, p. 91, 150) foi talvez o primeiro a associar o
atual endolorimento profundo e prolongado do luto com
a total ausência de ritual, seja individual ou social, leigo ou religioso,
para guiá-los [os enlutados] bem como às pessoas com quem eles
54
entram em contato [...]. O luto é, obviamente, uma experiência
endopsíquica e a elaboração do luto é psicológica; mas tenho a
convicção de que o trabalho de luto pode ser ajudado ou impedido, e
seu desfecho facilitado ou tornado mais difícil pela maneira como o
enlutado é tratado pela sociedade em geral e, em particular, pelos
membros mais próximos, incluindo aí sua própria família.
De fato a intolerância das expressões de luto hoje se tornou comum mesmo no seio da
própria família. Em um atendimento, uma mulher idosa lamentava a falta de compreensão ou
tolerância familiar quanto ao pesar que sentia pelo esposo falecido. Nesse caso não havia
queixas em relação à solidão ou abandono, havia até um excesso de presença oriundo das
preocupações familiares com sua saúde, porém essa presença, na boa intenção de protegê-la e
confortá-la, acabava sendo também negativa: “Chorar mesmo só choro aqui porque lá em casa
não tenho mais privacidade. Se me veem chorando eles ficam tristes, não posso olhar a nossa
caixa de fotografias e nem andar nos lugares onde ele trabalhava. Sinto a falta dele, foram
mais de 40 anos de casamento...”.
Em meados do século XX, consagrou-se a ideia de que as expressões públicas e até
mesmo privadas de tristeza, se insistentes, podiam indicar alguma natureza mórbida:
Está-se convencido de que a manifestação pública do luto, e também
sua expressão privada muito insistente e longa, é de natureza mórbida.
A crise de lágrimas transformara-se em crise de nervos. O luto é uma
doença. Aquele que o demonstra prova fraqueza de caráter (ARIÈS,
1981, p. 633).
A ausência de códigos familiares que ajudam a expressar sentimentos em momentos
críticos – consolo aos enlutados, amparo aos morrentes, por exemplo – dificulta a
comunicação, gera constrangimentos e, em decorrência, afasta os que estão próximos por não
se saber o que fazer ou dizer para confortar: “A sociedade não suporta mais a visão das coisas
da morte, e, por conseguinte nem a do corpo do morto, nem a dos próximos que o choram. O
sobrevivente fica, portanto, esmagado entre o peso da sua dor e o interdito da sociedade”
(ARIÈS, 1981, p. 636).
Conforme apontado, no passado a morte, assim como o luto, era um acontecimento
mais social do que individual. O sobrevivente sofria, se enlutecia, mas de modo geral não se
devastava como hoje. Os momentos finais da vida assim como o luto eram amparados por
rituais.
O socorro ao sobrevivente não era a sua única finalidade, nem sua
finalidade principal. O luto expressava a angústia da comunidade
visitada pela morte, manchada pela sua passagem, enfraquecida pela
perda de um dos seus membros. Vociferava para que a morte não
voltasse [...] A vida parava aqui, tornava-se mais lenta ali. Gastava-se
55
o tempo com coisas aparentemente inúteis, improdutivas. As visitas
do luto refaziam a unidade do grupo, recriavam o calor humano dos
dias de festa (ARIÈS, 1981, p. 635).
Desde os fins do século XVIII, o outro assumiu um lugar privilegiado tanto em relação
aos cuidados que cada um deveria ter com a própria morte e o destino no Além quanto em
relação ao entorno comunitário. O luto se familiarizou, isto é, passou a se restringir a alguns
próximos queridos. O “luto romântico”, conforme Ariès evidenciou, é familiar e privativo.
Foi nesse contexto social e histórico que Freud, sem que o soubesse, escreveu “Luto e
melancolia”. De modo crítico, Ariès (1981, p. 634) apontou que a versão de luto que lá
aparece, assim como outras teorias psicológicas que surgiram sobre o luto, propõe um modelo
quase universal de sofrimento decorrente da perda de um ser querido, mas esse modelo, na
realidade, é relativo e corresponde àquele surgido a partir do século XVIII, o “modelo das
belas mortes românticas e das visitas ao cemitério, que chamamos ‘a morte do outro’”.
2.2 Do culto público ao culto intimista dos mortos
Nos primeiros séculos da era cristã, a aparente tolerância com a morte correspondia de
modo simétrico a uma mesma familiaridade com os mortos, com as sepulturas e objetos
fúnebres. Pela fé na ressureição dos corpos associada à veneração dos mártires e seus
túmulos, o povo cristão acabou, por um lado, acomodando as crenças novas (a ressureição) e
antigas (o culto das sepulturas). Provavelmente essa crença contribuiu para o costume de se
enterrar os mortos próximo dos túmulos dos mártires, únicos santos cujo lugar garantido e
imediato no paraíso era certeza. O enterro ad sanctus [perto dos mártires] asseguraria a
proteção física e espiritual até o dia do despertar final.
Basílicas cemiteriais eram erguidas e em torno delas os bairros se desenvolviam. Os
túmulos dos mártires atraíram outras sepulturas e também centenas de peregrinos que vinham
prestar homenagens e pedir graças ao santo. Surgia uma convivência nova entre os viventes e
os mortos. Estes cemitérios se tornaram não apenas reservatórios dos mortos, mas lugares
sagrados, públicos e frequentados: “Daí por adiante os mortos deixaram completamente e por
muito tempo, de fazer medo” (ARIÈS, 1981, p. 41).
Na mentalidade medieval o cemitério surge como uma concepção nova. Para os
romanos, o sepulcrum, o monumentum eram mais importantes do que o espaço que
ocupavam. Quase não havia cemitério, só túmulos dispostos mais ou menos próximos. Ao
longo da Idade Média, o que importa é o espaço sagrado, público e fechado onde os corpos
56
são depositados, a maioria no anonimato. Nesse período, a morte era considerada um
trespasse não para uma sobrevivência em outro mundo no qual se continuaria a viver de outro
modo, mas acreditava-se que os mortos dormiam, sob a proteção de um espaço sagrado, à
espera do fim dos tempos em que os bem-aventurados despertariam no dia da ressureição da
carne. Uma imagem antiga e popular do Além que aparece perpetuada nas inscrições
lapidares “descanse em paz” ou “repouse em paz” [resquiece in pace, R.I.P.].
Ao contrário do que geralmente se imagina, Ariès encontrou uma prática funerária
medieval marcada pela exiguidade e anonimato das sepulturas, o amontoamento dos corpos, o
reemprego das fossas, o acúmulo dos ossos nos ossários. Crânios e ossos misturados à terra
afloravam no interior ou ao lado das igrejas; tal cena, que hoje causaria arrepio, faz Hamlet
meditar diante do crânio do “pobre Yorick”, o “bobo do rei” (SHAKESPEARE, 2012, p.
123). Estavam tão familiarizados com os mortos quanto com a própria morte.
Por volta do século XIV, nas cidades, período de eclosão da arte macabra, teve início a
organização dos ossos que passaram a ser dispostos artisticamente em lugares visíveis
(galerias, pórticos das igrejas, capelas etc.). As ossadas ficavam amontoadas, anônimas e
expostas:
É preciso ver. Os carneiros24 eram lugares de exposição, feitos para
serem vistos. Sem dúvida, de início, não passaram de um depósito ao
acaso, onde se procurava desvencilhar dos ossos exumados somente
para desocupar espaço, e não havia a preocupação especial em mostrálos, mas, em seguida, a partir do século XIV, sob influência de uma
sensibilidade orientada para o macabro, quis-se, ao contrário, tirar
partido disso: dispuseram-se os ossos e os crânios de tal maneira a
formarem em torno do pátio da igreja uma decoração para a vida
cotidiana desses tempos sensuais (ARIÈS, 1981, p. 66).
Os cultos funerários tão difundidos na Antiguidade haviam desaparecido sob a égide
do cristianismo que abandonava os corpos à Igreja, onde eram anonimamente lançados em
fossas comunitárias e esquecidos – com exceção de alguns clérigos e nobres. O cemitério se
confundia com as dependências da igreja. O descaso para com os mortos é apenas aparente,
pois se os cadáveres eram descartados, eles não o eram em qualquer lugar, nem desprovidos
de rituais. O tratamento dispensado aos cadáveres ocorria sob orientação da crença Paulínia
de que a verdadeira vida era a do espírito, ainda assim o solo sagrado da Igreja lhes acolhia
como última morada à espera do fim dos tempos.
24
Carneiro do latim carnarium era o antigo pátio da igreja onde os corpos eram enterrados e que mais tarde
assumirá o sentido geral de cemitério. No fim da Idade Média, na França o termo charnier designa também uma
parte específica do cemitério, o ossário e as galerias onde os ossos eram depositados e expostos (ARIÈS, 1981).
57
Por outro lado, a Igreja Católica preservava cultos em homenagem à memória coletiva
dos mortos graças à preocupação com a salvação da alma no Juízo Final. Mas não foi sempre
que a Igreja aceitou esse tipo de devoção. Segundo Vovelle (2010), a pietas [piedade] para
com os mortos era uma forte devoção popular que a Igreja dos primeiros séculos tentou
combater. Após algumas resistências, o “culto das almas” foi oficialmente reconhecido
quando a crença no Purgatório foi promulgada, pela primeira vez, no concílio de Lyon II, em
1274 e proclamado definitivamente no concílio de Florença, em 1439. Esse “terceiro local”,
hoje quase esquecido, permitiu durante séculos “gerir de modo satisfatório e apesar das
aparências, apaziguador, o trabalho de luto, rompendo o trágico dilema do esquema dualista:
o paraíso aberto a poucos eleitos e o trágico das penas infernais” (VOVELLE, 2010, p. 14).
Os sufrágios (orações, indulgências, boas obras, missas etc.) oferecidos em intenção das
almas traziam alívio para os viventes25. Nesse sentido observamos o quanto o Purgatório é um
rico sistema imaginário-simbólico erguido, a partir de heranças pré-cristãs, para apaziguar as
relações com os mortos: “Não se esqueçam do que dizem os velhos libretos da pastoral
tridentina: ‘são vossos pais, e vossos amigos... ’” (VOVELLE, 2010, p. 21)
Em nosso meio, um testemunho curioso dessa devoção é o chamado “Natal das almas”
que ocorria em Florianópolis até um pouco mais da metade do século XX. Difundido em
jornais locais, o culto consistia em oferecer sufrágios aos finados no mês de dezembro:
Oremos pelas benditas almas do purgatório! “Se soubéssemos a
riqueza desta devoção, voaríamos em socorro do Purgatório” – dizia o
S. Cura d’Ars. “Os mortos são muito esquecidos” – gemia Sto.
Agostinho. Vamos, pois, fazer um rico Natal das Almas. Eu conto
com os meus queridos leitores d’O apóstolo! Socorrer as Almas é uma
necessidade e uma caridade (O apóstolo, 1947, apud TOMASI, 2013,
p. 219).
Foi apenas a partir do fim do século XVIII que uma nova sensibilidade popularizada
na época romântica não mais tolerou a indiferença e propagou o culto romântico dos mortos.
Para Ariès (1981), o período de maior devoção às almas do Purgatório corresponde àquele em
que a morte do outro se tornou intolerável; aliás, o primeiro é antes uma consequência do
segundo. É a passagem de uma devoção de origem individualista (a morte de si, preocupação
com a própria salvação) para a altruística (a morte de ti, intervenções para o outro). À
celebração da memória coletiva dos mortos nos cultos religiosos soma-se agora a necessidade
de um cultivo pessoal das lembranças do morto. Há o retorno dos cemitérios na topografia
25
Em um site católico se lê: “Fazem muito mal, os que não se lembram de aliviar com sufrágios as almas dos
finados. Alguns só procuram que o enterro seja bem suntuoso e nada ou muito pouco fazem para alívio da alma”.
Fonte: http://regisaeculorumimmortali.wordpress.com/2010/11/12/os-sufragios/. Acesso em: 20/06/2013.
58
urbana para além das jurisdições religiosas. Herdeiros do mobiliário fúnebre das igrejas, eles
se erguem com soberbos mausoléus e monumentos que atrairão a curiosidade de estrangeiros.
Assim, o cemitério se torna “objeto de visita. Ainda não é visitado para manter a lembrança
dos mortos, mas como um museu de belas-artes e uma galeria de pessoas ilustres” (p. 546).
Se a Igreja havia tornado os corpos dos mortos objetos abandonados, agora é o tempo
de recuperá-los. A afetividade que agora se concentra no círculo familiar se exacerba diante
da perda de um de seus membros e demanda outro tipo de relação com os mortos. As reações
dramáticas se estenderão ao espaço público do cemitério que, aos poucos, se tornará um lugar
de visita e concentração da piedade para com os mortos.
A organização dos novos cemitérios propõe a individualização da sepultura, o uso da
pedra sepulcral para identificar o morto, e propaga a adoção de monumentos tumulares.
Ornados com uma escultura e com um breve epitáfio (com nome, data, elegia) eles lembram
aos vivos que os mortos precisam não apenas de orações, mas de lágrimas. O túmulo é ao
mesmo tempo o lugar onde o corpo foi depositado e um memorial aonde as pessoas virão para
se lembrar, meditar, rezar e chorar. Atitude encontrada entre os La Ferronays que fazem do
túmulo de Albert um lugar de visitação nostálgica diária.
Observa-se, nos epitáfios, a mesma esperança dos reencontros no Além-túmulo
exaltada na literatura da época: “Eu vivo para a chorar e a ela me juntar no túmulo” diz a
inscrição de 1820 de um viúvo, citado por Ariès (1981, p. 576). Do século XIX ao início do
século XX, esse sentimento continua embora apresentando variações de estilo: os epitáfios
permanecem, porém abreviados e banalizados por frases prontas propostas pelos comerciantes
funerários: “Saudades eternas”, por exemplo, é encontrada em inúmeros cemitérios
espalhados pela Europa. A banalização dos epitáfios, no século XX, segue em paralelo aos
abandonos das sepulturas à medida que o culto dos mortos foi se deslocando para os espaços
privados.
Na França, um movimento de laicização do culto dos mortos começou a ser
amplamente propagado, em meados do século XIX, pelos positivistas discípulos de Auguste
Comte. Anticlericais, eles reanimam um culto fetichista dos mortos que a Igreja católica
durante muito tempo havia banido. Eles serão os responsáveis pela fomentação de um
movimento leigo de preservação dos cemitérios e túmulos e exaltação do culto das
lembranças como a “única verdadeira imortalidade” que se poderia conceder aos mortos
(ARIÈS, 1981, p. 589). Para um desses positivistas, Dr. Robinet,
O homem prolonga para além da morte os que morreram antes dele
[...], continua a amá-los, a conhecê-los, a entretê-los depois que
59
deixaram de viver, e institui em sua memória um culto onde seu
coração e sua inteligência se esforçam por assegurar-lhes a
perpetuidade [...]. Essa propriedade da natureza humana [...] nos torna
bastante afetuosos e inteligentes para amar seres que já não existem,
para arrancá-los ao nada e para criar em nós mesmos essa segunda
existência, que sem dúvida é a única imortalidade verdadeira” (apud
ARIÈS, 1981, p. 589-90, grifo do autor).
A “segunda existência” é assegurada não mais no Além-religioso, mas na memória
daqueles que os conheceram e, por contiguidade, também nos objetos que eles deixaram ou
que a eles remetem, tais como fios de cabelo (“arte capilar”), joias, medalhões, túmulos,
lápides e retratos. Esses mementos [“lembra-te” em latim] funcionam como objetos fetiches,
isto é, objetos substitutos dos ausentes. Eles se constituem em “signo e animação do próprio
signo” e fazem reviver os mortos dando-lhes continuidade ante a ilusão de uma presença
(ARIÈS, 1981, p. 590).
O culto positivista propõe a manutenção do vínculo com o morto através de seus
signos, objetos fetiches que lhe dariam uma segunda vida. O culto dos mortos através de seus
pertences se tornou um dos traços marcantes dessa nova sensibilidade que tornou intolerável a
morte do outro. Na França do século XIX, à medida que cresce uma emancipação da religião,
a veneração dos desaparecidos e de seus signos se expande sem cessar se tornando, entre
franceses, “a grande religião popular” (ARIÈS, 1981, p. 592). O grande número de mortos da
Primeira Guerra Mundial incrementará a confluência do culto dos mortos e do sentimento
nacional. Cultos cívicos são estabelecidos pelo próprio Estado que constrói monumentos e
estabelece datas comemorativas para homenageá-los sem relação com nenhuma religião.
No século XX, o culto público (sagrado ou cívico) dos mortos entrou em declínio e,
em paralelo, cresceu a veneração de caráter mais privativo e fetichista. O apego aos objetos do
morto gerou a necessidade de preservá-los, porém esse apego se distanciará, aos poucos, dos
signos públicos (túmulos, p. ex.) para se centrar naqueles mais privativos. Assim, o quarto do
morto é transformado em verdadeiro santuário onde seus pertences são devotamente
cultuados. O caso célebre é o da Rainha Vitória que preservou todos os objetos do Príncipe
Albert do jeito que ele gostava de arrumá-los, e todas as manhãs repetia-se o ritual de preparar
suas roupas e sua água de barbear como se ele fosse retornar a qualquer instante (GORER,
1967, p. 86).
60
Recentemente a imprensa26 divulgou o curioso caso do quarto de Hubert Rochereau,
um jovem soldado francês morto durante a Primeira Guerra, cuja mobília (fotografias,
cachimbo, medalhas, o casaco militar etc.) se mantém preservada quase 100 depois de sua
morte. Quando seus pais já idosos resolveram vender a casa, eles estipularam uma cláusula
em contrato de venda que o quarto do filho deveria permanecer inalterado por 500 anos (!).
Os novos donos decidiram atender ao pedido e o quarto sobrevive do jeito que o encontraram.
Esses exemplos ilustrativos nos fazem concordar com a observação de Ariès (1981) de
que o declínio do culto público dos mortos não implicou de forma nenhuma em indiferença. O
pesar continua, porém assumiu um caráter absolutamente íntimo, pessoal e discreto. O culto
do morto deslizou do cemitério (lugar público) para o cultivo privado das lembranças em
casa, onde alguns seguem inconsoláveis, e a veneração aos objetos do morto tornados agora
seus signos beira à “mumificação” (GORER, 1967, p. 85).
Observa-se ainda que a tradicional devoção aos imponentes monumentos pétreos
erguidos no lugar onde repousava o corpo deslocou-se para os pequenos tributos, pequenos
mementos intimistas carregados para todo lado. Assim fez também Freud que carregava um
minúsculo medalhão que trazia preso à corrente de seu relógio em homenagem à filha Sophie.
Ele o mostrou à poeta imagista Hilda Doolittle, “ela está aqui”, disse-lhe em 1933, 13 anos
após a sua morte (GAY, 1989, p. 360).
A tendência aos pequenos tributos intimistas e de caráter fetichista não poderia passar
despercebida ao selvagem mundo capitalista que logo viu nisso uma oportunidade rentável.
Para ilustrar, citamos uma empresa27 norte-americana – “LifeGem – ashes to diamonds” –
cujo site promete, pasmem, transformar as cinzas ou mechas de cabelo de um ser querido em
diamantes. Em sua página virtual lê-se: “Um autêntico diamante criado das cinzas do ser
amado como um memorial a sua vida única e maravilhosa” [An authentic diamond created
from the ashes of your loved one as a memorial to their unique & wonderful life]. Há ainda
toda uma linha de “cremation jewelry” disponíveis para aqueles clientes que necessitam mais
do que “simples palavras” para lembrar o amado perdido: “Você teve alguém realmente
especial em sua vida e meras palavras simplesmente não bastam” [You have had someone
truly special in your life and mere words simply will not do]. Essa relíquia de ar macabro
promete salvar um pequeno pedaço do morto da aniquilação com o plus de ser transformado
26
“Quarto de soldado francês da primeira guerra mundial está preservado há quase 100 anos”. O Globo em 20 de
outubro de 2014. Fonte: http://oglobo.globo.com/mundo/quarto-de-soldado-frances-da-primeira-guerra-mundialesta-preservado-ha-quase-cem-anos-14271402. Acesso em: 20/02/2015.
27
Cf.: http://www.lifegem.com/ Acesso em: 15/03/2015, tradução nossa.
61
em uma joia durável – “Diamonds are forever” – que pode ser carregada para todo lado por
aqueles que o amaram. Tudo isso está à disposição a partir de US$ 2,999.
Essa consistência imaginária dada ao morto se tornou hoje um fato sistemático e
corriqueiro, tanto mais contundente quando esse outro é o filho. No ocidente, à medida que as
preocupações com a própria morte se deslocaram para a morte do outro e as taxas de
fecundidade e de mortalidade diminuíram, a morte de um filho tornou-se um acontecimento
excepcional vindo a se constituir, no século XX na perda maior: “O mais angustiante e mais
longo de todos os pesares, parece ser a perda de um filho crescido. Em tal caso parece ser
realmente verdadeiro, e não apenas uma figura de linguagem, que essa perda os pais nunca
conseguem superar” (GORER, 1967, p. 121).
Há hoje uma preocupação crescente, por parte dos pais, em relação ao destino a ser
dado aos corpos dos filhos não nascidos. Eles reivindicam o direito de que seus “anjinhos”
tenham sepultura. Atentos a essa demanda, em janeiro de 2012, foi inaugurado em Roma, no
cemitério Laurentino, uma ala dedicada aos bebês não nascidos (em decorrência de abortos
espontâneos ou terapêuticos). Até onde sabemos, é o primeiro na história do ocidente cristão.
O “Jardim de los Angeles” visa, segundo informaram as autoridades à imprensa, a atender ao
apelo de inúmeras mães e não interfere na lei do aborto que permite a interrupção da gravidez
antes dos 90 dias: “A ideia do ‘Jardim de Los Angeles’ é dar uma resposta aos pedidos
daqueles que com a sepultura de seu filho tentam restituir o valor desse feto, o qual, de outra
maneira, seria considerado um resíduo hospitalar”28.
Por séculos, a morte de criança foi tratada como um acontecimento socialmente
banalizado em decorrência da alta mortalidade infantil, o que não implica dizer que, do ponto
de vista dos pais, não fosse um acontecimento doloroso. Em um tratado consolatório do
século I d.C., Plutarco exorta sua esposa a se conter no luto da filhinha morta aos dois anos de
idade. “Carta de consolação à sua mulher”29 se inscreve em consonância com os ideais
plutarqueanos de moderação diante das emoções, prazer ou sofrimento. Plutarco recomenda
que os funerais da filha sejam exíguos, sem quaisquer cuidados extremados. Ou seja, nada de
excessos, nem no luto.
Somente, minha querida esposa, tanto eu quanto tu mesma no
sofrimento permaneceremos calmos. Eu mesmo sei e delimito qual a
extensão da circunstância, mas se eu te encontrar suportando com
28
Fonte: http://g1.globo.com/mundo/noticia/2012/01/cemiterio-para-fetos-e-inaugurado-na-capital-italiana.html .
Acesso em: 22/08/2013.
29
“Carta de consolação à sua mulher” faz parte do conjunto nomeado “Moralia”. Em decorrência da falta de uma
tradução estabelecida da obra em Português consultamos uma versão traduzida por Mariana Duarte Silveira e
que integra a sua Dissertação de Mestrado defendida na Universidade de São Paulo em 2006.
62
excessiva dificuldade a dor, isto perturbará muito mais a mim do que
o que passou (PLUTARCO apud SILVEIRA, 2006, p. 97).
A carta prossegue elogiando a conduta irrepreensível da esposa por quando da morte
de dois outros filhos do casal a fim de consolá-la, mas, principalmente, para encorajá-la a se
manter novamente discreta, firme e exemplar no luto ainda que esta filha ocupasse um lugar
privilegiado no coração dos pais: “[...] nascida a filha ansiada por ti, depois de quatro filhos,
apresentou-se a mim o pretexto de colocar-lhe o seu nome” (PLUTARCO apud SILVEIRA,
2006, p. 97). Assim ficamos sabendo que o nome da pequena que acabara de morrer sem
casamento e sem filhos prestava uma homenagem à mãe, Timoxena.
Fiel aos costumes e leis ancestrais, Plutarco lembra à esposa que não se recomendam
funerais e nem culto à memória das crianças pequenas,
Pois, entre nós não se faz libações às crianças que morrem, nem se
sacrifica a elas como é natural que outros façam para os que morrem,
pois as crianças não pertencem à terra, nem a nada que lhe diga
respeito. Não se frequenta os enterros, as tumbas, não se permanece
no velório do cadáver e nem se senta ao lado dos corpos. Pois as leis
não permitem lamentar os que são jovens, porque é ímpio lamentar os
que mudaram em direção a um lote ou terra melhor ou mais sagrado
(PLUTARCO apud SILVEIRA, 2006, p. 104-5).
Essa atitude moderada diante das mortes prematuras não era unânime entre os gregos
como veremos mais adiante. Ambas as atitudes co-existiam, embora de modo geral, nas
sociedades gregas, a homenagem prestada aos mortos precoces ocorresse como recomenda
Plutarco, de modo muito mais discreto quando comparada aos dias atuais. No ocidente
cristão, durante séculos perdurou também uma negligência para com as mortes prematuras
cujos corpos, conforme Ariès (1981), eram também abandonados anonimamente nos entornos
sagrados da igreja. Uma atitude completamente diferente é encontrada no século XIX. Esses
pequenos seres, por tanto tempo negligenciados, tornaram-se verdadeiros objetos de culto
como se fossem personagens ilustres. Ariès (1981, p. 584) nos faz saber que por essa época,
nos cemitérios franceses (mas não só), se disseminaram os túmulos de crianças e adolescentes
ornados com as mais belas homenagens. Estátuas-retratos que reproduzem em tamanho
realista esses anjinhos dando-nos a comovente ou aterradora, depende do ponto de vista,
“ilusão de sua presença”.
Esse deslocamento que, em pouco mais de um século, passou da morte dos pais para a
do filho é um dos mais notáveis traços do luto moderno, segundo observou Allouch (2004).
Basta lembrar que Freud, na virada do século XIX para o XX, considerava a morte do pai o
acontecimento mais importante da vida de um homem:
63
Pois este livro [A interpretação dos sonhos] tem para mim,
pessoalmente, outra importância subjetiva – uma importância que só
apreendi após tê-lo concluído. Ele foi, como verifiquei, parte de minha
própria autoanálise, minha reação à morte de meu pai – isto é, ao
evento mais importante, à perda mais pungente da vida de um homem
(FREUD, 1900/1987, p. 32).
Não sabemos se Freud continuou com essa mesma opinião após perder sua filha
Sophie ou o neto Heinele em 1923. Sabemos apenas que a perda dessa criança querida o
deixou inconsolável, conforme escreveu, três anos depois, para Ludwig Binswanger quando
esse lhe avisou da morte de seu filho de oito anos. Freud rememorou nessa carta as suas
perdas recentes, principalmente a morte inesperada de sua “querida Sophie em flor” aos 27
anos de idade (apud GAY, 1989, p. 360): “Mas esta [morte] eu suportei admiravelmente bem.
Era o ano de 1920, estava-se esgotado pela miséria da guerra, preparado durante anos para ter
a noticia de que se perdera um ou até três filhos. Assim, a resignação ao destino estava pronta
[...]” (FREUD apud GAY, 1989, p. 386). Mas a morte de Heinele teve um profundo impacto
sobre Freud, pois essa criança lhe representava o conjunto de seus descendentes, ou seja:
todos os meus filhos e os outros netos, e desde então, desde a morte de
Heinele, não me interesso mais por meus netos, e também não tenho
mais prazer na vida. Este também é o segredo de minha indiferença –
as pessoas chamam de coragem – em relação ao perigo para a minha
própria vida [referia-se a gravidade de sua doença] (FREUD apud
GAY, 1989, p. 386).
No passado, a perda do filho era apaziguada pelas crenças religiosas que recobriam de
sentido a sua morte. Na Bahia do século XIX, por exemplo, Reis (1991) observou que as
crianças pequenas eram vestidas de trajes festivos em referência às celebrações religiosas de
modo que suas mortes não eram tratadas de modo tão grave quanto hoje. Sua inocência as
transformava em anjos logo ao morrerem, o que lhes garantiam um bom lugar no céu, essa
certeza trazia provável consolo às famílias. Segundo Allouch (2004, p. 351) foi quando
ocorreu o declínio dessas crenças que a morte do filho assumiu esse lugar singular:
Terá, pois, sido preciso a morte de Deus, proclamada por Nietzsche,
terá sido preciso que Deus fosse pelo homem destituído da
contabilidade. Enquanto Ele mantinha as contas – contas de que Sua
transcendência nos deixava essencialmente incapazes de saber o que
quer que seja –, o luto podia ser bem mais regrado: a morte do filho
tinha, por certo, um lugar singular, como ainda tem, no México, em “a
arte ritual da morte criança”, mas esse próprio lugar deixava-se, para
acabar, absorver no jogo do pecado e de seu perdão, no grande jogo
do inconhecível juízo de Deus.
As crenças escatológicas oficiais garantiam ao morto um lugar onde ele continuaria a
existir e os vivos poderiam enviar-lhes oferendas (os sufrágios) públicas e privadas (orações,
64
velas...). Essas crenças assim como os ritos permitiam que a relação com os mortos
prosseguisse à revelia do seu desaparecimento físico. Ou seja, a morte era a entrada para uma
segunda existência e não implicava, como hoje, em uma separação definitiva.
2.3 Luto prescrito
Em um caso atendido, L. buscou atendimento quando seu irmão morreu de infarto
fulminante. L. solicitava “orientação psicológica” para lidar com a mãe que se encontrava
profundamente pesarosa em decorrência da perda recente do filho: “Não era para ela estar
assim, ela está tomando antidepressivo há cerca de dois anos, desde que meu pai morreu...”.
Em vão, L. buscava um tratamento “antiluto” suplementar, já que o antidepressivo não estava
surtindo o efeito esperado e temia que se a mãe “se entregasse à tristeza, o que acabaria
agravando seu estado de saúde delicado”.
Observamos, no campo social, um movimento basculante do luto entre proscrição e
prescrição em que, seja em um caso ou outro, o enlutado jaz silenciado, falado por outros
(saberes) detentores de sua verdade, conforme lembra Lacan (1954/2008, p. 61), “quando um
homem esquece que é portador da fala, ele não fala [...] quando o homem já não fala, ele é
falado”, essa fala amordaçada tende a se traduzir em sintomas ou ainda em fenômenos do
luto. Não há mais pessoas disponíveis com quem falar do único assunto que lhe interessa, o
morto. Dunker (2013) sublinhou essa “desaparecência” no presente, esse “enterro da
linguagem” quando não há mais interessados em escutar o que se passou. É compreensível
nesse contexto de emudecimento e solidão o sucesso alcançado pelo diagnóstico sindrômico
generalizado e pelos antidepressivos que tendem a uniformizar e reduzir o sofrimento a
processos neuroquímicos.
“A arte de narrar”, observou Benjamim (1936/2012, p. 213), “está em vias de
extinção”. Está cada vez mais difícil encontrar bons narradores e bons ouvintes. A partir do
século XX, a faculdade de intercambiar as experiências entrou em declínio.
Quem encontra ainda pessoas que saibam narrar algo direito? Que
moribundos dizem hoje palavras tão duráveis que possam ser
transmitidas como um anel, de geração em geração? Quem é ajudado,
hoje, por um provérbio oportuno? Quem tentará, sequer, lidar com a
juventude invocando suas experiências? (BENJAMIM, 1936/2012, p.
123).
O autor notou o quanto os combatentes da Primeira Guerra voltaram silenciosos. Nada
de grandes narrativas ou poemas épicos, eles voltaram “mais pobres em experiências
65
comunicáveis, e não mais ricos” (BENJAMIM, 1936/2012, p. 124). Para Rosa (2015), a
apatia e o emudecimento que se observa hoje diante de situações traumáticas se relacionam
com a desproteção social. O desamparo discursivo é efeito de um desamparo social. Nessa
direção, Alencar (2011) analisou o drama das mães cujos filhos moradores das periferias são
brutal e anonimamente assassinados. Ameaçadas e silenciadas algumas dessas mulheres
acabam em unidades de saúde mental onde, em geral, recebem diagnósticos psiquiátricos.
Flor, um caso atendido pela autora, saiu de uma consulta com o diagnóstico de “depressão” e
a prescrição de um antidepressivo. Porém, foi por esse viés torto que ela pôde obter algum
reconhecimento do sofrimento que a consumia desde a morte violenta do filho e, a partir daí,
encontrar um espaço de fala, escuta e assim recompor uma via de expressão do luto em sua
comunidade.
Manifestamos aqui nosso lamento em relação à última versão do Manual de
Diagnóstico e Estatística dos Transtornos Mentais (DSM-5) (lançado em 2013) que tornou o
luto, a partir de agora, “oficialmente medicalizado”. Até o DSM-IV (1994/2000), este
figurava como um critério de exclusão para o diagnóstico de Episódio Depressivo Maior
aplicado a sintomas depressivos que tiveram início dentro de dois meses após a perda de um
ser querido. Após esse curto período, persistindo os sintomas, o diagnóstico de Episódio
Depressivo poderia ser aplicado e o enlutado medicalizado.
O tempo estipulado para o luto já era polêmico, pois desconsiderava completamente o
tempo do sujeito, tempo subjetivo. Entretanto, o DSM-5 conseguiu agravar essa condição
retirando o luto do critério de exceção e diminuindo o tempo para duas semanas, ou seja,
aquele que estiver de luto por um período em torno de 15 dias pode entrar para a estatística –
já bastante inflada – dos transtornos depressivos. Em substituição à regra, duas notas foram
acrescentadas “para ajudar os clínicos a fazer uma distinção crítica entre os sintomas
característicos do luto e aqueles de um episódio depressivo” (AMERICAN PSYCHIATRY
ASSOCIATION, 2013). Ou seja, cabe ao profissional médico decidir sobre os limites
delicados de uma condição ou outra; e na dúvida é melhor prevenir, isto é, medicalizar.
A ampliação dos diagnósticos do DSM-5 gerou protestos no mundo inteiro, mas ao
que parece isso não afetou a visão de David Kupfer, coordenador do grupo que revisou o novo
Manual. Em entrevista à Revista Veja30, Kupfer sustentou que o DSM-5, “é o melhor que
30
“O DSM-5 é o melhor que temos para diagnosticar os transtornos mentais”. Veja em 12 de maio de 2013.
Fonte:
http://veja.abril.com.br/noticia/saude/o-dsm-5-e-o-melhor-que-temos-para-diagnosticar-os-transtornosmentais. Acesso em 15/08/2013.
66
temos para diagnosticar os transtornos mentais". Quando questionado sobre a polêmica
relacionada ao luto, ele declarou:
Revista Veja – Há muitas críticas em relação ao fato de o DSM-5 ter
excluído a regra que elimina o luto dos sintomas da depressão. Por
que a APA [American Psychiatry Association] tomou essa decisão?
David Kupfer – Remover a exclusão do luto ajuda a prevenir que a
depressão deixe de ser diagnosticada em certos pacientes, e facilita
que eles recebam tratamento adequado. Embora o processo de luto
seja natural e único para cada indivíduo, e apesar de compartilhar
algumas características da depressão, como tristeza intensa e
desinteresse em atividades habituais, luto e depressão também são
bastante diferentes em aspectos importantes. Por isso, o DSM-5 vai
substituir a regra por duas notas, uma que alerta os médicos para que
tentem diferenciar um luto normal do diagnóstico de uma doença
mental e uma outra mensagem lembrando os psiquiatras que a
depressão e o luto podem coexistir.
Em suma, no novo critério, embalado pelo sonho do diagnóstico total e sem falhas, o
luto sucumbiu ao espectro depressivo, e deduz-se no final que o “tratamento adequado”, de
modo geral, é sempre de cunho psicofarmacológico. Como o DSM se propõe ateórico,
nenhuma palavra quanto às questões subjetivas que uma perda põe em jogo, nem sobre o
trabalho elaborativo simbólico implicado, muito menos sobre o entorno social e sua
importância para o luto.
Há uma questão a se observar em relação ao silenciamento da comunidade. Não
consideramos que se trata só de indiferença, mas de um nítido desconforto que sentimos hoje
diante daqueles que estão morrendo e enlutados, um desconforto diante de tudo que se refere
à morte. Norbert Elias (2001) já havia notado as consequências da falta das convenções e ritos
de outrora que nos forneciam as palavras e os gestos que permitiam expressar fortes emoções
dentro de um certo enquadramento. Hoje falta a espontaneidade e o número de palavras para
essas ocasiões é relativamente pequeno, além disso a maioria das pessoas se sente
constrangida em usar as fórmulas convencionais por considerá-las superficiais e
ultrapassadas: “É especialmente a geração mais jovem que, mais que em séculos anteriores,
fica entregue a seus próprios recursos, a sua própria capacidade de invenção individual, na
procura de gestos e palavras certas para os sentimentos” (p. 32).
Consideramos ser essa a razão pela qual tem crescido a doação de livros (no estilo
“literatura de consolação”) às pessoas que se encontram de luto. A maior parte desse material
é de cunho religioso, principalmente Espírita. Ouvimos de alguns enlutados a queixa do
quanto se sentem constrangidos ao receber esse tipo de material principalmente quando não
professaam nenhuma crença de cunho espiritual ou religioso.
67
Com o advento da internet, houve a proliferação de sites dedicados à orientação e/ou
consolo dos enlutados. Em nossa pesquisa, localizamos alguns guias31 que orientam a conduta
em situação de luto. “Ocupe-se” [keep busy] é a recomendação dada por um deles às mães por
ocasião da perda de um filho: “encontre alguma coisa para preencher as horas vazias – um
emprego, trabalho voluntário, redecoração, qualquer coisa que force você a manter-se
ocupada”32. Em outro site33, o guia em formato pergunta-resposta se propõe a orientar os pais
basicamente sobre as questões práticas relacionadas aos funerais. Uma questão proposta é a
seguinte: “O que fazer se meu filho quiser ir ao velório ou funeral?”
Resposta:
Esta é uma decisão para você tomar: pode ser muito saudável para
uma criança assistir ao velório e funerais se ela é emocionalmente
madura para isso, e se ela tem o apoio de vocês, de outros adultos de
confiança ou amigos. Velórios e enterros são lugares em que todos nós
choramos juntos e começamos a nos curar. Se o seu filho nunca foi a
um velório ou funeral, você pode ajudar a prepará-lo, dizendo-lhe o
que ele pode ver ou ouvir. Se houver um caixão aberto, você precisa
prepará-lo para o fato de que ele vai ver a pessoa e que ela pode
parecer diferente. Você também pode falar sobre a experiência quando
voltar para casa34
Saberes e profissionais proliferam no lugar deixado vazio pela crenças e ritos
sagrados. Quem no século XIX consultaria estranhos ou manuais para saber se as crianças
deveriam ou não participar dos funerais de um familiar? No século XXI, o guia supracitado
recomenda a participação infantil como algo “muito saudável” desde que a criança atinja o
critério “emocionalmente madura”. Como é possível adivinhar antecipadamente o efeito de
uma perda se “o grande drama que abre o processo de luto é que não sabemos de saída o que
foi perdido?” (DUNKER, 2013).
No próprio campo psicanalítico, um termo da psicanálise, “trabalho de luto” acabou
assumindo um valor normatizante. Allouch (2004, p. 46) identificou o uso abusivo do termo,
dentro e fora do campo psicanalítico, elevado por alguns à categoria de regra a ser prescrita
31
Até onde foi possível pesquisar não encontramos guias ou manuais de origem brasileira. Em nosso meio
predominam materiais breves de cunho religioso ou informal. Os guias localizados são oriundos dos Estados
Unidos e a maioria se propõe a orientar os pais. Dois deles pertencem ao National Institute of Health/NIH
[Instituto Nacional de Saúde]: “Coping with Grief and Loss: Understanding the Grieving Process”
[http://www.helpguide.org/mental/grief_loss.htm]
e
“Talking
to
Children
about
Death”
[www.cc.nih.gov/ccc/patient.../pepubs/childeath.pdf]. Acesso em: 20/01/2014.
32
“A Special Child in the Family: death and Bereavement”. Fonte: http://www.specialchild.co.uk/death.htm.
Acesso em 20/01/2014.
33
“Talking
to
children
about
death:
a
brief
guide
for
parents”.
Fonte:
http://www.d21.k12.il.us/pdf_general/supportservices/parentguidetalkingchilddeath.pdf. Acesso em: 20/01/2014.
34
Fonte:
“Talking
to
children
about
death:
a
brief
guide
for
parents”.
Fonte:
http://www.d21.k12.il.us/pdf_general/supportservices/parentguidetalkingchilddeath.pdf. Acesso em: 20/01/2014.
68
em caso de luto como se fosse um medicamento: “Chegou-se mesmo, em nome dessa dita
‘necessidade’ do trabalho de luto, até dar como sugestão fazer chorar a criança enlutada. Mas
como?”. O autor recolheu da obra La pathologie du deuil do psiquiatra e psicanalista francês
Michel Hanus (1993, p. 46) a espantosa resposta:
[...] mostrando-lhe o que ela perdeu, ainda que isso pareça cruel, ainda
que ela recuse [...] faça chorar as crianças que querem ignorar que
sofrem, é o mais caridoso serviço a lhes prestar.
O autor alerta para os perigos de uma derrapagem em uma “psicanálise selvagem” em
nome do luto “conforme a norma”:
O que se vai mostrar à criança como sendo o que ela perdeu? Um
cadáver? Mas não, não foi que ela perdeu! Uma foto do morto? Mas a
foto está bem ali! O amor? O ódio? O desprezo? Mas de quem seriam
essas palavras que diriam esse amor, esse ódio, esse desprezo? De
mais a mais, a criança perdeu um amante ou um amado, um odiante
ou um odiado, um desprezante ou um desprezado? E, sobretudo, o que
sabemos disso? Pois o ponto está aí: cremos saber o que a criança
perdeu, em todo caso o pretendemos, e essa pretensão, além de causar
um curto-circuito no que lhe cabe dizer, continua a ser, de ponta à
outra, abusiva (ALLOUCH, 2004, p. 47).
Se o enlutado encontra-se silencioso e silenciado, não faltam as injunções
superegóicas a ditar-lhe o melhor comportamento para essa situação: “Ocupe-se!”,
“medicalize-se!”, “veja o que você perdeu!”, “chore!”, “faça seu trabalho de luto!” e, a frase
de efeito do momento, “ainda? a fila anda!” Injunções externas ao sujeito cujo efeito é o de
inibir sua fala, impedir a construção daquilo que ele, a seu tempo, tem a dizer sobre a sua
perda.
69
3. A MORTE REDESCOBERTA
A partir dos anos 60, após algumas décadas de silêncio, um duplo movimento
contraditório se manifestou em relação à morte: o triunfo de sua interdição que se estendeu a
tudo o que se lhe assemelha; e, em paralelo, o intenso movimento oposto de redescoberta da
morte (VOVELLE, 1999).
Freud já havia assinalado que a cada vez que uma interdição violenta se instaura sobre
um determinado conteúdo, em resposta produzem-se formações reativas, a princípio
clandestinas, daquilo que foi impedido de se expressar abertamente. Entendemos que a
proliferação de discursos acerca da morte (e dos mortos) e do luto na atualidade é produto do
asselvajamento da morte cujo traço maior é a sua dessocialização.
Nesse capítulo veremos que o reinvestimento da morte proliferou em diversas
direções: há uma intensa produção de discursos acerca da morte e do luto, assim como o
surgimento de novas escatologias e ainda as produções culturais em que os novos avatares do
Além-túmulo assombram os vivos em revistas em quadrinhos, livros, filmes e games.
3.1 Saindo da clandestinidade: a morte em discurso
Já vai longe o tempo em que, nos anos 50, Geoffrey Gorer (1967, p. 199) lançou o
apelo de que se deveria devolver à morte (morte natural) a sua publicidade:
Se desgostamos da moderna pornografia da morte, então devemos
devolver à morte – morte natural – sua exibição e publicidade,
readmitir o pesar e o luto. Se tornamos a morte algo inominável nas
sociedades educadas [polite society] – “não na frente das crianças” –
nós quase que asseguramos a continuação do “horror cômico”.
Nenhuma censura jamais foi eficaz. [tradução nossa].
Se a morte foi rechaçada dos espaços públicos de forma selvagem, a partir da década
de 70, sintomaticamente ela se tornou objeto de intensas pesquisas, publicações, dissertações
e teses acadêmicas, congressos e debates nos meios de comunicação; invadiu as disciplinas de
graduação e pós-graduação das universidades, laboratórios de pesquisa, sites da internet;
tornou-se tema de debates éticos e ainda impulsionou o surgimento de novas identidades
profissionais: “Expulsa da sociedade, a morte volta pela janela: volta tão depressa como
desaparecera” (ARIÈS, 1981, p. 613).
A grande novidade desse retorno foi que dessa vez não foi apenas clandestino, mas
pela via do discurso oficial de um coro de especialistas: antropólogos, historiadores,
70
sociólogos, médicos, psicólogos aderem ao movimento de reinvestimento da morte. Desse
movimento nasceu o profissional tanatólogo. No Brasil, Maria Julia Kovács, professora e
pesquisadora da Universidade de São Paulo (USP), é considerada uma das pioneiras; muitos
estudantes e profissionais passaram a ter conhecimento da área a partir de seus livros e
seminários. Ela coordena atualmente o Laboratório de Estudos Sobre a Morte (LEM-USP).
Essa proliferação de vozes gerou a necessidade de se repensar os cuidados quanto à
terminalidade da vida e do luto. Vovelle (1999) observou esse interesse marcadamente
voltado para o “sobrevivente”, seja ele o agonizante ou o enlutado. Tanto uma preocupação
quanto outra surge da necessidade de se romper a selvageria em torno da morte e “rehumanizar” os cuidados. Elizabeth Kubler-Ross (1926-2004) e Cicely Saunders (1918-2005)
são as pioneiras desse movimento. Se a primeira inovou ao dar voz aos agonizantes para
retirá-los do anonimato e abandono, a segunda propôs uma maneira digna de tratá-los.
Cecily Saunders fundou em Londres, em 1967, o St. Christopher´s Hospice, um
serviço provedor de cuidado integral aos agonizantes que deu origem ao movimento hospice35
mundial cujos princípios éticos inspiraram as diretrizes de Cuidados Paliativos da
Organização Mundial de Saúde (De MELO, A.G.C; FIGUEIREDO, M.T.A., 2006). Do
movimento Hospice nasceu o profissional paliativista. No Brasil, o médico Marco Túlio de
Assis Figueiredo é reconhecido pelo pioneirismo na luta em favor de uma cultura de Cuidados
Paliativos. Ele organizou e chefiou durante anos o Ambulatório de Cuidados Paliativos da
Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e foi o sócio-fundador da International
Association for Hospice and Paliative Care (Houston, USA). Enquanto escrevíamos esse
capítulo, foi com emoção que recebemos a notícia de sua morte, aos 88 anos, em fevereiro de
2013.
Inevitavelmente cresceram os debates em torno de dilemas éticos do fim da vida. Entre
esses, encontra-se a prática da distanásia, a obstinação terapêutica por salvar e que leva muitas
vezes a se prolongar desnecessariamente, não a vida, mas a morte. Outros termos, tais como
“eutanásia”, “ortotanásia”, “suicídio assistido”, “testamento vital” entraram para o
vocabulário popular, e têm provocado debates acirrados e movimentos no sentido de se mudar
leis. Em tempos em que a vida (artificialmente mantida) se tornou “crônica”, como escreveu
Paulo Leminski, e que as vontades expressas esbarram em questões legais, religiosas ou
morais, a interrupção da vida pode ser decidida clandestinamente pela equipe médica com ou
35
Hospice: do latim hospes [hóspede], palavra da qual deriva os termos hospedagem, hospedaria, hospício,
hospital, hospitalidade etc. (CUNHA, 2010).
71
sem o assentimento de familiares36. As siglas SPP (se parar parou), DNR (do not
ressuscitate/não ressuscitar) e NTBR (not to be ressuscitated/não ser ressuscitado) antecipam
as siglas R.I.P. Clandestinas, pelo menos em nosso meio, elas pairam sussurradas junto
àqueles que repousam [requiescat], mas que ainda não descansam em paz [in pace].
Do lado do enlutado, observamos do mesmo modo uma extensa produção
bibliográfica37 e o surgimento de “terapeutas do luto” [Loss or Grief Therapist, Grief
counselor], o psiquiatra britânico Colin M. Parkes38 está entre os mais conhecidos. Quando a
atriz global, Cissa Guimarães, perdeu abruptamente seu filho em 2010, ela recorreu à terapia
do luto para ajudá-la. Segundo declarou à imprensa, a terapia foi “fundamental para que eu
conseguisse sobreviver à maior dor de um ser humano"39.
No século XX, o luto psicológico recobriu o luto social (ALLOUCH, 2004). Os
profissionais (especialistas do luto, psicanalistas, psiquiatras...) são invocados desde o
momento em que o luto se desritualizou e a sociedade se demitiu de sua participação solidária
e canalizadora do pesar. O aumento da demanda por tratamento psicológico ou mesmo
farmacológico em situação de luto é paralela à sua dessocialização.
E a participação do campo psicanalítico no movimento de reinvestimento da morte?
Com algumas exceções (John Bowlby, por exemplo), foi apenas recentemente que o luto se
tornou foco de publicações e debates. Este estranho mutismo gerou críticas contundentes de
Gorer (1967), Philippe Ariès (1981), Michel Vovelle (1999), entre outros: “salvo algumas
exceções, os psicanalistas não aderiram à iniciativa corrente de reinvestimento da morte, pior,
parecem ter-se prudentemente mantido à parte” (VOVELLE, 1999, p. 82).
Dentro da Escola Lacaniana, a obra Erótica do Luto no tempo da morte seca
(publicada originalmente em 1995) de Jean Allouch é, até onde sabemos, pioneira em
reproblematizar o luto na clínica psicanalítica, incluindo nessa análise os debates referentes às
36
Avanços nesse sentido podem ser observados na resolução do Conselho Federal de Medicina (nº 1.995/2012)
publicada no D.O.U. (em 31/8/2012) que dispõe sobre as diretivas antecipadas de vontades manifestadas pelo
paciente sobre cuidados e tratamentos que quer, ou não, receber no momento em que estiver incapacitado de
expressar, livre e autonomamente, sua vontade.
Fonte:
http://portal.cfm.org.br/index.php?option=com_content&view=article&id=23197:pacientes-poderaoregistrar-em-prontuario. Acesso em: 20/4/2013.
37
A título de curiosidade, investigou-se na biblioteca eletrônica do Scielo (Scientific Electronic Library Online)
as publicações usando como palavras-chave “morte” OR “luto” OR “trabalho de luto” (publicadas em idioma
português, coleções no Brasil). Foram localizados 2.144 artigos no período 1980-2013, destes 1.889 foram
publicados entre 2000-2013!
38
Colin Parkes trabalhou com John Bowlby na Tavistock Institute of Human Relations (Londres) e com Cicely
Saunders no St. Christopher's Hospice onde fundou um serviço de atendimento para luto. Apesar da idade
avançada,
prossegue
como
consultor
em
situações
internacionais
trágicas.
Fonte:
http://en.wikipedia.org/wiki/Colin_Murray_Parkes. Acesso em: 20/4/2013.
39
Fonte: http://mulher.uol.com.br/comportamento/noticias/redacao/2011/06/09/entendi-melhor-a-morte-dizcissa-guimaraes-sobre-a-terapia-do-luto-entenda-o-tratamento.htm. Acesso em: 20/4/2013.
72
mudanças nas atitudes e representações coletivas da morte assim como as críticas
empreendidas por historiadores à visão psicanalítica de luto. Além disso, o autor
reconsiderou, a partir da psicanálise, a importância da função dos ritos e da participação de
um público no luto.
Em nosso Núcleo de Pesquisa, “Psicanálise e Política”, uma dissertação e uma tese,
cada uma a seu modo, abordaram as vicissitudes do luto no contemporâneo a partir de
circunstâncias em que este se encontrava impedido de ser legitimamente reconhecido no
campo social, campo simbólico. A dissertação de Sandra L. Berta (USP, 2007), O exílio:
vicissitudes do luto. Reflexões sobre o exílio político dos argentinos (1976-1983), aborda as
condições e modalidades de elaboração do luto em uma situação particular, o drama político
vivido pelos Argentinos durante a Ditadura Militar. O estudo realiza dois recortes específicos:
o do exilado político e o movimento, com repercussão internacional, conhecido como as
“Mães e Avós da Praça de Maio” [Madres y Abuelas de Plaza de Mayo].
A tese de Sandra Alencar, A experiência do luto em situação de violência: entre duas
mortes (PUC-SP, 2011), examina, a partir de um caso emblemático, o luto não reconhecido
e/ou não autorizado de mães e familiares de jovens assassinados anonimamente nas periferias
das grandes cidades. Ambos os trabalhos inovam ao reproblematizar o discurso e a prática
psicanalítica junto a experiências de trauma e de luto quando as condições elaborativas se
encontram obstruídas ou mesmo negadas por razões sócio-políticas e/ou econômicas
insustentáveis.
Por último, não poderíamos deixar de comentar nesse movimento o enorme sucesso
sociocultural alcançado pelo texto de Freud Luto e melancolia40, e junto com ele o termo
“trabalho de luto”. Adotado pela língua corrente e meios midiáticos, “trabalho de luto” virou
um chavão tão banalizado quanto o próprio termo “luto” que se tornou, como observou
Lussier (2007, p. 19), “um estado de base do funcionamento psíquico”, a partir principalmente
de teorias oriundas da escola inglesa.
Atualmente ouve-se falar de “luto” por qualquer coisa que o sujeito, ou outros, tomem
como sendo uma perda: do seio, da infância, da chupeta, de um exame de vestibular que se foi
reprovado, de um emprego perdido, de um brinquedo quebrado, de um ser próximo que
morreu, de um filho que saiu de casa, da mudança de cidade, de um casamento encerrado, de
um país que se abandonou etc. Assim todas essas perdas foram horizontalizadas e
40
Cf. um texto antigo de Gorer (1967) que já debate essa questão: “Current and recent theories of mourning and
the present material” publicado em apêndice no livro Death, Grief and mourning.
73
equacionadas: “Toda perda, toda renúncia, toda separação suscitaria um afeto de luto que
necessitaria um trabalho” (LUSSIER, 2007, p. 19).
O sucesso do termo “trabalho de luto” surpreende em razão dele ser tratado como se
fosse um conceito-chave muito bem estabelecido por Freud para tratar o luto. Para efeito de
ilustração, um dos livros do historiador Michel Vovelle (2010), por nós consultado, tem o
seguinte título: As almas do purgatório ou o trabalho de luto. O autor, após se familiarizar
com as críticas empreendidas por psicanalistas em relação ao uso abusivo do termo “trabalho
de luto”, fez uma pequena retificação em nota de rodapé inserida na introdução do livro:
Ao utilizar a expressão “trabalho de luto”, tal como é correntemente
empregada hoje nas ciências sociais por adoção do conceito elaborado
por Freud (Luto e melancolia, 1915) e retomado pela literatura
psicanalítica, não pretendemos nos engajar nas atuais controvérsias
levantadas por alguns autores da escola lacaniana a respeito da
pertinência mesma dessa noção (ver Allouch, 1995). Digamos que a
usamos como leigos por sua comodidade... (VOVELLE, 2010, p. 13).
Autores que se dedicaram a investigar exaustivamente a recorrência do termo em
Freud não localizaram registros de seu emprego nos textos que precedem e nem nos que
sucedem Luto e melancolia (ALLOUCH, 2004; LUSSIER, 2007). Além disso, não há
nenhuma evidência de que Freud tenha tido a intenção de torná-lo um “conceito” tal como
escreveu Vovelle. Segundo Allouch (2004, p. 122)
Trauerarbeit está presente em Luto e melancolia de modo integrado à
escrita desse texto; esse termo lá surge ao fio da pena, conforme o
processo de aglutinação de nomes que o alemão permite. A ideia
estava presente antes do termo, e numa frase muito natural, na
questão: ‘Em que consiste, pois, o trabalho realizado pelo luto?’
[Worin besteht num die Arbiet, welche die Trauer leistet?]. Foram,
principalmente certos alunos de Freud que, levando adiante o termo
Trauerarbeit, o promoveram como noção.
Trauerarbeit aparece apenas duas vezes de modo aglutinado na escrita de Freud; como
a aglutinação de palavras é uma recorrência bastante comum na língua alemã, não é possível
precisar se se trata da proposição inicial de um conceito não retomado por ele, ou de uma
ocorrência casual que mais tarde seus seguidores elevaram à condição de conceito
(ALLOUCH, 2004; LUSSIER, 2007). Além dessas duas apresentações aglutinadas,
localizamos mais duas em que Freud (1917/2010) usa “trabalho” e “luto” na mesma frase. Ou
seja, essa noção aparece ao total quatro vezes no texto e em toda a obra de Freud, até onde nos
foi possível investigar. A seguir as frases localizadas:
1. “Em que consiste o trabalho realizado pelo luto”? [die Arbeit...
trauer]
74
2. “Mas o fato é que, após a consumação do trabalho de luto
[trauerarbeit], o Eu fica novamente livre e desimpedido”.
3. No luto, vimos a inibição e a ausência de interesse explicadas
totalmente pelo trabalho de luto [trauerarbeit]...”.
4. “É tentador buscar, a partir dessa conjectura sobre o trabalho de
luto...” [die Arbeit... trauer].
(FREUD, 1917/2010, p. 173, 174, 175, 190).
Em livro dedicado à análise da fecundidade do termo “trabalho de luto”, Lussier
(2007) encontrou que uma das primeiras, ou talvez a primeira, aparições do termo no ciclo de
Viena se deu, em 1924, em um texto escrito por Karl Abraham, [“Breve estudo sobre o
desenvolvimento da libido, visto à luz das perturbações mentais”], que o usou entre aspas
sugerindo que o termo não era algo comum como se vê hoje. Em 1925, outro psicanalista do
ciclo de Viena, Karl Landauer, escreveu um artigo [“Equivalentes do luto”] e lá o usou apenas
uma vez, e não o tomou como um objeto a ser desenvolvido. Ferenczi nunca o usou. Assim, a
conclusão da autora é que essa expressão só muito posteriormente se propagou e se
transformou em um paradigma do luto em psicanálise.
3.2 As novas escatologias
Na atualidade chama bastante a atenção o rápido desenvolvimento das escatologias
que creem na reencarnação e comunicação com os mortos. Um movimento que ocorre em
paralelo, e também em reação, à onda de racionalismo e cientificismo tecnológico e seus
projetos de exorcizar os demônios e outras crenças no sobrenatural.
Nas últimas décadas do século XX, apareceram estudos sociológicos comentando o
impressionante regresso do universo religioso na vida social. Mas esse regresso tem
acontecido de modos variados, ele comporta “o admirável mundo novo de crenças, práticas e
estilos de vida que no ocidente proliferaram em grupos religiosos, pararreligiosos,
paracientíficos e filosóficos ou na simples privacidade e subjetividade de cada um”
(VILAÇA, 2008, p. 56). Cresceram significativamente as crenças “paraespíritas” (ARIÈS,
1981, p. 501) fruto do fértil imaginário popular e sua necessidade de repovoar os espaços com
seres encantados, espíritos benevolentes ou nem tanto. As crenças escatológicas folclóricas
(ou populares) e as teológicas sempre transitaram em paralelo e seguem rivalizando e também
se contaminando.
A força dessas crenças pode ser observada no enorme sucesso alcançado por livros e
filmes que abordam a comunicação com o Além. Fenômeno que se estendeu à
75
teledramaturgia brasileira41 cuja persistência do tema se deve à sua boa audiência, o que não
deixa de ser paradoxal em um país cuja população ainda se declara, em sua maioria, Católica
Romana. Segundo o IBGE (2010), o Espiritismo cresceu 65% nos últimos 10 anos, vindo a
ocupar o terceiro lugar em termos de religião42. Gilberto Freyre (2000, p. 209) já havia notado
que
o brasileiro é por excelência o povo da crença no sobrenatural: em
tudo o que nos rodeia sentimos o toque de influências estranhas; de
vez em quando os jornais revelam casos de aparições, malassombrados, encantamentos. Daí o sucesso em nosso meio do alto e
do baixo espiritismo.
No Brasil, as crenças “paraespíritas” compõem o imaginário popular, mesmo entre os
declaradamente cristãos ou aqueles que se declaram sem religião. DaMatta (1997, p. 132)
observou o quanto a morte é concebida, por aqui, como uma passagem para outro mundo em
uma metáfora de “subida ou descida” que implica, não uma partida definitiva para um mundo
Além, mas a possibilidade de se manter um intenso comércio com os mortos por meio de
múltiplos meios e instrumentos: “Avisos, presságios, sinais, acidentes, coincidências e,
sobretudo, sonhos e a mediunidade de certas pessoas são modos regulares pelos quais a
comunicação se dá”. Em todos os recantos do país se ouve histórias de almas penadas que
vêm pedir sufrágios para alcançarem descanso, e ainda os casos de amor entre vivos e mortos.
Esse rico imaginário associado com uma tendência ao sincretismo religioso favoreceu a
aceitação e rápido desenvolvimento do Espiritismo e outras crenças sobrenaturais em nosso
país.
Diferentemente do que aconteceu no Brasil, Ariès (1981) observou que as crenças
espíritas se desenvolveram com mais rapidez em países Protestantes do que em Católicos.
Uma das razões está associada ao fato de que o catolicismo acabou por preservar algum tipo
de troca de bens espirituais entre Terra, Céu e Purgatório. Neste sentido, o culto autorizado
das almas do Purgatório possibilitou a preservação no Além da relação terrena que se tinha
com eles e se constituiu, na concepção de Vovelle (2010), um excelente instrumento de
purgação e pacificação das relações com os mortos, uma devoção intensificada durante o
período em que as preocupações se voltaram para a morte do outro.
41
“A viagem”, “O profeta”, “Alma gêmea”, “Escrito nas estrelas”, “Páginas da vida”, “Mulheres apaixonadas”,
“Amor à vida”, “Alto astral”, para citar algumas.
42
De acordo com o censo 2010, o Catolicismo ainda é a religião que predomina no Brasil, apesar da proporção
de pessoas que se declararam católica ter caído de 73,8% (em 2000) para 64,6% (em 2010). Em contrapartida, os
Evangélicos, que correspondem ao segundo maior percentual, subiram para 22,2%. Em terceiro lugar, os
Espíritas.
Fonte:
http://ftp.ibge.gov.br/Censos/Censo_Demografico_2010/Caracteristicas_Gerais_Religiao/tab1_4.pdf.
Acesso em: 20/09/2013.
76
A retração das crenças em esquemas codificados do Além cristão (paraíso, inferno e
purgatório) deixou um vazio que as “escatologias de contrabando” (VOVELLE, 1999, p. 86)
tentam preencher. Essas religiões marginais abarcam crenças diversas: reencarnação,
comunicação com os mortos, experiências transcendentais e até comunicação com os
extraterrestres. O vazio é rapidamente ocupado por essas novas escatologias que buscam
“soluções substitutivas nas religiões orientais, ou que inventam soluções inéditas no vasto
campo do irracionalismo moderno – chegando aos extraterrestres ou aos universos cósmicos”
(VOVELLE, 1999, p. 311).
Diante desse vazio ficou mais difícil extrair conforto só de lembranças ou promessas
de reencontro no Além. No Brasil é notável que um luto aumenta o recurso às crenças que
pregam a possibilidade de um contato imediato com os desaparecidos; como não se encantar
com a ideia de que é possível conjurar hic et nunc os mortos, vê-los mais uma vez para trocar
afetos e mensagens de conforto ao modo do filme Ghost?
3.3 The “horror show”: O retorno dos mortos selvagens
Nas sociedades em que a morte se tornou tabu, o “horror show” é um modo furtivo e
também criativo de trazê-la de volta. Criaturas sanguinárias sobrenaturais de todas as ordens
encarnam os novos cavaleiros do Apocalipse. A violência explícita e gratuita é recebida com
excitação por um público ávido por consumi-la. Desde que o mais popular serial-killer-doAlém, Freddy Krueger, estreou na década de 80, sua imagem se tornou um dos mais bemsucedidos produtos do horror movie merchandise.
Quando a taxa de mortalidade por causa natural abrandou, outro tipo de morte passou
a ocupar um lugar de destaque nos noticiários e meios de entretenimento: a morte abrupta
decorrente de violência e acidentes (GORER, 1967). Uma completa inversão do modelo da
“boa morte” do passado, anunciada em que o morrente no leito tomava as suas providências.
Hoje a morte súbita passou a ser a mais almejada como se fosse um prêmio – “morreu como
um passarinho” como se diz.
A morte natural decaiu em pudor, cuidadosamente distanciada de nossos olhos e olfato
enquanto que a abrupta, resultado de violência, tem sido acolhida por um público bastante
receptivo. Filmes, livros, revistas em quadrinhos (no gênero detetivesco-suspense-terrorficção científica), games atraem uma legião de fãs cuja excitação oscila entre temor e
curiosidade. Uma nova modalidade de coabitação com o mundo dos mortos trouxe para as
ruas das cidades essas criaturas do Além em forma de camisetas, bonés, bonecos
77
colecionáveis, tatuagens [horror movie tattoos] e até brinquedos para crianças43. “Vivemos o
retorno dos mortos”, escreveu Vovelle (1999, p. 87),
Não tanto mais os mortos errantes da antiga religião popular folclórica
encerrados por um tempo – por séculos! – pelo gigantesco esforço de
aculturação da religião católica na prisão da expiação em tempo de
purgatório, mas sim um novo avatar, do qual é apaixonante seguir,
como me esforço por fazer, as traduções no imaginário coletivo, tal
como expressas nos filmes, na televisão ou nas histórias em
quadrinhos.
Mas será que eles, os mortos, realmente alguma vez se afastaram? A se considerar as
iconografias, a literatura e os filmes, as lendas produzidas pelo imaginário popular, a resposta
é definitivamente não! Eles nunca sumiram. Segundo Vovelle (2010), durante a Idade Média
os mortos vagavam soltos, sozinhos ou em grupo, nas proximidades dos vivos. Podiam
surpreender na curva da trilha, nas charnecas, nas encruzilhadas dos caminhos e ainda dentro
das casas...
Esses mortos, herdeiros das larvas44 das religiões da Antiguidade, são geralmente
descritos pelos folcloristas como reivindicativos e hostis, e o encontro é sempre temido.
Enquanto alguns, mais piedosos, têm negócios a resolver e solicitam aos vivos ajuda e
orações, outros são simplesmente agressivos, vingativos, assassinos. Para apaziguá-los ou
mantê-los à distância, uma multiplicidade de ritos e gestos mágicos foram erguidos para
emoldurar a antemorte (os chamados presságios), a agonia, a passagem, e principalmente a
pós-morte, incluindo aí a sepultura. Oferendas ou sufrágios são lançados nessa intenção.
Na leitura de Vovelle (2010, p. 34), a Igreja católica, em uma tentativa de domesticar
esses mortos insurgentes, inventou para eles o Purgatório, um lugar intermediário entre o
paraíso e o inferno. O dogma do purgatório restituía algo do imaginário popular que nunca
manteve os mortos tão longe assim; “bons ou maus, os mortos estão sempre aí, tanto no início
como no fim da Idade Média”. Haja vista que, em pleno surto do macabro, no século XV, a
iconografia é marcada pelo retorno de mortos hostis que atacam os vivos. Em uma ilustração
de uma página das Très riches heures du duc de Berry um exército de mortos surgidos do
cemitério ameaça atacar uma tropa de soldados apavorados:
43
Cf. “Zombies Plush Set“ da marca Gund ou as populares bonecas “Monster High” da Mattel.
Larva: Do latim lavae: espírito dos mortos insepultos ou que em vida foram maus (CUNHA, 2010). Lucius
Apuleio [125-180 d.C.] descreveu três tipos de espíritos da Antiguidade greco-romana: os Manes [Lares],
espíritos geralmente benevolentes desde que os ritos fúnebres fossem cumpridos; os Lemures [Lemuri], espíritos
da noite, hostis, vagavam nos cemitérios por não terem obtido o descanso póstumo, como é o caso dos
assassinos; e as Larvas [Larvae], espíritos maléficos, mas que podiam ser também brincalhões. Fonte:
http://www.mortesubita.org/espiritos-fantasmas/textos-fantasmas/fantasmas-na-grecia-e-roma-antiga.
Acesso
em: 5/6/2013.
44
78
Figura 5. L'Esercito furioso ou cortège fantastique des morts.
Les Très Riches Heures du duc de Berry, Musée de Chantilly45
Fonte: http://www.cairn.info/zen.php?ID_ARTICLE=ETHN_034_0611.
Em uma atmosfera noturna, há um cemitério atrás do qual despontam
um castelo e casas. No centro, em formação de batalha, o exército dos
mortos empunha foices, lanças e alabardas. Como se estivesse no
comando, temos a silhueta do cavaleiro da morte, vestido de
vermelho. Diante dessa aparição, uma tropa de homens de armas, bem
vivos, mas mortos de medo, debanda e recua desordenadamente
(VOVELLE, 2010, p. 34).
Logo se observa que os mortos nunca desapareceram do folclore popular e da
literatura. No século XIX, a literatura fantástica sempre lhes reservou um espaço privilegiado
e assim permanece até os nossos dias, de Edgar Alan Poe a José Saramago, sem falar das
Revistas em Quadrinhos (HQ) e da literatura Espírita com seus prolixos escritores fantasmas.
Ao analisar o universo HQ, Vovelle (1997) constatou que a religião participa apenas
de modo discreto. Enquanto Deus e o diabo obscurecem nessas histórias, a morte sim, “esta é
a senhora do jogo e ordenadora do mundo” (VOVELLE, 1997, p. 373). Em um universo
imaginário paranoide, a morte personificada em criaturas maléficas insaciáveis persegue os
vivos. Há o grupo dos espectros fantasmagóricos e o grupo dos intermediários (os mortosvivos), e ainda a legião de monstros, demônios e súcubos. Seres fantásticos que rementem
diretamente à morte, mas, repetimos, não à morte natural (tratada pela sociedade como tabu) e
45
Acesso em: 28/03/2014.
79
sim à morte que arrebata abruptamente suas vítimas. E quando a cena suscita angústia e
ameaça acabar com a brincadeira?
Um recurso eficaz recorrente é banalizar a morte, reduzi-la à condição de
acontecimento insignificante, gratuito, repetido à exaustão. Em cenários apocalípticos, os
corpos se acumulam como carcaças; desumanizados, eles não são merecedores de qualquer
sentimento de piedade e necessidade ritual. Além da banalização, o recurso ao macabro
pornográfico ajuda também a exorcizar a angústia, assim como a bizarrice joga a morte no
absurdo cômico: “Em uma sociedade que considera a morte um tabu, o meio mais simples de
superar a angústia talvez seja brincar com ela. Daí essa complacência com o sangue e com a
morte mais cruel” (VOVELLE, 1997, p. 385). Em vez de repugnância e arrepios, risos.
Já no fim da década de 80, Vovelle (1997) captou o sucesso em ascensão do grupo
dos mortos-vivos agressivos. No século XXI, eles retornam selváticos nas expressões
paranoides de um imaginário sem véus. Os vampiros e mais recentemente os zumbis vagam
soltos em HQ’s, livros, filmes, séries de TV e games. Esses sobreviventes dos lêmures, larvas
e lâmias da Antiguidade são retratados famintos, atacam suas vítimas e espalham o terror.
Ramos (2004, p. 157) observou que “todo monstro, desde as mais remotas mitologias, remete
o humano a seu retorno ao natural, como expressão traumática do reencontro com a natureza
negada” e sua função seria “restabelecer o recalque transformando o desejo de reconciliação
com a natureza em estranho fascínio pelo formidoloso, pela derformação” e diríamos pela
decomposição e putrefação do corpo, em última instância pelo retorno à nadificação, à morte
total e absoluta.
Os zumbis, nesse sentido, são exemplares. Essas criaturas hoje, mais do que nunca,
estão na moda assim como o temido “Apocalipse zumbi”. Nojentas e irracionais, elas são
movidas apenas por uma necessidade básica: a fome insaciável que os arranca das tumbas
para caçar humanos. A angústia da destruição em massa da época da guerra fria se deslocou
dos ataques de seres extraterrestres para os zumbis. Basta acompanhar os lançamentos: World
Z, Walking Dead, High School of the Dead, Resident Evil, The last of us etc. Nem o clássico
da literatura romântica de Jane Austen foi poupado, o livro Orgulho e Preconceito e Zumbis
acabou de ser adaptado para o cinema.
Puro pedaço de carne, esses monstros são apresentados no cúmulo da desumanização,
destituídos de qualquer “representação que possa significá-los como humanos” (RAMOS,
2004, p. 157). Já os vampiros costumam ser os mais “apresentáveis” na legião dos mortosvivos. Desde que Bram Stoker lançou no mercado uma versão elegante e passional do conde
que volta à vida para reivindicar sua amada, Drácula se tornou o “malvado favorito” dentre as
80
criaturas do Além, seu erotismo macabro é constantemente retocado por novas adaptações. O
que faz o vampire style ser tão sedutor?
Por se apresentar entre humano e o não humano, ele permite o desfrute amoral de ao
menos três elementos afrodisíacos: os poderes sobrenaturais, as ações maléficas e uma
sexualidade desmedida. Ingredientes que garantiram o sucesso das “Crônicas Vampirescas”
de Anne Rice e ainda de séries televisivas como “True Blood”. Na contramão, a saga
“Crepúsculo” renovou o interesse teen pelo vampiro centenário ao paramentá-lo com um ar
vitoriano nesses tempos com tendências a um discurso mais conservador. Na pele de um
romântico vampiro adolescente, Edward contraria sua linhagem ao manter sob recalque sua
ânsia por sangue e sexo.
Trata-se de “literatura de alienação ou fruto do imaginário coletivo?” indaga Vovelle
(1997, p. 386) sobre essas novas “mitologias de contrabando”. Ou, para além de matar o tédio
por 15 minutos, não seriam “também o reflexo de um modo de sentir coletivo?”. De fato,
concordamos com o autor que essas criaturas bizarras e derrisórias são produtos dessa época
que revestiu de interdições a morte cotidiana, bem como o luto, restringindo-os a um
procedimento silencioso, privativo, secreto.
Se, por um lado, este imaginário violento não serve para resolver os tabus que cercam
a morte e o luto, ao menos tem o mérito de imaginarizar de modo contundente a nossa
ambígua relação com os mortos (entre temor e anseio) e a tentativa sempre renovada de
ficarmos em paz com eles. Paul Ricoeur (2012, p. 8) traduziu de modo poético a
complexidade dessa relação:
A questão Que tipo de seres são os mortos? É tão insistente que
mesmo em sociedades secularizadas não sabemos o que fazer dos
mortos, isto é, dos cadáveres. Não os jogamos no lixo como dejetos
domésticos, que no entanto eles são fisicamente. [...] O lugar da
sepultura, entre os critérios de humanidade, ao lado da ferramenta, da
linguagem, da norma moral e social, atesta a antiguidade e
persistência deste fato certo [?]: não nos desfazemos dos mortos,
nunca nos livramos deles.
Se, no século XX, a morte e tudo que lhe diz respeito – os agonizantes, os enlutados,
os mortos – foi desritualizada e despachada da vida pública enquanto se exaltam os ideais de
corpo saudável, beleza, felicidade e longevidade, seu retorno, no imaginário popular, se faz
selvático: “Experimentem só espantar os mortos, eles voltam correndo” (VOVELLE, 2010, p.
38).
81
PARTE II. O LUTO EM SEU CARÁTER PÚBLICO OU O LUTO COMO RITUAL
SOCIAL
Always and in everything let there be reverence.
K’ung-fu tzu, The Li Chi or Book of Rites
Eu gostaria de ter tempo para fazer-lhes alguns
seminários sobre o tema do rito funerário através de uma
investigação etnológica.
Lacan, O desejo e sua interpretação, 1958-1959
Funeral Blues
W.H. Auden, 1938
Stop all the clocks, cut off the telephone,
Prevent the dog from barking with a juicy bone,
Silence the pianos and with muffled drum
Bring out the coffin, let the mourners come.
Let aeroplanes circle moaning overhead
Scribbling on the sky the message “He is Dead”,
Put crêpe bows round the white necks of the public doves,
Let the traffic policemen wear black cotton gloves.
He was my North, my South, my East and West,
My working week and my Sunday rest,
My noon, my midnight, my talk, my song;
I thought that love would last for ever: I was wrong.
82
Em seu sentido etimológico, “luto” deriva do latim luctus [dor], do radical supino de
lugere [lamentar, chorar]. Significa tanto o “sentimento de pesar ou dor pela morte de
alguém” quanto “os sinais exteriores dessa dor” (CUNHA, 2010, p. 397). Do mesmo modo,
as palavras trauer [alemão] e mourning [inglês].
O termo luto, portanto, compreende duas acepções, embora não seja assim tão simples
estabelecer as fronteiras, se há, entre uma e outra: o luto psíquico, o pesar individual que
compreende, segundo Freud (1917/2010), o “trabalho” que consome o eu até o ponto da
renúncia do objeto perdido; e o luto público ou social, a manifestação externa da dor, em geral
emoldurada por convenções especiais. O luto em seu caráter público é indissociável de ritos
que, em diferentes lugares e culturas, inscrevem o desaparecimento de alguém no corpo
social. Conforme Morin (1970, p. 33),
Não existe praticamente nenhum grupo arcaico, por mais “primitivo”
que seja, que abandone seus mortos ou que os abandone sem ritos.
Assim, por exemplo, se os Koriaks do leste siberiano jogam seus
mortos no mar, eles são por este meio confiados ao oceano, e não
negligenciados.
Esta parte do estudo está dedicada ao estudo do luto como ritual social tomando como
fonte principal as investigações antropológicas, porém sem a intenção de esgotar o assunto e
com a ressalva de que o fazemos como leigos. Partiremos de algumas questões norteadoras: O
que são os ritos? Por que os homens cercam de ritos a morte? Que função eles desempenham
no luto e de que modo se fazem eficazes?
Com o intuito de respondê-las, primeiramente realizaremos uma breve investigação
etnográfica acerca do rito de modo geral para em seguida nos dedicarmos aos ritos fúnebres
começando por revisitar os clássicos, Robert Hertz (1907/1960) e Arnold van Gennep
(1909/2011); em seguida, abordaremos a função e eficácia dos ritos fúnebres incluindo no
debate as contribuições oriundas da psicanálise; e por fim, em um contexto de secularização
da vida social, discutiremos a atual demanda por um direito ao rito assim como as novas
formas de reconfiguração ritual.
83
1. UM POUCO DE ETNOGRAFIA: O QUE SÃO RITOS?
A relação com os mortos nunca se deu sem a intermediação dos compromissos
conciliatórios, alguns oficiais e obrigatórios (as práticas fúnebres sagradas, o Dia dos Finados
etc.) e outros oriundos de tradições folclorizadas: os gestos e ritos mágicos passados de
geração em geração, cujo significado há muito foi perdido nas areias do tempo, tais como
parar os relógios. Reis (1991) destaca, em alguns lugares do Brasil, o costume de fechar
portas e janelas por oito dias para evitar o retorno do morto.
Hoje vivemos uma tendência à informalidade. Segundo Elias (2001, p. 35),
desconfiamos dos rituais convencionais e fórmulas das gerações passadas por serem baseadas
em antigos sistemas de dominação, tal como o uso de véus e roupas pretas adotadas pela
aristocracia inglesa e imitadas pelas classes menos favorecidas.
A tarefa de encontrar a palavra e o gesto certos, portanto, sobra para o
indivíduo. A preocupação de evitar rituais e frases socialmente
prescritos aumenta as demandas sobre a capacidade de invenção e
expressão individual. Essa tarefa, porém, está muitas vezes fora do
alcance das pessoas no estágio corrente da civilização. A maneira
como as pessoas vivem em conjunto, que é fundamental neste estágio,
exige e produz um grau relativamente alto de reserva na expressão de
afetos fortes e espontâneos.
O atual “surto de informalização” (ELIAS, 2001, p. 34) contribui para diminuir a
importância dos ritos. Mariza Peirano (2003, p. 7), uma estudiosa do tema, ressalta que muito
embora possamos considerar os ritos como eventos de outras eras, convencionais e
antiquados, eles estão presentes de diversas maneiras – sem nos darmos conta – e podem ser
encontrados “em qualquer tempo ou lugar, a vida social é sempre marcada por rituais”. Uma
visão reducionista dos ritos tenderia a limitá-los à sua forma em detrimento de seu conteúdo,
isto é, do sentido que eles carregam:
Agimos como se desconhecêssemos que forma e conteúdo estão
sempre combinados e associamos o ritual apenas à forma, isto é, à
convencionalidade, à rigidez, ao tradicionalismo e ao status quo. Tudo
se passa como se nós modernos estivéssemos liberados deste
fenômeno do passado (PEIRANO, 2003, p.7).
Considerado por DaMatta (2011, p. 10) “um dos elementos críticos da vida social
humana”, os ritos se integram à vida social; através deles é possível observar aspectos
fundamentais das representações, atitudes, ações e transformações coletivas de um
determinado grupo. Ainda segundo o autor,
84
Fazemos ritos quando amamos e fuzilamos; do mesmo modo que
existem ritos marcando a expropriação e mesmo a opressão e a tortura,
como não faltam atos e teatros revolucionários, messiânicos,
libertários, todos anunciando como aríete um novo mundo, uma nova
madrugada livre de maldade e de exploração. O rito, assim, também
enquadra – na sua coerência cênica grandiosa ou medíocre – aquilo
que está aquém e além da repetição das coisas “reais” e “concretas” do
mundo rotineiro (DaMATTA, 2011, p. 10-1).
1.1 Em busca de um conceito
Quando partimos em busca de um conceito de “rito” ou de “ritual”, nos deparamos
com algumas surpresas. Primeiro, na literatura consultada não foi encontrada nenhuma
menção quanto às possíveis diferenças semânticas entre os termos “rito” e “ritual”, os autores
investigados (Aldo Terrin, Arnold van Gennep, Claude Lévi-Strauss, Geoffrey Gorer, LouisVincent Thomas, Marcel Mauss e Henri Hubert, Mariza Peirano, Robert Hertz, Roberto
DaMatta...) usam ora um ora outro46. Segundo, descobrimos que, apesar do universo das
relações sociais formalizadas ser um tema clássico entre os antropólogos/sociólogos desde
Durkheim, não há uma definição hegemônica de rito; depende do autor e de suas coordenadas
epistemológicas, de modo que coube a nós a escolha de um conceito que se apresentasse mais
próximo de nosso interesse de pesquisa.
A palavra “rito” deriva do latim ritus que indica a “ordem estabelecida” e liga-se ao
grego artýs que significa também “prescrição, decreto”. Entretanto, a raiz originária parece
ser a de ar – “modo de ser, disposição organizada e harmônica das partes no todo” – da qual
derivam os termos “arte”, “rito”, “ritual”, conceitos ligados à ideia de harmonia restauradora.
“Rito” pode também estar associado com a raiz indo-europeia ri, que significa “escorrer”, e,
por este motivo, se liga às palavras “ritmo”, “rima”, “rio”, sugerindo, respectivamente, “o
fluir ordenado de palavras, da música e da água” (TERRIN, 2004, p. 18).
Quanto ao conceito47, dentre as diversas versões encontradas, optou-se pela definição
operativa proposta por Peirano (2003) cujos aportes teóricos são orientados pelas concepções
do antropólogo srilanquês Stanley Tambiah48. Esse conceito prima por uma definição não
46
Em busca de um certo rigor terminológico, fomos instigados a consultar (via e-mail) uma das autoras de
referência no tema no Brasil, a antropóloga e pesquisadora Mariza Peirano. Professora da Universidade de
Brasília é autora de diversas obras sobre a antropologia do ritual. Em resposta à nossa consulta, a autora
respondeu que de fato não via qualquer diferença significativa entre “ritual” e “rito”, podendo ser usado um
termo ou outro e sugeriu: “[...] Não se preocupe use qualquer dos dois termos; siga o que lhe soar melhor”.
47
Aos interessados em se aprofundar em uma historiografia dos rituais recomendamos os livros de Mariza
Peirano: O dito e o feito: ensaios de antropologia dos rituais, 2001; e Rituais ontem e hoje, 2003.
48
Stanley Tambiah é considerado um dos antropólogos mais proeminentes do século XX e uma referência
quanto aos estudos dos rituais. Sua morte recente (19/1/2014) lhe rendeu inúmeras homenagens pelo mundo
afora. Em uma de suas mais celebradas obras, Leveling crowds (1996), ele utilizou a abordagem dos rituais como
85
absoluta de ritual e que hoje serve, segundo a autora, “de guia para uma análise antropológica
mais ampla e mais rica” (PEIRANO, 2003, p. 50).
O ritual é um sistema cultural de comunicação simbólica. Ele é
constituído de sequências ordenadas e padronizadas de palavras e atos,
em geral expressos por múltiplos meios. Estas sequências têm
conteúdo e arranjo caracterizados por graus variados de formalidade
(convencionalidade), estereotipia (rigidez), condensação (fusão) e
redundância (repetição). A ação ritual nos seus traços constitutivos
pode ser vista como “performativa” em três sentidos: 1) no sentido
pelo qual dizer é também fazer alguma coisa como um ato
convencional [como quando se diz ‘sim’ à pergunta do padre em um
casamento]; 2) no sentido pelo qual os participantes experimentam
intensamente uma performance que utiliza vários meios de
comunicação [um exemplo seria o nosso carnaval]; e 3) finalmente, no
sentido de valores sendo inferidos e criados pelos atores durante a
performance [por exemplo, quando identificamos como “Brasil” o
time de futebol campeão do mundo] (PEIRANO, 2003, p. 11)
A definição proposta distancia-se sobremaneira da visão comum que toma o ritual
como um evento rígido e imutável; ela orienta-se pela ideia de que este conceito é relativo,
portanto, deve ser demarcado não pelo pesquisador em campo, mas pelos “nativos” (sejam
“nativos” políticos, o cidadão comum, até cientistas sociais): “não compete aos antropólogos
definir o que são rituais [...] ao pesquisador cabe apenas a sensibilidade de detectar o que são,
e quais são, os eventos especiais para os nativos (PEIRANO, 2001, p. 8, grifo do autor).
Nessa visão ampliada de ritos, a sua natureza é desconsiderada em favor da forma.
Não importa se são religiosos, mágicos, profanos, festivos, formais, informais, simples ou
mais elaborados. Assim, diversos eventos sociais podem ser analisados como tais buscando-se
identificar neles “uma ordem que os estrutura, um sentido de acontecimento cujo propósito é
coletivo” (PEIRANO, 2001, p. 8). Considera-se também que o que se encontra no rito está
presente na vida diária de uma sociedade e vice-versa. O ritual é um fenômeno especial que
transmite valores e representações sociais e serve também para resolver conflitos e reproduzir
as relações sociais.
O ritual mostrou ser uma porta de entrada heurística, pela qual
podemos vislumbrar aspectos de uma sociedade que dificilmente se
manifestam em falas, depoimentos e discursos [...] Por meio da análise
de rituais, podemos observar aspectos fundamentais de como uma
sociedade vive, se pensa e se transforma (PEIRANO, 2003, p. 50-1).
Quanto à estrutura dos ritos, Louis-Vincent Thomas (1985, p. 12) observou a
importância da teatralização nos grandes cerimoniais religiosos: “Trata-se com efeito de
estratégia para analisar etnograficamente os “riots”, um fenômeno social aparentemente caótico, presente nos
violentos conflitos etnonacionalistas no Sul da Ásia. Cf. Peirano (2001).
86
colocar em cena uma situação que, por meio dos corpos, suscite nos atores e nos assistentes
uma emoção cuja intensidade é a condição mesma da eficácia do rito”. O autor destacou cinco
elementos ou fatores estruturais característicos do rito: o espaço cênico, a estrutura temporal,
a participação de um número de atores, a organização simbólica e a eficácia simbólica.
O ritual requer um espaço cênico, uma decoração, uma montagem de objetos e de
mobiliário carregados de simbolismo, como pode ser visto seja em uma igreja católica, seja
em cultos animistas realizados nas florestas. A estrutura temporal do rito impõe certa duração
que se desdobra seguindo rigorosamente uma sucessão de etapas ou sequências compostas por
episódios pontuados de falas e de ações. Na missa católica, p. ex., a celebração eucarística é o
ponto ápice da cerimônia, as etapas anteriores preparam os fiéis para este momento. Uma
condição do rito é que dele participem um determinado número de atores: divindades,
oficiantes e fiéis interpretam cada qual seu papel ao longo da cerimônia. A eficácia do rito
depende da interação dos protagonistas e do consenso que os une. A organização de símbolos
é fundamental. São eles os responsáveis por traduzir de modo concreto ou metafórico aquilo
que é misterioso, inexplicável. Thomas (1985, p. 14) toma como exemplo a comunhão, que
no rito católico traduz a crença da transmutação do fiel, pela ingestão da hóstia sagrada, na
divindade: “não sou mais eu que vivo, mas Deus que vive em mim”. E por fim, a eficácia
simbólica que permite que os ritos expressem uma situação ou acontecimento. A circuncisão,
por exemplo, “é um signo da transformação do beneficiário em ser social; a operação ela
mesma atualiza a metamorfose” (THOMAS, 1985, p. 14).
1.2 O fazer e o dizer: Ritos e Mitos
As relações entre o fazer e o dizer – isto é, entre mitos e ritos – é um tema controverso
entre os antropólogos há décadas. Há uma tendência a se polarizar essa relação pondo de um
lado os ritos inscritos na ordem da ação, do viver, do fazer; e de outro, os mitos na ordem da
representação, do pensar, do dizer.
Um problema sobre o qual Lévi-Strauss se debruçou em uma conferência intitulada
Sobre as relações entre a mitologia e o ritual, realizada em 1956, perante a Sociedade
Francesa de Filosofia da qual Lacan participou como um dos debatedores. Lévi-Strauss (1956,
p. 717) declarou que buscava “englobar no reino do simbolismo o domínio do ritual, que eu
havia até agora deixado de fora”.
Nesta conferência, ele se opõe às simplificações que reduziram as relações entre mito
e rito a um puro paralelismo: “em termos de ideias, todo mito repetiria o que o próprio rito
87
afirma em termos de atividades ou o contrário. Segundo esta concepção, o rito não seria mais
que um mito em ação; ou ainda é o mito que fornece o fundamento teórico do rito” (LÉVISTRAUSS, 1956, p. 700). Em seu entender, essa simplificação escamotearia o problema, pois
não resolve a questão de se saber por que alguns grupos parecem preferir mais um sistema
que outro. Tratar-se-ia em ambos os casos de linguagem que um grupo exprime através de
mito e outro prefere realizar em forma de rito: “os motivos pelos quais essas diferentes
escolhas se produzem devem-se, de certo modo, a motivos residuais que não dizem respeito
ao essencial da interpretação simbólica, mas põe em jogo a história respectiva dessas
populações” (LÉVI-STRAUSS, 1956, p. 717).
Até o fim de sua obra, Lévi-Strauss dedicou-se mais à análise dos mitos do que aos
ritos e sustentou a primazia dos primeiros sobre os segundos por acreditar que o mito é “uma
instância privilegiada para atingir a estrutura do pensamento humano” (QUEIROZ; NOBRE,
2013, p. 22). Ele opôs pensamento e vida prática, mito e rito para melhor compreender os
caminhos trilhados por cada um em sentidos opostos:
O rito não é uma aplicação do mito, mas o rito é a marcha ré do mito.
Aqui está presente a ideia de que é possível fazer o descontínuo a
partir do contínuo, o que o mito faz, mas é impossível fazer o caminho
contrário, o que o rito tenta fazer, mas fica no meio do caminho, e, por
isso, o rito é uma ilusão. Ou seja, o dia em que o pensamento voltar a
coincidir com o real, ou o dia em que ele pudesse coincidir com o real,
deixaria de ser pensamento. Em todo caso, o pensamento não pode
nunca coincidir com a vida, pois o princípio, a razão e o modo de
existência do pensamento são ser não vida, ser não vivido. [...] O rito
acha que pode voltar depois de já ter dividido; quer voltar à infância, à
fusão, à imanência, ao estado de participação primitiva. Mas insiste
Lévi-Strauss, não há volta, a marcha do simbólico é irreversível
(QUEIROZ; NOBRE, 2013, p. 219).
Na tentativa de compreender melhor o pensamento ameríndio e o pensamento do
homem em geral, Lévi-Strauss precisou deixar muita coisa de fora, entre elas o rito
(QUEIROZ; NOBRE, 2013). Segundo Peirano (2003) coube a Edmund Leach reduzir as
distinções entre ritos e mitos considerados, por ele, fenômenos interligados que precisam ser
focalizados em ação. Ele distinguiu três tipos de comportamentos:
1) o racional-técnico, dirigido a fins específicos que, julgados por
nossos padrões de verificação, produzem resultados de maneira
mecânica; 2) o comunicativo, que faz parte de um sistema que serve
para transmitir informações por meio de um código cultural; e
finalmente 3) o mágico, que é eficaz em termos de convenções
culturais. Exemplos desses três tipos de comportamento são (1) o
corte de uma árvore; (2) um aperto de mão; (3) um juramento
(PEIRANO, 2003, p. 38).
88
Até essa época, fins dos anos 60, a antropologia considerava ritual apenas os
comportamentos do terceiro tipo, o segundo era considerado etiqueta ou cerimonial. Leach
amplia esta visão ao conceber ambos como rituais: cumprimentar com um aperto de mão ou
fazer um juramento por palavras são, ambos, rituais. Ele tornou indistintos os
comportamentos verbais e não verbais, aproximando o rito do mito. O rito em sua visão é um
complexo de palavras e ações; enunciar palavras já é considerado um rito sendo este uma
espécie de linguagem condensada, econômica, refletindo deste modo a influência de LéviStrauss. Segundo Peirano (2003), ao aproximar demais o rito do mito, Leach acabou por
apagar, pelo menos em parte, as características específicas de cada um, alterando de certo
modo a combinação que ele originalmente havia proposto entre o viver e o pensar. Se rito se
tornou uma “forma de transmitir e perpetuar o conhecimento socialmente adquirido”, agora
ele era “principalmente bom para pensar (como o mito, antes)” (p. 39, grifo da autora).
Stanley Tambiah retomou as considerações inicias de Leach e estabeleceu que “ritos e
mitos eram bons para pensar e viver” (PEIRANO, 2003, p. 39, grifo da autora). Além disso,
extraiu de Durkeim e Mauss a ideia de que a sociedade é um sistema de forças atuantes, e a
eficácia das ações sociais e das crenças precisam ser levadas em conta ao se analisar os
mecanismos de movimento e reprodução da sociedade. À ideia de eficácia, Tambiah
acrescentou a ação (Leach) como modo de transmissão de conhecimento no ritual, mas
acrescentou outro elemento essencial à eficácia das ações sociais: a “ação performativa”
considerada “um atributo intrínseco tanto à ação quanto à fala, que permite comunicar, fazer,
modificar, transformar” (PEIRANO, 2003, p. 40). De que modo a eficácia do rito se dá?
Ela se dá em três sentidos: primeiro, no sentido pelo qual dizer alguma
coisa é também fazê-la – quando digo “eu prometo”, por exemplo,
digo e faço algo agora, e comprometo-me no futuro; segundo, no
sentido pelo qual os participantes experimentam intensamente uma
performance que utiliza vários meios de comunicação – por exemplo,
quando desfilamos em uma escola de samba e somos levados,
independentemente da nossa vontade manifesta, a partilhar da alegria
coletiva; terceiro, no sentido de valores que são criados e inferidos
pelos atores durante a ação – por exemplo, quando um embaixador
brasileiro participa de uma reunião das Nações Unidas, ele é o Brasil.
Suas ações de caráter individual representam um Estado-nação
(PEIRANO, 2003, p. 40, grifo da autora).
Em suma, o rito é um tipo especial de evento, mais formalizado e estereotipado, e que
combina as dimensões do viver e do pensar. Por seu caráter performativo, ele serve para
realizar múltiplas funções: resolver conflitos ou diminuir rivalidades e, ao mesmo tempo,
transmitir valores e conhecimentos.
89
Mito e rito em Psicanálise
Freud nutria um interesse apaixonado pela antropologia social que o acompanhou ao
longo de sua vida. Em carta à Fliess de 12 de dezembro de 1897 ele já mostra que esse
interesse é antigo:
Pode imaginar o que são “mitos endopsíquicos”? São o fruto mais
recente de meus trabalhos mentais. A obscura percepção interior de
nosso próprio mecanismo psíquico estimula ilusões de pensamento,
que são naturalmente projetadas para o exterior e, de modo
característico, para o futuro e o além-mundo. Imortalidade, castigo,
vida após a morte, todos constituem reflexos de nossa própria psique
mais profunda [...] psicomitologia (FREUD, 1913b/1987, p. 14-5).
Em Totem e tabu, Freud apresentou um mito original fundador da sociedade e que
enlaça o pai, a morte e a lei, “o mito do pai da horda primitiva”, que mais tarde será explorado
no nível do indivíduo a partir do “mito edípico”. Além disso, neste livro, ele também tece
aproximações entre a vida dos “selvagens”, seus mitos e ritos, e a dos neuróticos. Nossa vida
psíquica não se distancia tanto quanto se pensa da mentalidade que animava e organizava a
vida dos homens primeiros. Amparado nos estudos antropológicos da época, Freud
(1913b/1987) analisou o sistema do totemismo que une um determinado clã em torno de um
mito fundador e organizador da vida social, o totem. Este, em geral um animal, é um
antepassado comum do clã que se tornou seu espírito guardião, e em seu entorno proibições e
punições são estabelecidas. O tabu do incesto está na base da organização do clã, a união
sexual entre pessoas do mesmo clã é terminantemente proibida e a transgressão dessa norma
torna a própria pessoa um tabu.
Quanto ao rito, Freud examinou os rituais de sacrifícios em especial a refeição
sacrificatória totêmica na qual os integrantes do clã, em animado festim, consomem o totem
cuja substância é o veículo que permite a incorporação da vida sagrada ao mesmo tempo que
reforça a unidade do grupo via identificação. A partir desse rito antigo, Freud propõe o mito
do pai primevo morto e devorado pelos filhos. No ato de devorá-lo realiza-se a identificação
com o pai: “A refeição totêmica, que é talvez o mais antigo festival da humanidade, seria
assim uma repetição e uma comemoração desse ato memorável e criminoso, que foi o começo
de tantas coisas: da organização social, das restrições morais e da religião” (FREUD,
1913b/1987, p. 170). A morte do pai está na origem do pacto social, “o que fora interdito por
sua existência real foi doravante proibido pelos próprios filhos” (FREUD, 1913b/1987, p.
171). O pai morto advém mais poderoso do que quando vivo. O banquete partilhado repete
90
ritualisticamente o mito totêmico fundador da organização social e desse modo o transmite e o
perpetua.
Alguns anos antes, Freud havia dedicado especial atenção ao cerimonial presente no
roteiro fantasístico da neurose obsessiva. Ele postulou as semelhanças entre o ato obsessivo e
as práticas sagradas do ritual religioso: “Nos escrúpulos de consciência que a negligência dos
mesmos acarreta, na completa exclusão de todos os outros atos (revelada na proibição de
interrupção) e na extrema consciência com que são executados em todas as minúcias”
(FREUD, 1907/1987, p. 123). Também marcou diferenças importantes: o rito do neurótico é
de caráter privativo, individual em oposição ao rito religioso que é realizado de modo público
e comunitário. Além disso, enquanto o rito religioso é rico em detalhes significativos e plenos
de sentido simbólico, o do neurótico parece tolo e absurdo:
Sob esse aspecto a neurose obsessiva parece uma caricatura, ao
mesmo tempo cômica e triste, de uma religião particular, mas é
justamente essa diferença decisiva entre o cerimonial neurótico e o
religioso que desaparece quando penetramos, com o auxílio da técnica
psicanalítica de investigação, no verdadeiro significado dos atos
obsessivos (FREUD, 1907/1987, p. 123).
Um pouco mais adiante no texto, Freud irá propor que os cerimoniais obsessivos,
aparentemente tolos e sem sentido, se constituem na verdade como atos de defesa ou de
segurança, medidas protetoras, em parte contra alguma tentação, em parte contra algum mal
esperado; e conclui em frase que ficou famosa: “Podemos atrever-nos a considerar a neurose
obsessiva como o correlato patológico da formação de uma religião, descrevendo a neurose
como uma religiosidade individual e a religião como uma neurose obsessiva universal”
(FREUD, 1907/1987, p. 130). Desse modo, concluímos que crenças [mitos] e práticas [ritos]
presentes na neurose individual, tal como em uma religião, são formações indissociáveis.
Lacan, por sua vez, enfatizou a função do significante no mito na medida em que este
torna possível o funcionamento de uma estrutura. No nível do mito, são as unidades
significantes, os chamados mitemas, que devem ser buscadas e analisadas: “O que nos
importa aqui é o sistema significante na medida em que ele organiza, na medida em que ele é
a armadura de tudo isso, determinando vertentes, pontos cardeais, reversões, conversões”
(LACAN, 1956/2008, p. 92).
Nos tempos de seu “retorno a Freud”, Lévi-Strauss teve uma importante influência
sobre o pensamento de Lacan: “Gostaria que soubessem que, quando venho escutar Claude
Lévi-Strauss, é sempre para me instruir” (LACAN, 1956/2008, p. 87). O que Lacan aprendeu
91
com Lévi-Strauss? Segundo Miller (2008, p. 101), na apresentação do O mito individual do
neurótico, Lacan tomou nota de três lições logo aplicadas à Psicanálise:
Para começar que a estrutura simbólica domina. O quê? O social, as
relações de parentesco, a ideologia, mas também, para cada um, sua
relação com o mundo, suas relações perceptíveis, seu complexo
familiar. É depois que roteiros imaginários, isto é, os mitos e ritos
fundados, fazem-se necessários para velar as contradições da realidade
econômica e social. Terceira lição: essas formações transformam-se, e
o fazem obedecendo a leis que são matemáticas.
A primeira referência aos textos de Lévi-Strauss aparece, em 1949, por ocasião de
uma comunicação de Lacan realizada no Congresso Internacional de Psicanálise (Zurique),
publicada somente em 1966, O estádio do espelho como formador da função do eu. O ano de
1949 marca o nascimento da era estrutural na antropologia com a publicação da tese de LéviStrauss Estruturas elementares de parentesco. Nesse mesmo ano surgiram dois dentre os mais
populares artigos do autor fora do campo antropológico, A eficácia simbólica e O feiticeiro e
sua magia (BASUALDO, 2011).
Na conferência O mito individual do neurótico, Lacan (1952/2008, p. 25) aplicou a
grade de análise de Lévi-Strauss das estruturas elementares de parentesco para analisar o
famoso caso de neurose obsessiva tratado por Freud, O homem dos ratos. O mito coletivo é
agora analisado no nível do indivíduo: “Esse roteiro apresenta-se como um pequeno drama,
uma gesta, que é precisamente a manifestação do que chamo o mito individual do neurótico”.
O caráter mítico do roteiro fantasístico não se reduz ao fato do “homem dos ratos” encenar
uma cerimônia que reproduz a relação inaugural entre pai, mãe e o amigo [do pai], mas a sua
capacidade de se modificar e se deslocar de modo que os impasses da situação original são
transpostos para outro ponto da rede mítica, e o que não é resolvido num lugar se reproduz
sempre em outro.
Trata-se de algo bem diferente da relação triangular considerada típica
na origem do desenvolvimento neurotizante. A situação apresenta uma
espécie de ambiguidade, de diplopia – o elemento da dívida está
situado em dois planos ao mesmo tempo, e é precisamente na
impossibilidade de fazer esses dois planos se encontrarem que se
desenrola todo o drama do neurótico. Ao tentar fazer um e outro se
recobrirem, faz uma operação circular, nunca satisfatória, que não
consegue fechar seu ciclo (LACAN, 1952/2008, p. 27).
Lacan substitui o termo freudiano “o romance familiar do neurótico” por “mito
familiar e/ou individual do neurótico” e propõe uma análise desse mito individual não a partir
da análise triangular tradicional [esquema edípico], mas a partir de um sistema quaternário
[quatour] cujos elementos se atualizam, se repetem, o tempo todo: o Pai enquanto
92
representante da função simbólica, o Pai “humilhado” ou “carente”, o amigo que desempenha
o papel de semelhante cuja imagem o sujeito se vê e que bascula entre os dois avatares do pai,
e o quarto elemento, a morte. Segundo Lacan, a função do mito é dar
uma formulação discursiva a algo que não pode ser transmitido na
definição da verdade, porque a definição da verdade só pode se apoiar
sobre si mesma, e é na medida em que a fala progride que ela a
constitui. A fala não pode apreender a si própria, nem apreender o
movimento de acesso à verdade como uma verdade objetiva. Pode
apenas exprimi-la – e isso de forma mítica. Nesse sentido é que se
pode dizer que aquilo em que a teoria analítica concretiza a relação
intersubjetiva, e que é o complexo de Édipo, tem valor de mito
(LACAN, 1952/2008, p. 13).
O mito permite mostrar, sob uma forma significante, uma espécie de impossibilidade
irredutível ao campo simbólico apenas possível de ser exprimível através de um roteiro
mítico: “O sujeito às voltas com um real impossível de simbolizar produz um roteiro
fantasístico que encena um comportamento estilizado, o qual pode assumir o aspecto de uma
verdadeira cerimônia, até mesmo ser acompanhado de um delírio fugaz” (MILLER, 2008, p.
101). Esse roteiro fantasístico comporta mitos e ritos individuais cuja fusão se manifesta de
modo admirável na repetição.
93
2. RITOS FÚNEBRES: REVISITANDO OS CLÁSSICOS
Se o movimento de redescoberta da morte é relativamente recente, no campo
antropológico o interesse pelos rituais em geral, e pelos mortuários em particular, está
presente desde o final do século XIX, embora sofrendo oscilações (METCALF;
HUNTINGTON, 1991). Neste capítulo examinaremos dois estudos seminais sobre os ritos
fúnebres ambos publicados no início do século XX: A contribution to the study of the
collective representation of death [Uma contribuição ao estudo da representação coletiva da
morte]49, de Robert Hertz (1907) e Ritos de Passagem, de Arnold van Gennep (1909).
Apesar de escritos há mais de um século, eles ainda são considerados cruciais no
estudo dos ritos mortuários: “Hertz e van Gennep trouxeram uma sofisticação tão marcante
para a compreensão dos ritos de morte que o trabalho realizado por eles pouco foi melhorado
até os dias atuais” (METCALF; HUNTINGTON, 1991, p. 11, tradução nossa).
Hertz e Gennep se inscrevem entre os primeiros a tomar o ritual como um objeto de
estudo independente. Ambos se dedicaram a analisar a estrutura e finalidade dos ritos
fúnebres, porém enquanto Gennep dedicou a estes apenas um capítulo de sua obra, Hertz
realizou um estudo longo e aprofundado das representações coletivas da morte. Em
decorrência disso, o trabalho deste último ainda é considerado, entre especialistas, uma das
mais originais contribuições para a sociologia da morte (METCALF; HUNTINGTON, 1991)
e permanece “surpreendentemente fresco hoje como quando foi publicado em 1907”
(DAVIES, 2000, tradução nossa). Por seu turno, o trabalho comparativo de van Gennep tem o
mérito de ser um precursor do estruturalismo (METCALF; HUNTINGTON, 1991).
Ambos estão inscritos na chamada “Escola sociológica francesa” e tecem um diálogo
com as concepções de Émile Durkheim e seus seguidores. Por essa época, fim do século XIX
e início do século XX, os antropólogos (ou sociólogos) se dividiam em duas grandes correntes
teóricas. De um lado, os antropólogos vitorianos (James Frazer, Edward Burnett Tylor)
conhecidos como “intelectualistas” por defenderem que o pensamento humano evoluiria de
crenças irracionais (em espíritos, magia, superstições etc.) para o estágio da razão.
Evolucionistas, eles tendiam a reduzir o fato social a uma explicação biológica, psicológica
(individualizada), geográfica etc.; de outro, os sociólogos franceses (Émile Durkheim e
Marcel Mauss) que tomavam o fato social como um fenômeno que para ser compreendido
49
Publicação original: “Contribution à une étude sur la represéntation collective de la mort”, Année
Sociologique, vol X, 1907, p. 48-137. Inédito ainda em nosso meio, por razões de acessibilidade, usou-se a
versão inglesa, tradução nossa.
94
deveria levar em consideração o estudo da sociedade na perspectiva de sua totalidade
(DaMATTA, 2011; PEIRANO, 2003). Segundo Davies (2000, p. 97, tradução nossa), eles
enfatizavam as “‘representações coletivas’, isto é, padrões de ideias, valores, crenças e
expectativas de comportamento que emergiam do interjogo de indivíduos ao longo do tempo e
forneceram o domínio distintivo da e para a sociologia”.
No início do século XX, o que era significativo nos estudos sociais era a religião.
Enquanto Frazer e Tylor associavam os ritos às questões da racionalidade do pensamento,
logo ligados à magia e religião, Durkheim e Mauss os consideravam “atos de sociedade”
através dos quais “a sociedade toma consciência de si, se recria e se afirma” (PEIRANO,
2003, p. 18). Foi neste clima que os estudos de Hertz e Gennep foram publicados.
2.1 Robert Hertz e a prática do duplo funeral (1907)
Morto precocemente durante a primeira guerra, Robert Hertz contava apenas 26 anos
quando publicou seu estudo na renomada revista Année Sociologique fundada por Durkheim.
Hertz concentrou-se nas sociedades, especialmente o povo Dayak50 de Bornéu, que tratam a
morte como um processo gradual; sociedades cujas crenças escatológicas guiam a prática do
duplo funeral, fenômeno típico, mas não exclusivo, dos povos da Indonésia. Ele dedicou uma
grande parte de seu estudo ao “período intermediário”, isto é, ao tempo que se inscreve entre a
morte e o segundo funeral.
Hertz (1907/1960) identificou, no período intermediário, três elementos interligados: o
tratamento dado ao corpo, o destino da alma e o luto dos sobreviventes. O tratamento dado ao
corpo e o primeiro funeral apresentam variações de acordo com o status do falecido, idade ou
circunstâncias da morte. De modo geral, os corpos são depositados em vasos até a dissolução
da carne. Chefes ou pessoas abastadas são preservados dentro de suas próprias casas. Os
mortos comuns são depositados provisoriamente em um abrigo erguido para este fim. Neste
meio tempo eles são tratados como se ainda estivessem vivos, isto é, os parentes lhes fazem
companhia, conversam com eles e lhes oferecem comida.
O tempo de espera varia, mas, de modo geral, dura cerca de dois anos, período durante
o qual os familiares devem providenciar o custoso festim final em que toda a comunidade é
50
De acordo com a nota dos tradutores ingleses, “Dayak” não é o nome de um povo em particular. Os etnógrafos
holandeses costumavam usar este termo para designar, de modo geral, os povos do interior. “Dayak” deriva da
palavra “dayah” que significa “rio acima” nas línguas faladas em Bornéu. Hertz concentrou boa parte de seus
estudos sobre o povo Olo Ngaju, um grande agrupamento cultural de povos ribeirinhos localizados no sudeste de
Bornéu, indonésia (Rodney e Claudia Needhan in Hertz, 1907/1960, p. 29).
95
chamada a participar. Porém, para o autor, o fator determinante para a não realização imediata
do segundo funeral é a espera pela dissolução completa da carne, matéria “molhada” do
corpo, considerada impura. Todo o cuidado extremado com o vaso em que o corpo é
depositado visa garantir que a matéria pútrida não seja expelida para o exterior. Não se trata
de higiene, mas de se impedir que os poderes maléficos que residem no cadáver – e que eles
associam com seu odor – escapem e atinjam os vivos. A matéria pútrida é drenada para o solo
ou coletada em vasos, pois não é desejável que ela permaneça dentro do recipiente; só a
completa dessecação dos ossos permitirá a liberação do morto de sua “infecção mortuária”
(HERTZ, 1907/1960, p. 32).
Enquanto o corpo não é levado para um lugar de descanso definitivo, a alma também
não chega ao seu destino final. Durante o tempo do funeral provisório, o falecido não é
considerado completamente morto. A alma
vive, como que, de modo marginal nos dois mundos: se se aventura no
Além-mundo, é tratada como intrusa; aqui na terra é um hóspede
inoportuno cuja proximidade é temida. Por não ter um lugar de
descanso, está condenada a vagar incessantemente, espera
ansiosamente pelo festim que colocará fim a sua inquietude (HERTZ,
1907/1960, p. 36, tradução nossa).
Somente quando a decomposição tiver ocorrido é que a alma estará livre das
impurezas e poderá ser admitida na companhia dos ancestrais. Neste período, a alma é temida,
pois pode se tornar vingativa se considerar que os parentes não estão lhe prestando as devidas
homenagens rituais. Temidas, e ao mesmo tempo lamentadas, fica-se sem saber se o
cumprimento estrito dos ritos é “motivado pela esperança de poupar a alma de uma espera
sofrida, ou pelo desejo de se livrarem de sua presença sinistra o mais depressa possível”
(HERTZ, 1907/1960, p. 37, tradução nossa).
A morte muda não apenas o estatuto do falecido, mas também o dos sobreviventes.
Quanto maior o vínculo, mais assombrado pelo morto. É como se a “nuvem impura”
(HERTZ, 1907/1960, p. 38) que o envolve tivesse contaminado igualmente seus próximos,
seus objetos e tudo o mais que a imagem dele evocar. Metcalf e Huntington (1991)
observaram que a poluição causada pela morte não é de natureza física, mas de relação: todos
os parentes próximos e tudo que estiver intimamente ligado ao morto são imediatamente
atingidos pela nuvem impura da morte que altera a rotina dos atingidos por tanto tempo
quanto durar a espera pelo segundo funeral.
Impuros e perigosos, um banimento temporário da vida social é-lhes aplicado. Alguns
permanecem confinados em um canto da casa, sem fazer absolutamente nada, por meses. O
96
contágio fúnebre produz um duplo exílio: da sociedade dos vivos e do mundo espiritual ao
qual também não podem recorrer. O exílio os tornou invisíveis e, por um tempo, eles estarão
condenados a compartilhar a mesma sorte do morto. A cerimônia final é o que encerra o
período intermediário e seu desdobramento inclui realizar o enterro definitivo dos restos
mortais do falecido, garantir a entrada de sua alma na terra dos ancestrais e, finalmente, o
grande festim que libera os sobreviventes das obrigações do luto.
O segundo funeral marca claramente a mudança profunda do status do falecido, agora
sim declarado definitivamente morto. Os restos secos (os ossos), após serem ritualmente
processados, são transferidos de seu alojamento solitário para a sepultura coletiva em que
repousam os ancestrais. Quanto à pobre alma angustiada, um rito solene guiado por
experientes psicopompos realiza a introdução desta na sociedade dos ancestrais.
O grande festim de encerramento pode durar dias e celebra, ao mesmo tempo, a
chegada do falecido à terra dos ancestrais e a readmissão dos familiares à vida social. Uma
cerimônia essencialmente coletiva que diz respeito não só a família de um morto em
particular, mas à aldeia inteira. Em Totem e tabu, Freud (1913b/1987, p. 168) observou que o
luto severamente imposto pelo social é geralmente finalizado com demonstrações de “regojizo
festivo” em que excessos são permitidos, “o sentimento festivo é produzido pela liberdade de
fazer o que via de regra é proibido”.
Na base do horror ao cadáver está o dano que a morte causou ao tecido social. A morte
é uma ameaça à unidade do grupo, às crenças relativas aos seus princípios de vida. A função
do rito é de processar pela pureza do ritual a ordem perdida, transformando o perigo em
segurança (DAVIES, 2000, p. 100). É através deles que se realiza a transição identitária do
morto, isto é, são eles que lhe conferem a passagem de membro da “sociedade dos visíveis”
para a sua admissão honrosa na “sociedade dos invisíveis” (HERTZ, 1907/1960, p. 80). Ainda
segundo o autor:
É tão verdadeiro que a morte natural não é suficiente para romper os
laços que atam o falecido a este mundo, que, com o intuito de torná-lo
um legítimo e autêntico habitante da terra dos mortos ele deve
primeiro ser morto [...] O falecido não pode passar de seu estado
miserável para um mais feliz, não pode ser promovido à categoria dos
espíritos verdadeiros, até que tenha sido ritualmente morto e nascido
de novo (HERTZ, 1907/1960, p. 73, tradução nossa).
Os ritos são os responsáveis, portanto, pela mudança da natureza das relações entre os
vivos e o morto: atado aos elementos impuros do corpo, o espírito provoca repulsa e temor até
o momento em que seu corpo, após passar pelo processo ritual, torna-se sagrado e seu
espírito, em espelho, é reverenciado como antepassado (DAVIES, 2000). Se a morte impõe
97
uma inevitável exclusão da vida, nas consciências coletivas esta exclusão não parece
irrevogável. A morte é transição, mas só os ritos garantem a passagem de um estado a outro.
Se o indivíduo é perdido, ele não o é para sempre: “A última palavra permanece com a vida”
(HERTZ, 1907/1960, p. 78). A paz da comunidade é garantida pela crença de que é possível
se soltar dos grilhões da morte e retornar de outro modo, assim a exclusão social é apenas
temporária, em seguida há reintegração propiciada pelos rituais.
Porém, o tratamento ritual não é assegurado do mesmo modo para todos. Varia de
acordo com status social, idade do falecido e circunstâncias da morte. As crianças menores de
sete anos, p. ex., não necessitam de um segundo funeral e o luto é brevíssimo. Se a sociedade
ainda não colocou nada de si na criança, sua partida não causa rupturas, permanece-se então
indiferente. Assim também os anciãos cuja idade avançada já os limitava para a vida social.
Seus corpos são enterrados logo em seguida e definitivamente, uma vez que da sociedade eles
já estavam apartados.
Já aqueles cuja circunstância de morte é considerada maldita não terão direito a
nenhum tratamento ritual. Esse é o caso das vítimas de morte violenta, de acidentes
(afogamento, raio etc.), de trabalho de parto e suicídio. Esses mortos inspiram tamanho horror
que se busca livrar-se de seus corpos imediatamente, dispensando o tratamento ritual.
Malditos por toda a eternidade, eles nunca terão seus ossos reunidos aos que morreram de
modo comum, e seus espíritos permanecerão retidos no período intermediário.
Ao contrário do que se passa com as crianças pequenas e os idosos, não é a fraca
resposta emocional que bloqueia a possibilidade dos ritos, mas o intenso terror despertado por
um acontecimento brusco, inesperado. Nenhum ritual é capaz de apagar completamente da
memória a forma sinistra como desapareceram, eles permanecerão para sempre afastados de
seus parentes: “sua exclusão é definitiva e irremediável” (HERTZ, 1907/1960, p. 86). Assim
não faz sentido algum aguardar pelo segundo funeral. A morte para eles não terá fim.
Em suma, o estudo de Hertz (1907/1960, p. 48, tradução nossa) apresenta duas noções
que se complementam: “A primeira é que a morte não se conclui em um ato instantâneo;
implica um processo de longa duração [...]; A segunda é que a morte não é destruição, mas
transição”. Transição forjada pelos ritos necessários. Assim enquanto o cadáver se decompõe,
a alma entra em uma nova existência muito melhor que a anterior.
O luto, em sua origem, é a necessária participação dos vivos no estado
mortuário de seu parente, e dura tanto tempo quanto este estado durar.
Em última análise, a morte como fenômeno social consiste em um
duplo processo doloroso de dissipação mental e síntese. Somente
quando este processo é completado que a sociedade, recuperada em
98
sua paz, pode triunfar sobre a morte (HERTZ, 1907/1960, p. 86,
tradução nossa).
2.2 Arnold van Gennep e os ritos de passagem (1909)
Gennep (1909/2011) inovou ao tornar o rito um objeto básico de investigação,
soltando-o das amarras da religião; ele não é mais um apêndice do mundo mágico ou
religioso, mas
um fenômeno dotado de certos mecanismos recorrentes (no tempo e
no espaço) e, também de certo conjunto de significados, o principal
deles sendo realizar uma espécie de costura entre posições e domínios,
pois a sociedade é concebida pelo nosso autor como uma totalidade
dividida internamente (DaMATTA, 2011, p. 15).
Em Ritos de passagem, sua obra mais importante, Gennep (1909/2011) introduziu
dinamismo na concepção de sociedade. Esta é como uma casa dividida em compartimentos;
os rituais teriam a função de ajudar a demarcar os espaços – salas, quartos, cozinhas,
varandas, corredores etc. –, bem como propiciar a realização das passagens – ritos da porta e
da soleira, das estações, da iniciação, casamento etc. –, dos deslocamentos espaço-temporais
inerentes à vida social (DaMATTA, 2011).
Gennep propõe examinar os ritos como totalidades e sua comparação baseou-se mais
nas similaridades de estrutura do que em seus conteúdos, daí ser considerado um precursor do
Estruturalismo. A partir de uma perspectiva de sequencialidade, ele mostrou que os ritos têm
uma lógica universal de funcionamento que poderia ser aplicada a diferentes eventos
ritualísticos provenientes de diversos grupos étnicos do passado e também do presente. Os
ritos de passagem, nesse sentido, não dependem de crenças em poderes sobrenaturais, eles
apenas marcam uma mudança na vida de um indivíduo ou grupo (METCALF;
HUNTINGTON, 1991; PEIRANO, 2003; DaMATTA, 2011).
Apesar das críticas concernentes à qualidade de seu método – Gennep optou por uma
demonstração horizontal de suas teses, isto é, priorizou a quantidade de exemplos em vez de
uma análise aprofundada de alguns deles – uma importante contribuição de seu estudo diz
respeito à ideia de que “viver socialmente é passar” e a passagem se dá através de ritos
(DaMATTA, 2011, p. 20).
Ele focou um tipo particular de rito, os “ritos de passagem” que Peirano (2003, p. 22)
definiu “como aqueles momentos relativos à mudança e à transição (de pessoas e grupos
sociais) para novas etapas de vida e de status”. Há os ritos da gravidez, do parto e do
99
nascimento; da infância, da puberdade, da iniciação, ordenação, coroação; do noivado e do
casamento; e finalmente o último dos ritos, o dos funerais. Mais tarde Victor Turner ampliou
essa noção de rito de passagem ao considerar que, em vez de uma subcategoria, todos os ritos
são, de algum modo, um rito de passagem (METCALF; HUNTINGTON, 1991, p. 11).
Interessado na dinâmica dos processos de mudanças, Gennep (1909/2011, p. 30)
observou que os ritos de passagem seguem um movimento sequencial composto de três
tempos: primeiro, há separação de um status (ritos preliminares); depois, um período de
margem (ritos liminares); por fim, agregação em um novo status (ritos pós-liminares). Os
tempos não são igualmente desenvolvidos em todos os grupos sociais e cerimoniais: “Os ritos
de separação são mais desenvolvidos nas cerimônias dos funerais; os ritos de agregação, nas
do casamento. Quanto aos ritos de margem, podem constituir uma seção importante, por
exemplo, na gravidez...”.
Os ritos fúnebres foram considerados a forma mais dramática dos ritos de passagem.
No início de suas investigações, o autor concebia o luto como um conjunto de tabus e práticas
negativas aplicadas ao enlutado durante seu período de isolamento social, como se a morte o
tivesse colocado em um estado sagrado, impuro. À luz das investigações acerca dos ritos de
passagem, ele vai reinterpretar o luto, tomando-o como um fenômeno bem mais complexo:
“Na realidade, [o luto] é um estado de margem para os sobreviventes, no qual entram
mediante ritos de separação e do qual saem por ritos de reintegração na sociedade geral”
(GENNEP, 1909/2011, p. 129). Nessa nova leitura, o autor acaba por rever sua afirmação
anterior de que nos ritos fúnebres imperariam os ritos de separação:
À primeira vista pareceria que nas cerimônias funerárias são os ritos
de separação que devem ter o lugar mais importante, sendo os ritos de
margem e agregação, ao contrário, pouco desenvolvidos. Entretanto, o
estudo dos fatos mostra que as coisas são diferentes e que, ao
contrário, os ritos de separação são pouco numerosos e muito simples,
e que os ritos de margem têm uma duração e complexidade que chega
às vezes a lhes dar uma espécie de autonomia. Finalmente, de todos os
ritos funerários aqueles que agregam o morto ao mundo dos mortos
são os mais elaborados e a eles é que se atribui a maior importância
(GENNEP, 1909/2011, p. 128).
Gennep encantou-se pela fase liminar dos cerimoniais fúnebres, chamada de “período
intermediário” por Hertz, em que a vida social entra em suspensão. Os sobreviventes e, às
vezes a comunidade inteira, fazem uma pausa até que a vida cotidiana possa ser novamente
retomada via ritos de reintegração. Durante o período liminar, “os vivos e o morto constituem
uma sociedade especial situada entre o mundo dos vivos, de um lado, e o mundo dos mortos,
100
de outro, da qual os vivos saem mais ou menos rapidamente conforme fossem mais
estreitamente aparentados ao morto” (GENNEP, 1909/2011, p. 129).
Pela sua importância e duração, ele observou que o período liminar adquire uma
autonomia relativa em relação ao resto do ritual quase a ponto de dominar o seu simbolismo.
Porém, a autonomia referida não desvincula a noção de liminaridade do contexto do ritual,
isto é, da noção de processo, mudança, passagem. Se eles ocupam um lugar de destaque,
talvez isto se deva ao caráter dramático das mudanças quando de uma morte (METCALF;
HUNTINGTON, 1991).
Organizamos em um quadro os simbolismos presentes em cada fase:
Ritos de Separação
Ritos de Margem
Ritos de Agregação
– prevalecem os diversos procedimentos
de transporte do cadáver;
– a queima dos utensílios, da casa, das
riquezas do morto;
– a morte das mulheres, dos escravos,
dos animais favoritos;
– os ritos de purificação e todas as
formas de proibições e tabus.
– os materiais usados para marcar a
separação: caixão, fosso, cemitério etc.;
– destruição dos componentes físicos e
espirituais do cadáver e o destino dado
as suas cinzas.
– há a suspensão da vida social
para todos aqueles que são
atingidos pelo luto;
– impõe-se o seguimento severo
de tabus e proibições enquanto
durar esse período;
– o tempo é tanto maior para
alguns em decorrência do
vínculo social com o falecido,
gênero ou status social.
– ocorre a reintegração à
vida social;
– em alguns grupos, a
suspensão de proibições e
regras sociais do luto
ocorre paulatinamente;
– há ritos em que a
refeição ocupa um lugar
de destaque, seja no
funeral ou em festas
comemorativas, que às
vezes encerram o período
de luto.
Gennep concebe uma associação estreita entre a série de passagens na vida humana e
os grandes ritmos da natureza (estações do ano, fases da lua etc.). Por toda parte haveria
momentos de passagem que incluem avanços, retrocessos e estágios de relativa parada, de
suspensão. A vida individual, em toda sociedade, consiste em passar sucessivamente de uma
idade a outra, de um registro a outro, de uma ocupação a outra. Cada passagem é geralmente
regulamentada, isto é, acompanhada por atos especiais, religiosos ou profanos, que dão uma
moldura especial à ocasião ao mesmo tempo em que garantem que a alteração não ocasionará
danos à vida social: “É o próprio fato do viver que exige as passagens” (GENNEP,
1909/2011, p. 24). Conforme sintetizou DaMatta (2011, p. 20):
Viver socialmente é passar, passar é ritualizar. Num universo como o
nosso, constituído destes seres frágeis e mortais, esses entes que
automatizam ritualizando e, fazendo sempre do paradoxo sua única
direção, vivem num jogo constante entre o individualizar-se e o
agregar-se; enfim, num universo de homens, a realidade mais viva é a
do conflito ordenado e a permanência se realiza, contraditoriamente,
como revelou van Gennep, na passagem.
101
Em suma, o que os estudos de Hertz e o de Gennep colocam em relevo é que a morte
não se reduz a um fenômeno fisiológico, pois a ela se acrescenta um complexo de crenças,
emoções e práticas. O corpo é uma entidade biológica e também social: “O corpo de um
falecido não é descartado como se fosse a carcaça de algum animal: ele deve receber um
cuidado específico e um funeral adequado; não somente por razões higiênicas mas por
obrigação moral51” (HERTZ, 1909/2011, p. 27). Se a morte é transição, os ritos são os
responsáveis por processar as passagens que implicam a mudança de status dos envolvidos e a
entrada em um novo. Se a morte implica em separação, dor, saudades e ainda temor, os ritos
realizam a purificação das relações dos vivos com os mortos.
51
Davies (2000) sugere que o termo “moral” em Hertz deve ser lido mais como sinônimo de “social” do que no
domínio da “ética”.
102
3. FUNÇÃO E EFICÁCIA DOS RITOS FÚNEBRES
Conforme observado, em diferentes sociedades a morte é acompanhada por diferentes
ações que mobilizam a comunidade e produzem alterações significativas em sua rotina: há o
acompanhamento dado ao agonizante e que antecede à morte; o tratamento dado ao cadáver;
os cultos em intenção do seu espírito; e as proibições às quais os enlutados são submetidos.
Por essa razão, J-P Albert (1999) propõe que a noção de ritos funerários deve ser
reconsiderada em favor de um sentido amplo que abarca desde a pré-morte até muito para
além do tratamento dado ao corpo, como nos casos de ritos destinados à imagem, ao nome,
aos bens ou ainda à paz do espírito na outra vida.
Com o intuito de examinarmos a eficácia e função dos ritos fúnebres, consultamos
alguns autores – em especial Lévi-Strauss, Mauss e Hubert, Louis-Vincent Thomas e Lacan –
buscando tecer, quando possível, um diálogo entre antropologia e psicanálise. Ao final do
capítulo, sugerimos um modelo de quatro fatores que consideramos essenciais à eficácia dos
ritos fúnebres.
3.1 A eficácia simbólica
No clássico Esboço de uma teoria geral da magia, Marcel Mauss (1904/2003, p. 56),
em parceria com Henri Hubert, apontou que os atos rituais “são, por essência, capazes de
produzir algo mais do que convenções; são eminentemente eficazes; são criadores; eles
fazem”. Lançada em 1904, esta obra sobre magia se apoia na noção de mana, força mágica e
misteriosa subjacente à eficácia do feiticeiro e de sua magia52.
Lévi-Strauss (1949a/2012, p. 282), quase 50 anos mais tarde retomou a questão da
eficácia da ação mágica recorrendo não mais ao etéreo mana, mas às contribuições, em voga
na época, da linguística. A eficácia ocorreria a partir de uma articulação entre “símbolo e
coisa simbolizada, ou, como dizem os linguistas, entre significante e significado”. Para
fundamentar sua teoria, ele reexaminou um encantamento guiado por um xamã oriundo da
tribo Cuna (República do Panamá) que tinha por finalidade ajudar num parto difícil. LéviStrauss quer saber como a terapêutica do xamã – que faz uso de uma manipulação puramente
psicológica do órgão doente – poderia ser eficaz frente a uma condição fisiológica específica.
52
Nas palavras de Mauss e Hubert (1904/2003, p. 145) “o mana é a força por excelência, a eficácia verdadeira
das coisas, que corrobora, sem aniquilar, a ação mecânica delas”.
103
O longo encantamento se inicia com a descrição da aflição da parteira, sua visita ao
xamã, a partida e chegada deste último na casa da parturiente, seus preparativos: fumigações
de grãos de feijão e cacau queimado, invocações e confecções de imagens sagradas em
madeira (os espíritos protetores a serem invocados durante a cura). Segundo o mito, o parto
difícil ocorre quando Muu, força responsável pela formação do feto, extrapolou suas funções
e se apossou da alma [purba] da futura mãe. O processo de cura consiste na busca pelo purba
perdido que
será restituído depois de muitas peripécias, como a demolição de
obstáculos, a vitória sobre animais ferozes e, finalmente, um grande
torneio entre o xamã com seus espíritos protetores e Muu com suas
filhas, com a ajuda de chapéus mágicos cujo peso elas não conseguem
suportar. Vencida, Muu permite que o purba da paciente seja
descoberto e libertado, o parto se realiza, e o canto termina
enunciando os cuidados tomados para que Muu não escape atrás de
seus visitantes (Lévi-Strauss, 1949a/2012, p. 266).
A batalha não é diretamente contra Muu, força indispensável para a procriação, mas
apenas contra seus excessos. Lévi-Strauss sublinhou no canto a importância dada à narrativa
que rememora, minuciosamente, os acontecimentos, mesmos aqueles considerados sem
importância: “A cura começa, portanto, com um histórico dos eventos que a precederam”
(LÉVI-STRAUSS, 1949a/2012, p. 275). Ao organizá-los cronologicamente em seus mínimos
detalhes, o xamã tenta capturar a atenção da paciente – diminuída pelo sofrimento – para fazêla reviver com precisão e intensidade toda uma série de eventos “cujo suposto palco são o
corpo e os órgãos internos [...] passa-se, assim, da realidade mais banal para o mito, do
universo físico para o universo fisiológico, do mundo exterior para o corpo interior” (LÉVISTRAUSS, 1949a/2012, p. 275).
Em ritmo cada vez mais rápido, o canto prossegue oscilando freneticamente entre
temas míticos e temas fisiológicos, abolindo a distinção entre ambos. Todas as forças,
conhecidas e desconhecidas, são mobilizadas e reunidas: espíritos benfazejos e equipamentos
mágicos iluminam o caminho complicado a ser percorrido até o embate final em prol da
liberação da alma e, por fim, provocando o parto, objetivo principal. Mas o canto não termina
com o parto, é necessário fechar a cura com procedimentos minuciosos, de modo a restituir a
ordem perdida onde cada protagonista deve retomar seu lugar. Como pode ser eficaz uma cura
assim empreendida?
Lévi-Strauss (1949a/2012) propôs algumas hipóteses. Para começar, há toda uma
preparação psicológica para que a paciente mergulhe no mito e o sinta realmente como uma
experiência real (no corpo). A força da narrativa cria as condições necessárias para que a
104
parturiente não apenas viva o mito, mas também torne acessível ao pensamento consciente as
sensações físicas indescritíveis e dolorosas. A narrativa torna possível descrever e nomear
para a paciente o inferno dessas sensações de modo inteligível e manejável. As terríveis dores
uterinas, p. ex., são personificadas em monstros fantásticos e animais ferozes considerados os
responsáveis por intensificar os males da parturiente. A cura, portanto, consiste em fazer
passar uma situação impossível de dizer, compreender e aceitar à condição de aceitável,
pensável, nomeável: “A paciente, tendo compreendido, faz mais do que resignar-se, ela fica
curada” (LÉVI-STRAUSS, 1949a/2012, p. 281).
No entanto, para que a cura se torne realmente eficaz, é necessário crer nela. Segundo
Mauss e Hubert (1904/2003, p. 56) os “atos em cuja eficácia todo um grupo não crê não são
mágicos. A forma dos ritos é eminentemente transmissível e é sancionada pela opinião”. A
crença se apresenta sob três aspectos complementares: primeiro, a crença do feiticeiro na
eficácia de suas técnicas; segundo, a crença do paciente no poder do feiticeiro; e finalmente, a
crença do coletivo que forma como que um “campo gravitacional” no interior do qual
ocorrem as relações entre o feiticeiro e aquele que ele cura (LÉVI-STRAUSS, 1949b/2012, p.
239). De outro modo, a eficácia depende da imersão de todos os protagonistas em um campo
simbólico compartilhado que valida os mitos e ritos ali evocados com função de cura.
O fato de a mitologia do xamã não corresponder a uma realidade
objetiva não tem importância, pois que a paciente nela crê e é membro
de uma sociedade que nela crê. Espíritos protetores e espíritos
maléficos, monstros sobrenaturais e animais mágicos fazem parte de
um sistema coerente que funda a concepção indígena do universo. A
paciente os aceita ou, mais precisamente, jamais duvidou deles. O que
ela não aceita são as dores incoerentes e arbitrárias que constituem um
elemento estranho a seu sistema, mas que o xamã, recorrendo ao mito,
irá inserir num sistema em que tudo se encaixa (LÉVI-STRAUSS,
1949a/2012, p. 281).
A cura xamânica se faz através da vivência ou revivência intensa do mito: “Trata-se de
suscitar uma experiência e, na medida em que essa experiência se organiza, mecanismos
situados fora do controle do sujeito se regulam espontaneamente, desembocando num
funcionamento ordenado” (LÉVI-STRAUSS, 1949a/2012, p. 283). O momento decisivo da
cura é quando o xamã induz simbolicamente uma ab-reação no doente a partir de sua própria
ab-reação, “nesse sentido o xamã é um ab-reator profissional” (LÉVI-STRAUSS,
1949b/2012, p. 257).
O xamã teria um duplo papel: por um lado, como orador, proferidor de encantamentos,
ele estabelece uma relação imediata com a consciência, e mediata com o inconsciente do
paciente; por outro, ele se encarna para tornar-se, graças às representações oferecidas, o
105
protagonista real do conflito que ela experimenta, intermediando o mundo orgânico e o
mundo psíquico. Ele é o grande herói à frente do batalhão sobrenatural na luta para resgatar a
alma perdida, e a paciente a ele se identifica no combate à desordem orgânica.
A cura consiste em articular “estados confusos e desorganizados, emoções ou
representações” na forma de “uma totalidade ou sistema válido precisamente na medida em
que permite a precipitação, ou coalescência, desses estados difusos (e também penosos, em
razão de sua descontinuidade)” (LÉVI-STRAUSS, 1949b/2012, p. 259). Esses estados
informuláveis e dolorosos são religados à “coerência do universo psíquico, ele mesmo
projeção do universo social” (LÉVI-STRAUSS, 1949b/2012, p. 260). Ao articular os
elementos na forma de uma totalidade, o xamã infunde segurança no doente e em seu grupo
reorganizando seu universo simbólico.
Segundo Dunker (2011, p. 74), o xamã age como “um mediador, reintegrando a
desordem pela conciliação entre atos rituais e narrativas sociais de referência”. O xamã, nesse
sentido, se mostra como um passador do simbólico ao oferecer significantes familiares e
inteligíveis que tornam possível viver de modo ordenado e inteligível uma experiência atual
sentida até então como caótica, dolorosa e indizível.
Lévi-Strauss enfatizou na terapêutica xamânica a sua dimensão simbólica, a eficácia
do curador nesse caso se caracteriza, conforme Dunker (2011, p. 76), “por oferecer ao doente
uma linguagem, mesmo que incompreensível, na qual se podem expressar estados não
formulados e, de outro modo, informuláveis”. Mas, a prática xamanística não deve ser
reduzida ao seu estilo, sua eficácia se deve, antes de tudo, à sua “estrutura” que possibilita
“experimentar o mito de forma participativa e atual”; dentre suas características destaca-se: a
ênfase na fala (na narrativa); a evocação dos mitos coletivos; a convocação a que o doente se
identifique com o xamã; a cura sancionada coletivamente; e finalmente, o xamã como o
agente da cura capaz não só de ler e interpretar os signos da natureza que estão em desacordo,
como também de oferecer novos significantes a partir de um mito coletivo em substituição
metafórica aos significantes associados ao adoecimento (DUNKER, 2011).
Portanto, a força da cura xamânica se deve também a outros elementos além da
linguagem (campo simbólico), tais como a ação dramática – conforme sublinhado por Mauss
e Hubert (1904/2003, p. 81), “os atos do mágico são ritos” - e a participação de um público
sancionador da terapêutica a ser aplicada. A eficácia terapêutica do xamã consiste em prover
uma experiência intensa que conjuga linguagem, ação performativa e a participação dos
envolvidos de modo a suscitar uma vivência ou revivência intensa com desfecho catártico
106
alivia-dor, isto é, propiciador da cura. O mito não é apenas narrado, mas vivamente
experimentado por mediação do habilidoso xamã.
3.2 A função dos ritos fúnebres
Ritos de morte para a paz dos viventes
Uma representação quase universal é que tanto o destino dos mortos quanto sua
relação com os vivos dependem enormemente da realização dos ritos (ALBERT, 1999). Já
enfatizamos que a morte natural não é suficiente para efetuar essa passagem, e somente o
processo ritual garante a segunda morte, morte simbólica que realiza a transição identitária do
morto e do vivo no corpo social (HERTZ, 1907/1960).
“Não há nada mais perigoso do que um morto ‘mal passado’”, escreveu com bom
humor J-P Albert (1999, p. 146, tradução nossa). O autor distinguiu duas circunstâncias em
que os mortos são mais temidos:
1. aqueles cuja morte impede a realização dos ritos (os suicidas em algumas culturas e
aqueles casos em que o corpo não pode ser recuperado, tais como as mortes no mar, na
guerra, em acidente aéreo, vítimas de repressão política e extermínio etc.);
2. aqueles cuja morte se considera ocorrida antes da hora (vítimas de homicídio,
acidentes etc.) e que por isso possivelmente voltariam para assombrar os vivos.
Esses mortos “mal-passados”, as larvas da Antiguidade latina, estariam banidos do
repouso eterno, sua morte não teria fim, ou seja, eles não acederiam à classe de mortos
benevolentes, os ancestrais protetores. Na Antiguidade, as práticas e oferendas fúnebres
serviam para apaziguá-los e evitar que perturbassem os vivos. Entre os Dayak nem mesmo os
rituais eram capazes de apagar as circunstâncias de uma morte sinistra, e a questão maior era
então a de se livrar imediatamente de seus corpos e das lembranças que a morte deles
suscitava: “Estes casos excepcionais não fazem mais do que confirmar a regra dominante: os
mortos metem medo e o problema maior é de se livrar, ou seja, de os separar sem retorno do
mundo dos vivos” (ALBERT, 1999, p. 146, tradução nossa).
Mal-passados e mal-ditos eles são considerados
os mortos mais perigosos, porque desejariam reagregar-se ao mundo
dos vivos, mas não podendo fazê-lo conduzem-se como estrangeiros
hostis. [...] Além disso, estes mortos sem lar nem lugar sentem
frequentemente um amargo desejo de vingança. Deste modo, os ritos
dos funerais são ao mesmo tempo ritos utilitários de grande alcance,
107
que ajudam a livrar os sobreviventes de inimigos eternos (GENNEP,
1909/2011, p. 138).
Este é o caso do rei Hamlet53 que retorna em decorrência de uma ofensa inexpiável
para clamar por vingança. Abatido antes da hora, sem os ritos preparatórios, Hamlet pai está
condenado a vagar por um tempo até purgar os crimes cometidos, conforme se lamentou ao
filho:
Abatido em plena floração de meus pecados,
Sem confissão, comunhão ou extrema-unção,
Fui enviado para o ajuste final,
Com todas minhas imperfeições pesando na alma.
(SHAKESPEARE, 2012, p. 37)
Em sua leitura da peça de Shakespeare, Lacan (1958-9/2013, p. 402) considerou que o
rei foi surpreendido “na flor de seus pecados [...] ele não teve tempo de reunir antes de sua
morte alguma coisa que o teria colocado em condições de comparecer ao julgamento final”
Privado dos ritos de pré-morte, o soberano ainda foi submetido a outra ofensa gravíssima: as
honras fúnebres que lhe eram devidas foram abreviadas em decorrência dos esponsais
apressados da viúva com o seu irmão:
Horácio: Senhor – eu vim pra assistir aos funerais de seu pai.
Hamlet: ou seja: veio assistir aos esponsais de minha mãe. [...]
Economia, Horácio! Os assados do velório puderam ser servidos como
frios na mesa nupcial.
(SHAKESPEARE, 2012, p. 25)
Em todos os lutos postos em questão na tragédia, os ritos se encontram elididos,
abreviados ou clandestinos. Polônio, assassinado por Hamlet, é enterrado furtivamente por
óbvias razões políticas. Seu filho Laertes inconsolável brada por alguma satisfação:
O modo como morreu, o funeral furtivo – Sem troféus, espada, nem
escudo sobre os ossos. Nenhum rito nobre ou a menor pompa
mortuária. Tudo isso grita do céu à terra reclamando que eu exija
explicações.
(SHAKESPERARE, 2012, p. 109).
E ainda Ofélia. Seu suicídio a excluiria sem volta de qualquer rito cristão se não fosse
seu elevado status social; sob pressão, a Igreja consente em um enterro ad sanctus, porém os
ritos são simplificados e realizados de modo clandestino:
Primeiro Padre: As exéquias foram celebradas nos limites
53
Para este estudo optamos pela versão brasileira de Hamlet, empreendida por Millôr Fernandes, ainda
considerada por muitos uma das melhores. Segundo o editor da obra, Millôr era avesso às “eruditices” comuns
em traduções de clássicos, por isso ele optou por uma tradução em prosa coloquial, mais próxima da linguagem
usual, para privilegiar toda a potência dramática do texto Shakespeareano.
108
A que nos autorizam. Sua morte foi suspeita;
Não fosse a ordem superior para exceção da regra
Teria sido enterrada em campo não consagrado
Até as trombetas do Juízo Final; em vez de preces
Pedras, cacos e lama seriam atirados sobre ela.
Contudo lhe foram concedidas grinaldas de virgem,
Braçadas de flores brancas e tímpanos e séquito,
Acompanhando-a à última morada.
Laertes: Não se pode fazer mais nada?
Primeiro Padre: profanaria o ofício dos mortos
Cantar um réquiem como fazemos pro descanso
Das almas que partiram em paz
(SHAKESPERARE, 2012, p. 125).
A tragédia de Hamlet “de uma ponta a outra [...] não se fala senão do luto”, de “um
luto não satisfeito” (LACAN, 1958-1959/2013, p. 399, 401) pelos valores rituais que
aparecem simplesmente ignorados. Em Hamlet os cadáveres se acumulam, os fantasmas
surgem para reivindicar satisfação e os enlutados vagam amordaçados e atormentados sem
contar com o reconhecimento da perda pelo seu entorno social, nem com os rituais previstos e
devidos. Em vão Laertes protesta contra o destino de sua irmã:
Deponha-a sobre a terra;
Que de sua carne bela e imaculada
Brotem as violetas! Te digo, padre cretino,
Minha irmã será um anjo eleito entre os eleitos,
Quando tu uivares nas profundas do inferno.
(SHAKESPERARE, 2012, p. 125).
Louis-Vincent Thomas, em livro cujo belo título copiamos para dar nome a essa parte
do capítulo, considera que os ritos fúnebres, salvo as variações tempo-espaciais, obedecem a
duas constantes universais, duas perspectivas não excludentes, a do morto ou da morte e a dos
viventes:
No nível do discurso manifesto, seu objetivo é duplo: de um lado,
regrar o destino do morto juntando a abjeção da putrefação com a
atribuição de um lugar para o morto, e se possível, lhe conferindo
papeis benéficos para o grupo. De outro, apoiar os sobreviventes
marcados pela perda, mobilizar em torno deles a comunidade de modo
a regrar o luto. De fato, nos dois casos, trata-se de dominar a morte em
sua forma efetiva naquilo que concerne ao morto, em seu equivalente
simbólico naquilo que concerne ao pesar dos enlutados. No nível do
discurso latente, o ritual leva em conta apenas um destinatário: o
homem vivo, indivíduo ou a comunidade (THOMAS, 1985, p. 120-1,
tradução nossa).
Apesar de se considerar, no senso comum, que primariamente os ritos funerários
servem ao morto – para honrar sua memória e/ou ajudá-lo no seu destino no Além – essas
práticas, na verdade, não o tem como seu destinatário, mesmo que ele seja sempre o seu ponto
109
de apoio. Os verdadeiros destinatários são... os vivos. Portanto, os ritos de morte se destinam
à paz dos viventes: “O ritual de morte seria em definitivo um ritual de vida” (THOMAS,
1985, p. 121, tradução nossa).
Em geral, a função primordial dos ritos funerários é “curar ou prevenir” aqueles que a
morte marcou (THOMAS, 1985, p. 121). E fazem isso a partir de duas operações básicas, a
“designação” e a “capacidade de produzir um efeito”. A designação se refere à capacidade de
o rito designar os signos que dão visibilidade e reconhecimento ao acontecimento da morte: o
lugar destinado ao morto (túmulo e o espaço cemiterial); o cenário (presente no velório, na
missa de 7º dia...), os atributos diversos (as vestimentas de luto, as velas e flores...); e as ações
(providências quanto à preparação do corpo, cortejo...).
Quanto à capacidade de produzir um efeito se refere ao tratamento dado pelo rito à
imensa angústia suscitada pela morte: “De uma maneira geral, o rito funerário contribui para
canalizar o ‘trabalho de luto’ e permite reequilibrar em um prazo mais ou menos curto aqueles
que a morte marcou” (THOMAS, 1985, p. 126, tradução nossa). Primeiramente, o autor
destaca a importância do velório, momento em que ocorre a última relação com o morto, a
dura realidade da despedida é minimizada pelo reconhecimento dado pela comunidade à
perda. Já os interditos do luto, o tabu que o acompanha, sinalizam o pesar importante de se
exprimir em razão de sua “função expiatória que o imaginário popular lhe atribui para purgar
ressentimentos e culpas” (THOMAS, 1985, p. 126, tradução nossa). Ainda, os ritos consolam
os enlutados na medida em que sua realização lhes assegura a certeza de que estão provendo
ao defunto a paz e sobrevivência no Além.
O ritual funerário implica o apoio solidário e apaziguador dos enlutados por toda
comunidade. Entretanto, o rito não se destina somente a consolar o enlutado, ele “conduz a
uma revitalização coletiva compensatória para contrabalancear a morte daquele sobre o qual
o grupo certamente tinha investido” (THOMAS, 1985, p. 127, grifo do autor, tradução nossa).
Não é à toa que alguns ritos de morte se finalizam com um grande e animado festim,
momento de celebração comunitária que recompõe a unidade do grupo em torno de seus
ideais, suas crenças, seus valores. Passa-se do luto ao júbilo, a vida é resignificada pela morte.
A excitação observada nesses festins é um meio de catarse, um modo de liberação da angústia
e renovação da comunidade.
Enfim, através dos ritos, os viventes são tratados e liberados para cuidarem de seus
negócios enquanto os mortos são recuperados como ancestrais protetores ou como símbolos
de coesão do grupo, em celebração da vida que triunfa sobre a morte. Os ritos fúnebres,
110
concluiu Thomas (1985, p. 277, tradução nossa), provocam uma coesão intensa do grupo em
torno do ideal comunitário de reconciliar “o homem com a morte e com a vida”.
No ocidente esse tipo de celebração comunitária em torno da morte tornou-se rara.
Uma exceção é a milenar celebração mexicana do “Día de los Muertos”. Na contramão da
atual intolerância para com a morte e os mortos, os mexicanos realizam anualmente uma
espécie de “carnaval macabro” em que crianças e adultos se fantasiam de esqueleto, dançam,
comem, bebem e se divertem no cemitério. Neste dia nada de lamentações, a música anima as
visitas aos jazigos que são limpos e neles são depositadas as oferendas de flores, velas e
comidas. Guloseimas de açúcar, las calaveritas dulces, são preparadas e distribuídas com os
nomes dos lembrados. A celebração exalta tanto a memória dos mortos quanto a
transitoriedade da vida, e de modo tão excepcional nos tempos atuais que se tornou uma
grande atração turística. Em uma reportagem54, Andrés Medina Hernández, um historiador do
Instituto de Investigações Antropológicas da Universidade Nacional Autônoma do México,
relatou que os visitantes recebem a celebração com estranhamento:
Quem vem de fora estranha e há quem se ofenda por considerar falta
de respeito fazer festa durante o luto, que deveria ser de resguardo.
Mas, para os pré-hispânicos, o Dia dos Mortos é muito aguardado,
porque é um reencontro. Para eles, os mortos protegem os vivos. É o
dia de recebê-los bem (Yahoo notícias em 28 de outubro de 2014).
Em suma, a função terapêutica dos ritos fúnebres abrangem duas dimensões que se
recobrem de modo indissociável: uma que diz respeito mais ao cuidado do morto; e outra que
se destina mais ao cuidado dos viventes. Abaixo apresentamos uma divisão meramente
didática a partir dos estudos consultados.
Do lado do morto os ritos visam: a preparação do corpo para o oficio dos mortos e
sepultamento; encobrir de símbolos a aniquilação física e o indizível da morte; inscrever o
desaparecimento de alguém no campo social; conferir ao defunto outra identidade ou mudar
seu status; separar o morto do mundo dos vivos ou impedir que retornem para assombrar os
vivos; ajudá-lo em seu destino no Além; honrar sua memória conferindo dignidade à sua
existência.
Do lado dos viventes os ritos se destinam a: fornecer uma linguagem para expressar o
pesar; suspender o tempo de modo a realizar as separações e as integrações no convívio
social; processar a separação do morto provendo um modo formalizado de se despedir;
conferir mudança de status social dos vivos; conferir um modo convencional de interação
54
“Em Día de los Muertos, espíritos vêm ao mundo dos vivos”. Yahoo notícias em 28 de outubro de 2014.
Fonte: https://br.noticias.yahoo.com/día-los-muertos-espírtios-vem-ao-mundo-dos-113000784.html. Acesso em:
10/01/2015.
111
com as pessoas que estão de luto; pacificar as relações dos vivos com seus mortos ao mesmo
tempo que media as relações com os mortos; revitalizar os laços entre os viventes
ressignificando a morte, por conseguinte, a vida; e, ainda, socorrer, tranquilizar, apaziguar,
confortar, proteger, consolar, apoiar, desculpabilizar, purgar, curar...
Da vertigem à transcendência: A função mediadora dos ritos fúnebres segundo Lacan
Se durante os anos de seu retorno à Freud, Lacan manteve um interesse entusiasta
pelas ideias de Lévi-Strauss, nem por isso deixou de realizar uma leitura própria que o
afastava consideravelmente das concepções deste. Uma diferença epistemológica importante
entre os dois autores diz respeito à concepção de função simbólica. Se para Lévi-Strauss
“função simbólica” e “princípio de reciprocidade55”, de modo geral, são dois nomes para a
mesma coisa, em Lacan o simbólico não se confunde com a reciprocidade, ele é antes a
função que permite a transcendência (SCLUBA, 2009): “O sujeito humano é especialmente
exposto [...] ao surgimento de uma vertigem, e, para afastá-la, ele experimenta a necessidade
de fazer algo transcendente [...]” (LACAN, 1953/2005, p. 26).
O registro simbólico permite ao sujeito transcender o plano imaginário marcado, entre
outras coisas, pela angustiante experiência de um corpo despedaçado cuja imagem no espelho
(estádio do espelho) antecipa uma unidade que ainda não se vive. Essa experiência
perturbadora e constitutiva de todas as manifestações humanas ameaça sempre emergir
revelando “uma profunda insuficiência e revela nele [no sujeito] uma rachadura, um
dilaceramento original, uma derrelição, para retomar o termo heideggeriano. Por isso é que
em todas as suas relações imaginárias, o que se manifesta é uma experiência da morte”
(LACAN, 1952/2008, p. 41). Uma morte imaginada e imaginária está sempre presente na
relação narcísica com o semelhante, relação dual em que o eu ameaça esvair-se, apagar-se,
confundir-se, pura vertigem.
A fala [...] desempenha o papel essencial de mediação. A partir do
momento em que foi realizada, a mediação muda os dois parceiros em
presença. [...] Essa fala mediadora não é pura e simplesmente
mediadora nesse plano elementar. Ela permite, entre dois homens,
transcender a relação agressiva fundamental com a miragem do
semelhante (LACAN, 1953/2005, p. 30).
55
O princípio da reciprocidade se inscreve nas trocas humanas das alianças que ordenam as escolhas dos
parceiros sexuais: um homem ou uma mulher tem que sair de seu grupo para se ligar a outro e ao abrir mão de
um parceiro(a) em seu próprio grupo, a fim de encontrá-lo(a) em outro grupo, libera-o(a) para alguém do outro
grupo (GOLDMAN, 2013).
112
Quando um terceiro elemento é introduzido na relação narcísica “a relação com o
objeto pode ser sustentada a certa distância” (LACAN, 1953/2005, p. 33). Uma relação só
assume valor simbólico a partir da mediação desse elemento transcendente por meio do qual o
sujeito pode constituir seu desejo e realizá-lo simbolicamente. É por meio de símbolos que o
sujeito se humaniza, isto é, participa de uma relação realmente humana.
A lápide e o túmulo, esses vestígios primeiros de humanidade, são símbolos fabricados
para velar o horror do cadáver em decomposição, preservando-o do desaparecimento
completo, ao mesmo tempo que permite que a relação com o morto se mantenha, mas
mediatizada pelo símbolo: “O que caracteriza a espécie humana é justamente cercar o cadáver
de algo que constitua uma sepultura, de sustentar o fato de que isso durou. A lápide ou
qualquer outro sinal de sepultura merece exatamente o nome de ‘símbolo’. É algo
humanizante” (LACAN, 1953/2005, p. 36).
A frágil existência humana encontra no símbolo um modo de transcendência.
Transcender o quê? As imagens terrificantes da corrupção do cadáver e do desaparecimento
completo de qualquer vestígio de existência; em última instância, o símbolo visa recobrir,
ainda que de modo limitado, o real da morte. Por mediação do símbolo, os objetos podem
subsistir encontrando assim uma segunda existência.
O símbolo do objeto é justamente o objeto-aí. Quando ele não está
mais aí, é o objeto encarnado em sua duração, separado de si próprio e
que, por isso mesmo, pode estar de certa forma sempre presente para
você, sempre ali, sempre a sua disposição. Encontramos aqui a relação
que há entre o símbolo e o fato de que tudo o que é humano é
conservado como tal. Quanto mais humano, mais preservado do lado
movediço e descompensante do processo natural. O homem faz
subsistir em uma certa permanência tudo o que durou como humano,
e, antes de tudo, ele próprio (LACAN, 1953/2005, p. 36).
A linguagem simbólica preserva a identidade do objeto mesmo quando ele não está
mais presente. Pela palavra resguarda-se a “permanência do que é passageiro”, ainda que seja
uma “presença feita de ausência” (LACAN, 1966/1998, p. 277).
Os símbolos efetivamente envolvem a vida do homem numa rede tão
total que conjugam, antes que ele venha ao mundo, aqueles que irão
gerá-lo “em carne e osso”; trazem em seu nascimento, com os dons
dos astros, senão com os dons das fadas, o traçado de seu destino;
fornecem as palavras que farão dele um fiel ou um renegado, a lei dos
atos que o seguirão até ali onde ele ainda não está e para-além de sua
morte; e, através deles, seu fim encontra sentido no juízo final, onde o
verbo absolve seu ser ou o condena – a menos que ele atinja a
realização subjetiva do ser-para-a-morte (LACAN, 1966/1998, p.
280).
113
A rede simbólica nos cerca do nascimento à morte. Pelos ritos fúnebres os homens
cercam de símbolos apaziguadores a morte, ao mesmo tempo que processam as mudanças nas
relações com seus mortos. Lacan apresenta um profundo respeito pelos ritos funerários. Seu
interesse pelo assunto aparece explicitado em duas lições do seminário 6, “O desejo e sua
interpretação”56. Nessa ocasião Lacan (1958-9/2002) lamenta, e nós junto com ele, por não ter
tempo para realizar alguns seminários acerca dos ritos funerários através de uma investigação
etnológica. Na lição do dia 22 de abril de 1959, ele indaga sobre a função dos ritos fúnebres:
Se do lado do morto, daquele que acaba de desaparecer, este algo que
não foi cumprido, que se chama os ritos – os ritos destinados a quê,
afinal? O que são os ritos funerários? Os ritos pelos quais nós
satisfazemos aquilo que se chama a memória do morto, o que é, se não
é a intervenção total, maciça, do inferno até o céu, de todo o jogo
simbólico? Eu gostaria de ter tempo de fazer-lhes alguns seminários
sobre este assunto do rito funerário através de uma investigação
etnológica (LACAN, 1958-9/2002, p. 356).
Em consonância com as ideias de Lévi-Strauss à época, Lacan ressalta a dimensão
simbólica dos ritos fúnebres. Sua eficácia está em convocar nada menos do que “todo o jogo
simbólico” para fazer frente à dor e a desordem criada pela morte de um ser amado cuja perda
“provoca um furo no real” (LACAN, 1958-9/2002, p. 397). Os ritos fúnebres teriam a função
de convocar os significantes na tentativa de cingir o furo:
O caráter macroscópico dos ritos funerários, ou seja, o fato de que
com efeito ele não tem nada que possa cumular de significantes este
furo no real se não for a totalidade do significante, o trabalho
realizado ao nível do Lógos – digo isso para não dizer ao nível do
grupo nem da comunidade (certamente são o grupo e a comunidade
enquanto culturalmente organizados que são os sustentadores disso) –
o trabalho do luto apresenta-se primeiramente como uma satisfação
dada àquilo que se produz de desordem em razão da insuficiência de
todos os elementos significantes a fazer face ao rombo criado na
existência pela colocação em jogo total de todo o sistema significante
ao redor do menor luto (LACAN, 1958-9/2002, p. 357).
O caráter “macrocósmico” dos ritos fúnebres ressaltado por Lacan está em
consonância com o pensamento de Lévi-Strauss (1949b/2012, p. 259) para quem a eficácia do
feiticeiro e de sua magia se deve à possibilidade de articular todos os elementos (estados
confusos, emoções ou representações) “em forma de uma totalidade ou um sistema válido”. O
rito realiza no campo social, “nível do Lógos”, uma função equivalente ao trabalho de luto
56
Com o intuito de realizar uma leitura o mais próxima possível da letra de Lacan, consultamos três versões
deste seminário: 1) a oficial estabelecida por Jacques-Alain Miller publicada, em 2013, pelas Éditions de La
Martinière e Le Champ Freudien Éditeur; 2) a transcrição francesa da estenotipia disponível no site:
http://staferla.free.fr/S6/S6.htm; 3) a tradução brasileira da estenotipia publicada pela Associação Psicanalítica
de Porto Alegre em 2002. Neste estudo, optamos por usar, como fonte de citação de trechos, a versão brasileira
publicada pelo grupo de Porto Alegre.
114
proposto por Freud (ALLOUCH, 2004). Nesse sentido, consideramos o rito um tratamento
possível do (furo aberto no) real pelo simbólico.
Lacan inicia a sessão do dia 29 de abril de 1959 ressaltando os valores rituais. Ele
parte do escândalo que é para Hamlet o casamento apressado de sua mãe desrespeitando o
tempo de luto que a ela caberia resguardar em respeito à memória de seu marido:
Não há necessidade de lhes lembrar estas palavras de Hamlet sobre
essas sobras da refeição dos funerais que serviram à refeição de
núpcias: “Economia! Economia! Thrift, thrift, Horatio!”, indicando
com esse termo algo que nos lembra que em nossa exploração do
mundo do objeto, nessa articulação que é a da sociedade moderna,
entre o que nós chamamos os valores de uso e os valores de troca
como todas as noções que se engendram em torno disso, há talvez
alguma coisa que a análise desconhece – eu quero dizer a análise
marxista, econômica, na medida em que ela domina o pensamento de
nossa época – e da qual tocamos a todo instante a força e amplitude,
são os valores rituais (LACAN, 1958-9/2002, p. 360).
O que está em questão para Hamlet é a economia dos valores rituais que avilta não só
a dignidade do rei, figura soberana do país, mas e principalmente a dignidade de seu pai que
aparece humilhado ante a falta de luto de sua adorada rainha. No seminário XVI, “De um
outro ao Outro”, Lacan (1968-9/2008, p. 16) recupera em parte esse parágrafo ao tratar do
“pote”, o vaso fúnebre usado para depositar os restos mortais em honra ao morto: “A título de
que o pote explica a significação do que está nele? A título de um valor de uso, ou, melhor
dizendo, de um valor de troca com outro mundo e outra dignidade. A título de homenagem”.
Os ritos fúnebres realizam as trocas com o outro mundo conferindo dignidade ao corpo e ao
nome do falecido. Em Hamlet observa-se que a honra e o cuidado que se deveriam prestar ao
cadáver do rei foram amplamente cumpridos, mas a honra que se devia à memória de seu
nome, manifestada pelo cumprimento rigoroso das exigências de luto, foi selvagemente
ignorada; e o rei volta do mundo das sombras para clamar por vingança e satisfação.
No parágrafo seguinte, Lacan ressalta a função mediadora dos ritos fúnebres. No
entanto, ao consultarmos este parágrafo na aguardada versão oficial lançada em 2013 pelas
Éditions de La Martinière observamos que ele se encontra amputado:
J'ai déjà fait allusion l'avant-dernière fois à la fonction du rite dans le
deuil. Le rite introduit une médiation par rapport à ce que le deuil
ouvre de béance. Plus exactement, le deuil vient coïncider avec une
béance essentielle, la béance symbolique, majeure, le manque
symbolique, le point X en somme, dont l'ombilic du rêve que Freud
evoque quelque part n’est peut-être que le correspondant
psychologique (LACAN, 1958-1959/2013, p. 402).
[Já fiz alusão da penúltima vez à função do rito no luto. O rito
introduz uma mediação em relação a isso que o luto abre de hiância.
115
Mais exatamente, o luto faz coincidir com uma hiância essencial, a
hiância simbólica maior, a falta simbólica, o ponto X em suma, o
umbigo do sonho que Freud evoca em algum lugar é talvez justamente
seu correspondente psicológico] [tradução nossa]
Na transcrição tanto da estenotipia francesa quanto na versão brasileira, lê-se:
Já fiz alusão da penúltima vez [de fato no dia 22-04-1959], a essa
função do rito no luto. É por essa mediação que o rito introduz ao que
o luto abre como hiância, mais exatamente à maneira como ele vem
coincidir, colocar ao centro de uma hiância absolutamente essencial, a
hiância simbólica, maior, a falta simbólica, o ponto x em suma do qual
se pode dizer que, quando Freud faz alusão ao umbigo do sonho,
talvez seja justamente o correspondente psicológico que ele evoca
dessa falta (LACAN, 1958-1959/2002, p. 360).
J'ai déjà fait allusion l'avant-dernière fois [en fait le 22–04–1959], à
cette fonction du rite dans le deuil. C'est par cette médiation que le rite
introduit à ce que le deuil ouvre de béance quelque part, plus
exactement à la façon dont il vient coïncider, mettre au centre d'une
béance tout à fait essentielle, la béance symbolique, majeure, le
manque symbolique, le point X en somme dont on peut dire que
quelque part, quand FREUD fait allusion à “l'ombilic du rêve”, peutêtre est-ce justement le correspondant psychologique qu'il évoque de
ce
manqué
(LACAN,
1958-1959).
Disponível
em:
http://staferla.free.fr/S6/S6.htm.
Enquanto na estenotipia encontramos que “é por essa mediação que o rito introduz a
isso que o luto abre de hiância em algum lugar, mas exatamente à maneira como ele [o rito]57
vem coincidir, colocar no centro de uma hiância absolutamente essencial, a hiância simbólica,
maior...”. Nas Éditions de La Martinière, lemos que “o luto vem coincidir com uma hiância
essencial, a hiância simbólica, maior...”. Observa-se que o luto aparece aí tomando o lugar
que Lacan havia atribuído ao rito.
Em nossa leitura dessa passagem, o rito fúnebre, em sua função simbólica, faz
mediação em relação ao furo real, ele media a relação do mundo dos vivos (simbólico) com o
mundo dos mortos (real). No centro dessa hiância aberta pelo luto, o valor do rito está em
intervir mobilizando e despejando imagens e significantes, gestos e palavras, todos os
elementos que possam fazer bordar ao furo que a morte escancarou. Preencher o furo é
impossível, mesmo que o rito convoque todas as imagens e todo o conjunto de significantes
suscitados pelo luto ele não poderá suturá-lo, sua função essencial é de tratamento, ele faz
mediação entre o luto psíquico e o luto social.
Em relação a essa função de tratamento ou cura do luto pelo rito, cabe-nos tecer
algumas considerações em relação ao contexto social atual. Van Gennep (1909/2011)
57
Entendemos, junto com Allouch, que esse “ele”, na lógica da frase, se refere ao rito. Cf. Jean Allouch (2004, p.
293).
116
classificou o rito fúnebre como um “rito de passagem”, um operador eficaz da separação dos
mortos do mundo dos vivos ou dos vivos em relação aos seus mortos em sociedades com
características totalizantes, “tribais”, em que o indivíduo desaparece em prol do social. Nesses
grupos, luto psíquico e luto social não se separam, o primeiro é recoberto pelo segundo. Os
ritos efetuam o tratamento do luto, eles dão a medida de sua duração marcando o início e o
seu fim.
No passado, as sociedades ocidentais também funcionavam dominadas por um
discurso religioso hegemônico que regrava as expressões de luto e sua duração pelos ritos
sagrados. Entretanto, atualmente vivemos em uma sociedade atomizada, altamente
individualista em que se observa uma inversão: o luto psíquico acabou recobrindo o social e a
função e eficácia dos ritos tradicionais se tornaram bastante relativas. Hoje muitos buscam um
modo pessoal e privativo de ritualizar o pesar.
Nesse contexto, o rito enquanto tratamento do real pelo simbólico assume um valor
contigencial. É possível que para alguns ele opere desde esse lugar de tratamento, mas para
outros pode ser que assuma uma função mais de velamento e/ou catártica. Em sua
formalidade, redundância e repetição, a montagem ritual pode recriar a impressão de que se
tem controle sobre a duração das coisas ao velar com imagens e significantes o absurdo da
morte. Nesse sentido, o rito não se diferencia nem da função do jogo infantil observado por
Freud, nem do cerimonial do obsessivo.
Freud (1920/1980, p. 28) observou que seu pequeno neto atirava e recuperava
incansavelmente um carretel preso por um cordão. Ao realizar essas manobras, a criança
repetia os sons que Freud interpretou como sendo fort e da, “lá” e “aqui” em alemão,
respectivamente. O jogo inventado pela criança encenava os desaparecimentos e os retornos
da mãe e visava obliterar uma experiência aflitiva de perda. Assumindo, através do jogo, o
controle sobre situações desagradáveis, as crianças “ab-reagem a intensidade da impressão,
tornando-se, por assim dizer, senhoras da situação”.
Em sua leitura do jogo do carretel, Lacan (1964/2008, p. 66) o considerou como uma
“resposta do sujeito àquilo que a ausência da mãe veio criar na fronteira de seu domínio – a
borda do seu berço – isto é, um fosso, em torno do qual ele nada mais tem a fazer senão o
jogo do salto”. O rito se assemelha a esse jogo do salto “que a gente se inventou para dominar
o episódico e o aleatório” (THOMAS, 1985, p. 7), um modo coletivo de velar a inquietude
diante das separações, as incertezas do devir, o horror do aniquilamento, o sem-sentido da
morte.
117
O que ele [jogo] visa é aquilo que, essencialmente, não está lá
representado – pois é o jogo mesmo que é o Repräsentanz da
Vorstellung. O que se tornará a Vorstellung quando, novamente, esse
Repräsentanz da mãe – em seu desenho tachado de toques, de guaches
do desejo – vier a faltar? (LACAN, 1964/2008, p. 67).
Em sua função de véu, o rito funciona como uma tela, tal como a fantasia que
dissimula, mascara em substituição a algo que não está lá representado, no caso do rito, a
morte (LACAN, 1964/2008). Ainda que possa ser apaziguador por trazer uma sensação de
domínio sobre uma situação sobre a qual não se tem a menor possibilidade de controle, isso
não implica dizer que o rito seja elaborativo no sentido de separar e encerrar a questão, tal
como um rito de passagem. Do mesmo modo o cerimonial do obsessivo, ele também um rito
individual inventado pelo sujeito, mas que não se constitui em tratamento elaborativo de um
real impossível de metabolizar, mas uma medida protetora, daí decorre toda a necessidade,
tanto no caso do jogo infantil, do cerimonial da neurose obsessiva ou mesmo da cena
fantasmática, de se repetir e se repetir e se repetir incansavelmente. Um rito que não encerra e
nem se encerra. Mais encenação (atuação) do que passagem, mudança, separação.
Em suma, com Lacan vimos que a função do rito fúnebre consiste em fazer mediação
(e não fechamento ou sutura do furo) em relação à hiância aberta pelo luto. O rito convoca
todo o conjunto de significantes para fazer frente a uma perda-furo-no-real. No campo
antropológico, encontramos que o rito fúnebre se constitui em “rito de passagem” ele permite,
em sociedades totalizantes, a inscrição da perda no campo simbólico e através dessa inscrição
a mudança de status. Porém, em sociedades com características mais individualistas, como a
nossa, a eficácia dos ritos tradicionais tornou-se relativa.
3.3. Quatro fatores estruturais dos ritos fúnebres
Com base na literatura consultada, elegemos quatro fatores estruturais essenciais à
eficácia dos ritos fúnebres. Eles são indissociáveis, a divisão aqui proposta é meramente
didática.
As representações.
Primeiramente há a eficácia simbólica, os ritos fúnebres operam em função das
representações que o sustentam e que necessariamente precisam ser partilhadas e validadas
pelo grupo que os promove, isto é, eles operam a partir de um sistema simbólico
118
compartilhado. O rito fornece os significantes – função mediadora destacada por Lacan
(1958-59/2013) – que possibilitam a articulação dos estados confusos, dolorosos e
incompreensíveis com o sistema total de crenças e valores do grupo. Uma operação
linguageira – composta por palavras, gestos, ações – que reorganiza o universo simbólico ao
atribuir sentido e coerência ao nonsense da morte.
Além disso, é o registro simbólico que possibilita ao sujeito transcender a morte
imaginária próxima demais das imagens terrificantes da putrefação física e do aniquilamento
total (LACAN, 1953/2005). As crenças e práticas escatológicas postas em ação nos ritos
cercam o cadáver (a morte) de transcendências, apaziguando a angustiante ameaça de
desaparecimento e nadificação que toda morte, principalmente a dos mais próximos, põe em
questão.
O Lugar do Público
A implicação de um público é indissociável do primeiro. Não se faz rito sozinho, do
mesmo modo que não se faz chiste sozinho como observou Freud (1905/1980, p. 166). A
presença do terceiro com quem o chiste é partilhado é fundamental em sua formação: “[...]
ninguém se contenta em fazer um chiste apenas para si. Um impulso para contar o chiste a
alguém está inextricavelmente ligado à elaboração do chiste”. Para que o chiste chegue a sua
conclusão satisfatória é necessário que uma “terceira pessoa” ocupe aí a função de validador
do gracejo: “o prazer que o chiste produz é mais evidente na terceira pessoa que no criador do
chiste” (p. 169).
Se o sucesso do chiste está no seu ouvinte, é essencial que o mesmo “esteja em
suficiente acordo psíquico com a primeira pessoa [aquela que produz o chiste] quanto a
possuir as mesmas inibições internas, superadas nesta última pela elaboração do chiste”
(FREUD, 1905/1980, p. 174). Cada chiste, neste sentido, requer seu próprio público.
Do mesmo modo, o rito para ser eficaz requer um público em consonância com seus
princípios ou corre-se o risco de vê-lo reduzido a uma mera reprodução mecânica de gestos e
falas que dificilmente o tornaria eficaz. A crença do público na magia forma “continuamente
uma espécie de campo de gravitação no interior do qual se situam as relações entre o feiticeiro
e aqueles que ele enfeitiça” (LÈVI-STRAUSS, 1949a/2012, p. 239). Portanto, o tratamento
ritual depende da imersão de todos os protagonistas – oficiante, doente, público – em um
universo simbólico compartilhado. Tal como o chiste, o rito necessita de um público solícito
que participe não apenas como testemunha, mas que intervenha e valide as representações e
119
procedimentos nele evocados. Nesse sentido, entende-se que o público presta assistência aos
protagonistas da cena, tal como o coro presente nas tragédias gregas. Segundo Dunker (2011,
p. 122),
O coro (chórus) era composto por dançarinas e cantores mascarados,
uma espécie de personagem coletivo que representava a pólis e a
expansão do conflito para além da esfera individual. O coro marca a
pausa entre os atos, assinala seus movimentos de transição e pode
incitar a reflexão sobre um tema moral ou social atinente à narrativa.
Ele pode tanto agir como um personagem, dialogando com os atores,
como tomar parte ativa na ação ou ainda comentar os acontecimentos
da cena dramática. Ele age assim tanto como espectador ideal quanto
como uma voz, responsável pela moderação dos discursos e pela
economia dos afetos.
Tal como o coro, o público não é mero espectador, sua participação (ora mais ativa,
ora mais de expectador) é modulada pela necessidade da montagem do ritual. Ele intervém
como terceiro mediando a relação enlutado-objeto perdido (ou enlutado-morte) e enlutadooficiantes, de modo que a presença do público no rito não se limita apenas ao registro
imaginário das identificações. Na medida em que ele opera como terceiro participante, ele
ocupa o lugar para onde a fala é direcionada, o lugar para onde se lança um apelo de
reconhecimento da perda e da dor.
O rito fúnebre implica a comunidade no reconhecimento do valor da vida que foi
perdida, na partilha da dor e no amparo aos sobreviventes. Ele “implica o cuidado dos
enlutados por toda a comunidade que multiplica as condutas de solidariedade e
apaziguamento (presença, condolências, dons, serviços)” (THOMAS, 1985, p. 127). Além de
prestar consolo ao enlutado, os ritos se destinam à “revitalização coletiva compensatória” que
visa contrabalancear a perda sofrida pela comunidade. Conforme já ressaltado, alguns grupos
encerram o longo e árduo período de luto com um grande festim catártico que une o grupo e
contrabalança a perda com a celebração da vida (THOMAS, 1985, p. 127).
No rito fúnebre, o público assume diferentes funções: testemunhar, prestar assistência,
validar as representações evocadas, mediar, partilhar e reconhecer a dor, participar da cura.
Allouch (2004) acrescentou mais uma: a de intervir, não no sentido de interditar o luto, mas
de regrar o pesar através de gestos ou palavras (rituais ou espontâneas) que possam dar-lhe
algum contorno, alguma medida. Ariès (1981, p. 154) relatou a cena em que o imperador
Carlos Magno (768-814) abraçava, fora de si, o cadáver de seu sobrinho. Geoffroy d’Anjou,
após deixá-lo entregar-se ao desespero por um tempo, interveio: “Senhor imperador, não vos
entregueis tão inteiramente à dor”. No poema de Leminski, também encontramos aquelas
120
frases simples que nossos avós espontaneamente ofereciam nessas ocasiões com fins de
consolo: “Descansou. Partiu. Deus o tenha”.
A ação ritual
Um terceiro elemento é a ação ritual. Considerada “performativa” (PEIRANO, 2003,
p. 40), ela promove nos participantes uma vivência (ou revivência) emocional intensa das
representações colocadas em jogo e que, para tanto, faz uso de diversos elementos (gestos,
falas, ações, cantos, ornamentos, objetos, vestimentas, instrumentos rituais, cenário etc.)
convocados para conferir realismo e vivacidade à ação que se pretende efetuar. É curioso
observar que se a montagem cênica se destina a trazer realismo e vivacidade à ação ritual, ela
também acaba por acentuar em sua presença excessiva, tal como as pompas fúnebres de
outrora, a ausência, a falta de alguém.
A teatralização nas grandes cerimônias solenes é necessária para produzir um efeito
catártico: “Trata-se com efeito de colocar em cena uma situação que, mediada pelo corpo,
suscita nos atores e no público uma emoção cuja intensidade é a condição mesma da eficácia
do rito” (THOMAS, 1985, p. 12). A (encen)ação dá corpo às representações significantes do
rito, ou melhor, coloca o corpo dos protagonistas em cena para provocar nestes fortes
emoções com fins purgativos. A dramatização é favorecedora das identificações imaginárias;
no suporte da imagem dos oficiantes ou do público que acompanha o cerimonial, o sujeito de
luto pode dar expressão ao pesar e ao mesmo tempo ab-reagi-lo. A teatralização ressalta a
íntima conjunção entre a dimensão simbólica e a imaginária no rito
Porém, não se trata de mera reprodução ou encenação de acontecimentos, a eficácia da
ação ritual repousa justamente em sua vivacidade, no efeito catártico experimentado por seus
participantes. Um efeito que depende da participação de um número de atores, cada qual
interpretando seu papel: divindades, oficiantes, doentes ou enlutados, o público, “o sentido do
rito repousa justamente sobre as interações entre os protagonistas do drama e o consenso que
os une” (THOMAS, 1985, p. 13).
Foi Lévi-Strauss (1949a/2012, p. 282) que aproximou o efeito purgativo da cura
xamânica ao método catártico usado por Freud nos primórdios da psicanálise:
Em ambos os casos, propõe-se trazer à consciência conflitos e
resistências que até então haviam permanecido inconscientes, seja por
terem sido recalcados por outras forças psicológicas, seja – é o caso
do parto – em razão de sua própria natureza, que não é psíquica e sim
orgânica, ou até simplesmente mecânica. Também em ambos os casos,
121
os conflitos e resistências se dissolvem, não porque a paciente deles vá
tomando progressivamente conhecimento, real ou suposto, mas
porque esse conhecimento torna possível uma experiência específica,
na qual os conflitos se realizam numa ordem e num plano que
permitem seu livre desenrolar e conduzem ao seu desenlace. Em
psicanálise, essa experiência vivida é chamada de ab-reação.
A ab-reação induzida pelo rito se torna uma ad-reação, pois se faz graças à
colaboração coletiva, “é preciso que, tanto quanto o doente e o feiticeiro, o público participe,
pelo menos em alguma medida, da ab-reação, essa experiência vivida de um universo de
efusões simbólicas” (LÉVI-STRAUSS, 1949b, p. 259). A situação estranha e fora de sentido
se organiza e se regula na (re)vivência intensa da situação conflituosa encenada pelo rito.
Quanto mais intenso for o espetáculo mais ele é capaz de favorecer “o reconhecimento
intersubjetivo da experiência, aumentando a influência e eficácia da sugestão” (DUNKER,
2011).
O fator temporal
Os ritos “fazem esperar” (TERRIN, 1999, p. 248), suspendem a rotina diária e
introduzem outro ritmo na vida do grupo. O rito não se faz com pressa, o conjunto de sua
atividade detém o fluxo do tempo para chamar à ordem toda a inquietude diante do fortuito,
do incerto, do inesperado. O rito cria uma situação temporal específica que “é no tempo e, do
mesmo modo, fora do tempo” (TERRIN, 1999, p. 250). Nos grupos que praticam o segundo
funeral, observa-se que os sobreviventes ficam retidos em outro espaço temporal, segregados
da vida social enquanto durar o período que decorre entre o primeiro e o segundo funeral. Um
tempo que não é cronologicamente demarcado, mas simbolicamente escandido. O segundo
funeral só se realiza quando a decomposição das partes moles do corpo chega ao fim,
fenômeno cuja duração deve ser verificada em cada caso, em geral dois anos, mas pode durar
mais, depende do cadáver.
O tempo no rito foi especialmente capturado por Gennep (1909/2011) em sua
concepção estrutural dos “ritos de passagem” cuja sequencialidade, conforme já descrito, se
desdobra em três etapas (de separação, de margem e de agregação) cuja lógica parece se
conjugar com o tempo operativo de uma análise (Lacan): instante de ver (morte); tempo de
compreender (tempo elaborativo do luto); e momento de concluir (fim do luto e reentrada na
vida social).
Nas sociedades que encaram a morte como um processo que se dá na longa duração, o
tempo de margem – tempo de compreender – é essencial por introduzir uma escansão entre as
122
separações e as reentradas. Ele marca o tempo elaborativo necessário para escrever
simbolicamente o desaparecimento de alguém.
Em suma, em nosso modelo composto por quatro elementos, a eficácia dos ritos
fúnebres se dá em função de uma ação performativa caucionada por um público que participa
intensamente das vivências (ou revivências) e representações ali evocadas com fins de cura.
Mas como a cura não se processa instantaneamente, os ritos instauram uma escansão
temporal que suspende provisoriamente a rotina do grupo ou comunidade para ressaltar a
mudança que se pretende efetuar. Juntos, esses fatores favorecem a eficácia do rito fúnebre
como tratamento possível do real pelo simbólico.
A dessacralização da morte tornou-a um acontecimento banal, íntimo e instantâneo.
Desritualizado o luto segue solitário, sem público, sem os cerimoniais favorecedores das
expressões de pesar, sem a escansão temporal necessária para elaborar ou escrever
simbolicamente a perda. Cada vez mais imperam as demandas por discrição diante da
urgência de se atender a um tempo cronológico externo ao sujeito. No DSM-5, o luto pode ser
diagnosticado e tratado como transtorno de humor, isto é depressão, após um período de duas
semanas sem melhora significativa (!?). Sem pausa, sem ritos, sem público, sem fala o
enlutado fica à deriva, entre as injunções que interditam as expressões de luto e as prescrições
de cunho médico-normatizantes.
123
4. PELO DIREITO AO RITO
“Que sempre e em tudo haja reverência”. Assim começa o primeiro livro do Lî Chi, O
livro dos ritos, atribuído a K’ung fu Tzu [Confucius].
Confucius disse, “É pelas Odes que a mente é despertada; pelas
Regras de Decoro que o caráter é estabelecido; e da Música que o
acabamento é recebido”. Em outra ocasião ele disse, “Sem as Regras
de Decoro, o respeito torna-se agitação laboriosa; solicitude, timidez;
ousadia, insubordinação; e franqueza, grosseria”. Estes são dois
modos pelos quais Confúcio se expressou acerca do Lî, As regras de
Decoro e Uso Cerimonial reconhecidos em seu tempo (K’ung fu Tzu,
1885/2008, p. 4).
O cerimonial, muito além de uma manifestação caricaturata, integra de modo profundo
a vida e os valores do homem chinês. É através dele que se expressam os afetos, os deveres,
seu ser político, religioso, moral e social. Conforme captou Callery (1885, p. 12) na
introdução da obra:
O cerimonial [...] resume o espírito chinês. ...Seus afetos, se houver,
são satisfeitos pelo cerimonial; seus deveres, ele os preenche através
do cerimonial; virtude e vício, ele os reconhece por meio do
cerimonial; em uma palavra, pelo cerimonial se é homem, o homem
moral, o homem político, o homem religioso, em suas múltiplas
relações com a família, a sociedade, o Estado, a moral e a religião.
Lacan (1958-9/2002, p. 398) se encantou pelo Lî Chi por encontrar nele “uma
ilustração verdadeiramente admirável” da função dos ritos fúnebres de convocar “a
intervenção total, maciça, do inferno até o céu, de todo o jogo simbólico”.
Recentemente, uma notícia58 vinda da China causou comoção e espanto, senão
indignação por ser considerado um país tradicionalmente associado com a tradição ritual: o
suicídio de seis idosos em decorrência das novas regras que ordena que todos os mortos sejam
cremados. Segundo seus familiares, eles teriam se matado para assegurar o direito ao
sepultamento tradicional. A selvageria da morte atinge hoje até as províncias mais distantes
da China. De acordo com a reportagem, as sepulturas estão sendo demolidas em favor de uma
campanha nacional de incentivo à cremação com o intuito de se preservar os escassos
recursos terrestres. A ação tem ocorrido sem nenhuma consulta ou consideração pelos
habitantes locais. A campanha arrasa uma tradição milenar do culto dos ancestrais que inclui
ritos fúnebres elaborados, o sepultamento e a construção e veneração de túmulos. Na
58
“Idosos chineses se matam para não serem cremados”. O Globo em 28 de maio de 2014. Fonte:
https://br.noticias.yahoo.com/idosos-chineses-se-matam-serem-cremados-164404051.html.
Acesso
em:
05/06/2014.
124
província central de Henan, 400 mil túmulos foram destruídos em 2012, segundo informou a
imprensa local.
Diante da medida, funcionários do governo começaram neste mês a
confiscar caixões, o que causou um impacto psicológico na população.
O advogado chinês Zheng Daoli classificou as remoções dos caixões
como ilegais porque eles eram propriedade de seus donos.
Zheng Shifang, de 83 anos, se matou após as autoridades serrarem seu
caixão na frente dela, enquanto a chinesa Wu Zhengde, de 91 anos, se
enforcou depois de saber das novas regras, segundo a imprensa.
Outros idosos beberam veneno.
Em Anqing, os moradores gastam até uma década preparando seus
caixões. A notícia da proibição dos enterros só foi divulgada em abril,
dois meses antes da nova regulamentação entrar em vigor. O governo
local disse à imprensa que os suicídios não estavam ligados à
proibição do enterro e que as pessoas tinham desistido de seus caixões
de forma voluntária (O GLOBO, 28 de maio de 2014)
Para esses herdeiros de uma tradição milenar de culto dos ancestrais, a imposição
arbitrária do não sepultamento é a própria destituição do valor e dignidade de suas vidas:
“Não se trata de se acabar com quem é homem como se faz com um cão. Não se pode acabar
com seus restos esquecendo que o registro do ser daquele que pôde ser situado por um nome
deve ser preservado pelo ato dos funerais” (LACAN, 1959-60/2008, p. 329). A destituição do
direito aos ritos e signos tradicionais (túmulos, monumentos, lápides...) é a condenação a uma
vida errante e indigna no Além. Sem os valores rituais que mediam as trocas com o outro
mundo, perde-se o direito de ser bem lembrado e reverenciado pelas gerações futuras.
No fim da vida, esses idosos assistiram sua existência (e o pós-vida que ela
comportava) ser brutalmente reduzida a nada pelas autoridades locais cujas leis roubaram-lhes
o direito e o desejo, que até então lhes cabia, de ascenderem à condição de ancestrais, assim
como estava escrito e previsto no Lî Chi. Ao apagamento que lhes foi imposto, eles
responderam em ato, em a(u)to-imolação.
Por um direito ao rito, Antígona também se levantou contra os editos de sua Cidade ao
preço de pôr em risco a própria vida e a honra póstuma para assegurar ao irmão os ofícios
fúnebres.
Meu irmão [Polinice], ele é tudo o que quiserdes, o criminoso, ele quis
arruinar os muros da pátria, levar seus compatriotas em escravidão, ele
conduziu os inimigos para os territórios da Cidade, mas enfim, ele é o
que é, e o que está em questão é prestar-lhe as homenagens funerárias
(LACAN, 1959-60/2008, p. 328-9).
O rito é o que asseguraria à Polinice continuar sendo “o que ele é”, sujeito humano
para além de seus atos e acusações. Antígona lutou para manter “o valor de seu ser” (LACAN,
125
1959-60/2008, p. 330). Um valor que é puramente coberto de linguagem; e só por meio desta
que o ser de Polinice pode ser abstraído de tudo aquilo que ele realizou de bem e mal.
Continua Lacan,
Essa pureza, essa separação do ser de todas as características do drama
histórico que ele atravessou, é justamente esse o limite, o ex nihilo em
torno do qual Antígona se mantém. Nada mais é do que o corte que a
própria presença da linguagem instaura na vida do homem (LACAN,
1959-60/2008, p. 330).
Dar-lhe uma sepultura é assegurar-lhe, pelo símbolo, uma segunda existência digna
que o livraria da condenação ultrajante de ter seus restos mortais consumidos por cães e
pássaros a céu aberto. Pior que isso, na ausência dos ritos purificadores, segundo as leis dos
deuses, o ultraje o seguiria também no outro mundo onde seu espírito não poderia ser
acolhido por Caronte, o barqueiro do Hades responsável por realizar a passagem dos recémfalecidos para o reino dos mortos. Na célebre jornada do herói Eneias59, após ser derrotado em
Troia, o herói chega à região dos mortos onde se depara com o barqueiro e os numerosos
passageiros ansiosos pela travessia:
Todos se aglomeravam para passar, ansiosos por chegarem à margem
oposta [do rio]. O severo barqueiro [Caronte], contudo, somente
levava aqueles que escolhia, empurrando os restantes para trás.
Espantado com o que via, Enéias perguntou à Sibila:
– Qual é o motivo dessa discriminação?
– Aqueles que são acolhidos a bordo do barco são as almas dos que
receberam os devidos ritos fúnebres; os espíritos dos outros, que
ficaram insepultos, não podem passar o rio, mas vagueiam cem anos
abaixo e acima de sua margem, até que finalmente sejam levados
(BULLFINCH, 2000, p. 318).
Sem a travessia, os espíritos voltam para perturbar os vivos. Antígona, assim como os
idosos chineses, protesta contra essa condenação arbitrária que encerraria seu irmão no pior
destino que um homem grego pode enfrentar, o completo aniquilamento de sua existência:
“Não apenas será esquecido, Polinice não será rememorado, e assim é como se nunca tivesse
existido. Os ritos fúnebres marcam a integração de alguém à comunidade simbólica grega”
(DUNKER, 2011, p. 116).
Para os gregos, o recordar é uma atividade eminentemente humana. Nas regiões do
Hades, as águas do rio Letes são oferecidas para os recém-mortos para que esqueçam a vida
deixada para trás, assim como a humanidade. O esquecimento torna-os uma sombra, um
reflexo do ser humano que foram um dia: “Nada mais lembra por força do rio, está de fato,
morto. Esquecer é morrer” (KARNAL; FREITAS NETO, 2004, p. 25).
59
Filho de Afrodite, Eneias é considerado o mais bravo guerreiro troiano, depois de Heitor.
126
Se a deslembrança desumaniza, os ritos funerários favorecem práticas humanizantes
que incluem o fornecimento de uma linguagem para exprimir a dor, a participação de um
público, a instituição de uma escansão espaço-temporal para que os sobreviventes possam
aliviar-se e um modo solene de realizar a entrada dos mortos no mundo Além. Compreende-se
desse modo, como salientou Albert (1999, p. 145), que
uma demanda de ritual religioso, e mesmo de “direito ao rito”, possa
hoje em dia se manifestar por parte de uma população cada vez menos
praticante ou mesmo crente. Uma tal demanda se explica melhor se
ainda levarmos em conta o fato que um programa ritual evita estar
“desamparado” face à morte de um próximo. O rito fornece uma
forma convencional de interação com o outro ao delimitar as formas
legítimas de expressão da dor, de relação com o defunto, em suma, ele
contribui para a definição de papéis diferenciados e socialmente
admitidos.
O antropólogo DaMatta (2011, p. 20) ajuda a esclarecer essa demanda por ritos ao
considerar que estes assumem funções diferentes em razão da lógica do sistema social que os
elabora
e
os
mantém.
Em
sociedades
“altamente
diferenciadas,
atomizadas
e
individualizadas” tal como as sociedades capitalistas, os ritos visam “juntar, agregar”, ao
contrário daqueles realizados em sociedades totalizantes em que “todos se ligam com todos”,
como nos sistemas “tribais” (DaMATTA, 2011, p. 19). Nestes últimos, os ritos visam separar,
individualizar, retirar temporariamente a pessoa da intensa rede de relações sociais que tende
a esvanecê-la. Em sociedades que exacerbaram características individualistas como a nossa, a
questão não é separar, mas agregar, favorecer “ocasiões de totalização”:
Deste modo, nossos rituais seriam mecanismos que objetivam a busca
da totalidade frequentemente inexistente ou difícil de ser percebida no
nosso cotidiano. Num sistema como o nosso, onde o indivíduo sempre
tem primazia, tudo já está separado conceitual e concretamente. Por
causa disso, aqui o rito não divide, junta. Não separa, integra. Não cria
o indivíduo, mas a totalidade (DaMATTA, 2011, p. 20).
A reinvindicação atual por ritos se conjuga com esse anseio por ressocializar a morte e
o luto em um sistema “cada vez menos comprometido com a morte de um dos seus
membros”, como escreveu Ariès (1981, p. 668). Uma reivindicação que visa recuperar a
função dos ritos não apenas em termos de consolo aos enlutados, retirando-os do desamparo,
mas em sua dimensão de promover a coesão social, isto é, de restituir o sentimento de
pertencer a uma comunidade familiar, uma comunidade humana.
Em situações sociopolíticas ou econômicas insustentáveis, algumas experiências
confirmam a importância da participação coletiva na elaboração subjetiva de situações de
trauma e luto. Rosa, Berta, Carignato et al. (2009), em artigo sobre as especificidades do
127
atendimento clínico psicanalítico de imigrantes e refugiados, apontaram para a necessidade de
intervenções que levem em consideração não apenas as especificidades da escuta nesses
contextos limítrofes, mas também a importância da realização de intervenções que incluam a
participação da comunidade.
Estes casos revelam as estratégias que levam em consideração as précondições sociopolíticas e subjetivas necessárias para a elaboração do
luto, para fazer valer a dimensão do desejo, melhor defesa contra o
gozo mortífero. Estas pré-condições podem ser realizadas na clínica
estrito-senso ou através de práticas coletivas que permitam a produção
de ato que toca dimensões do real, simbólico e imaginário,
contornando e significando aquilo que, por vezes, é negado
socialmente (ROSA, BERTA, CARIGNATO et al., 2009, p. 508).
O ritual enquanto prática coletiva laica ou sagrada, ou algo entre os dois, evita o
desamparo diante da morte. Por ocasião do enterro de sua filha, anos antes de escrever Erótica
do luto, Allouch (2004, p. 379) relatou que se viu completamente em desamparo na falta de
um credo ou rito para orientar-lhe a conduta e expressar o pesar. Restou-lhe inventar, não um
credo, mas uma espécie de rito. Ele propôs, no texto que declarou aos presentes, que estes
realizassem um gesto laico60 que revestisse com uma moldura especial aquele momento de
dor:
Como não somos filiados a uma religião, encontramo-nos, para essa
cerimônia, quase completamente privados de ritual. Aqueles que
assim o desejarem, joguem um punhado de terra sobre o caixão de
Helène. Estaremos, assim, marcando que deixamos aqui algo de nós
mesmos. Diremos também, por esse gesto, o luto que guardamos.
Principalmente a partir do fim do século XIX, uma importante mudança ocorreu no
modo de nos relacionarmos com os mortos: o culto dos mortos e/ou honras fúnebres
deslizaram do espaço público para espaço privado. Assistimos atualmente a proliferação de
novos modos de expressar o pesar no espaço público, e que manifestam a necessidade de se
ritualizar o luto e mobilizar a participação da comunidade. Se o luto moderno se caracteriza
por deixar o enlutado vagando à margem do rio, sem contar, como outrora, com os ritos que
mediavam as passagens dos momentos críticos da vida, sobra cada vez mais para o sujeito a
tarefa de encontrar um jeito de expressar seu pesar: “E como poderia ser de outro modo desde
o momento em que já não existe nenhum ritual de luto? Que outra possibilidade lhes resta, se
não inventar cada um uma maneira de luto?” (ALLOUCH, 2009, p. 20). Ou como sugere esta
60
Laico e ao mesmo tempo religioso como ele mesmo veio a admitir mais tarde, a despeito do que escreveu para
aquela ocasião. Cf.: “Tu és pó e ao pó da terra retornarás” (Gênesis 3:19).
128
pesquisa, sobra para o sujeito a tarefa de buscar um modo de ritualizar seu luto fazendo valer
a função do ritual.
129
5. RECONFIGURAÇÕES DOS RITOS NO CONTEMPORÂNEO
Nas últimas décadas do século XX, os estudos sociológicos passaram a debater o
ressurgimento da religião na vida social questionando o movimento de laicização que
caracterizou esse século. Fala-se de um “retorno ao sagrado” para se tratar de fenômenos
emergentes da ritualidade religiosa contemporânea, tais como as peregrinações empreendidas
dentro de um roteiro turístico vinculadas ou desvinculadas de uma instituição religiosa –
nesse quadro aparece desde as peregrinações individuais pelo caminho de Santiago até o
turismo religioso (nacional e internacional) realizado por grupos em visitação aos santuários
marianos de Aparecida, Fátima e Lourdes (VILAÇA, 2008).
Segundo Vilaça (2008), o ressurgimento de uma religiosidade popular se constitui em
uma reação à sua deslegitimação por força de um discurso de cunho mais científico, secular,
racional. Na atualidade, percebe-se a coexistência da secularização e da sacralização. A atual
recomposição religiosa no mundo ocidental apresenta um duplo movimento, por um lado, há
a revitalização e fortalecimento de algumas religiões tradicionais (incluindo aí o crescimento
assustador da adesão, pelos jovens, às práticas religiosas de raiz mais fundamentalista) e, por
outro, a busca, nesse mundo globalizado, por uma vivência religiosa de sentido mais
espiritualista, isto é, individual e privada, desvinculada de uma instituição religiosa oficial.
Nesse contexto contraditório, o universo religioso longe de estar ameaçado de
extinção, ele simplesmente se movimenta, se reconfigura combinando a memória religiosa
herdada, racionalidade e novos mitos (HERVIEU-LÉGER, 1999). Do mesmo modo, os ritos
religiosos continuam a se inscrever, mas de um modo exterior ao controle de instituições
religiosas oficiais, assim eles acabam incorporando outros elementos da vida social e
assumem uma especificidade própria. Desde que a religiosidade ou compreensão do sagrado
tornou-se, mais do que em outros tempos, um assunto privado, as pessoas passaram a
combinar de modo criativo ritos e mitos herdados do universo sagrado oficial com aqueles de
raízes mágico-popular-profano (VILAÇA, 2008).
Nesse sentido, os ritos, conforme observou Peirano (2003), rompem com a ideia de
eventos rígidos e imutáveis. Eles são favoráveis à reinvenção a partir de elementos que préexistem na sociedade. A ideia de bricolage61 introduzida por Lévi-Strauss (2012) para tratar
61
Segundo nota dos tradutores (Almir de Oliveira Aguiar e M. Celeste da Costa e Souza) da 1ª edição em
português do Pensamento selvagem, o bricoleur “é o que executa um trabalho usando os meios e expedientes
que denunciam a ausência de um plano preconcebido e se afastam dos processos e normas adotadas pela técnica.
Caracteriza-o especialmente o fato de operar com materiais fragmentários já elaborados, ao contrário, por
130
da composição heteróclita do pensamento mítico ajuda a esclarecer a capacidade dos ritos de
se transformarem a partir de ingredientes diversos.
Subsiste entre nós uma forma de atividade que, no plano técnico,
permite conceber perfeitamente aquilo que, no plano da especulação,
pôde ser uma ciência que preferimos chamar de ‘primeira’ que de
primitiva: é aquela comumente designada pelo termo bricolage. Em
nossos dias, o bricoleur é aquele que trabalha com as suas mãos,
utilizando meios indiretos se comparados com os do artista. Ora, a
característica do pensamento mítico é a expressão auxiliada por um
repertório cuja composição é heteróclita e que, mesmo sendo extenso
é limitado; entretanto, é necessário que o utilize, qualquer que seja a
tarefa proposta, pois nada mais tem à mão. Ele se apresenta assim
como uma espécie de bricolage intelectual, o que se explica as
relações que se observam entre ambas (LÉVI-STRAUSS, 2012, p.
33).
O pensamento mítico – “pensamento selvagem” – tem em comum com o bricolage a
capacidade de produzir “resultados brilhantes e imprevistos” uma vez que “a regra do jogo é
sempre arranjar-se com os ‘meios-limites’, isto é, um conjunto finito de utensílios e de
materiais bastante heteróclitos” (LÉVI-STRAUSS, 2012, p. 34). Em inglês, o equivalente ao
francês bricolage é o termo “do-it-yourself” (DIY), hoje uma ideia bastante difundida e
aplicada nos espaços virtuais.
Extendida aos ritos, a ideia de bricolage permite vinculá-los à criatividade. A marcha
realizada pelas Madres e Abuelas de Plaza de Mayo, durante o período de Ditadura Militar na
Argentina, é mais que ilustrativo de que os ritos podem se transformar: impedidas de enterrar
seus filhos e netos e garantir-lhes as devidas honras fúnebres, essas mulheres pesarosas
marchavam lenta e silenciosamente em torno da praça pública carregando as fotos de seus
desaparecidos coladas em cartazes amarrados em seus corpos (BERTA, 2007). Uma marcha
fúnebre que reconfigurou, mesmo sem o saber, a tradicional procissão realizada no
“Domingos de ramos” em memória da morte de Cristo.
Portanto, ainda que convoquem uma submissão à tradição, os ritos são permeáveis aos
ingredientes históricos, econômicos e sociais. Ocasiões em que seus protagonistas agem
colocando neles algo de si, realizando atualizações à tradição e permutas entre gerações.
Atualmente, na medida em que o luto se tornou um assunto intimista e privado, a expressão
pública do pesar também se reconfigurou. Em nosso mundo globalizado e com tendência à
individualidade, o enlutado busca modos de ritualizar seu luto, tal como um bricoleur,
exemplo, do engenheiro que, para dar execução ao seu trabalho, necessita de matéria-prima” (LÉVI-STRAUSS,
2012, p. 33)
131
combinando elementos que tem mais a ver com seus gostos, crenças e valores pessoais no
estilo do-it- yourself.
Encontramos em nossa pesquisa curiosos modos não-convencionais de honrar a
memória dos mortos: há a produção das tatuagens in memoriam; a criação do perfil da pessoa
morta [dead profiles] em redes sociais virtuais; e os tributos prestados espontaneamente em
espaços públicos (tal como a ghost bike). Nos Estados Unidos, ainda que pouco comum, há as
camisetas com estampas [The t-shirt memorial] que reproduzem o “santinho” distribuído em
velórios, e os carros com decalque no estilo R.I.P. [Car-decal memorial] (CANN, 2014).
No Brasil, os três primeiros têm obtido considerável visibilidade nos espaços coletivos
e/ou virtuais. Comentaremos aqui brevemente os tributos virtuais e os espalhados em espaços
sociais; deixaremos as tatuagens fúnebres para o capítulo a elas dedicado.
A homenagem virtual parece ter se tornado a mais recente tendência em termos de
novas modalidades de expressão de luto social. Encontramos desde vídeos62 caseiros criados,
postados e compartilhados por familiares em espaços abertos como youtube, até perfis criados
e mantidos em redes sociais para preservar a memória do morto. Um fenômeno mundial é o
“uso” do facebook after death [facebook após a morte], seja porque a pessoa morreu e os
familiares e amigos continuam interagindo com sua página postando homenagens em sua
memória ou porque o familiar criou uma página a ela dedicada com a mesma intenção.
Surgem preocupações inimagináveis há uma década: o que fazer com o legado digital de uma
pessoa quando ela morre? Como cancelar seu perfil digital ou, em caso de querer conservá-lo,
como comunicar ao facebook para que o status do perfil seja mudado para “página memorial”
[memorial page]? É certo manter a página do morto ativa? Fala-se hoje de ética digital e
etiqueta quanto às expressões de luto no mundo online63.
Se os antigos cemitérios com seus monumentos pétreos tendem a desaparecer da
paisagem urbana, eles simplesmente reaparecem deslocados para o mundo virtual que tem a
vantagem de ser bastante acessível. No Brasil, em 2012, foi criado no facebook a comunidade
“Profiles de gente morta”64 que, segundo consta na página, “será usada para postagens de
perfis de pessoas que morreram”. A comunidade reúne mais de 10 mil usuários que cadastram
perfis de familiares e amigos recém-mortos. Além disso, a página publica diariamente notícias
62
Cf. “V. G., Homenagem a esse anjo que foi morar...”. Fonte: www.youtube.com/watch?v=dp9cufqFIp8.
Acesso em: 12/02/2015.
63
Cf. interessante discussão sobre esse assunto na matéria: “How 1 Billion People Are Coping With Death and
Facebook”. Fonte: http://mashable.com/2013/02/13/facebook-after-death/. Acesso em: 20/04/2015.
64
https://pt-br.facebook.com/ProfilesDeGenteMorta. Acesso em: 16/04/2015.
132
que incluem desde a morte natural de celebridades até as mortes violentas; como qualquer
outra página virtual as pessoas podem “curtir” e comentar os assuntos65.
Em uma reportagem sobre o assunto, uma jovem mãe66, cujo filho adolescente morreu
atropelado em 2014, criou um perfil virtual por meio do qual passou a receber mensagens de
solidariedade, especialmente de amigos do filho e outros pais que também perderam seus
filhos.
Quando o acidente aconteceu, o Facebook acabou servindo como
ferramenta de informação para nosso círculo de amigos, que passou a
acompanhar a nossa luta durante o coma. O que vimos pela rede foi
uma grande mobilização por meio de preces, mensagens de apoio e
canalização de energia. (O GLOBO, 20 de julho de 2014).
Após a morte do filho, navegar na Web era uma das poucas coisas que ela conseguia
fazer, pois não sentia vontade de conversar com outras pessoas. Segundo a reportagem, ela
ainda mantém o perfil do jovem on-line e, além disso, criou uma página dedicada às mães que
perderam seus filhos para compartilhar experiências e conforto mútuo.
Em relação aos espaços sociais, há algum tempo observamos a prestação de tributos
espontâneos em locais onde mortes trágicas aconteceram: as flores e outras homenagens
deixadas em frente à boate Kiss em Santa Maria (RS), ou no local do desastre aéreo da TAM
(SP), e ainda as cruzes fincadas em praias do Rio de Janeiro para homenagear os mortos em
decorrência da violência, só para citar alguns.
Um exemplo emblemático é a “bicicleta fantasma”67 [ghost bike] que encontramos em
plena Av. Paulista, afixada próxima ao local onde a ciclista Márcia Prado foi atropelada por
um ônibus em 14 de janeiro de 2009. Sua morte causou comoção, protestos e homenagens.
Não poderíamos deixar de comentar que essa “memorial mania” se caracteriza por
prestar tributo fúnebre de modo desvinculado do cadáver (CANN, 2014). Uma relação com os
mortos que prescinde do lugar onde seu corpo foi depositado. Essa desvinculação se associa
com a dessacralização da morte e a decorrente terceirização dos cuidados prestados ao
65
Em entrevista, o criador da página explicou que a sua intenção não é de forma alguma explorar a dor alheia
como foi questionado pela reportagem: “O objetivo principal é que ela funcione como uma espécie de memorial
aos falecidos com perfis na rede, uma homenagem e um registro virtual. Entendo os julgamentos. Não é algo
comum, gera interpretações incorretas. Mas a página trata de algo natural, que faz parte da vida”. Fonte:
http://oglobo.globo.com/sociedade/tecnologia/luto-na-web-redes-sociais-mudam-relacao-das-familias-commorte-13315670#ixzz3837dekA8. Acesso em: 16/04/2015.
66
“Luto na web: redes sociais mudam relação das famílias com a morte”. O Globo em 20 de julho de 2014.
Fonte: http://oglobo.globo.com/sociedade/tecnologia/luto-na-web-redes-sociais-mudam-relacao-das-familiascom-morte-13315670#ixzz3837dekA8. Acesso em: 16/04/2015
67
Uma “bicicleta fantasma” [a ghost bike] é um memorial colocado no local onde um ciclista foi morto por um
veículo motorizado. Em geral, o memorial é composto por uma bicicleta velha pintada de branco e fixada
próxima ao local do acidente e uma placa, tipo lápide, é colocada com o nome do ciclista e a data do acidente.
Fonte: http://pt.wikipedia.org/wiki/Bicicleta_fantasma. Acesso em: 10/05/2015.
133
cadáver, além do crescimento da opção pela incineração do corpo. Hoje não há mais, como no
passado, tanta preocupação com o destino do morto no Além (o Juízo final, a ressureição dos
corpos...), uma preocupação que fazia com que a tradição da inumação fosse mantida e o
cemitério, como já vimos, não ocupa mais o lugar da lembrança e devoção para com os
mortos.
A reivindicação espontânea de “direito ao rito” (Albert) manifesta a necessidade
humana de se preservar, em âmbito público, a memoração honorífica dos mortos. Ao lado dos
retornos selváticos da morte (o impressionante horror show), encontramos os retornos
conciliadores, pacificadores que mesclam elementos heteróclitos diversos: as crenças sagradas
herdadas, a necessidade do monumento/memorial e a busca singular e privada (que diz
respeito à história subjetiva de cada um) por expressar o pesar.
134
PARTE III. “ESSAS COISAS TÊM DE SUBSISTIR DE ALGUMA FORMA”: O
TRABALHO DE REMEMORAÇÃO E A NECESSIDADE DO MONUMENTO
No, no, go not to Lethe
John Keats, Ode on melancholy, 1819.
Descansa! Descansa e apaga o pesar de tuas
memórias de Leonor. Bebe, oh bebe este bom nepente e
esquece a minha perdida Leonor!
E o Corvo disse: “Nunca mais”.
Edgar Allan Poe, O corvo, 1845.
[Tradução em prosa por Helder da Rocha]
Nossa mente é porosa para o esquecimento;
eu mesmo estou falseando e
perdendo, sob a trágica erosão dos anos, os traços de Beatriz.
Jorge Luis Borges, O aleph, 1998.
135
Na Grécia antiga, morrer assim como envelhecer significava ressecamento. Enquanto
o vivo é pleno de seiva úmida e flexível, principalmente quando jovem, a morte é sua
dessecação. Uma ideia presente, por exemplo, na lenda da Górgona cuja olhar fulminante,
olhar da morte, transmuta os seres em pedra rígida, imóvel, seca e fria (VERNANT, 1990).
Se os mortos são os “dessecados” um modo de irrigá-los e devolver-lhes a vitalidade
perdida é a lembrança e o pensamento: “De resto, as psychái68 dos mortos são sedentas.
Somente saciando-as com os diversos licores da vida, é possível atraí-las até a luz,
restituindo-lhes por um momento, com a lembrança e o pensamento, um vago reflexo de sua
antiga vitalidade” (VERNANT, 1990, p. 394).
A memoração dos mortos tem uma dimensão religiosa e profana, a pietas [piedade] e a
fama. Na Idade Média, a pietas pela alma dos falecidos movimentava o culto dos mortos
lembrados constantemente nos ritos cristãos. Já a fama é a glória alcançada em vida graças à
realização de algo incomum (ASSMANN, 2011). Ou seja, a fama como modo de
autoeternização é para poucos. Para a grande maioria, a lembrança da existência se restringe
aos próximos conhecidos.
Se a lembrança é a seiva que alimenta os mortos, na falta de uma fama, o temor do
esquecimento total, a verdadeira morte, aparece com frequência no discurso de sujeitos de
luto. Em nossa experiência clínica, alguns manifestam o temor de que o trabalho de luto
implique em esquecimento de seus mortos. Esta preocupação foi apresentada por uma mãe,
mater dolorosa, devastada pela perda recente de seu filhinho que lançou a seguinte
advertência: “Não importa o que você vai dizer, não vai conseguir me fazer esquecê-lo”.
Brado mais que ilustrativo da ideia de que realizar o trabalho de luto equivale em
esquecimento. Nessa perspectiva, elaborar o luto é beber nas águas do Letes e apagar
inexoravelmente da memória os rastros e marcas do amado perdido. Se, do lado do morto,
esquecer é morrer, deixar para trás definitivamente o ser que se foi um dia; do lado do
vivente, esquecer é matar o morto uma segunda vez. Nesse sentido, o luto entendido como um
trabalho de apagamento das lembranças se encontra, de partida, estragado, comprometido.
Entretanto, se escutada em contrassentido, a fala dessa mãe nos endereça não uma
censura, mas um apelo: “Por favor, não me deixe esquecê-lo”. De algum modo ela intui que,
para além da vontade expressa, nossa “mente é porosa para o esquecimento” como escreveu
Borges. O temor do esquecimento é um ponto sensível do luto e, sem dúvida, uma questão
perturbadora em relação à morte: o aniquilamento que aguarda todo ser quando não houver
68
Forma plural de psyché [alma].
136
mais ninguém ou nenhum rastro de sua existência, esta sim é a verdadeira morte. Esse temor
está na base da necessidade humana dos monumentos e tributos fúnebres.
Inquietações que o escritor francês Roland Barthes (2009, p. 204) experimentou por
quando da morte de sua mãe:
Por que teria eu vontade da mais pequena posteridade, do mais
pequeno rastro, se os seres que mais amei, que mais amo, não a terão
depois de eu ou alguns sobreviventes termos passado? Que me
importa durar para além de mim próprio, no desconhecido frio e
mentiroso da História, uma vez que a recordação da mam69, não durará
mais do que eu e dos que a conheceram e hão-de-morrer por sua vez?
Não quero um “monumento” só para mim. (21 de agosto de 1978,
Grifo do editor).
O lamento de Barthes traduz esse anseio, desde tempos imemoriais, de se preservar a
memória dos mortos para além das lembranças daqueles que o conheceram, daí as sepulturas,
os tributos, as inscrições epitáficas, os ritos. Essa necessidade se enlaça com as nossas
preocupações com a destinação dos desaparecidos: Qual destino dar aos mortos? Como fazer
para se despedir deles sem abandoná-los ao esquecimento? O que fazer para que perdurem e
sejam lembrados pela posteridade?
Esse capítulo propõe-se a discutir essas questões. Partiremos dos gregos clássicos para
nos instruirmos sobre o modo como eles respondiam à transitoriedade da vida e ao
desaparecimento dos seres queridos. Enquanto alguns gregos privilegiados conseguiam o feito
de se fazer lembrar lançando o nome próprio no panteão da glória imperecível [kléos], a
maioria contava mesmo com a procriação [génesis] para alcançar uma posteridade mesmo que
provisória. Para estes últimos, a morte do filho ameaçava significativamente a linhagem e
suscitava a necessidade imperativa do monumento e seu epitáfio. Dos gregos saltaremos para
o ocidente, onde, principalmente a partir do século XVIII, se propagou um tipo especial de
memorial fúnebre erigido com letras e não com pedras, o “túmulo literário”. Prosseguiremos
com Freud e sua versão de luto como um longo e doloroso trabalho de rememoração, um
trabalho subjetivo que visa dar um destino psíquico para o morto.
69
Mam. é uma abreviação de mamam recorrente no texto de Barthes. Nota da organizadora do “Diário de luto”,
Nathalie Léger (BARTHES, 2009).
137
1. DOIS MODOS DE TRATAR A TRANSITORIEDADE: A PROCRIAÇÃO
[GÉNESIS] E A GLÓRIA [KLÉOS] OU O NOME E O RENOME
A transitoriedade da vida que condena todas as coisas à extinção pode, segundo Freud
(1916/2010, p. 248), conduzir a duas tendências diferentes. Uma, ao doloroso cansaço do
mundo; e outra, à rebelião contra essa constatação:
Não, não é possível que todas essas maravilhas da natureza e da arte,
do nosso mundo de sentimentos e do mundo lá fora, venham
realmente a se desfazer em nada. Seria uma insensatez e uma
blasfêmia acreditar nisso. Essas coisas têm de subsistir de alguma
forma, subtraídas às influências destruidoras.
A ambição dos homens por imortalidade aparece em uma passagem do Banquete de
Platão em que a sacerdotisa Diotima convida Sócrates a refletir sobre a ambição humana de
ser imperecível:
Se refletires sobre a ambição dos homens, ficarás surpreendido [...] até
que ponto eles se deixam dominar pelo desejo de ser ilustres e adquirir
renome que pelo futuro adiante os conserve imortais; a menos que
saibas que por este motivo, mais ainda que pelo amor dos filhos, é que
arrostam todos os perigos, sacrificam todas as riquezas, suportam
todos os males, expõem-se, enfim, à própria morte. [...] Acredito que
todos os homens praticam grandes feitos para deixar depois de si fama
e glória.
Os fecundos de corpo dão-se de preferência às mulheres, amam-nas
para delas ter filhos, esperando deste modo alcançar a imortalidade, a
perpetuidade do nome, a felicidade. Os que são fecundos de espírito –
porque os há que são mais prolíficos de alma que de corpo – esses
geram as coisas que dizem respeito ao espírito. Que é, então, que o
espírito produz? A sabedoria e as outras virtudes da alma criadas pelos
poetas e demais artistas reputados de gênio inventivo (PLATÃO,
2010, p. 56-7).
Na poesia épica grega, a palavra kléos é usada para designar o prestígio público, a
glória dos indivíduos que realizaram feitos notáveis. Enquanto génesis é a palavra usada para
designar a procriação (NAGY, 1999). Assim lemos em um trecho da Teogonia de Hesíodo:
Ânimo, filhos de Zeus. Reverenciem com uma canção arrebatadora.
Transformem em glória [kléos] a geração [génesis] sagrada dos
imortais.70
(HESIODO apud NAGY, 1999, p. 96, tradução nossa).
70
Hail, children of Zeus. Grant an entrancing song
Make into kléos the sacred génos [génesis] of the immortals.
138
Seja através da glória [kléos] dos grandes feitos celebrados pelos poetas ou através da
procriação [génesis] todos buscam realizar a mesma exigência de imortalidade. Mesmo que
seja, segundo Freud (1916/2010, p. 249),
claramente um produto de nossos desejos que não pode reivindicar
valor de realidade. [...] Talvez chegue o dia em que os quadros e
estátuas que hoje admiramos se reduzam a pó, ou que nos suceda uma
raça de homens que não mais entenda as obras de nossos poetas e
pensadores, ou que sobrevenha uma era geológica em que os seres
vivos deixem de existir sobre a Terra.
Diotima contrapõe aqueles cujos feitos podem ser eternizados em belas epopeias ou
pela criação de obras de arte, como os heróis homéricos e os artistas, àqueles outros que
devem se contentar em ser recordados, de modo breve, graças à lembrança de sua
descendência. Em um caso o renome e em outro, o nome (SVENBRO, 1999).
Se “a morte é uma grande democrata, reservando a todos o mesmo destino, a fama [...]
é uma grande selecionadora e filtradora, eternizando os nomes de alguns e deixando decair os
de outros” (ASSMANN, 2011, p. 64). No ocidente cristão, Assmann (2011, p. 64) lembra
que, para a maioria, o modo de ser lembrado pela posteridade era através dos ritos religiosos
da comunidade: “O culto cristão dos mortos manteve o seu direito justamente aonde não
chegava a fama. Não se exigia nenhuma musa literária para os ‘anais curtos e simples dos
pobres’; nomes, datas e epitáfios devotos já lhes suprem o impulso de autoeternização na
Terra”.
Em relação ao nome e ao renome, um caso exemplar é o de Ulisses que condensa
esses dois modos de alcançar um “renome durável” (SVENBRO, 1999, p. 9). Ulisses é o
herói cujas façanhas foram cantadas por Homero e alcançou a glória imperecível [kléos
aphthiton]; igualmente é pai de um filho que se parece com ele cujo nome próprio se constitui
em uma verdadeira homenagem ao pai: Têle-makhos, que significa ao mesmo tempo “que
combate ao longe”, “em Troia” e “com o arco”. Telêmaco não combateu nada e nem é ainda
um arqueiro, ele cresceu enquanto seu pai, um grande arqueiro, combatia ao longe, na guerra
de Troia. O seu nome resume os feitos do pai, e se espera que com ele se assemelhe. Durante
a ausência deste, Telêmaco opera como um significante do pai. Aquele que lembra aos nobres
a existência do rei.
Em conformidade com a onomástica grega, o filho de Telêmaco, por sua vez, tem um
nome que também recorda as façanhas de Ulisses, chama-se Perse-polis, nome próprio que
significa “destruidor de cidades” (polis, “cidade”, e perthein, “destruir”). Persépolis, que ao
receber o nome ainda não destruiu nada, celebra e lembra os grandes feitos do avô.
139
O homem comum, aquele que não alcançou a glória a ser imortalizada pelos poetas71,
contará com a capacidade procriativa para ser lembrado, ainda que de modo breve. Seus filhos
serão portadores da memória de sua existência, dos genes que os torna semelhantes, e ainda
do patronímico que receberam: “Não te admires [continua Diotima], pois, de que todos os
viventes se afeiçoem de tal maneira aos seus rebentos. É da ânsia da imortalidade que lhes
advém, a cada um, toda aquela solicitude e amor” (PLATÃO, 2010, p. 56).
Se um filho é portador do desejo de imortalidade dos pais, a sua morte encerra não só
a sua existência, mas todos os (grandes) projetos ao qual estava destinado. O narcisismo dos
pais, lembra Freud (1914/2010), é atualizado e revivido nos filhos. Ora, se o filho realiza
idealmente a “imortalidade do Eu” (FREUD, 1914/2010, p. 37), sua morte é um ataque direto
ao narcisismo dos pais. Freud escreveu as seguintes palavras para seu amigo Oskar Pfeister,
por quando da morte de sua filha Sophie: “A perda de um filho parece um grande trauma
narcísico: qualquer que seja a tristeza que haja, certamente virá depois” (FREUD apud GAY,
1989, 360).
A morte do filho leva consigo um futuro a ser cumprido, mais ainda se ele partiu sem
deixar descendentes. Essa morte priva os pais não apenas dos grandes projetos que estava
destinado a realizar, mas também da continuidade da linhagem. Há uma ameaça direta ao
nome. Quem agora se lembrará de seus pais? Que farão eles da ânsia de imortalidade agora
esvanecida?
Os pais gregos costumavam erguer imponentes monumentos com inscrições poéticas
para homenagearem os filhos que lá repousavam. Os belos epigramas, especialmente
confeccionados, ressoavam o nome do filho e de sua linhagem:
Aqui Phillip, um pai, depositou sua grande esperança: um filho de 12
anos, Nicoteles.
Epitáfio do período helenístico (323-100 a.C.). (WOLFE, 2013, p. 78).
A Demótimo, sua própria mãe Anfidama fez erigir este túmulo, pois
em sua casa não nasceram crianças. E o tripé que ele ganhou na
corrida a pé em Tebas....
Epitáfio do século VI a.C. encontrado em Trezena. (SVENBRO, 1993,
p. 11).
Eu sou a sêma da filha de Nadys, o filho de Kares. Tu que passas,
detém-te e chora por mim. Sou a lápide e o túmulo de sua filha que,
perdendo a flor de sua juventude, morreu filha única (monogenês) de
seu pai...
Epitáfio grego do século V a.C encontrado em Sinope, Paflagônia.
(SVENBRO, 1993, p. 11).
71
No Brasil, os eleitos da Academia de Letras são chamados de “os imortais”.
140
A interrupção da continuidade genealógica impunha a necessidade de se erigir
monumentos sepulcrais em memória do filho cujas inscrições fizessem saber aos passantes o
nome de sua linhagem já que a posteridade via procriação não era mais possível. O túmulo
assume assim o sentido de signo que lhe é próprio. A palavra grega sêma carrega o sentido
geral de “signo”, mas também o sentido específico de “monumento funerário” ou “túmulo”
como pode ser observado no epitáfio da filha de Nadys cuja sêma fala em primeira pessoa
(SVENBRO, 1993, p. 17). Assim Nicoteles será para sempre lembrado, por aqueles que lerem
sua inscrição fúnebre, que sua morte precoce causou enorme desgosto em Phillip, seu pai, ao
ver encerradas as grandes esperanças que nele haviam sido depositadas. Demótimo de
Trezena será lembrado não apenas pela glória de ter vencido a corrida de Tebas, mas
igualmente pelo lamento de sua mãe, Anfidama, privada dos descendentes que lhe honrariam
a memória. Do mesmo modo, Partênia que será para sempre a filha única de Nadys, o filho de
Kares. Sua infecundidade lhe gerou um epigrama cuja leitura faz ressoar a sua linhagem:
“Somente a lápide dará uma posteridade à sua filha e a si mesmo: o leitor dessa lápide é,
mesmo, como que incluído na intimidade da família, pois convidado a participar do luto.
Caberá a ele assegurar a posteridade da defunta e de seu pai” (SVENBRO, 1999, p. 11).
A lápide, como signo, confere uma posteridade gloriosa ao defunto e a seus pais em
substituição à biológica através da voz de seus leitores ao longo dos séculos.
Não é que a lápide funerária substitua o defunto ou a defunta, mas
cada leitor que se detém diante dela fará ressoar um nome próprio que,
em conformidade com a onomástica grega, é portador de uma
lembrança ancestral. Sob este ponto de vista, a lápide ocupa o lugar do
filho: aquele que, em voz alta, lê o nome inscrito na lápide faz a
mesma coisa que aquele que pronuncia o nome de um filho vivo. Que
o (re)nome ressoe! (SVENBRO, 1999, p. 12).
Para Svenbro (1999, p. 12), a leitura tem valor de rito fúnebre, pois convida o
passante-leitor a trazer à lembrança o nome próprio do(a) falecido(a) que, desse modo, acaba
se aproximando dos heróis comemorados pelos épicos:
Enquanto a lembrança assegurada pela descendência biológica do
defunto permanece precária e submetida às vicissitudes da vida e da
reprodução, o monumento funerário parece estável e imutável,
repetindo, através da leitura e de suas letras alfabéticas, o nome
próprio do defunto ou da defunta.
Cada leitor da inscrição fúnebre presta culto à memória daquele a quem ela
homenageia e os mortos anseiam por irrigação (VERNANT, 1990), eles estão sedentos de
lembranças. Cada vez que damos voz a sêma de Partênia – “Eu sou a sêma da filha de Nadys,
o filho de Kares. Tu que passas, detém-te e chora” – é como se a trouxéssemos à vida e
141
compartilhássemos o lamento fúnebre, ou a glória como veremos a seguir, de sua família
eternamente lembrada por esse luto que lhe deu também a posteridade ansiada.
Imortalidade assegurada pela letra: Verba volant, scripta manent [as palavras voam, a
escrita permanece]. Com a condição de que a escrita subsista ou que exista alguém que ainda
possa decifrá-la. A transitoriedade vale para tudo e todos e isso inclui o monumento e a
escrita: “Oxalá, os escritos ficassem, como é antes, o caso das falas” (LACAN, 1955/1998, p.
30). Verba volant, scripta volant.
142
2. DOS MEMORIAIS PÉTREOS AOS TÚMULOS VOLANTES
No Museu Arqueológico Nacional de Atenas repousa o memorial da koúrē
Phrasikleia, datado do período arcaico da Grécia Antiga (550-540 a.C.); ele foi descoberto em
1972 em ótimo estado de conservação na antiga região do dêmos de Myrrhinous (atual
Merenda, Attica). Sua sêma é considerada valiosíssima, pois é muito raro que uma inscrição
fúnebre, seu epigrama, tenha sobrevivido junto com o monumento sepulcral (SVENBRO,
1993).
Figura 6. Memorial de Phrasikleia72
Fonte: http://nam.culture.gr/portal/page/portal/deam/virtual_exhibitions/EAMS/EAMG4889.
Escrita em primeira pessoa, sua pedra tumular fala aos visitantes:
Eu, o túmulo [sêma] de Phrasikleia,
serei sempre chamada garota (koúrē)73,
72
Acesso em: 22/04/2015.
143
tendo recebido este nome dos deuses em vez do casamento.
(Obra de Aristion de Paros)
(SVENBRO, 1993, p. 17, tradução nossa)74.
A sēma de Phrasikleia é silenciosa e condenada à ruina como todo monumento. Os
gregos, assim como os egípcios, já sabiam que a escrita era um meio de eternização e suporte
de memória mais duradouro que os sepulcros com seus ornamentos dispendiosos (ASSMAN,
2011). Assim a sēma de Phrasikleia fala através de suas letras. Porém, ela só fala àqueles que
podem decifrar os signos escritos em sua lápide. Seu belo monumento sepulcral tem a função
de chamar nossa atenção (provocar o olhar), para daí capturar nosso interesse de leitura
(convocar a voz).
Segundo SVENBRO (1993, p. 18, tradução nossa), os gregos atribuíam grande
importância à leitura em voz alta, para eles, “ler é ler em voz alta” como hoje para nós é
difícil conseguir ler uma partitura ou letra de música em silêncio. Em uma cultura em que
kléos tem um papel fundamental, a escrita era cuidadosamente produzida para ser acústica,
por isso, os escritores gregos costumavam escrever continuamente as palavras [scriptio
continua] de modo a forçar seus leitores a lerem em voz alta.
O epigrama de Phrasikleia foi construído para ser sonoro. Só esse tipo de leitura
permite que o estatuto de kléos seja atingido. SVENBRO (1993, p. 14-5, tradução nossa) nos
diz que uma característica essencial da kléos grega é que ela “pertence inteiramente ao mundo
dos sons [...]. Se kléos não é acústica, ela não é kléos”. A glória imperecível, que os poetas
atribuíam a alguém que tivesse feito algo marcante, só seria plenamente atingida quando
declamada ou lida em voz alta: “O que está escrito permanece incompleto até que chegue o
dia em que lhe seja fornecida uma voz” (SVENBRO, 1993, p. 18, tradução nossa).
Os pais de Phrasikleia não mediram esforços em conceder à garota que desapareceu
sem descendentes uma posteridade (pela letra) e uma glória imperecível (pela voz). Eterna
Koúrē, Phrasikleia assim será lembrada. O significante (koúrē) recebido do Outro (deuses)
garante a posteridade de sua linhagem enquanto houver decifradores interessados em dar voz
ao seu lamento fúnebre: “Esta leitura provê a única posteridade que Phrasikleia, que morreu
antes de se casar, irá adquirir, uma posteridade que não é biológica mais acústica e a qual o
leitor é instrumento de criação” (SVENBRO, 1993, p. 64, tradução nossa).
73
Koúrē: garota, filha, virgem. Svenbro (1993) sugere que, em decorrência das circunstâncias familiares em que
o epigrama foi gerado, a melhor tradução seria “filha”.
74
I, Phrasikleia’s sêma,/ shall always be called girl [koúrē], / having received this name from the gods instead of
marriage (SVENBRO, 1993, p. 17).
144
Os antigos cemitérios dos primeiros séculos da era cristã seguiam a tradição da
Antiguidade clássica e costumavam dar aos seus mortos um monumento pétreo e uma
inscrição. O túmulo tinha a função de identificar o lugar exato onde o corpo foi depositado e
sobre este uma inscrição que fornecia alguns dados pessoais do falecido. Alguns túmulos
também eram acompanhados por alguma forma de retrato: estátuas de corpo inteiro, bustos ou
efígies: “Se o túmulo designava o local necessariamente exato do culto funerário é porque
também tinha por objetivo transmitir às gerações seguintes a lembrança do defunto. Daí seu
nome de monumentum, de memória: O túmulo é um memorial” (ARIÈS, 1981, p. 218).
Da Antiguidade clássica aos tempos modernos, os monumentos e seus epitáfios
proliferaram muito para além dos tradicionais sepulcros cravados em pedra. Desde o século
XVIII, na burguesia francesa, se popularizou os chamados “túmulos literários” [le tombeau
littéraire ou le tombeau poétique] inspirados nos antigos epitáfios gregos. Na Inglaterra, o
Romantismo produziu a “elegia”, um poema que é uma espécie de epitáfio mais desenvolvido
que inclui um breve relato biográfico do falecido, suas conquistas e glórias e ainda o elogio
fúnebre. Impresso em folha volante ele ficava afixado no catafalco durante as exéquias
(ARIÈS, 1981).
Não mais esculpidos em pedra, os túmulos literários se constituem em letras volantes
destinadas à publicação e circulação, em consonância com a observação de Assmann (2011,
p. 195) que “a escrita é uma das armas mais eficientes contra a segunda morte social, o
esquecimento”. Alguns desses túmulos feitos de letras eram compostos pelos próprios futuros
mortos ou, mais comum, a eles dedicados. Ariès (1981, p. 244) citou um registro desse tipo
confeccionado por padres jesuítas em 1619 e dedicado à memória de um jovem professor da
ordem que graças à homenagem póstuma que lhe foi prestada chegou até nós a informação de
que era talentoso e costumava ganhar todos os prêmios:
Tão numerosos como os prêmios pouco antes recebidos no meio dos
jovens discípulos de Pallas, tão numerosos como as guirlandas
reservadas à tua fronte erudita, eis que, triunfante entre os seres do
alto graças a uma santa morte, tu possuis prêmios eternos da alma não
vencida...
Assim como os monumentos fúnebres gregos, os túmulos literários dirigem-se à
posteridade, para além de lembranças privadas. Não se trata justamente de triunfar sobre o
esquecimento, a verdadeira morte?
Esses túmulos ficaram mais populares à medida que se transformou a relação com a
morte e com os mortos, passagem da preocupação com a própria morte (morte de si) para com
a morte do outro (morte de ti). No início do século XIX, por exemplo, na burguesia francesa
145
havia o hábito de difundir, entre familiares e amigos, “um retrato do defunto, pequena nota
biográfica e citações piedosas à maneira das inscrições fúnebres – em resumo, um ‘túmulo’”
(ARIÈS, 1981, p. 508). Costume que ainda sobrevive no Brasil, principalmente em cidades do
interior, em que “santinhos” são distribuídos em velório ou quando da visita à família.
Mementos que evoluíram do memento mori [lembrai-vos da morte] – objetos, gravuras
ou inscrições oriundos da era macabra que lembravam aos vivos sua condição de mortal e os
exortava a se prepararem para a morte – para a lembrança do defunto, o memento illius
[lembrai-vos de...] repetido na oração eucarística da missa católica, “Lembrai-vos dos nossos
irmãos e irmãos...” (ARIÈS, 1981).
No século XIX, um dos mais obscuros e herméticos poetas franceses, Stéphane
Mallarmé – muito apreciado por Lacan e a cujo estilo de escrita este se aproxima – esculpiu
“poemas-túmulos” para ornar a inscrição de alguns famosos no panteão da glória imperecível
[kléos aphthiton]. Edgar Allan Poe, Charles Baudelaire, Paul Verlaine são alguns dos
homenageados ilustres75.
Entretanto, por quando da morte de seu filho Anatole, Mallarmé preservou em segredo
os versos esboçados em 202 folhas de dor e aflição paternal. Seu luto silencioso e discreto se
inscrevia no modelo da morte romântica, centrado na dor do enlutado às voltas com a morte
do amado perdido. Diferentemente dos pais gregos que acorreram a erguer aos filhos e a si
próprios belos monumentos com epigramas que resistiam à ameaça de extinção da linhagem e
caducidade da memória, Mallarmé deixou inacabado o túmulo de Anatole. Ele jamais o
publicou.
– (esse abismo aberto
desde sua morte e
que nos seguirá
até a nossa –
quando lá
tivermos descido
tua mãe e eu) [...]
(MALLARMÉ apud MATTONI, 2004, p. 172-IX)
Um pudor que fracassou, escreveu Mattoni (2004). As folhas soltas foram legadas à
filha Geneviève, única sobrevivente direta da família, para serem queimadas junto com outras
notas e manuscritos. Acontece que a filha não atendeu ao pedido do pai e o material
sobreviveu vindo a ser organizado e publicado postumamente, em 1961, por Jean-Pierre
Richard que o intitulou “Pour un tombeau d’Anatole” (LAUFER, 2009).
75
“Le Tombeau d'Edgar Poe”; “Le tombeau de Charles Baudelaire”; “Le tombeau de Verlaine”,
respectivamente.
146
Anatole morreu aos oito anos de idade em 1879. A não finalização e publicação de seu
túmulo faz supor que os versos a ele dedicados pendiam mais para uma “catarse literária”
(MATTONI, 2004, p. 172) de um homem dilacerado que encontrava nas letras algum alívio
do que à construção de uma obra cuja publicação perpetuaria a memória do filho e,
evidentemente, a própria. Aliás, a acreditar em Allouch (2004), Mallarmé nunca pôde
entender como Victor Hugo havia sido capaz de erguer como poeta uma tumba literária para a
filha Léopoldine morta por afogamento aos 19 anos junto com o marido que tentara salvá-la.
Não – não
misturados aos grandes
mortos – etc.
– enquanto nós
mesmos vivermos, ele
vive – em nós
_
É só após nossa
morte que ele estará
– e que os sinos
dos mortos soarão por
ele.
(MALLARMÉ apud MATTONI, 2004, p. 172-V).
Ora, sem a intenção de legar-lhe um túmulo (literário) no qual seu nome ressoaria para
a posteridade, Mallarmé considerava que Anatole subsistiria provisoriamente apenas nas
lembranças de seus familiares enquanto estes vivessem. Depois o mais completo
aniquilamento. Imaginaria Mallarmé que um dia alguns outros, tocados pelos versos,
tomariam para si a tarefa, que permanecerá sempre inacabada, de ornar a tumba de Anatole e,
por conseguinte, a de Mallarmé com esses versos plenos de dor e titubeios?
Mattoni (2004, p. 172-VI) considerou a não finalização e publicação do túmulo de
Anatole como um fracasso pessoal do poeta:
Por que Mallarmé fracassou em esculpir o túmulo de seu filho que
deveria ter sido, a partir dali, o seu também? Esta questão mascara
uma segunda curiosidade impertinente, surgida da leitura do esboço
mallarmeano: se Mallarmé projetou escrever e em parte escreveu o
“túmulo de Anatole”, por que nunca o publicou, nem mesmo sob a
forma abreviada de um poema ordinário?
Questionamos se se trata de uma questão de fracasso, ou antes, de uma escrita que
visava acima de tudo expressar uma dor dilacerante apenas “à letra suportável”. Invocamos
aqui outro “homem de cultura”, desta vez um ensaísta, Roland Barthes, que também não
finalizou nem expôs, ele próprio, o “túmulo” dedicado à mãe, Henriette, morta aos 84 anos.
Por dois anos (de 26 de outubro de 1977 a 15 de setembro de 1979) Barthes registrou, em
147
folhas de papel A4 cortadas por ele mesmo em quatro, seu “desgosto”76 pela perda da mãe.
Sua escrita é um recurso que lhe cabe (esta é a singularidade de seu luto como o de Mallarmé)
para fazer frente a sua dor.
Sinto-me sempre (dolorosamente) espantado por poder – afinal – viver
com o meu desgosto o que quer dizer que ele é à letra suportável. Mas
– sem dúvida – é porque posso, melhor ou pior (quer dizer com o
sentimento de não conseguir), falá-lo, fraseá-lo. A minha cultura, o
meu gosto pela escrita dá-me este poder apotropaico, ou de
integração: integro*, através da linguagem.
O meu desgosto é inexprimível, mas apesar de tudo dizível. O próprio
facto de a linguagem me fornecer a palavra “intolerável” realiza
imediatamente uma certa tolerância.
* Fazer entrar num conjunto – federar – socializar – comunicar,
gregarizar-se.
(BARTHES, 2009, p. 185, 1 de agosto de 1978, grifo do autor)
Se fracasso há, o fracasso é da palavra contra a morte. Barthes declara que seu
desgosto é “dizível”, mas apenas parcialmente, algo resta sempre inexprimível. Se a
linguagem fornece os significantes para que algo seja dito, ele é sempre meio-dito. Não é
possível dizer tudo da morte de um filho, de uma mãe ou de qualquer morte. As experiências
de Mallarmé e Barthes se aproximam daquela que nos foi narrada por Freud acerca do pai
cujo sonho revela seu desfalecimento ante a incapacidade de salvar o filho das chamas (da
morte). Trata-se aí novamente de um fracasso, impotência ou da impossibilidade do simbólico
de recobrir o real (da morte)? “Pois que ninguém pode dizer o que seja a morte de um filho –
senão o pai enquanto pai – isto é, nenhum ser consciente” (LACAN, 1964/2008, p. 63).
[...] escrevo – ele
(sob a terra)
decomposição [...].
(MALLARME apud MATTONI, 2004, p. 172-VII)
A escrita do luto do poeta tem função de convocar, como diz Lacan (1958-9/2002),
todo o conjunto de significantes para cingir o furo no real. Mas, ainda assim, denota-se os
limites dessa escrita, a insuficiência da escrita em salvar o “pequeno adorado” das chamas do
aniquilamento que o consumirão até o ponto em que dele não reste mais nenhum vestígio ou
lembrança:
Nesse combate entre a vida e a morte,
Que sustenta nosso pobre pequeno adorado...
O horrível
é a infelicidade em si que esse pequeno ser não seja mais,
tão igual sorte é a dele! [“é”, não: deve-ser!]
76
Barthes (2009, p. 166) resiste à ideia de chamar de “luto” a sua dor por considerar esse “termo novo,
psicanalítico, que desfigura”. Prefere “desgosto” palavra que recolhe de Marcel Proust.
148
Confesso aqui que falhei
E não posso enfrentar essa ideia.
[Carta de Mallarmé escrita pouco antes da morte do filho].
(MALLARMÉ apud ALLOUCH, 2004, p. 139)
“Que esse pequeno ser não seja mais”. Esse ponto de impossibilidade (um dos nomes
do real segundo Lacan) é hoje, “mais do que nunca, o ponto vivido como o mais insuportável
tratando-se do luto” (ALLOUCH, 2004, p. 139). Do mesmo modo, Barthes (2009) que já
havia erguido, com suas obras, seu próprio túmulo (kléos) não podia suportar a ideia de que
sua querida mam pudesse desaparecer por completo, pois dependia inteiramente da lembrança
de seus filhos (génesis).
Vivo sem qualquer preocupação com a posteridade, qualquer desejo
de ser lido mais tarde (excepto, financeiramente, por causa de M.), a
perfeita aceitação de desaparecer completamente, sem qualquer
vontade de “monumento” – mas não posso suportar que seja assim
com a mam. (talvez por ela não ter escrito e porque a sua recordação
depende inteiramente de mim).
(BARTHES, 2009, p. 244, 29 de março de 1979).
Como qualquer outro monumento, o túmulo literário é um signo [sêma] enquanto
aquilo que representa algo para alguém (LACAN, 1972-3, p. 55)77. A escrita para Barthes
(2009) tem função memorial, de fabricação de um monumento (signo) que resista ao
esquecimento quanto mais ele se mostre inexorável:
Escrever para recordar? Não para me recordar, mas para combater a
dilaceração do esquecimento, na medida em que ele se anuncia
absoluto. O – dentro em breve – “nem um vestígio já”, em parte
nenhuma, em ninguém.
Necessidade do “Monumento”.
“Memento illam vixisse”. [Lembra-te de que ela viveu].
(BARTHES, 2009, p. 123, por volta de 12 de abril de 1978).
A constatação da inexistência absoluta de sua mãe lhe traz uma “dor nova”, “alguma
coisa mate, sem adjetivo”, “vertiginoso porque insignificante”. Mais do que nunca o recurso à
escrita se faz imperioso.
Agora, por vezes, sobe em mim, inopinadamente, como que uma
bolha que rebenta: a constatação: ela já não existe, ela já não existe,
para sempre e totalmente. Qualquer coisa mate, sem adjectivo –
vertiginoso porque insignificante (sem interpretação possível).
Dor nova.
(BARTHES, 2009, p. 86, 7 de dezembro de 1977, grifo do autor).
77
Lacan (1972-3), no seminário XX, diferencia signo de significante. O significante se caracteriza por
representar um sujeito para outro significante. Já o signo representa algo para alguém, a fumaça de cigarro, por
exemplo, é, em geral, signo de um fumante, ou seja, de um sujeito.
149
Barthes escreve em “desgosto”. Escreve apesar do “desgosto”. Inventa letras para
suportar o real nesse limite em princípio impossível de suportar senão pela fala. Ali onde
Mallarmé e Barthes parecem “fracassar”, o que desponta de maneira bem-sucedida é a
impossibilidade de se passar à palavra tudo o que se quer expressar. Essas experiências nos
transmitem o caráter pas-tout da linguagem. Na perspectiva do simbólico, o luto ficará sempre
como um deuil pas-tout [luto não-todo]78.
Do mesmo modo, os monumentos e suas inscrições fúnebres bem como os túmulos
literários nos legam não a completude do simbólico, mas seu “semi-dizer” (LACAN, 1972-3,
p. 188) que, seja como for, nos ajudam a expressar, passar à palavra algo dessa dor:
Estas notas de luto rarefazem-se. Assoreamento. Então, devir,
inexorável, esquecimento? (“doença” que passa?) E no entanto...
Em pleno mar de desgosto – deixadas as margens, nada à vista. A
escrita já não é possível.
(BARTHES, 2009, p. 223, 4 de novembro de 1978).
Os diversos tipos de memoriais fúnebres (pétreos, volantes e hoje virtuais), se
expostos, prestam uma homenagem pública ao morto. Evocamos aqui o paradoxo que a carta
escrita por Plutarco à sua mulher comporta. Se de um lado, ele exorta sua esposa a manter-se
firme em um luto exíguo de ritos e tributos, a própria carta, como notou Svenbro (1999), tem
função de túmulo literário que presta homenagem às duas Timoxenas – mãe e filha, de agora
em diante, na carta-túmulo, inseparáveis – e ainda ao seu autor.
Além de buscar perenizar a memória do morto, o memorial não apenas registra para a
posteridade aquela existência como faz a comunidade (re)conhecer o lamento por aquela
perda. Uma homenagem e um lamento atualizados a cada leitura. Poderia essa escrita (de
luto) “programar” um lamento inconsolável? Seus leitores perpetuariam assim um luto
infindável?
Se os leitores futuros a repetem, isso quer dizer que a leitura assume a
forma de um luto sem fim, um luto desmesurado, incapaz de se
transformar em kléos. A escrita programaria, assim, um luto
interminável, realizado por um número infinito de leitores que,
idealmente, partilham os sentimentos dos próximos (SVENBRO,
1999, p. 18).
Svenbro faz referência aqui à diferença que Gregory Nagy (1999) encontrou entre a
palavra ákhos [pesar, lamento, desgosto sentido pelos próximos] e kléos [glória pública]. O
pesar [ákhos] só é pesar para os próximos, para o público a narrativa é recebida como kléos. A
narrativa épica dos fatos que envolveram a morte de Aquiles, por exemplo, é ákhos somente
78
“Luto não-todo” é uma expressão que recolhemos de Sandra Berta por quando de seu seminário “Um estudo
sobre a invenção do objeto a” em aula sobre o seminário 11 (Fórum do Campo Lacaniano São Paulo, 2014).
150
para aqueles que o conheceram e lamentaram a sua morte, mas para o povo grego Aquiles é
celebrado como aquele que alcançou a verdadeira kléos.
Assim como os túmulos de Anatole e Henriette, a sēma de Phrasikleia é para nós mais
glória do que lamento. Seu monumento fúnebre realiza o que seu nome pré-dizia: Phrásai
[mostrar, prestar atenção] + Kleia derivada da palavra kléos. Phrasikleia é aquela que “chamaa-atenção-à-kléos” ou “presta-atenção-à-kléos” (SVENBRO, 1993, p. 14). Somente a escrita
desse luto garantiu-lhe a glória.
De outro modo, poderíamos considerar também que algumas escritas do luto
(pensamos aqui nas tatuagens in memoriam) podem “programar” para os próximos um ákhos
interminável, um tributo “incapaz de se transformar em kléos” no estilo “tu que passas,
detém-te e chora”?.
151
3. O TRABALHO DE REMEMORAÇÃO
Nos tempos do método catártico, Freud (1893-95/1987, p. 174) atendeu Mathilde H.,
uma jovem de 19 anos que buscou “tratamento por causa de uma alteração em seu caráter.
Ficara deprimida a ponto de chegar a um taedium vitae, mostrando-se irritadiça, inacessível e
sem a menor consideração pela mãe”. Sob hipnose, Freud dava-lhes “ordens e sugestões”,
Mathilde em sono profundo chorava muito, mas apenas isso. Seu estado se mantinha sem
alterações significativas até o dia em que se pôs a falar sobre a causa de seu sofrimento:
estava noiva, mas um conhecimento maior do caráter do noivo levou-a a considerar o fim do
relacionamento, sem, contudo, conseguir fazê-lo. Diante de sua hesitação, a mãe se precipita e
profere ela mesma a ruptura da relação. Do noivo Mathilde viu-se privada antes que ela
mesma pudesse encerrar a questão, se é que conseguiria. Daí em diante, ela permaneceu
fixada no tempo em que ainda pesava os prós e contra da relação e nos ressentimentos para
com a mãe: “Comparada a essas atividades mentais, sua vida atual se afigurava como mera
aparência da realidade, como algo num sonho” (FREUD, 1893-95/1987, p. 175).
Após narrar esses acontecimentos e irromper em lágrimas enquanto Freud lhe falava
sob hipnose, Mathilde finalmente viu-se livre de sua tristeza: “Um dia, perto do aniversário de
seu noivado, toda a sua depressão79 se dissipou, o que me trouxe o crédito por um grande
êxito terapêutico através da hipnose” (FREUD, 1893-95/1987, p. 175).
Esta vinheta clínica ilustra o que Freud (1893-95/1987, p. 174) chamava então de
“uma ab-reação de contas atrasadas” e o trabalho clínico se restringia a busca pelo momento
da formação do sintoma, à sua causação. Freud (1914b/1987) se esforçava por reproduzir, ipsi
litteris, a cena traumática de modo a propiciar a descarga dos afetos retidos. A recordação,
viabilizada pelo método catártico, visava suprimir os sintomas preenchendo as lacunas de
memória. O sintoma neurótico é comparável aos monumentos históricos que adornam as
cidades. Freud (1910/1987) evocou a imponente coluna gótica inglesa Charing Cross para
ilustrar a função simbólica do sintoma que presentifica, nos corpos de suas pacientes
histéricas, a memória de um acontecimento importante, mas esquecido.
79
Se o estado de ânimo de Mathilde é descrito como “depressivo” nesse momento, cerca de 20 anos mais tarde
poderá ser chamado de “lutuoso”, a partir do que Freud escreverá em “Luto e melancolia” (1917).
152
Charing Cross80 recebeu seu nome da “Cruz de Eleanor” [Eleanor Cross] um antigo
monumento fúnebre há muito desaparecido. No século XIII, o Rei Eduardo I ergueu 12 cruzes
para marcar os lugares onde passou o cortejo fúnebre da Rainha Eleanor. Destruídas no século
XVII, a atual coluna gótica que repousa em frente a uma das principais estações de Londres
foi erguida no século XIX, ela é uma réplica de uma daquelas levantadas pelo antigo rei. Tal
como um sintoma, ela está em substituição a um acontecimento importante, mas esvanecido
da memória.
Da experiência clínica com a histeria, Freud (1910/1987, p. 18) extraiu o famoso
postulado: “Os histéricos sofrem de reminiscências. Seus sintomas são resíduos e símbolos
mnêmicos de experiências especiais (traumáticas)”. Os neuróticos em geral são aqueles que
“não só recordam acontecimentos dolorosos que se deram há muito tempo, como ainda se
prendem a eles emocionalmente” (FREUD, 1910/1987, p. 19). Freud ressaltou que o
sofrimento dos neuróticos não é decorrente dos acontecimentos em si, mas das lembranças,
precisamente, das representações reinvestidas residuais desses acontecimentos. Este é o caso
da Srta. Ana O., cuja crise histérica eclodiu durante o período em que cuidava do amado pai.
Poderíamos também considerar a eclosão de sua grave doença a expressão do luto por seu
pai?
A princípio Freud (1910/1987, p. 19) considera que sim:
Desde já aceito a objeção que provavelmente os senhores formularam
refletindo sobre a história da paciente de Breuer. Todos os traumas
que influíram na moça datavam do tempo em que ela cuidava do pai
doente, e os sintomas que apresentavam podem ser considerados como
simples sinais mnêmicos da doença e da morte dele. Correspondem,
portanto, a uma manifestação de luto, e a fixação à memória do
finado, tão pouco tempo depois do transpasse, nada representa de
patológico; corresponde antes a um processo emocional normal.
Por um lado, Freud reconhece que a paciente de Breuer não apresentava um quadro
extraordinário quando se considerava as circunstâncias do desencadeamento de sua doença,
uma vez que seus sintomas correspondiam, em grande parte, à manifestação de luto pelo pai,
uma perda significativa recente. O luto já aparece como um “processo emocional normal” em
que se manifesta uma fixação “normal” ao passado em contraposição àqueles casos “como no
tique por mim tratado, cujos fatores datavam mais de quinze e dez anos, – é muito nítido o
caráter da fixação anormal ao passado” (FREUD, 1910/1987, p. 19).
80
Segundo uma versão que Freud conhecia, Charing Cross derivaria do francês chère reine [querida rainha] e
poderia ser traduzido por “Cruz da querida rainha”. Seguindo a sugestão de Svenbro, a cada vez que falamos
Charing Cross prestamos uma homenagem à rainha morta e ao rei que a imortalizou.
153
Todavia, por outro lado, ele considera que a fixação normal ao passado comum no luto
(fixação à memória do morto), pode passar a um quadro patológico ao persistir em gravidade
e se prolongar no tempo. Sem a intervenção precoce de Breuer, o destino de Ana O. poderia
ter sido o mesmo daquelas outras pacientes por ele tratadas? Freud pensa que sim: “a doente
de Breuer nos haveria de oferecer oportunidade de apreciar a mesma fixação anormal, se não
tivesse sido tratada pelo método catártico tão pouco tempo depois do traumatismo e da
eclosão dos sintomas” (FREUD, 1910/1987, p. 19).
O caso Ana O. e alguns outros apresentados nos Estudos sobre Histeria têm em
comum o fato de que o desencadeamento dos sintomas se relacionam com a perda de um ser
amado, alguém de quem cuidavam e que faleceu (Elisabeth von R. e Emmy von N., morte do
pai e marido, respectivamente) ou alguém cujo laço amoroso foi dolorosamente rompido
(Mathilde H.). No fim do século XIX, a clínica freudiana confirma a observação de Ariès
(1981) que o luto romântico predominava os sentimentos da época. O cuidado e preservação
da vida dos entes amados havia assumido primazia absoluta sobre o cuidado de si e a perda de
um desses seres tornava a vida difícil de suportar.
Há bons motivos para que o fato de cuidar de pessoas doentes
desempenhe um papel tão significativo na pré-história dos casos de
histeria. Muitos dos fatores em ação são óbvios: a perturbação da
saúde física que decorre do sono interrompido, o desleixo para
consigo mesmo e o efeito da preocupação constante sobre as próprias
funções vegetativas (FREUD, 1893-95/1987, p. 173).
O culto dos mortos andava em alta e o luto como ritual social ainda se mantinha.
Porém, já se fazia sentir uma tendência crescente ao cultivo privado e pessoal das lembranças
beirando à mumificação seja por meio dos pertences do morto, seja dos lugares onde viveu,
seja ainda pela via do corpo que explodia em sintomas, um corpo mortificado ante a
impossibilidade de se separar dos mortos. Freud (1893-95/1987, p. 174) nos conta o curioso
caso de uma conhecida sua, uma “senhora extremamente bem-dotada” e que anualmente
“celebrava festivais de recordação”:
[...] Ela já cuidou até o fim de três ou quatro pessoas a quem amava. A
cada vez, chegava a um estado de completo esgotamento, mas não
adoecia depois desses trágicos esforços. Pouco depois da morte de
cada paciente seu, contudo, iniciava-se nela um trabalho de
reprodução que mais uma vez lhe colocava diante dos olhos as cenas
da doença e da morte. Todos os dias ela repassava cada uma daquelas
impressões, chorava e se consolava [...]. Esse processo de lidar com
suas impressões encaixava-se em suas tarefas cotidianas sem que as
duas atividades interferissem uma na outra. A situação inteira lhe
passava pela mente em sequência cronológica. Não sei dizer se o
trabalho de rememoração correspondia dia a dia ao passado.
154
Desconfio que isso dependia do número de horas de lazer
proporcionadas por seus afazeres domésticos correntes.
Essa senhora ocupava-se obsequiosamente de seus mortos. Ela reproduzia em detalhes
as lembranças ligadas a eles, mas não somente lembrava, ela também revivia intensamente os
afetos relacionados e que na época ficaram retidos:
Essa senhora celebrava festivais anuais de lembranças no período de
suas várias catástrofes, e nessas ocasiões sua nítida reprodução visual
e suas expressões de sentimentos se atinham rigorosamente às datas
exatas. Por exemplo, uma vez encontrei-a chorando e perguntei-lhe
amavelmente o que acontecera naquele dia. Ela repeliu minha
pergunta, um pouco irritada: “Não foi nada”, disse, “foi só que o
especialista esteve aqui hoje novamente e nos deu a entender que não
havia mais nenhuma esperança. Não tive tempo de chorar por causa
disso na hora”. Referia-se à última doença do marido, que falecera três
anos antes. Muito me interessaria saber se as cenas que ela relembrava
nesses festivais anuais de recordações eram sempre as mesmas, ou se
a cada vez se apresentavam detalhes diferentes para fins de ab-reação
(FREUD, 1893-95/1987, p. 174).
Aparece aqui um esboço daquilo que mais tarde Freud (1917/2010) constituirá como
sendo o cerne do “trabalho de luto”: o trabalho rememorativo realizado em detalhes. O luto, a
princípio, é uma batalha contra o esquecimento: “Não, não é possível... [...] Essas coisas têm
de subsistir de alguma forma, subtraídas às influências destruidoras” (FREUD, 1916/2010, p.
248).
Apesar dos tempos sombrios que assolavam a Europa durante o ano de 1915 ou talvez
por isso mesmo, Freud escrevia “com rapidez e energia” um conjunto de artigos sobre
metapsicologia para um livro que pretendia lançar. Dentre esses, um era dedicado à
melancolia. Karl Abraham que já havia publicado um artigo sobre o tema recebeu uma cópia
conforme o costume de Freud que gostava de circular entre os íntimos um esboço daquilo que
escrevia (GAY, 1989, p. 334).
Devido às dificuldades da guerra, Luto e melancolia só foi publicado em 1917. Nunca
é demais lembrar que, muito embora esse ensaio seja considerado uma referência para abordar
a visão psicanalítica de luto, a visada de Freud (1917/2010, p. 171), anunciada desde o
primeiro parágrafo, é de prioritariamente elucidar a melancolia: “Depois que o sonho nos
serviu como modelo normal dos distúrbios narcísicos, façamos a tentativa de elucidar a
natureza da melancolia comparando-a com o afeto normal do luto”.
Freud não dedicou ao luto nenhum ensaio exclusivo. Em Luto e melancolia,
percebemos claramente que ele se ocupa do luto apenas na medida em que este ajuda a
esclarecer a melancolia, um estado normal contraposto a um patológico, seguindo o exemplo
155
de Karl Abraham que havia proposto essa mesma comparação. Torna-se assim compreensível
que Freud tenha deixado de lado alguns aspectos socioculturais cruciais ligados ao luto, muito
embora tenha sempre manifestado um enorme interesse pelos estudos oriundos da
antropologia social como pode ser observado em Totem e tabu, publicado dois anos antes de
Luto e melancolia.
As variações socioculturais do luto, as circunstâncias da morte, as aparições
fantasmagóricas, a função dos ritos, a importância da participação do público, entre outros
aspectos lamentavelmente não foram abordadas. O não tratamento dessas questões por Freud
e pela maioria dos autores psicanalíticos que o seguiram gerou inúmeras censuras à visão
psicanalítica de luto. Historiadores e antropólogos, tais como Gorer, Ariès e Vovelle,
apontaram a tendência de se reduzir o “trabalho de luto” a uma abordagem psicológica, sem
qualquer referência ao contexto sociocultural do enlutado, como se este “estivesse
completamente sozinho, sem outra ocupação na vida que não fosse ocupar-se de seu luto”
(GORER, 1967, p. 150).
Ainda assim, conforme apontamos anteriormente, Luto e melancolia se tornou um
texto canônico sobre o luto que domina, ainda hoje, não só os textos psicanalíticos, mas
também a maioria dos estudos psiquiátricos e sociológicos que se seguiram à sua publicação.
Como Freud vai tratar o luto nesse ensaio?
Ele vai considerá-lo essencialmente como um estado normal em contraposição à
melancolia, ambos considerados à luz de sua teoria libidinal circunscrita no texto Sobre o
narcisismo. As duas condições apresentam um recolhimento do investimento libidinal cuja
causa aparente parece coincidir.
Via de regra, luto é a reação à perda de uma pessoa amada ou de uma
abstração que ocupa seu lugar, como pátria, liberdade, um ideal etc.
Sob as mesmas influências observamos, em algumas pessoas,
melancolia em vez de luto, e por isso suspeitamos que nelas exista
uma predisposição patológica (FREUD, 1917/2010, p. 172).
Nota-se que em alguns casos o luto pode ocorrer em decorrência de uma perda de
ordem mais ideal; provavelmente essa observação de Freud, extraída de modo isolado do
texto, contribuiu para a banalização do luto como um estado encontrado em qualquer situação
tomada como perda. Ele exemplifica da seguinte forma a situação em que o objeto não
morreu de fato: “O objeto não morreu verdadeiramente, foi perdido como objeto amoroso (o
caso de uma noiva abandonada, por exemplo)” (FREUD, 1917/2010, p. 175). Nesta série,
poderia ser incluída Mathilde H., a noiva cujo noivado foi rompido por sua mãe. Fora esta
pequena alusão (a da noiva abandonada), não há no ensaio qualquer referência a algum caso
156
clínico atendido. Freud optou pelo método, sublinhado por Allouch (2004), do quadro
comparativo em que uma condição dita normal é contraposta a uma patológica. O texto aplica
à melancolia o que Freud verificou no luto.
Vejamos em um quadro geral as características compartilhadas (ou não) por ambas as
condições:
Traços
Luto
normal
1. O abatimento doloroso
S
2. A cessação do interesse pelo mundo externo
S
3. A perda da capacidade de eleger um novo objeto de amor
S
4. Inibição de toda atividade
P
5. Diminuição da autoestima
N
6. A perda é de ordem inconsciente
P
Legenda: S= sim; N= não; P= parcialmente.
Melancolia
S
S
S
S
S
S
Conforme o quadro, observamos que três itens apresentam diferenças em relação a
cada estado. No item quatro, enquanto na melancolia há a inibição de toda e qualquer
atividade, no luto, de modo geral, essa inibição é parcial e diz respeito às atividades que não
se ligam à memória do morto. No luto, “a inibição e restrição do eu exprime uma exclusiva
dedicação ao luto, em que nada mais resta para outros interesses” (FREUD, 1917/2010, p.
173).
Já no item cinco, a melancolia apresenta um traço distintivo do luto: nela a autoestima
se mostra afetada. Freud (1917/2010, p. 183) considera que essa condição não aparece no luto
normal, mas apenas quando o luto se tornou patológico, ele cita o caso da neurose obsessiva:
Quando existe predisposição para a neurose obsessiva, o conflito da
ambivalência empresta ao luto uma configuração patológica e o leva a
se exprimir em forma de autorrecriminações, nas quais o indivíduo
mesmo teria causado – isto é, desejado – a perda do objeto de amor.
No item seis, Freud (1917/2010, p. 175) marca que na melancolia nem sempre é
possível perceber com clareza o que se perdeu mesmo quando a perda “é conhecida do
doente, na medida em que ele sabe quem, mas não o que perdeu nesse alguém”. A melancolia,
portanto, se relacionaria “a uma perda de objeto subtraída à consciência; diferentemente do
luto, em que nada é inconsciente na perda”. Comentaremos esse ponto mais adiante.
O luto realizaria o trabalho de retirar toda a libido que o eu investiu no objeto a mando
categórico do “exame da realidade”81:
81
Cf. os comentários críticos referentes à noção de “exame da realidade” no luto empreendidas por Jean Allouch
(2004), Sandra Berta (2007) e Lussier (2007).
157
Em que consiste o trabalho realizado pelo luto? Não me parece
descabido expor esse trabalho da forma seguinte. O exame da
realidade mostrou que o objeto amado não existe mais, e então exige
que toda libido seja retirada de suas conexões com esse objeto
(FREUD, 1917/2010, p. 173).
Essa operação desperta uma intensa oposição uma vez que não se abandona de bom
grado uma posição libidinal satisfatória. Esse lugar de objeto da satisfação não é para
qualquer objeto. Assim retomamos ao pé da letra de Freud a questão da banalização do luto.
Ele deixa bastante claro que não é qualquer objeto que perdido deixa o sujeito de luto, apenas
aqueles poucos investidos por mil conexões: “Se o objeto não tem para o eu uma grande
significação, reforçada por mil nexos, então sua perda não é capaz de produzir luto ou
melancolia” (FREUD, 1917/2010, p. 190-1).
O desligamento libidinal desses objetos preciosos ocorre de forma lenta e
profundamente dolorosa equivalendo a uma dor física. O mundo se torna “pobre e vazio”
(FREUD, 1917/2010, p. 176). É como se, junto com o desaparecido, tivéssemos enterrado
“todas as nossas esperanças, ambições, alegrias, ficamos inconsoláveis e nos recusamos a
substituir aquele que perdemos. Nós nos comportamos como os Asra82, que ‘morrem, quando
morrem aqueles que amam’” (FREUD, 1915/2010, p. 231-2).
Demorou alguns anos para que Freud pudesse explicar a economia da dor que
acompanha o luto. No apêndice C de Inibições, sintoma e angústia, Freud (1926/1987, p. 194)
apresenta uma analogia entre a dor física e o “sentimento de perda de objeto”. Na dor física
aparece uma intensa concentração de investimento narcísico do ponto doloroso. Se esse
investimento continua a aumentar, tende a esvaziar o eu por estar totalmente centrado no
ponto do corpo que está emitindo a dor, “no buraco do molar se concentra a sua alma” diz o
poeta Wilhelm Busch citado por Freud (1914a/2010, p. 26).
Uma representação de objeto altamente investida se assemelha a uma parte do corpo
carregada por algum aumento de estímulo: “A natureza contínua do processo catexial e a
impossibilidade de inibi-lo produzem o mesmo estado de desamparo mental” (FREUD,
1926/1987, p. 197). Da mesma forma, um objeto amado que falta concentra um intenso
investimento de anseio não passível de apaziguamento via satisfação uma vez que ele não
pode responder mais.
82
Ao pesquisarmos o poema “Des Asra”, publicado em 1882 por Heinrich Heine, encontramos algo ligeiramente
diferente do que Freud escreveu. Os Asra do poema são mais radicais, o próprio amor é o que os mata: “Und der
Sklave sprach: ‘Ich heiße Mahomet/und bin aus Yemen,/und mein Stamm sind jene Asra,/welche sterben, wenn
sie lieben’” [E o escravo disse: ‘Eu me chamo Mahomet, eu vim do Yemem, e minha tribo se chama os Asra,
aqueles que perecem, quando amam’”]. Tradução nossa apoiada em uma tradução inglesa: “And the slave said,
‘I am called Mahomet, I am from Yemen, and my tribe, it is the Asra, who die, when they love’”. Fonte:
http://www.recmusic.org/lieder/get_text.html?TextId=51394. Acesso em: 20/05/2014.
158
Que essa situação deva ser dolorosa ajusta-se ao que acabamos de
dizer, em vista da catexia de anseio, elevada e não passível de
satisfação, que está concentrada no objeto pela pessoa desolada
durante a reprodução das situações nas quais ela deve desfazer os
laços que a ligam ao objeto (FREUD, 1926/1987, p. 198).
Entendemos que aquilo que Freud chama de “reprodução das situações” se trata do
minucioso trabalho de rememoração durante o qual se prolonga a existência do objeto na
psique: “Cada uma das lembranças e expectativas em que a libido se achava ligada ao objeto é
enfocada e superinvestida, e em cada uma sucede o desligamento da libido” (FREUD,
1917/2010, p. 174). O “desfolhamento das lembranças” que o trabalho de luto implica
(BERTA, 2007, p. 33) não segue uma sequência organizada, tal como o fazia a exemplar
senhora dos festivais de recordação. Na clínica observamos ondas de lembranças que se
intensificam diante de datas culturais marcantes (Natal, Dia das Mães, aniversário etc.) ou
ainda motivadas por acontecimentos ínfimos, mas que remetem ao passado em comum.
Apesar de Freud (1917/2010, p. 175) ter escrito que no trabalho do luto “nada é
inconsciente na perda” na tentativa de marcar uma diferença do trabalho realizado na
melancolia, um pouco mais adiante no texto – lamentavelmente en passant – ele escreveu que
no luto também se travam batalhas de ordem inconsciente em torno do objeto:
Portanto, na melancolia travam-se inúmeras batalhas em torno do
objeto, nas quais ódio e amor lutam entre si, um para desligar a libido
do objeto, o outro, para manter essa posição da libido contra o ataque.
Não podemos situar essas lutas em outro sistema que não o Ics, a
região dos traços mnemônicos das coisas (em oposição aos
investimentos de palavras). Lá também ocorrem as tentativas de
desligamento no luto, mas nesse último nada impede que esses
processos continuem pela via normal até a consciência, através do
Pcs (FREUD, 1917/2010, p. 191, grifo nosso).
A partir dessas indicações de Freud é possível aplicar ao luto o que ele disse da
melancolia: embora o enlutado saiba quem ele perdeu, é-lhe difícil discernir o que se perdeu
uma vez que os vínculos que o ligavam ao objeto são constituídos “de inúmeras impressões
singulares (traços inconscientes delas)” e o trabalho de luto requer realizar o desligamento
libidinal desde o sistema Inconsciente (“região dos traços mnemônicos das coisas”)
avançando para o Consciente, através do Pré-Consciente (região dos “investimentos de
palavras”) (FREUD, 1917/2010, p. 190-1). Um trajeto que se encontra impedido na
melancolia.
Ainda que Freud não faça nenhuma referência ao tempo de duração de um luto normal
– ele o diz apenas de modo vago que, embora o luto ocasione um grave afastamento da
conduta normal da vida, “confiamos em que será superado após certo tempo” –, ele propõe,
159
que por mais doloroso que seja, o luto normal é plenamente superável após um período de
tempo:
A cada uma das recordações e expectativas que mostram a libido
ligada ao objeto perdido, a realidade traz o veredicto de que o objeto
não mais existe, e o eu, como que posto diante da questão de partilhar
ou não esse destino, é convencido, pela soma das satisfações
narcísicas em estar vivo, a romper o vínculo com o objeto eliminado.
Podemos imaginar que esse rompimento ocorra de modo tão lento e
gradual que, ao fim do trabalho, também o dispêndio que ele requeria
foi dissipado (FREUD, 1917/2010, p. 189).
[...] É curioso que esse doloroso desprazer nos pareça natural. Mas o
fato é que, após a consumação do trabalho de luto, o eu fica
novamente livre e desimpedido (FREUD, 1917/2010, p. 171).
O eu fica livre e desimpedido para investir outro objeto. O fim do luto freudiano
apoia-se na ideia de deslocamento libidinal, substituição do objeto perdido por um novo. Em
A transitoriedade, escrito um ano após Luto e melancolia, essa ideia é retomada. O luto não
apenas é superado, mas o objeto perdido poderá vir a ser substituído por “outros novos,
possivelmente tão ou mais preciosos que aqueles”:
Sabemos que o luto, por mais doloroso que seja, acaba naturalmente.
Tendo renunciado a tudo que perdeu, ele terá consumido também a si
mesmo, e nossa libido estará novamente livre – se ainda somos jovens
e vigorosos – para substituir os objetos perdidos por outros novos,
possivelmente tão ou mais preciosos que aqueles (FREUD,
1916/2010, p. 251).
A tese do objeto perdido e substituível no fim do luto recebeu críticas de autores como
Allouch (2004, p. 49) que a considerou insustentável desde o ponto de vista clínico: “Se perco
um pai, uma mãe, uma mulher, um homem, um filho, um amigo, vou eu, esse objeto poder
substituir? Meu luto não está precisamente lidando com ele enquanto insubstituível?”. A
reproblematização do objeto no luto foi tratada por Lacan (1958-9/2002) em sua interpretação
de Hamlet, a qual veremos mais adiante.
Conforme ressaltou Berta (2007), o luto freudiano é um trabalho ancorado no eu, logo
um trabalho que se dá entre o imaginário e o simbólico. Ainda segundo essa autora, Luto e
melancolia é contemporâneo das considerações de Freud acerca da teoria do narcisismo na
qual, por um lado, se diferenciam o eu e o objeto e, por outro, a distribuição dos
investimentos libidinais, a libido do eu e a libido do objeto. O eu aparece como o depositário
original do investimento libidinal que depois cede uma cota de sua libido aos objetos.
Em Freud (1914a/2010, p. 17) aparece a ideia da distribuição da libido como uma
espécie de gangorra em que “quanto mais se emprega uma, mais empobrece a outra”. Quanto
160
à melancolia, trabalha-se com a hipótese de uma escolha objetal narcísica. De modo que
diante de dificuldades, o investimento libidinal pode regredir ao narcisismo. É o que acontece
durante o “trabalho da melancolia” em que a libido liberada do objeto não consegue deslizar
para um novo, mas refugia-se no eu (FREUD, 1914a/2010, p. 190).
Lá servirá para estabelecer uma identificação do eu com o objeto perdido: “A
identificação narcísica com o objeto se torna, então, substituto do investimento amoroso, do
que resulta que a relação amorosa não precisa ser abandonada apesar do conflito com a pessoa
amada” (FREUD, 1914a/2010, p. 181-2). O eu se torna o objeto abandonado, daí a famosa
frase “a sombra do objeto caiu sobre o eu” (FREUD, 1914a/2010, p. 181). Ou seja, o objeto
perdido é novamente restaurado no eu via identificação.
No luto, a perda de um objeto amado implica na retirada do investimento libidinal nele
empregado esvaziando o mundo. A libido satisfatoriamente devolvida ao eu deslizará para
novo(s) objeto(s). Freud não trata neste texto sobre o destino do objeto perdido: ainda
subsiste? De que modo?
Em O eu e o isso, de 1923, ele realiza algumas revisões teóricas necessárias à
introdução da segunda tópica. Lá ele aborda, ainda que de modo breve, um destino possível
ao objeto perdido: “Quando acontece uma pessoa ter de abandonar um objeto sexual, muito
amiúde se segue uma alteração de seu ego que só pode ser descrita como instalação do objeto
dentro do ego, tal como ocorre na melancolia” (FREUD, 1923/1987, p. 43). Aplica-se ao luto
normal, o que ele dizia da melancolia: os laços libidinais que ligavam o eu ao objeto perdido
são substituídos por traços identificatórios. O objeto perdido, não mais tão perdido assim, tem
como destino a identificação, não uma identificação maciça como é o caso da melancolia, mas
parcial, isto é, aos traços.
Em suma, o luto freudiano tem por objetivo levar o eu a renunciar ao objeto a mando
dos decretos da realidade. Um longo, árduo e doloroso trabalho rememorativo com fins
elaborativos. A finalização do luto se dá pela renúncia psíquica do objeto. O eu recebe como
compensação ou prêmio de consolação a satisfação narcísica de saber que continua vivo. O
objeto amado perdido subsistirá em forma de traços identificatórios. Não fica claro, no
entanto, o que poderia decidir de tal renúncia durante o trabalho de rememoração uma vez
que, conforme observável no caso da senhora dos “festivais de recordação”, este trabalho
pode não ter fim.
Ora se a via elaborativa por excelência do luto é o campo simbólico, campo das
palavras, da recordação, como já observado, nem todos aqueles mil nexos ligados ao objeto
passarão à palavra, à elaboração. Os vínculos pulsionais com o objeto não são da ordem da
161
recordação. Reconhece-se assim que o “trabalho de luto” pensado apenas pela via da
rememoração tem seus limites e necessita ser reconsiderado. Avançaremos com Lacan.
162
PARTE IV. MAIS-ALÉM DO TRABALHO DE REMEMORAÇÃO
Sejas tu um espírito sagrado ou duende maléfico;
Circundado de auras celestes ou das chamas do inferno;
Tenhas intenções bondosas ou perversas;
Tu te apresentas de forma tão estranha
Que vou falar contigo.
Shakespeare, Hamlet
O drama de Hamlet é o encontro com a morte.
Lacan, O desejo e sua interpretação, 1958-9.
De um ponto a outro de Hamlet,
Não se fala senão de luto.
Lacan, O desejo e sua interpretação, 1958-9.
163
No capítulo anterior sugerimos que o trabalho de rememoração proposto por Freud
como sendo a via do luto emperra nos limites da recordação, naquilo que ela não pode
alcançar. De Freud a Lacan, problematizaremos os limites do recordar a partir da repetição
que este reconsiderou como encontro do real (tiquê) que rompe o funcionamento automático e
tranquilo da cadeia significante (autômaton). Avançaremos no estudo que Lacan dedicou a
Hamlet para lá circunscrever a sua versão de luto que foi lida com o grafo do desejo e o
ternário R.S.I. (Real, Simbólico, Imaginário). Por fim, investigaremos uma escrita do luto
produzida por Jean Allouch (a partir de sua leitura da interpretação lacaniana de Hamlet)
assim como suas considerações acerca da função do público e da exposição para o
fechamento do luto.
164
1. DOS LIMITES DA REMEMORAÇÃO: NO MEIO DA TRAVESSIA, O REAL
O título desse capítulo nos foi inspirado por Riobaldo, o célebre personagem de
Guimarães Rosa (2006, p. 607) em Grandes Sertões: Veredas. Ao fim de sua longa epopeia
narrativa ele nos diz: “Conto o que fui e vi, no levantar do dia. Auroras”. Sim, é preciso
recorrer às palavras para contar o que fez e o que viu, ainda que não seja possível “indenizar”
por completo a “dor maior”, como ele mesmo se exprimiu (ROSA, 2006, p. 67). Entre o pôrdo-sol e a aurora, o real cisma em se dispor: “Digo: o real não está na saída nem na chegada:
ele se dispõe para a gente é no meio da travessia” (ROSA, 2006, p. 64).
No percurso do trabalho de luto, o real é aquilo que impõe limites à rememoração e,
muito embora Freud não tenha considerado seus limites no trabalho de luto, não podemos
esquecer que, um ano antes de Luto e melancolia, ele já havia produzido Repetir, recordar,
elaborar que tratava justamente dos motivos que o levaram progressivamente a produzir
alterações na técnica antes pautada no trabalho rememorativo. Se o processo de rememoração
convencia no início, observou Lacan (1964/2008, p. 55), era porque se tratava de histéricas e
não se sabia então que “o desejo da histérica era o desejo do pai”. A rememoração, sustentada
pela transferência, se fazia em prol daquele que a demandava: “Nada de espantoso que, em
benefício daquele que toma o lugar do pai, a gente se rememore das coisas até o fundinho”
(LACAN, 1964/2008, p. 55).
Quando a hipnose foi abandonada, o foco do tratamento era descobrir, via associação
livre, o que o paciente deixava de recordar, “trata-se de preencher lacunas na memória;
dinamicamente, é superar resistências devidas à repressão” (FREUD, 1914b/1987, p. 194). A
resistência ao recordar era contornada pelo trabalho de interpretação. Tropeçou-se aí em um
outro modo de retorno da lembrança esquecida: “O paciente não recorda coisa alguma do que
esqueceu e reprimiu, mas expressa-o pela atuação ou atua-o (acts it out). Ele o reproduz não
como lembrança, mas como ação; repete-o, sem, naturalmente, saber que o está repetindo”
(FREUD, 1914b/1987, p. 196).
A repetição aparece como uma recordação agida [acting out]. Do arsenal de seu
passado, o paciente retira “as armas com que se defendia contra o progresso do tratamento” e,
ao mesmo tempo, invoca da vida atual um fragmento que daria a essa vivência a forte
impressão de “algo real e contemporâneo” (FREUD, 1914b/1987, p. 198). A repetição nesse
sentido não se reduz a uma mera reprodução, como se almejava nos tempos áureos da
reprodução catártica, pois aponta o retorno diferencial de algo pela ação. Muito embora a
165
repetição esteja estritamente relacionada à recordação, “é nela [na repetição] que se funda
uma memória inconsciente” (COSTA, 2001, p. 34), é uma pena que, quanto ao luto, Freud a
tenha deixado de lado em benefício do trabalho de recordação.
Prosseguimos com Lacan (1964/2008). Foi no Seminário 11 (Os quatro conceitos
fundamentais da psicanálise) que ele retomou a repetição freudiana para marcar, de um lado
que se trata de um dos quatro conceitos fundamentais da psicanálise, e de outro, a função do
real: “Vejamos então como o Wiederholen [repetição] se introduz. Wiederholen tem relação
com Erinnerung, a rememoração. O sujeito em sua casa, a rememorialização da biografia,
tudo isso só marcha até um certo limite, que se chama o real” (LACAN, 1964/2008, p. 55). O
real é aquilo que “retorna sempre ao mesmo lugar”, a esse lugar onde o pensamento não
alcança, onde não é possível rememorar (LACAN, 1964/2008, p. 55). Para introduzir sua
concepção de repetição e sua relação com o real como causa, Lacan recorreu à noção de causa
acidental concebida por Aristóteles, no livro “Física”, nos termos de tiquê e autômaton:
“Tratar-se-á então de revisar a relação que Aristóteles estabelece entre o autômaton – e
sabemos, num certo ponto em que estamos da matemática moderna, que é a rede de
significantes – e o que ele designa como a tiquê – que é a para nós o encontro do real”
(LACAN, 1964/2008, p. 57).
Autômaton está relacionado ao retorno automático dos signos comandado pelo
princípio do prazer. A insistência do desejo humano ancorado na fantasia. Tiquê é o que
vigora para além do autômaton, para além da fantasia, traduzido por Lacan por “encontro do
real”: “É, com efeito, de um encontro, encontro essencial, que se trata no que a psicanálise
descobriu – de um encontro marcado, ao qual somos sempre chamados, com um real que
escapole” (LACAN, 1964/2008, p. 58-9). O real surpreende e suspende temporariamente a
monótona repetição da cadeia significante. O pensamento não consegue encontrar o que está
excluído da cadeia, embora seja aquilo em torno do que ela gira:
Consideremos o simbolismo do mais/menos (+/-) que Lacan
desenvolve no Seminário 2 e no seu posfácio ao “Seminário sobre a
carta roubada”, pois este simbolismo descreve o funcionamento do
pensamento – pensamento inconsciente – na teoria lacaniana. No
exemplo de Lacan, a cadeia não consegue atingir o número 3 num
certo ponto. Ela permite retornos ao 1 e ao 2, mas não ao 3.
Obviamente, essa é uma analogia, mas que ajuda a ilustrar a ideia de
que o real é o que sempre volta ao mesmo lugar: o número ou letra
excluídas. Volta ao mesmo lugar onde o sujeito, na medida em que
pensa, a res cogitans ou coisa pensante, não o encontra – isto é, não
cruza seu caminho, já que ele está radicalmente excluído ali (FINK,
1997, p. 241).
166
O que se costuma chamar de repetição na teoria psicanalítica trata-se de autômaton, a
volta insistente dos signos que permite estabelecer uma “série metafórica ou metonímica ao
longo da qual o desejo pode deslizar” (FINK, 2007, p. 240). Dito de outro modo, autômaton
diz respeito à rememoração e nesse sentido pode ser considerado o retorno do mesmo. A
repetição proposta por Lacan sob o nome de tiquê não se relaciona nem com o retorno dos
signos, nem com a repetição enquanto rememoração agida (acting out). Tiquê é o encontro do
real, algo em que o sujeito tropeça a todo instante, mas a que atribui um caráter fortuito,
acidental: “O que se repete, com efeito, é sempre algo que se produz – a expressão nos diz
bastante sua relação com a tiquê – como por acaso” (LACAN, 1964/2008, p. 59, grifo do
autor).
Se autômaton visa sempre o mesmo, tiquê surpreende; através dela encontra-se o
novo, o diferente, para além do princípio do prazer e do princípio da realidade. Um encontro
que “interrompe o funcionamento tranquilo do autômaton, da serialização automática, sujeita
à lei regular dos significantes do sujeito do inconsciente” (FINK, 2007, p. 242).
Berta (2010, p. 59) nos ajudou a esclarecer a relação solidária entre aquilo que se
repete (autômaton) e o encontro faltoso (tiquê):
O autômaton, como a rede de significantes, define o retorno dos
signos. A tiquê refere ao real como encontro. Para além do retorno dos
signos, e por causa desse retorno, se verifica esse real como encontro,
que em Freud pode ser identificado ao umbigo dos sonhos. Essa
relação entre tiquê e autômaton permite vislumbrar uma solidariedade
existente entre o que se repete e o encontro, pois se há repetição é
porque sempre se encontra a falta.
Tiquê é encontro sim, mas “com o perdido” (BERTA, 2010, p. 58). Um encontro que
na psicanálise ocorreu na forma do traumatismo que então determinava por seus efeitos a
origem da neurose. Tudo parecia ter se dado de modo acidental e o acontecimento, segundo o
princípio da homeostase, deveria ser absorvido, esquecido. A questão que permanecia em
aberto era de se saber como o sistema psíquico, orientado pelo princípio do prazer, preservava
em suas malhas uma cena traumática que insistia em retornar e trazer à lembrança um
acontecimento doloroso que resistia à significação: “O trauma reaparece ali, com efeito, e
muitas vezes com o rosto desvelado. Como pode o sonho, portador do desejo do sujeito,
produzir o que faz ressurgir em repetição o trauma – senão seu rosto mesmo, pelo menos a
tela que o indique ainda por trás?” (LACAN, 1964/2008, p. 60).
Lacan (1964/2008, p. 41) convoca o famoso sonho (já tantas vezes analisado) narrado
no capítulo VII da Interpretação dos sonhos, “suspenso em torno do mistério mais
angustiante, o que une um pai ao cadáver de seu filho mais próximo, de seu filho morto”. As
167
circunstâncias preliminares ao sonho e o próprio sonho aparecem assim descritos por Freud
(1900/1987, p. 468):
Um pai estivera de vigília à cabeceira do leito de seu filho enfermo
por dias e noites a fio. Após a morte do menino, ele foi para o quarto
contíguo para descansar, mas deixou a porta aberta, de maneira a
poder enxergar de seu quarto o aposento em que jazia o corpo do
filho, com velas altas a seu redor. Um velho fora encarregado de velálo e se sentou ao lado do corpo, murmurando preces. Após algumas
horas de sono, o pai sonhou que seu filho estava de pé junto a sua
cama, que o tomou pelo braço e lhe sussurrou em tom de censura:
‘Pai, não vês que estou queimando?’ Ele acordou, notou um clarão
intenso no quarto contíguo, correu até lá e constatou que o velho vigia
caíra no sono e que a mortalha e um dos braços do cadáver de seu
amado filho tinham sido queimados por uma vela acesa que tombara
sobre eles (grifo do autor).
Lamentavelmente este sonho não foi colhido diretamente do próprio sonhador o que
limita bastante qualquer tentativa de interpretação. Freud o escutou de uma paciente que o
ouviu em uma conferência e de tão impressionada “tratou de ressonhá-lo” (FREUD,
1900/1987, p. 468). Intrigado com o sonho, Freud indaga: Por que o sonhador, diante do
clarão de luz a invadir-lhe o quarto, teria preferido produzir um sonho em vez de o necessário
despertar diante do eminente perigo?
O caminho interpretativo tomado por Freud (1900/1987, p. 469) é o da realização do
desejo. O sonho possibilitou ao pai reencontrar o filho: “Em nome da realização desse desejo,
o pai prolongou seu sono por um momento. O sonho foi preferido a uma reflexão desperta,
porque podia mostrar o menino vivo outra vez”. Se a função do sonho é velar o sono, este se
deu não apenas para proporcionar ao pai a realização do desejo de reencontrar o filho
redivivo, mas também para não acordá-lo para a visão cruel do corpo do filho prestes a ser
consumido pelas chamas.
Lacan (1964/2008, p. 63) marcou nesse sonho não tanto a confirmação da teoria do
desejo, mas aquilo que ele deixa passar por trás, a repetição do traumático, o encontro
(velado) do real: “Pois não é que, no sonho, se sustente que o filho vive ainda. Mas o filho
morto pegando o pai pelo braço, visão atroz, designa um mais-além que se faz ouvir no sonho.
O desejo aí se presentifica pela perda imajada ao ponto mais cruel, do objeto”. A voz do filho
em tom de reproche – “pai, não vês que estou queimando?” – desperta o pai. E o que é que
desperta? “Não será, no sonho, uma outra realidade? [...] Não será que nessas palavras passa a
realidade faltosa que causou a morte da criança?” (LACAN, 1964/2008, p. 62-3). Palavras
que perpetuariam o remorso diante da impossibilidade de realizar bem a tarefa (de pai) de
168
proteger ou salvar o filho da febre ou das chamas que ameaçam aniquilá-lo pela segunda vez?
Poderá o pai acudir a tempo de salvá-lo (de sua segunda morte)?
Este sonho celebra o encontro único que se dá entre o desejo suposto do sonhador
(Freud, 1900/1987) – ver o filho vivo outra vez segundo o princípio de prazer, o retorno dos
signos (autômaton) – e de modo velado, disfarçado, o mais-além, o irrepresentável da morte,
a cena traumática (tiquê).
O real, é para além do sonho que temos que procurá-lo – no que o
sonho revestiu, envelopou, nos escondeu, por trás da falta de
representação, da qual lá só existe um lugar-tenente. Lá está o real que
comanda, mais do que qualquer outra coisa, nossas atividades, e é a
psicanálise que o designa para nós (LACAN, 1964/2008, p. 65).
O real é encontro faltoso, surpreende como um fantasma (seja o ghost do filho ou do
Hamlet pai), mas não pode ser encarado ou encontrado diretamente, nem mesmo em sonhos.
O que é da ordem do real – a realidade faltosa, a representação faltosa – o sonho reveste,
cinge de representações e imagens de modo que o sonhador continue dormindo. O que
encontramos no sonho é o lugar-tenente da representação, o vorstellungrepräsentanz evocado
a partir da rede significante (autômaton) e que dissimula a outra realidade escondida por trás.
É a voz e a imagem do filho amado intacto que surge das sombras para chamar o pai e, como
uma tela, reveste o insuportável de ver, o impensável de dizer, o impossível da morte de um
filho (o real, tiquê).
É importante frisar que, por trás da tela, se fosse possível levantá-la, nada seria
encontrado, a Vorstellung faltosa não pode ser expressa em palavras, conforme marcou Fink
(1997, p. 243):
Vorstellung é aquilo que é representado por significantes, não são os
próprios significantes. Parece ser uma presença ou imagem real que
jamais pode ser expressa em palavras. Pode-se ficar tentado a pensar
que o faltoso é o “pensamento verdadeiro”, mas parece que a
Vorstellung, aqui, está mais provavelmente no nível do impensável, do
inominável, do indizível.
Esse sonho paradigmático reitera a insuficiência do simbólico representada, aqui, pela
figura do pai diante do real. Quando sentiu que o cansaço e o sono iam abatê-lo, o pai ainda
buscou um representante para substituí-lo. Entretanto, como vimos, este não estava à altura da
tarefa e também cochilou. Por mais acordado que esteja, não há pai que possa acudir a tempo
para salvar um filho da doença ou da morte. Se, de saída, o simbólico é aquilo que permite,
pela recorrência à cadeia rememorativa (autômaton) o trabalho de luto, o real enquanto
169
encontro faltoso aponta para um furo, em torno do qual circulará todo o jogo simbólico
invocado com o intuito de cingi-lo.
Um furo que impõe limites ao trabalho de luto (trabalho simbólico), mas que, de todo
modo, não diminui seu valor, uma vez que não há tratamento possível do real sem recorrência
ao simbólico. A insuficiência do simbólico diante do real vem sinalizar que a causa está
sempre em outro lugar onde o pensamento não pode alcançá-la, isto é, não é passível de ser
lembrada: “O real é aqui o que retorna sempre ao mesmo lugar – a esse lugar onde o sujeito,
na medida em que ele cogita, onde a res cogitans, não o encontra (LACAN, 1964/2008, p.
55).
Não pode ser encontrado ou lembrado porque está fora da cadeia significante, “mas
em torno de que a cadeia gira”, segundo Fink (1997). Esse autor exemplifica essa passagem
em Lacan com um exemplo clínico: o analisante que dá inúmeras voltas na tentativa de
elaborar o que parece ser a questão, mas não o consegue, a menos que o analista lhe dê um
“empurrãozinho”.
O real aqui é o nível da causalidade, o nível daquilo que interrompe o
funcionamento tranquilo do autômaton, da seriação automática,
sujeita à lei regular dos significantes do sujeito no inconsciente. Ao
passo que os pensamentos do analisando estão destinados a perder
sempre o alvo do real, conseguindo apenas circular ou gravitar em
torno dele, a interpretação analítica pode atingir a causa, levando o
analisando a um encontro com o real: tiquê. O encontro com o real
não está situado no nível do pensamento, mas no nível onde a “fala
oracular” produz não senso, aquilo que não pode ser pensamento
(FINK, 1997, p. 242).
Se o encontro do real (tiquê) é o acidente que interrompe o deslizamento infinito da
cadeia significante (o autômaton, a rememorialização), tiquê também é aquilo que pode
provocar a descontinuidade, o despertar. O tropeção que, no curso de uma análise, surpreende
e permite ao sujeito se separar da repetitiva cadeia rememorativa que ameaça aprisioná-lo sem
chegar a nenhuma conclusão tal como a senhora, evocada por Freud, que anualmente
“celebrava festivais de recordação”, presa a um trabalho rememorativo, um trabalho de luto
interminável.
170
2. HAMLET E O LUTO: UMA LEITURA DE LACAN
Apesar de Lacan, assim como Freud, não ter dedicado ao luto um estudo específico,
diferentes autores concordam (Allouch, 2004; Berta, 2010), e nós junto com eles, haver uma
versão lacaniana de luto. Nosso estudo se centrou no seminário maior sobre o tema, o
seminário 6, O desejo e sua interpretação; e nos detemos principalmente em torno da “cena
do cemitério” na qual Lacan irá propor sua versão de luto.
Recorremos, no Seminário 10, A angústia, às passagens em que o autor retoma Hamlet
em conformidade com os avanços teóricos da época. Avisamos que não pretendemos realizar
uma leitura nem do conjunto do seminário 6, nem do seminário 10; nossa intenção visa
essencialmente circunscrever, na versão lacaniana de luto, alguns avanços em relação à
proposta freudiana.
Hamlet funcionou para Lacan (1958-9/2002, p. 294) como uma “composição”, uma
“estrutura” lida com o grafo do desejo, que lhe permitiu colocar os “problemas de relação do
sujeito com o desejo”. O desejo humano não é um dado natural, o sujeito “tem de encontrá-lo
a seu mais pesado custo e à custa de sua mais pesada pena, a ponto de não encontrá-lo senão
no limite, ou seja, em uma ação que não pode para ele se acabar, se realizar, senão à condição
de ser mortal” (p. 274). Um custo que lhe vale luto, luto do falo, é o que veremos.
Se Hamlet é “a tragédia do desejo”, de um ponto a outro “não se fala senão de luto”
(LACAN, 1958-9/2002, p. 359). Lá a “morte chama a morte”, para usar uma expressão de
Allouch (2004, p. 39), e os cadáveres se acumulam. A interpretação lacaniana inclui uma
articulação do luto que inclui as letras de sua álgebra, o grafo do desejo e o ternário R.S.I.
(Real, Simbólico, Imaginário).
Os primeiros esboços do “grafo do desejo”83 (também chamado de esquema, grama)
apareceram durante os anos de 1957-1958 no seminário As formações do inconsciente. Nesse
seminário, o grafo lhe serviu para ler o chiste “familionário” do texto freudiano Os chistes e
sua relação com o inconsciente. Em poucas palavras, o grafo é composto de dois patamares
homólogos, sendo que o superior reduplica o inferior, a linha m – i(a), por exemplo,
corresponde no piso inferior ao registro imaginário enquanto que a linha a – d corresponde,
no piso superior, ao simbólico.
83
Não pretendemos esmiuçar a construção do grafo, nos restringiremos, aqui, a apresentá-lo à medida que for
surgindo ao longo da leitura. Aos interessados em se aprofundar, recomendamos as seguintes obras de Lacan: As
formações do inconsciente (seminário 5) e A subversão do sujeito e a dialética do desejo (Escritos).
171
O primeiro patamar ratifica o fato de que o sujeito fala e, assim o
fazendo, está submetido às leis da linguagem em sua abordagem da
realidade. O segundo articula o modo como o sujeito se situa não em
vista da realidade, mas em relação ao primeiro patamar, isto é, à fala e
à linguagem, quando é levado pela questão sobre o que falar quer
dizer, e apercebe-se de que diz mais do que seus enunciados. Esse
segundo nível é, pois, o da enunciação, e o daquilo que escapa ao
sujeito em sua linguagem, por excesso ou por falta, ou seja, o que
constitui, propriamente falando, seu inconsciente (PORGE, 2006, p.
95).
Figura 7. Grafo do desejo
Fonte: Lacan, J. (1958-9/2002, p. 27)
O primeiro comentário de Hamlet em psicanálise foi realizado por Freud na
Interpretação dos sonhos que o compara ao Édipo de Sófocles:
Outra das grandes criações trágicas, o Hamlet de Shakespeare, tem
suas raízes no mesmo solo que Oedipus Rex. Mas o tratamento
modificado do mesmo material revela toda a diferença na vida mental
dessas duas épocas, bastante separadas, da civilização: o avanço
secular do recalcamento na vida emocional da espécie humana. No
Oedipus, a fantasia infantil imaginária que subjaz ao texto é
abertamente exposta e realizada, como o seria num sonho. Em Hamlet
ela permanece recalcada [...] (FREUD, 1900/1987, p. 259).
A maioria dos comentadores – entre eles Freud – está de acordo que um ponto crucial
em Hamlet é o adiamento, as hesitações em cumprir a vingança a qual foi incumbido. O que
impede Hamlet de realizar de uma vez a tarefa que o fantasma lhe encomendou e para a qual
parecia, a princípio, tão decidido e corajoso?
172
Fantasma: […] Escuta, escuta, escuta! Se você algum dia amou seu
pai...
Hamlet: Ó, Deus!
Fantasma: Vinga esse desnaturado, infame assassinato!
Hamlet: Assassinato!
Fantasma: Todo assassinato é infame: Este é infame, perverso,
monstruoso.
Hamlet: Me conta tudo logo, pra que eu, mais rápido do que um
pensamento de amor, voe para a vingança.
(SHAKESPEARE, 2012, p. 36).
A resposta freudiana, seguida por outros psicanalistas (entre eles Ernest Jones), é que
Hamlet tem em Claudio, o tio que assassinou o rei e desposou a rainha, um duplo: “Hamlet é
capaz de fazer qualquer coisa – salvo vingar-se do homem que eliminou seu pai e tomou o
lugar deste junto a sua mãe, o homem que lhe mostra os desejos recalcados de sua própria
infância realizados” (FREUD, 1900/1987, p. 260). Como se vingar de um homem que
realizou seus próprios desejos? O impulso de vingança é substituído por autorrecriminações:
Mas que asno eu sou!
Eu, filho querido de um pai assassinado,
Intimado à vingança pelo céu e o inferno.
Fico aqui, como uma marafona.
(SHAKESPEARE, 2012, p. 64).
Lacan também se lançará a interpretar a procrastinação de Hamlet, porém em vez de
tomar a via edípica como chave de leitura, ele se deterá no estudo dos elementos que
impossibilitavam a sua ação e naqueles que decidiram em favor da suspensão da
procrastinação cujo ápice é o luto de Ofélia. Não acompanharemos Lacan em sua leitura das
cenas finais da peça, nosso estudo se estenderá até a cena do cemitério.
O estudo de Hamlet compreende sete lições (do dia 4 de março a 19 de abril de 1959)
e nosso percurso de leitura será pontuado por quatro paradas, ou melhor, quatro cenas84, sendo
a “cena do cemitério” aquela em que mais nos deteremos devido à versão de luto que ela
comporta.
I) A cena do encontro com o fantasma
II) A cena de rejeição de Ofélia
III) A cena no quarto de Gertrudes
IV) A cena do cemitério
84
Adotamos aqui “o itinerário de Hamlet” sugerido por Allouch (2004).
173
I) A cena do encontro com o fantasma
A leitura de Lacan persegue as dissimetrias entre Édipo e Hamlet para marcar um
ponto essencial que diz respeito ao saber. Se Édipo é aquele que cumpre seu destino sem o
saber, Hamlet está envenenado por um saber. Nesse sentido, o primeiro tem sobre o segundo a
vantagem da ignorância – ele não sabia (quem matara o pai). Interessa a Lacan ressaltar esse
saber e seus efeitos nefastos em Hamlet.
Lacan (1958-9/2002, p. 256) separa aí a “primeira fibra” de Hamlet: “O pai aqui sabe
muito bem que está morto, morto segundo o voto daquele que queria tomar seu lugar, ou seja,
Claudio, que é seu irmão”. Evoca-se assim outro sonho apresentado por Freud (1900/1987) na
Interpretação dos sonhos em que um filho, cujo pai havia falecido, encontra o pai que não
sabia que estava morto, segundo o voto (mortífero) de seu filho.
O espectro do pai retorna do além-túmulo para encontrá-lo e Lacan precisa que o
drama de Hamlet é esse encontro não com o morto, mas com a morte: “O andar de Hamlet
diante da morte, é daí que devemos partir para conceber o que nos é prometido desde esta
primeira cena” (LACAN 1958-9/2002, p. 307). O ghost, visão da morte, vem para lhe dizer
que sabe que está morto e o que lhe aconteceu. Hamlet, de partida, está advertido, ele sabe.
Ao contrário de Édipo, cujo pai morreu na ignorância e ele próprio só soube dos fatos no final
de um longo percurso que o leva à autopunição, restaurando a ordem, que o faz aparecer
castrado no desfecho da peça.
Figura 8. Grafo do desejo
Fonte: Lacan, J. (1958-9/2002, p. 258)
174
Nesse ponto do texto, aparece a primeira escritura em grafo da interpretação lacaniana
de Hamlet. Em vez de “ele não sabia” que deveria aparecer na linha pontilhada superior do
grafo (a linha do Inconsciente, dito de outro modo, a linha do não saber), Lacan escreveu no
caso de Hamlet “ele sabia que estava morto”, segundo o voto (mortífero) do irmão Cláudio.
Onde deveria haver ignorância (como efeito do recalcamento), Hamlet-filho sabe. O pai sabia
e Hamlet agora também o sabe; algo engata no seu desejo somente a partir do momento em
que ele sabe. E quando o desejo falta, o ato fica em suspensão. Ele passa a procrastinar as
duas ordens básicas do fantasma: assassinar o tio e frear os prazeres da rainha.
Hamlet se encontra, no início e não no fim, engajado ao drama edípico que se coloca
“entre ‘ser’ e ‘não ser’” (LACAN, 1958-9/2002, p. 261). Preso da cadeia significante, ele
precisa realizar uma escolha: to be or not to be? A escolha implica em pagar pelo “crime de
existir” e foi nesse momento que ele topou com o ghost do pai que vem lhe dizer que ele (o
pai) foi surpreendido e morreu antes de expiar os seus pecados. Hamlet sai de seu trajeto para
tomar o lugar daquilo que lhe disse o pai enquanto ghost: ele não pagou pelos seus pecados,
ou, de outro modo, não pagou pelo crime de existir e entrou pela eternidade com essa dívida.
Os efeitos desse saber são drásticos para Hamlet, ele não pode nem pagar a dívida no lugar do
pai, nem deixá-la em aberto. No fim pagará, mas somente com a própria vida, como ficamos
sabendo ao final da peça.
Na lição de 8 de abril de 1959, Lacan vai retomar a questão daquilo que detém Hamlet
em seu desejo, em seu ato. Para avançarmos, é necessária uma breve explicação sobre o grafo.
No encontro com o ghost, a mensagem recebida deste é significada ao Outro, s(A). No
primeiro patamar do grafo, a linha s(A) – A (cadeia significante) é marcada duas vezes pelo
vetor de intenção, em A e em s(A). O cruzamento em A marca o lugar do tesouro do
significante (lugar da fala) enquanto o cruzamento em s(A) inscreve o discurso produzido pelo
sujeito sempre referido ao Outro. É lá que se modela o sentido, as significações, daquilo que
queremos dizer (ALLOUCH, 2004; PORGE, 2006). Mais há o além desse discurso.
O sujeito, ao se interrogar sobre seu desejo como desejo do Outro, opera a passagem
da demanda (endereçada ao A) ao desejo, logo a passagem para o segundo patamar do grafo.
No ponto da intersecção do Outro, A, o sujeito (desejante do desejo do Outro) a ele se dirige e
recebe dele uma resposta enigmática: “Que queres?” [Che vuoi?]. Ou seja, a questão dirigida
ao Outro não obtém resposta, a não ser em forma de ausência desse significante no Outro,
escrita no alto do grafo à esquerda como S() (ALLOUCH, 2004; PORGE, 2006).
175
S() quer dizer isto: é que A, o grande Outro, não é um ser, mas o
lugar da palavra, S() quer dizer que neste lugar da palavra, em que
repousa sob uma forma desenvolvida, ou sob uma forma [disfarçada],
o conjunto do sistema dos significantes, isto é, de uma linguagem,
falta alguma coisa. Alguma coisa que pode não ser senão que um
significante faz falta aí (LACAN, 1958-9/2002, p. 314).
As relações entre o saber, S(), e as vacilações de Hamlet nos parecem obscuras no
texto lacaniano, recorrermos então a outros autores para nos ajudar a ler essa passagem. Berta
(2007, p. 42) nos esclarece quando propõe que Hamlet vacila porque está “envenenado por
um excesso de saber vindo do Outro”:
Hamlet está envenenado por um excesso de saber vindo do Outro,
encarnado pelo ghost [...]. Se for preciso que no Outro exista uma
falha no saber para localizar a falta do Outro [S()], com Hamlet isto
não acontece. O fantasma do pai sabe e envenena seu filho com esse
saber.
Ele está contaminado não pelo enigma do desejo do Outro que produziria um furo no
saber, mas pela “vontade” do pai. Se um furo no saber tivesse sido produzido, Hamlet poderia
ter relativizado o que lhe disse o pai em vez de receber esses ditos como um “mandato” que o
deixa “na encruzilhada de seu desejo” (BERTA, 2007, p. 42). Ele desvia-se aí de sua rota para
entrar na “hora do outro” (LACAN, 1958-9/2002, p. 335).
O véu da ignorância foi erguido. É como se o Outro [A] não lhe houvesse transmitido
algo do enigma do desejo que o fizesse se perguntar “O que me tornei em tudo isso? A
resposta, eu lhes disse, é o significante do Outro com a barra S()” (LACAN, 1958-9/2002, p.
313). Os problemas de Hamlet em relação ao ato, suas hesitações e elucubrações infindáveis,
revelam que algo fundamental faltou de inicio. Lacan nomeia esse algo de castração. Mais
tarde veremos de que castração se trata, pois se vê que em Hamlet não é o caso de uma
psicose.
Por essa razão, Lacan sugere que o saber que “envenena” Hamlet o conduziu até o
nível superior do grafo, ao S() (ele não está, portanto, preso de modo absoluto no nível de
A), mas lá se detém em elucubrações infindáveis. S() perdeu sua função de significar a falta.
Allouch (2004, p. 251) nos ajuda a pensar que embora Hamlet aí se detenha, ele está às voltas
com o grafo em sua versão incompleta:
Esse S() ainda não está, propriamente falando, em seu lugar, ele
permanece como que flutuando na extremidade do ponto de
interrogação. Para que seu lugar fique algo estabilizado, é preciso a
intervenção da outra linha horizontal, a de cima, que vai localizar
176
S() no ponto onde ela vai cruzar a linha da demanda e de seu além.
Ora, Lacan vai inscrever essa nova linha a respeito da cena no quarto
de Gertrudes.
Essas observações são cruciais para nos localizar a respeito do que se passa em
Hamlet. Embora seu saber o tenha levado a S(), não é de modo que possa sustentá-lo, ele
hesita por ainda se encontrar assujeitado à demanda (onipotente) do Outro (materno), o que
impede seu trilhamento no grafo para além do Outro. Se S() ainda não está em seu devido
lugar, ele não pode avançar no além S(), isto é, no matema da fantasia, a, instância que o
permitiria sustentar seu desejo frente ao Outro. Aliás, se ele pudesse continuar para além de
S(), a fantasia se constituiria em sua resposta ao enigma do desejo do Outro [Che vuoi?].
Ponto fundamental para que encontre a via de seu desejo.
II) A cena de rejeição de Ofélia
O termômetro da posição de Hamlet em relação ao próprio desejo aparece sob a forma
da personagem Ofélia. Lacan (1958-9/2002, p. 259) a considera “uma das criações mais
fascinantes que já foram propostas à imaginação humana”, no entanto, essa criatura
formidável vai encarnar para Hamlet todo o “horror da feminilidade”. De modo cruel, Hamlet
lhe faz saber que ela é, a seus olhos, a portadora de todas as possibilidades de degradação que
uma mulher pode chegar pelo simples ato de se tornar mãe:
Ela se torna para ele a portadora de filhos, de todos os pecados, aquela
que é designada para engendrar os pecadores e a que é designada em
seguida como diante de sucumbir sob todas as calúnias. Ela se torna o
puro e simples suporte de uma vida que, em sua essência, torna-se
condenada por Hamlet. Em resumo, o que se produz neste momento, é
essa destruição ou perda do objeto que é reintegrado em seu quadro
narcísico [...] (LACAN, 1958-9/2002, p. 339).
Em uma versão anterior à de Shakespeare, composta por Belleforest, a personagem
correspondente a Ofélia não é uma inocente virgem, mas uma “moça de vida fácil” usada
como isca para atrair Hamlet e captar suas confidências. Ela é um personagem de caráter
ambíguo por não se saber nunca se se trata da “própria inocência” ou uma “rameira pronta
para todos os serviços” (LACAN, 1958-9/2002, p. 319).
De todo modo, ressalta-se que Ofélia é como qualquer moça um “botão prestes a
eclodir e ameaçado pelo inseto roedor no coração do broto. Esta visão de vida prestes a
eclodir, e de vida portadora de todas as vidas, é assim, aliás, que Hamlet a qualifica, a situa
177
para repeli-la” (LACAN, 1958-9/2002, p. 320). Com efeito, a questão não é Ofélia, e sim que
quando o desejo em Hamlet foi perdido, esta, aos seus olhos, perdeu o encanto e degradou-se.
Lacan reconhece em Ofélia a equivalência [moça] = falo, Ofélia = falo. Ora, se Ofélia
é o falo enquanto “significante escondido” (LACAN, 1958-9/2002, p. 316), o significante da
falta, ela está lá para interrogar Hamlet sobre o “segredo do desejo” e disso ele não pode ou
não quer saber mais. Ofélia torna-se insuportável desde o encontro com o espectro que faz
Hamlet jurar apagar da memória “todas as anotações frívolas ou pretenciosas, todas as ideias
dos livros, todas as imagens, todas as impressões passadas” (SHAKESPEARE, 2012, p. 38).
Mas se ele o faz é porque está capturado pelos mandamentos do pai e não porque o
quer. Hamlet toma distância do objeto Ofélia porque o matema da fantasia, a, desmoronou
e seus componentes se disjuntaram. Se no nível simbólico o sujeito não recebe nenhuma
resposta do Outro ao enigmático Che vuoi? (a não ser S()), numa intersecção entre o
simbólico e o imaginário aparece uma resposta. O grafo a escreve em forma do matema da
fantasia, a. Escrita que “associa de mil maneiras (simbólico) e o pequeno outro. A
fantasia é a resposta ao ‘Che vuoi?” (ALLOUCH, 2004, p. 270).
Ofélia ocupava para Hamlet o lugar da letra a, pequeno outro imaginário, inscrita na
fórmula da fantasia, mas esta só pode operar desde um sujeito que se apresente marcado pela
barra, isto é, castrado, . No grafo, o nível do desejo é regulado pelo da fantasia. Quando a
fantasia deixou de funcionar arrastou consigo o desejo.
A função do objeto – que é o objeto do desejo unicamente naquilo que
ele é termo do fantasma – o objeto toma o lugar, eu diria, daquilo do
qual o sujeito é privado simbolicamente [...] Na medida em que na
articulação do fantasma, o objeto toma o lugar daquilo do qual o
sujeito é privado. É o quê? É do falo que o objeto toma esta função
que ele tem no fantasma, e que o desejo, com o fantasma por suporte,
se constitui (LACAN, 1958-9/2002, p. 330)
Deduzimos então que o objeto pequeno a da fantasia é o objeto do desejo, mas
sejamos mais precisos, “não o objeto do desejo, mas o objeto no desejo” (LACAN, 19589/2002, p. 345). Nesse momento do ensino de Lacan, o objeto e o falo se confundem. Algum
pequeno outro que venha ocupar o lugar de objeto (imaginário) da fantasia vem em lugar
daquilo que o sujeito é privado simbolicamente (o falo) (PORGE, 2006). Vindo desde esse
lugar, o pequeno outro é mais amplo que ele mesmo no ponto em que ele permite para o
sujeito, de algum modo, recuperar aquilo que foi perdido por quando de sua entrada na
178
linguagem, discurso do Outro. Não é à toa que Lacan (1958-9/2002, p. 329) diz que o objeto
é, nesse sentido, “imagem e pathos”.
A rejeição de Ofélia não permite que a estrutura imaginária da fantasia funcione mais
a ponto de sua decomposição que consiste, propriamente falando, em uma separação entre e
pequeno a (ALLOUCH, 2004). O pequeno a (separado de ) desvanece vindo a se reunir ao m
[moi] do andar inferior do grafo, se confundindo com o próprio eu [moi], nesse ponto que “o
objeto é imagem do outro, portanto esta imagem do outro é meu próprio eu [moi]” (LACAN,
1958-9/2002, p. 338). O objeto é absorvido, reintegrado, no seu quadro narcísico.
Se o pequeno a pode reunir-se em m isso se dá na medida em que é dele que emana a
sua consistência pela via da identificação imaginária, vale lembrar que o eu se constitui sobre
a imagem do outro, m [moi] – i(a). Inicialmente Hamlet exaltava Ofélia, ele a encobria de
amor narcísico. Na decomposição, a queda do objeto Ofélia no eu [m] opera tal como o
mecanismo da melancolia (Freud) em que o eu se torna o objeto (identifica-se ao objeto) que
era ele próprio. Sem o recurso ao simbólico, o m e o pequeno a ficam agora indistintos.
Lacan propõe uma mudança na fórmula da fantasia, em vez de a, para Hamlet
valeria agora 85. Lacan radicaliza aqui a ideia de Ofélia como falo [garota = falo], ela o
encarnaria desde esse lugar de “fora”, de rejeição do falo como o significante da falta, em
última instância da castração (LACAN, 1958-9/2002, p. 339). Somente a reintegração de a no
matema da fantasia permitirá a Hamlet “afivelar a fivela, isto é enfim, de se precipitar em
direção a seu destino” (LACAN, 1958-9/2002, p. 340).
III) A cena no quarto de Gertrudes
Essa cena com a mãe é importante para a construção da interpretação lacaniana porque
nela se apresenta mais uma vez a oportunidade de Hamlet fazer o que lhe foi ordenado pelo
fantasma, mas ele se detém. Aparentemente firme em seu propósito de impor limites aos
prazeres de sua mãe, ele vem lhe exigir violentamente que abandone o leito de Claudio; no
entanto, ao final da cena, Hamlet vacila e dá, na interpretação de Lacan (1958-9, 2002, p.
300), o seu “consentimento ao desejo da mãe”.
Em sua leitura desse seminário, Allouch propõe a escrita do matema como (= falo simbólico) em vez
de (= falo imaginário). Consultada as duas versões em francês do seminário de Lacan, o matema aparece
mesmo como .
85
179
Gertrudes: O que devo fazer?
Hamlet: De forma alguma nada que eu lhe diga:
Deixe que o rei balofo a atraia outra vez ao leito,
Que belisque suas bochechas de maneira lasciva;
Que a chame de minha ratinha [...]
(SHAKESPEARE, 2012, p. 93).
Seguindo a construção do grafo, em um primeiro tempo o sujeito se encontra
submetido ao incondicionado da demanda do Outro (no grafo, instância A). É preciso que algo
no discurso do Outro lhe tome como enigma, um furo que o faça interrogar Che vuoi? Isso
permitirá que ele seja lançado para o nível superior do grafo, no mais-além da demanda do
Outro. Lá, o primeiro ponto que o sujeito se depara é com o seu próprio querer [d, desejo]. O
desejo é aquilo que o norteará para além de uma produção discursiva significada ao Outro.
O fracasso de Hamlet ante o desejo de sua mãe tem a ver com a desmontagem da
estrutura imaginária da fantasia. A fantasia, como já vimos, é fundamental para regular a linha
do desejo. Sem desejo ele não consegue sustentar-se perante Gertrudes e recai no Outro
tomado no lugar de código (A, o tesouro do significante), lugar de um saber sem furo, um
Outro não barrado, diante do qual ele só pode se submeter. O ponto chave do “desejo sempre
cambaleante” de Hamlet, Lacan diz, é essa sua posição em relação à mãe, “o desejo não por
sua mãe, mas o desejo de sua mãe” (LACAN, 1958-9/2002, p. 298). Como se suspenderá
finalmente essa sua inibição? Lacan precisa que é pela via do luto. Prosseguimos para a cena
ápice da peça em que de uma tumba “se veria coisas escaparem” (LACAN, 1958-9/2002, p.
285).
IV) A cena do cemitério
Lacan (1958-9/2002, p. 304) circunscreve a cena do cemitério ao momento em que
Hamlet vê Laertes dilacerado abraçado ao corpo da irmã bradando a sua dor. Hamlet, após
soltar um urro de indignação, salta na tumba de Ofélia e se atraca a Laertes: “O que se passa e
por que Hamlet foi se meter aí? Por que ele não pôde suportar ver outro, que não ele próprio,
ostentar justamente um luto transbordante?”.
A cena do cemitério nos é fundamental por ser nela que Lacan apresentará sua versão
de luto. Por sua importância, optamos por apresentar nossa leitura e comentários em três
partes: a) o luto furo no real e a convocação do simbólico; b) a função do terceiro: Laertes e
o luto assumido; c) O luto do falo.
a) O luto furo no real e a convocação do simbólico.
180
As lições dos dias 22 e 29 de abril de 1959 concentram as articulações de Lacan em
torno do luto. Na versão organizada por Miller, esses capítulos foram chamados de “Luto e
desejo” e “Faloforias”, respectivamente. Em nossa leitura, ressaltamos que o luto tratado
nesse seminário assume um estatuto ambíguo e está tanto para o luto enquanto estado
decorrente de um acontecimento contingencial (a morte de um ser amado tal como Freud o
considera em Luto e melancolia) quanto para o luto estrutural do sujeito (o luto do falo).
Alguns trechos que nos parecem essenciais serão comentados.
O luto é algo que nossa teoria, que nossa tradição, que as fórmulas
freudianas já nos ensinaram a formular em termos de relação de
objeto. Por um determinado lado nós não podemos ser surpreendidos
pelo fato de que o objeto de luto, foi Freud quem valorizou, pela
primeira vez, desde que há psicólogos e que pensam!
O objeto do luto é em uma determinada relação de identificação – e
que ele tentou definir mais de perto, chamar uma relação de
incorporação com o sujeito – que se coloca à mão, que se agrupam, se
organizam, as manifestações do luto. Então, nós não podemos tentar
rearticular mais de perto, no vocabulário que aprendemos aqui a
manejar, o que pode ser esta identificação do luto? Qual é a função
do luto?
Se nós avançarmos nessa via vamos ver, e unicamente em função dos
aparelhos simbólicos que empregamos nesta exploração, aparecer da
função do luto consequências que acredito novas e, para vocês,
eminentemente sugestivas [...]
A questão daquilo que é a identificação deve esclarecer-se das
categorias que são aquelas que aqui, depois de anos, eu coloco, ou
seja aquelas do simbólico, imaginário e do real (LACAN, 1958-9,
2002, p. 355, grifo nosso).
Em relação à versão freudiana de luto, Lacan destaca a “relação de objeto” para
reproblematizar o mecanismo de “identificação” no luto, e avisa que a identificação deve ser
esclarecida levando em conta seu ternário simbólico, imaginário e real. No seminário 10,
Lacan (1962-3/2005, p. 45) explora a identificação de Hamlet com Ofélia. Na tumba de
Ofélia, ele é “tomado pela alma furiosa que podemos legitimamente inferir que é a da vítima,
da suicida, patentemente oferecida em sacrifício à alma de seu pai, porque é depois do
assassinato de seu próprio pai que ela se curva e sucumbe”.
Percebemos assim uma homologia entre a posição de Hamlet e Ofélia. Do mesmo
modo que o pai de Hamlet foi assassinado e negligenciado nas honras fúnebres que lhe eram
devidas, ele faz acontecer o mesmo ao pobre pai de Ofélia: “O assassinato de Polônio [pai de
Ofélia] e esta extraordinária cena do cadáver escondido, desafiando a sensibilidade e a
inquietude de todo o entorno não é ainda senão uma derrisão daquilo do qual se trata, ou seja,
de um luto não satisfeito” (LACAN, 1958-9/2002, p. 357). Atingida por essa morte à qual só
181
pôde responder com a própria morte, Ofélia nada mais é “do que uma vítima oferecida a esta
ofensa primordial”.
Lacan remete a identificação de Hamlet com Ofélia com aquela presente no luto
melancólico, articulada por Freud, em que o eu se identifica maciçamente com o objeto
perdido, não na sua modalidade negativa (aquela na qual o melancólico dedica-se a ruminar
injúrias cruéis contra si mesmo, mas que na verdade visam atacar, dentro dele, o objeto), mas
em sua vertente jubilosa que celebra a existência do morto através de um animado festim tal
como vemos, em alguns grupos, no encerramento do período de luto: “A identificação com o
objeto de luto, Freud a designou em suas modalidades negativas, mas não nos esqueçamos de
que ela também tem sua forma positiva” (LACAN, 1962-3/2005, p. 46).
A identificação de Hamlet com a morta o transforma no “sonâmbulo que aceita tudo”,
inclusive lutar para o rei, seu inimigo, contra Laertes. O “furor da alma feminina” lhe dá
forças para realizar a tarefa que lhe foi demandada até o limite do fatal quando só consegue
matar o rei depois dele mesmo ter sido mortalmente ferido. Sua tarefa é executada ao modo de
um morto-vivo. Lacan destaca nessa identificação o que realmente se trata: a identificação
melancólica misteriosa com o objeto causa do desejo, o objeto a. Essa identificação permite a
Hamlet sair de sua inibição recompondo o matema da fantasia, porém ao custo de seu
desaparecimento como sujeito uma vez que se identifica com o objeto a enquanto resto caído
do desejo do Outro. O objeto cuja “queda o arrasta para a precipitação suicida, com o
automatismo, o mecanismo, o caráter imperativo e intrinsecamente alienado com que vocês
sabem que se cometem os suicídios de melancólicos” (LACAN, 1962-3/2005, p. 364).
Essa cena também ressalta outro tipo de identificação, a imaginária a outrem, i(a), que
veremos mais adiante quando tratarmos de Laertes, na parte (b).
O que é esta incorporação do objeto? Em que consiste o trabalho de
luto? Fica-se num vácuo que explica a suspensão de toda especulação
ao redor desta via, aberta, entretanto, por Freud, ao redor do luto e da
melancolia, pelo fato de que a questão não está articulada
convenientemente. Atenhamo-nos aos primeiros aspectos, os mais
evidentes, da experiência de luto. O sujeito submerge-se na vertigem
da dor e encontra-se numa determinada relação, aqui de alguma
maneira ilustrada do modo o mais manifesto por aquilo que vimos se
passar na cena do cemitério – o salto de Laertes no túmulo e o fato
que ele abraça, fora de si, o objeto cujo desaparecimento é a causa
desta dor – que de fato no tempo, no ponto deste abraço, da maneira a
mais manifesta, uma espécie de existência tanto mais absoluta, que
não corresponda a mais nada (LACAN, 1962-3/2005, p. 355-6).
182
No trilhamento de Freud, Lacan inscreve a experiência de luto como uma experiência
de dor vertiginosa a ponto do desfalecimento do enlutado. Laertes manifesta publicamente o
sofrimento pela perda de sua irmã cuja morte foi antecedida do assassinato de seu pai. Seus
brados expressam não apenas o lamento pela morte precoce de Ofélia como também sua
indignação diante da morte não esclarecida (logo, não devidamente ritualizada) de seu pai.
A impossibilidade do objeto é um fato de estrutura, qualquer estrutura, sendo parte
constituinte do objeto de desejo humano. Esse é o ponto de real que marca o objeto do desejo
como objeto impossível, enquanto impossível é um objeto insubstituível. Se Ofélia foi dura e
cruelmente rejeitada por Hamlet – desde que ela lhe simbolizava a rejeição de seu próprio
desejo –, sua morte e a visão do luto transbordante de Laertes lhe permitirão constituí-la como
objeto absoluto, impossível de se atingir, radicalmente perdido. É essa radicalidade que
permitirá a recomposição de Ofélia como objeto no desejo: “É de alguma maneira na medida
em que o objeto de seu desejo tornou-se um objeto impossível que ele retorna para ele o
objeto de seu desejo” (LACAN, 1958-9/2002, p. 354).
Junto a Freud, Lacan reitera que não é qualquer perda que deixa um sujeito de luto,
mas somente a “morte de um outro, que é para nós um ser essencial”, isto é, aqueles cuja
perda (“uma perda verdadeira”) provocam um “furo no real”:
[...] O rombo no real provocado por uma perda, uma perda verdadeira,
esta espécie de perda intolerável ao ser humano que provoca nele o
luto, este rombo no real encontra-se por esta própria função nesta
relação que é o inverso daquela que exponho diante de vocês sob o
nome de Verwerfung. Da mesma forma que aquilo que é rejeitado no
simbólico reaparece no real, que estas fórmulas devem ser tomadas no
sentido literal, da mesma forma a Verwerfung, o rombo da perda no
real de alguma coisa que é a dimensão para falar propriamente da
intolerável oferta à experiência humana, que não é a experiência da
própria morte, que ninguém tem, mas a da morte de um outro, que é
para nós um ser essencial, isto é um rombo no real. Este rombo no
real, e por este fato, encontra-se, e em razão da mesma
correspondência que é aquela que eu articulo na Verwerfung, oferecer
o lugar em que se projeta precisamente este significante faltante, este
significante essencial como tal, à estrutura do Outro, este significante
cuja ausência torna o Outro impotente para lhes dar a sua resposta –
este significante que você não pode pagar a não ser com sua carne e
com seu sangue, este significante que é essencialmente o falo sob o
véu (LACAN, 1958-9/2002, p. 356).
Causa-nos estranhamento pensar o luto como furo no real. Como pode ser um furo no
real? Allouch (2004, p. 275), com quem concordamos, sugere que o rombo no real deve ser
183
lido como uma “metáfora”86. Essa metáfora “permitirá a Lacan ressaltar que essa
impossibilidade funciona topologicamente como um lugar, onde o sujeito pode despejar todo
tipo de coisas, notadamente as imagens e os significantes colocados em jogo no trabalho de
luto”. Um lugar impossível de preencher, ainda que todos esses elementos sejam convocados,
uma vez que o real, como já vimos, é “encontro faltoso”.
Outro ponto que chama a atenção é a aproximação que Lacan faz entre luto e psicose,
ponto em que questiona sobremaneira Freud quando toma o luto do ponto de vista de um
“estado normal”. O luto realizaria uma operação inversa da foraclusão [Verwerfung]87, isto é,
na foraclusão, lança-se um apelo ao simbólico, mas algo falta (O Nome-do-Pai), e a esse furo
(simbólico) algo responde no real (as alucinações). No luto, o furo é real e um apelo é dirigido
ao campo simbólico, lugar onde opera o trabalho de luto.
O parentesco entre as duas operações se deve a isto: enquanto que, na
foraclusão, a esse furo simbólico responde algo no real (é a concepção
do “retornar”), no luto, um elemento simbólico é convocado pela
abertura do furo no real. Temos, pois, boas razões para falar de uma
inversão no sentido de uma permutação termo a termo: o furo
simbólico com retorno no real seria o inverso do furo real com apelo
ao simbólico (ALLOUCH, 2004, p. 277).
Essa aproximação (luto-psicose) nos ajuda a esclarecer os estranhos fenômenos
presentes no luto – os acontecimentos de corpo, as aparições fantasmagóricas, a sensação
descrita por alguns de achar que estão “enlouquecendo”, ou que sentem que perderam o
“norte” ou o “chão” etc. – cuja convergência com outros sintomas presentes em quadros
psiquiátricos contribui para a confusão diagnóstica que vai de psicose à depressão maior.
Lacan aproxima-se assim dos estudos antropológicos que tratam o luto como um
“estado liminar” (GENNEP, 1909/2011), momento paranoide em que os mortos podem
perturbar ou perseguir os vivos. O povo Dayak de Bórneu, conforme visto, considera as
pessoas de luto como que assombradas pelo espírito do ente desaparecido, por isso são
perigosas para si mesmas e para os demais; e os tabus relacionados ao luto servem tanto para
protegê-las como à comunidade das ações maléficas de um espírito que pode ficar ressentido
se honras fúnebres não foram cumpridas adequadamente.
86
Segundo o autor: “Lacan formulava assim as coisas em abril de 1959 e não se pode, em 1995, desconhecer
que, desde então, a água passou sob as pontes da topologia. Mas com que resultado? Sobretudo desde o estudo
da cadeia borromeana, tornou-se menos fácil, em Lacan, falar de um furo[...], se houve ‘progresso’, entre 1959 e
1979, foi no sentido de não mais saber demais o que se acreditava saber, quanto ao furo. Disso decorre que a
mais elementar prudência doutrinal reclama que acolhamos hoje esse ‘furo no real’, tal como Lacan o usava em
1959, como uma metáfora” (ALLOUCH, 2004, p. 365).
87
Termo extraído de Freud (Verwerfung) que Lacan propõe traduzir por “foraclusão” um operador constituinte
da psicose, do mesmo modo que para a neurose o operador seria o “recalcamento” [Verdrängung] e para a
perversão a “recusa” [Verleugnung].
184
Lacan traz ainda uma observação nova: no furo no real aberto pelo luto um
significante é convocado, o significante fálico:
[...] este significante cuja ausência torna o Outro impotente para lhes
dar a sua resposta – este significante que você não pode pagar a não
ser com sua carne e com seu sangue, este significante que é
essencialmente o falo sob o véu.
É porque este significante encontra aí seu lugar e ao mesmo tempo
não pode encontrá-lo, porque este significante não pode articular-se ao
nível do Outro, que vêm, como na psicose – e é isso que o luto se
aparenta à psicose – pulular em seu lugar todas as imagens de onde
surgem os fenômenos do luto e os fenômenos de primeiro plano,
aqueles pelo que se manifesta não tal ou qual loucura particular, mas
uma das loucuras coletivas as mais essenciais da comunidade humana
como tal, ou seja, é aquilo que aí está no primeiro plano, no primeiro
guia da tragédia de Hamlet, ou seja, o ghost, o fantasma, esta imagem
que pode surpreender a alma de todos e de cada um (LACAN, 19589/2002, p. 356).
O apelo lançado ao falo, significante velado, é vão. Por essência faltante, o falo
encontra no furo “seu lugar e ao mesmo tempo não pode encontrá-lo”. Logo, o falo não está
apto a articular-se ao nível do Outro que se mostra impotente em fornecer a quem quer seja
uma resposta [ao Che vuoi?] que cobriria de sentido ou garantias a morte; outro modo de falar
da impossibilidade do simbólico de suturar o real.
A desarticulação entre o falo e o Outro fica mais evidente nesses encontros críticos, ou
melhor, tíquicos em que a morte ameaça romper os véus apaziguadores da realidade psíquica
(composta pela fantasia e pelo desejo). É ao pé dessa inconsistência do Outro que o luto se
aparenta do mecanismo da psicose na medida em que é com sua textura imaginária que o
sujeito responde invadindo o furo com imagens de onde surgem os fenômenos de luto,
notadamente as aparições, os fantasmas. Lacan ressaltou a importância dos ritos fúnebres
justamente por realizarem uma mediação em relação ao furo real, um tratamento possível do
real pelo simbólico. É por intermédio dos valores rituais (simbólico) que se prestam as honras
que se devem aos mortos ou, de outro modo, se realizam as trocas com o outro mundo (o
real).
b) A função do terceiro: Laertes e o luto assumido
Lacan ressalta a importância de Laertes, um verdadeiro enlutado, na recuperação da
via do luto por Hamlet:
É pela via do luto dito de outra forma, e do luto assumido na mesma
relação narcísica que há entre o eu [moi] e a imagem do outro; é em
função daquilo que lhe representa de repente em um outro esta relação
185
passional de um sujeito com um objeto que está no fundo do quadro –
a presença de , que põe diante dele repentinamente um suporte onde
este objeto que, para ele, é rejeitado por causa da confusão dos
objetos, da mistura dos objetos – é na medida em que alguma coisa
ali, de repente, o prende, que este nível pode de repente ser
restabelecido que dele, por um curto instante, vai fazer um homem.
Ou seja, alguma coisa que vai fazer dele alguém capaz [...] de se bater
e capaz de matar (LACAN, 1958-9/2002, p. 304-5).
O luto verdadeiramente assumido de Laertes restitui, de repente, a Hamlet o valor de
Ofélia até então rejeitada e absorvida em sua própria imagem, m [moi]. Laertes é seu
semelhante, aquele que admira a ponto de absorver-se em uma identificação imaginária, m –
i(a). A visão da ostentação do luto de Laertes lhe desperta o “ciúme de luto” (LACAN, 19589/2002, p. 353) que o faz encher-se de ódio (e coragem) para reivindicar publicamente um
pesar desmensurado por um objeto até então rejeitado: “Quarenta mil irmãos não poderiam,
somando seu amor, equipará-lo ao meu. Que farás tu por ela?” (SHAKESPEARE, 2012, p.
125-6).
Laertes é para Hamlet a perfeita imagem invertida de Gertrudes, “uma verdadeira
genital” que desconhece o luto, ironiza Lacan (1958-9/2002, p. 303), e que, por isso mesmo,
não consegue ser solidária no luto de seu filho:
Chega de andar com os olhos abaixados
Procurando teu nobre pai no pó, inutilmente,
Sabes que é sorte comum – tudo que vive morre,
Atravessando a vida para a eternidade.
(SHAKESPEARE, 2012, p. 21)
As expressões lutuosas de Laertes são fundamentais por abrir a via do luto que
possibilita a Hamlet (re)constituir Ofélia como objeto no seu desejo, suspendendo as suas
inibições quanto à tarefa que precisa cumprir. A identificação especular mostra que Hamlet
assume seu luto no patamar inferior do grafo do desejo, no mesmo registro narcísico no qual o
eu (apoiado na imagem de um outro) se compõe, m – i(a). É importante salientar, conforme
observou Porge (2006, p. 203), que Lacan, nesse momento, considera que a constituição do
objeto no desejo realiza-se ao mesmo tempo que opera a identificação imaginária a outrem.
No seminário 6, Ofélia ocupa o lugar de objeto de “rivalidade, partilhável, especular” e é só a
partir do seminário 10 que ela vai aparecer como objeto a, causa do desejo que permitirá a
Lacan articular o outro tipo de identificação que se dá ao modo melancólico.
A participação de terceiros no luto pode operar, no nível imaginário, tal como Laertes
ou como Gertrudes. Isto é, eles podem tanto favorecer a composição (imaginária) do luto, na
186
medida em que dão reconhecimento e valor àquela perda e partilham o pesar, quanto podem
coibir suas manifestações através de práticas de constrangimento e interdição.
Se a função de Laertes foi fundamental por servir de suporte para que Hamlet pudesse
reconhecer-se de luto e, a partir daí, recuperar a via de seu desejo, propomos que, de modo
homólogo, a participação solidária de terceiros favorece a elaboração do luto na medida em
que possibilita ao sujeito expressar-se, falar de sua dor e encontrar reconhecimento. A
presença de terceiros também possibilita reconstituir
o lugar a partir do qual [o sujeito] se vê amável para o Outro (ideal do
eu), reafirmando uma posição que lhe permita localizar-se no mundo.
Para recompor um lugar discursivo, para que faça laço social, é
preciso re-construir a história perdida na memória, re-construção que
já implica numa deformação, permitindo o luto e uma resposta à
ficção, uma reinterpretação do passado que modifique o seu lugar
(ROSA et al., 2009, p. 504).
A presença de Laertes é também para Hamlet “a presença de , que põe diante dele
repentinamente um suporte onde este objeto que, para ele, é rejeitado” pode ser restabelecido
em seu lugar de objeto no desejo, logo no andar superior do grafo (LACAN, 1958-9/2002, p.
305). Nesse sentido, Laertes opera como passador do simbólico, um semelhante admirado
enquanto sujeito desejante que possibilita a Hamlet recuperar a via de seu desejo; opera tal
como, um psicopompo, sacerdote ou xamã cuja função, nos ritos sagrados, era a de mediar as
“passagens” sem as quais nem o enlutado, nem o morto realizariam as mudanças de status.
Ao final do seminário 10, Lacan (1962-3/2005) acentuou que o desejo de Hamlet
vacilou não só por conta da decomposição da fantasia, mas porque o Ideal (I) desmoronou
diante da ausência de qualquer vestígio de luto de sua mãe, lugar do Outro (A), para quem seu
pai não parecia digno o suficiente das honras fúnebres devidas: “Quando se contradiz o Ideal,
quando ele desmorona, o resultado é o que constatamos – o poder do desejo desaparece em
Hamlet” (p. 363).
Hamlet nos mostra que o trabalho de luto põe em questão não só o desinvestimento
das lembranças, mas também a desmontagem dos processos identificatórios (imaginário e
simbólico) que o sujeito sustentava junto ao ser perdido. Segundo Berta (2007, p. 39-40),
[...] Lacan permite diferenciar, nos processos de identificação, aquilo
que diz respeito à estabilidade da imagem [identificação imaginária do
eu com o seu semelhante, eu ideal – i(a)]; e às marcas (insígnias) do
Outro [identificação simbólica, localizada no Ideal do Outro, I(A)]. O
sujeito recebe o signum da sua relação com o Outro, (I), alienando-se
a essa identificação primordial, signo do consentimento do Outro.
Essa identificação primordial é a submissão do ser humano ao campo
da linguagem [...]
187
Consideramos, então, que no luto está em questão uma elaboração que
afeta referida dialética, seja no imaginário [eu ideal, i(a)], seja no
simbólico I(A) que se regula pela identificação aos traços.
Se uma perda significativa produz um colapso identificatório, uma das funções da
participação de terceiros ou mesmo de um púbico no luto pode ser, pela fala, de “restituir um
campo mínimo de significantes que possam circular, referidos ao campo do Outro” o que
permitiria “ao sujeito localizar-se e poder dar valor e sentido à sua experiência de dor,
articulando um apelo que o retire do silenciamento” (ROSA et al., 2009 p. 507).
c) O luto do falo.
Na lição do dia 29 de abril de 1959, última referente ao estudo de Hamlet, Lacan leva
adiante o luto ao articulá-lo com o drama edípico. O luto aparece como a via régia através da
qual o sujeito ascende ao seu próprio desejo, trata-se, portanto de um luto específico, essencial
à estrutura do sujeito humano, “o luto do falo”. Lacan enlaça Hamlet ao complexo de Édipo
de modo diferente de Freud, e propõe que o falo é a “chave” de leitura da dissolução do drama
edípico. O significante fálico ocupa um lugar específico no campo simbólico, na relação
particular que se dá entre o sujeito e o campo do Outro. O Édipo, segundo Lacan (19589/2002, p. 366), entra em seu declínio somente a partir da “emergência articulada de que o
sujeito tem de fazer seu luto do falo”. O falo não é um objeto como os outros e o seu luto
porta uma especificidade:
O que nos diz Freud quanto a esse luto do falo? Ele nos diz que o que
tá ligado a ele, o que é uma das molas fundamentais, o que lhe dá seu
valor – pois é isso que procuramos – é uma exigência narcísica do
sujeito. Eis estabelecida aqui a relação desse momento crítico em que
o sujeito se vê de todas as formas castrado ou privado da coisa, do falo
[...]. No momento do desenlace final de suas experiências edipianas, o
sujeito prefere, se pode-se dizê-lo, abandonar-se toda a parte de si
mesmo, sujeito, que lhe será, para sempre desde então interdita, ou
seja na cadeia significante pontuada, isso que faz o alto de nosso grafo
(LACAN, 1958-9/2002, p. 367-8)
Sacrifica-se o falo em nome de uma exigência narcísica. Entre o investimento
narcísico do pênis e o investimento libidinal dos pais, prevalece o primeiro e o menino sai do
complexo edípico introjetando a autoridade parental que barra o incesto. A saída do Édipo
implica em uma perda radical.
[...] a perda do falo experimentada como tal é a saída mesma do giro
feito de toda relação do sujeito a isso que se passa no lugar do Outro,
isto é ao campo organizado da relação simbólica na qual começou a se
188
exprimir sua exigência de amor. Ele está no limite e sua perda nesse
processo é radical (LACAN, 1958-9/2002, p. 368).
A parte abandonada de si mesmo é radical, pois estará dali por diante interdita; no
grafo ela será representada pela linha pontilhada que configura o Inconsciente, “ele não o
sabia...”.
Em relação à castração, Lacan (1958-9/2002, p. 482) avança acrescentando o dilema
do “ter ou não o falo” e do “ser ou não o falo”: “Ou bem o sujeito não o é, ou bem o sujeito
não o tem. O que quer dizer, que se o sujeito o é, o falo – e isto se ilustra em seguida sob essa
forma, isto é, como objeto do desejo de sua mãe – pois bem, ele não o tem!”. O problema de
“ter ou não o falo” só se coloca para a criança a partir do momento em que ela consente em
abrir mão de “ser o falo” e desse “ser fálico” fazer o luto.
O falo é isso que nos é apresentado por Freud como a chave da
Untergang, da queda, do declínio do Édipo. [...] E é na medida em que
o sujeito entra quanto a essa “coisa” numa relação que podemos
chamar de lassidão (está no texto de Freud) quanto à gratificação, é na
medida em que o jovem renuncia a estar à altura – isso foi ainda mais
articulado para a filha, que nenhuma gratificação é de se esperar nesse
plano – é enquanto, para dizer tudo, alguma coisa da qual se sabe que
não se produz nesse momento, a emergência articulada de que o
sujeito tem de fazer seu luto do falo, que o Édipo entra em seu
declínio (LACAN, 1958-9/2002, p. 366).
A saída do Édipo se faz a partir dessa perda radical na qual o sujeito consente em não
ser o falo. A dialética do sujeito com seu objeto de desejo advém dessa privação. O falo agora
se manifestará, apenas de modo velado, em aparições relâmpago sob a forma “do ter” ao
emprestar seu brilho ao objeto. As “aparições do falo” Lacan nomeou as “falofanias”:
É em relação a essa posição sempre velada, que não aparece senão nas
phanies, nas aparições relâmpago, que se chama o ter, é claro, ou a
não ter, quer dizer é em seu reflexo ao nível do objeto, que nós
reencontramos, que nós percebemos a posição radical disso que se
trata. Mas a posição radical, a do sujeito ao nível da privação, do
sujeito enquanto sujeito do desejo como tal, é de não ser o falo, é de
ser ele mesmo, se posso dizê-lo, um objeto negativo (LACAN, 19589/2002, p. 372).
No Seminário 4, As relações de objeto, Lacan (1966-7/1995) havia apresentado o
ternário “castração-frustração-privação” como articulador da constituição do sujeito e suas
relações com os objetos e a falta. O ternário é proposto como operador que realizaria a falta
de objeto88. Para nós importa destacar a privação que Lacan articula em Hamlet como uma
88
AGENTE
Pai real
FALTA DE OBJETO
Castração (simbólica)
OBJETO
Imaginário
189
operação necessária que se efetuaria para além da castração e que incidiria essencialmente em
seu ser (fálico):
Então, o que vai aparecer aqui no nível da privação? Ou seja do que se
torna o sujeito na medida em que foi simbolicamente castrado? Mas
ele foi simbolicamente castrado ao nível de sua posição como sujeito
falante, não de seu ser, desse ser que tem que fazer o luto dessa
alguma coisa que ele deve oferecer em sacrifício, em holocausto, a sua
função de significante faltante (LACAN, 1966-7/1995, p. 370).
Surpreende-nos que Lacan recorra ao termo religioso “sacrifício” para falar da
privação dessa parte (fálica) do ser. Etimologicamente, “sacrifício” vem do latim “sacrum
facere” e significa “fazer o sagrado”, “tornar algo/alguém sagrado”. Na crença judaica e
islâmica, por exemplo, o rito de circuncisão torna uma criança sagrada, isto é, “separada” para
Deus. Vem de São Tomas de Aquino a ideia do sacrifício como “do separado para Deus”89.
Sacrificar, portanto, implica a ideia de separar, separação.
A parte (fálica) cedida pelo sujeito ao lugar do Outro “paga com sua carne e seu
sangue”, é sem compensações já que do Outro o sujeito não receberá nada em troca: “Dito de
outra forma, por sacrificada que ela seja, esta vida não lhe é, pelo Outro, devolvida”
(LACAN, 1958-9/2002, p. 316). Por outro lado, é justamente esse sacrifício que abre para o
sujeito a via pela qual o objeto se constitui no desejo:
O objeto a do desejo [...] é esse objeto que sustenta a relação do
sujeito a isso que ele não é. Até aqui chegamos praticamente tão
longe, ainda que um pouquinho mais, [do que] a filosofia tradicional e
existencialista formulou sob a forma da negatividade ou da
nadificação do sujeito existente – mas nós acrescentamos: a isso que
ele não é, na medida em que ele não é o falo (LACAN, 1958-9/2002,
p. 371).
É interessante notar que Lacan retoma aqui a problemática da “relação de objeto” e o
luto, um assunto que necessitava ser melhor articulado. Para se conceber um objeto como
perdido, é preciso primeiro concebê-lo como constituído. Em Luto e melancolia, Freud
pressupõe que o objeto esteja formado, pois lá ele parte da ideia de que o luto, no sentido
comum do termo, realizaria o trabalho de perder o objeto amado pela segunda vez. Ao propor
o “luto do falo” como estrutural do sujeito, Lacan inverte e coloca o luto como condição
prévia à relação de objeto e, por conseguinte, do sujeito como desejante.
Mãe simbólica
Frustração (imaginária)
Real
Pai imaginário
Privação (real)
Simbólico
Quadro extraído de Lacan (1966-7/1995, p. 220).
89
Cf.: Pe. des Graviers, “Parecer sobre a 'restauração' da missa após o vaticano II”, Revista Permanência,
mar/abr 1983. Fonte: http://missatridentinaemportugal.blogspot.com.br/2014/03/a-teologia-do-santo-sacrificioda-missa.html. Acesso em: 15/03/2015.
190
Na cena do cemitério, Hamlet já se encontra simbolicamente castrado haja vista que
ele é levado ao ponto alto do grafo, S(), onde encalha em ruminações melancólicas
indecidíveis (ALLOUCH, 2004). Porém, o falo ainda se encontra lá assombrando, o pai está
morto, mas o falo continua: “Se há uma coisa de surpreendente na tragédia de Hamlet em
relação à tragédia de edipiana, é que, após a morte do pai, o falo, ele, estará sempre lá. Ele
está bem e belo lá e é justamente Cláudio que é encarregado de encarná-lo” (LACAN, 19589/2002, p. 373).
Ainda que frente a frente com esse falo real, belo e bem [bel et bien], Hamlet não pode
atingi-lo, pois o falo, velado como é, é “uma sombra” (LACAN, 1958-9/2002, p. 374). Disso
deriva as inúmeras procrastinações de Hamlet, que só conseguirá atingir o falo na cena final,
onde atinge Cláudio, mas somente após ter experimentado o luto de Ofélia, luto do falo
[garota = falo], e ainda mediante o sacrifício total de sua vida:
O de que se trata, então, é justamente do falo, e é por isso que ele não
poderá jamais atingi-lo até o momento em que, justamente, ele terá
feito o sacrifício completo, e ainda assim apesar dele, de todo seu
apego narcísico; a saber, quando ele tiver ferido de morte e o sabe. É
somente nesse momento que ele poderá fazer o ato que espera Cláudio
( LACAN, 1958-9/2002, p. 375).
Dito de outra forma, apesar de Hamlet ter experimentado o luto (do falo) e recomposto
Ofélia como objeto no seu desejo, na cena do cemitério ele ainda não fez o sacrifício do falo,
em outras palavras, ele não se privou ainda de ser o falo. Esse sacrifício só acontece quando
ele mata a encarnação deste, Cláudio, mas empenhando nisso não somente uma libra de carne,
mas todo o seu ser vivo.
Em suma, é graças a uma operação específica, a privação, que o sujeito sacrifica seu
ser fálico ao lugar do Outro. Essa parte abandonada de si mesmo lhe estará, dali em diante,
interdita, daí a radicalidade do sacrifício como um ato sem volta. O luto do falo, luto daquilo
que o sujeito não é, possibilitará, via constituição do objeto no desejo, a relação de objeto.
Portanto é um luto essencial, luto do falo, que abre ao sujeito a possibilidade de advir como
desejante.
191
3. UMA ESCRITA DO LUTO E A EXPOSIÇÃO
Na obra Erótica do luto, Jean Allouch (2004, p. 11) realiza uma leitura crítica de Luto
e melancolia e anuncia no primeiro parágrafo que se trata essencialmente de propor uma outra
versão de luto distinta daquela em voga na psicanálise freudiana:
Que o luto seja elevado a seu estatuto de ato. A psicanálise tende a
reduzir o luto a um trabalho; mas há um abismo entre trabalho e
subjetivação de uma perda. O ato, este, é suscetível de efetuar no
sujeito uma perda sem qualquer compensação, uma perda seca. A
partir da Primeira Guerra Mundial, a morte não espera menos. Contra
ela não se vocifera mais em conjunto; ela não dá mais lugar ao
sublime e romântico encontro dos amantes por ela desfigurados.
Certo. Resta que, na ausência de rito a seu respeito, sua atual
selvageria tem por contrapartida que a morte induza o luto ao ato.
No trilhamento da interpretação lacaniana de Hamlet, Allouch extraiu a sua tese
segundo a qual o luto, em vez de trabalho, é um ato sacrificial em que o sujeito suplementa a
sua perda com um pequeno pedaço de si. Seguir em seus detalhes essa proposição do autor
desviaria os rumos dessa pesquisa; para esse estudo, extrairemos apenas dois fios, primeiro
sua sugestão quanto a uma escrita do luto em álgebra lacaniana e, em seguida, suas
considerações acerca de outro tipo de escrita, aquela produzida por um sujeito em decorrência
de um luto, cujo destino não pode findar de outro modo a não ser pela sua publicização.
Uma escrita mínima do luto o autor grafou da seguinte forma:
O luto não é apenas perder alguém (furo no real), mas convocar para
esse lugar algum ser fálico para lá poder sacrificá-lo. Há luto efetuado
se e somente se tiver sido efetivo esse sacrifício. O sujeito terá, então,
perdido não só alguém, mas, além disso, mas, ademais, mas, em
suplemento, um pequeno pedaço de si. Escrevemos isto:
– (1 + a)
Contanto que se proíba suprimir o parêntese, em outras palavras,
contanto que se considere essa fórmula como não redutível a:
1+a
O que supõe um axioma suplementar e não clássico. Com efeito, a
perda de 1 não se realiza sem a de pequeno a (ALLOUCH, 2004, p.
285).
A tese do autor figura bem na segunda de duas traduções possíveis de uma frase
recolhida de outra peça de Shakespeare, Julio Cesar. Na primeira, o sujeito pesaroso diante de
192
uma morte que levou embora um pequeno pedaço de si e, na segunda, o “voto de abandono”
do pedaço de si deixado ao morto, à morte:
“My heart is in the coffin there with Ceaser”, proclama publicamente
o Antônio de Shakespeare. A versão de luto aqui proposta se mantém
entre duas leituras possíveis dessa frase. Leitura um: “Sofro por meu
coração estar nesse ataúde; ele não está em seu lugar por me ter sido
pela morte arrancado”, eis o enlutado; leitura dois: “Pois está ali sim, e
vou abandoná-lo nesse lugar que, agora concordo, é de fato o dele”,
eis o gracioso sacrifício de luto, eis o fim do luto (ALLOUCH, 2004,
p. 12).
O problema do luto, segundo Allouch, é que ele não se reduz a perder alguém. O
parêntese sela em negatividade a relação do 1 com o a. Luto é perder alguém e em suplemento
“um pequeno pedaço de si”: “Dizemos: ‘pequeno pedaço de si’ para marcar o valor fálico
dessa libra de carne; o que não prejulga o tamanho, que, de qualquer modo, conotará o
pequeno” (ALLOUCH, 2004, p. 387, grifo do autor).
A ideia do “pequeno pedaço de si” é consoante com as observações clínicas de Freud e
Lacan, que nem toda perda, mesmo que seja de um ser querido, nos deixa de luto: “Estamos
de luto não porque um próximo (termo obscurantista) morreu, mas porque aquele que morreu
levou consigo em sua morte um pequeno pedaço de si” (ALLOUCH, 2004, p. 39). De
Hamlet, o autor extraiu uma ilustração de sua tese a partir da morte do pai de Ofélia, Polônio,
cujo desaparecimento levou junto o “juízo” de sua filha. Laertes quando a encontra desvairada
lamenta o estado lastimável de sua querida irmã:
Juro pelos céus, tua loucura será paga em peso
Até que o braço da balança penda para o nosso lado.
Ó rosa de maio, virgem amada, boa irmã, gentil Ofélia!
Ó céus! É possível que a razão de uma donzela [young maid’s wits]90
Seja tão frágil quanto a vida de um velho?
A natureza é sutil no amor e, nessa sutileza,
Sacrifica um pedaço precioso de si própria
Àquele a quem ama.
(SHAKESPEARE, 2012, p. 108).
Ao perder o pai, Ofélia teria perdido a razão, o “juízo de donzela” que se configura
como um pedaço fálico:
Com efeito, o que perde Ofélia perdendo seu pai e o que seu pai leva
consigo para o túmulo? Trata-se evidentemente, do falo, como
demonstra suficientemente o fato de que basta à donzela em questão
encontrar alhures esse falo para inelutavelmente perdê-lo em sua
forma, em seu avatar de juízo de donzela. O maids wits presentifica
90
SHAKESPEARE, W. Hamlet. Edited by Jonathan Bate and Eric Rasmussen. The Royal Shakespeare
Company. London: Macmillan Publishers, 2008.
193
tanto mais nitidamente o falo porquanto é exatamente aquilo que lhe
falta, porquanto é exatamente essa falta que o define (ALLOUCH,
2004, p. 287).
Vê-se que o autor coloca de outro modo a problemática em torno do objeto de luto. Na
sua proposta inicial, ele diz se tratar de um “objeto composto”.
O objeto perdido que deixa de luto não é um indivíduo, não é um
indivis, não é um 1, é um objeto composto, um (1 + a). O parêntese
cifra essa solidariedade, que notamos, segundo a qual está excluído
perder o 1 sem ipso facto perder o pequeno a (ALLOUCH, 2004, p.
38).
Em um texto publicado mais tarde, Objet perdu, objet dé-composé, o autor insere um
ligeiro acréscimo ao apresentar o objeto de luto não mais como um objeto “composto”, mas
“de-composto” em (1 + a) (ALLOUCH, 2005, p. 13).
A decomposição do objeto nos ajuda a pensar na problemática paranoide que se
observa por quando de um luto. Como apontado em outro capítulo, do folclore aos filmes
contemporâneos encontramos esse caráter “parapsicótico” em que os mortos perseguem os
vivos (ALLOUCH, 2004, p. 367). Eles voltam para resolver assuntos pendentes ou, o que dá
na mesma, reivindicar algo que deixaram para trás.
Mas do contrário, o autor observou que pouco se fala: os mortos também são
perseguidos. Eles são procurados por toda parte desde que partiram levando consigo o
“pequeno pedaço de si”. Este pedaço tem, no luto, um caráter transicional, isto é, o “si
mesmo” tem caráter flutuante, não se sabe bem a quem pertence (se ao morto ou ao vivo):
“Eis, propriamente falando, o objeto desse sacrifício de luto, esse pequeno pedaço nem de ti
nem de mim, de si; e, portanto: de ti e de mim, mas na medida em que tu e eu permanecem,
em si, não distintos” (ALLOUCH, 2004, p. 12). A solução encontrada por alguns enlutados é
correr atrás do pedaço de si até a morte, ou melhor, tentar reencontrá-lo na morte.
Tem-se aí o possível ponto de enxerto de uma problemática paranoica
sobre a do luto: o morto vai embora levando algo (aquela parte precisa
do enlutador que este deverá, ao termo de seu luto, lhe ceder). Mas, é
esse o alcance da ambiguidade do “si mesmo”, pode acontecer de o
morto deixar algo e declarar que o enlutador lhe tomou aquilo que o
morto deixou nele (não sem razão, aliás, ver o caso de Hamlet pai).
Assim, as posições do morto e do enlutador, tão semelhantes, podem
ser tomadas num enfrentamento imaginário, tipo perseguidorperseguido (ALLOUCH, 2004, p. 287).
A perseguição de luto teria fim somente no ato de sacrifício em que o enlutado cederia
o pedaço de si fálico ao morto (à morte). Enquanto esse sacrifício não acontecer, o estatuto
194
desse pedaço permaneceria flutuante. Regrar o pedaço de si poria fim, não só à perseguição,
mas ao luto.
[...] Só estando ele mesmo perdido, graciosamente sacrificado, é que
esse suplemento satisfaz sua função de possibilitar a perda desse
alguém que foi perdido. Assim, de desaparecido esse alguém adquire
o estatuto de inexistente. Assim, ele cessa de positivamente aparecer,
tal como um fantasma ou uma aparição (ALLOUCH, 2004, p. 389).
A decomposição do objeto também permite pensar o luto não como uma mudança de
objeto (Freud), mas precisamente em termos de mudança de relação com o objeto: “O luto
não é substituir o morto; não é tanto separar-se do morto (não conviver com ele) quanto
mudar a relação com o morto” (ALLOUCH, 2004, p. 318). Mudar a relação com o morto é
abrir mão do “pequeno pedaço de si”, só o sacrifício graciosamente consentido desse
suplemento possibilitaria “a perda desse alguém que foi perdido. Assim, de desaparecido esse
alguém adquire o estatuto de inexistente” (ALLOUCH, 2004, p. 399).
De nossa parte, concordamos com a observação do autor que elaborar um luto é
essencialmente mudar a relação que se mantinha com o morto, não se trata, portanto de
esquecer, encontrar-lhe um substituto ou de não se conviver de modo algum com ele. Porém,
precisamos que uma mudança de relação com o morto implica necessariamente em separação
(a função do sacrum facere). Ocorre-nos esclarecer a separação ou separações em jogo no
luto.
Primeiramente consideramos que, no nível simbólico, há o minucioso trabalho
rememorativo, biográfico, da relação que foi vivida com o objeto perdido. O luto lida com a
tarefa de desinvestimento dessas lembranças, expectativas e explicações para o absurdo da
morte, uma tarefa que implica em inúmeras voltas pela cadeia significante, momento do
trabalho de luto em que alguns podem encalhar. Efetuar o luto é poder se separar da cadeia
significante (autômaton) e seu insistente retorno, para recolocar lá a falta, S(), a falta no
Outro de um significante que responda por aquela morte. Essa falta no Outro recoloca para o
sujeito a sua própria dimensão desejante na medida em que se o Outro não pode responder, o
sujeito da fala também não pode. Mas para além da fala (do sentido), algo aparece, o objeto a,
o objeto causa de desejo tal como articulado por Lacan no seminário 10 (SOLER, 1997).
Seguindo a proposta de Allouch (2004), separar-se da cadeia significante – isto é,
encerrar o trabalho de luto – implica em um ato de sacrifício em que o sujeito suplementa a
sua perda com um pequeno pedaço de si (erotizado, fálico). Um ato separador e
simultaneamente instaurador das mudanças na relação com o objeto perdido na medida em
195
que possibilita ao sujeito recuperar as vias de seu próprio desejo. No seminário 10, Lacan
(1962-3/2005) reconsidera a função do luto a partir do objeto a. Se em Freud, o luto lida com
a tarefa de consumir pela segunda vez a perda do objeto perdido, via trabalho de luto, Lacan
propõe que sua versão é “simultaneamente idêntica e contrária” a essa ideia.
Quanto a nós, o trabalho de luto nos parece, por um prisma
simultaneamente idêntico e contrário, um trabalho feito para manter e
sustentar todos esses vínculos de detalhes, na verdade, a fim de
restabelecer a ligação com o verdadeiro objeto da relação, o objeto
mascarado, o objeto a (LACAN, 1962-63/2005, p. 363).
Efetuar o luto implica então colocar em jogo o lugar ocupado pelo morto, rever o
estatuto a ele atribuído como objeto, separá-lo desse lugar ilusório de ser tomado como objeto
“causa do desejo” o que tornaria a sua morte “a causa de todas as causas”. Separar-se desse
lugar atribuído ao morto abre a via para o sujeito recuperar-se desejante ao restabelecer a
ligação com o verdadeiro objeto, o objeto a, o objeto causa do desejo. Desse modo
entendemos que efetuar um luto é realizar a escrita subjetiva dessa(s) separação(ões) que tem
por efeito mudar a relação com o ser perdido, o que não implica nem esquecê-lo, nem
abandonar ou não conviver com seus signos, mas “colocá-lo em seu lugar”, como se diz.
3. 1 A escrita e a exposição
Sensível às críticas de que a teoria psicanalítica do luto teria ignorado a função do
público no luto, Allouch atenta, na interpretação lacaniana da cena do cemitério, à
importância do terceiro (Laertes) como “suporte” para Hamlet assumir-se de luto. A
contemplação de um luto verdadeiramente assumido tem para Hamlet o valor de uma escrita,
ela translitera o matema da fantasia: “O desenho de Laertes abraçando Ofélia teria, assim o
valor de uma escrita ideográfica de (a), ele seria uma transliteração” (ALLOUCH, 2004, p.
261).
Em sua opção de leitura, o trabalho de luto é redimensionado. Enquanto trabalho
simbólico ele concerne apenas uma parte do percurso do luto, mas a sua finalização necessita
de um segundo passo que se daria no registro imaginário:
O trabalho de luto é simbólico, o simbólico é seu lugar, Lacan
sublinhando que é traço a traço (einziger zug) que se efetua a
retomada das lembranças ligadas ao morto. Mas o luto não pode ser
terminado apenas no nível simbólico: o objeto do desejo, como o do
luto, se constitui numa via descendente do simbólico para o
imaginário (cf. grama) (ALLOUCH, 2004, p. 292).
196
Efetuar o luto moderno como ato de sacrifício gracioso implica em presença de um
público: “Não se pode, com efeito, conceber ato sacrificial privado, privado de todo público”
(ALLOUCH, 2004, p. 294). A fim de ilustrar sua tese, Allouch recorreu ao conto “Agwîî, le
monstre des nuages”91 do celebrado escritor japonês Kenzaburô Ôe92. A expressão “gracioso
sacrifício” é extraída desse autor. Nos passos de Lacan, ele acentua no “sacrifício do luto” o
mesmo caráter radical encontrado no “sacrifício do falo”, um sacrifício sem possibilidade de
retorno vindo de nenhuma divindade. O que se cede à morte é irrecuperável. Daí se extrai o
sentido do “gracioso”, algo que se faz gratuitamente, de graça, sem possibilidade de nenhuma
recuperação futura, uma “perda seca” (ALLOUCH, 2004, p. 12).
“Agwii, o monstro celeste” narra a triste história de um jovem músico que
“enlouqueceu”. Quase um fantasma, ele se encontra assombrado por um monstro vindo do
céu, um bebê gordo e grande como um canguru. A família do músico contrata um jovem
estudante – que é o narrador do conto – para ser seu acompanhante e guardião durante seus
longos e misteriosos passeios por Tóquio. Aos poucos é revelado que o músico havia tido um
filho que nascera com uma anomalia cerebral cujo prognóstico médico antecipava uma vida
de vegetal. Temendo os transtornos que um filho deficiente traria para a vida de um jovem
casal, o músico decide, junto com o médico, “sacrificá-lo” permitindo que lhe dessem, em vez
de leite, apenas água com açúcar para se alimentar. Tudo isso acontece à revelia da esposa
que naquele momento se recuperava do parto difícil. Com a necropsia se descobre que o
tumor era benigno e operável. É a partir daí que o músico passa a ser assombrado pelo baby
ghost.
Curiosamente, o autor desdobra a questão do “gracioso sacrifício de luto” não do lado
do músico cujo luto sabemos ser pelo filho, mas do lado do encarregado de acompanhá-lo, o
jovem estudante que se torna o narrador.
No conto, o músico encerra seu luto em uma passagem ao ato em que, ao invés de
realizar a perda do filho mais um pedaço de si, – (1 + a), ele acaba se re-unindo ao filho na
morte, mas não antes de, recorrendo a uma relação narcísica com seu acompanhante, fabricar
seu Horácio. O músico encontra no estudante um semelhante, , que poderá levar a sua
história junto a um certo público. O acompanhante, antes somente uma testemunha de sua
91
O conto apareceu traduzido no Brasil, em 2011, sob o nome “Agwii o monstro celeste” (Cf. OE, 2011). Aqui
utilizamos a versão inglesa do conto (“Aghwee the sky monster”) publicada em 1977 na obra Teach us to
outgrow our madness [Ensina-nos a sobreviver a nossa loucura]. A mesma obra consultada pelo autor em
tradução francesa.
92
Ainda pouco conhecido em nosso meio, Kenzaburô Ôe foi agraciado com o Nobel de Literatura de 1994. Seu
livro mais conhecido no Brasil é Uma questão pessoal, lançado pela Companhia das Letras em 2003, quase 40
anos após sua publicação original (1964).
197
história, se tornará narrador e será para o músico o que Horácio foi para Hamlet, isto é, o
amigo a quem solicita, antes de morrer, que conte sua história.
Ó Deus, Horácio, que nome execrado
Viverá depois de mim,
Se as coisas ficarem assim ignoradas!
Se jamais me tiveste em teu coração
Renuncia ainda um tempo à bem-aventurança,
E mantém teu sopro de vida neste mundo de dor
Pra contar minha estória.
(SHAKESPEARE, 2012, p. 139).
Assim deduzimos que o conto é um “túmulo literário”, uma escrita cuja publicação
realiza o fechamento de outra, a escrita do luto como perda sacrificial de – (1 + a). Allouch
finaliza sua interpretação propondo que a publicação do relato do luto pelo narrador realiza o
autêntico sacrifício do luto, a autêntica perda de um pedaço de si, que compromete um olhar,
“um olhar erigido, fálico” (ALLOUCH, 2004, p. 385). A publicação do luto realiza a função
de véu negro, isto é, uma marca pública de luto que transforma o narrador – e todos aqueles
que se dispõem a publicar seu luto, inclusive o próprio Jean Allouch – “em alguém com quem
se pode falar” (ALLOUCH, 2004, p. 359).
O autor lembra que o escritor Kenzaburô Ôe, em entrevistas, deixa claro a importância
do público na composição de sua obra sempre transbordante de experiências pessoais. Ôe
participa de um gênero de literatura tradicional no Japão, a escritura autobiográfica, chamado
em japonês de shishōsetsu. O conto “Agwii, o monstro celestre” assim como Uma questão
pessoal fazem referência a sua experiência ao lado de Hikari, o filho nascido com anomalia
cerebral. Suas publicações costumam ser recebidas como fonte de inspiração e consolo, ao
mesmo tempo que ele próprio se diz encorajado, sobretudo, pelo retorno que seus leitores lhe
dão. Abaixo dois trechos de entrevistas concedidas na qual aparece a função “curativa” da
publicação para o escritor e para seus leitores:
[...] Sobretudo as mães jovens me escrevem dizem-me que se sentem
encorajadas por minhas obras, bem como pela obra musical de meu
filho. E sou, por minha vez, encorajado: envio romances escritos sobre
meu filho ao público e o público me remete um feed-back sobre minha
literatura. É a melhor relação que se possa ter com o mundo exterior”
(La Quinzaine Littéraire, n. 659, 1 – 15/12/1994. Apud ALLOUCH,
2004, p. 359).
Acho que os aspectos mais importantes da literatura são justamente o
de tomar conta de si e dos outros. Não sei se ela chega a ter poder de
198
cura para os leitores. Mas a recuperação de cada um é objetivo central
da literatura (FOLHA DE S.PAULO, 5 de abril de 2003)93.
Para Allouch (2004, p. 360-1), o ato de sacrifício realizou uma mutação subjetiva no
acompanhante que foi transformado em “narrador”, mas desde esse lugar de “sujeito
notoriamente furado por um olhar que lhe falta, já que ele o terá, não menos notoriamente,
sacrificado [...]. O morto suscita o enlutado a sacrificar-lhe graciosamente um pequeno
pedaço de si; assim seu luto torna-o desejante”.
Cabe-nos indagar se a exposição de uma escrita do luto basta para efetuá-lo, pois
entendemos que a exposição pode justamente visar o contrário, isto é, lançar-se pretendendo a
repercussão, “tu que passas, detém-te e chora”. O que, na exposição, poderia produzir o
fechamento do luto?
As respostas a essa questão são mais sugeridas do que desenvolvidas pelo autor. Nos
últimos parágrafos do livro, ele ressalta a importância da exposição no luto na medida em que
requer a presença e participação de um público; essa exposição retira o luto do impasse de
uma operação fechada entre o enlutado e o objeto perdido, “uma operação de si a si”
(ALLOUCH, 2004, p. 395). Mas enfatiza que a verdadeira função da exposição no “gracioso
sacrifício de luto” consiste em se oferecer como um ato gratuito, não propiciatório: Scripta
volant. A escrita do luto é oferecida não à consagração de seu autor, mas à poubellication94.
Não só os objetos que o luto ajuntou [– (1 – a)], mas o próprio ato de ajuntamento seriam
lançados à dispersão para serem “nada”:
O gracioso sacrifício de luto se expõe também no sentido de se
colocar na frente, de, assim, se oferecer à sua própria fragilidade, a
não ser talvez nada, a já só contar para esse nada onde o espera não a
morte, mas a segunda morte. A exposição parece, assim, o traço
distintivo cuja presença ou ausência determina que haja ou não
fechamento do gracioso sacrifício de luto. Seria, assim mediante essa
exposição que o ser falante poderia, sem deixar de ficar a uma
distância infinita, beirar o mais próximo possível essa segunda morte
que, só ela, fará da perda uma perda seca (ALLOUCH, 2004, p. 395).
93
Entrevista concedida à Folha de S. Paulo. “Ganhador do Nobel, Kenzaburo Ôe quer encontrar ‘Japão
periférico’".
Folha
de
S.
Paulo
em
5
de
abril
de
2003.
Fonte:
http://www1.folha.uol.com.br/folha/ilustrada/ult90u31877.shtml. Acesso em: 13/5/2014.
94
Neologismo lacaniano que joga com as palavras poubelle (lixeira) e publication (publicação). Na própria
origem da palavra francesa poubelle encontramos uma historieta que confirma a ideia de que nada mais próximo
da lixeira do que uma publicação. Segundo a professora de francês Eve Simmonet, o prefeito da Sena (Paris) se
chamava Sr. Poubelle. Em 1884, ele decidiu que, em todos os apartamentos e prédios, deveria haver uma lata
para o lixo. O decreto vigorou e Paris se tornou umas das cidades mais limpas da Europa, mas o povo nem
sempre satisfeito com as novidades, passou a chamar poubelle a lata de lixo em “homenagem” ao seu criador. A
partir de 1904, a palavra foi escrita nos dicionários e adotada pela Academia Francesa de Letras, sem mencionar
a sua origem. Fonte: http://www.professoradefrances.com.br/a-origem-da-palavra-poubelle-lixeira/. Acesso em
27/02/2015.
199
PARTE V. O RITO (FÚNEBRE) INDIVIDUAL DO NEURÓTICO: A TATUAGEM IN
MEMORIAM
Somente os enlutados serão consolados.
Paul Ricoeur, Vivo até a morte: seguido de fragmentos, 2012.
Despedir dá febre
Guimarães Rosa, Grandes sertões: veredas, 1956.
At the temple there is a poem called "Loss"
carved into the stone. It has three words,
but the poet has scratched them out.
You cannot read loss, only feel it.
Arthur Golden, Memoirs of a Geisha, 1997.
200
Lacan (1952/2008) chamou de “mito individual do neurótico” o roteiro fantasístico
encenado em forma de pequeno drama pelo sujeito neurótico. Aqui chamamos de “rito
fúnebre individual do neurótico” os modernos cerimoniais fúnebres realizados por sujeitos de
luto e que reconfiguram os ritos tradicionais a partir de elementos diversos, a modo de um
bricolage: a memória religiosa herdada, os novos valores totêmicos, os modos
contemporâneos de compor laços sociais e os gostos e valores que advém da história subjetiva
individual. Ressaltamos que, para nós, o “rito individual” é assim denominado não por ser
privado de público ou por se propor a ser solitário, mas por responder a uma busca singular e
privada de elaborar o pesar e prestar homenagem fúnebre.
Norbert Elias (2001, p. 32) já havia sugerido que as formas convencionais de
enfrentamento das situações críticas da vida tinham se tornado obsoletas para muitos jovens, e
lamentava a inexistência de novos modelos:
As fórmulas rituais da velha sociedade, que tornavam mais fácil
enfrentar situações críticas como essa, soam caducas e pouco sinceras
para muito jovens; novos rituais que reflitam o padrão corrente dos
sentimentos e comportamentos, que poderiam tornar a tarefa mais
fácil, ainda não existem.
Ora, se não há mais no campo social um modelo hegemônico de expressar o pesar, de
se despedir dos mortos e prestar-lhes homenagens com fins de rememoração, que resta se não
inventar? Que resta se não buscar, cada um, conforme sugere Allouch (2004), um modo
particular de ritualizar o luto?
Ao tornar-se “assunto privado”, o indivíduo é livre para fazer as suas
opções acerca das “significações últimas”, as quais deixam de ser a
reprodução de um modelo único e imposto pela socialização das
igrejas oficiais para passarem a ser determinadas fundamentalmente
pela história de vida individual (VILAÇA, 2008, p. 65).
Nesta parte final, empreenderemos uma análise das tatuagens in memoriam dividida
em duas partes: a primeira dedicada ao exame da tatuagem como um tributo fúnebre
encarnado; e a segunda, à produção e exposição da tatuagem como um rito fúnebre individual
do neurótico.
201
1. O TRIBUTO ENCARNADO: A ESCRITA DO LUTO NO CORPO
As letras alfabéticas são chamadas em grego de phoinikêia grammata ou
simplesmente phoinikêia que significa feito de “letras fenícias” ou simplesmente “fenícias”
(SVENBRO, 1993, p. 9). Segundo uma lenda antiga que ignora a origem fenícia do alfabeto
grego, a invenção das letras [grammata] se deve a uma homenagem fúnebre à princesa
Phoinikê.
Svenbro (1999, p. 16;8) nos conta que Phoinikê, filha do rei ateniense Acteon, morreu
jovem [koúrē] e o rei chamou as letras de “fenícias” para prestar um culto à filha morta.
Ressecada pela morte, a princesa é irrigada pelos leitores que derramam suas vozes sobre a
“princesa Escrita”. Segundo essa lenda, as letras nascem a partir de um luto, “enquanto os
homens escreverem, prestarão culto a Phoinikê. A escrita do luto jamais acabará”.
A lenda conecta o nascimento da linguagem escrita com a homenagem fúnebre. Aliás,
desde tempos antigos que a escrita tem sido usada para prestar homenagens aos mortos, haja
vista as inscrições tumulares. O próprio nascimento do sujeito para a linguagem, nos diz
Lacan (1966/1998, p. 320), manifesta simultaneamente “o assassinato da coisa”. As relações
do homem com a linguagem são intermediadas pela morte: “O primeiro símbolo em que
reconhecemos a humanidade em seus vestígios é a sepultura, e a intermediação da morte se
reconhece em qualquer relação em que o homem entra na vida de sua história”. O símbolo
permite aos seres animados e inanimados perdurarem para além da própria existência.
Se o símbolo manifesta a morte da coisa, ele também é aquilo que permite a sua
“segunda existência”. O símbolo modifica a natureza e a duração das coisas e dos seres
aquém e além deles mesmos. Daí se extrai a necessidade de dar nome às coisas, de grafar as
palavras, de se inventar ritos, monumentos, lápides, escrituras corporais...
Todos são símbolos de humanidade que presentificam, por deslocamentos e
condensações, os ausentes, ou melhor, os mortos, já que a palavra assassina a coisa. Sob essa
visão, consideramos que a tatuagem in memoriam apresenta uma dupla função que
examinaremos a seguir: de um lado, prestar um tributo fúnebre que preserve a memória do ser
desparecido, dando-lhe assim uma segunda existência; de outro, recobrir com imagens e
significantes escritos no corpo o furo real aberto pelo luto.
202
1.1 A escritura corporal: Uma breve apresentação
Em nosso estudo adotaremos a sugestão de Marie-Anne Paveau (2010, p. 6) que
considera as tatuagens (escritas, desenhadas ou mistas) como “escrituras corporais, grafemas
na pele que constituem ao mesmo tempo um discurso do corpo e um discurso sobre o corpo, o
que tenho chamado de corpografese”. Ressaltamos que tatuar-se é mais que pintar-se, “é
também escarificar: furar a derme introduzindo pigmentos, compondo uma marca definitiva.
Essa marca tem dupla função: tanto de coletivizar como de singularizar” (COSTA, 2003, p.
13).
Embora o uso disseminado da tatuagem seja relativamente recente no ocidente, o
costume de produzir marcas permanentes na pele é muito antigo. O Homem de Similaun ou
Otzi é uma múmia masculina com cerca de 5.300 anos encontrada nas geleiras dos Alpes
entre Áustria e Itália, em 1991. Seu corpo estava tão bem preservado que foi possível perceber
inúmeras tatuagens (PIERRAT; GUILLON, 2000).
A obra Les hommes illustrés de Pierrat e Guillon (2000) traça uma detalhada
historiografia da tatuagem que evidencia a sua báscula entre símbolo de enobrecimento ou de
difamação dependendo da época ou do grupo social consultado. Em suas origens remotas a
tatuagem aparece relacionada às práticas de cunho mágico e ritual (com fins de proteção
contra forças e espíritos malévolos) e ainda com funções profiláticas e terapêuticas. Essa
última parece ser o caso do Homem de Similaun cujas tatuagens coincidem com afecções
encontradas em seu corpo, provavelmente um modo primitivo de acupuntura (PIERRAT;
GUILLON, 2000).
Em diferentes culturas aparece o uso ritual da tatuagem e de outras marcas corporais
que funcionava para marcar as passagens críticas da vida humana, tais como maternidade,
entrada na vida adulta e luto. Portanto, tatuar-se em período de luto não é uma invenção
contemporânea. No Antigo Testamento, o quinto livro de Moisés proíbe aos filhos de Javé
marcarem a pele em sinal de luto, um costume que parece ter sido comum à época e que
deveria compor os ritos de luto: “Não vos fareis incisões e não cortareis o cabelo pela frente
em honra de um morto” (Deuteronômio 14: 1). Lamentavelmente não há detalhes sobre o tipo
de marca produzida (se desenho ou escrita) nem os lugares do corpo em que eram comumente
realizadas. Essa passagem do Deuteronômio serviu de base para a proscrição da tatuagem e
outras marcas corporais entre os judeus (hoje mantida majoritariamente entre os ortodoxos) e,
mais tarde, entre os cristãos.
203
Em todas as épocas e lugares, as marcas corporais (tatuagens, escarificações,
piercings) compartilham uma característica em comum: elas se constituem em um modo de
identificação de um sujeito no corpo social. Mais do que simples decoração corporal, as
tatuagens serviram principalmente para comunicar a identidade social, politica e econômica
de alguém. Entretanto, desde a Antiguidade, elas também serviram para apagar a identidade
de um sujeito ou de um grupo para marcar em seu lugar o nome do seu proprietário. Os povos
gregos, persas e romanos costumavam tatuar a ferro a fronte de escravos e prisioneiros de
guerra tanto para indicar a quem pertenciam quanto para inibir qualquer tentativa de fuga
(PIERRAT; GUILLON, 2000). Mais recentemente podemos lembrar que os judeus eram
tatuados com números em substituição aos seus nomes como modo de apagamento identitário
quando adentravam a “fila de seleção” nos campos de concentração.
Algo paradoxal é a notícia95 recente de que em Israel os descendentes de vítimas do
Holocausto estão repetindo as tatuagens usadas em campos de concentração para prestar
homenagens aos seus pais ou avós. Um israelense de 40 anos - assim como outros quatro
membros de sua família - gravou em seu braço uma tatuagem com o número “157622”, a
mesma à qual seu pai foi submetido quando chegou ao campo de concentração de Auschwitz
em 1942: "Fiz essa tatuagem para expressar o quanto me identifico com meu pai e quero
preservar sua memória e para que o Holocausto não seja esquecido". Outros jovens
israelenses estão adotando essa mesma ideia que tem provocado bastante polêmica por ser
considerada uma homenagem não às vítimas, mas aos agressores.
Se na Antinguidade, as tatuagens podiam ser usadas de modo mais livre, no mundo
ocidental, a ascensão do cristianismo mudou a relação com o corpo e com os ornamentos
corporais. Principalmente na Idade Média, as incisões corporais foram banidas. Com o
advento das grandes navegações passaram a se associar com os usos e costumes de povos não
cristãos (chamados de pagãos ou selvagens). Proscritas, as tatuagens passaram a ser infligidas
como forma de punição identificando de modo permanente os infames: hereges, judeus,
prostitutas, adúlteras, prisioneiros, ou seja, todos aqueles considerados marginais às crenças
dominantes (COSTA, 2003).
Apesar do árduo esforço de banimento dessas marcas, o seu retorno logo refluiu no
continente europeu graças aos grandes navegadores que insistiam em regressar portando
ilustrações, souvenires e artefatos que acabavam exibidos e preservados em museus. Além
disso, em nome da curiosidade cientifica, alguns navegadores trouxeram na bagagem
95
Cf: “Descendentes de vítimas do Holocausto repetem tatuagens de Auschwitz”. Fonte:
http://www.bbc.co.uk/portuguese/noticias/2012/10/121005_holocausto_tatutagem. Acesso em: 23/4/2015.
204
“espécimes” de homens tatuados (COSTA, 2003, p. 15). Sem falar nos marinheiros que
passaram a adotar os costumes dos povos que visitavam.
Paradoxalmente, a partir do século XX as tatuagens e outras marcas corporais
retornaram triunfantes entre os jovens justamente pelo valor marginal que ocupam no corpo
social:
Assim como, na Idade Média, as marcas corporais eram
representantes da infâmia e do marginal, constituindo-se em uma
prescrição social de desonra, o retorno ao uso no ocidente se dá pela
busca ativa, de cada indivíduo, por um valor marginal. A partir do fim
do século XIX, marinheiros, circenses, prostitutas, prisioneiros,
homossexuais, passam a tatuar-se por inciativa própria. Com a forma
de organização própria contemporânea, na qual o marginal passa a ter
valor pela exceção que se constitui socialmente, o uso das marcas
corporais passa a se disseminar entre os jovens (COSTA, 2003, p. 15).
As práticas corporais são reflexos dos discursos dominantes sobre o corpo em que
impera a sua coisificação e mercantilização generalizada (até os órgãos internos e seus
líquidos podem ser trocados ou mesmo vendidos). Ramos (2004) aponta o quanto o
relaxamento das interdições sobre o corpo, agora tornadas mais sutis, fez emergir uma figura
nova: a do corpo fetichizado, corpo fonte de fruição narcísica sobre o qual incidem práticas
diversas que vão desde um extremado cuidado higiênico até o cuidado estético obsessivo com
a aparência. Em um contexto predominantemente comandado pelo olhar, há um empuxo
narcísico ao mostrar-se, desnudar-se, corpo e alma, tal como pode ser amplamente
vislumbrado nos espaços das redes sociais virtuais.
Para Gaspar, Hamon e Cheik (2010, p. 382), a “lenta desagregação do Ideal e dos
elementos simbólicos que subjazem na armadura social seria um dos fatores que explicaria o
recurso à marcação sobre o corpo. Ali onde o individualismo tende a excluir o Outro”. O
recurso sintomático ao corpo permitiria reintroduzir uma “certa permanência e assegurar ao
indivíduo uma continuidade significante. Com esta finalidade, a marcação corporal participa
de uma montagem subjetiva por vezes precária (especialmente na psicose), permitindo a
vários sujeitos manter sua inscrição no laço social”.
Para além das perspectivas histórica, social e cultural, há o sujeito que se faz tatuar-se
em busca de singularização do corpo, busca pela “pequena diferença” narcísica. Os motivos
que levam alguém a optar por esse tipo de marcação irreversível no corpo é sobredeterminado
pela conjunção dos elementos que compõem a história subjetiva e dos determinantes socioculturais, portanto são fenômenos verificáveis na particularidade de cada caso. No entanto,
sua proliferação no mundo ocidental tem despertado o interesse de inúmeros pesquisadores
205
das ciências humanas e sociais, entre eles psicanalistas, que têm levantado algumas hipóteses,
apresentadas adiante de modo breve para adentrarmos em seguida na especificidade da
tatuagem in memoriam.
Segundo Costa (2003), as tatuagens e outras marcas corporais voluntárias são “formas
de fazer bordas”, isto é, formas (artificiais) de situar as fronteiras corporais nas relações com o
ambiente, com o outro e com a realidade. São as bordas que permitem a constituição do olhar,
elas nos permitem ver a partir de um recorte de uma imagem. Registramos uma imagem que
vem de fora, mas já se constituindo como se fosse nossa:
Apesar de já nascermos com essas bordas e com a capacidade de que
elas funcionem, sua atividade não se dá de forma natural [...], elas
precisam ser recortadas. Essa necessidade não diz respeito a um mau
funcionamento, senão que responde à nossa condição de desnaturação,
de determinações heterogêneas – simbólicas/imaginárias/reais
(COSTA, 2003, p. 17).
As heterogeneidades dizem respeito à condição necessária, vital, do nosso organismo
de assimilar símbolos e imagens em seu funcionamento. As imagens se apoiam
privilegiadamente nos orifícios corporais de tal modo que elas se tornam erogeneizadas; nos
mesmos orifícios em que a satisfação biológica se impôs como necessidade surge, apoiado
neles, a função simbólica.
O que chama a atenção tanto na tatuagem quanto no piercing é sua
dupla condição: a de fazer orifício e a de acrescentar elementos
estranhos ao organismo como compondo o corpo próprio. Digamos
que essas duas condições vão produzir um suporte – um building –
como que reconstituindo a imagem corporal (COSTA, 2003, p. 18).
A imagem subjetiva do corpo se faz a partir de uma exterioridade, corpo e imagem
corporal não se diferenciam, assim como os elementos exteriores vêm constituir o corpo
próprio. Nossas “bordas corporais são, por princípio, bordas sociais”, pois surgem em
resposta ao que nos vem desde o exterior, são efeitos de nossa relação à linguagem, campo do
Outro, produtora de laços sociais (COSTA, 2003, p. 23). Através da função de erotização, a
tatuagem “dá corpo a algo inapreensível, como pode ser o traço primeiro que funda a
desnaturação do sujeito, conferindo, ao mesmo tempo, erotismo a seu funcionamento”
(COSTA, 2003, p. 19). A tatuagem pode ser um representante daquilo que tem “valor
totêmico” para um grupo, um valor que permite que o corpo e sua representação sejam
coletivizáveis e singulares ao mesmo tempo. A singularidade diz respeito a um traço que
cativa o olhar do outro e o coletivo é o lugar que esse olhar pode conferir como identidade.
Esses elementos
206
dizem respeito à necessidade de algo que atualize – colocando em ato
– a impressão primária das marcas corporais. Essa impressão compõe
a reunião de heterogêneos, como podem ser o registro corporal de um
símbolo (o sem sentido e abstrato traço que o nome próprio traz de
enigmático, como primeira impressão simbólica); bem como a
impressão como experiência corporal de prazer/desprazer, definida
por Freud como necessária à incorporação de uma representação
(COSTA, 2003, p. 19-20).
Em consonância com a ideia de que as marcas irreversíveis no corpo são formas de
atualizar as impressões primeiras, Mieli (2002) propõe que a produção da tatuagem tem a ver
com a necessidade de estabilizar o contorno de uma imagem de si, fundada por quando da
constituição do eu.
No estádio do espelho, o infans é capturado por uma imagem especular cativante a
qual se identifica e, ao mesmo tempo, se aliena. A formação do eu (eu ideal) se dá nesse
encontro jubiloso com essa imagem exterior que se toma para si tal como uma vestimenta e
que antecipa a unidade corporal de um corpo vivido como despedaçado. O eu se constitui
como uma miragem, uma ficção e não se distingue do corpo. A esse primeiro tempo de
alienação a uma imagem antecipatória sucede a identificação à imagem do semelhante, com
quem disputará o objeto do desejo. Dá-se uma passagem do eu especular (imaginário) para o
eu social (simbólico). Logo o eu se forma em referência a uma imagem do outro, especular ou
encarnada (LACAN, 1960-1/2010; LACAN, 1966/1998). Habita-se um corpo pulsional, e
atravessado por necessidades, ilusoriamente unificado por uma imagem de si vinda do
exterior; por isso mesmo, essa imagem é uma vestimenta frágil propensa à instabilidade.
Segundo Mieli (2002), a oscilação se apazigua graças a um corte que dá forma ao
contorno da imagem de modo que a fronteira entre o eu [moi] e o outro se estabiliza. Essa
fronteira se torna possível graças à inscrição de um traço primordial designado por Freud
como ein einziger Zug. A autora recorre ao Seminário 8, A transferência, no qual Lacan
(1960-1/2010) recupera esse traço para concebê-lo como um signo tomado no nível do Outro
no momento em que a criança maravilha-se com a sua imagem especular. Diante do espelho,
a criança pequena cativada por sua imagem volta a sua cabeça para o adulto que a acompanha
para extrair dele um signo de aprovação e de testemunho dessa imagem especular “desejável e
destruidora ao mesmo tempo”:
Desse Outro, na medida em que a criança diante do espelho volta-se
para ele, o que pode vir? Nós dizemos que só pode vir o signo imagem
de a, essa imagem especular, desejável e destruidora ao mesmo
tempo, efetivamente desejada ou não. É isso que vem daquele para o
qual o sujeito se volta, no próprio lugar onde ele se identifica nesse
207
momento, na medida em que sustenta sua identidade com a imagem
especular (LACAN, 1960-1/2010, p. 431).
O olhar do Outro tem aí uma função essencial: é sob o seu olhar que o eu se constitui
como desejável. A criança se volta para receber do Outro um signo de confirmação de que ele
aprova e deseja essa imagem. Dá-se então a interiorização do olhar – pura exterioridade –
através de um signo, ein einziger Zug, que nesse seminário Lacan denomina “traço único”:
Mas o que é definido por este ein einziger Zug é o caráter pontual da
referência original ao Outro na relação narcísica [...] Este olhar do
Outro, devemos concebê-lo como sendo interiorizado por um signo.
Isso basta ein einziger Zug. [...] Este ponto, grande I, do traço único,
este signo de assentimento do Outro, da escolha de amor sobre a qual
o sujeito pode operar, está ali em algum lugar e se regula na
continuação do jogo do espelho (LACAN, 1960-1/2010, p. 434).
Nesse ponto, Lacan distingue as diferenças, e também as relações, entre o eu ideal e o
ideal de eu. O primeiro se caracteriza por uma projeção imaginária e o segundo por uma
introjeção simbólica. A satisfação narcísica relacionada com o eu ideal depende da
possibilidade de referência a este traço simbólico primordial interiorizado, signo do olhar do
Outro, que constitui a base do ideal do eu (LACAN, 1960-1/2010, p. 434).
Retomamos aqui a sugestão de Mieli (2002, p. 15) quanto às intervenções
irreversíveis96 no corpo como tentativa de abrandar a oscilação da imagem de si: “A clínica
mostra que a intervenção voluntária sobre o real do corpo se impõe, com frequência, como
uma ‘necessidade’. Em geral, diria que a manipulação irreversível é uma tentativa de dar
estabilidade a uma forma que oscila” levando à constituição de um marco que a autora,
recorrendo à língua inglesa, nomeia de landmark palavra que apresenta diferentes acepções:
1. Marca que designa os limites de um território – uma marca
qualquer: uma árvore, uma pedra, um objeto fixo;
2. um objeto proeminente qualquer marcando uma localidade,
frequentemente histórica, um objeto elevado servindo de guia;
3. um acontecimento considerado ponto de virada de um certo período
(MIELI, 2002, p. 16).
As escrituras corporais implicam a constituição de um landmark cuja função é invocar
o traço à “procura de um corte simbólico que dá forma definida a um contorno flutuante”, que
envolve a dimensão do olhar do Outro e se constitui assim em uma “oferta ao olhar” (MIELI,
2002, p. 16). A autora declara a importância da inscrição como definição da identidade
96
Muito embora hoje a tatuagem seja um procedimento passível de remoção, concordamos com a autora quando
a inclui dentre as “manipulações irreversíveis do corpo”, uma vez que a remoção da tatuagem não é nada fácil;
os métodos mais eficientes e seguros envolvem procedimento médico (o mais recomendado tem sido o laser),
mesmo assim o resultado é incerto. Por essa razão, muitos tem optado pelo recobrimento da tatuagem por uma
outra.
208
subjetiva, sendo, nesse sentido, estruturante. A criação de um landmark pode ter o caráter de
uma “inscrição simbólica que, no próprio ato de sua sedimentação, permite ao sujeito passar a
um novo estado” (MIELI, 2002, p. 21). As marcações sobre o real do corpo sinalizam a
importância de uma intervenção simbólica para que a transição se faça: “A ancoragem do
traço implica o corte. A criação do landmark como escolha individual ressalta a função de
corte que a inscrição tenta operar, ao mesmo tempo passagem a um novo estado e definição
de uma forma”. Ressalta-se, portanto, a função da intervenção irreversível como uma tentativa
de corte, de separação e invocação de uma inscrição simbólica que dê contorno ou
acabamento à imagem subjetiva.
Em relação ao campo pulsional, no seminário 11, Lacan (1964/2008, p. 201-2)
sublinhou na tatuagem a sua função de erótica, ela seria uma das formas mais antigas de
materialização da libido no corpo: “O entalhe tem muito bem a função de ser para o Outro, de
lá situar o sujeito, marcando seu lugar no campo das relações do grupo, entre cada um e todos
os outros. E, ao mesmo tempo, ela tem, de maneira evidente, uma função de erótica”. Fabricase no corpo uma zona erógena que captura o olhar e a partir desse marco o sujeito se localiza
se apresentando como sendo desejável, amável.
Em suma, a produção de uma escritura corporal deve ser considerada em sua
singularidade, logo aberta a diferentes sentidos, tais como: pode servir para encarnar a libido
no corpo com função de ser para o Outro, e de lá situar o sujeito no laço com os outros ao
mesmo tempo que, com função de erótica, a parte de si tatuada se oferece ao olhar como um
ponto erotizado, desejável; pode ser um modo de produzir uma singularidade no corpo, um
traço que captura o olhar conferindo alguma identidade no campo social; pode servir como
corte simbólico para estabilizar o contorno de uma imagem subjetiva frágil; pode inscrever
simbolicamente uma separação, uma passagem para outro estado; e, uma via que não
exploramos, mas assinalamos, pode servir ainda como marca de gozo.
Se as tatuagens e outras marcas corporais tornaram-se atrativas para as novas gerações
por possibilitarem inscrições singulares no corpo (uma marca distintiva) que são
simultaneamente
reconhecidas
no
campo
da
identificação
coletiva
(uma
marca
compartilhável), não é de se estranhar que elas, por contiguidade, também passassem a ser
adotadas como um signo de luto.
209
1.2. O tributo encarnado: “A tatuagem é um memorial que vai ficar com você para
sempre”
Para os nossos bisavós, fitas de crepe na lapela, véus negros e roupas pretas eram
signos não apenas desejáveis, mas exigíveis para expressar o pesar público. Na queda dos
padrões homogeneizantes de uma etiqueta de luto, as gerações simpatizantes dos ornamentos
corporais irreversíveis tornaram a tatuagem um signo de pesar e ao mesmo tempo um tributo
fúnebre – lembrando que a palavra grega sêma carrega o sentido de túmulo e signo
(SVENBRO, 1993) – por esta se mostrar mais de acordo com seus valores, atitudes e
sentimentos. Porém, é como trajar, seguindo o exemplo da romântica Rainha Vitória, roupas
de luto até o fim da vida, mesmo quando se está nu.
Tributo vem do latim e significa “imposto”, “contribuição” e “homenagem” (CUNHA,
2010, p. 650). O tributo fúnebre pode ser assim lido como um imposto devido, uma
contribuição a ser dada e ainda uma homenagem que se deve aos desaparecidos.
Tradicionalmente, os tributos fazem parte dos ritos fúnebres e tem a função principal de
preservar no coletivo a memória honorífica dos mortos. Através do tributo, os mortos são
irrigados com a seiva da lembrança, eles se tornam visíveis outra vez de outro modo
(VERNANT, 1990).
Enquanto tributo fúnebre, a tatuagem in memoriam se presta ao mesmo fim, porém
com o diferencial de usar a pele do corpo como suporte de lembrança. Em nossa pesquisa,
observamos que os homenageados mais frequentes são os filhos, os pais, os avós e irmãos. O
luto do filho, como já visto, assumiu na atualidade o status de dor maior, há uma abundância
de tributos em forma de tatuagem nos sites pesquisados, especialmente nos casos de perda
gestacional ou de infans, as chamadas baby memorial tattoos. Nesses casos, os temas
geralmente grafados são os desenhos de bebês com asas de anjo ou pequenas pegadas, muitos
são acompanhados de enunciados tal como se lê abaixo:
210
Figura 9. Baby memorial tattoo
“Nunca em meus braços, sempre no meu coração”
Fonte: Memorial Tattoos97
O tributo grafado no corpo em memória de um filho não nascido está no lugar do
monumento sepulcral, é o que diz uma jovem cuja tatuagem presta tributo à (não) existência
do filho98:
A tatuagem é um memorial que vai ficar com você para sempre [...].
Minha primeira tatuagem foi um memorial para o meu bebê, meu filho
que nunca nasceu. Tudo o que eu tinha para mostrar que o bebê havia
existido era um teste de gravidez positivo e as cicatrizes das
intervenções intravenosas durante a horrível gravidez.
Eu queria algo especial para mostrar que havia uma vida que foi
perdida. O bebê estava previsto para o final de outubro, então eu
escolhi uma abóbora. Quando eu expliquei para Ebon, o tatuador, ele
disse que iria desenhar algo especial. Eu pedi para colocar a data X-XX sob o desenho para que eu nunca esquecesse quando meu filho
deixou este mundo99.
É notável que os tributos em forma de escritura corporal se enquadrem bem no modelo
do luto romântico ressaltado por Ariès (1981) em que a morte do outro se tornou intolerável e
inconsolável assumindo primazia sobre as preocupações com a própria morte. Elas se
caracterizam por ser um memento illius [lembra-te de...] radical, pois fixadas de modo durável
no corpo. Se é um memento que está na moda, é uma moda permanente.
Nesses tempos em que os tributos fúnebres se fazem desvinculados do corpo do morto,
a tatuagem in memoriam assume um valor metonímico e o tributo se desloca do espaço
geográfico cemiterial para o corpo. É neste que será demarcado um lugar, um landmark, a
partir do qual o morto será olhado, visitado e lembrado, assim como se faz (ou se fazia) com
97
Fonte: https://www.pinterest.com/explore/memorial-tattoos/. Acesso em: 15/01/2015.
Esse relato foi amplamente discutido em: PINHO, M. X.; ROSA, M. D. “Luto em versão contemporânea: As
tatuagens memoriais”. Trivium [online]. 2014, v.6, n.1, p. 18-28.
99
Fonte: http://voices.yahoo.com/memorial-tattoos-help-grieving-process. Acesso em: 20/08/2011, tradução
nossa.
98
211
os monumentos sepulcrais. Desde que a morte e o luto se dessacralizaram e se tornaram um
assunto intimista e privado, é no enlutado que o morto habita (de modo visível, diga-se de
passagem, no caso dos tributos em forma de tatuagem) e não tanto mais no cemitério ou no
Além religioso, como no passado.
Agora tenho sempre um pedacinho dele comigo e sinto que eu o
honrei ao ter me marcado permanentemente por ele. Eu sinto que esta
tatuagem é única e complexa ao mesmo tempo tão simples e doce,
tudo ao mesmo tempo. Assim como era meu doce menino.
[mãe que perdeu um filho pequeno]100
A tatuagem é um tributo fúnebre que tem a peculiaridade de “encarnar-se”, isto é, de
por na carne uma marca da memória do ser desaparecido. Para alguns, esse tributo escrito na
pele pode bem manifestar um luto com traços melancólicos, impossível de se finalizar,
beirando uma “mumificação” do morto no corpo. É como se a sombra do objeto tivesse caído
materialmente sobre o eu que, como já dito, não se diferencia do corpo.
Em vez de pedra, papel ou suporte virtual, cede-se uma parte do corpo para funcionar
como monumento memorial, talvez porque, para alguns, “a memória corporal de feridas e
cicatrizes seja mais confiável do que a memória mental” (ASSMANN, 2011, p. 265). Alguns
cedem uma parte inteira do corpo tornando-a um verdadeiro cemitério virtual para acolher
todos os seus mortos, conforme declarou uma jovem, que fez do braço esquerdo seu cemitério
particular:
Eu reservo o meu braço esquerdo, que é mais próximo de meu
coração, para minhas tatuagens memoriais. Eu tenho uma pulseira
tatuada no meu pulso esquerdo que diz "Em memória de M." para a
minha avó por parte de mãe; uma rosa tribal amarela na parte exterior
do meu antebraço que tem as iniciais de minha avó por parte de pai
(porque ela amava rosas amarelas); e outra no meu ombro esquerdo de
uma cruz em ruínas para o meu irmão mais novo, que faleceu aos 16
anos [...]. (Ele teria adorado a cruz em ruínas). Eu chamo-lhe o meu
braço memorial. É uma ideia tão simples tatuar memoriais, mas
honestamente me faz sentir como se eles estivessem sempre comigo,
no meu coração.101
A rememoração se suporta no corpo, um marco imaginário no qual o olhar
desempenha um importante papel. Não tanto que o sujeito possa facilmente acessar o tributo
para olhar e se recordar, mas é que lá pode marcar o ponto de onde ele é olhado. Ele se faz de
tela para lá escrever a mancha onde faz existir o olhar do morto. Lacan (1964/2008) fala da
100
Fonte: http://voices.yahoo.com/memorial-tattoos-help-grieving-process. Acesso em: 20/08/2011, tradução
nossa.
101
Fonte: http://becauseilive.hubpages.com/hub/In-Loving-Memory-Memorial-RIP-Tattoos. Acesso em
17/03/2012, tradução nossa.
212
arte de alguns pintores que conseguem capturar nosso olhar criando uma mancha enigmática –
como no quadro de Hans Holbein “Os embaixadores” – que nos empuxa para dentro do
quadro. Mas há no campo escópico do sujeito, no campo do visível, uma posição inversa
primeira, lá o olhar está do lado de fora, lá se é um objeto a ser olhado, “sou olhado, quer
dizer, sou quadro”, sou “mancha” (LACAN, 1964/2008, p. 107). Nessa posição inversa, é o
quadro que me olha.
Figura 10. Tatuagem realista de retrato [Portraits Tattoo].
Fonte: In Loving Memory: Memorial R.I.P. Tattoos102
Entretanto, ainda que o tributo tatuado seja o mais fiel possível, e ainda que tomado
como mancha pelo enlutado, o olhar do morto não está lá, essa mancha é uma construção do
sujeito em sua tentativa de dar consistência ao morto, atribuindo-lhe uma segunda existência
na carne, porém o próprio tributo só é erguido como tal porque algo falta, o olhar do morto
não existe mais. Uma jovem, cuja irmã havia se suicidado, realizou três tatuagens em sua
homenagem, uma em especial é a reprodução da letra de sua irmã extraída de um cartão de
aniversário. Essa escrita em seu corpo é tomada como mancha que atrai seu olhar e de onde
também é olhada, e se a linguagem do amor é feita de signos, essas letras são letras de amor,
signo do amor da irmã a despeito do modo como ela decidiu desaparecer.
Minha irmã cometeu suicídio no ano passado e eu levei um cartão que
ela havia me dado no meu aniversário de 17 anos em sua letra para ser
tatuado no meu braço esquerdo, "para a minha irmãzinha, com amor,
T.". E no meu outro antebraço eu tenho "Isso que não me mata me
fará mais forte" em alemão antigo. Eu também tenho um enorme sol e
lua com o seu nome, data de nascimento e morte na minha perna
direita. Ela adorava sóis e luas. Eu fiz isso no dia em que ela foi
102
Disponível em: http://becauseilive.hubpages.com/hub/In-Loving-Memory-Memorial-RIP-Tattoos. Acesso em
17/03/2012.
213
enterrada. Foi a única coisa que fiz nessa semana que não me fez
chorar. Estou pensando em fazer mais. Mas as três são dela. E todos
os dias eu posso olhar para a escrita dela e ver que ela amava e nunca
duvidou ou teve dúvidas.103
Assim encontramos que a tatuagem em sua função erótica pode assumir a forma de um
tributo que é escrito como marca-signo do amor conferindo um lugar a partir do qual o sujeito
pode se localizar, às vezes “ordenar-se por uma vida inteira” (LACAN, 1972-3/2010, p. 122).
Alguns tributos ressaltam claramente a dialética amar e ser amado; eles se destinam a prestar
homenagem àquele a quem se ama e, ao mesmo tempo, exaltar a posição de amado de seu
portador. Uma jovem escreveu no corpo “minha amada” [my beloved] e declara que a
tatuagem é uma homenagem à mãe, mas “minha amada”, ela esclarece, é ela mesma nas letras
que a mãe lhe dedicou:
“‘Minha amada’ [my beloved] com a letra de minha mãe. ‘Minha
amada’ está se referindo a mim. Ela faleceu no ano X e seus escritos
são o que eu guardo de mais querido”.104
Figura 11. Tatuagem em homenagem à mãe
“Minha amada” [my beloved].
Fonte: Memorial Tattoos105
Em um apólogo bastante comentado, Lacan (1966) fala da condição de um escravo da
antiguidade que carregava tatuado em seu couro cabeludo uma mensagem cujo texto e sentido
lhe eram desconhecidos e que o condenava à morte. Essa escritura grafada no corpo enquanto
103
Disponível em: http://becauseilive.hubpages.com/hub/In-Loving-Memory-Memorial-RIP-Tattoos. Acesso em
17/03/2012, tradução nossa.
104
Fonte: https://www.pinterest.com/explore/memorial-tattoos/. Acesso em: 15/01/2015, tradução nossa.
105
Fonte: https://www.pinterest.com/explore/memorial-tattoos/. Acesso em: 15/01/2015.
214
dormia, insabida pelo pobre portador, se endereçava à decifração, à leitura de outrem. Do
mesmo modo, nosso corpo é
marcado de traços, invisíveis e incompreensíveis, apesar de
expressarem materialidades – que buscam o endereço de uma leitura.
[...] marca-se a ligação entre olhar e endereçamento de um pedido de
decifração. São duas determinações importantes: a busca de um lugar
no amor do outro, pela procura de uma decifração de traços corporais
(COSTA, 2010, p. 20).
Nem todas as tatuagens e incisões corporais se expõem ao olhar público. Algumas
ficam restritas ao sítio privado do corpo. Entretanto, mesmo quando clandestinas, isso não
quer dizer que não tenham endereçamento. O tributo encarnado é feito de símbolos de
linguagem e na linguagem, o que implica um endereçamento não só ao amado perdido, mas
ao Outro da linguagem.
Em relação à função comunicativa da tatuagem, Paveau (2010, p. 7) chama a atenção
para o fato de que ainda que possamos considerar as tatuagens como escrituras corporais, nem
sempre elas se destinam simplesmente à comunicação, nem sempre elas se dobram facilmente
à leitura ou interpretação mesmo que se apresentem em forma de um enunciado.
Falar de escritura não implica em princípio somente a produção de
enunciados, mas também sua recepção e sua leitura, como um circuito
completo de produção linguageira dotado de todos os parâmetros
habituais de enunciação, mesmo se não são “clássicos”: a tatuagem
escrita faz, com efeito, do corpo um suporte de discurso no qual tudo
leva a crer que ele possua, como todo discurso, um produtor, um
receptor, uma forma e uma interpretação. Mas a natureza do suporte e
dos conteúdos tatuados confunde consideravelmente o circuito
habitual da produção discursiva, o que torna a enunciação tatuada
extremamente específica.
A enunciação tatuada é específica porque o sujeito da enunciação é anônimo, o texto
grafado é móvel, com frequência mostrado parcialmente, em um jogo de mostra-esconde,
criando problemas para o leitor/receptor que tenta ler e construir um sentido para a mensagem
(PAVEAU, 2010).
Na era digital, vivemos o império das imagens pictográficas em preferência às letras
na medida em que as primeiras se prestam mais facilmente a uma comunicação instantânea,
“em tempo real”, demanda dos tempos atuais. Nesse universo (povoado de selfies e ícones
descartáveis que falam por nós), as imagens, registro narcísico, imperam em detrimento das
narrativas, em detrimento da faculdade de intercambiar experiências, conforme observou
Benjamim (1936/2012). Haja vista o sucesso alcançado pelo Instagram que se propõe a
215
compartilhar os instantes de modo simples e direto. Em seu site106, lê-se: “Instagram is a free
and simple way to share your life and keep up with other people. Take a picture and video,
then…”
A partir dessas considerações, propomos que, do ponto de vista comunicativo, os
tributos fúnebres em forma de escritura corporal (mesmo quando em forma de enunciado) se
inscrevem mais como um “dar-a-ver”, mostração, do que à leitura comunicativa.
Quando comparamos as escrituras corporais com tributos fúnebres tradicionais
(monumentos, túmulos, lápides, p. ex.), observamos que, de modo geral, elas se assemelham
mais aos retratos pétreos sepulcrais, tais como o de Phrasikleia, do que às lápides falantes,
mesmo quando se apresentam em forma de enunciado. É nesse sentido que as consideramos
como tributos mais voltados à mostração do que à leitura. Os tradicionais monumentos
sepulcrais têm como característica não apenas identificar aonde está depositado o corpo, mas
também revelar aos passantes a identidade do cadáver e algo de sua história. A inscrição
tumular, assim como o túmulo literário, se dirige essencialmente a um público-leitor, à leitura
que faz ressoar o nome do morto e de sua linhagem para a posteridade: “Eu, a sēma de
Phrasikleia, serei sempre chamada koúrē...”.
Diferentemente da sēma de Phrasikleia que se apresenta e fala em nome da garota, o
tributo grafado no corpo é mudo, falta-lhe uma inscrição que o tire do anonimato; a
comunicação da identidade do morto bem como de sua linhagem e história dependem da fala
de seu portador.
[...] eu senti como se tivesse um pedaço dela que eu poderia levar
comigo sempre e eu adoro quando as pessoas me perguntam sobre
isso, porque então eu posso dizer-lhes o seu significado.107
As tatuagens in memoriam (mesmo se escriturais) se lançam à mostração tal como os
belos monumentos cuja função é de atrair a atenção, para, a partir dessa captura, provocarem
a interpelação comunicativa, a fala. Lacan (1964/2008) propõe uma diferença entre o ver e o
olhar. O ver se relaciona ao olho enquanto órgão responsável pela visão, pertence ao registro
do eu, registro narcísico que filtra as imagens de acordo com suas preferências. Já o olhar
implica o sujeito desde esse lugar de desejante, nesse sentido interroga seu desejo:
O pintor, àquele que deverá estar diante do seu quadro, oferece algo
que em toda uma parte, pelo menos, da pintura, poderia resumir-se
assim – Queres olhar? Pois bem, veja então isso! Ele oferece algo
106
“Instagram é uma maneira livre e simples de compartilhar sua vida e se manter atualizado com outras pessoas.
Tire uma foto e vídeo, então…”. Fonte: https://instagram.com. Acesso em: 25/04/2015.
107
Fonte: http://voices.yahoo.com/memorial-tattoos-help-grieving-process. Acesso em: 20/08/2011, tradução
nossa.
216
como pastagem para o olho, mas convida aquele a quem o quadro é
apresentado a depor ali seu olhar, como se depõem as armas
(LACAN, 1964/2008, p. 102, grifo do autor).
A exposição da imagem captura a atenção, mas o pintor quer que o quadro seja mais
que simplesmente visto, ele busca a deposição do olhar que interrogue um mais além da
imagem. Assim parece a tatuagem in memoriam que ao se expor busca uma interpelação em
que a fala de seu portador é invocada nesse além da imagem. Esse apelo à comunicação
aparece também nos espaços virtuais onde a postagem da fotografia da tatuagem é geralmente
acompanhada de algum breve enunciado acerca de sua origem provocando, em resposta,
comentários de outros internautas.
Ainda que nas redes sociais virtuais impere também um determinado anonimato do
enunciador e daquele a quem ele presta homenagem, a tatuagem e seu breve enunciado advêm
como o monumento sepulcral clássico: a fotografia da tatuagem se constitui em retrato pétreo
(monumento) e o enunciado assume o valor de lápide falante. O tributo grafado no corpo
adquire voz e se lança não somente ao olhar, mas também à fala capaz de intercambiar as
experiências. Voltaremos a esse ponto quando tratarmos do caráter ritual da tatuagem.
Figura 12. Tatuagem em homenagem à avó
“Tatuagem memorial para a minha avó, a mulher que me ensinou a costurar”.
Fonte: Memorial tattoos108
É notável que as escrituras corporais se constituam em tributos de caráter mais
intimista e biográfico do que coletivo e historicizável, eles não fazem nem ressoar a linhagem,
nem se destinam a preservar para posteridade a memória do morto. Os tributos fúnebres
tradicionais almejam que a lembrança do morto e de sua linhagem continue para além das
108
Fonte: https://www.pinterest.com/explore/memorial-tattoos/. Acesso em: 15/01/2015, tradução nossa.
217
lembranças privadas dos familiares, já as tatuagens in memoriam participam de um culto
privado dos mortos que findará com a morte de seu portador.
Figura 13
“Sempre nos meus pensamentos, para sempre no meu coração”
Fonte: Memorial tattoos109
A medida de imortalidade, o “para sempre”, é o tempo de vida do corpo tatuado, mas
que aparece em contradição como se fosse ele mesmo um suporte imortal. A eternidade
religiosa não é mais a referência absoluta, na tatuagem o eterno se inscreve no tempo
subjetivo mortal. Barthes (2009, p. 19) em sua escrita do luto traduz essa inconsistência
comum diante da morte que nos faz pensar que somos imortais, a morte é por excelência o
insimbolizável:
– Nunca mais, nunca mais!
– E no entanto, contradição: este “nunca mais” não é eterno porque
nós próprios morremos um dia.
– “Nunca mais” é um dizer de imortal.
E para finalizar, não poderíamos deixar de observar que, se o tributo fúnebre presta
uma homenagem à memória de um ser desaparecido, uma escritura corporal com essa mesma
função pode vir a se petrificar dando consistência a uma memória impossível de se deslocar,
que não faz traço: “Nesse sentido, é uma marca que não faz ausência, precisando, de alguma
maneira, ‘fazer figura’ para que, no seu enlace ao olhar do outro, possa significar outra coisa
que a materialidade do corpo” (COSTA, 2003, p. 135).
109
Fonte: https://www.pinterest.com/explore/memorial-tattoos/. Acesso em: 15/01/2015, tradução nossa.
218
Figura 14. Tatuagem R.I.P.
Fonte: In Loving Memory: Memorial R.I.P. Tattoos110
Figura 15. Tatuagem com tema religioso
“Vejo você quando eu chegar lá”
Fonte: In Loving Memory: Memorial R.I.P. Tattoos111
110
Fonte: http://becauseilive.hubpages.com/hub/In-Loving-Memory-Memorial-RIP-Tattoos.
17/03/2012.
111
Fonte: http://becauseilive.hubpages.com/hub/In-Loving-Memory-Memorial-RIP-Tattoos.
17/03/2012, tradução nossa.
Acesso
em:
Acesso
em:
219
A tatuagem, quando se mostra, tem função de enlace social, no caso específico da
tatuagem in memoriam, o se fazer reconhecer tem como ponto de partida um luto. Ora, se a
exposição ajuda a tirar o enlutado de seu isolamento propiciando a possibilidade de falar e ser
reconhecido, pode acontecer também que a exposição encalhe em mostração, isto é, pode se
tornar um acting out. Há o risco, para o sujeito, de ficar capturado por esse tributo que pode
vir a assumir a forma de um significante que passa a representá-lo no laço social: “Eu sou
aquele ou aquela que porta um tributo de luto em memória de...”.
Minha pequena abóbora, colocada perto do meu coração me ajudou a
lidar com meu pesar. Ela também serviu como um lembrete para os
outros de quando o meu coração se partiu. Eles entendem por que eu
estou sensível, sem que eu tenha que dizer uma palavra. Tatuagens
Memoriais contam a história daqueles que perdemos e são um
conforto para aqueles que foram deixados para trás.112
A marca de luto pode ser tomada como um semblante na medida em que atrai a
simpatia e compaixão dos passantes convidados a participar do luto de seu portador
produzindo um rito interminável, um lamento inconsolável a modo de um luto melancólico:
“Tu que passas, detém-te e chora”. Uma escrita do luto que não se fecha.
Vale ressaltar, entretanto que mesmo que esse tributo seja escrito com o propósito de
perenizar uma perda, a transitoriedade se impõe para tudo e todos e o tributo grafado na pele
também está condenado ao desgaste e envelhecimento. Essa segunda existência é tão
transitória quanto às lápides descritas por Goethe (2014, p. 250) em Afinidades eletivas:
Ao vermos tantas lápides afundadas na terra e gastas pelos pés dos
fiéis, e tantas igrejas desmoronadas sobre suas próprias tumbas, a vida
após a morte pode parecer-nos, então, uma segunda vida, na qual se
ingressa através de uma imagem, de uma inscrição, e na qual se
permanece mais tempo que nesta própria vida. Mas essa imagem, essa
segunda existência também se extingue, mais cedo ou mais tarde. O
tempo não cede em seus direitos sobre os homens, nem sobre os
monumentos.
Mas o maior desgaste que um tributo se expõe não se deve às vicissitudes da pedra, do
papel ou da pele, mas, mais ainda, principalmente às vicissitudes do luto, aos deslocamentos
do estatuto do morto e de seus signos, para o enlutado, ao longo do percurso do luto.
1.3 A escrita do luto no corpo
112
Fonte: http://voices.yahoo.com/memorial-tattoos-help-grieving-process. Acesso em: 20/08/2011, tradução
nossa.
220
Nascemos imersos no campo simbólico e dele dependemos. O sujeito é “servo da
linguagem, o é ainda mais de um discurso em cujo movimento universal seu lugar já está
inscrito em seu nascimento, nem que seja sob a forma de seu nome” (LACAN, 1957/2008, p.
498). É curioso o quanto o nome próprio realmente tem a potência de impregnar nosso corpo
e nos marcar feito uma tatuagem, provavelmente por essa a razão os pais gregos faziam dos
nomes dos filhos significantes dos grandes feitos da linhagem. Freud (1900/1987, p. 211)
observou a partir de um comentário recolhido de Goethe, que parecemos nos transformar nos
nomes “como se fossem nossa própria pele”.
É do campo do Outro, lugar do tesouro do significante, que recebemos o banho de
linguagem que desnaturaliza nosso corpo e o torna apto ao prazer/desprazer. A linguagem,
organizadora dos símbolos (articulados em significado e significante), nos humaniza. O
sujeito determinado pela linguagem e pela fala nasce no lugar do Outro, é de lá que se situa o
processo de subjetivação em que se recebe a “primeira assinatura”.
Lacan (1961-2/2011, p. 47), no Seminário 9, A identificação, retomou o termo ein
einziger Zug para reconsiderá-lo de outro modo, não mais somente como signo do olhar do
Outro, traço único, suporte da imagem narcísica, mas em referência à teoria dos conjuntos, ein
einziger Zug, e o traduz agora por traço unário, um significante (e não mais signo) do “um”,
da “pura diferença”. O traço em sua dimensão simbólica que inscreve o nome do sujeito e o
lança na cadeia significante: “O traço unário que, por, preencher a marca invisível que o
sujeito recebe do significante, aliena o sujeito na identificação primeira que forma o ideal do
eu” (LACAN, 1966/1998, p. 822).
O corpo pelo simbólico é desnaturalizado. A armadura do símbolo, ainda que
permeável, permite manter afastadas as imagens terrificantes de um corpo tomado como puro
e simples pedaço de carne ainda que esteja nu ou mesmo morto. Daí decorre a necessidade
dos ritos significantes, dos signos de luto (vestimentas, faixas, fitas, véus negros...) e
ornamentos corporais diversos que vão de colares às escarificações da pele. Esses recursos
formam o véu que recobrem o real da carne. O simbólico permite a transcendência
pacificadora que permite ao sujeito sustentar certa distância em suas relações com as imagens
e os objetos.
Quando perdemos alguém que nos é precioso, ficamos desestabilizados, perdemos o
“rumo e o prumo” como se diz. O luto furo no real nos atinge não apenas em nossa textura
simbólica, mas também imaginária. A imagem de si é atingida e necessita de reforço de suas
bordas para sustentar-se novamente.
221
Raramente percebemos o quanto é despedaçante um processo de luto,
na medida em que a ausência do outro nos despoja de suportes
corporais. A presença do outro é também nosso olhar e nossa voz – só
para citar alguns dos elementos corporais. Está na entonação que
emprestamos àquela, ao nos dirigirmos ao outro quando lhe falamos, e
que constrói sua presença pelas mil facetas projetivas que lhe damos.
[...] Também por essa razão é difícil reconhecer uma perda e que
demandamos que as substituições recomponham e confirmem uma
identidade desfeita (COSTA, 2011, p. 35).
Tanto Freud quanto Lacan localizaram o afeto presente na experiência de luto como
dor, uma dor vertiginosa que fere o corpo e ameaça tragar o sujeito. Lacan (1958-9/2002)
retirou da cena em que Laertes abraça, fora de si, o corpo de sua irmã morta a pura ilustração
desse luto furo no real. Freud (1917/2010) observou o esfacelamento corporal presente no luto
em forma de um abatimento doloroso tal como se sucede em uma condição de dor física. O
abatimento físico ocorre em paralelo ao árduo trabalho do eu de desprender-se tanto dos
traços de memória quanto dos liames identificatórios que o ligavam ao objeto perdido.
Allouch (2004, p. 313-15) nos legou o testemunho dessa mobilização do imaginário no
luto ao relatar os momentos logo após ter sido atingido pela notícia da morte de sua filha em
um acidente de carro:
Logo após ter sido avisado da morte de minha filha, no segundo que
se seguiu depois de modo sempre pontual nos dois ou três dias que se
seguiram, tive uma impressão corporal das mais estranhas, jamais
sentida antes, nem, aliás, depois. Meu corpo bruscamente se tornara
como que um corpo de vidro. [...] Meu corpo parecia feito de um
vidro frágil, de um cristal tão fino quanto uma folha de papel de
cigarro. Se alguém me tivesse, então, tocado bem de leve, eu teria
partido em pedaços. [...] A morte de minha filha atingia minha
identidade imaginária, e a questão então colocada é realmente vital:
vidro não tem vida.
Uma escrita do luto, seja qual for o suporte, se inscreve nessa necessidade que se
impõe de fazer convocar, de modo total e maciço, todo o jogo simbólico de modo a recompor,
não apenas o campo das identificações simbólicas, mas uma identidade imaginária esfacelada.
A convocação ao simbólico é fundamental em prover os significantes que permitam ao sujeito
reatar simbolicamente com seu corpo, pela via fálica, e não mais imaginariamente no ponto
do horror do dilaceramento-despedaçamento.
As escrituras corporais respondem para alguns – a partir da particularidade de seu luto,
de sua posição singular enquanto sujeito e de seu universo simbólico – a essa necessidade de
ritualizar o luto materializando na carne uma escrita que diga algo de uma dor inapreensível a
ponto do desmoronamento da imagem de si, como pode ser lido no relato de uma jovem:
222
Meu irmão faleceu inesperadamente [...]. Eu ainda não consigo
suportar a dor da sua perda. Estou em uso de medicação para me
ajudar a lidar. Dor tão profunda como esta deve deixar uma cicatriz
mais profunda. Eu quero uma tatuagem para que eu possa expressar
minha dor fisicamente. Eu quero que machuque para que eu possa
focar minha dor em algo tangível. Eu gostaria de um retrato, mas se
não for muito semelhante, ou pior, mal feito, vou me sentir culpada
por ter feito um memorial ruim para ele.
Eu estou perdida. Ele amava tantas coisas. Eu não consigo chegar a
uma única imagem, ou mesmo uma colagem que o represente, ou que
expresse o quão importante ele era para mim. Por favor, ajudem-me a
expressar a minha dor para que eu possa começar a me lembrar dele
com alegria.113
A escolha por uma escritura corporal do luto se conjuga com a observação de Lacan
(1958-9/2002) que no luto, parente da psicose, o sujeito responde com sua textura imaginária
quanto mais a perda se mostra radical e absoluta, isto é, aquelas em que nada pode satisfazer,
pois o morto não voltará. Diante da morte, o Outro se mostra inconsistente, ainda que todo o
conjunto de significantes seja invocado. Alguns partem, em vão, em busca da imagem ou
frase “perfeita” que possa traduzir “perfeitamente” a perda:
Eu tenho 18 anos e estava feliz com meu noivado até que ele morreu
em um acidente de carro. Eu tenho procurado pelo perfeito Eu te amo,
em tatuagem memorial, mas não tenho tido sorte. Podem me
ajudar?114
Estou tão triste de ouvir as perdas de todos aqui. Minha irmã foi
assassinada no ano X, e eu finalmente decidi que quero fazer algo em
sua memória, ela adorava tatuagens e eu acho que ela definitivamente
me diria para fazer uma, eu também as amo. Somos nativas, então eu
quero ter algo que represente a nossa cultura e nosso amor fraternal,
mas quero ter certeza de que é perfeito.115
Minha mãe faleceu há apenas dois dias, como eu não tenho nada físico
para me segurar que me lembre ela eu acho que uma tatuagem serviria
ao propósito que estou buscando. Eu estava pensando em começar
com algum tipo de cruz com os detalhes sobre meu braço esquerdo em
algum lugar, mas eu ainda não sei o que seria e nem onde eu iria
gostar. Como é para a mulher que eu mais amava na vida eu quero que
seja perfeito.116
O imaginário é chamado aonde o simbólico não se sustenta, mas o apelo ao imaginário
pode servir de suporte para que o enlace com o simbólico seja restabelecido. A tatuagem é
113
Fonte: http://becauseilive.hubpages.com/hub/In-Loving-Memory-Memorial-RIP-Tattoos.
17/03/2012, tradução nossa.
114
Fonte: http://becauseilive.hubpages.com/hub/In-Loving-Memory-Memorial-RIP-Tattoos.
17/03/2012, tradução nossa.
115
Fonte: http://becauseilive.hubpages.com/hub/In-Loving-Memory-Memorial-RIP-Tattoos.
17/03/2012, tradução nossa.
116
Fonte: http://becauseilive.hubpages.com/hub/In-Loving-Memory-Memorial-RIP-Tattoos.
17/03/2012, tradução nossa.
Acesso
em
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em
223
uma resposta possível que o enlutado lança mão para poder começar a produzir ou concluir
sua escrita do luto, mas a escrita, qualquer que seja, só escreve o que lhe é possível
representar; o que lhe escapa permanecerá indizível.
Freud (1923/1987) assinalou que o luto é um trabalho de internalização de uma perda
que nós consideramos tratar-se de uma tentativa de escrever subjetivamente o
desaparecimento de alguém. Freud (1923/1987, p. 43) considerou a identificação com os
traços do objeto perdido como uma escrita possível, já que é muito difícil abandonar de bom
grado um investimento libidinal: “Pode ser que essa identificação seja a única condição em
que o id pode abandonar os seus objetos”. A inscrição subjetiva do ser perdido pela via
identificatória permite sua conservação no eu. Diz Barthes (2009, p. 215):
Reproduzo em mim – constato que reproduzo
em mim pequenos traços da mam.: esqueço-me – das minhas chaves,
de uma peça de fruta comprada no mercado.
Falhas de memória que pensávamos que a caracterizavam (ouço as
suas queixas discretas a esse respeito), tornam-se minhas.
Pela tatuagem a escrita do ser perdido é materializada em uma parte do corpo. A
internalização do objeto é também encarnação. É curioso observar que a parte cedida à escrita
do luto, como em geral é o caso em toda tatuagem, não é uma parte qualquer, mas se enlaça
de modo singular com o morto:
Minha ideia é fazer a cruz que ele trazia em seu braço no meu braço em
algum lugar, talvez no pulso, com algum tipo de desenho com suas
iniciais e etc.117
Minha pequena abóbora, colocada perto do meu coração me ajudou a
lidar com meu pesar.118
Eu quero fazer alguma coisa para homenageá-lo, e então cada vez que
descer meu olhar para o meu pulso eu sorrirei e me lembrarei dele.119
117
Fonte: http://becauseilive.hubpages.com/hub/In-Loving-Memory-Memorial-RIP-Tattoos. Acesso em
17/03/2012, tradução nossa.
118
Fonte: http://voices.yahoo.com/memorial-tattoos-help-grieving-process. Acesso em: 20/08/2011, tradução
nossa.
119
Fonte: http://becauseilive.hubpages.com/hub/In-Loving-Memory-Memorial-RIP-Tattoos. Acesso em
17/03/2012, tradução nossa.
224
Figura 16. Tatuagem em homenagem ao pai
“Eu te amo muito! papai”
Fonte: Memorial tattoos120
“Eu perdi meu pai para um melanoma, por isso, peguei um cartão do
‘Valentine´s day’ que ele me deu e tirei a sua assinatura para tatuar no
meu pé. Agora ele pode me guiar pelos caminhos, mesmo que ele não
esteja aqui”.121
Figura 17. Tatuagem em homenagem ao pai
“Pai, sua mão guia no meu ombro ficará comigo para sempre”.
Fonte: Memorial tattoos122
120
Fonte: https://www.pinterest.com/explore/memorial-tattoos/. Acesso em: 15/01/2015, tradução nossa.
Fonte: https://www.pinterest.com/explore/memorial-tattoos/. Acesso em: 15/01/2015, tradução nossa.
122
Fonte: https://www.pinterest.com/explore/memorial-tattoos/. Acesso em: 15/01/2015, tradução nossa.
121
225
No primeiro enunciado, lê-se que a escolha da escrita do luto assim como do lugar da
tatuagem mimetizam as escolhas do morto como que dando materialidade à identificação
(imaginária) com o ser perdido. No segundo, a localização se dá perto do coração, símbolo
cultural favorito do amor. No terceiro, o lugar associa-se com o olhar na dialética ver-servisto. No quarto e no quinto é como se a tatuagem materializasse ou celebrasse o legado do
pai, os significantes que o sujeito extraiu do pai para nortear seu desejo. O quinto é bastante
curioso, trata-se de uma tatuagem chamada “verbo-corporal” em que a escrita no corpo casase perfeitamente com o enunciado (PAVEAU, 2010). Ali onde a mão do pai repousou, as
letras vêm, hoje, preencher sua ausência. A escrita do luto feita no ombro não diz que o pai lá
habita, mas que está em substituição a sua mão ausente, um tributo que presentifica pela
homenagem o pai ausente.
Ao considerarmos a tatuagem como uma escrita do luto, cabe-nos precisar o que nesse
estudo estamos considerando como escrita. Nosso conceito é baseado na proposta de Steven
R. Fischer conforme aparece em História da escrita. Segundo o autor uma “escrita completa”
é definida como aquela que preenche três requisitos básicos:
– tem como objetivo a comunicação;
– consiste de marcas gráficas artificiais sobre um suporte durável;
– usa marcas voltadas convencionalmente para articular a fala de maneira que a
comunicação seja alcançada.
Porém, segundo o autor, algumas expressões gráficas podem ser consideradas como
escrita, mesmo quando não preenchem todos os requisitos, às vezes só atingem um só, como é
o caso da escrita antiga. Nesses casos, trata-se de “escrita” no sentido amplo, algum tipo de
comunicação está ocorrendo ainda que de modo limitado ou ambíguo. Portanto, apesar de
nem sempre satisfazer os três requisitos, uma expressão gráfica pode ser considerada uma
escrita, como pensamos ser o caso da tatuagem.
Em relação à escrita do luto no corpo, percebemos que há diferentes modos de se
escrever. Isolaremos aqui apenas dois casos: há uma que serve para dar consistência a uma
perda; e outra que serve para passar-se a outra coisa. Em uma, trata-se mais de uma escrita a
modo de uma figura, um pictograma, que petrifica uma memória que não se desloca e que, em
vez de estar no lugar do ausente, ela o faz consistir. Em outra, a escrita se constitui em traço
de memória, um rébus que permite deslocamentos, condensações e toda a possibilidade de
equívoco comum ao jogo significante. Toda a diferença que pode haver entre uma imagem e
um significante, entre uma mostração fotográfica e uma narrativa.
226
Porém, fazemos a ressalva de que com isso não queremos dizer que uma tatuagem em
forma de imagem (p. ex., um retrato realista) se constitua em uma figura pétrea e que todo
enunciado implique em elaboração, pois um enunciado pode ser tomado de modo tão pétreo
quanto uma imagem, assim como uma imagem pode assumir todo um valor simbólico. Se
essa marca é figura pétrea ou rébus, ou algo entre os dois ou ainda outra coisa, seu sentido
depende do tatuado. O estatuto da tatuagem somente ele pode enunciar, um estatuto que
certamente sofrerá modulações ao longo de seu percurso de luto. A seguir, eis algumas
escritas de luto que tanto podem estar em um caso ou outro, deixamos em aberto, pois faltanos a narrativa daqueles que a produziram.
Figura 18
“Sempre comigo”
Fonte: In Loving Memory: Memorial R.I.P. Tattoos123
123
Fonte:
17/03/2012.
http://becauseilive.hubpages.com/hub/In-Loving-Memory-Memorial-RIP-Tattoos.
Acesso
em
227
Figura 19
Fonte: In Loving Memory: Memorial R.I.P. Tattoos124
Figura 20
Soldado britânico escreveu no corpo os nomes dos companheiros
mortos nas guerras recentes do Oriente Médio
Fonte: Memorial tattoos125
124
Fonte: http://becauseilive.hubpages.com/hub/In-Loving-Memory-Memorial-RIP-Tattoos. Acesso
17/03/2012.
125
Acesso em: Fonte: https://www.pinterest.com/explore/memorial-tattoos/. Acesso em: 15/01/2015.
em
228
Figura 21
“Quando alguém amado se torna uma memória, a memória se torna um tesouro”
Fonte: Memorial tattoos126
Figura 22
A frase foi extraída de um velho cartão postal dado pelo pai e que diz:
“ps: you will always be my baby girl" [ps: você sempre será minha garotinha].
Fonte: Memorial tattoos127
126
Acesso em: Fonte: https://www.pinterest.com/explore/memorial-tattoos/. Acesso em: 15/01/2015, tradução
nossa.
127
Fonte: https://www.pinterest.com/explore/memorial-tattoos/. Acesso em: 15/01/2015, tradução nossa.
229
Figura 23
“Somente partimos para nos encontrarmos novamente”
Fonte: Memorial tattoos128
Extraímos esses dois modos de escrita do luto da concepção freudiana de escrita
onírica. Na narrativa de um sonho aparecem duas escritas diferentes de um mesmo assunto,
uma “original” e outra a “tradução”, em outras palavras, há o “conteúdo latente” (os
pensamentos dos sonhos) e o “conteúdo manifesto” (aquele que se apresenta em nossa
memória), respectivamente (FREUD, 1900/ 1987, p. 270). O conteúdo manifesto transcreve
em outro tipo de linguagem os pensamentos oníricos.
O conteúdo do sonho [...] é expresso, por assim dizer, numa escrita
pictográfica cujos caracteres têm que ser individualmente transpostos
para a linguagem dos pensamentos do sonho. Se tentássemos ler esses
caracteres segundo seu valor pictórico, e não de acordo com sua
relação simbólica, seríamos claramente induzidos ao erro (FREUD,
1900/1987, p. 270).
O sonho tem a estrutura de um rébus e deve ser analisado como tal. A observação de
Freud casa com a concepção de Fischer (2009, p. 31) que considera que, na história da escrita,
“o princípio rébus é a chave da transição do pictograma para a escrita plena”. Nesse sentido, a
expressão gráfica pictográfica seria um modo primitivo de escrita, uma “pré-escrita”.
Lacan (1966/1998) em sua leitura da Interpretação dos sonhos considera que, se o
sonho tem a estrutura de um rébus, portanto de um significante, o sonho da criança
representaria a escrita ideográfica original, enquanto os sonhos dos adultos já se constituem
128
Fonte: https://www.pinterest.com/explore/memorial-tattoos/. Acesso em: 15/01/2015, tradução nossa.
230
em elaborações da forma original que empregam simultaneamente todo o jogo fonético e
simbólico dos significantes.
Mas isso é apenas a decifração do instrumento. É na versão do texto
que o importante começa, o importante que Freud nos diz ser dado na
elaboração do sonho, isto é, em sua retórica. Elipse e pleonasmo,
hipérbato ou silepse, regressão, repetição, aposição, são esses os
deslocamentos sintáticos, e metáfora, catacrese, antonomásia,
alegoria, metonímia e sinédoque, as condensações semânticas em que
Freud nos ensina a ler as intenções ostentatórias ou demonstrativas,
dissimuladoras ou persuasivas, retaliadoras ou sedutoras com que o
sujeito modula seu discurso onírico (LACAN, 1966/2008, p. 268-9).
Uma escrita do luto que petrifica uma memória não modulável corresponde a essa
escrita ideográfica original inanalisável porque não contém uma elaboração com relação a si
mesma, elas permanecem imagens idênticas a si mesmas, tal como uma letra. Enquanto que
uma escrita ao modo de um traço significante é transcendente a essa forma original e aberta
aos deslizamentos próprios da cadeia significante.
No Seminário 9, A identificação, Lacan (1961-2, p. 88-9) cita, a partir da leitura de um
livro sobre a história da escrita (de James Février), o advento desta como uma transformação
da imagem em traço, ou melhor, a passagem da imagem à letra:
[...] Fala-se de ideograma ou ideografismo, o que quer dizer isso?
O que vemos sempre cada vez que se pode fazer intervir esta etiqueta
de ideograma é algo que se apresenta como, de fato, muito próximo de
uma imagem, mas que se torna ideograma na medida em que perde,
em que se apaga cada vez mais este caráter de imagem. [...] Pois são,
de fato, traços que saem de algo que, em sua essência, é figurativo, e é
por isso que se crê que é ideograma, mas é um figurativo apagado,
usemos a palavra que nos vem aqui forçosamente ao espírito,
recalcada, ou mesmo rejeitada. O que fica é algo da ordem daquele
traço unário enquanto funciona como distintivo, enquanto pode, no
momento, desempenhar o papel de marca.
A escrita psíquica também opera essa passagem do registro de imagem que se apaga
para o significante, do pictograma para o rébus significante. É o deslocamento da marca
apagada para o significante que abre para o sujeito a cadeia simbólica, e é somente a partir
dela que um fenômeno se abre à análise: “Um fenômeno só é analisável caso represente outra
coisa que ele próprio” (LACAN, 1953/2005, p. 22). Apresentamos abaixo alguns enunciados
que declaram a presença desses elementos simbólicos que fazem da escrita do luto outra coisa
que não ela mesma:
Meu irmão morreu na tenra idade de 16 anos de câncer no ano X. A
sua morte foi difícil para mim, e em sua honra e para lidar com sua
perda no futuro estou tatuando em meu pulso esquerdo, agora que
tenho 18 anos, um pássaro começando a voar, para simbolizar o meu
231
futuro. No meu pulso direito eu estou tatuando um pássaro pousando
para simbolizar sua morte e que ele estará para sempre em minha
memória, aninhado no meu coração.129
Na data X, quatro adolescentes foram mortos por um motorista
bêbado em uma manobra que deu errado. Eu conhecia os quatro, mas
dois deles eram amigos muito próximos. Z, 15, e Y, 16 (em breve
dezessete). Eu tenho uma tatuagem na parte de trás do meu pescoço,
uma flor de lótus com um símbolo do Om no meio. O lótus representa
o renascimento em beleza a partir da sujeira e da tragédia. Ele também
representa o conhecimento que eu ganhei, um monte por causa destes
queridos amigos. O Om representa a ressonância do som no universo,
o som que faz com que tudo esteja conectado. Todos nós somos um,
todos iguais, todos merecedores de amor e respeito.130
Meu irmão faleceu quando eu tinha 12 anos eu tenho agora 24. Eu fiz
uma tatuagem memorial no ano passado com algumas penas brancas
voando. Sempre me disseram quando criança que se você vir uma
pena branca no chão significa que seu anjo da guarda está cuidando de
você. Eu gostei desse significado e eu o trouxe para o projeto. Este
ano eu estou tatuando uma lembrança para minha mãe, que morreu no
ano X. Estou tatuando um pardal com algumas papoulas e ervilha
doce, e a citação “sempre comigo”. Obviamente papoula é a flor da
lembrança e meu vestido no funeral tinha papoulas e eu usava um
broche de papoula de minha mãe. Eu acho que se você está recebendo
uma tatuagem memorial é uma bela ideia atá-la à sua vida com essa
pessoa para que você possa olhar para trás com carinho para o tempo
que esteve com elas.131
Importa-nos realçar que o estatuto de uma escrita do luto no corpo deve ser lida em
sua singularidade e particularidade. A princípio deve ser tomada com o valor de marca, uma
marca não tem sentindo nenhum por si mesma, ela carrega apenas a potência de sentido. Não
é possível saber a priori se ela é figura pictográfica, rébus ou signo (como marca de gozo);
quem vai determinar isso é o sujeito tatuado. Acreditamos também que o valor da marca
mantém relação intrínseca com o percurso do luto. Se o estatuto do morto sofre
transformações ao longo de um luto, a marca inevitavelmente também apresentará
deslocamentos.
Para concluir, é interessante observar que se para alguns a escrita do luto no corpo
aparece como um recurso bastante eficaz, para outros transparece o fracasso de tratar seu luto
através dessa escrita que, por isso mesmo, não cessa. Torna-se uma escrita necessária por não
ser elaborativa, não cessando de se escrever no corpo.
129
Fonte: http://becauseilive.hubpages.com/hub/In-Loving-Memory-Memorial-RIP-Tattoos.
17/03/2012, tradução nossa.
130
Fonte: http://becauseilive.hubpages.com/hub/In-Loving-Memory-Memorial-RIP-Tattoos.
17/03/2012, tradução nossa.
131
Fonte: http://becauseilive.hubpages.com/hub/In-Loving-Memory-Memorial-RIP-Tattoos.
17/03/2012, tradução nossa.
Acesso
em
Acesso
em
Acesso
em
232
Meu irmão morreu um ano atrás, em sua memória, eu fiz uma
tatuagem com o nome dele e olhos azuis chorando era assim que todas
as garotas o chamavam “olhos de anjo”, esta semana para marcar seu
aniversário eu vou fazer uns olhos azuis nas minhas costas.132
Eu tenho duas tatuagens memoriais. A primeira que eu fiz foi para
minha filha que faleceu de uma cardiopatia congênita. Ela tinha 21
horas de vida. É uma cruz com uma rosa e uma bandeira que tem o
seu nome. Eu amo esta tatuagem, mas decidi que quero fazer mais
com ela e adicionar as datas de seu nascimento e morte e também
fazer dela um completo meio-braço. Eu quero incorporar “Alis Volat
propriis” que é traduzido do latim como “Voa com suas próprias
asas”. Eu acho que é muito apropriado.133
A escrita do luto não cessa enquanto o luto não se encerrar como ato sacrificial
gracioso, sugere Allouch (2004). O trabalho de luto somente se encerra via um ato em que o
sujeito sacrifica, em suplemento à perda sofrida, um pequeno pedaço de si. Apesar de uma
tatuagem poder ser oferecida como uma escrita do luto com o “valor de um precioso pedaço
de si sacrificado [...] ainda é preciso que as coisas terminem com a perda sacrificial, que no
lugar mesmo dessa perda elas não repercutam” (ALLOUCH, 2004, p. 388). Sem esse ato, a
relação com o morto não se desloca uma vez que o sujeito não consegue efetivamente se
separar. O pequeno pedaço de si seguraria o sujeito junto ao morto de tal modo que a escrita
do luto não se fecha em –(1+a) e o pequeno “a” permanece flutuante.
132
Fonte: http://becauseilive.hubpages.com/hub/In-Loving-Memory-Memorial-RIP-Tattoos.
17/03/2012, tradução nossa.
133
Fonte: http://becauseilive.hubpages.com/hub/In-Loving-Memory-Memorial-RIP-Tattoos.
17/03/2012, tradução nossa.
Acesso
em
Acesso
em
233
2. O RITO (FÚNEBRE) INDIVIDUAL DO NEURÓTICO: A TATUAGEM IN
MEMORIAM
As novas expressões de luto povoam o espaço público a modo de um bricolage ritual,
a partir de ingredientes diversos. Allouch (2004, p. 294) ressaltou no luto moderno, essa
maneira particular de se ritualizar o pesar.
O luto moderno [...] é gracioso sacrifício. E poderemos ser sensíveis,
lendo Ôe, a essa maneira que tem a história mais particular de ser
também um rito. Tudo se passa como se o enlutador, na história de seu
luto, devesse juntar-se ao rito, encontrar por um viés não codificado,
não ritual, a possibilidade de que se exerça a função do rito.
Em outro capítulo propusemos que a eficácia do rito fúnebre se faz a partir de quatro
fatores essenciais: as representações reorganizadoras do sistema simbólico; a convocação da
participação de um público; a ação ritual produtora de vivências intensas e purgativas; e o
fator temporal necessário para que uma mudança se processe.
Consideramos que o rito que concerne a tatuagem começa desde os trâmites de sua
produção até a sua exposição pública, essas etapas comportam, em menor ou maior grau,
esses quatro fatores. Vejamos: trata-se de um procedimento que faz convocar os significantes
e imagens postos em jogo no luto, a tatuagem é produzida a partir dos elementos disponíveis
no universo simbólico do sujeito; há necessariamente a participação de terceiros, no mínimo a
presença do tatuador e depois, para aqueles que expõem a tatuagem, há a convocação do
público; a ação ritual é realizada em um dispositivo sacrificial em que a dor física assume
funções catárticas; por fim, o fator temporal, a tatuagem é produzida em etapas que incluem
desde a escolha do tatuador, a escolha do tributo a ser grafado, o tempo de sua realização e
acabamento final e por fim sua exposição que pode incluir diferentes meios e públicos.
É sob essa visão que propomos que a produção de uma tatuagem in memoriam é a
realização de um rito individual do neurótico, um modo particular de ritualizar o luto, em
outras palavras, um tratamento possível para uma perda-furo-no-real pelo simbólico. Tatuarse serve tanto para escrever algo dessa perda, uma escrita possível de luto, quanto para prestar
tributo à sua memória.
Vimos com Hertz (1907/1960) e Gennep (1909/2011) que a morte e o luto não são
acontecimentos instantâneos, a separação se dá em etapas. Os ritos de passagem seguem um
movimento sequencial composto de três tempos: separação, margem e agregação. Nos ritos de
luto predominam o tempo de margem (tempo liminar), tempo de elaboração da perda em que
os indivíduos saem mediante os ritos de reintegração social. Os ritos fazem suspender o
234
tempo para que o luto possa ser vivido como um percurso operador de mudanças na relação
com o morto, o luto tem início-meio-fim.
A partir dos relatos encontrados, considera-se que a produção da escrita do luto no
corpo tem assumido o valor de um rito de passagem contemporâneo, ela se inscreve nessa
demanda por um rito que venha marcar simbolicamente a perda de alguém significativo no
campo das relações sociais. Enquanto rito que realiza simbolicamente uma mudança de status,
a produção da tatuagem pode ter efeito “libertador”, conforme um relato:
Esta tatuagem me ajudou muito com luto, nos quatro anos antes de ter
a tatuagem, eu estava realmente perdida e sentia que a esqueceria de
alguma forma. Depois de obter essa tatuagem e ter sentado naquela
cadeira durante 2 horas, eu senti como se tivesse um pedaço dela que
poderia levar comigo sempre, e eu adoro quando as pessoas me
perguntam sobre isso, porque então eu posso dizer-lhes o seu
significado. Eu sabia que a dor que eu sentiria naquele momento
nunca atingiria a dor que eu senti aos 14 anos [época em que sua mãe
morreu], mas que de alguma forma me libertou e me deixou saber que
eu poderia seguir em frente.134
Em alguns relatos encontrados, vários membros da família (ou mesmo a família
inteira) realizaram o “rito de se tatuar” reproduzindo a mesma imagem. É como se esse rito e
a marca produzida assumissem o valor de pacto entre os viventes, reunindo-os em torno da
perda-marca.
Meu irmão se suicidou há 9 meses – ele pegou todos de surpresa. Ele
era um homem tão forte e escondeu a dor tão bem, ele era muito
amado e teve mais de 400 pessoas em seu funeral. [...] Após seu
falecimento, meus pais, irmã e eu fizemos uma tatuagem sobre os
nossos corações com seu apelido em um coração com asas. No topo
da tatuagem diz “Com grande amor” e, na parte inferior, como que
envolvendo, diz “Vem grande perda”. Eu sei que ele está sempre
comigo e eu não preciso de um lembrete, mas por alguma razão, isso
me dá um pouco de conforto, quando nada mais pode, ao tê-la lá para
ler e saber o quanto ele está perto de meu coração.135
Porém, ainda que se trate de um “rito de passagem”, não é garantido que a sua simples
realização possa operar uma mudança subjetiva. O rito per si, sagrado ou reconfigurado a
modo de um bricolage, não garante nada; a passagem ou separação (do objeto perdido) é um
ato do sujeito. É possível, portanto, que a produção de uma tatuagem se configure em rito de
passagem, marcando simbolicamente uma separação, mas não está garantido que assim será.
Pode ser que para alguns esse rito individual sirva mais como um “rito de apaziguamento” do
134
Fonte: http://voices.yahoo.com/memorial-tattoos-help-grieving-process. Acesso em: 20/08/2011, tradução
nossa.
135
Fonte: http://becauseilive.hubpages.com/hub/In-Loving-Memory-Memorial-RIP-Tattoos. Acesso em
17/03/2012, tradução nossa.
235
que de passagem. Ele pode operar de modo catártico aliviando momentaneamente uma dor
vertiginosa, mas não ser eficaz no sentido de favorecer uma mudança subjetiva, promovendo
a separação do objeto perdido.
Como todo rito, sua eficácia depende da imersão de seus protagonistas em sua
“magia”, ou seja, ele opera a partir de um sujeito mergulhado em um sistema simbólico que o
valida. Se a produção de uma tatuagem in memoriam é eficaz para alguns, isso não significa
ser prescritível para todos. Até as tatuagens in memoriam podem incorrer na prescrição.
[...] fiz uma tatuagem em sua memória com uma cruz e fita que a perpassa
com o seu nome, foi a primeira vez que eu parei de chorar e ela é um
lembrete constante que ele está sempre comigo. No ano passado eu
acrescentei flores de Tiaré, uma flor que tem muitos significados, de pureza
ao começar com frescor. Muitas pessoas me julgaram por ter feito uma
tatuagem, mas eu estou feliz por tê-la feito, ela conta a história de uma
parte da minha vida. Eu recomendo a tatuagem para as pessoas que precisam
de encerramento ou de um símbolo de que você nunca vai esquecer.136
Quando Freud aproximou os atos do neurótico obsessivo do rito religioso, ele
observou que se tratava também de um rito particular, mas com fins de defesa. Um rito
individual do neurótico certamente, mas que não resolve nada. Se ele apazigua
momentaneamente a angústia ante um real impossível de simbolizar, ele também é
necessariamente um rito repetido, repetido, repetido. Um rito necessário – “o que não cessa de
se escrever” (LACAN, 1972-3/2010, p. 188) –, por não ser elaborativo.
Do mesmo modo, a produção de uma tatuagem in memoriam como rito individual do
neurótico pode servir como tratamento possível da angústia, um “rito de apaziguamento” (o
que não é pouco), mas não elaborativo, isto é, propiciatório da separação em jogo, ainda que
envolva sacrifício. Ao contrário, ele pode se constituir em um modo de preservar o objeto,
não o deixando cair, partir. Daí pode decorrer a necessidade de recorrência a esse tipo rito e a
escrita do luto não se conclui. Aprendemos com os estudos antropológicos que um rito que
encerra (em geral com um grande festim) deixa de ser necessário liberando os vivos para
cuidarem de outros assuntos que não os dos mortos.
136
Fonte: http://becauseilive.hubpages.com/hub/In-Loving-Memory-Memorial-RIP-Tattoos.
17/03/2012, tradução nossa.
Acesso
em
236
2.1 A dimensão do sacrifício na produção da tatugem
No estudo Sobre o sacrifício, Mauss e Hubert (1899/2013, p. 21) formulam a ideia de
que o “sacrifício é um ato religioso que mediante a consagração de uma vítima modifica o
estado da pessoa moral que o efetua ou de certos objetos pelos quais ela se interessa”.
Mediante o ritual de sacrifício, a pessoa do sacrificante é afetada:
No sacrifício a consagração irradia-se para além da coisa consagrada,
atingindo, entre outras coisas, a pessoa moral que se encarrega da
cerimônia. O fiel que forneceu a vítima, objeto de consagração, não é
no final da operação o que era no começo. Ele adquiriu um caráter
religioso que não possuía, ou se desembaraçou de um caráter
desfavorável que o afligia; elevou-se a um estado de graça ou saiu de
um estado de pecado. Em ambos os casos ele é religiosamente
transformado (MAUSS; HUBERT, 1899/2013, p. 17).
O sacrifício religioso implica em uma transformação tal na pessoa do sacrificante que
ele não sai de lá da mesma forma. Ele tornou-se “sagrado”, instituindo o sacrum facere, o
fazer-se ou tornar-se separado para Deus. Realiza-se, portanto uma separação. Lacan (19589/2002) propõe essa mesma espécie de sacrifício radical como parte essencial da constituição
do objeto no desejo. Somente o sacrifício do falo, precisamente de “ser o falo”, transforma o
sujeito em desejante.
O sacrifício é um tema bastante frequente no que diz respeito à tatuagem, pois sua
realização não se faz sem a marcação dolorosa de uma parte do corpo. Nos ritos de passagem,
as mudanças de status são geralmente acompanhadas de dor física e/ou moral. No rito, uma
das funções da dor é produzir um efeito catártico transformador, a dor física marca no
imaginário do corpo que uma mudança aconteceu. Há aqueles que fazem das marcações
corporais um modo de gozo, tema ao qual não nos dedicaremos, mas que cabe ressaltar que,
em muitos casos, é o gozo que jaz na produção incessante de tatuagens e/ou outras marcas
corporais.
Em relação à tatuagem em situação de luto, alguns enunciados deixam entrever a ideia
de que a dor física é um componente atrativo ou mesmo decisivo na opção por este tipo de
escrita:
Meu irmão faleceu inesperadamente [...]. Eu ainda não consigo
suportar a dor da sua perda. Estou em uso de medicação para me
ajudar a lidar. Dor tão profunda como esta deve deixar uma cicatriz
mais profunda. Eu quero uma tatuagem para que eu possa expressar
minha dor fisicamente. Eu quero que machuque para que eu possa
focar minha dor em algo tangível.137
137
Fonte: http://becauseilive.hubpages.com/hub/In-Loving-Memory-Memorial-RIP-Tattoos.
17/03/2012, tradução nossa.
Acesso
em
237
Eu queria sentir a dor da tatuagem porque eu estava entorpecida por
dentro. Eu precisava me punir um pouco por não ter sido capaz de
lidar com a gravidez. Principalmente eu buscava algo que pudesse
focar minha dor desde que eu não tinha túmulo para visitar.138
A verdade é que eu queria que a tatuagem fosse dolorosa. Eu queria
uma manifestação física da dor emocional que eu estava sofrendo.
Mas ela realmente tem me ajudado a me sentir melhor.139
Eu sabia que a dor que eu sentiria naquele momento nunca atingiria a
dor que eu senti aos 14 anos [época em que sua mãe morreu], mas que
de alguma forma me libertou e me deixou saber que eu poderia seguir
em frente.140
A dor física dá contorno e localização a uma dor sentida como difusa, inexprimível ou
indizível que se mostra processável simbolicamente a partir de uma montagem ritual
significante e da produção de uma cicatriz-marca. A dor pode ter finalidade expiatória quanto
mais o sujeito se considerar em dívida com aquele que morreu, fato mais que constatável nos
casos extremos tal como suicídio. Se a dor física é um ingrediente necessário à escrita do luto,
as agulhas se mostram mais atrativas do que uma simples caneta. O corpo é machucado à
medida que nele se produz a escrita como que operando no real da carne uma tentativa de
separação simbólica. Para além da escrita, importa, portanto, demarcar um lugar onde a dor
possa se materializar e se descarregar, fabricando um landmark ab-reativo.
Minha irmã faleceu em 9 de janeiro e tenho pensando em fazer uma
tatuagem para ela, mas não sei o que ou mesmo onde... Eu odeio
agulhas, mas sinto como se eu precisasse fazer isso. Estou pensando
no meu ombro direito. Mas se eu receber alguma ideia .. se alguém
tiver alguma ideia o e-mail é...141
Ah, e eu odeio agulhas também. Mas, para que eu possa sempre ter
uma memória dele e ele vai sempre ser trazido à tona quando as
pessoas pergutarem da tatuagem... eu vou fazê-la e morro de medo de
agulhas [...].142
Mauss e Hubert (1899/2013, p. 31) destacaram no rito sacrificial a importância da
figura do “sacrificador”:
138
Fonte: http://voices.yahoo.com/memorial-tattoos-help-grieving-process. Acesso em: 20/08/2011, tradução
nossa.
139
Fonte: http://voices.yahoo.com/memorial-tattoos-help-grieving-process. Acesso em: 20/08/2011, tradução
nossa.
140
Fonte: http://voices.yahoo.com/memorial-tattoos-help-grieving-process. Acesso em: 20/08/2011, tradução
nossa.
141
Fonte: http://becauseilive.hubpages.com/hub/In-Loving-Memory-Memorial-RIP-Tattoos. Acesso em
17/03/2012, tradução nossa.
142
Fonte: http://becauseilive.hubpages.com/hub/In-Loving-Memory-Memorial-RIP-Tattoos. Acesso em
17/03/2012, tradução nossa.
238
Há sacrifícios em que não participam outros atores senão o
sacrificante e a vítima. Mas em geral ninguém ousa se aproximar
diretamente e sozinho das coisas sagradas, por serem muito graves e
elevadas. É necessário um intermediário ou pelo menos um guia: o
sacerdote. Mais familiarizado com o mundo dos deuses, ao qual está
em parte vinculado por uma consagração prévia, ele pode abordá-lo
mais de perto e com menos temor do que o leigo, que possui máculas
talvez desconhecidos. Ao mesmo tempo ele evita que o sacrificante
cometa erros funestos.
No mundo da tatuagem o lugar do sacrificador é ocupado pelo tatuador. Hoje alguns
tatuadores são considerados como verdadeiros artistas versados na body art. Stefano
Alcantara, uma celebridade em termos de tatuagens realistas [tattoo portraits], invocou em
uma entrevista seus “poderes xamânicos” que permitem trazer de “volta à vida” um ser
desaparecido em forma de tatuagem: “Por um momento, não parece que eu estou dando uma
tatuagem para a pessoa, é mais como se eu estivesse trazendo um ser amado de volta a vida”
(KAKOULAS; KAPLAN, 2011, p. 96).
No cerimonial de tatuagem, o tatuador assume o papel de um moderno xamã (ou
psicopompo ou sacerdote) que age como um mediador que reorganiza a desordem ao oferecer
uma linguagem – a escrita no corpo – por meio da qual o sujeito pode expressar seu pesar.
Além disso, ao manipular o corpo, o xamã-tatuador oferece não apenas uma escrita-marca,
mas a vivência intensa do processo através da dor que tende a provocar um efeito terapêutico
catártico.
Costa (2010) destacou, na produção da tatuagem, uma indeterminação que aparece no
próprio modo de se nomear o ato de tatuar. Em português costumamos falar “eu me tatuei”
apesar da tatuagem ser feita por outra pessoa. Essa enunciação por si só já denota certa
indistinção entre as posições tatuado-tatuador. Na identificação com o tatuador, tornado um
duplo do sujeito, a experiência é vivida como sendo produzida pelo próprio sujeito, seja a dor
ou a escrita do luto.
Além da presença do tatuador-xamã, em geral, as pessoas costumam convidar
acompanhantes solidários, amigos e/ou familiares, para testemunhar o processo. Ebon
Hackett, outro tatuador famoso, relatou em entrevista, o que geralmente vê acontecer durante
o processo de produção de uma tatuagem in memoriam:
[...] cada um traz pelo menos uma pessoa consigo, parece que aí elas
podem falar e se lembrar da situação. Geralmente, elas só se lembram
das coisas engraçadas, as coisas boas enquanto falam e a tatuagem é
feita. Posso dizer, de modo geral, o quanto elas amam, ou quão
239
catártico a tatuagem é quando chega no final e elas derramam
lágrimas.143
Abaixo um depoimento de uma jovem que levou seu melhor amigo para assisti-la:
No dia seguinte [à morte do noivo], depois que eu saí do hospital eu fui a
uma loja de tatuagem com o meu melhor amigo e fiz uma tatuagem em sua
memória com uma cruz e fita que a perpassa com o seu nome, foi a
primeira vez que eu parei de chorar e ela é um lembrete constante que ele
está sempre comigo.144
Nesse rito de luto, a participação de terceiros não se restringe à posição de
testemunhas. Tal como o coro antigo, os terceiros prestam assistência aos protagonistas da
cena validando as representações evocadas, mediando as situações afetivas críticas e
provendo palavras de conforto e incentivo. No suporte desses terceiros, o sujeito encontra
amparo e reconhecimento de sua dor, de seu luto. E para aqueles que decidem expor suas
escritas do luto, o rito não se encerra ao fim da produção da tatuagem. A exposição faz
convocar um público ao qual o tributo se lança pedindo deciframento, leitura e por esse meio
passa à palavra, alcança reconhecimento e, enfim, pode tornar-se uma experiência narrável.
Nesse rito privado do neurótico, podemos contar uma série de personagens: o morto, o
enlutado, o tatuador, os terceiros próximos, o público e a morte. A posição destes não é fixa e
tende a se deslocar ao longo de um percurso de luto. Essa experiência faz operar uma função
básica do rito que é requerer um público, retirando o enlutado do isolamento. É dizer de outro
modo que o luto requer a presença de terceiros, não se faz sem testemunhas.
2.2 A exposição: scripta manent e scripta volant
Ressaltamos ao longo desse estudo, a observação extraída de Ariès (1981) que o luto,
por longos séculos, era uma experiência mais social do que privada. Os ritos eram os
responsáveis por canalizar o pesar que se expressava junto a um público participante. O luto
não se fazia solitariamente. A demanda por novos modos de expressar o pesar nos espaços
sociais se insere em um contexto de dessacralização da morte no ocidente e a consequente
desritualização do luto e esvaziamento da participação do público. Se os seculares ritos
fúnebres soam caducos para as novas gerações, cabe-lhes reconfigurá-los com a criatividade
143
Fonte: http://voices.yahoo.com/memorial-tattoos-help-grieving-process. Acesso em: 20/08/2011, tradução
nossa.
144
Fonte: http://becauseilive.hubpages.com/hub/In-Loving-Memory-Memorial-RIP-Tattoos. Acesso em
17/03/2012, tradução nossa.
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de um bricoleur combinando a história singular com os elementos oriundos do universo
simbólico onde ela se desenrola.
A versão de luto proposta por Allouch (2005, p. 1) retifica, no campo psicanalítico, a
importância da participação do público na efetuação do luto: “O luto, dissemos, é um ato
sacrificial. Ele não é, portanto, em essência, um trabalho; ele é um ato (que pode bem
comportar um certo trabalho), e como tal social”. A exposição dada a uma escrita do luto
pode funcionar como uma espécie de véu negro que transforma seu portador em narrador, isto
é, alguém que não apenas expõe uma marca de luto, mas, e principalmente, alguém que tem
algo a dizer sobre a sua experiência de perda. Recolhemos de Ricoeur (2012, p. 4) a
observação colocada em epígrafe nessa parte final do trabalho que “somente os enlutados
serão consolados”. A fala abre a via pela qual uma experiência pode ser partilhável,
reconhecida por outros sujeitos.
Uma tatuagem memorial para aquele que você perdeu pode ajudá-lo a
se curar. A dor física representa a dor que você sente por dentro. A
tatuagem é um memorial que vai ficar com você para sempre.
Algumas pessoas as consideram como algo privativo. Outros querem
que sejam vistas e que perguntem o que elas significam. Ao
compartilhar a memória de um ser amado, elas trazem esse ser de
volta à vida. Minha primeira tatuagem foi um memorial para o meu
bebê, meu filho que nunca nasceu...145
Esta tatuagem me ajudou muito com luto, os quatro anos antes de eu
ter a tatuagem eu estava realmente perdida e sentia que eu a
esqueceria de alguma forma. Depois de obter essa tatuagem e ter
sentado naquela cadeira durante 2 horas, eu senti como se tivesse um
pedaço dela que eu poderia levar comigo sempre e eu adoro quando as
pessoas me perguntam sobre isso, porque então eu posso dizer-lhes o
seu significado.146
Hoje os escritos de modo geral migraram do suporte de papel para o suporte digital, o
mesmo se observa em relação às escritas do luto no corpo cujas imagens adentraram as redes
sociais virtuais. A publicação da tatuagem in memoriam muitas vezes vem acompanhada de
algum breve comentário. Geralmente curto e espontâneo, o enunciado tende a obter
reconhecimento recebendo de volta inúmeros comentários oriundos de qualquer parte do
planeta. Nos sites pesquisados, alguns comentaristas se mostram desejosos de partilhar suas
tatuagens e experiências de perda assim como oferecer palavras de conforto, outros vêm em
busca de ajuda e inspiração para produzir o seu tributo memorial.
145
Fonte: http://voices.yahoo.com/memorial-tattoos-help-grieving-process. Acesso em: 20/08/2011, tradução
nossa.
146
Fonte: http://voices.yahoo.com/memorial-tattoos-help-grieving-process. Acesso em: 20/08/2011, tradução
nossa.
241
[...] Ele [avô] era meu melhor amigo, meu herói, e um pai para mim.
Vou fazer uma tatuagem amanhã e estou em dúvida sobre o que fazer.
A tatuagem vai ser no meu pulso, estou pensando em talvez por "Per
sempre il mio eroe Papa Y." O que significa – para sempre meu herói
Papa Y em italiano. Mas eu não estou 100% certa. Alguém tem
alguma boa idéia para uma tatuagem no pulso? Eu quero fazer algo
em homenagem a ele, e também toda vez que eu olhar para o meu
pulso vai me fazer sorrir e me lembrar dele. Obrigada a todos.147
Essa é uma história comovente, obrigado por compartilhar. Eu perdi
minha querida avó de câncer de mama no ano X, e eu também sei
como é a dor de não chegar a tempo para dizer adeus. Sinto muito que
você teve que passar por isso em uma idade tão jovem. Seu avô está
sempre com você, eu sonho com a minha avó o tempo todo e nos
sonhos ela está sempre feliz e com aspecto saudável, o completo
oposto de como ela parecia no final. Eu ainda a sinto comigo e sei que
ela está olhando por mim. Nunca se esqueça que o amor é mais forte
que a morte. Acho que “Para sempre meu herói, papa Y” em italiano é
uma excelente ideia.148
Oi meu nome é Z eu tenho 13 anos e meu pai acabou de morrer alguns
meses atrás e quando eu completar 16 anos eu quero fazer uma
tatuagem para me lembrar dele. É cedo para pensar sobre isso, mas eu
realmente quero pensar sobre o que eu vou fazer e eu preciso de algo
especial alguma ideia?149
Meu avô que me criou desde que eu tinha 18 meses de idade faleceu
há poucos dias e eu realmente quero que a minha primeira tatuagem
seja em sua memória. Alguém tem alguma ideia?150
Eu adoraria ter uma tatuagem memorial para a minha mãe. Ela faleceu
no ano X. Ela amava orquídeas, mas fica bem se eu tatuar orquídeas
no em meu corpo (já que eu sou um cara)??? suas sugestões são bemvindas e muito apreciadas.151
Observa-se que esse espaço de fala está em função de reconhecimento mútuo das
perdas sofridas: há um que vem mostrar e falar de seu morto e outros, os semelhantes, que
vêm oferecer reconhecimento a essa perda. Nesse encontro, a imagem da escrita do luto
encontra transcendência pela palavra. Enquanto falam do morto a relação com ele, assim
como com seu tributo, é mantida a uma certa distância; por intermédio da fala o morto é
147
Fonte: http://becauseilive.hubpages.com/hub/In-Loving-Memory-Memorial-RIP-Tattoos.
17/03/2012, tradução nossa.
148
Fonte: http://becauseilive.hubpages.com/hub/In-Loving-Memory-Memorial-RIP-Tattoos.
17/03/2012, tradução nossa.
149
Fonte: http://becauseilive.hubpages.com/hub/In-Loving-Memory-Memorial-RIP-Tattoos.
17/03/2012, tradução nossa.
150
Fonte: http://becauseilive.hubpages.com/hub/In-Loving-Memory-Memorial-RIP-Tattoos.
17/03/2012, tradução nossa.
151
Fonte: http://becauseilive.hubpages.com/hub/In-Loving-Memory-Memorial-RIP-Tattoos.
17/03/2012, tradução nossa.
Acesso
em
Acesso
em
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em
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em
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presença em pura ausência. Nesse enlaçamento com outros sujeitos, a escrita do luto como
marca no corpo pode se deslocar à medida que outras significações vão sendo produzidas.
Allouch (2004) destacou que através da exposição uma escrita pode ter diversos
destinos que vão do sucesso ao esquecimento. Através da publicação de sua obra, um autor
expõe, mas também ex-põe seu texto a ser nada ou “um quase nada que deixo esvoaçar ao
acaso dos bons e maus encontros, ao risco da não leitura” (CORNAZ, 1999, p. 103). Uma
scripta volant que não conta mais tanto com leitores por vir.
Se Barthes (2009) não tornou público o “diário de luto” de sua mãe, ele por outro lado
foi um autor bastante produtivo durante o tempo em que redigia o “diário”: ele preparou
cursos, publicou um grande número de artigos em diferentes jornais e revistas e ainda
escreveu A câmara clara. No início de cada uma destas obras maiores foram deixadas as
fichas do “diário de luto”. Pode ser que esses escritos sejam os verdadeiros monumentos a ela
dedicados, talvez por essa razão ele não tenha se interessado em publicar o “diário”:
[...] Antes de retomar com sabedoria e estoicismo, o curso (não
previsto de resto) da obra, é-me necessário (sinto-o bem) fazer este
livro à volta de mam.
Em certo sentido, também, é como se tivesse de fazer reconhecer a
mam. É isso o tema do “monumento”; mas para mim, o Monumento
não é o duradouro, o eterno (a minha doutrina é demasiado
profundamente o Tudo passa: os túmulos também morrem), é um ato,
um ativo que faz reconhecer (BARTHES, 2009, p. 142-3, grifo do
autor).
De fato, um monumento importa mesmo em sua dimensão de ato, uma escrita
produzida como tratamento possível de uma perda e que faz reconhecer a um público que um
ser foi perdido e faz falta. Já o monumento memorial per si, independentemente do suporte, é
um marco, um landmark, em memória de alguém, mas como tudo e todos, está também
condenado à transitoriedade, à deterioração, ao desbotamento.
Ao compararmos um tributo em suporte papel com uma tatuagem, temos a impressão
de que a primeira tende a ser mais facilmente abandonada, queimada ou mesmo renegada
depois de um tempo, mas quando se trata de uma escritura que toma o corpo como suporte,
esse voto de abandono, esse corte separador parece ser bem mais complexo uma vez que se
configura em marca irreversível no corpo, como é possível, então, pensar que essa escrita do
luto no corpo venha a cair em poubellication?
O luto, seja pela via social ou psíquica, é uma experiência que visa mudar as relações
dos vivos com seus mortos. No campo social, os ritos fúnebres eram tradicionalmente os
responsáveis por processar as mudanças de status dos vivos e dos mortos, eles intermediavam
243
a passagem que permitia que o morto inicialmente ansiado e/ou temido pudesse advir como
ancestral benfeitor, protetor. Em algumas culturas, o fim desse processo é encerrado com um
grande festim libertador no qual o luto é transformado em júbilo. Do mesmo modo, o luto
enquanto inscrição subjetiva de uma perda visa eminentemente realizar a separação do objeto
perdido por meio de um longo, doloroso e árduo trabalho elaborativo de luto. As mudanças na
relação com o morto transformam inevitavelmente a relação com seus signos mesmo que
estes tenham sido grafados de modo irreversível no corpo. Desse modo, ainda que uma escrita
do luto tenha sido produzida para se constituir em tributo permanente [scripta manent], ela
não vale por si mesma, ela está em função do sujeito que a produziu para ter sentido e se esse
sentido se desloca ao longo do percurso de um luto, a escrita tende a perder a consistência
inicial caindo em caducidade [scripta volant]. Desso modo, concebemos ser possível que uma
escrita em forma de tatuagem possa simultaneamente ocupar o lugar de scripta manent e
scripta volant.
Figura 24.
“Ela viveu e sorriu e amou e partiu”
Fonte: Memorial tattoos152
152
Fonte: https://www.pinterest.com/explore/memorial-tattoos/. Acesso em: 15/01/2015, tradução nossa.
244
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Nessa tese pudemos mostrar que, não obstante o movimento de secularização da
sociedade, a relação com os mortos não foi nem esquecida, nem abandonada; ela
simplesmente se reconfigurou combinando elementos diversos (mitos e ritos) e assumindo um
caráter mais privativo e exterior aos modelos religiosos tradicionais. Segundo um mito grego
antigo, os mortos são os ressecados e necessitam da seiva das lembranças derramadas pelos
vivos, isto é, de ritos, para recuperarem, por um instante, a vitalidade perdida. Hoje essas
lembranças continuam sendo derramadas em forma de tributos e ritos não convencionais.
Dentre essas novas formas de ritualizar o luto, as tatuagens in memoriam chamam a
atenção por se constituírem em um tributo que marca permanentemente o corpo. Quando
iniciamos nossa pesquisa, nos perguntávamos se esse tributo se tratava apenas de modismo,
uma nova onda entre os jovens ou até mesmo uma forma de negação de luto. Ao avançarmos
em nossa investigação, constatamos que essa “nova onda” se inscreve em um contexto
histórico de asselvajamento das relações com a morte que atingiu tudo o que a ela se refere,
inclusive o luto. Os enlutados jazem entregues aos seus próprios recursos desde que o luto se
desritualizou, perdendo seu caráter social, e passou a ser considerado um assunto íntimo e
privado. Entre proscrição e prescrição, o luto social acabou sendo recoberto pelo luto
psíquico.
No passado os ritos fúnebres eram necessários. Morrer bem na Idade Média
significava ser acompanhado de rituais que se iniciavam bem antes da morte e que se
prolongavam para além da morte preservando o nome do morto para a posteridade. Os ritos
eram os responsáveis por estabelecer as trocas entre o mundo dos vivos (campo do ser falante)
e dos mortos (real), eles mediavam o luto social e o luto psíquico. Hoje os ritos tradicionais se
tornaram contingentes, isto é, eles podem acontecer ou não e se acontecerem podem ser
eficazes ou não.
Se antes os ritos eram os estruturadores e orientadores das crenças, atitudes e
sentimentos diante da morte, hoje sobra para o sujeito a busca por um modo de se rearranjar
perante a morte. Alguns partem em busca de profissionais e serviços de saúde na tentativa de
encontrar um nome para a sua dor e uma forma de apaziguá-la ainda que seja pelo viés de
algum diagnóstico médico e/ou tratamento farmacológico. Do mesmo modo, na clínica
psicanalítica, tornou-se comum recebermos pessoas em situação de luto bem como aquelas
245
que, diante da atual distância que tomamos em relação às coisas da morte, nem sequer se
sabem de luto, mas que se encontram habitadas por seus mortos e por seus assuntos.
Se a realização de ritos pode amenizar o desamparo sentido diante da morte, é
compreensível que uma demanda por rito fúnebre se mantenha mesmo em um universo
aparentemente dessacralizado fazendo emergir na esfera pública modos particulares de
ritualizar o luto. Estes são determinados principalmente pela história subjetiva e o universo
simbólico onde essa história se desenrola. É como se, na falta dos ritos organizadores e
apaziguadores dos momentos críticos da vida, as pessoas inventassem, tal como o netinho de
Freud, um jogo, um rito privado para lidar com o que não tem representação, a morte.
Sob essa visão, consideramos que a produção de uma tatuagem in memoriam não se
trata de mero modismo e menos ainda de negação da morte, mas de um modo particular de
fazer valer a função essencial dos ritos fúnebres que é realizar, no nível social, o trabalho de
luto, tratando ou curando todos aqueles que se sentem atingidos pela morte. Sugerimos, então,
que a produção e a exposição da tatuagem in memoriam se constituem em um rito fúnebre
individual do neurótico, um tratamento possível do real, dentre outros que encontramos na
atualidade, e que visa inscrever simbolicamente uma perda sentida como vertiginosa. Um rito
individual, mas não privado de público. Diante do desamparo atual, cada um inventa o que
pode e alguns (re)inventam a tatuagem in memoriam.
Ao considerarmos a produção de uma tatuagem in memoriam como um rito fúnebre,
coube-nos investigar o estatuto desse rito. Primeiramente, buscamos esclarecer a sua função
uma vez que, enquanto rito particular, pode se prestar a diferentes funções não
necessariamente se trata de um “rito de passagem”, um tratamento elaborativo da perda. De
outro modo, se se trata de um rito de caráter individual, e não coletivo, de partida, esse rito
não se encontra amparado por um sistema macrocósmico reconhecido e que se impõe a todos.
Conforme observamos, hoje a eficácia dos ritos, de modo geral, tornou-se relativa,
contingente, sua “magia” depende muito mais do sujeito que dele participa. Nesse sentido,
consideramos que a produção de uma tatuagem enquanto rito fúnebre individual pode assumir
para alguns o valor de rito de passagem, um tratamento possível do real pelo simbólico. É
possível que se constitua desse modo, mas não garantido. Pode ser que para outros, o rito
valha como um modo de apaziguar a dor ou mesmo de expiar uma culpa, portanto ritos aliviadores, mas não de passagem.
Na versão de luto proposta por Allouch vimos que o luto, no tempo da morte
selvagem, se efetua a partir de um ato. Um ato de sacrifício e como sacrifício se constitui em
um rito particular em que o enlutado, por um viés não estandardizado, encontra um modo de
246
fazer valer a função do rito. Na tradição religiosa, o sacrifício [sacrum facere] comporta uma
função separadora que pode ou não ser radical. Lacan ressaltou em relação ao “sacrifício do
falo” uma separação radical: para ascender à condição de desejante, o sujeito deve se separar
(privar-se) desse “ser fálico” e dele fazer o luto, essa perda é radical posto que é sem
compensação. Efetuar um luto implica essa dimensão extrema, na medida em que com a
morte não há negociação; aquele que foi perdido não será de nenhum modo restituído ou
substituído, ponto real de toda morte. Orientado pelo ensino de Lacan, Allouch propôs uma
escrita algébrica de luto, - (1 + a), que traduz a tese segundo a qual o luto se encerra com
um ato sacrificial no qual o sujeito suplementa a perda sofrida com um pequeno pedaço de si,
sem a perda sacrificial desse suplemento a escrita do luto não se fecha, ou seja, o luto não
encontra fim.
Encontramos em alguns relatos que a dor e o sacrifício presentes na produção de uma
tatuagem são elementos importantes que participam da escolha por esse modo particular de
ritualizar o luto. Porém, julgamos importante ressaltar de que se trata de um sacrifício
realizado em um roteiro imaginário. Uma parte do corpo é oferecida em sacrifício para o
tatuador produzir na carne uma marca de memória, um memento inapagável. Ora, o sacrifício
exigido pelo luto para efetuar a subjetivação de uma perda é de outra ordem, não se trata de
um sacrifício que se dá fisicamente, mas simbolicamente, um ato sacrificial que envolve a
perda de um precioso pequeno pedaço de si simbólico e não imaginário. Portanto, para que se
constitua em um “sacrifício de luto”, é preciso que essa dimensão simbólica seja contemplada.
Quando abordamos o luto como rito social, havíamos associado a eficácia terapêutica
dos ritos fúnebres sagrados a quatro fatores essenciais e indissociáveis: a presença de
representações/significantes; a participação solidária de um público; a ação ritual; e o fator
temporal. Entretanto, ao considerarmos a produção da tatuagem como rito fúnebre individual,
é necessário acrescentar mais um elemento: a posição subjetiva do sujeito em relação à perda
sofrida.
Desse modo, propomos que para esse rito individual ser eficaz, além dos quatro
fatores participantes em maior ou menor grau, é essencial a implicação subjetiva do sujeito no
que diz respeito ao trabalho de luto. Ou seja, é preciso que ele tenha realizado o giro por todo
o campo simbólico colocando em jogo os traços de lembranças e o complexo processo
identificatório que o mantinha ligado ao objeto perdido. Assim, o ato da produção da escrita
do luto pode lhe servir como um marco simbólico de uma separação, um momento de
conclusão de uma escrita ou trabalho de luto que já estava em andamento. O rito pode então
247
assumir um valor de dispositivo de passagem que propicia (na borda do luto psíquico e do
luto social) as condições simbólicas para que o sujeito, apoiado em outros sujeitos, possa
passar a um novo status. Tal como a barca de Carontes, o rito pode permitir a travessia, mas
para atravessar é necessário que o sujeito chegue com algumas condições prévias. No mito
grego, estas incluíam os ritos fúnebres, sem os quais o morto não seria aceito pelo barqueiro.
No caso da produção da tatuagem, a condição é o trabalho subjetivo de elaboração da perda.
Sem essas condições prévias, a produção da tatuagem pode servir como tributo
fúnebre para preservar a memória do falecido, mas dificilmente servirá como um rito de
passagem. Se, no próprio ato da produção da tatuagem, o rito se mostrar apaziguador de uma
dor inexprimível de outro modo, ele pode vir a se tornar um rito necessário se repetindo
incansavelmente sem resolver a questão, tal como o rito do obsessivo. Um rito que não vem
marcar a separação, mas preservar a relação com o morto ao modo de um luto melancolizado.
Em suma, consideramos que a eficácia desse rito individual como tratamento do real pelo
simbólico é contingencial, verificável no caso a caso. Pode ser que, para alguns, sirva como
um rito com função apaziguadora que visa mais suturar o furo (real) aberto pela perda do que
tratá-lo; enquanto que para outros pode vir para marcar uma separação, marcar que uma
passagem se fez.
Ao analisarmos o estatuto da tatuagem como modo de prestar tributo fúnebre,
isolamos algumas características que lhe são peculiares. Primeiramente, destacamos o valor
metonímico da tatuagem enquanto tributo que vem em lugar do monumento sepulcral, mas
com o diferencial de ser um tributo que se dedica a preservar a memória honorífica do morto a
partir de um marco geográfico corporal, portanto se constitui em um memento pessoal,
privativo. Tal como uma cicatriz, a tatuagem serve de marco referencial para a lembrança
biográfica, logo não se trata nem de um tributo que se inscreve na história coletiva, nem visa a
preservação da lembrança para a posteridade. Ao mesmo tempo fixo e móvel, o tributo
grafado na pele dificulta uma leitura comunicativa. Nesse sentido, ele se assemelha ao
monumento sepulcral que busca chamar a atenção dos passantes para que sua lápide seja lida.
Ao se mostrar e capturar o olhar de um público, a tatuagem-tributo pode, a partir desse
enlaçamento, adquirir voz, tornando-se falante.
Destacamos ainda a importância do olhar na definição do lugar a ser tatuado. Para
alguns o tributo parece operar como uma mancha diante da qual se é sujeito e objeto, a
mancha é tanto marco de captura do olhar quanto marco de onde o sujeito se imagina ser
olhado. É como se pela tatuagem houvesse a tentativa de dar consistência ao olhar do morto,
ou de outro modo, uma tentativa de corporificar seu olhar, fazendo-o existir novamente. Em
248
vão, o olhar do morto não está lá e não poderá ser restituído. O tributo preserva seu nome e
até sua imagem, mas seu olhar/corpo não.
Enquanto escrita possível do luto, sugerimos que a tatuagem pode valer para o tatuado
tanto como uma figura pictográfica, uma cristalização de uma memória que não se desloca,
quanto como um rébus, um traço aberto a deslocamentos, condensações, equívocos, rasuras e
deteriorações. Ressaltamos que não é possível julgar, a priori, se se se trata de um ou de outro
caso, ou de um caso intermediário ou mesmo de outra coisa, o valor da escrita depende do
sujeito que a produziu. Um valor certamente modulável à medida que a relação com o morto
se desloca ao longo do luto.
Consideramos, nesse sentido, a importância da participação de um público no
fechamento do luto. Em um rito fúnebre, a assistência prestada pelo público aos enlutados se
assemelha à do coro grego antigo cuja presença ajudava os protagonistas da trama marcando
as pausas, ressaltando as cenas importantes, incitando a reflexão com comentários sobre os
acontecimentos, dando certa medida aos afetos despertados. A presença de terceiros solidários
ou mesmo de um público mais amplo para quem se possa falar e se sentir reconhecido na dor
pode produzir efeitos benéficos no enlutado, não só porque falar traz grande alívio, mas
porque é pela via da fala que uma experiência se torna compartilhável, intercambiável e ainda
elaborável. Por meio da fala o sentido de uma escrita do luto pode se deslocar assumindo
novos sentidos, escrevendo traços novos sobre a escrita inicial.
Elaborar o luto é precisamente mudar a relação que se mantinha com o morto, uma das
funções primordiais dos ritos de passagem. E mudar a relação com o morto não implica em
esquecê-lo, abandoná-lo ou deixar de se conviver com seus signos. Mas implica em uma
separação. Se de partida o morto é representado como uma marca cristalizada cuja memória
não se desloca, ao longo do trabalho elaborativo do luto, outras inscrições virão, outros
sentidos incidirão rasurando, reconfigurando ou desbotando essa marca inicial permitindo que
a relação com o morto seja vivida a certa distância. A separação é o que permite que o morto
seja rememorado como um ser amado cuja falta nos suscita saudades em vez de desespero e
aflição. Assim, o tributo inicialmente grafado como ákhos [pesar, desgosto, lamento] pode
perder a consistência inicial e desbotar-se abrindo a possibilidade de vir a ser saudado como
tributo dedicado à kléos [glória] do amado perdido. É nessa passagem, pela via elaborativa do
luto, que a marca grafada pode enfim alcançar verdadeiramente o estatuto de uma tatuagem in
memoriam.
249
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ANEXO 1 – Aprovação da pesquisa pelo Comitê de Ética
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