1 Tudo começou por conta da gaivota que pousou
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1 Tudo começou por conta da gaivota que pousou
O HUNGARO QUE SE FOI SEM AVISAR Novas aventuras de Bebéi e os Pelagatos na Cidade Antiga de Santa Clara Frente ao Mar Marcelo Antinori 1 2 1 Tudo começou por conta da gaivota que pousou no terraço de Bebéi Do outro lado da praça, Tenente Pirilo jogava dominó na Taverna Asturiana, sinal de que tudo estava absolutamente tranquilo na cidade. Verdade que a palavra tranquilo tinha ali um significado limitado pois em Santa Clara noites serenas rapidamente se transformavam em vésperas de grandes tempestades. Mesmo assim todos aproveitavam e a única que reclamava era Grená; com tudo tão calmo, a vendedora de bilhetes de loteria andava sem muitas novidades para contar. Em parceria com o asturiano dono do restaurante, Tenente Pirilo enfrentava a dupla campeã da cidade: Moses e Habib. Os dois, o judeu e o libanês, tinham lojas de roupas na Avenida Central, uma em frente a outra. Passavam o dia inteiro brigando por clientes, mas quando sentavam para o dominó, não tinham concorrência. De tanto competir na rua, até parece que cada um tinha aprendido a ler o pensamento do outro. Segundo Pirilo, com um pouco de despeito, os dois não ganhavam pela qualidade do dominó que jogavam e sim pelas piadas que contavam para distrair os adversários. Para cada uma que Moses contava de um patrício judeu, Habib devolvia com uma de seus compatriotas árabes. E a verdade é que Pirilo não tinha direito de reclamar pois quando os dois se calavam, seu parceiro, que jurava nunca ter escutado piadas de asturianos, rapidinho aparecia com mais uma do português. Naquele dia o tenente estava com sorte e os dois tinham ate conseguido ganhar uma das partidas. O barulho das gargalhadas, 3 dos gritos e das pancadas que os quatro davam com as pedras na mesa, se escutava do outro lado da praça da Gabriela. Ali, no começo da ladeira que levava ate a Igreja das Mercedes, Bebéi, o arquivista da embaixada francesa, aproveitava a calma daquela tarde e, com movimentos sóbrios, abria a porta do senhorial casarão onde tinha seu apartamento e saia com seu cachorro aproveitando a brisa que chegava da baia e refrescava a cidade. Tudo caminhava bem em sua vida. A embaixadora sempre elogiava seu trabalho. Os mais invejosos diziam que era apenas pelos pasteizinhos fritos que ele comprava de Laís e distribuía entre os colegas no meio da manha, mas a razão, era pouco relevante. O importante era que a embaixadora estava contente e foi por conta disso que depois de entregar a pasta com todos os documentos solicitados, ele pediu para sair mais cedo. Ainda que tudo estivesse calmo, havia algo que lhe preocupava; durante a noite uma gaivota ferida pousou no terraço de seu apartamento e ele não sabia o que fazer. Foi seu cachorro quem primeiro percebeu a presença da nova hospede. Parecia ter um ferimento na asa que a impedia de voar. Estava como que paralisada cercada pela balaustrada do pequeno terraço frente a sala. Nem a cabeça ela mexia. Permanecia completamente imóvel, com o olhar fixo no horizonte do mar. Imagino que não deve ser fácil visualizar o arquivista já de uma certa idade e um pouco barrigudo ao lado do cachorro olhando curioso a gaivota pela porta de vidro do terraço. E ainda mais se você não conhece nenhum dos dois, não conhece Santa Clara e nunca leu nenhuma das aventuras de Bebéi e os pelagatos. Mas não se preocupe, que posso lhe ajudar. Começo pela cidade: Santa Clara Frente ao Mar e um desses lugares onde por magia ou esquecimento a cidade ainda mantem a mesma arquitetura dos tempos coloniais. Uma pequena cidade que sobreviveu independente, encostada na moderna cidade capital. É lá que esta a antiga Catedral, o Teatro Colonial e os 4 grandes casarões que em outros tempos reafirmaram a grandeza de todo o pais. A grande maioria das antigas construções históricas foram reabilitadas e, o que dava uma dignidade especial ao lugar, é que não havia ali uma construção sequer que fosse moderna. As pessoas que viviam em Santa Clara ainda se cumprimentavam nas esquinas, tomavam sorvete na praça, compravam pipoca no carrinho, comiam pastel frito na calçada e muitas vezes ainda gritavam da rua para passar recados a janela aberta de um segundo andar qualquer. Nas praças as crianças jogavam bola e os aposentados comentavam as noticias dos jornais cercados por cachorros e pombas enquanto esperavam os amigos para o carteado ou o dominó. Bebéi vivia no terceiro andar do casarão amarelo construído séculos atrás por um dos fundadores da republica e que foi reabilitado e dividido em apartamentos. O seu ficava bem na esquina e tinha dois pequenos terraços, um no quarto e outro na sala. Deles ele podia ver o ancoradouro e a baia sempre cheia de gaivotas acompanhando a chegada dos barcos de pesca e a esquerda a Praça da Gabriela, com a fonte de Ilona, o supermercado e a Taverna Asturiana ao lado do luxuoso hotel dos espanhóis. No fim da praça ele também podia observar a entrada da Rua das Francesas com seus pecados e suas mulheres atentas atraindo homens que se faziam de distraídos. Mas isso tudo foi antes da chegada da gaivota pois desde que ela se instalou no terraço tudo mais que se via dali passou a ser completamente irrelevante. Bebéi trabalhou toda sua vida no Ministério de Relações Exteriores em Paris e ainda que um pouco lento nos pensamentos, sempre foi um excelente arquivista. “Guardando o que não se pode perder e sempre encontrando o que parecia perdido,” como ele orgulhosamente explicava. Em um dia de muito frio quando já estava quase por se aposentar, ele decidiu arriscar uma nova aventura e se candidatou a uma transferência para a embaixada de Santa Clara em pleno mar do Caribe onde 5 ele imaginava, ainda viviam os piratas com quem desde criança sempre tinha sonhado. Desde sempre ele foi gordinho e careca. Protegia a cabeça do sol com um chapéu castanho que junto com a gravata curta e o terno caqui já um pouco gasto, compunham sua simpática figura que todos estavam acostumados a ver pelo bairro. Sempre caminhando tranquilo, acompanhado pelo seu cachorro e cumprimentando a todos com quem cruzava com um discreto saudar com seu chapéu. Seu cachorro, este sim era todo um mistério. O único que se sabia ao certo é que estava com o Condor naquele dia em que ele morreu ao lado das ruinas do convento dos dominicanos. Pelo que diziam, nasceu do outro lado do mundo, na Nova Zelândia, e segundo insistia Henry Moriarty o hippie sessentão da confraria dos pelagatos, o cachorro era a reencarnação de um monge zen budista que ele chegou a conhecer em um mosteiro de Kyoto no Japão. Se era monge ou não, ninguém sabia ao certo mas o cachorro era conhecido por todos. Com segurança é possível dizer que se fosse gente todos ali lhe cumprimentariam com respeito ao vê-lo passar com seu olhar meigo, algumas vezes ao lado de Bebéi e outras correndo livremente, acompanhado de sua amiga de todos os dias, a cadela magrinha da Passarinho. Acho que com estas explicações já podemos regressar ao terraço onde a gaivota seguia imóvel e Bebéi, pelo vidro da porta, observava preocupado. Ter uma gaivota no terraço não lhe incomodava. Tanto ele quanto o cachorro estavam contentes com a nova hospede. O problema era como alimentá-la. Olhar não resolvia o problema e foi por isso que ele decidiu sair em busca de alguém que lhe pudesse ajudar. Desceu as escadas, abriu a porta que dava para rua, e naquele exato momento em que os quatro jogavam dominó e gargalhavam na taverna, ele saiu sobriamente com seu cachorro para passear. 6 Ao pisar na calçada o primeiro que escutou foi a musica do realejo. Era o filho da Passarinho, tão louco como a mãe, que passava por ali com seu triciclo colorido vendendo sorvetes. Ele pedalava sorrindo, vestido e pintado de palhaço e atrás, apoiado em suas costas, o macaquinho vestido de Napoleão rodava a manivela do realejo, espalhando aquela musica que enchia a rua de alegria. Desde que aquele magico misterioso andou por Santa Clara que o filho da Passarinho tinha aprendido alguns truques e ao ver o amigo a porta do casarão, parou de pedalar e desceu do triciclo. Fez então uma reverencia respeitosa, se aproximou, e com algumas palavras magicas tirou um pequeno ramalhete de flores do peito do cachorro que olhou assustado e entregou como um presente a Bebéi. Em seguida, como se fosse uma criança feliz, sorriu, e sem dizer palavra montou outra vez no triciclo e se foi subindo a ladeira com suas pedaladas e sua musica em direção a Igreja das Mercedes. Atrás dele foi Bebéi com a correia do cachorro e o ramalhete de flores na mão, pensando que a musica do realejo combinava bem com o colorido dos casarões coloniais de Santa Clara. Frente a igreja Bebéi parou para cumprimentar a velha Grená que protegida pelo guarda sol amarelo vendia seus bilhetes. Do outro lado da rua, ali na escadaria da igreja, Robespierre outro dos pelagatos da confraria, gritava com um grupo de turistas finlandesas que por sorte não entendiam palavra do que ele dizia. Bebéi permaneceu por alguns minutos escutando os insultos e observando as expressões de espanto e incompreensão no rosto das turistas, mas como aquilo tudo era una cena tão corriqueira por ali, ele preferiu caminhar ate a barbearia de Rasta Bong onde Jordi cortava seu o cabelo para dar uma boa impressão na entrevista que faria ao dia seguinte na prefeitura. Jordi tinha concluído os exames do concurso para professor da escola secundaria e o único que lhe faltava era a entrevista. Como a meses não cortava o cabelo, decidiu passar pela 7 barbearia e foi ele quem explicou ainda sentado na cadeira de barbeiro, como alimentar a gaivota. E como tinha o resto da tarde livre aproveitou para acompanhar Bebéi ao supermercado comprar as latas de sardinha. O jovem Jordi estava feliz com a perspectiva de ser professor. Certamente que dar aula na secundaria não era o sonho da sua vida, mas pelo menos era melhor que servir as mesas do Café de Ilona. Ele estava seguro que iria passar no concurso. Sempre foi um bom estudante e a entrevista não lhe preocupava, assim como também não lhe preocupava a fome da gaivota. O que confundia sua cabeça naquela tarde e criava toda aquela ansiedade era a saudade de Cristina. Ela tinha viajado alguns meses antes a Boston com uma bolsa de estudos oferecida pelo prefeito e quanto mais se aproximava o dia do seu regresso mais o peito de Jordi parecia apertar. Para ele, viver sem Cristina era algo bem estranho. Os dois sempre estiveram juntos. Moravam na mesma rua, estudaram na mesma escola e quase sempre na mesma sala de aulas desde os cinco anos de idade. Apenas se separaram na universidade; ele foi estudar historia e ela psicologia. E mesmo estudando em cursos diferentes os dois continuaram passando as tardes juntos pois tinham um sonho em comum; queriam mudar o mundo. Quando Cristina estava ao seu lado tudo era fácil. Sua cabeça produzia mil ideias mas elas eram tantas que as vezes Jordi até se perdia. Era Cristina quem conseguia aterrissar e transformar seus sonhos em realidade. Por isso ele não fazia nada sem antes perguntar a ela, mas como dar de comer a uma gaivota não parecia ser um problema tão transcendental ele decidiu acompanhar Bebéi. – Afinal, que de mal pode passar quando alguém dá de comer a uma gaivota no terraço de um apartamento? 8 2 O anel saiu voando entre teias de aranha de um antigo mistério. Os dois subiram as escadas do apartamento praticamente sem conversar. Era natural que estivessem preocupados; nenhum dos dois, nunca antes tinha dado de comer a uma gaivota. Mas a verdade é que dar de comer foi até mais simples do que imaginavam, o complicado foi o que veio depois. Quando abriram a porta do terraço, o primeiro que se atreveu a sair foi o cachorro que com movimentos cautelosos se aproximou do pássaro ferido. Ela não se moveu, talvez por perceber que era pouco o que podia fazer em sua defesa. No inicio o cachorro parecia desconfiado, esperou, cheirou uma vez, cheirou outra e só então, mais seguro, sentou ao seu lado com os olhos no mar como que tentando entender o que de tão importante ela observava dali. Foram comportamentos como este que fizeram Bebéi acreditar que o cachorro era a reencarnação de um monge budista e foi por isto também que ele propôs a Jordi deixar aos dois sozinhos. – Talvez entre animais é mais fácil que se entendam – comentou. Esperaram e alguns minutos depois abriram lentamente a porta e colocaram as sardinhas ao lado da gaivota e o pote com comida ao lado do cachorro. O cachorro rapidamente comeu sua comida e, respeitoso, nem tocou nas sardinhas da gaivota. Ela de inicio permaneceu imóvel e depois demonstrando una certa hesitação bicou a primeira sardinha. Comeu todas e ao terminar voltou seu olhar outra vez para o mar enquanto o cachorro satisfeito seguia 9 deitado ao seu lado. Bebéi e Jordi sorriam detrás do vidro sem muito entender, mas pelo menos a gaivota estava alimentada. O cachorro e a gaivota permaneceram ali em silencio e a calma era tanta que Jordi decidiu aproveitar para sair ao terraço. Era a primeira vez que subia no apartamento de Bebéi e dali ele podia ter uma vista de toda a baia, sentir melhor a brisa e pensar em Cristina. Naquela tarde quase não haviam nuvens no céu. La do terraço ele podia ver a mesa do restaurante onde os quatro continuavam jogando dominó e lembrou das serenatas que fez com ela naquela praça. E enquanto recordava, olhava com carinho o anel que ela lhe entregou antes de partir. Jordi sabia que aquele anel era importante e deixa-lo com ele foi a forma que ela escolheu para dizer que ainda longe, seus pensamentos seguiriam com ele. Curioso, pensava, entre os dois sempre foi ela quem tomou a iniciativa. Os dois já haviam conversado de praticamente tudo mas nunca tinham conversado sobre os dois. Eram os melhores amigos e isto era tão natural em suas vidas como comer e dormir, mas antes de partir ela lhe entregou o anel. E isto de certa forma mudava tudo. Ele conhecia bem a historia. A mãe de Cristina trabalhou na Rua das Francesas e seu pai foi um dos tantos marinheiros que por ali chegaram e com ela passaram a noite. – Mas teu pai foi especial –era o que ela explicava– percebi isso desde o primeiro momento. Se isso era verdade ou mentira pouco importava, mas aquela era a historia que Cristina conhecia e que ela lhe recordou antes de viajar. – Não fui eu que me aproximei – era o que a mãe contava com orgulho– Fomos ao hotel, passamos a noite e nenhum dos dois quis sair mais daquele quarto. Ficamos ali ate que ele regressou ao navio. Nunca entendi suas palavras. O único que sei é que seu nome era Mikhalis, que ele era da ilha de Chipre e que me tocava como nunca alguém me havia tocado. E sei também que 10 no cais do porto, antes de entrar no navio e partir, ele tirou o anel do dedo, me entregou e se foi. Jordi olhava as gaivotas voando, lembrando que aquela foi a única vez em que a mãe de Cristina viu a seu pai. Talvez ele nunca regressou, ou se regressou não conseguiu encontra-la, pois logo que ficou gravida ela deixou a Rua das Francesas e foi trabalhar como recepcionista e a única recordação que guardava daquele encontro era o anel que Cristina lhe entregou antes de partir. Era por isso que ele olhava o anel e até o tirou do dedo para poder acaricia-lo melhor na palma da mão. Foi naquele momento, em que acompanhava distraído o movimento dos barcos entrando e saindo do ancoradouro, que a gaivota repentinamente saltou abrindo bruscamente suas asas como se quisesse voar outra vez. Voar ela não conseguiu mas conseguiu assustar o cachorro que ladrou e assustar a Jordi que deixou o anel sair voando pelo ar. Sua primeira reação foi quase um desespero. Quem sabe o anel não tinha caído na rua? Lá ele provavelmente estaria perdido para sempre. Será que caiu no terraço do apartamento de baixo? E Jordi se dependurou na grade e ate teve a impressão de que podia vê-lo dali. Com o nervoso as ideias se atropelaram na sua cabeça. Qualquer coisa podia acontecer menos perder o anel. Gritou por Bebéi e contou do susto da gaivota e do salto do anel: – Temos de entrar no apartamento e olhar no terraço –e seguia repetindo– O anel esta ali, tenho certeza. Bebéi procurou acalma-lo e explicou que aquele apartamento sempre esteve fechado e que ninguém vivia ali. Mas a ansiedade era tão grande que os dois decidiram descer e pedir a chave ao zelador. – Eu nunca tive esta chave –foi a resposta inesperada– Desde que comecei a trabalhar, dez anos atrás, que ninguém vive ali. O apartamento esta fechado. Não querem alugar e nem mesmo 11 vender. Sei, pelo que me explicaram, que um escritório de advogados é quem paga as contas –e até comentou– Nunca entrei ali e não tenho a menor ideia de quem sejam os donos. Bebéi percebeu que tinha de fazer alguma coisa. Olhou para Jordi que seguia atônito, para o zelador que seguia sem saber o que dizer e ate olhou para o cachorro que no pé da escada também lhe encarava confuso. Pensou o pouco que conseguiu pensar, olhou para Jordi e disparou: – Venha comigo que sei o que podemos fazer. Regressaram ao apartamento e o primeiro que fez o cachorro foi verificar se a gaivota continuava no terraço. Foi e voltou com uma expressão tranquila, sinal de que tudo estava bem. Jordi parecia estar um pouco mais relaxado e Bebéi explicou seu plano. Começou falando em voz baixa, como se aquilo fosse um segredo. E falava com seu português aprendido nas aulas que teve em Paris com a Senhora Pereira que era de Coimbra e falava como falam os de lá: – Gente que vive sozinho quase sempre tem uma chave escondida fora do apartamento. Senão como podemos entrar se um dia perdemos a que levamos no bolso – e aproveitou para comentar– Eu tenho a minha e se quiser posso lhe contar onde a tenho escondida Bebéi seguiu explicando seu plano e Jordi apenas escutava sem fazer perguntas. – Faz um bom tempo percebi que sempre que descíamos as escadas o cachorro parava para cheirar o rodapé no piso de abaixo. E sempre no mesmo lugar, bem ao lado da porta do apartamento. Por curiosidade lhe confesso que um dia, discretamente, dei uma olhada e percebi que ali o rodapé estava solto e que por detrás, estava escondida uma chave. Nunca experimentei, mas acho que aquela chave nos pode ajudar a abrir a porta do apartamento. 12 Jordi se animou e quis descer mas Bebéi que já se havia metido em problemas por entrar em apartamentos, preferiu esperar e explicou. – Importante que saibas que isto não é legal. Não temos autorização e tampouco sabemos quem são os donos. Mas isto agora pouco importa. Vamos fazê-lo pois queremos muito recuperar o anel de Cristina – e depois de uma pausa e ai já com uma expressão travessa no rosto, continuou– Me parece, entretanto, que é melhor que façamos de noite para que ninguém nos veja –e quase que sussurrando completou– e depois não contaremos a ninguém, verdade? Despois de um ano vivendo nos trópicos Bebéi já havia entendido que nem tudo ali era branco e preto como os rígidos princípios morais que aprendeu com seu tio muçulmano. Esperaram a noite e desceram deixando o cachorro cuidando da gaivota. Atrás do rodapé que estava solto, encontraram a chave e confirmando a suspeita de Bebéi, a chave abria a porta do apartamento. Na entrada, ainda com a porta aberta e usando uma lanterna que ele guardava para emergências, os dois tiveram uma surpresa: o apartamento podia estar fechado a mais de dez anos, mas não estava vazio, todos os moveis ainda estavam ali. Entraram e mesmo com pouca luz perceberam que não eram apenas os moveis. As paredes também estavam cheias de quadros e na parede da sala de jantar haviam fotos do teto ate o chão. Olharam a sala de estar e observaram ali uma estante com livros e algumas pequenas estatuetas que pareciam ser africanas. Na parede uma enorme coleção de mascaras e sobre a pequena mesa ao centro da sala, assim como nas pequenas mesas ao lado do sofá e das duas poltronas, haviam inúmeros objetos. Tudo coberto por uma grossa camada de pó. Bebéi se impressionou ao observar a sala de jantar onde centenas de teias de aranha saiam do candelabro preso ao teto formando um toldo de circo que cobria a mesa e as seis cadeiras. 13 E ali mesmo na entrada aos seus pés, uma carta que alguém um dia empurrou por debaixo da porta. Provavelmente muito tempo atrás pois a carta também estava coberta de pó. O apartamento tinha uma distribuição diferente, a sala era maior que a de Bebéi e até tinha um piano. Encostados na parede, outros instrumentos de sopro, um violão e o que parecia ser a caixa de um violino. O piano ate tinha uma partitura posta como se alguém tivesse acabado de tocar. Tudo completamente coberto de pó e de lúgubres teias de aranha. A visão era um pouco assustadora e Bebéi estava atônito com o que via. Jordi, que era quem tinha a lanterna nas mãos não parecia dar atenção a estes detalhes e apenas caminhava em direção ao terraço. Entraram no quarto e ali a cama estava feita com lençóis e travesseiros e na mesa do criado-mudo um abajur um relógio e alguns objetos. Bebéi ficou parado na porta olhando espantado para o tapete ao lado da cama onde um par de chinelos estava na posição exata esperando quem ali se levantasse. Jordi foi ate o terraço e apenas depois de abrir a porta e sorrir com o anel outra vez em suas mãos colocou a luz da lanterna em Bebéi e entendeu a expressão confusa do seu rosto. O apartamento não estava vazio. Estava sujo e abandonado mas tudo estava ali, como se alguém tivesse saído de um momento ao outro e nunca mais regressado. Os dois olharam também dentro do banheiro e ali estavam as toalhas, a escova, a pasta de dentes, tudo. – Era um homem que vivia aqui –disse Jordi–nada aqui recorda a presença de uma mulher. Regressaram a sala e então com mais calma iluminaram cada uma das mascaras penduradas e foi quando perceberam alguns instrumentos musicais que pareciam ser africanos no chão, encostados na parede. Abriram a porta da cozinha e ali também tudo parecia estar em seu lugar. Os dois se surpreenderam ao ver que dentro da pia, 14 ainda estava um prato, uma panela e alguns talheres, como se alguém tivesse saído poucos minutos antes e deixado ali para lavar depois. Ninguém havia entrado naquele apartamento por mais de dez anos, mas se não fosse o pó e as sombrias teias de aranha, era como se alguém ainda vivesse ali e apenas tivesse acabado de sair. Difícil compreender o que viam, mas como o que buscavam era o anel e ele estava outra vez no dedo de Jordi os dois saíram sem tocar em mais nada. O único que deixaram foram as marcas dos pés na camada de pó que cobria o tapete e o chão. 15 16 3 O apartamento vazio que estava cheio era do húngaro que se foi sem avisar Para Jordi a historia do apartamento podia terminar ali pois o único que lhe importava era recuperar o anel. Já para Bebéi, a visão do apartamento vazio com seus moveis e teias de aranha provocou uma seria duvida: – Será que o homem que vivia ali foi embora ou será que foi assassinado como a canadense? E para os que não conhecem a historia da canadense e não leram as Lembranças do Fim do Mundo1, lembro que depois de desaparecer de seu apartamento o único que encontraram da canadense foi o braço que alguns dias depois, apareceu nadando sozinho frente as ruinas do velho forte. Certamente que não era a mesma coisa e era nisto que pensava Bebéi; a canadense desapareceu e dois dias depois eles já se deram conta de que alguma coisa estranha havia acontecido com ela. O que passou com seu vizinho do piso de baixo era diferente. Fosse quem fosse que vivia ali, tinha desaparecido a mais de dez anos sem que ninguém tivesse dado pela sua falta. Bebéi não podia simplesmente ignorar o que tinha visto e voltou a conversar com o zelador. Não contou que tinha entrado no apartamento mas perguntou outra vez o que ele sabia. O zelador repetiu que não sabia nada e se comprometeu a obter o endereço do escritório de advogados responsável por pagar as contas, o 1 Outra das aventuras de Bebéi e os pelagatos. 2 “O ultimo voo do Condor”, “Lembranças do Fim do mundo” e “O Macaquinho 17 que já era um bom começo. E como queria saber mais sobre a vida do húngaro Bebéi sabia onde encontrar as respostas; não havia nada acontecido ou por acontecer em Santa Clara que não fosse comentado frente ao guarda sol amarelo de Grená, a vendedora de bilhetes de loteria. Chegou cauteloso pois não queria levantar suspeitas e sabia que Grená era muito mais rápida do que ele no pensamento. Primeiro disfarçou seu interesse e perguntou se ela sabia quem tinha vivido no apartamento que ele estava alugando. Depois de escutar com uma expressão interessada, perguntou então se ela sabia quem tinha vivido no andar de baixo e ela respondeu enquanto entregava o troco a uma das enfermeiras do centro medico. – Ali vivia um estrangeiro, acho que alemão, que dava aula de musica na escola municipal. Viveu por muito tempo em Santa Clara e um dia sem que ninguém esperasse, avisou Carmela, que era diretora da escola, de que não ia mas dar aulas e se foi sem dizer aonde ia. A informação ainda era pouca mas Bebéi saiu contente, Carmela era sua amiga e ela certamente lhe contaria tudo que ele necessitava saber. Não explicou a Grená o por que da pergunta e na falta de uma explicação, ela mesmo teve de deduzir a razão: – Desconfio que Bebéi anda buscando apartamento para comprar – e como muitas das novidades que contava, talvez não fosse exatamente a verdade, mas sempre ajudava a puxar conversa com o primeiro que passava por ali. Na manhã do dia seguinte depois de arquivar os documentos deixados no escaninho de entrada e encontrar todos os papeis requisitados pelos funcionários de embaixada, atividade que sempre exercia com zelo e perfeição, Bebéi finalmente pode conversar com Carmela. E aqui talvez seja importante explicar que quando Carmela se aposentou depois de trabalhar toda sua vida como professora e depois diretora da escola municipal de Santa Clara, ela também foi trabalhar na embaixada da França onde dividia uma pequena sala com Bebéi. Ele cuidando dos 18 arquivos e ela escrevendo com sua caligrafia elegante o nome do destinatário em toda correspondência enviada pela embaixadora. E como nem sempre havia muito trabalho os dois tinham muito tempo para conversar. – Arpad Corvinus era seu nome e não era alemão e sim húngaro. Um homem muito educado e atencioso, mas que parecia ser uma pessoa solitária. Ensinou musica por dez anos na escola. Era sempre um dos primeiros a chegar e dava suas aulas com grande dedicação. Era muito respeitado pelos alunos e estou certa que Jordi e Cristina devem lembrar. Um belo dia, quando o ano já estava terminando, ele entrou em minha sala e disse que não ia mas ensinar. Apenas informou e se foi. Nunca mais tivemos noticias dele. Não era muito, pensou Bebéi, mas ao menos ele sabia o nome de Arpad. E aquela tarde quando voltou a encontrar Jordi, feliz saindo de sua entrevista, repetiu o que Carmela tinha contado. – Obvio que conheci. Foi meu professor de musica e também de Cristina. Não sabia que era ele quem vivia ali. Cristina chegou a fazer parte de uma orquestra que ele montou com as alunas e até chegaram a se apresentar na prefeitura –e seguiu contando enquanto os dois caminhavam– Deve ser por isso que ele tinha todos aqueles instrumentos no seu apartamento. Jordi então esqueceu do húngaro e começou a contar coisas e mais coisas de Cristina até que Bebéi depois de ouvir educadamente por alguns minutos lhe recordou que seu interesse era conhecer um pouco mais sobre o professor e não sobre sua namorada. – Lembro também –continuou Jordi um pouco frustrado– que Cristina contava que ele sabia tocar vários instrumentos mas que não podia tocar bem a nenhum deles pois lhe faltavam dois dedos da mão –e depois de uma pausa para recordar– Lembro que ela também contava que as vezes quando estavam ensaiando com a orquestra, ele esquecia o que estava fazendo e ficava parado olhando os alunos. Mas lembro bem que ela gostava muito dele. 19 Bebéi continuava intrigado. Como alguém pode ir embora deixando o apartamento completamente montado? E não era apenas isso. Como alguém pode desaparecer sem que ninguém ficasse sabendo? A duvida continuava, será que ele foi embora ou será que o mataram? Para estar mais seguro ele preferiu contar o que sabia a Pirilo. O tenente era seu amigo e certamente não se incomodaria em saber que ele entrou no apartamento do húngaro sem autorização. Quem sabe se juntos eles poderiam desvendar mais este novo mistério? Tenente Pirilo era o segundo filho da Grená dos bilhetes e trabalhava, mas não muito, como chefe da segurança da prefeitura. Sempre foi um professional sério e inteligente mas tinha fama de ser excessivamente acomodado. Diziam que dedicava a maior parte de seu dia ao dominó, ao futebol e a passar as noites na casa da noiva. Importante porem deixar claro que vagabundo ou não, Pirilo sempre acabou resolvendo os mistérios e trazendo a paz de volta as ruas de Santa Clara. Bebéi lhe contou tudo o que sabia e propôs uma visita ao apartamento, mas o tenente não estava convencido. O apartamento estava vazio a mais de dez anos e ele mal lembrava quem era o húngaro, mas Bebéi insistia e insistia muito. Lembrou que se ninguém tivesse tentado descobrir quem era o morto desconhecido no dia em que a banda desfilou, eles jamais teriam descoberto quem era o Condor; lembrou também que se não fosse o esforço para descobrir por onde andava a canadense, que eles nunca teriam conseguido evitar a guerra do fim do mundo entre chineses e americanos; depois continuou recordando o esforço que eles fizeram para descobrir quem era a mulher que o magico queria matar2... e neste ponto, Pirilo decidiu interromper. Era impossível resistir a insistência de Bebéi e seria muito mais fácil acompanha-lo em uma rápida 2 “O ultimo voo do Condor”, “Lembranças do Fim do mundo” e “O Macaquinho vestido de Napoleão” as três primeiras aventuras de Bebéi e os pelagatos. 20 visita ao apartamento. Uma visita que ao final acabou por não set tão rápida quanto imaginava. Entraram com a mesma chave escondida no rodapé e a claridade fazia com que tudo parecesse ainda mais misterioso. Com a luz eles podiam ver todos aqueles pequenos objetos espalhados pela sala do apartamento. Abriram os armários e dentro encontraram as roupas ainda penduradas. As gavetas, tanto no quarto quanto na sala também estavam cheias com roupas, objetos e papeis. Até a cozinha estava completa e também chamou a atenção de Pirilo a panela, o prato, o garfo e a faca dentro da pia. Tudo era tão curioso que Pirilo foi se entusiasmando e observando os detalhes. Na geladeira e no armário da cozinha ainda haviam alguns vidros e latas de alimentos destruídas pelas formigas. Pirilo também percebeu que a chave geral de eletricidade tinha sido desconectada e que o apartamento, se não fosse a sujeira, estava pronto para ser habitado. A cama estava feita e as toalhas estavam no banheiro. Os remédios estavam no armário do espelho, a escova de dentes, o pente e a tesoura para cortar unhas, tudo coberto por dez anos de abandono, poeira e teias de aranha. As mascaras penduradas na parede, trinta e duas segundo Bebéi, eram todas africanas. Com a luz do dia pareciam mais belas e menos assustadoras com seus detalhes coloridos. Os instrumentos musicais que também pareciam ser africanos ainda que estivessem cobertos de pó pareciam estar prontos e talvez afinados para tocar. Os pequenos objetos que decoravam o apartamento eram quase todos africanos mas na parede a entrada da cozinha haviam alguns bonecos pendurados que pareciam ser marionetes asiáticas. Na estante uma coleção de adagas douradas que recordaram Bebéi a adaga que tinha em seu apartamento e que foi uma das poucas coisas de seu tio argelino que ele ainda guardava consigo. Ainda mais impressionante eram as fotos na parede da sala de jantar. Certamente mas de cem, algumas com imagens europeias 21 onde se viam edifícios que recordavam a Bebéi os que ele conhecia em Paris. Outras pareciam ser da África com lagos e montanhas e em muitas o húngaro aparecia cercado de amigas e amigos que pareciam ser africanos. Havia uma foto do que parecia ser a Casba de Argel que tantas vezes seu tio lhe havia mostrado e também fotos do deserto como aquelas que encontraram no apartamento da canadense quando ela desapareceu. Pirilo e Bebéi saíram do apartamento ainda mais confusos do que entraram. E o tenente ficou tão curioso com tudo o que viu que no dia seguinte decidiu fazer uma visita ao escritório de advogados. O zelador tinha passado o endereço e ele preferiu ir sem avisar para aproveitar a surpresa. O escritório parecia ser pequeno e o jovem advogado que lhe recebeu não parecia ser um professional experimentado. Explicou que eles eram apenas os representantes locais de um importante escritório de advogados de Miami e o único que ele pode fazer foi confirmar que o apartamento pertencia ao húngaro. Para surpresa de Pirilo, e do advogado, ninguém ali parecia saber que o húngaro tinha desaparecido. O advogado também contou que eles seguiam instruções transmitidas pelo húngaro anos atrás. Cuidavam do pagamento das despesas e impostos utilizando os recursos de uma conta de poupança do húngaro que eles também administravam. E explicou a Pirilo: – Seguimos estritamente suas instruções e como os juros da conta de poupança são bem maiores que as despesas do apartamento, continuamos fazendo a mesma coisa por vários anos e nunca recebemos uma reclamação. Obvio, pensou Pirilo, como seguiam recebendo a comissão e o húngaro tinha desaparecido, administrar seu apartamento era fácil e um excelente negocio. – O apartamento não é a única propriedade dele que administramos –comentou também o advogado e Pirilo apenas 22 anotou; eu interesse naquele momento era entender por onde andava o húngaro e não o que ele tinha. O advogado confirmou que o nome do húngaro era Arpad Corvinus e que ele havia nascido em Budapest em 1926. Confirmaram também que ele era musico de profissão e trabalhava como professor na Escola Municipal, mas Pirilo saiu dali com as mesmas duvidas com que entrou e dois dias depois recebeu uma visita que lhe deixou ainda mais intrigado. Era um advogado do escritório de Miami. Um homem mais velho e bem vestido que pelo que ele mesmo explicou, viajou a Santa Clara especialmente para conhecê-lo. Perguntou do húngaro, dos seus herdeiros e até perguntou por Bebéi: – Agora que sabemos que o Senhor Arpad desapareceu necessitamos encontrar algum outro membro da família. As perguntas do advogado até que pareciam normais mas havia alguma coisa em sua expressão que incomodava a Pirilo. Era verdade que ele era um pouco preguiçoso, mas tonto ele não era e no meio daquelas perguntas ele percebeu que advogado estava escondendo alguma coisa. – Melhor manter os olhos bem abertos –foi seu comentário aquela tarde quando encontrou outra vez com Bebéi. 23 24 4 Como tudo vai bem ninguém se importa com o húngaro que desapareceu A gaivota ferida no terraço de Bebéi era o grande assunto da cidade. Do húngaro quase ninguém se lembrava mas da gaivota todos sabiam. Na calçada frente ao casarão amarelo, turistas se revezavam para tirar fotografias do pássaro imóvel detrás da balaustrada. Todos os dias alguém inventava uma nova piada e até o português do supermercado, que nunca perdia a oportunidade de promover seu negocio colocou um anuncio na televisão dizendo que a gaivota estava ali atenta para garantir que seus preços eram os melhores da cidade. Instalou também um telescópio na entrada do supermercado para que todos pudessem ver de perto a gaivota de Bebéi no seu terraço. Os mais românticos diziam que a gaivota era uma alma solitária que estava dali observando a mulher que lhe havia abandonado para trabalhar na Rua das Francesas. Outros mas brincalhões replicavam dizendo que era a alma da falecida que apenas estava esperando que o viúvo tentasse se aproximar de uma mulher para voar e bicar a arma do crime. A gaivota ficou tão conhecida que até Grená decidiu sair do seu guarda sol para ir ao apartamento conhecê-la. O problema foi que ela tirou uma foto ao lado da gaivota que mostrava a todos, o que acabou por detonar uma romaria de crianças e não tão crianças para tirar sua foto dando de comer a gaivota no terraço de Bebéi. 25 E como ele não sabia dizer não, passava o dia levando e recebendo gente no seu apartamento. A peregrinação só acabou quando o medico do centro de saúde desaconselhou as visitas dizendo que a gaivota poderia transmitir doenças contagiosas e Tenente Pirilo, para salvar Bebéi do tormento, colocou um cartaz na porta: Visitas a gaivota estão proibidas por ordem da prefeitura. A única exceção foi o próprio prefeito que levou seus principais assessores para uma foto que foi publicada nos principais jornais da cidade onde ele aparecia agachado no terraço, colocando uma sardinha no bico da pássaro. Santa Clara Frente ao Mar vivia um momento como nunca antes havia vivido. O prefeito continuava roubando como sempre mas não perdia uma oportunidade de ser simpático com todos que viviam ali. Tirava fotos com a gaivota; distribuía brinquedos para as crianças, todos comprados com dinheiro da prefeitura e que incluíam uma gorda comissão; entregava garrafas de vinho para os pelagatos, obviamente que escondido de sua esposa; patrocinava os concertos da banda municipal no coreto da praça da Catedral onde quase sempre levava uma artista da televisão para distribuir autógrafos e que depois era honrada com um jantar. E quando ele tinha sorte, com um final de semana privado no hotel favorito do prefeito escondido em uma praia da Republica Dominicana. Depois que mandou Cristina, a jovem assistente de Pirilo que teimava em investigar o que não deveria ser investigado estudar nos Estados Unidos e finalmente tinha construído a fonte da praça da Gabriela, com barulhinho de agua e tudo, exatamente como Ilona a dona do Café queria, ele não tinha mais oposição na cidade. Seguia os conselhos da sua assessora a loura sérvia que conhecia profundamente Maquiavel e graças a isso era amado por todos. E como todos estavam felizes, continuava roubando tudo o que podia roubar. Todos os contratos da prefeitura sem exceção eram entregues a algum de seus amigos e todos eram supervisados de perto por seu irmão, que era quem administrava o caixa dois e as comissões. 26 Santa Clara era uma mina de ouro e não apenas pelos chineses que chegaram comprando propriedades e colocando ali a sua embaixada, mas principalmente pelos turistas. Desde que o prefeito lançou seu plano de desenvolvimento turístico que os negócios da cidade cresciam. Com as obras da prefeitura, todas sobre-faturadas, a cidade estava mais cuidada e com isso mais turistas chegavam para visita-la. E quanto mais eram os turistas, mais os de Santa Clara ganhavam dinheiro e melhoravam os seus negócios. O prefeito reabilitou as ruas trocando as pedras do calçamento e refez as calçadas rebaixando todas as esquinas para facilitar a vida aos descapacitados o que lhe valeu ate uma menção especial dada pela revista da associação nacional de aposentados dos Estados Unidos. Renegociou o contrato com o italiano, sócio e amigo que recolhia o lixo, e assinou um novo contrato multimilionário que garantiu que a cidade ficasse mais limpa e que ele e o italiano ficassem ainda mais ricos. Os casarões, as igrejas e todos os edifícios foram pintados de novo graças a tinta que a prefeitura comprou e revendeu aos que queriam pintar suas casas com um grosso subsidio. O que deixou a cidade brilhando e a sociedade que ele tinha com seu outro sócio, o romeno, cheia de dinheiro com a comissão que levaram na compra da tinta. – Uma aliança perfeita entre setor publico e setor privado –como explicava o prefeito a todos os jornalistas. A Cooperativa Bobo Ashanti criada por Rasta Bong o filho mais velho de Grená que levava turistas a passear pela baia já contava com mais de vinte escunas e empregava quase todos os rastafáris da cidade. O novo supermercado do português, que segundo Grená parecia coisa de filme americano, estava sempre cheio e o restaurante mexicano da Juanita tinha sempre uma fila de turistas na porta, surpreendendo a todos que pensavam que ela não resistiria a concorrência do McDonalds que abriu bem no vizinho. Com os turistas chegaram novos hotéis e com os novos hotéis chegaram os novos turistas. Os espanhóis restauraram alguns 27 casarões abandonados que se transformaram em pousadas de luxo e o único casarão que permanecia abandonado era aquele onde vivia a velha que inventava historias e os quatro irmãos ciganos. Segundo o que diziam, aquele casarão, que sempre foi um dos mistérios da cidade, estava protegido por algum feitiço e uma herança conflitiva. Mas tudo o mais havia sido restaurado e estava brilhando. E o que dava a aquilo tudo um toque especial é que em Santa Clara ainda viviam os que sempre viveram por ali. Foram poucas as famílias que tiveram de sair com os novos investimentos. Os vizinhos de sempre continuavam caminhando pelas calçadas. Continuavam comprando suas coisas nas mesmas lojinhas, tomando café na mesma padaria e passando todos os dias frente ao guarda sol amarelo de Grená para saber as ultimas novidades e perguntar como andava a gaivota de Bebéi. O curioso, é que era exatamente essa combinação de beleza e historia com um ambiente de pequena cidade que atraia gente de todos os lugares do mundo. Santa Clara Frente ao Mar não era um cenário montado para impressionar visitantes, era una cidade de verdade, que estava tão feliz quanto a sua gente. Mas tudo isso foi antes de começarem os rumores de uma nova Santa Clara, e disto trataremos mais tarde pois enquanto nos distraiamos comentando a cidade, Bebéi seguia confuso e a gaivota já não era o seu único problema. – Como é possível que alguém desapareça de uma hora para a outra sem que ninguém possa dizer onde ele foi? Em Paris foram poucos os que perceberam quando ele partiu, lembrava Bebéi, talvez os colegas de trabalho no ministério, mas apenas eles. Quando vivia em Malakoff ele tomava o metro todos os dias para trabalhar, fazia suas compras no grande supermercado, assistia ao futebol, as noticias e os filmes pela televisão do apartamento e quase nunca falava com ninguém Provavelmente nenhum dos vizinhos notou quando ele partiu. Em Santa Clara era diferente. Ali todos o conheciam e ele sempre cumprimentava aos amigos quando caminhava pelas ruas. Será que o húngaro do apartamento debaixo também 28 cumprimentava as pessoas na rua? Esse pensamento lhe incomodava, rodava e voltava como uma obsessão. Será que alguém sentiria sua falta se um dia ele desaparecesse? Bebéi recordava o dia em que foi sequestrado pelos carteis nos tempos da morte do Condor. Naquele dia foi seu cachorro quem saiu pelas ruas chamando a atenção de todos. Será que que as pessoas lhe conheciam apenas pelo cachorro? Será que o húngaro tinha um cachorro como o seu? Tenente Pirilo que junto com Bebéi jantava o risoto de polvo a provençal preparado pelas mãos benditas de Dona Cécy, a cozinheira do Café de Ilona, também estava intrigado. – Será que ele foi assassinado ou será que se matou? –e continuava comentando enquanto saboreava com prazer cada garfada que levava a boca– Acreditar que ele simplesmente fechou o apartamento e desapareceu não faz o menor sentido. E tem mais. Ninguém deixa as roupas no armário e os pratos na pia quando vai viajar. Alguém apenas sai assim se vai voltar logo – e ai lembrou – Mas antes de sair ele desligou a chave da eletricidade, sinal de que sabia que ia demorar. Mas para onde ele foi? Bebéi escutava e sentia que precisava saber mais sobre a vida do húngaro. Além de Pirilo ninguém parecia se importar com ele, mas para Bebéi o húngaro era importante... e muito. Era seu vizinho e sempre viveu ali sozinho como ele. Aquela noite ele não conseguiu dormir. A vontade de fazer alguma coisa agoniava seu peito e foi enquanto andava pelas ruas com o cachorro que ele recordou as palavras do tio: – São estes desejos fortes e incompreensíveis que apertam o estomago, que dão cor a nossas vidas. Tudo mais são ornamentos que colocamos apenas para impressionar aos outros. Não lhe parecia correto que todos continuassem ignorando seu vizinho e pensando nisso ele regressou ao apartamento, deixou o cachorro no terraço cuidando da gaivota e com a lanterna na mão voltou outra vez ao apartamento do húngaro. Ele ia olhar 29 cada papel, cada objeto e cada foto que estava ali ate entender por que Arpad se foi sem avisar e tinha que começar rápido pois na manhã do dia seguinte ele tinha de ajudar Frei Bernardo a abrir sua pizzaria. 30 5 Enquanto o frade vende pizzas os ladroes esvaziam o apartamento Frei Bernardo já não era mais frade e estava abrindo uma pizzaria. E se você não conhece a historia do Macaquinho vestido de Napoleão, lhe conto que Frei Bernardo era um homem profundamente religioso que se dedicava com paixão ao trabalho que fazia na igreja, mas que depois de conhecer Gigi, a amiga de Ilona, teve sua predileção pelo celibato seriamente afetada. E como foram muitos na cidade que se solidarizaram com ele quando o arcebispo lhe expulsou da igreja, era grande o apoio que vinha recebendo para abrir sua pizzaria. Frei Bernardo era toscano e aprendeu a fazer pizza com seu pai antes mesmo de aprender a rezar, mas dai a abrir uma pizzaria em Santa Clara era um longo e árduo caminho. Ling o chinês lhe alugou um imóvel que antes utilizava como deposito e que com pouco dinheiro podia ser transformado em um restaurante. Ilona, que insistia em que faltava uma pizzaria na cidade, ajudou com a compra do forno e de todo o material para a cozinha. Junto com Rasta Bong, o filho mais velho de Grená, ela acompanhou Frei Bernardo ao banco e ajudou a conseguir o empréstimo assinando como fiadora. Kay, a filha de Ling, que fazia a contabilidade de quase todos os negócios de Santa Clara, ajudou com a papelada e pediu a Bebéi que apoiasse o frade que nunca em sua vida tinha lidado com tanto papel. Rasta Bong, quem já tinha aberto inúmeros negócios na cidade também indicou em detalhes tudo o que ele tinha de fazer e a quem procurar. Mas tudo isto não foi suficiente, Frei Bernardo tinha uma forma muito especial de fazer as coisas e foi esta a razão da 31 reunião do dia seguinte. Os amigos estavam ali, menos Bebéi que não apareceu. – Não aceito e não vou aceitar pagar suborno a ninguém – e falava com tanta veemência que misturava algumas palavras em italiano que não pareciam apropriadas na boca de um frade, ainda que fosse um ex-frade. – Não vou pagar a comissão aos inspetores da secretaria de saúde pois eles sabem que minha câmera refrigerada é nova e esta funcionando de acordo com as mais modernas normas. E nem a este bando de cornutti da secretaria de trabalho que sabem que todos os empregados aqui, são registrados e não me dão a autorização para funcionar–e seguia repetindo com raiva– Também não vou pagar a questi mafiosi dos bombeiros que revisaram a cozinha, sabem que tudo esta em ordem e se recusam a dar a licença... e nem a estes filli di putani da prefeitura que ainda não me deram a licença para abrir a pizzaria apesar de que todas as obras já estão terminadas... nem a estes sporcci da secretaria de finanças que ainda não liberaram os documentos que Kay lhes entregou a mais de dois meses... e sabem que mais, vaffanculo tutti questi scemi do Patrimônio Histórico que sabem muito bem que não mudei absolutamente nada na fachada mas continuam pedindo uma comissão para liberar a construção. Rasta, Kay, Ilona e até Gigi tentavam explicar que sem pagar estas “comissões especiais” talvez tomariam meses ou mesmo anos para lograr obter as licenças necessárias, mas o frade insistia em que pagar suborno era tão criminoso quanto aceitalo. E o que devia ser uma reunião de negócios acabou por se transformar em uma reunião de princípios onde as paixões ensurdeceram a Rasta Bong e Frei Bernardo que já estavam aos gritos quando Ilona, que manteve sua serenidade, percebeu que não era muito o que conseguiriam avançar naquela manhã – Por hoje chega. Melhor continuar amanhã e Rasta, por favor, passe pela casa de Bebéi para ver o que houve. Não é normal que ele esqueça um compromisso. E por favor que esta seja a 32 ultima reunião que fazemos pela manhã. Vocês sabem que tenho dificuldades em pensar com tanto sol. Rasta saiu e o frade foi com ele. Os dois continuaram discutindo enquanto caminhavam pelas ruas. Rasta era absolutamente pragmático. A noite, quando fumava seus cigarrinhos tudo o que lhe importava era a poesia da musica, das cores e dos movimentos, mas durante o dia ele não fumava e fazia tudo o que devia fazer para manter os pequenos negócios que tinha criado com os amigos, que iam desde a cooperativa com os rastafáris, ate os taxis com Miguel seu amigo de infância, passando pela barbearia que herdou de seu pai e a orquestra dos ciganos. – Com esta mania de querer entender e discutir tudo, você não vai conseguir nada –insistia Rasta com seu amigo Frade. Foi apenas quando subiam as escadas do casarão que finalmente pararam de discutir. A porta do apartamento do andar de baixo estava aberta, o que parecia curioso, mas como nenhum dos dois conhecia a historia do húngaro, eles continuaram subindo até o apartamento de Bebéi. Tocaram varias vezes e perceberam pelos latidos do cachorro que algo estranho estava acontecendo. Rasta Bong chamou seu irmão Pirilo por telefone e ele estranhou ainda mais. – Bebéi nunca sai sem o cachorro. Ele deve estar dentro do apartamento – e ainda com o telefone na mão, saiu da prefeitura para encontra-los. Chegou rapidamente, encontrou com os dois na porta da rua e quando subiam as escadas, Pirilo percebeu a porta do apartamento do húngaro aberta e decidiu entrar. Aquilo decididamente não parecia normal. A surpresa que teve foi ainda maior do que na primeira visita. Tudo que ele antes tinha visto nas paredes coberto de pó e teias de aranha tinha desaparecido e o apartamento estava um caos. Entrou no quarto e ali a desordem era total. As gavetas estavam abertas e as roupas, e tudo que antes estava dentro delas, não 33 estava mais ali. Foi só então que ele abriu a porta do banheiro e encontrou Bebéi amarrado e amordaçado dentro da banheira. E considerando o que tinha acontecido, ele até que estava bem. Não estava ferido. – Desta vez não me quebraram o braço – lembrando o dia em que ele foi sequestrado pelo bando do El Cuspa. Depois, já mais tranquilo, sentado no sofá Bebéi contou que ninguém o tinha agredido. Os bandidos apenas o amarraram dentro do banheiro para poder fazer o seu trabalho. – Eram quatro homens mascarados que chegaram quando estava olhando os armários do quarto. Ele explicou que tinha ficado ali até de madrugada tentando descobrir mais coisas sobre o húngaro e quando estava dentro do quarto, escutou um ruído na sala e viu os quatro. – Usavam mascaras e luvas e isso foi tudo que pude ver. Depois me colocaram amarrado na banheira. O apartamento estava completamente revirado. Até na cozinha eles tinham entrado e tudo estava jogado no chão, como se procurassem alguma coisa dentro dos armários. – Abriram as portas sem arrombar nada –comentou Pirilo– Provavelmente tinham as chaves. Um roubo que parecia curioso pois levaram tudo o que encontraram, roupas, papeis, as fotografias que estavam na parede, as mascaras e ate as pequenas estatuetas que o húngaro tinha nas estantes e nas mesinhas da sala. Limparam completamente as gavetas e ate levaram os instrumentos musicais. Apenas deixaram o piano. – E por que alguém rouba fotos penduradas na parede. Que merda vão fazer com estas fotos? –reclamou Rasta Bong que de tanta raiva tirou a boina da cabeça e as tranças rastafáris caíram ate quase tocar o chão. 34 – Eram professionais –respondeu Pirilo começando a organizar seus pensamentos– Não foi um simples roubo. Pelo que contou Bebéi eles tinham mascaras e luvas mas estas marcas na poeira do chão não tem traços de solas de sapatos, o que significa que eles estavam usando também algum tipo de proteção nos pés para não deixar pistas. Estavam procurando alguma coisa e como não tinham tempo para encontrar o que queriam, levaram tudo pra revisar depois em outro lugar –e comentou consigo mesmo– Curioso, o apartamento passou dez anos fechado é só agora, três dias depois que Bebéi descobriu que o apartamento vazio estava cheio, eles aparecem para roubar. Pirilo então se virou para Bebéi que estava sentado no sofá ainda um pouco tonto depois de ter passado tanto tempo amarrado dentro da banheira: – Eu lembro que no dia em que estivemos aqui você levou um diploma que estava na parede– e Bebéi confirmou. Naquele dia uma folha de papel emoldurada tinha chamado a atenção dos dois. Eles não sabiam ao certo se era um diploma ou um convite pois estava em alemão, mas estava dentro de uma moldura sofisticada e nele aparecia em grandes letras o nome de Adolf Hitler. Aquela moldura foi o único que sobrou depois do roubo pois estava no apartamento de Bebéi que em meio a toda aquela emoção esqueceu de mencionar que antes da chegada dos ladrões tinha colocado no bolso o envelope que estava no chão perto da porta do apartamento. – Olhe que absurdo. Nem aos ladroes lhes importam os livro – foi o comentário irônico de Frei Bernardo ao perceber que na estante da sala, a prateleira com os livros permanecia intacta. E foi então que Bebéi surpreendeu a todos levantando do sofá com um enorme sorriso e pedindo para levar os livros do húngaro para o seu apartamento – Talvez podemos saber algo mais sobre ele estudando os livros que leu. 35 Pirilo não conseguia entender… Como era possível que Bebéi estivesse sorrindo e interessado em livros depois de passar toda a noite amarrado e amordaçado? De que poderiam servir aqueles livros? Alguns estavam em alemão outros em francês e alguns escritos com umas letras que Pirilo nem sabia o que significava. Entre o dominó, o futebol e as mulheres nunca lhe sobrava tempo para ler e ele nem conseguia lembrar o nome daquele livro, que segundo contava a todos com orgulho, leu duas vezes para fazer um trabalho para escola. Bebéi ao contrario, sempre viveu conhecendo bem a importância de notas, livros, cadernos e papeis. Importantes pelo que contavam como também pelo que escondiam e o que Pirilo não sabia é que antes da chegada dos quatro ladrões ele tinha encontrado uma foto muito interessante guardada dentro de um dos livros. Uma foto tão especial que ele preferiu não contar a ninguém antes de estar seguro do que tinha visto. Pirilo instruiu seus assistentes a revisar em detalhes o apartamento em busca de pistas e Bebéi regressou ao apartamento para buscar o cachorro e leva-lo a passear. Eram muitas os pensamentos que se misturavam em sua cabeça e apenas quando caminhava ele conseguia pensar. Roubaram tudo o que o Húngaro tinha deixado ali. Levaram as fotos, as roupas, as estatuetas e até os cadernos e as partituras de musica. Esvaziaram todas as gavetas e por sorte não encontraram o mais importante; os livros. Ele agora tinha tudo que necessitava para descobrir quem era o húngaro e isso ele não ia contar a ninguém. Apenas a Irigandi, a menina indígena, pois dela ele nunca escondia nada. Para ele o mais importante agora era saber quem era o húngaro, porque ele tinha partido sem avisar e porque ele guardava escondido dentro de um livro aquela foto de seu pai quando vivia na Argélia. 36 6 Si tocou para Hitler, era um nazista. Que bom que lhe roubaram tudo! Para evitar maiores confusões é importante explicar aqui quem era seu pai, o que não é necessariamente uma tarefa fácil pois nem o próprio Bebéi o conheceu. O único que sabia, pois seu tio lhe havia contado, era que seu pai era argelino e tinha lutado ao lado do General de Gaulle com a resistência para expulsar da França os alemães. Aparentemente participou de muitas ações importantes e por isso, ao final da guerra, foi condecorado pelo próprio De Gaulle e recebeu a cidadania francesa. Depois da guerra conheceu e se casou com uma jovem francesa cheia de ideias revolucionarias. Teve com ela um filho e quando Bebéi ainda tinha dois anos seu pai decidiu que depois de libertar a França dos nazistas ele deveria regressar ao seu pais para liberta-lo de seus invasores. E sua mãe foi com ele. O único problema era que os invasores da Argélia eram os mesmos franceses a quem ele tinha ajudado a libertar. Bebéi permaneceu em Paris vivendo com o tio que tinha excelentes pensamentos mas pouco dinheiro e por isso foi obrigado a coloca-lo em um orfanato onde ele viveu toda a infância sempre pensando em seu pai e sua mãe, até dia em que seu tio lhe contou que os dois tinham sido executados pelo exercito francês. Ele apenas conheceu seu pai por fotografias e de sua mãe nem isso. As poucas fotografias que o tio guardava foram levadas pela policia no dia em que eles invadiram o apartamento em 37 busca de mais informações sobre seu pai. Foi apenas alguns anos depois quando os jornais publicaram uma foto dos revolucionários argelinos que seu tio lhe mostrou quem era seu pai. Aquela foto era a única imagem que ele tinha dele e era esta mesma foto que o húngaro guardava dentro de um dos seus livros. Bebéi passeou com seu cachorro por todo calçadão a beira mar e ainda que estivesse cansado não queria parar de caminhar. Foi andando ate as ruinas do velho forte e chegou até o rio que separava a cidade antiga do bairro mais pobre onde as casas eram simples e os turistas nunca visitavam. A vontade que sentia era a de seguir caminhando sem parar, mas não podia, ele tinha de voltar e levar o papel que estava na moldura para Frida. Ela era alemã e poderia traduzi-lo. E enquanto Bebéi regressava ao seu apartamento aproveito para contar que Frida quando jovem foi uma revolucionaria trotskista que nos anos setenta, depois de colocar uma bomba na estação de trens em Stuttgart, foi presa e depois, torturada pelo remorso, saiu perdida pelo mundo e chegou em Santa Clara, primeiro como prostituta e depois como uma velha bêbada, sentada nos degraus da escadaria da Igreja das Mercedes. A alemã já estava um pouco acabada mas ainda era forte e violenta e isso quem sabia bem era o almirante americano, comandante geral da quarta frota, que cometeu a loucura de chama-la de bêbada durante a invasão de Santa Clara e que levou tamanho sopapo no nariz que nem com todas as cirurgias que fez depois, jamais reencontrou seu desenho original. Aquele soco tornou Frida famosa, mas famosa ou não ela continuava dormindo nos degraus das Mercedes com os outros pelagatos. Cuidando da sua vida sem incomodar a ninguém, desde que, obviamente, ninguém lhe cruzasse o caminho pois sua paciência era bem limitada. Bebéi a respeitava e sabia como trata-la. Como necessitava um favor, também tinha de retribuir com outro e passou pelo supermercado para comprar uma garrafa de vodca. Ela 38 agradeceu o presente, tomou uns três dedos de um só gole e depois com calma pediu os óculos que Nullo Rompido, o mais velho dos pelagatos, guardava entre suas coisas. Leu o papel dentro da moldura e explicou a Bebéi que aquilo era o convite para um jantar. Dizia que no dia 19 de Março de 1944 no palácio Schloss– Klessheim em Salzburg, Adolf Hitler o “Führer des Großdeutschen Reiches” que segundo explicou significava líder do grande império alemão, recebia para jantar ao Almirante Miklos Horthy, Regente da Hungria. Descrevia também o que eles iriam comer e ao final mencionava que antes do jantar, “em uma demonstração da histórica união entre os dois países”, o jovem violinista húngaro Arpad Corvinus executaria a Dança Húngara numero 5 do compositor alemão Johannes Brahms. – Filho da puta –disparou Frida– teu húngaro era um nazista. Um comentário deselegante que incomodou profundamente a Bebéi. Como podia ser verdade que o húngaro, o vizinho do andar de baixo fosse um nazista? Um sale cochon como dizia com raiva e desprezo seu tio em Paris. Isto não podia ser verdade e como quem entendia bem destas coisas de historia era Jose Princesa o livreiro, Bebéi deixou Frida ali falando sozinha seus insultos aos nazistas em alemão e foi voando até a livraria. Princesa não estava e quem estava ali era o novo assistente recém contratado, que segundo a manicure da barbearia era ainda mais bonito que Jordi. Princesa estava no atelier de modas como Lola Marlene, e se você ainda não sabe, lhe conto que Jose Princesa o livreiro e Lola Marlene, sensual cantora do cabaré maldito e desenhadora de modas, são a mesma pessoa, apenas que um se veste de homem e a outra de mulher, algo com que Bebéi e todos de Santa Clara conviviam já a algum tempo com a mais perfeita naturalidade. 39 Bebéi esperou que Lola terminasse de atender a esposa do embaixador argentino, lhe mostrou o menu do jantar e explicou o que Frida tinha comentado. José Princesa que mesmo quando se vestia como Lola Marlene era apaixonado por tudo que os livros contavam, foi com Bebéi a livraria para consultar alguns livros até que encontrou uma referencia a aquele jantar. – Este jantar foi muito importante. –explicou Princesa– Enquanto jantava com o regente húngaro, Hitler havia instruído o exercito alemão a invadir a Hungria ao som do violino do teu amigo nazista. Outra vez a acusação de nazista que tanto incomodava a Bebéi, mas ele queria saber mais e Princesa explicou que em Março de 1944 as coisas estavam se complicando para os alemães. – Na Itália as forças aliadas já estavam atacando o sul de Roma e os alemães estavam com dificuldades para resistir. Do outro lado de Europa o exercito soviético tinha libertado Leningrado – e seguiu contando detalhes daquele período da guerra até que explicou– Aparentemente Horthy, o regente húngaro, estava traindo Hitler com algumas negociações secretas com os soviéticos. Foi por esta razão que Hitler lhe convidou para aquele jantar e enquanto jantavam começou a invasão do território húngaro. – Quer dizer então que é verdade que o húngaro era um nazista? –perguntou Bebéi resignado. – Parece que sim –respondeu Princesa. E aquilo confirmou a primeira das surpresas que Bebéi teve aquele dia. Da livraria ele foi ate o Café de Ilona sempre com seu cachorro ao lado. Quem sabe se ali ele esquecia a tristeza de ter um vizinho que era nazista? Mas ali uma nova surpresa. Já na porta seu cachorro percebeu que alguma coisa diferente estava acontecendo. Correu para o terraço do restaurante que dava para o calçadão e viu Ilona e Irigandi brincando com um pequeno 40 cachorrinho que Paul, o namorado de Ilona, tinha acabado de presentear a Irigandi. O cachorro de Bebéi podia ser a reencarnação de um monge budista mas ao ver Irigandi e Ilona acariciando o filhotinho ele perdeu completamente sua postura Zen e não conseguiu disfarçar um profundo ciúme. Bebéi percebeu a tristeza e imediatamente demonstrou sua solidariedade saindo do restaurante. Ilona e Irigandi entendiam mas que podiam elas fazer? O filhotinho era tão pequeno e tão doce. Aquela tarde Bebéi ainda tinha um encontro marcado com um veterinário amigo de Jordi que se havia oferecido para visitar a gaivota. O veterinário foi ao apartamento e ao entrar reconheceu que nunca antes tinha tratado uma gaivota mas que podia examinar o ferimento. Foram ate o terraço e enquanto o veterinário a examinava, Bebéi respondia aos gritos as perguntas dos turistas que da calçada acompanhavam curiosos. Ele examinou, tocou na asa, limpou algumas partes que estavam sujas com um pouco de algodão e definiu seu inesperado diagnostico: – Pelo que pude ver ela não tem nada. Decididamente que sua asa não esta ferida. Apenas suja com o que parece ser algum tipo de graxa. Tenho certeza que a qualquer momento ela vai sair voando outra vez, e se não voou ate agora e por que o senhor deve estar lhe tratando tão bem que ela decidiu aproveitar e ficar no terraço. Um roubo e três surpresas em um único dia, pensava Bebéi; O húngaro era nazista, Irigandi tinha um novo cachorro e a asa da gaivota não estava ferida. E para completar, depois que o veterinário partiu, tocaram a campainha do seu apartamento com mais novidades. Era um dos assistentes de Pirilo avisando que o apartamento estava liberado e que ele podia buscar os livros do húngaro. Eram apenas vinte seis livros e ele sabia por que os tinha contado e recontado. Para os ladrões eram apenas livros que 41 dariam muito trabalho levar, provavelmente algo parecido com o que pensaram Pirilo e seus assistentes que estavam tão acostumados a ver livros fechados nas estantes que nem tiveram curiosidade em abri-los. Mas Bebéi tinha os olhos de um arquivista e ao bater os olhos já percebeu que eram vinte seis livros colocados em ordem alfabética pelo nome do seu autor. Um livro para cada uma das letras do alfabeto. E eles não estavam ali por acaso: The shield of Achilles, W.H. Auden Die verlorene ehre der Katharina Blum, H. Boll Heart of darkness, J. Conrad Justine, L. Durrel The hollow men, T.S. Elliot Le crime de Sylvestre Bonnard, A. France Die Blechtrommel, G. Grass Siddhartha, H. Hesse Hedda Gabler, H. Ibsen Ulysses, J. Joyce Der prozeß, F. Kafka Woman in love, D.H. Lawrence Eszter hagyatéka, S. Marai Veinte poemas de amor y una canción desesperada, P. Neruda 1984, G. Orwell Доктор Живаго, B. Pasternak Giorno dopo giorno, S. Quasimodo Briefe an einen jungen dichter, R. M. Rilke Az ajtó, Magda Szabo Воина и мир, L. Tolstoi Niebla, M. Unamuno Eneida, Virgilio Leaves of grass, W. Whitman La montagne de l’ame, G. Xingjian Her praise, W.B. Yeats Germinal, E. Zola Bastou uma rápida olhada para que ele suspeitasse que o que o húngaro tinha ali era um arquivo e quando na noite do roubo, 42 antes da chegada dos ladroes ele abriu o primeiro dos livros, o de Auden, ele encontrou ali a fotografia de seu pai. O húngaro antes de ir embora tinha organizado ali um arquivo guardando notas pessoais, cartas e fotografias dentro das paginas daqueles livros. Qual era a razão, Bebéi não sabia, mas certamente deveria ser algo importante. Aquele arquivo escondia algum segredo e com paciência ele ia descobrir, mas não iria contar nada a ninguém pois quem tinha roubado o apartamento do húngaro poderia voltar para roubar o seu. Ele lembrou também que ainda tinha com ele o envelope encontrado no apartamento. Uma carta que chegou talvez pouco tempo depois que o húngaro partiu e que alguém, sem saber, empurrou por debaixo da porta. Para sorte a carta estava em Frances. Era uma carta de poucas linhas que parecia ter sido escrita por uma menina e que apenas dizia. “Sou a filha de Morgen. Vivo em Kinshasa com minha avó, a mãe de meu pai e pelo que me contaram talvez você também seja meu avô. Se isso for verdade, me avise que quero muito conhecê-lo.” Aquela carta tinha sido escrita mais de dez anos antes e nunca ninguém tinha respondido. O húngaro que se foi tinha uma neta chamada Laurence Será que ele sabia? Será que ele partiu para encontrá-la? Mas a carta estava fechada e o húngaro se foi antes de recebê-la. Por sorte a carta trazia um endereço. Quem sabe a neta ainda vivia ali? 43 44 7 Nem as loucuras de Paul distraem a atenção do detetive Bebéi Nos dias que se seguiram Bebéi dividiu seu tempo entre suas três grandes preocupações: cuidar da gaivota que não estava ferida, entender o sistema utilizado pelo húngaro para organizar seu arquivo e por ultimo mas certamente não menos importante, acalmar os ciúmes que seu cachorro sentia. Com relação a gaivota não havia muito o que fazer. Ela continuava imóvel no terraço contente com a companhia do cachorro que já não dormia aos pés de Bebéi e sim no terraço ao lado de sua nova amiga; uma que nunca lhe havia traído! Na rua os turistas seguiam com sua romaria tirando fotos e pelo que diziam, na entrada do supermercado do português já eram três os telescópios apontados para o terraço. Jose Princesa comentou que o português tinha até colocado um anuncio na televisão dizendo que a gaivota estava tão fascinada com os preços baixos do supermercado que tinha decidido ficar por ali. Entender o arquivo, o segundo dos seus problemas, era apenas uma questão de tempo e paciência. Ele era um arquivista e sabia que cada arquivo tinha a sua logica e o único que necessitava era descobrir qual era a logica do húngaro. O problema é que algumas das notas estavam escritas em línguas que ele não conhecia e para não levantar suspeitas ele tinha de ser muito cauteloso ao pedir ajuda Ele rapidamente percebeu que não havia uma relação direta entre o idioma dos livros e o idioma das notas ali guardadas. Percebeu também que não havia nada dentro do livro de 45 Xingjian. Ali, na ultima pagina, apenas estava escrita uma frase simples e ao mesmo tempo misteriosa; “meu ultimo livro... de que me serve seguir lendo?”. No livro de Zola também não haviam notas. O único que havia era um pequeno envelope grudado em uma das paginas com uma chave dentro. Pelas duvidas, ele preferiu tira-lo dali para guarda-lo em um lugar mais seguro. Em quatro dos livros as notas estavam escritas em húngaro e por sorte ele conhecia o arquivista da embaixada da França em Budapest. Os dois trabalharam um bom tempo juntos em Quai D’Orsay em Paris e ele podia lhe pedir ajuda. O arquivista de Budapest não conhecia ninguém em Santa Clara e por isso não representava um risco. As notas em húngaro estavam dentro dos livros de Hesse, Joyce, Lawrence e Pasternak. No livro de D.H. Lawrence havia uma foto bem antiga de uma cigana e atrás estava escrito Lali. No libro de James Joyce uma longa carta firmada por alguém que se chamava Janus Corvinus e no libro de Herman Hesse estavam algumas cartas de Horthy o regente húngaro, o que parecia indicar uma relação entre a primeira letra do sobrenome autor do livro e o assunto das notas que ali estavam guardadas. L de Lali, J de Janus e H de Horthy. Mas ainda era muito cedo para tirar conclusões. Escreveu ao amigo de Budapest contando o que havia descoberto e que estava curioso para saber mais sobre a vida de Arpad. Bebéi sabia que ele não teria problemas em ajuda-lo pois quando trabalhavam juntos ele sempre se entusiasmava quando aparecia alguma investigação deste tipo. As notas em francês, espanhol e português ele poderia ler. Em Paris ele cuidava dos arquivo dos países ibéricos e por isso havia estudado bem os dois idiomas. As outras ele decidiria depois. O que ele precisava era tempo e paciência. Duas coisas que eram mais fáceis de controlar que os ciúmes do cachorro que, este sim, estava totalmente indignado. 46 Varias vezes Bebéi tentou leva-lo ao Café mas ele se recusava. Nem na rua do restaurante queria mais passar mas aquela noite Bebéi queria pedir a pequena Irigandi que lhe ajudasse a esconder a chave. Guardada com ela e dentro da casa de Ilona, a chave certamente estaria bem protegida. E foi com o cachorro, pois gostando ou não, ele tinha de se acostumar com a ideia que sua jovem amiga agora tinha seu próprio filhotinho. Mas foi difícil, ele teve que utilizar toda força para arrasta-lo até o restaurante. Sentou em uma das mesas do terraço e amarrou o cachorro ao pé da cadeira. Ilona que percebeu o que estava acontecendo pediu a Irigandi que se aproximasse para acaricia-lo como sempre. Passaram alguns minutos assim e só quando ele estava mais tranquilo e que foram buscar o filhotinho. Irigandi apesar de ser uma jovem sempre foi a grande amiga de Bebéi desde o dia que ele chegou a Santa Clara. Era uma indígena que por ser cega nunca pode ver o que os outros veem, mas que nasceu uma Nele que é como seu povo chama aqueles que nascem com o dom de ver o que ninguém mais pode ver. Chegou a Santa Clara junto com seu avô, um dos grandes sábios de seu povo e desde que ele morreu vivia com Ilona. E enquanto os cachorros se cheiravam e se lambiam debaixo da mesa eles aproveitaram para conversar. Fazia tempo que Paul, o Professor de Nebraska e namorado de Ilona, não contava a Bebéi como andavam suas investigações e o Café aquela noite estava tranquilo. Muitos consideravam Paul um louco. Ainda mais louco que os pelagatos que dormiam frente a igreja das Mercedes. Mas era um louco com dois doutorados, um em física e outro em historia, respeitado por todos os loucos do mundo que acreditavam na existência de vida em outros planetas. Desde que chegou em Santa Clara se enamorou de Ilona e por isso acabou ficando. Ela insistia que o único homem de sua vida tinha sido o Condor, mas como finalmente ele estava morto, 47 Ilona decidiu deixar Paul viver com ela em sua casa. E como explicava a Dona Cécy: – É um excelente remédio para acalmar minhas ressacas matinais. Ele foi enviado a Santa Clara pelos Departamento de Defesa, para verificar se havia algum fundamento nos rumores de que havia algo escondido nas matas do Darién que como um dia explicou o avô de Irigandi “era ainda mais belo que o ouro pois guardava todo o conhecimento dos antepassados.” O problema é que segredo estava tão bem protegido pelos guardiães que nunca ninguém conseguiu encontra-lo. Um problema que se agravou quando algumas explosões causadas por perfurações de petróleo provocaram um incêndio que destruiu toda aquela parte da selva e tudo que ali estava escondido. Com ou sem o segredo do Darién, Paul decidiu ficar em Santa Clara e dali saia em viagens pelo mundo que depois transformava em livros de arqueologia espacial publicados em vários países. Suas ideias e aventuras eram conhecidas por todos em Santa Clara e até Grená, que vendia os bilhetes já era uma especialista em galáxias, planetas e sondas espaciais. E aquela noite Paul explicava os planos de sua próxima viagem: – Se queremos saber para onde podemos ir no dia em que nos ocorra uma catástrofe é bem provável que civilizações de outros planetas também queiram conhecer suas opções. Um planeta com temperatura e clima como o nosso é uma perola preciosa no meio do universo. E enquanto ele contava suas historias, debaixo da mesa o cachorro de Bebéi começava a se interessar pelas lambidas do filhotinho de Irigandi. A jovem indígena foi a única a perceber, pois não necessitava ver para sentir. – Suponham por um minuto que isso seja verdade. Suponha que eles nos visitaram e queriam preservar nosso planeta. Se foi assim é bem provável que deixaram aqui algum tipo de 48 informação que pudera nos ajudar –e Paul falava com seus olhos em Ilona que se distraia com todas aquelas divagações. Não lhe gostavam homens chatos e monótonos que apenas sabiam conversar de futebol, politica e negócios. E certamente que Paul não era um deles. Irigandi escutava atenta e calada. As loucuras e Paul pareciam muito com as loucuras que seu avo contava sobre o segredo do Darién e ela estava cada vez mas segura que com a ajuda do professor seu povo poderia entender muitas coisas que nunca antes haviam entendido. Bebéi também escutava mas a verdade é que seu pensamento estava longe ali. Por muito tempo ele tentou ajudar Irigandi a entender o segredo que estava escondido na selva. Ele sabia que para ela e para seu avô isto era muito importante. Mas tudo isso foi antes. Desde que Paul chegou, Bebéi percebeu que o professor podia ajuda-la muito mais do que ele e com isso ele podia se concentrar nos seus próprios problemas. E desde que a gaivota pousou no seu terraço que eram muitas as coisas com que ele tinha de se preocupar. Verdade que já não tantas pois depois daquele jantar no Café seu cachorro tomou carinho pelo filhotinho, mas entender o arquivo do húngaro e por que ele havia desaparecido continuava sendo uma obsessão. Naquela noite antes de sair ele contou em segredo a Irigandi que havia encontrado a chave no livro de Emile Zola e pediu que ela guardasse onde ninguém pudesse encontrar. – Melhor não contar a ninguém, nem mesmo a Ilona. Os bandidos não vão descansar até descobrir quem esta com a chave e de ti ninguém vai desconfiar. Com a missão cumprida ele regressou ao apartamento para continuar com suas investigações e o primeiro que queria entender era porque a fotografia de seu pai estava ali. No livro de Auden, além da foto de seu pai junto a outros lideres do movimento de liberação da Argélia também haviam algumas notas referentes a aquele pais, onde aparentemente o húngaro 49 viveu de 1958 ate 1960. Não havia nenhuma referencia especificamente ao seu pai mas haviam algumas notas onde se mencionavam os contatos com os principais lideres revolucionários da Argélia. No livro de Quasimodo, haviam poucas coisas e por sorte todas estavam escritas em francês. Um endereço de Quebec no Canada, alguns extratos bancários e alguns papeis que ele não consegui entender mencionando um certo Walden. O livro que tinha mais notas dentro era o de Conrad. Ali todas as cartas, anotações pessoais e fotos pareciam estar relacionadas com o Congo. E pelo que Bebéi pode entender o húngaro viveu ali por mais de dez anos. Mas as notas daquele livro mencionavam pessoas e lugares que ele não conhecia. Ainda que ele não entendesse o que diziam as notas, tudo parecia confirmar que havia uma relação entre a primeira letra do sobrenome do autor e a palavra chave do arquivo. Argélia para Auden, Congo para Conrad e Quebec para Quasimodo. No libro de Anatole France haviam algumas notas em português que falavam de algumas pessoas e de problemas políticos em Angola e Moçambique, mas não havia nada ali que tivesse algo a ver com a letra F. Paciência, pensou Bebéi, ele estava apenas começando. O único problema que lhe incomodava e muito era que Frida tinha contado a todos que seu vizinho húngaro era um nazista. Bebéi não podia aceitar que alguém que tinha vivido no andar de baixo ao seu; que tinha instrumentos musicais na sala; que foi professor de Cristina e de Jordi e amigo de Carmela fosse um nazista, mas a Trotska insistia com suas piadas e não era apenas ela. Todas as vezes que passava pelas escadarias da igreja das Mercedes os pelagatos sempre lhe perguntavam pelo nazista. Entre as fotos que ele encontrou no arquivo do húngaro havia uma que provava definitivamente que Arpad não era nazista mas como fazer para poder mostra-la? Ninguém em Santa Clara sabia do arquivo do húngaro e era melhor que ninguém soubesse. Mas como incomodava aquela historia. Ele tinha de 50 fazer alguma coisa para que definitivamente Frida parasse de chamar o húngaro de nazista. 51 52 8 Os planos revolucionários do prefeito para uma Nova Santa Clara Em Santa Clara toda semana trazia sua novidade. Lucia, a que foi beata e agora andava pelas ruas com suas roupas apertadas de ginastica, ia inaugurar sua academia e era isto que todos comentavam. Lucia ate os seus vinte anos foi uma das beatas mais religiosas da cidade. Não faltava nunca a missa das sete da manhã e trabalhava todos os dias como assistente da mulher do prefeito. O único problema era que ela ficava tensa e começava a suar toda vez que passava em frente ao Negro Zen meditando sem camisa com seu peito forte pelas na praça da idade. Isso durou ate o dia em que os rastafáris da cooperativa decidiram tirar suas roupas no calçadão de beira mar para protestar contra o prefeito. Naquele dia ela não aguentou. Esqueceu a virgindade e trocou as missas diárias por sessões de ginastica e yoga que sempre fazia com uma malha sensual. Como seu pai era o administrador do porto e chefe da loja maçônica e não aceitava a ideia de ter uma filha frequentando salões desconhecidos, ele a ajudou a abrir sua própria academia. Era um galpão antigo que o porto já não utilizava e ela conseguiu todas as licenças e autorizações necessárias em tempo recorde, o que não era de surpreender, pois como contava Grená, qualquer coisa se podia conseguir no porto que seu pai administrava, ate embarcar drogas, desde que pagando as devidas comissões. 53 A academia foi inaugurada com uma exibição de dança moderna na escadaria da igreja das Mercedes. Desde que o magico fez aquele espetáculo em frente a igreja que todos queriam fazer suas apresentações por ali. Obviamente que isto incomodava muito aos pelagatos e acabou causando grandes discussões até que tudo foi resolvido por Nullo Rompido o chefe da confraria. Como antes de ser um bêbado ele foi banqueiro e poderoso, Nullo sabia muito bem como fazer grandes negociações. Os pelagatos estabeleceram uma taxa em garrafas de vodca que qualquer um tinha de pagar se quisesse utilizar as escadarias ou o terraço da entrada e com isto o problema foi resolvido. Lucia podia promover sua academia nas escadarias e os pelagatos se embebedariam tranquilos por toda a semana com vodca importada. A academia não era um tema importante mas todas as vezes que eles se reuniam com Frei Bernardo para conversar sobre a pizzaria, Rasta Bong recordava: – Vê como você é um babaca! Lucia paga todas as comissões e subornos necessários e já esta abrindo sua academia e tu com teus princípios não vai conseguir abrir nunca esta pizzaria. E tem mais, a partir do próximo mês começam os pagamentos de aluguel. E ai, como é que você vai fazer para pagar o chinês? O frade que já não era mais frade insistia em não pagar comissões e já tinha conversado com a mulher do prefeito que também não compreendia como alguém tinha de pagar suborno para poder abrir um negocio honesto. Foi ela quem insistiu em acompanha-lo a uma visita ao prefeito que se demonstrou chocado com tudo o que escutou: – Não posso acreditar. Vou abrir imediatamente uma investigação e podem ficar tranquilos que em menos de uma semana tudo vai ser resolvido – e isso foi três semanas antes. O que nenhum dos dois ficou sabendo é que depois que saíram o prefeito chamou o irmão em seu gabinete 54 – Quem este louco pensa que é? Será que esta achando que só porque comeu a gostosona da Gigi pode fazer o que quer? Olho com ele! Se não pagar comissão por fora não abre –e pontificou– Não vamos abrir nenhum mal precedente em nossa administração. Rasta Bong que já não sabia mais o que fazer foi reclamar com Ilona. – Si ele não paga o que lhe pedem não abre a pizzaria. E se não abre a pizzaria não vai poder pagar o banco. Como nos dois somos os fiadores, o que vai acontecer é que vamos ter de pagar pela sua teimosia –mas Ilona explicou que não parecia ser muito o que eles podiam fazer. De todos os subornos o que mais incomodava ao frade era o do Corpo de Bombeiros. Ele tinha absoluta consciência dos perigos de um incêndio em meio a todos aqueles casarões antigos e por isso insistiu em comprar equipamentos absolutamente testados e seguros ainda que mais caros. Colocou também dispositivos modernos de seguridade contra incêndios e nem assim eles queriam aprovar sua licença. Seguiam insistindo que faltava concluir uma avaliação da madeira utilizada na escada que levava ao deposito, o que era apenas mais uma desculpa, pois na semana anterior tinha sido o diâmetro de saída do exaustor e antes a distancia entre o fogão e a parede. Sua raiva aumentou ainda mais com o incêndio da sorveteria italiana que todos sabiam pertencia a mulher do italiano da empresa de lixo sócio do prefeito em vários negócios. Com o incêndio, todos os jornais noticiaram que o incêndio começou no sistema elétrico e questionavam: por que a sorveteria, que não cumpria com as regulamentações mais básicas tinha obtido a licença dos bombeiros em menos de uma semana? O frade aproveitou o incidente para visitar os jornais e explicar tudo o que estava acontecendo. Pediu também publicamente que se fizesse uma inspeção em sua pizzaria com participação de jornalistas. A discussão tomou tal dimensão que o assunto acabou saindo no noticiário da televisão. 55 O prefeito abriu outra investigação e a licença da pizzaria saiu no dia seguinte, mas essa era apenas uma das tantas licenças e autorizações que ele necessitava e Bernardo que já não era frade, decidiu aproveitar o interesse dos jornais para denunciar a todos que lhe estavam extorquindo. A repercussão foi tão grande que ele até recebeu convite da Câmara de Comercio para fazer uma apresentação no seu almoço semanal. Tudo aquilo incomodava muito o prefeito que não queria confusões com a imprensa pois estava a ponto de lançar seu megaprojeto neo revolucionário. A ideia do projeto não era nova. Alguns investidores da Arábia Saudita e um grupo de holandeses tinham apresentado tempos atrás propostas para construir um mega-hotel e alguns cassinos em Santa Clara mas a ideia não tinha avançado. O que era novo, diziam os rumores e que os dois grupos se haviam juntado a outros grupos internacionais também poderosos e estavam apresentando uma super-mega proposta. A primeira a perceber que algo estranho estava acontecendo foi obviamente Grená. Segundo ela contava no seu guarda sol amarelo, o motorista do irmão do prefeito tinha escutado em uma conversa que a ideia era construir uma nova cidade onde terminava o calçadão a beira mar. Pelo que ele tinha escutado o projeto começaria no forte em ruinas que passaria a ser parte de um grande hotel e de um enorme shopping center que seria construído frente a uma nova marina para grandes iates e alguns edifícios de mais de cinquenta andares para apartamentos e escritórios. Os rumores foram crescendo ate que o cunhado de Carmela que antes de se aposentar foi engenheiro da prefeitura, descobriu e contou a todos que a área construída do novo projeto seria três vezes e meia a área construída da cidade antiga, incluindo teatros, igrejas e o edifício da prefeitura. – O pior –dizia ele– é que existe um outro projeto de um grande hotel com cassino do outro lado da cidade que apresentado por 56 uns investidores russos e que certamente seria aprovado se o projeto da nova cidade avançasse. Com todos aqueles projetos novos a cidade ficaria completamente cercada por grandes edifícios e pelo que contava o engenheiro, apenas o cinema que iam construir teria seis salas onde mas de mil pessoas poderiam estar assistindo filmes ao mesmo tempo. Uma mudança dramática se comparada a sala da prefeitura que apresentava novos filmes todas as terças e quintas a noite para não mais de cinquenta pessoas por sessão. O projeto incluiria uma nova avenida de seis pistas para entrar e sair da cidade antiga e, segundo diziam, até o rio que desembocava no mar depois do forte iria desaparecer. Pelo que se comentava toda agua seguiria passando por tubos subterrâneos e onde antes passava o rio seria construído o novo shopping center com cinemas e vários restaurantes das grandes cadeias americanas. – Como é possível –reclamava indignado o Coronel Viera– ali esta o centro de treinamento onde todos os soldados e oficiais das forças armadas foram treinados. Que vão fazer com o centro? – Leva-lo para o norte da cidade, ali onde esta a nova mesquita dos muçulmanos– explicou o engenheiro quase causando um enfarto no Coronel. O engenheiro também explicou que para construir o novo projeto as empresas construtoras iriam trazer mil trabalhadores de outras partes do pais e outros mil mais de países vizinhos. Santa Clara seria uma das maiores cidades de todo o Caribe, cheia de americanos e europeus que rapidamente se mudariam para viver ali. – Façam o que quiser desde que não construam nada em frente ao terraço do restaurante –era o que dizia Ilona mas Gigi, não estava de acordo. – Você enlouqueceu. Você acha que todas estas pessoas que hoje vem ao café para beber, dançar e contar historias vão 57 continuar aparecendo no dia que esta cidade estiver cheia de gringos? Os clientes que você gosta não são estes de camisas coloridas e bermudas. Você gosta dos vagabundo aventureiros e sonhadores e estes não vão querer mais vir por aqui com todas estas torres e estes shopping centers Você não lembra o inferno que foi teu Café nos tempos da invasão? Você acha que vai poder sair bêbada do Café no final da madrugada e dar uma mijada no meio do calçadão a beira mar como você deu ontem a noite quando tudo isto estiver construído Acorda mulher, isto vai ser um inferno. Gigi não era a única que pensava assim. Todos em Santa Clara já tinham passado pela invasão da cidade por americanos e chineses nos tempos do fim do mundo. A invasão transtornou toda cidade. Todos ganharam muito dinheiro, mas não tinham quase tempo e tranquilidade para gasta-lo. Tenente Pirilo insistia em dizer que nos tempos da invasão varias vezes ele teve de suspender o domino da tarde por falta de parceiros. – Como vamos fazer?–perguntavam todos e ninguém sabia a resposta. – Será que não podemos convencer o prefeito a suspender o projeto–perguntou Bebéi a Nullo Rompido que respondeu com toda sabedoria de quem antes foi banqueiro. – Se o projeto é tão grande como estão falando, o prefeito vai ganhar tanto dinheiro em comissões que jamais vai cancela-lo. Dioclecio Bergantin o filosofo da praça da Catedral que sempre escutava a todos calado acariciando seus gatos, assustou a todos exclamando: – Se fazem esta merda eu me vou daqui! –e nunca antes ninguém ali tinha escutado o velho Dioclecio chamar alguma coisa de merda. Bebéi se foi sem entender. Se tudo estava tão bem na antiga Santa Clara, porque fazer uma nova? 58 9 Como pode um húngaro nazista tomar café com Che Guevara? Os planos da nova cidade já estavam causando apreensão nas escadarias da Igreja das Mercedes onde os membros da confraria dos pelagatos se reuniam para suas importantes discussões. Coronel Vieira, que antes de ser um bêbado quase foi o chefe supremo das forças revolucionarias do pais tentava convencer Robespierre e Frida a lutar contra os planos do prefeito. E a cada dia que passava o Coronel parecia mais estranho: – Tudo o que querem é nos expulsar das Mercedes. Primeiro tentaram com os venezuelanos do bando do Cuspa e como não conseguiram, mandaram a quarta frota americana que apenas não conseguiu graças ao sopapo que Frida meteu no nariz do almirante. E quando aquele magico andou por aqui, se o prefeito chegava a expulsar os estudantes da praça ele certamente viria depois atrás de nos. Como resistimos heroicamente nas barricada, ele agora quer construir estes apartamentos para trazer mais dos nossos inimigos a Santa Clara. Temos de resistir. Robespierre estava tão bêbado que continuava dançando uma valsa com duas pombas empoleiradas em um pedaço de pau, um truque que ele havia aprendido com o magico, enquanto Frida, que não dava a menor atenção ao que Coronel falava, tentava entender como aquele militar aposentado, que antes apenas pensava em bundas e peitinhos acabou por virar um velho paranoico. 59 Nullo Rompido que por ser o mais velho acreditava que tinha o direito de abrir e fechar as reuniões da confraria, um direito unanimemente questionado por todos os demais, preferia se fazer de desentendido. Ele tinha simpatias pelo prefeito. Gostava das garrafas de vinho que ele deixava no meio da noite e estava suficientemente sóbrio para saber que não havia nada que um bando de pelagatos pudesse fazer para deter os planos de grandes investidores internacionais. Ele lhes conhecia e sabia como atuavam, afinal das contas um dia ele também foi um deles. Bebéi não tinha simpatias pela ideia de uma nova cidade, escutava o que se falava mas sem grande interesse. Na verdade tudo aquilo era secundário pois o único que lhe importava era entender o que o húngaro tinha escondido no seu arquivo. E era nisso que voltou a trabalhar assim que conseguiu sair com a fotografia do Che nas mãos e voltar ao seu apartamento. As notas em francês sobre o Congo que estavam no livro de Conrad, descreviam o assassinato de alguém que se chamava Patrício Lumumba e de um ditador que se chamava Mobutu que aparentemente era um grande assassino mas que recebia algum tipo de apoio do húngaro. Ele não conhecia a historia do Congo e tinha muita dificuldade em entender. O que ele sabia fazer bem era ler os títulos para arquivar os documentos. Tinha uma memoria fotográfica e uma forma de pensar que lhe permitia visualizar todos os arquivos com que trabalhava como se tivesse um mapa escondido dentro da cabeça. Era isso o que ele sabia fazer, arquivar e encontrar papeis, mas desde criança nunca conseguiu ler mais de uma pagina de um livro sem se perder. Sua cabeça se distraia com outras coisas e por mais que se esforçasse, seus pensamentos voavam e ele não conseguia se concentrar na leitura. Ele precisava de ajuda para compreender o que passou no Congo e sabia que Jose Princesa podia ajuda-lo mas como pedir 60 ajuda sem dizer que os documentos do húngaro estavam no seu apartamento. Primeiro ele tentou ler as notas em espanhol, especialmente as que estavam no livro de Henrich Boll. Ali haviam notas comentando países africanos, especialmente a luta do ditador do Congo que se chamava Mobutu com um tal de Agostinho Neto que vivia em Angola. Bebéi desconfiava que o libro de Boll era onde o húngaro arquivavas notas que faziam referencia a um tal de Barba Roja que parecia ser um cubano que participava em muitas discussões sobre África e talvez Barba Roja fosse a chave daquele arquivo. No livro de Magda Szabo a palavra chave parecia ser Santa Clara pois foi ali que Bebéi encontrou alguns documentos em espanhol sobre o apartamento que o húngaro tinha em Santa Clara, o contrato com a empresa de advogados que administrava os bens do húngaro e algumas referencias a uma outra propriedade que aparentemente ele também havia comprado na cidade. Naquelas notas do livro de Szabo não havia nenhuma referencia a politica ou a vida do húngaro. As notas mais interessantes pareciam estar no livro de Gunter Grass, pois ali estavam todas as provas de que o húngaro não era nazista. Como alguém pode ser nazista e ao mesmo tempo ser amigo do Che Guevara? Haviam ali algumas cartas do Che onde ele agradecia ao húngaro por ter apresentado Tamara. Aparentemente ela era amiga de Arpad e ele a apresentou a Guevara quando ele esteve em Leipzig para algumas reuniões com o governo da Alemanha Oriental em 1960. Haviam também outras cartas onde Che Guevara comentava os acontecimentos do Congo e em todas elas ele sempre incluía um paragrafo contando como estava Tamara. E o mais importante, havia uma foto onde o Che aparecia com sua boina de guerrilheiro, ainda bem jovem, e ao seu lado uma jovem mulher de cabelo negro também com uma boina e um homem europeu de cabelos claros que parecia ser Arpad. Os três 61 sentados em uma mesa e atrás da foto estava escrito “Leipzig 1960 com T e G.” Bebéi que já começava a entender a logica do arquivo do húngaro decidiu dar uma olhada no livro de Tolstoi para ver si ali havia alguma referencia a Tamara e o que viu confirmou o que pensava pois as notas guardadas naquele livro faziam referencia a ela, mas tudo ali estava escrito em alemão e ele não conseguia entender. Cada vez mais ele sentia que precisava de ajuda. O arquivista de Budapest lhe ajudaria com as notas que estavam em húngaro mas ele necessitava pedir ajuda a Frida para entender o que estava escrito em alemão e também necessitava ajuda de Jose Princesa para entender o que aconteceu no Congo e em toda África, mas como fazer? Ele tinha enviado uma carta para o mesmo endereço que aparecia no envelope da carta de Laurence, a neta do húngaro, dizendo que era vizinho do apartamento de Arpad e que estava procurando saber por onde ele andava. E foi ao recordar aquela carta que Bebéi teve a ideia de inventar uma mentira. Não era uma grande mentira, o que não seria aceitável frente aos seus rígidos princípios morais, mas uma pequena mentira que lhe permitiria salvar a reputação do húngaro sem ter de dizer que tinha todo o arquivo. Colocou a fotografia do húngaro com Guevara no bolso e foi ate a esquina das Mercedes com ar decidido de quem de uma vez por todas queria acabar com a má reputação de seu vizinho. Chegou com seu cachorro e Frida que estava bem humorada não quis perder a oportunidade e mal ele cruzou a rua, ela se aproximou da amurada cantando um hino alemão e imitando a saudação nazista. Bebéi sorriu pois sabia que ela fazia apenas por brincadeira mas a verdade é que este tipo de brincadeira lhe incomodava. Ele não sabia ainda o que o húngaro fazia, mas sabia que ele não era um nazista. 62 Preferiu conversar com Frida a sós e por isso foi com ela para dentro da igreja. Sua intenção era ser discreto e manter o que conversavam em sigilo mas quando a alemã viu a fotografia do Che ela ficou eufórica. Chamou Robespierre que se aproximou para ver mas não conseguia pois seus olhos já não enxergavam quase nada. Nullo não encontrava seus óculos e tiveram de pedir ajuda na barbearia onde foram salvos pelo judeu Moses que cortava ali seu cabelo. Quando Robespierre finalmente reconheceu quem estava ao lado do húngaro começou a chorar e em prantos subiu na amurada do terraço a entrada da igreja para convidar a todos que ali passavam a se aproximar e ver a fotografia do honorável guerrilheiro internacionalista Che Guevara, que o companheiro Bebéi havia encontrado. Ele estava tão emocionado que não conseguia parar de gritar e começou a cantar a Internacional Socialista no que foi acompanhado por Frida que se divertia ao olhar a expressão confusa de Bebéi que não compreendia absolutamente nada do que estava acontecendo. Ao final do hino Robespierre, saiu correndo pelas ruas anunciando a grande novidade e durante todo o dia uma romaria de amigos e inimigos passaram pelas escadarias das Mercedes onde Frida orgulhosa mostrava a fotografia do Che Guevara a todos os visitantes. O húngaro que ate aquele momento não era conhecido por muitos em Santa Clara, passou a ser famoso como o amigo do Che, o que para Bebéi parecia ser melhor do que ser um nazista. O difícil para ele foi quando Grená e Pirilo começaram com suas perguntas. – Onde você conseguiu esta foto? – Foi a neta do húngaro que me mandou. 63 – E como você sabia que o húngaro tinha uma neta? – e foi apenas ai que ele contou a Pirilo da carta que eles encontraram no apartamento. – E que mais ela disse na carta – e quando Bebéi respondeu que nada, Grená insistiu. – Como pode ser que não te disse nada? Ela apenas te mandou a foto e mais nada? – e Bebéi já começava a se confundir em sua própria mentira. – Esta foto estava na carta que encontramos ou em outra carta que ela te mandou depois– perguntou Pirilo Bebéi começou a gaguejar e os dois perceberam que ele estava escondendo alguma coisa e decidiram não pressionar. Mais tarde com mais tranquilidade e sem tantas pessoas a volta, Grená e Pirilo facilmente descobririam o que Bebéi estava escondendo. O importante ali é que o húngaro não era nazista e sim um comunista o que para Coronel Vieira era igualmente uma porcaria. 64 10 Sábado dia de encontrar os amigos para jogar um pouco de conversa fora. Manhã de sábado, dia de aproveitar a tranquilidade da Praça da Catedral e conversar com os amigos, pelo menos era isto o que pensava Dioclecio Bergantin sentado no banco em que sempre sentava bem em frente a livraria de Jose Princesa. A livraria seguia vazia mas isto não preocupava a Princesa pois o que Lola Marlene ganhava desenhando roupas era mais do que suficiente para pagar todas as suas despesas. E quando alguém lhe perguntava se não era melhor fechar a livraria ele respondia com firmeza: – De que vale uma cidade que não tenha a sua livraria? Bebéi já chegou na praça escutando a boa novidade; os resultados do concurso tinham sido publicados e Jordi tinha passado em primeiro lugar. Isso tal vez fosse uma má noticia para Ilona que perdia o melhor de seus garçons, mas era boa para Jordi que finalmente poderia dedicar mais tempo ao que mais gostava e Dioclecio ainda comentou: – Pena que como professor vai ganhar menos do que ganhava atendendo as mesas do restaurante mas pelo menos Ilona já lhe avisou que se quiser, ele pode trabalhar lá a noite para completar o salario. Os dois ficaram por ali dando de comer as pombas enquanto o cachorro de Bebéi corria pela praça com a cadela magrinha da Passarinho que em meio a sua eterna loucura seguia frente a Catedral distribuindo aos turistas convites para exibição de 65 teatro uruguaio que foi um grande êxito quando ocorreu pelo menos três semanas atrás. Poucos minutos depois Tenente Pirilo chegou por ali. Parecia distraído, mas a verdade é que ele queria aproveitar a calma daquele sábado para conversar com Bebéi e entender melhor a historia da fotografia e da neta do húngaro. Pirilo continuava desconfiado. E não pela mentira de Bebéi, pois ele o conhecia bem e sabia que não precisava se preocupar com nada que que o arquivista fizesse, o que lhe incomodava era o roubo ao apartamento do húngaro. Tudo parecia muito estranho. Pela descrição de Bebéi o roubo foi trabalho de profissionais mas por outro lado ninguém sabia o que os ladroes estavam procurando. Ele estava investigando e sua equipe ainda não tinha descoberto nada de concreto. Até os ciganos da orquestra que sempre sabiam de tudo que se passava nas ruas e que muitas vezes já lhe haviam ajudado a descobrir coisas que ninguém descobria, sabiam dizer quem tinha roubado o húngaro. Quem acabou por ajudar foi Ludmilla, a bailarina russa que antes dançava nua em um dos cabarés da Rua das Francesas, e que agora estava casada com Rasta Bong. Pirilo conhecia bem os segredos de sua cunhada e sabia que ela tinha muitos amigos fora de Santa Clara e que fazia parte de um grupo de anarquistas europeus que se entretinham em roubar obras de arte de velhos milionários, mas sobre isso, por prudência, ele nunca comentava. E foi ela quem chegou com a novidade: – Meus amigos escutaram de um conhecido em Miami, que alguém de muito dinheiro contratou um grupo de especialistas de primeira para vir aqui e limpar o apartamento. O roubo não foi coisa de pé de chinelo. Foi de profissionais e gente de primeira. Como é possível que alguém contrate professionais para roubar objetos pessoais de um húngaro que ninguém sabia quem era e que estava desaparecido a mais de dez anos sem que ninguém tivesse percebido. E isto, que não fazia o menor sentido, não era a única coisa que lhe intrigava; a visita que recebeu do 66 advogado de Miami aumentou as suas suspeitas. Tantos anos trabalhando com a policia que ele já sabia quando alguém estava escondendo a verdade e aquele gringo bem vestido com uma gravata que parecia valer mais do que um mês de seu salario, certamente sabia mais do que contou. Sentados ali na praça frente ao quiosque da banda Bebéi respondeu as perguntas de Pirilo e até tentou insistir com a historia de que a fotografia tinha chegado na carta da neta, mas foi se confundindo tanto que não teve outro jeito e contou a verdade. Pirilo escutou e ate se mostrou interessado em visitar o apartamento de Bebéi mas não aquela manhã. Tudo estava tão calmo e a praça tão agradável e para ele, por mais interessantes que fossem os documentos encontrados, parecia difícil acreditar que alguns papeis guardados dentro de velhos livros pudessem atrair a atenção de outra pessoa que não fosse Bebéi. Ele estava convencido que não era por aqueles livros que os professionais foram contratados para roubar o apartamento do húngaro. E estava seguro também que não eram notas e fotografias velhas o que aquele advogado gringo estava procurando. Pelas duvidas combinou de passar mais tarde pelo apartamento e aproveitou para telefonar a um de seus assistente e pedir uma atenção especial na segurança do casarão de Bebéi. O que ele não mencionou ao telefone, mas que seu assistente entendeu muito bem, era que dar uma atenção especial significava colocar ali uma das novas câmeras que lhes permitia acompanhar de uma sala na prefeitura quem entrava e saia do casarão amarelo. As câmeras de vigilância eram uma novidade na cidade e poucos sabiam da sua existência. Segundo o irmão do prefeito deveriam ser colocadas em alguns pontos estratégicos e como Pirilo não tinha muito claro o que fosse estratégico em Santa Clara, ele apenas colocou um par de câmeras para testar os equipamentos. 67 Colocou uma na entrada da Rua das Francesas e era a que mas atenção recebia de seus assistente que agora sabiam quem entrava e quem saia das visitas as mulheres e aos cabarés. Outra no campo de futebol depois do rio onde alguns marginais do antigo grupo de Silvino se reuniam para planejar suas atividades e uma terceira na entrada do calçadão, onde passavam as turistas de shorts e camisetas. E como foram muitas as câmeras compradas, Pirilo estava distribuindo as outras pela cidade e depois daquele telefonema uma foi para a esquina da casa de Bebéi. Pirilo ainda ficou por ali mais alguns minutos conversando com o Negro Zen, que sempre lhe perguntava noticias de Clara que antes de ser a namorada do tenente tinha sido sua esposa. Pouco depois Pirilo decidiu aproveitar a tranquilidade do sábado para jogar dominó na taverna com o amigos. Talvez o asturiano estivesse ocupado com os almoços de sábado, mas mesmo assim ele provavelmente encontraria alguns parceiros para jogar. Bebéi ficou por ali observando os cachorros que já não corriam tanto pois Irigandi havia chegado com seu cachorrinho. Curioso, pensava ele, tudo caminhava tão bem em Santa Clara. Os que tinham seus negócios estavam contentes e os turistas seguiam chegando para visitar a cidade. Por que será que agora que tudo estava bem, o prefeito tinha decidido tudo mudar? – Acho que é a crise da idade –opinava José Princesa– Desde que a amante jamaicana lhe abandonou por aquele rastafári bonito e forte que trabalhava de motorista na prefeitura que o prefeito já não é o mesmo. Passou um tempo com a loira da Câmara de Turismo mas ela lhe colocou um par de cornos com aquele artista europeu amigo da Riquita. E digo mais, aquela finlandesa pode ser bonita e gostosa mas é mais burra que uma porta –e continuava com seus trejeitos que divertiam a Bebéi– Pelo que me contaram o prefeito esta por fazer uma cirurgia plástica para tirar as rugas e os olhos empapados. Não duvido que amanha ele faça uma lipoaspiração e quem sabe até coloque uns peitinhos mais delicados como os meus –e concluiu 68 sorridente– Acho que é a idade. Foi por isso que ele inventou esta historia de uma Nova Santa Clara. Coronel Viera que antes de começar a beber e terminar como um dos pelagatos era um assíduo frequentador dos debates da praça, também opinou: – Quem manda não é o prefeito, é aquela Sérvia –referindo-se a assessora que o prefeito contratou quando ganhou as eleições e que antes tinha sido enfermeira e segundo alguns ate amante de Gadafi. Muitos na cidade atribuíam a ela toda a estratégia neorevolucionaria que aumentou a popularidade do prefeito. Ela quase nunca conversava com ninguém mas pelo que diziam era uma profunda conhecedora de Maquiavel e uma grande influencia oculta por detrás do prefeito. – Que Sérvia o cacete! – e isso quem dizia era Nullo que ainda não estava bêbado e aproveitava para esticar um pouco as pernas fazendo um esforço para não deixar cair suas calças mal amarradas na cintura. – Não é o prefeito e nem a assessora –seguia Nullo– Essa historia de Nova Santa Clara é uma coisa muito maior. Podem ter certeza que o prefeito, seu irmão e seus amigos vão ganhar muito dinheiro ajudando os árabes com este projeto – e todos escutavam com atenção pois destas coisas de dinheiro sem duvida que Nullo Rompido era um profundo conhecedor. Bebéi contou que escutou um comentário na embaixada de que o ex-embaixador da França tinha sido contratado pelos árabes para ser o presidente do projeto. Contou também que a embaixadora tinha recebido instruções de seu governo para apoiar o projeto, mas que para ela, toda a discussão da nova cidade, não era uma coisa que lhe interessava. – O único que interessa aquela nariguda –comentou Priscilia, o cabeleireiro que era amigo de Lola Marlene e que também tinha se juntado a conversa– são as aulas de meditação que o Negro Zen lhe dá. E pelo que ela comentou ontem enquanto fazia seu 69 cabelo, percebi que ela esta furiosa com a nova academia de Lucia. Parece que as mulheres de lá andam fazendo tantas sessões privadas de meditação com o Negro Zen que aquele gostosão safado já quase não tem tempo para ela. Rasta Bong que passava rapidamente por ali correndo entre sua barbearia e a cooperativa Bobo Ashanti com o ar de executivo que mantinha durante o dia antes de fumar seus cigarrinhos, comentou que os rastafáris também estavam preocupados com o projeto. – Eles acabaram de abrir o Centro Sailassie com um enorme salão para concertos de reggae e pelo que escutaram o novo centro esta bem no lugar onde querem construir a nova cidade. Entre os brother rasta, esta nova cidade é uma bad idea! Bebéi ainda ficou mais alguns minutos escutando a conversa mas preferiu se despedir e regressar ao seu apartamento. O cachorro já tinha passeado o bastante e ele queria aproveitar o resto do dia para tentar entender mais o arquivo do húngaro. Para sua surpresa, quando se levantou o Coronel Viera decidiu acompanha-lo. – Você tem de tomar muito cuidado. Já entraram no apartamento do húngaro e podem agora tentar entrar no seu. Eles tem microfones em todos os lugares. Pode estar certo que amanha tudo o que conversamos na praça será discutido em suas reuniões. E preciso tomar muito cuidado com os telefones e com tudo o que você fala nas ruas. Bebéi escutava pensando que o Coronel Viera estava ficando tão louco como Robespierre. 70 11 Uma historia que parecia de cinema e terminava com um final feliz. Outra surpresa esperava Bebéi em seu apartamento; a carta de seu amigo arquivista de Budapest tinha chegado no seu computador. Enquanto imprimia para poder ler com serenidade ele colocou agua e comida para o cachorro, deu uma rápida olhada no terraço para ver se a gaivota continuava ali, encheu um copo com seu vinho do porto favorito e sentou na poltrona frente a janela. A carta não era curta: Caro amigo Bebéi, sinto falta dos tempos em que tínhamos escrivaninhas uma frente a outra em Quai D’Orsay. Aprendi muito com tuas perguntas; as vezes elas enganam, por que parecem ingênuas, mas são mais profundas do que parecem. Ao ler tua carta com a historia da chave no rodapé recordei que era você quem guardava a copia da chave de minha escrivaninha. Nunca precisei, mas como você sempre dizia, se por acaso... a copia estava sempre ali. A historia de teu vizinho húngaro é fascinante e começo por dizer que ele não era húngaro e sim cigano. Sua mãe Lali, ou Lalika como Janus seu pai a chamava, foi uma dançarina cigana, assim como a Esmeralda daquele filme do Corcunda de Notre Dame que assistimos juntos. Lembra? A do corcunda que vivia na torre da igreja. Lali também dançava nas ruas, mas ao seu lado não tinha um cabrito como Esmeralda e sim o filho que tocava o violino e era o teu Arpad. Seu nome não era 71 cigano e esta foi a única concessão que ela fez ao pai, Janus Corvinus, um jovem bem educado de uma família tradicional da elite húngara que por ela se apaixonou. Pelo que percebi nas notas ela também se apaixonou mas ele vivia nos palácios e o mundo de Lali eram as ruas de Budapest. Suas duas grandes paixões foram a musica e o futebol. Pelo que pude entender ela sempre ia ao estádio quando a equipe do Ferencvarosi jogava e era amiga de Sarosi, que foi grande jogador da seleção húngara nos anos trinta. Sonhava que seu filho Arpad fosse um grande atacante mas ele nunca demonstrou a menor habilidade para isso, e como segunda opção, acabou sendo violinista. Foi ela mesmo quem lhe ensinou a tocar e com cinco anos Arpad já se apresentava ao seu lado nas ruas. Lali dançava tão bem que foi convidada para se apresentar em teatros e entre os papeis de teu húngaro esta aquela nota do principal jornal de Budapest na época, comentando o sucesso da sua apresentação no Teatro Erkell. Lali era bonita e era uma mulher livre. Pelo que Janus nos conta na carta que enviou ao seu filho, ela varias vezes lhe propôs que abandonasse sua carreira e fosse viver nas ruas ao seu lado mas ele nunca teve a coragem suficiente. Como ele mesmo reconheceu na carta: “vou levar este remorso comigo ate o ultimo dia da minha vida.” Janus, era um dos jovens idealistas húngaros que trabalhavam com o Almirante Miklos Horthy. Todos unidos pelo sonho de reunir a grande pátria húngara separada e dividida pelo Tratado de Trianon. O pai de Arpad trabalhou mais de vinte anos com Horthy, ocupou varias posições e chegou a ser um de seus principais assessores durante a segunda grande guerra. Ate os onze anos, Arpad viveu com sua mãe, jogando mal o futebol, tocando divinamente o violino e aprendendo a falar tantas línguas quanto aquelas que se escutavam nas ruas de Budapest. Falava o romani dos ciganos, o húngaro, o alemão o romeno e o eslovaco. Nunca 72 frequentou a escola e apenas aprendeu a ler e escrever muito mais tarde quando voltou da Sibéria, mas como seu pais mesmo escreveu “Arpad tinha um instinto que ajudava compreender as palavras mesmo quando ouvia pela primeira vez uma língua que jamais tinha antes escutado” Em 1937 sua mãe ficou doente, tuberculose, e no dia 19 de Novembro morreu no hospital. Segundo o próprio Arpad escreveu, foram tantas as mudanças na sua vida que ele levou muito tempo a compreender e sentir a sua morte. Conversou com seu pai pela primeira vez em sua vida no hospital. Ele tinha prometido a ela que si algo acontecesse ele cuidaria de Arpad. Junto com seu pai ele acompanhou o enterro de Lali e na tarde daquele mesmo dia entrou pela primeira vez no palácio onde seu pai vivia. Um palácio suntuoso. Tudo ali era novo para Arpad e a única coisa que ele levou consigo foi o violino que tocava e tocava noite e dia sem parar. Seu pai lhe levou conhecer a Grande Academia de Musica de Budapest, a Franz Liszt, uma academia conhecida e respeitada em toda Europa, e como escreveu seu pai na carta “mal ele tirou o violino da caixa e começou a tocar já lhe ofereceram uma bolsa para estudar com eles” Descobrir a academia e o mundo da musica clássica teve nele tanto impacto que seu padre desistiu de lhe dar uma educação tradicional e se resignou ao fato de que o único que ele poderia fazer em sua vida era tocar o violino. Arpad praticamente viveu com o violino nas mãos, como se toca-lo fosse uma obsessão que lhe ajudava a conviver com a morte de sua mãe. Foi apenas no mês de Junho de 1938 quando chegou o telegrama de Sarosi contando que eles tinham perdido a final do campeonato mundial de futebol para a Itália, que ele se conscientizou de que nunca mais poderia ver uma partida de futebol ao lado dela. Foi só então que toda a tristeza que ate então não havia sentido pela sua morte explodiu no seu coração. 73 Segundo ele mesmo escreveu, ele passou semanas sem tocar em profunda depressão ate que foi ao cemitério onde ela estava enterrada e prometeu que ia tocar a Dança Húngara numero 5 de Brahms, a musica favorita de Lali, tão bem como ninguém no mundo antes tinha tocado. A isso dedicou a sua vida e foi por isso que alguns anos depois quando Horthy foi a Salzburg para o famoso jantar com Hitler, ele levou Arpad para que ele impressionasse o Fuhrer tocando a Dança Húngara. Não sei se você tem claro o que foi aquele jantar. Hitler era o todo poderoso senhor da Europa e Horthy estava fazendo de tudo para evitar que ele invadisse a Hungria. Arpad chegou para tocar a pedido de Horthy e demonstrar o que podiam fazer os húngaros quando tocavam as composições alemãs. Naquela cena Arpad provavelmente teve de escutar calado quando Hitler disse a Horthy que os húngaros deveriam ser mais ativos na eliminação dos ciganos e dos judeus. E como ele era um violinista, Arpad respondeu com sua musica. Aquela noite ele não tocou para Hitler como húngaro e muito menos como um nazista, coisa que ele nunca foi. Ele tocou como cigano, filho de Lali, uma cigana como tantas outras que Hitler estava eliminando por toda Europa. Naquele jantar ele celebrou a vida de sua mãe, que dançava descalça pelas ruas de Budapest, tocando a mais cigana de todas as musicas compostas por Brahms o alemão. A dança cigana como sua mãe chamava que poderia não ser a favorita de Hitler mas que certamente era a musica favorita de Lali. É por isso que aquele convite era tão importante para ele. Para Hitler aquele jantar pode ter sido apenas uma farsa, pois quando convidou Horthy para o jantar no palácio de Schloss–Klessheim em Salzburg ele já tinha dado secretamente as instruções para a Operação Margarethe da invasão húngara, mas para Arpad, aquela foi a noite onde como cigano ele desafiou o assassino responsável 74 pela morte de 28 mil ciganos que como sua mãe viviam em Budapest. E isso certamente merecia uma moldura em destaque na parede. Uma coisa que também percebi pelas notas era que além de cigano ele era solidário com os judeus. Em 1943, quando tinha apenas dezessete anos ele se casou com uma mulher um pouco mais velha de uma família judia que se chamava Eszter Bider. Na Hungria os judeus não foram tão perseguidos como em outros países da Europa mas ainda que isto não esteja mencionado nas notas, é bem provável que ele se casou com ela para protege-la dos nazistas. Curioso não? Foi o virtuosismo com que tocava o violino que lhe permitiu sobreviver como cigano e proteger a Eszter. Imagine como ele deveria tocar bem! Os papeis que me mandaste incluem uma carta que seu pai escreveu depois de tê-lo escutado tocar em Salzburg: “ainda que viva mil anos vou guardar para sempre comigo a tristeza que senti ao escutar teu violino esta noite. Segui minhas ambições por toda a minha vida e deixei a margem do caminho meu coração e tudo o que encontrei foi a infelicidade. Hoje você me fez chorar como apenas uma criança sabe chorar. Teu violino ainda mantem nossa Lalika viva e te agradeço e congratulo por isso.” Depois chegou o ultimo ano da guerra e em 1945 a Hungria foi invadida pelos soviéticos. Horthy conseguiu escapar com vida mas seu pai Janus foi executado na rua pelas tropas soviéticas. Arpad foi deportado para a União Soviética e depois para Kolima na Sibéria. Por que lhe deportaram? Difícil dizer. Talvez por ser o filho de Janus ou talvez por ter tocado para Hitler. Nunca saberemos. Foram seiscentos mil os húngaros deportados para os campos de concentração da Sibéria russa e apenas duzentos mil os que regressaram. 75 Entre as notas também havia uma carta que o Almirante Horthy lhe enviou, em 1952, que nos da uma indicação do que se passou depois da guerra. Na carta Horthy lhe congratulava pelo nascimento de Morgen e da a entender que foi Eszter que de alguma forma lhe resgatou dos campos de concentração da Rússia. Menciona também que “depois de tudo que se passou em Kolima” sem explicar o que foi “não podes seguir encantando a todos com teu violino” e por isso era muito importante aceitar o trabalho que seu amigo “o embaixador” lhe estava oferecendo. Na mesma carta Horthy fazia uma reflexão sobre tudo que a nação húngara sofreu desde o final da primeira grande guerra e “ainda que Arpad não pudesse mais defender sua pátria tocando a Dança Húngara, seu pai se sentiria muito orgulhoso em saber que seu filho estava lutando para reconquistar a liberdade de todos os húngaros.” Pela carta não é possível saber que trabalho era este e nem o que ele fez depois. Tentei também encontrar aqui em Budapest algum registro dele e não encontrei nenhum. Pelo que entendi das notas, ao regressar da Sibéria ele foi viver em Berlim com Eszter onde nasceu sua filha. E por elas não se pode entender o que ele fazia ali. Se você encontrar algo mais, por favor me envie, pois estas notas me despertaram a curiosidade de conhecer melhor a vida de teu vizinho Arpad. Como será que ele conseguiu viver se todo o que sabia era tocar o violino e depois da Sibéria já não podia mais tocar? Um grande abraço de teu amigo arquivista de Budapest. Ps: as notas marcadas com a letra P de Pasternak não pude ler pois elas não estão em húngaro. Elas estão em Tcheco e este idioma eu não domino. 76 12 Bebéi parece um detetive mas seus assistentes são dignos de uma tragédia A carta de seu amigo arquivista contava a vida do húngaro que era cigano até o final da guerra e confirmava sua teoria sobre a logica do arquivo escondido entre as paginas dos vinte e seis livros. É como se cada um dos livros da estante fosse uma gaveta onde ele arquivava alguns papeis especiais. Por que ele fez isto, não estava claro. Será que ele escondia algum segredo? Mas se era um segredo, por que ele colocou toda a informação organizada em um arquivo? Para quem ele havia organizado aquele arquivo? Bebéi estava seguro de que para cada letra existia uma palavra associada e anotou em uma folha de papel o que já tinha descoberto de cada uma e o idioma em que as notas estavam escritas, pois seu maior problema era encontrar alguém que lhe pudesse ajudar a traduzi-las e compreende-las. A – Auden B – Boll Francês Espanhol Argélia Barba Roja ??? C – Conrad Francês Congo D – Durrel Espanhol Dominicana ? E – Elliot F – France Alemão Português Eszter ? ? G – Grass Espanhol Guevara H – Hesse Húngaro Horthy I - Ibsen Inglês ? 77 J – Joyce Húngaro Janus K – Kafka Inglês ? L – Lawrence Húngaro Lali M – Marai Inglês/Alemão Morgen ? N- Neruda Russo ? O- Orwell P- Pasternak Alemão Tcheco? ? ? Q- Quasimodo Frances Quebec? R - Rilke Russo ? S- Szabo Espanhol Santa Clara ? T - Tolstoi Alemão Tamara ? U - Unamuno Inglês ? V - Virgílio Inglês ? W - Whitman X - Xingjiang Inglês ? O ultimo livro Y- Russo ? Yeats Z - Zola !!! Ele leu as notas em Frances e sabia que o A era de Argélia, o C de Congo e o Q de Quebec, três lugares onde aparentemente o húngaro tinha vivido. As notas em português do livro de Anatole France, certamente estavam relacionadas a alguma coisa africana de Angola e Moçambique, mas não estava claro o que havia ali com a letra F. Entre as notas em espanhol, o livro de Boll trazia notas de um tal de Barba Roja que Bebéi não tinha a menor ideia de quem pudesse ser. A letra D parecia ser da Republica Dominicana e as notas faziam referencia a um certo Juan Bosch e alguns eventos de 1963 naquele pais. A letra G parecia ser de Guevara. Incluía algumas cartas que Arpad recebeu do Che contando o que ocorria na África e de uma mulher que se chamava Tamara. As notas do livro de Szabo também estavam em espanhol e todas elas estavam relacionadas 78 a Santa Clara o que parecia indicar que o S era do nome da cidade. Os livros de Elliot, Marai e Tolstoi tinham notas em alemão e pelo que Bebéi já conhecia da historia do húngaro provavelmente se referiam a Eszter Bider que foi sua esposa, Morgen Corvinus sua filha e a Tamara, que deveria ser parente ou uma amiga bem próxima já que era mencionada em todas as notas assinadas por Che Guevara. Havia um quarto livro, o de Orwell, onde as notas estavam em alemão mas estas notas, ele ainda não sabia o que significavam. O livro de Xingjiang não tinha notas, apenas a menção de que era o ultimo livro que o húngaro leu. Bebéi até pensou em ler para ver se descobria algo, mas o livro era muito grande e sua atenção se distraia rapidamente. No livro de Zola apenas a chave que já estava muito bem escondida com Irigandi, nem ao Tenente Pirilo ele tinha mencionado o esconderijo, e era por esta razão que na pagina que tinha preparado ele não colocou a palavra chave e sim os três pontos de exclamação. Para as outras letras do alfabeto, ele ainda não havia descoberto as palavras chave e necessitava ajuda pois algumas estavam naquelas letras confusas que finalmente ele descobriu que era russo, uma em tcheco e outras em inglês. Com o russo ele não teria problemas pois Ludmilla poderia ajudar mas ele não sabia como fazer para encontrar alguém que conhecesse o tcheco em Santa Clara. Para traduzir as notas em inglês ele podia pedir ajuda a Paul que era americano, mas Paul estava entretido com os preparativos de sua viagem ao Oriente Médio. Bebéi sabia que para Irigandi aquelas viagens eram muito importantes e não queria incomodar. Outra opção seria Moriarty, mas ele não estava seguro pois o velho hippie parecia viver em um mundo bem distante da realidade. Ele necessitava seguir com cautela para não permitir que os que haviam roubado o apartamento soubessem que aqueles documentos estavam com ele mas o primeiro passo era claro: ele tinha de começar pelas notas que estavam em alemão e para elas 79 havia apenas uma alternativa. Ele sabia que era um risco contar a Frida sobre o arquivo mas por outro lado, ela era a única que poderia ajuda-lo. Por cautela, ele decidiu apenas levar algumas das notas que estavam no livro de Elliot. Eram duas notas assinadas por Eszter Bider e também uma que tinha o nome de Eszter bem no inicio. Havia uma quarta nota que parecia também ser sobre Eszter, mas era uma nota mais longa e Bebéi preferiu guarda-la no apartamento. Ele conhecia Frida e sabia que quando lhe atacava o mal humor a trotska jogava tudo o que via pela frente no meio da rua e ele não queria que nada acontecesse com aquelas notas. Na manhã do dia seguinte quando estava na embaixada, ele recebeu um telefonema do escritório de advogados que administrava os bens do húngaro. Aparentemente eles tinham sido informados que ele estava com uma correspondência de um parente do húngaro e queriam mandar alguém para busca-la. Bebéi que estava desconfiado, preferiu perguntar a Tenente Pirilo que desde que conheceu o advogado de Miami estava ainda mais desconfiado do que ele. – Não entregue nada. Como foi que eles souberam da carta? Traga a carta da neta para mim e diga a eles que venham conversar comigo –e depois de um rápido silencio continuou– E não diga a eles que você escreveu para ela. Vamos esperar para ver se ela responde e depois decidimos o que fazer. –o que também parecia uma boa ideia a Bebéi. Naquela tarde, quando saia da prefeitura depois de deixar a carta com Pirilo, Bebéi encontrou a Senhora da embaixada americana que estava ali acompanhando alguns empresários de seu pais em visita ao prefeito. – Ouvi dizer que o senhor agora é comunista, verdade? – perguntou ela sorrindo. E ele rapidamente tentou explicar esbaforido que não era comunista e tampouco nazista e que o convite do Hitler e a foto do Che eram do húngaro. 80 – É só uma brincadeira. É que já faz tanto tempo que o senhor não me visita e nem me escreve. Cheguei a pensar que me esqueceu –e o comentário foi sincero pois ainda que sempre estivesse envolvida em tensões e problemas que a ninguém podia contar, a elegante Senhora da embaixada guardava um profundo carinho por duas pessoas em Santa Clara; o arquivista Bebéi e a velha Grená dos bilhetes. E para entender é importante voltar um pouco atrás e recordar que a sempre elegante Senhora era a chefe de uma enorme operação de inteligência do serviço secreto americano lançada a partir da embaixada dos Estados Unidos em Santa Clara ainda nos tempos em que o CIA desconfiava que o Condor tinha alguma relação com os terroristas de Al Qaeda. Foi ela também quem ajudou a aclarar quem estava por detrás do atentado ao Canal do Panamá que quase causou um conflito entre americanos e chineses e aquela tarde ela estava visitando o prefeito junto com o embaixador para apresentar alguns americanos interessados em conhecer melhor o projeto da Nova Santa Clara. Foi apenas ao final da tarde que ele finalmente teve tempo para passar pelas escadarias das Mercedes e encontrar Frida. Quando chegou, ainda do outro lado da rua, percebeu que por sorte todo ali estava relativamente tranquilo. O que já era muito, pois nunca nada estava completamente tranquilo por ali. Frida de longe ate parecia estar sorrindo mas quando ele cruzava a rua, Maestro Heitor o professor aposentado e maestro da banda municipal gritou da porta da barbearia; Robespierre lhe havia contado da fotografia do Che e ele queria ver. Bebéi sempre levava a foto no bolso e a razão, como ele mesmo explicava, era simples: – Para acabar de uma vez por todas com esta historia de que o húngaro era nazista. Heitor olhou a foto com emoção nos olhos, o Che era um mito para aquele velho comunista. Mas o que mais lhe chamou a atenção não foi nem o Che com uma expressão jovem e alegre e 81 nem o húngaro Arpad que ele havia conhecido como professor da escola, já com mais idade e um pouco menos de cabelo. O que impressionou Heitor foi a jovem sentada entre eles. – Essa é Tamara Bunke –e seu comentário surpreendeu a Frida e Robespierre. – E quem caralho e esta Tamara? – perguntou Frida. – É uma argentina que o Che conheceu na Alemanha depois da revolução cubana. Alguns dizem que ela era a amante secreta do Che e outros que ela era uma agente infiltrada da Stasi, o serviço secreto da Alemanha oriental. O que sabemos também é que ela viveu um tempo em Havana e depois foi com ele para a Bolívia onde acabou sendo presa e executada. Heitor falava com visível orgulho por seu conhecimento. Como chefe da célula comunista de Santa Clara ele nunca tinha feito absolutamente nada, pois desde os tempos em que Negro Barbeiro, o esposo de Grená morreu, que as reuniões da célula eram pouco concorridas. Mas ele nunca reclamou, pois pelo menos isso lhe deixava com tempo livre para estudar o que acontecia no mundo do socialismo e até para saber quem era Tamara Bunke, a amante secreta do Che. Bebéi comentou que o húngaro tinha algumas cartas do Che mencionando Tamara o que entusiasmou ainda mais a Heitor – E como você conseguiu estas cartas? –perguntou Frida. – Eu não tenho estas cartas –foi a resposta de Bebéi que ainda tentava manter o segredo – quem tem é a neta do húngaro, mas ela já me mandou algumas. E para que ninguém continuasse a fazer perguntas que não podia responder, ele tirou do bolso uma das cartas assinadas por Eszter Bider e passou a Frida para que a traduzisse, o que não foi tão simples como imaginava. Eles tiveram de esperar que Robespierre fosse buscar os óculos emprestados ao judeu Moses da loja de roupas já que o Nullo não encontrava os seus pois com os óculos de Heitor, Frida não conseguia ler. 82 Quando finalmente chegaram os óculos ela começou a ler e apenas leu as primeiras linhas já perguntou. – Teu amigo russo esteve em algum campo de concentração? –e Bebéi contou a historia que seu amigo de Budapest lhe havia contado. Heitor escutava com uma expressão de surpresa e reclamou brincando com Coronel Vieira que vinha chegando com um binoculo na mão: – Coronel nos tempos em que que passávamos as tardes conversando na frente da janela de Laís nada de interessante acontecia ali. Agora que me aposentei e passo o dia ajudando Dona Lourdes a cuidar do jardim vocês se metem com nazistas e ate com a segunda guerra mundial –e completou sorrindo– e muito me impressiona que vossa senhoria um fascista ortodoxo converse com gente que conhece o Che. Frida que também estava de bom humor aproveitou para perguntar: – E aproveitando nos conte, que loucura é esta de andar com este binoculo pendurado no pescoço? Coronel Viera ia começar a explicar quando Nullo se aproximou e depois de soltar um enorme peido que saiu gaguejando pelas escadarias reclamou: – Por Deus, como alguém pode se concentrar em peidar com toda esta gritaria– e foi ai que Bebéi percebeu que traduzir as notas com a ajuda de Frida, decididamente, não ia a ser tão fácil quanto imaginava. 83 84 13 O importante é garantir que a neo revolução continue A nova Santa Clara não era apenas um rumor e enquanto Bebéi continuava tentando obter o apoio dos pelagatos para entender o arquivo do húngaro, o prefeito se reunia com sua equipe de trabalho para acertar os últimos detalhes do projeto. A reunião foi na casa de praia do italiano da empresa de coleta de lixo. Era uma casa isolada que eles utilizavam para seus retiros não tão espirituais sempre que não tinham tempo para viajar ate a Republica Dominicana. A privacidade era muito importante pois algumas assistentes jovens e bonitas, também tinham sido convidadas para garantir um ambiente relaxado. Eles eram poucos, estava ali o prefeito, seu irmão e os dois principais sócios nos negócios, o italiano, dono da casa e o romeno que entre outras coisas controlava as licenças dos bombeiros. Ali estava também a Sérvia que como bem dizia o irmão do prefeito, quanto mais velha ficava, mais jeitosa parecia. Outro que estava com eles era um egípcio que atuava como representante local dos investidores da Arábia Saudita e que tinha sido o responsável por levar as jovens assistentes. Todas elas absurdamente lindas e loiras de origem russa que acompanhavam as reuniões, serviam bebidas e, quando requisitadas, ajudavam com outros tipos de divertimento, mas que não entendiam uma palavra sequer de tudo o que era discutido ali. 85 – Não podemos subestimar a oposição – era o que dizia o prefeito enquanto dava uma tragada no seu charuto, caminhando pela varanda da casa de cuecas largas, sem camisa e com sapato e meias pretas já que desde pequeno nunca gostou de pisar no chão descalço. Alguns escutavam deitados em redes, outros em confortáveis cadeira de palha com almofadas coloridas cercadas por alguns vasos com enormes palmeiras. O ambiente era informal e o romeno, que sempre era o mais agitado, escutava o prefeito e com suas mãos ativas seguia acariciando a russa sentada no seu colo. Depois de quase perder as ultimas eleições o prefeito tinha lançado sua estratégia neo revolucionaria concebida pela Sérvia que podia ser resumida em seguir roubando, mas com muito mais simpatia. Sua implementação havia sido um êxito. Os negócios continuavam crescendo e todos em Santa Clara estavam contentes com ele. Pelo menos uma vez ao mês o prefeito se refugiava com seus principais colaboradores para retiros como aquele onde por dois ou mesmo três dias eles faziam uma avaliação de suas atividades. Foram muitas as decisões introduzidas em Santa Clara como parte da neo revolução. A decisão de manter o monopólio dos serviços de transporte marítimos de turistas com a Cooperativa Bobo Ashanti tinham transformado o prefeito na reencarnação de Selassie entre os rastafáris locais. As atividades sociais também tinham aumentado. E o prefeito participava com infinita paciência dos eventos da liga das senhoras católicas que lideradas por sua esposa distribuíam óculos para os estudantes sem recursos, todos comprados da ótica do seu irmão, uniformes, comprados do filho do italiano e comida, comprada através do romeno. Tudo, obviamente financiado pelo orçamento da prefeitura e sobre faturado para gerar polpudas comissões. A distribuição de alimentos se fazia nas feiras das terças e quintas, onde o prefeito pessoalmente entregava bolsas de 86 alimentos a mulheres de famílias carentes acompanhadas de um beijinho carinhoso no rosto. E não eram apenas as atividades sociais; todos os dias, religiosamente, o prefeito passava pela praça da Catedral onde estava instalada a tribuna publica para que todos pudessem expressar suas opiniões e sempre ficava por ali pelo menos por meia hora escutando as reivindicações e reclamações de todos, que anotava com muita consideração em um caderno que levava com ele e que depois passava a seus assistentes. Como parte da estratégia de desenvolvimento turístico a prefeitura distribuiu novas licenças para hotéis, restaurantes e cabarés, obvio que contra o pagamento de uma não tão pequena contribuição financeira e autorizava rapidamente tudo que fosse necessário para o desenvolvimento dos negócios. O prefeito também apoiava as atividades culturais, entre elas a banda municipal, da qual Bebéi era o General com direito a faixa tricolor no peito em dias de festas e feriados. Assistia a todos os eventos sempre com um sorriso no rosto e desde que o prefeito começou com a sua demagogia todos os espetáculos no Grande Teatro Colonial sempre começavam com atraso pois ele insistia em receber e cumprimentar a todos na porta do teatro. Pelo menos uma vez por semana jogava dominó na praça com os aposentados e quando percebia que a praça estava suja, chegava com os empregados da prefeitura, vassoura na mão, para limpa-la. Obviamente que sempre frente as câmeras de televisão que eram previamente alertadas pela assessora de relações publicas contratada pela prefeitura que, pelo que contava Grená, já estava em linha para ser a futura primeira amante. Participava dos eventos religiosos e durante toda a quaresma acompanhou sua esposa na novena da Virgem Maria, sempre com o cabelo já seco e penteado depois da sauna tomada ao final da tarde com alguma de suas massagistas asiáticas. 87 Fazia tudo que fosse necessário para contentar a gente e como contrapartida pelo trabalho realizado, cobrava comissões e controlava todas as obras que se faziam na cidade onde não havia um único contrato da prefeitura do qual não saíssem comissões para o prefeito e para seus sócios que por esta razão estavam ali tranquilos com aquelas belas modelos russas em um sábado de sol. – A Sérvia aqui ao meu lado –seguia explicando o prefeito– esta preocupada com Frei Bernardo e com toda esta confusão armada por suas denuncias de comissões, mas tenho minhas duvidas se ela não esta afrouxando apenas porque o padre é bonito e tem aqueles olhinhos azuis. Por mim quero que ele se afunde com a sua pizzaria junto com aquela drogada da Gigi. Se não paga o que tem de pagar não abre seu negocio. A Sérvia não entendia bem o comportamento do prefeito. Normalmente ele aceitava suas sugestões mas quando ela propôs ajudar o padre para que ele parasse de incitar a gente, ele não lhe escutou. Ela desconfiava que era por causa da Gigi, pois o prefeito sempre tinha feito o possível para se aproximar da amiga de Ilona, mas como a Sérvia tinha por principio jamais questiona-lo em publico preferiu permanecer calada. – Temos que ajudar os rastafáris com um novo salão de bailes. – seguia o prefeito– Eles estão contentes com o salão que tem mas terão de sair dali com a nova cidade. Já conversei com meu irmão e vamos entregar a eles aquele deposito que prefeitura tem no final da Rua das Francesas onde os coreanos querem fazer seu cassino. Me parece muito melhor entregar aos rastafáris, ainda que seja apenas temporariamente, para que não nos encham mais o saco e depois encontraremos algo para os coreanos. O importante agora é manter a todos em paz. E seguia com suas reflexões sobre o projeto: – Já acertamos com o exercito e eles vão construir uma academia nova lá para os lados do aeroporto e vão ter ali o dobro do espaço que antes tinham. Com isso acredito que já 88 temos todo o tema dos terrenos resolvido –e olhando para o egípcio perguntou– Verdade El Waun? –Sem duvida – respondeu o egípcio que estava um pouco distraído com a mão no seio da loira que tranquilamente dormia ao seu lado– já temos quase todos os terrenos comprados e estamos construindo um centro habitacional depois do aeroporto para todos aquele que terão de deixar suas casas. Já tranquilizamos a todos que ninguém vai ficar sem moradia. – Você falou quase todas ou todas? –perguntou o prefeito– Quase todas não é suficiente. E se nos falta uma? Como vamos construir todo o projeto se nos falta algum terreno no meio? – Não existe nenhum motivo para preocupação –insistiu o egípcio– já identificamos de quem é aquele pedaço que falta depois do forte. Estamos por fechar dois ou três acordos que faltavam e logo estaremos prontos. Pode estar seguro que tudo esta resolvido e poderemos começar a construção nas próximas semanas. – Isto é fundamental –insistiu o prefeito– Não quero que este tema de terrenos nos complique o projeto. – O tema do forte já esta acertado com o Patrimônio Histórico – e isto quem disse foi o irmão do prefeito que estava encostado na rede enquanto uma das russas lhe fazia a manicure nas unhas– vamos fazer uma associação do setor publico com o setor privado para reabilitar o forte. Vamos construir uma nova marina e atrás um centro comercial integrando o calçadão a beira mar, a nova marina, o forte e os restaurantes do shopping center. Aquele forte em ruinas que hoje não serve a porra nenhuma vai ser agora a entrada do shopping onde vão estar todas as lanchonetes. Podem imaginar, comer um Big Mac vendo o forte e os iates na marina. Vai ser um luxo! – Esta é a ideia –completou o prefeito– construir edifícios modernos em volta da cidade antiga com hotéis, cassinos e centros comerciais. Aumentar o calçadão e lá no final, depois do hotel e do cassino que vamos construir com os árabes, levantar 89 oito torres de sessenta andares. E depois o resort dos espanhóis que vai ter campo de golfe por sobre aqueles penhascos que dão para o mar. Do lado sul da península, depois da Rua das Francesas e do novo salão de reggae dos rastafáris, vamos deixar os holandeses construírem seu hotel e cassino. No total vão ser quase duas mil novas habitações novas de cinco estrelas para turistas e mil novos apartamentos que serão vendidos aos estrangeiros. Imaginem o que isto significa se hoje Santa Clara tem menos de duas mil casas. Quando tudo isso estiver construído a cidade antiga vai ficar no meio, cheia de lojas e restaurantes como um centro para passeios e divertimentos. Que vão poder dizer esses pentelhos do patrimônio histórico quando toda a cidade estiver cercada de torres de sessenta andares. Ai sim vamos poder fazer o que nos der vontade. E começaremos pela Praça da Catedral. Hoje ali são oito mil metros quadrados desperdiçados com pombas que cagam na cabeça dos turistas, velhinhos que jogam dominó e aquela garotada pentelha que passa o dia correndo e gritando com os cachorros. Um absurdo! Vamos cercar de restaurantes e encher a praça de mesas para os turistas. E nada de restaurantes baratos. Ali na praça vamos colocar restaurantes caros como aquele do magico. Estes restaurantes que tanto encantam aos turistas ricos. Os que hoje estão vivendo na cidade terão de mudar para outros lugares, mas que podemos fazer, é o progresso. Tiveram a cidade para eles por tantos anos e não fizeram merda nenhuma. Agora é a nossa vez. Vamos fazer em cinco anos o que eles não fizeram em quinhentos. O prefeito se entusiasmava sempre que começava a falar dos planos de sua nova cidade. Ele já tinha acertado com os árabes que as empresas construtoras de seus sócios participariam em todas as construções e já estavam contratando engenheiros europeus para ajuda-los. – As principais embaixadas –continuava ele– já estão de acordo. Os chineses estão contentes pois como estão construindo o novo estaleiro com o russo depois dos penhascos terão todas suas propriedades valorizadas. Os franceses estão felizes desde que 90 contratamos seu ex-embaixador para ser o presidente de honra do projeto. Em sua santa ingenuidade pensam que com isso vamos dar a ele autonomia para decidir onde contratar os serviços. Os americanos já estiveram comigo e nossa estratégia com eles será de prometer tudo o que queiram até que a obra inicie e depois daremos qualquer coisa para as empresas gringas e eles vão ter de ficar quietos. Mas é preciso manter os olhos bem abertos com a Senhora do serviço secreto pois ela agora virou uma defensora da cidade, mas mesmo assim não poderá fazer nada contra a decisão de seu governo, mas pelas duvidas, e melhor manter os olhos abertos. Os espanhóis estão tranquilos com seus hotéis e os italianos, deixamos na mão de nosso amigo aqui para que ele negocie um acordo. O que temos de fazer agora é passar todas estas novas leis que pedi para meu irmão preparar e que vão facilitar a imigração de gente rica e cancelar todos os acordos internacionais de deportação que o pais assinou no passado. É muito importante criar condições para que os estrangeiros, bandidos ou não, venham viver aqui. Não vamos perguntar de onde vem e nem o que fizeram para ganhar dinheiro. Se querem viver em Santa Clara, não tem problema, vamos protege-los, desde que paguem uma comissão pela autorização de residência E enquanto isto se passava, no Café de Ilona, a oposição ao projeto se reunia. Eram dez no total. Frei Bernardo tentava convencer Ilona e Rasta Bong a alugar uma boa impressora para que Jordi e ele pudessem lançar uma publicação semanal alertando a todos que viviam na cidade dos subornos que tinham de pagar. O dinheiro não era muito grande e certamente representava um sacrifício mas o frade justificava cheio de entusiasmo. – Se não fazemos isso não temos como resistir ao prefeito. 91 92 14 O Húngaro foi a Berna mas quem fez o milagre foram os alemães Foi apenas na noite de sexta-feira que sentados na sala do seu apartamento Bebéi, Frida e Heitor conseguiram montar o quebra cabeças das notas em alemão do arquivo de Arpad. Tinham avançado bem pouco nas escadarias da Igreja das Mercedes e Bebéi preferiu propor aos dois que fossem a seu apartamento. Ali teriam um bom vinho, condição fundamental para que Frida aceitasse a proposta, e tranquilidade pois no terraço a gaivota e o cachorro permaneciam em silencio. Para Heitor, o velho comunista, ajudar Bebéi a entender o que dizia uma nota escrita pelo Che e conhecer os segredos do relacionamento de Tamara com ele, valia mais do que qualquer coisa que ele havia feito em duas décadas como chefe da célula comunista clandestina da cidade e Bebéi tinha um carinho especial por ele, pois foi desfilando frente a banda do maestro Heitor que ele tinha feito sua entrada triunfal em Santa Clara nos tempos do Condor. – Quando a guerra terminou Arpad foi deportado, Eszter aparentemente fugiu para a Alemanha Oriental e foi viver em Berlim onde estava sua mãe – explicou Frida depois de ler uma das notas. – Imagine o que deveria ser Berlim ao final da guerra – comentou Heitor– Uma vez vi um filme do Rosselini que mostrava a cidade completamente destruída nesta época. 93 – Pelo que entendi –continuou Frida que não estava disposta a perder tempo conversando de cinema– Eszter entrou no partido comunista para poder encontrar Arpad. Ela sabia que ele tinha sido deportada para a União Soviética e não tinha como encontra-lo. Pelo que ela mesmo escreveu foi graças ao partido comunista que ela conseguiu sobreviver e descobrir onde ele estava preso. Seguiu lendo mais algumas linhas e ai comentou: – Esta carta Eszter mandou ao final de 47 e ele foi deportado em 45 o que significa que teu vizinho passou dois anos congelando nos campos de concentração do Gulag. A carta foi escrita durante o inverno e não consigo imaginar como ela fez para viajar ate Kolima na Sibéria russa no meio do inverno para encontra-lo. Apenas sabemos pelas notas que Arpad escreveu que ela foi busca-lo no campo de concentração. – Quando foi que ele aprendeu a escrever –perguntou Bebéi– Meu amigo de Budapest disse que ele nunca foi a escola e que apenas sabia tocar o violino. E Frida tentou responder: – Creio que ele aprendeu quando regressou a Berlim e foi viver na casa da família de Eszter. Na nota que ele escreveu mais de seis anos depois em 1954 ele menciona que como não podia mais tocar o violino teve de aprender uma nova profissão e foi Eszter quem ensinou “tudo o que eu tinha de aprender para poder trabalhar” – Não sei o que significa todo o que tinha de aprender mas imagino que isto incluía saber escrever –e como estava muito bem humorada, talvez pela qualidade do vinho francês que estava tomando, presente da embaixadora a Bebéi, aproveitou para brincar– Vê como são as mulheres alemãs? Cruzam toda Rússia para salvar seus homens na Sibéria, lhes sustentam, ensinam a trabalhar e ate lhes ensinam a escrever. Heitor aproveitou a interrupção para perguntar se nas notas aparecia algo da amante do Che e Frida comentou que não havia 94 nenhuma menção a Tamara nas cartas de Eszter, mas que nas notas escritas por Arpad ele mencionava que “em 1952 os Bunken chegaram a Berlim e foram viver junto conosco” -– Mas existe algo muito importante antes disso –comentou Frida– Em 1951 nasce a filha de Arpad e Eszter e eles lhe dão o nome de Morgen. Ele até escreveu em suas notas “ainda que seja filha de uma mãe alemã e judia, Morgen tem na cor da pele e dos cabelos todos os traços de sua avó cigana.” – Nasceu Morgen em 51 –continuou Frida– chegou Tamara em 52 e em 54 Arpad regressa a Budapest e fez isso por uma partida de futebol. Os “magiares” como escreve Arpad, eram a melhor equipe de futebol de todo o mundo e iam receber os ingleses para uma partida de preparação a Copa do Mundo. Heitor e Bebéi olharam Frida surpreendidos sem entender porque um jogo de futebol era tão importante. – Pelo que teu amigo de Budapest escreveu –continuou Frida– as duas coisas que recordavam sua mãe eram o violino e o futebol e nas notas de Arpad, ele mesmo escreveu: “Talvez não recorde de memoria todas as notas da dança húngara mas jamais esquecerei a equipe de Grosics; Buzanski, Lorant e Lantos; Bozsik e Zacharias; Toth, Kocsis, Hidegkuti, Puskas e Czibor.” Frida se divertia com aquela menção ao futebol e continuou lendo as notas incluindo uma que Arpad escreveu a Eszter: “Sei que para Otto parece um absurdo regressar a Budapest para um jogo de futebol e agradeço muito a ti e a ele por me ajudarem a cumprir este sonho. Senti que seria importante. Ganhamos em Wembley mas esta vez o jogo foi em Budapest na nossa Hungria. Antes do jogo caminhei pelas mesmas ruas que caminhava com a minha mãe. Estou seguro que ela também estava ali comigo para ver o jogo. Nunca vi uma celebração igual em Budapest. As recordações que tinha guardadas na memoria eram tristes; minha mãe dançando nas esquinas, os soviéticos 95 chegando na rua onde meu pai foi executado e o edifício onde me prenderam, mas ontem foi diferente, dos dois lados do rio as pessoas sorriam. Não podes imaginar o que foi. O Puskas Ferenc não estava cheio, são muitas as restrições e muitos os que tem medo, mas são também muitos os que queriam celebrar e gritar com alegria por nosso pais. E nossos magiares não decepcionaram. Do inicio ate o final foi uma festa húngara. Fizemos sete gols contra apenas um deles e depois da jogo saímos pelas ruas para celebrar. Como gostaria de poder ter tocado o meu violino. Estou seguro que Lali sairia de donde esta para dançar nas ruas de Buda. “Do resto” não te posso dizer muito. Os soviéticos estão por todos os lados. Nagy tenta fazer algumas reformas mas são poucas as esperanças” – Quem era este Otto? –perguntou Bebéi e Frida tentou responder. – Pelo que nos dizem estas notas é um grande amigo que ajudou muito aos dois. Eszter trabalhou para ele desde que chegou a Berlim e foi ele quem a ajudou a encontrar Arpad na Sibéria. Foi Otto também quem mais tarde, quando os dois viviam em Berlim, conseguiu um emprego para Arpad e lhe ajudou a regressar a Budapest para ver os húngaros derrotarem os ingleses. – Curioso –disse Heitor– Sair da Alemanha Oriental e ir a Budapest não deveria ser fácil naquela época e se este Otto ajudou Arpad é porque era alguém muito importante. Este Nagy que ele menciona na nota foi o húngaro que liderou a revolução de 1956 contra os soviéticos. Enquanto escutava Heitor, Bebéi pensou que provavelmente era Otto a palavra chave do livro de Orwell. – O futebol lhe deu alegrias mas também uma grande tristeza – disse Frida interrompendo os pensamentos de Bebéi– Veja o que ele escreveu. 96 “Depois do jogo de Budapest contra os ingleses a equipe húngara viajou a Suíça para jogar a Copa do Mundo como grande favorita. Na primeira fase vencemos facilmente aos alemães, aos coreanos e aos turcos. Depois derrotamos as duas grandes equipes sul-americanas finalistas da copa anterior, Brasil e Uruguai e apenas nos faltava a partida final onde Hungria teria de vencer mais uma vez os alemães para ser finalmente a campeã do mundo” – O jogo foi em Berna na Suíça –explicou Frida– Arpad outra vez foi assistir a jogo graças a Otto e desta vez levou Eszter com ele. Segundo ele mesmo descreveu: “…chovia e o que se jogava ali não era futebol e sim uma guerra. O primeiro tempo terminou empatado. Os húngaros atacaram com toda a força de Puskas e Czibor e os alemães resistiram. A seis minutos do final o alemão Schaefer cruzou para Rahn que atirou de longe e fez o gol, 3 x 2. Uns húngaros ainda fizeram um gol mas o arbitro achou que Puskas estava impedido e anulou. Éramos os favoritos mas os alemães conseguiram um milagre em Berna. Alemanha campeã do mundo. Por mais que sofri na Sibéria. Creio que o dia daquela partida foi o pior dia de toda a minha vida e o que recordo bem foi a reação de Eszter. Ela tinha todo o direito de estar feliz pois eles eram alemães como ela, mas ela estava triste e me consolou com um abraço. Quando saímos do estádio caminhamos por horas e ela me levou ate a estação de onde regressamos a Berlim. Não recordo de nada mais naquele dia. Recordo que regressamos a Berlim onde os alemães seguiam em festa mas Eszter estava triste ao meu lado.” – Pelo que percebemos –comentou Frida querendo avançar a discussão do que fazia Arpad– a grande paixão do húngaro depois que regressou da Sibéria foi o futebol. Não tocava mais o violino, e a razão ainda não sabemos, e tanto ele como Eszter 97 seguiam trabalhando com Otto, mas não esta claro o que faziam e nem onde trabalhavam. – Tal vez isto seja compreensível –disse Heitor– depois de viver a grande guerra e ver seu pais invadido pelos alemães e depois pelos soviéticos. E depois também de passar quase três anos em um campo de concentração na Sibéria, não me surpreende que ele não se interessava mais pela politica. – A que se interessava por politica parecia ser Eszter – disse Frida– mas é curioso que pelo que ele mesmo menciona ela era uma comunista rebelde. Vejam o que Arpad escreveu sobre ela: “no principio defendia o que se passava na Alemanha Oriental mas era muito critica a ingerência dos soviéticos em todo o que se decidia em seu pais. Não comentava isso com todos mas nas as discussões com Otto sobre este tema eram cada vez mais frequentes” Neste momento eles foram forçados a interromper sua conversa pois Jordi chegou ao apartamento para ver Bebéi e perguntar pela gaivota. Jordi também trazia novidades, Ilona e Rasta estavam de acordo em alugar a impressora e eles estavam prontos para começar com o jornal da cidade. Jordi estava feliz mas naquele momento nenhum dos três estava interessado nos planos do jornal, ainda mas sabendo que Bebéi tinha outra carta que Frida ainda não havia lido. Era uma carta extensa, escrita por Arpad a Otto, que por alguma razão nunca havia sido enviada, ou talvez havia sido enviada e por alguma razão tinha regressado a Arpad. Antes de ler, Frida pediu outra garrafa de vinho. A carta prometia ser interessante. Foi escrita ao final de 1956 e contava como Eszter morreu. 98 15 A morte de Eszter nas barricadas lutando contra tanques de Moscou “Caro amigo Otto” assim começava a carta que Frida traduziu aquela noite. Irônico pensar que naquela mesa ao lado de Bebéi estava uma bêbada que em sua juventude pensou em mudar o mundo colocando bombas em estações de trem; um velho comunista que por toda vida pensou em construir uma sociedade mais justa e que apenas conseguiu ser um bom esposo e um dos amigos mas dignos de toda a cidade; e um jovem Jordi, que celebrava o seu primeiro emprego e acreditava no poder das demonstrações e que se lembrava do húngaro como o professor de musica que as vezes parava frente aos alunos, esquecido do que estava fazendo. O húngaro nunca tinha sido importante em Santa Clara e as poucas pessoas que um dia chegaram a nota-lo passando calado a caminho de casa jamais podiam ter imaginado que aquele homem solitário que vivia no segundo andar do casarão amarelo um dia tinha passado por tudo o que passou e escrito uma carta como aquela: É muito difícil para mim escrever, mas não tenho alternativa, pois não tenho coragem para encontrar-te. Você sempre soube que discordávamos de algumas de tuas ideias e posições. Foram muitas as discussões que presenciei entre você e Eszter. E ainda reconhecendo o direito de discordar não tínhamos o direito de trair. Mas a verdade é que te traímos e tudo acabou muito mal. Sei que se não fosse teu apoio, não teríamos conseguido sair de 99 Budapest e regressado a Berlim. Graças a tua amizade sobrevivi, Eszter não. Ela já não esta mais conosco e antes de morrer me fez jurar que te diria que você sempre foi tão importante para ela como Morgen e como eu. E disse mais: no trem, ferida quando regressávamos, ela disse que o futuro nos contara quem esta certo mas que seja quem for que tenha a razão e seja em que parte do universo cada um de nos esteja que nossa amizade, agradecimento e respeito por ti será eterno. Eszter me pediu também que contasse tudo o que aconteceu e é por isso que te escrevo esta carta. Já por muito tempo estávamos mantendo contato com nossos amigos de Budapest e fizemos isso escondidos de ti. Eles pensavam como Eszter que era muito importante para nossos países libertar-se do domínio soviético. Ela mesmo te disse muitas vezes que jamais poderíamos seguir as politicas importantes para nosso pais pois somos sempre forçados a priorizar o que é importante para eles. Estávamos acompanhando, ainda que de longe, a luta de nossos amigos contra o Governo de Rakosi e no mês de julho, quando ele renunciou, o entusiasmo de todos e especialmente de Eszter foi tão grande que ela passava todo o dia procurando alguém que pudesse contar as ultimas novidades do que estava acontecendo em Budapest. Imagino que agora entendes o porque das discussões tão violentas que tiveram desde então. Eszter não te contava pois sabia que não poderias guardar em segredo o que ela pensava, mas toda sua paixão estava ao lado de nossos amigos de Budapest. E você, conhece tão bem como eu a força das paixões de Eszter. Sempre que ela quis algo, ninguém nunca lhe conseguiu parar. Hitler não a queria judia e ela resistiu. Horthy não a queria comunista e ela não se importou. Os soviéticos me queriam morto e ela me salvou e ainda que tu, nosso maior e mais querido amigo, a quisesse uma comunista disciplinada e respeitadora das decisões do partido Eszter se rebelou. Ela nunca aceitou imposições. Acho até que 100 tinha um pouco do sangue cigano de minha mãe e acho que foi por isso que tanto lhe amei. A cada semana que passava ela ficava mais inquieta até que um dia lhe propus que fossemos a Budapest. Ela estava tão entusiasmada que mesmo sabendo que o risco era grande, decidimos viajar. Tamara podia ficar cuidando de Morgen e nossos amigos nos ajudariam a cruzar as fronteiras. Não te contamos pois sabíamos que nunca nos permitiria viajar. Sabíamos que era una traição, mas quem sabe vivendo de perto tudo o que acontecia em Budapest ela poderia entender melhor o que significava se libertar dos soviéticos e ai, quem sabe, ela conseguiria convencer-te. Ela sempre soube que pela posição que tens jamais poderias fazer o que estávamos fazendo e sempre acreditou que no fundo tinhas as mesmas duvidas, apenas que teu espirito disciplinado e germânico, como ela dizia, jamais te permitiria questionar ao partido. Decisão tomada, passamos meses nos preparando. Apenas em outubro conseguimos partir e viajamos de trem por todo o final de semana para chegar em Praga e dali a Budapest, onde chegamos na manhã de 22 de Outubro. Podes imaginar o que foi para Eszter, depois de tantos anos fora do pais regressar a Budapest exatamente naquela segunda feira? Por sorte dormimos muito no trem pois depois daquele dia foram poucas as noites de sono que tivemos. Chegamos bem cedo. Eu tinha estado em Budapest para o jogo de futebol contra os ingleses mas Eszter não e passamos o resto da manhã passeando na beira do rio, mas no inicio da tarde já era impossível seguir caminhando. A excitação era enorme. Em todo lugar jovens se reuniam para discutir a lista de reinvindicações preparada pelos estudantes da Universidade Técnica. Ali estava escrito tudo o que os húngaros queriam e nunca tinham tido a coragem de dizer. O primeiro ponto pedia a retirada das tropas 101 soviéticas de todo território húngaro. Propunham eleições secretas para todas as posições do partido e eleições diretas para a Assembleia Nacional. Como podes imaginar Eszter estava eufórica pois era exatamente isto que ela sempre te propôs para tua Alemanha. O documento com os dezesseis pontos também propunha levar a juízo todos aqueles que cometeram crimes contra a democracia e incluía dois pontos emblemáticos: a remoção imediata da estatua de Stalin e a remoção da estrela comunista que representava o domínio soviético, da bandeira húngara. Como nossos amigos eram jornalistas, passamos aquela noite no sindicato fazendo planos para o dia seguinte. Os jornalistas estavam planejando junto com os estudantes uma demonstração frente a estatua do General Joszef Bem, um dos heróis da revolução húngara de 1848. Imagino que conheces, aquela que esta em Buda na beira do Danúbio. Acordamos na terça bem cedo para preparar a demonstração. Os mais otimistas diziam que seriamos mais de mil pessoas na praça e ao inicio da tarde, quando chegamos eram tantos os que ali estavam que ninguém podia acreditar. Alguns diziam que éramos mais de vinte mil pessoas e por onde você olhasse, mais gente vinha chegando. Primeiro falou Veres pelos jornalistas e depois alguns estudantes da Universidade leram os dezesseis pontos da declaração. A emoção tomava conta da praça e para onde quer que olhássemos, gente mais gente vinha chegando com bandeiras. Era como se toda Hungria estivesse unida em seus pensamentos e a cidade outra vez fosse nossa. Era impossível resistir a euforia que tomou conta de todos quando os alto falantes começamos a escutar os versos de Nemzeti Dal, o poema escrito por Petofi depois da revolução de 1848 “Ate hoje fomos escravos” gritávamos todos “Nossos antepassados escravos que livremente 102 viveram e morreram em solo de escravos não podem mais descansar” Eszter tua amiga alemã e judia estava ao meu lado em lagrimas declamando “Ao Deus dos húngaros te juramos. E juramos que jamais voltaremos a ser escravos” E todos ali, eufóricos, agitávamos as bandeiras depois de anos de passividade e silencio em que nos limitamos a observar os soviéticos entrando e saindo de nosso pais como se fossemos um pais sem dignidade. Estávamos ali naquele dia, fortes como o sol que nos iluminava, corajosamente desafiando os soviéticos que executaram a meu pai, que me deportaram para a Sibéria e que mantiveram meu país no cativeiro por mas de dez anos. Minha pele e meu peito estavam a ponto de explodir e Eszter ao meu lado era toda pranto e sorrisos. Escutar a todos na praça recitando juntos os versos de Petofi era como se todos fossemos Puskas e os magiares entrando em campo para defender nosso pais. A nossa pátria húngara de que meu pai tanto falava e que foi destroçada pelo Tratado de Trianon estava ali naquela praça se dizendo presente. Bem ao nosso lado um jovem estudante cortou com uma tesoura a estrela soviética que estava ao centro da bandeira. Foi do nosso lado e vimos quando ele fazia. Quando ele começou a agitar a bandeira com aquele buraco no meio, todos começaram a imita-lo e em poucos minutos por toda a praça só o que se via eram as bandeiras tricolores húngaras com aquele buraco no meio voando sobre nossas cabeças. Éramos tantos que já não cabíamos mais ali. Olhavas o rio e vias bandeiras em todas as pontes e mesmo do lado de Pest. Eszter, quis sair caminhando e cruzamos a ponte em direção ao Parlamento e pelo que anunciava a radio já éramos mais de duzentos mil demonstrando nas ruas. Você consegue imaginar o que foi isso? Depois de anos de opressão e silencio. Duzentas vezes mais do que esperávamos quando saímos aquela manha do sindicato empunhando nossos 103 cartazes e bandeiras. E não era como as demonstrações que fazemos aqui onde você sabe exatamente quantos são, quem são e até que horas temos todos de permanecer. Ali a demonstração não era uma imposição do partido e sim um grito que saia de dentro do coração da cidade. As oito da noite escutamos pelos pequenos rádios que muitos tinham ali na praça do Parlamento a Gero condenando o movimento. Escuta-lo foi escutar o governo odiado dizendo que não reconhecia o que estávamos gritando nas ruas e foi naquele momento que a aquela massa de gente decidiu tomar a justiça em suas próprias mãos. Um dos dezesseis pontos da reivindicação já estava atendido pois com as mãos e com as tesouras, o símbolo soviético tinha sido extirpado da bandeira húngara, mas faltava outro; derrubar a estatua de Stalin, e aquilo que de manha poucos teriam a ousadia de imaginar começou a ocorrer bem ali em frente a nossos olhos. A multidão com suas próprias mãos colocou a baixo aquela enorme estatua. Ainda não eram dez da noite e a estatua já estava no chão e Eszter, a tua amiga querida Eszter, foi uma das mulheres que colocaram a bandeira húngara sem a estrela soviética tremulando no que antes eram as botas da estatua do ditador. A cada minuto chegava alguém contando de um novo enfrentamento e foi quando percebemos que as coisas estavam tomando um rumo violento. Escutamos tiros e apareceram os primeiros veículos de policia incendiados. Acho que ninguém em Budapest pode dormir aquela noite. Foi uma longa noite de escaramuças entre manifestantes e policia e, o que não sabíamos, foi também uma noite onde Gero solicitou apoio dos soviéticos para reprimir as manifestações. As três da manhã nos sentamos no apartamento de um dentista, que conhecemos aquela noite e que nem me recordo seu nome, para compartir um pedaço de queijo com pão, a primeira coisa que colocávamos em nossos 104 estômagos naquele dia. Foi apenas ai que percebemos do terraço do apartamento os tanques soviéticos entrando na cidade. A radio nada dizia e ninguém sabia o que fazer. Decidimos ficar ali e esperar o sol da manhã antes de arriscar regressar as ruas e quando saímos do apartamento tudo estava em silencio. Os soldados soviéticos e seus tanques nos olhavam das esquinas e a cidade estava completamente tomada. Chegamos a pensar que tudo estava perdido e que o dia anterior havia sido apenas um sonho, mas quando reencontramos os primeiros amigos rapidamente percebemos que ninguém estava disposto a aceitar que o sonho havia terminado. Pouco a pouco apareceram as primeiras barricadas e foram os estudantes que tomaram a iniciativa. Tudo que haviam conhecido desde a sua infância foi a guerra e a invasão soviética. Pela primeira vez estavam experimentando o doce sabor de poder lutar pela liberdade e não iam se entregar tão facilmente. Foi incrível o que aconteceu. Ninguém estava preocupado em morrer. Confesso que houve momentos em que tive um pouco de medo mas acho que fui um dos poucos. Todos ali queriam seguir lutando ate a morte e agora percebo, era este o sentimento que movia Eszter. Alguém passou dizendo que alguns estudantes estavam distribuindo armas roubadas de um deposito da policia e sem que tivesse tempo de pensar, Eszter e eu já estávamos em uma das barricadas preparando e distribuindo coquetéis Molotov. E Eszter tinha uma pistola com ela. A cada hora que passava alguém contava de uma nova vitória. Um tanque incendiado, uma rua retomada e parecia que ninguém nos poderia parar. Não sabíamos que entre as tropas soviéticas haviam instruções para evitar enfrentamentos e chegamos a pensar que éramos nos que os estávamos intimidando. Foi outra noite de lutas intensas e alguns entre nos chegaram a desconfiar que os soviéticos nos estavam jogando contra a policia húngara 105 mas ainda que fosse assim, nada importava pois estávamos reconquistando a cidade. Quando o sol outra vez voltou a iluminar a cidade e a nevoa se dispersou Eszter e eu estávamos em uma barricada frente ao Parlamento. Foi ali que escutamos que o Governo Húngaro tinha caído e que seus principais ministros tinham fugido para o aeroporto, e dali para Moscou. Parecia outro sonho. Pela radio escutamos que estavam formando um governo revolucionário liderado por Nagy. Você sabe bem que as ideias de Nagy representavam para Eszter uma nova esperança e ela não era a única. Ainda cansados por dois dias de enfrentamentos um enorme entusiasmo tomou conta das ruas e praças de Budapest. Os tanques tinham dificuldades em movimentar-se pelas ruas estreitas onde eram presas fáceis dos coquetéis Molotov jogados dos terraços dos apartamentos e como os soviéticos não tinham ordens de disparar, eles não tinham como se proteger e muitos tanques optaram por buscar posições defensivas em lugares mais protegidos. Os combates nas ruas seguiram por todo o final de semana. Ninguém sabia muito bem quem estava dando as ordens e tudo era um caos. Sabíamos que o novo governo estava tentando coordenar as milícias. Ninguém sabia em quem confiar até que finalmente no domingo anunciaram o cessar fogo e na segunda feira, depois de toda uma semana em Budapest, foi a primeira noite em que os dois dormimos em um quarto e em uma cama. Despertamos no outro dia felizes como a muito tempo não havíamos despertado e Eszter estava especialmente linda aquela manha. Tomamos o café da manha na casa de uma senhora que se chamava Lusja, professora de uma escola primaria que estava feliz pois sua Hungria finalmente estava livre. E foi naquele café da manha que Eszter e eu decidimos que apenas voltaríamos a Berlim para buscar Morgen e que iriamos viver em Budapest 106 para provar que era possível construir uma sociedade socialista e humana sem ter que obedecer as instruções do Politburo soviético. A vida voltou a normalizar-se e na terça feira já se notava que a maioria dos tanques soviéticos tinham saído de Budapest. Chegamos a participar de reuniões com os membros do novo governo para discutir a reorganização da cidade. Quem ia tomar conta das novas escolas, as milícias e ate quem ia recolher o lixo? Todos estávamos eufóricos e não sabíamos que enquanto sonhávamos os soviéticos já estavam preparando seu exercito para uma nova invasão, mas desta vez com muito mais organização e muito mais força. Trabalhamos toda semana como se fossemos cidadãos de Budapest e ate chegamos a escrever a Tamara dizendo que voltaríamos para buscar Morgen, mas chegou o sábado. Os militares soviéticos convidaram uma delegação do novo governo para negociar os termos de sua retirada do pais e para surpresa de todos, quando a delegação foi ao encontro deles, foram todos presos. No domingo 4 de Novembro os tanques soviéticos entraram outra vez na cidade . As milícias não estavam nas ruas e os principais lideres do movimento estavam presos. Por todos os lados discutíamos nossas opções e esta ansiedade seguiu por toda a noite ate que as 6 da manha escutamos pela radio a Nagy fazendo um apelo desesperado. Todo o pais estava sendo tomado e já não sabíamos o que fazer. Alguns tentaram resistir. Se já havíamos derrotado os tanques soviéticos uma vez poderíamos repeti-lo. Não sabíamos que as instruções dos soldados eram outras e as poucas pessoas que tentaram se aproximar dos tanques com Molotovs foram atingidos e entre elas a nossa Eszter. Não te posso contar como foi pois não estava ao seu lado. Fui com um grupo buscar algumas armas que estavam escondidas com nossas milícias e quando regressei ela estava ferida e sangrava. O que aconteceu depois, você já 107 sabe. Entrei em contato contigo e graças a tua ajuda conseguimos tomar um trem para regressar. Mas a bala que estava no seu corpo tinha chegado muito perto do pulmão e ela não resistiu. Chegamos a Praga no dia 8 e lembro que ao chegar escutei que Janus Kadar estava assumindo o governo com o apoio dos soviéticos. E no dia seguinte Eszter morreu, antes de chegar a Berlim, antes de abraçar a Morgen e antes mesmo de pedir-te perdão por nossa traição. 108 16 Na África, entre a amizade com Tamara e as aventuras do Che. – Quem diria! –foi o comentário emocionado de Heitor– o húngaro que quase nunca falava e que ninguém dava a menor importância foi um grande violinista que tocou para Hitler, um prisioneiro de guerra no Gulag siberiano e um revolucionário nas ruas de Budapest. Jordi estava ainda mais surpreso: – E nós que pensávamos que o único que lhe interessava eram suas aulas de musica –e depois de uma pausa para recordar seu professor onde o pensamento rapidamente voou para a lembrança de seu amor distante, comentou sorrindo– Tenho de contar a Cristina que seu professor de musica que parecia perdido nos ensaios da orquestra fazia coquetéis Molotov nas barricadas para enfrentar os tanques soviéticos. Frida, a quem o passado revolucionário do húngaro não impressionava, disparou com um ar de desgosto: – Eu vou dizer uma coisa e sei que vocês não vão gostar mas para mim este Otto era da Stasi – e Heitor entendeu muito bem o que ela estava pensando. Bebéi e Jordi não tinham a menor ideia do que significava Stasi e Heitor explicou: – A Stasi era o serviço secreto da Alemanha Oriental mas naqueles tempos os agentes do serviço secreto não era simpático como a Senhora da embaixada americana ou mesmo nossa amiga a Anã Chinesa. Eles eram duros, desconfiados e controlavam todos os movimentos da gente. 109 – E se ele era da Stasi –dizia Frida que já começava a dar sinais de que as garrafas de vinho lhe estavam confundindo as palavras– isso significa que Eszter era da Stasi e que teu vizinho que não era um nazista filho da puta, era um grande filho da puta por ser da Stasi. Bebéi se assustou com o comentário mas Heitor tentou aclarar: – Melhor não precipitar as conclusões. Sabemos que o húngaro foi apaixonado por sua Eszter e que ela morreu em 1956. Não estamos seguros que ele era da Stasi, mas sabemos que ele trabalhava para Otto e que depois desta carta provavelmente perdeu seu emprego. Sabemos também que ele já não podia mais tocar o violino; que gostava de assistir a jogos de futebol e que; nesta época, tinha uma filha de cinco anos e era amigo de Tamara. Bebéi e Jordi escutavam interessados mas Frida já dava sinais de estar inquieta. Foi com muito esforço que Heitor lhe convenceu a dar uma rápida olhada nas notas que mencionavam Tamara Bunke. Eram notas bem curtas escritas pela própria Tamara. Aparentemente ela não lhe gostava escrever. Havia uma fotografia de Tamara, ainda criança e atrás estava escrito Tamara nasceu em Novembro de 1937 no mesmo mês em que Lali morreu – Tamara era uma mulher bonita, pode ser que teu vizinho se apaixonou por ela depois da morte de Eszter –comentou Frida. – Não creio –disse Heitor– Arpad tinha trinta anos e Tamara apenas dezoito. – Isso é o que você pensa por ser um velho moralista– retrucou Frida já nos limites da sobriedade– não te esqueça que o Che tinha mais ou menos a mesma idade deste filho da puta da Stasi vizinho do nosso Bebéi. Heitor insistiu com Frida para que ela traduzisse as notas de Tamara mas Bebéi estava assustado. Ele sabia que quando Frida ficava bêbada ela era imprevisível e normalmente violenta. 110 – Existe uma nota de 54 – comentou Frida– creio que foi quando os dois foram a Suíça para ver o jogo de futebol: “Aproveitem o jogo. Graças por confiar em mim e deixar sua filha comigo. Ela é um encanto e como sua avó e sua mãe, é rebelde e ama a liberdade. Já descobri que é impossível dizer a pequena Morgen o que ela deve ou não deve fazer. Frida a estas alturas já estava esvaziando a garrafa de uísque escocês que o prefeito tinha dado de presente a Bebéi no dia em que ele foi nomeado General da Banda. Os vinhos e a vodca já tinham acabado. – Outra nota é de 57 “Como são os argelinos? Eles se parecem com os argentinos que te descrevi? Morgen esta bem. Todos estamos felizes em poder cuidar dela. Não te preocupes por nada. Continuo achando que você estaria melhor aqui em Berlim mas o Senhor Otto me disse que ainda tristes temos de respeitar tua decisão.” Bebéi explicou que pelas notas que estavam no livro de Auden, depois da morte de Eszter, Arpad foi viver em Argel e foi Heitor quem recordou a todos que Tamara tinha nascido e vivido em Buenos Aires ate seus quinze anos. – Será que foi outra vez esse safado da Stasi que mandou Arpad para Argel –comentou Frida demonstrando uma clara antipatia por tudo o que se referia a Otto. – Não creio – retrucou Jordi– a nota de Tamara dá a entender que Otto preferia que ele estivesse em Berlim. Foi quando Bebéi lembrou que na carta do arquivista de Budapest, ele dizia que o Almirante Horthy queria que Arpad aceitasse o trabalho que seu amigo o “embaixador” estava oferecendo e comentou: – Será que ele aceitou aquele trabalho? – E que trabalho era este –perguntou Heitor e Bebéi decidiu buscar a carta para mostrar exatamente o que arquivista de Budapest tinha escrito: 111 “era muito importante aceitar o trabalho que seu amigo “o embaixador” lhe estava oferecendo... ainda que Arpad não pudesse mais defender sua pátria tocando a Dança Húngara, seu pai se sentiria muito orgulhoso em saber que seu filho estava lutando para reconquistar a liberdade de todos os húngaros. – Um trabalho importante oferecido pelo embaixador onde ele estaria “lutando para reconquistar a liberdade.” Que trabalho poderia ser este? – comentou Heitor pensativo. A impaciência de Frida já era bem visível e Heitor preferiu aproveitar o pouco que restava para tentar entender o que diziam as notas de Tamara, deixando o tema do trabalho do húngaro para mais tarde. – Existe uma outra nota, esta de 59 –continuou Frida. Que alegria saber que vens a Berlim mas estou triste por saber que te transferiram para a África. E te confesso que a minha tristeza não é por você, pois sei que estas fazendo tudo para recuperar a tua felicidade, mas sinto por Morgen. Ela é muito especial para mim. Saiba que ainda triste, sei que o que você esta fazendo é o correto. Ainda que goste muito dessa menina briguenta e rebelde, creio que ela tem de estar próxima a seu pai. E com aquela nota a paciência de Frida acabou. Havia uma nota mais onde Tamara mencionava o Che mas foi impossível segura-la ali: – Até agora me comportei muito bem –e com esta frase ficou de pé e caminhou em direção a porta– Tua gaivota esta encantada com teu apartamento, mas eu sou como Lali e prefiro estar no meio da rua. Bebéi estava contente, pelo menos haviam avançado. Não sabiam ainda que trabalho o húngaro fazia mas sabiam que depois da morte de Eszter ele foi viver sozinho na Argélia e dali foi “transferido” para Kinshasa no Congo junto com sua filha Morgen. 112 – Quem foi que lhe transferiu? –perguntou Bebéi e ninguém ali sabia responder. – Sabemos também –comentou Heitor– que em 1960 ele regressou a Alemanha ainda que por pouco tempo, pois foi quando Tamara conheceu o Che e os três se encontraram naquela mesa de bar da fotografia de Leipzig. Heitor estava feliz por descobrir coisas sobre o húngaro, seu colega na escola, mas seu grande interesse era o Che, e se Frida já não estava para traduzir as cartas de Tamara, Bebéi tinha com ele as notas de Guevara que estavam no livro de Gunter Grass. Eram trens notas de poucas linhas assinadas por ele. A primeira de 61 onde o Che contava a Arpad como Tamara estava se adaptando a vida em Havana. A segunda de 64 onde o Che mencionava que ia estar próximo a Kinshasa em Congo Brazzaville e queria que Arpad fosse encontra-lo ali. A terceira era de 1966 contando que havia reencontrado Tamara e que agradecia por tudo o que ele fez para ajuda-lo “ainda que de longe” nos tempos em que ele esteve no Congo e terminava dizendo. “Lastima que não conseguimos o sonho que buscávamos.” Com as notas na mão Heitor, fez todo um discurso que Jordi seguiu sem perder palavra, explicando que o Che tinha estado no Congo, provavelmente no mesmo período em que Arpad viveu ali liderando uma força internacionalista cubana que apoiava o Movimento Simba contra o governo de Mobutu. Heitor não tinha claro as datas e foi por isso a sugestão de Jordi de fazer uma visita a Jose Princesa. O velho professor comunista falava com paixão dos movimentos de libertação africanos que ocorreram nos anos sessenta, mas ele não conhecia os detalhes tão bem como Princesa. Como Bebéi sempre dizia a todos com orgulho, Princesa sabia tudo pois lia os livros antes de vende-los o que obviamente apenas era verdade quando ele não estava cantando como Lola Marlene no cabaré. 113 Por tudo que tinham lido, Arpad deveria estar de alguma forma envolvido com o que se passou ali naquele período. – Ainda mais sabendo agora que o Che esteve por ali e era seu amigo –comentou Jordi que se entretinha com todas as descobertas sobre a vida de seu professor de musica– Não vejo a hora de contar a Cristina. Antes de sair ele aproveitou para explicar seus planos para o lançamento do jornal. Para ele ainda mais importante que entender o que fazia o húngaro, era organizar a resistência ao prefeito em Santa Clara. – A ideia é fazer um pequeno jornal para informar a todos das coisas que se passam por aqui. Os grandes jornais nacionais não contam as coisas que são importantes para nossa cidade. Frei Bernardo quer convencer as pessoas que vivem em Santa Clara a não pagar mais subornos. Já Carmela e eu estamos mais preocupados com os planos da Nova Santa Clara. Se o prefeito consegue construir esta cidade, todos que hoje vivemos aqui vamos ser obrigados a mudar para outro lugar – E seguia contando entusiasmado– Vamos começar com um pequeno jornal de quatro paginas. Digo quatro paginas, mas na verdade será uma única pagina impressa frente e verso que depois vamos dobrar no meio. Tem de ser algo bem simples pois não temos dinheiro. Vamos imprimir dois mil exemplares e já conseguimos os recursos para financiar todos os gastos do primeiro numero. Utilizaremos o carro da Gigi para o que for necessário e o apartamento deles para as reuniões editorias. A casa da Carmela vamos utilizar para deposito do material e a impressora vai ficar atrás da barbearia de Rasta Bong. Os artigos serão escritos por nos mesmos utilizando o computador de Cristina aproveitando que ela esta nos Estados Unidos. – Não sei se é suficiente para enfrentar o poder do prefeito mas certamente já é um bom começo– foi o comentário de Heitor e com isto terminaram a reunião. 114 17 Para quem trabalhava o húngaro, para os gringos ou para os vermelhos? No dia seguinte, ao sair da embaixada, Bebéi encontrou com Jordi que o esperava na Praça do Libertador Bolívar. Heitor não pode se juntar a eles, pois ex-chefe da célula comunista estava aproveitando aquela tarde para fazer algumas compras no supermercado a pedido de Dona Lourdes. Os dois foram ao atelier de Lola Marlene que ficou feliz quando soube a razão da visita. Todo o sucesso que vinha fazendo desenhando vestidos tinham facilitado muito sua vida mas sua paixão continuava sendo os livros. Tudo estava tão bem que já ninguém mais lhe perguntava quando ia fechar a livraria. Pagava todas as despesas e os prejuízos já não eram tão grandes pois, seguindo uma sugestão de Diana, a americana mochileira, tinha comprado uma maquina italiana e estava servindo café em umas mesinhas colocadas em frente a livraria. Como ele mesmo explicava: – Se não compram livros, pelo menos assim se sentem bem ao tomar um café olhando para eles. Sua ultima novidade era um auto usado que havia comprado e que graças a um desenho que ela mesmo fez e ao trabalho de alguns amigos, foi pintado a mão com todas as cores do arco íris e chamava a atenção dos turistas que paravam ali na Praça da Catedral para tirar fotografias ao lado do carro. Princesa ao perceber que a conversa seria longa preferiu trocar o elegante modelo turquesa e amarelo que estava usando para 115 impressionar as clientes e colocar algo mais apropriado para uma discussão de historia africana e colocou sus velhas calças jeans, uma camisa quase discreta, branca com pequenas flores rosadas, o chapéu rosa de beisebol e sentou com eles entusiasmado em uma das mesas da calçada. – Melhor começar pela historia do Congo nos anos sessenta – disse Princesa bebendo um cappuccino que ali na livraria ele servia em copos altos de vidro– entendo que foi neste período que o húngaro que era amigo do Che viveu em Kinshasa. E para entender o que passou ali naquele período é importante que entendam tudo que aconteceu na África naqueles anos de guerra fria quando americanos e soviéticos buscavam aumentar sua influencia internacional. Naqueles tempos o mundo se dividia entre o primeiro mundo dos países desenvolvidos capitalistas, o segundo mundo dos países comunistas e o terceiro mundo dos países menos desenvolvidos onde se incluíam todos os países africanos. E todos lutavam contra todos. Bebéi se confundia um pouco com aquelas explicações mais sofisticadas mas ele sabia que para Jordi era importante conhecer os detalhes de tudo o que havia passado. – O Congo –seguia Princesa– foi um dos primeiros países a buscar sua independência e um dos que mais sofreu com aquela disputa. A primeira nota que estava dentro do livro de Conrad é de 1960 e pelo que percebi foi escrita por alguém próximo aos americanos. Ela menciona Patrício Lumumba que foi o primeiro líder da luta africana contra o imperialismo europeu. O Congo era uma colônia belga e ele lutou contra os europeus para levar seu pais a independência. Pelo que sempre li era uma pessoa brilhante e a nota que o húngaro guardava confirma isso quando reconhece “que ele era um homem inteligente, capaz de liderar a construção da nova nação independente do Congo” E digo que é uma nota escrita por alguém dos americanos pois depois de falar bem dele, propunham elimina-lo. Segundo a nota “suas ideias de criar uma democracia onde todos tivessem os mesmos direitos tinha aproximado Lumumba dos soviéticos” O curioso é que a mesma nota menciona um outro líder, mas deste apenas 116 citam coisas negativas. Alguém que não parecia ser inteligente, que era ambicioso, corrupto, violento e chegam ate a dizer “alguns consideram ele um animal, e provavelmente tem razão, mas pelo menos é o nosso animal” Por isto é que me parece uma carta escrita por alguém próximo aos americanos que consideravam Lumumba como ficha dos soviéticos. Vejam que a nota chega a mencionar que o outro “não serve para conduzir o pais, mas pode ajudar-nos a liquidar Lumumba e depois encontraremos alguém que possa cuidar dele” E isso me leva a uma pergunta –Vocês já descobriram que fazia o húngaro no Congo? – Quando estava na Alemanha, antes de ir a África, suspeitamos que ele trabalhava para a Stasi – foi a resposta de Jordi. Bebéi não respondeu nada pois estava um pouco confuso com tudo o que escutava. Lumumba era bom e tinha de ser eliminado e o outro era um animal mas que era o “nosso” animal e deveria ser apoiado. Será que ele tinha entendido bem? – Isso parece estranho –comentou Princesa– primeiro porque não acredito que a Stasi estivesse ativa na África. Pelo lado dos países comunistas quem cuidava dos temas africanos era a KGB. A Stasi era uma agencia orientada a preservar o comunismo na Alemanha Oriental e esta carta parece muito mais ser uma carta de alguém que trabalhava para o CIA, que era a agencia que coordenava a ação americana na África. Depois de fazer este comentário, Princesa ficou em silencio, como se estivesse pensando em algo, mas não falou nada e seguiu lendo a segunda nota que Bebéi lhe entregou de 1965. – Esta nota é ainda mais curiosa. Pelo que vocês me contaram o Húngaro era amigo do Che e o que sabemos com certeza, pois ele chegou a escrever um livro sobre isso “O Diário do Congo” é que Guevara esteve no Congo em 1965 e 1966, apoiando a revolução Simba. No entanto esta nota que o húngaro guardava é dos americanos e comenta as varias execuções que o governo do Congo ordenou contra opositores e a necessidade de apoialas. Parece um pouco com a outra nota pois menciona 117 especificamente a “importância de convencer os Tutsis a apoiar Mobutu e lutar contra a gente de Pierre Mulele que esta tentando fomentar um golpe de estado” e por isso não faz sentido que seja de alguém amigo do Che, pois era exatamente ao grupo de Pierre Mulele que Guevara estava apoiando com seus guerrilheiros cubanos. José Princesa olhou para os dois com uma expressão travessa no rosto e os provocou com uma inocente pergunta: – Será que o húngaro trabalhava para a Stasi ou será que ele trabalhava para a CIA, ou ainda pior, será que o húngaro era um agente duplo –e comentou com uma expressão quase infantil– isso esta ainda mais interessante que os livros de Le Carré. Que mais vocês sabem deste húngaro que eu já estou apaixonado por ele? E quem respondeu foi Jordi: – Bebéi também tem uma carta do Almirante Horthy, regente da Hungria onde segundo o que traduziu o arquivista de Budapest ele insiste para que Arpad aceite o emprego que um “embaixador” lhe estava oferecendo, mas não sabemos quem era este embaixador. Quebra cabeças assim era o que mais encantava a Princesa e ele foi imediatamente consultar alguns livros sobre a guerra e algumas fontes na internet. Não tomou muito tempo ele voltou a se juntar aos dois que continuavam sentados na mesinha da livraria: – O grande amigo de Horthy, que praticamente financiou sua vida durante o exilio em Portugal foi o embaixador americano John Montgomery e é por isso que eu pergunto. Para quem ele trabalhava? Para os vermelhos ou para os gringos? Jordi aproveitou para mencionar a carta do Che onde estava escrito que Arpad havia ajudado no Congo e utilizava a expressão “de longe” 118 – Será que o húngaro era um agente duplo? –voltou a insistir Princesa e a imaginação de Bebéi saltou voando ainda mais alto que a gaivota. Quantos livros ele havia lido contando historias de espiões internacionais e agora, no apartamento de baixo ao seu tinha vivido um agente duplo da guerra fria. Pouco importava que ele não o tivesse conhecido. Arpad viveu num apartamento como o seu e todos os seus livros, suas notas e suas recordações estavam agora no seu apartamento. Que mistérios escondia aquela chave guardada no livro de Zola, pensava Bebéi, que agora se sentia como um agente internacional a caça de espiões. Os três seguiram conversando animados e apenas não ficaram por mais tempo pois aquela era uma noite de espetáculos no cabaré e Lola Marlene tinha de se preparar. Desde que fecharam o Gata Caliente que os travestis levaram seu espetáculo para o cabaré da Anã Chinesa onde Lola Marlene era a atração principal recriando as canções românticas de Edith Piaf. Ainda tiveram tempo aquela tarde para revisar rapidamente as três outras notas que estavam no livro de Conrad sobre o Congo. A primeira descrevia um plano para apoiar o desenvolvimento de uma cidade chamada Kisangani. Pela letra se podia perceber que tinha sido escrita por Arpad e citava os dez pontos que eram importantes para desenvolver a cidade e toda região que começava em Kisangani e chegava ate Bukavu, passando por Lubuto. – Kisangani é o nome da cidade do endereço de Laurence a neta do húngaro – comentou Bebéi. A segunda nota mencionava os Tutsis e descrevia um plano dos soviéticos para fomentar a divisão entre dois grupos africanos, os Hutus e os Tutsis e desestabilizar o controle que os americanos tinham do pais com Mobutu. – Quem a escreveu –comentou Princesa– propunha neutralizar a influencia que os soviéticos tinham junto aos Hutus, ajudando 119 os Tutsis a ataca-los e menciona que seria possível aproveitar os problemas que já existiam entre eles em Burundi. A terceira era de 1974 e comentava a importância de convencer Mobutu a combater as forças do MPLA em Angola pois segundo a nota, Agostinho Neto o chefe do MPLA era muito amigo dos soviéticos. A nota também dizia que era importante convencer Mobutu que se Agostinho Neto conseguia controlar Angola ele ia vender todo o petróleo do Enclave de Cabinda para os russos e comentava “ainda que isso não seja verdade pois estamos negociando com os angolanos para que assegurem o aceso ao petróleo para as empresas americanas e italianas é importante convencer Mobutu a lutar contra ele” Ao sair da praça, Bebéi comentou com Jordi: – E depois de todas estas aventuras ele veio viver em Santa Clara onde não tinha amigos e onde nada perguntou por ele no dia em que se foi. Quem pode entender? 120 18 Fim de semana agitado começa com a banda e termina com a sanfona cigana Nas noites de sexta feira a banda municipal se apresentava no coreto bem ao centro da Praça da Catedral e como sempre, era seu general quem abria o espetáculo com a faixa tricolor ao peito acompanhado por seu fiel cachorro. Mas aquela noite pela primeira vez desde que tinha sido nomeado solenemente pelo prefeito, Bebéi teve de ir sozinho. Seu cachorro insistia em ficar com a gaivota no terraço. Ele ate chegou a pensar que ele estava doente mas pelas duvidas decidiu não insistir e acabou por deixa-lo no apartamento. O que acabou por ser providencial pois por mais absurdo que possa parecer, naquela sexta feira alguém tentou entrar no seu apartamento. A principio ninguém tinha muito claro o que estava acontecendo pois o único que escutaram foram os latidos no terraço do apartamento. E como sempre havia alguém ali na calçada observando a gaivota, quando o cachorro começou a latir os que estavam na rua rapidamente perceberam que alguma coisa estranha estava acontecendo. A porta do casarão estava fechada e como ninguém podia entrar alguns vizinhos decidiram ir até a praça avisar Bebéi que regressou rapidamente pensando que alguma coisa tinha acontecido com a gaivota. E como ele saiu da praça correndo, Dioclecio que estava por perto, percebeu que alguma coisa anormal estava acontecendo e comentou com Tenente Pirilo que que não se lembrava de haver escutado antes alguém dizer que 121 Bebéi estava correndo e também preferiu deixar a banda tocando sozinha para segui-lo até o apartamento. Quando chegaram ali tudo parecia normal. A porta do casarão não havia sido forçada e nem a porta do apartamento que permanecia fechada. Quando Bebéi entrou o cachorro parou de latir, mas estava claramente agitado sinal de que alguma coisa havia acontecido. Até então Pirilo não tinha dado muita atenção as câmeras de vigilância, mas decidiu aproveitar aquela noite para voltar a prefeitura e rever o vídeo gravado pela câmera colocada na esquina do casarão e percebeu que no vídeo se podiam ver claramente duas pessoas que entraram no casarão normalmente pela porta da entrada e o curioso é que depois não mais saíram. – ¿Como é possível que entraram e não saíram? –perguntou Pirilo a seus assistente que voltaram ao casarão, entraram nos quatro apartamento, incluindo o do húngaro e constataram que os dois provavelmente saíram saltando o muro, pois o arame de proteção tinha sido cortado. – Se entraram pela porta e saíram pelo muro e por que boa coisa não estavam fazendo ali – concluiu Pirilo. Pediu os vídeos das cinco câmeras que estavam instaladas na cidade e passou a noite vendo e revendo cada um deles. Que falta ele sentia de Cristina sua assistente, mas sem ela por ali, ele mesmo teve de revisar cada um deles e observou que os dois homens que entraram no casarão, apareceram, alguns minutos depois, cruzando a praça do Bolívar na entrada do calçadão, e ai não eram dois mas sim três, pois havia mais um com eles. Pirilo revisou outra vez o vídeo da câmera na porta do casarão e percebeu que o terceiro que aparecia na praça passou duas vezes frente a porta e depois de passar a segunda vez ficou parado na esquina junto com os outros que observavam a gaivota no terraço. No vídeo era até possível perceber quando ele ficou tenso, provavelmente quando o cachorro começou a latir e foi embora. 122 – Esta claro –concluiu Pirilo– Eram três, um ficou na rua e os outros dois entraram no apartamento usando uma chave que por alguma razão conseguiram. Subiram as escadas, provavelmente pensando que como era dia de apresentação da banda, Bebéi estaria na praça junto com o seu cachorro e quando o cachorro começou a latir, saíram correndo saltando o muro e voltaram a se encontrar outra vez na entrada do calçadão. Nos vídeos era impossível reconhece-los pois os três estavam de óculos escuros e usavam gorros que cobriam a cabeça, mas pelas roupas e pelo jeito de caminhar não pareciam com nenhum dos marginais conhecidos em Santa Clara. Em Santa Clara nunca ninguém tinha sido roubado e desde o dia em que Bebéi descobriu que o apartamento vazio do húngaro estava cheio que dois roubos tinham acontecido em menos de três semanas. No primeiro levaram tudo o que o húngaro tinha deixado no apartamento, será que este segundo era para roubar o que tinham deixado. – Acho que não –dizia Bebéi a Pirilo– desconfio que esta vez o que queriam era gaivota. Uma ideia que parecia completamente absurda ao tenente, mas Bebéi insistia. – O cachorro não quis me acompanhar ao concerto. Alguma coisa ele estava prevendo pois por mais que insistisse ele não quis sair do terraço e lá ficou com sua amiga gaivota. A verdade é que Tenente Pirilo estava completamente perdido. Ninguém ia entrar num apartamento para roubar uma gaivota, e quem iria se interessar por alguns livros que guardavam umas notas contando o que o húngaro tinha feito antes de se mudar para Santa Clara? Pelas duvidas ele decidiu reforçar a segurança no apartamento e até propôs que Bebéi guardasse os documentos com elena prefeitura. Ate então Pirilo ainda não sabia da chave. Este era um segredo que apenas Irigandi conhecia. 123 Bebéi aceitou e com ajuda de Pirilo, colocou todas as notas que estavam nos livros em pastas azuis, uma para cada livro, de modo a não confundir os arquivos e levaram as pastas para o cofre que Pirilo tinha em seu escritório. Como sua equipe ainda não sabia utilizar muito bem toda aquela parafernália tecnológica de segurança, Pirilo pediu ajuda a senhora da embaixada americana. Teve de explicar a historia da nova tentativa de roubo e ela se preocupou. Tinha muito carinho por Bebéi e se interessou por saber mais do que havia acontecido. Mandou seus assistentes a prefeitura para ajudar a equipe de Pirilo a identificar os três que apareciam no vídeo e com a ajuda deles, descobriram nas imagem de uma das câmeras que estava colocado frente a prefeitura, o automóvel em que eles chegaram a cidade e a partir dai descobriram que era um auto alugado. Na locadora descobriram que o aluguel foi feito com um documento falsificado e conseguiram encontrar as impressões digitais no carro. Com isto e com a ajuda dos sistemas de informação a que a Senhora tinha acesso, descobriram que as digitais eram de um peruano que vivia em Miami. Em Miami, já na manhã de domingo o peruano foi preso e confessou que tinha sido contratado por um cubano que vivia em Little Habana. Naquela mesma tarde o cubano acabou por confessar que tinha sido contratado por outro cubano, dono de um restaurante que era conhecido por agenciar trabalhos especiais. Na noite de domingo alguns agentes do FBI fizeram uma visita ao dono do restaurante que tranquilamente comia uma pizza na sua casa com a família e que para evitar maiores problemas, confessou que quem havia encomendado o serviço era um escritório de advogados que estava interessado em obter alguns documentos e que era o mesmo escritório de advogados que administrava os bens do húngaro. Não fizeram nenhuma prisão pois ninguém havia cometido um crime e todas informações deveriam ser tratadas com o maior sigilo, pois como explicou a Senhora: 124 – Não utilizamos os métodos legais tradicionais de investigação e é melhor que ninguém saiba o que fizemos. Pirilo entendeu, mas aquela nova tentativa de roubo, lhe deixou ainda mais intrigado. – ¿Que havia de tão importante ali? –perguntava ele a seus assistentes enquanto pensava na falta que Cristina lhe fazia. Desde que ela viajou para os Estados Unidos seus assistentes nunca mais foram capazes de responder as suas perguntas. E Tenente Pirilo não era o único a estar curioso. Depois de sair de seu escritório na prefeitura a Senhora circulou com seu motorista pela cidade até encontrar Bebéi passeando com seu cachorro pelo calçadão. Era uma noite tranquila de domingo e ela saltou do carro para acompanha-lo em sua caminhada e foi com ele até a praça onde os dois se sentaram no mesmo banco em que Dioclecio dava de comer a seus gatos. A praça estava cheia de casais que aproveitavam a tranquilidade daquele noite para escutar a sanfona do cigano que tocava sentado nos degraus do coreto com a gata amarela de Dioclecio aos seus pés. A Senhora tinha algumas perguntas. Por que as tinha? Ela mesmo não sabia. Talvez por ser alguém que em toda sua vida trabalhou com os serviços de inteligência e sempre estava atenta em busca de novas pistas, ou talvez porque como Grená, gostava de saber de tudo o que passava na cidade. O que ela sabia com certeza é que Bebéi tinha um bom olfato para descobrir coisas que os outros não conseguiam entender. Foi assim com o Condor e também depois com a canadense. O que começou com uma simples curiosidade de Bebéi acabou por levar a interessantes descobertas e se ele estava interessado no húngaro e alguém estava interessado em rouba-lo por isso, é por que ali havia alguma coisa especial. Bebéi lhe contou o que dizia a carta do amigo de Budapest, contou a historia de Lali, de Eszter e dos jogos de futebol. Contou também das suspeitas que eles tinham de que o Húngaro tinha trabalhado para a Stasi e até o que disse Princesa de que talvez ele fosse um duplo agente que também trabalhava para o 125 CIA. Contou também da foto de seu pai na Argélia e das cartas do Congo. Contou do convite de Hitler e da foto do Che. E ela escutou com simpatias o entusiasmo de Bebéi em descobrir quem era o vizinho solitário que ele nunca conheceu. Do ponto de vista pratico, nada ali lhe interessava pois tudo o que ele contava eram historias dos anos sessenta e setenta quando o muro de Berlim dividia o mundo e a guerra fria era a principal preocupação dos serviços de inteligência americanos. Bons tempos aqueles, pensava a Senhora quando pelo menos sabíamos quem eram nossos inimigos e contra quem estávamos lutando. Escutou toda a historia e até se comprometeu com Bebéi a ajuda-lo a descobrir se Arpad tinha trabalhado para o serviço secreto americano. Tinha a mesma duvida de Pirilo. Que estavam procurando os advogados de Miami no apartamento de Bebéi? Certamente que o roubo não tinha nada a ver com todas as historias românticas de futebol e de espiões que Bebéi lhe contou, mas por alguma razão eles tinha contratado alguns especialistas para roubar tudo o que o húngaro tinha em seu apartamento e como provavelmente não haviam encontrado o que estavam buscando regressaram. Mas isso tudo certamente não era pela historia do húngaro. Se eles contrataram os especialistas é porque havia algo ali que valia dinheiro. E era isso que ela tinha de descobrir. Será que era a gaivota? Ela se foi e Bebéi permaneceu na praça com Dioclecio. Ele tinha mais um problema a resolver aquela noite e quem sabe Dioclecio lhe podia ajudar. Ele não conhecia ninguém em Santa Clara que entendesse o tcheco das notas que estavam no livro de Pasternak. Dioclecio contou que uma das mulheres que trabalhavam na Rua das Francesas e que muitas vezes cruzava a praça da catedral depois de atender a seus clientes no hotel era tcheca. Quem sabe ela poderia ajudar? 126 19 Noite de reunião no Café de Ilona para escutar “L’Orgue de Barbarie” A reunião foi convocada por Rasta Bong e o tema era a pizzaria do Frade. Ele seguia preocupado com a insistência de Frei Bernardo em não pagar as “comissões” o que estava atrasando e muito a inauguração do restaurante. Como Rasta sabia que o frade escutava Ilona, preferiu fazer a reunião no Café e para não repetir o mesmo erro, marcou o encontro para a noite que era quando Ilona sempre estava bem desperta. Verdade que naqueles dias Ilona andava um pouco triste; Paul estava já a dias viajando pelo Oriente Médio buscando extraterrestres, como ela mesmo explicava. Junto com ela e Rasta Bong aquela noite também estavam no Café Gigi, Dioclecio, Bebéi e Jordi. – Você não pode continuar com esta teimosia– insistia Rasta– Conseguiu a licença dos bombeiros e sei que a autorização do patrimônio histórico esta por sair graças a pressão que Ilona e Princesa fizeram no chefe da agencia mas ainda falta a licença de saúde isso sem falar da autorização da prefeitura para poder servir bebidas alcoólicas Frei Bernardo escutava o que dizia seu amigo Rasta, mas retrucava: – Todos equipamentos que compramos são de primeira, iguais aos de Ilona apenas que mais novos. As contratações são apenas cinco e todos já estão trabalhando em outros restaurantes e negar a licença de bebidas alcoólicas é um absurdo pois apenas vamos vender algumas garrafas de cerveja e uns poucos copos de vinho para acompanhar as pizzas. Nossas vendas de todo um mês vão 127 ser menores que as de Ilona em uma única noite e mesmo assim estão questionando. Rasta insistia: – Juanita também tinha equipamentos tão bons como os teus, empregados registrados e quase não vende bebidas mas mesmo assim teve de pagar as comissões... e pagou. A cooperativa tem salva vidas em todos os botes mas toda semana temos de pagar um pedágio para o fiscal do porto. Um dia que Miguel estava de lua e decidiu não pagar, eles nos fizeram tirar todos os salvavidas dos barcos e coloca-los no cais para fazer a contagem e com isso tivemos de suspender os passeios da manha e deixar os turistas reclamando no cais. – É exatamente por isso que quero insistir –interrompeu o frade– Não é possível que sigamos aceitando esta corrupção – e seguiu com seu discurso que todos ali conheciam bem. Ilona nunca opinava sobre as decisões de seus amigos “Cada um tem a sua cabeça, pensa o que quiser pensar e faz o que tiver vontade” e Dioclecio não necessitava falar. Ali todos sabiam que o velho filosofo era um dos que mais incentivavam o frade na sua cruzada moralizadora. Rasta chegou ate a pedir ajuda a Gigi mas ela também preferiu ficar calada. Ela tomava as suas decisões que incluíam os voos não tão legais que pilotava e o frade não se metia o que lhe dava o direito de fazer o que queria com a sua pizzaria. Rasta não estava contente, mas não era muito o que podia fazer e como Jordi e Bebéi também estavam por ali, eles deixaram de lado a discussão da teimosia do frade e aproveitaram para conversar um pouco sobre o novo jornal que estava quase pronto para ser lançado mas que ainda não tinha um nome. Rasta Bong propôs “O Leão de Judá” e como ninguém aceitou e nem queriam mais conversar sobre a pizzaria ele se foi ate o fundo do terraço e ali sozinho acendeu um de seus cigarros. Ilona propôs “A Gaivota” e o nome era simpático pois todos conheciam a gaivota de Bebéi mas Frei Bernardo não gostou. 128 – A gaivota sempre voou e sempre seguira voando. Não é algo que represente nossa cidade. Seu comentário acabou por provocar uma enorme discussão entre eles sobre o que mais representava a cidade de Santa Clara. – Sua arquitetura com as ruas estreitas de pedra e os grandes casarões coloniais –disse Gigi e Jordi retrucou dizendo que eram muitas as cidades que também tinham seu bairro histórico. – A tranquilidade da vida –argumentou o frade mas já reconhecendo que a tranquilidade era um elemento típico de qualquer pequena cidade. Cada um foi colocando suas impressões até que Ilona perguntou a Bebéi. – E para ti, qual é a primeira coisa que vem na tua cabeça quando alguém fala de Santa Clara. – A música de “L’Orgue de Barbarie” Ninguém entendeu e Ilona que tinha aprendido o francês por conta de um amor de juventude explicou: – O realejo –e todos ficaram pensando em silencio. Ilona foi também a primeira a comentar: – Acho que eu também gosto do realejo. Tem dias que acordo com vontade de matar todos vocês mas quando escuto o som do carrinho de sorvete do filho da Passarinho, é como se a raiva se dissipasse no ar. O frade comentou que o realejo era uma coisa nostálgica como nostálgicos eram todos os que queriam manter Santa Clara tranquila e preservada. Cada um foi opinando e as opiniões eram todas favoráveis. Ate Rasta que vinha voltando do terraço com os olhos brilhando escutou e comentou: 129 – Cool… o realejo… One Love –e começou a sorrir de uma forma tão contagiosa que todos ali, ainda que sem entender por que, começaram a sorrir também. Jordi também gostou da proposta: – Nosso jornal tem de ser algo que mexa com as emoções e acho que “O Realejo” seria um ótimo nome– e depois de mais algumas opiniões, aquele foi o nome escolhido. – A vantagem –comentou Jordi– é que com este nome, todas as vezes que escutem a musica do realejo as pessoas vão se lembrar de nosso jornal E Rasta Bong que não parava de sorrir completou: – O jornalzinho será anunciado pelo filho da Passarinho e distribuído por ela –e concluiu com uma gargalhada– Certamente que será uma coisa de loucos! A reunião não continuou por muito tempo pois ninguém conseguia resistir com seriedade aos comentários de Rasta e no dia seguinte a ideia de um novo jornal “O Realejo de Santa Clara” começou a tomar forma entre todos que viviam na cidade. A primeira foi Grená que confessou que todas as manhãs esperava a chegada do filho da Passarinho. Não pelo sorvete. e sim pela musica do realejo que alegrava a sua esquina. Dioclecio comentava com todos na praça que quando o triciclo de sorvetes parava por ali todos as crianças se aproximavam. E não eram apenas elas. Os velhinhos paravam seu dominó, os que estavam de mau humor sorriam e ate os mais apressados paravam alguns minutos para escutar o realejo. Jordi também descobriu que a ideia era bem recebida entre os mais jovens e até se surpreendeu ao perceber que todos, sejam os mais privilegiados que frequentavam a academia de ginastica de Lucia, até os que viviam nas casas mais pobres depois do rio, compartiam o encanto pela musica do realejo. Os pelagatos também confirmaram. Quando o filho da Passarinho chegava com seu triciclo, Frida parava de insultar as pessoas, o Coronel 130 se oferecia para girar a manivela e até Nullo controlava os seus peidos Rasta Bong tinha sido um dos primeiros a descobrir a magia dos realejos e muito antes daquela reunião ele tinha proposto ao filho da Passarinho fazer alguns realejos para colocar nos triciclos que estavam construindo para levar turistas a passear pelas ruas do centro histórico. O problema na época foi que os realejos montados por ele não eram muito bons e não duravam mais que uma ou duas semanas. A frustração foi tanta que Rasta decidiu seguir com a ideia dos triciclos para passeio de turistas mas abandonou a ideia de colocar neles os realejos. Os mesmos problemas técnicos complicavam também o realejo do carrinho de sorvetes que pelo menos uma vez por semana tinha problemas, mas agora havia uma nova possibilidade; a irmã da canadense que morreu nos tempos do Fim do Mundo tinha decidido ir viver em Santa Clara e estava montando uma carpintaria em sociedade com Rasta Bong para fazer moveis e também consertar os barcos da Bobo Ashanti e foi dela a ideia de construir um novo realejo para o lançamento do jornal. O realejo não passava de um conjunto de tubos que tocavam notas musicais e os mais simples, como aquele do filho da Passarinho tocavam vinte notas. Os tubos eram alimentados por um fole, como a sanfona do cigano e ao girar a manivela o ar do fole passava aos tubos que tocavam as notas seguindo a programação dos cilindros. Quase tudo era um trabalho de madeira e a irmã da canadense estava disposta a faze-lo. Os foles seriam os mesmos da sanfona e o cigano sabia onde encomenda-los. E foi apenas ai que eles descobriram que o filho da Passarinho, por alguma razão que apenas a velha que inventava historias e vivia no casarão abandonado podia explicar, tinha com ele muitos cilindros programados para varias canções. O problema de construir o realejo já estava resolvido, mas havia outro problema Quem iria rodar a manivela? 131 O realejo para tocar necessitava a rotação do cilindro. Quando o filho da Passarinho pedalava a bicicleta isso não era um problema pois ele havia montado um sistema pelo qual o movimento dos pedais acionava o fole e os cilindros. Quando ele parava para vender sorvetes era seu macaquinho que girava a manivela e quando ele cansava e abandonava o triciclo, algum voluntario se habilitava pois girar a manivela não havia musica. Quem seria o tocador do realejo que iria anunciar o jornal? Tinha de ser alguém que não tivesse nada que fazer durante o dia e isto, ainda que pareça curioso, não foi fácil pois em Santa Clara todos tinham muito o que fazer. Dioclecio caminhava pelas ruas observando as pessoas e filosofando sobre a vida. O Negro Zen meditava, os pelagatos se embebedavam e a Passarinho tinha de passar o dia correndo sem razão de um lado a outro da cidade para que todos pensassem que ela estava muito ocupada. Nenhum deles poderia passar o dia debaixo da grande arvore na Praça da Catedral, que foi a sombra escolhida para colocar o realejo. Contratar alguém para ser o tocador não parecia fazer sentido e foi de Bebéi a mais absurda das propostas: – Por que não pedimos a Arcádio –o que pareceu um total absurdo a todos, mas ele insistiu– depois da surra que ele levou por ter batido na Passarinho ele nunca mais apareceu por aqui. Todos na cidade lhe odeiam e ele odeia a todos mas, por que não perguntamos para ver se ele quer? –e concluiu com bom senso– Se ele aceita, ninguém mais terá razão para odiá-lo e quem sabe ele também deixe de nos odiar. – E o que vai dizer a Passarinho –perguntou Ilona. – Estou seguro que estará de acordo– respondeu Bebéi– ela sempre me pergunta o que Arcádio poderia fazer para deixar de ser tão infeliz. Para os que não se recordam quem era Arcádio, lhes conto que era um mendigo que não bebia mas que roubava a tudo o que podia. Foi ele que roubou a carteira e o passaporte do Condor e 132 também foi ele quem bateu na Passarinho quando ela encontrou o que ele tinha roubado. Ninguém, absolutamente ninguém na cidade conversava com ele. Cheirava mal, era desagradável e sempre estava com raiva das pessoas. Certamente a ultima pessoa no mundo que alguém poderia pensar para girar a manivela do realejo, mas Bebéi propôs e o que a principio parecia uma proposta absurda passou a ser algo que segundo Jordi, valia a pena tentar. Ao frade lhe encantou a ideia recordando que perdoar com dignidade é sinal de sabedoria e Dioclecio também apoiou a ideia. Bebéi foi encarregado de falar com Arcádio o que não foi uma tarefa fácil. Arcádio estava nas ruinas do velho forte e quase não o deixou falar. Ofendeu com as palavras mais horríveis que Bebéi escutou na sua vida. Só não lhe deu um soco pois lembrou o que lhe passou quando deu um soco no rosto da Passarinho mas toda raiva ele a transformou em palavrões e mesmo depois que Bebéi se foi ele ainda continuou gritando. – E como foi – perguntou Dioclecio – Bem –respondeu Bebéi– Esperemos um dia ou dois e acho que ele vai aceitar. Não tiveram de esperar tanto. Ainda naquela mesma tarde, Arcádio apareceu na praça e se sentou ao lado de Dioclecio para perguntar se era verdade a proposta que Bebéi lhe tinha feito. – Pronto –celebrou Jordi ao saber da visita– temos um realejo, um tocador de realejo e o primeiro numero do jornal já esta quase pronto. Lançaremos no próximo sábado. Pena que Cristina não estaria ali para compartir esta nova aventura. 133 134 20 O Realejo de Santa Clara sai pelas ruas contando o preço do seu o lixo A primeira edição do “Realejo de Santa Clara” trazia dois artigos. O primeiro era um artigo de três paginas sobre “Quanto vale teu lixo” escrito por Jordi aproveitando as informações que levantadas nos tempos em que Carmela foi candidata a prefeita. Comentava que além da taxa de lixo que todos pagavam junto com a suas conta de luz, a empresa do italiano recebia alguns benefícios extraordinários. O primeiro foi a compra de alguns novos equipamentos de coleta de lixo pela prefeitura que depois foram transferidos sem custo para a empresa do italiano. A justificação do prefeito foi a de que era importante que a empresa tivesse equipamentos modernos e se o italiano “pobrezinho” não podia comprar a prefeitura compraria, o que gerou uma grande aprovação por parte da população que foi evidenciada pelas pesquisas. O outro beneficio foi por conta dos empregados que faziam a limpeza e que segundo o prefeito, provavelmente seriam despedidos pelo italiano e que a prefeitura em uma demonstração do apreço que tinha pela gente que trabalhava ali decidiu pagar os salários e coloca-los a disposição da empresa de lixo. Outro golpe demagógico que melhorou ainda mais a popularidade do prefeito. O terceiro era uma espécie de multa que a prefeitura pagava a empresa da lixo e que era calculada em mais restrito segredo pelo irmão do prefeito que trabalhava como tesoureiro da prefeitura. O principio que estava por detrás da multa, e que o 135 prefeito explicou pela televisão, era de que como muita gente não pagava a taxa de lixo, a empresa do italiano não podia continuar funcionando. E por isso inventaram uma formula que definia quanto todas as pessoas deveriam pagar por mês e se por alguma razão a receita com a taxa de lixo não chegasse a estes níveis e prefeitura transferiria para o italiano a diferença. Nunca ninguém explicou como se calculavam estes números mas o resultado, e estes números Jordi tinha conseguido, era de que todos os meses a prefeitura pagava uns vinte por cento mais que a arrecadação da taxa de lixo para o italiano. O que se dizia era que metade desta quantia, o italiano nem chegava a ver, pois ia direto para uma conta de Investimentos do Caribe, empresa com sede em Grand Cayman que o prefeito tinha com seu irmão. E este tema da multa, ao contrario dos outros dois, quase que não impactava nas pesquisas de popularidade do prefeito. O outro artigo era a historia de Laís que sobrevivia na cidade vendendo pasteis da janela do seu apartamento no casarão verde ao lado da Catedral. Era querida por todos na cidade, e seus pasteis mais ainda, e a fotografia de Laís sorrindo na janela circulou por toda a cidade. A decisão de não incluir nada sobre a Nova Santa Clara foi de Jordi. – Primeiro necessitamos ganhar credibilidade. Se começamos a denunciar os planos da nova cidade que ainda não conhecemos, corremos o risco de que eles nos desmintam. Isso da coleta de lixo, temos toda a informação e sabemos de tudo. Ninguém poderá negar o que esta escrito. Fizeram duas mil copias e em menos de dois dias todas foram distribuídas. A Passarinho era a principal distribuidora. Saía de rua em rua com sua expressão sorridente e alucinada seguida por sua cadela magrinha, distribuindo jornais e ao final da tarde quando o calçadão se enchia de turistas, era ali que ela concentrava a sua distribuição. Naquele sábado, como havia um espetáculo de dança no Grande Teatro Colonial a Passarinho permaneceu distribuindo na porta do teatro ate que o ultimo 136 convidado entrou no teatro e segundo os cálculos de Jordi, somente ali ela distribuiu mais de duzentas copias. A barbearia de Rasta Bong era outro ponto de distribuição. Colocaram os jornais empilhados ao lado da cadeira da manicure e qualquer um podia passar por ali e pegar seu exemplar. Outro ponto importante foi a livraria-café de Princesa e outro ainda na praça do Libertador a entrada do calçadão, na cadeira onde o Cholo lustrava os sapatos. Todo foi tão bem que decidiram imprimir mil exemplares mais e isto custava mais dinheiro do que eles tinham. A ideia de cobrar pela publicidade estava nos planos de Jordi mas para isso ele tinha de registrar e legalizar a empresa que produzia os jornais, o que o levaria a mesma ladainha de subornos, comissões e aborrecimentos que o frade estava enfrentando com a pizzaria. Na prefeitura a reação ao “Realejo de Santa Clara” foi imediata e o prefeito convocou a todos seus assessores no domingo para uma reunião extraordinária e estava com muita raiva. A Sérvia tentou acalma-lo mas não conseguiu. Ele queria vingança do Frade, de Jordi e de todos os que estavam financiando ou apoiando o jornal e deixou isso bem claro já ao inicio da reunião: – A licença para servir bebidas alcoólicas da pizzaria, nem pensar e quero que vocês investiguem agora mesmo se podemos deportar o Frade para a puta que o pariu. Pelo que me explicaram ele estava autorizado a residir no pais para trabalhar com a igreja e agora que não é mais frade que volte a Itália. E pelas duvidas investiguem também a situação da pilota Gigi e se ela não esta legal no pais, vamos deporta-la junto com seu noivo. Este Jordi que foi contratado como professor, quero que se abra imediatamente uma sindicância para demiti-lo da prefeitura e enquanto não concluímos o processo que ele seja suspenso sem direito a honorários. A Sérvia fez todo o que pode mas o prefeito estava com tanta raiva que ela não conseguiu acalma-lo e ele regressou a insistir nas mesmas atitudes anteriores a neo revolução que quase lhe 137 custaram a prefeitura. Ela sabia que com mais tempo poderia convence-lo a adotar uma postura mais inteligente e menos passional mas o que lhe preocupava é que ele passou instruções naquela reunião que deveriam ser cumpridas imediatamente e se o que estavam discutindo saísse daquela sala, os problemas seriam enormes. E foi exatamente o que passou. Na tarde da segunda feira os temas que haviam discutido no domingo estavam ao centro das conversas frente ao guarda sol amarelo de Grená. – O prefeito quer deportar o Frade e demitir a Jordi, e tudo isso somente pelo que saiu publicado no Realejo. O primeiro resultado da reação do prefeito foi que todos aqueles que na cidade ainda não tinham lido o jornal, saíram para encontrar um exemplar. Que será que de tão importante estava escrito ali? E todos começaram a falar da coleta de lixo, pois obviamente que o problema não era o sorriso de Laís. A Passarinho chegou na barbearia desesperada pois não tinha mais nenhum exemplar para distribuir e todos estavam pedindo. Rasta teve de financiar a compra de papel para mais mil copias e a manicure teve de deixar seus clientes esperando para ajudar Jordi a imprimi-los na copiadora alugada. Rasta ate pensou em utilizar Henry Moriarty para dobrar as copias mas desistiu quando percebeu que sua velocidade era de aproximadamente uma copia para cada cinco minutos. E isto que o único que ele tinha de fazer era dobrar no meio pois o papel já estava impresso frente e verso e ao dobrar no meio, ele virava um folheto de quatro paginas. Gigi quando escutou que o prefeito queria deportar o frade foi pedir ajuda a Ilona que chamou um advogado amigo para jantar no restaurante. O problema era complicado pois o frade necessitava uma autorização para residência, coisa que Gigi já tinha e foi ai que nasceu a ideia do casamento dos dois. – Resolver não resolve pois ela também não é cidadã mas ajuda – disse o advogado. 138 Com relação a Jordi não havia muito que podiam fazer. Carmela estava furiosa e conversou com outros professores mas concluiu que não seria realista montar um movimento de solidariedade a Jordi pois ele ainda não havia dada uma única aula sequer. O apoio a Jordi veio de onde ninguém esperava; os jovens que viviam depois do rio. Eles haviam se unido aos jovens da cidade quando o prefeito proibiu as serenatas e também tinham participado do movimento de ocupação da praça. Eles não sabiam bem o que queriam mas estavam com muita raiva. Jordi era um jovem e apenas estava tentando trabalhar. Muitos o conheciam da escola onde além de ser um amigo de futebol e das festas, era também, junto com Cristina um dos melhores alunos. Passou seu concurso para professor em primeiro lugar e agora apenas por publicar um jornal denunciando o prefeito ia perder seu emprego. Isso não era justo, nem aceitável e causava indignação Os ânimos se esquentaram e o apoio aos dois crescia. Com a pressa em lançar o jornal não tinha sido possível esperar que o realejo novo que Rasta havia encomendado a irmã da canadense estivesse pronto, o que acabou por ser ainda melhor pois se sábado eles lançaram o jornal, na sexta feita da semana seguinte aproveitaram para lançar o novo realejo. Decidiram fazer na sexta pois era essa a noite em que se apresentava a banda municipal. Ali estavam todos aguardando a abertura do concerto pelo general da banda que aquela noite estava acompanhado pelo seu cachorro que também exibia uma coleira tricolor para admiração e inveja de todos os demais cachorros da cidade. Bebéi subiu no coreto e anunciou que a partir daquela noite a praça teria um realejo permanente e a surpresa que se seguiu não foi pela musica do realejo que era mais bonita que todas as musicas de realejo que antes eles tinham escutado e sim por conhecer o tocador do realejo. Ele estava vestido com um dos fraques que o magico tinha utilizado em suas apresentações e 139 estava com o cabelo cortado, barba feita e ate dava a impressão de que tinha tomado uma banho. Muitos tomaram um bom tempo para perceber que era o sempre detestado Arcádio que a todos odiava talvez por que todos o odiavam. Mas naquela noite ele não tinha que roubar nem agredir a ninguém e pela primeira vez em todas as suas lembranças, as pessoas da cidade o olhavam com um sorriso. Depois daquela noite ele nunca mais parou. Passava o dia na sombra da grande arvore girando a manivela do realejo distribuindo os jornais e de longe a Passarinho olhava com orgulho... e com uma sensação estranha no peito que ela não sabia explicar. 140 21 Complica a neo revolução mas a Sérvia conhecia bem a Maquiavel. Os problemas do prefeito começaram com sua esposa que entrou em seu gabinete como se um furacão tivesse atingido a cidade. – Como pode passar pela tua cabeça deportar Frei Bernardo – e depois de dizer isto, ela disse tantas coisas tão horríveis que a única que ele conseguiu lembrar depois que ela saiu foi: “A única razão por que aguento continuar casada com você são os trabalhos que posso fazer na prefeitura ajudada pelo frade. Se ele se vai, eu também me vou” E não foi apenas ela. Todas suas amigas, e quando digo todas incluo até aquelas que raramente saiam de suas casas para qualquer outra coisa que não fosse casamento de filho, enterro e missa de domingo. Todas estavam reunidas na praça do Libertador frente a casa do prefeito insistindo para que Frei Bernardo não fosse deportado de Santa Clara. Ninguém se incomodou quando ele foi expulso da igreja. Todas ali sabiam que frades não podiam ter namoradas e quando ele se enamorou de Gigi, a única a alternativa logica era abandonar a igreja, mas ainda sem ser um frade ele poderia permanecer fazendo o mesmo trabalho que fazia. Não como frade, mas sim como assistente da esposa do prefeito. A pizzaria, como diziam as mulheres, era um mal necessário pois de alguma forma ele tinha de ganhar o dinheiro que necessitava para sobreviver. 141 – E que isto não lhe tome muito tempo pois o importante é o trabalho que ele faz com os que mais necessitam. E se as senhoras católicas da alta sociedade saíram em sua defesa, a reação foi ainda maior entre os mais pobres que viviam depois do rio; entre os indígenas que tinham saído de suas aldeias para tentar a vida na cidade; e entre os emigrantes que abandonaram regiões mais pobres para tentar a sorte ali e que tinham de viver nos albergues criados pelo frade ate conseguir um lugar para morar. Quando a noticia de que o prefeito queria expulsar Frei Bernardo do pais circulou pela cidade, a indignação foi geral. Quando chegou na Praça da Catedral, como fazia todos os dias, para cumprimentar os que debatiam no espaço democrático, o prefeito recebeu uma sonora vaia e não teve como responder a todos que insistiam em perguntar se ele acreditava realmente na liberdade de expressão ou se era um hipócrita. Na tarde de sábado a Sérvia lhe aconselhou a ficar calado por algum tempo mas ele insistiu em subir no palco para a apresentação da banda comemorando o dia internacional da musica. Foi apenas ele pisar no primeiro degrau que as vaias começaram e apenas não foram maiores graças a banda que por instruções da Sérvia começou imediatamente a tocar. A coisa foi ainda pior no domingo. Pela manhã no jornal da Senhora Rosenthal que cobria todo o pais, o editorial tinha como titulo “A hipocrisia e a xenofobia de um prefeito” e nele o jornal lhe acusava com violência por dizer que Santa Clara Frente ao Mar recebia de braços abertos a todos os turistas, enquanto expulsava os estrangeiros que faziam um trabalho socialmente relevante para o pais. Para piorar ainda mais as coisas, o domingo era dia de inauguração de novas obras no cais de turistas. O prefeito já vinha anunciando a varias semanas as reformas que iam dar um ar moderno ao velho cais, com cercas novas de proteção, banheiros, área para lanchonetes, assim como novas instalações de agua e luz para todos os barcos ali ancorados. Verdade que a 142 obra havia custado uma fortuna mas isto não importava pois a prefeitura tinha financiado com um empréstimo internacional e os primeiros pagamentos apenas seriam feitos dez anos depois quando o prefeito certamente estaria bem longe dali com uma enorme conta bancaria, pois obviamente que a construtora contratada foi uma nova empresa que o prefeito tinha criado com o romeno. Quando chegou, o calçadão estava completamente tomado, mas não de turistas. Quem estava ali eram os emigrantes, os pobres e os indígenas com cartazes defendendo Frei Bernardo. O prefeito até que tentou se aproximar confiando em seu simpático sorriso, mas os que estavam ali não estavam de bom humor e a vaia foi tão forte que sua segurança insistiu que ele deveria retirar-se. E o domingo foi todo um tormento. Pela manha a vaia, no almoço as infindáveis criticas das amigas de sua senhora no clube e a tarde as broncas da servia. E como se isso tudo fosse pouco, a noite, mal ele se deitou, foi acordado por um telefonema do Tenente Pirilo: – Colocaram fogo em dois automóveis depois do rio. Eram os veículos dos engenheiros que estão fazendo as medições para o novo projeto e que estava estacionado em frente ao escritório dos árabes. O prefeito pediu a Pirilo que passasse para busca-lo e rapidamente se vestiu para ir com ele verificar o que havia acontecido. Quando chegou já não havia mais fogo, apenas a fumaça e os dois autos estavam completamente carbonizados. Os investidores árabes haviam ocupado, com muita discrição um deposito depois do rio, próximo a área do forte para abrigar os engenheiros. Ali eles tinham três autos sem nenhuma identificação externa e dois deles tinham sido destruídos. O terceiro se salvou pois foi nele que os engenheiros foram passar o final de semana em uma praia distante e apenas regressaram no dia seguinte. 143 E não era apenas o incêndio. O que mais preocupou o prefeito foi a nota que encontraram na porta do deposito com apenas uma palavra, mas bem eloquente: “Fora!” A Sérvia tinha razão, foi o primeiro pensamento que lhe veio a mente. – Você tem de se concentrar no que é importante – foi o que ela lhe disse aquela tarde – e o importante é construir a nova Santa Clara pois com isso você vai ganhar todo o dinheiro que necessita para se aposentar como um príncipe. As criticas nos jornais não são importantes, pois com duas grandes festas que inventemos podemos fazer todos esquece-las. O problema é este frade jogando a todos contra nos. A pizzaria e o jornalzinho do Realejo só estão criando problemas por tua culpa. Você tem ciúmes do Frei Bernardo porque ele é jovem, bonito e atrai todas as mulheres, incluindo tuas amantes, que morrem de amores por ele. Mas se insistes nesta teimosia estupida, você vai ter sérios problemas pois se perdes o apoio dos mais pobres e dos jovens, você nunca vai saber por onde a bomba te vai explodir. Ele estava furioso. Queria muito fazer “aquele filho da puta comer merda,” mas isto teria de esperar. O novo projeto era muito importante e ele não podia arriscar tudo apenas para “ferrar” com o cura. A Sérvia tinha razão e aquela mesma noite avisou os sócios e assessores; amanha na primeira hora, reunião de emergência na prefeitura” Foram todos os assessores e sócios mas a única que falou foi a Sérvia. O prefeito preferiu permanecer calado ao seu lado. – Hoje o Senhor Prefeito vai visitar as obras da pizzaria do frade as doze e trinta e junto com ele vai o Senhor Tesoureiro, o Senhor Chefe dos Bombeiros e todos os responsáveis pelas licenças de saúde, trabalho e bebidas. Todas as licenças da pizzaria terão de estar aprovadas antes do final da tarde –e para não deixar duvidas ainda complementou– sem exceções. Por favor, pediria que os senhores façam a barba e coloquem roupas sóbrias e elegantes pois teremos ali as televisões. 144 Todos permaneciam serenamente: calados e ela continuava falando – As três da tarde o Senhor Prefeito vai receber em seu escritório a este jovem Jordi, para informar que sua suspensão foi revogada e que ele começara a dar aulas já na próxima semana –e complementou– Para esta reunião o Senhor Secretario de Educação deve estar com o prefeito em seu gabinete. O secretario concordou com a cabeça enquanto os demais permaneciam calados sem mover-se de suas cadeiras. – Tenente Pirilo nos vai informar que ontem, por um pequeno incêndio involuntário, provavelmente causado apor alguém que descuidadamente jogou um cigarro pela janela de seu veiculo, dois autos se incendiaram, mas Graças a Deus, não tivemos nenhuma vitima e os veículos estavam completamente cobertos pelo seguro. Qualquer informação de que o incêndio foi provocado por marginais tem de ser negada com veemência pois impactaria na imagem de nossa cidade frente aos investidores. A prefeitura já emitiu um comunicado oficial para a imprensa e o tema esta encerrado. O prefeito concordou com a cabeça olhando a todos com uma expressão grave para destacar a importância do que a Sérvia acabava de dizer. – Importante que vocês saibam também que amanha as onze e trinta o Senhor Prefeito vai visitar o realejo da praça da catedral, junto com o jovem Jordi para anunciar que um grupo de amigos do prefeito acaba de fazer uma importante contribuição para que o “Realejo de Santa Clara” siga pois o Senhor prefeito acredita firmemente na liberdade de expressão. E não falou mais nada pois tudo já estava completamente claro. E ao seu lado o prefeito apenas comentou: – Agora podem todos voltar ao trabalho. 145 As doze e trinta em ponto o prefeito chegou a pizzaria, e não chegou sozinho. Junto com ele estavam seus principais assessores , os jornalistas, as câmeras de televisão e duas peruas com quarenta pizzas que o prefeito mandou trazer de uma pizzaria da capital. O prefeito desceu do seu automóvel sorrindo, abraçou Frei Bernardo e frente a todas as câmeras informou: – Como estas demorando tanto para abrir decidi trazer as pizzas e toda a minha assessoria para ver o que temos de fazer para inaugurar esta pizzaria ainda esta semana. Santa Clara Frente ao Mar necessita urgentemente de uma pizzaria –e foi a imagem de sua chegada, seguida da distribuição de pizzas que todos assistiram em suas casas nos principais jornais da televisão. – Sobre o realejo conversaremos amanha –explicava a Sérvia aos demais assessores– fazer dois eventos no mesmo dia seria um desperdício. Como acordado, no dia seguinte, com a presença da Viúva Rosenthal, e de outros donos de jornais nacionais e televisões, o prefeito entregou a Jordi um cheque que asseguraria pelo menos três meses de funcionamento do jornal. Ali, depois de fazer um violento discurso defendendo ate a morte se necessário a liberdade de todos os cidadãos em expressar suas opiniões, o prefeito pousou em frente as câmeras. A imagem que a população de todo o pais viu em suas televisões aquela noite não foi a do discurso mas sim a do prefeito girando a manivela do realejo ao lado de Arcádio que não apenas agora era querido por todos, mas também aparecia na televisão ao lado do prefeito. – Crise superada –disse o prefeito aos seus assessores ao final do dia–Retomemos agora o projeto da Nova Santa Clara. 146 22 A guerra fria na África confunde ao húngaro e as ideias de nossos amigos Com toda a agitação daqueles dias não era muito o que Bebéi tinha avançado, mas quando passou em frente a livraria e viu Jose Princesa ali sentando atrás do caixa lendo um livro, ele sentiu que era um bom momento para retomar suas investigações. Passou pela prefeitura pegou algumas das pastas que estavam guardadas no cofre de Pirilo: a de W. Auden com as informações da Argélia e a de J. Conrad com as informações do Congo e pelas duvidas decidiu levar também as notas em espanhol que estavam dentro do livro de L. Durrel e que aparentemente falavam da Republica Dominicana e as notas do livro de H. Boll que mencionavam um tal de Barba Roja. Princesa ao vê-lo chegar com as pastas azuis na mão já desconfiou o que lhe esperava e animado foi sentar-se com Bebéi em uma das mesas em frente a livraria. A praça parecia um circo antigo aquela tarde com as pombas fugindo dos turistas, os cachorros correndo atrás da bola e Robespierre dançando ao som da musica do carrossel de cavalinhos que saia do realejo de Arcádio. – Procurar informações em notas e livros e o que mais me fascina –explicou Princesa– O cheiro de papel velho me excita muito mais que o brilho das lantejoulas. Bebéi não entendeu muito bem, mas pelo sorriso de Princesa interpretou que era alguma coisa positiva e lhe passou os documentos. 147 Na pasta com os papeis do livro de Auden estava a fotografia de seu pai no jornal que o descrevia como um dos principais responsáveis pela formação do Exercito de Liberação Nacional, o braço militar da Frente de Liberação Nacional que levou a Argélia a se libertar do domínio francês em 1961. Princesa continuava com a ideia de Arpad era um agente duplo e pelo que pode observar pelas notas ali guardadas, seu trabalho em Argel foi o de o observar o que estava passando ali e manter seus chefes informados. Pelas notas não era possível identificar quem eram seus chefes, mas claramente não eram os comunistas. A preocupação que se evidenciava nelas era a de entender ate onde os lideres do movimento de liberação estavam envolvidos com os soviéticos e uma das notas que talvez um de seus superiores lhe havia escrito dizia: “Para os franceses o tema da liberação de Argel é um tema passional, o que lhes esta levando a perder sua racionalidade. Para nos não é importante saber si a Argélia é um pais livre ou não, o que não queremos é uma Argélia vermelha” As notas escritas por Arpad indicavam que ele estava aproveitando o tempo em Argel para aprender o francês e entender melhor seu trabalho. Havia uma nota a Otto e Bebéi aproveitou para comentar algo que lhe intrigava: – Em muitos livros existem notas escritas por Arpad a este Otto, o que não chego a entender. Se ela as enviou, as notas deveriam estar com este Otto e não no arquivo de Arpad – Princesa apenas escutou sem fazer comentários e leu a nota: “Pouco me pedem. Apenas que lhes mantenha informados. Sinto muita falta de Eszter e de Morgen. Quando penso em regressar a Berlim sinto uma dor ainda maior pois sei que ao rever Morgen vou sentir mais forte a dor por não ter Eszter ao meu lado. Aqui pelo menos posso sonhar com a ilusão de que as dois estão esperando por mim na casa 148 dos Bider. A vida em Argel é bem agradável. O suor faz parte da pele e os odores são todos distintos e me recordam a cada momento que estou longe da Europa. A comida e a musica são excelentes, mas o futebol que jogam por aqui é horrível. – Arpad aparentemente passou pouco tempo em Argel – continuava Princesa– pois ao final de 1958 ele foi transferido para o Congo. E depois de pensar um pouco continuou: – Isto me faz pensar em algo. Na Argélia a situação permaneceu bem agitada ate 1962 e se eles o mandaram para o Congo em 1958 é por que o trabalho que Arpad fazia ali não era importante e também porque o Congo era muito mais importante para os americanos em sua luta com os soviéticos pelo controle da África. Princesa cada vez se animava mais em conhecer a vida do húngaro. – Nas notas que estavam no livro de Conrad sobre o Congo é possível perceber que ele teve ali uma participação mais relevante e foi ali também que ele começou a se interessar pelo que se passava em outros países. Em uma das notas ele mesmo descreve isto: “Estou em Kinshasa mas com os olhos abertos para entender o que passa em Dominicana, em Jakarta e em toda África Oriental. É como se todo o mundo estivesse explodindo ao mesmo tempo e existem coisas muito estranhas acontecendo em todas as partes” Princesa explicou a Bebéi que o CIA americano tinha estado fortemente envolvido em todos estes países e que quando ele mencionava África Oriental, ele estava provavelmente se referindo a Eritreia, Etiópia e tal vez ao Chade onde também haviam movimentos revolucionários ao inicio dos anos sessenta. 149 – Tudo isso –disse Princesa– parece confirmar que Arpad trabalhava para o CIA. Em 65 os americanos estavam preocupados com os movimentos revolucionários do Congo pois ali Che Guevara e os cubanos apoiavam aos rebeldes, e também com os esforços que se faziam naquela época para levar Bosch de volta ao poder na Republica Dominicana. Eles acreditavam que outra revolução como a de Cuba no Caribe seria muito perigoso e poderia desestabilizar toda a região. O CIA também estava apoiando Suharto na Indonésia a dizimar os comunistas e em vários países da África Oriental, começando pelo Chade passando pelo Sudão, Etiópia e Eritreia haviam movimentos políticos que preocupavam ao CIA pela forte presença de soviéticos apoiando aos grupos revolucionários e independentistas locais. Bebéi escutava a todo que dizia Princesa e fazia um esforço para não se perder entre todos aqueles países mas o que mais lhe interessava era compreender o que fazia o húngaro por ali. – São muito interessantes também as notas que estavam no livro de Henrich Boll – explicava Princesa– pois são notas do Barba Roja que era o coordenador de toda atuação do governo cubano na América Latina e na África. Pelo que leio nelas foi o próprio Guevara quem apresentou Arpad a Barba Roja em um encontro que tiveram em Argel e isto não foi no período em que ele vivia ali, mas sim depois. Talvez Arpad passou por ali para participar de uma reunião e conheceu o Comandante Piñero que era o nome do Barba Roja –e acrescentou– Se você se lembra das historias que nos contou o irmão do Condor, Júlio, no tempo em que era um guerrilheiro revolucionário trabalhava baixo as ordens do mesmo Barba Roja. Depois de ler em silencio algumas das notas de Barba Roja, Princesa fez um comentário definitivo: – Aqui esta claro que teu amigo húngaro fazia um jogo duplo. Por um lado trabalhava e recebia salario do CIA para mantê-los informados de tudo o que acontecia ali e de outro, por amizade a este Otto e talvez ao Che, ele também mantinha a Barba Roja 150 informado de tudo o que sabia, não apenas no Congo mas também na Republica Dominicana, Indonésia e outros países de interesse para os americanos. Bebéi contou então a Princesa de sua conversa com a Senhora e explicou que ela se comprometeu a descobrir se o húngaro trabalhava para o CIA. E Princesa comentou sorrindo que provavelmente ela não ficaria feliz em saber que o húngaro também tinha amores por seus inimigos. – A partir de 1966 as coisas se acalmaram um pouco na vida de teu amigo –explicava Princesa– Os americanos com as suas tropas asseguraram a eleição de Balaguer na Republica Dominicana e a eliminação de todos os que apoiavam a Juan Bosch. Em 1967 Suharto assumiu o poder com total controle sobre os comunistas da Indonésia e Mobutu se consolidou no poder no Congo. Pelo que indicam estas notas escritas pelo próprio Arpad é neste período que ele começa a se dedicar a um projeto com os Tutsis. Se entendi bem, ele estava fazendo isso para os americanos que queriam evitar que os Tutsis apoiassem aos revolucionários prosoviéticos –e acrescentou– Pelo que ele escreveu parece ser um grande projeto de assistência técnica para desenvolver a agricultura que ele mesmo ajudou a preparar e implementar e pelo que li, um projeto onde Morgen, sua filha também estava envolvida. Pouco a pouco Bebéi ia conhecendo a historia do húngaro. Um funcionário do serviço secreto americano vivendo no Congo mas que na verdade parecia ser um agente infiltrado pelos comunistas trabalhando em coordenação com o Barba Roja. – Ai final dos anos sessenta –continuava Princesa– ainda vivendo em Kinshasa, ele parecia dedicar toda sua atenção a outra cidade do Congo, Kisangani que era onde estavam implementando o projeto com os Tutsis. Existe uma nota mais, esta de 1975 onde aparecem algumas referencias a um Francisco que aparentemente trabalhava em Angola e Moçambique e com quem Arpad mantinha contato. 151 Bebéi interrompeu para comentar que no livro de Anatole France haviam algumas notas em português que falavam de Angola e Moçambique e que talvez a palavra chave fosse este Francisco mencionado nesta nota. Comentou também que haviam outros livros com notas em inglês que poderiam ajudar a entender todo o que Princesa contava, como o livro de Ibsen onde haviam notas sobre a Indonésia e o libro de Kafka. Para este livro Bebéi ainda não sabia se a palavra chave era a cidade de Khartum, ou se era simplesmente a letra K, pois algumas das notas neste livro foram escritas por alguém que assinava como agente K. Os dois estavam entusiasmados com o quebra cabeças mas tiveram de interromper sua conversa pois Jordi chegou e sentou com eles com uma expressão preocupada no rosto. – Acho que vou ter de seguir com o Realejo sozinho. Não posso pedir a Frei Bernardo que me ajude. Os dois escutaram sem entender e ele explicou: – No dia em que visitou a pizzaria, o prefeito comentou em privado que junto com sua esposa eles apoiariam a preparação dos documentos para que Frei Bernardo receba sua autorização de residência definitiva em Santa Clara e que sua esposa seria a patrocinadora e responsável frente ao serviço de imigração. Não seria justo agora pedir a ele que siga nos ajudando a brigar com o prefeito e mais, a verdade é que ele já não tem tempo pois passa todo o dia ultimando os preparativos para a inauguração da pizzaria e ajudando a esposa do prefeito em suas atividades de assistência social. Mas não se preocupem que eu posso levar o jornal sozinho e Cristina já me disse que quando voltar ela vai me ajudar. Ai foram os três que pararam de falar atônitos com o que viam na praça da Catedral. O velho Dioclecio Bergantim vinha caminhando em direção a eles, sereno como sempre, com sua barba branca e sua expressão de filosofo, vestido com a mesma capa de chuva cinza e velha 152 que usava desde o primeiro dia em que chegou a Santa Clara mas ao seu lado uma surpresa. Uma mulher loira de mais de um metro e oitenta de altura que parecia ser uma das mulheres com quem os amigos do prefeito chegavam as suas festas no hotel dos espanholes. E vinham os dois conversando em direção a mesa da livraria onde os três estavam sentados. A surpresa de Jose Princesa aumentou ainda mais quando Dioclecio de forma educada e diplomática apresentou a loira que lhe acompanhava.: – Meus amigos esta é a Senhora Dusanka –e ai olhando para ela– Senhora Dusanka, estes são meus amigos, Senhor Bebéi, Senhor Princesa e Senhor Jordi. Dusanka era a tcheca que atendia os turistas no hotel e que ia ajudar Bebéi a entender o que estava dentro livro de Pasternak, mas lhes tomou um bom tempo para entender, tal vez pela beleza da Tcheca ou quem sabe pelo contraste de ver uma mulher alta, sensual com salto alto e vestida com roupas elegantes caminhando ao lado de Dioclecio que apenas trocava suas roupas quando elas estavam tão velhas que Dona Cécy lhe forçava derrubando nelas um copo de vinho. E como explicava ela: – Tem de ser todo um copo de vinho, pois se forem apenas algumas gotas, Dioclecio não se importava e continuava usando. Dusanka já havia lido as notas que Dioclecio lhe tinha passado e comentou que elas mencionavam um apartamento onde vivia uma certa Natasha. Disse também que uma das notas fazia referencia aos principais documentos de registro do apartamento, sua localização e alguns detalhes da conta de luz, agua e o nome de um escritório de advogados de Andorra que aparentemente administrava o apartamento. A outra nota trazia o numero de uma caixa postal que aparentemente pertencia a mesma Natasha. Será que as notas do livro de Neruda eram da Natasha, pensou Bebéi, mas como saber se as notas estavam em russo. 153 Não havia muito mais que eles podiam fazer ali e Bebéi pediu a Dusanka que lhe ajudasse a escrever uma carta para o endereço da caixa postal de Natasha contando que ele estava tentando descobrir por onde andava Arpad Corvinus e pedindo sua ajuda, o que a Tcheca fez ali mesmo na mesa da livraria de Princesa. Ao partir a Senhora Dusanka deu um beijo em cada um dos quatro que com seus olhos acompanharam seus movimentos de quadris ate que ela entrou no taxi e se foi. – Tem varizes –foi o comentário fulminante de Princesa. 154 23 Ao final da reunião una surpresa e o tão esperado voo da gaivota As investigações de Bebéi em poucas semanas haviam transformado o húngaro em uma das pessoas mais conhecidas em Santa Clara. Falavam dele na janela onde Laís vendia seus pasteis e ali era Jose Princesa quem comentava com Heitor e com Coronel Vieira que o húngaro era um agente duplo. Na sala de Pirilo na prefeitura o que se discutia eram as duvidas com relação a tentativa de roubo. E Pirilo insistia com seus assistentes que alguma coisa estavam buscando e como dizia a Senhora da embaixada americana “alguma coisa que certamente valia muito dinheiro” E frente ao guarda sol amarelo de Grená o húngaro era também o centro das novidades: – Sempre desconfiei do húngaro–dizia a japonesa que tinha a banca de verduras no mercado publico– sempre comprava a mesma coisa, nunca perguntava nada e jamais reclamava. Pagava tudo em dinheiro e nunca discutia o preço. Ninguém é assim. Certeza que estava escondendo algo. É como aquela chinesinha que todo mundo pensava que era puta de cabaré e que depois virou embaixadora – se referindo a Anã Chinesa que a japonesa sabia, nunca contou com a simpatia de Grená. Do outro lado da cidade na casa de Clara onde Pirilo passava quase todas as noites, ela também insistia com ele: – Tem algo muito estranho ai. Foi você mesmo quem desconfiou daquele advogado gringo e agora já sabe que foram eles que contrataram os bandidos que entraram no apartamento. Sem Cristina, teus assistentes não são capazes de encontrar um 155 elefante escondido na fonte da Praça da Gabriela. Você não tem outra alternativa. Você mesmo tem de descobrir o que esta passando e a única pessoa que pelo menos sabe alguma coisa é Bebéi. Ao Tenente Pirilo a ideia de passar o tempo lendo papeis velhos não lhe atraia, mas Clara tinha razão. Com Cristina estudando fora ele não tinha outra alternativa e acabou sendo sua própria assistente quem por telefone lhe propôs uma solução: – Converse com Jordi e convide Princesa e Bebéi para uma reunião no teu gabinete para que lhe contem tudo o que já descobriram. Eu converso quase todos os dias com Jordi e de longe posso te ajudar. Foi apenas assim, depois de uma bronca de Clara e uma sugestão de Cristina que Pirilo finalmente decidiu assumir o controle das investigações e convidou os três para uma reunião em seu gabinete. Em volta da mesa estavam Pirilo Jordi, Princesa e Bebéi e em frente a eles as pastas azuis. Todos tinham também uma copia da folha preparada por Bebéi onde estava anotado o que ele sabia e o que queria saber sobre cada uma delas. A – Auden B – Boll Francês Espanhol Argélia Barba Roja C – Conrad Francês Congo D – Durrel E – Elliot Espanhol Alemão Dominicana Eszter F – France Português Francisco? G – Grass Espanhol Guevara H – Hesse I - Ibsen Húngaro Inglês Horthy Indonésia? J – Joyce Húngaro Janus K – Kafka Inglês K o Khartum? 156 L – Lawrence Húngaro Lali M – Marai Inglês/Alemão Morgen N- Neruda Russo Natasha? O- Orwell Alemão Otto P- Tcheco Praga Q- Quasimodo R - Rilke Francês Russo Quebec ? S- Szabo Espanhol Santa Clara T - Tolstoi Alemão Tamara U - Unamuno Inglês ? V - Virgílio Inglês ? Pasternak W - Whitman Inglês ? X - Xingjiang El ultimo libro Y- Yeats Z - Zola Russo ? !!! Foi de Jordi a ideia de olhar cada uma das pastas e começaram pelas que tinham as notas em húngaro. Jordi leu a carta do arquivista de Budapest e depois comentou o que Frida tinha contado sobre seu resgate na Sibéria por Eszter. Leram depois as notas que estavam em espanhol e que confirmavam a teoria de Princesa de que o húngaro era um agente duplo e Bebéi comentou que a Senhora ficou de investigar se era verdade que o húngaro tinha trabalhado para o CIA na África. Jordi, que conhecia um pouco do inglês comentou que as notas que estavam no livro de Ibsen e de Kafka confirmavam a teoria de que o húngaro era um agente duplo interessado em coisas que aconteciam em outros países. – Uma das notas que estavam no libro de Ibsen –explicou ele – comenta que os americanos haviam preparado algumas listas com os nomes de pessoas que pertenciam ao partido comunista , 157 o PKI, e as tinham entregue ao General Suharto. E no livro de Kafka, existem varias notas mencionando algumas execuções apoiadas pelo CIA de lideres de movimentos nacionalistas e muçulmanos que se alinhavam com os soviéticos o que não parecia ser algo que interessava aos americanos para quem Arpad supostamente trabalhava. Depois deste comentário Bebéi propôs olhar a pasta com as notas que estavam dentro do livro de Anatole France. Ele já as tinha lido, mas nenhum dos outros conhecia. Eram notas que não estavam assinadas, provavelmente do tal de Francisco que foi mencionado em outras notas. Elas também descreviam o que o CIA estava fazendo de uma forma bem critica. A primeira era de 1966 onde se mencionava que Agostinho Neto tinha encontrado com Guevara e que seu grupo o MPLA estava recebendo apoio do Barba Roja e da Alemanha Oriental. – O que ate podia indicar que Otto estava envolvido –comentou Princesa. A nota mencionava que “os portugueses com todos seus problemas internos não vão aguentar a pressão e provavelmente Agostinho Neto assumira o controle do pais em aliança com os soviéticos” E reproduzia uma instrução que o tal Francisco tinha recebido de seus chefes: “Tens de fazer todo o possível para impedir a aliança entre Agostinho Neto e os demais movimentos revolucionários. É importante que eles se dividam e sigam lutando entre eles, Busque apoio em teu amigo de Kinshasa para colocar os do Enclave de Cabinda contra Angola. É muito importante envolver Mobutu nisto pois quanto maior a tensão entre eles mais difícil que controlem o petróleo. Faça o que puder para apoiar Golden e a FNLA, eles são um desastre mas é tudo o que temos pois Sawimbi esta fascinado pelos chineses. Não temos como evitar que os soviéticos tomem o controle e por esta razão não temos outra alternativa; o único que podemos fazer é provocar um colapso no pais. 158 – Não entendo –perguntou Bebéi– os americanos queriam provocar um colapso em todo pais apenas porque este Agostinho era amigo dos comunistas? Princesa achou aquela questão complicada demais e tentou evitar a discussão. Apenas seguiu lendo as notas: – As outras notas são de Moçambique e o que contava este Francisco não era muito diferente. Ali não era Agostinho neto quem liderava o movimento e sim Samora Machel da Frelimo, a Frente de Libertação de Moçambique e Francisco escreve que as instruções que tinha eram de: “apoiar Dhlakama, pouco importando o que pensam nossos colegas do Departamento de Estado. Eles estão tentando convencer Samora Machel a se aliar conosco mas pelas duvidas é importante seguir debilitando o governo e o pais.” Bebéi estava confuso. Em sua visão romântica os espiões internacionais sempre buscavam os criminosos. Como era possível que alguns queriam colapsar um pais. Princesa percebeu o confusão no olhar de Bebéi mas não quis discutir. Ali a ideia não era discutir a ética da politica internacional e sim saber o que o húngaro tinha feito de tão importante e que valia tanto dinheiro a ponto de atrair a atenção de um escritório de advogados de Miami – Ele viveu no Congo –disse Princesa– mas fez varias viagens e de alguma forma estava interessado em vários países africanos. Já sabemos que esteve na Argélia onde se encontrou com Barba Roja . Esteve discutindo Republica Dominicana em uma reunião que não sabemos onde foi mas desconfiamos que foi em Havana. Suspeitamos, pelo que Jordi leu nas notas, que Arpad esteve em Khartum e em Adis Abeba e temos indícios de que esteve envolvido com Jakarta e que se interessava muito pelo que ocorria ali. Mantinha contatos com este Francisco onde discutia temas de Angola e Moçambique. Ou seja o húngaro não era um pé rapado qualquer. Ele trabalhava com quase todos os 159 países da África onde haviam movimentos revolucionários. E sabemos que ainda trabalhando para os americanos ele não tinha simpatias por muitas das coisas que eles faziam. Repassaram depois o que faltava na lista e combinaram que para as notas em alemão a única opção era Frida e como Bebéi era o único ali que conseguia conversar com ela, ele ficou de procurala. Para as notas que estavam em Russo era mais fácil pois Pirilo pediria ajuda a Ludmilla. A única duvida era com relação as notas em Inglês. Pirilo e Princesa estavam em duvida se deveriam pedir ajuda a Senhora da embaixada pois talvez as notas traziam alguma coisa que a Senhora quisesse esconder. – São 26 livros e apenas 24 envelopes, por que? – perguntou Pirilo ao final. E foi apenas ai que comentaram o libro de Xingjiang que não tinha nota dentro dele e onde Arpad havia escrito aquela frase “Meu ultimo livro... de que me serve seguir lendo” que eles não entendiam. O outro era o livro de Zola e Bebéi finalmente decidiu compartir com eles seu segredo e contou da chave que estava no pequeno envelope dentro do livro. – Talvez seja esta chave que o advogado de Miami esta buscando – comentou Pirilo. – Ella esta bem guardada – respondeu Bebéi e quando Pirilo sugeriu que talvez fosse melhor guarda-la no cofre da prefeitura, Bebéi retrucou com firmeza– Ela esta bem escondida e até que saibamos de onde é a chave prefiro deixa-la onde esta que sei que ali ninguém vai encontrar. E não houve forma de convence-lo r do contrario. Os três se surpreenderam com a resistência de Bebéi mas o que eles não sabiam é que Bebéi já tinha conversado muito sobre isto com a pequena Irigandi e ainda que ele respeitasse muito a opinião dos três que estavam ali, Bebéi sabia que com ela a chave estava bem escondida. 160 Depois da reunião ele regressou ao apartamento onde uma nova e agradável surpresa o esperava. Na porta encontrou uma mensagem escrita em francês: “Estou na Pousada dos Caracóis em frente a Embaixada da China. Laurence.” A neta do húngaro não tinha respondido a carta mas sim tomado um avião em Kinshasa para encontra-lo em Santa Clara. Bebéi nem entrou em seu apartamento e foi direto a pousada. Laurence era tão bonita como Tsehai, a modelo etíope que vivia com Sonia em Paris e que ele apenas conhecia por fotografias. Ela lhe contou que seu pai era Tutsi e ela era uma mulher alta o que lhe dava uma forte presença ainda que seu rosto mantivesse sempre uma expressão tímida. Sua pele tinha a cor da canela e seus olhos eram de um azul brilhante, herança de sua mãe. Suas sobrancelhas tinham algo de forte e exótico, talvez cigano, ou talvez judeu, mas certamente algo mediterrâneo. E para alegria de Bebéi ela era tão doce quanto a pequena Irigandi. Começaram a conversar ali mesmo na varanda da pousada e em poucos minutos ele já estava encantado. Laurence tinha já uns trinta anos, falava um francês perfeito e havia estudado na Universidade de Grenoble, mas ainda mais importante do que tudo, tinha uma enorme curiosidade em conhecer mais sobre a vida de seu avô. Ela contou que Morgen, quase nunca o mencionava. Era como se ele não tivesse existido. Foi somente quando já estava bem debilitada pela tuberculose e poucos dias antes de morrer que ela comentou: – Talvez errei em não dar ao teu avô uma chance explicar o que fez e por isso nunca soube quais foram as suas razões. Laurence nunca chegou a compreender o que dizia sua mãe e nem seu pai ou a avó com quem vivia lhe souberam explicar. O que passou entre Arpad e Morgen era algo que apenas os dois conheciam. 161 Bebéi contou tudo o que sabia. Contou que Arpad tinha desaparecido dez anos antes, que alguém mais estava interessado em descobrir o que ele sabia e por isso tinham roubado seu apartamento. Contou também que tinha com ele todos os livros onde Arpad guardava suas notas e que agora eles estavam sob proteção de Tenente Pirilo na prefeitura. Depois de tudo contar, ele a levou até o apartamento onde ele vivia e onde puderam entrar graças a chave que continuava guardada no rodapé. Ali era pouco o que podiam ver, mas ainda que fosse pouco, tudo ali era dela, pensava Bebéi. Subiram também ao apartamento de Bebéi pois ele insistia em que ela conhecesse a gaivota. Quando entraram e ele abriu a porta de vidro do terraço, Laurence se sentou no chão e começou a acariciar a gaivota que pela primeira vez desde que havia pousado ali, deixou de olhar para o mar e virou seu bico em direção a ela. Bebéi preferiu deixa-la a sós com a gaivota e com o cachorro que também se acostou ao seu lado no terraço. Aparentemente aquele carinho era o único que faltava para a gaivota recobrar o desejo de voar e quando Laurence se levantou e fechou atrás de si a porta do terraço a gaivota finalmente saiu voando. O cachorro latiu balançando o rabo e eles ainda tiveram tempo de ver a gaivota sobrevoando a Praça da Gabriela até que tomou a direção do forte onde foi juntar-se a outras gaivotas que estavam voando sobre a baia naquele final de tarde. Fosse o que fosse estava curado e com o carinho da neta de Arpad a gaivota finalmente voltou a voar. O único que ia ficar triste era o português do supermercado que teria de cancelar sua campanha publicitaria. Bebéi permaneceu ali pensando ainda por muito tempo. Será que a gaivota estava apenas esperando Laurence chegar? 162 24 Laurence chega com historias Banyamulenges e de Kisangani de Depois de ver a gaivota partir Bebéi levou Laurence ao Café para que ela conhecesse Ilona, Irigandi e todos os que trabalhavam ali. O único que ele não compreendia era porque os homens paravam de falar quando viam Laurence e foi Ilona quem explicou falando baixinho em seu ouvido. – Não repita o que eu vou te dizer a Gigi, pois ela vai ficar com ciúmes, mas Laurence é uma das mais belas mulheres que já entraram neste Café. Um comentário bem comedido se comparado ao que disse Lola Marlene aquela noite quando entrou no Café exuberantemente vestida para seu espetáculo no cabaré. – Você é uma mulher ou uma deusa que veio a terra só pra despertar inveja em todas nos? Laurence sorriu e baixou os olhos quando Bebéi lhe traduziu. Era curioso, pensava ele, como ela combinava exuberância com timidez, algo que contrastava completamente com a nada tímida Lola Marlene. Já no primeiro dia ela se fez amiga de todos, desde o cachorro de Irigandi até as assistentes de Dona Cécy na cozinha. E no jantar contou historia do lugar onde vivia e mostrou varias fotografias que Bebéi descreveu em detalhes para Irigandi. Contou aquela noite que o pouco que sabia de seu avô Arpad é que ele trabalhava para os americanos e era o responsável por 163 um importante projeto financiado pela USAID para todos que como ela e seu pai, eram os Banyamulenge; era assim, explicou ela, que se conheciam os congoleses Tutsis que viviam entre Kisangani, a cidade no alto do rio Congo, e Bukavu a beira do lago Kiwu na fronteira com Ruanda. – Foi por conta do projeto de meu avô que minha mãe conheceu Kisangani. Contou que sua mãe vivia e estudava em Kinshasa mas como seu pai era responsável pelo projeto ela sempre o acompanhava em suas viagens ate Kisangani. E sempre que tinha ferias ficava por lá. Contou que eles iam tanto que Arpad decidiu comprar uma pequena casa onde Laurence ainda vivia com sua outra avó, a mãe de seu pai. – Quando minha mãe tinha dezesseis anos eles tiveram a primeira briga. Meu avô queria que ela fosse fazer a universidade na Alemanha e ela mentiu dizendo que estava enviando todos os papeis para inscrição, mas a verdade é que não queria ir. Seu desejo era viver em Kisangani e quando ele descobriu já era tarde; o curso na universidade estava começando e minha mãe não estava inscrita. Meu avô tentou tudo o que pode e com a ajuda de um amigo de Berlim até conseguiu que mesmo sem inscrição ela fosse aceita, mas ela se recusou e não foi. Laurence seguia contando sua historia com o filhotinho de Irigandi em seus braços e o cachorro de Bebéi em seus pés. – Foi por conta desta briga que minha mãe decidiu ir viver em Kisangani e isto foi mais ou menos em 1969. Desde então ela nunca mais saiu dali. Laurence explicou que entre Kinshasa, a capital do Congo, até Kisangani havia um grande movimento de barcos e de pessoas pelo rio, mas que depois de Kisangani, até a fronteira com a Ruanda, tudo eram montanhas e selva. – É uma parte do pais que poucos estrangeiros conhecem e onde minha mãe conhecia cada lugar e cada família. Todos ali a 164 queriam muito e não apenas pelo que fazia pelo projeto mas sim pelo carinho e o tempo que ela dedicava, viajando por todos os lugares e conhecendo a toda gente. Minha avó contava que ela algumas vezes desaparecia de Kisangani por meses metida nas montanhas. Sua grande paixão era o parque nacional de Maiko e segundo o que dizem ali, quando ela tinha dezenove anos, minha mãe foi pessoalmente pedir ao presidente Mobutu que assinasse a lei criando o parque Bebéi tomava notas de tudo o que ela dizia para não esquecer e Laurence seguia contando: – A ruptura com meu pai foi depois e nem minha avó sabe por que. Alguma coisa fez meu avó que de repente minha mãe parou de falar com ele e abandonou o projeto onde trabalhava, mas isso foi antes de que nasci. Até Dona Cécy abandonou sua cozinha para sentar no terraço e escutar o que ela contava. – Minha mãe continuou vivendo em Kisangani mas nunca mais trabalhou com meu avô. Foi por esta época que ela conheceu meu pai e fez a sociedade. Ele tinha um barco bem velho e transportava coisas entre Kinshasa e Kisangani e como ela tinha um pouco de dinheiro economizado pelo meu avô para financiar seus estudos na universidade, ela propôs a meu pai comprar um barco novo e os dois montaram juntos a empresa de transportes. Meu pai segue até hoje transportando carga com o mesmo barco mas minha mãe nunca trabalhou com ele. O único que ela queria era conseguir da sociedade o dinheiro que necessitava para seguir vivendo ali e poder continuar ajudando os Banyamulenge. Ela também criou uma Fundação para receber doações e financiar seus projetos. Uma fundação que existe ate hoje. A todos que a escutavam ali no terraço do Café aqueles lugares e aquelas cidades não tinham um grande significado mas era agradável escutar Laurence, combinando sua beleza exótica com a timidez e humildade com que contava suas lembranças. 165 – Alguns anos mais tarde –seguia ela– os dois se casaram e eu nasci e todas as minhas recordações de infância são ao lado de minha mãe. Nunca fui a escola. Foi ela quem me ensinou tudo. Viajávamos sempre juntas e todas as noites, não importa onde estivéssemos, estudávamos juntas. Com ela aprendi o francês e o alemão. Aprendi matemática, historia tudo o mais que devia aprender. Irigandi escutava e pensava que se sua mãe não tivesse morrido protegendo o segredo do Darien ela certamente lhe teria ensinado tudo, assim como Morgen ensinou a Laurence. – Toda aquela região das montanhas sempre foi muito perigosa. Ali estavam os guerrilheiros do Simba mas nunca tivemos problemas. Viajávamos por toda região onde viviam os Tutsis e a grande preocupação de minha mãe eram os conflitos com Hutus que cada vez ficavam mais evidentes. E aquele menção a Tutsis e Hutus, aguçou a atenção de Jose Princesa que já havia lido muitas coisas sobre o conflito entre aqueles dois povos africanos. – Ela morreu em 1991 quanto eu tinha dezesseis anos e depois de sua morte passei a viver com minha avó em Kisangani. Naquela época minha avó quis que participasse de um concurso para bolsas de estudo do governo francês. Ninguém acreditava que pudesse passar pois nunca tinha assistida a uma única aula na escola e apenas havia estudado com a minha mãe, mas passei em uma das primeiras posições. Graças a minha mãe ganhei a bolsa e fui estudar na França –e disse isso com orgulho– Quando estava na universidade em Grenoble, fiz tudo o que podia para tentar encontrar meu avô e foi quando descobri que ele vivia em Santa Clara. Enviei a carta mas como ninguém respondeu desconfiei que nunca mais poderia vê-lo. Quando terminei meus estudos voltei a Kisangani e estava trabalhando na Fundação tentando fazer o mesmo trabalho que ela fazia, mas as coisas andam cada vez piores. Enquanto estive na França a Fundação cresceu muito graças as doações recebidas mas aquele 166 também foi o período da guerra civil e do massacre dos Tutsis em Ruanda. Hoje quase que não é mais possível viajar por ali pois toda a região das montanhas é controlada por caçadores clandestinos e guerrilheiros. Mas então –e disse isto sorrindo– recebi a carta de Bebéi e tomei o primeiro voo que pude para vir aqui encontrar com vocês. Aquela noite Bebéi pediu a Tenente Pirilo que levasse pastas azuis com as notas que estavam dentro dos livros de Marai, Orwell e Tolstoi. Laurence falava o alemão e talvez com o que estava nos envelopes ela poderia entender um pouco mais do que havia acontecido entre sua mãe e seu avô e ao mesmo tempo ajuda-los a compreender o que estava escrito ali. Combinaram de se encontrar no dia seguinte na sala dele na prefeitura para que ela pudesse ver as outras pastas a ao sair Pirilo aproveitou para mencionar algo que lhe preocupava: – Ainda não entendo o que querem estes advogados e a verdade é que não confio neles. Se eles te chamam o passam pelo hotel por favor não converses com eles sem que esteja ao teu lado. Pode ser a qualquer hora do dia ou da noite, não importa, me chame que eu te acompanho. E foi muito bom que ele tivesse dito pois aquela mesma noite os advogados a chamaram na pousada. De alguma forma eles tinham descoberto que ela havia chegado a Santa Clara. Ela escutou e seguindo a recomendação de Pirilo propôs um encontro no dia seguinte, no escritório de Pirilo na prefeitura. – Tenente Pirilo insiste que quer participar –disse ela por telefone, o que aparentemente desagradou aos advogados. Como é possível que eles descobriram rapidamente que ela havia chegado? Foi o primeiro que pensou Tenente Pirilo quando Laurence lhe contou que os advogados a tinham chamado. Será que eles também tem câmeras instaladas na cidade? Perguntou pelos lugares onde ela havia estado l e eram poucos, o apartamento de Arpad, o apartamento de Bebéi e o Café de Ilona, como descobriram tão rápido. 167 Pirilo seguia pensativo, será que ele estava ficando tão paranoico quanto Coronel Viera que dizia que todos estavam vigiando seus movimentos? O problema com isto é que Pirilo sabia que no caso do Coronel, ele tinha razões para desconfiar pois a prefeitura tinha instalado uma câmera com microfones em frente as escadarias da Igreja das Mercedes e seus assistentes podiam dizer com precisão quando o coronel acordava, dormia, peidava e até mesmo quando olhava os decotes e as pernas das meninas com aquela expressão de velho safado. Pelas duvidas, enquanto revisavam as pastas, Pirilo pediu a seus assistentes que revisassem os lugares onde ela tinha estado utilizando os novos equipamentos que o irmão tinha comprado para detectar câmeras e microfones escondidos. Quem sabe alguém estava acompanhando os movimentos de Bebéi? Antes mesmo de olhar as novas pastas, Laurence contou o que havia descoberto nas notas do livro de Marai. Eram as notas sobre Morgen e confirmavam o grande amor e carinho que Arpad sentia por sua mãe. –Ele se sentia culpado de ter levado ela para a África. Demorou muito tempo para ele entender que ela se sentia mais feliz ali que talvez jamais se sentiria em Berlim, mas isto ele apenas entendeu quando ela estava trabalhando em Kisangani – e continuava– As notas que li também confirmam que ele fez todo o possível para leva-la estudar em Berlim e que um amigo de nome Otto, tinha ajudado para que ela entrasse na universidade naquele mesmo ano ainda que não estivesse inscrita. E Bebéi comentou brincando que o amigo Otto resolvia qualquer problema, desde viagens a partidas de futebol até inscrições na universidade. – Os problemas entre os dois se aprofundaram depois e tem a ver com o trabalho que ele fazia. Segundo o que ele mesmo escreveu: “Morgen nunca entendeu por que faço meu trabalho e não a culpo pois eu também jamais compreendi. A diferença é 168 que já há muito tempo que parei de fazer perguntas e Morgem segue perguntando” – Curiosa esta frase –comentou Pirilo– não parecia ter muito orgulho do que fazia. Laurence comentou que era esta mesma impressão que ela teve depois de ler as notas e traduziu uma como exemplo: “O que aconteceu em Burundi foi horrível e não tive como evita-lo. Não sabia que estavam planejando e quando percebi já era tarde demais. Ela nunca me perdoou e nunca me perdoara. Ela sabia quem estava por detrás daquilo fomentando a rebelião e entregando a eles as armas. Morgen sabia que eu tinha minhas mãos sujas de sangue” Foi apenas depois de varias horas lendo e relendo as notas que eles finalmente começaram a compreender o que tinha ocorrido. Aparentemente o projeto de Arpad era uma tentativa dos americanos de se aproximar dos Tutsis, mas não o faziam apenas para ajuda-los; seu interesse parecia ser o de convencelos a seguir combatendo os grupos organizados contra o governo de Mobutu, como os Simba onde o Che havia lutado, e que eram fortes na região onde habitavam os Banyamulenge. O tema era ainda mais complexo pois segundo as notas que leram, aparentemente os soviéticos, do outro lado, estavam tentando organizar os Hutus para combater os Tutsis e sua motivação era a mesma dos americanos. Como os americanos apoiavam os Tutsis para atacar aos Hutus, os soviéticos estavam apoiando os Hutus para enfrentar os Tutsis. Tanto americanos como soviéticos estavam fazendo exatamente o oposto do que Morgem sempre tinha feito. Enquanto ela tentava acalmar as tensões que haviam entre eles, os americanos e os soviéticos estavam estimulando, jogando africanos contra africanos em um conflito que não tinha nada a ver com eles e sim com os interesses de dominação politica dos dois países. 169 Laurence então contou toda a preocupação de Morgen antes de morrer com o que estava passando em Ruanda. – Pelo que contava minha mãe havia muita tensão especialmente na região do rio Rusizi, que ia do lago Kiwu ate o lago Tanganica. Os Tutsis viviam no Congo mas também em Ruanda e em Burundi. Minha mãe sempre dizia que antes, eles não lutavam entre si, mas que foram os “de fora” que os convenceram a lutar. Ela nunca explicou quem havia feito e isso tudo foi antes de que nasci. Recordo que falavam do grande massacre de Burundi mas nunca pude imaginar que meu avô tivesse envolvido com isto. Mas ali estava a nota de Arpad: “Morgen sempre disse que não devíamos entregar armas aos Tutsis pois não era disso que eles necessitavam e ela estava correta, mas alguns pensavam que era importante armar aos Tutsis para controlar o movimento Simba e todo terminou em uma grande tragédia” Havia uma frase mais que ajudava a entender a tormenta que passava pela cabeça de Arpad: “Minha mãe me ensinou a encantar as pessoas com as notas agudas do violino e todo o que hoje fazem minhas mãos sujas são relatórios de sangue” Quando leu estas linhas Laurence pediu para interromper a reunião. Foram muitas as informações e emoções aquela manhã e ela precisava caminhar um pouco antes de reunir-se com os advogados, mas antes de sair ainda comentou: – Minha mãe dizia a todos que depois do massacre de Burundi era importante acalmar os ânimos pois se os Hutus decidissem buscar vingança, eles iriam massacrar aos Tutsis. Ela sabia que o massacre de Burundi podia causar o genocídio que depois ocorreu em Ruanda e sabia também que meu avô trabalhava para os que haviam fomentado aquele conflito. 170 25 Pirilo gostava de jogar póquer e o húngaro de fazer revoluções Naquela mesma tarde eles se reuniram com os advogado. O encontro foi no escritório de Pirilo que ao seu lado trazia um jovem advogado da prefeitura que também era amigo de Cristina e Jordi. Ali estava Laurence, Bebéi, que lhe ajudava com a tradução, a equipe de advogados que incluía dois advogados do escritório local e outro mas que tinha chegado de Miami no dia anterior. A primeira pergunta que fizeram foi se Laurence tinha como provar que era neta de Arpad e ela lhes apresentou a certidão de nascimento de sua mãe na Alemanha e o certificado de nascimento que tinha da Republica Democrática do Congo. O advogado de Miami tomou a copias dos documentos em suas mãos, e com uma expressão arrogante argumentou que eles teriam que obter as certificações necessárias mas que ele antecipava uma certa dificuldade para atestar a validade de documentos emitidos pela Republica Democrática do Congo e especialmente pelo registro publico de uma cidade com o nome de Kisangani. Laurence escutou com a mesma atitude de humildade que sempre mantinha e quando ele concluiu comentou: – Tenho também este documento que minha mãe obteve pensando que algum dia alguém poderia questionar a validade de minha certidão de nascimento – e mostrou uma certidão de nascimento emitida pelo governo da Republica Democrática Alemã– Mesmo sem jamais ter estado na Alemanha tenho também a cidadania alemã por ser a filha de Morgen Corvinus. 171 O advogado não conseguiu esconder seu desgosto e o jovem advogado da prefeitura, rapidamente tomou o documento das mão de Laurence: – Como já fizemos copias dos outros documento é melhor fazer uma copia deste documento também para evitar qualquer risco de perda. Bebéi não entendia bem o que cada um deles estava querendo naquela reunião mas percebia que naquela mesa todos suspeitavam de todos. Depois de ver os documentos os advogados não pereciam ter mais perguntas. Comentaram duas ou três pequenas coisas mais e a reunião já parecia estar terminando e antes de concluir Pirilo ainda perguntou: – Algum tema mais que lhes gostaria tratar? –e os advogados responderam que não. Tenente Pirilo esperou que os três tivessem levantado da mesa de reuniões e apenas ai fez uma nova pergunta: – Quando estive pela primeira vez em seu escritório, o advogado que me atendeu comentou que vocês também administravam uma outra propriedade do húngaro. Não lhes parece que seria interessante que conversemos também sobre esta propriedade? O advogado de Miami certamente não era um bom jogador de pôquer pois sua expressão denunciava bem o que sentia e ele estava claramente incomodado com a pergunta. – Não me pareceu necessário mencionar pois ainda não temos uma indicação clara de que o Senhor Arpad Corvinus esta morto. Ate agora seguimos administrando os seus bens imóveis assim como seus ativos financeiros, da mesma forma que sempre o fizemos. – De acordo –disse Pirilo– mas como o Senhor Arpad desapareceu a mais de dez anos atrás creio que seria interessante informar Laurence, sua eventual herdeira, quais são os bens que ele tem, não lhes parece? 172 Os advogados regressaram as suas cadeiras e o advogado de Santa Clara abriu a pasta de onde tirou uma folha que leu com uma expressão que não conseguia esconder sua contrariedade. – Além do apartamento no casarão amarelo, administramos também uma conta de poupança com aproximadamente um milhão de dólares e uma propriedade em Santa Clara Frente ao Mar de dois mil e quatrocentos metros quadrados onde não existe no momento nenhuma construção. E o advogado de Miami rapidamente acrescentou: – Que seguiremos administrando com o mesmo cuidado e dedicação de sempre até que se aclare a situação do Senhor Corvinos e de sua eventual herdeira. Outro silencio e ai Pirilo decidiu provoca-los uma vez mais: – Imagino que os senhores estão ao par de que depois que o apartamento foi roubado, três pessoas vieram de Miami com o objetivo de invadir outra vez o casarão onde vivia a Senhor Arpad, será que os senhores sabem o que eles estava buscando? Tenente Pirilo enquanto falava observava com atenção a expressão dos três advogados e foi curioso que os dois advogados locais se mostraram surpreendidos e voltearam seus rostos para o advogado de Miami que conseguiu manter a tranquilidade: – Apenas conhecíamos o roubo dos artigos pessoais do Senhor Arpad e nada sabíamos desta segunda tentativa. Mas Pirilo era um grande jogador de pôquer e estava se divertindo em provocar os advogados. E até tentou dar mais um passo: – Será que eles estavam buscando a chave que lhes faltava? E ai os três deram a impressão de que nenhum deles tinha a menor ideia de que chave ele estava falando. 173 Pouco mais se conversou e quando os dois saíram Tenente Pirilo fez um comentário com Laurence que Bebéi rapidamente traduziu: – Agora já sabemos que você não apenas é muito bonita mas também muito rica E foi a vez de Bebéi fazer uma pergunta a Laurence: – E quem era o amigo da Alemanha que te ajudou com a certidão de nascimento? – Nunca soube –respondeu Laurence– apenas sei que era alguém que conhecia minha mãe desde que ela era uma criança e que ainda vivia em Berlim. – Provavelmente Otto –disse Bebéi a Pirilo. E foi então que os dois explicaram todo o que estavam pensando do trabalho que Arpad fazia, da suspeita de que Otto era da Stasi e de que Arpad era um agente duplo trabalhando para o CIA e também para a Stasi e os soviéticos. Laurence escutou em silencio sem aparentar surpresa: – As notas que estava dentro do livro de Orwell e que li esta manhã confirmam isto. Por elas pude notar que Otto sempre foi um grande amigo de meu avô, desde os tempos em que minha avó ainda estava viva. Meu avô seguiu em contato com ele ate que ele se foi do Congo em 1976 – e comentou o mesmo que intrigava a Bebéi– O curioso é que Arpad tinha guardada com ele algumas cartas que ele enviou a Otto e não entendo porque é ele quem as tem e não Otto. Laurence ai traduziu uma das notas que estavam escondidas no livro de Orwell: – A primeira era da Argélia onde Arpad mencionava: “Preferiria distanciar-me de tudo, mas não sei o que mais posso fazer. Sei que você sempre me ajudaria em Berlim 174 mas não posso viver ai pois tudo me recorda a tristeza da guerra e da morte de Eszter” – Existem outras notas que Arpad enviou de Kinshasa, mas estas apenas indicam que os dois eram amigos, pois Arpad descreve como ele e minha mãe viviam. Nestas cartas tanto ele como Otto não fazem nenhuma referencia a trabalho. Sei, por que minha mãe um dia me contou que minha avó, Eszter trabalhava para Stasi. Este foi o preço que ela teve de pagar para se aproximar do partido e conseguir ajuda para ir salvar meu avô dos campos de concentração soviéticos, mas sei também que ela sempre se rebelou contra a orientação do partido comunista. Otto, sempre foi um grande amigo da família e não sei onde ele trabalhava. Existe apenas uma nota onde Arpad fala de algo relacionado a trabalho. Uma carta que Arpad escreveu a Otto onde ele explica um pouco seu remorso: “Tudo que havia visto era como os americanos e soviéticos jogavam com a vida dos africanos. Entre todos que conheci a única pessoa que realmente se interessou pela África foi Morgen e por isso nos abandonou a todos e rompeu a relação que tinha comigo. Ela fez o que todos nos que amamos a África deveríamos ter feito desde o principio. Eu segui aproveitando o emprego que tinha e o único que causei foi morte e destruição” Bebéi seguia tomando nota de tudo. – Nas notas onde Arpad escreve suas anotações pessoais existe uma interessante referencia a Otto: “Janeiro de 1977 : a ultima vez que encontrei Otto. Ele sempre esteve ao meu lado mas agora tenho de seguir sozinho e não posso tê-lo comigo. Agora sim vou fazer o que sempre deveria ter feito” Depois de olhar todas as notas do livro de Orwell eles ainda discutiram as notas de Tamara que estavam no livro de Tolstoi e havia uma que Frida não havia traduzido. Era uma nota de Tamara bem pessoal onde ela falava das dificuldades que tinha 175 na Bolívia. Foi escrita em 1965, o mesmo ano em que Guevara foi ao Congo segundo as anotações de Bebéi e dizia “Já disse a nosso amigo que ele não deve se aproximar de ti” – Tamara sabia que Arpad era um agente duplo –comentou Pirilo– e que o Che não podia aproximar-se dele o que reforça o que pensávamos da nota do Che quando ele disse que Arpad lhe ajudava “de longe” Muita cosa tinha sido esclarecida mas Pirilo ainda tinha uma grande duvida: Que fez o húngaro depois de janeiro de 1977? Que significado teria aquela frase: “Vou fazer o que sempre deveria ter feito” e por isso comentou: – Ele apenas chegou em Santa Clara em 1986 para ser professor de musica da escola municipal, faltam ainda dez anos de sua vida que não conhecemos e talvez sejam eles que explicam a chave que estava guardada no Germinal de Emile Zola. 176 26 O que parecia claro fica confuso quando a Senhora conta o que sabe Pouco a pouco as perguntas iam sendo respondidas. Ainda não sabiam por que o húngaro desapareceu sem avisar e muito menos para que servia a chave. Pirilo era um que ainda tinha duvidas de que a chave era a causa dos roubos, mas pelo menos eles já sabiam o que o húngaro fazia; era um importante agente do CIA que defendia os interesses dos americanos em vários países africano e que atuava também como um agente duplo enviando informações a Cuba e a Berlim. Ou pelo menos era isto o que pensavam ate o dia em que a Senhora telefonou a Bebéi dizendo que havia descoberto o que Arpad fazia e propondo um encontro no atelier de Lola Marlene onde ela ia experimentar alguns novos modelos desenhados especialmente para ela. Pirilo quando soube decidiu ir também para confirmar o que já haviam descoberto mas o que escutou aquela manhã da Senhora foi uma surpresa. – Arpad Corvinus trabalhou para o CIA. Esteve na Argélia por dois anos e depois foi ao Congo onde trabalhou por catorze anos para nós. No inicio fazia trabalhos de inteligência, ou espionagem como prefere chamar nosso amigo Bebéi. Depois passou a trabalhar com nossa agencia de apoio ao desenvolvimento a AID. Aparentemente o trabalho de inteligência não lhe interessava e por isso ele nunca chegou a impressionar os seus superiores. Seu trabalho no Congo era mais um trabalho burocrático. Fez algumas visitas a Burundi e 177 Ruanda por conta do projeto de desenvolvimento mas nunca trabalhou fora destes países – Quer dizer que ele não era um espião importante – perguntou Bebéi decepcionado e ela respondeu que não. Pirilo comentou que eles tinham boas razões para acreditar que ela estava enganada pois as notas que encontraram demonstravam que ele estava envolvido com coisas importantes que se passavam em vários países e não apenas no Congo. A Senhora não lhe deu grande atenção pois obviamente confiava muito mais na informação entregue por seus agentes de Washington que nos descobrimentos de Bebéi e Tenente Pirilo em Santa Clara Frente ao Mar, mas por ser educada ela se comprometeu a passar pelo escritório de Pirilo ao final da tarde e dar uma olhada nos documentos que eles tinham ali. Bebéi saiu dali frustrado e como tinha pedido licença da embaixada decidiu aproveitar o resto da tarde para levar Laurence as escadarias das Mercedes e apresentar lhe aos pelagatos. Frida não estava bêbada e ficou feliz de poder falar com alguém em alemão. Nullo quase que não conseguia se levantar de tão impressionado que estava com a beleza de Laurence, mas quando finalmente a cumprimentou, recuperou sua energia de executivo de empresas e instruiu a Bebéi com autoridade. – Diga a tua amiga que a partir de agora ela vai viver em Santa Clara – e acrescentou com soberbia – E esta decidido! Bebéi entendeu que Laurence tinha uma beleza especial quando viu Henry Moriarty levantando daquele canto onde passava seus dias e suas noites para se aproximar e cumprimenta-la. Ele nunca tinha feito isso antes. Coronel Viera seguia dormindo provavelmente sonhando com a falecida Riquita, mas quando abriu os olhos seu rosto se iluminou como se estivesse pensando que o verdadeiro sonho tinha começado. E enquanto os homens olhavam com seus sorrisos ávidos Frida, continuava 178 conversando com ela em alemão mas sempre traduzindo para que Bebéi pudesse entender. – Para mim tanto o húngaro como Otto são da Stasi e é importante dizer que foi graças aos da Stasi que consegui sobreviver na prisão e sair da Alemanha. Eu nunca os procurei pois sabia que eles eram tão sacanas quanto os que me torturaram, mas eles me procuraram e tentaram me ajudar. Sei que não foi por mim e sim porque tinha colocado uma bomba contra o governo fascista, mas a verdade é que a Stasi me ajudou. Como tinham ainda muito tempo Bebéi foi ate a barbearia e aproveitou para entregar a Rasta as pastas com as notas em russo para que Ludmilla traduzisse e por sorte a própria Ludmila estava por ali com o seu barrigão de quase nove meses. Grená também se aproximou; a ela pouco lhe interessavam as historias antigas do húngaro, mas Laurence era a grande novidade do bairro e ela também queria conhece-la. Como a manicure estava desocupada Laurence aproveitou para fazer as unhas enquanto Ludmilla lia uma das notas que estava no livro de Rilke. E de repente ela começou a chorar. Importante dizer que ela já conhecia a historia do húngaro pois Pirilo tinha contado a todos no jantar com a família e ainda mais importante lembrar que como ela estava gravida, ela andava ultra sensível e qualquer coisa lhe emocionava. Foi entre soluços que ela traduziu a todos uma nota que Arpad enviou a Eszter e que foi escrita em russo graças a compaixão de um soldado do campo de concentração onde ele estava preso. “Daria todo resto de meu corpo si pudesse preservar minhas mãos pois era com elas que tocava o violino para minha mãe, mas o frio aqui e devastador e quando cheguei não tinha como protege-las. O único que me entregaram foi um par de luvas onde uma delas, a da mão esquerda estava rasgada e apenas tinha dois dedos. Tentei colocar todos os dedos dentro daqueles dois dedos da luva mas foi impossível e como tinha de seguir trabalhando tive 179 de colocar o polegar separado dos outros para poder segurar a pá. Coloquei o polegar em um dos dedos e outros dois dedos, o indicador e o maior no outro e com isso os dois dedos menores ficaram expostos a neve e congelaram. A noite, ao regressar a cabana onde dormíamos eles eram apenas duas coisas negras que pareciam grudadas ao meu corpo. Perdi meus dedos e exatamente os dois com que tocava as notas mais agudas do violino. Eram exatamente estas as notas que encantavam a minha mãe e faziam Lali dançar pelas ruas de Budapest. O único que aprendi na minha vida foi como tocar o violino e isto ficou para sempre congelado nas neves de Kolima” No envelopes também havia uma foto de Arpad com Eszter em Moscou frente ao Kremlin que Ludmilla mostrou a todos e que provavelmente foi tomada quando ela foi busca-lo pois ele parecia extremamente frágil e doente. Os que estavam na barbearia suando, pois era um dia de grande calor em Santa Clara, começaram a opinar passionalmente sobre como deve fazer alguém para sobreviver na neve que eles apenas conheciam por fotos e enquanto escutava, Ludmilla deu uma rápida olhada nas notas do livro de Neruda e sua expressão se modificou completamente. Continuou lendo um pouco mais e depois disse a Bebéi que não conseguia entender muito bem o que estava escrito e que preferia levar para casa e ali ler com mais calma. Grená que estava ali percebeu rapidamente que era uma mentira, mas como Bebéi e Laurence não perceberam. Ludmilla se foi com as notas para casa e ao chegar telefonou imediatamente para Pirilo que deixou para passar ali a noite pois antes tinha de receber a Senhora no seu escritório. Pirilo não tinha duvidas de que Arpad era um agente duplo mas sabia também que a Senhora era muito bem informada e por isso estava curioso para ver sua reação ao ler as notas que tinha, mas decidiu ser cauteloso. O único que lhe interessava era entender o 180 que buscavam os que roubaram o apartamento e não queria se involucrar desnecessariamente em todos aqueles temas de espiões e contra espiões que tanto fascinava a Bebéi. Bebéi e Laurence estavam também ali em sua sala quando a Senhora chegou e Lola Marlene veio com ela pois também estava curiosa para escutar o que a Senhora ia dizer. E ainda que Laurence fosse ali a mais bonita, Lola e a Senhora estavam as duas imbatíveis em termos de elegância. O primeiro que ele fez foi mostrar as notas do Congo e de Francisco e a Senhora leu com atenção. Seu único comentário foi de que tanto o húngaro como este outro Francisco que trabalhava em Angola e Moçambique e que também parecia trabalhar para os americanos, não estavam muito contentes com o trabalho que estavam fazendo. Explicou também a Laurence que aquele foi um período de grande turbulência politica e que muitos equívocos lamentáveis foram cometidos na África. Depois Pirilo lhe passou as notas que estavam em inglês guardadas no libro de Ibsen e que pareciam fazer referencia a Indonésia. E foi ai que sua expressão passou a demonstrar uma certa preocupação. Antes de traduzir ela insistiu em dizer que não acreditava que o que estava escrito era verdadeiro, mas o que diziam as notas era que alguém que Arpad conhecia havia tido acesso a algumas listas com nomes de membros do partido comunista da Indonésia preparados pelo CIA que eram entregues ao General Suharto para que ele os executara. Claramente a nota indicava que Arpad estava compartindo as listas com os soviéticos para que eles pudessem tentar salvar algumas daquelas pessoas incluídas nas listas de morte. Ela insistiu em dizer que isso não parecia ser verdade e foi interrompida por Lola Marlene: – Meu amor, te amo até a morte, mas nem tente dizer que os americanos foram santos na Indonésia. Os livros nos contam que pelo menos uns quinhentos mil comunistas foram assassinados ali quando o general Suharto decidiu acabar com 181 eles. O que passou já passou, isso eu aceito, mas que passou, passou, isso você não pode negar. A Senhora não contestou e seguiu lendo até que comentou que ali também estava escrito que haviam copias destas listas e que elas estavam “bem guardadas” e que seriam distribuídas aos jornais. – Será que o húngaro tinha mais documentos escondidos na sua casa– ela perguntou e Pirilo respondeu que achava que não pois os ladrões já haviam levado tudo e que a equipe da segurança da prefeitura também havia revisado o apartamento. – Revisaram mas não perceberam o que estava dentro dos livros – recordou Bebéi – o que levou a Senhora a pensar que talvez seria interessante fazer uma nova e mais detalhada revisão no apartamento de Arpad. Depois ela leu as notas do livro de Kafka e ao ler já com mais interesse comentou que elas mencionavam alguém que se chamava K e que era um contato de Arpad e vivia em Khartum. Parecia ser alguém como Francisco que trabalhava para o CIA e como ele não tinha grandes simpatias pelo que os americanos estavam fazendo. – Estas notas parecem indicar que havia uma rede de agentes nos anos setenta que trabalhavam com o CIA mas que filtravam informações para os soviéticos e que Arpad, de alguma forma estava envolvido com eles – e acrescentou – tudo isso passou a mais de trinta anos atrás mas talvez existam pessoas que por alguma razão que não conhecemos estão interessadas nelas. Enquanto falava ela abriu o envelope com as notas que estavam dentro do livro de Virgílio e que pareciam fazer referencia a uma tal de Valerie e foi quando sua expressão mudou completamente: – Que outras notas vocês tem? – foi sua pergunta um pouco assustada e Pirilo respondeu com outra pergunta. 182 – Por que você quer saber –e como ela não lhe respondeu, ele insistiu – que foi que você viu de tão interessante nestas notas que tem na mão? – Tenho de ser sincera. Não posso falar nada agora. Deixe me levar estas notas para mostrar a um amigo e depois prometo que conto, mas existe algo aqui que talvez seja muito importante. Pirilo e Bebéi confiavam nela. Não era a primeira vez que trabalhavam juntos e a Senhora sempre tinha honrado seus compromissos. Mas apenas deixaram que ela levasse as notas de Valerie e por prudência não lhe mostraram nenhuma nota mais. Quando ela saiu Bebéi fez um comentário. – A expressão da Senhora foi muito parecida a expressão de Ludmilla esta tarde quando leu as notas de Natasha. 183 184 27 As historias russas assustam Ludmilla quando chega o amigo de Laurence – Pirilo você tem de tirar estas notas das mãos de Bebéi, elas são um perigo. Esta Natacha estava chantageando a KGB –Foi a primeira coisa que disse Ludmilla quando ele entrou na casa de Grená e lhe tomou um bom tempo e duas doses de rum para finalmente entender de que exatamente ela estava falando. – No envelope que Bebéi me entregou com o que estava dentro do livro de Neruda existem claras insinuações de que esta Natasha tinha informações secretas que seriam entregues aos principais jornais internacionais e as Nações Unidas se os russos não pagassem o que ela estava pedindo. Ali também estão algumas informações que indicam uma serie de pagamentos que ela recebeu de um tal Yuri e uma lista de organizações a quem os recursos recebidos eram enviados. E Ludmilla continuava falando de forma descontrolada: – No envelope do livro de Yates estão as notas deste Yuri e ali se mencionam uma serie de sequestros, assassinatos e desaparecimento de lideres africanos indicando que eles foram todos coordenados por Moscou. E não eram apenas no Congo, existem casos em Angola e Moçambique onde foram assassinados os opositores de Agostinho Neto e de Samora Machel; notas comentando o apoio que os soviéticos davam aos hutus para matar os tutsis; outras de um golpe de estado que eles apoiaram em Brazzaville para levar um tal de Major Ngouabi ao poder e que mataram não sei quantas pessoas no caminho. Falam também de Siad Barre na Somália, de um outro que se 185 chamava Amílcar Cabral na Guine Bissau e de todo o trabalho que os soviéticos fizeram para executar seus opositores. Mencionam também outras coisas, mas somente com a ajuda de Princesa poderemos entender e até descrevem uma tentativa de matar a Sellasie para colocar um tal de Megistu Hallie como presidente na Etiópia. Quando mencionei isto a Rasta Bong ele passou mal e tivemos de dar uma dose dupla de chá de sono para ele se aclamar. Esta agora no seu quarto fazendo suas orações e disse que quer conversar e que você tem que abrir imediatamente uma investigação para descobrir quem queria matar o Leão de Judá. Pirilo tomou mais duas doses de rum e escutou calmamente tudo o que Ludmilla lhe dizia e antes que Rasta decidisse sair do quarto ele preferiu voltar a prefeitura. Ninguém, nem toda a maconha e todos os chás do mundo poderiam acalmar seu irmão aquela noite depois de saber que alguém queria matar Negus Selassie, imperador da Etiópia, Ras Tafari Makonen, como seu irmão o chamava, descendente direto do Rei Salomão, e de nada valeria tentar explicar que aquilo tudo tinha acontecido a mais quarenta anos. Ele queria estar com Clara e junto com ela poder pensar. Clara era teimosa, rígida em seus princípios mas pelo menos sabia pensar. Foram muitas coisas que aconteceram desde que Bebéi começou a investigar as notas daqueles livros e ele estava confuso. – Essa tal de Natasha chantageava os russos e a Senhora tinha ficado muito preocupada ao ler o que estava dentro do livro de Valerie. Será que esta Valerie chantageava os americanos? E que tinham a ver os advogados de Miami com aquilo tudo? – comentou ele com Clara e também mencionou outra coisa que cada vez mais lhe intrigava: – E que merda tenho eu que ver com tudo isso? Ninguém aqui em Santa Clara sabia quem era este húngaro e ninguém ali tinha nada a ver com o que lhe roubaram e nem com o que estava escondido nos malditos livros de Bebéi. A ninguém aqui 186 importa saber pra que serve esta chave e me explique por que deixei de jogar dominó esta tarde apenas para esperar a Senhora e escutar o que ela tinha a dizer? Cada vez as coisas estavam se complicando mais e como se tudo isso ainda fosse pouco agora ele ainda tinha de aguentar seu irmão rastafári que não descansaria ate descobrir quem estava interessado em matar a Sallasie. Foi por isto que ele insistiu com ela que não poderia mais seguir acompanhando as invenções de Bebéi e que a partir daquele momento iria cuidar exclusivamente dos temas que eram relevantes para a prefeitura . Clara primeiro o deixou desafogar e depois junto com ele tentou entender o que estava acontecendo. Por algum motivo o húngaro havia escondido aqueles papeis. Talvez apenas por curiosidade ou talvez por que tinha algum interesse na chantagem que a tal Natasha estava fazendo. De qualquer modo insistia ela, tudo passou tanto tempo atrás que não havia por que se preocupar. Pirilo até que se acalmou mas foi quando tocou o telefone. Era Ilona a dona do Café: – Theo Cavafys acaba de me chamar dizendo que vem a Santa Clara. Disse que o grande chefe russo chamou pedindo um favor especial. Quer que ele venha a Santa Clara para acompanhar alguns amigos e se não estas sentado é melhor que te sentes pois ele disse que os russos vem a Santa Clara para conversar com Bebéi – e Ilona seguiu falando enquanto Pirilo escutava olhando Clara com uma expressão perdida– Cavafys não tem a menor ideia do que querem mas pelo que disse o russo, parece que é alguma coisa muito importante e me pediu que te avisasse pois Theo não quer que Bebéi se encontre com os russos sem que estejas ao seu lado. Clara estava errada e Pirilo tinha toda razão de estar preocupado. Ele não queria mais se envolver com as loucuras de Bebéi mas não tinha como escapar. Ele sabia que com raiva ou não e mesmo sem entender ele teria de ajudar a Bebéi a 187 enfrentar os russos que provavelmente já haviam descoberto a historia da Natasha. E para entender a importância daquela chamada telefônica é importante recordar que o russo trabalhou na KGB nos tempos em que os soviéticos apoiavam as revoluções do Condor, o grande amor de Ilona na América Central. Quando a União Soviética se desintegrou o russo passou como o Condor para o trafico de drogas e com o tempo ganhou tanto dinheiro que se deu ao luxo de a abrir vários negócios legais e acabou por tornar-se milionário com importantes investimentos em grandes navios e estaleiros, incluindo um enorme que estava sendo construindo em Santa Clara. O grande chefe russo, como os antigos amigos lhe conheciam, ainda que milionário permanecia amigo do Capitão Cavafys desde os tempos em que ele ajudava ao russo e a ao Condor a transportar armas para Guatemala e Nicarágua. O russo também havia ajudado a Cavafys e a Santa Clara nos tempos em que o cartel do Cuspa tomou a cidade e quase todos ali lhe queriam muito bem, com exceção de Ludmilla que, diziam, era sua filha e que desde criança nunca tinha aceitado encontrar com ele. No dia seguinte Pirilo ligou para Cavafys que confirmou suas preocupações. O capitão grego também comentou que Bebéi tinha escrito uma carta a uma tal de Natasha e que aparentemente isso era um tema muito delicado e que o grande chefe pediu que ele acompanhasse alguns amigos que visitariam Santa Clara. Segundo Cavafys eles queriam saber o que Bebéi sabia sobre esta Natasha e para sorte de Pirilo ele estava saindo naquele mesmo dia com seu barco, o Ithaca, para Trinidad e apenas encontraria com os russos em Santa Clara na semana seguinte, o que pelo menos dava algum tempo a Pirilo para que se preparasse. Por sorte, nem tudo eram preocupações em Santa Clara. Laurence estava contente pois ia ao aeroporto receber a um amigo de sua mãe que quando soube que ela estava em Santa Clara, aproveitou para viajar e encontra-la ali. Bebéi foi junto 188 com ela e os dois foram na perua do Café de Ilona pois Senhor Baungarten vinha com sua cadeira de rodas motorizada. Ele podia caminhar, mas com dificuldades e por isso preferia a cadeira de rodas o que certamente lhe ia causar alguns problemas na cidade com suas ruas de pedra e suas calçadas estreitas, apesar de todos os avances para descapacitados introduzidos pelo prefeito. – Por favor não se preocupem –disse ele ainda no aeroporto– vivo em uma pequena cidade de Portugal muito semelhante a Santa Clara e é por isso que sempre levo comigo esta cadeira que é bem leve e incomoda o menos possível. O único que não poso fazer é ficar fechado dentro de uma casa pois ai fico tão ranzinza que ninguém neste mundo me aguenta – e falava tudo em um português, ainda melhor do que o de Bebéi, com um forte acento lusitano. O velhinho era simpático. Explicou que era de uma família austríaca que havia vivido na Alemanha e desde que se tinha aposentado já tinha vivido em varias cidades de Europa. Estava casado com uma mulher portuguesa e já ha mais de um ano vivia em uma pequena cidade próxima a Coimbra. Comentou que tinha conhecido Morgen e viajado algumas vezes ao Congo para ajudar a Fundação Banyamulengue. Quando ele sentou no Café, Ilona foi a primeira a se encantar. O velhinho conhecia todo o tipo de historias e historias de todo o tipo de gente e de lugares, bem como ela gostava. Apenas fazia questão de um bom vinho, e nisto o velhinho era exigente, mas com uma garrafa aberta, podia falar e contar casos por horas. Já nos primeiros dois dias Senhor Baungarten conquistou muitos amigos na cidade e os únicos que ficaram com ciúmes foram os grande jogadores de dominó de Santa Clara pois ele chegou na véspera do grande torneio anual que a Embaixada da Espanha patrocinava na cidade em conjunto com a prefeitura. O torneio começava na sexta, tomava todo o final de semana e tradicionalmente terminava com os partidos finais no fim da tarde de domingo jogados entre a dupla de Moses e Habib, os 189 vendedores de roupas da Avenida Central, contra Pirilo e o asturiano da taverna. E nos três anos anteriores desde que o torneio tinha sido criado, uma vez Pirilo e o Asturiano chegaram a ganhar e as outras duas vezes foi a dupla judia-libanesa. Como Baungarten apenas chegou na sexta todos já estavam inscritos e ele não tinha com quem formar uma dupla. Quem acabou por salva-lo foi a pequena Irigandi quem comentou que a irmã maior da princesa cigana era uma grande jogadora de dominó mas que apenas jogava com seus irmãos. Ao velhinho Baungarten a ideia lhe encantou e os dois foram os últimos a se inscrever. Nos primeiros jogos ninguém lhes deu atenção, uma jovem de dezesseis anos cigana e um velhinho em cadeira de rodas não pareciam intimidar seus adversários, mas eles foram ganhando seus jogos da sexta e do sábado. E no domingo foram a grande atenção vencendo todos os adversários, inclusive a dupla de Pirilo ate chegar na grande final contra o judeu e o libanês onde ganharam com uma grande festa. Segundo Pirilo explicava a todos, não foi apenas por sorte. Tanto um como o outro tinham uma capacidade incrível de memorizar tudo o que se jogava e com tal facilidade que sabiam exatamente as peças que cada um tinha e se comunicavam com os olhos de uma forma que ninguém conseguia perceber. Eram, segundo ele, imbatíveis. A vitória no torneio fez o velhinho rapidamente uma figura popular o que foi uma tranquilidade para Laurence que não necessitava mais se preocupar com ele e podia deixa-lo de manhã na praça da Catedral onde passava todo o dia entre partidas de xadrez e dominó e as longas conversações com Dioclecio Bergantin enquanto alimentavam os gatos. A noite o velhinho sempre jantava no café de Ilona não apenas para contar historias mas também para escuta-las, pois ele tinha aquela mesma qualidade de Ilona em deixar as pessoas tranquilas e faladoras, o que lhe permitia conseguir boas historias ate dos mais tímidos. Surpreendeu a todos quando conheceu a Frida e por alguma magia logrou que a Trotska 190 passasse toda uma noite com ele tomando varias garrafas de vinho e recordando historias de sua juventude de esquerdista radical na Alemanha. Jantava no terraço do Café mas alguns dias depois teve a honra de ser convidado para aquela mesa especial na cozinha onde Dona Cécy jantava com Dioclecio Bergantin. A única coisa que não fazia bem era dormir. Dizia que isso não lhe fazia falta e como Dioclecio também dormia pouco, muitas vezes os dois permaneciam na praça ate alta madrugada escutando o cigano da sanfona. Foi por isso que ele preferiu ficar no hotel da praça pois ali podia entrar e sair a qualquer hora sem incomodar a ninguém. A chegada do velhinho e o torneio de dominó serviram para acalmar um pouco a Pirilo. Seu problema já não eram apenas os russos que estavam por chegar como também a pressão da Senhora da embaixada americana. Ela lhe havia telefonado dizendo que estava muito interessada em conhecer tudo o que Bebéi havia encontrado nos livros do húngaro. Tinha dito de uma forma que não deixava duvidas que de um jeito ou de outro ia obter o que queria e Pirilo sabia que quando ela falava assim, era melhor nem tentar resistir. Conseguiu ganhar algum tempo com algumas desculpas mas sua insistência era firme. – Os documentos trazem informações importantes que não interessam nem a ti e nem a Bebéi e que podem criar muita confusão se caírem em mãos equivocadas. Apesar de tudo Pirilo decidiu que não ia entregar Ele a respeitava muito e também respeitava o russo que sempre tinha sido muito leal a ele e a todos na cidade. Sua decisão não tinha nada a ver com eventuais preferencias entre russos e americanos, comunistas ou não. A razão é que cada vez ele tinha mais simpatias por Laurence. Clara a tinha invitado para jantar com Bebéi e o velho Baungartem em sua casa. Laurence, como Clara, era muçulmana e poucas vezes ele e Clara se haviam simpatizado tão rapidamente com alguém como com ela. 191 Conversaram tanto que o jantar terminou as duas da madrugada. O velhinho Baungartem, queria conhecer as historias de Santa Clara e Pirilo contou todas que conhecia. Tenente Pirilo não sabia exatamente o que estava escondido entre as notas de Arpad, mas fosse o que fosse, os documentos pertenciam a Laurence sua herdeira e até que todos entendessem muito bem o que estava escondido ali nem russos nem americanos iriam tocalos. Chamou Laurence em seu escritório e contou que tinha retirado os documentos da prefeitura e que os tinha escondido em um lugar onde ninguém poderia encontrar. Informou a Senhora da embaixada americana que não podia entregar os documentos pois eles não lhe pertenciam mesmo sabendo que aquilo ia provocar uma reação imediata e não teve de esperar. Ao final da tarde chegou uma delegação de americanos liderada pelo embaixador e foram acompanhados do prefeito ate a sala de Pirilo para pedir os documentos que estavam no cofre Pirilo, abriu o cofre, mostrou que estava completamente vazio e disse que os documentos já não estavam mais com ele. Explicou que os havia devolvido a Laurence pois ela tinha decidido queima-los. Obviamente que a historia de que os documentos estavam queimados não enganou a Senhora mas não havia muito que ela pudesse fazer além de tentar por todos os meios, convencer Bebéi e especialmente a Grená, a mãe de Pirilo, a entrega-los, mas pelo menos com isso Pirilo ganhava algum tempo para enfrentar os russos que também estavam chegando. 192 28 Sexta feira, dia de conhecer os planos do prefeito e de comer a pizza do padre Os russos estavam por chegar no sábado mas a sexta foi um dia bem intenso para Pirilo, para o prefeito e para toda a cidade. Desde as primeiras horas da manhã começou a circular o segundo numero do “Realejo de Santa Clara” com uma descrição detalhada dos planos da nova cidade. Tudo foi feito em grande sigilo por Jordi e sua equipe e como eram bem poucas as pessoas que conheciam os novos planos, o prefeito imediatamente chamou a Pirilo e ordenou uma rigorosa investigação interna para descobrir quem tinha vazado as informações. Como outras informações tinham vazado entre os motoristas Pirilo decidiu começar por eles e junto com seus assistentes entrevistou um a um todos os motoristas que transportavam o prefeito, seus assessores e convidados. Depois foram as secretarias e assistentes de todos os principais assessores que tinham acesso aos planos e por ultimo as senhoras que serviam o café. Como não encontraram nada Pirilo decidiu estender a investigação a empresa de arquitetos e revisaram um por um todos os arquitetos que tinha participado do desenvolvimento dos planos que eram todos estrangeiros pois desde o inicio o irmão do prefeito, que cada vez mais se especializava em temas de segurança e vigilância, já se tinha assegurado que nem ali e nem na firma de advogados contratada, trabalhasse algum professional que pudesse vazar as informações. 193 O único que Pirilo e seus assistentes não investigaram foi a equipe de limpeza da empresa de arquitetos e ali estava Nádia. Ela e seu irmão tinham estudado na mesma escola de Jordi e seu irmão era um dos grandes companheiros de Jordi no futebol. Sonhava ser arquiteta e para financiar seus estudos trabalhava de noite em uma das equipes que fazia a limpeza da empresa. E foi ela que a noite olhou os planos, tomou notas, fez algumas copias e as entregou a Jordi. No jornal também apareciam alguns desenhos que tinham sido feitos por ela e que davam uma boa ideia de como seria Santa Clara Frente ao Mar depois da construção da nova cidade. Com eles todos finalmente entenderam que o projeto do prefeito representava o fim da cidade que eles conheciam. Um dos desenhos explicava como as ruinas do forte ao final do calçadão iam se juntar com o novo shopping center e com os edifícios de escritório que ficariam onde naquele momento o rio desembocava no mar. Mostravam também como as torres de apartamentos ocupariam toda a área depois do rio onde estavam as casas mais pobres e onde Nádia vivia. O prefeito estava furioso e continuou furioso pois Pirilo não conseguiu descobrir como a informação vazou mas Jordi estava orgulhoso com o novo numero de seu jornal. Ele sabia que todos iam querer uma copia e por isso aproveitou o dinheiro que o próprio prefeito lhe tinha dado para contratar mais três ajudantes que junto com ele fizeram não apenas dois mil mas sim cinco mil copias que desde as primeiras horas do dia começaram a circular pela cidade. Arcádio ficou na praça da Catedral com o realejo e o filho da Passarinho passou o dia circulando com seu triciclo pelo calçadão. Mas naquele final de semana ele não vendeu sorvetes pois ao lado do macaquinho que girava a manivela ia sua mãe a Passarinho distribuindo os jornais vestida com a roupa de Bela Adormecida que o magico tinha lhe dado. Santa Clara tinha despertado aquela sexta feira ao som dos realejos, pois além destes dois Rasta Bong tinha mandado 194 construir outro mas que a própria Nádia tocava girando a manivela e que ficou na ponte que separava a cidade antiga do bairro depois do rio onde ela distribuía exemplares do periódico. Com isso e mais os que se distribuíam na barbearia de Rasta e no restaurante de Ilona, chegaram aos cinco mil antes que a noite chegasse. Quem estava feliz era o Cholo que ilustrava sapatos, pois assim como Jordi tinha colocado um texto com fotografia de Laís no primeiro numero, no segundo numero do “Realejo” o cidadão homenageado foi o Cholo. E foi apenas então que todos em Santa Clara se deram conta que o maior comentador de noticias da cidade não sabia ler. Por trinta e seis anos o Cholo lustrou sapatos sempre ali na praça do Libertador Bolívar na entrada do calçadão. Nunca teve tempo de ir a escola. Sabia fazer contas de somar e diminuir de cabeça mais rápido do que muitos mas era tudo o que sabia. Nunca tinha aprendido a multiplicar, dividir, ler ou escrever. Todas as manhãs desde cedo ele já tinha os jornais do dia a disposição de seus clientes que sentavam na cadeira para lustrar os sapatos e de tanto escutar aprendeu a comentar o que escutava. Com o tempo a sua cadeira na praça passou a ser o ponto central da venda de jornais e das discussões que as noticias despertavam. Assim como o guarda sol de Grená era o centro de distribuição de fofocas e rumores, sua cadeira era o centro das discussões de noticias, sempre lideradas pelo Cholo que era respeitado como grande autoridade em eventos ocorridos em Santa Clara e no mundo. E tudo isso sem jamais ter lido um único titular. A noite ninguém mais queria distribuir jornais e sim comer pizza pois aquela sexta também era noite de inauguração da “Pizzaria de Frade.” Ali estavam todas as personalidades locais, os turistas e até alguns visitantes ilustres como o Senhor Baungartem que circulava sorridente com sua cadeira motorizada. E como não podia deixar de ser o grande assunto eram os planos do prefeito para a nova cidade. 195 O prefeito tinha se comprometido publicamente em participar da inauguração e não teve como escapar. Foi e passou a noite inteira tentando explicar a todos que o cumprimentavam, por que insistia com a nova cidade. – A cidade antiga esta tão boa Senhor Prefeito, por que mudar – era a pergunta de todos. As reclamações eram as mais variadas. Grená dizia que com as torres de sessenta andares o vento que refrescava a cidade não poderia mais chegar a praça, Miguel o taxista reclamava que com todos os apartamentos e oficinas não haveria mais onde estacionar seu taxi e Carmela acrescentava que com as ruas cheias de automóveis as crianças não poderiam mais jogar bola tranquilas. As maiores reclamações vinham dos que viviam do outro lado do rio pois tinham percebido que todos teriam de sair de onde viviam para dar lugar aos novos edifícios e os que estavam mais furiosos eram os jovens como Nádia. Ali, depois do rio, eles estavam bem perto de tudo o que passava na cidade. O único que tinham de fazer era cruzar a ponte e já estavam na cidade antiga onde tudo acontecia, mas as novas casas que a prefeitura estava construindo para eles ficavam depois do aeroporto e eles estariam longe de tudo. Já se sentiam excluídos por não ter dinheiro para poder fazer as coisas que os outros faziam e a partir de agora seriam ainda mais excluídos pois nem poderiam circular por onde os outros circulavam. – Os que são donos de suas casas ainda vão receber algum dinheiro mas os que alugam casas nem isso e todos terão de sair – explicava Jordi. Mesmo os que viviam dentro da cidade já estavam percebendo que também teriam de sair pois a cidade seria um mar de lojas e restaurantes para os turistas e para os que iriam viver nos apartamentos e trabalhar nos escritórios das torres de sessenta andares. 196 Mas ali nem todos queriam falar sobre a nova cidade. A Senhora da embaixada americana escutava Pirilo explicar que ela não tinha mais por que se preocupar pois os papeis já haviam sido destruídos, mas ela insistia: – De acordo, não precisamos conversar mais sobre os papeis. Se vocês não querem entregar não posso fazer nada, mas pode ser que ainda existam documentos dentro do apartamento que vocês ainda não encontraram. Posso mandar minha equipe para fazer uma busca detalhada e ver se ainda tem alguma coisa escondida ali. A ideia não parecia má, mas como ele tinha de se concentrar nos russos, ele preferiu esperar. Ilona e Irigandi também estavam felizes aquela noite, pois Paul já estava a caminho de casa. Depois de Jerusalém, ele foi ate o Iran junto com uma delegação de chineses para visitar algumas cidades a beira do mar Cáspio onde esperavam encontrar sinais de visitas espaciais e pelo que havia contado por telefono de Londres, eles haviam encontrado coisas bem interessantes. Agora só lhe faltava mais uma semana ali e depois estaria de volta a Santa Clara. Gigi e Frei Bernardo queriam agradecer a cada um dos que estavam ali mas não lograram, pois eram tantos e a pizza, segundo os comentários, o que incluía uma avaliação bem critica de Juanita, Dona Cécy e Laís, as três grandes cozinheiras de Santa Clara, era divina. O prefeito manteve sua dignidade o mais que pode, mas já estava começando a perde-la com todos questionando seu planos quando a Sérvia a seu lado insistiu para que eles saísse. Ele não estava preparado para abrir a discussão com os moradores e ela já lhe tinha alertado. Naquela mesma noite eles se reuniram na casa do prefeito e o romeno insistia que tinham de começar rapidamente com uma campanha promocional: 197 – Os árabes vão ter de soltar o dinheiro para financiar a campanha – e acrescentou– se não fazemos já a oposição ao projeto da nova cidade vai crescer e ai não poderemos mais controlar. E como todos estavam de acordo que era isto que deveriam fazer e não tinham mais nenhum assunto a discutir o prefeito aproveitou que todos estavam ali reunidos para perguntar mais uma vez ao egípcio El Waun si todas as propriedades já estavam compradas e regularizadas e foi quando o egípcio veio com a má noticia: – Tem apenas uma propriedade que não esta comprada e pelo que me informaram os advogados, pode ser que tenhamos problemas. O prefeito engasgou com o uísque e quase tropeçou no tapete. Ate a dor de cabeça que ele começou a sentir na pizzaria desapareceu. – Você tinha dito que tudo estava sob controle, que historia é esta que agora vamos ter problemas? – Existe uma propriedade a beira mar depois do final do calçadão que vai desde onde estão as ruinas do velho forte ate o galpão dos rastafáris. Esta propriedade esta em nome de um estrangeiro que vivia em Santa Clara e que se foi muitos anos atrás. Já tínhamos negociado com o escritório de advogados que administra seus bens e íamos fazer uma troca entre esta propriedade e uma outra do mesmo tamanho em outra parte da cidade. Segundo me confirmaram os advogados isto seria fácil pois eles seguiriam tendo registrada uma propriedade de dois mil e quatrocentos metros quadrados entre os bens do estrangeiro mas seria outra propriedade e não aquela que necessitamos. Como expliquei tudo estava acertado e ate já havíamos adiantado o dinheiro aos advogados mas pelo que me contaram, agora apareceu uma neta do dono e vamos ter de negociar com ela. 198 – Que merda! –explodiu o prefeito– Isso pode atrasar e muito o projeto. – E se ela decide que não quer vender? –perguntou o irmão do prefeito. – O problema não é insolúvel – e foi o próprio prefeito quem respondeu– podemos desapropriar por interesse social mas o processo nos vá tomar tempo e pode nos expor a alguns problemas políticos. – Diga aos árabes –comentou o prefeito olhando com uma expressão grave ao egípcio– que é melhor pagar o que ela pedir. Negociar desapropriações de casas no bairro pobre não é um problema, mas negociar uma propriedade de frente para o mar com gente rica e especialmente estrangeira pode nos trazer sérios problemas. Quando a reunião terminou e todos se foram, o prefeito ficou a sós com o irmão e disparou sua raiva. – Chame ao árabe que é teu amigo e diga que este egípcio que ele nos mandou é um inútil. Só serve pra trazer putas mas no trabalho é um incompetente total. Como é possível que ele nos vinha assegurando que tudo estava bem quando ainda falta uma propriedade bem no meio do projeto. Se ele não resolve este problema quero ele fora do negocio já! 199 200 29 Chegam os russos querendo saber quem é o amigo da Natasha Segunda feira, no meio da manhã chegou Cavafys com os russos. E aquela vez capitão grego não chegou como sempre costumava chegar em um dos velho taxis que o levavam do porto até Café de Ilona. Naquela segunda ele chegou em um luxuoso helicóptero que pousou no novo heliporto construído ao lado do cais assustando a todos os que estavam no calçadão. Era o mesmo helicóptero com que o Grande Chefe Russo tinha chegado para a inauguração do restaurante nos tempos do magico e nele vinham Cavafys com sua japona negro e os dois russos que queriam conversar com Bebéi. Do cais já foram andando direto para o Café de Ilona onde Bebéi e Tenente Pirilo foram encontra-los. Ainda que soubessem que o tema da conversa eram os segredos de Natasha, Pirilo preferiu não levar Laurence ao encontro. – Melhor esperar para ter certeza de que sabemos o que querem –e o velho Baungartem que desde que chegou atuava como uma espécie de conselheiro de Laurence também estava de acordo. Quando entraram no Café foram direto para a mesa a esquerda do terraço onde sempre Cavafys sentava e o capitão mal teve tempo de alertar Pirilo: – Deve ser alguma coisa bem importante pois o grande chefe me disse que se é verdade que Bebéi sabia algo sobre Natasha e Yuri que ele mesmo viria a Santa Clara –e acrescentou– e você sabe que ele não anda nenhum pouco entusiasmado a voltar para 201 Santa Clara depois de tudo o que aconteceu com Riquita quando o magico abriu o restaurante3. Os dois russos eram bem descontraídos e mal se sentaram já começaram com seus elogios a beleza de Ilona e com suas piadas que davam a impressão de que tudo o que queriam era divertir-se e aproveitar aquela manhã de sol e brisa na baia. Abriram a primeira garrafa de vodca ainda as dez e meia da manhã e sem rodeios entraram no assunto comentando que Bebéi havia escrito a sua amiga Natasha e que os dois estavam curiosos por saber o que ele sabia sobre ela, pois já fazia muito tempo que não a viam. E antes que Bebéi começasse a responder foi Pirilo quem se adiantou e contou toda a historia. Disse que haviam descoberto que o apartamento do húngaro não estava vazio e que quando começaram a examinar o que estava ali, o apartamento foi invadido por professionais que chegaram do exterior e roubaram quase todas as coisas e papeis de Arpad. Contou também que entre os poucos papeis que não foram roubados estava o endereço de Natasha em Praga e que foi esta a razão da carta que Bebéi enviou. Comentou também que despois ainda houve uma segunda tentativa de roubo e esta, suspeitavam eles, tinha sido ideia de uma firma de advogados de Miami e concluiu: – Quando percebemos que os papeis do húngaro podiam causar problemas decidimos queima-los. Os russo perguntaram o que diziam os papeis e Pirilo deixou Bebéi responder, pois sabia que ele ainda não tinha ideia do que Ludmilla havia descoberto. Bebéi contou em detalhes toda a historia de Arpad, desde as ruas de Budapest, até a briga com sua filha Morgen e toda suspeita que eles tinham em Santa Clara de que o húngaro era um agente duplo trabalhando para os americanos e para os comunistas com 3 O macaquinho com roupa de Napoleão, outra das aventuras de Bebéi e os pelagatos 202 contatos diretos em Havana e com a Stasi. O único que ele não mencionou foi a folha com os vinte seis nomes de livro, pois Pirilo lhe havia pedido explicitamente e por reiteradas vezes que a folha com os nomes dos autores e as palavras chaves não deveria ser mencionada frente a ninguém, especialmente frente a Senhora da embaixada americana e os russos. Continuaram conversando e Pirilo fez três descobertas: A primeira era que os russos eram muito simpáticos pois seguiam conversando por toda manhã e emendaram com um arroz com polvo preparado por Dona Cécy que sempre tratava o grego com carinho e que apenas foi terminar as quatro da tarde quando Pirilo teve de sair para sua reunião diária com o prefeito. A segunda era de que os russos gostavam de beber. A primeira garrafa de vodca terminou no almoço e praticamente foram apenas os dois russos que a tomaram, a segunda já estava vazia no inicio da tarde, verdade que graças a ajuda de Ilona que almoçou com eles e seguia tomando a terceira garrafa que já estava mais da metade vazia. A terceira descoberta era a de que os russos apesar de brincalhões e bêbados, não eram nem um pouco tontos, pois ainda que Bebéi tivesse se comportado muito bem e não havia mencionado os vente seis livros, os russos com suas perguntas inocentes, certamente já haviam descoberto que o arquivo do húngaro escondia coisas que podiam ser muito interessantes para eles. Quando o almoço terminou Bebéi chegou a pensar em passar pelo hotel para contar a Laurence o que tinham conversado mas se sentia tão mal que foi ate seu apartamento dormir. Ele não bebia, mas apenas o odor da vodca e o pequeno toque de língua que ele tinha de dar no copo todas as vezes que os russo propunham um novo brinde lhe haviam deixado completamente bêbado. Ele mal conseguia andar em linha reta e foi apenas graças ao cachorro que conseguiu chegar ao apartamento. Apenas a noite ele conseguiu regressar a praça onde encontrou Baungartem. O velhinho tinha descoberto que a irmã de Ishtari também sabia jogar muito bem o xadrez. Tinha um pensamento extremamente rápido e era muito intuitiva mas não conhecia os 203 fundamentos do jogo e ele estava aproveitando para ensinar os conceitos teóricos das grandes aberturas. Ele tinha um relógio de xadrez coisa que Nullo e Robespierre, os dois grandes jogadores de xadrez de Santa Clara sempre quiseram ter. Com o relógio e a mesa que ele mandou fazer com tabuleiro pintado, ele e ela praticavam. Não jogavam a tarde pois ela sempre queria estar ao lado de sua irmã de quem cuidava e ele também dava prioridade ao dominó, mas a noite, quando Ishtari tinha suas aulas especiais com os mestres ciganos e os velhinhos aposentados estavam de regresso a suas casas para o jantar e a televisão, os dois se sentavam para jogar frente ao olhar atento de Dioclecio, pois o velhinho Baungartem tinha colocado a mesa de xadrez bem ao lado do banco onde o velho filosofo alimentava os seus gatos. Aquela noite Laurence e Pirilo passaram pela praça para discutir o que fazer. Laurence tinha algumas novidades para contar mas foi Bebéi quem começou a falar contando da reunião que tinham feito com os russos. E depois de escutar foi Baungartem quem fez uma pergunta: – A Senhora da embaixada sabe que os russos estão por aqui? E sabem os russos que a Senhora também esta interessada nos mesmos papeis?– e quem respondeu foi Pirilo. – A Senhora pode ser que ainda não saiba mas e muito bem informada e rapidamente vai saber. Aos russos não contamos, mas pelas coisas que mencionaram no almoço tenho a impressão que desconfiam que os americanos também podem estar interessados nos papeis. – Que bom –comentou o velhinho sorrindo e Pirilo não entendeu. – Não acho que seja bom. Se os russos e os americanos sabem que os outros também estão interessados, pode ser que tentem fazer alguma coisa mais drástica para consegui-los. – Não creio – disse o velhinho que seguia jogando tranquilo e ate indicando com o dedo as alternativas de jogadas que a jovem 204 cigana deveria considerar– Pelo que aprendi nos livros de espionagem que gosto de ler, quanto mais pessoas souberem, mais seguros nossos amigos Laurence e Bebéi estarão. Nenhum de nos e nem os policiais da prefeitura, e digo isto com todo respeito que tenho a eles, podem protege-los se americanos ou russos decidem fazer alguma coisa, mas se americanos e russos sabem que o inimigo esta interessado, são eles mesmo que vão assegurar a proteção de nossos amigos. Pirilo ficou pensativo e o velhinho Baungartem continuou: – Nenhum de nos sabe onde estão os papeis. Sabemos que não estão contigo e sabemos que você é o único que sabe onde eles estão escondidos. Nem Bebéi e nem Laurence sabem e é melhor que continue sendo assim. A ideia ate que pareceu interessante mas havia uma coisa mais que preocupava a Pirilo. Bebéi era o único que sabia onde estava escondida a chave. Ele sabia que Bebéi não tinha contado a ninguém e era importante insistir com ele para que não contasse. Seguiram conversando e combinaram que Pirilo iria ligar para a Senhora e para os russos dizendo que seus inimigos também estavam buscando os papeis do húngaro e quando tudo já estava definido, foi a vez de Laurence contar suas novidades: – Recebi uma chamada telefônica do escritório de advogados dizendo que alguns investidores estão querendo fazer uma oferta para comprar a propriedade de Arpad em Santa Clara e querem conversar comigo amanhã. –Muito cuidado –disse Pirilo– estes tipos de Miami não me parecem ser confiáveis. Escute o que eles vão propor e depois estudaremos a proposta com muita cautela. E depois disso Bebéi preferiu regressar ao seu apartamento. O dia seguinte prometia ser bem movimentado. Paul chegava de viagem e o prefeito estava prometendo novidades. O que mais lhe preocupava era que a embaixadora da França, sua chefe, estava de péssimo humor. Pelo que Carmela contava a culpa era da nova academia de ginastica de Lucia. Desde que o Negro Zen 205 começou com as suas aulas de yoga que os jovens de Santa Clara faziam fila para tomar aulas particulares de meditação com ele e por conta de todos aqueles pedidos ele quase que já não tinha mais tempo para dedicar a embaixadora. E sem o Negro Zen, ela era insuportável! 206 30 A confraria dos puros descobre o que estava bem no centro da nova cidade. Se Professor Paul já tinha ideias estranhas quando foi, imaginem ao regressar? E foi o que percebeu Ilona já no caminho de volta do aeroporto. O voo chegou tão cedo que ela foi direto do Café e por isso seguia com seu bom humor noturno. Depois de passar varias semanas entre o Sagrado Sepulcro de Jerusalém e as terras da antiga Pérsia com outros científicos em uma expedição organizada pelos chineses para investigar indícios da presença de civilizações de outros planetas, Paul estava eufórico. Na perua ele já contava dos lugares onde esteve e das descobertas que fizeram sobre uma outra confraria que existiu no século XI, o período da historia que mais fascinava a Paul que acreditava que aproximadamente em 1013, nosso planeta tinha recebido algumas visitas espaciais. – O nome em árabe é Ikhwan al-Safa –explicava ele entusiasmado apesar de todas as horas de viagem– e isso talvez possa ser traduzido como a irmandade dos puros. Aparentemente foi um grupo de filósofos, pensadores e científicos que trabalharam em segredo e segundo se dizia, escondidos dentro de grutas e que formaram uma confraria secreta. Mas uma confraria um pouco distinta da confraria dos pelagatos de Santa Clara pois eles certamente não bebiam tanto e por isso tiveram mais tempo para escrever uma das primeiras enciclopédias que conhecemos. Foram cinquenta e dois tratados cobrindo vários setores do conhecimento; álgebra, geometria, astronomia, música, filosofia e psicologia. E se queremos brincar com a imaginação é como se um grupo de pessoas 207 tivesse transcrito todo o conhecimento dos antepassados que segundo o avô de Irigandi estava escondido dentro do Segredo do Darién para com eles preparar uma enciclopédia. Irigandi escutava pensando, “pena que o avô não esta mais conosco para escutar estas coisas” e a seu lado Dioclecio que também lhes acompanhou ao Aeroporto pensava que a pequena Irigandi estava conseguindo exatamente o que queria com o plano que colocou em pratica depois da morte de seu avo; manter o segredo do Darién fora dos radares dos pesquisadores e dos curiosos que pensavam que tudo havia sido destruído com o incêndio e serenamente aproximar dos sábios de seu povo o conhecimento de outros segredos similares que existiam pelo mundo Mas aquela manhã o interesse em escutar as historias de Paul rapidamente desapareceu quando eles avistaram os primeiros outdoors anunciando que Santa Clara Frente ao Mar finalmente entraria no século vinte um. A data de passagem para o novo século já estava até definida, seria no 11 de Agosto, data e que tradicionalmente se celebrava o dia de Santa Clara e da cidade, e que este ano, além do tradicional desfile de bandas, teria um evento especial pois o prefeito autorizaria o inicio das obras da Nova Cidade. Os desenhos que apareciam nos cartazes e outdoors espalhados aquela manhã por toda a cidade eram impressionantes. Torres enormes de apartamentos com arquitetura arrojada como aquela que se via nas ricas cidades do petróleo árabe, frente ao calçadão, novas marinas com iates tão grandes como os que apareciam nas fotos do Principado de Mônaco e nas ilustrações, as pessoas que apareciam pareciam saídas daquelas revistas de Priscilia a cabeleireira que traziam as ultimas fofocas de famílias reais. Da cidade antiga que todos conheciam o único que aparecia, e apenas em um dos cartazes, era um desenho da nova praça da Catedral que mais parecia aquela grande praça de San Marco em Veneza, cheia de mesas cadeiras e turistas. 208 Não havia um lugar sequer em toda a cidade onde não houvesse um cartaz, parecia dia de véspera de eleições. E se os carteis já eram impressionantes, mais impressionante ainda foi a publicidade que desde a manhã começou a aparecer na televisão. Eram quase dois minutos de um anuncio que foi repetido ate o cansaço e que começava com imagens opacas da cidade antiga, do calçadão e do bairro mais pobre depois do rio onde as novas construções modernas e coloridas pareciam desabrochar transformando a cidade antiga na Nova Santa Clara do futuro. O rio que separava a cidade do bairro pobre desaparecia completamente como se fosse um dos truques do magico e ali nascia um enorme shopping center que conectava a cidade com as novas megatorres, cada uma mais bela e arrojada que a outra. Do outro lado da cidade, onde estava o mercado, outras tantas torres também desabrochavam ocupando a avenida que separava a cidade antiga do resto da cidade moderna. As pequenas ruas que davam acesso a cidade antiga se transformavam em grandes avenidas e todos que caminhavam pelas ruas no filme que se mostrava na televisão, estavam elegantemente vestidos e com modernos automóveis. Foi tanta a promoção que acabou por despertar uma grande inveja em todas as outras cidades do pais e foi acompanhada de uma serie de entrevistas e artigos nos grandes jornais mencionando que a modernidade finalmente tinha chegado ao pais. O prefeito que a partir daquele dia passou a vestir um terno mais elegante quando dava entrevistas, era por todos os lados mencionado como um pioneiro em atrair o investimento estrangeiro “Alguém que finalmente compreendeu os benefícios deste mundo globalizado e que lança Santa Clara em direção ao futuro” Pelo menos era isso o que dizia o anuncio na televisão. Os números que mencionavam também causavam espanto. A quantidade de empregos que seriam criados na construção era ainda maior que o numero total de habitantes da cidade. A 209 quantidade de cimento seria tão grande que daria para construir uma ponte ate Miami. E as cifras dos novos negócios que seriam criados superava a capacidade de compreensão de qualquer um que caminhava pelas estreitas ruas de pedra da velha cidade. Na reunião que sempre faziam ao final da tarde o prefeito perguntou ao Tenente Pirilo como havia sido a primeira reação e a única resposta que lhe ocorreu foi dizer que não houve uma primeira reação pois todos ainda estavam paralisados pelo choque. Frente a barbearia, um dos cartazes mostrava a nova avenida de entrada da cidade antiga e Rasta Bong jurava que pelo desenho que aparecia no cartaz, a avenida ia passar bem ao lado de sua casa e onde estava o quarto de Grená na esquina da casa, no desenho aparecia um enorme semáforo. – Como você vai fazer para viver em um semáforo –perguntava ele a Grená. No cartaz que mostrava a nova praça da Catedral, onde estava a livraria de princesa aparecia um restaurante de comida árabe e onde estava o pequeno deposito em que Dioclecio dormia com seus gatos apareciam elegantes banheiros o que levou Nullo a comentar com Dioclecio: – Vais acordar mijado todos os dias. Era impossível reagir de uma forma racional. – O rio desaparece – dizia Gigi– como pode desaparecer um rio? Onde vão colocar toda a agua que passa por ali e desemboca no mar? Segundo os desenhos os casarões que davam para o calçadão, seguiriam ali mas comparadas as enormes torres que estendiam para norte e para o sul pareciam tão pequenas que quase não eram visíveis. – Tua casa e teu restaurante vão ser agora um traço e um ponto no desenho da nova cidade –foi o comentário de Gigi que deixou Ilona tão furiosa que imediatamente instruiu aos 210 empregados que o prefeito estava a partir daquele momento terminantemente proibido de entrar no Café. Ate os jovens da academia de ginastica de Lucia que eram defensores entusiastas da modernização da cidade estavam assustados pois o velho armazém onde Lucia havia montado a academia foi substituído nos desenhos dos cartazes por uma enorme e moderna ponte pela qual as pessoas caminhariam do novo centro comercial ate a rua que levava a nova praça da Catedral. – Não se preocupe –disse o pai de Lucia– terás uma nova academia em uma das torres. Já acertei com o prefeito Mas o problema não era apenas a localização. Sair da academia dentro de uma das torres para entrar em um automóvel não era o que eles queriam. O divertido era sair dos exercícios com a roupa ainda suada e cruzar a praça exibindo os resultados do esforço no corpo para tomar um café ao lado dos livros na livraria de princesa ou comer os pasteis fritos de Laís. – Gostando ou não, não ha nada que possamos fazer –dizia Nullo Rompido– Uma enorme quantidade de dinheiro esta envolvida nestes projetos, e não somos nós, um bando de pelagatos, que vamos conseguir para-lo. A discussão seguiu pela tarde e até a noite em todas as casas, esquinas, bares e restaurantes da cidade, mas no café de Ilona, Laurence não queria conversar dos planos da nova cidade. Para ela, o dia tinha sido bem movimentado, primeiro por uma reunião com os advogados e depois um encontro com o prefeito. E era sobre isto que ela queria conversar: – Os advogados me chamaram. Eles encontraram um comprador com uma excelente proposta para a propriedade de Arpad. Contou também que lhe haviam oferecido um milhão de dólares, o que era muito mais do que seu avô havia pago pelo terreno. – Aparentemente necessitam a propriedade para o projeto da nova cidade– acrescentou. 211 – Deixe me entender melhor–comentou Jordi que também estava no Café– Isso quer dizer que se você não vende o terreno eles não podem construir a nova cidade? – Não é tão simples – respondeu Laurence– A tarde o prefeito pediu a Bebéi que nos levasse ate o seu gabinete e fomos os três: Baungartem, Bebéi e eu. Laurence contou que no encontro o prefeito foi muito atencioso e lhes explicou que o projeto da Nova Santa Clara era muito importante para a cidade e que por isso ele não podia impedi-lo. Recomendou também que ela aceitasse a oferta pois estavam pagando um preço muito acima do valor do mercado. Disse que aos que não aceitavam vender suas propriedades, a prefeitura lhes estava desapropriando pois a Nova Cidade era um projeto de grande interesse social. Até lhe disse que pelo carinho que tinha por Bebéi, seu amigo e general da banda que sempre fazia comentários muito positivos sobre ela, que ele mesmo ia conversar com os árabes e fazer todo o possível para convencê-los a aumentar a sua oferta. – E todos a quem perguntamos nos confirmam que o prefeito tem razão –disse Laurence– É isto que estão fazendo com todos os que se recusam a vender suas propriedades e pelo que nos explicaram alguns advogados amigos de Ilona é muito melhor aceitar e vender, pois assim o pagamento é mais rápido. – E o que é que você quer fazer? –perguntou Ilona – Pedi aos advogados alguns dias para conhecer a propriedade e pensar –respondeu Laurence. – E depois de pensar, a primeira coisa que você vai fazer é dizer a eles que por este preço o negocio não interessa –disse o velhinho Baungartem– pois se te ofereceram um milhão é por que estão dispostos a pagar muito mais. Laurence contou também o pouco que sabia da propriedade e Ilona comentou que a conhecia bem: 212 – Quando Júlio e eu compramos nossa casa, também pensamos neste terreno. É aquela área desocupada depois do forte –e seguiu explicando a Laurence e a Baungartem– Vocês conhecem onde esta minha casa. Despois vem o Casarão de Pedra onde o magico fez seu restaurante e depois as ruinas do forte. O teu terreno esta depois do forte e antes do rio. A parte de frente para o mar é mais ou menos do mesmo tamanho do meu terreno, mas o teu tem também todo aquele espaço vazio atrás do forte, que vai ate onde esta o campo de treinamento dos militares e o galpão dos rastafáris. – Ou seja bem no meio do novo centro comercial da nova cidade– complementou Jordi. – Bem no meio –confirmou Ilona– e são dois mil e quatrocentos metros quadrados. Para nós o terreno não interessou pois era mais distante do Café e teríamos de construir uma nova casa. Foi por isso que compramos nossa casa que já estava pronta e apenas tivemos de reformar um pouco. Lembro também que por esta época Júlio, o Condor, tentou contatar o proprietário, mas nos disseram que ele não a queria vender. Ilona não seguiu conversando recebeu a inesperada visita de uma amiga cubana que não via a muito tempo. Ninguém ali parecia conhece-la apenas Dona Cécy que quando soube que ela estava ali veio correndo da cozinha para abraça-la. Parecia ser uma velha e querida amiga mas Bebéi não teve muito tempo para pensar na nova visitante pois Tenente Pirilo entrou no Café e a noite ainda lhes reservava outras surpresas. Tenente Pirilo havia convidado Laurence e Bebéi para um encontro com a Senhora da embaixada americana. Como haviam combinado, Pirilo havia informado a Senhora que os russos estavam na cidade interessados nos papeis e aos russos, que os americanos também os queriam. Foi a Senhora quem propôs o encontro e foi Pirilo quem sugeriu que ele fosse ali na terraço do Café. Eles continuaram sentados na ultima mesa do terraço a espera da Senhora e junto com eles o velhinho Baungartem que não 213 necessitava de cadeiras pois tinha a sua cadeira motorizada com a qual todos que trabalhavam no Café de Ilona já estavam acostumados. O velhinho parecia se divertir com todas aquelas reuniões e comentou. – Santa Clara é muito mais divertida que qualquer cidade onde vivi –e Bebéi ao seu lado concordou sorrindo. 214 31 O misterioso agente Z surpreende a russos e a americanos Em Santa Clara Frente ao Mar o inesperado parece ser parte da rotina mas ainda assim aquela noite o que a Senhora contou surpreendeu a todos. Entrou no Café elegante como sempre com um vestido beije discreto e um lenço de desenhos beije e alaranjado que chamava a atenção pelas cores e pela beleza. Não vinha só, ao seu lado estavam os dois russos da KGB e entrou com a confiança de quem sabia que de uma vez por todas ia esclarecer o que fazia o vizinho de Bebéi. Sentaram todos no terraço e Ilona mandou bloquear as mesas vizinhas para que eles pudessem conversar tranquilos e foi a Senhora mesmo quem depois de cumprimentar a todos e pedir um mojito, quem começou a compartir o que sabiam e o que ainda queriam saber sobre o agente Z. – Como vocês descobriram em suas investigações o Senhor Arpad Corvinus não era apenas um funcionário que ajudava ao CIA no Congo. Ele também era um informante de Barba Roja a quem conheceu por recomendação do Che Guevara e de sua amiga Tamara Bunke. Todos ali estavam calados escutando com atenção, mas inquestionavelmente quem mais se divertia ali com todas aquelas historias de espiões bem no meio de suas ferias era o velhinho Baungartem. – Graças aos contato com a Stasi, Arpad também se aproximou da KGB e por muitos anos trabalhou como agente duplo. Isso 215 foi o que vocês descobriram e lhes agradecemos muito por isso – e depois de fazer uma pausa para ajudar a criar um certo suspense continuou– mas o que vocês não sabem é o que Arpad fez depois de 1976 quando saiu do Congo e lhes confesso que nem nós e tampouco os russos sabíamos. Fez outra pausa para tomar um bom gole de seu mojito pois ela mesmo estava surpresa com tudo o que havia descoberto nos últimos dias. – Os documentos que Bebéi encontrou demonstram que Arpad tinha contato com um certo Francisco em Angola e com o agente K em Khartum. Um deles trabalhava com o CIA o outro com a KGB e tanto um como o outro pareciam estar frustrados com seu trabalho e tinham alguma relação com a Stasi alemã. Ninguém ali se movia enquanto escutava. – Os dois nomes foram investigados anos atrás tanto por nos como pelos russos –seguia a Senhora– pois desconfiávamos que alguém entre eles podia ser o homem ou a mulher que nos estava chantageando. Os olhos de Bebéi brilhavam e ele pensava que tudo aquilo começou com a gaivota pois foi graças a ela que eles descobriram o apartamento do húngaro. – O que lhes vou contar –seguia ela– é uma historia que muitos de nos pensávamos que era apenas uma lenda, mas que agora sabemos foi real. Ao final dos anos setenta passamos a receber ameaças de uma mulher canadense que dizia ter provas de que o CIA tinha estado envolvido com uma serie de atentados políticos na África. E não eram coisas pequenas pois haviam também certas coisas bem significativas que nunca foram explicadas com relação a morte do Secretario Geral das Nações Unidas Dag Hammarskold em um acidente de avião. O CIA preferiu pagar o que ela pedia e evitar assim que aquelas acusações fossem divulgadas ao publico –e ela parou para outro gole de mojito 216 – Como podem imaginar fizemos o possível para descobrir quem era aquela Valerie. Sabíamos que vivia no Quebec e conseguimos identificar onde ia todo o dinheiro que lhe pagávamos e descobrimos que tudo era transferido para organizações não governamentais que apoiavam populações africanas como por exemplo a Fundação Banyamulengue criada pela mãe de Laurence. Esta chantagem seguiu até a o inicio dos anos oitenta quando descobrimos que se tínhamos a nossa Valerie, os russos tinham a sua Natasha que vivia em Praga e estava chantageando a KGB e o governo russo da mesma forma que Valerie nos chantageava. Os olhos e ouvidos de Pirilo não podiam estar mais atentos e a Senhora seguia: – Foi quando decidimos unir os esforços dos dois serviços secretos pois percebemos que provavelmente Valerie e Natasha eram a mesma pessoa já que haviam muitas coisas relacionadas a guerra civil entre os hutus e os tutsis que apareciam tanto na chantagem de uma como também na chantagem da outra. Investigamos nesta época a vários agentes duplos incluindo este Francisco, que na verdade era uma mulher portuguesa e o agente K que era um Hindu, mas nunca investigamos Arpad. Como expliquei, ele era um funcionário burocrático que apenas fazia trabalhos de pouca importância e que parecia estar desmotivado quando decidiu abandonar tudo o que fazia em 1976 –e ai pediu um segundo mojito antes de continuar explicando –E foi apenas agora, graças a suas investigações e a folhinha que preparou Bebéi – e ai ela olhou sorrindo para ele– e que vocês mantinham escondida, mas que consegui uma copia, é que finalmente descobrimos a identidade do agente Z. A Senhora então mostrou a folha de Bebéi, mas agora completa: A – Auden Francês Argélia B – Boll Espanhol Barba Roja C – Conrad Francês Congo D – Durrel Espanhol Dominicana 217 E – Elliot Alemão Eszter F – France Português Francisco G – Grass Espanhol Guevara H – Hesse Húngaro Horthy I - Ibsen Inglês Indonésia J – Joyce K – Kafka Húngaro Inglês Janus Agente K L – Lawrence Húngaro Lali M – Marai Inglês/Alemão Morgen N- Neruda Russo Natasha O- Orwell Alemão Otto P- Tcheco Praga Q- Quasimodo Francês Quebec R - Rilke S- Szabo Russo Espanhol Rússia Santa Clara T - Tolstoi Alemão Tamara U - Unamuno Inglês USA V - Virgílio Inglês Valerie W - Whitman Inglês Walden Pasternak X - Xingjiang Y- Yeats Z - Zola O ultimo livro Russo Yuri Agente Z – E como vocês ainda não sabem algumas das coisas que estão ai, lhes explico. O contato do CIA com Valerie se fazia através de um agente que se chamava Walden e o contato da KGB com Natasha era feito pelo agente Yuri. A pessoa que por todos estes anos esteve nos chantageando passou a ser conhecido nos dois países como o agente Z, o que passou a ser uma lenda pois nunca ninguém conseguiu descobrir era aquela pessoa que havia 218 por tantos anos orçado o CIA e a KGB a pagar uma quantidade monumental de recursos com chantagem. E o agente Z era seu vizinho Bebéi –e depois olhando para Laurence– seu avô, Arpad Corvinus. É por esta razão que tanto nossos amigos russos como nós queremos saber o que havia dentro do livro de Zola e onde estão escondidos os documentos que Valerie e Natasha sempre utilizaram para nos ameaçar. Pirilo e Bebéi olharam a folha e depois de uma pausa ela seguiu: –Aparentemente Arpad, decidiu se vingar tanto dos americanos como dos soviéticos por tudo o que havia visto na África. Com a ajuda de Francisco e do agente K, juntou uma serie de informações confidenciais e as utilizou para fazer a chantagem. E fez de uma forma bem inteligente, pois nunca conseguimos descobrir quem era e o interessante é que não fazia por ele pois todo o dinheiro era transferido para organizações que apoiavam aos que foram as vitimas daquela guerra politica entre os dois países. Apenas suspendeu sua chantagem quando percebeu que russos e americanos estavam trabalhando juntos e que provavelmente iriamos descobrir sua identidade, mas nunca entregou os documentos. O agente Z simplesmente desapareceu sem deixar traços. Nunca mais Walden recebeu uma mensagem de Valerie e nem Yuri de Natasha. Conhecíamos os endereços e seguimos observando atentos e por mais de dez anos não houve nenhum movimento até que Natasha recebeu a carta de Bebéi e até que Pirilo nós entregou as notas que estavam dentro do livro de Virgilio. Pirilo se apresou em explicar que o único que eles tinham eram os documentos encontrados dentro dos livros e mandou seu assistente buscar todas as pastas que ele havia escondido no deposito por detrás da Catedral onde Dioclecio dormia com seus gatos. E enquanto aguardavam ele insistiu que tudo o que tinham encontrado eram as notas e as cartas que estavam dentro dos livros. 219 A Senhora percebeu que Pirilo estava fazendo o possível para evitar que Bebéi falasse e como conhecia bem aos dois preferiu ser paciente. Quando chegaram os envelopes, e especialmente os de Walden e Yuri, que estavam nos livros de Whitman e Yates, ela leu e comentou – Aqui estão as descrições do que ele fazia –explicou a Senhora– e o que buscamos não é a descrição mas sim os documentos que ele possuía e que pareciam comprovar as coisas que o agente Z mencionava na chantagem de Valerie e Natasha. Tanto a Senhora quanto os russos seguiram insistindo em saber o que estava dentro dos livros de X e Z e Pirilo mostrou o livro de Xingjiang que também estava guardado dentro do envelope onde na ultima pagina estava escrito no mesmo francês da tradução do livro que Arpad havia lido: “Este é meu ultimo livro … ¿de que me serve seguir lendo?” – E no livro de Zola –perguntou a Senhora– ¿Que havia? Pirilo preferiu não responder. Antes ele tinha de conversar com Laurence pois nem ela sabia da existência da chave. A única pessoa que sabia era Bebéi e ele seguia olhando a Pirilo, esperando uma indicação de que deveria fazer. A Senhora percebeu que seria inútil insistir e fez uma proposta: – Nem vocês e tampouco os que invadiram o apartamento, não encontraram nada. Deixe nos tentar. Se é que existe alguma coisa dentro daquele apartamento podemos encontrar com nossos equipamentos. Pirilo não tinha objeções e tampouco Laurence, mas quem fez um comentário foi o velhinho Baungartem que até ali estava em silencio: – Imagino que para fazer esta revisão detalhada do apartamento vocês serão obrigados a destruir muitas coisas que existem ali. Creio que seria justo que ao final os governos de seus países voltem a colocar o apartamento em condições para que a 220 Senhorita Laurence possa viver ali, incluindo, moveis, tapetes e cortinas novas, não lhes parece? A Senhora e os russos sorriram e aceitaram. – Com isso terás teu apartamento pronto para viver e não terás que gastar mais com o hotel – foi o comentário sorridente do velhinho, orgulhoso de sua engenhosidade. 221 222 32 Pausa para una sopa de grão de bico com linguiça portuguesa. No dia seguinte Tenente Pirilo fez algo que a muito tempo não fazia: acompanhou o Senhor Baungartem as compras no mercado publico. Desde o jantar na casa de Clara que Pirilo sempre que podia passava pela praça para cumprimentar e conversar com o velhinho e a ida ao mercado era parte de um pedido muito especial que ele lhe fez no dia anterior: – Quero comer una sopa de linguiça com grão de bico das que minha esposa sempre me faz em nossa casa em Portugal. Pedir a Dona Cécy ou a Laís, ele não queria: –As duas são excelentes cozinheiras. Tão boas que certamente vão querer fazer a sopa a sua maneira e o que quero é uma sopa igual a da minha Senhora pois é esta a sopa que estou acostumado a comer. Tenente Pirilo, que não tinha a menor simpatia pela cozinha, acabou por se envolver pela cozinha que tinha em sua casa e que nunca utilizava pois apenas comia na taverna do asturiano ou na casa de Clara ou Grená. – Se tento fazer minha sopa na cozinha do Café de Ilona vão ser tantas as opiniões que vou acabar por ficar de mau humor. Quero uma cozinha onde possa cozinhar sem nenhuma mulher a dar palpites. A de Bebéi não servia, pois seu apartamento estava no terceiro andar e seria muito complicado levar a cadeira de rodas até ali. 223 A solução mais simples parecia ser a casa de Pirilo pois era fácil de entrar e como já havia contribuído com a cozinha, Pirilo decidiu também acompanha-lo junto com Bebéi em suas compras no mercado, o que acabou por ser uma excelente oportunidade para conversar sobre o que sabiam e compartir o que lhes preocupava. – Primeiro é importante que encontremos uma boa linguiça pois os grãos de bico, já os temos de molho em agua desde ontem e pedi também ao Senhor Bebéi que os cozinhasse por hora e meia para que não tivéssemos de esperar tanto pelo seu cozimento. Mas é fundamental que seja uma boa linguiça portuguesa. Encontrar a linguiça que buscavam tomou muito tempo pois Baungartem era muito exigente e profundo conhecedor do que buscava. E enquanto circulavam dentro do mercado eles conversavam: – Pelo menos sabemos o que o húngaro escondia e já temos russos e americanos buscando os documentos perdidos, mas ainda existem coisas que não entendo tenente –dizia Baungartem– quem foi que tentou roubar o apartamento do Senhor Bebéi? Conversando com o velho Baungartem, Pirilo sempre se sentia importante pois o velhinho lhe dava a impressão de estar interessado em aprender. E a verdade é que suas perguntas lhe obrigavam a pensar. – Foram os do escritório de advogados que tentaram invadir o apartamento e não foi pelo que buscava a Senhora ou os russos pois os de Miami não pareciam ter a menor ideia de quem era o húngaro muito menos dos documentos que ele escondia. O único interesse dos advogados era a venda da propriedade do húngaro para os investidores árabes e invadiram o apartamento para evitar que descobríssemos quem era o húngaro e que ele era o dono do apartamento e do terreno perto do forte. 224 – Muito interessante seu comentário e como sempre muito atinado– disse Baungartem– mas agora que já encontramos a linguiça, temos de comprar as verduras. Necessitamos, cebola, alho, cenoura, salsão e batata doce, mas Tenente qual é sua opinião. Acreditas que os advogados não vão mais importunar ao Senhor Bebéi, lembre-se que eles tentaram por uma segunda vez invadir o apartamento? – Não creio contestou Pirilo, antes estavam preocupados em descobrir quem era a herdeira, mas agora o que querem é comprar a propriedade de Laurence. – Muito correto seu pensamento, mas tem um aspecto da questão que ainda não tenho claro Senhor Tenente: a propriedade ainda pertence ao Senhor Arpad, não é verdade? E como ainda não fizeram o inventario para passa-la a herdeira, me pergunto o que se passaria por exemplo si algo como um acidente, ocorre com a Senhorita Laurence e Deus nos livre, ela morre. Creio que neste caso a propriedade permaneceria no inventario do Senhor Arpad e os advogados poderiam vende-la aos investidores, pois aparentemente para isto estão autorizados, não lhe parece? Pirilo, pensou por alguns minutos e Senhor Baungarten complementou: – O que me preocupa é que acabamos por transformar a Senhorita Laurence em um importante alvo para eles. Agora, se querem a propriedade a qualquer custo, uma boa alternativa poderia ser, simplesmente, eliminar a herdeira. Para Pirilo esta ideia de assassinos e assassinatos em Santa Clara parecia uma paranoia e por isto tentou encerrar a discussão: – Provavelmente o senhor tem razão mas certamente que nada vai acontecer com Laurence. – Estou seguro que não – comentou Baungartem– mas não nos esqueçamos que estamos falando de um projeto de milhões e milhões de dólares e que por muito menos eles foram capazes de 225 contratar professionais para invadir o apartamento do Senhor Bebéi e amordaça-lo no banheira e isto sem mencionar a possibilidade de que a Senhorita Laurence decida não mais vender a propriedade, mas antes de seguir passemos naquela barraca pois creio que a batata doce ali parece estar mais bonita. Bebéi que lhes escutava já estava começando a se preocupar. Será que alguém poderia querer fazer algum mal a Laurence? Mas Pirilo lhe tranquilizou. – Pelas duvidas vamos colocar uma proteção especial junto a ela. Vou colocar um escolta vinte quatro horas por dia ao seu lado. – Que sabia decisão senhor Tenente, prevenir é sempre a melhor alternativa. Agora apenas por divertimento, enquanto buscamos umas folhas de louro e o cominho, me conte Tenente, que poderiam eles fazer. Não nos esqueçamos que eles estão dispostos a pagar um milhão de dólares para ter o seu terreno e certamente não hesitariam em utilizar este milhão para mata-la. Diga-me Senhor Tenente, o senhor que é tão bom nestas investigações como crés que faríamos para matar alguém como ela. Pirilo gostava destes desafios. Pareciam as perguntas que Cristina sempre lhe fazia e que muito lhe ajudavam a pensar. – O primeiro seria contratar um assassino que poderia fazer o trabalho, o que não seria difícil pois existem muitos neste mercado. – Quer dizer que é assim de fácil encontrar um assassino. E como faria o senhor para descobrir se alguém esta contratando um assassino professional para matar a Laurence A pergunta não era fácil, mas enquanto esperava o velho Baungartem terminar as suas compras, Pirilo ficou pensando e quando saíram do mercado e tomaram caminho de regresso a casa de Pirilo ele respondeu: 226 – Perguntar não nos ajudaria muito pois neste mundo de professionais ninguém gosta de responder perguntas e muito menos de meter-se no negocio dos outros. A melhor alternativa em minha modesta opinião –e a verdade é que dizia isto sem nenhuma modéstia– seria a de passar a informação neste mercado de contratações que estamos buscando um assassino para matar Laurence e que estamos dispostos a pagar uma quantia absurda de dinheiro. Esta noticia se propagaria rapidamente e com sorte confundiria os assassinos contratados que com sorte se interessariam em saber se podemos pagar mais do que os outros já lhes estão pagando. – Genial tenente. Vê Senhor Bebéi a diferença entre um professional em investigações como Tenente Pirilo e dois curiosos como nos. Uma ideia como esta jamais passaria por minha cabeça e creio que tampouco pela sua, verdade? E como a caminhada tomou uns bons quinze minutos, Senhor Baungartem seguiu pensando em seu suposto assassinato e fazendo perguntas enquanto desacelerava a sua cadeira para não ir mais rápido que seus dois acompanhantes. – Como podemos fazer para melhor proteger nossa Laurence enquanto os assassinos professionais não entram em contato conosco. A ideia da escolta me parece boa mas imagino que si o assassino contratado é um bom professional, a proteção de um único policial certamente não seria suficiente, verdade senhor tenente? Pirilo, que já se sentia orgulhoso do respeito pelo qual o velhinho fazia suas perguntas aproveitou para exibir seus conhecimentos. – Nosso assassino, certamente não seria alguém de Santa Clara e teria de circular pela cidade para descobrir o lugar mais recomendável para tentar ataca-la. Como nossa cidade é pequena, o que deveríamos fazer seria em primeiro lugar pedir a senhorita Laurence que não circule muito e segundo, passar a informação para aqueles que sempre estão caminhando pelas ruas –e continuou– além do Senhor Bebéi que certamente vai 227 seguir passeando com seu cachorro mas de olhos atentos ao que se passa, temos os pelagatos que em algo nos podem ajudar. Temos Dioclecio que passa todo o dia na praça da Catedral, os ciganos da banda que já protegem a princesa Ishtari e não se incomodariam de proteger também a Laurence e temos os amigos de Cristina e Jordi que vivem do outro lado do rio e que sempre circulam pela cidade. Estou seguro que com todos eles atentos, rapidamente descobriremos alguém com um comportamento suspeito. E foi quando Bebéi, fez sua contribuição ao plano de proteção de Laurence. – Vou propor que ela fique com meu cachorro ao seu lado por todo o dia. Sempre que alguém tenta se aproximar de mim pelas costas, ele começa a latir –uma ideia que também pareceu interessante a Pirilo e a Baungartem Na casa de Pirilo, depois de refogar as verduras com um pouco de toicinho e depois de colocar a linguiça, o grão de bico e cobrir tudo com agua fervendo, o Senhor Baungartem seguiu com suas perguntas e reflexões. – Sua ideia de passar a informação de que estamos dispostos a pagar muito a quem nos ajude a eliminar Laurence me parece muito boa. E como faríamos para passar esta informação? –e enquanto tomavam um vinho do porto, bebida favorita de Bebéi e esperavam a sopa cozinhar Pirilo seguia exibindo seus conhecimentos: – Desenvolvemos uma boa rede de informantes quando estávamos tentando encontrar o Cuspa. Esta rede nos permite chegar a todos os centros latinos, seja na América Central, onde operam as maras, México, Colômbia e Venezuela com seus carteis de narcotraficantes, e em toda América do Sul. Temos também bons contatos em Kingston e Port of Spain para o Caribe e para Miami e os outros centros nos Estados Unidos podemos pedir ajuda a Senhora. Sua rede de informantes nos permitiu em menos de vinte quatro horas, descobrir quem eram os que tentaram invadir o apartamento de Bebéi. Para os 228 europeus podemos contar com ajuda dos amigos de Ludmilla. São anarquistas românticos mas muito bem informados. Já lhes utilizamos para obter informações do submundo europeu e temos também os russos e mesmo o magico que andou por aqui e que de assassinos professionais parece entender muito. – Excelente, vejo que com isso podemos tentar chegar aos assassinos – e foi quando o velho Baungartem comentou com uma expressão preocupada– sinto que Laurence não vai aceitar a proposta para vender a propriedade. Ela esta muito encantada com Santa Clara e isto me preocupa. E não falo pelo prefeito que é seu chefe e a quem respeito – e a Pirilo lhe pareceu mais prudente não comentar a seriedade do prefeito– mas vejo que neste projeto da Nova Santa Clara existem muitos interesses e muito dinheiro envolvido. Não entendo muito destas coisas mas imagino que para algumas destas pessoas eliminar nossa Laurence pode ser uma opção atraente. E enquanto esperavam por uma hora mais que tudo cozinhara eles seguiram discutindo os detalhes e Pirilo ate começou a fazer alguns telefonemas para colocar o plano em movimento. Pirilo não estava completamente convencido de que Laurence estava em perigo mas depois de pensar melhor estava de acordo com o velho Baungartem que era melhor ser precavido. – Agente nunca sabe – disse Baungartem. Bebéi que a tudo observava, se perguntava em silencio se era Pirilo quem estava exibindo seus conhecimentos ou se era o velhinho com seu sorriso e forma doce de falar quem estava levando Pirilo a montar todo um esquema para proteger a Laurence Pouco tempo depois chegou Laurence e eles se sentaram a mesa para desfrutar a sopa de Baungartem que segundo Bebéi estava quase tão boa como a sopa que preparava Dona Cécy 229 230 33 Os velhinhos motorizados invadem a tranquila cidade O almoço acabou por ser bem agradável pois junto com a sopa de grão de bico com linguiça, foram muitas as novidades compartidas. Primeiro conversaram sobre Arpad: – Foram tantas as coisas que fez em sua vida e aqui viveu dez anos sem ter amigos e sem que nada soubesse as coisas que fez em sua vida – e isto continuava confundindo a Bebéi. Um professor de música, que pouco saia de sua casa e que se esquecia do que estava fazendo enquanto dava aulas para Cristina. Um virtuoso violinista que se não houvesse perdido seus dedos, seria talvez um dos maiores de toda Europa. Um exilado nos campos de concentração da Sibéria resgatado por uma mulher com quem teve sonhos de melhorar o mundo e a quem viu morrer despois de lutar nas barricadas de Budapest. Um espião que trabalhou na África para o CIA, a Stasi, os cubanos e os russos e que conheceu o lado sujo da guerra fria quando os grandes países destruíram as recém liberadas nações africanas apenas para fazer prevalecer seus interesses políticos. Um vingador solitário que tomou a justiça em suas próprias mãos e fez americanos e soviéticos pagarem, ao menos em parte, pelos danos que haviam causados. Talvez um empregado burocrático de pouca expressão como dizia a Senhora mas alguém que por dez anos enganou os mais poderosos serviços secretos do mundo, Um húngaro metade cigano que apenas sonhava em tocar seu violino para alegrar as pessoas nas ruas de 231 Budapest mas que viveu em meio a amargura e terminou na solidão de seu apartamento. Como era possível que ninguém em Santa Clara soubesse quem era? Esta era a questão que intrigava a Bebéi mas não era a única. Eles já haviam descoberto o que ele tinha feito, mas ninguém ainda tinha conseguido explicar por que um dia ele saiu de seu apartamento deixando o prato, a panela e os talheres na pia da cozinha para partir sem dizer para onde. Aquela manhã, antes mesmo de ir ao mercado Bebéi tinha passado pela casa de Ilona para buscar a chave que estava escondida no quarto de Irigandi. Ele sabia que em seu apartamento a chave não estaria segura e nem na prefeitura e assim como o tenente preferiu esconder os envelopes no deposito onde Dioclecio dormia, ele também tinha decidido esconder a chave com Irigandi. Quem no mundo teria coragem para invadir a casa de Ilona e revistar o quarto da pequena Irigandi? Ao regressar com a chave e passar pelo hotel para encontrar Baungartem os dois cruzaram aquela manha com a Senhora que estava entrando no hotel com um americano que apenas havia chegado a Santa Clara. Deveria ser alguém importante pois ela mesmo foi busca-lo no aeroporto e o que mais chamou a atenção dos dois é que o velhinho também tinha uma cadeira de rodas motorizada. – Que lhe parece se lhe convidamos para uma corrida de cadeiras no calçadão? – comentou Baungartem sorrindo. No almoço enquanto comiam a sopa Bebéi recordou esta historia ao entregar a chave a Laurence. Contou também que não havia nada escrito e nem notas dentro livro de Zola. Tenente Pirilo insistiu que apenas Laurence poderia decidir se queria ou não entregar a chave a Senhora e aos russos, mas que na sua opinião seria melhor entregar, pois se não eles não parariam de pressionar. 232 Ela não respondeu. Queria pensar um pouco mais e o único a fazer uma pergunta foi Baungartem. – Em que pagina estava o pequeno envelope com a chave? – Na pagina 256 – respondeu Bebéi. – Como vocês sabem –disse o velhinho– gosto muito de livros de mistério e me pergunto se não havia no envelope, na chave ou no livro alguma indicação de que tipo de cofre ou gaveta abre esta chave. – Imagino que deve haver algum cofre secreto dentro do apartamento –disse Pirilo– e conhecendo como trabalha a equipe da Senhora não tenho duvidas de que vão encontra-lo. Imagino que esta é a chave que necessitaremos para abri-lo. – Não estaria tão seguro senhor tenente. Esta chave não parece ser de um cofre de apartamento. É uma chave bem solida que me faz lembrar estas chaves europeias de cofres públicos que tem de resistir ao tempo e a várias idas e vindas de abrir e fechar. Eles examinaram a chave mas como ali nenhum deles era um serralheiro e nem especialista em cofres Laurence preferiu encerrar a discussão: – Esperemos para ver se eles encontram algum cofre no apartamento e ai decidiremos se entregamos a chave o não. Queria aproveitar a tarde para visitar o terreno de Arpad. Ela já tinha comentado isto com Bebéi que se prontificou a levala até ali e Baungartem foi com eles. Tenente Pirilo não lhes acompanhou. Ele preferiu voltar ao seu despacho e fez todo o caminho sorrindo. Sua alegria não era apenas pela sopa de grão de bico e linguiça mas sim por Cristina, sua assistente que finalmente estava regressando a Santa Clara. Jordi estava eufórico desde o dia anterior quando recebeu o telefonema: 233 – Já terminei todos os trabalhos, conversei com os professores e todos eles me autorizaram a antecipar meu regresso. Estou com muita saudades e quero te dar ainda mais beijos do que todos aqueles que demos na noite antes de viajar. A euforia era tanta que Jordi pensou em todas as formas possíveis de sequestrar Cristina no aeroporto e leva-la para uma ilha deserta mas ao final teve de aceitar a realidade de que a mãe e os amigos, ainda que não quisessem dar tantos beijos, pelo menos tinham direito a um abraço. Cristina chegou no mesmo voo em que tinha chegado o amigo da Senhora na cadeira de rodas e Pirilo havia combinado com Jordi, que a tarde ele passaria com Cristina no seu escritório, mas o que ele não sabia era que Cristina lhe reservava uma surpresa mas esta não era agradável... pelo menos para ele. Ela entrou na prefeitura e abraçou a todos. Pirilo olhava orgulhoso pois se sentia como uma espécie de protetor de Cristina por ter lhe contratado quando ela ainda era uma estudante na universidade. Ela lhe abraçou com carinho e disse que queria que ele fosse o primeiro a saber que ela não continuaria a trabalhar na prefeitura. Pirilo ficou sem reação e ela continuou: – O compromisso que o prefeito me fez assinar foi o de que ao regressar de Boston eu me comprometia a trabalhar em Santa Clara. Foi ele mesmo quem me explicou que tinha mudado o contrato da bolsa de estudos onde dizia que eu deveria trabalhar na prefeitura, pois tinha conversado com o seu irmão e eles queriam me oferecer para trabalhar em alguns negócios que os dois eram sócios. Pois vou cumprir o compromisso que assinei e vou trabalhar em Santa Clara mas não para ele e nem para os seus sócios. Vou trabalhar com Jordi no “Realejo de Santa Clara” e vamos fazer jornalismo investigativo a nível nacional –e até provocou Pirilo– Quem sabe um dia você decide mandar o prefeito ao inferno e também vem trabalhar com agente. 234 Pirilo sorriu, pois era a única coisa que ele podia fazer ao ver toda a expressão de felicidade no rosto de Cristina, mas a verdade e que trabalhar na prefeitura sem ela não ia ser nada divertido. Cristina saiu dali feliz por estar de regresso mas estava um pouco surpresa: – Pensei que ao chegar ia encontrar a todos em barricadas defendendo a cidade e desde que cheguei ninguém mencionou a Nova Santa Clara. – É curioso –comentou Jordi– É como se todos pensassem que isso nunca não vai acontecer. Meu temor é que o dia em que descubram já seja tarde para evitar. Mas não discutiram muito mais. Ilona, que apreciava muito a Jordi e que sabia que dinheiro não lhe sobrava, tinha pago por uma noite em um pequeno hotel perto da cidade, para que os dois pudessem dar todos os beijos que queriam. Do outro lado da cidade Bebéi acompanhava Laurence e Baungartem na visita ao terreno, o que não era uma tarefa fácil pois a topografia não era a mais apropriada para uma cadeira de rodas, ainda que motorizada. Mas de qualquer forma, isso não parecia incomodar ao velhinho que sorridente se metia aos trancos e solavancos por todos os lados. Ao final das ruinas do velho forte havia uma praia com muitas pedras que terminava onde o rio desembocava. Dali a esquerda os três podiam ver o forte e a baia da cidade e a direita o mangue seguindo a costa até onde os penhascos encontravam outra vez com a mar. Podiam ver, também, depois do rio e por detrás do mangue o bairro mais pobre onde Nádia vivia. – Entendo que é exatamente aqui que vão construir o centro comercial – disse Laurence– e toda esta área onde vemos hoje o mangue e o bairro de Nádia é onde vão construir as novas torres, que pelo que escutei, já em uma primeira fase serão oito, com escritórios e apartamentos. 235 Era difícil acreditar naquele momento que tudo aquilo poderia ser verdade. Naquele momento o único que se escutava ali era o ruído das ondas batendo nas pedras e os únicos movimentos eram as folhas das arvores e o voo das gaivotas. Uma delas estava voando próxima a eles e Bebéi ate brincou: – Acho que é a nossa amiga que sente saudade do terraço. E a gaivota seguiu voando por cima do forte. Subiu bem alto no céu e depois baixou em direção a eles em um voo rasante passando bem onde estavam, quase ao alcance da mão. Seguiu voando por sobre a cidade e depois pela linha da costa seguindo o mangue e os penhascos. – Até parece que ela nos esta querendo dizer alguma coisa comentou Laurence. E enquanto seguia com os olhos a gaivota, ela pensava que seu avo tinha comprado aquela propriedade e nunca quis vende-la pois sonhava que talvez sua herdeira, a filha de Morgen quisesse viver ali. Ao regressar a cidade eles viram um helicóptero chegando e parecia ser o mesmo helicóptero em que Cavafys havia chegado com os russos. Bebéi acompanhou Laurence e Baungartem ate o hotel e depois, ao ver o grego Cavafys caminhando em direção ao heliporto do cais, decidiu segui-lo e percebeu que o capitão grego e os dois russos estavam ali para receber um outro velhinho, que pelo que se via também trazia uma cadeira de rodas motorizada. – Acho que a corrida de cadeira de rodas vai ser bem concorrida– comentou Bebéi a Cavafys que não entendeu. Cavafys explicou que o russo era um antigo chefe do grande russo nos tempos em que ele trabalhava na KGB e que estava em Santa Clara especialmente para ver os papeis encontrados no apartamento do húngaro. A primeira coisa que fez o velhinho foi acariciar o cachorro de Bebéi e depois agradecer, em um perfeito francês, por haver 236 honrado a memoria de Arpad e guardado os papeis, assegurando que tudo que lhe pertencia seria transferido a sua herdeira. – Você e um homem admirável –disse o velhinho a Bebéi que saiu dali pensando que todos os velhinhos em cadeiras de todas eram bem simpáticos. E estava tão orgulhoso pelo que havia escutado, que decidiu que aquela noite ele iria usar no peito a faixa tricolor de General da Banda Municipal de Santa Clara Frente ao Mar. 237 238 34 As recordações de Arpad voltam a parede e as cadeiras circulam pela praça Coronel Viera seguia no auge de sua paranoia. Insistia que todos estavam sendo vigiados. – Eles tem câmeras e microfones por todos os lados. Sabem tudo o que falas e ate o que pensas –explicava ele ao velhinho Baungartem que aproveitava o sol da manhã sentado em sua cadeira de rodas, estacionada na praça em frente ao hotel. O plano preparado por Pirilo para proteger Laurence já tinha sido implementado e todos estavam atentos a qualquer pessoa com comportamento estranho, mas até aquele momento não haviam novidades. Na porta do hotel o velhinho russo de cadeira de rodas motorizada lhes observava. Ele estava hospedado no mesmo hotel e pela mesma razão; naquele hotel em frente a praça ele podia entrar e sair sem incomodar a ninguém e disfrutar a tranquilidade de Santa Clara. E como uma cadeira de rodas atrai a outra o russo se aproximou de Baungartem para com ele escutar as reclamações do Coronel. – Até no confessionário da igreja das Mercedes tem microfones e nem falar dos quartos na rua das Francesas. Tudo que passa ali é gravado. Hoje já não se pode nem dar uma trepadinha em paz. Quando Coronel Viera fez uma pausa para reorganizar seus pensamentos o russo aproveitou para se apresentar. Disse que havia acabado de chegar e Baungartem que já sabia que ele era 239 da KGB se apresentou como um amigo de Laurence para que o russo entendesse que ele sabia bem por que ele estava ali. Os dois seguiram escutando a ladainha do Coronel alertando que o governo, os empresários, os comunistas, os padres e até a sua ex-mulher lhe estava vigiando vente quatro horas por dia e os dois velhinhos escutavam com ares de estar impressionados. Do terraço do hotel o outro velhinho, o americano amigo da Senhora, quando viu as duas cadeiras motorizadas na praça decidiu se aproximar. Chegou com a sua cadeira, se apresentou ao grupo e junto com os outros dois seguiu escutando o discurso do Coronel sobre a invasão da privacidade no mundo moderno. Uma predica bem apropriada pois se o russo era o ex-chefe da KGB, o velhinho americano que tinha acabado de chegar tinha sido o responsável por todas as operações do CIA na África nos tempos da guerra fria. O russo e o americano já se conheciam de nome mas nunca haviam se encontrado antes e estavam em Santa Clara pela mesma razão; encontrar e destruir os papeis de Arpad. Quando o Coronel se cansou de repetir seus argumentos e foi buscar uma garrafa para recompor as energias, os três iniciaram uma interessante conversação comparando as vantagens e desvantagens de cada uma das três cadeiras de rodas, a russa, fabricada no Paquistão, a americana fabricada na China e a alemã fabricada na Turquia e com isso passaram entretidos toda a manhã. Os três sabiam que naquela mesma manhã especialistas dos dois países estavam olhando cada detalhe do apartamento de Arpad e que se alguma coisa havia ali certamente seria encontrada. Dos três o único que tinha novidades para contar era o americano. – Descobrimos que o escritório de advogados de Miami tinha contratado os especialistas para limpar o apartamento do húngaro e evitar que se descobrissem eventuais herdeiros. Eles já tinham negociado com os árabes, uma troca da propriedade de Arpad e iam ganhar uma boa comissão. Quando souberam que as coisas do húngaro ainda estavam no apartamento mandaram 240 limpar e quando descobriram que no apartamento deste Senhor Bebéi poderiam haver documentos que levassem a herdeira, tentaram rouba-los também. Os advogados não tem ideia de quem era Arpad e nem imaginavam o que ele tinha escondido ali. Por sorte ainda não haviam destruído tudo o que levaram e conseguimos recuperar pelo menos as fotos –e completou– segunda a elegante Senhora que trabalha em nossa embaixada este senhor Bebéi tem uma memoria privilegiada e ela me garantiu que com a sua ajuda será possível colocar todas as fotos em seus lugares originais para ver se elas nos dão alguma pista que nos permita encontrar o que buscamos. O velhinho Baungartem cada vez se divertia mais com suas ferias nos trópicos. Segredos escondidos nos livros, agentes secretos do CIA e da KGB era muito mais do que tinha em Portugal e o único que não mencionou a seus novos amigos foi a existência da chave pois Laurence ainda não tinha decidido o que fazer com ela. Verdade que o russo e o americano fizeram de tudo para descobrir se ele sabia algo, mas ele resistiu bravamente aos interrogatórios e não contou nada. A única coisa que preocupou foi outra informação que tinha o americano. Os advogados de Miami tinham contado que recebiam instruções de um egípcio que se chamava El Waun. Alguém que já era conhecido dos serviços secretos não por suas ações politicas mas sim por sua total falta de escrúpulos e o americano até comentou: – Quando necessário recorre a violência e temos serias suspeitas de que não hesitaria em mandar matar aqueles que se cruzam com seu caminho. Mais tarde quando a irmã de Ishtari chegou na praça Baungartem propôs um dominó e como não tinham nada mais importante a fazer os três velhinhos em suas cadeiras de rodas e a jovem cigana, ficaram ali jogando, esperando que a Senhora chegasse com as novidades do apartamento. Ela apenas chegou mais tarde e junto com ela vinham Bebéi, Pirilo e Cristina que depois de uma noite de muitos beijos com 241 Jordi já tinha sido convocada por Pirilo em caráter de emergência para ajuda-lo a resolver o mistério do húngaro. A Senhora comentou que tinham revisado o apartamento utilizando os equipamentos mais modernos e que não haviam encontrado nada. Decididamente que não era ali que o húngaro escondia seus papeis. Confirmou o que disse o velhinho americano de que eles haviam recuperado as fotos e parte dos objetos e dos instrumentos musicais que ali estavam. Infelizmente os papeis que ele tinha em suas gavetas e que não interessaram aos ladroes e aos advogados tinham sido destruídos, mas parece que eram basicamente partituras e anotações musicais pois Arpad, o agente Z, não iria deixar importante papeis guardados em gavetas sem chaves. Bebéi aproveitou que todos estavam reunidos para perguntar se alguém sabia por que o húngaro tinha saído do apartamento sem lavar os pratos e os talheres e nunca mais voltado. E ninguém ali sabia como responder. Cristina foi a única que se atreveu a dizer algo e mencionou que em sua opinião era importante saber o que o húngaro tinha feito nas ultimas semanas antes de desaparecer: – Vocês estão tão interessados em entender o que ele fez dez, vinte ou quarenta anos atrás que não pensaram que provavelmente a razão de seu desaparecimento esta ligada a alguma coisa que passou nos dez, vinte ou quarenta dias antes do dia em que ele se foi. Ninguém comentou nada, sinal de que a jovem estava correta e Pirilo pediu que ela lhe ajudasse a investigar. Ela aceitou a condição de que a prefeitura pagasse o hotel onde havia passado a noite com Jordi por toda a semana para que ela pudesse ficar aproveitar um pouco mais, mas o que lhe preocupava não eram os papeis do húngaro e sim o futuro da cidade. Assim que terminou o encontro na praça ela foi ao encontro de Jordi que estava na casa de Carmela trabalhando no novo numero do “Realejo” e Cristina depois de contar a boa 242 novidade da semana adicional que havia conseguido já começou a disparar sua energia: – Temos que fazer alguma coisa e rápido. De nada nos serve fazer um jornal se não temos uma cidade onde vende-lo e estou impressionada com a passividade de todos. Junto com Jordi também estava Gigi que ajudava com o artigo central e Nádia que também estava entusiasmada com a ideia do jornal e era responsável por toda parte de ilustrações e diagramação. Ela até tinha levado uma prima para ajudar. A prima era mais jovem, tinha uns dezesseis anos e tinha andado envolvido com drogas. Pelo que Nádia contava “por todo o entusiasmo gerado pelo Realejo,” ela apareceu para viver em sua casa e tentar a reabilitação. Já estava a quase uma semana e como Nádia dizia com orgulho; estava completamente limpa – Não é que a gente de Santa Clara seja passiva –comentou Gigi– o que acontece é que todos estão paralisados pois ninguém sabe o que fazer e ainda pior, acham que nada pode ser feito para impedir os planos do prefeito. Cristina decidiu aproveitar para caminhar um pouco pela cidade: – Vejo que Santa Clara se modernizou na minha ausência. Não temos as gangs de motocicletas dos Estados Unidos mas percebo que já temos nossa gang de cadeiras de rodas passeando pela praça –brincou antes de sair. Começou seu passeio por uma visita a Grená que a atualizou em todos os principais rumores da cidade. Grená sempre repetia a que Cristina era a pessoa mais inteligente que vivia por ali e estava feliz por tê-la de volta. Depois de conversar com Grená ela foi ate a praça e convidou Dioclecio para dar uma volta pela cidade. Ela sempre se sentia em paz quando caminhava junto a ele. Fizeram uma visita ao Cholo e depois comeram uns pasteis na janela do apartamento de Laís. Ali ela percebeu que todos na cidade estavam atentos a qualquer movimento estranho e ao final do dia já se sentia outra vez completamente em casa na cidade. 243 No apartamento do húngaro Bebéi e Laurence ajudavam a recolocar as fotos na parede. Cento e nove para ser bem preciso. Laurence estava feliz, não apenas pelas fotos como também pelas mascaras, pois quando chegaram as caixas recuperadas em Miami, ali também estava toda a coleção com as trinta e dois mascaras africanas que Arpad tinha penduradas na parede do apartamento. Como combinado, a Senhora tinha mandado sua equipe pintar o apartamento nas cores escolhidas por Laurence e enquanto eles colocavam as fotos na parede outra equipe colocava novos carpetes e cortinas. Colocar as fotos acabou por ser uma tarefa mais fácil do que imaginavam pois pela lembrança de Bebéi eles descobriram que elas estavam colocadas na parede da sala de jantar desde as mais antigas a direita no chão ate as mais recentes no alto a esquerda. Algumas nãos seguiam a ordem cronológica e eram fotos especiais que estavam colocadas com maior relevo em outras partes do apartamento. A foto mais antiga de Lali dançando nas ruas de Budapest. Uma foto de Eszter sorrindo em Berlim e uma foto de Morgen com a roupa caqui que segundo Laurence ela sempre utilizava quando viajava pelas montanhas. Por detrás de Morgen se via um lago que segundo Laurence era o Lago Kiwu na fronteira do Congo com Burundi e Ruanda. – As três grandes mulheres de sua vida – disse Bebéi– e agora você tem de colocar uma foto sua pois você é a quarta grande mulher da vida de Arpad. Na parede da sala de jantar haviam fotos de seu pai ao lado de alguém que parecia ser muito importante e que provavelmente era Horthy e fotos de uma criança em traje de gala que parecia ser Arpad, tocando violino em um palco elegante que segundo o velho Baungartem que foi levado ate o apartamento graças a ajuda dos guarda costas da Senhora, era do Teatro Nacional de Budapest. Fotos de soldados nazistas nas ruas de Budapest e fotos dos soviéticos quando invadiram a cidade. Uma foto de Eszter com Arpad frente a uma pequena cabana em meio a neve que pelas roupas e pela expressão enferma de Arpad foi tirada 244 quando de sua liberação de Kolima. Fotos de Berlim destruída pela guerra e da família Binder, onde se via Eszter e uma senhora mais velha que provavelmente era sua mãe. Varias fotos de amigos em Berlim e de uma jovem que pela outra foto que Bebéi havia visto parecia ser de Tamara um pouco mais jovem. Fotos de Argel, a cidade de seu pai que Bebéi nunca conheceu e uma foto de Arpad em uma praça com varias autoridades do governo e onde Bebéi insistia que aquela pessoa que aparecia ao centro e que não se podia reconhecer bem pela foto era seu pai. Fotos do Congo e segundo explicou Laurence, algumas eram de Kinshasa, outras de Kisangani e outras de alguns lugares nas montanhas do Congo. Havia uma foto no Congo onde Arpad aparecia ao lado de um senhor careca de terno e gravata que o velho Baungartem jurava que era o Che Guevara. – Só não tem uma foto do tal de Otto que consegue ingressos em partidas de futebol e matriculas nas escolas – brincou Bebéi. – E como você queria que tivesse –respondeu também brincando o velhinho Baungartem– se ele era um agente secreto da Stasi, não podia deixar se fotografar. Recompuseram o apartamento, examinaram cada detalhe de cada uma das fotos mas foi muito pouco o que descobriram de novo ali. Pelo menos a memoria da vida de Arpad, nas fotos, e nos livros estava outra vez de regresso ao apartamento que agora era de Laurence. – Falta colocar aqui na sala uma foto da gaivota –disse Laurence– pois foi ela quem me trouxe aqui. 245 246 35 Finalmente Cristina descobre por que o húngaro se foi sem avisar Cristina sempre foi a assistente preferida de Tenente Pirilo e foi por isso que ele lhe pediu que investigasse os últimos dias do húngaro para tentar descobrir porque ele se foi deixando os pratos na pia. Ela ia sair da prefeitura e trabalhar no jornal mas ele sabia que ela não poderia recusar este ultimo pedido. E mais ainda com uma semana de hotel para celebrar seu regresso com Jordi. A primeira coisa que fez Cristina foi conversar com Carmela que era a diretora da escola nos tempos em que o húngaro era seu professor e maestro na orquestra Pelo que Carmela recordava o húngaro lhe avisou alguns dias antes de terminar o período escolar que não voltaria a dar aulas no ano seguinte. Cristina, também recordava que foi mais ou menos na metade daquele ano que ele decidiu interromper os ensaios da orquestra e foi com estas informações que ela começou a construir um cronograma dos últimos dias antes do desaparecimento de Arpad: Junho - suspendeu os ensaios da orquestra; Novembro – informou a Carmela que ia parar com as aulas. Com o escritório de advogados que desde que a Senhora e seus amigos passaram a pressiona-los faziam tudo o que lhe pediam, ela descobriu que a ultima visita que Arpad fez ao escritório foi na quinta feira dia 12 de dezembro de 1996. Por ultimo, pelos registros da companhia de luz, seu ultimo consumo de energia foi naquele mês de Dezembro. A partir de Janeiro, os registros 247 não indicavam mais consumo de energia no apartamento e ela anotou: Visitou ao escritório de advogados 12 de Dezembro e desapareceu entre 12 e 31 de Dezembro. Algo que Cristina recordava bem é que algumas vezes ele parecia esquecer o que estava fazendo no meio da aula. Será que ele estava doente? O medico que o atendia já estava morto. Seu filho tinha seguido com a clinica e herdado todos os registros de pacientes do pai. Encontra-los foi um pouco complicado pois o filho tinha todo o arquivo antigo guardado em um deposito, mas com a ajuda da Senhora que se colocou a disposição para ajuda-la, eles revisaram os arquivos e encontraram o prontuário medico de Arpad que indicava que no mês de Julho daquele ano o medico recomendou uma serie de exames pois suspeitava que ele estava com Alzheimer. Ao inicio de Novembro foi a ultima visita ao medico que confirmou o diagnostico: “A recorrência da perda de memoria é maior o que indica uma rápida progressão da doença. São visíveis os sinais de oscilações de humor o que parece indicar que em breve devera apresentar os primeiros sintomas de demência” Com estas informações não era difícil entender o que passou. – Tudo o que teu avô guardava com ele era a recordação dos momentos que havia vivido –disse ela a Laurence– provavelmente por isso é que ao perceber que a memoria lhe estava desaparecendo colocou as fotos na parede de uma forma organizada e guardou suas notas arquivadas nos vinte seis livros que tinha na estante. Foi a forma que encontrou para tentar lutar contra a perda de memoria e também uma forma de deixar todas as informações organizadas no caso em que a filha de Morgen um dia decidisse procura-lo. O que de certa forma se confirma com o que ele escreveu no livro de Xingjiang “meu ultimo livro…de que me serve seguir lendo.” Tanto tempo havia passado que era impossível comprovar, mas o que dizia Cristina parecia estar bem próximo a verdade. 248 – Foi quando ele visitou o escritório de advogados e deixou tudo organizado, o que parece indicar que ele tinha a esperança de que algum dia um herdeiro poderia aparecer, pois ate uma propriedade ele tinha comprado e guardado para ela ou ele. Organizou tudo para que ninguém soubesse de sua morte e deixou tudo a espera de que seu herdeiro aparecesse – e complementou– Quando finalmente reuniu a coragem necessária, saiu do seu apartamento, desconectou a eletricidade e se foi a algum lugar para morrer. Provavelmente no mar e de alguma forma seu corpo nunca aparecesse, para que ninguém nunca soubesse de sua morte. Baungartem também comentou: – Ele provavelmente sabia que existias. Entre as fotos que aparecem do Congo e que vimos na parede do apartamento tem uma onde aparece teu pai e você sabe que teu avô nunca chegou a conhecer o teu pai. Ele sabia que Morgen se casou e talvez sabia que ela tinha uma filha, mas nunca reuniu a coragem necessária para ir ate Kisangani pois sabia que Morgen nunca lhe perdoou pelo que fez. Segundo o que nos contou a Senhora, os recursos que obtinha com a sua chantagem eram em parte enviados para a Fundação que tua mãe criou e pelo que você mesmo contou, foram estas doações, que agora sabemos foram de Arpad, que permitiram que a Fundação seguisse com seu trabalho. Ele comprou aquele terreno para você mas nunca teve coragem para regressar a África para e encontrar-te e por isso morreu sozinho. Pena que ele se foi antes de receber tua carta pois certamente teria regressado a Kisangani, mas isto já não importa pois graças a Bebéi e a gaivota pelo menos você chegou a tempo de conhece-lo melhor. Laurence apenas escutou. Ela não conseguia mais falar e queria apenas caminhar sozinha pelo calçadão e olhar as gaivotas voando no céu. E se para alguns o importante era conhecer os segredos de Arpad, para outros a grande preocupação eram os planos do prefeito e Cristina teve de deixa-los para encontrar com Jordi e 249 ajuda-lo com os últimos detalhes do terceiro numero do “Realejo de Santa Clara”, já que a ideia era apresenta-lo aquela mesma noite no encontro que teriam na pizzaria de Frei Bernardo. O artigo principal tinha sido escrito por Jordi com a ajuda de Gigi e tinha um titulo bem provocador “Estão roubando a tua agua” e contava os planos ainda secretos da nova represa que seria construída para reter as aguas do rio antes que elas chegassem a cidade. Gigi é quem havia descoberto todo plano. – Como é possível que nos novos planos da cidade o rio desaparece? –foi a pergunta que fez a Jordi e a partir dai os dos descobriram o que tramavam o prefeito e seus sócios. Os apartamentos, as oficinas e as lojas da nova Santa Clara necessitariam de muita agua e aproveitando-se disso o prefeito outorgou a uma empresa francesa, da qual obviamente ele e seu irmão também eram sócios, a concessão para construir uma grande represa, armazenar a agua do rio e distribui-la a toda cidade incluindo os hotéis e as mega-torres da nova Santa Clara. O artigo descrevia com ilustrações desenhadas por Nádia onde seria construída a represa, a estação de bombeio e explicava como os novos encanamentos levariam a agua que passava pelo rio para distribui-la pela cidade. Contava também que toda agua que estava desembocando no mar como agua limpa passaria a ser jogada ao mar sem nenhum tratamento como aguas residuais dos esgotos dos apartamentos e escritórios. Um plano que permitiria aos investidores árabes construir o centro comercial onde passava o rio, asseguraria agua que necessitavam as novas construções e garantiria uma quantidade absurda de dinheiro para o prefeito e seus sócios no projeto com os franceses que teria o monopólio da distribuição de agua potável em Santa Clara Frente ao Mar. Apenas não tratariam as aguas antes de joga-las ao mar pois isto reduziria a rentabilidade do investimento. 250 O jornal também trazia, como cidadão destacado a Dioclecio Bergantin, que depois de Laís e do Cholo, tinha sido escolhido por uma razão muito especial; além ser conhecido e querido por todos, o filosofo que caminhava pela cidade e alimentava seus gatos no banco da praça, já havia recebido a notificação para abandonar o deposito onde dormia com seus gatos pois seria exatamente com a construção dos novos banheiros públicos que o prefeito daria o inicio a construção da nova cidade. Dioclecio não havia contado a ninguém pois ainda não tinha decidido o que fazer e foi quando Jordi distribuiu “O Realejo” na pizzaria com a noticia do inicio das obras que todos começaram a entender que a Nova Santa Clara era uma catástrofe iminente. E aquele não era o único sinal. Grená havia descoberto que eles iriam utilizar a área do calçadão onde estava o banco em que a Passarinho dormia para a partir dali iniciar as obras da nova marina. O prefeito já tinha combinado com a freira da creche infantil que a Passarinho teria uma cama ali, mas ninguém tinha conversado com ela. – Duvido muito que ela queira sair do calçadão – dizia Rasta– desde que me lembro, quando ainda era criança, que ela sempre dormiu ali. Dona Cécy também apareceu na pizzaria aquela noite. Todos estavam surpresos por vê-la participando destes encontros e imaginavam que alguma razão ela deveria ter Ela explicou que alguns engenheiros tinham visitado o casarão abandonado em frente a sua casa e quando ela lhes perguntou, eles contaram que o casarão seria utilizado como dormitório para os trabalhadores e engenheiros e que os quatro irmãos ciganos teriam de sair dali. – Como é possível –preguntou Frei Bernardo lembrando em segredo que foi ali que pela primeira vez que ele e Gigi se amaram. 251 – E a velha que inventa historias e também vive ali?– perguntou Grená atônita– sem ela Santa Clara não terá mais historias para contar. Lamentaram, reclamaram, discutiram e ao final saíram todos frustrados pois não havia nada que pudessem fazer. Podiam seguir fazendo oposição ao projeto, mas não tinham como detêlo. Os investidores já tinham comprado todos os terrenos e os que resistiam estavam sendo desapropriados pela prefeitura. Os planos e desenhos estavam prontos e os investidores haviam conseguido todo o financiamento necessário ao projeto. A nova cidade era quase uma realidade a única alternativa parecia ser a de resignar-se a conviver com ela. Robespierre não estava de acordo e em sua loucura propunha recorrer as armas, no que era apoiado por Frida e pelo Coronel Viera. Moriarty o eterno pacifista, propunha que uma delegação fosse tentar convencer o prefeito. Nullo e Dioclecio estavam calados pois não sabiam o que fazer e a Passarinho apenas sorria, pois isso era o único que ela sempre soube fazer em toda a sua vida. Sentado em uma das mesas da pizzaria Bebéi perguntava a Ilona: – Será que ainda vou poder passear com meu cachorro pelas ruas? –E foi Gigi quem respondeu lembrando que seriam tantos os veículos que provavelmente eles iriam restringir as horas para passeio com cachorros, assim como tinham feito nos tempos da invasão da quarta frota americana. – Sempre podemos ir viver com minha família no Nebraska – disse Paul– e Ilona lhe olhou com tal expressão de ódio em seus olhos que certamente depois daquela noite ele nunca mais ousou repetir o convite. 252 253 36 O prefeito contra a parede e nas ruas todos buscam os assassinos. – Você é a única que ainda pode fazer alguma coisa– dizia o velhinho Baungartem a Laurence enquanto conversavam no quarto de hotel– Já sabes quem era teu avô e como ele se preocupou em deixar algo aqui te esperando. Se queres ficar tens um apartamento onde viver e uma conta com muito dinheiro no banco. Se queres partir, partiras rica pois certamente os investidores vão pagar o preço que queiras pelo terreno. Laurence sabia o que queria. Ela se sentia feliz em Santa Clara. Em Kisangani sua avó tinha acabado de partir e seu pai sabia que ela não pensava mais em viver ali. Por algum tempo pensou viver em Santa Clara e chegou a confidenciar isto a Bebéi mas agora a cidade também ia desaparecer, ou será que ela poderia fazer algo para salva-la? – Conheci teu avô e sei como ele pensava –disse Baungartem e antes de dizer qualquer coisa mais, foi com ela ate o banheiro onde abriu o chuveiro as duas torneiras e até acionou a descarga enquanto falava. Laurence entendeu pois já conhecia a paranoia de seu velho amigo com os microfones – Esta chave não é de um cofre qualquer. É a chave de um dos cofres da agencia postal que esta em frente ao estádio de futebol Ferenck Puskas em Budapest. Era ali que teu avô Arpad e tua avó Eszter tinham uma caixa postal e era ali onde Lali, a cigana que vivia nas ruas, guardava tudo que tinha de importante. O numero da caixa teu avô te deixou. O pequeno envelope com a chave estava na sexta parte do capitulo quarto de Germinal, na 254 pagina 256. Os papeis que ele escondeu estão ali na caixa numero 6-4-256. Ninguém nesta cidade pode parar este projeto, mas tens algo em tuas mãos que querem muito russos e americanos e é tua a decisão do que fazer com esta chave. Se queres partir com o dinheiro podes e ninguém nunca vai saber desta nossa conversa, mas se queres, podes utilizar a chave e os papeis para parar o projeto pois nenhum prefeito e nenhum investidor podem resistir se colocamos os russos e os americanos do teu lado. Laurence não precisou pensar muito. Ela queria viver em Santa Clara. Ela acreditava que foi a gaivota com o espirito de seu avô que lhe foi buscar em Kisangani e era isto que o voo das gaivotas lhe confirmava todos os dias quando caminhava pelo calçadão. Ela amava a cidade do jeito que ela era, com suas praças, sua gente e sua tranquilidade e não queria uma nova cidade com torres, centros comerciais, autos e pessoas apressadas cruzando por todos os lados. – A única pessoa apressada aqui é a Passarinho e é assim que tem de ser –disse ela sorrindo. Baungartem explicou como ela poderia fazer e no dia seguinte ela se reuniu com os dois velhinhos motorizados e colocou as suas condições. – Vocês me ajudam a convencer o prefeito a abandonar o projeto da Nova Santa Clara e eu lhes entrego a chave e lhes conto onde estão os papeis escondidos de Arpad. Os americanos e os russos também não tiveram muito o que pensar. Consultaram as autoridades dos dois países e naquela mesma tarde confirmaram que aceitavam as condições. – Tem coisas que é melhor deixa-las esquecidas no passado– disse o velhinho americano e o russo concordou. A Senhora foi a escolhida para conversar com o prefeito mas ele resistiu. Era muito o dinheiro que ele ia ganhar com o projeto. Ela ameaçou mostrando os números das contas que ele tinha em 255 Grand Cayman e lembrou que elas poderiam ser bloqueadas em uma investigação de lavagem de dinheiro. – Mas tudo isso será esquecido no caso de uma decisão positiva do prefeito –e ele entendeu muito bem o que ela queria dizer. O prefeito sabia que estava contra a parede mas não ia desistir. Era muito o dinheiro que ele ganharia com aquele projeto e o que necessitava era tempo pois ele, e especialmente a Sérvia que lhe assessorava, sabiam que a Senhora não conseguiria manter a pressão por muito tempo. – No fundo são burocratas e por mais que queiram fazer as coisas a sua maneira vão ter de lidar com as pressões e o tempo joga a nosso favor. Se consegues resistir uma ou duas semanas eles vão perder força –foi o conselho da Sérvia. As coisas se complicaram ainda mais quando os assistentes da Senhora explicaram aquela tarde como andava o plano de proteção de Laurence. – A boa noticia é que a estratégia funcionou e os que foram contratados para eliminar Laurence entraram em contato querendo saber se pagamos mais, mas estão desconfiados. A má noticia é que o acordo não foi feito com um profissional mas sim com todo um grupo; uma gang hondurenha de San Pedro Sula. A gang é grande e na maioria são jovens viciados em drogas, dispostos a fazer qualquer coisa por dinheiro. São especialistas neste tipo de trabalho. Normalmente atacam com dois na motocicleta e o que esta sentado atrás dispara e fogem rapidamente. Não temos forma de para-los, o que vamos fazer é aumentar a vigilância sobre os principais membros do grupo mas já lhes aviso seria impossível evitar que algum deles consiga entrar em Santa Clara. E a outra é controlar as motocicletas nos lugares onde a Senhora Laurence esta. A informação causou uma grande preocupação e provocou uma reunião de emergência ainda naquela mesma noite e a reunião foi ali na praça da catedral que estava vazia e era o único lugar 256 onde os três velhinhos podiam chegar facilmente com as suas cadeiras motorizadas. – O Senhor Baungarten tem razão –disse o russo– com nossos acordos transformamos Laurence em um alvo fundamental para os que querem o projeto. Agora a única alternativa para que eles possam manter a esperança do projeto é elimina-la para que a propriedade possa ser transferida aos investidores sem a necessidade de um desapropriação e o prefeito vai tentar ganhar tempo e tempo é o que não temos. E todos começaram a dar suas opiniões. Tenente Pirilo ainda seguia pensando que a ideia de proteger Laurence era uma paranoia e insistia que conhecia os investidores e eles não eram assassinos e foi a Senhora quem lhe respondeu: – Os investidores não são assassinos. Para eles é indiferente onde ganham o seu dinheiro e se não podem fazer este projeto aqui eles vão investir em outro lugar, mas pelo que nossos informantes confirmaram, este egípcio El Waun estava comprometido com os árabes em fazer o projeto de Santa Clara e se o projeto não vai adiante é ele que ficara com a responsabilidade pelo fracasso o que significa perder muito dinheiro e ter a sua reputação bastante afetada –e acrescentou– Todo indica que foi ele quem contratou este grupo de assassinos. Todos que estavam ali reunidos, começando por Bebéi estavam de acordo que era melhor levar Laurence para outro lugar, mas não conseguiram convence-la. – Estou tranquila pois aqui, o cachorro de Bebéi e a gaivota me protegem vinte quatro horas por dia –um argumento que certamente não convencia a ninguém mas que teve de ser aceito, pois ela foi definitiva em dizer que não deixaria Santa Clara até que tudo estivesse completamente resolvido Com a insistência de Laurence, o velhinho Baungartem propôs outra alternativa. 257 – O que devemos fazer é eliminar esta pressão sobre Laurence e pelo que entendo os advogados tem uma procuração para vender ou transferir a propriedade que iriam utilizar para fazer a troca do terreno de Arpad por um outro terreno fora da área da nova cidade. O que podemos fazer então é transferir um metro quadrado bem no centro da propriedade para o governo americano e outro para o governo russo. Com isso colocamos os dois governos como sócios da propriedade e impedimos a desapropriação. A proposta foi imediatamente rechaçada tanto pelos americanos como pelos russos. – Isto implicaria em uma burocracia absurda e nos tomaria meses, talvez anos para obter todas as autorizações necessárias dos dois governos –foi o que disse a Senhora com firmeza e tanto o velhinho russo quanto o americano confirmaram que estavam de acordo com ela. – Que pena –comentou Senhor Baungartem olhando a Laurence e dando sinais de que estava pronto para sair dali– Se em quarenta e oito horas não temos estes dois metros quadrados legalmente transferidos para os dois governos, me parece que a melhor alternativa será entregar a chave a um grande jornal internacional –e complementou– e agora sou obrigado a lhes abandonar pois tenho uma partida de xadrez com minha amiga a jovem cigana. Acionou o motor de sua cadeira e foi para o outro lado da praça onde estava a mesa de xadrez e Laurence foi com ele. Estava já nas jogadas iniciais de uma Defesa Alekhine com a jovem cigana quando a Senhora lhe alcançou com uma expressão tensa mas ao mesmo tempo elegante: – Ok, não se preocupem e não façam nada pois em quarenta e oito horas as dos transferências estarão concluídas. Laurence sorriu orgulhosa com os resultados da estratégia do velhinho. No banco ao lado, Dioclecio que observava a partida também sorriu. Apenas o velhinho não sorria pois a jovem 258 cigana estava tentando uma variação onde estava colocando pressão sobre seus peões mais avançados. Os dois velhinhos com suas cadeiras de roda se acercaram para ajudar Baungartem e como tudo parecia estar tranquilo o cigano da sanfona aproveitou para tocar uma nostálgica canção cigana. Bebéi a tudo observava enquanto aproveitava para acariciar seu cachorro. Naqueles dias eram poucas as oportunidades que tinha para estar com ele pois o cachorro estava fazendo a guarda de Laurence. Passava o tempo todo com ela e ate dormia no hotel. Por instruções especificas e Bebéi não podia deixar Laurence sozinha nem um só minuto e tinha de prestar atenção nas motocicletas, o que não era um problema pois ele odiava motocicletas. – Isto é muito importante –e foi Dioclecio Bergantin quem comentou com ele– os assassinos já devem estar na cidade e provavelmente ainda não sabem do acordo que fizeram. Pirilo, que não acreditava na paranoia dos velhinhos, mas que também não acreditava que o cachorro e a gaivota eram uma proteção suficiente, colocou dos guarda costas ao lado de Cristina e passaram a checar documentos de todas as motocicletas que entravam na cidade. – Motocicleta com alguém na garupa, não entra e ponto – instruiu Pirilo aos seus assistentes. – ¿Seria isso suficiente para protege-la?–preguntou Bebéi. – Melhor continuar com os olhos bem abertos– respondeu Dioclecio que seguia atento a tudo o que acontecia na praça– eles podem vir de motocicleta ou podem vir caminhando com alguma arma escondida E o sistema de proteção parecia funcionar mas chegou a criar uma certa confusão nos dias em que se seguiram. Eles combinavam una tecnologia sofisticada que permitia acompanhar o movimento de qualquer pessoa de uma câmera a outra instalada na cidade, com um sistema de prevenção coordenado pelos ciganos da banda que incluía os pelagatos e a 259 vários dos jovens que viviam do outro lado do rio que estavam contra os planos do prefeito e solidários em defender a Laurence. Os que vigiavam as ruas estavam atentos a comportamentos estranhos mas nem sempre sabiam diferenciar quem deveriam e quem não deveriam vigiar. E foi assim no domingo quando o arcebispo chegou para a missa e para suas visitas dominicais. O filho da Passarinho, que também estava em alerta, foi o primeiro a suspeitar de um homem com roupa escura que parecia estar observando Laurence na praça e avisou a Dioclecio que avisou aos outros. O suspeito olhou para ela três vezes o que não deveria chamar a atenção pois todos os homens olhavam três vezes para Laurence quando ela passava, mas o curioso é que depois que ela entrou no hotel, ele ainda ficou por ali como que esperando alguém. Mais tarde quando a missa terminou e o Arcebispo saiu caminhando ate a casa da esposa do prefeito que todos os domingos servia em sua casa refrescos e biscoitos para ele e para suas amigas católicas, e o homem vestido de terno escuro seguiu ali sem nenhuma razão aparente. Quando Laurence regressou a praça o suspeito olhou para ela outra vez e permaneceu sentado em um dos bancos em frente ao hotel. Dioclecio foi ate ali sentou-se ao seu lado tentou puxar uma conversa mas o suspeito evitou conversar. Ai foi Priscilia, o cabeleireiro amigo de Jose Princesa, que ao passar por ali reconheceu o suspeito dos tempos da Gata Caliente, o cabaré maldito do porto. – É uma pessoa estranha, sado masoquista, mas muito violento com quem saí uma vez e nunca mais. Nenhum dos travestis do cabaré queria sair com ele e depois de um tempo ele desapareceu. Agora esta ai na praça de terno e gravata preta. Muito estranho –e foi isto que foram contar a Pirilo que pelas duvidas colocou um policial para vigia-lo. A suspeita aumentou quando perceberam o suspeito se aproximando de uma casa atrás do hotel de Laurence e ainda 260 pior quando ele entrou na casa que pertencia ao Comendador Ernestino, por uma entrada meio escondida na rua de atrás. O policia avisou rapidamente a Pirilo que foi direto a casa do Comendador, um homem viúvo e muito religioso, que se surpreendeu com sua chegada e ate tentou evitar a entrada de Pirilo em sua casa. A confusão que se formou ali foi enorme e nunca foi explicada. O único que se soube ao certo é que o arcebispo também estava naquela casa “descansando depois da missa” e as explicações sobre quem era o suspeito e o que ele estava fazendo ali nunca foram muito claras. A versão oficial era a de que o arcebispo havia passado mal e o suspeito era um enfermeiro que foi ali medica-lo. Uma historia que ninguém acreditou mas como o suspeito certamente não estava ali para matar Laurence, Pirilo achou melhor deixa-lo ir e esquecer o que tinham visto. – Melhor que seja com um sado masoquista que com os meninos da primeira comunhão –dizia a todos Grená que claramente não tinha nenhuma simpatia pelo arcebispo desde que ele expulsou Frei Bernardo da igreja. O outro problema foi com a equipe que seguia as câmeras, pois com o sofisticado sistema que o irmão do prefeito havia comprado eles podiam seguir uma pessoa passando de uma a outra. E foi quando um dos assistentes percebeu que havia uma mulher vestida com roupas de homem caminhando pela rua da embaixada chinesa com óculos escuros e chapéu. – E como você percebeu que era uma mulher –perguntou Pirilo e a resposta do assistente foi rápida– Não entendo estes sistemas modernos, mas entendo de bundas. E aquela bunda não é bunda de homem. O que se confirmou mas adiante quando uma câmera melhor colocada permitiu a identificação e a bunda era de Minda, a amante finlandesa do prefeito. Pirilo ao perceber pensou em interromper a vigilância, mas pelo que explicou depois, como eram muitos os técnicos que estavam ali trabalhando, lhe pareceu melhor não explicar quem era Minda. Uma historia que 261 convenceu a equipe do prefeito mas que não convenceu a Clara que ria ao escutar a historia. – Já entendi, deixaste para ver com quem Minda ia transar. E me conte com quem era? Não vai me dizer que...– e parou de falar rindo. E Pirilo confirmou sua suspeita e Clara riu as gargalhadas ao saber que ela entrou no apartamento do Negro Zen, seu exesposo, de onde saiu muito cansada e bem relaxada duas horas depois. Como podem imaginar não foi exatamente um sorriso o que se viu no rosto do prefeito quando lhe contaram quem era e o que fazia a nova suspeita. Mas mal ou bem o sistema de vigilância estava funcionando e eram muitos os olhos abertos protegendo a Laurence. Cada um na cidade se concentrava em suspeitos diferentes. Os ciganos cuidavam dos turistas. O cigano da sanfona insistia que a melhor forma para um assassino professional se aproximar de Laurence era disfarçando-se como turista e Robespierre desconfiava das equipes de coleta de lixo e passava em revista cada uma das equipes de coleta que chegava na cidade. Frida, por alguma razão que ninguém entendia passava os dias vigiando a ponte, na entrada do bairro onde vivia Nádia e aproveitava para ficar ali no mesmo guarda sol que ela dividia com sua prima que seguia em recuperação e ajudava com a manivela do realejo. O único que por alguma razão não gostou muito foi o cachorro de Bebéi pois o dia em que Laurence foi ate lá, o cachorro começou a latir e a forçou a regressar a praça. Alguns diziam que ele latiu por sentir que havia ali algo que preocupava a Frida, mas pelas duvidas, Bebéi insistiu com Laurence que ela não deveria mais ir por aqueles lados. Ainda assim o velhinho Baungartem seguia preocupado: – O assassino vai chegar exatamente por onde não estamos esperando e é assim que temos de pensar. 262 37 E ainda que antiga, Santa Clara segue serena frente ao mar. Depois que as duas embaixadas lhe informaram oficialmente da transferência dos dois metros quadrados do terreno de Laurence para os dois países o prefeito decidiu desistir e foi ele mesmo quem anunciou a suspensão do projeto. E como tudo o que fazia, fez de uma forma neo revolucionaria com uma transmissão ao vivo da praça da Catedral, cercado por algumas crianças onde ele anunciou em lagrimas que tinha decidido suspender o projeto. – Sei que este projeto iria trazer mais progresso e riqueza para alguns mas sei também que os principais beneficiados seriam os empresários e os banqueiros de sempre e que a gente desta cidade, com quem cresci, não seria beneficiada pela nova Santa Clara. As torres e os centros comercias seriam para os outros e não para nossas crianças. E é nossa obrigação assegurar o seu futuro. Temos de lhes entregar uma cidade onde possam viver tão bem como a cidade que nos entregaram nossos pais e é por isso que vamos suspender imediatamente o projeto da nova cidade e com os recursos que temos, ainda que limitados, vamos fazer obras que beneficiem a todos os que vivem aqui. Como o prefeito era um grande artista quando discursava, as pesquisas de opinião feitas por sua equipe na semana seguinte, chegaram a indicar noventa por cento de aprovação, o que lhe assegurava uma nova reeleição fosse quem fosse o candidato da oposição. 263 O único que lhe incomodou foi que por mais que tentasse ele não conseguiu ser convidado para a festa de despedida do “Castelo da Ladeira” que por muitos foi considerada como a festa do enterro da Nova Santa Clara. O Castelo guardava importantes recordações para todos. Ilona junto com Frida e mais dos amigas, foram as que montaram aquela casa muitos anos antes como a primeira casa de mulheres independentes da rua das Francesas rompendo o controle que os homens exerciam sobre o trabalho das mulheres. Ali eram elas as que trabalhavam mas também eram elas que decidiam, controlavam o trabalho e ficavam com todo o dinheiro arrecadado. As mulheres que fizeram a historia do Castelo já a tempos não trabalhavam na casa, porem eram muitas as lembranças e por isso a festa de encerramento era um evento tão especial. Os rumores diziam que quem havia comprado era a cubana que tinha acabado de chegar e que era uma das duas sócias que abriram o Castelo com Ilona e Frida e que depois de passar um tempo vivendo na Europa, regressava viúva e rica a Santa Clara com planos que eram um mistério para todos. A festa foi no dia seguinte ao anuncio do prefeito e tinha algumas regras especiais. Era uma festa das mulheres e apenas para elas. Homens somente entravam com convite pessoal de alguma das mulheres amigas do castelo e foram poucos os que tiveram esta honra. Bebéi entrou junto com Paul e Cavafys, os três acompanhando Ilona que estava exuberante como nunca. Dioclecio foi invitado por Dona Cécy que antes de ser a cozinheira do Café de Ilona cuidava da limpeza do Castelo. Os pelagatos, Nullo, Robespierre, Coronel Viera e Moriarty entraram como convidados de Frida e Rasta Bong foi convidado por Ludmilla e sairam no meio da festa para ir ao hospital e dar a luz a sua filha. A Anã Chinesa veio especialmente de Hong Kong para a celebração e junto com ela chegou de surpresa o Grande Chefe Russo que segundo Grená não veio por causa da festa mas sim 264 para conhecer sua neta. Os três velhinhos das cadeiras de rodas foram convidados pois não havia ninguém em toda a cidade que não estivesse encantado com a simpatia dos três. Frei Bernardo entrou com Gigi. Cristina e Jordi foram orgulhosos acompanhando suas mães que tinham trabalhado por muito tempo na casa e até Arcádio foi convidado pela Passarinho que estava ainda mais sorridente. Jose Princesa entrou como convidado de Lola Marlene com um vestido colorido que chamou a atenção de todos na festa. Todos menos o prefeito que não foi convidado, apesar de ter deixado muito do seu dinheiro ali com as mulheres. Quais eram os planos da cubana e que pensava ela fazer com a casa apenas Ilona sabia e a verdade é que isso pouco importava aquela noite. O que queriam todos ali era beber e dançar, mas curiosamente Frida estava completamente sóbria. Pirilo era dos poucos que sabiam a razão. Frida estava muito desconfiada. Ela havia tomado bem a serio a ideia de proteger a Laurence e a ninguém queria dizer de quem suspeitava. – Não tenho provas, apenas suspeitas. Pirilo já não tomava em serio quando alguém lhe vinha falar de novos suspeitos, pois cada um na cidade tinha o seu e a verdade é que para ele toda aquela historia de matar a Laurence ainda parecia uma paranoia do velhinho Baungartem. – Coisas como assassinatos encomendados não ocorrem por aqui –e quando alguém lhe recordava a historia de Riquita ele sempre comentava– Não foi assassinato e se foi, não foi coisa de gente de Santa Clara. Foi por conta do que ela fazia na Europa. Mas Frida seguia sóbria, o que ninguém compreendia, e seguia atenta a cada um dos movimentos de Laurence, que aquela noite estava sem o cachorro, que não havia sido convidado para a festa. – Laurence esta tão bonita que fez a alemã se esquecer dos homens e das bebidas –dizia Lola Marlene para quem Frida estava obcecada com a jovem beleza africana. 265 Com o entusiasmo da festa todos acabaram por esquecer Frida até que sem que ninguém entendesse o porque ela premiou a jovem prima de Nádia com um soco no queixo que a jovem, reabilitada ou não foi parar por debaixo da mesa onde Laurence estava sentada. E ali ficou desacordada até que a levaram presa e algemada para a delegacia. Nádia também era filha de uma das mulheres que tinham trabalhado no Castelo e estava ali com a sua prima que passava todo o tempo ao seu lado. – Reabilitação um corno no rabo –explicou Frida, com toda a diplomacia e elegância que tinha e como sempre em poucas palavras– Dois dias atrás ela estava comprando o pozinho branco próxima do velho forte. Pensei que gostava de mulheres, mas ontem mesmo estava olhando com desejo a bunda de Jordi. Que queria ela com Laurence? Quando abriu a bolsa e vi a arma lhe meti uma cacetada para facilitar a vida de Pirilo. Na bolsa encontraram uma pistola com um silenciador ultra moderno que segundo as investigações foi comprada em Miami. Isto e mais cinquenta mil dólares em notas de cem dólares que encontraram no quarto onde dormia e que a obrigaram a confessar ainda aquela noite. Nos dias que se seguiram descobriram que ela era parte da mara hondurenha de San Pedro Sula e que aquele não era o primeiro trabalho de assassinato encomendado que fazia. – Enquanto todos buscavam o assassino misterioso somente Frida seria capaz de desconfiar de uma menina de dezesseis anos –comentou Ilona e depois de um suspiro complementou– uma assassina professional de dezesseis anos que mata para comprar cocaína... tristes tempos! O que passou depois na festa apenas sabem os que estavam ali e estou seguro que ninguém vai contar. Segundo o taverneiro asturiano que pela manhã passou em frente e viu a expressão dos que saiam, a bebedeira tinha sido intensa. 266 Bebéi ainda hoje não se recorda de como saiu e nem de como chegou a sua casa onde despertou no dia seguinte dormindo de camiseta, cuecas, sapatos e meia dentro da banheira de seu apartamento. Até teve de comprar um chapéu novo, pois o que sempre levava com ele desapareceu aquela noite e por mais que todos procurassem nunca mais foi encontrado. Mais um dos mistérios da cidade. Passada a ressaca a vida regressou ao normal. O prefeito aproveitou para tomar alguns dias de ferias, segundo Grená com uma nova bailarina hindu, e regressou mais entusiasmado do que nunca para seguir com a sua gestão neo revolucionaria pois se não podia ganhar dinheiro com a nova cidade, sempre haviam outras formas de fazer dinheiro administrando as finanças de prefeitura. Ilona seguiu com seu terraço frente ao mar e ao calçadão, um lugar perfeito para conversar sobre a vida e seus mistérios em meio a copos de um bom tequila. Permaneceu também fiel a memoria de Júlio, o Condor, e seu único grande amor, ainda que compartindo sua casa com Paul que todas as noites lhe contava historias de planetas e galáxias distantes que ela via do terraço do restaurante. Irigandi continuou com os seus estudos. Com Paul ela estava aprendendo tudo o que queria saber sobre outras civilizações para melhor compreender o Segredo do Darien. Muitos pensavam que tudo ali tinha sido destruído naquele grande incêndio, mas Dioclecio e Irigandi sabiam que o segredo seguia escondido. Não como antes protegido pelos guardiões que na verdade acabavam por atrair ainda mais a atenção, mas sim protegido pela inteligência da pequena Irigandi que propôs ao Conselho retirar os guardiões para que todos pensassem que o segredo tinha sido destruído e aproveitar o tempo para com a ajuda dos wagas, compreender o que ali estava guardado. Dioclecio que a tudo observava e de tudo sabia seguiu dormindo com seus gatos no deposito atrás da catedral. Foram tantas as manifestações de apoio a ele e a seus gatos que o prefeito 267 decidiu abandonar a ideia de construir os banhos públicos. O único a mencionar é que ele estava cada vez mas gordinho graças a comida que compartia com Dona Cécy na cozinha do Café. Cristina abandonou definitivamente a prefeitura para trabalhar com Jordi nas investigações especiais do “Realejo” e Jordi, que ainda passava metade do seu tempo dando aulas de historia na escola da rua das Francesas, assumiu a liderança do jornal. Os pelagatos permaneceram nas escadarias das Mercedes, todos admirados com as melhoras no humor de Robespierre desde que a jovem garífuna que foi aprender sobre plantas medicinais com o povo de Irigandi lhe receitou algumas raízes que estavam acabando com a sua prisão crônica de ventre. Depois que ele começou o tratamento os pelagatos apenas aguardavam ansiosos quando Robespierre regressava da sacristia ao final da manhã comunicando que seus intestinos tinham funcionado normalmente, pois isto era sinal seguro de um dia tranquilo. Robespierre já não temia mais os monos e até se fez amigo do macaquinho do filho da Passarinho que algumas vezes dormia no seu colo nos degraus da escadaria da igreja, Coronel Viera continuava paranoico. Dizia que haviam câmeras filmando os degraus das Mercedes, o que era verdade mas ninguém sabia. A única que suspeitava era Grená; uma vez Pirilo encontrou microfones gravando tudo o que se conversava no seu guarda sol. Ele retirou e até tentou saber quem os havia colocado ali pois em teoria era ele o chefe da segurança mas não investigou muito pois sabia que o irmão do prefeito tinha o seu grupo privado de informações para controlar os adversários políticos e para saber se alguém mais estava roubando na cidade já que ele e seu irmão tinham o monopólio nesta área. Laurence permaneceu vivendo em Santa Clara no apartamento que era de seu avô e segundo o que Bebéi contou um dia a Grená, a gaivota as vezes vinha visita-la e dormia no terraço do apartamento como se estivesse protegendo seu sono. 268 Grená estava contente pois tinha uma neta na casa que segundo ela era tão bela como Laurence, pois tinha a exuberância africana de seu filho Rasta e aqueles olhos azuis e a personalidade intensa de Ludmilla. A velha Grená teve ate o orgulho de receber em sua casa o Grande Chefe Russo que foi visitar a sua neta Makeda, o nome escolhido pelos pais em homenagem a Rainha de Sabah. Bebéi continuou caminhando pelas ruas da cidade com seu cachorro mas antes de terminar esta historia ele queria confirmar uma suspeita e por isso escreveu uma pequena carta de agradecimento ao velhinho Baungartem e entregou no dia em que foi leva-lo ao aeroporto. Baungartem leu com atenção e ao terminar de ler, devolveu a carta a Bebéi. – Muito obrigado pela tua carta e saiba que sinto a mesma admiração e carinho por ti. – E porque estas devolvendo a carta –perguntou Bebéi. – É que em minha vida –explicou o velhinho– nunca pude guardar as cartas que recebi e como me parece uma falta de respeito rasgar algo escrito com carinho, sempre preferi devolver as cartas a quem as escreveu. Bebéi sorriu pois havia conseguido confirmar que o velhinho amigo de Laurence era o Otto da Stasi que tanto ajudou a Arpad e sua família. Ao despedir, o velhinho percebeu a expressão no rosto de Bebéi e comentou: – E agora que já sabes quem sou, te convido a que passes por minha casa em Portugal para comer uma sopa de linguiça com grão de bico preparada por minha senhora. Lhe garanto que é ainda melhor do que a que prepara Dona Cécy. Creio que vais gostar de conhece-la. Hoje você apenas a conhece seu nome de código que não parece um nome de mulher. Ela é Francisco uma encantadora e doce mulher portuguesa. 269 Bebéi voltou a cidade sorrindo e encontrou o Coronel que por estar bêbado sorria e comentou: – Finalmente tudo esta tranquilo outra vez em Santa Clara. E Bebéi que já compreendia como eram as coisas naquela cidade comentou: – Por pouco tempo Coronel. Pode estar seguro que não passa uma semana até que alguém invente outra novidade para movimentar a vida em nossa cidade. Assim tudo termina e a velha que vivia no casarão esquecido decidiu continuar por ali inventando historias para que as pessoas em Santa Clara sempre tivessem algo que contar. A cidade seguiu bela como sempre e segundo o que contavam os pescadores, quando no mar chegava a brisa que vinha da terra eles sempre podiam escutar o som dos realejos de Santa Clara Frente al Mar. 270