Untitled - MALDITO DIÁRIO

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Untitled - MALDITO DIÁRIO
AO POETA, AO MENDIGO E À LOUCA
Havia três pessoas em minha cidade cuja lembrança eu trago até hoje
comigo. Eu cresci observando aquelas pessoas. Não sabia por que, mas
sempre que eu cruzava com uma delas na rua, eu parava e ficava olhando.
Eram três pessoas conhecidas por todos da cidade: Lilita, Cafezinho e o
poeta Alberto David.
Lilita era uma velha senhora solteira que morava numa casa simples
próxima à zona do meretrício. Ela nunca sorria e tinha uma outra
característica muito singular: andava sempre com todo o corpo coberto de
panos, um por cima do outro. Tal qual as mulheres muçulmanas, Lilita se
cobria dos pés à cabeça. De Lilita, ninguém da rua jamais viu os cabelos ou
as pernas. Apenas uma parte de seu rosto ficava à mostra. Sobre todas as
peças de roupas, Lilita ainda colocava cobertores de lã. Fazia sol ou chuva,
frio ou calor, e lá vinha ela toda coberta de panos andando pela cidade. Os
meninos da rua atiravam-lhe pedras e a chamavam de louca, louca...
Cafezinho era o mendigo mais conhecido da cidade. Vagava sempre
sozinho pelas ruas com um velho caneco na mão pedindo café. De sua boca
ouvia-se apenas uma palavra, um quase murmúrio: café, café, café... Sujo,
descalço, rasgado, barbado e banguelo, a imagem de Cafezinho se prestava
para que as mães ameaçassem chamá-lo quando uma criança não queria se
alimentar ou tomar algum remédio. Mas quando alguém esquecia a porta
da casa aberta, às vezes se surpreendia mesmo com Cafezinho em um canto
da sala, de caneco na mão, pedindo café. Era uma figura soturna e
silenciosa.
Alberto David era um jovem poeta da cidade. Na minha lembrança a sua
figura se parece com a imagem que nós temos de Jesus Cristo: alto e
magro, de face fina, cabelos longos e barba. Era um rapaz de semblante
muito triste e que procurava expressar em palavras o que muitos sentiam
sem conseguir dizer. Por vezes caçoado, humilhado e ofendido, andava
sempre sozinho e cabisbaixo, recitando poemas pelas ruas da cidade.
A presença de Alberto David, de Lilita ou de Cafezinho me fascinava e
atraía a minha atenção de uma forma que, provavelmente, eles não
atingiam outros moradores da cidade. Afinal, todos já estavam
familiarizados com aquelas três figuras.
Assim como a igreja da matriz e os bancos da praça, eles faziam parte do
cenário urbano. Um viajante que estivesse pela primeira vez ali, ao se
deparar com aquela mulher toda coberta de panos, talvez se deixasse
admirar. Os moradores da cidade, não. Mas eu, sempre que saía para ir à
escola, à igreja ou ao cinema, quando cruzava com Lilita, com Cafezinho
ou com Alberto David, eu parava e ficava olhando. Era como se os
estivesse vendo pela primeira ou, quem sabe, última vez.
Recordo de minha mãe andando apressada pelas ruas me puxando pela
mão, e eu, de corpo e rosto virados, olhando, olhando... Meus olhos infantis
captavam alguma coisa que eu não conseguia compreender. Até hoje,
quando encontro alguém de minha cidade, em algum momento da conversa
eu evoco a lembrança dos três. Quando há alguns anos me contaram que
Lilita havia morrido, eu fiquei imaginando: "Como será agora, andar pelas
ruas de minha cidade e não cruzar mais com Lilita?". Pergunta semelhante
eu também me fiz no dia em que me disseram que Cafezinho já havia
desaparecido das ruas.
Alberto David, Cafezinho e Lilita; o poeta, o mendigo e a louca.
Hoje, entendo que havia uma dimensão trágica naquelas três pessoas. Em
uma sociedade patriarcal e machista, Lilita era o símbolo da mulher
reprimida. Ao andar sempre sozinha e coberta de panos pelas ruas da
cidade, frustrada em seus sonhos, castrada em seus desejos, Lilita talvez
concentrasse em si a repressão que havia em todas as outras mulheres.
Cafezinho, o homem sem nome, maltrapilho e esfarrapado, vivendo ao
relento pelas ruas, de caneco na mão pedindo café, era o símbolo de um
grande contraste. O contraste de um país e de uma cidade que se
desenvolveram com a riqueza do café, que produziram os seus barões do
café, mas que se pautavam (e ainda se pautam) pela exclusão social. Na
terra do café, Cafezinho era a imagem do próprio povo e ele sintetizava a
miséria de multidões esquecidas e espalhadas por todo o Brasil.
Alberto David, o moço de aparência sombria e tristonha, andando
cabisbaixo pelas ruas da cidade, era a imagem de sua geração: a geração
abandonada do começo da década de 70. Com sua sensibilidade, o poeta
captava a frustração e o desencanto que se abateram sobre milhares de
jovens, que um dia sonharam em mudar o mundo, mas que sentiram
quando o sonho acabou.
Alberto David, Cafezinho e Lilita; o poeta, o mendigo e a louca.
Três figuras únicas, misteriosas e solitárias. Eu nunca os via
acompanhados. Andavam sempre sozinhos pelas ruas da cidade, cada qual
no seu caminho.
Dos três, apenas do poeta se sabe o nome; dos três, apenas o poeta ainda
vive, mas os três são eternos para mim. A eles dedico este livro.
**
INTRODUÇÃO
“Eu não sou cachorro, não para ser tão humilhado”
(WALDIK SORIANO)
"Num domingo de sol excepcional para o Dia de Finados, milhares de
pessoas trocaram a praia pelo cemitério. O de São Francisco Xavier, no
Caju, foi o mais concorrido. E, como nos anos anteriores, o túmulo do
cantor Paulo Sérgio foi o mais procurado.”(1)
Desde 1980 a imprensa vem registrando este ritual. No meio da multidão
que a cada 2 de novembro acorre ao cemitério do Caju, no Rio de Janeiro,
surge um grande número de homens e mulheres do povo que se reúne para
reverenciar a memória de Paulo Sérgio, representante de uma geração de
cantores/compositores populares - chamados de "bregas" ou "cafonas" que durante uma década se destacou no cenário artístico nacional.
Entre 1968 e 1978 estes artistas sempre apareciam nas listas das mais altas
vendagens do mercado fonográfico e seus discos batiam recordes de
execução em rádios. E assim, ao longo daquele período, grande parte da
população brasileira, na qual me incluo, cresceu, amou, sofreu e viveu ao
som de determinadas vozes e canções. Vozes como as de Odair José,
Nelson Ned, Agnaldo Timóteo, Waldik Soriano, Cláudia Barroso, Benito di
Paula e Dom & Ravel; e canções como “Eu não sou cachorro, não”, “Pare
de tomar a pílula”, “Vou tirar você desse lugar”, “Cadeira de rodas” e
tantas outras, que hoje fazem parte da memória de milhões de ouvintes de
rádios, de discos e de serviços de alto-falantes.
Sucesso de norte a sul do país, patrimônio afetivo de grandes contingentes
das camadas populares, esta vertente da nossa canção romântica tem sido
sistematicamente esquecida pela historiografia da música popular
brasileira. Nas publicações referentes à década de 70, de maneira geral são
focalizados nomes como os de Chico Buarque, Elis Regina, Gilberto Gil,
Milton Nascimento, e discos como "Sinal fechado", “Falso Brilhante”
"Clube da Esquina", todos, sem dúvida, representativos, mas que na
época eram consumidos por um segmento mais restrito de público,
localizado na classe média. O que a maioria da população brasileira ouvia
eram outras vozes e outros discos.
Não dá mais para dissimular ou esconder. A produção musical "brega” ou
"cafona” é um fato da nossa realidade cultural e, assim como a da bossa
nova ou a do tropicalismo, precisa ser pesquisada e analisada.
Ressalvo que este não é um livro de crítica musical, portanto, o autor não
emite qualquer juízo de valor estético - nem para as canções de Waldik
Soriano, nem para as de Caetano Veloso - ambas tratadas como
documentos da história brasileira. Mas através da análise da construção
social da memória é possível identificar de que maneira ficou cristalizada
em nosso país uma memória da história musical que privilegia a obra de
um grupo de cantores/compositores preferido das elites, em detrimento da
obra de artistas mais populares.
É possível que você não conheça ou tenha dificuldade de identificar alguns
dos nomes de cantores e canções que serão aqui apresentados, mas isto
pode ser apenas mais um reflexo do processo de silenciamento que atinge
esta geração de artistas "cafonas".
Quando relacionam produção musical e regime militar, os críticos,
pesquisadores e historiadores da nossa música são pródigos em ressaltar a
ação de combate e protesto empreendida por diversos compositores da
MPB, que se valiam de metáforas, imagens truncadas e herméticas, com o
objetivo de driblar a censura e manifestar o seu inconformismo com o
quadro político-social vigente. O que estes analistas nunca ressaltam, ou
simplesmente ignoram, é o papel de resistência desempenhado naquele
mesmo período por artistas populares como Paulo Sérgio, Odair José,
Benito di Pauta e, não se surpreenda, a dupla Dom & Ravel.
Três aspectos chamam a atenção no universo deste grupo de
cantores/compositores. Em primeiro lugar, a mensagem de suas canções:
grande parte delas traz a denúncia do autoritarismo e da segregação social
existentes no cotidiano brasileiro. O segundo aspecto é a relação entre esta
produção musical e o momento histórico: a maioria de seus autores e
intérpretes alcança o auge do sucesso entre 1968 e 1978, período de
vigência do Ato Institucional n° 5, sendo também proibidos e intimados
pelos agentes da repressão do regime. E o terceiro aspecto, a origem social
do público e dos artistas: ambos oriundos dos baixos estratos da sociedade
e boa parte deles tendo vivenciado uma das grandes mazelas do nosso país,
o trabalho infantil.
Agnaldo Timóteo, por exemplo, trabalhou de engraxate, vendedor de
pastéis, lavador de automóveis e, a partir dos 9 anos, auxiliar de torneiro
mecânico, ocupações que o impediram de prosseguir nos estudos. "Eu sou
um homem de terceiro ano primário, não consegui sequer o diploma
do curso primário.”(2) O cantor Waldik Soriano também ficou fora da
escola, pois desde pequeno, de enxada em punho, foi batalhar na lavoura
com seus irmãos, exercendo mais tarde os ofícios de garimpeiro, faxineiro,
engraxate, servente de pedreiro e camelô. "Venho de uma vida muito
sofrida e sofro duas vezes quando recordo o passado."(3)
O cantor e compositor Nelson Ned é outro brasileiro que trabalhou no
período da infância, a partir da idade de 12 anos, numa fábrica de
chocolates. "Eu sou de uma família de uma origem muito boa, mas com
muita pobreza. E eu não tinha dinheiro sequer para andar de ônibus,
então eu passava debaixo da roleta, o que não era difícil pra mim. Mas
eu só passava debaixo da roleta porque não tinha dinheiro pra pagar a
passagem."(4
Os irmãos Dom (Eustáquio Gomes de Faria) e Ravel (Eduardo Gomes de
Faria) ainda pequenos deixaram a cidade de Itaiçaba, interior do Ceará, e
seguiram com a família a mesma rota de tantos outros nordestinos: o sul do
país. Dom foi ser office-boy e Ravel aos 14 anos vendia picolés e
engraxava sapatos nas ruas de São Paulo.
Trabalho que também consumiu a infância do cantor e compositor Wando.
"Eu sobrevivia vendendo jornal e engraxando sapatos, e aos 13 anos
comecei a trabalhar de feirante."
Para o compositor carioca Nenéo, que quando garoto também se virou
como engraxate, a vida foi ainda mais difícil, pois ele e seus irmãos se
alimentavam com sobras de comida de uma fábrica de cigarros. ”A minha
tia trabalhava na cozinha do restaurante de lá e todo dia ela trazia pra
gente um panelão de tutu misturado com macarrão. E aquilo matava a
nossa fome."
Por fim, o cantor Paulo Sérgio, que se iniciou muito cedo como aprendiz de
alfaiate e aos 12 anos já era praticamente um profissional do ramo, ofício
que exerceu até às vésperas da gravação do primeiro disco.
Em 13 anos de carreira artística ele lançou 13 LP’s, em sua maioria com
canções românticas, mas nas quais a temática social não estava ausente,
como ilustra um trecho da autobiográfica “Alfaiate”, composição de 1971:
ALFAIATE
CORTANDO LEMBRANÇAS
PREGANDO ESPERANÇAS
EU VENHO DA FOME
SEM TEMPO E SEM NOME
VESTINDO DE SONHOS
UM MUNDO DE HORRORES...(5)
Entre 1968 e 1978, esta geração de artistas procurou expressar em suas
composições as questões que, como pessoas do povo, tiveram que
enfrentar. Produziram uma obra musical que, embora considerada tosca,
vulgar, ingênua e atrasada, constitui-se em um corpo documental de grande
importância, já que se refere a segmentos da população brasileira
historicamente relegados ao silêncio. Em muitas das letras do repertório
"cafona" se revelam pungentes retratos da nossa injusta realidade social.
E neste sentido esta produção não se caracterizou pela atitude meramente
conformista e nem pela ausência de crítica ou contestação aos valores
sociais vigentes. Apesar desta música expressar em grande medida o
universo da ideologia dominante, encontram-se nela aspectos que a fazem
contestadora desta mesma ideologia. A visão histórica de uma ação
unilateral do poder sobre os dominados é algo que atualmente está
superado, o que se observa, por exemplo, nas obras do inglês Edward P
Thompson e da francesa Michelle Perrot, historiadores que procuraram
revelar as formas de resistência engendradas pelos chamados setores
subalternos.(6)
Seguindo esta mesma perspectiva, Marilena Chauí observa que as ciências
sociais e a filosofia tendem a encarar a cultura popular pelo prisma das
dicotomias, sem levar em consideração o caráter necessariamente ambíguo
e contraditório dos objetos sociais. Assim, diz ela, no Brasil o popular é
encarado “ora como ignorância, ora como saber autêntico, ora como
atraso, ora como fonte de emancipação. Talvez seja mais interessante
considerá-lo ambíguo, tecido de ignorância e saber, de atraso e de
desejo de emancipação, capaz de conformismo ao resistir, capaz de
resistência ao se conformar."(7)
É o que se procurará observar em cada uma das faixas de discos analisados,
já que ali estão registrados sonhos, angústias, tragédias, protestos, dores,
amores, além da visão de mundo de amplos setores das camadas populares.
E isso produzido em um período da nossa história em que os direitos
constitucionais estavam suspensos e os canais de expressão da insatisfação
popular, bloqueados. Entretanto, por entre as brechas do sistema,
representantes de setores populacionais mantidos à margem do centro de
decisão política conseguiram falar e ser ouvidos.
O período de maior repressão política do regime militar coincide com o da
fase de consolidação de uma cultura de massa e a conseqüente expansão da
indústria fonográfica. Entre 1970 e 1976, a indústria do disco cresceu em
faturamento, no Brasil, 1.375%. Na mesma época, a venda de LPs e
compactos passou de 25 milhões de unidades por ano para 66 milhões de
unidades.
O consumo de toca-discos, entre 1967 e 1980, aumentou em 813%.(8)
Favorecido pela conjuntura econômica em transformação, o Brasil
alcançou o quinto lugar no mercado mundial de discos. Nunca tantos
brasileiros tinham gravado e ouvido tantas canções. A música popular
firmava assim como o grande canal de expressão de uma ampla camada da
população brasileira que, neste sentido, não ficou calada, se pronunciou
através de sambas, boleros e, principalmente, baladas.
Como intérpretes de bolero se destacam naquele período os cantores
Waldik Soriano, Nelson Ned, Lindomar Castilho e Claudia Barroso, que
seguem a tradição da influência hispânica que se faz presente no Brasil
desde a década de 40. Um outro grupo vai trilhar a linha do samba, ou
"sambão-jóia", como pejorativamente eram tachados na época: Benito di
Paula, Luiz Ayrão e Wando (que até 1978 ainda não havia aderido de vez
ao estilo de baladas românticas).
E um terceiro grupo, que engloba a maior parte destes cantores populares,
vai se expressar através do ritmo da balada, e tem entre os seus principais
representantes Paulo Sérgio, Odair José, Evaldo Braga, Agnaldo Timóteo e
outros, que são continuadores de um estilo romântico consagrado por
Roberto Carlos e a turma da Jovem Guarda nos anos 60. Portanto, esta
geração de artistas "cafonas" se expressou basicamente através de três
gêneros musicais já bastante testados e consolidados no gosto do público
ouvinte de rádio e de discos.
A palavra “brega”, usada para definir esta vertente da canção popular, só
começou a ser utilizada no início dos anos 80.(9) Ao longo da década de 70
- período que compreende o universo desta pesquisa - , a expressão
utilizada é ainda "cafona", palavra de origem italiana, “cafóne”, que
significa indivíduo humilde, vilão, tolo.(10)
Divulgada no Brasil pelo jornalista e compositor Carlos Imperial, a
expressão ”cafona" subsiste hoje como sinônimo de "brega", que, segundo
a Enciclopédia da Música Brasileira, é um termo utilizado para designar
"coisa barata, descuidada e malfeita" e a "música mais banal, óbvia,
direta, sentimental e rotineira possível, que não foge ao uso sem
criatividade de clichês musicais ou literários".(11)
Ressalto que sempre que eu fizer referência ao repertório "cafona" - a
palavra aparecerá entre aspas porque contém um juízo de valor
impregnado de preconceitos com os quais não compartilho - , estarei
me referindo àquela vertente da música popular brasileira consumida
pelo público de baixa renda, pouca escolaridade e habitante dos
cortiços urbanos, dos barracos de morro e das casas simples dos
subúrbios de capitais e cidades do interior. Como definiu o jornalista
Dirceu Soares, "subúrbio é um lugar que fica entre a cidade e o campo.
Ali mora um tipo de gente que ainda não se sofisticou, mas que
também já não é mais matuta. E é nesta mistura de culturas que vive a
maior parte da população brasileira".(12)
Ao refletir, nos anos 70, sobre o abismo que separava a grande massa de
brasileiros empobrecidos da minoria extremamente rica - distorção
resultante do modelo concentrados de renda - , o economista Edmar Bacha
criou o termo "Belíndia", uma metáfora para explicar a existência de dois
"Brasis": um, composto pelas classes média e alta, morando no grande
centro urbano-industrial e com um padrão de vida de primeiro mundo,
semelhante ao da população da Bélgica; outro, composto pela classe média
baixa e assalariada, a imensa maioria da população, vivendo em precárias
condições, sem escola, saúde e informação e com um padrão de consumo
semelhante ao da população da Índia.
Transportando esta metáfora para o campo específico da música popular, é
possível dizer que artistas como Chico Buarque e Milton Nascimento
tinham o seu público entre os habitantes da "Bélgica", enquanto que os
cantores "cafonas" eram ouvidos e admirados pela imensa maioria da
população da "Índia".
Naquela época, como um típico habitante desta parte mais pobre do Brasil,
cresci ouvindo cantores como Waldik Soriano, Odair José e Nelson Ned. E,
como a maioria destes artistas, também trabalhei de engraxate na infância.
Mas ao chegar à universidade - rompendo uma barreira que a sociedade
impõe às pessoas não originárias da classe média - , resolvi aprofundar
algumas questões que me acompanham desde que me interessei pelo estudo
da história do Brasil: por que aqueles cantores que eu ouvia no rádio no
período da minha infância não apareciam nos livros e ensaios que
tematizam a música popular? Por que a exclusão de uma vertente musical
que serve de referência para milhões de brasileiros? E mais: até que ponto
este descaso com a história da canção popular "cafona" reflete o
autoritarismo de áreas insuspeitas da nossa sociedade? E afinal, que
memória histórica da música popular brasileira tem sido construída em
nosso país?
A partir destas indagações, resolvi iniciar a pesquisa e levantar o véu que
cobre a produção musical "cafona" dos anos do AI-5.
Este livro é uma versão revista e ampliada da minha dissertação de
mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Memória Social e
Documento da Universidade do Rio de Janeiro - UNI-Rio(13). Visando ao
bom desenvolvimento do trabalho, percorri três principais fontes primárias:
a produção discográfica do período 1968/1978 (sambas, baladas e boleros,
além do repertório da MPB); jornais e revistas da época; e, principalmente,
depoimentos inéditos e exclusivos de alguns dos principais protagonistas da
música popular "cafona".
Entre fevereiro de 1997 e maio de 2002 entrevistei produtores, diretores de
gravadora e vários cantores/compositores, alguns no Rio, outros em São
Paulo. Pela primeira vez artistas como Waldik Soriano, Odair José e
Nelson Ned falaram sobre o significado histórico de suas carreiras.
Em determinados momentos da entrevista alguns dos cantores diziam: "Eu
nunca tinha falado sobre isso antes." Assim, este recurso nos permitiu um
acesso privilegiado ao tema, acentuando ambivalências, motivações e
versões que dificilmente encontraríamos em outras fontes. E, ao dar voz a
esta geração de artistas, creio contribuir para amenizar o esquecimento
nesta luta desigual pela memória. (14)
*
( Paulo César de Araújo, autor do livro "Eu Não Sou Cachorro,
Não"))
*Como já foi destacado, a bibliografia sobre música popular brasileira não
apresenta estudos focalizando a obra do repertório "cafona". A maior parte
dos títulos até agora publicados se prende aos sambistas dos anos 30 (Noel
Rosa, Wilson Batista, Ismael Silva); à bossa nova (João Gilberto, Tom
Jobim, Vinicius de Moraes); e à geração surgida durante os festivais de
música popular nos anos 60 (Chico Buarque, Caetano Veloso, Gilberto Gil,
Milton Nascimento).
Ou seja, o que tem sido pesquisado e analisado é basicamente a produção
dos cantores/compositores identificados à MPB. O que de alguma forma
comprova o que foi observado pelo filósofo francês Edgar Morin ao dizer
que geralmente "aquilo que se despreza não merece ser estudado ou
pensado”(15).
A obra do crítico e historiador José Ramos Tinhorão é considerada uma
referência quando se fala em história da música popular no Brasil.
Ninguém escreveu mais do que ele sobre o tema. Do primeiro livro,
“Música popular: um tema em debate”, publicado em 1966, ao mais
recente, “Música popular: o ensaio é no jornal”, lançado no início do ano
2000, são mais de 10 livros em que o autor apresenta um exaustivo trabalho
de pesquisa e análise crítica sobre diversos gêneros e compositores: da
modinha à lambada; de Domingos Caldas Barbosa a Caetano Veloso.
Mas o sempre muito polêmico Tinhorão também nada diz sobre a música
produzida por compositores como Waldik Soriano ou Nelson Ned.
Esta mesma exclusão se verifica no trabalho do pesquisador Ary
Vasconcelos e nos textos daqueles que chamarei aqui de divulgadores de
histórias da nossa música popular: Ruy Castro, Sérgio Cabral, Ricardo
Cravo Albin, Zuza Homem de Melo, Hermínio Bello de Carvalho e outros,
que se dedicam basicamente a registrar a memória de gêneros e intérpretes
identificados com as chamadas raízes do samba e do choro ou de músicos
ligados à bossa nova. A maior parte daquilo que está associado à chamada
cultura de massa é relegada ao esquecimento.
A coleção História da Música Popular Brasileira, conjunto de discos e
fascículos publicado pela Abril Cultural ao longo das décadas de 70 e 80, é
outro trabalho que contribuiu para sedimentar uma determinada memória
da história musical do país.
Com textos assinados por críticos e jornalistas como João Máximo, Tárik
de Souza e Luiz Carlos Maciel, ao longo das suas três edições são
focalizadas as trajetórias de 113 nomes da nossa música popular: dos mais
tradicionais e famosos como Noel Rosa e Paulinho da Viola aos mais
herméticos e vanguardistas como Walter Franco e Walter Smetak. E, no
entanto, a coleção que pretende levar o leitor/ouvinte a "conhecer melhor o
Brasil, por meio dos sons e cantos da sua gente"(16), não diz uma palavra
sequer sobre a produção musical de artistas populares como Odair José ou
Benito di Paula.
Inaugurado em 1965, o Museu da Imagem e do Som do Rio de Janeiro
apresenta como um de seus objetivos preservar a memória da música
popular brasileira. A gravação de depoimentos para a posteridade - uma das
marcas pioneiras e definidoras do MIS - resultou em um acervo com 839
depoimentos sonoros, organizados em 1.700 fitas, que totalizam cerca de 2
mil horas de gravações.(17). Mas em todo este material gravado e
catalogado também não existe nada referente à geração dos
cantores/compositores acima citados.
Isto tudo nos remete à reflexão acerca dos silêncios da História. Jacques Le
Goff, historiador francês, afirma que é preciso interrogar-se sobre os
esquecimentos, os hiatos, os espaços em branco. "Devemos fazer o
inventário dos arquivos do silêncio, e fazer a história a partir dos
documentos e das ausências de documentos"(18). E esta análise é de
fundamental importância porque o espaço da memória constitui
permanente campo de batalha, e o ato de esquecer pode ser resultado de
manipulação exercida por grupos dominantes sobre dominados, ou de
vencedores frente a vencidos.
Em contraponto a uma longa tradição do estudo da História, cujo enfoque
incidia, fundamentalmente, na valorização dos falos relativos às classes
dominantes, tem se acentuado nos últimos anos uma tendência em dar lugar
às manifestações das pessoas comuns, o que representa uma
democratização do objeto histórico.
Este trabalho se alinha nesta perspectiva, já que, ao pesquisar a obra
musical de uma geração de cantores/compositores considerados "cafonas",
visa recuperar a memória de uma facção da cultura popular deixada ao
largo da historiografia, trazendo à tona sua luta, seus embates, suas formas
de expressão e resistência.
E não se trata aqui de um livro apenas sobre música, mas sim da análise de
fatos e documentos que ajudem a elucidar os rumos da música popular e da
própria sociedade brasileira em um período marcante de sua história.
Afinal, as canções e os depoimentos pesquisados foram produzidos por
uma geração de artistas populares afinados com seu tempo, com sua cultura
e que tiveram importância (ou que talvez ainda tenham) para a vida de
milhões de pessoas.
“Roberto Carlos acabou. Não existe mais Roberto Carlos”.
(Chacrinha)
No conturbado ano de 1968, era mesmo muito difícil não participar de
alguma polêmica. Como se costuma dizer, era o espírito da época. E os
assuntos debatidos eram os mais diversos. Política. Religião. Música.
Cinema. Cibernética. O jornalista e escritor Zuenir Ventura, um dos
memorialistas daqueles tempos, enfatiza que em 1968 a polêmica era
duradoura e estava em toda parte: "Discutia-se nas universidades, nas
assembléias, nas passeatas, nos bares, nas praias: a altura das saias, o
caráter socialista da revolução brasileira, o tamanho dos cabelos, os efeitos
da pílula anticoncepcional, as teorias inovadoras de Marcuse, as idéias de
Lukács, o revisionismo de Althusser."(19)
No universo da música popular romântica, a polêmica e o debate também
estavam na ordem do dia. Mas não exatamente em relação aos temas já
citados, que em sua maioria eram privilégio das elites intelectuais do país.
Entre grande parte de artistas e público de origem popular, ao longo do
segundo semestre de 1968, discutia-se e torcia-se por Roberto Carlos ou
Paulo Sérgio, o jovem alfaiate que se tornaria um ícone desta geração de
cantores/compositores "cafonas".
Foi em 1968 que Paulo Sérgio Macedo despontou com grande destaque em
todas as paradas de sucesso do Brasil. Natural de Alegre, interior do
Espírito Santo, solteiro, 24 anos, Paulo Sérgio surgia com o mesmo sorriso
tímido, os mesmos olhos tristes, o mesmo estilo musical e o mesmo timbre
vocal do ídolo Roberto Carlos - o que levava a imprensa na época a afirmar
que “ouvir a voz de um ou de outro, praticamente não faz diferença. Paulo
Sérgio é uma espécie de outro Roberto Carlos".(20)
Gravado em maio de 1968, o primeiro LP de Paulo Sérgio rapidamente
alcançou a marca de 300 mil cópias vendidas - uma tiragem espetacular
para a época - e várias faixas do disco entraram nas paradas de sucesso
nacional: “No dia em que parti”, “Sorri meu bem” , “Se você voltar” e,
principalmente, a balada “Última canção”, que era tocada a todo instante
nas emissoras de rádio de norte a sul do Brasil: "Esta é a última canção /
que eu faço pra você / já cansei de viver iludido / só pensando em
você..."(22)
Paulo Sérgio não foi o primeiro nem seria o último cantor a começar a
carreira imitando Roberto Carlos. Desde pelo menos 1965, quando o
estrondoso sucesso de ”Quero que vá tudo para o inferno” transformou
Roberto Carlos em um ídolo de massa, que imitadores de sua voz e estilo
vinham sendo lançados e retirados do mercado. E a canção ”O sósia”,
composição gravada pelo cantor em 1967 - portanto, antes da consagração
de Paulo Sérgio - , é um retrato disso.
Ali, Roberto Carlos canta que encontrou um cara que tinha a sua cara "e
até seu nome era igual ao meu / hum, era demais / eu sei, não era eu",
numa referência aos vários imitadores que surgiam na época da Jovem
Guarda. O que difere o caso Paulo Sérgio é que ele foi o primeiro artista
com voz e estilo semelhantes aos de Roberto Carlos a alcançar grande
sucesso nacional. E isto num momento em que a carreira do "rei" passava
por uma fase de reformulação e a sua imagem apresentava os primeiros
sinais de desgaste.
Em 1968 o programa Jovem Guarda, que Roberto comandou durante mais
de dois anos, foi ao ar pela última vez porque a fórmula já estava muito
gasta e o cantor pretendia atingir outras faixas de público. Mas o seu novo
musical na TV Record, “Roberto Carlos à noite”, não conseguiu os
índices de audiência esperados e também foi retirado do ar. A tentativa
seguinte, o programa ”Todos os jovens do mundo”, em que ele aparecia
falando de bombas, de guerra e da perplexidade do mundo moderno, foi
considerado maçante e também não prosseguiu.
Especulava-se na imprensa que o casamento de Roberto Carlos naquele ano
de 1968 havia lhe retirado o apoio de boa parte do público feminino e que a
sua carreira estaria entrando em curva descendente.
E mais do que nunca evocava-se um exemplo do passado: Orlando Silva, o
ex-trocador de bonde que se consagrara como o "cantor das multidões",
mas que em um curto espaço de tempo perdera a voz, o prestígio e a
popularidade. Apostando em fato semelhante, em agosto de 1968 a revista
O Cruzeiro produziu uma grande reportagem cujo título era "Roberto
Carlos: como morre um ídolo”.(23){/b]
Naquele segundo semestre a temporada teatral apresentava como
destaque a peça ”Roda viva”, texto de Chico Buarque com polêmica
montagem de José Celso Martinez Corrêa. Era a história do cantor
Ben Silver, um ídolo da juventude que, depois de triturado pela
máquina do consumo, oferecia o seu fígado à devoração dos fãs.
Corriam versões de que o personagem fora inspirado na trajetória de
Roberto Carlos - fato que Chico Buarque negava. Mas, com os reveses
enfrentados pelo "rei" naquele momento, esta analogia era tentadora e
um antigo companheiro de Roberto Carlos, que preferiu não se
identificar, chegou a dizer na época: "Não sei se Roberto assistiu à
Roda viva. Se não assistiu deveria ir ver a peça de Chico. É a sua
própria vida que está ali. Roberto Carlos foi o instrumento de uma
engrenagem: trituraram-no, esmagaram-no, tiraram-lhe o sumo e
agora estão esperando uma oportunidade para jogar fora o
bagaço."(24)
Por tudo isso, o surgimento de um novo astro na música jovem romântica
causou repercussão, e a pergunta "Paulo Sérgio derrubará Roberto Carlos?"
era ouvida em programas de rádio, televisão, e repetida em matérias de
jornais e revistas.
Para uns, Paulo Sérgio não passava de um clone do cantor do
“Calhambeque” e não sobreviveria ao sucesso do primeiro disco; para
outros, o mito Roberto Carlos havia chegado ao fim e o novo rei da
juventude seria agora Paulo Sérgio. O mais popular apresentador da
televisão brasileira, Abelardo Barbosa, o Chacrinha, foi categórico:
"Roberto Carlos acabou. Não existe mais Roberto Carlos."
E Chacrinha defendia esta opinião com o argumento de que "a medicina
tem escola, a arquitetura tem escola, tudo tem escola. Paulo Sérgio
seguiu a escola de Roberto Carlos, e burro será ele se mudar. Tem que
ir assim até o fim. Ele já superou Roberto Carlos".(25)
A polêmica estava estabelecida e outros artistas da música romântica se
envolviam nela. Partindo em defesa de Roberto Carlos, o cantor Agnaldo
Timóteo, bem ao seu estilo, rebateu de maneira contundente as declarações
do Velho Guerreiro: "O Chacrinha provou mais uma vez que é um
oportunista. Ele anda dizendo que o Paulo Sérgio é um ídolo, que
derrubou Roberto Carlos, e paga apenas 100 mil cruzeiros velhos para
o Paulo Sérgio cantar no seu programa. A bronca do Chacrinha é que
o Roberto Carlos não canta no programa dele. O dia em que o Paulo
Sérgio disser: 'Quero 500 mil para cantar em seus programas', então
Paulo Sérgio não valerá mais nada."(26)
Wanderley Cardoso, na época um dos mais populares cantores do Brasil,
também saiu em defesa do colega da jovem guarda, ao afirmar que "ele
(Paulo Sérgio) pode ser um bom moço, mas está começando muito mal,
pois sua orientação é péssima. Roberto Carlos é o maior ídolo que já vi,
e não será um Paulo Sérgio que irá derrubá-lo”(27)
O debate não ficou restrito aos artistas, estendeu-se também às ruas, aos
bares, aos auditórios - e as fãs dos dois cantores travaram uma batalha só
comparável às de Marlene e Emilinha nos áureos tempos da Rádio
Nacional.
O cantor Paulo Sérgio, que um ano antes de gravar seu primeiro LP era
apenas um jovem alfaiate que gostava de cantar e ouvir rádio, parecia até
um pouco assustado por estar ali agora ocupando o centro de uma polêmica
com o rei da juventude e maior vendedor de discos do Brasil: "Eu operei a
garganta para ver se minha voz ficava diferente da voz do Roberto
Carlos e não adiantou. Estou desesperado, já não agüento mais ouvir
todo mundo dizer que eu imito o Brasa."(28)
Ele podia estar mesmo preocupado, mas, convenhamos, esta polêmica com
o líder da jovem guarda era muito mais do que Paulo Sérgio poderia sonhar
para seu início de carreira - principalmente porque ele se lançou por uma
pequena gravadora nacional, a Caravelle, um selo até então inexpressivo,
enquanto Roberto Carlos e grande parte dos outros artistas eram
contratados das multinacionais CBS, RCA, Odeon e Philips.
Como reflexo do enorme sucesso alcançado por Paulo Sérgio, o LP de
Roberto Carlos lançado no fim de 1968 trazia como título "O inimitável",
adjetivo que o cantor não queria na capa de seu disco, mas em 1968 ele
ainda não dava todas as cartas na CBS, e a gravadora decidiu explorar
comercialmente a polêmica. E Roberto Carlos não queria o seu LP
envolvido no episódio porque ninguém melhor do que ele próprio para
compreender a trajetória de Paulo Sérgio naquele momento.
Afinal, nove anos antes, em 1959, era ele, Roberto Carlos, que iniciava a
carreira de cantor, também por uma pequena gravadora, a Polydor, e
também seguindo os passos do seu ídolo João Gilberto, da poderosa Odeon.
A diferença é que, ao contrário do primeiro LP de Paulo Sérgio, o disco de
Roberto Carlos não obteve nenhuma repercussão e ele teve que redefinir o
seu estilo. Seja como for, o fato é que o título "O inimitável" revela que o
sucesso alcançado pelo ex-alfaiate incomodou e causou preocupação nas
hostes do "rei".
Aliás, vozes maledicentes diziam que tudo isto estava ocorrendo porque,
depois de sua bem-sucedida participação no Festival de San Remo, no
início daquele ano, Roberto Carlos voltara italianizado, mais sisudo e
inacessível, dando pouca importância aos antigos fãs. "Não é verdade" rebatia o cantor - "sou o mesmo Roberto de antes. E estou mais empenhado
em minha carreira do que nunca. Vou para a frente sempre."(29)
De fato, como o tempo viria a demonstrar, Roberto Carlos não foi
derrubado por Paulo Sérgio. Note-se que após o lançamento de "O
inimitável", disco mais romântico que os anteriores e com faixas como ”Se
você pensa”, “As canções que você fez pra mim” e ”Madrasta”, o cantor
passou a conquistar um segmento de público mais adulto e diversificado,
obtendo os primeiros reconhecimentos da crítica e reverência de diversos
artistas da MPB.
Mas Paulo Sérgio também não desapareceu após o sucesso do primeiro LP,
em 1968. Embora tenha carregado até o último dia de vida a pecha de
"imitador do rei", ao longo de sua carreira ele foi colecionando uma série
de sucessos nacionais, mantendo a audiência de um público cada vez mais
fiel e tornando-se precursor de um estilo de balada romântica - mais tarde
chamada de "brega" - que influenciou toda uma geração de
cantores/compositores populares surgidos a partir de 1968: Odair José,
Fernando Mendes, Luiz Geraldo, Jean Marcel, Gilberto Reis, Fredson e
outros.
Embora se credite diretamente ao trabalho de Roberto Carlos a existência
destes artistas "cafonas", ressalto aqui a mediação e a forte influência de
Paulo Sérgio. Foi ele quem retrabalhou a fórmula da balada romântica e
abriu as portas do mercado discográfico para uma nova geração de cantores
populares, que começava a carreira num momento em que o ciclo da jovem
guarda chegava ao fim. Não sem razão, ao comentar o disco de lançamento
do novo cantor Gilberto Reis, em 1973, a revista Veja observava que
"Roberto Carlos foi imitado por Paulo Sérgio. Agora, Paulo Sérgio é
imitado por Gilberto Reis".(30)
E possível dizer que esta geração de artistas despontada a partir de 1968 é a
segunda na linha das que são rotuladas de "cafona" ou "brega". A primeira
geração é aquela que serviu de contraponto à bossa nova e obteve grande
sucesso popular entre o fim dos anos 50 e início dos anos 60: Anísio Silva,
Orlando Dias, Silvinho, Adilson Ramos e alguns outros nomes que na
época se notabilizaram basicamente como intérpretes de boleros.
A segunda geração - a de Paulo Sérgio - inclui um número maior e mais
diversificado de cantores/compositores, consequência da expansão da
própria indústria fonográfica no Brasil, interessada em dividir em fatias o
mercado consumidor de discos.
Uma terceira geração de "cafonas"”que não é a prioridade deste livro - foi
aquela que despontou por volta de 1977 e manteve-se regularmente nas
paradas de sucesso nacional até o início dos anos 80: Sidney Magal, Agepê,
Peninha, Amado Batista, Giliard, Carlos Alexandre, Jane & Herondy e
outros que, mais tarde, passaram a ser chamados de "bregas".
E aqui se faz necessário uma melhor diferenciação entre o repertório
musical "cafona" e a chamada MPB, que, mais do que um gênero de
música, transformou-se, a partir do fim dos anos 60, numa verdadeira
instituição, dotada de reconhecimento cultural e de lugar social bem
determinado.(31)
Apesar do aparente significado, a sigla MPB não representa toda e qualquer
música popular produzida no Brasil. Ainda hoje, e de uma maneira muito
mais intensa no período do regime militar, ela é a expressão de uma
vertente da nossa música popular urbana produzida e consumida
majoritariamente por uma faixa social de elite, segmento que a indústria
cultural classifica como público A ou B.
Difundida a partir de 1965, a sigla MPB foi utilizada inicialmente apenas
como referência à "moderna música popular brasileira", de origem
universitária, que surgia da influência direta da bossa nova e que, naquele
momento, disputava espaço com uma outra música popular - aquela
produzida por Roberto Carlos e a turma da jovem guarda - que partia de
influências do rock'n'roll inglês e norte-americano.
E esta disputa levou na época alguns dos representantes da MPB - Elis
Regina, Gilberto Gil, Geraldo Vandré, Edu Lobo - a comandar uma
passeata contra as guitarras elétricas no centro de São Paulo. Ou seja: num
primeiro momento, a sigla MPB representava uma espécie de bandeira de
luta nacionalista contra um outro tipo de música que era efetivamente
popular e produzida em nosso país, porém, considerada "alienígena", "nãobrasileira".
Entretanto, a partir de Setembro de 1967, com a incorporação de guitarras
elétricas às composições de Caetano Veloso e de Gilberto Gil via
tropicalismo e com a assimilação de influências do rock, do blues, do soul e
do próprio trabalho de Roberto Carlos por outros intérpretes da MPB (Gal
Costa, Elis Regina, Wilson Simonal), esta oposição música "brasileira"
versus música "alienígena" deixava de ter sentido.
Mas a sigla MPB continuou, agora fazendo frente a outra produção musical
popular: aquela que, a partir de 1968, através de cantores românticos como
Paulo Sérgio, era tachada de "cafona" ou de "música de empregadas", ou
seja, tudo aquilo que o público de classe média universitário rejeitava em
termos de forma e conteúdo.
Na perspectiva desse público, artistas como Chico Buarque e Gonzaguinha
seriam os legítimos criadores da "boa música popular" - o termo "popular"
sendo assim apropriado pelas elites intelectuais, restando para aqueles
cantores românticos de maior popularidade o adjetivo "popularesco".
Como observa Marilena Chauí, se, no início do século XX, "os
compositores mais conhecidos eram lá do morro, no final do século, grande
parte da música popular é composta e ouvida por universitários.(...) Por
outro lado, as composições mais admiradas pela população 'popular' são
aquelas que costumam receber a qualificação pejorativa de kitsch".(32)
Em consequência desta segmentação do mercado discográfico - que do
ponto de vista do público serve como diferencial de gosto e status social - ,
ao longo do período de 1968/78, pode-se notar a existência de duas
principais vertentes na música popular urbana produzida no Brasil. De um
lado, aquela de artistas identificados à MPB. De outro, a vertente rotulada
de "cafona" ou "popularesca" (Paulo Sérgio, Odair José, Waldik Soriano,
Agnaldo Timóteo, Nelson Ned), de artistas e público oriundos das camadas
mais pobres da sociedade.
Com transito entre uma vertente e outra havia casos como os de Roberto e
Erasmo Carlos que, após o tropicalismo, começaram a ser assimilados por
setores da MPB. De uma maneira geral, entretanto, a maior parte do espaço
musical nas rádios, nos programas de televisão e nas lojas de discos era
ocupado por estes dois grupos de cantores/compositores.(33)
E, como veremos a seguir, ambos os grupos vão produzir os seus discos e
canções num período de forte radicalização da ditadura militar, a partir da
decretação do AI-5, em dezembro de 1968.
**
NOTAS :
CAPÍTULO: INTRODUÇÃO
1. "Finados com sol" - O Dia, 3 -11-1997.
2. Os depoimentos ao autor citados neste livro não terão notas de fim de
página. Conferir data e nome completo de cada depoente em Fontes e
bibliografia.
3. "Eu sou Waldik Soriano" - Manchete, 22-5-1971.
4. Programa ”Show da Madrugada” - Rádio Globo, 24-8-1991.
5. O título de cada canção aparecerá no corpo do texto ou nas notas finais.
As indicações referentes a autor, intérprete, gravadora, título e data de
lançamento do disco podem ser conferidas na discografia listada em ordem
alfabética em Fontes e bibliografia. As canções foram organizadas em três
grupos: repertório "cafona"/ repertório mpb-pop-rock / repertório
internacional.
6. Ver Edward P. Thompson. “Tradición, revuelta y consciência de clase”.
Barcelona: Critica, 1979; Michelle Perrot. ”Os excluídos da história”. São
Paulo: Paz e Terra, 1988.
7. Marilena Chauí. ”Conformismo e resistência; aspectos da cultura popular
no Brasi”l. 6ª ed. São Paulo: Brasiliense, 1996, p. 124.
8. Fontes: respectivamente, Associação Brasileira de Produtores de Discos
e IBINEE; "Discos em São Paulo", Pesquisa 6, IDART, 1980. Apud.
Renato Ortiz. ”A moderna tradição brasileira; cultura brasileira e
indústria cultura”l. São Paulo: Brasiliense, 1988, pp. 127-128.
9. Esta palavra alcançou popularização definitiva a partir de 1984, quando
o cantor Eduardo Dusek lançou com grande sucesso o LP "Brega chique,
chique brega" - Polydor P. 1984.
10. Antônio Geraldo da Cunha. ”Dicionário etimológico Nova Fronteira
da língua portuguesa”. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982, p. 136.
11. Enciclopédia da música brasileira: popular, erudita e folclórica. 2a ed.
São Paulo: Art Ed. / Publifolha, 1998, p. 117.
12. Dirceu Soares. 'Ás feições brasileiras de um tema universal". In.
”História da música popular brasileira (Adelino Moreira, Jair Amorim &
Evaldo Gouveia)”. 3a ed. São Paulo: Abril Cultural, 1982.
13. Dissertação defendida naquela instituição em 4 de Outubro de 1999. A
banca examinadora foi formada pela Profª. Drª Sônia Apparecida de
Siqueira - minha orientadora - , e pelos professores doutores Nilson Alves
de Morais e José Carlos Sebe Bom Meihy.
14. A lista completa dos artistas entrevistados encontra-se na última parte
deste livro (Fontes e bibliografia). As entrevistas passaram por um processo
de edição, que visa dar maior clareza e normalização à linguagem,
evitando-se os riscos de uma má recepção da mensagem. (Ver José Carlos
S. Bom Meihy. Manual de história oral. São Paulo: Loyola, 1996).
15. Edgar Morin. "Não se conhece a canção". In. Linguagem da cultura de
massa. Petrópolis: Vozes, 1973, p. 144.
16. Texto do encarte que acompanha o fascículo 1 "Chico Buarque”.
História da música popular brasileira. 3a ed. São Paulo: Abril Cultural,
1982,
17. Dados fornecidos pelo Museu da Imagem e do Som em Janeiro de
2002.
18. Jacques Le Goff. História e memória. Campinas: Ed. Unicamp, 1996,
p. 109.
***
CAPÍTULO: UM ALFAIATE NO CENTRO DA POLÊMICA
19. Zuenir Ventura. 1968: O ano que não terminou. A aventura de uma
geração. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1988, p. 75.
20. "Guerra no mundo do iê,iê,iê" - O Cruzeiro, 31-8-1968.
21. Para a identificação dos sucessos musicais citados neste livro foram
consultados os arquivos de dois institutos de pesquisa: O Ibope Discos
Pesquisa sobre vendas de discos (Rio de Janeiro / São Paulo / Recife)
Acervo do Arquivo Edgar Leuenroth / Unicamp; e o Nopem - Pesquisa
de mercado sobre vendas de discos - instituto inaugurado em 1965 e
ainda hoje em atividade no Rio de Janeiro.
22. Puxado pelo sucesso de A última canção, o LP "Paulo Sérgio vol. 1"
alcança o primeiro lugar de vendagem no Rio e em São Paulo nos meses de
Junho e Julho de 1968. Fonte: Ibope Pesquisa sobre vendas de discos Acervo do Arquivo Edgar Leuenroth / Unicamp.
23. "Roberto Carlos: como morre um ídolo" - O Cruzeiro, 30-11-1968.
24. Idem, ibidem.
25. "Guerra no mundo do iê,iê,ie" - O Cruzeiro, 31-8-1968.
26. Idem, ibidem.
27. Idem, ibidem.
28. "Uma voz persegue Paulo Sérgio" - Intervalo, Nº 275, abril de 1968.
29. "Roberto Carlos: a hora da verdade" - Intervalo, Nº 295, Setembro de
1968.
30. "Discos Novos". - Veja, 11-4-1973.
31. Conforme proposição de Marcos Napolitano. Seguindo a canção:
engajamento político e indústria cultural na MPB (1959-1969). São Paulo:
Annablume: Fapesp, 2001.
32. Marilena Chauí, op. cit, p. 10. Para uma melhor análise do kitsch conceito de origem alemã que se refere ao subproduto de uma arte maior ver Umberto Eco. Apocalípticos e integrados. São Paulo: Perspectiva,
1993, especialmente o capítulo “Á estrutura do mau gosto", pp. 69-128.
33. Uma terceira vertente da música popular brasileira na época é aquela
formada por Rifa Lee, Raul Seixas, Tim Maia, Cassiano, Luiz Melodia e
outros que seguiam a linha do soul ou do rock.
NELSON NED E OS CAFONAS NO ANO DE 1968
***
“Eu via aqueles soldados e tanques de guerra atravessando as ruas da
cidade e tinha muito medo daquilo. Era um negócio que a gente não
entendia direito, mas que intimidava muito.”
(Wando)
Para além do clima de polêmica que envolveu as camadas populares em
relação a Roberto Carlos e Paulo Sérgio, ou os intelectuais em relação às
idéias de Lukács e Althusser, 1968 foi um ano essencialmente político. É
nesta data que se registram a morte do estudante Edson Luiz (ocorrida
durante confronto com militares no Rio de Janeiro); a invasão da
Universidade de Brasília (comandada por tropas da polícia e do Exército); a
Passeata dos Cem Mil (manifestação de protesto contra o governo); e,
principalmente, a decretação do AI-5 (ato que oficializou a ditadura militar
no Brasil).
É fato notório que artistas e público da canção popular romântica não
tiveram relação direta com nenhum desses acontecimentos, pois
mantinham-se alheios às questões políticas. Mas esta alienação talvez possa
ser explicada em função do lugar social ocupado por cada um deles na
época, já que todos aqueles episódios de 1968 causaram impacto na classe
média mais intelectualizada e em setores populares organizados, não
obtendo a mesma repercussão em outros segmentos sociais.
Como, aliás, observou o escritor Nelson Rodrigues ao afirmar, com sua
peculiar ironia, que na Passeata dos Cem Mil não estava presente "um
único e escasso preto. E nem operário, nem favelado, e nem torcedor
do Flamengo, e nem barnabé, e nem pé-rapado, nem cabeça-de-bagre.
Ali, estavam os filhos da grande burguesia, os pais da grande
burguesia, as mães da grande burguesia. Portanto, as elites".(34)
Mesmo assim, qual a lembrança que artistas populares como Waldik
Soriano, Odair José e Nelson Ned têm daqueles agitados e distantes dias de
1968? E de que maneira eles acompanharam - ou não - aqueles fatos
políticos?
Em 1968, o cantor e compositor Odair José de Araújo estava com 20 anos e
ainda batalhava a oportunidade de gravar o seu primeiro disco.
Natural de Morrinhos, Goiás, o cantor morava no Rio de Janeiro desde o
fim de 1966, quando chegou para tentar a carreira artística. Sem dinheiro
no banco, sem parentes importantes e vindo do interior, Odair José
perambulou pela cidade como um autêntico vagabundo. "Minha mulher e
minha mãe não gostam que eu fale isso, mas eu fui garoto de rua no
Rio de Janeiro. Dormi debaixo de ponte, dormi em marquise, em
escadarias de teatro, essas coisas todas."
Numa de suas andanças pelo centro da cidade, Odair cruzou com a figura
esguia e elegante do compositor Ataulfo Alves e falou-lhe do seu desejo de
se tornar um artista do rádio. O autor de ”Ai que saudades da Amélia”
simpatizou com aquele garoto franzino, com cara de fome, que dizia não
ter onde morar, e o alojou num pequeno apartamento que ele usava para
eventuais encontros com alguma cabrocha. "Mas raramente Ataulfo
aparecia ali; o Viagra ainda não tinha sido inventado", observa Odair.
Outro encontro importante para ele foi com o produtor e compositor
Rossini Pinto, que levou Odair para trabalhar na CBS, onde gravaria o seu
primeiro disco, em 1970. A partir daí, o cantor foi colecionando uma série
de canções de sucesso que o tornaram conhecido como "o terror das
empregadas" e o "Bob Dylan da Central".
Sobre a Passeata dos Cem Mil no Rio de Janeiro, que precedeu a
decretação do AI-5 e contou com a participação de Chico Buarque, Edu
Lobo, Vinicius de Moraes e de vários outros artistas e intelectuais, Odair
José afirma que não participou porque estava trabalhando: "Naquela época
eu vivia dentro de um estúdio. Não que eu não estivesse preocupado
com o que estivesse rolando, mas eu tinha que me preocupar com a
minha vida pessoal. Eu corria atrás do meu trabalho. Por exemplo, o
Chico Buarque tinha a casa dele, tinha o pai dele, então era muito fácil
pra ele participar da passeata. Mas eu não tinha aqui nem pai nem
mãe e nem casa pra morar. Então eu precisava batalhar pelo meu
disco, pelo meu show. Eu não podia ficar muito envolvido com aquilo."
(passeata dos Cem Mil – 1968).
De brincos e colete, indumentária própria dos ciganos, além do violino, dos
timbales e do pandeiro, constantes em sua música, o cantor e compositor
Benito di Paula é um dos nomes mais populares do cenário artístico
brasileiro dos anos 70 e o símbolo maior do chamado sambão-jóia: "Eu
sou cigano, não vou negar minha raça, não posso negar que sou cigano,
esta no meu sangue." E ao falar um pouco mais sobre a sua origem, ele
arremata com um desabafo: "Todo mundo diz que Hitler matou milhões
de judeus, e quantos ciganos estavam lá? Ainda não me contaram isso.
E quantos ciganos estão no Brasil e na América Latina? Ainda não me
contaram essa história."
Fluminense de Friburgo, este sambista cigano começou a atuar
profissionalmente em boates da Zona Sul carioca, transferindo-se para as
casas noturnas paulistas no início dos anos 60. Em 1966 gravou o seu
primeiro disco - um compacto com dois boleros pela gravadora RGE mas
sem alcançar nenhuma repercussão.
Assim, em 1968, Benito di Paula estava com 24 anos e continuava
conhecido apenas pelos freqüentadores da noite em São Paulo. E também
dizendo-se envolvido com seu trabalho, não participou de nenhuma das
manifestações políticas ocorridas naquele ano na capital paulista. "Eu
cansei de ver tudo isso, inclusive ali no Largo de São Francisco, o
pessoal da UNE, os estudantes protestando muito e tal, mas eu
precisava cuidar da minha família; eu tinha que cuidar da minha mãe,
do meu pai, dos meus irmãos. Eu precisava comprar uma casa para
minha mãe, mas eu ganhava na época sete cruzeiros por noite; quer
dizer, a política já estava ruim pra mim. Aí eu tinha que ir trabalhar."
Autor de ”O homem de Nazareth” - "Ei, irmão / vamos seguir com fé /
tudo que ensinou / O homem de Nazareth"”, um dos maiores sucessos da
década de 70,(35) o cantor e compositor Claudio Fontana tinha 22 anos em
1968 e ainda não era um artista de popularidade nacional. Maranhense de
São Luís, ele morava desde 1965 no Rio de Janeiro, trabalhando de
taquígrafo e tentando a carreira musical. Um dos seus primeiros contatos na
cidade foi com o compositor José Cândido, parceiro de João do Vale em
”Carcará”, composição que naquele ano integrava o show Opinião,
estrelado pela cantora Nara Leão. E Claudio Fontana recorda que certo dia
José Cândido chegou pra ele e disse: "Rapaz, esta é a sua chance: a Nara
Leão teve um problema lá e vai ter que se afastar da peça. E eles precisam
de alguém para cantar ”Carcará”. Eu vou te apresentar para o João do
Vale. Você é maranhense como ele, canta alto, canta bem, o João vai gostar
de você."
Acreditando nesta possibilidade - afinal, José Cândido era um dos autores
da música - , Claudio Fontana passou uma semana ensaiando ”Carcará”.
"Mas quando o Zé me levou para falar com João do Vale, encontramos
ele bêbado, caindo pelos cantos, igual uma porca. Foi um negócio
terrível. E eu não consegui falar com o João. Aí a pessoa que eles
trouxeram para substituir a Nara Leão foi a Maria Bethania, que na
época era uma nordestina tão desconhecida quanto eu."
Sem espaço no Opinião, o cantor procurou se enturmar com o pessoal da
jovem guarda, e em 1967 a sua composição ”Doce de coco” foi gravada
com sucesso por Wanderley Cardoso. Mas o nome Claudio Fontana só
alcançou projeção nacional dois anos depois, com a gravação do primeiro
LP e o estouro da faixa ”Adeus ingrata”.
Com relação aos fatos políticos de 1968, o artista não guarda muitas
referências, porém recorda de algumas manifestações estudantis ocorridas
no Rio de Janeiro no período um pouco anterior, quando ele trabalhava
numa exportadora na Lapa e morava numa quitinete próxima ao prédio da
UNE, no Flamengo. "Como eu trabalhava o dia inteiro e acordava cedo
eu não participei de nenhuma daquelas passeatas, mas muitas vezes eu
voltei a pé do local do trabalho, porque aquele movimento todo dos
estudantes causava muito tumulto no Centro da cidade e os ônibus não
podiam passar. Então me lembro que eu tinha que voltar a pé pra
casa."
Mineiro de Bom Jardim, o cantor e compositor Wanderley Alves dos Reis,
o Wando, estava com 23 anos em 1968 e morava em Volta Redonda,
cidade fluminense que, por ser sede da Companhia Siderúrgica Nacional,
vivia cercada de tropas do Exército. Naquela época, Wando trabalhava de
feirante durante o dia e era músico de baile à noite, combinação difícil
porque, quando ele desligava o som dos instrumentos no clube, já era a
hora de abrir as barracas na feira. "Foi então que um cara chamado
Alcebíades, um ex-presidiário que trabalhava comigo, um dia me deu
um sábio conselho: 'acho que você está fazendo a coisa errada. Você
gosta de música, então arrisque tudo pela música'."
O conselho foi aceito e a carreira artística do cantor deslanchou a partir de
1971, quando sua composição ”O importante é ser fevereiro” chegou ao
sucesso na voz de Jair Rodrigues, possibilitando a Wando a gravação do
primeiro disco.
Mas qual a lembrança que o cantor teria dos fatos políticos do ano de 1968,
quando era apenas um feirante em Volta Redonda? "Eu não tinha
nenhuma noção do que estava acontecendo, até porque naquela época
as informações eram mínimas. A Passeata dos Cem Mil, por exemplo,
era algo totalmente distante pra mim. Hoje tenho consciência de que
eu morava num barril de pólvora. Me lembro que eu via aqueles
soldados e tanques de guerra atravessando as ruas da cidade e tinha
muito medo daquilo. Era um negócio que a gente não entendia direito,
mas que intimidava muito."
(Deputado Márcio Moreira Alves - discurso que provocou a decretação
do AI-5)
Com a decretação do Ato Institucional Nº 5 em dezembro de 1968, a
chamada "linha dura" das forças armadas se consolidava no poder,
institucionalizando o Estado ditatorial implantado em 1964.
O regime militar utilizou o AI-5 para levar às últimas conseqüências o seu
modelo político-econômico, baseado no trinômio segurança-integraçãodesenvolvimento e apoiado no grande capital privado e estatal, no
aprofundamento da exploração do trabalho, na cassação das liberdades
civis e numa rígida censura. Mas o pretexto de que se valeu o presidente
Costa e Silva para editar o AI5 foi o que ficou conhecido como o "caso
Márcio Moreira Alves".
Na manhã do dia 3 de Setembro de 1968, o jovem deputado federal do
MDB da Guanabara subiu à tribuna da Câmara para protestar contra a
ocupação militar da Universidade de Brasília - fato ocorrido quatro dias
antes e que resultou em tiros, espancamentos e prisões de vários estudantes.
Refletindo a indignação de diversos setores da sociedade, em seu discurso,
que durou menos de 10 minutos, Márcio Moreira Alves propôs, como
forma de protesto, que a partir daquele momento deveria cessar no Brasil
“todo e qualquer contato entre civis e militares".
E ele conclamava os pais a proibir seus filhos de participar dos desfiles
escolares do 7 de Setembro, sob o argumento de que os estudantes não
deveriam sair às ruas "ao lado dos carrascos que os espancam e os
metralham". Mas o orador foi ainda um pouco mais ousado e defendeu que
este boicote poderia alcançar também o leito conjugal, sugerindo às
mulheres dos militares mirarem-se no exemplo daquelas mulheres de
Atenas que, segundo o texto de Aristófanes, rejeitaram seus maridos para
forçá-los a terminar a guerra contra Esparta.
E Márcio Moreira Alves acrescentava que esta proposta de greve de sexo
deveria ser estendida também "às moças, às namoradas, àquelas que
dançam com os cadetes e freqüentam os jovens oficiais".(36)
Quando na manhã seguinte o discurso do deputado começou a circular
pelos quartéis, a movimentação na tropa foi intensa, e de quase todas as
guarnições militares partiram telegramas endereçados ao Palácio do
Planalto com um único e expresso pedido: a "cabeça" de Márcio Moreira
Alves.
Mas, como integrante do Poder Legislativo, o deputado estava protegido
pela imunidade parlamentar e, em votação no plenário, no dia 12 de
dezembro, a Câmara se negou a conceder a licença para que ele fosse
processado pelos ministros militares.
Aproveitando-se deste fato, no dia seguinte, uma sexta-feira 13, o governo
decretou o AI-5, e com base nele fechou o Congresso, cassou mandatos,
suspendeu direitos políticos, efetuou prisões, cessou garantias
constitucionais, outorgando a partir daí - e por 10 longos anos - , poderes
quase totais e absolutos ao regime dos generais presidentes. "Quantas vezes
precisaremos ainda repetir e provar que a revolução é irreversível", afirmou
na época o presidente Arthur da Costa e Silva, advertindo que "sempre que
imprescindível, como agora, faremos novas revoluções dentro da
revolução".(37)
O momento do anúncio do AI-5, feito pelo ministro da Justiça Gama e
Silva através de uma cadeia de rádio e televisão, foi vivenciado de
forma marcante por diversos artistas da MPB. Chico Buarque, por
exemplo, recorda que naquela noite estava em sua casa vendo TV ao
lado do ator Hugo Carvana e que, quando o ministro terminou de
anunciar o novo ato institucional, Carvana virou-se para ele e
exclamou: "Estamos fodidos."(33)
O compositor Geraldo Azevedo, por sua vez, afirma que naquele dia
ele e o percussionista Naná Vasconcelos acompanhavam Geraldo
Vandré numa excursão do show Pra não dizer que não falei de flores no
Planalto Central. "Foi uma loucura. Vandré ficou louco; não sabia o
que fazer e o medo de ele ser preso nos fez cancelar o espetáculo
programado para o Iate Clube, em Brasília; tomamos o caminho do
Rio. Vandré, com pose de Che Guevara, parecia alucinado, e Naná
Vasconcelos às vezes perdia a paciência e dizia 'vou dar umas porradas
neste cara'."(39)
E onde estariam os cantores "cafonas" naquela noite de sexta-feira, 13 de
dezembro de 1968?
Agnaldo Timóteo tinha 32 anos na época e ainda saboreava o gosto do
sucesso tão recentemente conseguido. "Foi a carreira mais difícil do
Brasil. Onze anos para chegar ao sucesso, sendo cinco anos com ódio.
Minha vitória virou obsessão, eu tinha que me vingar. Cada vez que
alguém me espezinhava, me humilhava, eu voltava para casa e dizia:
ainda vou me vingar." (40).
Trabalhando no Rio de Janeiro desde 1960 (inicialmente como torneiro
mecânico e depois como motorista da cantora Ângela Maria), o mineiro de
Caratinga se consolidou como um artista de projeção nacional a partir de
1967, com o lançamento de seu terceiro LP,"Obrigado querida". Gravado
na Odeon, o disco trazia versões como ”Os verdes campos da minha terra
(Green, Green Grass of Home)”, “Mamãe estou tão feliz (Mamma)” e o
seu maior sucesso, a balada ”Meu grito”, composição de Roberto Carlos
feita especialmente para o disco do novo cantor.
Até aquele momento sem poder revelar ao público o rosto ou o nome de
Cleonice Rossi, com quem iria se casar (diziam que Roberto Carlos poderia
perder o apoio das fãs), o rei da jovem guarda desabafava através da voz de
Agnaldo Timóteo: “Ai que vontade de gritar / seu nome bem alto e no
infinito..."
Em relação à crise institucional vivida pelo país em 1968, Timóteo não
guarda muitas referências. "Nem me lembro disso. Na época eu não
tinha nenhuma vivência política. Eu não me envolvia com política e os
políticos não se envolviam comigo. Eu não mandava general à merda;
general não faltava ao respeito comigo. Os generais me deixavam
cantar, fazer sucesso e ganhar dinheiro."
Mas o cantor não teria alguma lembrança da repercussão do dia seguinte ao
anúncio do AI-5? "Não, claro que não. Aquilo não mudou
absolutamente nada na minha vida. Em que ano foi mesmo?"
O único fato marcante que Timóteo se recorda de 1968 ocorreu no dia 15
de dezembro, um domingo, dois dias após o AI-5. "Bota aí que eu sou um
lutador e que só escapei com vida da multidão que queria me linchar
graças às rezas da minha mãe. Há muito tempo que essa turma da
praça do Lido tem bronca do meu carro, um Oldsmobile conversível, e
sempre que passo ali sou chamado de bicha e outros insultos."(41)
O desabafo de Timóteo foi feito no dia seguinte à violenta briga em que se
envolvera na praia do Leme, no Rio, em dezembro de 68. Segundo ele, no
momento em que atendia um grupo de moças que lhe pedia autógrafos, uns
rapazes o provocaram com gracejos e atirando-lhe saquinhos de areia.
"Não tive dúvida, mandei meu irmão buscar um revólver em casa e
ameacei todo mundo. Aí começou o tumulto e o meu motorista acabou
dando uns tiros para o alto. Virou um corre-corre com o pessoal quase
me linchando." (42)
Os tiros provocaram pânico na praia e revolta em centenas de banhistas.
Cercado pela turba, Timóteo agrediu e foi agredido com socos, pontapés e
até garrafadas na cabeça. O seu motorista abriu caminho com mais disparos
para o alto e os dois entraram no automóvel, partindo em alta velocidade
para a casa do cantor, em Copacabana.
O grupo de rapazes não desistiu e seguiu atrás provocando novos tumultos.
Com várias escoriações no corpo e cortes na cabeça, Timóteo conseguiu
abrigar-se em seu apartamento, mas os enfurecidos agressores invadiram a
garagem do prédio, retiraram seu automóvel, o reviraram e o depredaram
na rua.
Muitas pessoas que passavam pelo local somaram-se aos depredadores do
veículo. "Foi como uma reação em cadeia" - diz o jornal A Notícia - , “o
público composto de gente pobre querendo vingar-se da riqueza do
artista ostensivamente provada num carro importado por vários
milhões de cruzeiros." (43) O novíssimo Oldsmobile conversível do
cantor só não foi totalmente destruído porque um batalhão de choque da
Polícia Militar chegou ao local, dispersando a multidão com bombas de gás
lacrimogêneo. Para Agnaldo Timóteo, 1968 começou e acabou aí.
Naquele ano os irmãos Dom e Ravel estavam com 24 e 22 anos de idade,
respectivamente. Eram ainda dois obscuros artistas de música jovem, mas
suas composições, na maioria românticas, começavam a ser gravadas por
cantores da jovem guarda, como Jerry Adriani, Wanderley Cardoso e
Wanderléa.
O primeiro disco da dupla, um compacto simples, foi gravado na RCA em
1969 e uma das faixas, Desvio mental, trazia uma letra nonsense, repleta de
aliterações (“Átrás das portas / moscas mortas..."), num arranjo revestido
de guitarras e vozes distorcidas ao estilo dos Mutantes. O projeto da
gravadora era lançar Dom e Ravel como os novos astros da tropicália -
aproveitando o vazio deixado por Caetano Veloso e Gilberto Gil, que
naquele ano partiram para um forçado exílio em Londres.
Mas o disco foi um fracasso completo: ninguém comprou ou tocou ”Desvio
mental”. "Fomos ridicularizados e caímos em grande frustração",
recorda Dom. O segundo compacto, também lançado em 1969, não teve
melhor sorte e o projeto tropicalista foi definitivamente arquivado.
A dupla cearense só alcançou projeção nacional no fim de 1970, em
conseqüência do sucesso da marcha ”Eu te amo meu Brasil”.
Sobre a decretação do AI-5, nem Dom nem Ravel viveram aquilo como um
acontecimento marcante em suas vidas. Ravel, por exemplo, afirma que
quando ouviu pela primeira vez algumas pessoas comentando o episódio
imaginou que a sigla tivesse alguma referência com a área musical. "Eu
pensava que AI-5 fosse o nome de uma banda que estava aparecendo
ou de um novo grupo vocal de samba, tipo MPB-4, alguma coisa mais
ou menos por aí. Eu não tinha noção do que era, do que deixava de ser
ou de onde vinha. Eu não sabia o que era aquilo, não."
Ao lado de nomes como Dorival Caymmi, João Gilberto, Caetano Veloso e
Raul Seixas, o cantor e compositor Eurípedes Waldik Soriano é um dos
mais peculiares artistas que a Bahia já apresentou ao Brasil. De terno de
linho, rolete, chapéu preto e óculos escuros, a imagem de Waldik e o som
de seus boleros eram o símbolo maior da cafonice nos anos da ditadura
militar. "Criei o meu estilo, um brasileiro americanizado, sob
influência dos grandes artistas do passado e das guarânias. E com
minha música, toco o povo, procuro chegar à sua alma." (45)
Waldik Soriano estava com 35 anos em 1968, mas ainda não era um artista
conhecido em todo o país. Os seus discos e shows, a maioria realizados em
circos, feiras e cabarés, faziam sucesso apenas em algumas regiões do
Norte-Nordeste.
Foi só a partir de 1969, com o lançamento do bolero ”Paixão de um
homem” – “Amigo / por favor leva esta carta / e entregue àquela ingrata / e
diga como estou" (46), que o cantor baiano se tornou um nome de projeção
nacional. E a tal ponto que, assim como ocorrera com os Beatles e Roberto
Carlos, o sucesso da sua música também o levou ao cinema, estrelando
filmes como ”Paixão de um homem” e ”O poderoso garanhão”. (47)
Indagado sobre o que fazia na noite em que o governo anunciou o AI-5,
Waldik respondeu que tinha terminado um show em Itapetinga, interior da
Bahia, e se dirigia para Vitória da Conquista a bordo do seu DKV.
"Durante a viagem, com o rádio do carro ligado, eu ouvi o discurso de
Brizola na Central do Brasil. Porra, aí eu ouvi o pau quebrar, na hora;
foi na hora, rapaz! Aí eu cheguei em Vitória da Conquista. Quando eu
saí de lá, já fui encontrando militares na estrada. Puta que pariu! Todo
posto onde a gente passava. encontrava a polícia. E a gente era
obrigado a parar. Aí os caras diziam: 'abra esse porta-malas aí, porra!
'Mas não tem nada, não, rapaz, eu sou apenas um cantor. Sou o
Waldik Soriano. 'Não tem nada a ver, abra essa porra aí.' E tinha cada
soldadinho sem-vergonha, chato."
Evidentemente, ao fazer referência a Leonel Brizola e ao Comício da
Central do Brasil, Waldik Soriano confunde a decretação do AI-5 em 1968
com fatos relacionados à crise política e ao golpe militar de 1964. Mas esta
troca só revela a pouca identificação do compositor com o episódio de
1968. De certa forma, e como o próprio depoimento dele nos mostra, o
golpe de Estado quatro anos antes foi muito mais visível para ele do que a
decretação do AI-5.
Conhecido como o "pequeno gigante da canção”, o cantor e compositor
Nelson Ned d'Ávila Pinto estava com 21 anos em 1968. Mineiro de Ubá,
cidade onde também nasceu Ary Barroso, desde 1962 Nelson Ned tentava a
carreira artística no Rio de Janeiro, antecipando-se à rapaziada do "clube da
esquina", seus colegas.
Sim, antes de se profissionalizar, Nelson Ned freqüentava o apartamento
dos irmãos Márcio e Lô Borges, no centro de Belo Horizonte, onde se
reunia o grupo mineiro do qual fazem parte Milton Nascimento e Beto
Guedes. "Nelsinho Ned também se sentia à vontade lá em casa. Além
disso, todos nós admirávamos de verdade os prodigiosos talentos vocais
daquele menino e sua tenacidade", afirma Márcio Borges no seu livro Os
sonhos não envelhecem. A história do clube da esquina. (48)
Foram vários os percalços enfrentados por Nelson Ned no início da
carreira. "Eu senti como era pesado o meu corpo pequeno. Eu não tinha
cor, forma física, era apenas uma sombra branca para os produtores.
Um simples anãozinho grotesco", desabafa. (49)
Em 1964 ele gravou o seu primeiro disco, um compacto com a valsa Eu
sonhei que tu estavas tão linda, na gravadora Philips, e, logo em seguida, o
primeiro LP na mesma gravadora. Com o título Um show de 90
centímetros (nome de um antigo programa infantil que o cantor
apresentava em Belo Horizonte), a capa do LP mostra Nelson Ned em pé,
vestido de smoking e com uma fita métrica ao seu lado sugerindo a
marcação dos 90 centímetros.
Ele relata que, quando viu a capa do disco, imediatamente protestou: "Mas
eu já tenho agora um metro e 12 centímetros de altura!". Ao que os homens
da gravadora retrucaram: "Mas nós queremos explorar comercialmente
esses 90 centímetros. Quanto menor você parecer ao público, melhor será
para a promoção." (50)
Apesar de toda a apelação da gravadora, o primeiro LP de Nelson Ned não
alcançou nenhum sucesso e ele acabou sendo dispensado da Philips. O
cantor prosseguiu tentando uma nova oportunidade em outras gravadoras, e
em 1969 lançou pelo selo Copacabana um compacto com duas músicas que
se tornaram imediatos sucessos nacionais: Domingo à tarde e a balada
Tudo passará (51) - "Mas tudo passa / tudo passará / e nada fica / nada
ficará..." - , composição que hoje conta com mais de 40 regravações em 10
idiomas.
Sobre a noite do anúncio do AI-5 Nelson Ned também revela um total
distanciamento. "O pessoal com quem eu convivia, ninguém era
politizado. Eu não tinha essa informação, essa conscientização política
que hoje eu tenho. Além de tudo, em 1968 eu estava muito absorvido
pela minha carreira, querendo lutar e tal. O meu negócio era
trabalhar, ajudar minha mãe e mandar dinheiro pra casa. Por isso que
o AI-5 pra mim não foi importante. Aquilo era uma coisa de um
universo muito distante. É como falar de uma sonda que está lá em
Marte. O meu universo era outro."
Se, como definiu Zuenir Ventura, 1968 foi o ano que não terminou, isso
deve ser aplicado aos artistas e intelectuais de formação de classe média
que naquele momento estavam envolvidos com o processo político
brasileiro e "andavam com a alma incendiada de paixão
revolucionária".(52)
Para a maioria dos artistas românticos da nossa música popular, bem como
para grande parte da população brasileira, 1968 foi o ano que não começou.
E este fato nos remete à questão da pluralidade dos tempos históricos.
Como enfatiza o sociólogo francês Michael Pollak, a História está se
transformando em histórias - plurais e diferenciadas - até mesmo sob o
aspecto da cronologia. O autor destaca que trabalhos de história oral na
Alemanha têm apontado que cortes políticos consagrados pela
historiografia tradicional, como a tomada do poder pelo Terceiro Reich em
1933, ou a criação da República Federal Alemã em 1949, não tinham sido
vividos como tão marcantes pelos segmentos populares daquele país. Nas
histórias individuais do povo alemão aparecem com muito mais destaque as
datas de 1935 - quando pela primeira vez se assistiu à estabilização do
emprego e da renda familiar - , e 1948 - ano da reforma monetária.
Portanto, afirma Pollak, devemos estar atentos à existência de histórias
plurais, de cronologias plurais em função de uma vivência diferenciado das
realidades. (53)
Isto ajuda a explicar, no caso brasileiro, a pouca identificação dessa
geração de cantores românticos com os acontecimentos políticos de 1968.
É possível até dizer que eles assistiram à decretação do AI-5 também
"bestializados”, sem compreender o seu significado.(54) E, no entanto,
mesmo estando "desligados" da questão política - que é uma das esferas,
entre tantas outras, da vida cotidiana - , a produção musical desses artistas
vai denunciar o autoritarismo vivenciado pelos segmentos populares em
nosso país.
Isto porque o Estado ditatorial controlado pelas Forças Armadas era apenas
uma das faces do autoritarismo presente na vida social brasileira daquele
período. E neste sentido é importante também recorrer à análise de
Marilena Chauí, que questiona uma determinada memória histórica que
fala do autoritarismo no Brasil apenas como um regime político ou uma
forma de governo que se impõe com a ruptura da ordem legal - os
chamados "regimes de exceção".
A autora destaca que esta memória deixa na sombra o que é fundamental:
que a sociedade brasileira, como sociedade, é autoritária. Ou seja, é uma
sociedade marcada por profundas desigualdades sociais, que produz em seu
interior uma legião de excluídos e consagra a individualidade como um
fenômeno existente apenas da classe média para cima; é também uma
sociedade na qual a estrutura fundiária produz o fenômeno da migração, do
bóia-fria e do sem-terra; enfim, é uma sociedade onde há discriminação
racial, sexual e de classe.
E isto independentemente de estarmos vivendo nos chamados regimes de
exceção ou nos chamados regimes democráticos. Assim, argumenta Chauí,
embora os traços do autoritarismo tenham sido, sem dúvida, reforçados
com o golpe de Estado de 1964, o autoritarismo no Brasil "não é exceção,
nem é mero regime governamental, mas a regra e expressão das
relações sociais". (55)
Pois é justamente este autoritarismo latente na sociedade brasileira o que
será denunciado em diversos textos do repertório "cafona”. Autoritarismo
que se expressa através do preconceito aos pobres, aos negros, aos
homossexuais, às prostitutas, às empregadas domésticas, aos analfabetos,
aos deficientes físicos e aos imigrantes nordestinos. E - importante destacar
- autoritarismo que é vivenciado no cotidiano pelo público ouvinte desta
música e pelos próprios compositores ao longo de suas trajetórias de vida.
Os irmãos Dom e Ravel, por exemplo, afirmam que ao chegar a São Paulo
sofreram muita discriminação por serem pobres e nordestinos.
"E eu percebia isso quando tinha que fazer trabalhos escolares na casa
de alguns colegas" - recorda Ravel - , "os meninos riquinhos entravam
normalmente pela porta da frente, mas eu, eles me mandavam dar a
volta e entrar pela porta dos fundos. Me colocavam assim numa
posição bem inferior. E quando você é criança isso marca muito, né? E
nos outros prédios da cidade acontecia mais ou menos a mesma coisa:
sempre me mandavam entrar pela área de serviço. E eu nem era
empregado daquele local, mas assim que eu chegava, me diziam: 'por
favor, entre lá pela área de serviço'."
Ao falar sobre preconceito racial numa entrevista ao jornal O Pasquim,
Agnaldo Timóteo revelou que não conseguia trabalhar em determinados
clubes do Brasil porque o proprietário lhe confessava: "Não vamos
contratá-lo porque você é um artista de cor. E isso não fica bem no
nosso clube, entende?" (56) Nelson Ned também afirma que teve que
enfrentar muitas barreiras para conseguir se impor como artista de sucesso
no Brasil.
"Este é o país do preconceito" - argumenta ele” – ”o Brasil é o único
pais do mundo que tem leis estigmatizadas tais como o negro para a
cozinha, a mulher para a cama, o anão para o circo e o cego para pedir
esmolas. E eu precisava mostrar para as pessoas que eu cantava e era
pequeno, e não cantava porque era pequeno, porque eu nunca
trafiquei com a minha estatura, nunca quis fazer da minha estatura
uma arma de projeção. E quando você vence todas essas barreiras, e
desestabiliza esse sistema preconceituoso, você passa a ser uma pessoa
às vezes até indesejável, um espécime raro, observado com muita
peculiaridade...."
"...Outro dia eu estava até conversando com o Pelé sobre isto, porque
realmente molesta, uma pessoa da estatura de um artista como eu ou
da estatura de um Pelé, ter alcançado, dentro da nossa sociedade, o
lugar que nós alcançamos. Isso incomoda, não está escrito no contexto
do Brasil. E até hoje eu não sou respeitado no meu país, eu me faço
respeitar, o que é diferente.'' (57)
Independentemente da consciência explícita ou implícita deste
autoritarismo, a produção musical desta geração de artistas constitui-se em
documento que denuncia a falta de cidadania real das camadas populares e,
além disso, também revela aspectos da sexualidade desviante que muito
incomodaram o sistema repressivo do regime.
E isso pode ser comprovado a partir do próximo capítulo, com a análise de
um conjunto de canções que narra o cotidiano de determinados segmentos
da sociedade (homossexuais, prostitutas, meninos de rua, mendigos, sem-
terra, imigrantes nordestinos e outros), que naquela época viviam à margem
da ordem social estabelecida pelo regime militar no Brasil.
NOTAS SOBRE O CAPÍTULO "COMO UMA SONDA EM
MARTE"
(SEGUINDO A NUMERAÇÃO SEQUENCIAL CONTIDA NO
TEXTO)
***
34. Nelson Rodrigues. "O entendido, salvo pelo ridículo". In Ruy
Castro (org.) À sombra das chuteiras imortais - crônicas de futebol.
São Paulo: Companhia das Letras, 1996, p. 180.
35. Lançado no final de 1973, O homem de Nazareth aparece em 1º
lugar na lista das gravações em compactos simples mais vendidos na
semana de 26 de novembro a 1º de dezembro de 1973, no Rio. Fonte:
Ibope - Pesquisa sobre vendas de discos”Acervo do Arquivo Edgar
Leuenroth / Unicamp.
36. "Manifesto, repúdio, CPI – “arenistas e emedebistas unem-se
contra a violência" - Folha de S. Paulo, 4-9-1968.
37. "Costa adverte: 'Faremos novas revoluções dentro da Revolucão"'
- O Dia, 17-12-1968.
38. Cf. Humberto Werneck. "Gol de Letra". In Chico Buarque música
e letra. São Paulo: Companhia das Letras, 1989, p. 82.
39. "Dois Geraldos se juntam e compõem o som do exílio” O Estado de
S. Paulo, 5-8-1995.
40. "Só a classe A não ouve o grito de Agnaldo” , Correio da Manhã,
10-3-1970.
41. "Rezas da mamãe foram a salvação de Agnaldo Timóteo no
linchamento do Leme" ”Ultima Hora, 17-12-1968.
42. "Timóteo não tem medo de Sinatra"”Folha de S. Paulo, 5-1-1980.
43. Agnaldo teme ficar cego de um olho após agressão"”A Notícia, 1712-1968.
44. "Veja o que restou dos cantores do milagre" - O Estado de S.
Paulo, 18-5-1986.
45. Waldik Soriano - Quem sou eu para julgar Jesus Cristo? - A
Notícia, 25-4-1973.
46. LanÇada em 1969, Paixão de um homem foi aos poucos galgando
as paradas de sucesso nacional. Na relação dos compactos simples mais
vendidos no ano de 1970, no Rio, a gravação de Waldik Soriano
alcança o 2º lugar em novembro e dezembro. A mesma gravação ainda
aparece em 6º lugar na relação dos 50 discos mais vendidos em 1971.
Fonte: lbope”Pesquisa sobre vendas de discos”Acervo do Arquivo
Edgar Leuenroth / Unicamp; Nopem”pesquisa de mercado sobre
venda de discos.
47. “Paixão de um homem” - produção de 1972, dirigida por Egydio
Accio / “O poderoso garanhão” - produção de 1973 dirigida por
Antonio B. Thome.
48. Márcio Borges. Os sonhos não envelhecem. A história do clube da
esquina. São Paulo: Geração Editorial, 1996, p. 49.
49. “A angústia é minha única inspiração" - Amiga, 20-10-1970.
50. Nelson Ned d'Ávila Pinto. & Jefferson Magno Costa. O pequeno
gigante da canção. São Paulo: Vida, 1996, p. 46.
51. O compacto simples com Tudo passará e Domingo à tarde aparece
em 1º lugar em vendagem nos meses de abril e mato de 1969, no Rio.
Fonte: Ibope”Pesquisa sobre vendas de discos”Acervo do Arquivo
Edgar Leuenroth / Unicamp.
52. Zuenir Ventura, op. cit., p. 16.
53. Cf. Michael Pollak. "Memória e identidade social". In Estudos
históricos. Rio de Janeiro: Cpdoc/FGV, V. 5, n" 10, 1992, pp. 209-210.
54. Na célebre carta de Aristides Lobo, publicada três dias após a
proclamação da República, em 15 de novembro de 1889, ele afirma que
"o povo assistiu áquilo bestializado, sem saber o que significava,
julgando tratar-se de uma parada". Apud Leôncio Basbaum. História
sincera da República (1889-1930). São Paulo: Alfa-Omega, 1981, p. 18.
55. Marilena Chauí, op. cit., pp. 60-61.
56. “gnaldo Timóteo (de Carahnga)" - O Pasquim, 21 a 27-11-1972.
57. Programa Show da Madrugada - Rádio Globo, 24-8-1991.
ODAIR JOSÉ NA MIRA DA REPRESSÃO
A partir do período do AI-5 - quando o ato de cantar e compor tornou-se
efetivamente caso de polícia no Brasil - , foram produzidos diversos textos
focalizando a ação da censura sobre a nossa música popular. E,
invariavelmente, esses textos, tanto os produzidos pela mídia (através de
reportagens em jornais e revistas) como os de origem acadêmica, (58)
procuram ressaltar de que maneira a obra de compositores como Chico
Buarque, Gonzaguinha ou Milton Nascimento foi mutilada ou arquivada
por força da censura federal.
Já a censura sofrida no mesmo período por artistas como Odair José,
Waldik Soriano, Luiz Ayrão, Benito di Paula ou Dom & Ravel não é
sequer mencionada. Em conseqüência disso, temos cristalizada, no campo
da música popular, uma memória que associa o período da repressão
política no Brasil apenas aos cantores/compositores da MPB.
Uma obra que contribuiu para propagar esta visão foi ”Músíca popular: de
olho na fresta”, do ensaísta Gilberto Vasconcelos. Publicado em 1977, o
livro reúne um conjunto de textos que procura acentuar o papel de
resistência desempenhado naquele momento por diversos nomes da MPB
que, dentro da tradição brasileira da malandragem, representariam, segundo
o autor, os "malandros" dos novos tempos. Baseando-se nos versos do
samba “Festa Imodesta”, composição de Caetano Veloso que tematiza a
problemática da censura - "Tudo aquilo que o malandro pronuncia / que o
otário silencia / toda festa que se dá ou não se dá / passa pela fresta da
cesta" - , Vasconcelos defendia como inevitável naquela conjuntura o
recurso da linguagem da fresta: aquela de que se vale o compositor popular
para malandramente driblar a censura imposta pelo regime.
“A manha da malandragem ganha hoje” - dizia ele - "um novo significado
histórico: o compositor malandro já não é mais aquele de lenço no pescoço,
navalha no bolso, como no tempo de Noel; mas, sim, aquele que sabe
pronunciar, ou seja, que sabe ludibriar o cerco do censor. E, desde
Napoleão, sabemos que toda censura é inepta: apesar de tudo, sempre
passa, como nos diz sabiamente “Festa Imodesta”, alguma coisa pela fresta.
Aos compositores críticos, o samba de Caetano traz uma sutil mas
importante advertência: dizer ou não dizer simplesmente é, nos dias de
hoje, uma falsa alternativa. O importante é saber como pronunciar; daí a
necessidade do olho na fresta da MPB." (59)
Mas Gilberto Vasconcelos define e nominalmente separa aqueles que
seriam os artistas "malandros" (Chico Buarque, Caetano Veloso, Gilberto
Gil, Luiz Melodia, Jards Macalé, Miguel Gustavo), dos "picaretas" (Dom &
Ravel, Benito di Paula, Luiz Ayrão, Wando, Gilson de Souza e outros), que
segundo ele exibem "uma visão cor-de-rosa da nossa sociedade" e não
fazem "senão reforçar os valores da cultura oficial".(60) Temos assim
sendo cristalizada a visão que apresenta os compositores da MPB como
símbolos da resistência, em oposição aos "cafonas" como símbolos do
conformismo social.
O trabalho do historiador Alberto Moby, publicado em 1994, comparando a
censura à música popular em dois períodos explicitamente autoritários,
Estado Novo e Regime Militar, não foge à tendência predominante.
Ao abordar os anos do AI-5, sua análise se prende tão-somente a nomes
como Chico Buarque, Gonzaguinha e João Bosco, porque, segundo ele,
estes artistas estavam comprometidos com a denúncia do autoritarismo
enquanto que "os representantes das demais denominações em que foi
dividida a música popular brasileira ou ignoravam tais preocupações ou
nunca deixavam que interferissem no seu trabalho artístico". (61)
Entretanto, o que será demonstrado aqui é que o aparato repressivo que se
abateu sobre a música e o músico brasileiro durante os anos mais duros do
governo militar não atingiu apenas os figurões da MPB, embora estes
fossem, até por sua visível militância política, muito mais vigiados e
censurados.
Mas os "cantores das empregadas" também foram vítimas da repressão, e
em algumas vezes também tiveram que malandramente valer-se da
linguagem da fresta para ludibriar o cerco do censor. E para melhor
compreender este embate talvez seja útil recorrer ao que o sociólogo inglês
Crane Brinton definiu como "reinado de terror e virtude".
Ao analisar os períodos de maior repressão política que se seguiram aos
processos revolucionários na Inglaterra de 1640, na França de 1789 e na
Rússia de 1917, o autor observa que em cada um deles a classe dirigente
parece ter desejado impor "na vida aqui na Terra, parte da ordem, disciplina
e desprezo pelos vícios fáceis que foram os objetivos dos calvinistas".
Assim, durante o governo jacobino na França "houve uma tentativa
vigorosa de limpar Paris, fechar casas de tolerância, antros de jogo e acabar
com a embriaguez. A virtude era a ordem do dia. Não se tolerava nem a
preguiça".
Da mesma maneira, durante o processo revolucionário russo, "os
bolcheviques proibiram a bebida nacional, a vodca, e quase todos os
primeiros sovietes tomaram providências contra a prostituição, o jogo, a
vida noturna", não sendo permitida a publicação de fotografias de mulheres
seminuas ou referência à pornografia na literatura ou em qualquer outra
forma de arte. (62)
Guardadas as especificidades do caso brasileiro, é possível identificar que,
no período que se seguiu à decretação do AI-5, as autoridades militares de
nosso país também pareciam imbuídas desta tentativa de implantação de
um "reinado de terror e virtude".
Em 1972, por exemplo, o ministro das Comunicações Higyno Corsetti
ditava normas para a TV e defendia a proibição de programas que
"exaltem, direta ou indiretamente, o erotismo, o alcoolismo e as inversões
sexuais".(63)
Enquadrado no último item, o costureiro Clodovil foi retirado do júri da
Discoteca do Chacrinha, na TV Globo. O Programa Silvio Santos também
enfrentou barreira semelhante. "Eu tinha um homossexual no júri, e o
coronel Erasmo Dias” , acho que foi ele, ”ligou pra mim e falou que eu
estava dando mau exemplo. Tirei o jurado do ar", afirma o
apresentador.(64)
Principalmente durante os chamados "anos de chumbo", que
compreendem todo o período do governo Médici (1969-1974), a repressão
moral caminhou passo a passo com a repressão política. A referência
explícita à sexualidade era identificada como um ato de subversão.
E além de programas de TV, diversos filmes, livros, revistas, canções e até
obras de gênios da pintura foram proibidos ou mutilados pela censura. Em
1973, foi impedido de circular no Brasil um álbum com a reprodução de
347 gravuras eróticas de Picasso. Como enfatiza o general Antônio
Bandeira, que na época dirigia a Polícia Federal, "a nossa preocupação era
moral. Mulher pelada não podia". (65)
Nem pelada e muito menos excitada. E um caso que exemplifica isto é o
que envolveu a canção erótica “Je T’Aime... Moi non Plus”, do
compositor francês Serge Gainsbourg. Sonorizada com gemidos, suspiros e
sussurros, a gravação narra o ato sexual de um casal - nas vozes da atriz
Jane Birkin e do próprio Serge Gainsbourg - tendo ao fundo um órgão e
uma discreta percussão de bateria: "Je t'aime, ohhhhh! je t'aime... moi
non plus... ohhhhh! mon amour..."
Lançada no Brasil pela gravadora Philips em agosto de 1969, a balada
conseguiu imediato sucesso de venda e de execução em rádio, confirmando
a repercussão obtida em outros países.
A indústria cultural, que até aquele momento já havia produzido romances,
filmes, revistas e vários outros produtos eróticos, ainda não havia
descoberto a canção erótica, ou pornofônica, lacuna que a composição de
Gainsbourg veio preencher.
É de se imaginar o misto de excitação, arrepios e reação de pudor que
aquela obra de sexo sonoro explícito provocou em grande parte do público
brasileiro em 1969. Pegos no contrapé, já que não havia censura prévia
para canções em idioma estrangeiro, os agentes da repressão se reuniram e,
movidos pela reação de repúdio que a música despertou nos setores mais
conservadores da sociedade, determinaram a imediata proibição do disco
de Serge Gainsbourg em todo o país.
E não foi apenas um veto à sua execução pública e radiodifusão. Os
exemplares à venda nas lojas foram recolhidos e o Exército chegou a
ocupar a fábrica da Philips, no Alto da Boa Vista, no Rio, para impedir a
prensagem de novas cópias. "Me lembro que era um sábado de manhã, e os
telefones de minha casa não paravam de tocar", afirma André Midani,
diretor-geral da gravadora. “Alguém me perguntou se eu estava sabendo
que a fábrica fora ocupada pelo Exército. Eu falei,'isto é maluquice, não
pode ser verdade'. Fui correndo pra lá e quando cheguei tinha tanto soldado
que eu não conseguia nem passar."
Na época comentou-se até que o governo iria cancelar o registro da
gravadora Philips no Brasil (fato que muito repercutiu na imprensa da
Holanda, sede da empresa). E toda esta confusão ocorreu no momento em
que outras canções eróticas, no rastro do sucesso de Je t'Aime... Moi non
Plus, eram preparadas para ser lançadas no mercado brasileiro” caso, por
exemplo, da balada “Je t'Adore”, da Musidisc, que foi proibida e
apreendida pouco antes da sua distribuição nas lojas. Por via das dúvidas, o
governo decretou que a partir dali a censura prévia valeria para canções em
qualquer idioma.
No ano seguinte, a Philips voltou a enfrentar mais um sério problema com
a censura, desta vez, porém, em relação ao samba “Apesar de você”, de
Chico Buarque, que num primeiro momento também foi liberado, chegou
às paradas de sucesso, sendo depois decretada a sua proibição e
conseqüente recolhimento das lojas.
Mas o que se quer enfatizar aqui é que, embora a memória produzida sobre
aquele período destaque apenas a repressão política - que no campo da
música popular tem em “Apesar de você” um exemplo freqüentemente
citado - , vê-se pelo caso “Je t'Aime... Moi non Plus” que a repressão
moral atuava com a mesma intensidade.
No rastro da chamada "defesa da moralidade e dos bons costumes",
diversos artistas populares tornaram-se alvos da censura do regime.
Como demonstram episódios que envolveram o cantor Odair José. "O que
rolava antigamente na música popular brasileira era o namoro no
portão sob a luz do luar" - diz ele – "e eu vim falando de cama, de
pílula, de pula, de empregada doméstica, porque essa é a realidade do
Brasil. E eu sou um cantor de realidade. Eu não sou um cantor de
sonhos. Eu sempre digo isto para as pessoas: não ouçam meus discos
esperando ouvir sonhos; vocês vão ouvir a realidade. Então foi por isso
que eu me tornei um artista polêmico e a censura começou a me
proibir."
Desde a repercussão de suas primeiras gravações de sucesso - “Vou tirar
você desse lugar”, “Esta noite você vai ter que ser minha” e “As noites que
você passou comigo”, Odair José já vinha provocando inquietação nos
vigilantes do "reinado de terror e virtude".
Algumas dessas canções tiveram palavras ou frases inteiras vetadas pela
Censura. Mas foi a balada ”Em qualquer lugar”, composição de 1973 , a
primeira totalmente interditada pelos agentes da repressão. E o motivo
aparece logo na primeira estrofe da letra: "Se você quiser / a gente pode
amar / no meio deste mundo / em qualquer lugar / dentro do meu
carro / parado em um jardim / debaixo do chuveiro / você sorri pra
mim..." Mais adiante, no refrão, o texto enfatiza que "a gente ama até
demais / e quando se tem um grande amor / em qualquer lugar a gente
faz".
Num parecer datado de 29 de abril daquele ano, o diretor do Serviço de
Censura de Diversões Públicas da Guanabara justificou a proibição
afirmando que o texto da música "é descritivo de atitudes comportamentais
alusivas ao desejo sexual".
O advogado da Phonogram, João Carlos Muller Chaves, entrou com
recurso na Divisão de Censura em Brasília e anexou uma outra letra da
canção, com pequenas modificações no texto original. Por exemplo, o
verso "em qualquer lugar a gente faz" Odair abrandou para "em qualquer
lugar a gente é feliz".
Mas a resposta da Censura, num documento assinado a seis mãos,
confirmou o veto anterior. “Á alteração foi considerada por nós irrelevante,
face à permanência de atentado ao pudor e exaltação ao amor livre". O
cantor e o advogado não se deram por vencidos e decidiram entrar com
novo recurso, que também foi mais uma vez indeferido sob o argumento,
agora mais enfático, de que a composição apresenta uma "mensagem
negativa", numa "linguagem insinuante", com um 'personagem licencioso"
que "convida a sua amada para a prática do sexo em vários lugares... em
flagrante desconhecimento do decoro público.
E assim, preocupados com a lassidão dos costumes, os censores vetaram,
na íntegra, a balada “Em qualquer lugar”que o autor só conseguiu gravar
doze anos depois, com o título de “Quando a gente ama”.
Problema semelhante Odair José enfrentou em 1974 com a composição “A
Primeira Noite de Um Homem”, que seria a principal faixa de seu LP
"Lembranças”. Inspirada no título brasileiro do filme que revelou o ator
Dustin Hoffman, a canção descrevia o desejo, a ansiedade e o nervosismo
que envolvem um jovem em sua primeira relação sexual. “Á primeira
noite de um homem / é uma noite tão confusa / é uma noite tão
estranha... / ...meu desejo era tanto / que eu nem sabia por onde
começar / o meu corpo esquentava / eu tremia / não conseguia nem
falar..."
Encaminhada ao Serviço de Censura de Diversões Públicas da Guanabara,
a letra de Odair José recebeu o carimbo de "vetada", num parecer datado de
26 de março de 1974.
O advogado da Phonogram recorreu à Divisão de Censura em Brasília - e
novo parecer, datado de 23 de abril, confirmou o veto com a justificativa de
que a composição "trata de um assunto totalmente inconveniente" e "como
a música é de índole popularesca e seria consumida por público jovem,
torna-se ainda mais contra-indicada sua liberação.
A direção da Phonogram entrou em estado de alerta porque o LP de Odair
José já estava praticamente pronto para ser lançado e todos na gravadora
apostavam no sucesso de ”A primeira noite de um homem", que seria o
carro-chefe do novo disco.
Para resolver o impasse decidiu-se que o próprio cantor deveria ir a Brasília
conversar pessoalmente com os censores e tentar a liberação da música. “A
empresa pensou assim: 'vai lá, e o que eles apontarem de errado na
letra, você muda alguma coisa'. Eu fui com essa intenção ".
E, segundo Odair José, ele conversou com algumas autoridades do
governo, até mesmo com o todo-poderoso chefe do Gabinete Civil do
governo Geisel, general Golbery do Couto e Silva. "Encontro com
general você sabe como é que é, né? Eu fui acompanhado de um
advogado e me lembro que no avião, durante a viagem, ele ia me
orientando: 'Não responda nada, não questione nada, aceite tudo o que
o general disser.' Chegando lá eu falei com o Golbery eu expliquei que
a intenção da música não era corromper a juventude, que eu até
poderia mudar alguma coisa na letra e tal, mas ele me disse: 'Não! Está
proibida a idéia'." (69)
Assim, apesar do esforço da gravadora e do próprio artista, a canção “A
primeira noite de um homem” não pôde ser lançada. Foi arrancada do
disco, somando-se ao rol de canções banidas no tempo do regime militar.
A canção "A Primeira noite de um homem", carimbada com o veto da
Censura
Mas, talvez para provar ao general Golbery que é difícil proibir uma idéia,
Odair José arriscou o seguinte estratagema: ele aproveitou a melodia da
canção vetada, fez pequenas alterações na letra, e com o título de “Noite de
desejos”, enviou para apreciação da censura uma balada que descreve o
desejo, a ansiedade e o nervosismo que envolvem um jovem em sua
primeira relação sexual: "E foi então que aconteceu.../... eu tinha medo e
não queria / mas meu desejo era maior.../... foi naquela noite a
primeira vez / e eu nunca esqueci.../... o meu corpo esquentava / eu
tremia. "
Liberada sem cortes - os censores imaginaram tratar-se de uma outra idéia “Noite de desejos” ocupou a vaga deixada por “A primeira noite de um
homem” naquele mesmo LP de 1974. "Eu enganei o general", exulta hoje
Odair José. E se isto é um fato, quem mais, na história brasileira, conseguiu
enganar o astuto general Golbery, que na concepção de Glauber Rocha era
um "gênio da raça” ?
Quando os agentes da repressão avançaram sobre esta balada de Odair
José, o cantor já era uma figura carimbada nos aparelhos censórios. E
grande parte disto se devia à polêmica provocada no ano anterior pela
gravação de “Uma vida só (pare de tomar a pílula)”, composição que
também foi proibida em todo o Brasil, e, como veremos, não apenas por
questões de ordem moral.
A canção de Odair José atingia também aspectos de caráter político-social
que incomodavam as autoridades do regime militar brasileiro. E com isso,
diz o cantor, "eles ficaram grilados comigo e eu grilado com eles".
“Uma vida só” ou “Pare de tomar a pílula”, subtítulo com o qual ficou mais
conhecida, foi composta por Odair José a partir de uma sugestão do locutor
Carlos Guarani, na época diretor artístico da Rádio Globo.
Ele dizia que seria muito importante naquele momento o compositor fazer
uma canção abordando a questão da pílula anticoncepcional, tema até então
tratado com certo tabu na sociedade brasileira. "Naquela época" - diz ele "se você saísse com um casal de amigos e discretamente perguntasse:
'Olha, que pílula você está usando, porque a que a minha esposa usa está
dando tontura e tal', a mulher do seu amigo ficava vermelha e você era tido
como indelicado, inconveniente. E quando você ia comprar um
anticoncepcional para sua esposa na farmácia, se encontrasse uma
vendedora no balcão, você não comprava. Ia para outra farmácia onde
tivesse um homem para o atender."
Um dos mais importantes e definidores fatos do século XX, a criação da
pílula anticoncepcional é obra de pesquisadores norte-americanos, que a
lançaram no mercado em 1960. No ano seguinte, as primeiras unidades
eram importadas por algumas brasileiras dispostas a substituir os
tradicionais métodos anticoncepcionais (coito interrompido, tabela,
lavagens, preservativos, cremes, geléias).
Tornando dispensáveis as remessas periódicas do exterior, em meados dos
anos 60 sete laboratórios já fabricavam pílulas no Brasil, embora, tolhidos
pela legislação, que proibía "anunciar processo, substância ou objeto
destinado a provocar aborto ou evitar a gravidez", eles não usassem nas
embalagens a palavra "anticoncepcional": as pílulas seriam para regular a
menstruação. Legalmente ninguém podia usar métodos anticoncepcionais
no Brasil.
Por tudo isso, a sugestão do locutor Carlos Guarani agradou a Odair José que gostava de abordar temas fortes e polêmicos - , mas ao mesmo tempo o
compositor considerou a tarefa difícil de ser realizada. Afinal, como
escrever uma música falando de hormônios sintéticos que impedem a
ovulação?
Ele não conseguia definir que tipo de encaminhamento dar ao tema e
também não achava fácil encontrar palavras para rimar com "pílula". De
qualquer forma, a idéia não foi descartada e durante uns seis meses ficou
martelando na cabeça de Odair José.
A inspiração para compor a música veio numa certa noite, depois de uma
de suas habituais visitas ao Castelo da Lagoa, bar da Zona Sul carioca que
havia se transformado numa espécie de escritório do cantor. Odair José
costumava sempre aparecer por ali ao final da tarde para tomar o seu vinho
e bater papo com alguns amigos.
Numa daquelas tardes, em março de 1973, por lá também apareceu o
compositor Antônio Carlos Jobim, "de bermuda branca, camisa branca,
chapéu branco e chinelo branco", recorda Odair.
Tom sentou-se à mesa com Chico Recarey, o anfitrião do bar, onde
também já estavam Odair José e o ator Cláudio Cavalcanti, na época um
dos astros da novela Cavalo de aço. Como sempre ocorria nestas ocasiões,
Tom Jobim, mestre na arte do bate-papo, tornava-se o centro da conversa
que, invariavelmente, rondava sobre questões ecológicas.
Naquele momento mais ainda, pois o autor de “Wave” havia acabado de
gravar o LP "Matitaperê", espécie de manifesto ecológico que, além da
faixa-título (nome de um pássaro do sertão), traz canções como “Águas de
março”, “Nuvens douradas” e “Tempo de mar”.
E assim, entre um uísque e outro, Tom discorreu longamente sobre as
queimadas, os cortes de madeiras (andirobas, jequitibás), a poluição dos
rios e o extermínio de pássaros e animais (uacaris, jaguatiricas,
matitaperês); enfim, falou da vida que já não há.
Odair José saiu do Castelo da Lagoa tarde da noite e, mais uma vez, como
vinha acontecendo nos últimos seis meses, lhe veio à mente a sugestão de
Carlos Guarani para que fizesse uma canção sobre a pílula
anticoncepcional.
Desta vez, porém, o cantor conseguiu dar um encaminhamento ao tema, e
ao longo do trajeto entre o Castelo da Lagoa e o seu apartamento, em
Botafogo, começou a compor os versos e a melodia da balada “Uma vida
só”, que em uma de suas estrofes lamenta "Todo dia a gente ama / mas
você não quer deixar nascer / o fruto desse amor..." e no refrão implora:
"pare de tomar a pílula / porque ela não deixa nosso filho nascer / pare
de tomar a pílula / pois ela não deixa sua barriga crescer." (70)
A primeira pessoa da gravadora a quem Odair José mostrou a nova
composição foi Jairo Pires, seu diretor artístico, que de forma entusiástica
exclamou: "Pó, Odair, pelo amor de Deus, vamos gravar isso amanhã."
Mas o disco anterior do cantor continuava rendendo no mercado e pelo
cronograma da Phonogram ainda não era o momento de se lançar material
novo.
Convocou-se então uma reunião com o presidente da empresa, André
Midani, e com o gerente comercial, Heleno de Oliveira, que ao ouvirem
“Pare de tomara pílula” também não tiveram dúvidas: a composição devia
ser gravada e lançada imediatamente.
Incluída no lado A de um compacto simples, Pare de tomar a pílula tornouse um dos mais fulminantes sucessos da história da música popular
brasileira. "Eu acho que lancei esta música numa quarta-feira, na
quinta ela já estava em primeiro lugar nas paradas."
Registre-se que não foi Odair José o primeiro a falar de pílula
anticoncepcional na nossa música popular: este pioneirismo deve-se
provavelmente a Caetano Veloso. Embora o compositor baiano afirme em
seu livro “Verdade tropical” que ele foi o primeiro a mencionar a CocaCola numa letra de música no Brasil - o que não corresponde exatamente à
verdades - , observo que neste campo Caetano Veloso deve ter sido o
primeiro a falar de pílula anticoncepcional, e com um sentido semelhante
ao de Odair José.
Na canção Anunciação (parceria de Caetano com Rogério Duarte, lançada
em 1967), o narrador exorta à mulher em um dos versos: "Maria, não te
iludas com pílulas/ou outros métodos..." Mas, indiscutivelmente, foi com a
canção de Odair José que a pílula chegou ao topo do sucesso.
E o que mais surpreendia aos que ouviam a canção pela primeira vez - e
por certo contribuiu para a sua enorme repercussão - foi o encadeamento
temático dado pelo compositor. Numa época em que a pílula começava a se
popularizar e que diversas reportagens em jornais e revistas falavam das
vantagens do moderno método anticoncepcional, surgia uma canção no
rádio dizendo "pare de tomar a pílula".
Isto era o inusitado. É provável que o próprio Carlos Guarani, ao sugerir o
tema, imaginasse que Odair José fosse narrar a história de um rapaz
apaixonado que defende o uso da pílula para melhor aproveitar os
momentos de amor. Mas foi justamente este encadeamento temático da
canção o que mais incomodou as autoridades governamentais da época e
provocou a proibição da música em todo o Brasil.
A gravação chegou ao sucesso no momento em que o regime militar
patrocinava uma entidade chamada Bemfam (Sociedade Civil de BemEstar Familiar no Brasil), que desenvolvia uma campanha de controle de
natalidade entre as mulheres de famílias de baixa renda e se empenhava na
farta distribuição de pílulas anticoncepcionais e dos chamados DIU
(dispositivos intra-uterinos).(72)
Orientada por organismos norte-americanos e financiada com verbas do
exterior, do governo federal e de grupos particulares, a Bemfam tinha
postos instalados em diversas cidades brasileiras, principalmente nas
regiões mais pobres do Norte-Nordeste, e folhetos e cartazes com a
mensagem "tome a pílula com muito amor". (73)
O método era novo, a idéia, não. O autor intelectual do controle de
natalidade foi o reverendo inglês Thomas R. Malthus, que em 1798
publicou o seu famoso Ensaio sobre o principio da população, no qual ele
advoga a tese de que os pobres seriam os principais responsáveis pela
pobreza. A euforia que a teoria social malthusiana despertou na aristocracia
inglesa de seu tempo chegou ao século XX.
Em 1970 o presidente do Banco Mundial, Robert McNamara, recomendava
o uso da pílula como o remédio necessário para curar a miséria dos povos
do Terceiro Mundo. No Brasil tudo isto era traduzido e encampado pela
Bemfam.
Num boletim publicado em 1973, a entidade justificava o seu trabalho com
o argumento de que era preciso frear no Brasil a proliferação da "infância
abandonada economicamente" que contribui "para uma maior poluição, não
só sanitária, como também social, que se reflete nos índices de
criminalidade". Em outro comunicado falava da necessidade de se evitar a
propagação de "focos críticos, como, por exemplo, as favelas cariocas".
(74)
Justificativa semelhante aparecia nos discursos dos governadores de estado
com os quais a Bemfam havia assinado convênios. Ao inaugurar um posto
de distribuição de pílulas em Seridó, Rio Grande do Norte, o governador
Cortês Pereira advertia aos moradores que "jogar filhos no mundo para que
eles se arrastem pela vida é ferir a dignidade humana".
E perguntava (como se aquela população não soubesse): "Sabe lá o que é
ouvir o grito de um filho pedindo pão e não ter pão para dar?" Por fim, ele
exortava às pobres mulheres ali presentes a tomar a pílula porque "assim,
vocês estarão fazendo a coisa mais certa da vida, evitando ter filhos
sofridos e angustiados" (75)
Por trás desses discursos estava a idéia básica que norteava as elites
brasileiras naquele momento: em vez de dividir o bolo, tentava-se diminuir
o número de bocas dispostas a comê-lo. Mas com o lançamento da música
de Odair José armou-se o cenário para um embate digno das melhores
trincheiras: de um lado, uma campanha apoiada pelo governo militar
pedindo à população "Tome a pílula"; de outro, uma canção do rádio
dizendo "Pare de tomar a pílula".
Provavelmente alertado para o que poderia ser uma espécie de
conclamação à desobediência civil e também porque em um "reinado de
terror e virtude" não são toleradas referências explícitas à sexualidade, o
governo decretou a proibição do disco de Odair José em todo o território
nacional.
É um dos casos clássicos da repressão do período da ditadura militar: a
canção, que ocupava os primeiros lugares das paradas, foi silenciada de um
dia para o outro. Foi proibida a sua execução pública em todos os meios de
comunicação, serviços de alto-falantes e casas de espetáculo. Entretanto,
como era comum acontecer na época, durante os shows o público solicitava
aos artistas canções que estavam proibidas.
Nas apresentações de Chico Buarque, por exemplo, a platéia universitária
pedia para ele cantar Cálice ou Apesar de você; e Chico Buarque cantava.
Nos shows de Odair José pelos subúrbios e cidades do interior, a massa
exigia que ele cantasse Pare de tomar a pílula; e Odair José também
cantava.
Um desses episódios ocorreu na cidade de Colatina, interior do Espírito
Santo. Ao chegar ao ginásio para realizar o show, Odair José já se deparou
com agentes da Polícia Federal que ali se encontravam para recordá-lo de
que a canção tinha a sua execução pública vetada. "Já estou sabendo.
Vocês podem ficar tranqüilos que eu não vou cantar esta música",
disse o cantor aos policiais.
Mas durante o espetáculo, com o ginásio completamente lotado, o público
percebeu a demora de "Pare de tomar a pílula" e começou a pedi-la
insistentemente. E de nada adiantaram as argumentações do cantor.
"Eu dizia pro povo: 'Me entendam, por favor, eu não posso cantar esta
música, ela está proibida e os homens estão aí atrás.' Mas o povo não
queria saber e continuou pedindo... e eu terminei cantando."
**
E Odair José cantou daquela vez como se fosse a última. Resultado: no fim
do show ele foi detido e conduzido à delegacia de Colatina para prestar
depoimento e ouvir mais uma ameaça dos agentes da repressão. "Eu fui
levado num carro da Polícia Federal e chegando lá eles me disseram:
'Pela trigésima vez queremos lhe comunicar que você não pode cantar
a música da pílula; se cantar novamente vamos ter que retê-lo. Você
está desrespeitando as leis do país."'
Esse desrespeito às leis do país dos generais efetuado por Odair José, por
Chico Buarque e por outros compositores da época, constitui mais um dos
capítulos da resistência do músico popular às arbitrariedades do período da
ditadura militar no Brasil.
Mas no caso específico de Odair José, este embate vem também
acompanhado de algumas contradições, como a que aparece no diálogo que
ele travou com um alto oficial do Exército, no Rio de Janeiro, ainda em
consequência da proibição de Pare de tomar a pílula. O cantor recorda que,
lá pelas tantas, depois de ouvir o militar fazer seu proselitismo contra a
canção, não se conteve e desabafou. "Poxa, general, mas pílula é uma
coisa normal.
É engraçado, o senhor permite o Ney Matogrosso e os Secos &
Molhados fazerem uma proposta de gay num show no Maracanãzinho
e não permite que eu faça uma proposta de homem?! O senhor é gay?
O exército é gay? Eu fiz essa pergunta ao general."
Esta atrevida intervenção do cantor não poderia mesmo passar sem uma
resposta do militar. "Ele mandou eu me retirar da sala. Ou melhor, ele me
respondeu de uma forma que o advogado que estava comigo me olhou e
disse 'é hora de sair'. Mas o general falou coisas do tipo 'o senhor não é
grato', 'se não está satisfeito que mude do país', esse papo todo. Aí eu fiquei
até meio assustado."
Depois deste diálogo cara a cara com o "Brasil: ame-o ou deixe-o", Odair
José resolveu deixar o país e partir para uma temporada na Inglaterra.
Orientado pelos dirigentes de sua gravadora, ele alugou um apartamento
em Londres e durante mais ou menos um ano ele vinha ao Brasil e voltava
para lá algumas vezes. "Na medida em que aquilo que eu fazia era proibido,
me restava fazer o quê? Londres foi uma opção. Já que eu tinha que ir para
algum lugar, fui para Londres."
É interessante constatar que mais uma vez a terra dos Beatles e dos Rolling
Stones recebia um compositor da música popular brasileira às voltas com
problemas com o regime militar. Primeiro foram Caetano Veloso e Gilberto
Gil, após o período de prisão e confinamento em 1969.
Agora era a vez de Odair José. Segundo o cantor, na época foi até enviada
uma carta à gravadora Phonogram sugerindo que a empresa não gravasse
mais com ele: “A carta foi mandada ao André Midani, que era o presidente
da companhia. O André me mostrou a carta e até riu daquilo."
De uma maneira geral, entre os setores mais conservadores da sociedade,
Odair José era acusado de atentar contra a tradição, os bons costumes e a
família brasileira. O que nos leva a refletir que este "reinado de terror e
virtude" não foi simplesmente imposto de cima para baixo, mas contava
com o respaldo de segmentos significativos da sociedade.
Basta dizer que uma das primeiras vozes a pedir a proibição da música de
Odair José foi a de Chacrinha, que, ao comentar o lançamento do disco em
sua coluna no jornal carioca A Notícia, classificava como "simplesmente
horrível e pornográfica a letra desta tal de Pílula" e reclamava: "Não dá
para entender, realmente, como é que a Censura deixa passar uma letra
dessa natureza."
Esta "buzinada" do Velho Guerreiro deve ter repercutido entre os
empresários da área de comunicação, porque três dias depois ele informava
que "as próprias emissoras de rádio resolveram, elas mesmas, censurar o
disco de Odair José". (77)
Constata-se aí que antes da censura oficial do regime, “Pare de tomar a
pílula” já se deparava com o sinal fechado imposto por alguns setores da
mídia. E se até mesmo o Chacrinha - o espalhafatoso e anárquico
apresentador da televisão brasileira - cobrava a censura para a música de
Odair José, o que dizer daqueles segmentos pretensamente mais
sofisticados da sociedade, para os quais o próprio Chacrinha e suas
chacretes deviam ser banidos do vídeo?
Aliás, é curioso constatar este aspecto ambíguo e paradoxal do
comunicador Abelardo Barbosa, que se posicionou naquele período como
mais um vigilante da moralidade e dos bons costumes.
Em Julho de 1973, por exemplo, ele implicou com a capa de um disco de
Maria Bethania, alertando que "a censura precisa tomar cuidado" porque
"se as revistas de nus foram proibidas, como é que sai um LP com a
Bethania de busto todo nu? Se a coisa continuar assim, ao invés de discos
dentro do LP, só teremos mulheres peladas, despidas, nuas!" (7) Uma
semana depois Chacrinha voltava a reclamar, desta vez tendo como alvo a
capa do LP "Índia" em que Gal Costa aparece como uma nativa vestida de
tanga. E, cada vez mais tomado de um furor moralista, Chacrinha também
apregoava que o conjunto Secos & Molhados, o maior sucesso daquela
temporada, "deveria ser proibido pela Censura e pelo Juizado de Menores"
porque "é rebolativo, erótico e muito do bichânico", especificando que
"Ney Matogrosso, o líder do trio, é muito mais comprometedor, mais
erótico do que qualquer travesti".(79)
Alguns dias depois, quando a Censura, atendendo a insistentes apelos,
limitou os movimentos e requebros de Ney Matogrosso no vídeo, o Velho
Guerreiro exultou: "Bem feito, prá tomar jeito!"(80)
É óbvio que Chacrinha não estava sozinho nesta cruzada. Ele representava
(e formava) a opinião de amplos setores da nossa sociedade. O advogado
João Carlos Muller Chaves, que na época se empenhava contra a proibição
dos discos dos artistas da Phonogram, afirma que os órgãos de repressão
costumavam receber várias cartas criticando a liberação de determinadas
gravações.
Ele cita o caso de Minha história, versão de Chico Buarque para a canção
italiana "4-3-1943 (Gesubambino)", de Lucio Dalla, que narra a história de
um menino chamado Jesus que a mãe "ninava cantando cantigas de
cabaré". Houve vários manifestos de entidades religiosas protestando
contra a liberação desta música por entenderem que nela Jesus Cristo
apareceria como filho de uma prostituta.
João Carlos Muller recorda que certa vez um dos censores chegou a lhe
confidenciar: "Olha aí, João, você vem aqui defender músicas proibidas,
mas nós recebemos mais críticas por liberar do que por vetar." Na opinião
do advogado, havia realmente um segmento forte, centrado na classe
média, que desejava, apoiava e cobrava a censura.
No caso específico de “Pare de tomar a pílula” a ação repressiva era
motivada também por interesses de ordem econômica. Temeroso do efeito
que a mensagem da música poderia ter sobre a vendagem do
anticoncepcional, um grande laboratório farmacêutico procurou Odair José
com o objetivo de comprar os direitos de sua composição para, certamente,
engavetá-la. (81)
Com a negativa do cantor, o laboratório partiu para o uso da força, usando
seu poder de pressão sobre a mídia, como informava na época Ronaldo
Bôscoli em sua coluna na Ultima Hora: “A Pílula está sendo podada nas
rádios e televisões por influência de um laboratório multinacional,
cliente de quase todas as emissoras. E é um cliente realmente forte".
Enfatizava o jornalista que "nenhuma emissora vai comprar essa briga
do Odair José e perder faturas milionárias." (82)
E assim, combatida por multinacionais, pelos militares, pelo Chacrinha,
pela Bemfam e, paradoxalmente, até mesmo por alguns setores da Igreja
que enxergaram na música um veículo de popularização do
anticoncepcional, "Pare de tomar a pílula" permaneceu proibida durante
os governos dos generais Médici e Geisel, só deixando a clandestinidade
em 1979, quando o presidente João Figueiredo assinou um decreto
oficializando a liberação de todas as músicas que estavam vetadas pela
Censura Federal. A
Além da canção de Odair José, foram anistiadas na mesma época Pra não
dizer que não falei de flores, Cálice, Apesar de você e outras.
O curioso é que o inusitado e polêmico tema de Odair José não teve
problemas com a censura apenas no Brasil. Naquele período o cantor
começava a gravar seus discos também em espanhol e, para divulgá-los,
realizava shows por várias cidades latino-americanas. "Mas em todo lugar
que eu chegava diziam: 'não pode cantar La Pilula aqui"', recorda.(83)
Portanto, foi uma proibição generalizada, demonstrando a força dos
laboratórios multinacionais e a dimensão daquele "reinado de terror e
virtude", que nos anos 70 se espalhava por outras ditaduras da América
Latina. Mas tanto lá como cá, apesar de proibida, a balada alcançou ampla
repercussão. Na Venezuela existia uma boate cujo nome era La Pilula,
título com o qual a gravação do cantor brasileiro ficou conhecida em sua
versão para o espanhol.
NOTAS BIBLIOGRÁFICAS
DO CAPÍTULO “REINADO DE TERROR E VIRTUDE”
(Pela Numeração seqüencial contida no texto)
58. Ver, por exemplo, Alberto Moby. Sinalfechado. A música popular
brasileira sob censura. Rio de Janeiro: Obra Aberta, 1994; Ramon Casas
Vilarino. A MPB em movimento: música, festivais e censura. São Paulo:
Olho d'Água, 1999.
59. Gilberto Vasconcelos. Música popular: de olho na fresta. Rio de
Janeiro: Graal, 1977, p. 72.
60. Idem, p. 78-79.
61. Alberto Moby, op. cio, p. 167.
62. Crane Brinton. Anatomia das revoluções. Rio de Janeiro: Fundo de
Cultura, 1958, pp. 208-215.
63. As normas da boa conduta" - Veja, 17-5-1972.
64. "Silvio ao vivo" - Veja, 17-5-2000.
65. “A Hidra não ouvia rock" - Folha de S. Paulo, 2-11-1997.
66. Na consulta aos Documentos do Serviço de Censura de Diversões
Públicas constata-se que a maior parte das letras de músicas vetadas, ou
com alguma restrição dos censores, se deve mesmo a questões de ordem
moral. Caso, por exemplo, de uma composição de Nelson Ned (parceria
com Renato Cleurian), Não precisa voltar: "Eu já decidi / não precisa voltar
/ me faça um favor / vá para aquele lugar". Num parecer datado de 22 de
agasto de 1972, o censor condicionou a liberação da música desde que "os
autores modifiquem a letra quando diz 'Vá para aquele lugar"'. Nelson Ned
substituiu por "Você agora vai pagará e agravação foi autorizada. Fonte:
Documentos do Serviço de Censura de Diversões Públicas”Arquivo
Nacional / RJ.
67. Os documentos da Censura citados são, pela ordem: Parecer datado de
29-4-1973; Parecer nó 3688/73 e Parecer na 3985/73. Fonte: Documentos
da Divisão de Censura de Diversões Públicas”Arquivo Nacional/ DF.
68. Os dois documentos citados são datados de 26 de março de 1974/
Documentos do Serviço de Censura de Diversões Públicas da
Guanabara”Arquivo Nacional/ RJ, e de 23 de abril de 1974/ Documentos
da Divisão de Censura de Diversões Públicas” Arquivo Naeional/ DF.
69. Outro artista que motivado pela censura diz ter se encontrado com o
general Golbery é o diretor de televisão Daniel Filho. Em 1975 ele foi a
Brasília levar um manifesto contra a proibição da novela Roque
Santeiro.”Fui recebido em pé. Entreguei o documento dizendo apenas que
era um manifesto dos artistas contra o ato da Censura e que gostaríamos
que ele o fizesse chegar ao presidente Geisel. Golbery pegou a carta,
colocou-a em cima da mesa, disse que estava entregue. Ficamos num clima
tenso, eu disse boa tarde, dei meia-volta e fui embora. Daniel Filho. Antes
que me esqueçam. Rio de Janeiro: Ed. Guanabara, 1988, p. 179.
70. Embora cantado nos shows, o último verso do refrão ("pois ela não
deixa sua barriga crescer") não foi utilizado pelo autor na gravação.
Observo também que no rótulo do disco aparece o nome de Ana Maria pseudônimo utilizado pelo locutor Carlos Guarani, a quem Odair José
ofereceu a parceria na composição. Para outras indicações ver Uma vida só
(Pare de tomar a pílula) em Fontes e bibliografia.
71. Caetano Veloso faz aquela afirmação nas páginas 23 e 174 de seu livro.
Entretanto, em 1961, seis anos antes do lançamento de Alegria, alegria
("Eu tomo uma Coca-Cola / ela pensa em casamento / uma canção me
consola..."), o cantor e compositor Baby Santiago, um dos principais nomes
da fase inicial do rock brasileiro, compôs e gravou o rock Adivinhão, que
narra o ríspido diálogo de um pai com um playboy que namora sua filha:
"À noite ela falta à aula / pra ficar contigo e tomar Coca-Cola / quando
chega o fim do ano / ela leva bomba e você nem dá bola..." Para outras
indicações ver índice de canções citadas em Fontes e bibliografia.
72. A Bemfam foi fundada no Rio de Janeiro em novembro de 1965 e
reconhecida como Entidade de Utilidade Pública Federal no governo
Médici pelo Decreto Nº 68.515, de 15 de abril de 1971. Sobre a Bemfam se
avolumavam denúncias de estar promovendo a esterilização de milhares de
mulheres brasileiras. Ver reportagens: "Médicos GB condenam a Bemfam"
- Ultima Hora, 2-3-1972; "Médicos do Rio denunciam a ação da Bemfam"
- Folha de S. Paulo, 24-5-1977 e "Deputado acusa o governo de acobertar a
Bemfam - Jornal do Brasil, 3-6-1977.
73. Outros cartazes exortavam: “A paternidade responsável evita a infância
abandonada" e "Família planejada, família feliz". Além de verbas públicas
e de grupos particulares brasileiros, a Bemfam era patrocinada pela
Fundação Ford e filiada à International Planned Parenthood Federation
(Federação Internacional de Planejamento Familiar), com sede em Londres.
74. Bemfam”Divisão de Comunicação”Serviço de Imprensa (062/ 73) e
Bemfam” Divisão de Comunicação - Serviço de Imprensa (064;/ 73).
75. "Pílulas distribuídas já passam de 6 milhões" - Jornal do Brasil, 30-51977. A reportagem traça um histórico da Bemfam e faz referência ao
convênio assinado com o governo do Rio Grande do Norte durante a gestão
de José Cortês Pereira (1971-1974).
76. "E não é?" (Jornal do Chacrinha) - A Notícia, 27-3-1973. Registre-se
que antes de Odair José o próprio Chacrinha também já havia abordado o
tema da pílula numa marchinha que ele gravou para o carnaval de 1970: “A
solução da pílula, da pílula / pra mim é ridícula, ridícula / onde se viu um
mundo sem mamãe / sem um neném pra se fazer bilu-bilu..." Verso de
Marcha da pílula. Para outras indicações ver índice de canções citadas em
Fontes e bibliografia. 77. "Resolução" (Jornal do Chacrinha) - A Notícia,
30-3-1973.
78. "Peito de Fora!” – (Jornal do Chacrinha) - A Notícia, 24-7-1973.
79. "Devia ser proibido - erótico demais o Secos & Molhados" (Jornal do
Chacrinha) - A Notícia, 22-2-1974.
80. "Confusão" (Jornal do Chacrinha) - A Notícia, 7-3-1974.
81. Conforme relato de Odair José a Ronaldo Bôscoli: "Os caras me
procuraram para duas propostas: 1) 'Toma aí uma nota preta e esquece de
gravar essa música.'Aí eu disse que não. Então veio a segunda proposta.
'Nós compramos toda a edição do disco sob a condição de comprarmos os
direitos da música e da letra (coisa, aliás, invendável).' Eu também disse
não." Ver reportagem "Laboratório contra a pílula em disco" - Ultima Hora,
10-3-1973.
82. “Odair perde a briga da pílula" - Ultima Hora, 21-3-1973.
83. Programa Show da Madrugada - Rádio Globo, 11-5-1996.
WALDIK SORIANO E OS PORÕES DA DITADURA
***
“Eu não sei de que maneira meu filho morreu,
ou onde ele está enterrado, ou o que aconteceu
com ele, nada disso eu sei...”
(Elzita de Santa Cruz Oliveira)
A fúria obscurantista que envolveu o Brasil no período do AI-5 também
atingiu o cantor Waldik Soriano, artista polêmico que reafirmava e, às
vezes, também contestava valores estabelecidos da sociedade. Um exemplo
disto está numa entrevista que ele concedeu, em 1973, ao jornal Zero Hora,
de Porto Alegre.
Alí Waldik Soriano defendeu a existência de grupos de extermínio, "eu
sou a favor do Esquadrão da Morte, acho que não deveria terminar",
e, ao mesmo tempo, causou verdadeiro furor ao defender uma concepção
da figura de Jesus muito diferente da apresentada pela Igreja: "Cristo pra
mim foi um arruaceiro. Eu li a Bíblia de cabo a rabo e não vi nada do
que se fala. Tudo com muita cascata. Eu não ‘tou nessa de Cristo. Não
entendo o que se fala dele, acho que era um enganador." (84)
No dia seguinte, quase não se comentava outra coisa na cidade de Porto
Alegre a não ser a declaração de Waldik Soriano sobre Jesus Cristo.
Recorde-se que termos como "enganador" e "arruaceiro" - entendidos como
aqueles que manipulam consciências e desorganizam a ordem pública identificavam naquele período tanto os delinqüentes comuns como os
chamados terroristas ou militantes de esquerda.
*
Waldick sempre polêmico - abaixo a famosa capa da entrevisat que
deu ao pasquim
E talvez por isso mesmo o caso chegou até a Assembléia Legislativa
gaúcha e deputados da Arena, partido do governo militar, e do MDB,
partido da oposição, deixaram momentaneamente suas divergências de
lado, unindo-se em pronunciamentos contra o cantor.
O primeiro a falar foi o deputado arenista Pedro Américo, que qualificou
Waldik Soriano de "cantorzinho zurrapa" (nome que se dá a vinho
estragado) e pediu o enquadramento do artista na Lei de Segurança
Nacional sob o argumento de que "aqui no Rio Grande do Sul, onde
coragem é recato e agressão é conseqüência", não poderia passar impune
alguém que "deu um show de ignorância, falta de respeito e gabolice,
ofendendo a todo o Brasil, e particularmente aos ganchos,
independentemente de religiões professadas.” (85)
Já o deputado João Carlos Gastal, líder do MDB na Câmara, lamentou que
as declarações de Waldik Soriano tivessem sido publicadas na imprensa:
”A censura proíbe tanta coisa e se esquece de impedir que saiam nos
jornais os absurdos que esse cantor anda dizendo." ( 86) Outro
parlamentar da oposição, o emedebista Moisés Velasquez, demonstrou
maior contundência ainda ao afirmar que "elementos como esse devem
ser banidos de nossa vida artística”. (87)
Ao defenderem a censura e o banimento para Waldik Soriano, os deputados
do MDB pareciam esquecer-se de que um dos principais itens do programa
do seu partido naquele momento era exatamente a defesa da liberdade de
opinião e de imprensa. Mas esta postura dos parlamentares ganchos só
revela mais uma vez de que maneira a repressão imposta pelo regime de
1964 era compartilhada por setores significativos da sociedade brasileira.
Como também ilustra neste sentido a reação do cardeal-arcebispo de Porto
Alegre, dom Vicente Scherer, que se pronunciou favorável às críticas que
os integrantes do Legislativo endereçaram a Waldik Soriano – “os
deputados fizeram bem e poderiam até ir mais longe” - e referiu-se ao
artista como "um pobre coitado ignorante" que "tem companhias bem
conhecidas nos escribas que blasfemaram e insultaram Cristo quando
ele estava na cruz". (88)
Falando em nome do governo do Rio Grande do Sul, o diretor do
Departamento de Diversões Públicas, Antonio Moura Coelho, embora não
fosse médico-psiquiatra, diagnosticou que Waldik Soriano é "portador de
deformações psicológicas" e alguém que, segundo ele, "ainda não
aprendeu a amar a Cristo e não sabe reconhecer na conduta ilibada a
dignidade, mas faz glória do machismo e da desfaçatez. É um pobre
homem". (89)
A polêmica ganhou repercussão nacional, e comunicadores de grande
audiência como Flávio Cavalcanti e J. Silvestre manifestaram-se na TV
contra as declarações do cantor. Até mesmo a revista Veja, expressando a
opinião dos setores de elites dos grandes centros urbanos do país, dirigiu
duras farpas ao autor de ”Eu não sou cachorro, não”: "Certamente,
Waldik Soriano não leu a Bíblia nem teve professores que lhe
ensinassem tanto religião quanto civilidade. Mas seria muito
conveniente que de ora em diante se limitasse às funções de animador
de boates de má reputação, para as quais tem revelado invejável
talento, e desistisse de atirar pedras contra o reino dos céus e dos
homens.” (90) Talvez como conseqüência do enfoque que o caso obteve na
mídia, em algumas cidades do interior do Brasil discos e pôsteres de
Waldik Soriano chegaram a ser queimados em fogueiras armadas em praça
pública. Guardadas as devidas proporções, desde a declaração de John
Lennon de que os Beatles eram mais populares que Jesus Cristo, que a
frase de um cantor popular não causava tanta celeuma entre os adeptos do
cristianismo.
E assim como o ex-Beatle, o cantor Waldik Soriano, para acalmar os
ânimos, também distribuiu uma nota à imprensa dizendo que havia sido
mal interpretado e que sua declaração fora deslocada do contexto.
Se, como ensinava o educador Paulo Freire, as palavras são grávidas de
sentido, em períodos ditatoriais determinadas palavras tornam-se mais
grávidas ainda. E isto é o que explica a censura - agora oficial, como
queriam os deputados do MDB - de que foi vítima Waldik Soriano por
causa de uma gravação em 1974, ano que talvez seja o do ápice da ação da
censura sobre a música popular brasileira. (91)
Basta recordar que foi em 1974 que Chico Buarque se viu forçado a
disfarçar-se no pseudônimo de Julinho da Adelaide para conseguir a
liberação de algumas composições que, se levassem o nome verdadeiro do
autor, fatalmente seriam proibidas.
Do tal Julinho dizia-se que ele era carioca da Favela da Rocinha, filho de
Adelaide de Oliveira e meio-irmão de Leonel Paiva, seu parceiro no samba
“Acorda, amor”. Num primeiro momento esta história parece ter enganado
até alguns críticos de música como, por exemplo, Sílvio Lancellotti, que
em artigo na revista Veja elogiou o novo compositor gravado por Chico
Buarque, com a ressalva de que "por razões culturais, Chico produza
letras menos primitivas e mais elaboradas". (92)
O fato é que neste mesmo ano em que liberava os sambas de Julinho da
Adelaide, a Censura proibia uma das mais românticas composições de
Waldik Soriano, o bolero ”Tortura de amor”: "Hoje que a noite está
calma / e que minha'alma esperava por ti/ apareceste afinal / torturando este
ser que te adora..."
Foi longa a trajetória do bolero “Tortura de amor” até chegar a ser proibido
pelo regime dos generais. Waldik compôs esta canção no fim dos anos 50,
quando ele ainda trabalhava nos garimpos de sua cidade natal, Brejinho das
Ametistas, sertão da Bahia. "Tem um lajedo lá em minha terra" recorda
ele "e todos os dias às cinco horas da tarde eu ia pra lá meditar.
Porque eu achava aquela cidade tão pequena, tão restrita pra mim,
que eu procurava o lugar mais alto pra ficar, pra ver se enxergava
mais longe, entende? Então, foi nesse lajedo, à tardinha, que é o
melhor momento para o poeta criar, que eu fiz Tortura de amor." Mas
a música retrataria alguma relação amorosa que o compositor estava
vivendo? "Não, eu não estava envolvido com ninguém naquela época.
Eu tinha era aquela ansiedade de expandir, de ir embora dali. E o
poeta, o poeta de verdade, é um eterno apaixonado. Ele mesmo não
sabe por que nem por quem, mas está sempre apaixonado." “Tortura
de amor” foi lançada em disco numa gravação do próprio autor em 1962,
mas não alcançou maior sucesso ou repercussão imediatos. Aos poucos,
porém, foi sendo incorporada ao repertório de outros cantores, tornando-se
a composição mais gravada de Waldik Soriano.
Ela tem, entre outras, gravações de Cauby Peixoto, Altemar Dutra, Nelson
Gonçalves, Agnaldo Timóteo, Maria Creuza, Fagner, Fafá de Belém e uma
promessa de Roberto Carlos: "Certa vez eu encontrei com o Roberto no
aeroporto e ele me disse: 'Waldik, tem uma música sua que um dia eu
ainda vou gravar. É aquela que diz assim 'apareceste afinal/
torturando este ser que te adora. .'."“Tortura de amor” enfrenta
problemas com a Censura após a regravação do próprio Waldik Soriano em
1974. Naquele ano, a música teve a sua execução e radiodifusão públicas
proibidas em todo o território nacional.
O cantor recorda e protesta. ”A censura que existia naquela época era
uma censura ignorante. Ignorante, radical e burra. Censurar “Tortura
de amor”!? Tortura é uma palavra poética: 'não me tortura tanto, meu
amor .. vivo torturado por ti ' Quer dizer, censuraram a minha música,
meu disco não podia vender, não podia ser executado em rádio nem em
televisão. Eu acho que naquele período, no fundo, no fundo, havia
muito autoritarismo, muito abuso de autoridade."
"TORTURA DE AMOR"
Que a censura era ignorante e burra, o caso Julinho da Adelaide já o
demonstra, mas este abuso de autoridade talvez se explique, no caso da
canção de Waldik Soriano, porque a palavra "tortura" - embora com
intenção poética - era muito grávida de sentido naquele momento para ser
liberada. Recorde-se que após a decretação do AI-5 a prática da tortura foi
peça essencial utilizada pelo regime militar no combate a brasileiros
suspeitos de atitudes subversivas ou terroristas.
E os modos e instrumentos de suplícios adotados foram diversos: choque
elétrico, "pau-de-arara", "afogamento", "telefone", "cadeira do dragão",
"geladeira" etc. Uma das vítimas da repressão naquele período, o
historiador paulista Jacob Gorender, em uma única sessão de tortura, que
durou cerca de seis horas, experimentou quase todos os métodos.
Comandada pelo delegado Ivair Garcia de Freitas, nas dependências do
Dops de São Paulo, a tortura ocorreu no dia em que o historiador
completava 47 anos.
"Tiraram-me a roupa e, desnudo, encostaram-me à parede" - relata
Gorender – "a função começou por uma dose de choques elétricos. A
intervalos, novas doses. O delegado Ivair distribuía instruções com
profissionalismo. Vez por outra, reclamava do exagero do serviço. Mas
o serviço prosseguia. Depois de pontapés e 'telefones' (tapas
atordoantes e simultâneos nos dois ouvidos), alguns aplicados pelo
próprio Ivair, chegou a vez do pau-de-arara. João Tralli, o especialista,
na hora se vangloriou de já ter dependurado até um perneta..."
"...De pés e mãos atados por cordas, seguro à trave de face para cima,
eu ia recebendo choques elétricos em várias partes do corpo,
queimaduras nas plantas dos pés, 'telefones'. A água derramada sobre
o corpo aumentava o efeito da eletricidade. Fizeram o 'afogamento':
introdução de água pelas narinas por meio de um funil. Com a cabeça
inclinada para baixo, a água entope o nariz, sai pela boca e provoca a
sensação de asfixia. Atento a meu nível de resistência Física, Ivair
ordenava interrupções e eu era depositado no chão, continuando com a
trave no meio dos pés e mãos atados. Repetiam-se as perguntas e
ameaças. Terminado o intervalo, novamente me alçavam no pau-dearara. .." (93)
Outra vítima dos porões da ditadura, o engenheiro José Milton Ferreira de
Almeida, na época com 32 anos, denunciou que pior do que os castigos
físicos "foi passar dias inteiros, por vários dias, vendo e ouvindo várias
pessoas serem torturadas, crucificadas, penduradas nos registros das
celas, espancadas nos corredores, gritando numa agonia indescritível”;
que viu "pais e filhos sendo torturados, esposos e esposas serem
torturados e um sendo obrigado a torturar o outro"; e até mesmo
"velhos de quase 70 anos serem praticamente espancados e chegarem
ao ponto de debilitamento total". (94)
Constata-se pelos relatos acima que o sistema repressivo não fazia
distinção de cor, idade, sexo ou religião: todos indistintamente eram
submetidos a castigo cruel, desumano e degradante.
E talvez por isto mesmo o bolero “Tortura de amor” não podia ser tocado
no rádio e nem na televisão. Afinal, como anunciava uma reportagem de
capa da revista Veja no inicio do governo Médici, "O Presidente não
admite torturas". (95)
E, pelo visto, nem de amor.
Os caminhos que levavam um artista "cafona" a ter sua obra atingida pela
Censura eram realmente os mais tortuosos possíveis, e todo o cuidado era
pouco.
Odair José aprendeu isto e cercou-se de cuidados na letra da canção “O
crime da Barra”, que fala de um corpo de mulher jogado na estrada (de
quem seria?) e de festas com jogo de cartas (quem as promovia?) nos
embalos de sábado à noite, no Rio. Com as estrofes numa linguagem da
fresta, versos nas entrelinhas, no refrão o compositor ainda se esquiva: "Eu
não vou citar exemplo / só pra não me envolver / mas pelo que eu já
falei / acho que deu para entender..."
Odair José abordou na canção "O Crime Da Barra", o famoso caso do
assassinato da jovem Cláudia Lessin Rodrigues
Aqui Odair José aborda um dos mais rumorosos casos policiais dos anos
70; o assassinato da estudante Cláudia Lessin Rodrigues, 21 anos, cujo
corpo foi encontrado envolto num saco amarrado a blocos de pedra, numa
encosta da Avenida Niemeyer, Zona Sul do Rio.(96)
O principal acusado foi o milionário Michel Frank, 26 anos, filho do
industrial suíço Egon Frank, dono da fábrica de relógios Mondaine.
Conhecido nas noites cariocas pelo apelido de "Furacão Branco", Michel
promovera na véspera do crime um jogo de cartas com um grupo de amigos
em seu apartamento no Leblon.
Por volta das onze horas da noite Cláudia aparecera ali à procura do diretor
de cinema Pedro Rovai, com quem andava saindo ultimamente. Rovai era
amigo de Michel, e o pai deste, Egon Frank, foi o produtor de alguns dos
filmes do cineasta, entre os quais as pornochanchadas “A viúva virgem”,
“Ainda agarro esta vizinha” e “Lua-de-mel e amendoim”. Nesta última,
uma produção de 1971, aparece a cena de uma animada festa em um
apartamento dúplex com piscina, em Copacabana. É a filmagem da festa de
aniversário de 20 anos de Michel Frank - com os convidados servindo de
figurantes para o filme.
Cláudia também circulava pelos sets do cinema brasileiro da época, e
através de sua irmã, a atriz Márcia Rodrigues (estrela do filme “Garota de
Ipanema”, de Leon Hirszman), conheceu o cineasta Pedro Rovai a quem foi
procurar naquele sábado, 23 de julho de 1977, no apartamento de Michel
Frank.
Ela talvez não soubesse, mas aquele endereço era um ponto de tráfico de
cocaína, droga que começava a se expandir para além dos restritos círculos
da elite.(97) Pedro Rovai não apareceu naquela noite e Cláudia ficou ali
tomando vinho e jogando cartas com o pessoal. Mais tarde Michel Frank
até improvisou uma festa, enquanto recebia seleta clientela à procura do pó
branco, fino e cristalino.
Foi uma noite frenética e só no amanhecer de domingo cessou a
movimentação. No fim, restaram no apartamento apenas Cláudia, Michel
Frank e um amigo dele, o cabeleireiro Georges Khour.
Durante todo o dia de domingo os pais de Cláudia aguardaram ansiosos
pelo retorno da filha ou por algum telefonema dela. Inicialmente
imaginaram que ela tivesse ido para Cabo Frio com uma amiga, mas esta
foi procurada e informou que estava ali apenas com a família.
Na segunda feira à noite a mãe de Cláudia assistia ao telejornal quando o
locutor informou que o cadáver de uma moça nua fora encontrado pela
manhã caído nos úmidos penhascos da Avenida Niemeyer. Ela não teve
dúvida: era o corpo de sua filha que, segundo o laudo médico, morreu em
conseqüência de espancamento, seguido de estrangulamento, após ter sido
violentada sexualmente por objeto cilíndrico, provavelmente uma garrafa,
que provocou alargamento anal e ferimento no seu órgão genital.
As primeiras investigações apontavam para um crime praticado por algum
estuprador da área do Chapéu dos Pescadores, local próximo de onde o
corpo foi encontrado. Tudo mudou, porém, com o testemunho do operário
Luiz Gonzaga de Oliveira, que numa noite de insônia provocada por forte
dor de dente, disse ter visto de seu barraco, num recuo da Avenida
Niemeyer, a estranha movimentação de dois rapazes retirando de uma
Brasília um grande volume envolto num saco.
O que seria aquilo? Para onde levariam? Por via das dúvidas ele anotou a
placa da Brasília: SX-5904 que depois, descobriu-se, pertencia à empresa
de Michel Frank. "Pra mim alguém copiou a placa errada. Ou então a
pessoa que telefonou para dizer que viu meu carro lá, agiu com
extrema maldade", tentou negar o acusado. (98)
As circunstâncias que envolveram o assassinato de Cláudia Léssin
Rodrigues demoraram a ser esclarecidas, mas quanto à autoria do crime
parecia não haver dúvidas: Michel Frank com a cumplicidade do amigo
Georges Khour. Entretanto, o processo contra os dois não ia adiante.
Michel foi ouvido e dispensado pelo delegado encarregado do caso,
justamente quando já estava mais do que suficientemente provada a
participação dele no crime. "Tenho amigos no governo brasileiro, mas
não preciso comprar ninguém", defendeu-se o industrial Egon Frank da
suspeita de que teria subornado a cúpula do aparelho policial. (99)
O esclarecimento do Caso Cláudia deveu-se sobretudo à atuação da
imprensa, especialmente aos repórteres Valério Meinel e Amicucci Gallo
que naquele ano receberam o prêmio Esso de Jornalismo pela reportagem
"O mistério vai acabar?". Publicada na revista Veja, a matéria trazia o
depoimento do patologista Domingos de Paola, conhecido da família
Frank, que afirmou ter ouvido do próprio Michel os detalhes do assassinato
que praticou. "Não aguento mais. Estou vivendo uma coação de
consciência irresistível", disse o patologista antes de contar tudo o que
sabia aos repórteres da Veja. (100)
Divulgado logo em seguida, o laudo cadavérico confirmou o teor da
reportagem. Agora não dava mais para Michel continuar negando o crime.
Mas quando a polícia finalmente bateu à porta de seu apartamento, já era
tarde. Michel Frank havia fugido para a Suíça.
Seu cúmplice, o cabeleireiro Georges Khuor, foi preso mas depois julgado
e absolvido da acusação de assassinato. "Graças a Deus, afinal se fez
justiça", exultou Michel Frank ao receber na Suíça a notícia da libertação
do amigo, que foi condenado apenas a um ano e quatro meses por tentativa
de ocultação de cadáver.(101)
E assim mais uma vez no Brasil prevaleceu a impunidade que permitiria
que outras Cláudias também viessem a morrer tão precoce e estupidamente.
"Olha menina bonita / tenha bastante cuidado / quando pra certos
lugares / você for convidada...", alertava a canção de Odair José, que
passou pela Censura sem maiores problemas.
O mesmo não pode ser dito de uma gravação do cantor e compositor
Fernando Mendes, autor da popular ”Cadeira de rodas” e de outros temas
dramáticos.
Mineiro de Conselheiro Pena, Fernando Mendes lançou seu primeiro disco
em 1973, e já no ano seguinte se deparava com a barreira imposta pela
censura dos generais. O alvo foi a composição ”Meu pequeno amigo”,
cuja letra focaliza outro caso policial polêmico da época: o sequestro do
garoto Carlos Ramirez Costa, o Carlinhos, ocorrido na noite de 2 de agosto
de 1973, no Rio de Janeiro, e que durante muito tempo mobilizou a
imprensa e a polícia cariocas.
Segundo relato da família, Carlinhos, na época com 10 anos, assistia à
televisão ao lado da mãe quando foi levado de casa sob a ameaça do
revólver de um homem negro de cabelo afro que deixou um bilhete
exigindo 100 mil cruzeiros de resgate.
O pai do garoto, um pequeno empresário da Baixada Fluminense, se
empenhou para arranjar o dinheiro, mas a troca nunca se realizou porque,
depois de uma primeira tentativa, não houve mais contato dos
seqüestradores e o Caso Carlinhos permanece até hoje como um dos
maiores mistérios da crônica policial brasileira. Quem seqüestrou
Carlinhos? Para onde levaram o garoto? O que fizeram com ele?
A canção de Fernando Mendes fala disso e o cantor a reveste com o mesmo
canto triste de todas as baladas românticas: "Sem querer você se foi/ e
hoje choram por voce.../até as flores do jardim entristeceram/sentiram
sua falta / morreram...".
Apresentada ao Departamento de Censura no início de 1974 - quando o
caso policial ainda ocupava grande espaço na mídia - , a composição foi
liberada com a recomendação de que se colocasse no subtítulo entre
parêntese a informação "Tributo a Carlinhos". Entretanto, no momento em
que a gravação começava a tocar nas emissoras de rádio, veio a ordem de
sua proibição.
LP "Fernando Mendes" (1974), o segundo da carreira do cantor e que
mobilizou os agentes da repressão por causa da canção "Meu Pequeno
Amigo".
Fernando Mendes recorda que ele ainda estava trabalhando na divulgação
do disco quando Miguel Plopschi, na época seu diretor artístico na Odeon,
telefonou avisando do veto: "O que que houve?", surpreendeuse o
compositor. "Mandaram parar. A música chamou a atenção de não sei
quem lá de Brasília e a censura proibiu a sua execução no rádio", informou
Miguei Plopchi. "Mas proibiram por quê? Eu não estou falando nada contra
o governo. Estou apenas contando a história de um amigo que sumiu ".
"Sim" - rebateu Plopschi - , "mas eles não querem e a ordem é parar. E
acho melhor nem perguntar o porquê se não eles proíbem o disco todo.
Autoritarismo é autoritarismo."
Fernando Mendes não conseguia entender o motivo daquela proibição. "Eu
tinha 22 anos na época e não sabia nada sobre política. O que era
autoritarismo? Eu não sabia o que era isso. Eu não possuía nenhuma
informação política."
E o que mais intrigava o compositor era o fato de que o Caso Carlinhos
estava estampado em todos os jornais e revistas do país, e a fofo daquele
menino de longos cabelos louros e belo sorriso tornara-se familiar para
milhões de brasileiros na época. Por que o assunto não podia ser abordado
também numa canção?
A resposta para esta pergunta talvez esteja na constatação de que o
problema não era o Caso Carlinhos em si mas a forma como ele foi tratado
na canção de Fernando Mendes.
A composição incomodou ao regime porque em nenhuma das suas estrofes
aparece o nome de Carlinhos. Da primeira à última parte da letra o
compositor fala de um amigo desaparecido e do desejo de descobrir o seu
paradeiro, num refrão em forma de súplica que se repete por quatro vezes
ao longo da música; "Digam pra mim / digam pra mim onde ele está / e
o que foi que fizeram / com o meu pequeno amigo?"
Talvez seja este o único caso da época em que a ambigüidade da letra, ao
invés de favorecer a liberação da música, determinou a sua proibição. A
balada “Meu pequeno amigo” foi lançada num momento em que diversos
outros brasileiros estavam também "desaparecidos" ou "desaparecendo".
*Segundo relatório do projeto “Brasil: nunca mais”, é exatamente no
período 1973/1974 que se registra o maior número de desaparecidos
políticos no Brasil (102)
O cardeal dom Paulo Evaristo Arns, que se manteve em vigia durante todo
o período da ditadura militar, recorda que naquela época atendia na Cúria
Metropolitana de São Paulo, semanalmente, cerca de 50 pessoas, todas em
busca do paradeiro de seus parentes "desaparecidos". "Um dia" - diz ele –
"ao abrir a porta do gabinete, vieram ao meu encontro duas senhoras,
uma jovem e outra de idade avançada. A primeira, ao assentar-se em
minha frente, colocou de imediato um anel sobre a mesa, dizendo: 'É a
aliança de meu marido, desaparecido há 10 dias. Encontrei-a, esta
manhã, na soleira da porta. Sr. padre, o que significa essa devolução?
É sinal de que está morto ou é um aviso de que eu continue a procurálo?'. Até hoje" - enfatiza dom Paulo - “nem ela nem eu tivemos resposta
a essa interrogação dilaacerante” (l03)
Fatos como estes atingiam diversas outras famílias brasileiras naquele
período e provocavam a indignação de intelectuais como Alceu Amoroso
Lima, o Tristão de Ataíde.
Em artigo publicado em outubro de 1974 com o sugestivo título de "Os
esperantes", o já octogenário pensador católico desafiava as normas da
Censura e protestava: "Há neste momento, no Brasil, sem que sequer se
possa citar-lhes os nomes, ao lado de nós, dezenas de lares e neles
centenas de corações, que sofrem em silêncio a tragédia da espera, de
dúvida sobre a vida ou a morte dos seus mais queridos", e Tristão de
Ataíde prosseguia questionando: “Até quando haverá, no Brasil,
mulheres que não sabem se são viúvas; filhos que não sabem se são
órfãos; criaturas humanas que batem em vão em portas
implacavelmente trancadas, de um país que julgávamos ingenuamente
isento de tais insanas crueldades?" (104)
Um caso de "desaparecido" que se tornou simbólica no Brasil foi o que
envolveu o ex-deputado federal Rubens Paiva, a quem os organismos de
segurança acusavam de manter correspondência com brasileiros exilados
no Chile.
Na manhã de 20 de janeiro de 1971, seis policiais à paisana, todos armados,
invadiram a residência de Rubens Paiva, no Rio de Janeiro, e enquanto
quatro policiais vasculhavam toda a casa, apreendendo correspondências e
agendas telefônicas, os outros dois conduziam o ex-deputado para destino
ignorado pela família. A partir daí iniciava-se a luta de sua mulher, Maria
Eunice, para descobrir o paradeiro do marido ou pelo menos o cemitério
clandestino onde seu corpo poderia estar enterrado.
Busca semelhante foi empreendida por Zuzu Angel - mãe do jovem
militante da luta armada Stuart Angel Jones - e por Elzita de Santa Cruz
Oliveira - mãe do estudante universitário Fernando Santa Cruz - , ambos
presos por agentes da repressão política no Rio de Janeiro: o primeiro, na
manhã de 14 de maia de 1971; o segundo, na tarde de sábado de carnaval,
23 de fevereiro de 1974.
A Estilista Zuzu Angel e a dona de casa Elzita de Santa Cruz Oliveira duas mulheres cujos filhos foram assassinados por agentes da
repressão.
Sempre com a foto de Stuart na mão, Zuzu Angel, na época uma
consagrada estilista carioca, iniciou uma via crucis por diversos quartéis e
hospitais do Rio de Janeiro "O senhor o teria visto? Não conhece este
rapaz?''(105) E na ânsia louca de descobrir o destino do filho que, depois
soube-se, foi torturado até a morte no mesmo dia da prisão, ela apelou a
generais, bispos e até ao secretário de Estado norte-americano Henry
Kissinger, durante uma de suas visitas ao Brasil.
A mãe do estudante Fernando Santa Cruz, também sem qualquer
informação oficial sobre o seu paradeiro, enviou cartas, petições e
telegramas a diversas autoridades civis e militares do país.
E a busca prosseguiu em apelos a entidades representativas da sociedade
civil OAB, Cruz Vermelha, Anistia Internacional. Sem nenhuma resposta
conclusiva e cada dia mais atormentada pela dúvida, E1zita de Santa Cruz
Oliveira resolveu escrever ao próprio presidente Ernesto Geisel e à sua
esposa, Lucy Geisel. "Eu não sei de que maneira meu filho morreu, ou
onde ele está enterrado, ou o que aconteceu com ele, nada disso eu
sei..." (l06)
Lançada em meio a este reclame, a canção de Fernando Mendes, com seu
refrão em forma de súplica - "Digam pra mim / digam pra mim onde ele
está / e o que foi que fizeram com o meu pequeno amigo?" - incomodou
os agentes da repressão e não pôde continuar tocando no rádio.
A sua mensagem dava margem a outras interpretações, lembrava outros
"desaparecidos" e, assim, como o bolero “Tortura de amor”, tocava numa
ferida que o regime militar não queria ver exposta pela lente ampliadora da
canção popular.
******
NOTAS BIBLIOGRÁFICAS APENSAS AO CAPÍTULO
(pela numeração seqüencial encontrada no texto):
84. "Uma noite com Waldik Soriano no Harém e na Urca" - Zero Hora, 841973.
85. "Pedro Américo: Waldik não tem classe nem educação" - Zero Hora,
10-4-1973.
86. "Contra o céu e a terra" _ Veja, 18-4-1973. .
87. "Pedro Américo: Waldik não tem classe nem educação" - Zero Hora,
10-4-1973.
88. "Waldik, a triste busca de promoção" - Zero Hora, 11-4-1973.
89. Idem, ibidem.
90. "Contra o céu e a terra" - Veja, 18-4-1973.
91. Ver Alberto Moby, op. cit., especialmente o capítulo “A censura
durante o regime militar". O autor cita outros trabalhos que demonstram
que o período 1973/174, além de ser aquele em que se registra o maior
número de desaparecidos políticos no Brasil, foi também o período no qual
a censura agiu com maior rigor em relação à imprensa (jornais e revistas).
92. "Estilos irmãos" - Veja, 21-8-1974. Em nome de Julinho da Adelaide
foram registradas três composições: Jorge Maravilha, Milagre brasileiro e
Acorda amor (com Leonel Paiva). O personagem de Chico Buarque foi
"aposentado" em 1975, quando o Jornal do Brasil revelou a verdadeira
identidade do autor. A partir daí a Censura a começou a exigir de todos os
compositores o número da Identidade e do CPF.
93. Jacob Gorender. Combate nas trevas: a esquerda brasileira das ilusões
perdidas à luta armada. 3a ed. Sao Paulo: Ática, 1987, p. 217.
94. Brasil, nunca mais. Petrópolis: Vozes, 1986, p. 206.
95. "O Presidente não admite torturas" - Veja, 3-1-1969
96. Ao falar do episódio como o "crime da Barra" certamente Odair José
confundiu a geografia dos bairros do Rio. A Avenida Niemeyer, onde o
corpo de Cláudia foi encontrado, liga os bairros do Leblon e São Conrado,
na Zona Sul. A Barra da Tijuca fica alguns quilômetros depois, já na Zona
Oeste.
97. Esta e outras informações do Caso Cláudia podem ser conferidas no
livro de Valério Meinel Por que Cláudia Lessin vai morrer. 2a ed. Rio de
Janeiro: Codecri, 1978.
98. Idem, p. 219.
99. "Direção errada"”Veja, 25-6-1980.
100. Valério Meinel, op. cit, p. 245. A reportagem premiada de Veja foi
publicada em sua edição de capa datada de 7-9-1977.
101. "Michel Frank gostou: “Fez-se justiça" - IstoÉ, - 10-12-1980.
102. Brasil, nunca mais, op. cit., Anexo III - “Desaparecidos Políticos
desde 1964”, pp.
103. Idem, p. 11.
104. "Os esperantes" - Jornal do Brasil, 23-10-1974.
105. Conforme relato do jornalista Roberto Pompeu de Toledo. "Uma
costureira contra o regime dos generais" - Veja, 20-8-1997.
106. Depoimento incluído no livro “Onde está meu filho? - história de um
desaparecido político”. Chico de Assis... [ET al.] Rio de Janeiro: Paz e
Terra, 1985, p. 89.
(A DUPLA DOM & RAVEL SOB CENSURA)
“Eu também já tive de dar uns bons socos por aí. Cheguei a dar até
chicotadas.”
(Roberto Marinho)
*
Em meados dos anos 60 a soul music consagrou-se nos Estados Unidos,
revelando cantores como James Brown, Otis Redding e Wilson Pickett, que
com suas bases de metais e vozes roucas logo também conquistaram as
paradas de sucesso internacionais. No fim daquela década, a onda chegou
ao Brasil, e diversos nomes da nossa música seguiram pela mesma trilha.
Houve uma profusão de cantos roucos e de usos do falsete e do diafragma
para interpretar e modular a voz.
Com a exceção de Tim Maia, que cantava com a naturalidade de um astro
da Motown, os demais forçavam a garganta para conseguir aquela
ambientação soul: Ivan Lins, Tony Tornado, Ronnie Von, Eduardo Araújo,
Paulo Diniz e também os irmãos Dom e Ravel, que com suas vozes em
uníssono procuravam imitar o estilo interpretativo de Otis Redding, o ídolo
da dupla. Mas qual a mensagem das canções de Dom e Ravel?
"Se você observar bem verá que as letras das nossas músicas mostram
sempre a luta de uma classe social contra a outra, de um determinado
setor da sociedade contra o outro." Esta afirmação de Ravel encontra
certa base na produção musical da dupla.
Algumas de suas canções são de fato testemunhos da existência cotidiana
da luta de classes na sociedade - e na perspectiva dos oprimidos - , embora
isto possa soar estranho para quem se acostumou a pensar nos dois artistas
como meros símbolos do ufanismo no período do governo militar no
Brasil.
Waldenyr Caldas, por exemplo, em seu livro Iniciação d música popular
brasileira, ensina que no governo Médici houve um processo de
dilapidação da arte e da cultura, e que compositores como Chico Buarque,
Gilberto Gil, Caetano Veloso, Edu Lobo e outros exilaram-se ou foram
exilados. "Foi nessa época" diz ele - "que a música ufanista voltou à
cena. Lembrando os tempos de Ary Barroso e do Estado Novo, a dupla
Dom & Ravel liderou o discurso-exaltação às grandezas do governo da
revolução.” (l07)
Esta visão, consagrada na historiografia, opondo Dom e Ravel (adesismo)
aos compositores da MPB (resistência), me parece redutora e maniqueísta.
Entendo que se há, efetivamente, na produção musical de Dom e Ravel,
como em toda a música popular daquele período, aspectos que a tornam
apropriável pela ideologia dominante (e o tema de Eu te amo meu Brasil,
que será tratado no capítulo De armas, bandeiras e lápis na mão, é
exemplar), há nela também aspectos que a fazem contestadora desta mesma
ideologia.
Conformismo e resistência estão presentes em algumas das mais
representativas canções que a dupla produziu nos anos 70 - e por isso eles
também foram atingidos pela censura oficial e oficiosa do regime militar.
O segundo LP de Dom e Ravel, lançado em 1974, trazia algumas gravações
de forte conteúdo social: ”O caminhante”, “Conflito de gerações” e,
principalmente, ”Animais irracionais”, faixa que incomodou o governo
porque, num momento em que se propagava a idéia de união de todos em
prol de um objetivo comum a tal da "corrente pra frente" - , a canção
trazia um texto que denuncia o espaço social marcado pela existência de
opressores e oprimidos.
A primeira parte da letra evoca “a luta dos seres humanos pra sobreviver
/ um grande açoitando um pequeno / terceiros mandando apartar”,
ressaltando que “na maioria das vezes / o grande não quer parar...”
Na segunda estrofe o público é convidado a uma reflexão e emerge uma
pergunta que é mais uma afirmação a favor da revolta dos dominados
diante dos dominadores: ”Tem vezes que um desesperado se põe a
pensar / Por que ele deve aos pés de um dos grandes se ajoelhar?”
E um pouco mais adiante a letra ainda questiona a função da religião na
sociedade - o famoso “ópio do povo" - , criticando, indiretamente, o papel
conservador da Igreja, que a torna insensível ao clamor dos oprimidos: "Eu
passo por muitas igrejas / pedindo respostas de Deus / pra Ele calado
no espaço ouvir os lamentos meus..."
Embora a canção encerre uma moral conservadora – “Animais, animais /
nós os homens somos todo meio/ animais irracionais...”, reduzindo toda
a problemática à irracionalidade do ser humano, percebe-se que Dom e
Ravel tiveram a clara preocupação de expressar a negatividade da relação
de mando, da subordinação dos oprimidos diante dos opressores, apontando
para o fato de vivermos em uma sociedade autoritária na qual a violência é
a regra da existência social das classes populares.
E o verso "um grande açoitando um pequeno" traz uma imagem que
marca a história brasileira desde o período colonial, avança pelo Império e
chega até o período republicano, quando os marinheiros liderados por João
Cândido, o "Almirante Negro", em 1910 se rebelaram contra os castigos
corporais na Marinha de Guerra, no episódio conhecido como A Revolta
da Chibata.
Um dos remanescentes daquela época, o ex-marinheiro Adolfo Ferreira dos
Santos, o Ferreirinha, chegou a afirmar numa entrevista ao Jornal do Brasil
que as chicotadas e lambadas que recebeu nas costas domaram seu gênio e
fizeram com que ele compreendesse o que significa ser cidadão brasileiro.
(108)
Marca indelével da nossa sociedade, o açoite ou a existência de "um grande
açoitando um pequeno" levou o historiador José Murilo de Carvalho a
encontrar aí a prática brasileira de formação do cidadão.
Tomando como base o depoimento de Ferreirinha, José Murilo definiu que,
ao contrário do que ocorreu em outras nações do mundo ocidental, a
cidadania no Brasil foi implantada a porrete.
E esta seria, segundo o autor, a contribuição original brasileira à teoria e à
prática da moderna cidadania. E José Murilo acentua que “Ferreirinha
virou cidadão, em suas palavras, no marmelo, na lambada, na chibata.
Outros entraram no pau, no sarrafo, no cacete, no porrete, no bordão,
na manguara, na vara, no cipó. Ou na borduna, a contribuição
indígena à nossa pólis. Isto no ciclo do pau-brasil. No ciclo do boi as
alternativas ampliaram-se. O candidato a cidadão tinha então à sua
disposição o couro, o bacalhau, o chicote, o relho, o açoite, o laço. As
técnicas continuaram a diversificar-se. Hoje é o pau-de-arara, o
choque elétrico, o “telefone”, o afogamento, o fuzilamento simulado.”
(109)
Portanto, a canção de Dom e Ravel aponta para uma das características
definidoras da sociedade brasileira: o uso frequente do açoite e do porrete.
E foi exatamente isto o que mais incomodou as autoridades militares na
época, levando-as a proibir a execução da música em todo o território
nacional. Na época foi expedido um comunicado da Divisão da Censura do
Departamento de Polícia Federal afirmando estar “expressamente
proibidas a execução e radiodifusão, em todos os veículos de
comunicação, da música Animais irracionais, gravação da dupla de
cantores e compositores Dom & Ravel.” (110)
Dom acredita que a canção foi vetada porque os censores enxergaram em
seus versos alguma referência ao autoritarismo e à violência do regime
militar. E efetivamente, no contexto do Brasil daquela época, esta analogia
é possível.
Basta dizer que pelo mesmo motivo a canção ”Vence na vida quem diz
sim”, de Chico Buarque, foi vetada pela Censura em 1974. E a parte da
letra mais visada era a que diz: “Se te babam no cangote / mordem o decote
/ se te alisam com o chicote / olhe bem pra mim / vence na vida quem diz
sim.” E de nada adiantou Chico Buarque propor a troca para “vence na vida
quem diz não”.
A referência a açoite ou chicote incomodava profundamente às autoridades
militares brasileiras. Por isso, a canção gravada por Dom & Ravel também
foi proibida e os dois irmãos convocados ao escritório paulista do
Departamento de Policia Federal, na Rua Xavier de Toledo, Centro da
capital. “Nós fomos várias vezes intimados a ir depor ali e explicar o
porquê de ter feito aquela música, aquela letra, e não sei mais o quê; e
era aquele chá de cadeira. Às vezes nós ficávamos um dia inteiro ali,
quase como uma penitência.”
No depoimento acima Ravel demonstra não ter boas recordações daquele
local. Dom, o porta-voz da dupla, também esteve no mesmo escritório a
convite dos inquisidores. ”Tinha uma censora ali responsável pela área
de música, o nome dela era dona Dalva, que foi quem nos mandou o
comunicado para comparecer lá. Aí eu procurei explicar a situação pra
ela, de que o nosso disco já estava pronto e íamos ter grande prejuízo e
tal, mas ela disse: 'Não. Não dá pra liberar. Está censurado e acabou.’”
Com o sinal fechado em São Paulo, os artistas decidiram recorrer a setores
do governo federal em Brasília. Dom conhecia um coronel cujo parente
atuava na área jurídica da Divisão de Censura do Departamento de Polícia
Federal. E através deste contato foi possível o compositor articular a defesa
para a liberação de Animais irracionais.
”Eu fui ao departamento de censura lá em Brasília e disse: 'olha, essa
música não tem nada a ver com o Brasil, isso aqui retrata o problema
dos judeus, pois eu sou um admirador do povo judeu, e em
solidariedade ao sofrimento desse povo eu fiz essa música.' E foi assim
que eu consegui a liberação do disco. Porque os censores tinham na
época a liberdade de colocar o julgamento deles, eles decidiam e
interpretavam da maneira que eles achavam que deviam interpretar;
se eles achassem que aquela música fazia alguma referência ao
governo, acabou, mesmo que não tivesse nada a ver. A coisa
funcionava assim. Não havia na censura um critério racional, lógico,
havia um processo interpretativo.”
De fato, era imprevisível o que poderia acontecer a uma composição
enviada à Divisão de Censura do Departamento de Polícia Pederal e todas,
forçosamente, tinham que passar por lá.
O cantor Wando, que na época teve algumas de suas composições
proibidas, também enfatiza a falta de critério dos censores. ”As vezes a
gente usava de muita sutileza e a música não passava; outras vezes a
gente deixava ir com certos exageros e a música era liberada. Não
havia muita lógica.” O processo interpretativo dos censores em algumas
ocasiões beirava mesmo o surrealismo.
Em 1971 eles implicaram com uma composição da dupla baiana Tom &
Dito. O motivo? O título da música: ”Pô”. Os artistas apelaram,
modificando-o para ”Ora bolas” e a canção foi liberada. (112)
Mas este excesso de zelo era também conseqüência do clima de denúncia
que envolvia os próprios profissionais do veto. O ex-censor Onofre Ribeiro
da Silva confessa que “havia uma profunda censura dentro da Censura
naquela época. Éramos vigiados. Se um censor bobeasse e deixasse
passar um dos temas considerados tabu... perdia o emprego.” (113)
E entre estes temas "tabus" incluía-se a alusão a açoite ou chicote na
sociedade brasileira. Nota-se aqui a presença daquele fenômeno bem
conhecido dos leitores de Freud: ao negar, o sujeito apenas afirma
implicitamente a existência do negado.
Um exemplo de que por mais que se negue o uso do chicote é um dado da
nossa realidade social encontra-se num relato do ex-diretor de Patrimônio
da Rede Globo, Paulo Cesar Ferreira.
Em 1969 ele era assessor de comunicação do então ministro da Fazenda
Delfim Neto, que numa das edições do jornal Tribuna da Imprensa recebera
duras críticas do jornalista Oliveira Bastos.
Naquele mesmo dia, ao encontrar o jornalista em um restaurante da Zona
Sul do Rio, Paulo Cesar não pensou duas vezes: deu-lhe um violento murro
na cara, atirando-o ao chão. O gesto intempestivo custou-lhe o cargo;
afinal, um assessor do ministro da Fazenda não poderia perder o controle
daquela forma.
Mas Paulo Cesar Ferreira não ficaria muito tempo desempregado. Numa
certa tarde seu telefone tocou; era Dr. Roberto Marinho oferecendo-lhe
emprego e um afago: “Parabéns pelo soco. Eu faria o mesmo”,
acrescentando: “Eu também já tive de dar uns bons socos por aí.
Cheguei a dar até chicotadas.” (114)
Não sei se Roberto Marinho utilizou esta última expressão no sentido
figurado ou se efetivamente já chicoteou as costas de alguém. Seja como
for, ao gabar-se de tal feito, ele revela como é natural para a elite brasileira
o uso do chicote confirmando mais uma vez as palavras do abolicionista
Joaquim Nabuco de que a escravidão permaneceria por muito tempo como
a característica nacional do Brasil. (115)
Mas, afinal, quando Dom falou de “um grande açoitando um pequeno” ele
estava se referindo mesmo aos judeus?
”Não, eu estava pensando no Brasil. Eu sou realmente um admirador
do povo judeu, da sua história, da sua luta, mas eu criei esse discurso
para justificar. Mas não era só eu, não. Todo artista naquela época,
quando se via numa situação desta, procurava inventar uma
justificativa qualquer para resolver o problema, cada um fazia
qualquer coisa. Por isso eu contei que tinha feito a música em
homenagem ao povo judeu, tendo como base a história geral dos
judeus sendo açoitados pelos egípcios, pelos babilônios, pelos romanos
e pelos alemães.”
A composição gravada por Dom & Ravel revela assim a presença
intencional de um recurso também bastante utilizado na época pelos
compositores da MPB engajados na resistência: a ambiguidade da letra.
É o que Julinho da Adelaide chamava de "samba-dúplex", aquele que muda
de sentido quando necessário. "Animais irracionais, como outras
músicas que eu compus” - explica Dom - ”tem como característica o
fato de ser uma espécie de álgebra musical, ou seja, ela se encaixa
perfeitamente em várias situações. Se você for ouvi-la no contexto
histórico dos judeus, em relação à sua peregrinação em busca de uma
pátria, de um lugar onde assentar o seu povo, você vai encontrar
retratada realmente a história do povo judeu; por outro lado, se você
transportar toda aquela mensagem para o contexto brasileiro da
época, você vai ver os militares açoitando os pequenos, terceiros
querendo apartar, que seriam justamente os esquerdistas, os
progressistas. Então, automaticamente, a situação retratada na música
cabe para um lado e para outro. E foi isso aí o que me salvou.” (116)
Outra gravação “cafona” que focaliza o que José Murilo de Carvalho
definiu como "cidadania a porrete” (a contribuição original brasileira à
teoria e à prática da moderna cidadania), é o samba ”Malandro guardado”,
composição de Wando lançada em 1973. Dividida em três estrofes, a letra
descreve o drama de um mulato brasileiro que, por não conhecer o seu
lugar, “levou na cara”, revidou e foi devidamente encarcerado.
É sintomático que o personagem deste samba composto durante o governo
Médici se proclame “mais um malandro guardado”. Afinal, numa época
pautada pela ideologia do "Brasil Grande" e de implantação de um novo
culto ao trabalho, não dava mais para alguém passar gingando, de lenço no
pescoço e navalha no bolso.
Os áureos tempos da malandragem pareciam ter ficado definitivamente
para trás. Mas o enquadramento à base do porrete continuava, como
confessa o personagem na segunda estrofe; “Eu muito tentei/mas não pude
evitar / pois malandro que se preza / não apanha na cara / e desaforo pra
casa / não deve levar...” E do cárcere ele envia um curto recado: “Diga à
minha preta que ponha o meu filho pra estudar / pois filho de malandro
não tem vez / mas se ele for doutor / todo mundo vai respeitar.”
Esta referência ao estudo do filho na última parte da letra de Wando
denuncia mais um aspecto autoritário da nossa sociedade: o fato de que
aqui é preciso ser "doutor" para ser respeitado, ou seja, o exercício efetivo
do direito à cidadania é privilégio de uma minoria. Aos outros, vale a lei do
chicote.
Mas novamente José Murilo de Carvalho observa que nada disto impede
que sejamos um povo pacífico, extrovertido, amigo, cordial. Pelo contrário,
diz ele, "a função do cacete é exatamente dissuadir os que tentam fugir ao
espírito nacional de camaradagem, de cooperação, de patriotismo. O cacete
é a paternal admoestação para o operário que faz greves, para a empregada
doméstica que responde à patroa, para o aluno rebelde, para a mulher que
não quer cuidar da casa, para o crioulo que não sabe o seu lugar, para o
malandro que desrespeita a 'otoridade', para qualquer um de nós que não
saiba com quem está falando.” (117)
Diante deste quadro de opressão e autoritarismo - analisado com agudeza
pelo cientista social e também detectado pelo compositor popular, - ressalto
a indagação formulada na música de Dom & Ravel, e que na época tanto
incomodou os vigilantes do regime dos generais: "Por que ele (o oprimido)
deve aos pés de um dos grandes se ajoelhar?"
Esta mesma pergunta está implícita na letra de O caminhante, gravação de
Dom & Ravel que focaliza o cotidiano dos trabalhadores rurais e sua luta
pela posse da terra no Brasil, tema que permanece atual porque, no
alvorecer do século XXI, este aqui ainda é o país do latifúndio, das vastas
extensões de terras improdutivas e o único de dimensão continental que
jamais realizou uma reforma agrária plena.
A estrutura fundiária do Brasil é praticamente a mesma desde o início do
processo de colonização portuguesa, há 500 anos. Enquanto países das
mais diversas concepções político-econômicas, como Estados Unidos,
China, México, Japão, Rússia, França e Egito, experimentaram projetos de
ampla redistribuição da posse da terra, no Brasil todas as tentativas foram
repelidas à bala, e a questão permanece como um caso de polícia.
Durante o governo militar cresceu muito e rapidamente a entrada de
grandes empresas (nacionais e estrangeiras) no campo, aumentando a
concentração da propriedade da terra e tornando mais difícil qualquer
tentativa de reforma agrária. Segundo dados fornecidos pelo Incra (Instituto
Nacional de Colonização e Reforma Agrária), em 1972, apenas 1,5% dos
grandes proprietárias detinham no Brasil mais da metade das terras, 51,4%.
Em consequência disso as tensões sociais no campo se ampliavam e
geravam violentos conflitos em todas as regiões do país. Atenta a este
problema, em 1974 a dupla Dom & Ravel gravou a música O caminhante,
que nos apresenta, sem metáforas ou imagens rebuscadas, um quadro da
injustiça social resultante do processo de ocupação da terra em nosso país:
“Eu ando caminhando por aí / procurando uma região sem dono / na
qual eu me sinta proprietário / usuário do que dela eu extrair /
tomaram palmo a palmo quase tudo / absurdo que não consigo
acreditar.”
Mais adiante a letra diz: “Eu vi milhões de arames grossos farpados / já
cansado sobre a areia então chorei”, e no refrão conclui: “... onde piso
dizem 'isto não é seu' / tanta coisa boa eu deixo de fazer / grande parte
de caminhantes já morreu / sem o nosso pobre mundo compreender”.
É significativo que entre as canções associadas a Dom e Ravel apenas a
letra de ”Eu te amo meu Brasil” tenha sido impressa nos livros de
Educação Moral e Cívica, disciplina obrigatória do curso médio na época.
Por certo os versos de “O caminhante” não se adequavam bem à imagem
que o governo procurava veicular de um "país que vai pra frente" e de um
povo feliz e plenamente satisfeito com as realizações governamentais. O
texto da música revela que os autores tiveram a clara preocupação de
construir uma crítica à nossa realidade social e, indiretamente, denunciar a
falácia de projetos como o Estatuto da Terra e o Funrural, com os quais o
governo militar dizia estar transformando a dura vida do trabalhador do
campo.
Ao abordar o explosivo tema da luta pela posse da terra no Brasil, a
gravação de Dom & Ravel de certa maneira retoma a linha das canções de
protesto dos anos 60, que têm como um de seus exemplos clássicos a
composição ”Terra de ninguém”, de Marcos e Paulo Sérgio Valle, canção
que através da voz de Elis Regina incendiava as platéias universitárias nos
shows do Teatro Paramount em 1964: "... anda, teu caminho é longo e
cheio de incerteza / tudo é só pobreza, tudo é só tristeza / tudo é terra morta
onde a terra é boa / o senhor é dono não deixa passar..."
É evidente a semelhança temática entre a canção gravada por Dom e Ravel
em 1974 e esta composição lançada pela cantora Elis Regina exatos 10
anos antes, quando a luta pela reforma agrária estava na ordem do dia e se
expressava através de movimentos como o da Liga Camponesa, liderada
pelo deputado Francisco Julião. Ambas as músicas denunciam o processo
de concentração fundiária no campo, que se reflete nas cercas de arames
grossos farpados que impedem a passagem dos sem-terra. Mas há uma
diferença no texto das duas canções e isto se expressa na última parte da
composição dos irmãos Valle: "Mas o dia vai chegar / e o mundo vai saber
/ não se vive sem se dar...”
Nesta estrofe está contido aquilo que em seu estudo sobre as canções de
protesto dos anos 60 Walnice Nogueira Galvao definiu como a mitologia
do "dia que virá". Ou seja, se, por um lado, as canções de protesto dos anos
60 denunciavam a injustiça social no Brasil, por outro elas consolavam o
ouvinte com a utopia de que o dia da redenção do povo estaria garantido
em algum lugar do futuro, no "dia que vai chegar". E Walnice Nogueira
identifica o fenômeno em diversas canções daquele período. Exemplos:
”Aroeira”, de Geraldo Vandré: "E a gente fazendo conta / pro dia que vai
chegar"; ”Vento de mato”, de Gilberto Gil e Torquato Neto: "Monte seu
cavalo baio / que o dia já vai chegar"; ou ”Ponteio”, de Edu Lobo e
Capinam: "Eu espero, não vá demorar / este dia estou certo que vem".
Traço essencial de diversas outras composições de cunho políticoparticipante da MPB, a ênfase no "dia que virá", diz a autora, acaba por
negar ao homem o seu papel de agente da história, que passa a ser "o dia".
"Trata-se, portanto, de uma proposta imobilista e espontaneísta. Imobilista
porque prega os braços cruzados. Espontaneísta porque delega a ação a 'o
dia', essa abstração mitológica", e Walnice conclui dizendo que "já que a
utopia se cumprirá espontaneamente, eu não sou responsável, não tenho
tarefas a executar, estou dispensado de agir.” (119)
Embora também não estejam imunes às suas próprias contradições, nas
mensagens de conteúdo crítico-social produzidas por Dom & Ravel, assim
como por toda esta geração de compositores "cafonas", jamais aparece o
tempo do verbo anunciando a redenção do povo no futuro (aliás, a palavra
"povo" raramente aparece nestas composições).
E assim a canção “O caminhante”, ao relatar a luta de um camponês que
onde pisa "dizem isto não é seu", está próxima da nossa realidade social e
de certa maneira antecipa imagens que, duas décadas mais tarde, a
sociedade brasileira iria acompanhar através da televisão, quando os meios
de comunicação tiveram que abrir espaço para o drama dos trabalhadores
sem-terra, principalmente após a emergência do MST e do massacre de 19
camponeses na região de Carajás, no Pará, em abril de 1996 (numa prova
de que o dia ainda não chegou).(120)
Mas, em 1974, quando foi gravada ”O caminhante”, esta luta ainda era
oculta e silenciosa. "Naquela época, dava medo só em pronunciar a palavra
'reforma agrária' - recorda Ravel – “a gente via o medo das pessoas só em
pronunciar isso.” E por que Dom & Ravel gravaram a canção, pergunto eu?
“Porque nós sabíamos que esse problema da exploração do
trabalhador rural era muito grande no Brasil. As pessoas viviam no
campo quase como escravos, com um salário de miséria.”
E Ravel afirma que eles testemunharam isso nos vários shows da dupla
pelo interior do Brasil. "Nós sempre estivemos nos apresentando em
localidades onde a maioria dos artistas não queria ir. Nenhum artista
da MPB ia se apresentar em Capual, Vilhena, Ji-paraná, Pimenta
Bueno, Rolim de Moura, Presidente Médici; é incrível, mas nós vimos
nascer esses municípios todos. Inúmeras vezes a gente cantou para
aqueles trabalhadores que estavam construindo a Transamazônica. E
era um risco muito grande para um artista fazer um show ali. Mas nós
fazíamos os nossos shows assim, cantando embaixo de galpões, em
fazendas, levando mordidas de mosquito, ficando atolado na estrada,
vendo a miséria do povo, aquele povo simples que adorava música.
Num abraço que você dava numa pessoa daquela você via as lágrimas
correrem de emoção; eles achavam que era impossível cumprimentar
um artista que eles tinham visto numa telinha de televisão ou que
escutavam no rádio e no disco. Assim a gente foi tendo contato com o
trabalhador rural. E dava para perceber que o patrão tinha um
discurso e o trabalhador tinha outro. Às vezes os empregados da
fazenda pronunciavam um desabafo, dizendo pra gente: 'Eu e a minha
família não vamos sair mais disso; vamos viver eternamente ganhando
só pra comer. E, se sair daqui, o que eu sei fazer é lidar com terra, eu
vou cair na mão de outro explorador pior. Então não vejo futuro.' E
isso serviu de tema pra desenvolver a música, que foi feita nesse
período de observação dessas coisas todas."
A canção ”O caminhante” foi lançada num momento em que a crítica à
política social e trabalhista do regime autoritário começava a ressoar nos
principais centros urbanos do país. A combinação de fatores de ordem
externa - a crise do petróleo de 1973 - com as características do modelo
econômico brasileiro levou ao progressivo esgotamento do "milagre" a
partir do governo Ernesto Geisel, em 1974.
Agora era chegado o momento de pagar a conta. Os dólares disponíveis no
mercado internacional diminuíram e os juros cobrados aos países
endividados aumentaram. (121) Para a classe assalariada a crise se refletiu
na alta do custo de vida e no aprofundamento da exploração da força de
trabalho: o valor real do salário mínimo em 1974 atingiu seu nível mais
baixo até então, representando pouco mais da metade do valor estabelecido
em 1940.(122)
Paralelo ao aumento cada vez maior da inflação e à redução do crescimento
econômico, ia tomando corpo na sociedade a oposição ao regime militar,
fato que se traduziu de forma clara com a vitória do MDB nas eleições
legislativas de 1974. Sem conseguir mais o mesmo convencimento de
antes, o regime ainda apresenta novos slogans como "Este é um país que
vai pra frente", embora, pressionado pelos setores mais organizados da
sociedade civil, também apresente o seu projeto de abertura política "lenta,
gradual e segura" .
É também a partir desta época que o trabalhador rural começa a rearticular
movimentos pela defesa da reforma agrária em diversas regiões do Brasil.
Assim, a canção de Dom & Ravel encontra um terreno minado e pronto
para explodir.
"Uma vez, lá no Norte, na região do Araguaia" - recorda Dom - "nós
cantamos essa música num show. Na época a gente ainda não sabia o
que estava acontecendo naquela área. Mas ao final do show fomos
abordados por uma pessoa ligada aos proprietárias de terra de lá; Ele
me chamou a uma sala particular do clube e disse: 'Olha, nós temos
uma grande satisfação de recebê-los aqui sabemos que vocês ainda têm
uma série de outros shows por toda essa região, então eu chamei você
aqui para lhe advertir de uma forma muito amistosa: não cantem mais
essa música nesses outros shows. Não cantem mais, porque vocês estão
estimulando os nossos inimigos contra nós. E nós não admitimos isso."'
Segundo Dom, ele ainda tentou se defender argumentando que não 'tinha
cantado a música com aquela finalidade, mas o ruralista retrucou: "Mesmo
que os senhores não estejam cantando com essa finalidade, nós é que
estamos pagando o show dos senhores aqui no clube, o nosso partido é
quem subvenciona todas essas propagandas do clube e das rádios daqui,
então, por favor, estou advertindo o senhor de uma forma bem amistosa,
não cantem mais essa música nessa sequência de shows aí, tá bom?"
**
A região do Araguaia - local onde Dom travou este tenso diálogo - ainda
respirava naqueles dias o cheiro da fumaça do duro confronto que
guerrilheiros do PC do B e forças do Exército travaram pelo controle da
área entre 1972 e início de 1974.
Foi a partir do período do AI-5 que diversas organizações e grupos
políticos brasileiros de formação marxista empenharam-se pela luta armada
como forma de combate ao regime militar. Num documento de Setembro
de 1969, o PC do B (Partido Comunista do Brasil - uma dissidência do
antigo PCB) (123) procurou justificar esta opção com o argumento de que
"para alcançar a liberdade, o progresso e a independência da pátria, o
povo brasileiro terá que empunhar armas e travar a guerra popular. O
regime atual não cairá sem os golpes desfechados por um extenso e
poderoso movimento armado das grandes massas".
O mesmo documento garantia que "na medida em que as massas forem
mobilizadas e os revolucionários mantiverem firmemente suas posições
de combate, as chamas da luta armada se propagarão sempre até
transformar-se num grande incêndio que consumirá os carrascos e
exploradores do povo e destruirá o seu poder político". (124)
Ao contrário da maioria das organizações da esquerda armada, que
concentrava suas ações nos centros urbanos do país, o PC do B priorizava a
luta no campo por acreditar que ali propiciava melhores condições ao
desenvolvimento seguro das ações revolucionárias. Assim, a sua base
guerrilheira foi montada numa área entre o sul do Pará e o norte de Goiás
(atual estado de Tocantins), à margem esquerda do rio Araguaia.
Inspirando-se nos ensinamentos do camarada Mao Tsé-tung, os
guerrilheiros do PC do B, a maioria de formação universitária e alguns
treinados na própria China, introduziram-se como pessoas comuns no meio
da população rural do Araguaia.
Uma parte dos militantes foi trabalhar na roça e nos garimpos; outra foi
organizar escolas, postos de saúde, todos buscando o apoio dos
camponeses, pois só assim, acreditava-se, a guerra revolucionária seria
vitoriosa. Do grupo faziam parte comunistas históricos como João
Amazonas, Maurício Grabois, Pedro Chaves e outros mais jovens, como
José Genoíno.
A preparação militar dos guerrilheiros incluía aulas práticas e teóricas.
Estas últimas eram reforçadas com a leitura coletiva de clássicos de guerra
como a “Retirada da Laguna”, de Visconde de Taunay, e “Os sertões”, de
Euclides da Cunha. Os militantes tinham como princípio não se deixar
prender vivos. O Exército entrou no Araguaia em meados de abril de 1972.
Depois de ter passado uma noite chuvosa sozinho na mata, na manhã do dia
18 daquele mês, José Genoíno foi preso, quando se encaminhava para seu
destacamento. "Se eu tivesse uma bala metia em mim", diz ele, que
instantes depois conseguiu se desvencilhar dos soldados e,
provocativamente, correu gritando: "Podem atirar, podem atirar..." Eles
atiraram, mas atingindo-o apenas no braço. "Eu caí, eles me pegaram, me
amarraram pela cintura num cavalo e começaram a me bater com o relho e
o cipó."
Mais tarde Genoíno foi amarrado num tronco de árvore e interrogado à
base de mais chicotadas e pontapés. "Na madrugada do dia 19 eles pararam
de bater, caí no chão, um cachorro veio, cheirou meu corpo, encostou o
focinho e me lambeu", recorda.
Os índios Suruí - que tinham sua aldeia na região serviram de batedores
para o Exército, guiando as tropas na mata e indicando pistas dos
guerrilheiros. "Os soldados sempre procurava nós", confirma o índio
Arecachu.(126) E quem não aceitava colaborar era acusado de cúmplice da
guerrilha, tendo o mesmo destino de José Genoino: o tronco e o chicote. E
este era um castigo até brando, levando-se em conta que alguns
guerrilheiros do Araguaia tiveram suas cabeças simplesmente cortadas.
Um camponês, que guiava o Exército na região, testemunhou a degola de
Osvaldo Orlando da Costa, o Osvaldão, um negro alto e forte, o mais
temido dos guerrilheiros, abatido num milharal, numa tarde de março de
1974. "O sargento pegou a faca, lubrificou... pegou o pescoço dele,
botou num pau embaixo e foi cortando, cortando, cortando...” (127)
A cabeça do bravo Osvaldão tombou da mesma forma que no passado
tombaram as cabeças de Zumbi dos Palmares, Tiradentes, Gumercindo
Saraiva, Antônio Conselheiro, Lampião, Maria Bonita todos degolados por
forças da repressão.
”Á História do Brasil é assombrada por cabeças sem corpo e corpos
sem cabeça", constatou em um artigo o jornalista Roberto Pompeu de
Toledo.(128) Mas o camponês do Araguaia confessa que não teve coragem
de ver essa tétrica cena até o fim. "Na hora em que o sargento cortava a
cabeça de Osvaldão eu não aguentei e me afastei para trás. Aí o
sargento me empurrou para a frente e disse: 'Tu lá torcendo por ele?
Se tu não agiienta ver, tu tá torcendo por ele. Tu é terrorista
também'.” (129)
Acusação semelhante era dirigida a membros da combativa Igreja local, e
alguns padres e agentes de pastoral chegaram a ser presos e torturados. A
tensão mais visível foi com dom Pedro Casaldáliga, bispo de São Félix do
Araguaia e autor de poemas de clara inspiração marxista: "Malditas sejam
todas as cercas! / malditas todas as propriedades privadas / que nos privam
de viver e de amar...” (130)
Dom Pedro foi chamado a depor na polícia e só não caiu porque contava
com o respaldo de influentes nomes da Igreja, como dom Hélder Câmara e
dom Paulo Evaristo Arns, que retornou de uma viagem a Roma dizendo ter
ouvido do papa Paulo VI a seguinte advertência: “Mexer com dom Pedro
Casaldáliga, bispo de São Félix, seria mexer com o próprio papa.”
(131)
O primeiro grande combate no Araguaia entre os militantes do PC do B e
as forças do Exército ocorreu no fim de abril de 1972, com a vitória dos
cerca de 70 guerrilheiros.
Em Setembro daquele mesmo ano realizou-se a segunda investida das
tropas do governo, que, com mais ou menos 10 mil homens, novamente
foram derrotadas. A bravura e a competência da guerrilha surpreendiam até
os mais experientes militares do Exército brasileiro.
O repórter Fernando Portela relata que em determinado momento da luta
um militante do PC do B, depois de causar uma grande baixa nas tropas do
governo, acabou morrendo no combate. O comandante da ação, um major,
ainda assim irritado com o desempenho dos seus soldados, perfilou-os
diante do guerrilheiro morto e esbravejou: “Este homem, aí no chão, é um
herói. É um soldado heróico lutando do lado errado. E vocês, o que
vocês são? “ (132)
Atingido em seus brios, em Outubro de 1973 o Exército iniciou a terceira
campanha e só aí conseguiu desmantelar a guerrilha do Araguaia, que, em
maio de 1974, finalmente se dispersou. Portanto, quando naquele ano Dom
e Ravel foram ali apresentar a canção ”O caminhante”, os fazendeiros da
região ainda estavam assustados com a possibilidade de uma revolução
popular no local. É compreensível assim que tenham ficado incomodados
com a mensagem da música e feito veladas ameaças aos artistas.
“Nós ficamos com medo depois daquela advertência” - confessa Dom “porque começamos a nos informar de que a barra ali estava muito
pesada. Tinha gente que morria sem saber por que. Eles faziam o
aviãozinho cair, o carro bater e despencar numa ribanceira, enfim,
criavam uma situação qualquer para fazer o cara sumir do mapa. Me
diziam isso, né? Então, a partir dali, passamos a não cantar mais essa
música naquela turnê e nem em outras regiões do interior onde tinha
conflito de terra. Porque uma coisa é a gente ser idealista, outra é ser
imprudente. Eu tinha uma filha para criar e tinha minha família que
dependia de mim. Em determinados locais, digamos num programa de
televisão, ou num show em uma outra área, até que a gente cantava
esta música. Mas em regiões onde havia conflitos de terra a gente
passou a não cantar mais. Foi uma época em que estava ainda muito
no começo desse movimento dos sem-terra e a coisa estava braba
mesmo. Naquela região do Araguaia o pau estava comendo e já estava
morrendo muita gente.”
O depoimento de Dom nos leva mais uma vez a refletir que os atos de
repressão sobre os artistas de nossa música popular naquele período não se
limitaram à ação da censura oficial do regime em Brasília. Foram exercidos
também por grupos particulares através da força de argumentos como o
desse representante dos proprietárias de terra. E é possível supor que esta
mesma ameaça tenha sido dirigida a diversos programadores de rádios da
região Norte-Nordeste e Centro-Oeste, que, talvez inadvertidamente,
tenham veiculado no ar a canção ”O caminhante”.
Afinal, como confessou aquele ruralista, eram os latifundiários quem
subvencionavam a publicidade do clube e das rádios locais e eles não
permitiriam a divulgação de uma música cujo refrão protestava: “Onde
piso dizem 'isto não é seu' / tanta coisa boa eu deixo de fazer / grande
parte de caminhantes já morreu / sem o nosso pobre mundo
compreender...”
**
NOTAS BIBLIOGRÁFICAS APENSAS AO CAPÍTULO
(encontradas no texto pela numeração seqüencial):
107 Waldenyr Caldas. Iniciação à música popular brasileira. São Paulo:
Ática, 1985, p. 69.
108. "Um companheiro de João Candido" - Jornal do Brasil, 8-12 -1988.
109. José Murilo de Carvalho. "Cidadania a porrete". In Pontos e bordados;
escritos de históriR e política Belo Honzonte: Ed. UFMG, 1998, p. 309.
110. Conforme depoimento de Ravel ao autor, 13-1-1998.
111. Em consequência do veto da censura, a primeira gravação que Chico
Buarque fez desta música foi apenas instrumental. LP “Chico canta” Philips P.1973. A versão com a letra foi gravada mais tarde por Nara Leão.
Ver índice de canções citadas em Fontes e bibliografia.
112. Cf. Alberto Moby, op. cit., p. 143.
113. Idem, p. 103.
114. Paulo Cesar Ferreira. Pilares via Satélite: da Rádio Nacional à Rede
Globo. Rio de Janeiro: Rocco, 1998, p. 157.
115. Joaquim Nabuco. Minha formação. Porto Alegre: Paraula, 1995, p.
153. (Autobiografia escrita em 1900.)
116. Finalmente liberada, “Animais irracionais” logo alcançou as paradas
de sucesso, ocupando o 4° lugar na relação dos 15 LPs nacionais mais
executados durante o mês de Junho de 1974, em São Paulo. Fonte: Ibope -
Pesquisa sobre vendas de discos” Acervo do Arquivo Edgar Leuenroth /
Unicamp.
117. José Murilo de Carvalho, op. cit., p. 309.
118. Cf. José de Souza Marfins. Os camponeses e a política no Brasil.
Petrópolis: Vozes, 1990, p. 142.
119. Walnice Nogueira Galvão. "MMPB: uma análise ideológica". In Saco
de gatos; ensaios críticos. São Paulo: Duas Cidades, 1976, pp. 96 e 104.
120. O fato ocorreu no dia 17 de abril de 1996 em Eldorado do Carajás.
Num choque com policiais militares do governo do Pará, 19 sem-terra
foram mortos e o episódio ganhou repercussão internacional.
121. Cf. Nadine Habert. A década de 70: apogeu e crise da ditadura
militar brasileira. 2a ed. São Paulo: Ática, 1994, pp. 40-42.
122. Fonte: Dieese. Boletim, abr. 1982. Apud Sônia Regina de Mendonça.
Estado e economia no Brasil: opções de desenvolvimento. 2a ed. Rio de
Janeiro: Graal, 1988, p. 67.
123. Liderado por Luiz Carlos Prestes, o PCB (Partido Comunista
Brasileiro) era contrário à luta armada naquele momento por acreditar que
isto só contribuiria para aumentar a repressão e dar armas à reação do
regime militar. O chamado Partidão optou por manifestações de pressão
política, dentro da lei e da ordem.
124. Apud Renato Mocellin. As reações armadas ao Regime de 64:
guerrilha ou terror?. São Paulo: Ed. do Brasil, 1989, p. 43.
125. 'Á versão de um guerrilheiro" - Movimento, 17-7-1978.
126. 'Á Igreja fala sobre a guerrilha" - Movimento, 17-7-1978.
127. "Cabeças cortadas do povo da mata" - Movimento, 9 a 15-7-1979.
128. 'Á teimosa mania de cortar cabeças' - Veja, 8-5-1996.
129. "Cabeças cortadas do povo da mata" - Movimento, 9 a 15-7-1979.
130. Apud Plínio Correa de Oliveira. A igreja ante a escalada da ameaça
comunista: apelo aos bispos silenciosos. 4a ed. São Paulo: Vera Cruz,
1977, p. 13.
131. Idem, p. 31.
132. Fernando Portela. Guerra de guerrilhas no Brasil. 6a ed. São Paulo:
Global, 1979, p. 82.
(BENITO DI PAULA À PROCURA DE GERALDO VANDRÉ)
“Era disso que o samba estava falando, o lance é esse aí. O Juca queria
ser o presidente da República, sacou?”
(Benito Di Paula)
*
O recurso da linguagem da fresta - aquela de que malandramente se
valeram artistas como Chico Buarque e Gonzaguinha para burlar o cerco da
censura - também foi utilizado naquela época pelo cantor e compositor
Uday Vellozo, o sambista cigano que ficaria mais conhecido com o nome
artístico de Benito di Paula. Autor de ”Retalhos de cetim”, “Charlie
Brown” e vários outros sucessos populares, este ícone do chamado
sambão-jóia também teve a sua carreira musical marcada por atos da
repressão política e, como veremos, não apenas da ditadura militar do
Brasil.
Depois de um fracassado compacto com boleros nos anos 60 e de uma
longa trajetória como cantor da noite, em março de 1971 Benito di Paula
conseguiu finalmente gravar o seu primeiro LP.
Mas assim que foi lançado, o disco teve que ser recolhido das lojas Motivo:
na faixa de abertura ele interpreta o samba ”Apesar de você”, de Chico
Buarque. Era uma das primeiras regravações deste samba, que ainda não
estava proibido quando Benito o gravou. "Mas quando a música de
Chico foi cassada o meu disco foi junto também. E naquela época não
se podia tirar música de um disco. Hoje em dia quando há algum
problema, você tira a música e coloca uma outra ou não coloca
nenhuma. Naquele tempo era muito difícil, era muito complicado fazer
isso. E o meu disco já estava pronto. Aí seguraram ele também. Quer
dizer, na realidade eu não tive um disco lançado, tive um disco
guardado, porque nem sequer consegui divulgar esse trabalho.”
"Benito Di Paula" (1971) - teve seu lançamento proibido por causa de
uma canção de Chico Buarque
A inclusão de “Apesar de você” neste primeiro LP de Benito di Paula se
deu porque a gravadora Copacabana queria aproveitar a experiência do
artista como cantor da noite. Decidiu-se então pela regravação de algumas
músicas que estavam fazendo sucesso naquela temporada: “Jesus Cristo”
(Roberto e Erasmo), “Na Tonga da Mironga do Kabulete” (Toquinho e
Vinícius), “Madalena” (Ivan Lins e Ronaldo Monteiro de Souza), “Azul da
cor do mar” (Tim Maia)”, mas ninguém na gravadora poderia imaginar que
uma dessas regravações, o samba “Apesar de você”, fosse causar o estrago
que causou.
Num primeiro momento não era óbvio para todo mundo que a mensagem
de Chico Buarque era endereçada ao presidente Médici. A própria Censura
só foi perceber isto meses depois do lançamento, quando o compacto de
“Apesar de você” já tocava no rádio e havia vendido cerca de 100 mil
cópias.
E esta demora se explica porque o jovem cantor de olhos verdes não era até
aquele momento identificado como autor de canções de protesto e sim de
líricas e nostálgicas canções como “A banda”, “Olê olá”, “Carolina” e
“Quem te viu quem te vê”.
Basta lembrar que em pleno 1968 o presidente Costa e Silva incluiu
“Carolina” num LP intitulado “As minhas preferidas”(disco cuja capa
mostra o ditador em família: ao lado da esposa e da neta),(133) e em junho
daquele mesmo ano, durante a Bienal do Samba, em São Paulo, Chico
Buarque teve a sua composição “Bom tempo” vaiada pelo público de
esquerda, que não compreendia naquele contexto o motivo de tanto
otimismo em versas como ”satisfeito / a alegria batendo no peito / o
radinho cantando direito / a vitória do meu tricolor”.
Vaias que, três meses mais tarde, se amplificaram pelos cinco mil altofalantes quando “Sabiá” (parceria de Chico com Tom Jobim) venceu
“Pra não dizer que não falei de flores”, de Geraldo Vandré, na terceira
edição do FIC. Diante do engajamento explícito da música de Vandré,
os versos de “Sabiá” e, principalmente, do samba “Bom tempo”,
soavam demasiadamente brandos, escapistas e inofensivos.
Desta forma, quando, logo após a decretação do AI-5, Chico Buarque
foi levado para depor na sede do I Exército, no Rio, os
questionamentos eram apenas em relação à sua presença na Passeata
dos Cem Mil e à polêmica em torno da montagem da peça “Roda
viva”. (134) Os militares não manifestaram qualquer crítica às suas
composições. E, segundo Chico, naquele mesmo dia um tal de general
Assunção lhe comunicou que ele não seria preso porque “tinham-no
achado muito simpático, além de ele ser torcedor do Fluminense” - o
que devia contribuir para enfatizar a sua imagem de bom moço.(l35)
O fato é que até o momento da proibição de “Apesar de você”, Chico
Buarque não possuía a imagem de paladino da democracia e de contestador
do regime militar - “o nosso Errol Flynn” - , no dizer de Glauber Rocha que ele passou a carregar depois deste episódio.
E isto explica o cochilo da Censura e, também, o da própria gravadora de
Benito di Paula ao incluir aquele samba no disco do cantor.
Com este primeiro LP inesperadamente proibido e recolhido das lojas, com
total prejuízo para artista e gravadora, foi adiada para o ano seguinte, 1972,
a gravação de um novo trabalho de Benito di Paula.
Tendo como carro-chefe o samba “Violão não se empresta a ninguém”, o
segundo LP incluía na maioria das faixas, canções inéditas do próprio
Benito e algumas de outros compositores.
Mas outra vez o cantor correu o risco de ter o seu disco proibido pela
censura. Num momento em que a imprensa destacava em manchetes que
“Médici é o maior” (título que ilustrava a divulgação de números do Ibope
com altos índices de popularidade para o presidente),(136) o LP de Benito
di Paula trazia o samba “O bom é o Juca”, de Carlos Magno, composição
de conteúdo sociopolítico que, assim como “Apesar de você”, veladamente
fazia referência ao general ditador:
O JUCA FALOU QUE SE ELE FOR PRESIDENTE
RESOLVE O PROBLEMA DO MORRO DE VEZ
ARRANJA REMÉDIO PARA QUEM ESTÁ DOENTE
ARRUMA COLÉGIO PROS FILHOS DA GENTE
SÓ TEMOS TRÊS BICAS, COLOCA MAIS TRÊS, SÃO SEIS
QUADO O JUCA VENCER VAI NASCER UMA FLOR
VAI TER TELEFONE E ELEVADOR
SE ELE FALOU PODE VER QUE É CERTO
TEM UM CORAÇÃO QUE É UM CÉU
CANSADO DE TUDO E REPLETO DE AMOR...
Para que o Juca não fosse acusado de pretender o cargo do presidente
Médici, no final do samba o compositor explica que “muita coisa pode
acontecer / o bom é o Juca e tem que ser / presidente da escola”. Mas
hoje, passados mais de 25 anos, Benito di Paula confirma as intenções
políticas do Juca: “Era disso que o samba estava falando, o lance é esse
aí. O Juca queria ser presidente da República, sacou?”
Quem não sacou foram os censores de plantão, que não perceberam a
analogia entre Brasil-favela, presidente da República-presidente da
escola, e liberaram O bom é o Juca sem maiores problemas. Mas este é
um típico samba que, se fosse assinado na época por alguém como
Chico Buarque - que depois do caso “Apesar de você” tornou-se uma
obsessão da Censura - , muito provavelmente teria sido proibido.
Mas o seu autor, Carlos Magno, músico que trabalhava com Benito di
Paula nas noites de São Paulo, era tão desconhecido em 1972 quanto
Julinho da Adelaide em 1974. De qualquer forma, o recurso da
linguagem da fresta foi fundamental para despistar os censores.
**
E este mesmo ardil é utilizado por Benito di Paula em um outro samba
intitulado ”Tributo a um rei esquecido”:
ELE FOI UM REI E BRINCOU COM A SORTE
HOJE EL É NADA E RETRATA A MORTE
ELE PASSOU POR MIM MUDO E ENTRISTECIDO
EU QUIS GRITAR SEU NOME NÃO PUDE
ELE OLHOU PRA PAREDE E DISSE COISAS LINDAS
DISSE UM POEMA PARA UM POSTE
ME VIERAM LÁGRIMAS
O QUE FOI QUE FIZERAM COM ELE?
NÃO SEI
SÓ SEI QUE ESSE TRAPO, ESSE HOMEM
FOI UM REI
Lançada em 1974, ”Tributo a um rei esquecido” é uma homenagem de
Benito di Paula a um dos artistas brasileiros mais visados pela
ditadura militar: o cantor e compositor Geraldo Vandré.
O verso "Eu quis gritar seu nome / não pude” é uma referência ao fato
de a simples pronúncia do nome Geraldo Vandré ser objeto de censura
na época. A sua voz e a sua imagem estavam praticamente banidas no
Brasil. Mas o samba de Benito, além de evocar a memória do artista
proscrito, amplificava uma pergunta que muitos brasileiros faziam (e
ainda fazem) em relação a Vandré: “O que foi que fizeram com ele?”
Ao longo dos anos a resposta para esta pergunta tem corrido de um extremo
ao outro: para uns Vandré foi um idealista que não transigia com sua arte e
foi torturado até sofrer um processo de lavagem cerebral; para outros,
Vandré sucumbiu à pressão (quando ainda poderia ter resistido) e o seu
comportamento excêntrico e esquivo visa apenas alimentar o mito criado
em torno de si.
Seja como for, a origem desta polêmica tem local, data e nome
determinados: Rio de Janeiro, Maracanãzinho, 29 de Setembro de 1968,
“Pra não dizer que não falei de flores”. Ali, em pleno regime militar,
Geraldo Vandré apresentou ao público e ao júri do III Festival
Internacional da Canção a mais contundente crítica jamais feita ao Exército
brasileiro numa letra de música popular e num momento em que as Forças
Armadas controlavam os poderes da República.
– HÁ SOLDADOS ARMADOS, AMADOS OU NÃO
QUASE TODOS PERDIDOS DE ARMAS NA MÃO
NOS QUARTÉIS LHES ENSINAM UMA ANTIGA LIÇÃO
DE MORRER PELA PÁTRIA E VIVER SEM RAZÃO...
A repercussão da música foi imediata. De sua base no Forte Coimbra, no
pantanal mato-grossense, o general Aspirante Basto enviou uma “Carta a
Geraldo Vandré”, publicada no Última Hora, e na qual ele questionava o
compositor: “O que entende você de pátria, para dizer que nos quartéis
se vive sem razão? Que mais você fez nesta vida, sem ser em troca de
lucro?”, indagando ainda que “será uma vida sem razão a dos homens
que neste momento, como eu, em terras longínquas ensinam a cor da
bandeira brasileira?” Mais adiante ele aconselhava o artista: “Cante o
que quiser, mas não coloque nada de pátria no meio. Você não sabe o
que é isso. A sua pátria deve ser um copo de cerveja.” E num tom cada
vez mais exaltado, o general vaticinava: “Voce passará, Vandré. O povo
esquece depressa. Sua música causou sensação, mas logo será
esquecida.” (138)
Aspirante Basto pode ter sido um bom militar, mas foi com certeza um
péssimo vidente. Lançada em meio aos protestos estudantis de 1968, “Pra
não dizer que nao falei de flores” (ou “Caminhando”, como ficou mais
conhecida) se tornou uma espécie de Marselhesa brasileira, inflamando
greves e passearas até os dias de hoje.
Na época a composição não venceu o festival e foi proibida pela Censura
Federal sob o argumento de veicular uma mensagem “subversiva e
atentatória ao regime democrático”(139) Mas os militares não estavam
satisfeitos; queriam também a "cabeça" de Geraldo Vandré.
E logo após a decretação do AI-5, quando já não havia mais regime
democrático, foram bater à porta de um hotel em Anápolis, Goiás, onde o
cantor se hospedara em meio a uma turnê. Providencialmente, entretanto,
Vandré já estava a caminho do Rio, seguindo depois para a fazenda de
Dona Aracy Carvalho, viúva do escritor João Guimarães Rosa, no sertão
mineiro.
Pouquíssimas pessoas sabiam do esconderijo, no qual Vandré permaneceria
durante mais de um mês. O compositor Geraldo Azevedo, um dos poucos
que tinham acesso a ele, recorda-se da tensão daqueles dias. “Para ir lá eu
tinha de me comportar como um militante de organização política
clandestina; entrava num carro, mudava para outro, fazia tudo para
despistar pessoas da repressão que pudessem estar me seguindo para,
por meu intermédio, chegar a Vandré.” (140)
Ali, na fazenda dos Guimarães Rosa, enquanto traçava a rota que seguiria
no exílio, Vandré compôs em parceria com Geraldinho Azevedo “A canção
da despedida”, premonição da sua própria trajetória a partir dali: ”Já vou
embora / mas sei que vou voltar / amor, não chora / se eu volto é pra
ficar...” (141)
Depois do sertão mineiro, a estratégica retirada de Vandré contou com uma
breve escala no apartamento da atriz e modelo carioca Marisa Urban, sua
namorada na época. O cerco policial se fechava sobre o cantor e ele foi
pedir guarida ao governador de São Paulo, Abreu Sodré, com quem tinha
boas relações. “Não tive dúvidas. Convidei Vandré a permanecer no
Palácio Bandeirantes, nos mesmos aposentos que serviriam mais tarde
para receber a rainha da Inglaterra. Ele aceitou de bom grado e lá
permaneceu” , afirmou o ex-governador .(142)
Alguns dias depois, sob a orientação do próprio Abreu Sodré, o artista
seguiu para o Rio Grande do Sul e em pleno domingo de Carnaval, 16 de
fevereiro de 1969, a bordo de seu Gálaxie preto, atravessou a fronteira do
Brasil com o Uruguai.
A partir daí ninguém sabia ao certo o destino tomado por Geraldo Vandré.
É quando se ouve pela primeira vez a indagação mais tarde retomada no
samba de Benito di Paula: “O que foi que fizeram com ele?” Os primeiros
boatos diziam que ele estaria preso e incomunicável em alguma guarnição
do Exército, de que fora torturado ou até mesmo executado pelo Esquadrão
da Morte.
Em Junho de 1969 parte do mistério se desfez quando o jornal O Globo
localizou Vandré em Santiago do Chile. “Estou bem vivo. Escrevendo e
fazendo da saudade o que posso fazer”, disse ele à reportagem. (143)
Sem visto para permanecer no país, no mês seguinte Vandré foi obrigado a
deixar o Chile. Seguiu para a Argélia e depois a Europa: Alemanha,
Áustria, Itália. Caminhando e cantando às vezes em troca de pouso e
comida Vandré percorreu povoados do interior da Grécia, Bulgária e
Iugoslávia. Na França, fez uma pausa de 18 meses e ali, em novembro de
1970, gravou seu último LP: "Das Trras de Benvirá". Em março do ano
seguinte, foi detido pela Polícia francesa por porte de haxixe e obrigado a
deixar o país.
Vandré consegue retornar a Santiago, mas o exílio já se tornara um
pesadêlo e o artista recorria cada vez mais ao uso de calmantes para
conseguir dormir. Num Chile àquela altura convulsionado, com toques de
recolher, à beira do golpe militar, acentuaram-se as crises depressivas do
compositor, num processo de desintegração psicológica que o fez
submeter-se a tratamento psiquiátrico durante 45 dias.
Enquanto isto, no Brasil, sua família articulava negociações para que ele
pudesse voltar. Através de um general que a mãe de Vandré conhecera
numa sessão de centro espírita foi feito o contato com autoridades do
governo Médici. E assim, em Julho de 1973, dois meses antes de as tropas
do general Pinochet tomarem o poder e cortar as mãos do cantor de
protesto chileno Vitor Jara em pleno Estádio Nacional, Geraldo Vandré
deixou Santiago, embarcando ao Rio de Janeiro.
Tão obscuro quanto sua saída foi o seu retorno ao país. O autor de “Pra não
dizer que não falei de flores” fez uma única viagem de volta, mas
desembarcou duas vezes no Brasil. Houve um desembarque real e um
segundo desembarque, fictício. O primeiro foi noticiado pelo Jornal do
Brasil em sua edição de sexta-feira, 18 de Julho de 1973. “O cantor e
compositor Geraldo Vandré foi preso, ontem, no aeroporto do Galeão, ao
desembarcar de um avião. O artista foi levado para uma unidade militar,
onde se encontra incomunicável.” (144)
Seguiram-se 33 dias de absoluto silêncio. É quando é apresentado o
desembarque fictício de Vandré em terras brasileiras. Na noite de 21 de
agosto de 1973, a câmera do Jornal Nacional da TV Globo focaliza a
escada de um Electra da Varig no aeroporto de Brasília.
O angulo vai se fechando e o rosto de Geraldo Vandré, barbado e com a
expressão cansada, aparece na tela. Neste momento o locutor informa que
“o cantor e compositor Geraldo Vandré acaba de voltar ao Brasil”. O artista
desce a escada e caminha lentamente pela pista do aeroporto.
A seguir é mostrada a primeira fala de Vandré à televisão brasileira desde
1968. Cabisbaixo e com a voz trêmula, ele afirma que pretendia integrar
suas composições “à realidade nova do Brasil, que espero encontrar em um
clima de paz e tranqüilidade” e queixa-se de que sua música foi apropriada
por grupos políticos contra a sua vontade: “Voces sabem, a arte às vezes é
usada por um grupo determinado com interesses políticos e isso
transcende a vontade do próprio autor. Eu, o que tenho a dizer é que,
na verdade, nunca estive vinculado ou comprometido em toda a minha
vida com qualquer grupo político.”
Por fim, ele declara que dali pra frente desejava “só fazer canções de
amor e paz” (145)
É neste espaço de tempo entre a chegada de Vandré em 17 de julho de 1973
e esta "volta" apresentada pela TV Globo, 33 dias depois - que melhor se
situa a pergunta formulada no samba de Benito di Paula: “O que foi que
fizeram com ele?” Sabe-se que após aquele primeiro período
incomunicável numa unidade do I Exército, no Rio de Janeiro, o
compositor também esteve preso numa carceragem da Polícia Federal em
Brasília. E foi provavelmente entre uma cela e outra que a polícia política
conseguiu arranjar a retratação ou confissão que Vandré apresentou ao
público através do Jornal Nacional.
Geraldo Vandré - O que aconteceu de fato, com ele?
O fato é que, quando num daqueles dias de 1974, Benito di Paula avistou
Geraldo Vandré “dizendo um poema para um poste”, o autor de
“Disparada” já era uma sombra de si mesmo. Estava com 38 anos, mais
gordo e grisalho, vagando a esmo sozinho pelas ruas de São Paulo. E dizia
não ver televisão; não ouvir rádio; não ler jornal; não ter emprego; e não
pagar imposto.
E recusava-se a gravar disco, fazer shows ou dar entrevistas: “Nada do que
eu possa dizer, fazer ou pensar - dá no mesmo ser publicado ou não,
porque não tem nenhum valor” , se auto-analisava sem nenhuma
indulgência.(146) Aspectos que tornavam a pergunta do refrão do samba
”Tributo a um rei esquecido” cada vez mais pertinente e atual. “E eu
continuo querendo saber: cadê ele? Já deram anistia pra ele? O que foi
que fizeram com ele?” , reclama ainda hoje Benito di Paula.
Nos últimos anos alguns jornalistas tentaram fazer esta pergunta ao próprio
Geraldo Vandré. E ele, na maioria das vezes, se esquiva da resposta. “A
curiosidade sobre isso é uma paranóia, uma doença. Não me sinto
responsável em elucidar isso”, respondeu a Brenda Fucuta do Jornal do
Brasil.(147)
A jornalista Maria do Rosário Caetano, de O Estado de S. Paulo, foi direta:
“Você foi torturado?” A resposta de Vandré, também: “Nunca. E me
nego a continuar falando sobre este assunto.” (148) E para um jovem
repórter de O Globo que insistiu em perguntar-lhe se ele era uma vítima do
regime militar, Vandré esbravejou com o dedo em riste e os olhos verdescinza arregalados: “Vítima é você! Vítima é você!” (149)
Visando melhor esclarecer este tema, eu entrevistei uma das autoridades do
regime militar, o hoje general da reserva Octávio Costa, ex-chefe da
Assessoria Especial de Relações Públicas do governo Médici. Logo após o
encerramento do III FIC, em Outubro de 1968, o então coronel Octávio
Costa escreveu no Jornal do Brasil um artigo de grande repercussão
intitulado “As flores do Vandré” , no qual ele defendia os militares - "não
vivem sem razões os que asseguram à imensa maioria da nação o direito de
continuar vivendo democraticamente" - , e cobrava punição para o
compositor sob o argumento de que a Justiça não poderia se calar “diante
do delito, do delito claramente configurado, à luz dos refletores, contra
a lei vigente” (150)
Ao longo de três horas de conversa com Octávio Costa falamos sobre
democracia, ditadura, guerrilha, censura, tortura e “Pra não dizer que não
falei de flores”.
“Eu acho que Vandré não era um revolucionário” - opina o general -,
“era apenas um violeiro, um lírico que fez aquela música contaminado
pelo entusiasmo ao redor. O problema é que ele era um homem sem
estrutura para suportar pressões. Nem as pressões vindas dos setores
militares, que se manifestaram radicalmente contra ele, nem as
pressões dos seus companheiros da esquerda, que esperavam dele um
papel de mártir, de herói. Então eu acho que ele acabou sucumbindo a
tudo isto porque basicamente Vandré não era um forte”
Mas, insisto com o general, Vandré foi ou não torturado? “Eu acredito
que ele deve ter sido preso e não descarto a possibilidade de ter
recebido alguns tapas, uns empurrões contra a parede, 'vamos, faz
uma música aí agora', coisas assim. A indignação dos militares contra
ele foi tão grande que alguns algozes podem ter dado uns safanões. Já
tortura em pau-de-arara, choque elétrico, não creio que tenha sofrido,
muito menos lavagem cerebral, que é um negócio bastante requintado”
Embora negue que tenha havido o uso das formas clássicas de tortura,
Octávio Costa é a primeira autoridade militar do governo Médici que
admite a possibilidade de que Vandré sofreu algum tipo de coerção física
por parte de elementos do Exército. Mas o general é contestado pelo
compositor Carlos Lyra, parceiro de Vandré em canções e na militância de
esquerda nos anos 60. “Geraldo nunca foi torturado, nunca levou
sequer um tapa da repressão.” (151)
Bem, de tudo isto, ressalte-se que aquela pergunta (ou paranóia, como diz
Vandré), que se repete por três vezes no samba “Tributo a um rei
esquecido” - "o que foi que fizeram com ele?" - , só pôde ser veiculada nas
rádios do Brasil nos anos 70, porque Benito di Paula valeu-se mais uma vez
da linguagem da fresta, driblando um comunicado expedido pela Polícia
Federal que proibia a "transcrição ou divulgação de qualquer notícia,
comentário ou referência" a respeito do cantor e compositor Geraldo
Vandré.” (152)
Benito chamou-o então de “rei”, valendo-se de imagens presentes na
canção “Disparada”, em que Vandré diz “na boiada já fui boi / boiadeiro já
fui rei”.
E esta era realmente a única forma possível de se cantar brasileiros mortos,
presos ou banidos pelo regime de 1964. A dor da estilista Zuzu Angel,
quando descobriu que não mais encontraria o filho desaparecido (dizem
que seu corpo foi jogado no mar), foi veladamente retratada por Chico
Buarque nos versos da canção “Angélica”, que ainda assim teve problemas
com a Censura: “Quem é essa mulher / que canta sempre esse estribilho /
'só queria embalar meu filho / que mora na escuridão do mar'...”
Quando estava no exílio em Londres, Caetano Veloso também foi alvo de
mensagens musicais de solidariedade.
Caso do samba “Mano Caetano”, composição de Jorge Ben que saudava a
possível volta do irmão de Maria Bethânia, que lançou a canção. “Lá vem o
mano / meu mano Caetano... / lá vem o menino de camisolas brancas /
debaixo de um lindo céu azul / verde e amarelo / azul e branco".
Mesmo com esta pincelada nacionalista o samba de Jorge Ben teve sua
execução pública proibida por causa da explícita referência a um exilado do
governo militar.
Erro que não cometeu Roberto Carlos com “Debaixo dos caracóis dos seus
cabelos”, composição que na época ninguém associou a Caetano Veloso. O
mesmo ocorrendo com o samba “Quero voltar pra Bahia”, sucesso do
cantor pernambucano Paulo Diniz, em 1970: “I don't want stay here / I
want to go back to Bahia.../ Via Intelsat eu mando notícias minhas para O
Pasquim / beijos pra minha amada / que tem saudades e pensa em mim..."
Em casos como este conseguiu-se desviar a ação da censura, provando
mais uma vez que nem tudo aquilo que o malandro pronuncia o otário
silencia. Mas em outros casos o compositor popular teve que ceder. Do
mesmo Benito di Paula, por exemplo, o samba “Trapézio”, que começa e
termina com um som de fanfarra reproduzindo o clima de um picadeiro,
tem um refrão que originalmente ironizava algumas das mazelas do país:
“Se cobrir vira circo / se cercar vira cadeia / o Brasil é um trapézio / preso
na cumeeira...”
Obviamente os militares não gostaram desta analogia e o samba foi
proibido. O compositor apelou e a solução paliativa foi trocar a palavra
"Brasil" por "essa vida".
Um outro samba de Benito, disfarçadamente intitulado “Proteção às
borboletas” - na verdade seu texto é uma exaltação à dignidade humana - ,
furiosamente foi liberado pela censura do governo brasileiro e proibido
pelos militares argentinos, porque nele o compositor diz: “Eu sou como as
borboletas / tudo que eu penso é liberdade / não quero ser maltratado / nem
exportado desse meu chão / minhas asas, minhas armas / não servem para
me defender. ."
No Brasil, já em processo de abertura política, o samba de Benito di Paula
passou sem problemas, mas na Argentina, vivendo naquele momento o
auge da repressão militar, com torturas e mortes comandadas pelo ditador
Rafael Videla, frases como "tudo que eu penso é liberdade", "não quero ser
maltratado" e, principalmente, "minhas asas, minhas armas", soaram
demasiadamente subversivas e o samba foi silenciado.
E assim como já havia acontecido com Odair José, outro compositor
brasileiro "cafona" tem a sua obra atingida pela fúria obscurantista não
apenas do regime político brasileiro, mas também pela de outras ditaduras
militares que naquela época proliferavam por quase toda a América Latina.
*
Companheiro de Benito di Paula em popularidade, o cantor e compositor
goiano Lindomar Castilho também teve sua produção musical alcançada
pela tesoura da Censura.
Conhecido como o "namorado de las Americas", em função do sucesso
obtido em vários países deste continente, Lindomar começou a carreira
discográfica nos anos 60, na gravadora Continental. Os seus primeiros
discos de boleros obtiveram boa aceitação no mercado, mas ainda sem
atingir o eixo Rio-São Paulo. O cantor se consolidou como um nome de
projeção nacional e internacional a partir de 1970, quando foi contratado
pela RCA, por onde gravou várias canções de sucesso, entre as quais “Eu
não sou nenhum bandido”, “Eu amo a sua mãe”, “Camas separadas” e “Eu
vou rifar meu coração”.
O primeiro embate de Lindomar Castilho com a Censura ocorreu em 1968,
ano em que ele iria lançar o merengue “Eu canto o que o povo quer”,
composição em que ele inicia falando de sua origem social: "Nasci de
família humilde / família de cantador...", e mais adiante professa:
"Estou com a maioria / para o que der e vier / eu faço parte do povo / e
canto o que o povo quer...". Aí começou o problema, porque os versos
seguintes também tinham uma conotação mais social de crença na força da
união do povo como motor das transformações do mundo.
Numa época de passeatas, de manifestações de protestos e de canções que
preconizavam que "somos todos soldados armados ou não", os censores
acharam mais prudente também segurar a canção de Lindomar Castilho.
“Quando fiz a música não pensei em nada de política, mas não sei por
que o governo entendeu que aquilo era perigoso. Tinha uma censora lá
em São Paulo, não me lembro o nome dela, era uma senhora muito
gorda e que não dava moleza nenhuma. Pra conseguir alguma coisa
com ela era muito difícil, aí eu tive de botar outra música no meu
disco”, afirma Lindomar, que guardou ”Eu canto o que o povo quer” para
uma outra oportunidade.
Seis anos mais tarde, no fim de 1974, quando muito se falava em abertura,
descompressão e distensão política, Lindomar Castilho resolveu arriscar.
Fez algumas alterações na letra da música proibida e conseguiu,
finalmente, autorização para gravá-la.
Mas o componente político e de força de mobilização popular que os
antigos censores identificaram na composição do cantor de certo modo se
comprovou naquele mesmo ano, em Angola.
Assim como Nelson Ned e Benito di Paula, Lindomar Castilho era muito
popular nos países da África, onde seus discos eram lançados quase
simultaneamente aos do Brasil. O merengue “Eu canto o que o povo quer”
chegou aos ouvidos angolanos no momento em que eles estavam em plena
guerra de independência contra o colonialismo português.
A repercussão da música foi imediata e ela foi cantada tanto pelos
partidários do Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA) como
pelos da Frente Nacional de Libertação (PNLA), ambos afirmando estarem
com a maioria do povo para “o que der e vier”.
Aliás, o sucesso de Lindomar Castilho era tão grande ali que nos anos 70
foi inaugurado um busto em sua homenagem no Departamento de Cultura
de Luanda. " “Eles me chamaram lá, mas não me avisaram do que se
tratava. Quando descerrei o pano apareceu o meu rosto Foi uma das
maiores emoções de minha vida” , recorda.
Numa nota intitulada "Virou busto", Chacrinha parabenizou Lindomar,
dizendo que aquela era uma justa homenagem a quem “através de suas
canções, tanta alegria causa ao povo” .
NOTAS BIBLIOGRÁFICAS APENSAS AO CAPÍTULO
(Pela sequência numérica encontrada no texto):
133. Além de “Carolina’, a mais jovem das canções do disco, Costa e Silva
também escolheu antigos sucessos ufanistas como “Canta Brasil” e “Minha
terra”. Para outras indicações ver índice de canções citadas em Fontes e
bibliografia.
134. A peça “Roda viva” provocou a ira dos conservadores porque, entre
outras cenas, mostrava os personagens de Nossa Senhora e Jesus Cristo
simulando uma cena de sexo
135 . Apud Regina Zappa. Chico Buarque: para todos (Perfis do Rio; V.
26). Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1999, p. 101. A única música de
Chico Buarque vetada pela Censura no período anterior ao AI-5 foi
“Tamandaré”, uma brincadeira do compositor (até hoje não gravada) com o
almirante Joaquim Marques Lisboa, patrono da Marinha, cuja efígie
aparecia estampada nas notas de um cruzeiro. "Pois é, Tamandaré / a maré
não tá boa / vai virar a canoa / e este mar não dá pé, Tamandaré... " Apud
Humberto Werneck, op. cit, p. 66.
136. "Médici é o maior" - O Dia, 10-9-1972 .
137. O LP “Benito di Paula gravado ao vivo", que traz o samba em
homenagem a Vandré, foi um grande sucesso na época. O LP aparece em
1º lugar entre os discos mais vendidos na semana de 13 a 18 de janeiro de
1975, em São Paulo, e também ocupa o 1º lugar entre os mais vendidos na
semana de 3 a 8 de março de 1975, no Rio. Fonte: Ibope Pesquisa sobre
vendas de discos”Acervo do Arquivo Edgar Leuenroth / Unicamp.
138. "Carta a Geraldo Vandré" - Ultima Hora, 21-12 1968.
139. "Dops apreende 500 discos de Vandré como subversivos” - Correio da
Manhã, 10-10-1968.
140. "Dois Geraldos se juntam e compõem o som do exílio” -O Estado de
S. Paulo, 5-8-1995
141. Vetada pela Censura, esta composição permaneceu 15 anos inédita. A
primeira gravação foi feita por Elba Ramalho. Ver índice de canções
citadas em Fontes e bibliografia.
142. Roberto de Abreu Sodré. “No espelho do tempo: meio século de
política” - . São Paulo: Best SelIer / Círculo do Livro, 1995, p. 158.
143. "O Globo localiza e ouve Vandré no Chile" - O Globo, 10-6-1969.
144. "Vandré volta e é preso" - Jornal do Brasil, 18-7-1973.
145. O Cedoc - Centro de Documentação da Rede Globo - informou não
possuir em seus arquivos a reportagem do Jornal Nacional sobre a
"chegada" de Geraldo Vandré ao Brasil em 1973. A reconstituição da
matéria televisiva foi feita a partir de informações retiradas das seguintes
reportagens: "Conhece? Errou!" EX, edição de julho de 1975/ "O
crepúsculo de um ídolo" - Folha de S. Paulo, 12-9-1985 / "Geraldo Vandré
e a memória de sua canção". In Tárik de Souza. O som nosso de cada dia .
Porto Alegre: L&PM, 1983, p. 91 / Fascículo Geraldo Vandré - Nova
história da música popular brasileira. 2a ed. São Paulo: Abril Cultural,
1978, p. 4.
146. "Do exílio"”Veja, 18 - 4-1979.
147. "Marchando e cantando"- Jornal do Brasil, 8-11-1994.
148. "Dois Geraldos se juntam e compõem o som do exílio" - O Estado de
S. Paulo, 5-8-1995.
149. "Vandré divide o palco com militares" - O Globo, 22-10-1994.
150. "As flores do Vandré" - Jornal do Brasil, 6-10-1968.
151. "Vandré vive" - VlP/Exame, março de 1995.
152. Comunicado reproduzido na reportagem "Vandré espera acontecer" Veja, 24-3-1982. Em 1971, o fascículo dedicado a Geraldo Vandré na
coleção História da música popular brasileira, da Editora Abril, foi proibido
e recolhido das bancas.
153. “Eu vou rifar meu coração" ocupa o 4º lugar na lista dos LPs mais
vendidos na semana de 2 a 7 de julho de 1973, em São Paulo. Outro grande
sucesso de Lindomar Castilho, “Você é doida demais”, aparece em 5º lugar
na relação dos 20 discos nacionais mais executados durante o mês de
novembro de 1974, no Rio. Fonte: Ibope”Pesquisa sobre vendas de
discos”Acervo do Arquivo Edgar Leuenroth / Unicamp.
154. "Virou busto” – ( Jornal do Chacrinha) – A Noticia, 19-9-1973.
(WANDO E LUIZ AYRÃO CONTRA O REGIME MILITAR)
CAPÍTULO 7
O SAMBA DOS 13 ANOS
(WANDO E LUIZ AYRÃO CONTRA O REGIME MILITAR)
“Vocês são todos uns calhordas! Olha só o que esse cara fez. Ele
sacaneou todo mundo e ninguém viu. Chama esse porra a Brasília.”
(General Fernando Bethlem)
No quesito grau de escolaridade, o cantor e compositor Luiz Ayrão
constitui uma exceção entre os artistas "cafonas" da década de 70. Embora
de origem modesta (ele também trabalhou de engraxate na infância),
Ayrão, carioca do Lins, conseguiu dar prosseguimento aos estudos,
formando-se em Direito numa faculdade particular.
Mas esta sua trajetória atípica em relação ao grupo social já pode ser
verificada nos tempos do Exército. O cantor recorda que quando prestou
serviço militar obrigatório, em 1961, era o único da tropa que cursava o
científico, o equivalente ao segundo grau de hoje. "Eu servi o Exército
junto com 400 homens e um dia o sargento reuniu a tropa no pátio e
perguntou: 'Quem de vocês aqui está cursando o científico?' Só eu
levantei o braço. Dos 400 soldados, eu era o único que estava no
científico. Naquela época era muito raro encontrar um brasileiro com
o segundo grau.”
Do lugar social de onde se originou Luiz Ayrão era realmente muito difícil
para alguém ultrapassar o curso médio e chegar à universidade, privilégio
de uma minoria no Brasil. Ainda assim, trabalhando de dia e estudando à
noite, o cantor conseguiu receber o seu canudo de papel, reproduzindo de
certa forma a trajetória daquele personagem do samba de Martinho da Vila
que passou no vestibular mas morava no subúrbio e "do trabalho ia pra
aula / sem jantar e bem cansado''. (l55)
Em conseqüência do seu ingresso no ambiente universitário, Luiz Ayráo
vai ser um dos únicos artistas desta geração de "cafonas" a fazer algumas
canções com letras intencionalmente políticas. E, em 1977, duas dessas
composições tiveram problemas com a Censura: o samba ”Treze anos” e o
choro ”Meu caro amigo Chico”.
Este último era uma resposta de Luiz Ayrão à mensagem de ”Meu caro
amigo”, sucesso de Chico Buarque no ano anterior, e provocou entre os
censores a inquietação que o nome Chico Buarque provocava na época.
"Amigo Chico recebi a sua carta / e talvez já não parta / como estava
planejando / você me disse que a coisa ai tá preta. Luiz Ayrão respondia
como se fosse algum personagem que, do exílio, após receber as notícias
não muita animadoras enviadas por Chico Buarque, desistia de retornar ao
país.
A Censura não gostou da referência e a música foi vetada. Sob o argumento
de que seus versos expressavam "um comportamento político que se
constitui numa depreciação e num protesto às normas governamentais
vigentes.”(156)
A outra composição proibida, o samba ”Treze anos”, embora não traga em
seu título referências políticas muito óbvias, é um dos mais contundentes
protestos produzidos no âmbito da música popular contra o regime
ditatorial instalado no Brasil em 1964.
Se o choro Meu caro amigo Chico” era uma resposta de Luiz Ayrão à
mensagem do compositor Chico Buarque, o samba ”Treze anos” era a sua
resposta aos pronunciamentos das autoridades militares que naquele ano de
1977 saudavam os “13 anos da revolução de 1964.”
E sabemos que na data exata desses 13 anos, - em 1° de abril de 1977 - o
presidente Ernesto Geisel, apos reunir-se em Brasília com o Conselho de
Segurança Nacional, decretou o fechamento do Congresso por tempo
indeterminado, outorgando o chamado “Pacote de Abril”(157) .
Em todo o país o clima passou a ser de tensão e expectativa. O pretexto do
governo foi a recusa da oposição em apoiar a reforma do Poder Judiciário
enviada ao Congresso pelo Executivo. Para a reforma ser aprovada, seria
necessário o apoio de dois terços dos parlamentares. Com a oposição do
MDB, este número não foi alcançado. A reação do governo veio no dia 1°
de abril.
Na manhã do dia anterior, quinta-feira, 31 de março, o presidente Geisel, os
comandantes das três Armas e uma platéia de 270 oficiais se reuniram na
Vila Militar, no Rio, para coquetéis e almoço em comemoração aos 13 anos
do regime militar.
"Exmo. Sr. Presidente da República, regozijamo-nos com o
comparecimento do comandante supremo das Forças Armadas a esse
ambiente caxiense para prestigiar-nos no festejo do 13° aniversário da
nossa revolução", discursou o ministro do Exército Sylvio Frota,
enfatizando que “o caminho tem sido árduo porquanto eriçado de
obstáculos, mas a obstinação revolucionária permitiu que em 13 anos
obtivéssemos um ambiente de paz e evidentes êxitos em nossos
empreendimentos.” (158)
Em seguida, foi a vez do próprio presidente Ernesto Geisel dar o seu recado
- que foi direto ao tema que palpitava no cenário político do país naquele
momento.
Ele atribuiu a recusa do projeto de reforma do Poder Judiciário à atuação de
“uma minoria que, dentro do Congresso, se transformou na ditadura”
, mas garantiu que aquela reforma sena feita de qualquer maneira porque
“ao longo destes 13 anos, sem dúvida, tivemos problemas, mas
conseguimos dominá-los todos, galhardamente”. Por fim, o presidente
ergueu um brinde à aniversariante que motivou aquela celebração na Vila
Militar: “Então resta saber o que fica desta Revolução. Ela já tem 13
anos e creio que não está suficientemente velha para desaparecer. Ela
deverá continuar.” (159)
Após a cerimônia, quando Geisel já embarcava no helicóptero que o levaria
de volta a Brasília, o ministro Sylvio Frota foi cercado no pátio da Vila
Militar por jornalistas que esperavam obter mais um pronunciamento sobre
os "13 anos da Revolução". Desta vez, porém, Frota foi lacônico: “Quando
o presidente fala, ninguém pode falar mais nada.” (160)
Pode ser, mas através do seu samba Luiz Ayrão falou, e falou o que
milhões de outros brasileiros tinham vontade de falar ou ouvir naqueles
dias:
TREZE ANOS EU TE ATURO E NÃO AGUENTO MAIS
NÃO HÁ CRISTO QUE SUPORTE E EU NÃO SUPORTO MAIS
TREZE ANOS ME SEGURO E AGORA NÃO DÁ MAIS
SE TREZE É MINHA SORTE, VAI, ME DEIXA EM PAZ
VOCÊ VEM ME INFERNIZANDO COMO SATANÁS
VOCÊ VEM ME ENCLAUSURANDO COMO ALCATRAZ
VOCÊ VEM ME SUFOCANDO COMO O PRÓPRIO GÁS
AINDA VIVE ME GOZANDO, ASSIM JÁ É DEMAIS...
Originalmente com o título de “Treze anos”, o samba foi proibido pela
Censura, juntamente com ”Meu caro amigo Chico”, pouco antes de o
disco de Luiz Ayrão ser lançado.
A gravadora entrou em polvorosa porque o LP anterior do cantor havia
vendido bastante, e diante da quantidade de novos pedidos das lojas a
expectativa de venda do disco de 1977 era ainda maior. (161)
A Odeon então acionou rapidamente o seu departamento jurídico e os
advogados conseguiram a liberação do choro ”Meu caro amigo Chico”. E
o argumento foi simples: afinal, se a música de Chico Buarque havia sido
liberada pela Censura, porque a resposta de Luiz Ayrão não seria?
Mas o samba “Treze anos” continuou vetado e de qualquer forma o LP não
poderia ir para as lojas.
Quando a última alternativa parecia ser a substituição do samba no disco,
Luiz Ayrão tomou a seguinte decisão: carioca e malandramente, ao melhor
estilo de um Julinho da Adelaide, ele trocou o título ”Treze anos” por ”O
divórcio” e mandou o mesmo samba sem mudar uma vírgula para um
outro departamento de Censura.
Revelando mais uma vez as brechas do sistema repressivo, a composição
foi liberada na íntegra e o LP de Luiz Ayrão pode finalmente ser
distribuído nas lojas. Afinal, em 1977 o divórcio estava na ordem do dia; o
projeto do senador Nelson Carneiro acabava de ser aprovado pelo
Congresso Nacional e os censores não viram nada de mais em uma
composição cujo título era justamente O divórcio - embora esta palavra
não apareça em nenhum momento na letra do samba.
O ardil do compositor enganou os censores de plantão, mas alguns dias
depois o seu disco acabou chegando às mãos e aos ouvidos do novo
ministro do Exército do governo Geisel, general Fernando Belfort Bethlem,
que viu, ouviu e não gostou.
Consta que numa certa manhã ele adentrou o Departamento de Polícia
Federal em Brasília com o LP de Luiz Ayrão nas mãos e esbravejou aos
quatro cantos. “Vocês são todos uns calhordas! Olha só o que esse cara
fez. Ele sacaneou todo mundo e ninguém viu. Chama esse porra a
Brasília. Olha aqui o disco, porra, vocês não ouviram? Vocês são uns
merdas mesmo. Ouçam aqui essa música. Esse cara sacaneou todos nós
e vocês deixaram.” (163)
Diante desta reação do general Bethlem, fica-se imaginando qual teria sido
a atitude do seu antecessor no cargo, o general Sylvio Frota. Afinal, o
general Frota havia sido exonerado há poucas semanas do posto de ministro
do Exército justamente porque, além de acalentar ambições políticas
maiores, era considerado um homem muito radical e ligado à "linha dura"
das Forças Armadas.
O que pressupõe que o general Bethlem o substituiu por ser um
"moderado" e estar em maior sintonia com o projeto de distensão política
do governo Geisel.
O fato é que o sinal vermelho piscou novamente na Odeon, e diante da
ameaça de ter agora o disco de Luiz Ayrão recolhido das lojas, a gravadora
acionou um advogado em Brasília com bom transito na área militar.
O cantor recorda que “esse advogado se dava com não sei quem, que se
dava com não sei quem, que se dava com ele. Ele bebia, jogava, tinha
amante junto com os militares. Brasília é uma corte, né? E aí ele
procurou amenizar a coisa: ‘A idéia do rapaz não foi criticar ninguém,
esse samba aqui não tem nada a ver. Luiz Ayrão é um artista popular,
nunca foi cantor de protesto e tal.' E como eu não era realmente um
cantor identificado com a esquerda, o papo colou. Assim mesmo, foi
uma luta. Foi uma merda danada fazer esse disco passar.”
Neste ano de 1977, ao mesmo tempo que Luiz Ayrão protestava contra os
13 anos do regime militar, a sociedade civil se rearticulava em diversas
frentes de participação. Sob a presidência de Raymundo Faoro, a Ordem
dos Advogados do Brasil (OAB) tornou-se uma influente entidade de luta
pela redemocratização do país. “A consciência jurídica do Brasil quer uma
coisa só: o Estado de Direito, já”, cobrava diante de uma multidão, em São
Paulo, o jurista Goffredo da Silva Telles em sua “Carta aos Brasileiros.”
(164)
Meses antes, em frente à Faculdade de Direito da USP, milhares de
estudantes também fizeram a leitura conjunta da “Carta Aberta à
População”, que alertava: “Hoje, consente quem cala...”, conclamando
todos a aderirem à luta pelo fim das " “torturas, prisões e perseguições
políticas” e pela “anistia ampla e irrestrita a todos os presos, banidos e
exilados políticos.” (165)
Influenciados pela Teologia da Libertação, setores da Igreja estimulavam a
organização popular através das ainda pouco conhecidas Comunidades
Eclesiais de Base, que se formavam em torno das paróquias da periferia e
das capelas em zonas rurais. Membros da classe empresarial, notadamente
Antonio Ermírio de Morais, também posicionavam-se como críticos do
modelo econômico e no interior do próprio governo surgiam dissidências
como a do senador alagoano Teotônio Vilela, que se incorporou à luta pela
democracia e mais tarde foi saudado numa canção de Milton Nascimento
que diz: “Quem é esse viajante / quem é esse menestrel / que espalha
esperança / e transforma sal em mel?” (166)
A questão social estava na ordem do dia e trabalhadores da região do ABC
paulista iniciaram um intenso processo de mobilização nas fábricas e nos
sindicatos pela reposição salarial. Apesar dos perigos, um novo tempo se
aproximava.
Um dos sinais mais evidentes disto, em 1977, foi a retomada do movimento
estudantil, desarticulado desde a decretação do AI-5 “Foram nove anos sem
que estudante algum sentisse o cheiro de gás lacrimogêneo”, disse na época
um militante do DCE da USP. (167)
Por todo o país os diretórios acadêmicos se fortaleciam, preparando-se para
grandes manifestações. Em assembléia na Universidade Federal do Rio
Grande do Sul um inflamado e ofendido estudante reclamava da demora de
seus colegas gaúchos na organização das passeatas. “Estamos com uma
semana de atraso quando até o Piauí está mobilizado, pichando paredes.
Até o Piauí, pô!”.(168)
O universitário paulista Marcelo Garcia afirmava que aquele era o
momento de todos eles voltarem às ruas porque o governo militar estava
diante da “pior crise política e econômica dos últimos treze anos.” (169)
Entoando um refrão sem metáforas - "Vai acabar, vai acabar a ditadura
militar" - , os estudantes saíram caminhando e cantando pelas avenidas das
principais capitais do país.
O governo também se mobilizou e o ministro da Justiça, Armando Falcão,
enviou nota-circular a todos os governadores de estado estabelecendo que
“passeatas, concentrações de protesto em logradouros públicos, assim
como outras demonstrações contestatórias, são distúrbios de fundo e
fim subversivos, não podendo, em consequência, ser tolerados.” (170)
Os estudantes não se intimidaram e no mês de maio, em São Paulo, foi
programada mais uma grande passeata acompanhada passo a passo pelos
órgãos de repressão. “Nós não seremos violentos, mas estaremos
preparados para tudo” , advertia o secretário de Segurança Pública,
coronel Erasmo Dias. (171)
De fato, auxiliado pelo delegado Sérgio Paranhos Fleury, titular da
Delegacia de Ordem Social, o secretário montou uma verdadeira operação
de guerra para acompanhar a manifestação estudantil: tropas de choque,
carros blindados, cavalaria, cães amestrados, cassetetes eletrificados,
bombas de gás lacrimogêneo, metralhadoras e até fuzis M-16 (do tipo
usado pelo exército americano no Vietnã).
Naquela quinta-feira, 19 de maio, no Centro de São Paulo, formaram-se
dois agrupamentos humanos bem distintos: estudantes de um lado;
soldados de outro. É provável que muitos transeuntes assistissem àquilo
bestializados, mas no fim da tarde uma senhora de cabelos grisalhos,
embevecida de civismo, atravessou o aparato militar, posicionou-se à frente
do secretário de Segurança e passou-lhe uma descompostura: “O senhor é
o coronel Erasmo? Que vergonha, coronel! Que vergonha, para o
Brasil e para o senhor, tanto soldado para bater em estudante.” (172)
O gesto daquela anônima senhora de cabelos brancos talvez tenha
demovido o ímpeto repressor do coronel, porque no início da noite a
passeata terminou sem maiores incidentes. Alguns meses depois, soldados
e estudantes estavam de volta às ruas, mas agora sem complacência dos
militares.
O movimento estudantil programou para São Paulo o III Encontro Nacional
de Estudantes, que tinha como um dos principais objetivos reorganizar a
antiga UNE entidade posta na ilegalidade no governo do marechal Castelo
Branco, em 1964.
O encontro, que contaria com a participação de universitários de todo o
país, foi marcado para quarta-feira, 21 de Setembro, no campus da
faculdade de Medicina da USP. Entretanto, naquele dia a universidade
amanheceu ocupada por 15 mil policiais civis e militares que, sob as ordens
do secretário Erasmo Dias, valeram-se até de barreiras em vários pontos da
cidade para impedir a chegada dos jovens.
O encontro estudantil não pôde ser realizado, mas os organizadores
marcaram para o dia seguinte, no campus da PUC, um grande ato de
protesto contra a ocupação da USP.
No horário programado, nove e meia da noite, lá estavam dois mil
estudantes, gritando palavras de ordem, quando novamente chegou o
coronel Erasmo Dias com sua tropa de choque, cavalaria, cães amestrados
.. “Estão brincando comigo. Minha ordem foi desobedecida e isso não
pode ficar assim”, gritou o coronel ao descer do carro oficial.(173)
Empunhando um megafone, Erasmo Dias comandou a operação por ele
mesmo chamada de "ação de combate".
Os estudantes correram para o interior dos três prédios da PUC, mas os
soldados não vacilaram e, mesmo sem vestibular, entraram na
universidade, brandindo seus cassetetes eletrificados, caçando, um por um,
os participantes do encontro. Salas de aula, banheiros, refeitórios,
biblioteca, gráfica, teatro e até a casa paroquial, todos os espaços da PUC
foram invadidos, contabilizando cerca de mil estudantes presos e muitos
deles feridos. “Qual poderia ser nossa ação diante de duas mil pessoas
vociferando?”, perguntava o truculento coronel, explicando que “a massa
é amorfa, é inconseqüente.” (174)
Organizados em fila indiana e com as mãos na cabeça, os estudantes foram
conduzidos para os vinte ônibus que os levaram para o Batalhão da Polícia
Militar e os casos mais graves, para o Hospital das Clínicas. O prejuízo
material também foi grande e a PUC amanheceu como se realmente tivesse
sido atingida por uma ação de guerra: faixas queimadas, portas arrombadas,
vidraças estilhaçadas, mesas e cadeiras quebradas e equipamentos
destruídos.
O coronel Erasmo Dias novamente procurou justificar a ação de suas
tropas, descrevendo um quadro pré-revolucionário no país. “A polícia já
está exausta, cansada de ficar 24, mais 24, mais 24 horas de prontidão,
porque elementos subversivos tentam a todo custo desobedecer a lei
vigente, num desafio que está caracterizado como um estado de guerra
psicológico adversa a até um prólogo de guerra subversiva.” (175)
Os estudantes universitários não ouviam cantores populares como Luiz
Ayrão e por isso não tomaram conhecimento do samba “O divórcio”, que
bem poderia ter servido de trilha sonora para todas aquelas passeatas:
“Treze anos eu te aturo e não agüento mais.../...treze anos me seguro e
agora não dá mais ..”
Mas parece que naquele ano no Brasil, apenas o ministro do Exército
percebeu as intenções críticas do samba de Luiz Ayrão. O cantor recorda
que após os seus shows algumas pessoas se aproximavam comentando:
“Puxa vida, essa música que você cantou é a minha história. Eu me
separei da minha mulher depois de 13 anos. Está tudo aí.”
E não era apenas o público de Luiz Ayrão que não percebia o conteúdo
crítico de uma composição como essa. De uma maneira geral, na época da
ditadura, atribuía-se caráter contestador apenas à obra de artistas como
Gonzaguinha, Milton Nascimento ou Chico Buarque, por mais
despretensiosas que fossem algumas de suas canções. Um exemplo disto é
o samba “A Rita”, que, num esforço interpretativo, alguns identificavam
como uma referência à “revolução de 1964”, aquela que realmente teria
levado os planos, os pobres enganos, os 20 anos, o coração e o violão do
compositor.
Hoje o próprio Chico Buarque admite que naquele contexto as suas
músicas assumiam um colorido político que muitas vezes não era
intencional. Segundo ele, “a censura enxergava mensagens subliminares
onde não existia e o pessoal de esquerda também queria ver essas
mensagens. 'Ah, mas voce quis dizer...' 'Nao, eu nao quis dizer nada, é
uma canção de amor'.” (176)
Já em relação à obra de artistas populares como Luiz Ayrão, Benito di
Pauta ou Wando, ocorria exatamente o contrário: negavam-se as intenções
críticas, por mais evidentes que fossem. Como não eram nomes
identificados com a MPB, não seriam capazes de refletir e criticar.
E o cantor e compositor Wando é outro artista popular "cafona" que
produziu canções de forte conteúdo crítico-social durante o regime militar.
A sua composição, “Presidente da favela” - samba também gravado em
1977 - , traz ao primeiro plano o desconhecido líder comunitário Dalvino
de Freitas, cuja ação política, segundo o narrador do texto, mobiliza o
poder público a atender a antigas reivindicações dos habitantes do morro:
DALVINO DE FREITAS, PRESIDENTE DA FAVELA
ONDE TENHO O MEU BARRACO
DISSE QUE AGORA NA FAVELA É OUTRO PAPO
VAMOS TER RUAS CALÇADAS E ÁGUA DE BEBER
PRA VOCÊ VER....
Depois de anunciar a conquista de outras melhorias urbanas básicas escola, luz elétrica, linhas de Ônibus - , Wando conclui o seu samba
apregoando:
...QUE SIRVA DE EXEMPLO
A TODAS AS FAVELAS BRASILEIRAS
ARRANJEM UM PRESIDENTE
DE BOAS MANEIRAS
QUE A VIDA LÁ NO MORRO SERÁ BEM MELHOR
Além de uma possível referência política - na impossibilidade de eleger o
presidente da República, o brasileiro deveria eleger o presidente da favela , a composição de Wando chama a atenção para um dos aspectos sociais
mais importantes daquele período: a emergência de movimentos de
organização de moradores de bairros e favelas.
Em seu estudo sobre a mobilização popular na década de 70 no Brasil, as
historiadoras Sônia Mendonça e Virgínia Fontes enfatizam que “a
segregação espacial decorrente da compressão salarial envolvera as
grandes cidades com loteamentos periféricos irregulares, fazendo
surgir inúmeras favelas e ampliando as já existentes. Em todos esses
locais, um ponto em comum: a carência. Condução escassa e cara,
ausência de saneamento básico, iluminação irregular, escolas
inexistentes. Aí inauguraram-se alternativas de participação popular,
expressando formas de articulação que se revelaram extremamente
combativas - as Associações de Moradores e Sociedades de Amigos de
Bairro, que proliferaram em todo o país, em especial a partir de 1976.”
(177)
Lançado no auge deste processo, o samba ”Presidente da favela” serviu de
estímulo à participação popular, até porque, com o bloqueio dos espaços
públicos tradicionais da política - parlamento, sindicatos, partidos - , a
resistência espalhava-se por outros caminhos, possibilitando o
aparecimento de diversos líderes comunitários.
Um desses líderes o Dalvino de Freitas, citado na composição de Wando
era representante de uma das favelas da periferia de São Paulo, e o
compositor o conheceu numa participação do programa de Airton
Rodrigues, na TV Tupi. Wando ficou impressionado com a desenvoltura e
segurança com que aquele humilde morador de favela apresentava as
reivindicações da sua comunidade e resolveu homenageá-lo na canção.
Essa nova forma de participação política expressado pela organização de
associações de moradores - intimamente ligada à luta pela solução de
problemas urbanos básicos - , tornava-se cada vez mais visível na
sociedade e atraia a atenção não apenas do cantor Wando, mas também de
militantes de esquerda, intelectuais e outros artistas.
Uma das primeiras e mais combativas associações de moradores do Rio de
Janeiro, a da Rua Lauro Müller, próxima ao Túnel Novo, em Botafogo,
mereceu até uma crônica do poeta Carlos Drummond de Andrade.
Publicado naquele mesmo ano de 1977, o texto destacava o processo
eleitoral para a escolha do presidente da Associação de Moradores da
Lauro Müller, observando o poeta que aquela rua “tornou-se nação
privilegiada pelo livre exercício das atividades democráticas...” e que
era preciso saudar “o sufrágio universal operando com toda a força em
miniatura política, num pedacinho de área metropolitana do Rio de
Janeiro.” Depois de observar que os moradores ainda não tinham força
para empreender uma eleição direta presidencial, “mas dentro dos 600 e
poucos metros de território que ocupam façam uma diretinha
maneira”, Drummond concluía exortando que a eleição na Lauro Müller
deveria servir de “ligação e exemplo para ruas maiores, muito, muito
maiores mesmo do que essa à boca do túnel.” (178)
Nota-se que tanto a crônica de Carlos Drummond de Andrade - sobre o
processo eleitoral numa rua da Zona Sul carioca - como o samba de Wando
- sobre a ação de um líder comunitário de favela em São Paulo - expressam
solidariedade às organizações de caráter reivindicativo autônomo e evocam
a idéia de que cada um dos casos deveria servir de exemplo para moradores
de outras regiões do país. E com esta mensagem ambos os artistas - Wando
e Drummond - davam sua contribuição para os movimentos sociais e
populares que aceleravam as modificações ocorridas no país naquele
período final do AI-5.
NOTAS BIBLIOGRÁFICAS DO CAPÍTULO
(Seguindo a numeração seqüencial encontrada no texto):
155. Verso do samba O pequeno burguês. Para outras indicações ver
índice de canções citadas em Fontes e bibliografia.
156. A letra da música de Luiz Ayrão foi avaliada e vetada por três
censores: inicialmente por Orlando Viegas (Parecer n° 1134/77); em
seguida por Odette Martins Lanziotti (Parecer n° 1135/77) e depois por
Maria José de Moura (Parecer n° 1151177), que enquadrou a composição
no art. 41 do Decreto 20493. Fonte: Documentos do Serviço de Censura de
Diversões Públicas - Arquivo Nacional / RJ. O citado decreto data de 24 de
Janeiro de 1946, e determina no capítulo referente às diversões públicas
que "será negada a autorização sempre que a representação, exibição ou
transmissão radiofônica... for capaz de provocar incitamento contra o
regime vigente, a ordem pública, as autoridades constituídas e seus
agentes". Cf. Coleção das leis - Atos do poder executivo Vol. II - 1946. Rio
de Janeiro: Imprensa Nacional, 1946, p. 327.
157. O "Pacote de Abril" continha, entre outras, as seguintes medidas:
* Um terço dos representantes do Senado passaria a ser eleito por via
indireta; os chamados "senadores biônicos" .
* A eleição dos governadores continuaria indireta.
* O mandato do próximo general presidente teria a duração de seis anos.
* As limitações impostas à propaganda eleitoral pela Lei Falcão, que havia
sido instituída apenas para as eleições municipais de 1976, foram
estendidas às eleições gerais.
* Foi promulgada a reforma do poder Judiciário conforme o projeto que
havia sido elaborado pelo poder Executivo
* Qualquer emenda à Constituição Federal passaria a ser aprovada através
do voto da maioria dos membros do Congresso Nacional, e não mais pelo
voto de dois terços
158. "Geisel na Vila Militar garante que reforma será feita" - Jornal do
Brasil, 1-4-1977.
159. Idem, ibidem.
160. "Um aniversário na Vila" - Veja, 6-4-1977.
161. Compositor de sucesso nos anos 60 - ele é autor, entre outras, de
“Nossa canção” e “Ciúme de você”, gravadas por Roberto Carlos -, Luiz
Ayrão projetou-se como cantor popular a partir de 1973, com a gravação do
samba ‘Porta aberta”, que ocupa o 1° lugar na relação dos 20 discos
nacionais mais executados durante os meses de fevereiro e março de 1974,
no Rio. Fonte: Ibope - Pesquisa sobre vendas de discos - Acervo do
Arquivo Edgar Leuenroth / Unicamp.
162. Registre-se que Luiz Ayrão foi obrigado a trocar a palavra "terra” por
"planeta" no verso “A coisa aí anda tão preta / que nem dando pirueta / em
sua terra se consegue ser feliz.” Embora mudando apenas uma única
palavra, o sentido crítico da composição foi esvaziado consideravelmente,
pois o que seria um protesto às mazelas do Brasil, se transformou numa
crítica mais geral a todo o planeta.
163. Conforme depoimento de Luiz Ayrão ao autor, 19-12-1997.
164. "Carta aos Brasileiros" - Movimento, 15-8-1977.
165. Apud Artur José Poerner. O poder jovem: história da participação
política dos estudantes brasileiros. 4ª ed. São Paulo: Centro de Memória da
Juventude, 1995, p. 347.
166. Versos de Menestrel das Alagoas. Ver índice de canções citadas em
Fontes e bibliografia.
167. "Os riscos da escalada" - Veja, 18-5-1977
168. Idem.
169. "Os estudantes de novo" - Veja, 25-5-1977.
170. "Os riscos da escalada" - Veja, 18-5-1977.
171. "Os estudantes de novo" - Veja, 25-5-1977
172. Idem.
173. "Bombas e duas mil prisões na PUC" - O Estado de S. Paulo, 23-91977.
174. Apud Nosso século (1960/1980). São Paulo: Abril Cultural, 1980, p.
237.
175. “Erasmo: Violência foi inevitável” - O Estado de S. Paulo, 24-9-1977.
176. Apud Regina Zappa, op. cit., p. 114.
177. Sônia Regina de Mendonça & Virgínia Maria Fontes. História do
Brasil recente (1964-1980) - São Paulo: Ática, 1988, p. 70.
178. "A Boca do Túnel" - Jornal do Brasil, 11-10-1977.
(AGNALDO TIMÓTEO PERDIDO NA NOITE)
A onda começou em San Francisco, na Califórnia, Estados Unidos, em
janeiro de 1967. Armados de flores, plumas, tambores, colares, roupas
coloridas e fartas cabeleiras, a tribo de jovens saiu às ruas pela primeira
vez.
Influenciados pela música de Bob Dylan, pela poesia de Allan Ginsberg e
pela filosofia de Herbert Marcuse, os hippies revelavam-se um símbolo
vivo e forte do desprezo da nova geração pelo chamado “american way of
life”.
Num contexto de Guerra Fria e de crescente competitividade e
individualismo, eles defendiam a liberdade acima da autoridade, a criação
acima da produção e a cooperação acima da competição. E mais do que
nunca apregoavam a necessidade de cada um abrir os sentidos, expandir a
consciência e exaltar o espírito.
Imerso na aldeia global, este ideário logo conquistou a consciência de
milhões de jovens em várias partes do mundo - Londres, Paris, Hamburgo,
Amsterdã - , chegando ao Brasil no inicio dos anos 70. E aqui os hippies
tiveram o tratamento que o governo militar dava a todos que se recusavam
a seguir a cartilha do regime: a repressão.
No verão de 1971, por exemplo, a imprensa registra que uma tropa de
choque da Polícia Militar foi mobilizada especialmente para reprimir um
grupo de rapazes e moças que fumava na praia de Búzios. “Os soldados
chegaram de surpresa e perseguiram os hippies pelas ruas da cidade.
Muitos tentaram se esconder nas casas mais próximas mas todas elas foram
vasculhadas e os cabeludos levados para a cadeia de Cabo Frio, em grandes
caminhões.” (l79)
Em Salvador, uma das vítimas da repressão foi o grupo Novos Baianos,
que numa noite de sábado, em novembro de 1970, foi cercado pela polícia
quando tocava violão à beira do cais no Porto da Barra.
Na época o grupo tinha lançado apenas um LP e ainda não era muito
conhecido na praça. “Mas seu guarda, somos os Novos Baianos”, tentaram
se identificar. “Não adianta. Todo mundo em cana”, esbravejou um dos
policiais, empurrando os músicos para o camburão. Presos como meliantes,
Baby, Pepeu, Moraes e Galvão foram encaminhados para a delegacia, e lá
Baby Consuelo procurou argumentar. “Não somos hippies. Somos o que
somos, fazemos o que queremos e achamos limpo.” (180)
O delegado não ouviu ou não entendeu e mandou a vocalista para a
carceragem feminina e os rapazes para uma outra cela imunda, lotada de
presos. Luiz Galvão tentou protestar, mas desistiu diante da ameaça do
delegado: “Cale a boca, para que eu não coloque você no pau-dearara.”(181) Como numa cena de ”Hair”, , eles foram despidos e tiveram
suas imensas cabeleiras raspadas. “É preciso ter muita força para agiientar
24 horas numa cela infecta, junto com os mais estranhos tipos humanos”,
desabafou Baby ao sair da cadeia.
Em diversas capitais do país os agentes da repressão criaram as chamadas
“delegacias de vigilância geral e costumes”, que tinham entre as suas
funções prender os jovens hippies e comunicar imediatamente aos seus
pais, já que grande parte deles pertencia à classe média. A ação de uma
dessas delegacias também está registrada na página policial do jornal ”O
Norte”, de João Pessoa, Paraíba. Alí informa-se que a polícia militar
prendera cinco hippies quando estes com sua típica saudação - “fala,
amizade!” -caminhavam pacificamente por um dos bairros da capital
paraibana: “O quinteto foi posto à disposição do delegado Manuel
Raposo, que tenta comunicação, agora, com suas respectivas famílias.
Os quatro rapazes e a moça confessaram, na polícia, que são
andarilhos e pretendem conhecer todo o país, a pé ou de carona, não
lhes importando o meio, como também não lhes importam suas
famílias, julgando importante apenas o caráter de vida livre e errante
que levam.” (183)
Atentos a este novo fenômeno da sociedade contemporânea, os artistas
“cafonas” se manifestaram sobre o tema, em seus discos. Um exemplo é a
dupla Dom & Ravel, com a música “Conflito de gerações”, que, lançada
num contexto de repressão àqueles que andavam em grupo e com o dedo
em V, manifestava-se francamente favorável à postura dos hippies.
A letra da composição se inicia com a máxima de que "um homem velho
não é mais / que um filho moço" pois “ninguém é mais herói / por ter
maior idade”. A segunda estrofe enfatiza o que foi dito na primeira – “um
homem sério não é mais que os filhos hippies” já que “Ninguém é dono
da verdade / por ser mais velho” - e prossegue relacionando o ideário
hippie à mensagem de Jesus Cristo “pois o Evangelho ensina / que a
vitória é do amor”.
Por fim, o refrão da música deixa no ar a indagação sobre o desfecho deste
conflito de gerações: “Me diga então / quem vencerá?...”
De certa forma esta resposta foi dada algum tempo depois pelo compositor
Belchior na letra de “Como nossos pais”, que de forma enfática constata:
“Eles venceram / e o sinal está fechado pra nós / que somos jovens...”
Existe, porém, um outro ponto que não está explícito na letra da canção
lançada por Dom Ravel em 1974.
Dom agora explica: “Embora não cite isso diretamente, aquela música
defendia uma concessão às pessoas que usavam drogas naquele
momento. No sentido de procurar compreender que aquele pessoal que
avançava via drogas na mudança dos costumes e não só através das
drogas, mas tendo a droga como a ponta de lança do processo - , que
eles também tinham uma proposta para o problema do relacionamento
social entre as pessoas.
Embora fosse uma proposta pueril, uma ilusão, uma utopia aquele paz
e amor, a gente tinha que respeitar. Porque aquilo que os hippies
estavam pregando é uma coisa que o evangélico está pregando com
outras palavras, o budista está pregando com outras palavras, Jesus
Cristo, Gandhi e por aí vai. Há várias pessoas lutando pela paz e o
amor; cada uma de uma forma diferente. Então, foi isso o que eu quis
colocar em Conflito de gerações.”
Aquilo que não está explícito na música gravada por Dom & Ravel aparece
de forma mais direta em uma das faixas do LP de Odair José, lançado em
1975.
Àquela altura já plenamente identificado como um cantor ligado a temas do
amor e da sexualidade, ele resolveu inovar e, num claro desafio aos agentes
da repressão, gravou uma música abordando um tema muito mais
explosivo: o consumo de drogas.
Com o sugestivo título de “Viagem”, a composição de Odair José
inicialmente convida: “Venha comigo na minha viagem / não se
preocupe eu tenho as passagens.. “; depois provoca: “... sei que você tem
vontade / mas de repente o medo lhe invade / e você não vem...” e por
fim, oferece: “"... quero colocar na sua mente uma luz / acabar de uma
vez com os tabus / que um dia inventaram pra gente...”
Se em “Pare de tomar a pílula”, Odair José dizia um "não" aos
anticoncepcionais, na canção “Viagem” ele diz um "sim" à cannnabis
sativa - nome científico da maconha. E com esta balada apologética o
compositor procurava engrossar uma legião de usuários que, influenciada
pelo movimento hippie dos Estados Unidos, também possuía um perfil bem
definido ao sul da linha do equador. Numa época em que a erva ainda não
era consumido pelos "caretas" (o que vai acontecer a partir dos anos 80,
junto com o avanço da cocaína), fumar maconha era identificado como
uma agressão ao sistema, um ato de rebeldia, ligado aos movimentos
pacifistas e de contracultura, desbunde, underground, um gesto de
despressão e transgressão que, muitas vezes, assumia um caráter de
protesto político. Por tudo isso, o preconceito contra a droga era muito
grande na sociedade, e os vigilantes do “reinado de terror e virtude”
avançavam sobre o usuário com toda a força.
Um caso que repercutiu na época foi o que envolveu os artistas baianos em
turnê na cidade de Florianópolis. Na manhã de 7 de Julho de 1976, a
polícia invadiu os quartos do hotel onde dormiam Caetano Veloso, Gilberto
Gil, Gal Costa e Maria Bethania, que naquele mesmo dia iriam estrear na
cidade o show “Os doces bárbaros”.
O primeiro a ser acordado foi Gilberto Gil, que ficou parado num canto do
apartamento enquanto os agentes revistavam sua carteira e outros objetos
pessoais. O saldo da batida rendeu um cigarro de maconha e meia dúzia de
"beatas” (pontas), o suficiente para permitir a prisão do cantor em flagrante.
E, assim, pela segunda vez no regime militar, Gilberto Gil foi encaminhado
à cela de uma cadeia brasileira. (184)
Alguns minutos depois, Caetano Veloso também foi acordado com socos
fortes e repetidos em sua porta. De sobressalto, e antes mesmo que os
policiais invadissem o quarto, o cantor foi para a janela gritar por socorro.
Ele ainda não sabia, mas quem devia socorrê-lo estava à frente da invasão.
Na cabeceira da cama de Caetano os agentes encontraram apenas um vidro
de Valium, um tranquilizante vendido em farmácias. “Comprei o vidro
em São Paulo, com receita médica. Sou radicalmente contra os tóxicos”
, explicou Caetano aos policiais.(185) Ainda assim, o remédio foi levado
para a delegacia para que fosse investigada a informação do cantor.
Com a mesma truculência, os policiais invadiram o apartamento dividido
por Gal Costa e Maria Bethânia e revistaram todos os objetos pessoais das
artistas, recomendando que ambas se mantivessem quietas: “Dois de vocês
já estão presos. Psicotrópicos. Gil e Caetano. É melhor vocês
facilitarem as coisas”, advertiu um dos agentes. “Que fizeram com meu
irmão!?”, exclamou, assustada, Maria Bethania.(186)
A batida policial prosseguiu sem maiores explicações, mas para frustração
dos executores rendeu apenas um pote de pó-de-pemba, substância que
Bethânia utilizava em seus números de candomblé. Por via das dúvidas, o
pó também foi encaminhado ao Instituto Médico-legal para análise de
conteúdo. A fúria repressiva que mais uma vez se abateu sobre os
tropicalistas baianos despertou a indignação do escritor Otto Lara Rezende,
ao afirmar que “se fossem britânicos, Caetano, Gil, Bethania e Gal
estariam sendo condecorados pelos altos serviços prestados ao povo e à
glória de Sua Majestade. Como condecorados foram os Beatles. Aqui,
não; aqui tudo se quer resolver pela força - e tudo - em última análise,
acaba sendo caso de polícia. O povo lhes quer bem; há porém
autoridades que os metem na cadeia. O Brasil está anestesiado e o
muro anda tão baixo, que ninguém protesta. Eu, às vezes, tenho
vergonha de ser brasileiro; de ser conivente.” (187)
Esta "anestesia social" diagnosticada por Otto Lara Rezende é mais um
sintoma do respaldo que segmentos importantes da sociedade brasileira
davam à ação repressiva do regime militar.
E isto fica ainda mais evidente no processo de julgamento de Gilberto Gil
que, perante o juiz da I Vara Criminal de Florianópolis, corajosamente
assumiu sua condição de usuário de cannabis sativa - “efetivamente gosto
da droga e já fumo há muitos anos” - , mas ponderou que vício é uma
questão de semântica. Fumo diariamente, mas não uso outras drogas,
porque sou viciado apenas em maconha, que auxilia sensivelmente minha
introspeção mística”.
Contrariado, o juiz não apenas rebateu a "questão semântica" proposta por
Gil, como também designou uma junta médica-psiquiátrica para examinar
o cantor. Provavelmente incorporados do espírito de Simão Bacamarte - o
sinistro personagem de Machado de Assis - , os médicos, após rápido
exame, identificaram em Gil alguns sintomas desviantes e decretaram a sua
internação hospitalar “como medida necessária e de urgência”.(189) E
em mais uma prova de que no Brasil muitas vezes a realidade supera a
ficção, o autor de “Se eu quiser falar com Deus” foi condenado a
tratamento psiquiátrico em uma clínica em Florianópolis, sendo depois
encaminhado ao Sanatório Botafogo, no Rio de Janeiro.
Concluído o processo de prisão e internamento de Gilberto Gil, a próxima
vitima da repressão foi a cantora Rita Lee, que na manhã de 24 de agosto
de 1976 teve a sua casa invadida por sete policiais da Divisão de
Entorpecentes de São Paulo.
Depois de vasculharem os cômodos da residência, eles recolheram alguns
cigarros de maconha semi-consumidos, estojos com restos da erva e até um
aparelho de origem árabe chamado narguilé que, no entendimento da
polícia, era utilizado para queimar fumo. Rita Lee tentou se defender
argumentando que deixara de fumar havia cerca de um ano e que o que os
agentes encontraram em sua casa foram “vestígios de maconha já
mofados”.(190) Os policiais não se convenceram e a cantora, que na época
estava grávida de seu primeiro filho, foi autuada em flagrante e conduzida
ao xadrez.
Segundo o diretor da Divisão de Entorpecentes, a polícia reforçou a
vigilância em torno da artista após receber denúncias de que, para além da
música, o que havia nas apresentações de Rita Lee “era um verdadeiro
show de tóxicos, onde se fumava maconha na entrada, na platéia e nos
bastidores”. (191)
Antes de ser julgada e condenada a um ano de prisão domiciliar, Rita Lee
passou seis dias na penitenciária feminina, tornando-se a principal atração
nos horários de banhos de sol. E ali, invariavelmente, a cantora ouvia e
falava com diversas detentas, uma das quais expressava sua admiração com
o fato de “uma pessoa de destaque na música do Brasil estar aqui
presa.” (192)
Embora o cerco ao usuário de droga tenha se acentuado após a decretação
do AI-5, em 1968, constata-se que desde o primeiro governo do regime
militar, o do marechal Castelo Branco, artistas populares já vinham tendo
problemas nesta área.
O cantor Nelson Gonçalves, por exemplo, dependente de cocaína havia
quase duas décadas, passou doze dias na prisão em 1966, sob a acusação de
tráfico de entorpecente. (l93)
Era um domingo, 8 de maio, Dia das Mães, hora do almoço. Nelson estava
à mesa em companhia da mulher, Maria Luiza, e dos filhos ainda menores,
Ricardo e Jaime. De repente, ouvem-se gritos, sirenes, e a porta de sua casa
é arrombada por policiais fortemente armados, que já entram pondo tudo
abaixo. O cantor ainda tenta escapar mas um grupo de agentes “vai atrás",
e, na escada, o delegado Celso de Castro alcança Nelson e, covarde e
desnecessariamente, o esbofeteia, o algema e lhe dá voz de prisão.
Ricardo e Jaime, atônitos, testemunham aquela desproporção de
valentia. Maria Luiza interpõe-se na frente de um deles, questiona o
porque dele ser humilhado daquela maneira na frente dos filhos, se
assassino ele não era, e marginal, nunca foi. Mas algemado e chorando,
Nelson Gonçalves foi levado pelos policiais civis para a Casa de
Detenção do Estado de São Paulo". (194)
Este clima repressivo, do qual nem mesmo artistas de destaque
estavam a salvo, só realça ainda mais a ousadia de Odair José ao
compor e gravar uma balada propondo ao público uma "viagem" para
"acabar de vez com os tabus". E o que é mais surpreendente: a
composição passou pela Censura e foi liberada para tocar no rádio.
Recorde-se que até mesmo o disco de Bob Marley intitulado "Kaya" (que
no dialeto jamaicano significa "maconha") foi proibido e apreendido no
Brasil porque em sua contracapa apareciam algumas folhas de cannabis fato que rendeu mais um processo contra a gravadora Phonogram, acusada
de incitar a juventude brasileira ao consumo de entorpecentes.
Por que a canção gravada por Odair José - artista de muito maior alcance
popular - também não atraiu repressão semelhante? “Eu acho que eles
estavam tão preocupados com o que eu falava de cama, de puta, de
sexo, que na verdade nem prestaram atenção na letra. E eu estava
defendendo o baseado, né?” O cantor pronuncia esta última frase com um
leve sorriso no rosto. Sorriso de quem, malandramente, valendo-se da
linguagem da fresta, conseguiu ludibriar os seus algozes. (195)
Uma série de outras canções relatando vivências, afetos e angústias do
universo dos homossexuais e das prostitutas serve também para ilustrar até
que ponto o repertório da música popular "cafona" transgride ou apenas
endossa o rígido controle da moral dominante no período do regime militar.
E como exemplo, cito a balada “A galeria do amor” , composição de
Agnaldo Timóteo que faz referência à Galeria Alaska, tradicional ponto de
encontro de homossexuais no Rio de Janeiro.
Formando uma travessia de menos de 100 metros entre as avenidas
Atlântica e Nossa Senhora de Copacabana, no Posto 6, Zona Sul carioca, a
Galeria Alaska tornou-se famosa a partir dos anos 60, quando chegou a ser
classificada como o “maior reduto de gays do país”. (196)
Na década seguinte sua fama de "boca maldita" foi se acentuando e o local
passou a atrair também prostitutas, pivetes, traficantes, travestis e toda sorte
de personagens identificados com o chamado mundo marginal do Rio de
Janeiro. E é exatamente este ponto noturno da Cidade Maravilhosa - já tão
decantada por suas praias, o Corcovado e o Redentor - que Agnaldo
Timóteo resolveu homenagear em “A galeria do amor”, principal faixa de
seu LP lançado em 1975:
NUMA NOITE DE INSÔNIA SAÍ
PROCURANDO EMOÇÕES DIFERENTES
E DEPOIS DE ALGUM TEMPO PAREI
CURIOSO POR CERTO AMBIENTE
ONDE MUITOS TENTAVAM ENCONTRAR
O AMOR NUMA TROCA DE OLHAR...
Mais que uma crônica da cena social, mostrando o espaço público como o
lugar de trânsito do desejo, a balada “A galeria do amor” é um
depoimento carregado de ousadia, levando-se em conta que a temática do
homossexualismo no Brasil era assunto ainda revestido de uma couraça de
preconceito. Recorde-se que a canção “Bárbara”, da peça Calabar, de
Chico Buarque e Ruy Guerra, teve a frase “nós duas”, que indicava um
relacionamento homossexual entre as personagens Ana de Amsterdã e
Bárbara, viúva de Calabar - , cortada pela censura.
Problema maior enfrentou Odair José com a balada “Desespero” ,
composição de 1974, que narra o drama de um rapaz às voltas com
freqüentes desconfianças da namorada. “Você diz a todo instante / que eu
não sou, meu bem / aquilo que aparento ser / diz até que não sou
homem bastante / pra conseguir do meu lado ter você...” . Sob a
justificativa de que a letra "questiona a masculinidade de um indivíduo" e
"desperta o público para a questão do homossexualismo" a Censura vetou a
canção, que já estava pronta para entrar no novo disco do cantor.
O advogado da Phonogram, João Carlos Muller Chaves, recorreu a
instâncias superiores da Divisão de Censura em Brasília, mas o veto foi
mantido num parecer assinado pela censora Zuleika Santos Andrade, que,
num texto confuso, diz que a composição de Odair José “torna-se
inconveniente pela razão óbvia, concludente e flagrante de uma
anormalidade confessa e aceita, em difusão do homossexualismo,
prática considerada anti-social”. (197) Deu para entender? O fato é que o
recurso do advogado foi indeferido e Odair José teve que reescrever a letra
da música, eliminando toda e qualquer possível dúvida sobre a
masculinidade do personagem. E, como medida de maior segurança, a
canção foi enviada à Censura com um novo título: “Seja o que Deus
quiser”. Percalços desse tipo atingiam quase todas as mensagens musicais
com alusões ao homossexualismo, já que o regime militar expressava um
projeto masculinizante. Mas com a balada “A galeria do amor”, Agnaldo
Timóteo desafiava mais uma vez este tabu, pois ali retrata a Galeria Alaska
como um espaço de liberdade, acolhedor e agradável, intervindo através do
discurso lítero-musical nos padrões de comportamento:
...NA GALERIA DO AMOR É ASSIM
MUITA GENTE À PROCURA DE GENTE
A GALERIA DO AMOR É ASSIM
UM LUGAR DE EMOÇÕES DIFERENTES
ONDE AGENTE QUE É GENTE SE ENTENDE
ONDE PODE SE AMAR LIVREMENTE...
Além de inscrever a Galeria Alaska no roteiro geográfico da nossa música
popular, a canção deu titulo ao LP de Agnaldo Timóteo, o que demonstra a
intenção do artista de ampliar a carga de provocação e contestação.
E, segundo o cantor, o título original da composição era exatamente
"Galeria Alaska", mas o departamento de marketing da gravadora o
aconselhou a mudar, pois temia a face conservadora do público,
acostumado à imagem do artista machão, que posava ao lado de leões e
outras feras na capa do LP “Os brutos também amam”.
Aliás, o primeiro obstáculo que Timóteo teve que enfrentar para lançar “A
galeria do amor” foi na sua própria gravadora, a EMI-Odeon: “Eles
ficaram meio preocupados quando mostrei a composição, mas eu falei:
'Gente, isso é uma realidade. Você sai à noite pra passear, chega na
Galeria Alaska e encontra centenas de pessoas se paquerando. Isso é
um fato real. É preciso falar disso. São milhões de pessoas que vivem
dessa maneira: homens com homens, mulheres com mulheres. Não se
pode mais fugir dessa realidade hoje no mundo.´”
Ainda assim, Timóteo não teria ficado também um pouco receoso de tocar
neste tema naquela época? “Mas eu toquei de maneira muito respeitosa”
- diz ele, “não agredi ao chefe de família, não agredi a ninguém, mas eu
toquei. E além do mais, eu tenho uma personalidade muito forte; eu
sou muito másculo; eu sou muito bravo. Então colocar aquelas coisas,
não é como Emílio Santiago, porque Emílio é delicado; não é como
Caetano Veloso, que é um homem delicado, ou o Ney Matogrosso. Eu
não. Eu sou bruto; eu sou bravo; eu sou brigão. Por isso coloquei lá. E
coloquei lá com todas as letras. A verdade é que eu fui muito feliz com
a coragem de fazer aquela música.”
“A galeria do amor”, foi uma das primeiras canções compostas por
Agnaldo Timóteo que iniciou sua carreira gravando versões de sucessos
estrangeiros e músicas de outros autores e a inspiração para compor o tema
surgiu depois de uma experiência vivida por ele próprio na Galeria Alaska:
“Eu fiz esta canção por causa de uma noite de paquera. Eu cheguei de
viagem, joguei a mala de dinheiro numa gaveta do quarto, desci,
peguei meu carro e fui paquerar. E chegando ali eu vi aquele ambiente,
as pessoas se olhando, os coroas paquerando os menininhos . foi numa
noite de paquera. Aquilo que eu retratei na letra foi real,
absolutamente real.”
Com o sucesso da composição estava aberto o caminho para o artista sair
da sombra e revelar o seu avesso: o do homem frágil, dividido, fustigado
por seu lado feminino. Tanto é assim que no ano seguinte Agnaldo Timóteo
voltou a desenvolver o tema de “A galeria do amor”, desta vez sem
especificar o local.
A sua composição “Perdido na noite”, que deu título ao LP de 1976,
enfatiza aspectos já presentes na música anterior, como a noite, a solidão, a
identificação com outros solitários e a defesa do amor sem preconceito:
“Somos amantes do amor liberdade / somos amados por isso também /
e se buscamos uma cara metade / como metade nos buscam também.”
Para Agnaldo Timóteo, “Perdido na noite” não retrata apenas a solidão de
um artista na época com 39 anos e no auge da carreira; retrata também o
cotidiano reprimido de milhões de pessoas anônimas que diariamente saem
pelas ruas da cidade em busca do prazer e de alguma companhia.
E isto ajudaria a explicar a grande vendagem alcançada por esta e outras
gravações, como, por exemplo, “Eu pecador”, composição de Agnaldo
Timóteo que também aborda a problemática do homossexualismo:
“Senhor, eu sou um pecador / e venho confessar porque pequei/
Senhor, foi tudo por amor / foi tudo uma loucura / mas eu gostei...”
Revestida com a carga dramática do ritmo do tango, “Eu pecador”, título
do LP de Timóteo em 1977 - descreve o conflito interior de um homem
dividido entre a prática homossexual e uma formação religiosa repressora:
“Senhor, não pude suportar / a estranha sensação de experimentar /
um amor por vós não concebido / um amor proibido pela vossa lei...” E
mais adiante ele ainda confessa, resignado: “Senhor, depois de se provar /
é difícil parar de se amar com perigo...”
Este ousado tema de Agnaldo Timóteo guarda certa afinidade com o
samba-canção “Nono mandamento” , sucesso de Cauby Peixoto nos anos
50, que também expressa a confissão de um pecador: “Senhor / aqui estou
eu de joelhos / trazendo os olhos vermelhos / de chorar porque
pequei...” Mas, como o próprio título indica, o pecado confesso no sambacanção “Nono mandamento” é desejar a mulher do próximo, enquanto que
no tango de Agnaldo Timóteo é a prática do “amor que não ousa dizer o
nome”, na expressão de Oscar Wilde.
Nascido em Caratinga, interior de Minas Gerais, e tendo recebido uma
sólida formação católica de sua mãe, dona Catarina, Agnaldo Timóteo teria
retratado o seu próprio drama na composição “Eu pecador”?
“Não”, prefere dizer o artista -, “Eu pecador é uma música de uma
multidão, é uma música de milhões, retrata um comportamento de
vida que era muito discriminado, e que hoje não se questiona mais. E
eu sei que foi uma coisa audaciosa demais para a época, mas eu não
quero nem saber; eu tinha que fazer e fiz. Porque retrata uma
realidade que não se pode questionar; o cara pode ser macumbeiro,
católico, budista, protestante, se ele tem a sua tendência homossexual,
ele vai viver a sua vida homossexual; não tem Cristo que dê jeito pra
mudar, não tem. Alguém diz 'ah, o cara agora é evangélico e deixou o
homossexualismo'. É mentira. Isso não existe. Se a pessoa gosta,
quando chega a hora ele vai namorar e pronto.”
Esses três sucessos de Agnaldo Timóteo: “A galeria do amor”, de 1975,
“Perdido na noite”, de 1976, e “Eu pecador”, de 1977, formam uma
trilogia: a trilogia da noite. As trêes canções são de autoria do cantor (fato
até então pouco comum em sua carreira), deram títulos aos respectivos LPs
e abordam a experiência homossexual.
Entretanto, de maneira um pouco mais velada, valendo-se do interdito,
Timóteo já havia tocado neste tema em 1974, ao gravar a balada “Amor
proibido”, de Clayton e da compositora Dora Lopes que, segundo o cantor,
na época estava apaixonada por uma mulher e quis falar deste seu amor
proibido. Timóteo se identificou com a canção e a gravou: “Já ficou
entendido / que o amor que vivemos / é o amor proibido / pode o
mundo inteiro falar / que eu fico contigo.”
Apesar da referência ao substantivo "entendido" - de evidente conotação
homoerótica - , sublinhe-se que o amor proibido retratado na canção pode
ser qualquer amor, e não apenas aquele compartilhado entre duas pessoas
do mesmo sexo. Mas esta abertura da letra é intencional por parte do
artista, como o próprio Agnaldo Timóteo afirma: “Quase todas as músicas
do meu repertório tem um duplo sentido. Talvez com exceção de uma
ou outra, mas quase todas eu fiz questão de gravar com duplo sentido.
São músicas que podem ser cantadas pelo homem, pela mulher e pelo
homossexual. Eu sempre fiz questão de dar este privilégio às pessoas.
Porque na verdade, se você tem prazer de estar com alguém e consegue
levar este alguém para a cama, não interessa se é um homem, uma
mulher ou, no caso específico, um garotão, ou uma garotona. Você leva
quem você queira. E as pessoas têm que entender e respeitar isto. Não
é o meu caso, não é o caso do Cauby Peixoto ou do Julio Iglesias; é o
caso do ser humano. Cada pessoa deve viver a sua vida; não a vida que
alguém lhe queira impor ou que a sociedade lhe queira impor.” Outra
obra aberta composta e gravada por Agnaldo Timóteo é a canção
“Aventureiros”, cujos versos descrevem a ronda noturna daqueles que
“marcados pela dor da solidão” , compram “amor a qualquer preço/
pagando para se sentir feliz...”.
E, segundo o cantor, esta e outras baladas românticas que ele compôs sobre
o tema nos anos 70 permanecem atuais. “São absolutamente atuais,
porque eu continuo sendo um aventureiro, eu continuo querendo
transar cada dia com uma pessoa diferente, eu continuo perdido na
noite, buscando, buscando...”
Busca que também aparece em outra composição de Timóteo revestida de
forte carga homoerótica: “A bolsa do Posto Três”.
“Esta música eu fiz para o Paulo César Souza, um menino que morava
comigo O Paulinho era terrível. Ele saía lá de casa e ia para aqueles
pontos de Copacabana paquerar aquelas bichas todas. E um dia
alguém me telefonou avisando, eu fui e ele estava lá. Ai eu fiz:
‘Quantas vezes alertei / você não soube entender / quase tudo era
possível / menos dividir você... / chegamos ao fim da linha / é melhor te
esquecer/ viva as suas aventuras na bolsa do Posto Três / mas no fim
dessa loucura / vai sentir na pele o que você me fez...'”, verso que
acabou sendo um presságio terrível do que aconteceu com ele.” De fato,
algum tempo depois o companheiro de Agnaldo Timóteo tornou-se mais
um nome na lista das vitimas fatais da Aids.
“Mas eu sempre dizia: 'Paulinho, tenha cuidado, olha com quem você
transa, com quem você vai para a cama.' E ele me respondia:
‘Agnaldo, quando eu vou pra cama eu não peço atestado médico. O
meu tesão é mais forte do que o medo.' E ele morreu aos 34 anos, lindo,
era um negro lindo, de cabelo liso, um índio lindo, que enfeitava a
minha casa, que dançava samba, era alegre, elegante, comia com a mão
esquerda, se vestia impecavelmente, só comprava roupas importadas;
era um menino que tinha o privilégio de ir aos Estados Unidos comigo,
enfim, era uma pessoa especial que lamentavelmente foi embora
porque não tinha juízo e nos fez sofrer todos, pois todo mundo era
apaixonado por ele.” No rastro do sucesso das canções de Agnaldo
Timóteo, outros artistas "cafonas", e alguns de maneira até mais explícita,
também abordaram a questão do homossexualismo na sociedade brasileira.
Um exemplo disso na década de 70 é o cantor Wando, que, embora ainda
não tivesse consolidado naquele período a sua imagem de "obsceno", já
imiscuía-se com desenvoltura nos temas da libertinagem.
A sua canção “Emoções”, gravação de 1978, revela a descoberta da
atração sexual entre dois jovens do sexo masculino “nos fizemos tão
meninos / livres tão vadios de tanto querer..." - e o receio que envolve
ambos – “.. me entregaste teus segredos / e eu falei do medo do meu
coração...”. Mas o verso seguinte - “...e assim pisamos noite adentro / como
dois perdidos...” - confirma que as canções de Agnaldo Timóteo haviam se
tornado uma referência para a abordagem do tema, que na última estrofe
desta composição de Wando não dá margem a duplo sentido:
...A LUA ILUMINOU TEU CORPO
MORENO, BONITO PRA ME PROVOCAR
NO TEU ROSTO UM RISO LENTO
MISTURADO AO PRANTO VI DESABROCHAR
TE AGASALHEI NOS BRAÇOS
PELE, MÃOS, ESPAÇOS ACARICIEI
TE AMEI SUAVEMENTE E TÃO DOCEMENTE
EU ME FIZ TEU REI.
O lado proibido do amor masculino também aparece na obra do cantor
Nelson Ned, que embora cultive o típico discurso do machão latinoamericano, revelou-se sensível à problemática homossexual.
A letra de sua composição “Meu jeito de amar” focaliza o drama de um
rapaz que nutre por um certo alguém um desejo "proibido pelas leis deste
mundo...”; mas que cuidadosamente dele se aproxima ponderando “por
favor / não me leve a mal por esse sentimento / e por mais estranho que
pareça / é amor de verdade...”; e num rasgo de ousadia lhe confessa: “Eu
estou louco para ter algo contigo / algo mais que um amigo / como eu
queria dar um beijo nessa boca / e te fazer vibrar de amor.”
É sabido que, além da discriminação e segregação, o cotidiano de grande
parte dos homossexuais em nossa sociedade é marcado por atos de
violências físicas ou verbais. Ou ambas. Ao lado do corpo do artista
plástico Décio Escobar, assassinado por três rapazes em 1969, foi pichada a
frase: “Este era veado e chupador.”(198)
Também preocupado com a lassidão dos costumes, mas agindo em nome
da lei, o delegado José Wilson Richetti tornou-se famoso nos anos 70 por
suas violentas investidas contra os militantes da chamada boca-do-lixo em
São Paulo. “Precisamos tirar das ruas os pederastas, maconheiros e
prostitutas”, justificava-se ele.
E numa afirmação da prioridade da ronda policial, nos bares do Centro da
cidade os investigadores já chegavam gritando: “Quem for veado pode ir
entrando no camburão.”(199) A socióloga Gabriela Silva Leite, que
atuava como prostituta nas ruas de São Paulo naquele período, relata que
uma sessão de tortura, sob a ordem e a supervisão do delegado Richetti,
“resultou na morte de dois travestis e de uma mulher, que por sinal
estava grávida”.(200)
Num contexto de violência e repressão como este, deve-se destacar o
caráter transgressor e crítico do repertório "cafona" que enfatiza questões
da sexualidade desviante. E, neste sentido, relativiza-se o que se entende
por canção de protesto: não apenas “Cálice” ou “Apesar de você” - que
tematizavam a questão política institucional do país - , mas também baladas
como “Preconceito”, gravação do cantor Paulo Adriano que denuncia as
angústias de um jovem homossexual atormentado pela repressão familiar e
social: “Vi preconceitos demais / por detrás de tudo eu me escondi / eu
não sei se fiz por bem ou por mal / só sei que todo amor é sempre
igual.. “. Apesar da solidão e da auto-estima depauperada pelo estigma
social, o personagem ainda resiste e proclama: “livre eu sou pra me
entregar / a quem me entender assim”.
A questão da liberdade sexual, tema que a esquerda ortodoxa considerava
secundário na época, só ganhou maior visibilidade social em nosso país a
partir de 1978, com a eclosão de movimentos organizados das chamadas
minorias: negros, mulheres e gays. Naquele ano formou-se o Movimento
de Liberação Homossexual no Brasil, integrado por artistas, intelectuais,
profissionais liberais e estudantes homossexuais.
Sem negar apoio à luta pelas transformações estruturais da sociedade, mas
mantendo autonomia em relação aos partidos de esquerda, os militantes
gays elegiam o prazer como um direito legítimo de qualquer cidadão,
argumentando que o ideal de liberdade incluía o direito de cada um ir para
a cama com quem quisesse.
A revolução devia começar dentro de casa, rompendo com os grandes
tabus, tais como a vivência monogâmica e a possessividade no amor.
Aproveitando as brechas do sistema repressivo, núcleos de militantes
homossexuais foram organizados em algumas das principais cidades do
país, procurando manter acesa a chama da liberação individual. E em cada
um desses núcleos os participantes se reuniam para promover atos públicos,
debates, pesquisas, leituras ou simplesmente para ficar nus, tocando
indiscriminadamente uns aos outros.
O escritor João Silvério Trevisan, um dos organizadores do movimento,
recorda-se da primeira reunião com strip-tease coletivo protagonizada por
um grupo de companheiros homossexuais em São Paulo:
“Nossos olhares tornaram-se adolescentes; ficamos medindo-nos
atônitos, como se acabássemos de nos conhecer de verdade: então seu
peito é assim? e sua bunda? e seu pinto? não sabia que existiam pintas
em suas costas e tantos pelos em suas coxas! O encantamento foi geral.
Resolvemos repetir a dose, numa outra ocasião. Dessa feita, éramos
uns 12 rapazes, tocando-se no escuro, indiscriminadamente, durante
mais de uma hora. Lembro que fiquei fascinado, sentindo numa mão a
textura inflada de uma cabeleira afro e, na outra, o inflar-se de um pau
generoso, ambos entregando-se ao meu carinho.” (201)
Embora distante dessas reuniões e não envolvido diretamente na militância
gay, o cantor Odair José - sempre uma pedra no sapato dos guardiões da
moralidade - deu sua contribuição ao Movimento de Liberação
Homossexual no Brasil através da balada “Forma de sentir”, um
manifesto em defesa da liberdade de amor entre dois homens: “Sei que és
entendido e vais entender / que eu entendo e aceito a tua forma de
amor...”
Gravada em 1978, a composição de Odair José trouxe mais uma vez para a
nossa música popular o famoso grafite “É proibido proibir”. Esse grito de
protesto, que surgiu em meio às manifestações estudantis de Paris em 1968
e naquele mesmo ano serviu de tema para a canção homônima de Caetano
Veloso, ressurgia, exatos 10 anos depois, em um novo contexto e em um
tema mais específico: a defesa do principio de que qualquer maneira de
amor vale a pena:
...O BEIJO NO BEIJO, O IGUL NO IGUAL
TROCANDO, ENTREGANDO, BUSCANDO
CHEGANDO AO DELÍRIO FINAL
EU VI O TEU VERDADEIRO SENTIDO DO SENTIR
E NEM PENSES QUE EU VOU PROIBIR
É PROIBIBO PROIBIR, É PROIBIDO PROIBIR...
Além de pederastas e maconheiros - como gritava o delegado Richetti outro segmento discriminado em nossa sociedade, as prostitutas, foi
focalizado em diversas composições "cafonas" da época.
Tema recorrente na história da música popular brasileira, as chamadas
mulheres da orgia já renderam clássicos como “Dama do cabaré”, de Noel
Rosa, “Quem há de dizer”, de Lupicínio Rodrigues, e “Vida de bailarina”,
sucesso da cantora Ângela Maria. Mas, apesar de serem "obrigadas pelo
ofício a bailar dentro do vício", as personagens dessas canções ocupam um
certo status dentro do processo de hierarquização social que também
permeia a atividade das prostitutas. Afinal, são todas dançarinas e mais ou
menos contemporâneas de uma Lapa ainda boêmia, frequentada por artistas
e intelectuais.
á as personagens retratadas pelos compositores "cafonas" na década de 70
são de outra ordem e atuam em outro espaço: exibem-se solitárias pelas
ruas da cidade. Como ilustram as canções “Secretária da beira do cais”
(Xavier-Nenzinho), “Dama da noite” (Patrick) e “Menina da calçada”,
gravação do cantor Fernando Mendes; “Tão sozinha na calçada / vendo
gente a passar / O seu corpo tão pequeno / qualquer um pode levar.. “
A temática da prostituição feminina foi incorporada ao repertório "cafona"
a partir de 1972, quando Odair José alcançou grande sucesso com a balada
“Vou tirar você desse lugar”(202), composição que no ano seguinte o
autor regravou em dueto com Caetano Veloso e que conta também com a
admiração de outro famoso compositor baiano: Dorival Caymmi. “Certa
vez, no camarim de um show da Nana” - recorda Odair - , “Dorival
Caymmi fez um comentário que me trouxe grande satisfação pessoal.
Ele botou aquela mãozona gordona sobre meu ombro e falou: 'Odair,
eu sou apaixonado por aquela sua canção que diz 'eu vou tirar você
desse lugar'. De todos nós compositores, você foi quem melhor
descreveu a história da puta."'
O curioso é que esta "história da puta" que tanto agradou a Caymmi na
época também agradava às crianças e servia até como canção de ninar,
substituindo a famosa “Acalanto”, do próprio Caymmi.
Em uma nota de sua coluna, Chacrinha perguntava aos leitores: “Sabem
qual é a música que faz dormir o filhinho da Nara Leão, o Francisco?
Bem, a Nara tem que torcer o nariz e cantar, todinha, a canção do
Odair José, aquela do 'eu vou tirar você desse lugar'. Aí o guri
adormece.” (203)
E os versos que Nara Leão cantava mostram na primeira estrofe um
personagem confessando para uma garota em algum bordel ou casa de
massagens: “Olha / a primeira vez que eu estive aqui / foi só pra me
distrair...”; na outra estrofe ele acrescenta: “Olha / a segunda vez que eu
estive aqui / já não foi para distrair / eu senti saudade de você...”; e no
refrão anuncia: “Eu vou tirar você desse lugar / eu vou levar você pra
ficar comigo / e não interessa o que os outros vão pensar...”
Nota-se que embora o narrador se mostre amoroso e disposto a enfrentar a
rejeição da sociedade para ficar com aquela que o acolheu numa noite fria e
vazia, ele próprio não está imune a preconceitos, já que aceita a prostituta,
mas rejeita a prostituição expressa por "aquele lugar".
O inusitado é que, originalmente, o "lugar" ao qual Odair José faz
referência na letra da música não era exatamente um bordel, e sim a
gravadora CBS, empresa onde ele atuava antes de se transferir para a
Phonogram. Naquele primeiro semestre de 1972 o cantor vivia o limite do
desgaste de relacionamento com os dirigentes da gravadora e o ambiente de
trabalho tornava-se para ele cada dia mais insuportável. A idéia da canção
surgiu neste contexto.
“O prédio da CBS ficava na Visconde do Rio Branco” - explica Odair - ,
“e eu morava ali perto, na Rua do Riachuelo. E um dia eu saí bastante
aborrecido da gravadora e no caminho até minha casa me veio este
refrão 'vou tirar você desse lugar'. Mas na hora eu não pensei em puta,
não pensei em nada. Eu estava era revoltado com a minha situação na
CBS e cantei dizendo pra mim mesmo: 'eu vou tirar você desse lugar'.”
Entretanto, ao chegar em casa, pegar o violão e começar a trabalhar os
versos e a melodia da nova canção, Odair José achou o refrão muito forte
para ficar restrito ao seu problema com a gravadora e procurou relacioná-lo
ao período em que atuava como músico da noite em boates da Praça Mauá
e via “pessoas pagarem 50 ou 100 cruzeiros para comerem as putas que
estavam expostas ali”.
Testemunho que ele enfatiza numa entrevista à Rádio Globo:
“A história é a seguinte: o cara trabalhava o dia inteiro e ao final do
dia, em vez de ir para casa, ele passava ali para tomar um drinque e
tal. E com esse drinque começava um grande romance. No dia seguinte
ele voltava para tomar um segundo drinque, e mais um terceiro,
porque já estava realmente apaixonado por alguém dali. Eu assisti
muito isso. Porque ali se encontram moças extremamente dignas, e o
fato de estar naquele trabalho é apenas uma opção ou circunstâncias
da vida, porque às vezes você faz planos de vida e a vida muda seus
planos. Enfim, a intenção da música é quebrar esses tabus, romper
esses preconceitos, que ainda hoje existem por aí.” (204)
E é com este mesmo olhar, sem a carga de rejeição e preconceito que
normalmente pesam sobre aquelas que vivem do sexo, que o tema é
abordado nas canções “Flor da noite” (Totó-McDonald), “Menina da noite”
(Claudio Fontana), “Mulher de ninguém” (Antonio Carlos-Othon Russo),
“Maria pureza” (Sobreira-Da Costa) e “Maria Esperança”, gravação de
Lindomar Castilho, que também denuncia um outro aspecto da nossa
realidade social: a violência de que são vítimas as prostitutas no seu
cotidiano: "Perdida na noite em pé na calçada / Maria marcada, Maria
sofreu. . / mataram Maria, Maria Esperança / a pobre criança que um dia
cresceu ..”
Esta recorrência ao tema da prostituição feminina no repertório "cafona" se
dá em grande parte em virtude da proximidade desses compositores com o
universo da noite. O próprio depoimento de Odair José foi revelador disso:
ele conhecia o universo de perto.
Mas há casos também de envolvimentos pessoais ainda mais íntimos. O
cantor Waldik Soriano revela que a sua primeira esposa, que faleceu dois
meses após o casamento, era uma prostituta de Belém do Pará, e ele a
conheceu durante apresentação em um cabaré daquela cidade.
“Era uma jovem morena, cor de jambo, cabelos longos e pretos, uma
figura de impacto à primeira vista”, recorda ele. Após uma semana
juntos, os dois apaixonaram-se perdidamente um pelo ouço e, como diz a
canção de Odair José, Waldick a tirou "daquele lugar", casando-se com ela.
“Mesmo sabendo tratar-se de uma prostituta. Porém, como meu amor
não tem preconceito, amei Maria José, a Zelita, até o fim de sua vida.”
(205)
Nelson Ned é outro artista que já teve envolvimento pessoal e emocional
com prostitutas em determinada fase de sua vida e para elas compôs
algumas de suas principais canções de amor.
“A primeira pessoa por quem eu me apaixonei em São Paulo era uma
garota de programa que eu conheci numa boate da vida. Isso foi mais
ou menos por volta de 1968/1969. O codinome dela era Andreia. E eu
me apaixonei perdidamente por ela. Era uma menina de programa,
mas toda vez que ela fez amor comigo nunca me cobrou. E essas
mulheres todas foram a grande fonte de inspiração para eu compor.
Quando a Andreia me deixou, eu chorei mais ou menos uns cinco dias.
Ai eu fiz a música ‘Quando eu estiver chorando’, que é um dos meus
maiores sucessos na América Latina”:
QUANDO EU ESTIVER CHORANDO
NÃO FIQUEM ME CONSOLANDO
DEIXEM-ME CHORAR SOZINHO
TODA VEZ QUE EU ESTIVER CHORANDO
É PORQUE ESTOU ME LEMBRANDO
DE UM ALGUÉM QUE EU NÃO CONSIGO TER...
A prostituta também faz parte da memória afetiva do compositor Nelson de
Morais Filho, o Nenéo.
Ao relatar a sua história de vida no período de adolescência no Morro do
Borel, ele recorda: “Eu tinha um grupo de uns 15 amigos e todo sábado
a gente juntava um dinheiro e ia para a zona do baixo meretrício. Mas
todo mundo era ainda muito novo e tinha um certo medo de ir para o
quarto sozinho com uma mulher. Então a gente já tinha uma mulher
certa e todo sábado os 15 iam sempre naquela mesma mulher. Entrava
um, saía outro, entrava um, saía outro, entrava um, saía outro”
E, do alto de sua vasta experiência em diversos prostíbulos de norte a sul
do Brasil, o cantor Waldik Soriano observa:
“Naquele tempo, na zona, tinha muita mulher bonita. E a mulher se
respeitava. Se você chamasse uma puta daquela para dar a bunda ou
para dar uma chupada, ela lhe esculhambava: 'Não vou chupar porra
nenhuma!' Era assim. Mulher da vida era fogo. E quando você
encontrava uma mulher que chupava ou que dava a bunda, essa era
considerada uma vagabunda e ninguém queria.”
NOTAS BIBLIOGRÁFICAS DO CAPÍTULO
(Seguindo a numeração seqüencial encontrada no texto)
179. "Presa a filha de Carlos Manga" - Intervalo, n° 419, Janeiro de 1971.
180. "Tivemos de lavar o chão da cadeia" - Intervalo, n° 415, dezembro de
1970.
181. Luiz Galvão: Anos 70: novos e baianos. São Paulo: Ed. 34, 1997, p.
78.
182. "Tivemos de lavar o chão da cadeia" - Intervalo, Nº 415, dezembro de
1970.
183. "Andarilhos presos em Cruz das Armas" - orte, 13-7-1977.
184. A primeira prisão de Gilberto Gil ocorrera poucos dias após a edição
do AI-5, mais precisamente na manhã de 27 de dezembro de 1968. Ele e
Caetano Veloso foram detidos em São Paulo e levados para o Rio, ficando
inicialmente trancafiados em duas minúsculas solitárias do Quartel da
polícia do Exército, no bairro da Tijuca.
Ver Carlos Calado. Tropicália: A história de uma reolução musical. São
Paulo: Ed 34, 1997
185. "Polícia assusta Caetano, prende Gil e suspeita do pó de Bethania e
Gal" – Jornal
Brasil, 8-7-1976.
186. Tárik de Souza & Elifas Andreato. Rostos e gostos da música popular
brasileira. Porto Alegre: L&PM, 1979, p. 213.
187. Apud Nelson Motta. Música humana música. Rio de Janeiro:
Salamandra, 1980, p. 64.
188. "Juiz interroga Gilberto Gil e mantém prisão" - O Globo, 9-7-76.
189. "Gilberto Gil internado em clínica psiquiátrica" - O Globo, 10-7-76.
190. "Empresárias e Rita Lee são presas por uso de entorpecente" - Ultima
Hora, 25-8-1976
191. 'Rita Lee é presa e autuada por uso de drogas em São Paulo" - O
Globo, 25-8-1976.
192. "Rita Lee condenada a um ano de prisão domiciliar" - O Globo, 3-91976.
193. Na prisão Nelson Gonçalves negou ser traficante mas confessou
"cheirar cocaína desde 1949, quando perdeu sua amada". Ver reportagem
"Cocaína envolve mais cantores e ex-miss" - Ultima Hora, 11-5-1966.
194. Marco Aurélio Barroso. A revolta do boemia: a vida de Nelson
Gonçalves. Rio de Janeiro: Ed. do Autor, 2001, pp. 261-262.
195. Registre-se que num primeiro momento a composição de Odair José
foi proibida pela Censura. Num parecer datado de 23 de abril de 1975, a
letra de “Viagem” recebe o carimbo de vetada" e a justificativa: "Por estar
enquadrada na Legislação sobre Entorpecentes, Decreto 69.845 de 27 de
dezembro de 1971 - Art. 20". Num outro parecer datado de 2 de maio de
1975 e assinado por duas censoras, Marina Brum Duarte e Ana Kátia
Vieira, a letra foi liberada sob o argumento de que "a 'viagem' sugerida não
fica especificada, podendo, na verdade, significar até uma fantástica
viagem cósmica, levada a efeito, evidentemente, pela imaginação". Fonte:
Documentos do Serviço de Censura de Diversões Públicas - Arquivo
Nacional / RJ.
196. "Em Copacabana, esperança e segredo de um quarteirão violento: a
Galeria Alaska" - O Globo, 27-9-1987.
197. Os documentos da Censura citados são, pela ordem: Parecer Nº
13361/74 e Parecer Nº 14695/74. Fonte: Documentos da Divisão de
Censura de Diversões Públicas - Arquivo Nacional / DF.
198. Apud João Silvério Trevisan. Devassos no paraíso: a
homossexualidade no Brasil, da Colônia à atualidade. 3a ed. Rio de
Janeiro: Record, 2000, p. 401.
199. Idem, pp. 504-505.
200. Gabriela Silva Leite. Eu, mulher da vida. Rio de Janeiro: Rosa dos
Tempos, 1992, p. 85.
201. João Silvério Trevisan, op. cit., p. 349.
202. A gravação de Odair José ocupa 1º lugar na lista dos compactos
simples mais vendidos na semana de 5 a 10 de Junho de 1972, no Rio.
Fonte: Ibope - Pesquisa sobre vendas de discos - Acervo do Arquivo Edgar
Leuenroth / Unicamp.
203. "E essa agora?" - (Jornal do Chacrinha) - A Noticia, 27-3-1973.
204. Programa “Show da Madrugada” - Rádio Globo, 24 -9-1994.
205. Waldik Soriano & Bernadino Campos. A vida de Waldik Soriano. Rio
de Janeiro: Codecri, 1977, pp. 64-66.
(LINDOMAR CASTILHO NA LUTA PELO DIVÓRCIO)
“Eu nunca comi mulher nenhuma, porque elas não têm pau. E pra
mim pau é um negócio essencial. Eu gosto muito da coisa entrando em
mim.”
(LEILA DINIZ)
Num texto dos anos 70, o jornalista Millôr Fernandes ironicamente
exortava: “Feministas do mundo, uni-vos. Nada tendes a perder senão
os vossos maridos” .(206) Era um sarcástico comentário sobre o avanço do
movimento feminista, que depois da Europa e dos Estados Unidos, também
chegava ao Brasil.
Conscientes de seu novo papel na sociedade e já tendo conquistado antigos
direitos civis como o voto e o acesso ao ensino superior - , as mulheres
procuravam agora reforçar a sua identidade sexual, negando a relação de
hierarquia entre o macho e a fêmea. Na busca de um relacionamento mais
justo e aberto entre as pessoas, as feministas reivindicavam o direito à
sexualidade e à igualdade com os homens no mercado de trabalho.
O protótipo de mulher liberada no Brasil foi Leila Diniz, estrela de cinema
e TV, musa de Ipanema e de uma geração de boêmios cariocas. Exprofessorinha de curso primário, Leila ganhou notoriedade em 1967 com o
filme ”Todas as mulheres do mundo”, de Domingos de Oliveira, que a
mostrou nua e esplendidamente bonita. Mas talvez bem mais do que na
arte, foi na vida que a atriz desempenhou seu melhor papel.
Com suas atitudes corajosas e liberais, Leila rompeu preconceitos, quebrou
tabus, avançando os rígidos limites da moral vigente. Em 1971, grávida de
mais de seis meses, ela ia de biquini à praia de Ipanema uma prática hoje
natural, mas que na época muitos tomaram como uma afronta à tradição, à
família e à maternidade.
O maior zebu, entretanto, aconteceu em novembro de 1969, quando chegou
às bancas uma edição de O Pasquim trazendo uma reveladora entrevista
com Leila Diniz. Foi um estouro. Nunca uma mulher brasileira tinha falado
de sexo de forma tão aberta na imprensa. Os vigilantes da moral e dos bons
costumes ficaram de cabelo em pé. O curioso é que muito pouco do que
Leila efetivamente falou sobre o tema saiu no jornal.
O Pasquim, que se notabilizou por publicar suas entrevistas tal e qual o
entrevistado falava, sem cortes ou retoques, no caso de Leila não pode agir
assim. O vasto repertório de palavrões da atriz - “cu”", “caralho”, “tesão”,
“fodida”- foi substituído por asteriscos e frases inteiras foram suprimidas
ou maquiadas na redação.
Ouvindo hoje a fita original da entrevista constata-se, em meio às gostosas
gargalhadas de Leila, que ela falou muito, mas muito mais do que foi
publicado. “Eu gosto é de trepar, porra!”, confessou ela para a equipe
de entrevistadores, entre os quais Tarso de Castro, Jaguar e Sérgio
Cabral, que se diziam dispostos a atendê-la.
E Leila instigava: “Acho que pra mim seria bacana trepar todo dia. E
não me importaria se fossem uma, duas, três, vinte ou mil vezes por
dia. Eu tenho uma puta resistência física”, acrescentando mais adiante:
“Já me aconteceu de passar uns três dias não fazendo outra coisa na
vida senão trepar sem parar.”
Sobre os grilos do homem na cama, Leila analisou que “este negócio de
brochar é problema de cuca. O pau não tem nada a ver com isso,
coitadinho. O pau é um ser maravilhoso que a cuca às vezes atrapalha
Eu sou contra a cuca por causa disso. Viva o pau e abaixo a cuca!”
Aquela velha reclamação de algumas mulheres de que faltaria virilidade ao
homem moderno, Leila esbravejou: “Porra nenhuma! De jeito nenhum!
Eu trepo de manhã, de tarde e de noite e tem homem paca por ai. Mas
é a tal coisa: eu gosto de trepar.” E quando a conversa enveredou pelo
tema do lesbianismo, ela foi categórica: “Eu nunca comi mulher
nenhuma, porque elas não têm pau. E pra mim pau é um negócio
essencial. Eu gosto muito da coisa entrando em mim. Pode fazer tudo o
que quiser também, mas pra mim pau é fundamental.” (207)
A maior parte disso tudo que ela falou não foi publicada naquela edição de
O Pasquim - e nem poderia. Mas o pouco que saiu no jornal foi suficiente
para mobilizar o governo a criar uma severa lei de censura prévia à
imprensa, o Decreto Nº 1.077, apelidado de “Decreto Leila Diniz” - algo
um tanto injusto para quem sempre defendeu a liberdade. Um de seus
artigos afirmava que a partir dali não seriam mais toleradas “publicações e
exteriorizações contrárias à moral e aos bons costumes, quaisquer que
sejam os meios de comunicação.” (208)
Não é preciso dizer que um dos mais atingidos foi o Pasquim. Sua redação
começou a conviver com um censor de plantão que checava todas as
matérias antes de serem publicadas.
Aquela polêmica entrevista de Leila, se por um lado consagrou o mito da
atriz, por outro também trouxe-lhe muitos aborrecimentos e portas na cara.
A TV Globo, por exemplo, onde ela atuara no início de carreira, negou-lhe
trabalho e num momento em que a emissora despontava como a nova líder
de audiência. “Não tem papel de puta na próxima novela”, justificou um
diretor da casa. (209)
O cerco repressivo foi se intensificando sobre a atriz e numa certa tarde de
domingo a Polícia Federal foi buscá-la com uma ordem de prisão à saída da
TV Tupi, onde ela se virava como jurada de Flávio Cavalcanti.
Providencialmente, Leila saiu escondida no banco de trás do carro do
apresentador, que a abrigou durante alguns dias em sua casa em Petrópolis.
Depois de muita negociação ficou decidido que a atriz iria depor na Polícia
Federal e assinar um documento em que se comprometia a não dizer mais
palavrão. Leila morreu em junho de 1972, aos 27 anos, quando retornava
de um festival de cinema na Austrália. O avião em que viajava explodiu
pouco antes de aterrissar no Aeroporto de Calcutá, na Índia. Foi uma
tremenda fatalidade para quem afirmava cheia de entusiasmo: “A minha
maior força é a minha energia, a minha alegria e a minha vontade de
viver.” (210)
O paradoxal é que esta figura - hoje símbolo da liberação feminina no
Brasil - não se entendia muito bem com as feministas de sua época. “Como
diz Leila Diniz / homem tem que ser durão...”, cantava Erasmo Carlos
no samba ”Coqueiro verde”. Por essas e outras Rose Marie Muraro dizia
que Leila “fazia o jogo dos homens” e que ser mulher era algo mais do
que “sair dando por aí”. (2l1)
Isto não impediu, entretanto, que após a morte da atriz as feministas se
apossassem da sua imagem, transformando-a numa bandeira do movimento
que se projetou ao longo dos anos 70.
Inspiradas na luta de suas colegas européias, as feministas daqui também se
organizaram em influentes núcleos de participação como o Centro da
Mulher Brasileira, o Brasil-Mulher e o Movimento Feminino 8 de Março.
Não era pouca coisa numa sociedade tradicionalmente machista e para a
qual o único movimento feminino ainda era aquele dos quadris.
Ironias de Millôr à parte, as organizações feministas por vezes também
contavam com reforços inesperados como, por exemplo, do machão
Waldik Soriano, que em algumas de suas canções alinhava-se às mulheres
na crítica ao comportamento de certos homens. Veja esta estrofe de bolero:
...NO PRINCÍPIO TUDO É UM MAR DE ROSAS
JURA TANTO SER UM MARIDO LEAL
MAS DEPOIS DE UM PAPEL BEM ASSINADO
FAZ DA SUA PRÓPRIA ESPOSA UM CACHORRO
ACORRENTADO
E DESPREZADO NUM QUINTAL...” (121)
É verdade que o cantor logo sofria suas recaídas e desferia algumas pérolas
que revoltavam até a menos aguerrida militante do sexo feminino. Numa de
suas entrevistas ele comparou: “A mulher é como a música. A música
existe para limpar a alma; a mulher, para arrumar a casa.” (2l3)
E quando alguém se surpreendia com o fato de Waldik assumir
abertamente seus casos extraconjugais, o cantor reiterava: “Já falei que
sou um cara casado em casa, entende? Sou casado em casa. Na rua
ninguém tem nada com a minha vida.” (2l4) Esta sua teoria da "casa" e a
"rua" foi mais bem explicitada num outro bolero em que ele diz: “Se o meu
amor de casa me desse alegria / O meu amor da rua não existiria...”
(2l5) Mas o inimigo público número um das feministas no campo da
música popular foi mesmo o cantor Lindomar Castilho e a razão é mais do
que justificada. Em meados dos anos 70 ele iniciou um romance com a
jovem cantora e compositora Eliane de Grammont, que, após o casamento,
Lindomar a preferia apenas como dona de casa.
Talvez já pressentindo as agruras e infortúnios que bateriam à sua porta,
Eliane compôs e gravou canções como “Não me acuses” e “Amélia de
você”, um questionamento do tradicional modelo de mulher em nossa
sociedade: “Cansei de ser Amélia santa e boa. ./ a vida com você é uma
loucura / me deprime, me satura / ser Amélia já era.” De cotovelo
doído, Lindomar respondia com temas como “Nós somos dois semvergonhas” e “Você é doida demais”, esculpindo um tipo de mulher
muito mais para Conceiçao do que Amélia:
...TODO DIA ME ENGANAVA
SEMPRE VOCÊ ME TROCAVA
PELO AMOR DE OUTRO RAPAZ
VOCÊ É TÃO LEVIANA
NISSO VOCÊ NÃO ME ENGANA
VOCÊ É DOIDA DEMAIS..”
Este passeio pelo repertório que Lindomar e Eliane gravaram nos anos 70
nos remete àquele do casal Herivelto Martins e Dalva de Oliveira na era do
rádio. Com o fim do casamento, tal qual Lindomar, Herivelto acusava: “A
culpada foi ela / transformava o lar na minha ausência / em qualquer
coisa abaixo da decência.. “(216)
Também recusando o papel de Amélia, corajosamente Dalva de Oliveira
confessava: “errei, sim / manchei o seu nome...” (217) Para Dalva e
Herivelto o saldo desta exposição pública de intimidades não foi além de
mágoas e ressentimentos. Já no caso de Lindomar e Eliane de Grammont o
desfecho, como se sabe, foi trágico.
Sentindo frio em su'alma, numa madrugada de março de 1981, o cantor
entrou bêbado numa boate de São Paulo e matou Eliane com três tiros no
peito. “Ele chegou já armado e foi direto para os fundos, onde Eliane
cantava, acompanhada ao violão pelo músico Carlos Randal”,
testemunhou o gerente da casa noturna. (218)
Também alvejado com disparas, o violonista de Eliane foi o pivô do crime
e a pessoa a quem Lindomar Castilho fazia referência quando cantava o
verso “Foi o outro que roubou voce de mim...”, do bolero “Ébrio de
amor”. Aliás, fontes da gravadora RCA informaram à imprensa que a
maioria das músicas gravadas por Lindomar após seu casamento
“focalizavam problemas estritamente de ordem pessoal” e que muitas
delas foram lançadas “sob pressão do cantor.” (219)
Preso em flagrante, Lindomar Castilho foi encaminhado à Casa de
Detenção de São Paulo, onde iria aguardar o pronunciamento da Justiça.
Mas qualquer que fosse o veredicto, ele tinha consciência de que sua vida e
sua carreira se dividiriam para sempre em antes e depois daquele crime.
“Eu acho que aquele é um episódio que desafortunadamente pode
acontecer a qualquer pessoa, mas que não desejo a ninguém. Numa
situação semelhante, se alguém tiver oportunidade de pensar e contar
até dez, não conte; conte até um milhão, dois bilhões; vá para uma
praia e conte os grãos de areia”,
aconselha hoje Lindomar Castilho
Acompanhado de perto por organizações feministas, o processo que
resultou na condenação do artista tornou-se no Brasil um marco da luta
pelo fim da impunidade aos crimes praticados em nome da famigerada
“legítima defesa da honra”.
E este tinha sido justamente o argumento de defesa usado pelo advogado
Evandro Lins e Silva para absolver Raul Fernando do Amaral Street, o
Doca Street, que na noite de 30 de dezembro de 1976 matara com quatro
tiros no rosto sua amante, a socialite Ângela Diniz. O "crime de Búzios",
como ficou conhecido, também ganhou grande repercussão e marcou a
emergência dos movimentos de defesa da mulher, que vestidas de preto
saíram às ruas empunhando faixas com a frase “Quem ama não mata”.
E nem fere” - poderia dizer o cantor Odair José, que em dezembro de 1973
foi esfaqueado por sua mulher, a cantora Diana, com quem estava casado
havia apenas quatro meses. Apresentando ferimentos na testa, nos braços e
nas pernas, o cantor foi medicado no hospital, não sem antes denunciar a
própria mulher à polícia. O caso foi parar nas primeiras páginas dos jornais:
“Diana atacou a faca Odair José”, afirmando a reportagem que o cantor
“teve de fugir de casa para não morrer. Esposa em fúria apelou até
para garrafadas”. (220)
Na delegacia Diana se justificou dizendo que no auge de mais uma
tempestuosa briga do casal, Odair José tentou estrangulá-la e que, para não
morrer, ela "usou de todos os recursos".
Diana e Odair se conheceram no fim dos anos 60, quando eram ainda dois
jovens pretendentes à carreira musical. A identificação entre eles foi
imediata e logo começaram a namorar. “Quando conheci Odair achava
que ele era um clone de Jesus Cristo”, lembra Diana. “Pra mim ele era
um Cristo em tudo. No cabelo, na simplicidade, na introspecção, na
tristeza. Era uma pessoa com uma história de vida muito sofrida.
Tinha vindo lá do interior de Goiás, passou fome, frio, humilhações. Eu
sou uma mulher muito maternal e gostei daquele cara coitadinho,
carente, sofrido. Mas depois veio o sucesso, o deslumbramento, o
desbunde... e tudo se transformou.”
O primeiro disco gravado por Diana, um compacto simples, saiu em 1969
pela Caravelle, sem obter qualquer êxito de venda ou execução. No ano
seguinte ela se transferiu para a CBS, ocupando a vaga de Wanderléa, que
estava de mudança para a Phonogram.
Produzida por Raulzito (o futuro "maluco beleza" Raul Seixas) e cantando
baladas românticas como “Uma vez mais”, “Fatalidade” e “Um mundo
só para nós”, Diana conquistou as paradas de sucesso, consagrando-se
com o título de “a cantora apaixonada do Brasil”.
O todo-poderoso diretor-geral da CBS, Evandro Ribeiro” - o homem que
lançou a jovem guarda e produzia os discos de Roberto Carlos - , tinha
muito carinho e afeição por Diana, a quem sempre chamava de “minha
filha”.
Quando esta lhe comunicou que iria se casar com Odair José, ele a chamou
em sua sala e tentou fazê-la desistir da idéia. “Mas por que o senhor não
quer que eu me case, seu Evandro?”, perguntou-lhe Diana, e ele
respondeu: “Minha filha, o grande artista tem que ser casado com a
arte, com a música. Vou lhe dar dois exemplos, depois você vai para
casa e pensa.
Eu conheci uma grande artista que se casou. O marido roubou-lhe o
dinheiro, a fama e lhe fez infeliz; hoje ninguém a respeita, é chamada
de a sapoti Ângela Maria. E conheci uma outra artista, a mais puta de
todas, mas que nunca ninguém viu aparecer com homem nas revistas
ou nos jornais; hoje ela tem prestígio e é chamada de a divina Elizete
Cardoso. Qual das duas você quer ser?”
Diana ignorou o despropositado comentário de Evandro e respondeu que
queria apenas cantar e ser feliz com o homem que escolheu embora hoje
admita que teria feito tudo diferente.
“Seu Evandro estava certo, eu não devia ter mesmo me casado. Eu
sofri muito, tanto que depois da separação nunca mais fiquei com
ninguém, nunca mais. De vez em quando pintam uns namoros, umas
coisas assim, mas nada de maior compromisso. Já me acostumei e
prefiro viver sozinha. Confesso que quando estou no palco cantando,
às vezes, sinto no coração a saudade de Odair, e ali no palco me
emociono. Mas não é saudade do macho, você me entende?, é saudade
do artista, da pessoa dele, do Jesus Cristo que eu pensei que ele fosse.”
Alguns dias após aquele incidente da faca, indagado sobre como ficara seu
casamento com a jovem cantora, Odair José foi enfático. “Acabou.
Cresceu um muro entre nós e, depois de tudo o que aconteceu, é
melhor esquecer.”(222)
Os motivos que levaram a tão graves desentendimentos nunca foram
explicitados por ele, mas algumas pistas aparecem no seu repertório de
canções. Em uma delas, a balada “Cotidiano Nº 3” (seqüência de
“Cotidiano”, de Chico Buarque, e de ”Cotidiano Nº 2”, de ToquinhoVinícius), Odair José revela pequenos detalhes que podem desgastar uma
relação amorosa vivida sob o mesmo teto:
DEPOIS QUE VOCÊ CASOU COMIGO
NUNCA MAIS VOCÊ SE ARRUMOU
TODO DIA QUANDO EU VOLTO PARA CASA
ENCONTRO VOCÊ COM A CARA QUE ACORDOU
SEU CABELO ANDA TODO ESTRAGADO
E VOCÊ ANDA BEM MAIS GORDINHA
O SEU CORPO JÁ NÃO TEM A MESMA COR
NEM PAREC COM A MULHER QUE EU TINHA...
Como se vê, em meio às questões políticas e econômicas que palpitavam
no Brasil durante a ditadura militar, destacam-se também os problemas do
cotidiano conjugal: desencantos, brigas, ciúmes, separações, adultérios,
assassinatos - fatos que envolviam brasileiras e brasileiros de todas as
classes sociais e que na época acabaram por favorecer àqueles que lutavam
por mudanças nas leis que regiam a relação entre marido e mulher.
Ao abrir a Campanha da Fraternidade de 1975, o cardeal-arcebispo do Rio
de Janeiro, dom Eugenio Sales, advertia à população: “Volta mais uma
vez aos horizontes de nossa pátria a ameaça do divórcio.” (223) O seu
desabafo refletia a preocupação da alta hierarquia da Igreja Católica com o
mais novo projeto do senador Nelson Carneiro, do MDB fluminense, que
pretendia extirpar da Constituição brasileira o artigo 175, cláusula que
declarava o casamento indissolúvel.
E aquele já era o sétimo projeto divorcista apresentado pelo senador
baiano, na época com 65 anos, e que desde 1947, quando foi eleito
deputado pela UDN da Bahia, vinha lutando pela causa.
Mas a idéia do divórcio já tramitava no Congresso desde muito antes, mais
precisamente a partir de 1896, quando o deputado fluminense Érico Coelho
apresentou a primeira proposta a favor da revogação da indissolubilidade
conjugal no Brasil. Pouco depois, em 1900, o divórcio foi defendido
também pelo senador sergipano Martinho Garcês, que ao apresentar o seu
projeto ao Congresso, reconhecia: “Não me iludo sobre a sorte que terá a
idéia ainda este ano.” (224)
Nem naquele ano nem nos 76 anos subseqüentes o divórcio conseguiu
sensibilizar os congressistas brasileiros, mas no início da década de 70 o
projeto retornou com mais força, e diversos setores da sociedade se
mobilizaram para debater a idéia. Como uma espécie de repórteres
musicais de seu tempo, os compositores "cafonas" registraram este debate
em suas canções e com uma postura francamente favorável ao divórcio.
Um primeiro exemplo disto é o cantor e compositor Cláudio de Barros,
que, em uma das faixas do seu LP de 1970, lastima-se: “Divórcio, eu
quero ela não quer / divórcio, será quando quiser... / divórcio, será que
ela não entende / que a dor que me invade reflete um dissabor?...”
(225)
Dado o fato de que naquele ano a lei do divórcio ainda não havia sido
aprovada no Brasil e que, portanto, não dependeria da vontade de um dos
cônjuges concedê-lo ou não, o pronome feminino "ela", ao qual a canção se
refere, provavelmente diz respeito à Justiça, à sociedade ou à Igreja
Católica, instituição que naquele momento era o principal bastião de
resistência à aprovação do fim da indissolubilidade do matrimônio. Mas a
Igreja não estava sozinha nesta cruzada.
Durante os anos do AI-5, principalmente no período Médici, o governo
também demonstra grande preocupação com a organização familiar.
Diversas campanhas publicitárias oficiais veiculadas em rádio e televisão
falavam da importância da família como mantenedora de uma sociedade
saudável, na qual o controle e a disciplina deveriam estar presentes, e ela, a
família, era convocada a cooperar nisto.
Como destaca o historiador Carlos Fico, “pais e mães eram entendidos,
acima de tudo, como 'educadores dos lares', que deveriam buscar, em
relação aos filhos, o 'fortalecimento do caráter nacional', isto é, a
esfera familiar era concebida como campo privilegiado para o
exercício do que os militares chamavam de 'educação cívica' - 'o
estimulo à obediência e ao respeito, a verdade e a lealdade, honestidade
e sentimento do dever, e a iniciativa do amor, perdão e renúncia’.”
(226)
E o interesse do regime em moldar a estrutura familiar chegava a tal ponto
que o fazia convocar anualmente os meios de comunicação para veicular
mensagens do presidente da República a cada 8 de dezembro, Dia da
Família.
Nesta data, em 1970, através de uma rede de rádio e televisão, o presidente
Médici falava ao país que “é dever do Estado dar à família apoio e
proteção para que nela o homem recolha as sementes de sua realização
individual e os ideais de cumprir sua vocação como povo. E
entendendo na família o fio de que se tece a sociedade, encontro, na
família brasileira, a certeza de estarmos construindo, no Brasil, uma
sociedade livre e generosa.” (227)
Demonstrando o limite de alcance de todas essas mensagens, o cantor
Odair José produziu nesse período algumas canções que investiam contra
uma das bases da organização familiar: o casamento.
A balada “Vou morar com ela”, sucesso do cantor em 1971, traz um título
e um refrão que soavam como uma afronta aos ouvidos mais
conservadores: “Não suporto mais viver longe dela / não agüento mais /
eu vou morar com ela.” Ao utilizar o verbo "morar" em vez do tradicional
"casar", a canção reforçava e antecipava mudanças que efetivamente
estavam ocorrendo nas relações de família, nos costumes e
comportamentos da sociedade brasileira naquele momento.
Alguns discos depois, em 1975, Odair José voltou a defender a mesma
idéia, e agora de uma forma mais enfática, nos versas da balada “Na minha
opinião”, que na sua primeira estrofe critica o casamento religioso “é
preciso ter coragem / para acabar com esta besteira / fazer festa na
esperança / de que o amor dure a vida inteira”e, na segunda, investe
contra o casamento civil: “Na minha opinião / o importante é se querer /
assinar papel pra quê?... “
Ao longo do primeiro semestre de 1975, o senador Nelson Carneiro
percorreu o país em defesa da aprovação da lei do divórcio, e em cada lugar
que chegava ele procurava convencer a opinião pública com o argumento
de que o seu projeto era apenas um remédio destinado a tratar a doença da
infelicidade conjugal.
Os felizes, os saudáveis, dizia ele, não necessitariam deste remédio.
Curiosamente, esta mesma idéia aparecia na letra de canções como “Não
tenha medo do divórcio” (Niquinho-J. Cruz) e “Ninguém pertence a
ninguém”, gravação da cantora Claudia Barroso: “Divórcio é um simples
remédio / que cura incompreensão / pra quem não sofre de tédio / o
divórcio é apenas inovação...”
Esses argumentos, evidentemente, não convenciam os setores mais
conservadores da sociedade brasileira, principalmente os integrantes da
TFP (Tradição, Família e Propriedade), 228) que de roupas vermelhas,
cabelo à escovinha, estandartes e modernos alto-falantes saíam às ruas
defendendo a indissolubilidade do matrimônio.
Segundo relato da revista Veja, numa fria manhã de abril de 1975, em
pleno Viaduto do Chá, centro de São Paulo, vislumbrou-se até uma batalha
campal quando um grupo de estudantes de Direito da USP aos gritos de “êi
êi êi Nelson Carneiro é o nosso rei” avançou sobre cerca de 50 militantes
da TFP. Estes, porém, antes de desordenadamente baterem em retirada,
deixando para trás até a insígnia da organização, se limitaram a lançar um
esconjuro aos seus opositores: “Vade retro, satanás” (229)
Armadas dos mais diversos argumentos, as autoridades da Igreja Católica
também se mobilizaram para combater o projeto de Nelson Carneiro Em
diversas dioceses pelo Brasil afora foi divulgado o texto "Oração contra o
Divórcio", rezada após a comunhão e através da qual os católicos rogavam:
“Senhor, ajudai-nos a promover em nossas famílias e em todas as casas
de nossa pátria os sentimentos e os propósitos de união
indissolúvel.”(230)
Perante uma multidão de fiéis no sertão de Alagoas, o lendário frei Damião
Bozzano, na época com 76 anos e 44 de missão pelo Nordeste, advertia que
“o casamento só é quebrado por morte do esposo ou da esposa. Quem
deixa o casamento para casar com outro no civil entra no inferno de
cabeça para baixo.” (231)
O cantor Miguel Ângelo não se deixou intimidar pela maldição de frei
Damião e através do bolero “Divórcio não é pecado” rebateu que “é falsa
verdade quando afirmam / ser o divórcio um grande mal” e que,
portanto, “é preciso as leis do país / o divórcio permitir”.
O bolerista Lindomar Castilho também invocava o nome de Deus, porém,
para aliar-se aos setores mais progressistas da sociedade e saudar a possível
chegada do divórcio ao Brasil: “Graças a Deus tudo vai mudar / graças a
Deus / que o divórcio vai chegar...”. Faixa de seu LP “O incomparável
Lindomar Castilho”, a canção trouxe alguns aborrecimentos ao cantor,
que na época da gravação ainda não era casado. “A Igreja me criticou
muito por causa dessa música”, afirma Lindomar. “Houve uma grande
reação do clero e eu fui proibido durante muito tempo nas emissoras
de rádio controladas pela Igreja. Mas não me arrependo do que fiz,
porque eu viajava por outros países e via que o divórcio poderia ser
também uma boa medida para o Brasil. Por isso resolvi apoiar a causa
e gravar a música ‘O divórcio vai chegar’."
Apesar do otimismo de Lindomar Cascalho e do empenho de Nelson
Carneiro, ainda não foi em 1975 que o divórcio chegou ao Brasil. Embora
aprovado pela maioria dos parlamentares - foram 222 votos a favor e 145
contra - o projeto acabou sendo rejeitado por não alcançar o quórum de
dois terços dos membros da Câmara e do Senado (número exigido pela
Constituição Federal na época).
De qualquer forma, a votação a favor do projeto foi expressiva e era o sinal
de que o fim da indissolubilidade do matrimônio poderia estar próximo:
faltaram apenas 55 votos. Temeroso com esta possibilidade, o deputado e
padre José Nobre, do MDB de Minas Gerais, conclamava os fiéis da Igreja
para uma reflexão: “Pelo número, pela diferença, que não foi grande,
fico a pensar que se nós, os cristãos católicos, não tomarmos sérias
providências de profundidade para a formação da família brasileira,
creio, penalizado de ter que dizer, terá sido esta a nossa última
resistência.” (232)
E de fato, foi mesmo. Em 1977 lá estava novamente o obstinado senador
Nelson Carneiro apresentando mais uma vez o seu projeto de divórcio para
apreciação do Congresso. Desta vez, porém, as chances eram bem maiores
porque a exigência do quórum de dois terços para mudanças
constitucionais havia sido revogada pelo chamado Pacote de Abril,
outorgado naquele ano pelo presidente Geisel. Agora bastaria o apoio da
maioria dos congressistas - metade mais um - para serem aprovadas
mudanças na Constituição brasileira, fato que provocou a reação do alto
clero da Igreja Católica, que mais uma vez se mobilizou para combater o
projeto de Nelson Carneiro.
Reunidos na cidade de Santa Maria, os bispos do Rio Grande do Sul,
liderados pelo cardeal dom Vicente Scherer, enviaram um telegrama
episcopal ao presidente Geisel manifestando sua “preocupação pastoral
diante da iminência da introdução do lamentável divórcio no Brasil”.
E, de Fortaleza, o cardeal dom Aloisio Lorscheider, presidente da CNBB
(Conferência Nacional dos Bispos do Brasil), definia o divórcio como “lei
subversiva em relação à ordem natural, extremamente prejudicial ao
homem e à sua convivência social”. (233)
Como um claro protesto à visão defendida pela hierarquia católica, neste
mesmo ano de 1977 Odair José lançou sua mais polêmica e ousada
gravação: “O casamento” - tema religioso no qual o cantor defende a idéia
e que José e Maria não eram casados quando Jesus foi concebido e que,
portanto, Ele seria fruto do amor livre.
Construída em forma de diálogo, a canção tem como personagens um
padre: “Sacristão, quem são essas pessoas / e o que elas querem aqui na
minha igreja?...”; o sacristão: “José nasceu em Belém e é carpinteiro /
Maria é uma simples moça caseira / e hoje vão se casar.../ pois não
demora eles vão ser pais / e isso não pode esperar, não é?. .”; e José e
Maria: “Senhor, nos perdoe / mas não foi nossa culpa, não...”
Em Julho de 1977, por exemplo, o jornal O Dia informava que “ameaçado
de excomunhão por um padre de Campina Grande, na Paraíba, de
onde saiu às carreiras para não ser linchado, o cantor Odair José se vê
às voltas com problemas e brigas com a massa católica, que, não
concordando com a letra de sua última composição, ”O casamento”,
pretende impedir que seu disco seja tocado no Brasil inteiro, por
considerá-lo atentatório aos princípios cristãos. A música está sendo
considerada sacrílega e causando revolta em todos os meios religiosos.”
A mesma reportagem destaca que, em Campina Grande, após o show de
apresentação do novo disco, Odair José “precisou até de escolta policial
para sair do clube e voltar ao hotel, tal foi a reação do público ao ouvilo dizer que José não era casado com Maria. Ao que se sabe, o cantor
chegou a levar alguns catiripapos”. (235)
As ameaças e agressões físicas pareciam não intimidar o cantor, que
reiterava as suas críticas à Igreja – “a religião ensina muita coisa, mas
não explica direito vários pontos importantes. A história de Maria e
José é um deles, e foi por isso que resolvi ler a Bíblia para me
informar” - e prometia resistir: “Eu vou lutar para ter minha música
tocada por todos os cantos do Brasil. Vou encarar o problema nem que
seja mesmo excomungado, como o padre me ameaçou.” (236)
Embora a ameaça dos padres da Paraíba não fosse concretizada, Odair José
não teve o que comemorar. A censura que a Igreja decretou contra o seu
trabalho acabou prevalecendo. “O casamento” não frequentou a
programação de nenhuma emissora de rádio ou televisão do país - é
provável que os veículos de comunicação não quisessem se indispor
naquele momento com a Igreja e o próprio público do cantor rejeitou a
mensagem da canção, deixando seu disco encalhado nas lojas.
Registre-se que vigilantes da Igreja Católica já estavam de olho em Odair
José desde o sucesso da balada “Cristo, quem é você?”, composição de
1972 que na sua primeira estrofe questiona a instituição: “Na Sexta-Feira
Santa eu Lhe procurei / fui à Sua casa / mas lá não Lhe encontrei...”;
na segunda, a tradição: “Minha mãe dizia / filho pode esperar / Ele um
dia volta / e o mundo vai salvar...”; e no refrão, põe em dúvida a própria
figura de Cristo; “Pra onde Você foi? / cadê a Sua cruz? / venha me
dizer / quem é Você Jesus?...” (237)
Odair José não teve a audácia de decretar a morte de Deus, como fez
Nietzsche, mas ao perguntar "Cristo, quem é você?" convidava o seu
público, em sua maioria católico e conservador, à reflexão e ao
questionamento (238)
. E este aspecto da obra do artista foi percebido na época pela jornalista
Hildegard Angel, que numa reportagem intitulada “O contestador da
classe C”, destacava que Odair José, “na conjuntura atual de nossa
música popular, é o único cara corajoso o bastante para contestar
junto à classe C. A mais conservadora entre as classes. A mais apegada
aos valores criados, tabus. A última a deixar cair os preconceitos. E é
nessa classe que Odair José vende seus discos.” (239)
A análise de Hildegard Angel é interessante - principalmente no sentido de
que a linguagem crítica de artistas como Caetano Veloso ou Milton
Nascimento atingia majoritariamente um público de classe média,
universitário, progressista - , mas faço a ressalva de que Odair José não era
o único contestador das chamadas classes C ou D. Outros artistas
"cafonas", e cada qual à sua maneira, contestavam (e não apenas
endossavam) valores político-sociais vigentes.
E o processo de luta pela aprovação da lei do divórcio no Brasil é mais um
campo para se observar isto. Na época o tema mobilizava e incomodava
diversos setores da nossa sociedade. Recorde-se que a novela Despedida de
casado, de Walter George Durst, que estrearia em janeiro de 1977 na TV
Globo, foi proibida sob a alegação de que o autor pregava a dissolução do
casamento. “Os censores acharam que o tema do divórcio era uma
grave ameaça à família brasileira. Censuraram inapelavelmente a
novela e jamais nos procuraram para ver o que se podia fazer para
evitar essa medida extrema”, disse o ex-diretor-geral da Rede Globo
Walter Clark. (240)
Dos 133 países-membros da ONU em 1977, o Brasil integrava o pequeno
grupo dos seis que ainda não haviam adotado a lei do divórcio; os outros
cinco países - todos católicos - eram: Paraguai, Chile, Argentina, Espanha e
Irlanda. E segundo dados apresentados pelos membros da Campanha
Nacional Pró-Divórcio existiriam naquela época no Brasil cerca de 12
milhões de pessoas, entre desquitadas e simplesmente separadas, à espera
de solução para o seu problema.
Problema este que a cantora e compositora Claudia Barroso denunciou em
diversas canções gravadas ao longo dos anos 70. Como, por exemplo, o
bolero “Pedaço de papel”:
...VIVEMOS SEPARADOS POR CAUSA DE UM CONTRATO
QUE LHE PRENDE A OUTRO ALGUÉM
VIVER SÓ DE APARÊNCIAS É TERRÍVEL, É CRUEL
O AMOR É SÓ VERDADE E NUNCA UMA MENTIRA
DE UM PEDAÇO DE PAPEL...
Principal nome feminino desta geração de artistas "cafonas", Claudia
Barroso iniciou carreira discográfica nos anos 60, gravando canções
italianas como “Dio Come Ti Amo”, composição de Domenico Modugno
que ela lançou aqui numa versão assinada pelo jornalista Mino Carta:
“Passam nuvens no céu / que voam para o mar / parecem lenços
brancos / que choram o nosso amor / meu Deus, como te amo...”.
A cantora diz que na época o jornalista lhe avisou de que não havia feito
exatamente uma versão; apenas traduzira a letra para o português. O
público brasileiro preferiu ouvir o disco original em italiano com a cantora
Gigliola Cinquetti. Assim, a projeção nacional de Claudia Barroso só
aconteceria mesmo em 1971, com o bolero “Você mudou demais”,
composição de Waldik Soriano. A partir daí ela lançou diversos outros
sucessos: “A vida é mesmo assim”, “Quem mandou você errar”, “Ah!
Se eu fosse você”, tornando-se naquele período a principal porta-voz das
amadas-amantes, mulheres que vivem o dilema de um amor proibido pela
sociedade.
Tema que Claudia Barroso apresenta no bolero “Duas almas”: “Eu sei
que todos vão nos condenar / porém ninguém irá nos separar / não
importa o que pensem de nós dois...”. Em outro bolero a cantora
novamente confessa: “O homem que eu amo é proibido / o homem que
eu amo é casado / o homem que eu amo é combatido / por isso o nosso
amor é criticado...” (242)
A ousadia de Claudia Barroso não se limitava ao repertório cantado;
estendia-se também às suas entrevistas à imprensa. Em abril de 1972 ela
declarou ao jornal Gazeta de Notícias: “A virgindade já era. O mundo
evoluiu muito e certos tabus, como esse, deveriam deixar de existir.
Sou contra tudo isso e principalmente contra as mocinhas que insistem
em manter-se virgens.” (243)
Naquela época ninguém defendia uma opinião como esta impunemente. Os
guardiões da moralidade logo entravam em ação. O padre José Guerra
Dias, por exemplo, reclamou que para além de uma ofensa às jovens
brasileiras, a declaração da cantora foi uma “asnerice intolerável” e uma
agressão “contra a sociedade, contra a nação, contra a família”. (244)
Descartando a réplica, Claudia Barroso afirmou:
“O padre é 'Guerra' e eu quero paz”(245) - e prosseguiu cantando suas
canções de protesto amoroso, como o bolero “Mulher sem nome”,
gravação de 1976: “Me chamam de mulher sem nome / porque gosto de
um homem que tem outra mulher. / mas quantos casamentos tão
bonitos na Igreja / terminam em brigas / se desfazem em tristezas...”
Para combater idéias como esta, a Igreja transformou o feriado de Corpus
Christi de 1977, vésperas da votação do projeto de Nelson Carneiro, num
dia de mobilização nacional pela defesa do "Santíssimo Sacramento".
Cerca de 20 mil militantes católicos realizaram uma grande procissão pelas
ruas do Rio de Janeiro empunhando cartazes, bandeiras, estandartes e
insígnias que procuravam lembrar à população carioca que “o homem não
tem o direito de separar o que Deus uniu”. (246)
Em Belo Horizonte centenas de pessoas formaram no Estádio do Mineirão
a “torcida de Deus pela união da família” - e juntas com o arcebispo
João Resende Costa rogaram aos céus para que “a tentação do divórcio
desapareça do horizonte do Brasil”.(247) Manifestação semelhante em
Porto Alegre mostrava diversas faixas e cartazes erguidos por crianças com
a mensagem: “Não queremos ser órfãos de pais vivos.” (248)
Com mensagens opostas, os integrantes da Campanha Nacional PróDivórcio, em sua maioria mulheres, também se mobilizaram no feriado de
Corpus Christi, mas na capital gaúcha a Brigada Militar impediu a ação de
um grupo de militantes baseada em uma portaria do ministro da Justiça
Armando Falcão que proibia a aglomeração nas ruas.
Melhor sorte tiveram os cavaleiros da TFP, que naquele mesmo dia
ocuparam o espaço público para divulgar um comunicado de seu
presidente, Plínio Corrêa de Oliveira, que alertava a população e os
congressistas para “a gravidade dramática da decisão que será
tomada”. (249)
A mobilização dos anti-divorcistas era muito mais agressiva e visível,
dando mesmo a impressão de que a maior parte da sociedade estaria contra
o projeto de Nelson Carneiro Por via das dúvidas, o cardeal de Porto
Alegre, dom Vicente Scherer, ocupava uma cadeia de rádio e televisão
gaúcha para proclamar, entre outras coisas, que “o divórcio é o capricho
dos instintos insaciáveis”. (250)
Pelo interior do Brasil, onde a população é mais suscetível à influência da
doutrina católica, falava-se até em excomunhão para os divorcistas. Na
cidade de Bagé, por exemplo, o padre Pedro Wastowiski, além de ameaçálos com o fogo do inferno, lançava uma grave acusação num tempo de
ufanismo exacerbado. “O brasileiro que está a favor do divórcio”- dizia
ele – “é um Silvério dos Reis, um traidor, porque a estabilidade da
pátria é a estabilidade da família.” (225)
Esta associação ente pátria e família também aparece em 1977 numa
canção de autoria do cantor Cláudio Fontana. Em sentido oposto à
mensagem das canções citadas anteriormente - que apresentam valores
emergentes da sociedade - , a balada “Família, base de uma grande
nação” , como o próprio título indica, incorpora a ideologia oficial: “Ei,
você, a quem eu dei o direito de falar por mim / não deixe o divórcio
destruir meu lar / minha família, minha vida, não deixe, não...”
Observa-se, contudo, que esta letra é uma exceção no repertório "cafona" e
também um marco na história da música popular brasileira: é a primeira
cuja mensagem foi dirigida diretamente aos membros do Congresso
Nacional: “Ei você, que faz as leis do meu país / não deixe que eu seja
mais um infeliz / que vai viver na vida sem um lar../ ei, não deixe o
divórcio destruir / o que de mais lindo pode existir / a família é a base
de uma grande nação...”
Ao comentar hoje a temática desta inusitada canção, Claudio Fontana diz
que ela expressou naquele momento o seu desejo de participar do debate
nacional, já que ele compõe não apenas sobre aquilo que vive
individualmente, mas também sobre temas que estão presentes na
sociedade. “Quando a lei do divórcio ia ser votada no Congresso” - diz
ele – “eu me achei no direito de marcar um posicionamento e fazer um
apelo aos políticos do meu país. Porque essa questão de família é algo
muito forte pra mim. Os meus pais sempre foram muito unidos e eu
estou há 26 anos casado com a minha primeira mulher. E a frase que
deu título à música eu ouvia do meu pai. Ele sempre nos dizia: 'a
família é a base de uma grande nação'. Eu apenas repassei a frase do
meu pai para o disco.”
Indiferentes aos apelos do pai do compositor Cláudio Fontana, às ameaças
do padre de Bagé e às pressões da alta hierarquia da Igreja, na madrugada
de 20 de junho de 1977 os membros do Congresso Nacional finalmente
aprovaram a lei do divórcio em nosso país.
E com isso eles desagradaram também importantes setores da mídia,
notadamente o Jornal do Brasil, que, em editorial às vésperas da votação
do projeto, conclamava deputados e senadores a recusarem “uma proposta
que contraria abertamente os princípios que regem o matrimônio, o
espírito da Constituição do Brasil e as nossas mais altas tradições
jurídicas”. (252)
É interessante também observar que alguns dos mais preeminentes líderes
políticos da época - tanto do partido do governo (Arena) como da oposição
(MDB) - marcharam ao lado da Igreja na cruzada contra o projeto
divorcista: Franco Montoro, de São Paulo; Paulo Brossard, do Rio Grande
do Sul; Célio Borja, do Rio de Janeiro e, claro, todo o estado de Minas
Gerais: Itamar Franco, Magalhães Pinto, José Bonifácio, Gustavo
Capanema e Tancredo Neves, que procurou justificar a inabalável posição
dos mineiros com a idéia de que “a instituição da família em Minas
Gerais tem um sentido telúrico, sacral - trata-se de um Estado
geograficamente interior, montanhoso, fechado às inovações.” (253)
Mas as previsões mais apocalípticas sobre as conseqüências da decisão do
Congresso partiram de vozes de outros estados da federação. O deputado
Walber Guimarães, do MDB do Paraná, previu tempos sombrios sobre o
céu da pátria a partir daquele instante: “A família brasileira será
destruída pelo caos, pelo nefasto, pelo pecaminoso divórcio.”
E de Porto Alegre, através de seu programa “A voz do pastor”, um
inconformado e severo cardeal dom Vicente Scherer bradava que “as
ruínas de uma derrota e os prejuízos das guerras perdidos se
restauram rapidamente, mas as devastações do divórcio não têm
recuperação.” (254)
Distante dessa visão apocalíptica, a bolerista Luiza de Paula, expressando o
sentimento de milhões de mulheres brasileiras, saudava a aprovação do
projeto de Nelson Carneiro com sua composição “Enfim, divórcio”, que
na última estrofe da letra anuncia: “Nossos filhos vão comigo / vou vencer
se Deus quiser / no amor não se tem sócio / vou requerer o divorcio...”
De fato, a imprensa registra que poucas horas depois de se encerrar aquela
histórica sessão no Congresso, começaram a surgir nos escritórios de
advocacia do país os primeiros candidatos divorcistas.
E entre eles estava o cantor Odair José, um pioneiro da causa no campo da
música popular - , e que segundo lhe informou o advogado Haroldo Lins e
Silva, foi o quarto divorciado do Brasil. Fato que Odair José saudou na
canção “Agora sou livre”: “...livre para o que der e vier / não precisa mais
ter medo da palavra amante / pois a vida já não tem segredos / nada será
mais como antes”.
**
NOTAS BIBLIOGRÁFICAS APENSAS AO CAPÍTULO
(Conforme numeração seqüencial encontrada no texto):
**
206. Apud.Nosso século (1960-1980), op. cit., p. 276.
207. Fita cassete com a entrevista de Leila Diniz ao Pasquim. Novembro de
1969.
208. Decreto-lei publicado em Janeiro de 1970. Apud Norma Pereira Rego.
Pasquim: gargalhantes pelejas. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1996, p.
38.
209. Apud Ruy Castro. Ela é carioca: uma enciclopédia de Ipanema. São
Paulo: Companhia das Letras, 1999, p. 211.
210. Fita cassete com aaentrevista de Leila Diniz ao Pasquim. Novembro
de 1969
211. Apud Ruy Castro. Ela é carioca: uma enciclopédia de Ipanema. São
Paulo: Companhia das Letras, 1999, p. 211.
212. Verso de Obrigação de um Homem. Para outras indicações ver índice
de canções citadas em Fontes e bibliografia
213. “Eu Sou Waldik Soriano” – Manchete, 22-5-1975
214. "Waldik Soriano: 'a vida é uma constância de conseqüências de vários
gêneros, entende?” - O Pasquim, 20 a 26-6-1972.
215. Verso de Amor verdadeiro. Ver índice de canções citadas em Fontes e
bibliografia.
216. Verso de “Caminho certo”. Ver índice de canções citadas em Fontes e
bibliografia.
217. Verso de “Errei, sim”. Ver índice de canções citadas em Fontes e
bibliografia. Para maiores detalhes do duelo musical entre Dalva e
Herivelto ver João Elísio Fonseca. ”A estrela Dalva”. Rio de Janeiro:
Espaço e Tempo, 1987.
218. "Bolero de macho" - Veja, 8-4-1981.
219. "Lindomar Castilho mata ex-mulher e fere o cantor Carlos Randal" Diário Popular 31-3-1981.
220. "Casal de cantores na delegacia: Diana atacou a faca Odair José" - O
Dia, 9-12-1973.
221. Idem, ibidem. Uma outra reportagem informa que ao sair da delegacia
Diana apresentava manchas vermelhas no pescoço. "Odair José tentou
estrangular a pobre Diana" - O Jornal, 9-12-1973.
222. "O fim deste amor está na Justiça" - Amiga, 8-1-1974.
223. "Divórcio, política e Igreja" - Veja, 26-2-1975.
224. Apud Nelson Carneiro. A lufa pelo divórcio. Rio de Janeiro: São José,
1973, p. 278.
225. Verso do bolero Divórcio. Para outras indicações ver índice de
canções citadas em Fontes e bibliografia.
226. Carlos Fico. Reinventando o otimismo; ditadura, propaganda e
imaginário social no Brasil. Rio de Janeiro: FGV, 1997, p. 132.
227. Emílio Garrastazu Médici. ”Tarefa de todos nós” (livro organizado
pela Secretaria de Imprensa da Presidência da República e que reúne
diversos discursos do presidente Médici). Brasília, Departamento de
Imprensa Nacional, 1971, p. 11.
228. Organização de inspiração medieval fundada na década de 40 por
Plínio Correa de Oliveira e ligada à ala mais conservadora da Igreja
Católica
229. "L'armata aurileone" - Veja, 23-4-1975.
230. "Divórcio à vista" - Veja, 27-4-1977. Reportagem sobre a votação do
projeto de Nelson Carneiro em 1977, mas que também se refere a episódios
relacionados à votação anterior, em 1975.
231. "Divórcio, política e Igreja" - Veja, 26-2-1975.
232. LP “A história de 1975: música e informação". Rádio Jornal do Brasil
– P. 1975.
233. Divórcio à vista" - Veja, 27-4-1977.
234. "Via-sacra" - Veja, 8-6-1977.
235. "Quase linchado o cantor Odair José" - O Dia, 17-7-1977.
236. Idem, ibidem.
237. “Cristo, quem é Voce?” aparece em 1° lugar entre os compactos
duplos mais vendidos na semana de 8 a 13 de janeiro de 1973, em São
Paulo. A mesma gravação alcança o 4º lugar na relação dos 50 discos mais
vendidos no ano de 1973. Fonte: Ibope - Pesquisa sobre vendas de discos Acervo do Arquivo Edgar Leuenroth/Unicamp; Nopem - pesquisa de
mercado sobre venda de discos.
238. Registre-se que num primeiro momento a Censura implicou com a
temática de “Cristo, quem é Você?” Num parecer datado de 2 de agasto de
1972, o censor envia a composição para apreciação superior com a seguinte
observação: "Em virtude do sentido da letra afetar diretamente a assunto
religioso, opino pela sua não aprovação". Fonte: Documentos do Serviço de
Censura de Diversões Públicas - Arquivo Nacional / RJ.
239. "Odair José, o contestador da classe C" - Ultima Hora, 19-9-1975.
240. Walter Clark & Gabriel Priolli. O campeão de audiência: uma
autobiografia. São Paulo: Best Seller, 1991, p. 258.
241. Você mudou demais aparece em 1° lugar na relação dos 50 discos
mais vendidos no mês de abril de 1971. Fonte: Nopem - pesquisa de
mercado sobre venda de discos. Por problemas contratuais com a editora
musical, Waldik Soriano assinou esta composicão com o nome de Dik
Junior.
242. Verso de “O homem que eu amo”. Para outras indicações ver índice
de canções citadas em Fontes e bibliografia.
243. "Padre defende virgindade e ataca Claudia Barroso!" - Gazeta de
Notícias, 12-4-1972.
244. Idem, ibidem.
245. "Não estou pregando contra a virgindade" - Gazeta de Noticias, 13-41972.
246. "Procissões nas capitais apelam contra o divórcio" - Jornal do Brasil,
10-6-1977.
247. "Celebração reúne no Mineirão Torcida de Deus" - Jornal do Brasil,
10-6-1977
248. "O não das montanhas" - Veja, 22 -6-1977.
249. "TFP alerta contra emenda" - Jornal do Brasil, 10-6-1977.
250. "Reação em cadeia" - Veja, 15-6-1977.
251. Idem, ibidem.
252. "Fundamento Natural" - Jornal do Brasil, 15-6-1977.
253. "O não das montanhas" - Veja, 22-6-1977.
254. "Nélson, Nélson (bis)" - Veja, 29-6-1977.
(ARTISTAS POPULARES E CRÍTICA MUSICAL)
“Caetano Veloso não é artista. Ele vem com esse negócio de imitar
viado e os caras dizem que ele é um gênio. Que é isso?”
(Agnaldo Timóteo)
Nos anos 70 era assim: todo mundo pichava todo mundo. Ainda não havia
se instalado a ditadura do politicamente correto, quando todos parecem
andar sobre ovos. Antigamente, a pichação era ampla, geral e irrestrita.
Críticos, artistas, jornalistas, radialistas, apresentadores de TV, ninguém
tinha papas na língua. Que o diga Abelardo Barbosa, o Chacrinha, que
pichava Deus, o diabo e tudo o mais. “O negócio é falar, falar, falar
bastante, porque, depois de morto, você vai ter muito tempo para ficar
calado”, justificava-se o Velho Guerreiro. (255)
Um de seus alvos preferidos era Maria Bethânia - e o piche sobrava até
para as fãs da cantora. “Bethânia pensa que todo mundo calça as suas
chuteiras e fuma os seus cachimbos. Maria é frente de uma torcida
frustrada como a própria. Só no Brasil existem Bethânias.” (256)
A verve do Chacrinha não perdoava nem a si próprio, e ao abordar o
nebuloso tema do jabá nos meios de comunicação, ele foi de uma
sinceridade única: “Todo mundo leva dinheiro no disco - até eu! Levava
e continuo levando. E quem disser que não leva é mentiroso. O cara ou
leva grana ou recebe mil favores. Eu também estou incluído no rol dos
que levam alguma coisa.” (257) Mas quando Elis Regina reclamou do
baixo nível cultural dos programas de TV, responsabilizando
apresentadores como Flávio Cavalcanti e Chacrinha, este não perdoou:
“Elis Regina acusa. E quem é Elis Regina para acusar alguém? Qual é
o seu gabarito? As suas origens? A Elis é um poço de frustrações. E eu
tenho pavor de pessoas frustradas. São capazes de tudo.” (258)
Mesmo entre os próprios artistas da nossa música popular a pichação
parecia não ter limites: Waldik Soriano Fichava Gilberto Gil, que pichava
Wilson Simonal, que pichava Nara Leão, que pichava Tim Maia, que
pichava Raul Seixas, que pichava Egberto Gismonti, que pichava Paulinho
da Viola, que pichava Zé Kéti, que pichava Pixinguinha, que pichava todo
mundo. Sim, o "santo" Pixinguinha não ficou imune àquela "era do piche".
Numa entrevista ao critico Tárik de Souza, em 1970, o autor de Carinhoso
pichou, entre outros, Martinho da Vila ( “este sambinha que ele faz é a
coisa mais medíocre que existe. Ele está aproveitando, dando sua
sortezinha”); pichou Jorge Benjor ( “esse é cara de pau, francamente.
Tá dando sorte também”), e pichou até o compositor Chico Buarque (
“ele faz é boas letras. Músicas, ele não sai daquela rotina”).(259)
Havia pichadores de todos os estilos e tendências. Maysa, por exemplo, não
usava de meias palavras, e numa de suas entrevistas pichou Gal Costa
como cantora ("aqueles gritos cavernosos que ela dá me causam um certo
nojo") e Elis Regina como pessoa: “É uma mau-caráter. Mas um maucaráter no mau sentido. Mais do que isso, pois nem isso ela é, ela é uma
coitada.” (260)
Paulinho da Viola relata que, ao folhear uma daquelas antigas revistas dos
anos 70, deparou-se com uma reportagem na qual ele fazia duras críticas a
um dos responsáveis por seu lançamento na carreira, o compositor Zé Kéti,
acusando-o de falso sambista. “Eu não acreditei quando li aquilo. Por
que eu estava ali pichando o Zé Kéti? Ele só me fez o bem.” (264)
O espanto de Paulinho da Viola mostra como neste tempo do politicamente
correto soa estranha aquela "era da pichação". Mas esse foi o espírito da
época. Não se precisava de muitas razões para pichar alguém.
O que o sambista Moreira da Silva, por exemplo, poderia ter contra os
mineiros do "clube da esquina”? E, no entanto, quando lhe perguntaram o
que ele achava de Milton Nascimento, o velho Morengueira não vacilou:
“É um bom crioulo. Faz suas coisinhas, mas já está na marca do
pênalti. Não vai demorar muito e ele terá que voltar pra lavoura. Tem
que ir pra lavoura!” (265)
Mergulhado numa fase mística, e um dos mais aguerridos fiéis do Universo
em Desencanto, Tim Maia, um pichador contumaz, não aceitava
comparações entre a "verdade das verdades”, ditada pelo Racional Superior
e aquela defendida por outros gurus da música popular. “John Lennon é
uma besta, e Raul Seixas é uma cópia xerox da burrice. Eles são dois
quadrúpedes que só querem justificativa para curtir loucuras. É
vigarice das brabas!” (266)
Até mesmo o sempre cordial Chico Buarque sucumbiu ao espírito da época
e, numa entrevista de 1970, quando lhe foi pedido o nome de três pessoas
de que não gostava, ele respondeu: “Juca Chaves e o pessoal da falecida
tropicália.” (Leia-se Caetano Veloso e Gilberto Gil, naquele momento
exilados em Londres.)
Na mesma entrevista o repórter lhe perguntou se Gil e Caetano teriam
alguma chance de sucesso na Inglaterra. Chico respondeu que não, por
causa do idioma e “além disso nos cartazes de publicidade que eles
mandaram imprimir consta que foram banidos do país. Isso é ridículo,
querer vencer pela pena”. (267)
Talvez Roberto Carlos tenha sido o único artista da música brasileira a
atravessar aquela "era do piche" sem pichar ninguém. A turma do Pasquim
até que forçou a barra - "Quem que você acha pior: Wanderley Cardoso ou
Jerry Adriani?" - mas Roberto não cedeu: “É muito difícil criticar um
artista. Seria uma falta de coleguismo muito grande, uma falta de
ética. Então, eu peço a vocês que não me façam responder sobre isso.”
(268)
Em compensação, Agnaldo Timóteo pichou por ele e por todo mundo.
Entrevistado pelo mesmo Pasquim, o mineiro de Caratinga pichou, um por
um, toda a comissão de frente da MPB: João Gilberto, Tom Jobim,
Vinicius de Moraes, Chico Buarque, Milton Nascimento, Gilberto Gil e,
principalmente, Caetano Veloso, recém-chegado do exílio em Londres:
“Caetano como cantor seria gongado, pô! Vocês fabricaram o Caetano.
Caetano é uma merda! Caetano não é artista. Ele vem com esse
negócio de imitar viado e os caras dizem que ele é um gênio. Que é
isso?! Isso não existe.” (269)
A mais completa tradução desta "era do piche", a sua síntese musical, foi o
rock “Arrombou A Festa”, sucesso de Rita Lee em 1977, que começa
com uma exclamação aos céus: “Ai, ai meu Deus / o que foi que aconteceu
/ com a música popular brasileira...” Ao contrário da celebrativa “Festa de
arromba”, antiga gravação de Erasmo Carlos, que lhe serviu de mote, o
rock de Rita Lee pichava, com muita ironia, alguns ícones dos diversos
gêneros da nossa música popular de então: Raul Seixas (rock), Martinho da
Vila (samba), Odair José (cafona), Caetano Veloso (MPB), Roberto Carlos
(romântico) e o sambão-jóia de Benito di Paula que “com o amigo Charlie
Brown / revive em nosso tempo / o velho e chato Simonal...”
A mais completa tradução desta "era do piche", a sua síntese musical, foi o
rock “Arrombou A Festa”, sucesso de Rita Lee em 1977, que começa
com uma exclamação aos céus: “Ai, ai meu Deus / o que foi que aconteceu
/ com a música popular brasileira...” Ao contrário da celebrativa “Festa de
arromba”, antiga gravação de Erasmo Carlos, que lhe serviu de mote, o
rock de Rita Lee pichava, com muita ironia, alguns ícones dos diversos
gêneros da nossa música popular de então: Raul Seixas (rock), Martinho da
Vila (samba), Odair José (cafona), Caetano Veloso (MPB), Roberto Carlos
(romântico) e o sambão-jóia de Benito di Paula que “com o amigo Charlie
Brown / revive em nosso tempo / o velho e chato Simonal...”
Se o piche corria solto entre os próprios artistas, não se poderia esperar
maior comedimento dos jornalistas e críticos musicais. Eles também batiam
duro. E uma de suas principais vítimas era Waldik Soriano, que foi uma
espécie de inimigo público número um da crítica musical nos anos 70.
Quando se precisava de um exemplo de mau cantor) ou de péssimo
compositor, era infalível a citação do nome Waldik Sonano.Virou lugarcomum classificar o seu trabalho como medíocre, horrendo e insignificante.
O artista baiano colecionava uma série de críticas até sobre a sua razão de
ser e de existir. Um exemplo disto aparece em uma reportagem publicada
no diário carioca A Noticia. Ao analisar o panorama da música popular
brasileira no início daquela década, um crítico do jornal colocava “em nivel
alto, como cantora, Elis Regina” e "em nivel altíssimo, como compositores,
Vinicius de Moraes e Chico Buarque de Holanda”.
Já na outra ponta da escala ele dizia que “em nível baixíssimo, um caso de
completa cafonice, um quase banditismo, vêm Waldik Sonano, seus
boleros e seu jeito de explorador de mulheres infelizes”. E, como se não
bastasse, o mesmo crítico ainda qualificava o autor de Eu não sou
cachorro, não como um “fenômeno negativo” e um artista rude e
“machão como um cavalo”.(270)
Por essas e outras, Waldik Soriano, mais do que qualquer outro artista
"cafona" de sua geração, vai também bater forte na crítica e o bate-boca
será generalizado. Sem o mesmo espaço de que os jornalistas dispunham, o
cantor apelava para o disco (às vezes, para o braço) e gravou varias canções
rebatendo seus detratores. Em uma delas, o bolero Pedras e lixo, ele
começa até de forma amistosa; “migo que se julga um inimigo / me
pichando em toda parte / criticando a minha arte / com ironia tão
mordaz...”, prossegue em um tom mais alto “... as pedras e o lixo que
mereço / a você eu agradeço / pois essas coisas eu vou usar...”,
concluíndo o protesto com uma exortação de superioridade:
...CANTANDO DIA A DIA EU MAI SUBO
POIS A CRÍTICA É O ADUBO QUE EU USO EM MEU JARDIM
O LIXO DO SEU ÚLTIMO COMENTÁRIO
FEZ UM BEM EXTRAORDINÁRIO
BEM OU MAL FALE DE MIM
Os críticos seguiram falando e insistiam naquela associação entre Waldik
Soriano e espécies do mundo animal. Sílvio Lancelotti, por exemplo, na
revista Istoé, atribuía ao cantor uma “voz de dinossauro” e um
“moralismo tão sutil quanto uma manada de hipopótamos”. (271)
Outra associação também freqüente (e mais perigosa) era entre Waldik e o
banditismo. O nome do cantor era explorado pela mídia em manchetes
sensacionalistas de primeira página, como uma que dizia: “Vestiu-se de
Waldik Soriano para matar o inimigo” - informando o jornal que esta
era a única pista de que a polícia dispunha sobre o assassino: “Um homem
de chapéu, óculos e roupas escuras, tudo ao estilo do cantor Waldik
Soriano.”(272) Uma outra manchete alardeava: “Por causa de Waldik
Soriano quatro irmãos brigam: um morto.” (273) A reação do artista
veio através de mais canções de protesto, como o bolero Calúnias gravação
que deu título ao seu LP de 1975:
...CALÚNIAS FORAM AS ARMAS PARA DESTRUIR-ME
EU VIM DO POVO, SOU DE FAMÍLIA HUMILDE
ONDE O RESPEITO E O VALOR TÊM SEU LUGAR
CALÚNIAS, QUE DIFAMARAM E MARCARAM O MEU NOME..
O radicalismo chegava a tal ponto naquela época que até mesmo defeitos
físicos dos artistas eram arrolados na hora da crítica. O jornalista e
compositor Ronaldo Bôscoli, por exemplo, não se limitava a achincalhar a
produção musical de Nelson Ned; fazia também freqüentes e irônicas
referências ao nanismo do cantor, qualificando-o de “anãozinho ridículo”.
(274)
Fato de que Chacrinha se aproveitava para fustigar Bôscoli e, por tabela,
sua ex-esposa Elis Regina, que deve ter ficado vesga ao ler esta nota do
Velho Guerreiro: “Ora, pelo Código de Ética não se pode desdenhar,
menosprezar ou achincalhar as pessoas portadoras de defeitos físicos.
Portanto, já estava em tempo do meu querido e simpático Bôscoli não
ofender publicamente o Nelson Ned. O Bôscoli, que tanto critica os
outros e que tem recalques e frustrações, já foi casado com uma
baixinha. Não pode, de forma alguma, menosprezar o Nelson Ned,
pelos seus defeitos físicos.” (275)
Portador de um distúrbio genético com o complicado nome científico de
"displasia espôndilo-epifisária", Nelson Ned rebatia Ronaldo Bôscoli e
demais pichadores cantando sua composição Tamanho não é documento,
que fala de uma coisa, mas que pode ser outra: “Você que vive sempre a
brincar comigo / pode judiar de mim que eu nem ligo / sou pequeno,
mas meu coração é grande / bem maior do que o seu...”
Esta resposta é uma exceção no repertório de Nelson Ned, artista que, ao
contrário de Waldik Soriano, não deu muita bola para o piche ou para a
crítica, ofício pelo qual ele manifesta até um certo desdém. “O que é um
critico de música popular brasileira? O que ele tem para oferecer de
vida, de existência, a não ser analisar a obra alheia? O crítico é um
rabo de cometa: está sempre agarrado a um corpo de luz.”
E ao comentar de que maneira recebia as críticas publicadas sobre os
"cafonas" nos jornais e revistas, Nelson Ned foi ainda mais taxativo:
“O artista popular da minha linha, da linha de um Agnaldo Timóteo,
não tem que se preocupar com a imprensa. Quem tem que se
preocupar com a imprensa é Djavan, Milton Nascimento, Caetano
Veloso, Chico Buarque, porque eles vivem da imprensa; nós, não. Nós
somos cantores de AM, somos cantores do rádio, somos homens do
povo. Eu venho das massas populares; eu não fui criado nas elites de
Ipanema ou do Baixo Leblon e nem represento essa bandeira
esquerdizante, dessa linha indefinida sexualmente Eu represento o
homem brasileiro, a passionalidade latino-americana e toda a
virilidade que existe no bolero e na balada.” (276)
Descontando a forte carga de bravata, a fala de Nelson Ned chama atenção
para um fato da realidade discográfica brasileira: os cantores da MPB têm
como interlocutores privilegiados a crítica dos principais jornais e revistas
(que alcança os setores letrados da elite), enquanto os cantores "cafonas"
atingem diretamente o grande público através dos comunicadores de
emissoras AM.
"Nós vivemos do rádio; dos Haroldo de Andrade da vida", enfatiza o cantor
Luiz Ayrão. "Nos anos 70, como em todos os anos, em toda a história da
música popular, até hoje, é o rádio o principal veículo de sucesso de uma
música", afirma o produtor Miguel Plopschi.
Um exemplo concreto disto ocorreu em 1973, ano em que foram lançadas
no mercado, quase simultaneamente, duas regravações da guarânia
“Índia”, antigo sucesso da dupla paulista Cascatinha e Inhana: “Índia, teus
cabelos / nos ombros caídos / negros como a noite que não tem luar...”
A primeira regravação veio na voz do cantor Paulo Sérgio, pelo selo
Beverly, e, logo em seguida, a regravação de Gal Costa, faixa de abertura
de seu LP "Índia", pela Philips-Phonogram. Com a participação de músicos
como Dominguinhos e Toninho Horta, direção musical de Gilberto Gil e
arranjo do maestro Rogério Duprat, a gravação de Gal mereceu toda a
pompa que uma gravadora multinacional oferece aos seus artistas de maior
prestígio.
Para as fotos do luxuoso álbum de capa dupla foi convidado o badalado
fotógrafo Antônio Guerreiro, que realizou um trabalho ousado para a
época: na capa o close de uma minúscula tanga vermelho cobrindo a parte
baixa de um belo corpo feminino - o da própria Gal Costa, vestida de índia
- , e em mais duas poses na contracapa, com suas coxas, umbigo e selos à
mostra num cenário tropical.
Na semana de lançamento do disco houve um imprevisto de última hora: a
Censura implicou com a nudez das fotos da "índia" e determinou que o LP
só poderia ser vendido com a capa coberta com um plástico preto, o mesmo
usado na época para cobrir
certas revistas eróticas expostas nas bancas.
O departamento de divulgação da Phonogram vibrou com a intervenção da
Censura por acreditar que a "capa proibida" só traria maior interesse e
divulgação para o disco de Gal. Reforçando a publicidade, a gravadora
publicou nos principais jornais do Brasil outras fotos da cantora vestida de
índia à beira de um rio. Quanto ao conteúdo musical em si foi bem recebido
pela maior parte da crítica e um jornalista considerou a gravação de Índia
"o ponto mais alto" do LP de Gal Costa, destacando os "floreios tropicais"
do "genial e belíssimo" arranjo concebido pelo maestro Rogério Duprat.
(278)
Mas, apesar do elogio da crítica, da proibição da Censura, das fotos de
Antônio Guerreiro, do arranjo de Rogério Duprat e da voz de Gal Costa, a
versão de “Índia” que fez sucesso e foi ouvida e consumida pela maioria
do povo brasileiro em 1973 foi mesmo a do cantor Paulo Sérgio.
Chacrinha constatava isto numa nota de sua coluna em abril daquele ano:
“Paulo Sérgio, com Índia, dominando as paradas de todo o Brasil.”
(279) O curioso é que o cantor regravou aquela música simplesmente como
mais uma faixa (a última, por sinal) de seu LP, “Paulo Sérgio Vol. 7”, que
traz na capa o ídolo vestido de camisa de gola, jaqueta, calça boca-de-sino,
cinturão e sapatos tudo de cor branca sobre um fundo preto.
Definitivamente, a preferência do público tem razões que a própria razão e
a crítica desconhecem.
Os dois críticos de música mais polêmicos e temidos no meio artístico
brasileiro daquela época eram os senhores José Ramos Tinhorão e José
Fernandes. Havia cantor que ficava de cabelo em pé só de ouvir o nome
deles.
Cada crítico atuava numa faixa diferenciado de público e artistas. O
primeiro (militante da esquerda) tinha uma prestigiosa coluna no Jornal do
Brasil e também publicava livros sobre a história da música brasileira; o
segundo (reconhecidamente de direita) escrevia em jornais populares como
O Dia e A Notícia, e participava de programas de rádio e de televisão.
Dialogando com o público de classe média, Tinhorão debruçava-se sobre o
repertório da MPB, ignorando a produção musical "cafona" - fato que se
explica pela lógica do mercado, já que seus leitores também não ouviam
esses artistas. Falando para um público mais popular, José Fernandes
priorizava justamente aquilo que o outro crítico excluía.
Mas cada qual no seu segmento era impiedoso quando não gostava de um
disco ou de determinado artista. Freqüentemente acusados de intolerantes,
ambos eram expressões máximas daquela "era do piche" e atraíram um
ódio quase unânime dos cantores e compositores brasileiros,
José Ramos Tinhoráo direcionava sua crítica para uma batalha sem trégua
contra a influência da música estrangeira no Brasil. E nisto ele se revelava
um combatente quase obsessivo. Ao analisar um lançamento de Milton
Nascimento, ele alertava: “O engano de Milton é pensar que é
brasileiro.”
Em outra crítica ele ironicamente dizia que o cantor Belchior interpretava
suas músicas “com a desenvoltura de um texano da terra de Marlboro”.
(282) Ou mais esta: “Emílio Santiago tem boa voz, o que estraga é o
pensamento.” (283) De tanto bater na MPB, Tinhorão teve seu nome
enumerado entre cobras venenosas na letra de um samba cantado por Elis
Regina: “O Brasil não merece o Brasil / o Brasil tá matando o Brasil /
Tinhorão, urutu, sucuri...” (284)
Indiferente a isto, o crítico seguia sua cruzada nacionalista e acusava
Gilberto Gil de regravar “Marina”, de Dorival Caymmi, “numa versão
mais americana do que a do próprio bing-crosbiano lançador desse
sucesso, em 1947, o ianque-brasileiro Dick Farney.” (285) Indagado se
não seria mais conveniente ele apenas analisar a qualidade dos
compositores em vez de detectar o que as suas músicas traziam de
brasileiro ou alienígena, Tinhorão respondeu: “Pois é, mas aí eu caio
naquele luxo. Eu não posso falar da qualidade da farda ou da beleza
dos olhos do soldado invasor.” (286)
Já o outro José, o Fernandes, embora chamado de o “Tinhorão dos pobres”,
não revelava maiores preocupações nacionalistas. Seu discurso era centrado
basicamente contra a música que ele considerava ruim ou de mau gosto os
"bagulhos", como ele costumava qualificar. Duas de suas maiores
implicâncias eram com Waldik Soriano e o cantor Nelson Ned, a quem o
critico atribuía a montagem de “uma indústria para produção em massa.
É só apertar um botão e o bagulho já sai pronto”.(287)
Ao comentar a programação musical das rádios brasileiras no início dos
anos 70, José Fernandes queixava-se: “A gente tem que agüentar muito
bagulho rotulado de sucesso, como por exemplo aquela versão
medonha de ’India’, com Paulo Sérgio, e uma outra melorréia
inqualificável do Nelson Ned.”(288)
De tanto pichar os cantores "cafonas", José Fernandes foi o alvo da canção
“Recalcado”, gravação de um raivoso Waldik Soriano: “Recalcado,
recalcado / só não vê seus próprios defeitos / recalcado, recalcado...”
Além da coluna no jornal e de sua atuação como jurado de programas de
TV, José Fernandes o homem que nunca sorria também causava tremores
nas ondas curtas e médias do rádio. Diariamente na Jovem Pan de São
Paulo ele apresentava um quadro chamado "paredão", no qual era
"metralhado" todo artista popular que lançava algum disco considerado
ruim.
Em um desses programas, em 1973, o critico julgou e condenou a balada
“Aniversário de meu bem”, uma antiga composição de Roberto Carlos
regravada naquele ano pelo cantor Claudio Fontana. O veredicto foi assim
anunciado no ar pelo próprio José Fernandes (tendo a música ao fundo):
“Eu estou muito surpreendido com a ruindade desta composição,
porque é realmente um bagulho, e indigna até do nome de Roberto
Carlos. E fiz aquilo que normalmente faço com os bagulhos: coloquei
no paredão Roberto Carlos, Claudio Fontana, o ‘Aniversário de meu
bem’ e mandei brasa, e mandei fogo: ra-tá-tá-tá-tá-tá-tá-tá... (seguemse 10 segundos de um som de rajada de metralhadoras).” (269)
É sintomático que no momento de maior repressão política da ditadura
militar, com o país marcado pela censura, terror de Estado e ação de
guerrilhas, artistas populares sejam também "metralhados" através dos
meios de comunicação. Aquele era realmente um tempo de guerra, e a luta
se expressava em várias trincheiras. O "paredão" de José Fernandes era
apenas mais um sintoma do clima de radicalismo e autoritarismo vivido
pela sociedade brasileira naquele momento histórico.
Outro quadro musical bastante representativo da época era encenado no
Programa Flávio Cavalcanti, nas noites de domingo, na TV Tupi. Ali, ao
vivo e a cores para todo o Brasil, o apresentador manifestada sua fúria
quebrando, literalmente, os discos de vinil que ele considerava de baixa
qualidade musical.
“Waldik Soriano não vale nada. Artisticamente, não existe. É preciso
que isto seja dito. Não devemos glorificar o que não existe”, bradava o
polêmico apresentador antes de quebrar mais um disco do artista baiano.
“Se neste país as coisas fossem feitas com mais seriedade, Waldik não
passaria de um cantor de rádio do interior.”(290) E plec, ploc... Quase
todos os cantores "cafonas" tiveram seus LPs quebrados no palco de Flávio
Cavalcanti.
Digo quase, porque Agnaldo Timóteo, por exemplo, afirma não ter passado
por esse vexame. “Ele nunca quebrou disco meu, mesmo porque eu
tinha fama de muito bravo. Você sabe, né? Naquela época eu dava tiro
e tudo o mais. E as pessoas ficavam muito cabreiras comigo. Certa vez
eu invadi o programa do J. Silvestre e queria dar porrada em todo
mundo, fiz um escândalo medonho. Eu era meio bicho do mato; hoje
sou diplomático.”
Sem o mesmo temperamento de Timóteo, e cansado de ser "quebrado" por
Flávio Cavalcanti, o cantor Paulo Sérgio reagiu compondo “Minhas
qualidades, meus defeitos”, canção de protesto contra o apresentador e
demais formadores de opinião pública: “Sei que minhas qualidades
cobrem meus defeitos / não é direito você querer pôr todos contra
mim...”
O mínimo que os críticos diziam sobre os "cafonas" é que eles produziam
uma sub-música, comercial e popularesca, para diversão das massas. Mas
este compromisso com o mercado e a necessidade do sucesso comercial é
enfatizado pelos próprios artistas. “Eu me tornei um cantor também pela
necessidade econômica”, afirma Nelson Ned. “Eu creio que todos da
minha época não tinham estudo nem profissão, então a alternativa era
a música.”
Claro, todos de sua época e de sua origem social, como o compositor
Nenéo, que também evoca a carreira musical como um meio de ascensão
econômica: “Me lembro que eu engraxava sapatos na Praça Saens Pena
quando comecei a me dedicar à música, que era o único caminho que
eu podia seguir para ganhar dinheiro e ajudar minha família. Eu
queria fazer uma casa para mim e meus irmãos. Eu tinha este sonho.”
Em 1973, às vésperas da gravação de seu primeiro LP, a cantora gaúcha
Ana Paula que não alcançou grande sucesso na carreira - dizia: “Meu
objetivo principal é me realizar artística e financeiramente. Sobretudo
financeiramente. Não por mim, mas por meus pais. Quero ter alguma
coisa na vida para poder dar a eles o conforto que nunca tiveram.”
(291)
Agnaldo Timóteo também expressou desejo semelhante ao participar de um
programa de rádio em 1966, um pouco antes de se tornar um artista de
sucesso nacional. “Eu desejo que Deus me dê bastante sorte na carreira
e que eu consiga ganhar pelo menos o suficiente para dar um conforto
à minha mãe e a todos os meus familiares. O sonho da minha vida é
comprar uma casa muito bonita para mamãe e um automóvel para
meu irmão, que tem uma oficina, e um pra mim também. Enfim, eu
desejo que Deus me ajude a ganhar dinheiro para eu dar uma
cobertura a toda a minha família.” (292)
Em um país marcado pela desigualdade social, carência na educação e falta
de oportunidades iguais para todos, a carreira musical, como também a do
futebol, torna-se um dos poucos meios de ascensão social para uma legião
de jovens oriundos dos baixos estratos da população. E isto se reflete no
discurso e no compromisso comercial dos artistas "cafonas".
Para a maioria deles outra alternativa não existia: era o sucesso musical ou
a caixa de engraxate Mas ainda hoje, depois de 30 anos de carreira e com
uma coleção de composições de sucessos na voz de diversos cantores
populares, o ex-engraxate Nenéo confessa: “Eu sou um cara que precisa
vender discos, senão as pessoas me desprezam.”
Já o discurso dos cantores da MPB é diferente. Filhos da classe média, a
maioria de formação universitária, eles procuram enfatizar que estão na
música por idealismo e vocação artística, não por sucesso ou riqueza. O
cantor Ivan Lins, por exemplo, na fase inicial da carreira, afirmava a sua
disposição de não fazer concessões à máquina de consumo. “Não estou
preocupado em ganhar dinheiro, em vender disco, pois acredito muito
mais na qualidade de um trabalho.” (293)
Na época cultivando uma imagem de rebeldia frente à indústria
fonográfica, o cantor Fagner também declarava seu total desinteresse pelos
aspectos meramente comerciais da produção artística: “Componho,
converso, penso e vou seguindo, sem grandes grilos com dinheiro.”
(294) Gonzaguinha manifestava o mesmo desprendimento ao dizer que
procurava criar uma música de qualidade e acessível ao grande público.
“Não faço isto por dinheiro ou sucesso. Quero apenas comunicar uma
determinada experiência a um número maior de pessoas.” (295)
Entrevistados em conjunto, Danilo Caymmi e Toninho Horta também
diziam rejeitar a lógica de consumo que domina o mercado capitalista “Nos
recusamos a participar desse esquema, não abriremos mão. O que nós
queremos é um trabalho integro.” (296) E o arquiteto e cantador baiano
Elomar afirmava que o seu primeiro LP lançado pela Philips em 1973, era
“uma pequena contribuição à cultura brasileira. Não é uma música
comercial, para consumo, mas um trabalho artístico, cultural,
vinculado ao ambiente, de profundas raízes históricas “ (297)
Todos esses artistas de formação universitária pareciam levar ao pé da letra
a expressão "disco é cultura", que vinha estampada nas capas dos LPs
naquela época. Talvez por isso mesmo o compositor Belchior iniciava a
canção Como nossos pais com a frase: “não quero lhe falar, meu grande
amor / das coisas que aprendi nos discos...”
Assim como os livros, os discos eram entendidos agora como veículos
transmissores de cultura, conhecimento e conscientização. Como bem
observou a jornalista Ana Maria Bahiana, além de negar a interferência da
“máquina" em seu trabalho, esta geração de cantores/compositores
acreditava poder exercer, com suas canções, “uma missão educadora do
povo brasileiro, acostumando-o a padrões mais complexos de audição e
consumo.” (298) Semelhante era a expectativa da crítica musical que é
também de formação universitária e julga a produção popular sob a ótica de
seu meio social. O crítico Marcel Delon, por exemplo, ao comentar o
lançamento de um disco da cantora romântica Joelma, dizia: “Trata-se de
música que não informa nada, não ensina nada, não educa nada,
porque realmente contém pouca coisa, servindo apenas para embalar
corações e mentes menos exigentes.” (299)
E, ao analisar outros três lançamentos "cafonas", o crítico batia na mesma
tecla: “Analisar o quê? Adianta alinhar mil argumentos mostrando que
discos como esses não têm qualidade artística, não trazem contribuição
de espécie alguma para melhorar nossa já sofrida cultura e
desenvolvimento musical.” (300)
Nas representações do campo artístico-fonográfico destacam-se a
existência de dois grupos de cantores/compositores: aqueles considerados
de "prestígio" que dão status à gravadora e alimentam sua imagem de
produtora de objetos culturais e aqueles considerados meramente
"comerciais" que dão retorno financeiro grande e imediato.
Observa-se, contudo, que para os primeiros realizarem os seus discos
artísticos e exercerem a pretendida "missão educadora do povo brasileiro" é
necessário o respaldo financeiro proporcionado pelas vendagens dos
segundos, aqueles dos discos que não "ensinam nada". Afinal, numa
sociedade capitalista, o que move uma indústria como a fonográfica liderada no Brasil pelas companhias multinacionais - é o dinheiro.
Gravadora existe para vender disco e render lucro aos acionistas, não para
educar o povo.
Assim, a manutenção de um elenco de cantores de "prestígio", em quase
todas as gravadoras do Brasil, tem sido financiada pela grande quantidade
de vendas dos cantores "comerciais". João Gilberto, por exemplo, talvez só
tenha conseguido liberdade de criação para gravar seu primeiro disco de
bossa nova na Odeon, em 1958, porque lá existia um outro cantor baiano
chamado Anísio Silva, que com seus boleros sentimentais chegou a vender
na época a fabulosa marca de 2 milhões de discos. (301) Não fosse isso,
provavelmente a Odeon não tivesse arriscado estúdio e capital com um
disco de um cantor excêntrico, desconhecido e de pouco apelo comercial
Na Phonogram, ao longo da década de 70, faziam parte da "faixa de
prestigio" nomes como Chico Buarque, Caetano Veloso e Elis Regina (selo
azul, Philips), e da "faixa comercial" cantores como Odair José, Marcus
Pitter e Evaldo Braga (selo vermelho, Polydor). Da mesma forma, a
gravadora RCA tinha numa faixa João Bosco e Ivan Lins, e na outra
cantores como Waldik Soriano e Lindomar Castilho. No fim dos anos 60,
Agnaldo Timóteo era provavelmente o maior vendedor de discos da Odeon.
E começando a carreira lá também estavam Milton Nascimento e Paulinho
da Viola. “Mas eles só permaneceram na gravadora porque eu e os
outros cantores populares vendíamos o suficiente para que eles
ficassem lá”, acredita Timóteo. “Mais tarde Paulinho da Viola e Milton
Nascimento fizeram sucesso, porque são artistas talentosos, mas tanto
eles quanto Gonzaguinha só continuaram na Odeon naquela época
porque eu e os outros cantores populares vendíamos muitos discos. Nós
sustentávamos esses artistas na gravadora.”
Outro campeão de vendagem da Odeon nos anos 70, o cantor Luiz Ayrão,
credita papel semelhante para seu trabalho. “Do meu sucesso comercial
dependia o pagamento dos funcionários da gravadora, o Natal do
vendedor e os discos do Milton Nascimento. Era do nosso dinheiro, do
pessoal popular, que a gravadora pôde investir milhões e milhões de
cruzeiros em discos de Milton Nascimento. Discos que eram lançados,
recebiam todos os elogios da crítica mas que vendiam dois, no ano
seguinte vendiam cinco, no outro, três. Quem patrocinava isto? O
pessoal que vendia discos: eu, Agnaldo Timóteo, Fernando Mendes,
Reginaldo Rossi, Fevers e outros.”
É óbvio que há um certo exagero nas falas de Timóteo e Luiz Ayrão,
mesmo porque, abrigando um leque de tendências musicais e culturais
muito diversas, a MPB obteve, ao longo da década de 70, uma ampliação
de seu mercado consumidor, rompendo paulatinamente os limites do
público estritamente jovem e universitário.
Ainda assim, o ponto central da fala dos dois encontra respaldo em estudos
sobre a indústria fonográfica e em depoimentos de artistas da própria MPB.
O compositor Márcio Borges, por exemplo, em seu livro de memórias
sobre o "clube da esquina", relata que na época da gravação do primeiro LP
de Milton Nascimento na Odeon, o então diretor da gravadora, Milton
Miranda, garantiu aos músicos: “Nós temos os nossos artistas comerciais.
Vocês, mineiros, são nossa faixa de prestígio; a gravadora não
interfere. Vocês gravam o que quiserem.” (303)
E Márcio Borges afirma que esta autonomia foi respeitada durante todo o
período em que eles permaneceram na Odeon. Outro nome de prestígio
daquela gravadora, o compositor Francis Hime, ao lançar seu LP em 1973,
também gabava-se de ter feito um trabalho musical sem nenhuma
preocupação com o lado comercial “Nesse disco eu tive completa
liberdade para fazer a música como bem entendesse, sem interferência
da gravadora.” (304)
A base sobre a qual repousava esta autonomia adquirida pelos artistas da
MPB foi expressa por Caetano Veloso em um texto escrito pouco depois do
lançamento simultâneo de seus dois LPs, "Jóia" e "Qualquer coisa", em
1975. Ali, Caetano argumentava que “para que alguém possa fazer
'Qualquer coisa' assim como 'Jóia' é preciso que as gravadoras tenham
Odair José e Agnaldo Timóteo. O universitário que tenta me
entrevistar e salvar a humanidade fica indignado diante do meu
absoluto respeito profissional e interesse estético pelo trabalho de
colegas como Odair e Agnaldo”.
Com o título de "Mil tons", o texto de Caetano Veloso era na verdade
dedicado ao trabalho que o autor de Travessia realizava naquele momento.
“A história da música brasileira de hoje é assinada por Milton
Nascimento”, enfatizava Caetano. (305)
Mas ao evocar a importância de cantores populares como Agnaldo Timóteo
e Odair José em um texto de louvação a Milton Nascimento, Caetano
estava sugerindo que para investir na produção de discos tão elogiados pela
critica como "Clube da Esquina" e "Minas", a indústria fonográfica
precisava do lastro proporcionado pela vendagem de discos como "Galeria
do amor", "Eu pecador" e "Pare de tomar a pílula".
É indispensável notar, entretanto, que esta autonomia dos artistas da MPB
era limitada por seu próprio público, como demonstra o episódio
envolvendo o LP de Caetano Veloso, “Áraçá azul", que na época bateu
recorde de devoluções às lojas.
Caetano gravou aquele disco estimulado pelo polêmico Cabeça,
trabalho de Walter Franco lançado no FIC de 1972. Disposto a não
perder a posição de vanguarda na linha evolutiva da MPB, o
compositor baiano se trancou com dois técnicos num estúdio em São
Paulo, produzindo e improvisando, durante uma semana, diversos sons
e palavras. “Araçá azul" era um disco aguardado com certa expectativa
porque seria o primeiro LP gravado por Caetano no Brasil depois de sua
volta do exílio em Londres. Concluído o trabalho, a gravadora lançou uma
tiragem inicial de 30 mil cópias - média de vendagem de Caetano na época
- e o público comprou na expectativa de encontrar novas canções ao estilo
de Alegria, alegria, Irene ou Atrás do trio elétrico. Qual não foi a surpresa
ao se deparar com um LP experimental, repleto de grunhidos, vozes
superpostas, sons de prato com garfo, buzinas de automóveis e canos de
descarga - e com uma sutil advertência na parte interna da capa: "Um disco
para entendidos."
O problema é que quase ninguém entendeu e provocou um fato inédito na
história da nossa música popular: uma grande quantidade de pessoas voltou
às lojas para devolver o disco - e não por algum defeito técnico do produto,
mas por rejeição ao seu conteúdo. Pressionada pelos lojistas, a Phonogram
se viu forçada a receber - e depois dissolver as bolachas pretas dos LPs - já
que devoluções não podiam ser revendidas pela gravadora.
Procurando encarar o fato com naturalidade, Caetano afirmou na época que
“Araçá azul" não era mesmo disco “pra ser comprado, nem mesmo pra
ser vendido, ele foi apenas muito bom de fazer.” (306) Pode ser, mas
nunca mais ele repetiu a experiência, e a autonomia do artista de “prestígio"
teve o seu limite testado e estipulado pelo próprio público consumidor
O sinal verde que Caetano Veloso obteve da Phonogram para gravar
“Araçá azul" foi fechado para Odair José quando este, em meados dos anos
70, também resolveu fazer um trabalho ousado e diferente do que ele fazia
até então: uma ópera-rock de protesto religioso. “A Igreja é como uma
vidraça, que deixa ver a chuva do outro lado mas não deixa que a gente
estique o braço para sentir a água", filosofava Odair José na época.(307)
Influenciado pelos livros do místico árabe Gibran Kalil Gibran, e pelos
discos de Joe Walsh, Humble Pie, Jeff Beck e Peter Frampton, Odair José
imaginou um álbum conceitual com dez canções ligadas por um mesmo
tema: o nascimento, vida e morte de um jovem pederasta - o filho de José e
Maria - que após longo processo de solidão e rejeição social, assume a sua
sexualidade e, aos 33 anos, encontra a plenitude e a felicidade. O texto faria
uma livre adaptação da história de Cristo para os dias atuais.
E, segundo o autor, o protagonista das canções do disco seria um “Clóvis
Bornay, você me entende? Uma pessoa de vida sexual muito livre”.
(308)
Esta mistura de Clóvis Bornay com Jesus Cristo pareceu confusa e muito
perigosa aos olhos da direção da Phonogram que, já escaldada pelo
episódio de “Araçá azul', se recusou a realizar o projeto, ainda mais porque
o "cantor das empregadas" pretendia sonorizá-lo numa batida de puro
rock'n'roll.
“É rock mesmo o que eu quero fazer agora. Uma coisa mais jovem,
mais pra fora, mais alegre. Quero ser eu mesmo, mas fazendo aquele
sonzão inglês, de guitarras, do Peter Frampton, que ninguém fez até
agora no Brasil, e acho que a platéia já deve estar a fim de ver isto”,
acreditava na época Odair José. (309)
A família, os amigos, os disc-jóqueis, a direção da gravadora e até as
próprias empregadas domésticas, todos aconselharam Odair José a não
embarcar na aventura da ópera-rock; afinal, até aquele momento da
carreira, cantando suas baladas românticas, ele já havia vendido cerca de
três milhões de discos, (310) e qual artista popular, com tamanho capital de
público, ousaria ou ousou arriscar uma mudança tão radical? Talvez só
mesmo os Beatles com o álbum "Sgt. Pepper's Lonely Hearts Club Band",
ainda assim testando o público antes com canções como Eleanor Rigby e
Strawberry Fields Forever.
Odair José, entretanto, bateu pé firme pelo projeto – “estou só querendo
melhorar o nível do público brasileiro” (311), e se transferiu para a
gravadora RCA que, como uma forma de atrair o artista para o seu elenco,
aceitou fazer o projeto que a concorrente recusara. Animado, Odair José
contratou um novo empresário, o tropicalista Guilherme Araújo, e alugou
teatros (em vez de clubes) para a realização dos shows do novo disco.
Com direção artística de Durval Ferreira e o próprio Odair José tocando
guitarras, violão e piano, o álbum “O filho de José e Maria” chegou ao
mercado em maio de 1977, trazendo na capa o cantor-personagem com
uma auréola sobre a cabeça e, na contracapa, ele sentado em uma mesa
com diversos instrumentos musicais e, bem no meio, um cálice e um
pedaço de pão, como na Ultima Ceia. “Eu agora sou bem diferente / não
se assustem e nem se preocupem...”, adverte Odair José na faixa de
abertura do novo disco. (312)
E, no lado B, o filho de José e Maria oferece: “Beba um pouco do meu
vinho / coma um pedaço de pão / tome um pouco de carinho / vem
curar a solidão...” (312)
A primeira reação contra o LP partiu de setores da Igreja, que não
toleraram essa história mundana repleta de referências aos signos cristãos.
O álbum foi considerado sacrílego e atentatório aos princípios da Santa
Madre Igreja. Alguns padres chegaram mesmo a ameaçar Odair José de
excomunhão, especialmente por causa da letra da música “O casamento”,
na qual (como já vimos no capítulo Capricho dos instintos insaciáveis),
ele defende a idéia de que José e Maria não eram casados quando Jesus foi
concebido. Aliás, o personagem de José foi o foco de preocupação do autor
na gênese do projeto do disco:
“Se você perceber bem verá que na história de Jesus sempre aparece a
mãe, nunca o pai. E eu cobrava isto no disco. Ninguém reza pra São
José, é sempre pra Nossa Senhora. A minha bronca era essa. Cadê a
história do pai de Jesus? Eu não entendo isso até hoje e acho que só
mesmo Ele, o filho, algum dia poderá me explicar. Eu quero saber
onde entra José nessa história. Fala-se muito em Deus, em Nossa
Senhora, em Jesus. Mas cadê o pai desse moço? Por que não se fala
dele? Ele não existe? O questionamento que eu fazia era este. E o
personagem do meu disco se perde na vida justamente porque não tem
a presença do pai.”
Para além de preocupações metafísicas, o que motivou Odair José a realizar
este disco e tentar uma virada na carreira foi talvez o acalentado desejo de
participar do circuito cultural, adquirir prestígio, pegar uma ponta da "linha
evolutiva" da música popular brasileira e ser aceito pela intelectualidade, o
público universitário e a crítica musical.
O problema é que estes segmentos da sociedade brasileira torciam mesmo o
nariz para cantores populares como Odair José e também não estavam
preocupados em resgatar a figura de São José ou qualquer outra do
cristianismo. Num contexto de valorização da cultura negra, os nossos
intelectuais se interessavam muito mais pelos cultos afro-brasileiros e suas
divindades e líderes espirituais mais representativos - tema que os artistas
da MPB souberam explorar até a exaustão em canções como Canto de
Ossanha (Baden-Vinicius), Oração de Mae Menininha (Dorival Caymmi),
Fesfa de umbanda (Martinho da Vila), Meu Pai Oxalá (ToquinhoVinicius), Iansã (Caetano Veloso-Gilberto Gil), Guerreira(João NogueiraPaulo César Pinheiro) e diversas outras. O interesse por Jesus Cristo era
coisa mesmo de cantores mais populares e fora do círculo da
intelectualidade, como Roberto Carlos, Antonio Marcos, Claudio Fontana,
Nelson Ned e Odair José.
O fato é que, combatido pela Igreja, desprezado pela crítica e ignorado pelo
público que rejeitou - ou não compreendeu a mensagem do disco - , “O
filho de José e Maria” acabou tendo o mesmo destino de "Araçá azul": as
milhares de cópias de seu vinil foram recolhidas e depois dissolvidas na
fábrica da gravadora. “O melhor trabalho que eu fiz na minha carreira
foi aquele”, enfatiza hoje Odair José. “Eu sei que com aquele disco eu
me afastei do público, eu tenho consciência disto, mas é um trabalho
muito bonito e musicalmente muito bom. O problema é que ele estava
à frente de seu tempo, porque eu tinha certeza que mais cedo ou mais
tarde aquele estilo de som de Peter Frampton iria acabar acontecendo
no Brasil. O que fizeram depois Lulu Santos, Engenheiros do Hawaii e
Paralamas do Sucesso? Tudo isto é imitação de Peter Frampton e eles
sabem disso.”
No ano seguinte, 1978, procurando recuperar a massa de público perdida e
desfazer a complicação em que se metera, o novo disco de Odair José veio
com o singelo título de “Coisas simples”, e nas suas 12 faixas, em vez de
preocupações com São José ou Jesus Cristo, o cantor focalizava temas do
cotidiano como o amor, a violência, a saudade e o sexo.
E, numa das canções mais animadas do disco, ele exaltava a graça, a
beleza, o charme e o veneno do grupo vocal As Frenéticas, num claro sinal
de que aquela "era do piche" caminhava para o fim e as relações entre os
artistas passariam a ser bem mais amistosas e neutras: “Oh frenéticas /
dancin'days / não sei se são sete / não sei se são seis / oh frenéticas /
dancin'days / não sei se são sete / não sei se são seis...”
NOTAS BIBLIOGRÁFICAS APENAS AO CAPÍTULO
(Conforme a numeração seqüencial encontrada no texto):
255. "Chacrinhando” - (Jornal do Chacrinha) - A Notícia, 9-7-1973.
256. "Só aqui" (Jornal do Chacrinha) - A Noticia, 29-6-1973.
257. "Todo mundo leva" (Jornal do Chacrinha) ~ - A Notícia, 23-4-1973.
258. "E ela acusa" (Jornal do Chacrinha) - A Noticia, 18-9-1973. As
críticas de Elis Regina à programação de TV estão na reportagem "Sem
censura: as confissões de Elis Regina" - O Cruzeiro, 12-9-1973
259. Tárik de Souza & Elifas Andreato, op. cit, pp. 234-235.
260. "Esta é a Maysa de todos nós" - O Pasquim, Nº 2, julho de 1969.
261. "Elis" - O Pasquim, n.° 15, Outubro de 1969.
262. “A MPB levanta vôo” - Manchete, 4-9-1976.
263. "Simonal: 'Não sou racista"'. - O Pasquim, n° 4, julho de 1969.
264. Em conversa com o autor em 7-10-1992, antes de uma entrevista para
um outro trabalho sobre música popular. O piche a Zé Kéti aparece na
reportagem "Paulinho da Viola no vale-tudo: o samba puro nunca existiu" Intervalo, n.° 365, Janeiro de 1970.
265. "Morengueira dá o serviço" - O Pasquim, 15 a 21-5-1973.
266. "Tim Maia agora é guru" - Pop, Janeiro de 1975.
267. "Nossa televisão é uma palhaçada" - Ultima Hora (SP), 28-6-1970.
268. "Roberto Carlos" - O Pasquim, 7 a 13-10-1970.
269. “Agnaldo Timóteo (de Caratinga)" - O Pasquim, 21 a 27-11-1972.
270. "Com licença da cafonice" - A Noticia, 14-5-1971.
271. "Discos" - Isto É, 11-5-1977.
272. "Vestiu-se de Waldik Soriano para matar o inimigo" - A Noticia, 2010-1972.
273. "Por causa de Waldik Soriano quatro irmãos brigam: um morto" Diário da Noite, 3-11-1975.
274. Conforme relato de Nelson Ned na reportagem "Minha pequena é
melhor que Elis" ”Intervalo, Nº 421, Fevereiro de 1971.
275. "Não pode" - (Jornal do Chacrinha) - A Noticia, 2-4-1973.
276. Programa Show da Madrugada - Rádio Globo, 24-8-1991.
277. O crítico Tárik de Souza expressa opinião semelhante. "Os disquejóqueis são, sem dúvida, os maiores responsáveis pelo sucesso de uma
música (vide casos de Claudia Barroso, Waldik Sonano, Nelson Ned,
Claudio Fontana etc.) E inclusive o mecanismo disso é lógico: de todos os
meios de comunicação, eles são os que lidam com o veículo mais adequado
ao disco: o rádio. Até a televisão sofre uma influência descaracterizadora
que é a imagem. A imprensa então, nem se fala. Para que você consiga
induzir um leitor a comprar, é preciso muitos milhões de palavras,
enquanto que o radialista lida do produtor ao consumidor". Apud Othon
Jambeiro. Canção de massa: as condições da produção. São Paulo:
Pioneira, 1975, p. 126.
278. "Legal e Índia: a Gal de 70, já perfeita" - Jornal da Tarde, 4-4-1983.
279. “A verdade nua e crua"- (Jornal do Chacrinha) - A Notícia, 19-4-1973.
Sucesso nacional, a gravação de Índia com Paulo Sérgio aparece em 1°
lugar entre os discos mais vendidos na semana de 5 a 11 de março de 1973
em Recife. Fonte: Ibope - Pesquisa sobre vendas de discos - Acervo do
Arquivo Edgar Leuenroth / Unicamp.
280. Um documento do CIE (Centro de Informações do Exército), datado
de 17 de novembro de 1971, alertava que, através de noticiários maldosos e
infamantes, determinados setores da imprensa procuravam atingir a honra
de figuras do meio artístico "que se uniram à Revolução de 1964 no
combate à subversão e outros que estão sempre dispostos a uma efetiva
cooperação com o governo". Encabeçando a lista dos supostos
colaboradores atingidos pela mídia aparece o nome de José Fernandes,
seguido do de Wilson Simonal (Informação número 2755/S-103.2 - CIE).
Apud Inimá Simões. "Nunca Fui Santa (episódios de censura e
autocensura)". In A TV Aos 50: criticando a televisão brasileira no seu
cinqüentenário. Esther Hamburger & Eugênio Bucci (org.) São Paulo:
Fundação Perseu Abaramo, 2000. p. 78.
281. "O engano de Milton é pensar que é brasileiro" - Jornal do Brasil, 238-1977.
282. “A alucinação (infantil) de Belchior" - Jornal do Brasil, 16-6-1976.
283. "Emílio Santiago tem boa voz, o que estraga é o pensamento" - Jonzal
do Brasil, 2-11-1979.
284. Verso de “Querelas do Brasil”. Para outras indicações ver índice de
canções citadas em Fontes e bibliografia.
285. “Realce traz de volta o internacional Gilberto Gil ('oh, yeah!')" - Jornal
do Brasil, 23-8-1979.
286. "Tinhorão é uma planta? É um bicho? Não, é o supercrítico da MPB" Manchete, 23-6-1979.
287. "Ficou na intenção" - A Notícia, 6-4-1973.
288. “A superparada" - A Notícia, 8-6-1973.
289. CD "Histórias que o rádio não contou: da galena ao digital,
desvendando a radiodifusão no Brasil e no mundo" - Harbra - P. 1998.
290. "Waldik Soriano esnoba o programa de Flávio Cavalcante: 'Só vou lá
por 20 mil"'. Intervalo, Nº 433, abril de 1971.
291. “Ana Paula: a gauchinha que persiste e não desiste" - A Notícia, 24-71973.
292. LP "Música e alegria Kolynos" - Programa Nº 1002 - Odeon - P.
1966.
293. "Ivan Lins: as coisas acontecem cada vez menos em nossa música" - A
Notícia, 24 11-1973.
294. Apud Rita C. L. Morelli. Indústria Monográfica: um estudo
antropológico. Campinas: Ed. Unicamp, 1991, p. 173.
295. Apud. Ana Maria Bahiana. “A ‘linha evolutiva' prossegue - a música
dos universitários". In Anos 70 - música popular. Rio de Janeiro: Ed.
Europa, 1979-1980, p. 33.
296. "Cinco tentam sobreviver fazendo música pela música" - A Noticia,
21-8-1973.
297. “Elomar: prefiro enfrentar uma onça na caatinga a um táxi na GB" - A
Notícia, 28-8-1973.
298. Ana Maria Bahiana, op. cit., p. 32.
299. “Joelma, sem compromisso" - A lNoticza, 8-2-1973.
300. "Facilidade de gravar" - A Noticia, 17-8-1973.
301. No inicio dos anos 60 a gravadora Odeon lançou uma coletânea de
sucessos de Anísio Silva com o título "Dois milhões de discos vendidos".
302. Na época, os discos de Timóteo apareciam com muita frequência na
lista dos mais vendidos. O seu LP "O sucesso é Agnaldo Timóteo" ocupa o
1º lugar em vendagem na semana de 2 a 7 de dezembro de 1968, no Rio.
No ano seguinte o LP “Agnaldo Timóteo comanda o sucesso”, também
aparece em 1° lugar na semana de 17 a 22 de novembro. Fonte: Ibope Pesquisa sobre vendas de discos - Acervo do Arquivo Edgar Leuenroth /
Unicamp.
303. Márcio Borges, op. cit., p. 209. No campo acadêmico isto é
confirmado num trabalho que Márcia Tosta Dias realizou sobre a indústria
do disco. Utilizando a distinção entre artistas de marketing ("comerciais") e
artistas autênticos ("prestigio"), ela afirma que "segundo a lógica dos
empresários, o mercado consumidor de produtos de marketing deve
financiar a permanência de artistas autênticos (...) considerando o alto custo
destes últimos e o retorno, a médio prazo, dos investimentos". A autora
enfatiza que "são os produtos dos artistas de marketing que movem a
grande indústria fonográfica". Ver Márcia Tosta Dias. Os donos da voz:
indústria fonográfica brasileira e mundialização da cultura. São Paulo:
Boitempo, 2000, p. 90.
304. "O som terno e livre da música de Francis Hime" - A Noticia, 1-121973.
305. Caetano Veloso. "Mil tons". In Waly Salomão (org.). Alegria, alegria.
Rio de Janeiro Pedra Q Ronca, s.d. p. 174.
306. “Araçá Azul” - um fracasso de vendas?" - Jornal do Brasil, 30-9-1973
307. "Quase linchado o cantor Odair José!' _ O Dia, 17-7-1977.
308. "Odair José está mudando? - O Globo, 7-12-1976.
309. Idem, ibidem.
310. Números fornecidos pela reportagem "Depois de três milhões de
discos Odair José troca a cama, o cabaré e a pílula pelo rock'n'roll" - Ultima
Hora, 14-5-1977.
311. "Odair José está mudando?" - O Globo, 7-12-1976.
312. Verso de Nunca mais. Ver índice de canções citadas em Fontes e
bibliografia.
313. Verso da canção De volta às verdadeiras origens. Ver índice de
canções citadas em Fontes e bibliografia.
(RELAÇÕES ENTRE O "CHIQUE" E O "CAFONA")
“Não há nada mais Z do que um público classe A.”
(Caetano Veloso)
No Brasil pós-tropicalista o "chique" e o “cafona" se aproximaram várias
vezes, se tocaram, se misturaram e até mesmo se beijaram. A protagonista
de um desses momentos foi uma dama da alta sociedade carioca, a
badaladíssima senhora Beki Klabin. Num tempo em que as chamadas
emergentes ainda não haviam conquistado espaço, Beki reinava como a
rainha das colunas sociais e a mais famosa figura feminina do high-society
do Rio de Janeiro. Com um seleto grupo de amigos no eixo Rio-Paris-Nova
York, ela resolveu abrir uma exceção e incorporar um estranho a este
ninho: o baiano de Brejinho das Ametistas, Waldik Soriano.
Os dois se conheceram nos bastidores de um programa de televisão e, para
surpresa de todos, Beki se declarou fã do cantor, deixando-se envolver por
ele e convidando-o para festas e reuniões em sua luxuosa cobertura em
Ipanema. Foi um prato cheio para a imprensa: aos beijos e abraços lá
estavam os dois na televisão, nas capas de revistas e nas colunas sociais de
Ibrahim Sued e Zózimo Barrozo do Amaral. “Se ela é céu azul, ele é
negra tempestade”, assim foi definido o inusitado casal numa reportagem
da revista O Cruzeiro. (314)
Na época desquitada do industrial Horácio Klabin, Beki dizia que os filhos
receberam com naturalidade seu affair com Waldik, mas que “talvez eles
gostassem mais de encontrar aqui em minha companhia, o John
Lennon”.(315)
Waldik por sua vez afirmava que com ela conheceu um mundo diferente,
“a grande sociedade dita sofisticada do Brasil, a chamada classe A, tão
criticada por mim, tão agredida, tão brutalizada em meus comentários.
Mas depois deste conhecimento posso dizer: os ricos nas horas mais
calorosas choram, sentem, gritam, são os mesmos animais comedores
de feijão, com as mesmas dores de barriga de qualquer pobre de
barraco'”. (316)
Patrocinado por Beki Klabin, que organizou e distribuiu os convites, no fim
de 1971, Waldik Soriano fez um concorrido show na sofisticada boate Flag,
um ponto noturno da elite carioca. O popular cantor, acostumado às
platéias das feiras, cabarés e clubes dos subúrbios, tinha agora diante de si
olhos e ouvidos educados por sonoridades muito diversas das dele
E, ao se aproximar do palco, confessa Waldik “Senti que ali não era o
meu público, uma coisa estranha tomou conta de mim Não era medo,
era algum sentimento de falta de ambiente. Mas, junto da Beki, meu
sangue fervia e nada poderia me deter. Enfrentei a fera.” (317)
Acompanhado ao piano pelo bossa-novista Luiz Carlos Vinhas - que tocou
pela primeira e, provavelmente, última vez na carreira temas como Fui um
besta pra você, Eu também sou gente, Por ti darei meu sangue, Leva este
chapéu - , Waldik desfilou seu repertório ante os sorrisos marotos de boa
parte da platéia. “Mas quando terminei de cantar Eu não sou cachorro,
não, a festa chegou ao máximo. Tirei o paletó, abri a camisa e subi no
piano, as grã-finas vinham me cumprimentar, abraçando-me,
beijando-me com seus cheiros gostosos. Uma delas, quando me beijava
boca-com-boca, língua-com-língua, deu-me uma sensação de loucura
tão grande que caímos ali no meio do salao.” (3l8)
No dia seguinte os principais jornais da cidade falavam da performance e
da inusitada apresentação de Waldik Soriano na Flag. Em sua coluna o
jornalista e compositor Sérgio Bittencourt destacava: “Foi uma loucura!
Não dava nem para periquito voar. De repente, virou histeria. Gente
que, sinceramente, eu nunca pensei, entregou-se.” (319)
É verdade, mas é certo também que a maioria daquele público estava ali
pelo convite de Beki Klabin, por curtição ou por curiosidade, mas
demonstrando tal estranhamento como se Waldik realmente fosse - para
usar uma referência comum na época - , algum animal do zoológico. Aliás,
em sua crítica ao show, o jornal O Globo dizia justamente que muito mais
que apresentação de um artista, aquilo parecia “um número especial de
circo ou uma seqüência de mundo cão”". (320)
No campo das relações entre o "chique" e o "cafona", muito mais tensa e
complicada, naquele mesmo ano de 1971, foi a apresentação de Agnaldo
Timóteo no palco do programa Som Livre Exportação, que era uma nova
atração musical da TV Globo nas noites de quarta-feira.
Estrelado por Elis Regina e Ivan Lins e com a participação de outras jovens
revelações dos festivais de música popular (Gonzaguinha, Aldir Blanc,
Cesar Costa Filho), o programa tinha a proposta de abrigar as diversas
tendências da nossa música popular - com algumas ressalvas, é claro.
“Admitimos Jararaca e Ratinho, Tonico e Tinoco, Milton Nascimento. Só
gente como Paulo Sérgio e Waldik Soriano não entram, porque são
mentirosos, e o público não quer mais mentiras” - , definia um dos
organizadores do Som Livre. (321)
Ainda assim, uma oportunidade foi concedida a Agnaldo Timóteo, mas
numa prova de que o "som" do programa não era mesmo muito "livre", o
cantor nem chegou a concluir o primeiro número musical; sua voz foi
bruscamente abafada pela ruidosa platéia que gritava "fora lamê!", atirando
diversos objetos no palco. “Agnaldo Timóteo já estava preparado para
uma eventual reação do público, mas não esperava tamanha violência e
acabou chorando quando ouviu a maior vaia de sua vida”, relatou a
reportagem da revista Intervalo. (322)
Hoje Timóteo recorda o episódio, mas com poucas palavras. “Aquilo foi
uma coisa horrível. Não gosto nem de lembrar. Eles me receberam de
uma maneira muito hostil, e nem entendo o porquê.”
Eu indaguei se não seria porque ali era um espaço de cantores identificados
com o público universitário. “Sim” - respondeu Timóteo - , “era o espaço
do Ivan Lins, da Elis Regina, do Caetano Veloso, e era também um
espaço de idiotas que não sabiam diferenciar entre um cantor e um
político. Porque aquilo era um encontro de políticos, eles se reuniam lá
para falar mal do governo, e eu era apenas um cantor; na época não
tinha nenhuma participação na política e nem tinha cara de esquerda.
E a juventude universitária sempre gostou de fingir-se esquerdista. São
aqueles meninos de classe média que só usam tênis importados dos
Estados Unidos e pensam que são comunistas. Me lembro que na hora
a Elis Regina entrou no palco e deu um esporro naquela garotada
babaca. Mas eu fiquei muito emocionado, chorei pra caramba, fiquei
indignado. Foi horrível.”
Além de Elis Regina, Timóteo também recebeu a solidariedade de
Chacrinha, que através de sua coluna na imprensa afirmou que “a vaia em
Agnaldo Timóteo foi pilantragem” e um ato de covardia daqueles que
“cismam em provocá-lo, principalmente se o Agnaldo estiver distante,
sem possibilidade de pegá-los”
E o Velho Guerreiro concluía sua nota com uma mensagem de afago ao
cantor: “Olha, Timóteo, não dá bola para isso, não. O povo gosta de
você. E é isso que dá dor-de-cotovelo naqueles caras”. (323) Mas parece
que o mineiro de Caratinga ficou mesmo cismado com a vaia do Som Livre
porque logo depois ele cancelou sua anunciada participação no VI Festival
Internacional da Canção e também o show que faria na boate Sucata, na
época um tradicional espaço de artistas e público da MPB, na Zona Sul do
Rio.
Mas o reflexo mais contundente de todo este episódio veio no LP de
Agnaldo Timóteo lançado no segundo semestre de 1971. Uma das faixas
do disco inicia com uma mensagem de profunda amargura e desalento. “Eu
não me identifico com esta vida / tão amarga e tão fingida / que
machuca as ilusões... e prossegue com a denúncia de que o cantor seria
vítima de repressão e intolerância: “Eu não entendo nada que me falam /
me censuram e me calam / abafando a minha voz...” (324)
Este é um típico verso de protesto que naquele momento do governo
Médici poderia ser assinado por qualquer um dos artistas da MPB que
tinham a sua voz censurada e abafada pelas forças da repressão política.
Mas, como a vaia do público do Som Livre ilustra, a censura não era
apenas a do regime militar, andava também nas cabeças e nas bocas de
outros setores da sociedade.
E um outro episódio representativo disso ocorreu em 1973, tendo como
protagonista o cantor e compositor Odair José.
Em maio daquele ano a Phonogram organizou no Palácio das Convenções
do Anhembi, em São Paulo, uma exposição musical intitulada Phono 73,
espécie de festival não competitivo.
Todo o elenco da gravadora foi mobilizado para quatro dias de shows, que
reuniram, entre outros, Chico Buarque, Gilberto Gil, Elis Regina, Gal
Costa, Jorge Ben, Nara Leão, Ivan Lins, Raul Seixas, Maria Bethania e
também Odair José cantando em dueto com Caetano Veloso.
“A idéia de cantar junto não foi minha, foi do Caetano” - afirma Odair "e quando eu fui procurado pra fazer aquilo eu falei pro presidente da
gravadora, o André Midani, 'eu não entendo este convite'. Aí o Midani
respondeu 'quer entender? Então vá falar com o cara. Eu também não
entendo'. A Phonogram me alugou um teco-teco e eu fui me encontrar
com o Caetano, que estava escondido num sítio de uma cidadezinha do
interior de São Paulo. Eu queria conversar com ele justamente porque
eu não entendi aquele convite. E, chegando ali, ficamos na varanda
tomando Coca-Cola e tal, e o Caetano me convenceu de que seria
importante a gente cantar junto naquele show.”
Uma grande parte dos shows da Phono foi apresentada em dupla. Depois
do número solo, o artista convidava ao palco um outro colega (sem que o
público soubesse qual seria), e ambos cantavam uma música juntos.
Ali houve duetos como os de Gal Costa e Maria Bethania, Chico Buarque e
Gilberto Gil e Ivan Lins e o grupo MPB-4. A idéia inicial de Caetano era se
apresentar ao lado de Hermeto Pascoal, músico considerado o mais
inventivo, experimental e de vanguarda do elenco da Phono. Entretanto,
não houve acordo com o "bruxo", que preferiu se apresentar só com sua
música. Caetano então resolveu radicalizar, convidando para seu palco
aquele artista considerado o mais redundante, banal e comercial: Odair
José.
Anunciado como “uma noite incrível reunindo o maior espetáculo de
música brasileira de todos os tempos”, (325) o show de Caetano Veloso com o convidado surpresa Odair José - foi o último da mostra Phono 73,
que contou naquele mesmo domingo com apresentações de Gal Costa,
Maria Bethânia, Nara Leão e outros.
Espécie de "patinho feio" incluído em uma festa que reunia a nata da MPB,
Odair José não poderia deixar de causar reação em um público preso a
preconceitos estéticos de sua formação classe média.
E, assim que subiu ao palco - atrapalhando o público que estava ali para
ouvir Caetano Veloso - , o autor de Pare de tomar a pílula se deparou com
a ruidosa vaia do Palácio das Convenções do Anhembi. “Foi uma ofensa...
quem veio aqui não queria ver nem ouvir um artista deste nível”, justificou
uma jovem ouvida no fim do show pela reportagem da Folha de S. Paulo.
"Essa do Caetano eu não entendi", exclamou uma estudante universitária
procurada pela mesma reportagem.
E um outro estudante, bastante irritado, reclamou dos organizadores do
espetáculo: “O que este pessoal está pensando!? Eles 'alugaram' a gente
para ver este show! Uma palhaçada!”. (326)
A canção que reuniu Odair e Caetano no palco do Anhembi foi aquela
mesma que mereceu elogios de Dorival Caymmi e que Nara Leão usava
como canção de ninar de seu filho Francisco: Vou tirar você desse lugar gravação que fora um grande sucesso em 1972. “Eu toquei a música no
violão e o Caetano me acompanhou no vocal. Mas com aquilo tudo que
aconteceu, ele cantava nervoso, porque o Caetano é muito sensível,
né?”, diz Odair. “Foi uma vaia brutal” - , recorda Caetano Veloso.
“Reação de um público elitista que rejeita a música consumida por
gente tida como pobre e ignorante. É casa-grande e senzala.” (327)
O curioso é que alguns dos artistas que naquela noite estavam na
platéia também não pensaram boa coisa do inusitado dueto de Caetano
com o seu colega da multinacional holandesa Phonogram. O
compositor Jards Macalé, por exemplo, disse que aquilo só podia ter
como objetivo "alargar o mercado para a rainha da Holanda". E o
guitarrista Sergio Dias, dos Mutantes, classificou o dueto de
“tropicalismo barato”. (328)
Mas de que maneira Odair José reagiu a estas manifestações de ironia e de
repúdio do público do Anhembi? Ele esperava a vaia ou ficou surpreso?
“Eu não me preocupei com isso, quem se preocupou foi o Caetano.
Acho que ele sentiu que o público vaiando a minha presença ali era
uma ofensa a ele, porque aquele ali não era o meu público; era o dele.
E Caetano ficou realmente muito zangado. Ele esbravejou algumas
coisas lá para a platéia, não me lembro bem que palavras ele usou,
jogou o microfone no chão e saiu do palco.”
Em um tom ao mesmo tempo irônico e irritado, algumas das palavras que
Caetano Veloso direcionou à platéia do Anhembi foram “não há nada
mais Z do que um público classe A”, e estão registradas no LP "Phono
73", conjunto de três discos que reúnem alguns dos momentos da série de
shows da Phonogram. Mas a gravadora teve a preocupação de, na
mixagem, retirar as vaias recebidas por Odair José e o desabafo de Caetano
foi deslocado para um outro momento do disco, fora do contexto original.
De qualquer forma, o vinil registrava ali a segunda reação de Caetano
Veloso diante do público universitário em São Paulo. A primeira tinha sido
em Setembro de 1968, quando ele rebateu as vaias recebidas durante a sua
interpretação de É proibido proibi, na fase classificatória do III FIC, no
teatro da Universidade Católica. Naquela noite, no meio de seu longo e
irado discurso, Caetano esbravejou para a platéia estudantil: “Vocês são
iguais sabe a quem? Aqueles que foram ao Roda viva e espancaram os
atores. Vocês não diferem em nada deles!” (330)
Agora, em 1973, o contexto era outro. Já devidamente assimilado por
grande parte da esquerda após a prisão e o exílio em Londres, Caetano
Veloso tinha naquele momento o público universitário ao seu lado. Mas a
porção de intolerância deste público não havia se esgotado e foi toda
direcionada a Odair José, que, em alguns aspectos, representava em 1973 o
mesmo que Caetano Veloso em 1968: "alienação", "descompromisso", falta
de contato com as "raízes" da nossa música etc. “No momento da vaia” ”recorda Odair José – “e logo depois que Caetano se retirou irritado do
palco, o Nelson Motta e o Artur da Távola, que estavam trabalhando
no show, disseram 'não saia daqui que Caetano já volta'. Sentado no
banco eu fiquei. Aí eu peguei o violão e sozinho cantei Pare de tomar
pílula''.
É difícil precisar se Nelson Motta, Artur da Távola ou alguém da platéia do
Anhembi perceberam naquele momento o significado mais amplo daquela
cena estampada diante de seus olhos: o banquinho, o violão, Odair José e a
canção Pare de tomar a pílula. Recorde-se que a composição incomodava
o regime militar e, como já vimos no capítulo Reinado de terror e virtude
deste trabalho, ela teria sua execução pública proibida e o autor passaria a
enfrentar problemas com a Polícia Federal.
Mas naquele momento da Phono 73, Pare de tomar a pílula também soava
aos ouvidos do público da MPB como o que de mais abominável havia no
repertório popular.
O crítico José Fernandes chegou a classificar a música como “a pior coisa
do mundo”.(331) E, segundo Odair José, o próprio Caetano Veloso
sugerira que ele não cantasse aquela canção no show: “Realmente, a
Pílula não estava no programa, mas quando eu vi aquele povo todo me
vaiando - uuuuuuuhhhhhhhhh! - eu falei: agora mato eles, e cantei a
música. Já que naquele momento da Phono era para contestar, eu
peguei o violão e cantei.”
Este clima de contestação que envolveu a Phono 73 já havia se manifestado
dois dias antes, quando Chico Buarque tentou apresentar a canção Cálice,
feita em parceria com Gilberto Gil especialmente para a ocasião.
Entretanto, como a letra da composição havia sido condenada pelos
censores, Chico tendo ao seu lado no palco Gilberto Gil tentou apresentar a
versão instrumental ou, até quem sabe, o refrão da música.
Mas ao pronunciar a palavra "cálice" pela terceira vez enquanto Gil
murmurava palavras de algum dialeto africano - , o microfone de Chico
Buarque foi desligado e o público assistiu apenas ao movimento de seus
lábios. Na tentativa de restabelecer o som, algumas pessoas próximas ao
palco providenciaram 2, 3, 4, 5 novos microfones, que foram
sucessivamente desligados. Vencido pela força do silêncio, Chico Buarque
exclamou: “Isso não pode, não é? Então vamos ao que pode”, cantando
raivosamente duas outras canções e arrematando sua apresentação com um
sonoro palavrão - já com o microfone aberto.
Este episódio envolvendo Chico Buarque e o que também envolveu o
cantor Odair José, ambos na Phono 73, representam duas faces de um
mesmo disco.
Chico teve contra si o silêncio do microfone; Odair José, o barulho da
platéia. Barulho e silêncio impedindo cada um dos artistas de mostrar o seu
trabalho Ao cantar Cálice, Chico Buarque desafiava o autoritarismo do
regime; ao cantar Pare de tomar a pílula, Odair José mirava o
autoritarismo do público. E, neste embate, tanto o regime dos generais
como o público do Anhembi revelavam-se autoritários e intolerantes com o
compositor popular.
Não sem razão, uma testemunha dos shows da Phono 73, o maestro Júlio
Hungria, em sua coluna no Jornal do Brasil, destacou que a "retumbante
vaia" recebida por Odair José mostrou o “fascismo do público", incapaz de
perceber e aceitar que a realidade da música popular brasileira não
comportava apenas nomes como Caetano Veloso ou Chico Buarque, mas
também todo um outro vasto segmento representado por artistas populares
do estilo do autor de Pare de tomar a pílula. (333)
Esta ponderação do maestro Júlio Hungria era compartilhada por outro
colunista de destaque naquele período, o jornalista e compositor Nelson
Motta, que sempre se manifestou de forma tolerante com o repertório
"cafona".
Como um fiel defensor do ideário tropicalista - movimento cultural que
alguns definem como regido pela “estética da inclusão” (334) - , por mais
de uma vez na época Nelsinho escreveu artigos com considerações
simpáticas ao trabalho de artistas populares como Waldik Soriano, Agnaldo
Timóteo e Odair José. Com este último, aliás, Nelson Motta não ficou
apenas na simpatia; houve encontros, conversas e trabalhos que renderam
até uma parceria musical: a balada Drama passional, composição gravada
por Odair José em 1976: "Eu morro de medo se um dia eu te perder / eu
morro de medo se uma noite não ter (sic) voce..."
Constata-se, entretanto, que no livro “Noites tropicais” - no qual descreve
sua participação nos últimos 30 anos da nossa música popular, Nelson
Motta não revelou esta sua incursão pelo universo "cafona” - , fato que
agora é recordado pelo parceiro Odair José:
“Naquela época eu convivia muito com o Nelson Motta e um dia ele
chegou lá em casa e disse: 'Odair, hoje eu vim aqui pra te pesquisar'.
Ele pediu meus discos, botou pra rodar, sentou com as pernas
cruzadas, naquela posição de Buda, e depois de ouvir os discos
atentamente, falou: 'Você canta mal' Eu fiquei até meio surpreso,
porque eu estava no auge do sucesso, com o ego lá em cima. 'Eu canto
mesmo tão mal assim, Nelson?'. 'Você canta muito mal; divide mal,
pronuncia mal, você é um cantor desafinado.' Ele me convenceu disto e
me levou para tomar aula de canto com uma professora amiga dele. Aí
eu fiquei um ano e meio estudando canto, o que foi muito útil para
minha carreira. E foi neste período que a gente fez esta parceria.”
Outra (quase) parceria envolveu Agnaldo Timóteo e o compositor
Gonzaguinha, que naquela época eram contratados da mesma gravadora, a
EMI-Odeon. Gonzaguinha não escondia uma certa admiração por Timóteo,
uma pessoa que, segundo ele, “sabe segurar a barra de viver o permitido
e o não permitido”.(335)
A despeito das divergências ideológicas que os colocavam em campos
apostos no debate político, os dois chegaram a desenvolver uma amizade
marcada por troca de confidências.
E, numa daquelas madrugadas, no fim dos anos 70, Gonzaguinha ouviu o
amigo queixar-se dos desencontros de seu relacionamento com Paulo Cesar
Souza, o Paulinho (para quem Timóteo compôs A bolsa do Posto Três.) O
resultado da conversa foi a composição Grito de alerta, título sugerido pelo
próprio Agnaldo Timóteo: "Primeiro você me alucina / me entorta a
cabeça / e me bota na boca / um gosto amargo de fel...”
Gonzaguinha, entretanto, não deu exclusividade de gravação para o amigo,
e Grito de alerta foi entregue também à cantora Maria Bethânia fato que
provocou o ciúme de Timóteo: “Eu fiquei pau da vida com o
Gonzaguinha, porque aquela história era minha, eu deveria ter sido
até parceiro dele na música. Eu falei: 'Puta que pariu, Gonzaguinha,
então eu te conto uma história da minha cama e você dá a música para
Bethania gravar!?"'
Gonzaguinha e Nelson Motta tiveram incursões, digamos, circunstanciais
pelo universo "cafona". De uma forma muito mais intensa e duradoura,
Raul Seixas também viveu esta experiência na fase inicial de sua carreira,
quando era conhecido apenas como Raulzito.
Chegando ao Rio de Janeiro em fins de 1967, o cantor baiano não
conseguiu obter nenhum sucesso com seu conjunto Raulzito e os Panteras.
Mas, depois de passar fome por dois anos na Cidade Maravilhosa, Raul foi
convidado por Evandro Ribeiro, então diretor da CBS, a ocupar uma das
vagas de produtor naquela gravadora.
E ali ele produziu ou abasteceu com suas canções, além do Jerry Adriani
pós-j ovem guarda, vários cantores populares em fase inicial da carreira
artística: Odair José, Diana, Marcio Greyck, Luiz Carlos Magno e outros.
Embora seus biógrafos evitem realçar este fato - num livro de antologia de
canções de Raul não se encontra nenhuma das mais de 80 desta safra (336)
-, o "maluco beleza" não pode ser expulso da história da música popular
"cafona".
Antes de Paulo Coelho, o principal parceiro de Raul Seixas foi o tecladista
(e atual produtor dos discos de Roberto Carlos) Mauro Motta, que agora
recorda o seu encontro com o artista baiano:
“Eu conheci Raulzito aqui no Rio, por volta de junho ou julho de 1968.
Me lembro que era uma madrugada de muito frio e Raul estava dentro
de uma kombi, ali na Praça do Pacificador, onde à noite costumava
haver encontros de grupos de rock. Eu tocava num conjunto chamado
Blue Jeans e ele no Raulzito e seus Panteras. Raul estava passando
uma fome danada e eu também, duros pra caramba. E a gente ia tocar
lá na praça pra ver se ganhava alguma coisa. E ficávamos ali de
madrugada tomando caracu com ovo e chorando as nossas tristezas, as
nossas mágoas, as nossas amarguras.”
Mas a parceria musical entre os dois só começou mesmo em 1970, quando
Raulzito - agora sem os seus Panteras - , foi trabalhar na gravadora CBS.
“Aí ficamos amigos demais”, recorda Mauro Mota. “Eu e Raul
trabalhávamos juntos, morávamos juntos e dividimos as nossas coisas
juntos durante muito tempo. Eu posso afiançar a você que eu fui
naquela época o amigo de maior intimidade do Raul. Acho que
ninguém conheceu tão bem o Raulzito como eu. E assim nós fomos
criando nossas músicas. Uma delas, Foi você, que a gente compôs para
o Roberto Carlos, mas que acabou sendo gravada pelo Marcio Greyk,
sempre que eu encontrava Raul, ele me pedia: 'Mauro, vamos regravar
esta música. Mostre ela de novo para o Roberto ou para algum cantor
romântico desses aí.' Raul tinha razão: aquela nossa canção é
realmente muito bonita, tem um tratamento melódico e harmônico
lindo e uma linda letra que ele fez: "Foi voce / a causa, o meio e o fim /
do nosso amor...”
Sem qualquer referencia a sociedades alternativas, metamorfoses
ambulantes ou discos voadores, a dupla Raulzito-Mauro Motta
compôs, além de Foi você, várias outras baladas românticas, como
Doce, doce amor, Estou completamente apaixonado, Hoje sonhei com
você, Darling, Sheila, Um drink ou dois, Tarde demais e Ainda queima a
esperança, um grande sucesso nacional na voz da cantora (e ex-esposa
de Odair José) Diana: “Uma vela está queimando / hoje é nosso
aniversário / está fazendo hoje um ano / que você me disse adeus ..”
(337)
Ao comentar esta sua fase numa entrevista ao Pasquim, o já então famoso
Raul Seixas procurou minimizar possíveis implicações culturais ou
estéticas do trabalho de Raulzito. “Eu fazia aquele negócio porque sabia
que era uma coisa inconseqüente. Eu fazendo ou não, outra pessoa ia
fazer. Eu estava fazendo o trabalho que o diretor da CBS queria, e
enquanto isso aprendendo a usar aquele mecanismo.” (338)
Mas na letra de uma das canções do LP Gita, gravação de 1974, o roqueiro
baiano foi mais ousado e irreverente: “Raul Seixas e Raulzito sempre
foram o mesmo homem / mas pra aprender o jogo dos ratos / transou
com Deus e com o lobisomem...” (339)
Este duplo caminho também foi percorrido por outro ex-parceiro de Raul
Seixas, o hoje famoso "mago" Paulo Coelho e recém-eleito imortal pela
Academia Brasileira de Letras que terminou sua carreira de compositor
como Raul começou a dele: fazendo canções de amor para os "cafonas".
Sim, antes de popularizar a rota medieval de Santiago de Compostela e ser
recebido por príncipes e reis de várias partes do mundo, Paulo Coelho tinha
que se entender mesmo era com os cantores José Augusto, Fernando
Mendes, Sidney Magal, Dudu França e Lilian, para quem ele criou diversos
temas no fim dos anos 70 - período em que já não trabalhava
exclusivamente com Raul Seixas.
Compondo agora em parceria com os produtores Miguei Plopschi, Roberto
Livi e Augusto Cesar, ou simplesmente fazendo versões, Paulo Coelho
assinou uma vasta safra de baladas românticas, como indicam os próprios
títulos de algumas delas: Meu amor Michelle, O amante, Dá-me fogo, Por
dentro estou morrendo, Restos de amor e Meu primeiro amor, gravação de
José Augusto em 1977: “Você me olhou de repente / fingiu que tinha
esquecido / e com o sorriso sem graça / me apresentou ao seu
marido...”
Especialmente para o "cigano" Sidney Magal, que despontara para a fama
com a gravação de Se te agarro com outro te mato , Paulo Coelho escreveu
algumas letras que reforçaram a imagem de amante latino do cantor: "Sou
boemio, sou sonhador / brasileiro no meu calor / e um amante sempre
disposto a beijar teu rosto / e a fazer amor” (340) Outra de Paulo Coelho
para Magal, diz: "O teu amor eu roubei / do homem que é teu marido /
e tenho sempre dividido / o que você tem me dado.” (341)
Indo um pouco além do tema estritamente amoroso, na balada Menina do
subúrbio, gravação de Fernando Mendes, o ex-parceiro de Raul Seixas
narra os sonhos, as fantasias e o cotidiano daquela que "finge que é
importante / para as meninas lá da rua / e não vê que no subúrbio / a
vida continua...”
Mas o lado, digamos, social desta fase "cafona" do compositor Paulo
Coelho aparece de forma mais explícita naquela balada que Lilian cantava
na televisão com os olhos abatidos e a voz triste, emocionando milhões de
brasileiros em 1978; “Eu sou rebelde porque o mundo quis assim /
porque nunca me trataram com amor / e as pessoas se fecharam para
mim...” (342)
*Paulo Coelho: rock cabeça no início dos anos 70 e música cafona no
final da década
Por este conjunto de canções assinadas por Paulo Coelho constata-se que o
anarquista e contestador parceiro de Raul em rocks como Al Capone e
Sociedade alternativa , procurou, talvez por sobrevivência, antes do
caminho de Santiago, um caminho alternativo na música popular. E, neste
caminho, ele permaneceu até a noite do dia 2 de janeiro de 1986. Foi
quando, num ritual esotérico, no alto de uma montanha, ele afirma ter
recebido de seu mestre uma espada de punho preto e vermelho, e que dali
em diante estava autorizado a não mais “esconder aquilo do que era
capaz, nem ocultar os prodígios que havia aprendido a realizar”
porque, a partir daquele momento, revela Paulo Coelho, “eu era um
mago”. (343)
Bem, mas aí já é uma outra história....
NOTAS BIBLIOGRÁFICAS APENSAS AO CAPÍTULO
(Pela numeração seqüencial encontrada no texto):
314. "Waldik Klabin ou Beki Soriano?" - O Cruzeiro, 17-5-1972.
315. "Beki Klabin pede passagem" - O Cruzeiro, 16-2-1972.
316. Waldik Soriano & Bernardino de Campos, op. cit., p. 112 317. Idem,
p. 114
318. Idem, p. 115.
319. “Antes que eu me esqueça" - O Globo, 22-12-1971.
320. "À procura do bandido" - O Globo, 22-12-1971.
321. "Oitenta mil paulistas foram ver o Som Livre!' - Intervalo, Nº 429,
março de 1971
322. Timóteo chorou ao ser vaiado no Som Livre - Intervalo, Nº 432, abril
de 1971.
323. "Vaia em Agnaldo Timóteo foi pilantragem” – ( Jornal do Chacrinha)
- A Notícia, 16-4-1971.
324. Verso da balada Identificação. Ver índice de canções citadas em
Fontes e bibliografia.
325. Conforme anúncio publicitário da Phonogram publicado no jornal O
Estado de S. Paulo, 13-5-1973.
326. "Ranzinza, sem imaginação o público deste festival” - Folha de S.
Paulo, 15-5-1973.
327. “A Vida é um Show”TV Educativa - Rede Brasil, 17-5-2002
328. "Revelações da Phono 73: os melhores da música popular brasileira" Jornal da Tarde, 19-5-1973.
329. A fala de Caetano Veloso está registrada no LP "Phono 73 o canto de
um povo Vol. 3 “ – Philips- P. 1973.
330. Neste trecho de seu discurso Caetano Veloso faz referencia à noite de
17 de Julho de 1968, quando no fim de mais uma encenação da peça Roda
viva, no Teatro Ruth Escobar, em São Paulo, cerca de 20 militantes do
CCC (Comando de Caça aos Comunistas), armados de cassetetes e
revólveres, invadiram o teatro, destruíram o cenário e espancaram os
atores, dois dos quais, Marília Pera e Rodrigo Santiago, foram despidos e
obrigados a sair para a rua. O discurso completo de Caetano Veloso está
registrado no compacto “Ambiente de festival- É proibido proibir" - Philips
– P. 1968.
331. Segundo informação da nota "Resolução" ( Jornal do Chacrinha) - A
Noticza, 30-3-1973.
332. "Caetano: ”Nada mais Z do que a classe A” - Folha de S. Paulo, 15-51973.
333. "Phono 73 - Os espetáculos - Jornal do Brasil, 16-5-1973.
334. "Entre as muitas virtudes que o Tropicalismo apresentou, uma se
destaca de modo singular: a capacidade de o movimento articular a estética
da inclusão. Souberam seus artífices absorver de cada vertente musical
dominante no mercado (ou presente na memória cultural) uma
características”. Ivo Lucchesi & Gilda Korff Dieguez . Caetano. Por que
não?: uma viagem entre a aurora e a sombra. Rio de Janeiro: Leviatã,
1993, p. 28.
335. Frase de Gonzaguinha no texto de encarte do LP de Agnaldo Timóteo
“Deixe-me viver”. - EMI-Odeon – P. 1979.
336. Na orelha do livro afirma-se que "esta antologia, há muito longo
tempo esperada pelos seus fãs, colecionadores e pesquisadores surge,
agora, para reunir e completar num só volume as letras musicais do
grande compositor". Sylvio Passos & Toninho Buda. Raul Seixas -Uma
antologia. São Paulo: Martin Claret, 1992.
337. Ainda queima a esperança aparece em 7° lugar na relação dos 50
discos mais vendidos no mês de dezembro de 1971. Fonte: Nopem pesquisa de mercado sobre venda de discos.
338. "Raul Seixas: o mito du-dia” - O Pasquim, 13 a 19-11-1973.
339. Verso de As aventuras de Raul Seixas na cidade de Thor. Para
outras indicações ver índice de canções citadas em Fontes e
bibliografia.
340. Verso de Brasileiro no meu calor. Ver índice de canções citadas em
Fontes e bibliografia.
341. Verso de O amante. Ver índice de canções citadas Fontes e
bibliografia.
342. Verso de Sou rebelde. Ver índice de canções citadas em Fontes e
bibliografia.
343. Paulo Coelho. O diário de um mago. 37a ed. Rio de Janeiro: Rocco,
1990, pp. 14-15.
(UFANISMO E GUERRILHA NOS ANOS DE CHUMBO)
“Aquilo soou como acinte para nós, os massacrados; parecia a versão
musical do lema ‘Brasil: ame-o ou deixe-o’ da ditadura.”
(Mylton Severiano)
Quando se associa ufanismo e governo Médici dois nomes são geralmente
lembrados: Dom & Ravel. A dupla ficou marcada como o representante
exemplar de artistas integrados à ideologia expressa pelo regime de 1964 e
principal porta-voz, no campo musical, das realizações do governo no
período do chamado "milagre econômico".
Com pequenas variações, é sob este estigma que eles são citados em
jornais, revistas e em algumas publicações de nossa música popular. O
curioso é que a gravação que serviu para projetar esta imagem de Dom &
Ravel, a marcha ”Eu te amo meu Brasil”, é uma composição apenas de
Dom, que nem foi lançada pela dupla e, sim, pelo conjunto Os Incríveis,
grupo de rock que despontara na época da jovem guarda. E a primeira
audição pública da musica antes mesmo de ser gravada, ocorreu no
programa da Hebe Camargo, na TV Record de São Paulo, em agosto de
1970.
Os Incríveis participavam da tradicional conversa na "sala de visita" da
apresentadora quando esta perguntou se eles tinham alguma surpresa para
mostrar ao público. "Ah, Hebe, nós temos uma novidade" - anunciou um
dos integrantes do grupo – "uma novidade de uma música que nós
vamos gravar, mas é pro povo brasileiro todinho, acontece que nós
vamos gravar com uma fanfarra, uma fanfarra de colégio mesmo, uma
música que fala do Brasil, que fala dos brasileiros", acrescentando que
"a música é muito bacana, muito comercial e diz muito sobre o Brasil
atualmente".(344)
E Os Incríveis cantaram:
AS PRAIAS DO BRSIL ENSOLARDAS
O CHÃO ONDE O PAÍS SE ELEVOU
A MÃO DE DEUS ABENÇOOU
MULHER QUE NASCE AQUI TEM MUITO MAIS AMOR
AS TARDES DO BRASIL SÃO MAIS DOURADAS
MULATAS BROTAM CHEIAS DE CALOR
A MÃO DE DEUS ABENÇOOU
EU VOU FICAR AQUI PORQUE EXISTE AMOR
EU TE AMO, MEU BRASIL, EU TE AMO
MEU CORAÇÃO É VERDE, AMARELO, BRANCO E AZUL ANIL
EU TE AMO, MEU BRASIL, EU TE AMO
NINGUÉM SEGURA A JUVENTUDE DO BRASIL...
Segundo Dom, esta marchinha, que retrata o Brasil como um paraíso
erótico-tropical, foi composta por ele numa manhã de setembro de 1969,
quando estava em companhia de seu irmão chupando laranjas e tangerinas
na cozinha do pequeno apartamento onde eles moravam, no Centro de São
Paulo:
"Era mais ou menos entre dez e onze horas da manhã. Recordo que eu
tinha dormido muito pouco na noite anterior e estava bastante
influenciado por esse tema. De repente, de uma forma inusitada, eu
recebi essa música, e ela me veio à mente praticamente completa. Não
precisei nem pegar o violão e a caneta. A letra e a melodia surgiram
juntas. Depois é que eu peguei o violão e fui cantar e escrever o que já
estava na minha cabeça."”Eu te amo meu Brasil” permaneceu
engavetada durante quase um ano, período no qual Dom e Ravel ainda não
haviam se firmado como cantores, mas a composição acabou chegando às
mãos do conjunto Os Incriveis, que na época desfrutava de grande
popularidade e preparava repertório para um novo disco. Gravada pelo
grupo em outubro de 1970, ou seja, ainda em meio à euforia coletiva pela
conquista da Copa do Mundo do México, a marcha, em estilo de fanfarra
juvenil, encontrou um terreno fértil para se transformar num dos grandes
sucessos daquele ano e, ao mesmo tempo, tornar-se uma das músicas mais
rejeitados por aqueles que faziam oposição ao regime militar.
De fato, a composição traz implícita a ideologia do nacionalismo ufanista,
característico dos regimes autoritários, mas ao recordar o tema Dom afirma
que ele é resultado de influências da época, do que estava vendo e ouvindo
nas rádios, nas propagandas e nas ruas.
"Eu apenas estava entusiasmado com o fato de eu ser brasileiro; com o
fato da Maria Ester Bueno ter sido campeã do tênis, do Éder Jofre ter
sido campeão mundial do peso galo, enfim, estava entusiasmado com o
fato de o Brasil ser um país vitorioso naquela época. Embora nas mãos
dos militares, coincidentemente o Brasil estava vencendo em todas as
frentes. Era o país que tinha os maiores índices de desenvolvimento do
mundo. Eu me lembro que havia realmente um orgulho das pessoas de
ser brasileiras. E eu apenas captei isso; registrei numa canção esse
entusiasmo que estava presente em todos os corações, em todos os
olhares, em todas as almas, em todo o sentimento de todo brasileiro, do
pequeno ao grande. Era uma marca da época. E eu fui de roldão
envolvido nisso também."
Esse clima de triunfalismo cívico-patriótico descrito por Dom tem traços de
exagero, afinal, não era todo brasileiro que compartilhava dele; mas, em
essência, a descrição que ele faz do fenômeno é correta e uma consulta a
alguns jornais e revistas da época comprova isso.
Em reportagem publicada em Setembro de 1970 - portanto, um pouco antes
do sucesso de “Eu te amo meu Brasil” - , a revista Realidade já constatava
que uma onda ufanista cobria o país de norte a sul.
“Dísticos, bandeiras, músicas, cartazes convocam o povo; é hora de
alfabetizar, hora de pagar impostos, tempo de trabalhar, tempo de
lutar com todas as forças pelo desenvolvimento” e que havia “uma
profusão de verde e amarelo por toda parte: bandeiras nas janelas das
casas e apartamentos, escudos nos vidros dos automóveis, fitas nas
vitrinas e até uma ligeira incursão Pela moda, com saias verdes e
blusas amarelas.” (345)
O respaldo com o qual o regime militar contava na época está expresso
também nas páginas de opinião de alguns dos principais órgãos de
imprensa do país: as revistas Manchete, O Cruzeiro, Visão e jornais como
O Globo, O Dia e, principalmente, a Folha de S. Paulo, que em editorial
publicado no dia seguinte ao feriado de 7 de Setembro de 1971 defendia
que “poucas vezes em sua história teve o Brasil ocasião de comemorar
o Dia da Pátria com tantas e tão fundadas razões de otimismo quanto
este ano. Não foi por outra causa que o Sete de Setembro em todo o
País teve a assinalá-lo intensa vibração cívica e autêntica participação
popular. Mais do que um passado glorioso, movia os brasileiros ao
entusiasmo um presente promissor, que antecipa um futuro no qual se
pode decididamente acreditar...”
E num tom oficialesco e de culto à personalidade que, talvez, nem as
agências de propaganda do governo ousassem carregar tanto, o mesmo
editorial afirma que “não é exagero dizer que a criação desse clima de
franca e otimista certeza de que estamos no bom caminho foi
extremamente favorecida pela presença do presidente Médici na chefia
do governo. Os brasileiros, em suma, identificam-se com seu
Presidente, com a autoridade que dele emana, na serena energia de
seus gestos, na inabalável determinação com que procura promover o
desenvolvimento com justiça social.” (346)
Editoriais como este da Folha de S. Paulo expressavam o entusiasmo dos
setores médios e dominantes dos centros urbanos do país com o chamado
"milagre econômico", e para melhor entender isto recorde-se que ao longo
daquele período - que compreende a maior parte do governo Médici - o
país crescia a uma média de l0% ao ano (taxa considerada altíssima mesmo
para países ricos), com o acelerado desenvolvimento de um vasto parque
industrial.
A dinâmica deste processo era a indústria de bens de consumo duráveis
(automóveis, eletrodomésticos e construção civil) que atendia
especialmente às camadas de alta renda da população, as principais
beneficiárias do "milagre". Como "consumidores preferenciais", (347) os
estratos de alta renda adquiriam automóveis, geladeiras, TVs em cores e
outros bens de luxo - consumo também estendido à classe média a partir da
criação dos consórcios e de um moderno sistema de crédito.
O ramo da construção civil também se expandiu de forma acentuada, e na
maioria das grandes e médias cidades surgiram novos e luxuosos edifícios,
viadutos e estádios de futebol.
Com a entrada maciça de capital estrangeiro (a nossa dívida externa subiu
de 3,9 bilhões de dólares em 1968 para 12,5 bilhões em 1973) o governo
pôde também investir nos setores infra-estruturais (rodovias,
telecomunicações, hidrelétricas), financiando grandes obras como a Ponte
Rio-Niterói, a Rodovia Transamazônica, a Ferrovia do Aço, a Hidrelétrica
de Itaipu, que ocupavam farta mão-de-obra.
Tudo isso, afiado à euforia pela conquista do Campeonato mundial de
futebol no México, contribuiu para o despertar do nacionalismo ufanista
que mobilizou grande parte da sociedade brasileira durante o governo
Médici e que se expressava em slogans como "Ninguém segura este
país". Reforçado por intensa propaganda governamental, acreditava-se que
o Brasil tinha se transformado numa grande potência e que havia
ingressado numa era de progresso e desenvolvimento irreversíveis.
O universo da música popular não poderia ficar indiferente a isso e, em
grande parte, também reagiu de modo otimista em relação ao país naquele
período. Diversos compositores, das mais variadas tendências da nossa
música, produziram mensagens que, em maior ou menor grau, se
harmonizavam com a atmosfera desejada pela propaganda oficial do
regime. E o primeiro grande sucesso musical daquela época a expressar
uma certa alegria coletiva com a nação brasileira foi o samba “Pais
tropical, composição de Jorge Benjor lançada pelo cantor Wilson Simonal
em 1969:
MORO NUM PAÍS TROPICAL
ABENÇOADO POR DEUS E BONITO POR NATUREZA
EM FEVEREIRO TEM CARNAVAL
TENHO UM FUSCA E UM VIOLÃO
SOU FLAMENGO E TENHO UMA NEGA CHAMADA TERESA...
Intérprete de um estilo na época chamado de "pilantragem” (espécie de
malandragem dos tempos modernos), o cantor Wilson Simonal alcançou o
auge do sucesso com o samba País tropical, gravação que gerou polemica e
foi combatida por quase toda a esquerda brasileira.
Ao justificar este fato, Nelson Motta afirma que “no momento mais feroz
da ditadura, em pleno terror, com tantas prisões e torturas, sob a mais
truculenta censura, não se podia nem devia cantar o Brasil dos
militares daquele jeito, com aquele amor ufanista”.
O curioso é que o autor da composição conseguiu se livrar das patrulhas
porque, segundo o mesmo Nelson Motta, “Jorge Ben, como sempre, ficou
na dele.”(348) Pode ser, mas no rastro do sucesso de sua composição
várias outras mensagens musicais ufanistas foram lançadas no mercado, e
uma delas é aquela assinada por Dom, que admite: “Eu me influenciei em
País tropical para fazer Eu te amo meu Brasil.”
Embora o samba de Jorge Benjor, principalmente em sua versão
tropicalista, tenha ficado associado ao país-nação do prazer, enquanto a
canção de Dom, na gravação dos Incríveis, totalmente identificada ao paíspátria do dever, em ambas as músicas está a exaltação ao prazer, à mulata,
ao carnaval e à natureza exuberante de um país tropical "abençoado por
Deus" ou que "Deus abençoou".
Discurso que, de resto, está presente nos sambas-exaltação do período do
Estado Novo: “Brasil / és no teu berço dourado / um índio civilizado / e
abençoado por Deus...” ;(349) na lírica apologética de românticos como
Casimiro de Abreu: “Debaixo de um céu de anil / encontrareis o gigante
/ Santa Cruz, hoje Brasil"; (350) e em todos os manuais ufanistas desde
pelo menos 1901, quando o conde de Affonso Celso publicou Por que me
ufano do meu país. (351)
Mas Pais tropical e Eu te amo meu Brasil trazem também as marcas de seu
tempo, e na composição de Jorge Benjor isto se evidencia na referência ao
fusca, automóvel que, com a expansão do crédito ao consumidor a partir de
1969, tornou-se um dos símbolos do "milagre".
Aliás, o mesmo Jorge Benjor voltaria a saudar este modelo econômico num
outro samba adesista, pra lá de ufanista, intitulado Brasil, eu fico,
composição de 1970 que, como o próprio título indica, é uma resposta
entusiástica ao radical slogan do governo Médici “Brasil: ame-o ou deixeo”:
ESTE É O MEU BRASIL
CHEIO DE RIQUEZAS MIL
ESTE É O MEU BRASIL
FUTURO E PROGRESSO DO ANO DOIS MIL
QUEM NÃO GOSTAR E FOR DO CONTRA
QUE VÁ PRA...
É surpreendente esta composição de Benjor, tanto por seu teor agressivo que destoa das demais canções do autor, um contumaz evocador de flores,
anjos e santos - , como também pelo fato de naquele momento
companheiros seus como Caetano Veloso e Gilberto Gil estarem vivendo
um forçado exílio no exterior, o que os impedia, mesmo que quisessem, de
afirmar "Brasil, eu fico" - frase que também aparecia em adesivos colados
em muitos automóveis na época.
O certo é que não foram apenas Jorge Ben ou Dom & Ravel que
produziram ou interpretaram canções de cunho apologético naquele
período.
Nesta mesma trilha aparece o grupo Os Originais do Samba com uma
gravação que diz: “Eu sou fã dessa terra varonil / se quiser ficar, fique
direito / ame ou deixe o meu Brasil...” (352) Este popular slogan - na
verdade uma versão do original americano Love it or Leave it - também
recebeu apoio entusiástico dos sambistas Jorginho do Império e Pedrinho
Rodrigues, que na época gravaram uma série de discos de capas verdeamarela com os agressivos títulos: “Brasil... sambe ou se mande” e “
Brasil...quem quiser pode ir”. (353)
É importante destacar que depois de Getúlio Vargas, que governou o Brasil
durante 19 anos, o general Emílio Garrastazu Médici foi o presidente da
República mais respaldado pela música popular brasileira. Apesar de Chico
Buarque, seu notório opositor do campo musical, Médici recebeu
manifestações de afago e incentivo de vários outros cantores populares.
“Aqui está um velho seresteiro que vem abraçar o Presidente, que está
hoje com uma popularidade imensa”, disse o cantor Silvio Caldas ao ser
recebido em Brasília pelo general Médici, que ainda ouviu mais elogios.
“O senhor está integrado perfeitamente com o povo, pela sua obra,
pelas suas atitudes, pelo homem que o senhor é”, concluiu Silvio
Caldas.(354)
Outro exemplo de incentivo ao general está numa faixa gravada pelo
conjunto de Waldeck de Carvalho em 1971: “Sr. Presidente, tenha
paciência / Vossa Excelência sabe o que faz / a nossa terra será grande
potência / o nosso nome já virou cartaz...”(355)
O cantor Roberto Silva - considerado um dos grandes intérpretes da história
da música popular brasileira - também expressou seu apoio ao presidente
Médici através de um samba-manifesto endereçado especialmente àquele
segmento da MPB que cantava mensagens contra o governo.
Gravado com peculiar bossa e manemolência, o samba Protesto ao protesto
deu título ao LP de Roberto Silva em 1970: “Hoje em dia falam tanto de
protesto / lanço aqui meu manifesto / já é hora de parar / vamos ajudar
o Presidente / a enfrentar firme o batente / para o Brasil melhorar...”
O bloco Cacique de Ramos, berço de sambistas como Jorge Aragão,
Arlindo Cruz e do grupo Fundo de Quintal, parece ter ouvido o apelo do
cantor Roberto Silva, porque, ao se aproximar o carnaval de 1972, gravou
um entusiástico respaldo ao slogan “Ontem, Hoje, Sempre: Brasil”,
campanha lançada pelo presidente Médici em Setembro de 1971: “Sempre
Brasil, só Brasil / canto sem medo de errar / e bem disse o Presidente /
é dever de toda gente participar...”(356)
Mesmo os irmãos Marcos e Paulo Sérgio Valle, que na década de 60
compuseram canções de crítica social como Terra de ninguém e Viola
enluarada, após a Copa do Mundo de 1970 apareceram com a marcha
exaltativa Sou tri-campeão”: “hoje / igual a todo o brasileiro / vou passar o
dia inteiro / entre faixas e bandeiras coloridas...” e com o samba Flamengo
até morrer, que em um de seus versos diz: “Que sorte eu ter nascido no
Brasil / até o Presidente é Flamengo até morrer / e olha que ele é o
Presidente do país”, enfatizando o fato de o presidente Médici cultivar a
imagem de amante do futebol e aparecer nas tribunas do Maracanã com
radinho de pilha ao ouvido torcendo para o mais popular clube brasileiro.
Como observou o escritor Edilberto Coutinho, “creio que devemos dar
razão a quem achou a letra dos Valle meio patrioteira”. (357)
E o que dizer do sambista Zé Kéti? Ele, que nos primeiros anos do regime
militar teve o seu samba Opinião transformado em hino da resistência, em
1972 parece ter mudado de opinião, porque gravou uma marcha em
homenagem ao Sesquicentenário da Independência e estampou a foto do
presidente Médici na capa do disco. Na época Zé Kéti dizia que a
composição Sua Excelência, a Independência “é tão boa que vou
recomendá-la ao ministro da Educação para ser cantada também nas
escolas”. (358)
Este apoio e o entusiasmo com o país governado pelos generais também foi
expresso pelo cantor e compositor Luiz Vieira, autor de Transarnazônica,
que exalta: “Pais, meu país / tão grande e capaz... na estrada que é o
rumo / da integração.”
Outro caso de adesão foi protagonizado pelo sambista João Nogueira, que
se empolgou com a decisão do governo Médici de estender de 12 para 200
milhas o limite do mar territorial brasileiro.
O decreto presidencial, assinado em Junho de 1971, determinava que
nenhum barco de pesca estrangeiro podia avançar aquele limite, sob pena
de ser apreendido pela Marinha do Brasil. Entretanto, o governo dos
Estados Unidos não aceitou a medida e autorizou todos os seus pesqueiros
a não respeitar senão a antiga faixa de 12 milhas, alegando que a decisão do
Brasil contrariava o Direito Internacional. (359)
A contestação norte-americana provocou manchetes sensacionalistas na
imprensa brasileira - “EUA vão entrar no peito em nossas águas” (360) e forçou o governo Médici a mobilizar aviões da FAB e uma força-tarefa
da Marinha, composta de um cruzador, sete contratorpedeiros e dois
submarinos, para proteger o litoral brasileiro.
Talvez tomado pelo mesmo delírio que anos mais tarde levaria os militares
argentinos à tragédia das Malvinas, o almirante Adalberto de Barros Nunes,
ministro da Marinha, justificou a mobilização de guerra sob argumento de
que o decreto das 200 milhas “é uma lei do povo e, como tal, todo
sacrifício para fazê-la cumprir é pouco”, advertindo ainda que “o Brasil
entrou em duas guerras mundiais e não desejamos a terceira” mas “o
que é nosso não vamos entregar a ninguém” (361)
Pois foi em meio a este clima que João Nogueira compôs Das duzentas
para lá” - "esse mar é meu / leva seu barco pra lá desse mar / esse mar é
meu..." - , samba que alcançou enorme popularidade, reafirmando, em
1972, a mitologia verde-amarela: "E o barquinho vai com nome de
caboclinha / vai puxando a sua rede / dá vontade de cantar / tem rede
amarela e verde / do verde azul desse mar..."
O vendaval ufanista do período do governo Médici arrastou mais artistas da
MPB que transitavam pelos círculos da esquerda.
Que o diga o cantor Ivan Lins, que no V Festival Internacional da Canção,
em 1970, para surpresa do público universitário, apareceu com a
composição O amor é o meu país. Uma testemunha daquele festival, o
jornalista Mylton Severiano, recorda-se ainda hoje da primeira audição da
música de Ivan: “Aquilo soou como acinte para nós, os massacrados;
parecia a versão musical do lema 'Brasil: ame-o ou deixe-o' da
ditadura.” (362
A oposição protestava mas as adesões se ampliavam. O conjunto Os Três
Morais, grupo vocal que despontou no início dos anos 60 no programa O
Fino da Bossa e que acompanhou Chico Buarque na gravação de Noite dos
mascarados (marcha-rancho incluída no segundo LP do cantor), também
harmonizou suas vozes com as mensagens da propaganda oficial do
regime.
Em 1973 eles gravaram as marchas Amor e paz - "não adianta querer
lastimar / melhor é poder colaborar...”- e O Brasil merece o nosso amor,
versão musical do slogan homônimo lançado pelo presidente Médici em
agosto daquele ano: “Pra frente, com decisão / iremos com união / paz
com trabalho e dedicação / mostrando com orgulho todo o nosso valor /
o Brasil merece o nosso amor...”
Outro famoso slogan cívico-patriótico do governo Médici foi incorporado
em 1972 pelo compositor carioca João Roberto Kelly.
Autor de algumas das mais populares marchas carnavalescas – Cabeleira
do Zezé, Mulata iê iê iê, Rancho da praça Onze - , o compositor utiliza este
mesmo ritmo em Você constrói o Brasil , faixa gravada pela cantora
Emilinha Borba, a "favorita da Marinha", mas que também deve ter
agradado a todos do Exército e da Aeronáutica: “Pisando firme, numa
terra firme / sem guerra e sem nada que aborreça... / você constrói o
Brasil / e vai construir muito mais / tudo está virando jóia / jóia de
amor e de paz...”
Este sentimento de ufania e de otimismo com o país era intensificado pela
propagada idéia de que existiria congraçamento racial e social no Brasil tópico defendido pelos ideólogos do regime militar.
Em maio de 1972, por exemplo, num ato público comemorativo aos 84
anos de assinatura da Lei Áurea, o presidente do Instituto Histórico e
Geográfico de São Paulo, Aureliano Leite, discursou que apesar da
existência da casa-grande e da senzala “sejamos gratos aos nossos
destinos, que nos pouparam de males piores” porque, segundo ele, “a
escravatura não impediu que o Brasil conseguisse penetrar na era
atual de franco progresso, sem profundos desníveis, nem os entraves
dos complexos raciais”.(363)
Surpreendentemente, esta idéia também foi respaldada naquela época pela
cantora (e mais tarde militante do movimento negro), a compositora Leci
Brandão, autora do samba Nada sei de preconceito, que exalta: “Minha
terra é verde-amarela / e meu amigo branco é meu irmão / ele é do
asfalto e eu sou da favela / mas existe a integração...”
Do universo do samba para o da canção sertaneja o discurso é praticamente
o mesmo.
A dupla Léo Canhoto & Robertinho, uma das precursoras no uso de
instrumentos elétricos na música de origem caipira, lançou em 1971 a
marcha Minha Pátria Amada, composição que em cinco estrofes define
alguns dos principais mitos já construídos ao longo do tempo sobre a
nacionalidade brasileira: país da democracia racial ("aqui os negros e os
brancos se entendem / sem preconceito nem de raça e nem de cor..."); do
homem cordial ("o brasileiro sempre foi muito gentil/ quem nasce aqui tem
mais bondade e mais amor..."); da convivência harmoniosa (“nós
trabalhamos semeando em nossa terra / ordem e progresso / liberdade, paz
e amor..."); da história incruenta ("aqui, seu moço, não existe a tal de
guerra / nosso caminho é enfeitado de flor..."); e do paraíso tropical
("Brasil querido / tua beleza não se encerra / tu és a terra prometida por
Deus").
Os exemplos de canções ufanistas produzidas naquela época são vários,
não havendo necessidade de citá-los todos ainda assim, alguns outros
títulos representativos, com destaque para a produção do compositor
Miguel Gustavo, serão apresentados no capítulo No pais dos mortos-vivos.
Por hora, basta dizer que não foi por mera coincidência que exatamente no
inicio do período do "Milagre" (1969/70), diversos cantores brasileiros
resolveram regravar a ufanista Aquarela do Brasil, de Ary Barroso. O
famoso samba-exaltação lançado por Francisco Alves em 1939 e principal
trilha sonora da ditadura do Estado Novo - , ressurgia exatos 30 anos
depois em outra ditadura, a militar, e em gravações quase simultâneas nos
discos de Elis Regina, Tom Jobim, Agostinho dos Santos, Erasmo Carlos,
conjunto Os Incríveis e outros. (364)
Portanto, a marcha Eu te amo meu Brasil é apenas mais uma entre diversas
outras composições que naquele momento expressavam um certo otimismo
com o país. Como observou Dom, isto era uma marca da época.
Mas, esquecendo-se deste fato, em seu livro de memórias Nelson Motta
afirma que com esta “marchinha ufanista e oportunista” Dom e Ravel
“foram execrados e banidos pelo mundo musical brasileiro por alta
traição’. (365)
É o caso de se perguntar; quem, do "mundo musical brasileiro", atirou a
primeira pedra? Como se viu, vários cantores/compositores da nossa
música também deram a sua contribuição ao clima ufanista do período do
governo Médici.
Para estes artistas, como para grande parte da população brasileira, o
ufanismo era algo natural e legítimo naquele momento. Este fato demonstra
até que ponto a ideologia do "Brasil Grande" foi sendo paulatinamente
inferiorizada por diversos cantores populares, sem que eles, muitas vezes,
se dessem conta de sua significação política.
Impulsionados pela repercussão de Eu te amo meu Brasil, em fins de 1970,
Dom & Ravel retomam com todo o vigor a carreira de cantores, passando a
se apresentar em programas de televisão e em shows por todo o país.
Consolidando o sucesso, em março do ano seguinte foi gravado o primeiro
LP da dupla, e uma das faixas de maior destaque é a balada Só o amor
constrói, mensagem de união e fraternidade que, mesmo não sendo
ufanista, está acompanhada de signos identificados com a ideologia
expressa pelo regime militar.
Na contracapa do disco, sugestivamente intitulado "Terra Boa", Dom e
Ravel aparecem ao lado de operários num canteiro de obras - imagem que
enfatiza a idéia de progresso e de construção de um novo país. Acrescentese ainda que os versos de Só o amor constrói subliminarmente faziam
referência àqueles que, em radical oposição ao sistema político-econômico
dominante no Brasil, optaram pelo caminho da luta armada na certeza de
que quem sabe faz a hora, não espera acontecer.
Apostando no isolamento político do governo Médici e movidos pela
máxima dos guerrilheiros cubanos segundo a qual "o dever do
revolucionário é fazer revolução", as organizações clandestinas de esquerda
abrangiam, além do PC do B - que lutava no Araguaia - , grupos como a
ALN (Ação Libertadora Nacional, do ex-deputado Carlos Marighella), a
VPR (Vanguarda Popular Revolucionária, do ex-capitão do Exército Carlos
Lamarca) e o MR8 (Movimento Revolucionário 8 de Outubro, referência à
data da morte de Ernesto Che Guevara).
E cada um deles pautava a maioria de suas ações de acordo com o manual
da guerrilha urbana: atentados a bomba e armas de fogo, seqüestros de
aviões e de diplomatas e assaltos a bancos e a carros blindados.
Testemunha de um desses episódios - o que envolveu o seqüestro de um
avião da Varig que fazia a rota Buenos Aires-Porto Alegre - , o comandante
da aeronave, Geraldo Werner Knippoling, descreveu no dia seguinte a ação
e o perfil de um dos seqüestradores: “Mais ou menos depois de uma hora
de vôo de Buenos Aires, depois do almoço, bateram violentamente na
cabine, abriram a porta e entrou um rapazola, pálido, trêmulo, com
cara de aloprado, extremamente nervoso, empunhando uma colt.”
(366)
Movidos pelo idealismo de transformar o Brasil em um país socialista, sem
explorados nem exploradores, os militantes da esquerda revolucionária, em
sua maioria jovens entre 20 e 25 anos, desafiavam o Estado ditatorial, que
prontamente respondia com prisões, torturas e mortes que marcaram aquele
período como os "anos de chumbo".
A mais espetacular ação da guerrilha foi o seqüestro do embaixador dos
Estados Unidos Charles Burke Elbrick, em Setembro de 1969, no Rio. O
diplomata estava a caminho da embaixada quando foi surpreendido pela
ação dos guerrilheiros. “O sequestro se deu muito rapidamente”, afirma
Fernando Gabeira, um dos participantes do episódio. “O motorista do
embaixador não chegou a perceber tudo. O que ele viu foi um carro
barrando sua passagem na rua Marques. Ele parou e já apontavam
uma pistola contra sua cabeça, enquanto dois homens entravam no
banco de trás e dominavam o embaixador.” (367)
Consta que naquela noite, ao ser informado do fato, o presidente norteamericano Richard Nixon perguntou a Willian Rogers, seu secretário de
Estado: “Rogers, que merda é essa?” (363)
O espanto de Nixon tinha razão de ser porque aquele foi o primeiro
seqüestro de um embaixador norte-americano no mundo. A ação foi
executada por duas organizações guerrilheiras, o MR-8 e a ALN, que
exigiram dos militares a libertação de quinze presos políticos e a
divulgação de um manifesto revolucionário nos principais veículos de
comunicação do país.
Pressionado pelo próprio Richard Nixon - que queria seu embaixador de
volta são e salvo - , em 48 horas o governo entregou os quinze militantes
presos (entre os quais Vladimir Palmeira, José Dirceu e Gregório Bezerra),
embarcando-os num avião para o exílio no México.
Horas antes, a população acompanhara pelo rádio e TV a leitura do
manifesto dos guerrilheiros, que em um dos trechos dizia: “Este ato não é
um episódio isolado. Ele se soma aos inúmeros atos revolucionários já
levados a cabo, como assaltos a bancos, onde se arrecadam fundos para
a revolução, tomando de volta o que os banqueiros tomam do povo e de
seus empregados”. (369)
Esta bem-sucedida ação dos guerrilheiros brasileiros estimulou outras
operações do gênero. Em março de 1970 militantes da VPR seqüestraram
em São Paulo o cônsul japonês Nobuo Okuchi também trocando-o por
presos políticos; três meses depois uma ação conjunta da ALN e da VPR
seqüestrou no Rio o embaixador da Alemanha Ocidental, Ehrenfried von
Holleben; e em dezembro foi a vez do embaixador suíço Giovanni Enrico
Bucher cair nas mãos do grupo de Carlos Lamarca, que no ato matou o
guarda-costas do diplomata.
“Será que vale a pena entrar nessa, com vinte anos? Arriscar a vida
por uma causa política? Você realmente está convencido de que pode
mudar as coisas?”, perguntou o embaixador suíço a um de seus
seqüestradores, o estudante Alfredo Syrkis. (370)
Indiferentes a essas questões, as forças militares se uniram no combate sem
trégua e sem regra às organizações de esquerda. Em junho de 1969 foi
instituída em São Paulo a chamada Operação Bandeirantes OBAN, órgão
centralizados das atividades anti-guerrilha e que contava com o apoio
financeiro de grandes empresas brasileiras e multinacionais. Inicialmente
de caráter extralegal, no ano seguinte a OBAN foi oficializada pelo
governo Médici sob a denominação de DOI/CODI. (371)
A partir daí a execução de presos políticos tornou-se uma prática
sistemática no país, dispensando-se a pena de morte por sentença nos
tribunais. Em consequência, crescia o número de "desaparecidos' ou de
mortos em fictícios tiroteios com a polícia.
Um caso exemplar foi o que envolveu o militante da ALN Eduardo Leite, o
Bacuri, que comandou o seqüestro do embaixador alemão Von Holleben.
Preso no Rio, em agosto de 1970, pela equipe do violento delegado Sérgio
Paranhos Fleury, o guerrilheiro foi interrogado e torturado, mas nada falou.
Transferido para São Paulo, as sevícias continuaram pelas mãos do próprio
Fleury, que também nada conseguiu arrancar do guerrilheiro. Mas o preço
que Bacuri pagou foi muito alto. Seu corpo chegou ao necrotério
totalmente desfigurado: os olhos vazados, as orelhas decepadas, as costelas
partidas, as pernas fraturadas, a genitália queimada e os dentes arrancados
ou quebrados.
Fleury plantou na imprensa a versão de que Bacuri morrera numa troca de
tiros com a polícia no litoral de São Paulo - versão estampada na primeira
página do jornal Folha da Tarde, com o título: “Terror: metralhado e
morto outro facínora”. (372) Foi por essas e outras que caminhonetes do
Grupo Folha cujo proprietário, Octavio Frias de Oliveira, era um dos
financiadores da OBA - sofreram ataques de grupos guerrilheiros no inicio
dos anos 70.
A violência da esquerda armada - que não foi vítima passiva da repressão atingia níveis mais altos na prática daquilo que ela mesma denominava de
"justiçamento": a execução capital do inimigo ou companheiro acusado de
traição. Em Fevereiro de 1973, por exemplo, Otávio Gonçalves Moreira
Júnior, jovem delegado do DOPS paulista e voluntário da OBAN, foi
fuzilado por guerrilheiros numa esquina de Copacabana, quando voltava de
um jogo de volei na praia.
“Caçador maldito, devia esperar que um dia fosse o da caça. A direita
está no seu papel ao lhe tributar homenagens. A esquerda não tem por
que lamentá-lo”, diz o historiador e ex-militante do PCBR Jacob
Gorender. (373)
Outro ato de "justiçamento" envolveu o ex-capitão do Exército Carlos
Lamarca. Atuando numa região do Vale do Ribeira, em abril de 1970 ele e
mais quatro militantes da VPR simularam um "tribunal revolucionário" e
decidiram que o tenente Alberto Mendes Júnior, preso em poder do grupo,
deveria morrer.
Sentença decretada, um guerrilheiro posicionou-se por detrás do tenente e
desferiu-lhe um violentíssimo golpe de fuzil na nuca. O tenente caiu com a
base do crânio partida e, enquanto se debatia no chão, outras coronhadas
esfacelaram sua cabeça. Esta inusitada forma de execução foi justificada
com o fato de que tiros poderiam despertar a atenção de patrulhas próximas
ao local.
O episódio aumentou ainda mais a revolta dos militares contra o "desertor"
Carlos Lamarca. Talvez por um erro de avaliação, naquele mesmo ano, em
manifesto enviado pelo correio a vários oficiais do Exército, Lamarca
conclamava seus ex-companheiros de farda a formar com ele "um exército
do povo", empenhado na luta para que "as fábricas sejam dirigidas pelos
próprios operários". (374)
A utopia revolucionária esteve muito longe de ser realizada no Brasil.
O processo de destruição do movimento de guerrilha foi veloz e se deu
tanto pela fragilidade das organizações, já divididas em vários grupos,
como pela eficiência crescente da repressão - que contava com
flagrante superioridade numérica e tecnológica.
Um a um, foram caindo todos os aparelhos clandestinos e assassinados os
principais líderes guerrilheiros.
Tentando romper o cerco imposto pelo Exército, em Setembro de 1971
Lamarca e seu companheiro José Campos Barreto, o Zequinha,
ziguezaguearam cerca de 300 quilômetros pelo sertão da Bahia.
Na tarde do dia 17, uma sexta-feira de sol escaldante, eles repousavam
famintos e fatigados à sombra de uma baraúna quando foram metralhados
pela tropa comandada pelo major Nilton Cerqueira, chefe do DOI-CODI de
Salvador.
Outra grande baixa para a esquerda armada foi a do fundador da ALN, o
veterano guerrilheiro Carlos Marighella - o homem mais procurado do
Brasil - vítima de uma emboscada policial em São Paulo, na noite de 4 de
novembro de 1969. “Dos quatro tiros que mataram Marighella, um era
meu”, gabava-se o delegado Fleury. (375)
Lançada no auge desta luta, a canção Só o amor constrói é um reflexo de
tudo isto, como destaca o proprio Dom em seu depoimento: “Eu via gente
comentando que muitas pessoas tinham sido assassinadas, tanto de um
lado quanto do outro: gente da esquerda matando; gente da direita
torturando, aquela confusão toda, um lado querendo destruir o outro.
E então, imbuído por aquele sonho de ver os interesses divergentes
conciliados, eu fiz 'só o amor constrói / por favor, plante uma flor / pra
florir nosso país..’”
Por seu conteúdo textual lírico-humanitarista constata-se que a composição
de Dom é resultado também da influência do movimento flower power, que
naquela época se expressava no slogan "faça amor, não faça guerra" e em
várias canções de sucesso internacional como, por exemplo, Aquarius e Let
The Sunshine (do musical Hair) e Give Peace a Chance e Imagine, ambas
de John Lennon.
Mas enquanto as mensagens pacifistas cantadas em inglês eram motivadas
pela Guerra do Vietnã que naquele momento ocupava o centro do debate
mundial - , as canções de Dom & Ravel refletiam a "guerra suja" e
silenciosa travada no interior do nosso próprio país. Como ilustra outra
gravação da dupla, Glória aos jovens, que na primeira parte da letra diz:
“Apesar da fome e da guerra / nossa gente sente amor / é a salvação da
terra / é o poder da flor...”. Como se vê, os irmãos Dom e Ravel faziam
parte daquele segmento da sociedade que, em 1968, Geraldo Vandré
definiu de “indecisos cordões / que ainda fazem da flor o seu mais forte
refrão / e acreditam nas flores vencendo o canhão.”
Outra gravação da dupla a alcançar grande sucesso e polêmica em 1971 foi
a balada Você também é responsável(376), que se tornou uma espécie de
símbolo do Mobral (Movimento Brasileiro de Alfabetzação), projeto
educacional desenvolvido na época pelo governo Médici. (377)
Segundo Dom, esta composição surgiu a partir de um convite do vereador
Tibiriçá Botelho, coordenador do Mobral em São Paulo e homem ligado ao
ministro da Educação, Jarbas Passarinho. O vereador dizia que seria
interessante Dom e Ravel tomarem conhecimento do que estava se
passando no âmbito da Educação no Brasil e os convidou a conhecer de
perto o projeto em São Paulo.
Naquele momento, o otimismo em relação ao Mobral era intensificado com
a ampla divulgação dos primeiros números oficiais mostrando que, entre
1970 e 1971, haviam sido alfabetizados 2 milhões dos 16 milhões de
adultos analfabetos brasileiros. (378)
Nesta perspectiva, o presidente do Mobral, o economista Mário Henrique
Simonsen, chegou a projetar a alfabetização de mais 8 milhões de pessoas
entre 1971 e 1974. E o governo fixava o prazo de 10 anos para erradicar de
vez o analfabetismo do Brasil.
Cartazes com a mensagem "Encaminhe mais um ao Mobral" eram
espalhados por vários pontos do país e também contagiaram a dupla Dom
& Ravel. “Realmente, eu me entusiasmei por aquelas idéias” - confirma
Dom - “eu já estava pensando em fazer uma música abordando a
questão educacional em nosso país, mas ao tomar conhecimento mais
profundamente daquele projeto de se erradicar o analfabetismo do
Brasil, resolvi fazer Você também é responsável.”
Ravel reitera o que foi dito por seu irmão – “eu acreditava nas propostas
do Mobral e cheguei a ver em algumas cidades do interior os barracões
improvisados em fazendas e professorinhas ali ensinando os
trabalhadores do campo a ler e escrever “ - , mas aborda também um
outro aspecto ao recordar a gênese da canção: “Durante os nossos shows
pelo Brasil era muita gente mesmo que chegava pra nós e dizia
'gostaria muito de escrever uma carta pra vocês, mas não sei escrever'.
Havia meninas de 15 ou 16 anos que nos pediam um autógrafo e
falavam 'o que você escreveu aí, hein?, fala pra mim, porque eu não sei
ler nem escrever'. E isso não acontecia uma, duas, dezenas de vezes,
não. Foram milhares de vezes. Eu dava milhares de autógrafos por
todo o Brasil e muitas pessoas me perguntavam o que eu havia escrito.
E eram aquelas pessoas simples do campo que você, ao cumprimentar,
não conseguia nem fechar a mão, pois eram mãos cheias de calos. Não
sabiam ler nem escrever, só sabiam pegar na enxada e plantar. E isso
tudo doía no coração.”
A balada Você também é responsável vai expressar estes dois aspectos:
entusiasmo com o projeto do governo (o título da canção foi tirado do
slogan da campanha do Mobral) e empatia com a dificuldade de milhões de
brasileiros que, excluídos da ordem social, não tiveram oportunidade de
aprender a ler e escrever: “Eu venho de campos / subúrbios e vilas /
sonhando e cantando / chorando nas filas / seguindo a corrente sem
participar / me falta a semente do ler e contar...”
Nesta primeira estrofe da letra aparece o espaço geográfico de onde se
originam os milhões de analfabetos brasileiros: a área rural e a periferia das
cidades (subúrbios e vilas), locais que, como se sabe, além da deficiência
educacional, padecem com a precariedade de serviços públicos básicos
(água, luz, esgoto, transporte, postos de saúde), o que torna o analfabeto
duplamente aviltado na sociedade. Mas na época ele também estava
excluído do processo político eleitoral, sem direito a votar e ser votado,
“seguindo a corrente / sem participar...” E a canção prossegue: “Eu sou
brasileiro e anseio um lugar / suplico que parem pra ouvir meu cantar
/ você também é responsável / então me ensine a escrever...”
Efetivamente, a canção conclama as pessoas a participar do projeto de
alfabetização que estava sendo implantado pelo governo Médici, e o último
verso “a nação merece maior dimensão / marchemos pra luta de lápis
na mão” era uma referência ao fato de naquele momento existirem
brasileiros marchando pra luta de armas na mão.
Mas a balada Você também é responsável, ao contrário do que
normalmente se diz, está muito distante do tom ufanista de Eu te amo meu
Brasil e de outras canções apologéticas da época. Cantando em forma de
lamento, ao estilo dos cantores negros norte-americanos, Dom & Ravel nos
apresentam agora um país marcado pelo contraste e pela exclusão social. E
talvez este fato é o que tenha levado algumas pessoas ligadas ao governo a
sugerir modificações no texto da canção.
*
“Eles disseram que gostaram da música, mas pediram que a gente
fizesse algumas alterações na letra” - , recorda Ravel, informando ainda
que estas sugestões teriam partido de setores ligados ao Ministério da
Educação e de representantes do Mobral em São Paulo.
Mas, afinal, a dupla modificou alguma coisa no texto de Você também é
responsável? “Não, nós conservamos a letra original, não mudamos
nada. Na época a gente fazia shows todos os dias, tínhamos uma vida
muito agitada e ficava difícil perder tempo com determinadas coisas. E
quando você está no sucesso acredita que o que você faz é que é o certo,
não existe o porquê de mexer, mesmo sendo uma coisa sugerida por
autoridades. Por isso a gente achou por bem não dar muita
importância àquelas sugestões de alterar a letra da música.”
Nem Dom nem Ravel recordam exatamente qual foi o trecho (ou trechos)
da letra que não agradou aos representantes do governo, mas talvez seja
possível supor que eles quisessem uma mensagem ufanista de exaltação às
realizações do Mobral, sem nenhuma referência às desigualdades sociais do
país. Só a título de comparação, citarei três canções da época que
efetivamente exaltaram o Mobral. A primeira, Oh! meu Brasil como eu te
amo, do cantor Fredson, em determinado trecho proclama: "Olha o pendão
da minha terra onde nasci / com o Mobral a ensinar tanta gente / oh! meu
Brasil, teu povo é tão feliz..."
A segunda é a marcha Viva o Mobral, gravação de Carequinha, que diz: "O
Mobral está é com você / já sei ler e escrever / nunca é tarde, vamos
aprender...”; e por fim, o samba-enredo O grande decênio, título que festeja
os dez anos do governo militar no Brasil. Cantado pela escola de samba
Beijas Flor no Carnaval de 1975, a composição, depois de exaltar projetos
como o PIS, Pasep e Funrural, acrescenta: "Lembraremos também / o
Mobral e sua função / que para tantos brasileiros / abriu as portas da
educação..."
Nota-se por esses exemplos que mensagens de exaltação ao Mobral não
faltaram naquele período.
Sobre a afirmação, também bastante recorrente, de que Dom e Ravel teriam
recebido dinheiro do governo militar para fazer a música, não há maiores
evidências, como se pode deduzir através da matéria publicada no jornal
Diário da Noite, de 12 de março de 1971, cujo título “Dom & Ravel, 50%
para o Ceará”, informa que “a dupla cearense cedeu 50% dos direitos
autorais a que tem direito em favor do Mobral do Ceará”.(379)
E hoje Ravel enfatiza: “Nós jamais ganhamos nada. Nem troféu, nem
condecoração, nem dinheiro nenhum com isso. Pelo contrário, o meu
irmão Dom ainda me convenceu a dar 50% dos direitos autorais dessa
música para o movimento do Mobral. É o maior otário, né? Um cara
que pensa que vai... consertar o mundo. E esse cheque era entregue na
coordenadoria do Tibiriçá Botelho. Todo mês a gente levava o cheque e
entregava lá. É brincadeira? Coisa de infantilidade, de inexperiência.”
Assim, é possível deduzir que houve uma sincera adesão dos artistas àquele
projeto educacional com o qual o governo anunciava a erradicação do
analfabetismo em nosso país.
Ao paraninfar uma turma formada pelo Mobral em 1971, o presidente
Médici chegou a dizer que aquele ato era o de “mais alta significarão” em
seus dois anos de governo por representar “a eliminação de duas grandes
tradições brasileiras: a do polegar e a da cruz, sinais até agora usados
para identificar a manifestação de vontade pessoal”. (380)
Apesar de todas estas manifestações de otimismo, o Mobral, como se sabe,
malogrou, frustrando a expectativa de Dom & Ravel e a esperança de
milhões de brasileiros que continuaram “sonhando e cantando / chorando
nas filas / seguindo a corrente / sem participar...” (381)
NOTAS BIBLIOGRÁFICAS APENSAS AO CAPÍTULO
(Pela numeração seqüencial encontrada no texto):
344. Apud Sergio Miceli. A noite da madrinha. São Paulo: Perspectiva,
1972, p. 275. Neste livro, originalmente uma tese de mestrado em
Sociologia sobre o programa de Hebe Camargo, o autor transcreve algumas
entrevistas que a apresentadora realizou em sua "sala de visita" no período
da pesquisa. A entrevista com o conjunto Os Incríveis foi gravada em 13-81970.
345. "O novo ufanismo” - Realidade, Setembro de 1970.
346. "União governo-povo" - Folha de S. Paulo, 8-9-1971.
347. Sônia Regina de Mendonca & Virgínia Mana Fontes, op. cit., p. 23.
348. Nelson Motta. Noites tropicais: solos, improvisos e memórias
musicais. Rio de Janeiro: Objetiva, 2000, p. 187.
349. Verso de Brasil! Para outras indicações ver índice de canções atadas
em Fontes e bibliografia. 350. "Minha terra” In Casimiro de Abreu. Poesias
completas. Rio de Janeiro: Zélio Valverde, 1940, p. 21.
351. Livro direcionado ao público infantil e que logo tornou-se um clássico
escolar, formando gerações de estudantes brasileiros, muitos dos quais
futuros líderes das elites econômica e política. Ali o autor apresenta o
Brasil como um paraíso geográfico escolhido por Deus para ser superior a
qualquer outro país do mundo. "Quando disserdes: 'Somos brasileiros',
levantai a cabeça, transbordante de nobre ufania. Convencei-vos de que
deveis agradecer cotidianamente a Deus o haver Ele vos outorgado por
berço o Brasil". Affonso Celso. Por que me ufano do meu país. 2a ed. Rio
de Janeiro: Expressão e Cultura, 1997, p. 27.
352. Verso de Brasileiro. Para outras indicações ver índice de canções
citadas em Fontes e bibliografia.
353. LP "Brasil... sambe ou se mande" (Pedrinho Rodrigues) - Equipe P.
1973/ LP "Brasil... quem quiser pode ir” – ( Jorginho do Império) - Equipe
P. 1973.
354. "Caboclinho pede a Médici a emancipação de uma cidade" - A
Notícia, 2-12-1972.
355. Verso de Sr. Presidente. Ver índice de canções citadas em Fontes e
bibliografia.
356. Verso do samba Sempre Brasil!Ver índice de canções citadas em
Fontes e bibliografia.
357 Edilberto Coutinho Nação rubro-negra. il. (coleção Grandes Clubes
Brasileiros e seus Maiores Ídolos; V. 1 - FIamengo). São Paulo: Fundação
Nestlé de Cultura, 1990, p. 372
358. "Zé Kéti no Opinião com novos sambas e um louvor a Natal" - O
Globo, 24-1-1972. Na letra de sua marcha-hino Zé Kéti louva a Petrobrás, a
rodovia Transamazônica, a bandeira do Brasil, enfatizando que em nenhum
outro lugar "Há beleza mais rara / nem natureza mais pura / falou a voz do
coração / ninguém, ninguém segura, não / já disse alguém ao mundo
inteiro..."- referencia à frase "Ninguém segura o Brasil", pronunciada pelo
presidente Médici durante a Copa do Mundo de 1970. Para outras
indicações ver índice de canções citadas em Fontes e bibliografia.
359. Registre-se que o Brasil não foi o primeiro país da América Latina a
fixar sua jurisdição marítima a 200 milhas da costa. Argentina, Uruguai,
Peru, Chile e Equador já tinham feito isto antes.
360 "EUA vão entrar no peito em nossas águas" - A Notícia, 3-6-1971
361. "Ministro desmente EUA e diz: Ás 200 milhas são do povo!"' - A
Noticia, 19-6-1971.
362. "Ouça, que não está nos livros" - Caros Amigos, edição de novembro
1999.
363. "Médici em comício abolicionista" - Luta Democrática, 14-5-1972.
364. Ver, por exemplo, LP "Elis como & porque - ”Philips P. 1969 / LP
“Antônio Carlos Jobim - Stone flower" - CTI Records – P. 1970/ LP
“Agostinho dos Santos" - Continental P. 1969/ LP "Erasmo Carlos e os
Tremendões" - RGE P. 1969/ LP "Disparo 70" (coletanea com uma faixa
de Os Incríveis) - RCA Victor P.1969.
365. Nelson Motta. Noites tropicais: solos, improvisos e memórias
musicais, op. cit., p. 223.
366. LP “A história de 1969: música e informação”. Rádio Jornal do Brasil
– P.1969.
367. Fernando Gabeira. O que é isso, companheiro? 16ª ed. Rio de Janeiro:
Codecri, 1980, p. 117.
368. Idem, p. 107.
369. LP “A história de 1969: música e informação". Rádio Jornal do Brasil
– P.1969.
370. Alfredo Syrkis. Os carbonários: memórias da guerrilha perdida. 7ª
ed. São Paulo: Global, 1980, p. 255.
371. DOI (Destacamento de Operações de Informações) / CODI (Centro de
Operações de Defesa Interna). Além de São Paulo, os DOI/CODI se
implantaram como instituições oficiais em várias outras capitais do país.
372. "Terror: metralhado e morto outro facínora" - Folha da Tarde, 9-121970.
373. Jacob Gorender, op. cit, p. 237.
374. Apud Nosso século (1960-1980), op. cit, p. 193.
375. Idem, p. 195.
376. Sucesso nacional, Você também é responsável aparece em 1º Iugar
entre as gravações mais vendidas na semana de 12 a 17 de Julho de 1971,
em Recife. Fonte: Ibope - Pesquisa sobre vendas de discos - Acervo do
Arquivo Edgar Leuenroth / Unicamp.
377. Presidido por Mário Henrique Simonsen, o Mobral foi impulsionado a
partir de 1970. Entretanto, o projeto havia sido criado pela Lei Nº 5.379, a
15 de dezembro de 1967, no governo Costa e Silva.
378. Cf. Nosso século (1960-1980), op. cit, p. 217.
379. "Dom e Ravel, 50% para o Ceará" - Diário AR Noite, 12-3-l971.
380. "Médici condena passado" - O Estado de S. Paulo, 11-9-1971.
381. As criticas e denúnaas em relação ao Mobral começaram a avolumarse a partir de 1973, e eram centradas nos seguintes pontos: os cursos
estavam aceitando alunos menores de 14 anos (portanto, em idade escolar);
muitos dos adultos diplomados não eram capazes de ler corretamente e,
principalmente, de compreender o que liam; devido à precariiedade das
salas de aula, às distancias, aos horários e à falta de pessoal qualificado,
apenas 40% dos inscritos conseguiam chegar ao fim do curso (Em 1975 foi
instalada uma CPl para apurar irregularidades no Mobral) Cf. Nosso século
(1960-1980), op. cit., p. 217.
CAPÍTULO 13:
A CULTURA DA BRUTLIDADE
(WALICK SORIANO E AS MÚSICAS DE REJEIÇÃO SOCIAL)
“Pudemos constatar por coincidência, numa filmagem do nosso grupo,
um trabalhador braçal no alto da Avenida Afonso Pena sair cantando
a música do ‘Cachorro’ depois de uma repreensão do encarregado.”
(Estudantes da PUC de Belo Horizonte)
***
A nova composição de Waldik Soriano pegou a todos de surpresa e o
mineiro José Fernandes chegou a exclamar: “Uai, e quem está dizendo
que ele é?” (382)
Um outro crítico foi mais enfático ao advertir que a faixa lançada “só
engana a quem nunca ouviu música na vida”. (383)
Chacrinha também não gostou e buzinou que depois dessa “coisa
horrível”, o repertório de Waldik Soriano merecia “uma dedetização... ou
uma cesta de lixo”.(384)
Estamos falando do lançamento daquele sucesso popular cujo título ainda
hoje freqüenta os pára-choques de velhos caminhões da estrada: Eu nao sou
cachorro, não.
Canção emblemática da época, Eu não sou cachorro, não foi composta por
Waldik Soriano numa noite de 1972, logo após ele chegar à cidade de
Natal, Rio Grande do Norte, para mais uma série de shows pelo NorteNordeste. O cantor havia embarcado de avião no Rio de Janeiro e estava
sendo aguardado no Aeroporto de Natal pelo empresário Winston de
Oliveira, com quem trabalhava na época. Entretanto, houve um longo
atraso do avião durante a escala em Recife, e quando finalmente
desembarcou em Natal, Waldik foi saudado pelo empresário com uma
exclamação irônica: “Porra, Waldik, estou até agora lhe esperando. Eu
não sou cachorro, não, rapaz!”
Este dito de origem popular, que o cantor já conhecia desde os tempos de
sua infância no interior da Bahia, naquele instante se revelou um ótimo
tema para mais uma canção. E foi ao longo do trajeto entre o aeroporto e a
casa do empresário onde ficaria hospedado que Waldik Soriano começou a
compor os versos e a melodia do bolero, que diz: ”Eu não sou cachorro,
não / pra viver tão humilhado / eu não sou cachorro, não / para ser tão
desprezado...”
Lançado em Outubro de 1972, o disco rapidamente alcançou os primeiros
lugares das paradas, vendendo milhares de cópias e tornando-se o maior
sucesso popular da carreira de Waldik Soriano. Nas escolas, nas ruas,
campos, construções, a canção era cantada, ouvida e discutida de norte a
sul do Brasil. Havia aqueles que a defenestravam e, naturalmente, a
multidão que a apreciava; o difícil era ficar indiferente a ela. Mas o que fez
este bolero tornar-se um sucesso tão grande no início dos anos 70?
Diversos artigos e reportagens foram publicados em jornais e revistas da
época, todos buscando uma explicação para o fenômeno. E a resposta mais
freqüente para o sucesso da canção era de que o povo brasileiro é ingênuo,
que aceita qualquer coisa ou, como se costumava dizer, “é porque o
Mobral ainda não chegou a muitos pontos do Brasil.” (385)
Deveremos nos juntar aos que rotulam este sucesso apenas como produto
da alienação do público? Ou quem sabe a aceitação desta música também
se deve ao fato de que ela apresenta uma mensagem de conteúdo crítico?
Aparentemente, o bolero de Waldik Soriano é apenas mais uma daquelas
ingênuas canções de dor-de-cotovelo que costumam freqüentar a
programação das emissoras de rádio, mas será que um refrão de tão forte
apelo popular como "Eu nao sou cachorro, não / pra viver tão humilhado /
eu não sou cachorro, não / para ser tão desprezado” não poderia também
estar sendo endereçado ao patrão, à patroa, ao gerente, ao policial, enfim,
aos representantes imediatos da opressão vivida pelo público ouvinte desta
música?
Afinal, constituímos uma sociedade autoritária e determinados segmentos
sociais como o das empregadas domésticas, porteiros de edifícios,
operários de construção, garçons e imigrantes nordestinos são
freqüentemente humilhados e ofendidos no cotidiano brasileiro.
E para eles que compõem a maioria do público de Waldik Soriano Eu não
sou cachorro, não não poderia significar muito mais do que uma simples
queixa amorosa?
Esta possibilidade foi percebida e comprovada em um pequeno trabalho
sobre música popular realizado em 1973 por um grupo de alunos do curso
de Comunicação da PUC de Belo Horizonte.
Ao analisarem algumas das canções de sucesso da época, entre as quais a
de Waldik Soriano, os alunos defendem que "não foi só o amor frustrado, a
dor-de-cotovelo ou coisa parecida, que levou essa grande massa à aceitação
e assimilação dessa música Eu não sou cachorro, não", justificando esta
opinião com um fato: “Pudemos constatar por coincidência, numa
filmagem do nosso grupo, um trabalhador braçal no alto da avenida
Afonso Pena sair cantando a música do 'cachorro' depois de uma
repreensão do encarregado.” (386)
Este flagrante do cotidiano brasileiro, colhido por acaso por um grupo de
estudantes de Minas Gerais, não poderia estar se repetindo também em
diversos outros lugares do país?
Quantos outros trabalhadores braçais, com os olhos embotados de cimento
e lágrimas, não poderiam estar cantando "Eu não sou cachorro, não / para
ser tão humilhado" depois de mais um gesto autoritário de um supervisor?
Ainda mais que durante o período do chamado "Milagre", o próprio ditador
Emílio Médici admitia: “A economia vai bem, mas a maioria do povo
ainda vai mal.” (387)
Esta inserção no contexto autoritário e excludente da nossa sociedade
investe Eu não sou cachorro, não de um sentido crítico que lhe dá nova
conotação, sem esvaziá-lo de seu sentido original. A letra do bolero adquire
assim uma relativa autonomia ante seu significado literal imediato - aspecto
que é destacado inclusive pelo cantor Waldik Soriano.
Ao explicar o enorme sucesso conseguido pela música, ele afirma que isto
se deve ao seu refrão, ou seja, àquela parte do texto mais abrangente e
universal. "O povo ainda não conhece a letra desse bolero, porque o
sucesso dele não é o conteúdo das outras estrofes; é só o refrão: 'Eu não sou
cachorro, não / para ser tão humilhado / eu não sou cachorro, não / para ser
tão desprezado', que no fundo é uma forma de protesto: 'você está pensando
que eu sou o quê?"'.
E novamente Waldik Soriano, ao relatar a sua história de vida e recordar o
tempo em que era apenas mais um daqueles anônimos imigrantes
nordestinos recém-chegados para trabalhar em São Paulo, afirma que "a
vida na cidade grande não dá colher de chá com facilidade. Levanta-se
às quatro da matina para pegar a condução e chegar ao trabalho" e
que para garantir a marmita de cada dia ele teve que se virar como
engraxate, servente de pedreiro e depois faxineiro numa tipografia. “Ali
demorei muito pouco, briguei com o gerente da firma, pois o sujeito me
tratava pior do que cachorro, então, para mostrar 'não ser cachorro,
não', apelei para o braço” (388)
Portanto, a canção reflete a condição social e os embates contra o
autoritarismo vivenciados pelo próprio autor. E tudo isto serve de
"indícios", "sinais", (369) de que a opressão relatada na letra de Eu não sou
cachorro, não não se refere somente a uma relação amorosa e nem que o
público a interpretasse apenas desta maneira. Aliás, registre-se que este
processo de releitura coletiva do significado explícito de uma canção extrapolando as intenções de seu autor - é muito mais comum do que se
imagina, e um exemplo clássico disto é o samba Opinião, composição de
Zé Keti que resultou no show homônimo.
Originalmente este samba de Zé Keti era um protesto contra o Programa de
Remoção implantado pelo governo Carlos Lacerda em 1962, que obrigava
os moradores de doze favelas da cidade do Rio de Janeiro a se mudarem
para locais distantes, como as recém-construídas vilas Kennedy (em
Senador Camará), Esperança (Vigário Geral), Aliança (Bangu) e o conjunto
habitacional de Cidade de Deus, em Jacarepaguá.
A forma autoritária e truculenta como era feita a remoção (algumas favelas,
como a do Pasmado, chegaram a ser incendiadas para forçar a saída dos
moradores), assim como a dificuldade de transporte entre os novos locais e
o Centro da cidade, acabaram gerando a resistência dos habitantes dos
morros. E é isto o que o compositor Zé Keti retrata na letra de seu famoso
samba:
PODEM ME PRENDER, PODEM ME BATER
PODEM ATÉ DEIXAR-ME SEM COMER
QUE EU NÃO MUDO DE OPINIÃO
DAQUI DO MORRO EU NÃO SAIO NÃO...
Mas ao ser gravado pela cantora Nara Leão, no fim de 1964, o samba foi
transformado pela esquerda em um emblema para a sua luta contra o
recém-instalado governo militar. E em clima de catarse coletiva, a
composição era cantada todas as noites pelo público universitário durante o
show Opinião, apresentado no Teatro de Arena, na Zona Sul do Rio de
Janeiro. Entretanto, como observa o jornalista Ruy Castro, o samba
realmente "parecia um hino de resistência aos maus bofes dos milicos,
perfeito para o momento. Mas era inacreditável que as pessoas não se
sentissem desconfortáveis na platéia quando Zé Keti continuava a letra –
(... 'daqui do morro eu não saio, não / se não tem água eu furo um poço
/ se não tem carne eu compro um osso / e ponho na sopa / e deixa andar
/ deixa andar...') trecho que apresenta o mais leso e preguiçoso
conformismo, mas ninguém parecia reparar.” (390)
E ninguém reparava justamente porque o samba Opinião tem um refrão
impactante, aberto, que enfatiza a resistência e que servia naquele momento
para insuflar a luta contra o regime dos generais. Mas é possível dizer que
até hoje a maioria das pessoas também não conhece as outras duas estrofes
da letra deste samba.
Enfim, o que se quer destacar aqui é que esta releitura ou apropriação que o
público de classe média intelectual fez do samba de Zé Keti pode ter sido
realizada também pelas camadas populares em relação ao bolero de Waldik
Soriano. E, neste sentido, ambas as composições veicularam uma
mensagem de protesto e resistência.
Além de Eu não sou cachorro, não, várias outras gravações "cafonas"
lançadas no período do AI-5 também apresentam em seus versos alguma
forma de desabafo contra a opressão e o tratamento humano degradante. E
isto nos remete mais uma vez a Marilena Chauí, quando esta afirma que
existe um "desejo único pelo qual o oprimido se diferencia radicalmente do
opressor: o desejo de não-opressão”. (391)
Encontramos isso, por exemplo, numa canção de Paulo Sérgio intitulada
Não me trate como um cão, e numa outra em que ele protesta: “É cara a
compreensão / de graça a agressão / o que será dos que virão? /
respeito humano é o que não há”. (392) Paulo Sérgio: "Não me trate
como um cão"
E este anseio por um tratamento humano decente prossegue em gravações
como Nem cachorro é maltratado como eu (Waldik Soriano); Eu não sou
lixo (Evaldo Braga), Eu não sou tapete (Luiz Fabiano) e Eu não sou sapato
seu, outra mensagem de protesto lançada por Waldik Soriano: "Voce já se
esqueceu / que tenho alma e que sou gente também... /... não aceito e não
mereço desaforo de ninguém".
Nota-se que esta geração de artistas utiliza de forma freqüente a primeira
pessoa em suas composições; e o "eu" sobrepõe-se ao "nós" tanto no corpo
da letra como nos próprios títulos das canções. Mas talvez pudéssemos
estender a esta produção musical a mesma observação que os historiadores
Fernando Faria e Maria Izilda de Matos fizeram em relação à obra de
Lupicínio Rodrigues.
Ao constatarem o emprego freqüente da primeira pessoa nos sambascanções do compositor gaúcho – Eu sei eu e meu coração, Eu é que não
presto, Eu não sou de reclamar - , os autores afirmam que o "eu" de
Lupicínio Rodrigues "é também o de todos os que cantam suas músicas e
com elas se identificam, o que pode ser interpretado como uma simples
estratégia discursiva de transformar o singular em universal, mas é
sobretudo a capacidade do artista de captar emoções que circulam
socialmente".(393)
Este "eu" "legião", que expressa um sentimento coletivo pelo individual,
também está presente na balada Não pise em cima de mim, composição de
Nelson Ned que subliminarmente conduz à reflexão sobre as relações de
poder em todos os niveis: "Não vá pensando que eu vou me deixar dominar
/ por esse jeito arrogante que você tem de mandar / não pise em cima de
mim...".
Assim como Eu não sou cachorro, não, a maioria dessas canções traz em
seu texto o discurso da rejeição amorosa, mas em função do lugar social
ocupado por seu público ouvinte, pode ganhar novo sentido - o de rejeição
social - , tornando-se assim uma forma de protesto. Ressalvo que é um
protesto diferente dos que foram produzidos pelos compositores de
formação universitária, mas que não é menos protesto por causa disso.
Naquele momento, esta era a forma possível e necessária para aqueles
segmentos da sociedade brasileira historicamente excluídos da ordem
social e condenados ao silêncio. E para eles a mensagem de canções como
Não pise em cima de mim e Eu não sou cachorro, não pode ser tão
significativa quanto a do samba Opinião para o público universitário de
esquerda.
Este caráter de resistência contido na composição de Waldik Soriano foi
percebido na época por alguns compositores da MPB, que se apropriaram
do refrão de Eu não sou cachorro, não, enfatizando-lhe o conteúdo crítico.
E o famoso bolero emergiu mais uma vez como referência emblemática na
luta contra a opressão e o autoritarismo.
Belchior, por exemplo, em uma de suas canções, cita os versos de Waldik
Soriano para denunciar a exclusão e a desigualdade existentes na sociedade
brasileira: “Miseráveis sempre sem pão / e daqui a pouco, sem circo /
coisa ante cuja visão dá vontade de morrer.../ ...eu não sou cachorro,
não / pra viver tão humilhado...” (394)
O bolero de Waldik Soriano foi também citado pelo cantor Raul Seixas
numa composição de 1975, cuja letra retrata a angústia de um cidadão
brasileiro da pequena classe média que, com o fim do "milagre
econômico", vive no maior sufoco para pagar as contas de luz, do gás e do
"quitinete de um quarto / que eu comprei pela Caixa Federal, au au au / eu
não sou cachorro, não".
E sempre atento aos fenômenos musicais do rádio, em 1978 Caetano
Veloso também citou a canção de Waldik Soriano, porém, ao lado de uma
outra de Chico Buarque, procurando assim conciliar apostos nos versos do
samba Pecado original: "Quando a gente volta o rosto / para o céu e diz /
olhos nos olhos / da imensidão / eu não sou cachorro, não..”
Ao citar os boleros Olhos nos olhos, de Chico Buarque, e Eu não sou
cachorro, não, de Waldik Soriano, Caetano Veloso destacava os principais
representantes de duas vertentes da música popular brasileira do período:
Chico Buarque (canção de caráter sóciopolítico) e Waldik Soriano (canção
de lamento/queixa amorosa), relativizando assim a oposição MPB/MPC.
Aliás, o próprio Chico Buarque, com o pseudônimo de Julinho da
Adelaide, valeu-se da temática da rejeição amorosa para, malandramente,
driblar a Censura com os versos "Você não gosta de mim / mas sua filha
gosta”. (396) Ou seja, eu não sou cachorro, não.
A fronteira entre canção de amor e canção de protesto tornava-se assim
cada vez mais tênue. Como bem observa o professor Eduardo Granja
Coutinho, "canção política não significa necessariamente canção
revolucionária ou de agitação. Sem se colocar frontalmente contra o
regime, uma canção pode ser política por expressar críticas sociais e de
costumes, como um samba de Noel Rosa ou uma marchinha de Lamartine
Babo". (397) E eu acrescentaria: como um bolero de Waldik Soriano ou
uma balada de Odair José. E neste sentido o repertório "cafona" é também
marcado pelo conteúdo político, embora nunca fosse reconhecido como tal
pelo público da MPB.
Num tempo de forte radicalização ideológica como aquele da década de 70,
os setores mais intelectualizados da sociedade (que em grande parte
estavam em franca oposição ao regime militar) pareciam exigir de todos os
artistas manifestos explícitos contra o governo ou letras politicamente
engajadas como as de Apesar de você ou Pra não dizer que não falei de
flores.
Observe-se, contudo, que este tipo de manifestação de protesto também não
aparece na obra de nenhum dos principais compositores brasileiros de
origem popular: artistas como Cartola, Nelson Cavaquinho, Pixinguinha,
Ataulfo Alves, Dorival Caymmi, Silvio Caldas, Lupicínio Rodrigues, Luiz
Gonzaga e Herivelto Martins, que vivenciaram e produziram sob duas
ditaduras - a do Estado Novo e a Militar - , também não fizeram do protesto
político tema para sua obra musical.
Esta foi uma questão enfatizada a partir da incursão de segmentos da classe
média na produção da música popular com a bossa nova e, principalmente,
com o surgimento de uma geração de artistas de formação universitária
(Chico Buarque, Geraldo Vandré, Gilberto Gil, Edu Lobo, João Bosco,
Gonzaguinha e outros), que leram e estudaram Marx, Marcuse e McLuhan
na universidade; ou compositores que, mesmo não tendo curso
universitário, conviviam com este universo, como é o caso de Paulinho da
Viola e Milton Nascimento.
Assim, no conjunto de canções de protesto político produzido pelos
compositores da MPB durante o regime militar, destaca-se a temática do
exílio, questão que naquele período atingia diversos políticos, artistas e
intelectuais brasileiros. Três dos títulos mais representativos são Meu caro
amigo (Chico Buarque-Francis Hime), Tô voltando (Mauricio TapajósPaulo Cesar Pinheiro) e O bêbado e o equilibrista, samba de João Bosco e
Aldir Blanc que através da voz de Elis Regina tornou-se o hino da luta pela
anistia:
...MEU BRASIL
QUE SONHA COM A VOLTA DO IRMÃO DO HENFIL
E TANTA GENTE QUE PARTIU NUM RABO DE FOGUETE
CHORA A NOSSA PÁTRIA, MÃE GENTIL
CHORAM MARIAS E CLARICES
NO SOLO DO BRASIL
É até natural que a temática do exílio tenha aparecido na obra dos
compositores da MPB. Afinal, a realidade em que eles estavam inseridos
era marcada por este fato. Alguns tinham vivido a experiência do exílio ou
tinham parentes e amigos exilados em outros países.
O samba de João Bosco e Aldir Blanc conclama a "volta do irmão do
Henfil", o sociólogo Herbert de Souza, o Betinho, que na época estava
exilado no México, e também faz referência a Maria, viúva do deputado
Rubens Paiva, e Clarice, viúva do jornalista Wladimir Herzog, ambos
mortos por agentes da repressão; a letra do choro Meu caro amigo era
endereçada ao teatrólogo Augusto Boal, que se encontrava exilado em
Paris; e a do samba To voltando a todos aqueles que foram banidos pela
ditadura militar e retornavam ao país após a aprovação da Lei da Anistia
em Julho de 1979.
Já os compositores "cafonas", imersos em outra realidade social, não irão
evocar os exilados políticos que se encontravam na Europa e América
Latina, mas abordarão o drama dos exilados em sua própria pátria: os
milhões de brasileiros anônimos que, forçados por um sistema políticoeconômico excludente, deixaram sua cidade natal e partiram em busca de
melhores condições de vida na área urbano-industrial do sul do país. É na
passagem da década de 60 para a de 70 que o Brasil ingressa na faixa de
nações majoritariamente urbanas. (398)
E, nos anos seguintes, a estrutura de ocupação da terra continuaria a
expulsar mais gente do campo, principalmente do Nordeste, levando-os a
morar nos subúrbios, favelas e viadutos dos grandes centros urbanos. E
assim, outras Marias e Clarices também choravam no solo do Brasil. Como
ilustra o cantor Fernando Mendes em uma de suas composições:
ELA MORA DEBAIXO DA PONTE
DEBAIXO DA CHUVA DO SOL E DO VENTO
SEU OLHAR É UM TANTO SOFRIDO
SEU PEITO É PARTIDO DE DOR E TORMENTO
ELA MORA DEBAIXO DA PONTE
NO MEIO DA VIDA POR CIMA DA MORTE
SEU SORRISO É UM TANTO APAGADO
SEU GRITO ABAFADO ECOA POR DENTRO...
No livro A espoliação urbana - obra que enfatiza o contraste entre a
opulência do "Milagre Econômico" e a miséria de grande parte dos
brasileiros - , o sociólogo Lúcio Kowarick apresenta o relato de alguns
imigrantes nordestinos que no início dos anos 70 moravam em barracas e
favelas de São Paulo. O autor destaca que a trajetória de grande parte
destes imigrantes é marcada pela perda: da propriedade, da capacidade de
trabalhar, da auto-estima, já que o capital cultural que cada um deles
acumulou na vivência no campo ou na pequena cidade de origem pouca
serventia apresenta para o trabalho fraccionado da indústria.
Um dos depoimentos mais significativos reunidos no livro é o do baiano
Lindolfo, que em 1971, aos 42 anos, sobrevivia em São Paulo como
lavador de carros, faxineiro, ajudante de pedreiro e outros biscates. "Hoje
sou despojado. Não tenho mais ofício. Não consigo mais mascatear”,
lamentava-se o pobre imigrante, explicando ainda que “o homem
desempregado é como o boi que está amarrado num pau no meio do
pasto. Num dia o boi come tudo em volta. Mas no outro dia o dono
compadece dele e muda ele de lugar. Eu sou como boi amarrado que o
dono não muda de lugar. Eu não tive sorte aqui em São Paulo. Vou
voltar”. (400)
É justamente esta inadequação à grande metrópole e o desejo de retornar
para a cidade natal - sentimento compartilhado na época por milhões de
outros brasileiros - que os compositores "cafonas" expressam em canções
como Saudades da minha terra (Waldik Soriano), São Luiz, ilha do amor
(Claudio Fontana), O homem da montanha (Benito di Paula) e Eu vim da
roça, gravação de Fernando Mendes em que a "família" e a "terra querida"
são evocados numa aura de nostalgia, acentuada ainda mais pela
interpretação em tom melancólico do cantor: "Eu não consigo me
acostumar / sinto saudades da minha cidade / e da minha gente que ficou
por lá..."
Esta recorrência ao tema da migração também se explica porque esta
geração de cantores estabeleceu suas carreiras no eixo Rio-São Paulo principal centro irradiador dos sucessos nacionais - , apesar de a maioria
destes artistas ser oriunda de outros estados da federação: Waldik Soriano
(Bahia); Claudio Fontana (Maranhão); Paulo Sérgio (Espírito Santo); Luiz
Carlos Magno (Pernambuco); Nelson Ned, Agnaldo Timóteo e Fernando
Mendes (Minas Gerais); Odair José e Lindomar Castilho (Goiás); e a dupla
Dom & Ravel (Ceará). Ou seja: eles próprios são também imigrantes e
viveram desventuras longe da família, dos amigos e da terra natal.
Mas dado o fato de que todos tornaram-se bem-sucedidos em sua profissão
no grande centro, o lamento e inadequação que eles expressam nos discos
são na verdade o de milhões de imigrantes brasileiros anônimos que
perderam a sua base e não conseguiram restabelecê-la na cidade grande.
Exílio que é retratado por Paulo Sérgio na sua composição Vou voltar pra
minha terra: “Aqui não fico mais / a saudade em mim é tanta / de rever
meu lar, meus pais / e abraçar os meus irmãos.. "
Artista essencialmente romântico, mas sensível às questões sociais do país,
o cantor Paulo Sérgio também abordou o drama da seca e a conseqüente
saga dos retirantes nordestinos - tema que a partir da década de 40 aparece
em diversos baiões de Luiz Gonzaga, Zé Dantas e João do Vale. A toada
Nordeste (Terra Prometida), lançada por Paulo Sérgio em 1975, descreve a
aflição de um pai que, cansado de ver os filhos "sem destino certo / neste
deserto só de pedra e pó", resolve partir em busca de melhores dias no sul
do país: “As minhas lágrimas estão caindo / estou sentindo a dor de uma
partida / antes de ir, meu chão eu vou beijar / vou procurar a terra
prometida..."
Como se fosse continuação da música de Paulo Sérgio, o tema a seguir, O
camburão, gravação do cantor Kleber, relata a longa viagem de um
imigrante nordestino "quase dez dias / na esperança de vencer na vida / e
trazer sua família", do seu desembarque na estação ferroviária do Brás, em
São Paulo, e do seu duro encontro com uma realidade bem diferente da
sonhada por uma terra prometida. Confundido com um perigoso assassino,
o pobre imigrante é encostado na parede pela polícia, que exige: "Mostre
seus documentos." Assustado, ele tenta argumentar: "Seu moço, não sei de
nada / não sei do que tá falando / não tenho papel nenhum / há pouco que tô
chegando." Algemado e jogado num camburão "Seus olhos ficaram
vermelhos / e ele chorou por não entender nada..." E o compositor conclui:
...HOJE SÓ RESTA ESTA HISTÓRIA DO POBRE HOMEM
COITADO
PORÉM NA MINHA MEMÓRIA FICOU A VOZ DO POBREDIABO
“SEU MOÇO, NÃO SEI DE NADA, NÃO SEI DO QUE TÁ
FALANDO
NÃO TENHO PAPEL NENHUM, HÁ POUCO QUE TÔ
CHEGANDO”.
A figura da autoridade policial aparece aqui de uma maneira bem diversa
da que a propaganda oficial do regime procurava divulgar na época através
de alguns filmes publicitários que mostravam o policial como um cidadão
comum, cordial e protetor da população, sugerindo o congraçamento social
que deveria unir o povo e os militares. Ou seja, uma imagem oposta à que
era constatada no cotidiano de qualquer grande cidade do país e como tão
bem flagrou a composição de Kleber.
É possível até fazer-se uma analogia entre a balada O camburão e uma
outra mensagem emblemática da época, o samba Acorda amor, de Chico
Buarque, que narra o despertar de um cidadão sobressaltado com a polícia
no portão de sua casa: "É a dura / numa muito escura viatura / minha nossa
santa criatura / chame, chame o ladrão / chame o ladrão..."
Tanto a canção de Kleber (enfatizando o camburão) quanto a de Chico
Buarque (a viatura) apresentam a figura do policial militar como um
símbolo máximo da repressão. E esta mensagem torna-se ainda mais
eloqüente porque, em ambas as canções, através de um recurso de
sonoplastia, ouve-se uma sirene tocar, como que anunciando a chegada e a
partida do carro policial. Mas, se por um lado, o samba Acorda amor é
identificado como uma crônica da perseguição sofrida na época por
cidadãos de classe média envolvidos na oposição ao regime militar, a
balada O camburão retrata a repressão de que são vítimas os integrantes
das camadas populares em seu cotidiano no Brasil. E o humilde imigrante
nordestino poderia também estar gritando "Chame o ladrão, chame o
ladrão..."
Isso nos leva a destacar a observação, feita por Marilena Chauí de que o
aparato militar-repressivo montado na época em função da "guerra
permanente ao inimigo interno" não atingia apenas os setores organizados
de oposição ao regime; atingia também desempregados, negros, menores
infratores, presos comuns e delinqüentes em geral (aí podendo estar
incluídos homossexuais, prostitutas ou humildes imigrantes nordestinos
sem carteira de trabalho). (401)
Uma testemunha ocular deste fato é o historiador Jacob Gorender, que, no
inicio dos anos 70, como preso político, esteve no Presídio Tiradentes, em
São Paulo, e acompanhou de perto centenas de presos comuns amontoados
nas celas debaixo do primeiro pavilhão do presídio.
Gorender recorda que "todos os dias, às seis da tarde, o pátio se enchia da
'leva' - dezenas de pobres-diabos trazidos das ruas em enormes camburões.
Se muitos eram marginais, assíduos no presídio e nas delegacias, no meio
havia trabalhadores honrados agarrados porque não portavam documentos,
porque eram negros, porque não estavam bem-vestidos ou simplesmente
porque não puderam satisfazer às extorsões dos policiais. Alta noite,
investigadores e carcereiros escolhiam presos comuns e os espancavam a
cacetadas. Em seguida, aplicavam-lhes o 'caldo' num tanque circular de
dois metros de diâmetro e dois de profundidade, cheio de água. Os presos
desnudados sofriam repetidas imersões, suplício mais cruel nas noites
geladas de inverno. Os lamentos das vítimas se ouviam por todo o
presídio". (402)
É possível supor que entre os supliciados de cada dia estivessem vários
imigrantes nordestinos com trajetória semelhante ao do personagem da
composição de Kleber. E neste sentido a balada O Camburão, assim como
o samba Acorda amor, foi na época um veículo de protesto contra o
autoritarismo e a repressão reinantes na sociedade brasileira. Mas é forçoso
constatar que esta composição de Chico Buarque tornou-se de certa forma
uma peça datada, um documento de época que o próprio autor não mais
inclui no repertório de seus shows, já que após o período de abertura
política cidadãos de classe média não temem mais ser retirados da cama
pela polícia.
Entretanto, a composição do cantor Kleber permanece com uma incômoda
e triste atualidade. Apesar de ser um fato pouco denunciado, os integrantes
das camadas populares no Brasil continuam sendo jogados em camburões e
conduzidos às salas de tortura.
Um caso que veio à tona mais recentemente foi o que envolveu um grupo
de jovens negros da periferia de São Paulo, presos sob a suspeita de terem
participado do assalto ao bar Bodega, um ponto de encontro da classe
média alta paulistana, que em 10 de agasto de 1996 teve dois de seus
clientes assassinados a tiros.
Pressionada pela repercussão que o caso obteve na mídia, a polícia iniciou
a caça aos assaltantes, um dos quais os investigadores acreditavam chamarse Valmir. Segundo relato da revista Veja, dois jovens negros suspeitos,
Valmir da Silva, 19 anos, e Valmir Martins, 20 anos, que depois
comprovaram sua inocência, foram retirados de casa à força pela polícia e
"começaram a apanhar assim que entraram no camburão. Seguiram nesta
rotina mais um mês. Soco de manhã, pau-de-arara à tarde, choques e
palmatória à noite. Às vezes, variavam os horários e as brutalidades. Eles
tinham que confessar a participação no caso".
Outro jovem pobre e negro suspeito, Luciano Francisco Jorge, 20 anos
que mais tarde a investigação policial também descobriu não ter
participado do assalto , segundo a mesma reportagem, "tomou choques na
língua, foi 'pendurado', recebeu pancadas na cabeça e ferradas nas costas.
Um dia, foi levado algemado para uma sala onde estava 'Marcelo', nome de
guerra usado pelo investigador José Eduardo de Almeida. Foi obrigado a se
deitar. Almeida colocou uma cadeira sobre o rapaz, sentou-se e sentenciou:
Ágora você vai falar, ou a gente vai te arrombar.' Em seguida, pegou um
pedaço de madeira cilíndrico e envernizado de 20 centímetros, mergulhouo na graxa e introduziu-o duas vezes no anus de Luciano." (403)
A tragédia que envolveu estes jovens moradores da periferia de São Paulo,
e que provavelmente deixou seqüelas físicas e psicológicas em cada um
deles, é mais uma prova eloqüente de que é muito restritivo relacionar a
prática de tortura no Brasil apenas ao tempo da ditadura militar.
Talvez seja mais correto dizer que naquele período houve a
"democratização do arbítrio” , pois a violência atingia tanto os pobres de
cada dia como vários filhos da classe média e até de famílias ricas e de
tradição que militavam em partidos de esquerda. Como bem observou
Jacob Gorender, “O Estado militarizado agiu com inflexível coerência:
cortou os galhos podres da própria classe dominante para defendê-la".
(404)
Isso feito, e encerrado o ciclo do regime militar, o arbítrio prosseguiu no
Brasil o seu curso normal. Apesar do esforço de projetos como o do Brasil:
nunca mais - formado no fim dos anos 70 com o objetivo de eliminar "o
flagelo das torturas, de qualquer tipo, por qualquer delito, sob qualquer
razão” (405) - constata-se no alvorecer do século XXI que tal intento ainda
não alcançou em nosso país o êxito pretendido.
Em recente missão de visita a delegacias e presídios no Brasil, o relator da
ONU para crimes de tortura, Nigel Rodley, revelou-se chocado ao se
deparar com um jovem que ficara paralítico em conseqüência de uma
sessão de tortura numa prisão do Rio de Janeiro. “Eu já vi muita coisa
ruim no meu trabalho e este caso, certamente, está entre os piores”,
desabafou o representante da ONU. (406 )
O relatório final da visita, enviado para a sede da entidade, em Genebra, na
Suíça, batizou de "cultura da brutalidade" a prática comum de violência
nos organismos policiais brasileiros E o documento mostra que este
cotidiano de barbárie atinge mesmo as “camadas mais pobres da
população e/ou em descendentes de africanos ou grupos minoritários
da sociedade". Uma das vítimas de tortura policial citadas no relatório,
desabafou: “Nos tratam como animais e esperam que a gente se
comporte como seres humanos quando sairmos daqui.” (407)
De tudo isto, o mais grave hoje no Brasil é que muitas das vozes que
clamavam contra a tortura no tempo do regime militar silenciaram, e
constata-se agora uma certa complacência da sociedade para não dizer o
aplauso de setores das elites e de muitos segmentos médios.
É como se a tortura praticada contra os estratos mais baixos da população
não fosse tão grave assim. É como se não existisse mais tortura no Brasil.
Mas não se iluda. É possível mesmo que no momento em que você lê estas
páginas, algum brasileiro pobre, e provavelmente negro, esteja sendo
submetido a tratamento cruel, desumano e degradante em algum camburão,
delegacia ou penitenciária do país E muitas dessas vítimas poderão estar
gritando “eu não sou cachorro, não" ou "seu moço, não sei de nada /
não sei do que tá falando / não tenho papel nenhum / há pouco que tô
chegando..."
***
NOTAS BIBLIOGRÁFICAS APENSAS AO CAPÍTULO
(Conforme a numeração seqüencial encontrada no texto)
382. Comentário de José Fernandes em sua coluna Ondas e Imagens.
"Waldik, olha o tatu!" - A Noticia, 13-11-1972.
383. Opinião de Marcel Delon em sua coluna Curti-Som. "Questão de
gosto" - A Noticia, 18-12-1972.
384 "Cada vez pior" (Jornal do Chacrinha)”A Noticia, 18-11-1972.
385. Esta explicação para o sucesso dos discos de Waldik foi constatada
por Nelson Motta no artigo "Em Waldik e Teixeirinha, o Brasil dos
esquecidos" - O Globo, 20-1-1974.
386. Vários autores. Eu não sou cachorro, nã]; um estudo da música
popular brasileira. Belo Horizonte: Interlivros, 1973, p. 44. Apesar do que
o título pode sugerir, este não é um trabalho sobre a canção "cafona" ou
especificamente sobre a obra de Waldik Soriano. Publicado em formato de
livro de bolso, apenas duas páginas do texto são dedicadas ao bolero Eu
não sou cachorro, não. Tudo o mais versa sobre a produção da MPB. De
qualquer forma, a análise que os estudantes fazem da canção de Waldik
Soriano destoava da versão corrente na época.
387 "Quando nos voltamos para a realidade das condições de vida da
grande maioria do povo brasileiro, chegamos à pungente conclusão de que
a economia vai bem, mas a maioria do povo ainda vai mal." - Discurso
proferido aos estagiários da Escola Superior de Guerra, em 10 de março de
1970 LP “A história de 1970: música e informação" ”Rádio Jornal do
Brasil - P. 1970.
388. Waldik Soriano & Bernadino Campos, op. cit, pp. 56-58.
389. Ver Carlo Ginsburg. Mitos, emblemas, sinais: morfologia e História.
São Paulo: Companhia das Letras, 1989.
390. Ruy Castro. Chega de saudade: a história e as histórias da bossa
nova. São Paulo: Companhia das Letras, 1995, p 351.
391. Marilena Chauí. Cultura e democracia; o discurso competente e
outras falas. São Paulo: Cortez, 1997, p. 54.
392. Verso de Hora de esquecer o mal. Para outras indicações ver índice de
canções citadas em Pontes e bibliografia.
393. Maria Izilda de Matos & Fernando Faria. Melodia e sintonia em
Lupicinio Rodrigues: o feminino, o masculino e suas relações. Rio de
Janeiro: Bertrand Brasil, 1996, p. 57.
394. Verso da canção S. A. Ver índice de canções citadas em Fontes e
bibliografia.
395. Verso de É fim de mês. Ver índice de canções citadas em Fontes e
bibliografia.
396. Verso da canção Jorge Maravilha. Ver índice de canções citadas em
Fontes e bibliografia.
397. Eduardo Granja Coutinho. Velhas histórias, memórias futuros: o
sentido da tradição na obra de Paulinho da Viola. Programa de PósGraduação da Escola de Comunicação da UFRJ. Rio de Janeiro: Eco, 1999,
p. 60.
398. Cf. Wanderley Guilherme dos Santos. 'Á Pós-Revolução Brasileira".
In Hélio Jaguaribe... (ei ai.). Brasil, sociedade democrática. Rio de Janeiro:
J. Olympio, 1985, pp. 237-238.
399. Versos de Debaixo da ponte. Para outras indicações ver índice de
canções citadas em Fontes e bibliografia.
400. Lúcio Kowarick. A espoliação urbana. Rio de Janeiro: Paz e Terra,
1980, pp. 127-128.
401. Marilena Chaui. Conformismo e resistência; aspectos da cultura
popular no Brasil, op. ut., p. 127.
402. Jacob Gorender, op. cit., p. 223.
403. "Pretos e pobres" - Veja, 18-12-1996
404. Jacob Gorender, op. cit., p. 227.
405. Brasil, nunca mais, op. cit., p. 27.
406. "Tortura de preso no Brasil revolta emissário da ONU - Jornal do
Brasil, 2-9-2000.
407. "Brasil cultiva 'cultura da brutalidade"' - Jornal do Brasil, 11-4-2001.
CAPÍTULO 14
CANÇÕES SOBRE A TRISTEZA BRASILEIRA
(UM VAZIO NO BOLSO E NO CORAÇÃO)
“Eu não me alegro com as coisas deste mundo; o que eu vejo aqui me
entristece. Peço até que você me desculpe por eu ser assim tão triste.”
(Odair José)
Numa terra radiosa floresceu, a partir de 1968, uma geração de
cantores/compositores românticos e demasiadamente tristes. Sim, nomes
como Nelson Ned, Odair José e Paulo Sérgio, mais do que quaisquer outros
da nossa música popular, deixam transparecer em suas canções a idéia de
que o brasileiro é antes de tudo um triste.
E a denúncia deste estado de espírito aparece nos próprios títulos de várias
composições daquele período: Não tenho culpa de ser triste (Nelson Ned),
Oração de um jovem triste (Alberto Luiz), Meu sorriso também é triste
(Amilton Lelo), Sou mais um triste (Alessandro), Eu sou um rapaz triste
(Livi-Maluin) e O homem mais triste do mundo (Letinho):
EU ACHO QUE SOU O MAIS TRSITE DO MUNDO
SOMENTE TRISTEZA É O QUE EXISTE EM MIM
OLHANDO PARA O CÉU PERGUNTO A DEUS
POR QUE, MEU SENHOR, EU NASCI ASSIM...
Por essas e outras canções esta geração de artistas corrobora a tese
defendida pelo ensaísta Paulo Prado no clássico Retrato do Brasil: ensaio
sobre a tristeza brasileira.
Ali o autor afirma com todas as letras que o nosso país é uma terra de
soturna tristeza habitada por um povo triste. Publicado em 1928, este livro
logo atraiu admiração e debate, firmando-se como a primeira interpretação
psicológica de nossa história e uma das principais teses explicadoras do
Brasil, linhagem da qual também fazem parte livros como Os sertões, de
Euclides da Cunha, e Casa Grande & senzala, de Gilberto Freyre.
Produzido dentro do velho molde determinista de raça e clima, o texto de
Paulo Prado parte da idéia de que existiriam povos alegres e povos
achacados de tristeza. O brasileiro faria parte do segundo grupo. "Numa
terra radiosa vive um povo triste...", anuncia o autor logo na abertura do
primeiro capítulo, enfatizando mais adiante que "o véu da tristeza se
estende por todo o país, em todas as latitudes, apesar do esplendor da
natureza".(408)
Na epígrafe ele cita o historiador Capistrano de Abreu, que compartilhava
desta visão sobre o Brasil e dizia que a ave que melhor simbolizaria a nossa
terra seria o jaburu porque "tem estatura avantajada, pernas grossas, asas
fornidas, e passa os dias com uma perna cruzada na outra, triste, triste,
daquela austera, apagada e vil tristeza.”
Mas qual seria a origem dessa apregoada tristeza do ser brasileiro?
Recorrendo a diversas fontes, Paulo Prado sustenta que ela é uma herança
dos náufragos, desertores e degredados que a partir de 1500 aportaram nas
praias ao sul do equador.
Soltos no paraíso da terra virgem, onde "tudo incitava ao culto do vício
sexual", os colonizadores eram movidos por dois instintos básicos: a cobiça
do ouro e a luxúria da carne - ambas provocando o abatimento físico e
moral de suas vítimas. A cobiça porque desmedida e quase sempre
frustrada; a luxúria porque exagerada e nunca saciada. "Na luta entre esses
apetites" - diz Paulo Prado - "sem outro ideal, nem religioso, nem estético,
sem nenhuma preocupação política, intelectual ou artística, criava-se pelo
decurso dos séculos uma raça triste."
E para reforçar a idéia de que a intensa vida sexual dos colonizadores nos
levou à melancolia, o autor recorre a um velho adágio da medicina que diz
que "após o coito os animais ficam tristes, salvo o galo, que canta". (409)
Como observou o professor Dante Moreira Leite, "Paulo Prado parte da
verificação de que a satisfação sexual provoca tristeza o que já seria
discutível, embora não absurdo - e chega à conclusão de que essa tristeza
pode ser transmitida às gerações seguintes". (410)
Se isto é possível, um dos herdeiros dessa melancolia legada pelos
colonizadores do Brasil foi, sem dúvida, o cantor e compositor Odair José.
Suas melodias, suas letras, suas falas, sua aparência, tudo é repleto daquela
austera, apagada e vil tristeza. "Meu sorriso é triste / meu olhar,
profundo / meu corpo é cansado das dores do mundo", queixa-se ele na
balada Não existem flores. E a lamentação prossegue em várias outras
canções do artista: Eu queria ser John Lennon, O sonho terminou, Ajudame, Alegria triste e, principalmente, no seu auto-retrato Assim sou eu,
composição lançada em 1972, quando ele tinha 24 anos de idade:
UM ANDAR APRESSADO, UM OLHAR TÃO DISTANTE
UM SORRISO APAGADO, UMA TRISTEZA CONSTANTE
UM SORRISO SOFRIDO DE ALGUÉM QUE MUITO VIVEU
ASSIM SOU EU, ASSIM SOU EU...
"Eu sempre fui um cara triste - reitera hoje Odair José - "e nem sei
explicar o porquê. Mas realmente eu sou um cara triste, infelizmente,
sou. Se alguém disser pra mim agora, 'você acaba de ganhar 30
milhões de dólares na loteria', eu continuarei triste. Nada me alegra.
Acho que já me convenci de que a minha vida na verdade é em outro
patamar. Então eu não me alegro com as coisas deste mundo; o que eu
vejo aqui me entristece. Peço até que você me desculpe por eu ser
assim tão triste."
Outro cantor de soturna tristeza é Agnaldo Timóteo. E a presença deste
traço psicológico pode ser notada na sua voz e em grande parte de seu
repertório. "Sou um cavaleiro triste / caminhando no sertão do meu
país", anuncia ele numa gravação dos anos 70. (411) “A cada instante me
perco na tristeza / vem o pranto e me encontro sem saber o que fazer",
lastima-se em outra letra de música. (412) Um dos grandes sucessos do
cantor naquele período chama-se exatamente Tristeza danada. (413)
No trecho a seguir, Timóteo explica a razão desta freqüente recorrência ao
tema e o porque de se auto-proclamar um "cavaleiro triste". "Esta tristeza
é porque a fama às vezes lhe proporciona tudo o que você quer do
ponto de vista material, mas você não consegue o que deseja do ponto
de vista sentimental. E isso é uma tragédia na vida das pessoas bemsucedidas. A maioria das minhas noites eu as passo sozinho É um
negócio difícil de suportar e me entristece muito. já aconteceu de,
muitas vezes, ao voltar de temporadas de shows, eu jogar a mala cheia
de dinheiro na gaveta do quarto, olhar pro lado e dizer: 'Puta que
pariu! Cheio da grana e sozinho.' E isso é uma das minhas grandes
frustrações, palavra que até deu título a uma antiga música que
gravei":
...POR ISSO CORRO PELOS CANTOS DA CIDADE
BUSCANDO AMOR SEM FELICIDADE
FALADO, MARCADO
E DE QUE VALE O MEU CARRÃO DE OURO
SE SÓ TRISTEZA E SOLIDÃO É O MEU TESOURO...
A tristeza presente nas canções de Agnaldo Timóteo e Odair José foi
levada às últimas conseqüências no repertório de Nelson Ned. "Eu sou um
livro... cheio de páginas tristes", escreve ele em Minha vida daria um
livro. Na composição Não sei mais viver comigo ele desafia: "Se existir
alguém mais triste do que eu / eu quero conhecer." E na balada Não
tenho culpa de ser triste ele confessa: "Por mais que eu disfarce / nada é
mais triste do que a minha alegria."
Observo, entretanto, que após a sua conversão à Igreja Evangélica, em
março de 1993, o discurso de Nelson Ned mudou e agora ele se proclama
um homem feliz e em paz consigo mesmo. Mas em suas composições
lançadas no período 1968/78, é difícil encontrar alguma que não traga a
palavra "triste" ou "tristeza". Ou ambas: "Tantas vezes eu chorei de
tristeza / e ninguém me entendeu / penso até que no mundo inteiro / o
mais triste sou eu.'' (414)
**
Na entrevista que fiz com Nelson Ned indaguei-lhe a razão de tão profunda
melancolia e recordei várias composições nas quais cita as palavras "triste"
e "tristeza". Um pouco surpreso com as citações e visivelmente
emocionado "agora voce mexeu comigo" - , o cantor respondeu:
"Realmente, eu levava uma vida triste. E a minha tristeza era porque
eu era um cara que tinha muita mulher, mas não tinha um amor; eu
fazia muito sexo, mas não tinha carinho. Eu não havia encontrado
ainda uma moça que gostasse de mim. E eu sempre me apaixonei
perdidamente, os meus amores sempre foram muito fortes. Mas devido
até a minha própria constituição física eu sempre fui um homem muito
consciente das minhas limitações. E isso me fazia ver que realmente eu
era um cara triste e cultivava essa tristeza, que hoje eu chamo de
'melancolia dos românticos'. É a cultura do masoquismo pelo
masoquismo. O cara gosta de sofrer e ponto final."
No livro Retrato do Brasil, Paulo Prado dedica um capítulo especialmente
ao romantismo, fenômeno que segundo ele foi um criador de tristezas e,
como tal, uma das mazelas do Brasil. O autor abominava os "desvarios do
mal romântico" que levavam poetas como Álvares de Azevedo e Castro
Alves a adorar a própria dor - fonte mais abundante de suas inspirações.
"Entre nós" - dizia Paulo Prado - "o círculo vicioso se fechou numa mútua
correspondência de influências; versos tristes, homens tristes; melancolia
do povo, melancolia dos poetas, enamorados e infelizes.'' (415)
O cantor Nelson Ned, brasileiro, romântico e triste, confirma que na dor
está um dos mais poderosos motores da sua criação artística:
"Eu não creio em arte sem sofrimento. A arte é produto do sofrimento.
Veja o Evangelho: o apóstolo Paulo só escreveu as grandes cartas
depois que estava preso. Tem uma frase em francês que diz: 'O
sofrimento é o mestre do homem.' Tanto é assim que hoje eu sou um
cantor evangélico por causa do sofrimento. Eu fui para a igreja pela
dor. Então estar triste era importante para eu compor. E era uma
coisa espontânea. Eu me apaixonava, não era correspondido, aí eu
compunha. Eu sou um compositor autobiográfico. Tudo aquilo que
está nos meus discos, eu vivi. Até as minhas hipocrisias eram
verdadeiras. E hoje eu sou um cantor gospel também autobiográfico. É
por isso que não acredito em poder de criação na arte sem sofrimento.
A minha música é sempre conseqüência de uma causa: a dor. Cada
fracasso amoroso que eu tinha me rendia uma canção."
Como se vê, Nelson Ned também colocou todos os seus fracassos nas
paradas de sucesso. Um dos maiores de sua carreira é a balada A cigana, na
qual relata um episódio da infância: uma vidente previra que seu futuro
seria repleto de amor e de felicidade. Porém "... o tempo foi passando / eu
fiquei só... /...e não consigo ser feliz", constata ele entristecido, para em
seguida ousar a mais terrível confissão já feita por um artista da música
popular brasileira: "Ninguém jamais gostou de mim."
Nenhum outro compositor popular se desnudou tanto quanto Nelson Ned
no verso desta canção, gravada em 1970. Na maioria das músicas
românticas os compositores confessam que estão sós, abandonados e sem
amor, mas deixam antever que já foram amados em algum momento de
suas vidas. No samba-cancão Folha morta, por exemplo, Ary Barroso se
proclama infeliz "... à margem da vida / sem amparo ou guarida...", mas
reconhece: “Já tive amores / tive carinhos / já tive sonhos..." Antônio
Maria foi mais enfático ao dizer "Ninguém me ama / ninguém me
quer...", verso que também flagra um momento presente: ninguém o ama
agora, "é a velhice chegando / e eu chegando ao fim", mas o personagem
certamente já teve muitos amores no passado.
Na composição de Nelson Ned esta leitura não é possível pois a inclusão do
advérbio "jamais" não deixa espaço para dúvida. Nunca, em tempo
nenhum, jamais ele foi amado. E isto o cantor fez questão de repetir em
uma outra composição ao dizer que "Todo mundo tem um amor na vida /
só eu vivo assim / tantas vezes eu amei / e ninguém jamais gostou de mim."
(417)
Este caráter autobiográfico da produção musical de Nelson Ned também
aparece em Se eu pudesse conversar com Deus, composição de 1969, cuja
temática foi mais tarde aprofundada por Gilberto Gil em Se eu quiser falar
com Deus. Lançada pelo cantor Antonio Marcos, a música de Nelson Ned
rapidamente alcançou os primeiros lugares de venda e execução em rádio,
revelando para milhões de brasileiros mais um momento de tristeza e de
solidão do artista.
Nelson Ned recorda:
"Eu compus Se eu pudesse conversar com Deus quando conheci uma
menina maravilhosa chamada Betinha Ela tinha um gordini verde e
andava pelas noites de São Paulo. Então eu coloquei na minha cabeça:
vou ganhar essa menina. Uma noite Betinha saiu pra passear comigo
em seu carro e depois me levou até a porta de casa. Aí pensei: pronto,
agora a gente vai descer e eu vou subir com ela para o meu quarto.
Mas não. Ela parou o carro em frente ao prédio em que eu morava e
disse: 'Vou te deixar aqui porque agora vou pra casa dormir'. E foi
embora. Aí eu fiquei muito triste e pensei: 'Pô, eu não dou mesmo sorte
no amor. Vou largar tudo, vou renunciar a minha carreira e tal.' Eu
passei toda aquela noite chorando. No dia seguinte peguei o violão e
fiz":
EU HOJE ESTOU TÃO TRISTE
EU PRECISAVA TANTO CONVERSAR COM DEUS
FALAR DOS MEUS PROBLEMAS
TAMBÉM LHE CONFESSAR TANTOS SEGREDOS MEUS
SABER DA MINHA VIDA
E PERGUNTAR POR QUE NINGUÉM ME RESPONDEU
SE A FELICIDADE ESXISTE REALMENTE
OU É UM SONHO MEU...
Contrapondo-se à imagem do brasileiro como um povo alegre e festivo, as
canções de Nelson Ned parecem mostrar que isto aqui é mesmo uma terra
de soturna tristeza - reforçando a tese de Paulo Prado e de alguns de seus
contemporâneos, já que o pessimismo em relação ao país era a tônica de
nossa intelectualidade até as duas primeiras décadas do século passado.
O critico literário Silvio Romero dizia: "Temos uma população mórbida, de
vida curta, achacada e pesarosa em sua maior parte.'' (4l9) E o escritor
Ronald de Carvalho explicava que o brasileiro é naturalmente triste, porque
tristes são as três raças que contribuíram para nossa formação. "O
português é nostálgico como a lânguida toada dos seus fados; o africano é
um abatido, suas revoltas são gritos de dor contra as agruras do exílio em
que o puseram; e o índio é um sofredor, tem na alma a resignada queda dos
rios e o murmúrio das selvas misteriosas." (420)
Dessa mistura de povos nostálgicos, abatidos e sofredores nasceu o cantor e
compositor Paulo Sérgio.
De sua garganta partia um som agoniado e soluçante, expressando um
estado de irremediável tristeza: "Eu não conheço felicidade / por mais
que me esforce não sei sorrir", se auto-analisava na balada Recalques.
Em duas outras canções dos anos 70 ele desabafava: "Eu sigo triste sem
querer viver...” e "estou só / vagando solitário na imensidão / fugindo
desta vida que me disse não". (421) Uma pista para a origem de tanto
desalento e melancolia está na letra da canção Parto em preto e branco, na
qual Paulo Sérgio fazia uma espécie de regressão ao útero materno e
explicava sua tristeza como um traço de caráter hereditário (como, aliás,
defendia Paulo Prado): "Em certa tarde minha mãe andava só / e a
tristeza que ela sentia refletia toda em mim."
Autor de Ultima canção, No dia em que parti, Desiludido e vários outros
hits gravados por Paulo Sérgio, o compositor mineiro Carlos Roberto
confirma que seu amigo não manifestava aquela alegria que muitos
projetam em uma pessoa de sucesso e popularidade.
"Paulo era um cara muito sofrido e melancólico. Ele não conseguia dar
um sorriso aberto. Olhando hoje os tapes de antigos programas de
televisão você percebe que ele esboçava um sorriso muito sem graça.
Quando a gente parava para tomar uns goles de conhaque eu notava
que às vezes seu olhar ficava completamente perdido, como se buscasse
algum ponto no infinito. Ele olhava pra mim mas era como se não me
visse. Seu pensamento vagava muito longe dali."
Assim como os versos dos poetas do romantismo, as letras das canções de
Paulo Sérgio são cheias de presságios lúgubres e antecipações da morte.
Uma de suas gravações chama-se justamente Por favor, me ajude a morrer.
Em uma outra música ele questionava: "Vida pra que? / eu não quero
viver" (422) e, na autobiográfica Alfaiate, ele definia: "Eu sou da tristeza /
costuro esses dias... /... na dor infinita / de ter que viver."
O curioso é que assim como os poetas Castro Alves e Álvares de Azevedo,
o cantor Paulo Sérgio também morreu moço ou, quem sabe, deixou-se
morrer. Na letra de Não creio em mais nada ele expressava um sentimento
de desesperança, juntamente com a sensação de impotência diante da vida,
que levava o jovem cantor a vislumbrar o suicídio como o único caminho
para sua trágica existência:
NÃO SEI O QUE FAÇO
A MINHA VIDA É UMA LUTA SEM FIM
EU SINTO CANSAÇO E JÁ NÃO SEI SE VALE A PENA INSISTIR
HÁ DIAS NA VIDA QUE A GENTE PENSA QUE NÃO VAI
CONSEGUIR
QUE É BEM MELHOR DEIXAR DE TUDO E FUGIR
QUE OUTRO MUNDO TUDO VAI RESOLVER...
Outro artista "cafona" que também morreu muito jovem foi o cantor e
compositor fluminense Evaldo Braga.
Consagrado como "o ídolo negro", ele é autor de um conjunto de canções
no qual é possível encontrar ecos de uma infância marcada pela pobreza e
pelo abandono. "Eu não sou lixo / pra você querer enrolar / eu não sou
lixo / pra você fora jogar...", protesta em um de seus grandes sucessos, Eu
não sou lixo. (423)
Filho de pais desconhecidos, o cantor viveu grande parte de sua infância
nas ruas, sendo depois encaminhado ao antigo SAM (Serviço de
Assistência ao Menor, atual Febem), onde permaneceu até a maioridade.
“Aquilo era uma selva" - dizia Evaldo Braga -, “o cara tinha que saber se
defender. Escolhi a posição de cozinheiro, porque era lá que estava o
segredo de tudo. Os mais fortes dominavam o ambiente, mas sempre
respeitavam o cozinheiro " (424)
Ao sair dali Evaldo foi trabalhar de engraxate na porta da Rádio Mayrink
Veiga, no Rio, travando os primeiros contatos com o meio artístico. Em
1969 conheceu o produtor e compositor Osmar Navarro, que o levou para
gravar o primeiro e sonhado disco.
Mas o sucesso, o dinheiro e as mulheres não diminuíram o drama do
menino pobre e abandonado que convivia em Evaldo Braga. A grande
tristeza do cantor era ser filho de pais desconhecidos e o seu maior desejo
era encontrar a sua mãe. "Daria a minha vida para conhecê-la", disse numa
entrevista. (425)
Um dia Evaldo Braga resolveu ir à procura de sua história na cidade de
Campos, interior do Rio, onde nasceu. Ele se hospedou em um hotel e ficou
lá uns dias pesquisando, conversando e fazendo perguntas a algumas
pessoas. Queria descobrir de uma vez por todas quem eram seus pais.
Numa certa tarde encontrou um senhor já bem idoso que disse ter
conhecido a sua mãe.
O velho contou que ela era uma prostituta da região e que há muitos anos
teve uma criança e a abandonou num cesto de lixo de uma casa de família.
Essa família teria recolhido o recém-nascido da lixeira e dado para um
orfanato da cidade. E por uma série de outros detalhes que aquele senhor
lhe contou Evaldo Braga saiu de lá convencido de que a criança da lixeira
era ele próprio.
“A partir desse dia a vida de Evaldo acabou", afirma Osmar Navarro, a
quem o cantor costumava chamar de pai. "Ele que não bebia e não
fumava, começou a beber e a fumar que nem um louco. E um dia ele
chorando disse pra mim: 'Pai eu não sou lixo, minha mãe não podia ter
feito isso comigo, por que ela fez isso, meu pai?' Eu tentava consolá-lo,
orientá-lo da melhor forma possível, mas não teve jeito. Ele me dizia
'eu não quero mais saber de nada, não. Eu quero morrer, eu quero
morrer'. Aquela descoberta foi realmente um trauma terrível para ele.
E a sua vida se desestruturou a partir daí. Tanto que no dia do
acidente o laudo médico acusou uma grande quantidade de álcool no
sangue de Evaldo."
O cantor estava com 25 anos e no auge do sucesso quando, na manhã de 31
de janeiro de 1973, o seu automóvel forçou uma ultrapassagem e bateu de
frente com um caminhão numa curva da antiga BR-3 (Rio-Belo Horizonte).
Evaldo Braga morreu na hora. Enquanto viveu, ele cantou a tristeza, a
solidão e a morte. "Vou acabar a minha vida / que só me dá desgosto /
lágrimas no meu rosto não param de rolar", anunciava ele na balada Meu
delicado drama. Na canção de protesto Tudo fizeram para me derrotar ele
repetia: "Eu já não faço questão de viver...", desalento explicitado numa
outra letra que diz: "Em nada mais posso crer / para mim nada existe /
somente eu sei dizer porque vivo tão triste..." (426)
Contemporâneo de Evaldo Braga, e mais um representante da música negra
"cafona", o cantor e compositor Nenéo também fez de suas canções um
veículo de solidão e tristeza. "Sem você minhas noites são tão tristes / vou
morrer...", ameaça ele em Quero ter coce perto de mim. Em Deixa-me
chorar ele confessa: "Há tanta tristeza em mim... /... eu sou cada vez mais
triste". Melancolia que se resume na frase de uma música que Nenéo fez
especialmente para Paulo Sérgio gravar: "Vou me encontrando nas canções
tristes que faço." (427)
Mas por que tantas melodias em tom menor? Por que tanta referência à
morte, à solidão e à tristeza? Nenéo explica e talvez a sua explicação
também sirva para entender um pouco da tristeza de todos os cantores
"cafonas" de sua geração:
“As minhas músicas são bem o retrato de tudo o que foi a minha vida."
E continua: "Por coincidência, hoje de manhã eu acordei justamente
pensando no tempo em que eu morava no Morro do Borel. Deitado na
cama, fiquei lembrando das pessoas que acompanharam a minha
infância, que é uma coisa que eu nem gosto de recordar porque muito
cedo perdi meu pai, que morreu do coração; 17 dias depois perdi um
irmão com meningite, e 19 dias depois a minha mãe morreu de
tuberculose. Numa seqüência de um mês e meio morreu quase toda a
minha família. Na época eu fiquei até meio perturbado porque foi um
baque muito grande ver os três morrerem assim num período tão curto
Aí eu e meus outros seis irmãos ficamos jogados pelas casas dos outros,
ali no morro mesmo. Então talvez até inconscientemente eu traga tudo
isso para as melodias e para as letras que faço."
Artista de infância pobre, como a de Martinho da Vila, Wilson Batista,
Cartola e tantos outros nomes da nossa música popular, o que mais Nenéo
guardaria de marcante do seu tempo no Morro do Borel?
"A miséria, a falta das coisas, a falta de alimento, a falta de sorte
daquelas pessoas. Me lembro do meu pai já doente, sem poder
trabalhar, e de minha mãe carregando bacias de roupas na cabeça pra
ganhar aquele dinheirinho no fim do mês. Ela ficava tanto tempo
dentro da água do rio lavando roupa que chegava a formar um aro
branco nas suas pernas negras. Quando minha mãe adoeceu foi
internada num hospital público lá em Jacarepaguá. Eu fui visitá-la
naquela mesma semana, mas ao chegar na portaria a moça perguntou
o nome dela e depois me disse: 'Sua mãe entrou em óbito.' 'Óbito? O
que é isso?' 'Sua mãe morreu."'
A impacto da notícia gelou o corpo do pequeno Nenéo que hoje
surpreende-se com a própria reação que teve naquela hora. "Eu sai
correndo feito um doido pelo corredor do hospital gritando 'Não, não,
não...' Entrei num local que estava cheio de corpos cobertos e saí
puxando os lençóis, procurando minha mãe. Quando a encontrei eu
botei minha boca na boca de minha mãe e suguei a sua boca na
esperança de dividir a minha vida e um pouco da minha saúde com ela.
Aí os médicos e as enfermeiras avançaram sobre mim e quase me
bateram. 'Você não pode fazer isto, rapaz. Sua mãe morreu de uma
doença contagiosa, você pode contrair esta doença.' Eles me pegaram e
me sacudiram querendo me acordar porque eu não parava de gritar.
Quando finalmente parei, eu comecei a chorar, chorar
convulsivamente; fiquei uns 10 minutos ali chorando, chorando. Então
eu acho que as minhas músicas são tristes porque são um retrato de
tudo o que eu passei na vida."
Este depoimento de Nenéo é significativo porque mais uma vez nos revela
como é tênue a linha que separa uma simples e triste canção de amor de
uma elogiada canção de protesto.
Ambos os estilos podem conter o grito de milhões de brasileiros excluídos
do sistema social, sem acesso à informação, educação e saúde pública.
Numa entrevista o cantor Evaldo Braga também recorreu à sua trajetória de
menino de rua, interno do SAM e ex-engraxate para explicar a tristeza de
suas canções de amor. “As minhas músicas são inspiradas, quase todas,
nesse meu tempo de luta e de sofrimento. Elas espelham exatamente o
que passei, que é, na verdade, o que muitos passam. E isso explica por
que meus discos vendem." (428)
Ou seja, mais uma vez rejeição social e rejeição amorosa se confundem e
se traduzem em tristeza e sucesso musical. Idéia também expressa por
outro mensageiro de amor e melancolia, o cantor Waldik Soriano: "Mesmo
quando não estou sofrendo, escrevo músicas para expressar
sentimentos que existem em pessoas tão humildes quanto eu. Minha
música é sempre triste porque eu sofri muito e não consegui esquecer
nada. Está tudo dentro de mim, lá no fundo, como matéria-prima para
minha fábrica de sentimentos." (429)
É importante observar que a existência de brasileiros soturnos e tristonhos
não passou despercebida entre as autoridades do regime militar.
Em sua análise da propaganda política produzida pelas agências do
governo no período do AI-5, o historiador Carlos Fico destaca um filme
que tratava precisamente da tristeza. Veiculado maciçamente nas televisões
da época, o filme mostra uma garota solitária e triste, olhando para um
grupo de crianças que brincava num parque. Ao fundo, um trecho da letra
de sua trilha musical diz; "Eu queria poder reunir todo o amor que existe /
e repartir este amor com quem estivesse triste." Carlos Fico observa que
por trás desta fachada aparentemente ingênua e despolitizada, esta e outras
peças publicitárias do regime militar eram cheias de mensagens sutis e
políticas.
Os profissionais da propaganda da ditadura valiam-se de recursos
alegóricos, figurados, para afirmar promessas de cunho político. O que,
afinal, queria dizer este filme da tristeza?, pergunta o historiador, e ele
mesmo responde que uma de suas possíveis leituras é que, na visão dos
militares, tristes eram todos aqueles incapazes de perceber os benefícios de
uma nova era de "fartura" e de "felicidade" instaurada no Brasil a partir de
1964. Não perceber a inauguração daquele novo tempo “resultaria em
tristeza, em inadaptação - tal como eram não-adaptados os que insistiam
em se opor ao regime militar". (430)
Portanto, mais do que nunca era preciso saudar a alegria e rechaçar a
tristeza, desgraça de todos os pessimistas e derrotistas.
ufanistas é sempre evocada a festividade: "Hoje tudo é alegria / pois o
progresso eclodiu / com amor e poesia / venho te cantar Brasil..." (431) Já
nas canções de protesto a ênfase recai sobre a tristeza. No samba
endereçado ao presidente Médici, Chico Buarque cordialmente pedia:
"Você, que inventou a tristeza / ora, tenha a fineza de desinventar", e em
outra canção de teor político Geraldo Vandré ensinava que "todos os tristes
querendo juntos / toda a tristeza vai se acabar." (432)
Para os opositores do regime militar, aquele era um tempo de sofrimento e
tristeza havendo assim uma certa concordância entre as suas mensagens e
as do repertório "cafona".
O cantor Luiz Ayrão, por exemplo, num samba triste dos anos 70,
protestava: “Ah! que saudades de outrora / pra esse sufoco de agora / que
mal que a gente fez." (433) Em outra composição daquela época ele
novamente lamentava: "Minha vida é tão triste / meu peito cheio de dor /
minha alma ferida / nas garras do desamor." (434) Tristeza e pessimismo
que se espalham por outras faixas de discos do cantor, embora hoje ele se
revele surpreso com esta constatação. "Eu não tinha reparado isso... Tem
muita tristeza na minha obra daquele período?... Você me chamou
atenção para um aspecto que eu não tinha nem reparado. Mas é a tal
coisa, a gente retrata a época que vive, deve ser isso."
Visando estimular a alegria e o otimismo no povo brasileiro, uma das
campanhas da ditadura tinha como lema a frase: "Você precisa acreditar” ou seja, o oposto do que cantava Paulo Sérgio no sucesso Não creio em
mais nada. E a descrença do artista aparece em outra balada em que ele diz:
"Quanta tristeza eu tenho / quanta incerteza comigo vai.. " (436)
Inseridos neste contexto, o ceticismo e a melancolia do repertório "cafona"
acabavam por adquirir, mesmo que não intencionalmente, um caráter
transgressor e de resistência principalmente quando a tristeza vinha
associada às questões sociais do país. Em uma de suas canções o
compositor Sidney Quintela confessa-se deprimido por se deparar com
crianças abandonadas nas ruas: "Eu já vi tanta coisa pra me entristecer / vi
criancinhas de frio chorar / e na lata de lixo a fome matar..." (437)
Odair José expressa sentimento semelhante ao falar do contraste entre
pobres e ricos em nossa sociedade: "Gente bem de vida / povo da favela /
casa que não tem janela / mundo sem prazer / noite de agonia / quem levou
minha alegria?" (438)
O discurso dessas canções também estabelecia um flagrante contraste com
um outro slogan muito difundido na época: "Brasileiros, nunca fomos tão
felizes" - mensagem com a qual a TV Globo encerrava sua programação
diária no inicio dos anos 70.
Aliás, em perfeita sintonia com o ideário do regime militar, em 1971 a
emissôra lançou a sua mais tradicional mensagem de fim de ano, a música
Um novo tempo, cuja letra permitia uma analogia entre o ano novo que se
aproximava e o novo tempo político anunciado pelas Forças Armadas a
partir de 1964:
HOJE É UM NOVO DIA
DE UM NOVO TEMPO QUE COMEÇOU
NESSES NOVOS DIAS
AS ALEGRIAS SERÃO DE TODOS, É SÓ QUERER
TODOS NOSSOS SONHOS SERÃO VERDADES
O FUTURO JÁ COMEÇOU...
Segundo Nelson Motta, ele e Paulo Sérgio Valle fizeram a letra desta
música de acordo com as instruções recebidas da TV Globo.
No dia da gravação, porém, com um coral de estrelas da emissora, a atriz
Dina Sfat, que era de oposição ao governo militar, foi tirar satisfações com
seu amigo Nelson Motta. "Ela estava furiosa com a música que teria que
'cantar' e me chamou para uma amistosa mas dura cobrança: como
tínhamos feito aquilo? Era uma vergonha: aquela música servia aos
objetivos da propaganda da ditadura, com a cumplicidade da TV
Globo." (439)
De nada adiantou a reclamação da atriz. Como contratada da Rede Globo,
ela era obrigada a participar das mensagens da empresa, e Dina Sfat acabou
emprestando o seu sorriso para saudar aquele "novo tempo".
O sucesso da gravação foi estrondoso e, independentemente da vontade dos
cantores ou mesmo dos autores, ajudou a propagar a idéia de que o Brasil
vivia uma era de alegria, de felicidade e de progresso irreversíveis. "O
nosso jingle se transformou na música mais tocada e cantada do fim de
ano: em todas as festas, em todas as churrascarias, em todas as casas,
em vez de Jingle Bells cantava-se Um novo tempo e eu não sabia se
sentia orgulho ou vergonha", confessa Nelson Motta. (440)
Distantes desta propagada e forçada alegria de um "novo tempo", os artistas
"cafonas" seguiam cantando a velha tristeza cotidiana dos marginalizados
de bolso e de coração, fazendo suas as palavras de Fagundes Varela no
poema Cântico do Calvário: "Tornei-me eco das tristezas todas / que entre
os homens achei." (441)
Na balada Moça do subúrbio o cantor Kleber descreve a tristeza "de uma
vida sem carinhos e sem amor / pés descalços, roupa humilde, moça pobre /
rosto lindo que ninguém quis dar valor".
Aqui o artista fala não apenas de sua tristeza individual mas da tristeza
daquela gente humilde - as moças tristes do subúrbio que se identificam
com as tristes canções "cafonas".
Há várias composições gravadas e dedicadas especialmente a elas. Como
uma antena receptora dos queixumes deste segmento de público, o cantor
Paulo Sérgio também tenta, por um momento, consolar a moça triste que
escuta suas tristes canções no rádio: "Menina dos olhos tristes / olhe para
mim / não deixe que a tristeza lhe maltrate assim..." (442)
Deve-se observar, contudo, que esta freqüente referência à tristeza não é
exclusividade do repertório "cafona" dos anos 70.
Embora sem a mesma intensidade, este tema está presente em toda a
música popular brasileira: nos mais recentes sucessos do rádio (baladas
sertanejas ou pagodes românticos), nos rocks de Cazuza e de Renato Russo,
nas dores-de-cotovelo de Roberto Carlos e Lupicínio Rodrigues e nos
sambas de Ataulfo Alves e Paulinho da Viola. Com exceção de Aquarela
do Brasil, um samba-exaltação, todos os grandes clássicos da MPB falam
de tristeza e solidão. "Tire o seu sorriso do caminho / que eu quero passar
com a minha dor...", enfatiza um soturno Nelson Cavaquinho. "Minha vida
/ era um palco iluminado...", era, não é mais, reconhece Orestes Barbosa
em Chão de estrelas. "No rancho fundo / de olhar triste e profundo / um
moreno canta as mágoas", descrevem Ary Barroso e Lamartine Babo.
Outro moreno cantador, Luiz Gonzaga, consolava-se com um pássaro do
sertão: "Assum preto, o meu cantar / é tão triste como o teu". A melancolia
se alastra e leva Orlando Silva a perguntar: "Ó, jardineira / por que estás tão
triste?"
Imerso na solidão, Cartola volta ao jardim e queixa-se às rosas: "Devias vir
/ para ver os meus olhos tristonhos". Do outro lado da janela um atento
Chico Buarque também observa "Carolina / nos seus olhos tristes..."
Cansado de tanta tristeza, numa noite de Natal o sofrido compositor Assis
Valente apela: "Papai Noel, vê se você tem / a felicidade pra você me
dar..." E em pleno carnaval o compositor Haroldo Lobo implora: "Tristeza /
por favor, vá embora..."
Mesmo na ensolarada Garota de Ipanema, depois de contemplar aquele
corpo dourado a caminho do mar, o poeta lamenta: "Ah! por que estou tão
sozinho / ah! por que tudo é tão triste..." Num outro samba de Tom e
Vinicius, A felicidade, o título bem poderia ser “A Tristeza", já que da
primeira à última estrofe é de um lamento só: "Tristeza não tem fim /
felicidade sim..." Idéia que mais recentemente Caetano Veloso realçou ao
cantar que "a tristeza é senhora / desde que o samba é samba é assim.. "
Se é discutível afirmar que somos um povo triste, não há como negar,
entretanto, que existe uma grande identificação dos artistas e do público
brasileiro com o tema da tristeza. E o conteúdo e o sucesso popular das
canções do repertório "cafona" são provas eloqüentes disto Em seu livro,
Paulo Prado já havia mesmo destacado que a tristeza latente da alma do
Brasil podia ser encontrada na poesia popular, nas lendas, nas danças e nas
músicas aqui produzidas. O autor não viveu a década de 70 - morreu do
coração, em 1943 e não pôde conhecer a geração de Nelson Ned e Paulo
Sérgio, que, mais do que qualquer outra de nossa música popular, cantou o
romantismo e a tristeza.
Se o brasileiro é mesmo um ser triste, esta geração de cantores foi a mais
profundamente brasileira.
NOTAS BIBLIOGRÁFICAS APENSAS AO CAPÍTULO
(seguindo a numeração seqüencial encontrada no texto):
408. Paulo Prado. Retrato do Brasil; ensaio sobre a tristeza brasileira 8a
ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1998, p. 143.
409. Idem, pp. 140-141.
410. Dante Moreira Leite. O caráter nacional brasileiro; história de uma
ideologia. 4-a ed. São Paulo: Pioneira, 1983, p. 293.
411. Verso de Cavaleiro triste. Para outras indicações ver índice de
canções citadas em Fontes e bibliografia.
412. Verso da canção De repente. Ver índice de canções citadas em Fontes
e bibliografia.
413. A gravação aparece em 2° lugar na lista dos compactos duplos mais
vendidos na semana de 30 de janeiro a 4 de fevereiro de 1978, em São
Paulo. Fonte: Ibope - Pesquisa sobre vendas de discos - Acervo do Arquivo
Edgar Leuenroth/Unicamp.
414. Verso de Eu preciso encontrar urgentemente Ver índice de canções
citadas em Fontes e bibliografia
415. Paulo Prado, op. cit., p. 182.
416. A cigana aparece em 2º lugar na lista dos compactos simples mais
vendidos no mês de janeiro de 1970, no Rio. A mesma gravação ocupa o 6º
lugar na relação dos 50 discos mais vendidos no ano de 1970. Fonte: Ibope
- Pesquisa sobre vendas de discos - Acervo do Arquivo Edgar Leuenroth /
Unicamp; Nopem - Pesquisa de mercado sobre venda de discos.
417. Verso de Eu preciso encontrar urgentemente. Ver indice de canções
citadas em Fontes e bibliografia.
418. O compacto simples com Se eu pudesse conversar com Deus ocupa o
1° lugar em vendagem no mês de Janeiro de 1970, no Rio. A mesma
gravação alcança o 2º lugar entre os 50 discos mais vendidos no ano de
1970. Fonte: Ibope - Pesquisa sobre vendas de discos - Acervo do Arquivo
Edgar Leuenroth / Unicamp; Nopem - pesquisa de mercado sobre venda de
discos.
419. Silvio Romero. História da literatura brasileira Vol.1. 7ª ed. Rio de
Janeiro: José Olympio/ INL, 1980, p. 93.
420. Ronald de Carvalho. Pequena históna da literatura brasileira. 14ª ed.
Belo Horizonte: Itatiaia/INL, 1984
421. Versos de Não morreu a esperança e Estou só. Ver índice de canções
citadas em Fontes e bibliografia.
422. Verso de Vida pra qu. Ver índice de canções citadas em Fontes e
bibliografia.
4 23. Esta canção é uma das principais faixas do LP “O ídolo negro vol. 2”,
que alcançou o 4º lugar entre os LPs mais vendidos na semana de 12 a 17
de março de 1973, no Rio. Fonte: Ibope - Pesquisa sobre vendas de discosAcervo do Arquivo Edgar Leuenroth / Unicamp.
424. "Evaldo Braga, criado no SAM, atingiu a glória aos 25 anos" - O Dia,
3-2-1973.
425. "Cantor Evaldo Braga morreu em Três Rios" - O Dia, 1-2-1973.
426. Verso de A cruz que carrego. Ver índice de canções citadas em Fontes
e bibliografia.
427. Verso de A Verdade é diferente. Ver índice de canções citadas em
Fontes e bibliografia.
428. “Evaldo Braga, criado no SAM, atingiu a glória aos 25 anos" - O Dia,
3-2-1973.
429. "Waldik Soriano: Eu sou o poeta da dor do povo - Diário de Notícia,
5-9-1973.
430. Carlos Fico, op. cit., p. 125.
431. Verso de Brasil explosão de progresso. Para outras indicações ver
índice de canções atadas em Fontes e bibliografia.
432. Verso de Se a tristeza chegar. Ver índice de canções citadas em
Fontes e bibliografia.
433. Verso de Ai! meu senhor. Ver índice de canções citadas em Fontes e
bibliografia.
434. Verso de Menino rei do mar. Ver índice de canções citadas em Fontes
e bibliografia.
435. Não creio em mais nada aparece em 4° lugar na lista dos compactos
simples mais vendidos na semana de 7 a 12 de dezembro de 1970, no Rio.
A mesma gravação ocupa o 13° lugar na relação dos 50 discos mais
vendidos no ano de 1970. Fonte: Ibope - Pesquisa sobre vendas de discos Acervo do Arquivo Edgar Leuenroth / Unicamp; Nopem - pesquisa de
mercado sobre venda de discos.
436. Verso de Recalques Ver índice de canções citadas em Fontes e
bibliografia.
437. Verso de Eu já li vi e ouvi fanta coisa. Ver índice de canções citadas
em Fontes e bibliografia.
438. Verso de Vida que não pára. Ver índice de canções citadas em Fontes
e bibliografia.
439. Nelson Motta. Noites tropicais, op. cit., p. 235.
440. Idem, ibidem.
441. Fagundes Varela. Poesias completas de Fagundes Varela. Rio de
Janeiro: Ed. Ouro, 1965, p. 194.
442. Verso de Menina triste. Ver índice de canções citadas em Fontes e
bibliografia.
“Eu Não posso tocar violão, estou proibido de tocar, me neutralizaram
pra eu não tocar nunca mais.”
(RAVEL)
A década de 70 foi a década da patrulha - e não apenas a rodoviária ou
policial que rondam a cidade à procura de elementos transgressores. Numa
entrevista ao jornal O Estado de S. Paulo, em agosto de 1978, o cineasta
Cacá Diegues identificava (e pela primeira vez nomeava) a existência de
um outro tipo de vigilante:
“Acho muito grave essa espécie de patrulha ideológica que existe no
Brasil. Uma espécie de polícia política que fica te vigiando nas estradas
da criação, para ver se você passou da velocidade permitida." (443)
É claro que esta queixa de Cacá Diegues era motivada pelo fato de naquele
momento artistas e intelectuais como ele, Gláuber Rocha, Caetano Veloso e
Gilberto Gil estarem tendo algumas de suas obras e declarações
"policiadas" por setores da esquerda brasileira.
O caso Caetano Veloso é exemplar. Em 1977 - ano em que os militares
comemoravam os "13 anos da revolução" e que a sociedade civil protestava
- , o cantor lançou o LP "Bicho", que indicava uma opção preferencial
pelo prazer e trazia na faixa de abertura um quase manifesto: "Deixa eu
dançar / pro meu corpo ficar odara..." Palavra do dialeto ioneba (africano),
odara, segundo o próprio Caetano, significa "estar bem", "sentir-se feliz".
(444).
Nas entrevistas à imprensa o artista dizia que não tinha maiores interesses
por assuntos políticos e reiterava que aquele era um disco "de quem gosta
de música para dançar". Aí é que estava o problema. "Dançar, nesses
tempos sombrios?", indagava a jornalista Ana Maria Bahiana. (445) Um
outro jornalista, indignado, afirmava que Caetano "não tinha o direito de
por uma roupa colorida e sair brincando por aí, dizendo que está tudo bem,
isso é oba-oba inconseqüente". (446)
O ápice do patrulhamento ocorreu durante a temporada do espetáculo
Bicho Baile Show, no qual Caetano era acompanhado pela Banda Black
Rio - grupo carioca que propunha a fusão do samba com elementos do jazz,
soul e funk. A jornalista Margarida Autran dizia que "o artista não pode
alienar-se da realidade que o cerca" e que por isso Caetano Veloso não
tinha o direito "de não ler jornais, de declarar publicamente nada saber do
que se passa em termos políticos no Brasil e no exterior e,
conseqüentemente, de apresentar um espetáculo como o que está em cartaz
no teatro Carlos Gomes, irresponsavelmente 'feito para dançar'. E que,
afinal, nem para dançar serve".
Ela concluía afirmando que ao seguir o rastro do sucesso da Banda Black
Rio, o show de Caetano não passava de uma "oportunista e malsucedida
incursão ao alienado clima que hoje embala os subúrbios cariocas". (447)
Cobrança semelhante era endereçada a Gilberto Gil, que naquele ano
lançou o dançante LP "Refavela", sequência do regionalista
"Refazenda".
Numa crítica intitulada "Rebobagem", Tárik de Souza dizia que Gil e
Caetano eram "irmãos siameses em idéias e contradições", porque Gil
também se proclamava "um ignorante político" e alguém que ”nada
sabia sobre sucessão, redemocratização e quaisquer assuntos da
matéria". Em seu texto Tárik lembrava que Gil teria dito: "Simpatizo
com o presidente Geisel." Para o crítico, este caráter conservador do
discurso de Gil revelaria um artista "equivocado como pensador" e, embora
seu disco fosse “ritmicamente luminoso", as canções tinham "letras
confusas", que não chegavam "a explicar as declarações e atitudes
estapafúrdias" do autor. (448)
Como se vê, mais do que a música em si, os críticos analisavam as atitudes,
as opiniões, os posicionamentos políticos de Caetano e Gil. Contra isso
insurgiu-se Caetano Veloso numa polêmica entrevista ao Diário de são
Paulo. Ali ele afirmou que os cadernos de cultura dos principais jornais e
revistas do país eram dominados por uma "esquerda medíocre, de baixo
nível cultural e repressora" que pretendia policiar "essa força que é a
música popular no Brasil". E Caetano exemplificava citando
nominalmente quatro críticos musicais: Tárik de Souza, José Ramos
Tinhorão, Maurício Kubrusly e Maria Helena Dutra, que, segundo ele,
distribuíam estrelinhas a discos e shows "fingindo que estão fazendo um
trabalho da revolução operária, e se acham no direito de esculhambar
com a gente, porque se julgam numa causa nobre; quando não tem
nobreza nenhuma nisso".
Para Caetano, seus criticos não tinham autoridade para questionar nenhuma
atitude dele porque "são pessoas que obedecem a dois senhores: um é o
dono da empresa, o outro é o chefe do partido" e que por isso eles se
expressariam numa "linguagem completamente esquizofrênica", de
difícil assimilação para o leitor. "Ninguém entende os artigos que os
imbecis escrevem porque é uma mistura de Roberto Marinho e Luiz
Carlos Prestes."
Chamando a crítica militante de "canalha", Caetano dizia que "se eles não
se tornarem uma União Soviética e mandarem me matar, não
conseguirão jamais nada comigo, a não ser que eles ganhem os
tanques. Se eles tiverem os tanques nas ruas, nas mãos deles, aí eles
poderão me impedir em alguma coisa. Fora isso, é impossível" porque
"eles não são de nada. É uma canalha que eu digo que vou acabar, que
a gente já acabou, já matou, são defuntos que fingem que estão vivos".
(449)
Bem, depois disso tudo um jornalista previu que as pazes entre Caetano e a
crítica seriam, para sempre, uma hipótese tão ilusória "como imaginar que
árabes e israelenses viverão sem guerras no Oriente Médio". (450)
Mas a coisa poderia ter sido realmente muito séria porque, dado o fato de
que ele nomeou quatro críticos com supostas vinculações ao Partido
Comunista, houve uma tentativa de se impingir ao cantor a alcunha de
"dedo-duro".
Em alguns jornais saíram notas dizendo que Caetano seria agraciado com o
prêmio "Simonal de Ouro", e a repercussão da sua entrevista apareceu
numa reportagem da revista Istoé com o título "Caetano tira o dedo do
violão e aponta". (451)
O cartunista Henfil bateu na mesma tecla ao dizer que "hoje há dedosduros muito mais famosos do que o Simonal", enfatizando que Caetano
foi "extremamente covarde" ao denunciar seus críticos como membros
do Partido Comunista "num país onde comunismo dá cadeia, torturas e
até morte". E Henfil concluía sua fala com uma ameaça ao cantor: "Se
um desses críticos chegar a ser preso ou sofrer um arranhão por causa
das denúncias dele, eu não sei o que vai dar para fazer, não. Eu acho
que vou querer descontar, porque são todos meus amigos, e se não são,
passaram a ser."
*O mineiro Henrique de Souza Filho, o Henfil, foi mesmo um dos mais
atentos patrulheiros ideológicos daquele período - ação que ele admitia
como contraponto à "patrulha odara", aquela que cobraria dos outros
criações apolíticas e atitudes descompromissadas.
Renovador do desenho humorístico brasileiro, Henfil tornou-se conhecido
nacionalmente a partir de 1969, quando seus cartuns foram publicados no
semanário O Pasquim, na época a coqueluche da moçada universitária.
Henfil era um defensor intransigente da arte engajada. Para ele não havia
meio termo: quem não estava contra estaria a favor da ditadura militar regime que o atingia diretamente pelo fato de seu irmão, o sociólogo
Herbert de Souza, o Betinho, ser um exilado político. Através de
personagens como Fradim, Graúna e Capitão Zeferino, o cartunista fazia de
seu trabalho uma arma de combate ao sistema político do país, e ele
cobrava dos outros artistas esta mesma atitude.
Neste ponto se dava sua polêmica com Caetano Veloso, que em uma de
suas canções rebatia Henfil e outros patrulheiros: "Nenhuma força virá
me fazer calar / faço no tempo soar minha sílaba...", verso de Muito
romântico, composição lançada por Roberto Carlos, mas que Caetano
também fez questão de gravar em seu LP "Muito", em 1978. "É a defesa
do artista e de seu modo de ser, contra aqueles que tentam botar
rédeas e trilhos no seu caminho", explicou o autor na época. (453)
Rédeas e trilhos também apareceram no caminho dos irmãos Dom e Ravel
artistas dos mais atingidos pelas "patrulhas ideológicas", e muito antes da
expressão ser criada. Logo após a gravação do primeiro LP da dupla, em
março de 1971, o jornal O Pasquim advertia aos seus leitores para
tomarem cuidado com dois "compositores da pior qualidade que estão
botando banca de porta-voz da juventude brasileira", enfatizando o
jornal que "não dá pé. A dupla é péssima". (454)
Entretanto, para além da questão estética, Dom e Ravel foram rejeitados
pelo público de esquerda em função da sua imagem de cantores de músicas
ufanistas - imagem ressaltada a partir do momento em que membros do
governo militar, incluindo o próprio presidente da República - , revelaram
apreço pela marcha Eu te amo meu Brasil.
A primeira manifestação pública do presidente Médici em relação à
composição de Dom ocorreu em janeiro de 1971, quando o tema
interpretado pelo conjunto Os Incríveis ocupava os primeiros lugares das
paradas e já havia vendido cerca de 200 mil cópias. (455)
Na ocasião o presidente participava de um encontro de governadores no
Palácio Iguaçu, sede do governo estadual em Curitiba, no Paraná. No
intervalo da reunião, ao se dirigir para a sala de refeitório onde seria
servido o almoço, ele foi atraído pelos acordes de Eu te amo meu Brasil,
que naquele exato instante estavam sendo tocados no saguão pelo organista
do palácio. Cercado de diversos governadores, Médici parou por alguns
instantes diante do organista e comentou que achava aquela melodia muito
bonita e a sua mensagem muito sadia para a juventude. Mais realista que o
próprio rei, o governador de São Paulo, Abreu Sodré, sugeriu:
"Presidente, essa música devia ser transformada em hino nacional.”
(456)
O general Médici não acatou a sugestão do governador de São Paulo, mas a
simpatia que manifestou pela mensagem da música acabou por levá-lo a
um breve contato pessoal com Dom & Ravel.
O encontro ocorreu na manhã do dia 10 de Setembro de 1971, quando
Médici esteve na cidade de Jundiaí, interior de São Paulo, para comemorar
o primeiro ano de atividade do Mobral e paraninfar uma turma de alunos
formada na região. Como no tempo de Vargas durante o Estado Novo, a
visita do presidente da República mobilizou a cidade paulista.
Segundo relato do Jornal do Brasil, "cerca de 50 mil pessoas se
colocaram ao longo das ruas de Jundiaí para receber o presidente
Garrastazu Médici" e todo o trajeto por onde ele passou naquela manhã
estava enfeitado com "faixas e cartazes e, ao longo das calçadas,
milhares de pessoas, inclusive estudantes uniformizados, agitavam
bandeiras e lançavam papéis picados". (457) O jornal Folhade S. Paulo
também descreve que "praticamente toda a cidade foi decorada com as
cores da bandeira nacional e todas as residências ostentavam nas
janelas e sacadas retratos do Presidente". (458)
A cerimônia de formatura, realizada no principal ginásio da cidade, contou
com a presença de autoridades civis e militares, e também com a
participação da dupla Dom & Ravel, que, acompanhada por um grupo de
alunos do Mobral, interpretou Você também é responsável”, além do Hino
Nacional Brasileiro, executado por um coral e orquestra sinfônica.
Enquanto isso, encolhidas nas arquibancadas do ginásio, 5 mil pessoas
aguardavam o fim dos discursos para saborear o enorme bolo de 180 quilos
que repousava num dos cantos da quadra.
O general João Figueiredo, na época chefe da Casa Militar do governo
Médici, estava ao lado do presidente no momento em que este, no fim da
cerimônia, quebrando o protocolo, se dirigiu ao pequeno tablado onde
estavam Dom e Ravel. A comitiva do presidente se retirava do local
seguindo o trajeto da direita, mas Médici resolveu virar à esquerda para ir
cumprimentar a dupla. Diante disso, o general Figueiredo rapidamente deu
a volta por trás da comitiva e, chegando perto dos dois artistas, sussurrou:
"Apressem o passo que o presidente está a caminho dos senhores."
Dom e Ravel ficaram até um pouco assustados com a ação daquele general
carrancudo, de óculos escuros, e que na época ninguém conhecia.
Figueiredo se posicionou por detrás deles e com as duas mãos praticamente
os empurrava em direção ao presidente Médici, repetindo: "Apressem o
passo, apressem o passo que o presidente está a caminho dos
senhores."
O encontro entre Dom e Ravel e Emílio Garrastazu Médici durou pouco
mais de um minuto. Ao se aproximar, o general estendeu a mão e disse:
"Eu me sinto honrado em ter a oportunidade de cumprimentar esses
dois grandes artistas brasileiros." Dom retribuiu a gentileza dizendo: "A
honra é toda nossa, presidente. Duas pessoas de origem humilde como
nós, que nasceram na modesta cidade de Itaiçaba, interior do Ceará,
terem hoje a oportunidade de cumprimentar um presidente da
República. Muito obrigado pela honra."
A partir daí, os dois imigrantes nordestinos, que na infância, em São Paulo,
eram constrangidos a entrar pela porta dos fundos das casas de alguns
colegas e pela área de serviço dos demais prédios da cidade, seriam agora
recebidos pela porta da frente dos palácios da República. Atraídos para a
esfera do poder, os irmãos Dom e Ravel teriam a sua imagem pública
definitivamente associada ao regime político ditatorial implantado no
Brasil em 1964. "Depois desse nosso encontro com o presidente Médici”
afirma Dom - "diversas pessoas do segundo, terceiro e quarto escalões
do governo federal passaram a cortejar a gente, pois sabiam que nós
éramos admirados pelo presidente. E em virtude dessa circunstância,
acabamos tendo um trânsito com esse grupo, sendo objeto de um
fascínio muito grande da parte desse pessoal do poder na época. E a
gente sem entender muito bem o que estava acontecendo. O porquê
daquele interesse de pessoas da alta roda política e do alto oficialato do
Exército por nós. Então eles começaram a nos chamar para festinhas,
solenidades; e, nesses encontros, os militares, como fãs, tiravam várias
fotografias com a gente. E a imprensa via aquilo e mitologizava: 'esses
caras estão recebendo encomenda do governo pra fazer música'."
Pois será justamente esta exposição pública ao lado do poder o que
determinará a imagem de Dom e Ravel como símbolos do nacionalismo e
do ufanismo nos anos do regime militar. Isto porque, como está
demonstrado ao longo deste trabalho, uma análise mais cuidadosa da
produção musical da dupla revela que ela não foi tão adesista quanto
acreditavam os membros do governo militar e nem tão conformista quanto
julgavam os opositores deste governo. Mais do que suas canções, foram as
aparições e declarações públicas de Dom & Ravel que moldaram a imagem
reacionária da dupla.
E entre estas manifestações públicas, destaca-se a entrevista que eles
concederam à revista Veja em fevereiro de 1971. Naquele momento
firmando-se como um importante veículo formador de opinião, Veja
apresentava em primeira mão ao público letrado do país os responsáveis
pela marcha Eu te amo meu Brasil, o grande sucesso daquela temporada.
Com o título de "Os fabricantes felizes da alegre vitória", aquela foi a
primeira reportagem com Dom & Ravel num veículo de circulação
nacional. (459)
E hoje os próprios artistas reconhecem que as suas declarações à revista
contribuíram para formar a imagem de mercenários e oportunistas que eles
iriam carregar a partir daí.
Entrevistados pelo repórter Luís Nassif, Dom e Ravel dizem, entre outras
coisas, que ficariam honrados se o governo oficializasse[/] Eu te amo meu
Brasil como hino, que fizeram aquela música para ganhar dinheiro, que
pretendiam "sugar a mama da vaca" e assinar um contraio após a
composição de um tema para o Mobral, enfim, o que desejavam era
"ganhar dinheiro e usufruir". Sobre a seqüencia da carreira afirmam que
depois de Eu te amo meu Brasil planejavam criar mensagens musicais
para "combater a vagabundagem, a falta de higiene e o tóxico na
juventude, que são idéias de anarquismo que vem dos Estados Unidos e
Inglaterra" - , numa clara referencia aos hippies que naquele momento
começavam a circular nos grandes centros urbanos do país.
O interessante é que, de certa forma, gravações como Você também é
responsável e A canção antitóxico (composição de Dom & Ravel lançada
pelo cantor Barros de Alencar) (460), confirmam este projeto anunciado à
revista Veja; mas outros títulos da dupla, como Conflito de gerações (sobre
o movimento hippie), O caminhante (sobre o problema dos sem-terra) e
Animais irracionais (sobre o uso do chicote pelos opressores) o desmentem
pois, como já vimos em capítulos anteriores, trazem uma mensagem de
conteúdo crítico.
Constata-se então neste caso um fenômeno bastante comum no universo da
música popular: interpretações ambíguas, paradoxais e contraditórias
coexistindo no mesmo sujeito Mas de que maneira Dom e Ravel analisam
este relativo descompasso entre o discurso reacionário apresentado pela
dupla à imprensa e parte de sua produção discográfica?
Para Ravel isto se deve à falta de uma base emocional e profissional para
lidar com o repentino sucesso alcançado por eles.
"O dinheiro, as mulheres, o sucesso, tudo isso deixa você em estado de
embriaguez. E nós não tínhamos preparo nenhum, estrutura nenhuma,
orientação nenhuma de como administrar o sucesso, de como se
comportar diante daquela situação." Dom também enfatiza a falta de
uma estrutura profissional para coordenar a imagem da dupla. “A gente
era muito espontâneo, muito simplório. Não tínhamos uma assessoria
de marketing por trás, coisa que hoje em dia os artistas têm: uma
pessoa especializada em cuidar das matérias que saem na mídia, a
postura no palco, na televisão, na entrevista, enfim, não tínhamos nada
disso. Então fomos um prato cheio para os nossos adversários, que
puderam montar nossa imagem pública do jeito que quisessem.
Ficamos vulneráveis."
Vulnerabilidade que determinados artistas da música popular não
apresentaram na época - e com uma produção musical de mensagens muito
mais conformistas e apologéticas do que a da dupla Dom & Ravel.
Vejamos inicialmente o caso do conjunto Os Incríveis.
Grupo de rock paulistano formado no inicio dos anos 60, os Incríveis
(Mingo, Risonho, Manito, Netinho e Nenê) tornaram-se conhecidos em
todo o Brasil a partir de 1967 com o sucesso de Era um garoto que como
eu amava os Beatles e os Rolling Stones, versão de uma canção de protesto
italiana contra a Guerra do Vietnã. Mas em 1969, inicio do período do
"Milagre Econômico" e quando começam a despontar mensagens ufanistas,
o conjunto regrava o clássico Aquarela do Brasil, de Ary Barroso. O antigo
samba-exaltação ressurgia com um novo arranjo traduzido para a
linguagem do público jovem: à base de guitarras, sax, teclado e com um
texto introdutório não presente na versão original, mas devidamente
atualizado para a ideologia do "Brasil Grande":
ESTA É A NOSSA HOMENAGEM, BRASIL
A HOMENAGEM OS JOVENS QUE MAIS DO QUE NUNCA
ACREDITAM NO TEU FUTURO, VAI GIGANTE!
VI E ESCREVE NAS PÁGINAS DA HISTÓRIA
O TEU GLORIOSO NOME
BRASIL, MEU BRASIL BRASILEIRO...
No ano seguinte, 1970, como já vimos, os Incríveis lançam Eu te amo meu
Brasil, composição de Dom; em 1971 gravam um compacto com O Hino
Nacional Brasileiro e o Hino da Independência, ambos também com novos
arranjos à base de toques de guitarras, teclados e bateria; em 1974 o grupo
lança a marcha Cem milhões de corações, tema da seleção brasileira na
Copa do Mundo da Alemanha; em 1976 gravam um "disco especial da
Presidência da República" intitulado "Trabalho e paz, de mãos dadas é mais
fácil", com quatro trilhas sonoras de propaganda do regime: Pindorama e
Marcas do que se foi (composições de Rui Maurity) e as marchas Este é
meu Brasil e Este é um pais que vai pra frente (ambas do compositor
Heitor Carillo); no ano seguinte Os Incríveis lançam mais duas mensagens
de “otimismo”; Você precisa acreditar (Arthur-Galahad) e O Brasil é feito
por nós (Heitor Carillo), gravações incluídas em um novo "disco especial
da Presidência da República", e, finalmente, em 1978, o conjunto grava
Gôôôôôôl! Brasil !!!, tema da seleção brasileira na Copa do Mundo da
Argentina. Portanto, Os Incríveis atravessaram todo o período do AI-5
gravando canções com mensagens apologéticas-nacionalistas.
Trajetória semelhante - porém mais curta - teve o compositor e publicitário
carioca Miguel Gustavo. Criador de jingles famosos, como os da Mesbla e
das Casas da Banha, e autor de sucessos gravados por intérpretes como
Jorge Veiga, Cauby Peixoto, Aracy de Almeida, Elizete Cardoso e,
principalmente, os sambas-de-breque de Moreira da Silva (461) - Miguel
Gustavo morreu em janeiro de 1972, mas até essa data compôs algumas das
mais representativas canções ufanistas do período do "Milagre".
Ele é o autor da marcha ”Pra frente Brasil”, que se tornou o hino da
seleção na Copa do Mundo de 1970, mas cuja mensagem estava em
perfeita sintonia com o projeto de mobilização cívico-patriótica
desenvolvido pela propaganda do regime militar:
NOVENTA MILHÕES EM AÇÃO
PRA FRENTE BRASIL, DO MEU CORAÇÃO
TODOS JUNTOS, VAMOS, PRA FRENTE BRASIL
SALVE A SELEÇÃO!
DE REPENTE É AQUELA CORRENTE PRA FRENTE
PARECE QUE TODO O BRASIL DEU A MÃO
TODOS LIGADOS NA MESMA EMOÇÃO
TUDO É UM SÓ CORAÇÃO
Mais do que uma simples mensagem de apoio à seleção brasileira nos
campos de futebol do México, a marcha Pra frente Brasil também
colaborava para consolidar a visão de que o país vivia naquele momento
uma nova era histórica, marcada pelas noções de mobilização,
transformação, crescimento e progresso.
E tudo isso centrado numa certa idéia de nação baseada nos princípios de
coesão e da união de todas as classes em prol de um objetivo comum.
Mensagem que na época era ilustrada através de cartazes que mostravam
muitas pessoas de mãos dadas tendo ao fundo o mapa ou a bandeira do
Brasil. Mas esta associação entre a marcha Pra frente Brasil e a ideologia
do "Brasil Grande" se evidencia melhor se compararmos a composição de
Miguel Gustavo a uma outra mensagem glorificante do futebol brasileiro, A
taça do mundo é nossa, dos compositores Maugeri, Dagô e Muller, tema da
vitória da seleção na Copa do Mundo de 1958:
A TAÇA DO MUNDO É NOSSA
COM BRASILEIRO NÃO HÁ QUEM POSSA
Ê, ÊTA ESQUADRÃO DE OURO
É BOM NO SAMBA, É BOM NO COURO
O BRASILEIRO LÁ NO ESTRANGEIRO
MOSTROU O FUTEBOL COMO É QUE É
GANHOU A TAÇA DO MUNDO
SAMBANDO COM A BOLA NO PÉ, GOOOOL!
Note-se que a letra do hino da copa da Suécia exalta o "brasileiro" e não o
"Brasil", e é pontilhado de imagens referentes ao universo do futebol: "taça
do mundo", "esquadrão", "couro", "bola", "gol", além da própria palavra
"futebol". Já no texto de Pra frente Brasil, com exceção da palavra
"seleção", tudo o mais pode identificar tanto o time de futebol quanto a
pátria governada pelos generais. E nunca é demais lembrar que esta idéia
de "noventa milhões em ação", irmanados sob o símbolo da concórdia, se
prestava aos objetivos de dominação, já que, como sabemos, o país estava
politicamente cindido e clivado por brutais diferenças sócio-econômicas. E
talvez por isso mesmo o autor de Pra frente Brasil foi na época agraciado
pelo Exército com a Medalha do Pacificador - “um reconhecimento pela
obra de integração nacional que a marchinha promoveu". (462)
Logo após a Copa do Mundo de 1970, Miguel Gustavo compôs outra
marcha apologética, Brasil, eu adoro você!, gravação patrocinada pela
Eletrobrás e distribuída nas escolas de todo o país com a mensagem; "É
tempo de vitória, de festa e de fé. Cante, comemore a Semana da
Pátria. O Brasil precisa do seu otimismo, do seu amor e da sua alegria.
Cante, ensine as crianças a cantar. Estamos na Semana da Pátria.
Lançada em duas versões - uma com a cantora Ângela Maria (para o
público mais adulto) e outra com o Coral de Joab Teixeira (para o publico
mais jovem) - , a marcha de Miguel Gustavo traz mais uma vez o grito de
"pra frente Brasil', agora sem nenhuma relação com o universo do futebol:
"Oh! meu Brasil do progresso / plantando o sucesso / futuro sem par /
meu Brasil pra frente / gente contente a desbravar..."
No ano seguinte, visando às comemorações dos 150 anos de Independência
do Brasil, cujos preparativos mobilizaram grande parte do governo Médici,
Miguel Gustavo criou a Marcha do Sesquicentenário da Independência.
Gravada em quatro versões - uma das quais com o cantor Miltinho e
arranjo e orquestra de Radamés Gnattali - , a composição serviu para
animar a festa do Sete de Setembro de 1972, que teve como seu momento
culminante o translado dos restos mortais de Dom Pedro I de Portugal para
o mausoléu do Ipiranga, em São Paulo: “Marco extraordinário /
Sesquicentenário da Independência / potência de amor e paz / esse
Brasil faz coisas / que ninguém imagina que faz...."
Nesta mesma linha celebrativa, Miguel Gustavo compôs outra marcha,
agora exaltando o Exército Brasileiro, instituição que naquele momento
estava totalmente identificada com o regime político dominante no país:
"Fator de integração e segurança / soldado é o povo fardado / é o povo ao
seu lado / na guerra e na paz / no encontro seguro / que o Brasil tem com o
futuro..." (463)
E pouco antes de falecer vítima de câncer, aos 49 anos, Miguel Gustavo
ainda faria uma marcha de exaltação à Estrada Transamazônica, que, com
seus 5.500 quilômetros cortando a Bacia Amazônica de leste a oeste, foi
um dos principais projetos do governo Médici: "O Brasil já está na estrada /
na grande jogada da integração / batalha sem metralha / na floresta toda em
festa / sobre a pista da conquista / o futuro em ação..." (464)
Se durante a ditadura do Estado Novo Ary Barroso ajudou a criar o sambaexaltação, durante a ditadura militar Miguel Gustavo contribuiu com a
marcha-exaltação, ritmo mais de acordo com um regime controlado pelas
forças armadas. Mas o time de compositores de temas de exaltação ao
regime não ficou totalmente desfalcado com a morte de Miguel Gustavo.
Logo em seguida entrou em campo o paulista Heitor Carillo, que era
conhecido como o "Miguel Gustavo de São Paulo". Assim como o
compositor e publicitário carioca, Carillo tinha canções gravadas por
intérpretes como Elizete Cardoso, Ângela Maria, Agostinho dos Santos, e
era também autor de jingles como o do sabonete Lever (gravado por João
Gilberto nos anos 60) (465) e o da Rede Zacarias de Pneus (gravado por
Waldik Soriano nos anos 70). (466)
Mas foi com suas composições ufanistas lançadas pelo grupo Os Incríveis
que Heitor Carillo alcançou maior sucesso popular naquele período.
Composições como, por exemplo, Este é meu Brasil, O Brasil é feito por
nós, e - quem não se lembra - a marcha Este é um pais que vai pra frente, a
principal mensagem ufanista do período do governo Geisel:
ESTE É UM PAÍS QUE VAI PRA FRENTE (OU, OU ,OU, OU)
DE UMA GENTE AMIGA E TÃO CONTENTE (OU, OU, OU, OU)
ESTE É UM PAÍS QUE VAI PRA FRENTE
DE UM POVO UNIDO, DE GRANDE VALOR
É UM PAÍS QUE CANTA, TRABALHA E SE AGIGANTA
É O PAÍS DO NOSSO AMOR
O curioso é que com tudo isto nem Heitor Carillo, nem Miguel Gustavo,
nem o conjunto Os Incríveis ficaram marcados como "porta-vozes da
ditadura militar". Este peso recaiu todo sobre os irmãos Dom e Ravel, que a
rigor têm uma única canção ufanista em seu repertório: Eu te amo meu
Brasil.
Além do já citado Waldenyr Caldas, que escreveu que a dupla Dom &
Ravel "liderou o discurso-exaltação às grandezas do governo da
revolução", (467) alguns outros estudiosos da cultura brasileira vêm
contribuindo para cristalizar esta visão. Em seu trabalho sobre a censura à
MPB durante o regime militar, o historiador Alberto Moby afirma que em
relação às canções de cunho nacionalista-ufanista produzidas naquele
período "o único caso de destaque é o da dupla Dom & Ravel".(468)
Opinião também compartilhada por Heloísa Buarque de Hollanda e Marcos
Goncalves ao destacarem, na produção cultural brasileira do pós--1968, a
existência de "marchas exaltativas" dos "inacreditáveis Dom e Ravel".
(469) E no já citado livro de Gilberto Vasconcelos, publicado em 1977, o
autor denuncia Dom e Ravel como os "apologetas do regime
autoritário". (470)
Visão que permanece incólume e é repetida em 1999 pelo historiador e
deputado Chico Alencar, que ao apontar erros históricos na letra da
canção gravada por Chitãozinho & Xororó em homenagem aos 500
anos do Descobrimento do Brasil (471), enfatiza que ela é uma "música
chapa-branca" (porque encomendada pelo governo FHC), "patriótica
no mau sentido" e que lembra "Dom & Ravel daquele Este é um país
que vai pra frente (sic) e Eu te amo meu Brasil dos anos de chumbo da
ditadura". (472)
Como se vê, a nenhum desses historiadores ocorreu a lembrança dos nomes
de Miguei Gustavo ou de Heitor Cariiio ou do conjunto Os Incríveis ou de
qualquer outro dos diversos cantores/compositores populares Jorge Benjor,
João Nogueira, Zé Keti, Ivan Lins, Marcos Valle, Paulo Sérgio Valle, Luiz
Vieira, Rui Maurity, João Roberto Kelly que também produziram temas
ufanistas nos "anos de chumbo da ditadura".
Hoje é como se naquela época toda a MPB estivesse na resistência e apenas
Dom & Ravel no apologismo ao regime. E que talvez por isso mesmo eles
tenham sido contemplados com o adjetivo de "inacreditáveis". Mas, como
sabemos, a memória é mesmo seletiva; nem tudo é lembrado, nem tudo é
guardado.
E uma das razões para este esquecimento, principalmente nos casos de
Miguel Gustavo e do grupo Os Incríveis, é que nenhum deles posou ao lado
do presidente Médici ou declarou à imprensa que fazia canções patrióticas
para ganhar dinheiro.
Ou seja, tiveram aquilo que faltou à dupla Dom & Ravel: a preservação da
sua imagem pública. E hoje os "inacreditáveis" Os Incríveis são geralmente
lembrados pela canção de protesto italiana Era um garoto que como eu
amava os Beatles e os Rolling Stones, enquanto a gravação de maior
sucesso da carreira do grupo - a marcha Eu te amo meu Brasil - ficou
totalmente associada à dupla Dom & Ravel, que também paga por Este é
um país que Vai pra frente, tema de Heitor Carillo.
E o compositor Miguel Gustavo destaca-se na historiografia de nossa
música popular como o autor de sambas de breques de exaltação à
malandragem. Tanto é assim que no mesmo livro em que denuncia Dom e
Ravel como os "apologetas do regime autoritário", Gilberto Vasconcelos
saúda Miguel Gustavo como "o grande compositor que está sempre
presente nos discos de Moreira da Silva". (473)
Como um autêntico criador e personagem da linhagem "malandra" do
samba, o carioca Miguel Gustavo deu o seu recado falando baixo e pisando
macio, enquanto que os cearenses Dom e Ravel fizeram barulho, falaram o
que não deviam e, como acontece com os "otários", pagaram o pato
sozinhos.
"Dom e Ravel são horrorosos, e são primários, entende? São
compositores de colégio", opinava Chico Buarque em 1971,
acrescentando que os dois irmãos eram "péssimos músicos, péssimos
letristas, péssimos em caráter, péssimos em tudo". (474)
Com este discurso enfático e agressivo o autor de Cálice expressava o
sentimento de rejeição que os setores de esquerda nutriam pela dupla
naquele momento. "Mas a perseguição não foi só ideológica. Por duas
vezes fui espancado na rua", garante Ravel.
Ele diz que mesmo durante os shows a dupla chegava a ser agredida com
paus, pedras e pontapés desferidos por elementos infiltrados entre os fãs.
Um dos episódios que Ravel descreve ocorreu na cidade de São Luís, no
Maranhão.
"Para entrar no ginásio de esportes superlotado e fazer o nosso show
ali foi muito difícil. Logo na entrada eu vi a polícia batendo nas pessoas
e vi pessoas atirando coisas na gente: era pau, era pedra, era tudo. E os
que estavam mais perto chegavam para dar pancada, murro, chutes,
entendeu? Era pra agredir mesmo. Eu sofri muito essas agressões, e
não só lá em Sâo Luís, onde a coisa foi muito pesada, tanto que tivemos
que sair rápido da cidade, mas também em alguns outros locais, em
outros estados. Era em cima desse clima todo, de pavor, de temor, de
violência e de agressividade, que a gente fazia os nossos shows naquela
época. Eu levei muitas pedradas na cabeça, sofri muitas agressões que
até hoje deixaram marcas no meu corpo inteiro."
Literalmente, o depoimento de Ravel expressa o que está em um verso de
uma antiga canção de Taiguara que diz "hoje / trago em meu corpo /as
marcas do meu tempo". E não só Ravel ou Taiguara, mas diversos outros
cantores/compositores com atuação destacada no período mais duro do
regime militar trazem hoje em seu corpo ou em sua obra marcas de um
tempo dominado pelo radicalismo, repressão, delação, intolerância,
violência e patrulhas ideológicas.
Patrulhas que, como definiu Caetano Veloso em seu discurso no Tuca - e
como também ilustra o depoimento de Ravel - , não diferem em nada
daqueles que invadiram o teatro e espancaram os atores da peça Roda viva.
Registre-se que, embora sem esta mesma carga de repulsa e agressividade,
outros artistas da música popular brasileira enfrentaram problemas
semelhantes aos de Dom & Ravel naquele período. O cantor e compositor
Ivan Lins, por exemplo, quase teve a carreira destruída depois do sucesso
de O amor é o meu país, composição que a esquerda identificou como um
respaldo ao slogan "Brasil: ame-o ou deixe-o" do governo Médici. "Para o
pessoal estudantil, eu e Dom & Ravel éramos a mesma coisa; eu era
um nada, um zero, um cara a serviço da propaganda do governo",
afirma o compositor (.475)
Atuando numa faixa de público de classe média e formação universitária que estava em franca oposição ao governo militar - , não dava para Ivan
Lins prosseguir carregando a imagem de "alienado" e "adesista". E isto fica
evidente numa polêmica entrevista que ele concedeu ao Pasquim, em
Outubro de 1972.
Lá pelas tantas o cartunista Henfil, um dos entrevistadores, questionou se a
origem e o estilo de vida burguês de Ivan Lins não teriam feito dele uma
pessoa alienada e cega para as questões sociais. "Eu passo perto e vejo,
tomo conhecimento...", tentou responder Ivan. "E canta O amor é o meu
pais?”, rebateu Henfil, que prossegue a entrevista apertando o cerco sobre
o compositor:
- VOCÊ É UM CARA REACIONÁRIO?
- NÃO. É LÓGICO QUE NÃO. EU SOU, VAMOS DIZER ASSIM,
UM... O REI DA CORDA BAMBA!
- VOCÊ SABE DA DESTRUIÇÃO QUE ESTÁ SENDO FEITA DA
TERRA?
- SIM.
- OS PROBLEMAS DA POPULAÇÃO? TA POR DENTRO DE
TUDO?
- CLARO.
- ENTÃO, EU PERGUNTO: POR QUE VOCÊ NÃO FALA DISSO
NAS TUAS MÚSICAS? (476)
Por estas e outras, Ivan Lins procurou reformular a sua imagem e carreira e
para isto dispensou o letrista Ronaldo Monteiro de Souza (com quem havia
feito O amor é o meu país, Madalena, Salve salve e outros sucessos) e
convidou o paulista Vitor Martins para ser o seu novo parceiro.
O jornalista Eloí Calage informa que quando Vitor recebeu esta proposta,
“foi aconselhado a dizer não, sob o argumento de que ser parceiro de Ivan,
naquele momento, era uma podre". (477) Vitor Martins, na época um
compositor em emergência, aceitou o desafio, embora reconhecendo que
sua primeira tarefa não ficaria restrita à pauta musical. "Vitor e eu
conversávamos muito" - diz Ivan - "e ele me mostrava as áreas onde eu
estava queimado: na critica, no público estudantil. A gente refletia sobre
tudo isso, ele dizia: 'Olha, primeiro vamos limpar sua barra, anular essa
imagem que você tem do seu passado.'” (478)
E para marcar posição - e saltar da corda bamba - , o primeiro resultado da
nova parceria foi uma música de conteúdo contestador, Abre alas, gravação
de 1974, que comentava o processo de abertura política, “Abre alas pra
minha folia / já está chegando a hora...", mas com o devido cuidado num
tempo de repressão: "Encoste essa porta / que a nossa conversa não pode
vazar...". Seguindo esta mesma trilha a dupla compôs outras canções como
Cartomante, Aos nossos filhos e Desesperar, jamais.
Ivan Lins tornara-se agora um cantor de protesto. Para ele era preferível
enfrentar a censura oficial da direita do que a censura oficiosa da esquerda que, entretanto, não engoliu facilmente a mudança do compositor.
Quando da feitura da primeira edição da Enciclopédia da Música
Brasileira (publicação de 1977 reunindo 2.500 nomes da nossa música
popular, folclórica e erudita), o autor de O amor é o meu pais não foi
incluído porque o redator-chefe daquela obra, Paulo Sérgio Machado, bateu
pé e disse: "Esse cara não entra na enciclopédia." (479)
E Ivan Lins não entrou, ficando o leitor privado de informações sobre um
artista àquela altura já consagrado e com várias de suas músicas gravadas
por intérpretes como Elis Regina e Ella Fitzgerald.
E a própria cantora Elis Regina também foi alvo das patrulhas ideológicas
no início da década de 70. Naquela época Henfil publicava semanalmente
no Pasquim uma coluna conhecida como "cemitério dos mortos-vivos",
no qual ele fazia o "enterro" daquelas pessoas que considerava
simpatizantes do regime militar ou omissas politicamente.
O "cemitério dos mortos-vivos" que o Henfil publicava no Pasquim: os
artistas da MPB morriam de medo de irem para lá. Já os cafonas, nem
ligavam.
Era uma página bem representativa do clima de radicalismo que se vivia - e
que se fosse levada às últimas conseqüências, ali teria que ser "enterrada"
grande parte da população brasileira que naquele momento apoiava o
regime dos generais.
Mas nas lápides do "cemitério" de Henfil apareciam os nomes de
personalidades como Roberto Carlos, Pelé, Nelson Rodrigues, Gilberto
Freyre, Raquel de Queiroz, Zagalo, Bibi Ferreira, Clarice Lispector,
Marília Pêra e também o de Elis Regina. Henfil não aceitou o fato de Elis
ter ido cantar no Encontro Cívico Nacional, pomposo evento que marcou o
início das comemorações do Sesquicentenário da Independência, em 1972.
O ex-parceiro de Elis no Dois na Bossa, o cantor Jair Rodrigues, com seu
tradicional sorriso e empolgação, foi o "puxador" do samba da festa, que
diz: "1972 engalana o Brasil / comemorando a existência de 150 anos
de independência / vamos cantar e exaltar...” (480)
Naquele momento do governo Médici o ufanismo estava no auge e mais do
que nunca o regime procurava exaltar datas e símbolos nacionais. E
eventos celebrativos como este (havia também as Olimpíadas do Exército e
as Expoex - Exposições do Exército) eram realizados anualmente na
Semana da Pátria e no mês de comemoração da chamada “Revolução de
março de 1964". Além de Elis Regina e Jair Rodrigues (e de Dom &
Ravel), participaram destes shows diversos artistas da nova e da velha
geração de nossa música: Luiz Gonzaga, Roberto Carlos, Jorge Ben,
Wilson Simonal, Cauby Peixoto, Marcos Valle, Agostinho dos Santos,
Ronnie Von, Zimbo Trio e a "divina" Elizete Cardoso”, a cantora preferida
do presidente Médici. (481)
Para animar a festa, o escalado era invariavelmente Chacrinha, que na
época confessava-se orgulhoso da convocação das Forças Armadas: "O
Chacrinha fica muito feliz em ser lembrado para essa festa do nosso
glorioso Exército. Estamos aí para colaborar sempre." (482)
Mas entre todos os colaboracionistas, a que causou maior indignação nos
setores de esquerda foi mesmo Elis Regina, cantora que despontara para o
sucesso em 1964, depois de abandonar o estilo Cely Campelo e gravar
canções de protesto como Terra de ninguém e Menino das laranjas..
Parecia uma fiel aliada da resistência. Mas eis que, em plena ditadura
Médici, Elis aparecia em todas as televisões convocando a população para
o Encontro Cívico Nacional, um ritual ufanista programado para o dia 21
de abrir de 1972, às seis e meia da noite. "Nessa festa todos nós vamos
cantar juntos a música de maior sucesso neste país: o nosso hino. Pense na
vibração que vai ser você e 90 milhões de brasileiros cantando juntos, à
mesma hora, em todos os pontos do país." (483)
E no dia e horário marcados pelo governo, lá estava ela, Elis Regina, de
fraque de maestro, regendo um coral de artistas - a maioria do elenco da
TV Globo - cantando "Ouviram do Ipiranga às margens plácidas..."
Diante da repercussão negativa que esta cena provocou nas hastes da
esquerda ( O Pasquim começou a chamá-la de "Elis Regente"), o
compositor Ronaldo Bôscoli, na época marido de Elis, tratou logo de
divulgar a versão de que sua mulher fora obrigada a participar daquilo sob
ameaça de prisão.
E, segundo a jornalista Regina Echeverria, a própria cantora lhe contou
essa história "aumentada, romanceada, onde ela assumia o papel de uma
heroína dominada pelas Forças Armadas". (484) Entretanto, anos depois,
em depoimento à jornalista Léa Penteado, o ex-empresário de Elis Regina,
Marcos Lázaro, afirmou que a cantora só participou daquele evento porque
o coronel responsável pela contratação dos artistas aceitou pagar o bom
cachê que ela pediu. E, segundo o empresário, antes de fechar o contrato
ele consultou Elis e ela lhe disse que "não tinha a menor objeção em fazer
essa apresentação.” (465)
O fato é que, a partir daquele show, Elis Regina começou a ser esconjurada
pela esquerda e ficou na mira dos patrulheiros de plantão. Num primeiro
momento ela ainda tentou reagir e, bem ao seu estilo, atacou os seus
acusadores, principalmente Henfil.
Mas depois Elis acabou percebendo o mesmo que Ivan Lins: atuando numa
faixa de público de classe média e formação universitária que estava em
franca oposição ao governo militar, seria difícil prosseguir carregando a
pecha de regente do coro dos contentes com o regime dos generais.
E a cantora teve um claro sinal disto quando foi recebida com frieza pela
platéia do Anhembi no show da Phono 73. A cena de Elis regendo o Hino
Nacional ainda estava viva na memória daquele público, e durante a sua
apresentação alguém soltou uns gracejos pesados para ela, obrigando
Caetano Veloso, que estava na platéia, a levantar-se e gritar: "Isso é um
desrespeito à música popular brasileira. Respeitem Elis Regina.
Respeitem a música popular brasileira " (486)
O cerco estava se fechando sobre a cantora e ela compreendeu que apenas
com a voz não poderia se impôr naquele ambiente hostil de caça às bruxas.
Elis procurou então reconstruir a sua imagem e, assim como Ivan Lins,
reforçou o seu repertório com canções de contestação política: O mestresala dos mares, Sinal fechado, Cartomante, Aos nossos filhos, O bêbado e
a equilibrista e outras.
Tempos depois, Henfil confirmaria que Elis ficou bastante incomodada
com o seu nome no "cemitério dos mortos-vivos" e buscou se aproximar do
cartunista para demonstrar que tinha um posicionamento de esquerda.
"Ela, eu notava, tinha a preocupação - marcada ainda pelo episódio do
enterro - de me provar que tinha mudado. Que continuava uma pessoa
de confiança ideologicamente."
E para que não houvesse qualquer dúvida - lembrou Henfil - Elis fazia
questão de assinar todo e qualquer manifesto organizado pela oposição e
por duas vezes pediu a ele para entregar aos grevistas do ABC paulista a
renda de um dos seus shows no Canecão. (487)
E, com tudo isto, esta polêmica cantora, filha de uma ex-lavadeira de Porto
Alegre, acabou sendo "anistiada" pelos intelectuais da esquerda brasileira,
tornando-se até muito amiga do seu antigo "coveiro" Henfil. "Por que é
que vou deixar de gostar de uma pessoa por ela ter fraquejado?",
justificou o cartunista. (488)
Mas a trajetória mais próxima da dupla Dom & Ravel no sentido de
perseguição e patrulhamento - porque para estes não houve perdão - foi a
do cantor Wilson Simonal, que depois de uma carreira de quase uma
década repleta de sucessos, entrou em franca decadência a partir do inicio
dos anos 70. Intérprete de Sá marina, Balanço zona sul e Pais tropical, o
artista que vendia milhões de discos e lotava ginásios e estádios com seus
shows - um dos mais caros do mercado musical brasileiro - enfrentava
agora cada vez mais dificuldades de gravar, se apresentar e tocar suas
canções no rádio. Chacrinha constatava isto em uma nota publicada em sua
coluna em janeiro de 1973: "Simonal não dá mais. Só em festa de
casamento, em balizado ou comunhão, onde não existe couvert e
nenhuma obrigação." (489)
Mas, afinal, o que foi que aconteceu com Wilson Simonal?
Tudo começou em meados de 1971, quando o cantor descobriu um grande
desfalque financeiro em seu escritório, a Simonal Produções, no Rio. As
suspeitas recaíram sobre o contador da firma, Raphael Viviani, que foi
imediatamente demitido por justa causa. Mas o funcionário entrou na
justiça trabalhista, exigindo indenização e negando a prática de qualquer
ato ilícito Alguns dias depois, na noite de 24 de agosto daquele ano, dois
policiais, um dos quais trabalhava de segurança para Simonal nas horas de
folga, bateram à porta da residência de Raphael Viviani e o conduziram até
uma agência do Dops - o órgão central de repressão política. Chegando lá,
segundo o contador, ele foi agredido e obrigado a assinar a confissão de
desfalque na firma. A mulher de Viviani deu queixa na polícia e foi aberto
um processo contra Simonal, por seqüestro, agressão e coação.
O caso foi parar na imprensa e o cantor, que era considerado por muitas
pessoas um negro arrogante, vaidoso, antipático e de direita, logo também
recebeu a pecha de dedo-duro, alguém que, por suas relações promíscuas
com agentes do Dops, poderia estar atuando como informante da repressão
dentro do meio artístico. E o que seria apenas um caso policial se
transformou num rumoroso caso político.
A campanha foi deflagrada pelo jornal O Pasquim, que publicou numa
página o desenho de um enorme dedo rijo com o nome de Simonal. Talvez
sem ainda poder avaliar a real dimensão que esta denúncia teria sobre sua
carreira, o cantor procurou refutar a acusação regravando Mexerico da
Candinha, antigo sucesso de Roberto Carlos: “Á Candinha vive a falar de
mim em tudo..." Mas definitivamente O Pasquim não era a Revista do
Rádio e a pecha de alcagüete grudou feito tatuagem em Simonal, nome que
por várias vezes também apareceu nas lápides do "cemitério dos mortosvivos" de Henfil. E com tudo isto era praticamente impossível para o
cantor se apresentar em qualquer casa de show do Brasil sem ouvir alguém
gritar da platéia: "Fora, dedo-duro!" Ai já com plena consciência do
impacto que esta denúncia teve sobre sua trajetória de astro da MPB, mais
uma vez Wilson Simonal recorreu ao repertório musical brasileiro,
regravando, em 1975, o samba Cordão, de Chico Buarque, que
originalmente era um libelo contra a repressão política da direita, mas que
no contexto gravado por Simonal assumia a denúncia contra a intolerância
da esquerda:
...NINGUÉM VAI ME ACORRENTAR
ENQUANTO EU PUDER CANTAR
ENQUANTO EU PUDER SORRIR
NINGUÉM VAI ME VER SOFRER...
ENQUANTO EU PUDER CANTAR
ALGUÉM VAI TER QUE ME OUVIR
ENQUANTO EU PUDER CANTAR
ENQUANTO EU PUDER SEGUIR...
Não deu... e o intrigante é que até hoje a acusação contra Simonal não foi
comprovada. Ao contrário, em 1991 a Secretaria de Assuntos Estratégicos
da Presidência da República emitiu um habeas data, um documento oficial
que nega que o cantor tenha colaborado para qualquer órgão da polícia
política, seja o Dops ou o Serviço Nacional de Informações - SNI. (490)
E ultimamente algumas pessoas que acompanharam o caso na época
também têm procurado inocentar Wilson Simonal. A jornalista Léa
Penteado, por exemplo, afirma que o cantor foi vítima de uma "sórdida
campanha de difamação e boicote" motivada pelo "macarthismo da
esquerda festiva". (491)
Da mesma forma Nelson Motta defende que esta acusação de dedo-duro
não faz o menor sentido porque, segundo ele, na época "Simonal era uma
estrela, uma figura pública, não tinha exatamente o perfil de alguém
que fosse espionar - para depois entregar”- seus colegas. Simonal não
tinha nenhum acesso nem merecia qualquer confiança - muito pelo
contrário - dos grupos musicais mais sérios e politizados. Simonal não
entendia nada de política e nem de conspiração, entendia de
pilantragem, louras e carrões". (492)
Mas o estrago já estava feito porque, assim como Dom & Ravel, o
intérprete de País tropical foi marcado pelas patrulhas ideológicas.
Com a ressalva de que, enquanto sobre Simonal pairava o agravante de um
ato extra-musical, sobre Dom & Ravel pesava a acusação de serem
cantores e compositores de músicas ufanistas. Acusação que não deixa de
revelar aspectos contraditórios, já que partia de setores que se diziam
comprometidos com a luta pelo direito das liberdades civis no Brasil.
Seja como for, tanto a dupla Dom & Ravel (do segmento "cafona") como o
cantor Wilson Simonal (do segmento MPB) tiveram as suas carreiras
artísticas destruídas por serem acusados de colaborar com um regime
político que dominou o país durante 21 anos.
Mas, paradoxalmente, aqueles cantores/compositores que se posicionaram
como críticos e opositores a este mesmo regime conseguiram, apesar de
prisões e censura, dar prosseguimento normal às suas carreiras. O que
demonstra que, pelo menos no campo da música popular, a ação das
patrulhas ideológicas foi tão intensa quanto a das forças de repressão
política. Entretanto, esta última cessou com o fim do regime militar; a outra
atinge suas vítimas até os dias atuais.
"Eu sigo a minha carreira sozinho" - diz Ravel - “mas até hoje sofro
provocações aqui e ali. Em qualquer ambiente público onde vou
sempre aparece alguém que comenta coisas do tipo 'esse foi o cantor da
ditadura, o porta-voz dos militares; escuta, por que você não faz agora
uma música para o FHC?, para o Plano Real?'. Infelizmente, ainda
pintam esses lances aí direto. Eu digo que Dom e Ravel são os únicos
artistas que foram exilados dentro do seu próprio pais, que foram
perseguidos dentro do seu próprio país, que são rachados,
marginalizados, que não tem liberdade pra ir pra lugar nenhum, pra
onde vão sempre encontra alguém provocando 'oh meu irmão, como é
que é, tu foi puxa-saco da ditadura, olha lá, hein'."
Perguntado se ele achava que esta imagem da dupla ainda iria persistir
durante muito tempo, Ravel respondeu: "Não sei, o que eu sei é que a tal
de anistia até agora não serviu pra Dom & Ravel. E eu tenho aqui as
minhas pernas quebradas, os meus braços quebrados, a minha mão
massacrada pela violência; eu não posso tocar violão, estou proibido de
tocar, me neutralizaram pra eu não tocar nunca mais, tudo por causa
do gênero de música que eu fazia. E ainda tem mais, a perda da visão,
também conseqüência dessas violências físicas que sofri."
Em maio de 1986, exatamente um ano e dois meses após o fim do regime
militar, o jornalista Ricardo Soares escreveu uma reportagem sobre Dom &
Ravel no jornal O Estado de S. Paulo. Com o título "Veja o que restou dos
cantores do milagre" e o subtítulo "Dom & Ravel fizeram os hinos da
Ditadura. Hoje comem o pão que o poder amassou", a reportagem
informava que "quase 15 anos depois de um fraternal abraço no presidente
Médici, quando eram os mais veementes símbolos do regime e do 'milagre',
campeões de venda e das paradas, a dupla Dom & Ravel vive hoje em
completa obscuridade ( ..) Para sobreviver, Ravel, 39 anos, desmancha
carros velhos e constrói outros em fibra-de-vidro, um progresso para quem
até há pouco vendia panelas. Pior é a situação de seu irmão e parceiro
Dom, 41 anos: vive com verba de arrecadação de direitos autorais (cada
vez mais esparsas) e três salários mínimos por presidir o conselho fiscal da
Sociedade Independente dos Compositores e Autores (Sicam) " (493)
Quando encontrei os irmãos Dom e Ravel em 1998 - 12 anos depois da
reportagem do Estado de S. Paulo - , eles não pareciam continuar em tão
precária situação. Ravel, aos 51 anos, embora já praticamente cego, havia
deixado para trás a oficina de fundo de quintal e comandava um programa
musical na Rede Vida de televisão, tentando reiniciar a carreira solo. Seu
irmão Dom, aos 53 anos, trabalhava num escritório de advocacia e
preparava-se para prestar vestibular numa faculdade de Direito - projeto
interrompido com a sua morte em dezembro de 2000.
Para o líder e principal compositor da dupla, a carreira artística já parecia
mesmo definitivamente relegada ao passado. E não por um desejo pessoal,
mas por força da roda-viva:
"O nosso público daquela época nos admirava muito. E eu tenho
certeza absoluta que continuaríamos a ser admirados até hoje se nos
tivessem deixado continuar com a nossa produção artística, que
procurava traduzir para o âmbito musical flagrantes da nossa vida
econômica, social e cultural contemporânea. E eu pretendia ainda
abordar temas como o do racismo, homossexualismo, a questão dos
índios, enfim, das minorias em geral; eu pensava em falar sobre tudo
isso, mas infelizmente a nossa carreira artística foi abortada. O meu
projeto para Dom & Ravel era uma coisa muito bonita, sabe? Mas o
troço foi muito pesado e eu não soube administrar, sei lá, não tive
estrutura intelectual para segurar a barra. E hoje estamos totalmente
banidos. E por razões puramente ideológicas. Não tem nada a ver com
a realidade. Foi criada uma mitologia, e em cima dessa mitologia um
julgamento, e dentro desse julgamento uma condenação"
Diante disso, perguntei ao compositor: "Você acha que não tem mais jeito?
Vocês não têm como lutar?"
"Lutar pra que?" - respondeu ele.
"Eu estou com 53 anos, já não tenho mais a mesma energia, a mesma
elasticidade e a mesma cabeça para tolerar certas coisas, responder
certas coisas. E o ambiente hoje é outro, a vida é outra, as minhas
preocupações atualmente são outras, o meu motivo de felicidade e
satisfação é outro completamente diferente. O meu irmão também tem
um projeto pessoal diferente do meu; então não tem nada a ver a gente
tentar recuperar. É o mesmo que você chegar hoje para o Geraldo
Vandré e dizer 'escuta, por que calar toda essa genialidade? Bota pra
fora isso aí'. Não adianta, a moldura hoje é outra, não encaixa mais
aquilo."
É interessante esta referencia a Geraldo Vandré porque o autor de Pra não
dizer que no falei de flores representa na memória coletiva exatamente o
oposto de Dom & Ravel. Enquanto estes ficaram marcados como símbolos
do nacionalismo ufanista, o outro é identificado como aquele que resistiu à
ditadura e foi torturado. E todos os desmentidos de cada um dos artistas
parecem inúteis e insuficientes para desvencilhá-los do mito criado em
torno de si.
Numa palestra para estudantes na Faculdade de Direito de João Pessoa o
cantor Geraldo Vandré garantiu que nunca foi submetido à tortura,
enfatizando que "a imprensa quis mistificar Vandré". E quando indagado
sobre seu retorno aos palcos, impôs a seguinte condição: "Só volto quando
a sociedade civil entender que não fui torturado no passado." (494)
Da mesma forma Ravel investe contra a imagem construída em torno do
trabalho com seu irmão: "Nos tornamos sacos de pancadas nos palcos e
nas ruas porque a mídia sempre se refere a Dom & Ravel como os
cantores da ditadura militar. Isto é uma mentira. Nós nunca fomos
porta-vozes de ditadura nenhuma.”
Mas parece que de nada adianta o que Dom & Ravel ou Geraldo Vandré
tenham a dizer sobre o passado de suas carreiras. Para ambos os casos tem
prevalecido até agora a máxima proferida por um personagem do Velho
Oeste no filme O homem que matou o facínora, de John Ford: "Quando a
lenda se transforma em fato, imprima-se a lenda."
NOTAS BIBLIOGRÁFICAS AO CAPÍTULO
(CONFORME A NUMERAÇÃO SEQUENCIAL ENCONTRADAS
NO TEXTO)
443. "Cacá Diegues: Por um cinema popular, sem ideologias" - O Estado
de S. Paulo, 31-8-1978.
444. Cf. Paulo Franchetti & Alcyr Pécora. Caetano Veloso. (Col. Literatura
comentada) São Paulo: Abril Educação, 1981, p. 73.
445. "Caetano e seu novo Lp Bicho: 'Dançar ajuda a pensar melhor. O
Globo, 10-4-1977
446. Idem.
447. "É isso aí, bicho?" - O Globo, 15-7-1977.
448. "Rebobagem" - Veja, 20-7-1977.
449. "Caetano Veloso: 'Não quero ser usado pela canalha"' - Diário de Sao
Paulo, 16-12-1978.
450. “Caetano tira o dedo do violão e aponta" - IstoÉ, 27-12-1978.
451. Idem.
452. "Playboy entrevista Henfil" - Playboy, maio de 1979.
453. "Então é assim? Nada mudou em dez anos?" - Movimento, 18 a 24 12-1978
454. “ÁBC do Sérgio Cabral" - O Pasquim, 11 a 17-3-1971.
455. Na relação dos maiores sucessos de 1971, o compacto simples com Eu
te amo meu Brasil aparece em 1° lugar em vendagem nos meses de Janeiro
e Fevereiro. A mesma gravação ocupa o 2º lugar na lista dos 50 discos mais
vendidos naquele ano. Fonte: Nopem - pesquisa de mercado sobre venda de
discos; Ibope - Pesquisa sobre vendas de discos - Acervo do Arquivo Edgar
Leuenroth / Unicamp.
456. Conforme informação da seção "Gente" - Veja, 3-2-1971, e
depoimentos de Dom e Ravel ao autor. Ver Fontes e bibliografia.
457. "Médici preside solenidade de formatura do Mobral em Jundiaí" Jornal do Brasil, 11-9-1971.
458. "Médici em Jundiaí preside festa do Mobral" - Folha de S. Paulo, 119-1971.
459. "Os fabricantes felizes da alegre vitória" - Veja, 24-2-1971.
460. “Quando estou só / me lembro que ela viajou / que o meu sol nas
nuvens mergulhou / minha musa às drogas se entregou / como Jimi
Hendrix e Brian Jones..." Ver índice de canções citadas em Fontes e
bibliografia.
461. Moreira da Silva começou a gravar composições de Miguel Gustavo a
partir de 1960 com O conto do pintor, seguindo-se outros sambas-debreque como O último dos moicanos, O rei do gatilho e Morengueira
contra 007.
462. "Música para milhões" - O Globo, 24-1-1972.
463. Versos de “Semana do Exército”. Ver índice de canções citadas em
Fontes e bibliografia.
464. Versos de “A estrada”. Ver índice de canções citadas em Fontes e
bibliografia.
465. “As estrelas de cinema usam Lever / o sabonete que você deve usar /
irradie mais beleza / seja estrela do seu mundo / use sabonete Lever".
466. “Amigo / seu carro já merece uma troca de pneu / mesmo que você
esteja duro / compre seus pneus na Rede Zacarias / à vista ou a prazo / você
faz as condições / visite a Rede Zacarias / e ao problema de pneus diga
adeus."
467. Waldenyr Caldas, op. cit., p. 69.
468. Alberto Moby, op. cit., p. 167.
469. Heloisa Buarque de Hollanda & Marcos Augusto Gonçalves Cultura
brasileira e participação nos anos 60. São Paulo: Brasiliense, 1982, p. 96.
470. Gilberto Vasconcelos, op. cit., p. 60.
471. “500 anos”. Para outras indicações ver índice de canções citadas em
Fontes e bibliografia.
472. Entrevista à Rádio CBN - São Paulo, 25-7-1999. Chico Alencar não é
o único que credita a Dom & Ravel a marcha “Este é um pais que vai Pra
frente”. O jornalista Marcelo Fróes comete este mesmo equívoco em seu
livro Jovem Guarda: em ritmo de aventura”.. São Paulo: Ed. 34, 2000,
p. 216.
473. Gilberto Vasconcelos, op. cit., p 101.
474. "Chico Buarque: Construção» - Bondinho, dezembro de 1971.
475. "Ivan Lins, nos dias de hoje" - Nova, novembro de 1979.
476. "Ivan Lins: o que caiu no golpe do Olympia" - O Pasquim, 31-10
a 6-11-1972.
477. Eloí Calage. "Contar comigo e com um afinado parceiro" In:
História da música popular brasileira : Ivan Lins”. São Paulo: Abril
Cultural, 1982.
478. "Ivan Lins, nos dias de hoje" - Nova, - Novembro de 1979
479. Conforme testemunho do jornalista Mylton Severiano. “Ouça, que não
está nos livros" - Caros Amigos, edição de novembro de 1999. Ivan Lins só
foi incluído na segunda edição da Enciclopédia da música brasileira,
publicada em l998, op. cit., p. 446.
480. Versos do samba “Sete de Setembro”. Para outras indicações ver
índice de canções citadas em Fontes e bibliografia.
481. Segundo o general Octávio Costa (chefe da Assessoria Especial de
Relações Públicas do governo Médici), o presidente era fã nó 1 da cantora
Elizete Cardoso. "Médici tinha verdadeira adoração pela Elizete - e era
retribuído. Sempre que se anunciava alguma festa ou solenidade mais
informal com a presença de Médici, a Elizete Cardoso era convidada e
comparecia". Depoimento ao autor, 21-7-1999.
482. "Nas Olimpíadas" - O Dia, 12-4-1973.
483. Convocação feita por Elis Regina e por outros artistas reproduzida nas
páginas de diversos jornais brasileiros; por exemplo, Ultima Hora, 14- 41972.
484. Regina Echeverria. “Furacão Elis”. São Paulo: Globo, 1994, p. 106.
485. Léa Penteado. “Um instante, maestro! A história de um apresentador
que fez História na TV”. Rio de Janeiro: Record, 1993, p. 156.
486. “Caetano: Nada mais Z do que a classe A” - Folha de S. Paulo, 15-51973.
487. Regina Echeverria, op. cit., p. 109.
488. Idem, p. 108.
489. "Não dá mais" - Jornal do Chacrinha - A Noticia, 29-1-1973.
490. Documento datado de 28 de agosto de 1991. Cf. Léa Penteado, op.
cit., p. 133.
491. Idem, p. 130 e 133.
492. Nelson Motta. “Noites Tropicais”, op. cit., p. 212-213.
493. "Veja o que restou dos cantores do milagre - ”O Estado de S. Paulo,
18-5-1986.
494. ''Vandré nega tortura pelo regime militar” - O Estado de S. Paulo, 112-1990
(CANTORES DO RÁDIO NA ERA DA TV)
“Se tivesse nascido no Brasil, o nome de Chaplin seria Chacrinha,
nosso Chaplin subdesenvolvido, uma flor do povo”
(Nelson Rodrigues)
Naquela noite o Rio de Janeiro parou diante da TV. Ninguém queria perder
o espetáculo transmitido pela TV Globo. Quem não tinha televisão foi para
os bares ou para a casa de parentes e vizinhos. Os números do Ibope
registraram a espetacular marca de 100% de aparelhos ligados - fato até
então inédito na televisão brasileira.
Não, não se trata de uma final de Copa do Mundo ou da primeira viagem
do homem à lua. Naquela noite de 4 de Outubro de 1972, quarta-feira,
milhões de cariocas (e depois milhões de outros brasileiros) pararam para
assistir a um dos capítulos decisivos da novela Selva de Pedra, de Janete
Clair.(495)
Era a história do atribulado romance entre o bom rapaz Cristiano
(Francisco Cuoco) e a meiga e pura Simone (Regina Duarte) - personagem
dada como morta após um acidente mas que reapareceu de peruca e sob a
falsa identidade de Rosana Reis. O clímax de audiência se deu no capítulo
152, quando Cristiano iria finalmente descobrir que Rosana era na verdade
o seu grande amor Simone. Ao som do hit Rock and Roll Lullaby, com B. J.
Thomas, e de canções de Marcos e Paulo Sérgio Valle, o público se
extasiava a cada cena da novela.
Dirigida por Walter Avancini, Selva de Pedra é um marco na escalada da
TV Globo rumo ao monopólio de audiência que exerceria ao longo da
década de 70. Ali estava definitivamente comprovado o sucesso da fórmula
criada pela dupla Boni e Walter Clark: novelas, muitas novelas, das seis às
dez da noite, com produções caríssimas e em cintilante estilo
cinematográfico. Quem não se lembra? Irmãos Coragem, Fogo Sobre
Terra, Bandeira Dois, Escrava Isaura, Uma Rosa Com Amor...
A implantação deste coquetel de dramas foi definida depois de um amplo
trabalho de pesquisa em que a emissora constatou que era preciso prender a
atenção da dona-de-casa seguindo a tradicional lógica de mercado de que
se é o homem quem trabalha e ganha o dinheiro, é a mulher a principal
consumidora. "E lá iam Boni, Daniel Filho e Janete Clair criar iscas e mais
iscas para capturar essa mulher e garantir índices inacreditáveis de
audiência para nós", diz Paulo Cesar Ferreira, ex-diretor da Rede Globo.
(496) Mas como não só de novela vive o homem (ou a mulher), entre o
drama das sete e o das oito horas, foi estrategicamente programado um
telejornal - que não poderia durar mais de 20 minutos - “senão a dona-decasa muda de canal” - dizia Armando Nogueira, primeiro diretor do Jornal
Nacional. (497)
Feita esta pequena introdução, vamos ao principal ponto deste capítulo, que
não é tanto as telenovelas em si, mas a sua trilha musical. Ou seja: quais os
cantores e canções que apareciam nas novelas da Globo naquele período?
Na década de 70 o dramaturgo Plínio Marcos observava: “Em novela de
televisão, prostituta tem todos os dentes e operário come todos os dias.”
(498) Eu apenas acrescentaria: e todos os personagens só ouviam, além
de músicas estrangeiras, os cantores da MPB. Sim, nos folhetins
eletrônicos da Rede Globo as canções do repertório "cafona" não
tiveram vez. Na época, aquele foi um espaço ocupado por artistas como
Elis Regina, Caetano Veloso e Chico Buarque. Até mesmo a novela O
Cafona, de Bráulio Pedroso, teve sua trilha musical encomendada a
bossa-novistas como Carlos Lyra, Vinicius de Moraes e Sérgio
Ricardo.
A primeira trilha sonora de uma novela da TV Globo foi lançada em
1969: Véu de Noiva, novela de Janete Clair que tinha entre seus
principais personagens a menina humilde (Regina Duarte), o piloto de
automóveis (Cláudio Marzo) e a jovem vilã (Betty Faria). Produzido
por Nelson Motta, o LP reuniu um conjunto de canções que serviu de
fundo para realçar o drama dos protagonistas e levar o telespectador
ao clímax desejado pela autora e o diretor Daniel Filho. Embora
estampando na capa a expressão "trilha sonora original" como nas
trilhas de filmes de Hollywood - , nem todas as músicas eram inéditas
ou foram compostas especialmente para aquela novela. Caso, por
exemplo, de uma canção que Caetano Veloso fizera evocando o sorriso
de sua irmã Irene, quando ele ainda estava preso na Vila Militar, no
Rio: "Eu quero ir, minha gente / eu não sou daqui / eu não tenho nada
/ quero ver Irene rir / quero ver Irene dar sua risada...”
No texto original de Janete Clair, o personagem da atriz Betty Faria
chamava-se "Lúcia", mas pouco antes de começarem as gravações da
novela Nelson Motta ouviu a recém-gravada composição de Caetano
Veloso. Nelson diz que achou a música tão boa que não hesitou em
“convencer Daniel Filho a ligar para Janete Clair e pedir que ela
trocasse o nome do personagem para Irene. Janete topou e a música
virou um sucesso". (499)
O diretor Daniel Filho também recorda uma passagem desta relação entre
som e imagem em Véu de Noiva. “Na morte de um dos personagens, o
pai da menina, usei o tema Gente humilde, mostrando a casa vazia.
Procurei retratar a essência, a perda. Não sei se foi a melhor cena da
novela. Mas, para mim, foi uma das mais emocionantes." (500)
Naquele ano, tanto Irene como Gente humilde (música do violonista Garoto
com letra de Chico Buarque e Vinicius de Moraes) tornaram-se imediatos
sucessos nacionais. Segundo Nelson Motta “o disco de Véu de Noiva
vendeu mais de 100 mil cópias em poucos meses, lançou um novo
produto, abriu uma poderosa frente de exposição para a música
brasileira. Todo mundo queria fazer e cantar músicas para novela".
(501)
De fato, mas se muitos eram chamados, poucos eram escolhidos e
invariavelmente do elenco da MPB. As duas trilhas sonoras seguintes, as
das novelas Verão Vermelho e Pigmalião 70, trouxeram composições de
Milton Nascimento, Roberto Menescal, Egberto Gismonti, com o tema de
abertura da primeira cantado por Elis Regina.
E assim, os principais nomes da MPB, que se revelaram para o grande
público nos anos 60 através dos festivais da TV Record, entravam na
década de 70 com uma nova e poderosa aliada: a TV Globo, e as suas
novelas.
A cada novo lançamento no video, dois novos LPs (o nacional e o
internacional) eram despejados no mercado. E além de engrossar o
faturamento das gravadoras com cifras extraordinárias, as trilhas sonoras
ajudavam a divulgação do trabalho de um elenco de cantores/compositores
que tinha seu público cativo na classe média mais intelectualizada. E todos
eles tiveram espaço neste filão. De Tom Jobim a Paulinho da Viola; de Rita
Lee a Toquinho e Vinicius, passando por Edu Lobo, Gonzaguinha, Ivan
Lins, Baden Powell, Maria Bethânia, Nara Leão, Gilberto Gil, Gal Costa,
João Bosco e Beth Carvalho.
Até mesmo Chico Buarque, que atravessou os anos 70 em litígio com a TV
Globo, teve (porque nunca impediu) várias de suas composições incluídas
em trilhas de novelas naquele período. É só ouvir os discos de Dancin'
Days (com Chico e Nara cantando João e Maria); O Astro (com Trocando
em miúdos); Duas Vidas (Olhos nos olhos); O Casarão (Carolina),
Espelho Mágico (Vai levando) ou Pecado Rasgado (com o tema de
abertura Não existe pecado ao sul do equador).
De outro lado, devo informar que ficaram totalmente de fora
cantores/compositores populares como Waldik Soriano, Nelson Ned, Paulo
Sérgio, Lindomar Castilho, Cláudia Barroso, Cláudio Fontana, Reginaldo
Rossi, Ângelo Máximo, Carmen Silva, Diana, Dom & Ravel e vários
outros que não tiveram naquela época qualquer uma de suas gravações
incluída numa trilha de novela da TV Globo.
As exceções são Wando (com Moça, tema de Pecado Capital) e Fernando
Mendes (com Sorte tem quem acredita nela, tema de Duas Vidas), e mais
uns dois ou três. É muito pouco considerando-se que de Véu de Noiva,
primeira trilha, lançada em 1969, até A sucessora, lançada no fim de 1978
(período limite deste trabalho de pesquisa), a TV Globo despejou no
mercado 58 trilhas sonoras nacionais de novelas (48 em LPs e 10 em
compactos), totalizando mais de 600 faixas de músicas gravadas. Sem
qualquer dúvida, nos anos do AI-5, a trilha de novela global foi monopólio
dos cantores/compositores da MPB.
Para alguns, isto pode até soar contraditório, já que consideram as paixões
avassaladoras, as pérfidas traições e os sofrimentos intermináveis dos
folhetins televisivos muito próximos dos dramas amorosos do repertório
"cafona".
Chacrinha percebia a contradição e chamava a atenção do público para este
aspecto das novelas da TV Globo: "Reparem! Porque, embora
realmente bem-feitas e com detalhe de grande produção, o seu
conteúdo, a sua mensagem, o seu texto tudo é igual a qualquer bolero
de Waldik Soriano!” (502) Ora, bolas, então por que as composições de
Waldik Soriano ou de Nelson Ned não entravam numa trilha de novela da
Globo?
Uma possível resposta para esta questão é que naquela época a Rede Globo
estava comprometida com o projeto do "Brasil Grande" e valia-se do
design limpo e pasteurizado para vender ao espectador a idéia de um país
moderno, bonito, bem-sucedido e desenvolvido. A extrema pobreza e o
escândalo dos baixos padrões de vida das classes populares urbanas
brasileiras eram ocultados no vídeo pela imagem glamourizada e luxuosa
da emissora que, de certa forma, antecipava aquele ideário do carnavalesco
Joãozinho Trinta de que "pobre gosta de luxo, quem gosta de pobreza é
intelectual”. Pairando acima da realidade, a Globo tornou-se o baluarte da
classe média e o principal veículo de divulgação dos sonhos do "milagre" e
do ufanismo desenvolvimentista do regime.
Implantado neste período, o chamado "padrão Globo de qualidade", que
como bem observa Artur da Távola "não é propriamente o patamar de
qualidade artística do produto-programa, mas o padrão de qualidade de
produção” (503) que se tornou parâmetro de "perfeição", de "eugenia", de
"limpeza de imagem", impondo uma assepsia cada vez maior no vídeo. E
isto é destacado por vários analistas da televisão brasileira dos anos 70.
Elisabeth Carvalho, por exemplo, afirma que na Globo “havia um padrão
estético a respeitar: pessoas com defeito físico, de ar muito miserável,
sem alguns dentes na boca ou mesmo com roupas rasgadas deveriam a
todo custo ser evitadas no video" (504)
A ensaísta Maria Rita Khel também destaca que "a opulência visual
eletrônica criada pela emissora contribuiu para apagar do imaginário
brasileiro a idéia de miséria, de atraso econômico e cultural; e essa imagem
glamourizada, luxuosa ou na, pior das hipóteses, anti-séptica (quando é
imprescindível mostrar a pobreza convém ao menos desinfetá-la: em vez de
classes miseráveis, um povo 'humilde porém decente' para não chocar
ninguém), contaminou a linguagem visual de todos os setores da produção
cultural e artística que se propõem a atingir o grande público". (505)
Embora todos esses autores falem em "opulência visual" e "limpeza de
imagem", eu chamo aqui atenção para o fato de que na época a emissora
também se preocupava com a "opulência sonora”, a "limpeza de som",
porque visão e audição são dimensões inalienáveis da TV. Ou seja, aquela
"imagem asséptica" vinha acompanhada de uma "sonoridade asséptica" - e
esta era incompatível com as canções do repertório "cafona". Daí a
preferência pelo repertório de artistas como Caetano Veloso e Tom Jobim.
A estética da MPB, com suas dissonâncias e ambições literárias, se ajustava
melhor ao projeto de se vender a idéia de um país economicamente forte,
moderno e desenvolvido. Mas como uma incômoda realidade, as canções
de Odair José ou de Waldik Soriano estavam ali, bem próximas, para
lembrar que o Brasil, ou grande parte dele, é miserável, sim!; é
subdesenvolvido, sim!; é analfabeto, sim!. E isto a emissora do Jardim
Botânico queria varrer para debaixo do tapete.
Por volta de 1970, juntamente com a consolidação da rede, começa o
processo de limpeza da programação da Globo. Atrações consideradas
popularescas como Casamento na TV e Balança Mas Não Cai são retiradas
do ar e nomes como Dercy Gonçalves e Raul Longras, o "santo
casamenteiro", são dispensados da emissora.
Numa primeira fase, após a inauguração da TV Globo, em 1965, eles foram
importantes para angariar a audiência do público situado nas classes D e E.
Agora tornavam-e um estorvo numa programação voltada para os
segmentos de maior poder de consumo. A esse respeito disse o ex-diretorgeral da emissora, Walter Clark: "Já não interessava à Globo dar 90 por
cento de audiência com programas como o Casamento na TV. Era
melhor dar 70 por cento com uma novela adaptada de um livro do
Jorge Amado, por exemplo, que daria prestígio à emissora." (506)
Seguindo esta estratégia, em 1972 foi a vez de Chacrinha e suas chacretes
também serem varridos da TV Globo.
Naquele ano, o pernambucano de Surubim José Abelardo Barbosa estava
com 55 anos de idade e no auge do sucesso Seus dois programas na TV
Globo, a Discoteca do Chacrinha (às quartas-feiras) e A Hora da Buzina
(nas noites de domingo), eram líderes de audiência no horário. Foi uma
longa trajetória até chegar ali.
Sua carreira começou em 1935, como locutor de rádio, ainda em
Pernambuco. Em 1940, aos 23 anos, Abelardo Barbosa foi para o Rio de
Janeiro, estreando três anos depois na Rádio Clube de Niterói com o
programa carnavalesco O Rei Momo na Chacrinha (referencia ao fato de a
rádio funcionar numa pequena chácara da cidade).
O sucesso foi crescendo, principalmente quando ele se transferiu para a
Rádio Tamoio do Rio levando junto o apelido com o qual se tornaria
famoso. Nesta época, segundo o próprio Chacrinha, ele teria inaugurado no
Brasil a prática do famigerado jabá: a divulgação de músicas em troca de
dinheiro. "Eu fui o primeiro disc-jóquei a ser prostituído. Quem me
prostituiu foi o falecido compositor Benedito Lacerda, que era
compadre de Herivelto Martins. Ele me levou ao Vicente Vitale e
acertamos para tocar somente músicas editadas pelos Irmãos Vitale. E
eu recebia o dinheiro." (507)
Depois de trabalhar em diversas rádios cariocas, em 1957 o
comunicador aceitou o desafio da televisão, estreando o programa
Discoteca do Chacrinha, na TV Tupi, mas ainda vestido de terno e
gravatinha borboleta. Aos poucos, porém, ele foi definindo sua figura
exótica e suas atrações extravagantes: as fantasias, as chacretes, a
buzina, o bacalhau, o auditório e o grito de guerra "Teresinha!
uhuuuuuuuuuu!"
A consagração definitiva viria a partir de 1968, quando tudo isto foi levado
para o palco da emergente TV Globo que, montada numa moderna
estrutura empresarial, empenhava-se pela conquista da hegemonia do
mercado brasileiro. Foi um bom negócio para ambas as partes: Chacrinha
deu à emissora a popularidade que ela ainda não tinha; e a Globo deu a
Chacrinha a estrutura necessária para lançar seu programa pela primeira
vez em rede nacional, consagrando o comunicador como um ícone da nossa
televisão. "Se tivesse nascido no Brasil, o nome de Chaplin seria
Chacrinha, nosso Chaplin subdesenvolvido, uma flor do povo", dizia
Nelson Rodrigues. (508)
Aliás, foi a partir desta época que o fenômeno Chacrinha começou a atrair
atenção e elogios de setores da intelectualidade - daqui e de fora. O francês
Edgar Morin, por exemplo, o classificou como "um gênio da comunicação
de massa" (509) e o conterrâneo Gilberto Freyre vaticinava que "como
animador de programa de televisão, Chacrinha democratizou, abrasileirou,
miscigenou como ninguém esse poderoso meio de comunicação". (570)
Mas o número daqueles que o criticavam e acusavam seu programa de
vulgar e apelativo era bem maior. Tanto assim que quando em 1969
Chacrinha ouviu pela primeira vez o samba Aquele abraço, de Gilberto Gil,
a primeira reação dele foi de bronca e irritação. Gato escaldado, imaginou
que aquele negócio de "Chacrinha continua balançando a pança" e
"alô, alô, seu Chacrinha, velho palhaço", fosse mais um achincalhe, um
piche, dos tantos que diariamente apareciam em jornais e revistas do país.
Foi preciso a mediação de amigos e familiares para convencê-lo de que os
versos de Gil eram na verdade uma exaltação ao seu nome - que depois do
sucesso da música ficou também conhecido como "Velho Guerreiro".
Na época, o programa do Chacrinha foi enquadrado numa categoria que o
sociólogo Muniz Sodré chamou de "comunicação do grotesco". (51l) O
programa não era apenas musical; precursor do Ratinho, ali havia desde o
"concurso do cachorro que tem mais pulga" até atrações como a mulher
com trêss peitos e o homem com duas cabeças e tudo misturado às fartas
carnes das chacretes e a bordões do tipo: "Alô, alô, Josefina Jordan, vai dar
hoje ou amanhã?" Na visão de Muniz Sodré, Chacrinha era "obsceno e
ambíguo, oferecia entretenimento falando para as partes baixas.
Enquanto a arte sublime, a grande arte, olha para a cabeça, o nariz, os
ouvidos, o grotesco olha para o inferno, o porão da casa; apela para o
sexo, o xixi, o cocô''. (512)
Esta observação do teórico talvez possa ser estendida também ao repertório
"cafona". Até certo ponto as canções de artistas como Wando, Agnaldo
Timóteo e Odair José também evocam as partes baixas, o sexo, o xixi e o
cocô - se adequando tão bem ao palco comandado pelo Velho Guerreiro. E
por isso mesmo ambos chocavam os padrões estéticos da TV Globo,
comprometida cada vez mais com um grande contingente da classe média
urbana. "Os ricos e os pobres me tratam igual, não têm nada a perder",
dizia Chacrinha, "só quem não gosta de mim é a classe média " (513)
As desavenças com a Globo foram se acentuando gradativamente a partir
de 1970. A viúva do Velho Guerreiro, Dona Florinda Barbosa, recorda que
naquela época "Boni passou a interferir na produção, dizendo que era
preciso reduzir a exposição do brega, da desgraça alheia, restringindo o
elenco e sugerindo novos nomes. Chacrinha não aceitava, achava que Boni
queria mudar a linha do programa, tornar tudo muito pasteurizado, com
cara de show americano". (514)
Às pressões internas somavam-se as pressões externas. Centenas de cartas,
assinadas por diversos representantes dos setores médios da sociedade,
eram enviadas à Censura Federal, pedindo a intervenção no programa. O
governo também implicava com aquela exposição da miséria que se
traduzia na imagem de bananas e bacalhaus sendo atirados na cara da
platéia faminta.
O sinal vermelho se acendeu quando Chacrinha lançou o quadro Sua
Desgraça Vale um Milhão - no qual o candidato que narrava o pior caso de
sua vida, ao ponto de comover o auditório às lágrimas, ganhava o dinheiro
na hora. Até o ministro das Comunicações do governo Médici, Higyno
Corsetti, se manifestou contra aquele festival de brasileiros miseráveis.
(515)
*
Representantes da Igreja também protestavam contra os bordões do
apresentador e os requebros e detalhes anatômicos de suas chacretes: Índia
Poti, Lucinha Apache, Rita Cadillac... Em sua influente coluna no Jornal
do Brasil dom Marcos Barbosa perguntava: "Como é possível um
programa assim, num horário assim, com duração assim?", argumentando
que "se é dever do Estado, por lei, censurar teatro e cinema onde vai quem
quer e quem paga”, como deixar ao alcance de cada criança, dentro de casa,
uma fonte de poluição?" Nada demais na fala do clérigo, apenas mais uma
voz, entre tantas no Brasil, que apoiava e clamava pela censura dos
militares.
No domingo seguinte, balançando a pança e comandando a massa, o Velho
Guerreiro aparecia com um novo bordão: "Dom Marcos é um xarope,
Chacrinha dá Ibope."
O que mais irritava estes setores da elite era o interesse que o fenômeno
Chacrinha despertava no exterior. Televisões da Europa vinham ao Brasil
especialmente para gravar cenas de seu programa e publicações como a
Time-Life e o Daily Herald escreviam sobre o espalhafatoso comunicador
brasileiro. E isto contribuía para aumentar o côro daqueles que queriam
puxar-lhe o tapete na TV Globo - como se depreende de mais uma fala do
ministro das Comunicações Higyno Corsetti: "O mundo precisa conhecer
o Brasil, mas não irá conhecê-lo através de programações de segunda
ordem. Moralizar a televisão é, antes de tudo, uma missão de
patriotismo.” (517)
Nota-se aí até que ponto chegava a velha preocupação de nossas elites com
a imagem do Brasil no concerto das nações. Chacrinha, como sempre,
desdenhava: "Não tenho culpa de que venham lá de fora os órgãos mais
prestigiosos para me entrevistar."(518)
O que Chacrinha não tolerou foi quando o seu programa, transmitido ao
vivo, foi abruptamente cortado do ar, por ordem do próprio Boni, no
momento em que ele entrevistava o compositor e humorista Juca Chaves.
Com aquela ironia que lhe é característica, depois de cantar uma de suas
modinhas, Juca deslanchou um discurso contra a televisão, acusando-a de
pagar muito mal ao artista brasileiro. Chacrinha não quis ou não conseguiu
interrompê-lo e imediatamente Boni determinou que o programa fosse
retirado do ar. Isto foi a gota d'água para o apresentador. "O Velho
Guerreiro teve um ataque histérico ainda no palco quando soube do
corte. Já nas coxias, quebrou tudo o que viu pela frente: mesas,
cadeiras, telefone... foi um escândalo", relembra Uadji Moreira, da
produção do programa. (5l9)
Sem mais nenhum clima para continuar na emissora, no dia seguinte
Chacrinha rescindiu seu contrato com a TV Globo, o que foi prontamente
aceito : “A saída dele é benéfica, pois nós já não precisamos mais de Ibope
e sim de qualidade", disse um dos diretores da casa. (520) A partir daí o
Velho Guerreiro iniciou sua via crucis de dez anos por outros canais de
TV: Tupi, Record, Bandeirantes... Com produção precária e índice de
audiência cada vez menor, seu programa acabou ficando fora do ar muitas
vezes, restando a Chacrinha e suas chacretes fazerem shows em boates.
Definitivamente, os tempos eram outros e ele teve que começar tudo outra
vez "Foram os piores anos da vida do animador, que levou quase uma
década para recuperar o que perdeu nesse período", afirma a jornalista
Lucia Rito, acrescentando que na época a família Barbosa foi obrigada a
vender cerca de dez apartamentos para manter seu padrão de vida. (521)
Chacrinha só voltaria à TV Globo nos anos 80, mas fora do horário nobre e
já devidamente domesticado e enquadrado no "padrão de qualidade” da
emissora. O interessante é que o Velho Guerreiro caiu no momento em que
outros apresentadores, seguindo a sua escola, começavam a aparecer no
vídeo. Em maio de 1971, numa nota intitulada “Á maior cascata do
mundo", Chacrinha perguntava ao seu leitor: "Vocês já viram, não? Na TV
Record tem um careta que faz um programa e tudo o mais igual o
Chacrinha. Querem que eu recorde o nome dele? Perfeito: é o Edson
Bolinha Cúri que se diz 'o Chacrinha de Araçatuba'. E agora, dona
Aurora?" (522)
O fato é que quando em dezembro de 1972, Chacrinha saiu da TV Globo,
junto com ele foi embora um elenco de cantores populares que tinha
naquele programa seu principal palco na emissora. Para a dupla Boni e
Clark foi uma limpeza completa: assepsia da imagem e do som. Para
cantores como Paulo Sérgio e Waldik Soriano, um video a menos. Já
excluídos das novelas, e agora também sem o Chacrinha, eles atravessaram
a maior parte dos anos 70 sem espaço na emissora do Jardim Botânico a
não ser em esporádicas aparições no programa mensal Globo de Ouro.
Clipe no Fantástico, programa que ocupou o espaço do Chacrinha, nem
pensar.
Até porque nesta época muitos compositores "cafonas" enveredaram por
uma temática delicada e não muito agradável para certos ouvidos: o drama
dos portadores de deficiência física, grupo social que representa cerca de
6,5 milhões de pessoas no Brasil (4% da população) (523) e, até então,
totalmente ignorado pela mídia e pelos órgãos públicos. Basta dizer que
ainda hoje a nossa arquitetura urbana é um labirinto de obstáculos que os
condena a ficar em casa fazendo todos os dias tudo sempre igual.
Nos anos 70, porém, eles alcançaram maior visibilidade ao tornarem-se
protagonistas de várias canções: A ceguinha ( Jorge Paiva), Trevas
(Roberto José), Tamanho não é documento (Nelson Ned), Canção do
paralítico (Carlos Alexandre), Cadeira de rodas (Fernando Mendes) e
outras. Pela primeira vez paraplégicos, tetraplégicos, anões, cegos, surdos e
mudos mereceram atenção da música popular, revelando para uma
multidão de outras pessoas que no peito do deficiente físico também bate
um coração.
A mais representativa dessas canções é mesmo Cadeira de rodas, gravação
de Fernando Mendes que tornou-se um dos maiores sucessos musicais dos
anos 70 (524):
SENTADA NA PORTA
EM SUA CADEIRA DE RODAS FICAVA
SEUS OLHOS TÃO LINDOS SEM TER ALEGRIA
TÃO TRISTE CHORAVA
MAS QUANDO EU PASSAVA
A SUA TRISTEZA CHEGAVA AO FIM
SUA BOCA PEQUENA NO MESMO INSTANTE
SORRIA PRA MIM...
A letra narra a história de um amor platônico entre um rapaz tímido e uma
moça paralítica. Segundo o cantor, a idéia da canção surgiu em 1974,
durante um show no antigo Cine Glória, em Vitória da Conquista, interior
da Bahia. "Do palco daquele cinema eu vi que tinha uma menina
sentada numa cadeira de rodas assistindo ao show. Ela estava bem à
minha frente, cantando, aplaudindo, sorrindo, um sorriso cativante, ali
na cadeira de rodas. E aquela imagem me fascinou na hora. A menina
tinha uns treze anos e se chamava Lindalva. Me disseram até que ela
morava num hospital lá da cidade Logo depois do show eu falei para o
meu parceiro José Wilson: 'Vamos fazer uma música com esse tema aí,
alguém apaixonado por uma menina de cadeira de rodas.' No hotel
mesmo eu já fui procurando a melodia e ele, escrevendo a letra."
De volta ao Rio, Fernando Mendes imediatamente foi ao encontro de seu
produtor na Odeon, Miguel Plopschi, para mostrar a nova canção, que
ainda não estava totalmente pronta. O entusiasmo dele foi imediato; afinal,
aquele era um tema novo, ainda não explorado na música popular, embora
delicado por mexer com sensibilidades reprimidas. Por isso mesmo o
produtor procurou cercar-se de certos cuidados na hora de gravar o tema.
Houve a preocupação com a busca da palavra mais adequada e a
interpretação menos exagerada possível. No estúdio, quando Fernando
Mendes ameaçava soltar a voz, Miguei Plopschi interrompia: "Pára aí,
pára ai. Não é nada disso. O que é que houve? Você já ouviu João
Gilberto cantar? Já... então pronto. Olha como João Gilberto canta e
agrada ao ouvido de tanta gente. Você não precisa soltar a voz, fica
feio. Você não é cantor, você é intérprete. O Agnaldo Timóteo e o
Cauby Peixoto podem cantar alto porque eles têm extensão de voz.
Você não tem, então procure cantar baixinho, bonitinho, colocadinho.”
Embora abordando um tema dramático, da linhagem de antigos sucessos
como Coração materno (Vicente Celestino) e Coração de luto
(Teixeirinha), diferentemente desses, Cadeira de rodas surgiu num arranjo
contido e numa interpretação quase minimalista de Fernando Mendes.
O sucesso do disco foi imediato e muitas garotas paralíticas, acostumadas a
remoer solidão e abandono, sentiram-se rainhas de uma história de amor
cantada de norte a sul do Brasil. "Depois do sucesso da música choveram
cadeiras de rodas em meus shows", diz Fernando Mendes "Há pouco
tempo mesmo eu estava em Maracapuru, lá no Amazonas, e apareceu
mais uma linda moça paraplégica dizendo que queria me conhecer,
que sonhava há milhões de anos de ver um show meu por causa de
Cadeira de rodas. Ela até me contou que ficou paraplégica na época do
sucesso da música."
Sucesso que se deveu basicamente ao rádio, - o principal veículo de
divulgação do repertório "cafona' - considerando-se que a outra importante
vitrine musical, a televisão (leia-se, a programação da Globo), era ocupada
pelo elenco da MPB. Neste sentido, nomes como Paulo Sérgio, Waldik
Soriano e Nelson Ned foram cantores do rádio em plena era da TV. Eles
não foram revelados em festivais televisivos e nem se nutriam do sistema
global de telenovelas. "Quando lanço um disco, vou às cinco horas da
manhã pra Rádio Globo, Tupi, Mauá, Nacional, caitituar o meu disco.
É assim que eu vendo disco, bicho”, dizia Agnaldo Timóteo em 1972.
(525)
Já quem tinha sua música numa trilha de novela da Globo podia até se dar
ao luxo de acordar tarde porque à noite sua gravação estaria no ar e ao
alcance de milhões de telespectadores. Talvez por isso mesmo a Globo nem
precisava pedir; os próprios artistas da MPB ofereciam suas criações às
novelas da emissora. Tom Jobim era um deles. Segundo Daniel Filho, volta
e meia Tom aparecia na Globo com uma nova composição, dizendo: "Eu
tenho essa melodia, vamos botar ela onde?" (526)
Muito se tem destacado a importância do trabalho de cantoras como Nara
Leão, Gal Costa e Elis Regina na revelação de novos talentos da música
brasileira. De fato, basta lembrar alguns compositores como João do Vale,
João Bosco, Belchior e Luiz Melodia que se projetaram no cenário artístico
depois de gravados por essas estrelas.
Mas o que o público parece desconhecer é que este mesmo papel também
foi desempenhado pelas novelas da TV Globo. Vários nomes hoje
consagrados deslancharam suas carreiras depois de aparecer cantando ali
pela primeira vez. Um caso exemplar é o do cantor Djavan, que antes
mesmo de gravar seu primeiro LP , “AVoz, o Violão, a Música de Djavan"
(Som Livre, 1976) já era ouvido diariamente pela grande audiência dos
folhetins eletrônicos da Globo. Na época ainda atuando como cantor da
noite no Rio de Janeiro, Djavan realizou sua primeira gravação
especialmente para a trilha da novela Os Ossos do Barão (1973), seguindose gravações para os discos de outras novelas como Fogo Sobre Terra
(1974) e Cuca Legal (1975).
Assim, quando o primeiro LP de Djavan foi lançado, em 1976, com o hit
Flor de Lis, o público já estava mais do que familiarizado com a voz e o
violão do artista alagoano. E diga-se de passagem, que não apenas o
público do Brasil. Ao acompanhar um grupo de artistas numa viagem a
Angola, em 1979, Djavan surpreendeu-se ao constatar que a platéia
africana já o conhecia por causa da canção Alegre menina, tema que
embalava o personagem de Sônia Braga na novela Gabriela.
Outro nome da MPB revelado pelas novelas da TV Globo foi a cantora
Fafá de Belém, famosa aos 19 anos quando sua primeira gravação, Filho da
Bahia, apareceu como um dos principais temas da novela Gabriela, em
1975. No ano seguinte a cantora gravou seu primeiro LP na Philips,
deslanchando uma bem-sucedida carreira, que naturalmente contou com
outras músicas em novelas da Globo.
Trajetória parecida foi a do cantor e compositor Guilherme Arantes,
projetado nacionalmente depois que seu tema Meu mundo e nada mais foi
incluído na primeira versão da novela Anjo Mau, em 1976. E o soul man
Cassiano, embora já conhecido no meio musical, obteve seu maior sucesso
popular como intérprete com as gravações de A lua e eu (tema da novela O
Grito, 1975); e Coleção (tema de Locomotivas, 1977).
Um exemplo da força das novelas da Globo na imposição de um sucesso é
o que envolveu o cantor cearense Ednardo que, segundo o critico José
Ramos Tinhorão, integra aquela "geração de compositores que dirigem
suas criações à minoria de público de nível universitário." (528) Depois de
gravar um disco com o grupo Pessoal do Ceará, sem grande repercussão,
em 1974 Ednardo lançou pela RCA o seu primeiro LP solo, e tanto ele
como a gravadora depositavam grande esperança no sucesso da faixa
Pavão Mysteriozo, um tema inusitado que se valia de imagens da literatura
de cordel. Entretanto, para desgosto do artista, nem as rádios, nem o
público (popular ou universitário) revelaram maiores interesses pela canção
e o seu disco ficou encalhado nas prateleiras das lojas.
Dois anos depois, quando Ednardo se preparava para lançar um novo LP na
praça, a ignorada Pavao Mysteriozo foi escolhida pela Globo como o tema
ideal para ilustrar o realismo fantástico da novela Saramandaia, de Dias
Gomes. A partir daí o sucesso da música foi rápido e intenso e a tal ponto
que Ednardo não conseguiu mais promover o novo disco; passou toda
aquela temporada (e até os dias de hoje) cantando "pavão misterioso /
pássaro formoso / tudo é mistério nesse teu voar...".
Registre-se que o namoro dos compositores da MPB com a telenovela não
começou nos anos 70 e nem ficou restrito à TV Globo. Em pleno 1964, o
ainda desconhecido Chico Buarque compôs um tema musical exclusivo
para a novela Prisioneiro de um Sonho, produção da TV Record com Eva
Wilma e John Herbert. E outro futuro ídolo da esquerda, Geraldo Vandré,
também compôs naquele mesmo ano o tema de abertura da novela O
Sorriso de Helena, da TV Tupi. Foram produções esporádicas, num tempo
em que as telenovelas ainda não tinham suas trilhas sonoras lançadas em
disco - produto que seria consagrado pela TV Globo a partir do lançamento
da trilha de Véu de Noiva, em 1969. (529 )
Foi dito aqui que esta e outras trilhas sonoras da emissora não foram
ocupadas pelo repertório de cantores como Waldik Soriano ou Nelson Ned.
Mas, se por um lado, as canções "cafonas" ficaram realmente de fora das
novelas da Globo, constata-se que as novelas da Globo não ficaram de fora
das canções "cafonas". Há várias gravações comentando ou criticando os
folhetins televisivos - atração que efetivamente se consolidou nos anos 70.
Na década anterior, a televisão ainda era um bem de consumo restrito às
classes média e alta. É a partir do período do "milagre" que a venda de
aparelhos-receptores se expande e a TV efetivamente se populariza,
interferindo no cotidiano de milhões de brasileiros. (530)
"Quando chego do trabalho me aborreço / vejo o seu corpo debruçado no
sofá ..", lamenta-se o cantor Luiz Geraldo em uma de suas gravações. (531)
Aqui aparece uma diferença fundamental da TV em relação ao rádio. Este
último não impede o ouvinte de exercer suas atividades profissionais ou de
lazer diárias; já a TV requer a atenção do telespectador à frente do aparelho
receptor, calando os diálogos familiares como se vê em um outro protesto
intitulado Um grito parado no ar:
ESSE QUADRADO NO CANTO DA SALA
FECHOU SUA BOCA, ROUBOU SEU OLHAR
VOCÊ SE LIGA DEMAIS EM NOVELAS
NÓS NEM TEMOS TEMPO DE DIALOGAR...
Nota-se que esta crítica ao monopólio da fala televisiva vem acompanhada
daquela tradicional visão da mulher como o sexo frágil, romântica, alienada
e sonhadora, presa fácil dos dramas de Janete Clair e de seus galãs da
televisão. Tema também explorado num bolero de Lindomar Castilho, que
fala do homem que chega cansado do trabalho e se depara com a mulher
distraída diante da TV:
...SEI QUE VOCÊ TEM MAIS PENA É DO GALÃ DE SUAS
NOVELAS
E ISSO FAZ DO NOSSO CASO DUAS VIDAS PARALELAS
E PRA AUMENTAR O MEU CIÚME E ME DEIXAR QUASE
LOUCO
VOCÊ MORRE DE AMORES POR UM TAL FRANCISCO
CUOCO...(532)
É, sem dúvida, uma visão machista - conforme a média de pensamento do
segmento social de onde provém estes compositores - , e também
empobrecedora da figura feminina, mas que encontra respaldo na nossa
realidade social. É o mesmo processo que leva Chico Buarque a compor
canções retratando aquelas mulheres de malandro, submissas, do tipo que
só dizem sim. Como explica o compositor, "você coloca na música aquilo
que existe, não está dizendo que é bom ser assim". (533)
No caso específico do repertório "cafona" aparece a mulher dos baixos
estratos da sociedade brasileira que tem nos folhetins televisivos diários seu
principal lazer. Como define um especialista no tema, o diretor Daniel
Filho, "a telenovela é basicamente feminina. Suas histórias são, acima de
tudo, histórias de mulheres; a heroína é a principal protagonista. São
sempre histórias românticas, dirigidas às telespectadoras, que são seu
grande público". (534)
Este estereótipo do comportamento feminino foi levado às últimas
conseqüências na canção Noveleira, gravação de Edson Wander que inicia
com o mesmo lamento das baladas anteriores: "Vai dar oito horas / e a sua
novela já vai começar / eu quero que fique / mas não adianta / não quer me
escutar..." - com um refrão em forma de suplica no qual o cantor declara:
...NOVELEIRA EU TE AMO
NOVELEIRA ACREDITE EM MIM
NEM TONY (RAMOS) NEM CUOCO
NEM MESMO O TARCÍSIO MEIRA
TE AMAM TANTO ASSIM
A identificação da Rede Globo como a dona da audiência da televisão
brasileira nos anos 70 não se esgota nesta citação de seus três principais
atores de telenovelas. Numa outra balada em que se queixa de mais uma
rejeição amorosa, Odair José se contrapõe ao então todo-poderoso diretorgeral da emissora, Walter Clark, que na época namorava algumas das mais
desejadas mulheres da televisão, como Sonia Braga, Sandra Bréa e Betty
Faria:
AH! SE EU TIVESSE UM CADILLAC
OU SE EU FOSSE O WALTER CLARK
VOCÊ GOSTAVA MAIS DE MIM
MAS NINGUÉM ESCOLHE SEU DESTINO
DESDE O TEMPO DE MENINO
QUE EU LUTO PRA VIVER...
Mas a canção síntese de protesto contra a massificação de audiência das
telenovelas da Globo é uma outra composição de Odair José que diz:
"Chega à noite em toda casa / é sempre a mesma novela... /...a gente já não
sai por causa da televisão..."
Depois de falar em fantasias, sentimentos e "nossos sofrimentos sendo
usados pelo esquema", o compositor chama o público para a realidade,
arriscando até um conselho educativo: "É melhor ler um bom livro / ou
então sair pra rua / abraçar novos amigos / pois a vida continua..” (536)
Isto que era cantado por Odair José era dito por Agnaldo Timóteo em
algumas de suas entrevistas à imprensa. Numa reportagem de 1974,
“Agnaldo Timóteo na solidão da fama", o cantor esbravejou contra os
folhetins eletrônicos, responsabilizando-os pelo fim de muitas atrações
noturnas nas praças e bairros das cidades: "O público brasileiro está
definitivamente bitolado e já transformou em vício o hábito de ver
novelas. Ninguém mais quer sair de casa à noite para assistir a algo
diferente, pois tem que acompanhar esta praga, obedecendo aos
interesses habilmente divulgados das redes de televisão". (537)
Naquela época, a crítica à televisão - o "circo eletrônico" - , na definição de
Nelson Pereira dos Santos era expressado de várias formas e sob vários
ângulos. De uma maneira geral, os setores mais intelectualizados da
sociedade questionavam as implicações ideológicas e culturais do
fenômeno televisivo. No filme Bye, Bye Brasil, por exemplo, Cacá Diegues
mostra através das viagens de uma caravana de artistas mambembes pelo
interior do país o processo de massificação da TV e a sua interferência nas
manifestações da cultura popular. E em uma de suas canções, Chico
Buarque fala da escola de samba que "está aprendendo humildemente / um
batuque diferente / que vem lá da televisão...". (538 )
Já no repertório "cafona" estas preocupações não aparecem; ali a critica se
concentra mesmo na repercussão das telenovelas em contextos da vida
doméstica dos telespectadores - como numa polêmica gravação do cantor
Benedito Nunes intitulada É novela demais. Lançada em 1973, logo após o
grande sucesso de Selva de Pedra, sua letra critica a interferência da TV no
cotidiano dos casais, que não conseguem mais dialogar porque, "tem
novela às cinco horas / às seis horas / às sete horas / oito horas / nove
horas...", e se ele (o marido) precisa dormir mais cedo "não pode contar
com ela / porque lá pra dez horas / vai ter mais uma novela".
Vê-se que aquele projeto dos executivos da Rede Globo de atrair a
audiência do grande público através dos folhetins eletrônicos foi muito
bem-sucedido, mas à custa da quase saturação do gênero fato que Benedito
Nunes aponta em É novela demais. Não se pense, entretanto, que esta e
outras canções "cafonas" sobre o tema foram consideradas inócuas ou
passaram despercebidas na época. Numa nota de sua coluna, em abril de
1973, o crítico José Fernandes informava ao leitor que "a Rede Globo
proibiu em todas as suas emissoras de rádio a execução de um disco de
Benedito Nunes, em que ele larga o pau nas novelas". (539)
Este é mais um exemplo de que a censura que atingiu a música popular
brasileira naquele período não foi apenas aquela subordinada à Polícia
Federal em Brasília.
E se a canção É novela demais foi vetada nas poderosas Organizações
Globo, é possível supor que outras canções "cafonas", com o mesmo
conteúdo crítico, tenham sido igualmente proibidas, além de afastar ainda
mais seus autores das trilhas de novelas da emissora.
"Eu acho que foi um pouco de burrice nossa ficar pichando as novelas
naquela época" - , diz Odair José - "porque é a tal coisa, 'já que ele fala
mal de novela, não vai ter sua música tocada em novela'. Mas fazer o
que, né? Eu realmente considero novela uma merda."
É a opinião do cantor que, certamente, não é compartilhada pela maioria de
seu público, principalmente aquele grande segmento feminino
popularmente chamado de "empregada doméstica" - tema do nosso
próximo capítulo.
NOTAS BIBLIOGRÁFICAS
(SEGUINDO A NUMERAÇÃO SEQUENCIAL DO CAPÍTULO):
495. Na época, os capítulos das novelas da Globo não eram transmitidos ao
mesmo tempo para toda a rede. último capítulo de Selva de Pedra, por
exemplo, foi ao ar no Rio em 18 de Janeiro de 1973. Em São Paulo, uma
semana depois.
496. Paulo Cesar Ferreira, op. cit., p. 192.
497. Nosso século (1960-1980), op. cit., p. 246.
498. Apud Maurício Kubrusly. "Ostra grudada na pedra Brasil~. ~ História
da música popular brasileira (João Bosco - Aldir Blanc). 3a ed. São Paulo:
Abril Cultural, 1983, p. 8.
499. Nelson Motta. Noites tropicais, op. cit., p. 197.
500. Daniel Filho. “Antes que me esqueçam”. Rio de Janeiro: Ed.
Guanabara, 1988, p. 145.
501. Nelson Motta. Noites tropicais, op. cit., p. 198.
502. "Novela igual a Waldick” - Jornal do Chacrinha) - A Noticia, 3-101972.
503. Artur da Távola. “A Telenovela brasileira: história, análise e
conteúdo”. São Paulo: Globo, 1996, p. 9.
504. Elisabeth Carvalho. "Telejornalismo: a década do jornal da
tranqüilidade". In Anos 70 - Televisão. Rio de Janeiro: Europa, 1980, p. 33.
505. Mana Rita Kehl. "Um só povo, uma só cabeça, uma só nação". In
Anos 70 - Televisão. Rio de Janeiro: Europa, 1980, p, 12.
506. Walter Clark & Gabriel Priolli, op. cit., p. 232.
507. “Chacrinha" - O Pasquim, 13 a 19-11-1969.
508. Apud. Florinda Barbosa & Lucia Rito. Quem não se comunica se
trumbica. São Paulo: Globo, 1996, p. 91.
509. Idem, p. 145.
510. "Um inovador” - Diário de Pernambuco, 2-6-1974.
511. Ver Muniz Sodré. A comunicação do grotesco. Petrópolis: V'ozes,
1972.
512. Apud Florinda Barbosa & Lucia Rito, op. cit., p, 76.
513. Idem, p. 145.
514. Idem, p. 136.
515. Ao ditar normas para a televisão o ministro afirmou que era preciso
evitar "a ida de um pobre a um programa de auditório para ganhar um
milhão de cruzeiros contando coisas de sua vida". Ver reportagem “As
normas da boa conduta"- Veja, 17-5-1972.
516. "televisão" - Jornal do Brasil, 17-9-1971.
517. "Corsetti quer TV sadia e não divertindo o público com misérias
alheias" - Jornal do Brasil, 17-9-1971.
518. "Chacrinha no Time!" Jornal do Chacrinha - A Notícia, 30-4-1973.
519. Florinda Barbosa & Lucia Rito, op. cit., p. 137.
520. "Começou a guerra do Ibope" - Veja, 20-12-1972.
521. Florinda Barbosa & Lucia Rito, op. cit., pp. 143-144.
522. “A maior cascata do mundo!" - Jornal do Chacrinha - A Noticia, 6-51971.
523. Segundo dados da Organização Mundial da Saúde publicados na
reportagem “Asas da liberdade" - Veja, 17-5-2000.
524 Lançada no final de 1975, Cadeira de rodas foi galgando as paradas de
sucesso, alcançando o 1° lugar de vendagem em São Paulo na semana de 5
a 10 de abril de 1976. Fonte: Ibope - Pesquisa sobre vendas de discos Acervo do Arquivo Edgar Leuenroth / Unicamp.
525. “Agnaldo Timóteo (de Caratinga) - O Pasquim, 21 a 27-11-1972.
Observo que, apesar da força crescente da televisão, o rádio ainda era o
principal veículo para a popularidade de uma música. Numa entrevista em
1974, o diretor-geral da Phonogram, André Midani, dizia que "a venda de
discos até hoje, e não só no Brasil, a grande ponta de lança, quer seja no
Brasil quer seja nos Estados Unidos, ainda é o rádio, definitivamente". Ver
reportagem: "Entrevista com o cara que decide o que você vai ouvir" - O
Pasquim, 19 a 25-2-1974.
526. Daniel Filho. “O circo eletrônico: fazendo TV no Brasil”. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar, 2001, p. 334.
527. Nas trilhas das referidas novelas Djavan interpreta os temas Qual é?,
Calmaria e vendaval e Rei do mar. Para outras indicações ver índice
canções citadas em Fontes e bibliografia.
528. "O cearense Ednardo, ou de como os gênios usam boné" - Jornal do
Brasil, 1-6-1977.
529. Embora sem usar a expressão "trilha sonora original", a TV Tupi já
havia lançado discos com músicas de suas telenovelas como, por exemplo,
a trilha de Antônio Maria, em 1968, e o álbum de capa dupla com a trilha
de Nino, o italianinho, em 1969.
530. O número de aparelhos receptores cresce em rápida progressão a partir
dessa época: 4,9 milhões em 1970; 10,2 milhões em 1975, 19,6 milhões em
1980. (dados: Abinee) Apud Renato Ortiz, Silvia Helena Simões BorelIi &
José Mario Ortiz Ramos. “Telenovela: história e produção”. São Paulo:
Brasiliense, 1989, p. 81.
531. Verso de “Eu queria ter um filho com você”. Para outras indicações
ver índice de canções citadas em Fontes e bibliografia.
532. Versos de “Eu não sou nenhum bandido”. Ver índice de canções
citadas em Fontes e bibliografia.
533. Apud Gilberto de Carvalho. “Chico Bivaque: análise poéticomusical”. Rio de Janeiro: Codecri, 1982, p.145.
534. Daniel Filho. “O circo eletrônico: fazendo TV no Brasil”, op. cit, p.
70.
535. Versos de “Mania de grandeza”. Ver índice de canções citadas em
Fontes e bibliografia.
536. Versos da balada “Novelas”. Ver índice de canções citadas em Fontes
e bibliografia.
537. “Agnaldo Timóteo na solidão da fama" - O Dia, 10-3-1974.
538. Versos de “A televisão”. Ver índice de canções citadas em Fontes e
bibliografia.
539. "Interior, nada?" - A Noticia, 26-4-1973.
OS SONS QUE VÊM DA COZINHA
(ODAIR JOSÉ E O APARTHEID BRASILEIRO
“O Seu quartinho abrindo porta para o tanque de lavagens ainda é a
senzala.”
(Carlos Lemos)
Um rótulo que marca a imagem desta geração de artistas românticos é o de
"cantor das empregadas", termo que aparece com certa freqüência na mídia,
como se os "cafonas" fossem ouvidos e admirados apenas por este
segmento de público. Na verdade, o termo é restritivo porque cada um
destes artistas poderia ser chamado também de cantor dos padeiros, dos
pedreiros, caminhoneiros, porteiros, ferreiros, lixeiros, açougueiros,
coveiros, enfim, da maioria da população brasileira, e não apenas "das
empregadas". Mas este rótulo se deve ao fato de o segmento de classe
média - que os rotula - ter um contato cotidiano e mais próximo com a
empregada doméstica e ouvir da sala os sons que vem da cozinha, através
do rádio ou na voz da própria empregada.
De qualquer forma, neste público feminino se concentra mesmo grande
parte de consumidores dos discos de artistas como Odair José, Paulo Sérgio
e Agnaldo Timóteo. Aliás, ao escrever um artigo na Folha de S. Paulo
sobre o alcance popular destes cantores, o jornalista Ruy Castro alertava o
seu leitor com a observação de que "você pode não gostar deles, mas a sua
empregada gosta. E compra os seus discos com o dinheiro que você lhe
paga no dia 30. E, se você mora sozinho e passa o dia fora, adivinhe onde
ela toca os discos? No Marantz de 400 watts que você comprou na Breno
Rossi e deu de presente aos Mahler e Bártok da sua coleção". (540)
Já foi observado que as empregadas domésticas não apenas gostam de
ouvir músicas; também costumam cantar - e pelo menos duas delas
deixaram a cozinha e tornaram-se nomes de projeção na nossa música
popular: a sambista Clementina de Jesus (no campo da MPB) e a baladista
Carmen Silva, destaque desta geração de artistas "cafonas" (não confundir
com Carmen Costa, cantora da era do rádio). Consagrada como a "Pérola
Negra" título de um de seus discos - , Carmen Silva é neta e filha de
escravos. Embora ela não cante sambas ou exaltações a divindades afrobrasileiras, na voz de Carmen Silva ouvem-se ecos do porão do primeiro
navio negreiro e lamentos do terreiro da primeira senzala. Seu pai Fernando
José da Silva (já octogenário quando Carmen nasceu, em 1945), tinha 22
anos de idade quando foi promulgada a Lei Áurea. (54l) Portanto, ele
cresceu no cativeiro e como todos os negros de seu tempo derramou muita
lágrima clara sobre a pele escura. Um dos grandes sucessos de Carmen
Silva é exatamente uma canção que gravou em homenagem à memória do
pai faixa de seu LP em 1976: "Meu velho pai / preste atenção no que lhe
digo / meu pobre papal querido / enxugue as lágrimas do rosto...” (542)
Como a trajetória da maioria dos descendentes de escravos no Brasil, a de
Carmen Silva não ficou muito longe da senzala. "Eu fui uma criança que
não teve infância. Eu nunca soube o que é ganhar uma boneca no
Natal. A gente dormia em cama de pau e colchão de palha. Mas desde
pequena eu sempre acreditei que todo ser humano tem direito a uma
vida digna.” Nascida num lugarejo próximo à cidade mineira de Uberaba,
aos dez anos de idade Carmen começou a trabalhar em casas de família.
"Foi uma época importante, quando aprendi a cozinhar, lavar e
passar, o que muito me serviu depois na cidade grande.”
O primeiro impulso para a carreira musical surgiu quando ela trabalhava na
casa de Cecília Palmério, mulher do escritor e acadêmico Mário Palmério.
"Dona Cecília um dia me descobriu cantando para as crianças dormir
e disse que eu tinha uma voz muito bonita. Aí, ela me fez aprender La
Violetera e me incentivou a procurar rádios e programas de calouros."
(543)
Com poucas oportunidades no interior de Minas, aos 16 anos Carmen Silva
se mudou para São Paulo e ocupava seu tempo entre o fogão das patroas e
o microfone das rádios. No fim dos anos 60 foi contratada pela gravadora
RCA, que queria lançá-la como sambista na linha de Elza Soares. "Mas eu
dizia para eles, 'só porque sou negra tenho que cantar samba?' A gente
tem que cantar aquilo que o coração sente, né? E eu gostava de música
romântica. Eu até admiro o samba, mas não é minha área, nunca foi. O
samba nunca mexeu comigo; eu nunca pulei carnaval, nunca saí em
escola de samba. Aliás, quando chega carnaval eu sempre me retiro,
vou descansar.”
Definitivamente, seu coração não balança ao som de um tamborim e o
sucesso veio mesmo com a gravação de baladas como ”Eu posso não
prestar mas te amo”, “Que Deus proteja nosso amor” e “Adeus solidão”,
faixa que lhe rendeu o primeiro disco de ouro em função das mais de cem
mil cópias vendidas, em 1970.(544) A partir daí o tanque e o fogão ficaram
para trás, e a cantora se tornou uma referência para muitas ex-colegas de
trabalho que lá permaneciam "alegres e sem canseira / trabalhando e
cantando / no compasso da torneira .." (545)
Sucessora das antigas mucamas - que realizavam o trabalho doméstico
durante a escravidão no Brasil - , desde o fim do século XIX a empregada
doméstica aluga sua força de trabalho nas casas de família de classe média,
mas a categoria foi excluída dos benefícios da legislação social e trabalhista
estabelecidos no governo Vargas através da CLT (Consolidação das Leis
do Trabalho). (546)
No inicio dos anos 70 as domésticas se mobilizaram em busca destes
direitos e o disc-jóquei Luiz Aguiar, que tinha neste público grande parte
de sua audiência, se solidarizou com a causa e apoiou suas reivindicações
através do programa comandado por ele na Rádio Tupi de São Paulo.
Numa certa manhã de 1973, Odair José participava do programa de Luiz
Aguiar quando ouviu o locutor ler um texto que apresentava as principais
reivindicações das trabalhadoras domésticas e descrevia as dificuldades e
preconceitos enfrentados por cada uma delas no seu cotidiano.
Odair José achou o texto interessante, principalmente a segunda parte, e
perguntou ao locutor se poderia usar aquela temática nos versos de uma
canção. Luiz Aguiar concordou e o resultado foi a balada “Deixa essa
vergonha de lado”, canção que mostra o estigma de sub-trabalho que
envolve o ofício das domésticas no Brasil e a barreira social que as impede
de namorar um rapaz de classe média:
"Deixa essa vergonha de lado / pois nada disso tem valor / por você ser
uma simples empregada / não vai modificar o meu amor..." Mas a letra
da música vai além da mera descrição do dilema amoroso dos personagens
e, na segunda estrofe, ao fazer referência ao quarto de empregada, aponta
para a questão do uso do espaço numa sociedade de classes: "Eu sei que o
seu quarto fica lá no fundo / e se você pudesse fugia desse mundo / e
nunca mais voltava..." (547)
Marca essencial das habitações das famílias de classe média do país, o
diminuto cômodo reservado às empregadas domésticas, assim como a
segregação destas moças em espaços de circulação apartados daqueles dos
patrões - as chamadas "área de serviço" e "elevador de serviço"”,
denunciam por si só o alto grau de autoritarismo da nossa sociedade. Como
destaca o arquiteto Carlos Lemos, “O Brasil tornou-se o primeiro e único
país a possuir edifícios com essa precaução reparadora de
circulações". E até hoje este apartheid está presente na maioria das
construções brasileiras, e uma comparação com edifícios de outras regiões
do planeta "mostra que estamos frente a uma exclusividade nacional”.
(548)
Este traço peculiar da nossa arquitetura residencial contemporânea traz,
segundo o autor, a influência da antiga casa-grande, porque, no
subconsciente dos patrões, a empregada doméstica "ainda é a escrava de
presença desagradável" e "o seu quartinho abrindo porta para o
tanque de lavagens ainda é a senzala". (549)
Embora sem a mesma profundidade de um tratado sociológico, a temática
da canção composta por Odair José é também um reflexo de toda esta
questão social, como ele próprio afirma numa entrevista à Rádio Globo:
"Eu me mudei para o Rio de Janeiro por volta de 1966. E chegando
aqui dormi em banco de praça, dormi debaixo de marquises, dormi na
praia e depois fui morar em quartos de fundos. E ao conviver com
essas dificuldades todas eu aprendi a gostar das pessoas que também
dormem em quartos de fundos. Foi quando eu fiz a canção Deixa essa
vergonha de lado, que conta a história da pessoa que convive com a
família, mas não é da família, ou seja, a empregada doméstica, aquela
secretária de casa que serve para dar banho nas crianças, serve para
levar o filho à escola, serve para passar roupa, serve para fazer a
comida, mas não serve para casar com os filhos da gente. E isso é uma
coisa que sempre me tocou muito " (550)
Em 1973, as empregadas alcançaram um primeiro resultado da sua
mobilização por direitos sociais: em março daquele ano o presidente
Médici assinou decreto determinando que a partir dali o trabalho doméstico
deveria passar a ser regido pela CLT. E, em conseqüência da repercussão
da balada Deixa essa vergonha de lado - que foi lançada em meio a este
processo - , Odair José tornou-se o principal porta-voz das domésticas no
campo musical e empenhou-se, inclusive, na criação do "Dia Nacional da
Empregada Doméstica", data a ser comemorada a cada primeiro sábado de
Outubro. Segundo relato do Jornal da Tarde, no inicio do primeiro show
comemorativo, em um cinema em São Paulo, a empregada Sebastiana
Comes da Silva fez um agradecimento a Odair José em nome da classe,
mas ao final houve um quase incidente; as moças avançaram sobre o
cantor, que teve que ficar 30 minutos trancado no banheiro de senhoras,
para não ser agarrado e beijado pelas domésticas que "protestavam contra a
escravidão em que vivem". (551)
Por episódios como este e canções como aquela Odair José recebeu na
época a pecha de "o terror das empregadas", termo popularizado pela
cantora Rita Lee no rock “Arrombou a festa”. (552)
Entretanto, é importante recordar que ele não foi o primeiro a focalizar a
personagem na música popular brasileira. Já em 1953, a doméstica é
utilizada como tema pelo compositor Miguel Gustavo, autor de “É sopa”,
marcha carnavalesco que satiriza um daqueles propalados romances da
empregada com o empregador: "Ela deu sopa / e o patrão não bobeou /
coitada, coitada / depois de muito tempo / seu patrão não quis mais
nada / coitada, coitada / fez tanto sacrifício / e nem ficou como
empregada."
Em outra composição dos anos 50, a marcha “Fanzoca de rádio”, Miguel
Gustavo novamente reforça os estereótipos das trabalhadoras domésticas ao
caracterizá-las como assíduas freqüentadoras de programas de rádio. "Ela
é fã da Emilinha / não sai do César de Alencar..."
Na época foi até criada a expressão "macacas de auditório", numa
referência à cor negra da maioria do público feminino que freqüentava
aqueles programas: "É uma faixa aqui / outra faixa ali / o dia inteirinho
ela não quer nada / enquanto isso, na minha casa / ninguém arranja
uma empregada." E mesmo o compositor Noel Rosa, na década de 30,
também as ridicularizava num trecho do “Cordiais saudações”, carta em
forma de samba que denuncia o poeta da Vila como o verdadeiro "terror"
das empregadas: "Beijinhos no cachorrinho / muitos abraços no
passarinho / um chute na empregada / pois já acabou o meu carinho..."
Nota-se pelos exemplos citados que o que a canção de Odair José nos
apresenta é a possibilidade de um outro enfoque sobre a empregada
doméstica na música popular.
Enquanto que nas canções de Miguel Gustavo e Noel Rosa- compositores
de formação classe média - transparece o preconceito e o autoritarismo com
que esta classe trata a doméstica em seu cotidiano, os artistas "cafonas"
vão, ao contrário, denunciar a opressão em que vive este segmento da
sociedade brasileira. É o que fazem, por exemplo, os cantores Jean Marcel
(Você não vai ser minha empregada); Waldik Soriano (Uma empregada vai
ser mãe dos filhos meus) e Luiz Carlos Magno, intérprete de “Quarto de
empregada”, composição que aprofunda a crítica social já presente na
canção de Odair José e aponta a existência de uma espécie de Morte e vida
Severina urbana em nossa sociedade: "Dois por dois / mede o quarto da
empregada... /... o quarto da empregada não tem janelas / acham que
ela não merece olhar as estrelas.. ./... o quarto da empregada não tem
espaço... /... dois por dois / mede o quarto da empregada ."
Diante disso não é exagero dizer que, ao denunciar a segregação de
mulheres trabalhadoras vivendo em quartos de fundos, sem espaço e sem
janelas, os "cafonas" revelam ser tão criticas quanto os artistas da MPB que
falavam do operário que subia a "construção como se fosse máquina" e
comia "feijão com arroz como se fosse o máximo".]
Mas a visão crítica-social do repertório popular romântico também
alcançou o cotidiano da multidão de brasileiros que sobrevivem com o
mísero salário de cada mês, até porque naquela época o arrocho salarial foi
um dos pilares da política econômica do governo. O cantor Jacinto José,
por exemplo, em uma de suas gravações, protesta: "O meu salário está
tão resumido / do jeito que estou vou acabar despido .." (553)
Da mesma forma no samba “O ferroviário”, Wando nos apresenta a dura
realidade (e também a fantasia) de um trabalhador que às cinco da manhã já
está de pé "...pensando na farmácia que tem pra pagar / pensando no
aluguel que não pode atrasar...". Chegando na estação "engole um
desaforo / é melhor não ligar / o trem está lotado / é hora de partir...” e entre um apito e outro do trem o ferroviário prossegue, mas se
guardando para quando o Carnaval chegar:
...E QUANDO CHEGA FEVEREIRO
VESTE A FANTASIA E NA AVENIDA VAI SAMBAR
ESQUECE O TREM, TUDO QUE TEM
ESTÁ FELIZ, É CARNAVAL.
É quando a fantasia carnavalesca opera o que o antropólogo Roberto
DaMatta definiu como "rito de inversão". Ou seja, durante os três dias
de Carnaval a hierarquia e a desigualdade do universo do cotidiano
brasileiro podem ser temporariamente suspensas e anônimos
personagens como o ferroviário se transformam em rei, compensando
sua inferioridade social e econômica com uma visível e indiscutível
superioridade carnavalesca.
E assim, enfatiza DaMatta, a sociedade brasileira "consegue por
alguns instantes (dias, horas) determinar-se e hierarquizar-se não só
pelo bairro, dinheiro, carros, educação, roupas e famílias, mas também
em termos de um eixo de pessoas que pode expressar controle e
domínio do corpo. Um eixo sobretudo estético, pessoal e obviamente
fugaz, marginal e compensatório". (554)
Com um sentido de critica social ainda mais acentuado (agora sem o
recurso fugaz da fantasia carnavalesca), o mundo do trabalho é novamente
focalizado no samba “O operário”, composição de Ismael Prata que narra
o cotidiano de um brasileiro que levanta “às quatro horas pra pegar o irem
das cinco", enfrenta oito horas de batente que parecem uma semanas e à
noite ainda vai "à escola aprender a ser paciente" - crítica ao sistema
educacional que, naquela época, através de disciplinas como Educação
Moral e Cívica, induzia a população brasileira à passividade e ao
conformismo. Depois de também denunciar o precário serviço de
transporte que conduz o trabalhador de casa à fábrica, o personagem
desabafa: "Operário é um escravo / com papel modificado / se pobre não
for pro céu / ninguém mais é perdoado".
A letra desta música expressa o descrédito e a desilusão com a crença de
que o trabalho possibilitaria aos indivíduos a ascensão social - máxima
defendida pela ideologia capitalista. Se o "operaria é um escravo com papel
modificado", o esforço laborioso do cotidiano só lhe permitiria adquirir o
mínimo para a própria sobrevivência, restando ao trabalhador (resignado) o
consolo da espera de uma vida eterna melhor no céu ou (para os mais
combativos) a luta por melhores condições de vida aqui mesmo na Terra
Em 1978 quando a composição de Ismael Prata foi lançada a classe
operária estava de volta à cena política nacional. "Não estamos fazendo
greve para entrar na história, mas para conseguir nossos direitos" ,
disse Lula em maio daquele ano, ao comandar a primeira grande greve de
trabalhadores no período do regime militar. (555)
Luis Inácio da Silva tinha 33 anos e era conhecido apenas na região do
ABC paulista, onde presidia o Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo
do Campo e Diadema.
Mas, quisesse ou não, naquele ano de 1978 Lula entrou para a história, sim,
reconhecido como o mais importante líder sindical surgido no país depois
de 64. Nascido no agreste pernambucano, Lula chegara em São Paulo em
1952, aos sete anos de idade, acompanhado da mãe e dos irmãos, depois de
uma viagem de treze dias sentados na tábua de um caminhão pau-de-arara.
Aos 14 anos o garoto já trabalhava como mecânico numa fábrica de
parafusos, iniciando aí seu conflito cotidiano com os patrões, até que...
quando foi informado do início da paralisação na Scania. "Nem eu
nem meus colegas de diretoria tínhamos participado de uma greve
antes. Então a gente não sabia se pulava de alegria ou se ficava com
medo", recorda. (556)
Esta inexperiência de Lula era resultado de uma conjuntura totalmente
adversa para os sindicalistas, porque durante o regime militar vigorava a
Lei 4.330, decretada no governo do marechal Castelo Branco e que,
praticamente, proibia qualquer movimento grevista no Brasil.
Principalmente após o AI-5, quando Lula se tornou líder sindical, as formas
de resistência operária não podiam ser muito visíveis e se traduziam em
pequenas lutas no interior das fábricas por pagamento de horas extras e
melhorias das condições de trabalho
Um exemplo citado pelo próprio Lula - e que bem poderia fazer parte do
filme Tempos modernos, de Charles Chaplin - ocorreu na fábrica da
Chrysler. Ali, em meados dos anos 70, foi montado um dispositivo que
acionava uma sereia ensurdecedora toda vez que a linha de montagem
parava por qualquer motivo técnico. Neste momento havia um corre-corre
por toda a fábrica e o barulho só cessava quando os operários conseguiam
consertar o defeito. No fim do dia muitos deles voltavam para casa com os
zumbidos ainda na cabeça. "Protestamos e a sereia foi desligada
definitivamente", diz Lula (557)
Na greve de 1978 as reivindicações eram mais amplas: iam desde a
reposição salarial até a conquista de instrumentos como o contrato coletivo
de trabalho. E com a bem-sucedida paralisação dos trabalhadores da
Scania, nos dias seguintes foram parando seus companheiros da Ford,
Mercedes Benz, VoLkswagen, Chrysler e de outras montadoras,
totalizando cerca de 50 mil metalúrgicos de braços cruzados no principal
pólo industrial do país.
“A Ford é a firma que está vendendo mais carros. Tem capacidade de dar
um salário melhor e não dá. A turma está magoada com isso", justificou um
dos operários. (558) A primeira reação do governo foi comunicar às
emissoras de rádio e TV que estava proibida a divulgação de qualquer
notícia sobre os movimentos grevistas. Logo em seguida, atendendo a
solicitação dos empresários, o Tribunal Regional do Trabalho decretou a
ilegalidade das greves, baseada na Lei 4.330.
Marco do surgimento do novo sindicalismo no Brasil, a greve dos
metalúrgicos do ABC serviu de referência para diversas outras categorias
de trabalhadores, que tomaram consciência de seus direitos e da
importância da greve como arma na negociação com os empregadores. Sob
o comando de lideranças que não desvinculavam a luta sindical da luta
política, o denominado "novo sindicalismo" mostrou, na prática, que a lei
anti-greve e outros decretos da legislação trabalhista da ditadura estavam
superados.
No ano seguinte o movimento grevista se ampliou, atingindo centenas de
milhares de trabalhadores metalúrgicos, inicialmente no ABC e depois em
outras regiões do país - todos protestando contra o arrocho salarial.
Desta vez o governo jogou duro e decretou a intervenção nos sindicatos
mais combativos, destituindo seus principais dirigentes entre eles Lula.
Com os sindicatos cercados por forte aparato policial, Lula e seus
companheiros se abrigaram no interior da igreja matriz de São Bernardo,
palco de novas lutas sociais. "Quando olho para estes santos, penso que
talvez sejam os únicos do mundo que aspiraram gás lacrimogêneo",
disse frei Betto ao retornar àquele templo. (559)
Os grevistas do ABC também contaram com o apoio de vários artistas da
música brasileira, entre os quais Elis Regina, Chico Buarque, Milton
Nascimento e também o ex-torneiro mecânico Agnaldo Timóteo, que foi
pessoalmente a São Bernardo solidarizar-se com seus ex-companheiros de
profissão. "Eu fui lá e dei minha solidariedade aos metalúrgicos,
porque sei como é a vida deles, as dificuldades que passam", afirma
(560)
Na época, centenas de operários foram demitidos e por todo o Brasil tropas
da polícia e do exército reprimiram os grevistas, resultando em vários deles
presos, feridos e até mortos. Na greve dos metalúrgicos em Belo Horizonte,
por exemplo, um sindicalista relatou que "a polícia jogava os cavalos em
cima dos operários e os agredia com espadas. Um companheiro teve os três
dedos cortados e levou um tiro no pé. Um outro levou uma mordida de
cavalo na cabeça. Tudo isso culminou na morte do companheiro Guido
Leão dos Santos, que, quando fugia da cavalaria, caiu debaixo de um
ônibus". (561)
Ao comentar a repressão policial que resultou na morte do grevista
mineiro, um dos militantes do movimento operário de São Paulo, o
metalúrgico Santo Dias da Silva afirmou que ele próprio também poderia
vir a ser uma das vítimas porque "o homem morre aí na luta do dia-a-dia,
como morreu esse operário em Belo Horizonte, naquela batalha lá
reivindicando salário". (562) De fato, meses depois foi a vez de Santo Dias
da Silva ser assassinado pela Polícia Militar de São Paulo quando
participava com outros companheiros de um piquete na porta da fábrica
Sylvana, no bairro de Santo Amaro. O episódio ganhou grande repercussão
e provocou uma passeata de protesto de dez mil pessoas pelas ruas da
capital paulista. "Quase nada estará certo entre nós enquanto houver dois
pesos e duas medidas: uma para o patrão, outra para o empregado",
advertia o cardeal dom Paulo Evaristo Arns. (563)
Enterrado como um herói da classe operária, Santo Dias mereceu missa na
Catedral da Sé e faixas com as frases "O governo mata de fome, a polícia
mata a bala" e "Companheiro, você será vingado"
Num rápido discurso na escadaria da Igreja, Lula lamentou que o
metalúrgico morto "depois de trabalhar 18 anos não pôde deixar nada para
sua família, nem mesmo uma pequena casa onde eles pudessem morar".
(564) Sem demonstrar desânimo, a viúva Ana Maria do Carmo e Silva
afirmava ao lado dos filhos que "a gente tem que lutar até a morte. Santo
derramou seu sangue, mas não há vitória sem sangue, e muitos e muitos
mais vão morrer. Quero também que ninguém esmoreça, porque a luta
continua. Eu continuarei lutando até o fim!" (565)
O mito da democracia racial, consagrado no Brasil a partir da década de 30
com a publicação de Casa-grande & senzala, de Gilberto Freyre, (566)
encontra forte respaldo entre os ideólogos do regime político implantado no
país em 1964. E particularmente durante o AI-5, o governo militar, através
de suas agências de propaganda política - inicialmente com a Aerp e depois
com a ARP (567) - produziu diversas peças publicitárias enfatizando este
mito do congraçamento racial e da solidariedade entre as raças
conformadoras do país. (568)
Naquele mesmo período, entretanto, algumas gravações "cafonas" vão
sinalizar exatamente o contrário. Ou seja, apontam a existência do
preconceito e da exclusão na sociedade brasileira. E, acredito, sem que os
seus autores tivessem a intenção de formular um contra-discurso à
ideologia oficial.
Mas isso aparece, por exemplo, nas baladas “Mano africano” (Luiz
Prestes), “Eu queria ser negro” (Marcus Pitter), “Estou amando uma
garota de cor” (Claudio Fontana) e “Não importa a sua cor”, gravação de
Balthazar que enfatiza o grau de dificuldade de um rapaz branco em
assumir a relação amorosa com uma moça negra em um país que se
acredita pautado pela democracia racial: "Não ligue se algures amigos
comentarem / se alguns poucos se afastarem / não quero ver você mais
tão tristonha / fugindo do amor e com vergonha / de passear comigo
abraçada..."
A cantora Janaína enfatiza a mesma problemática agora do ponto de vista
feminino - numa canção que denuncia o velho estereótipo escravocrata
segundo o qual mulher branca é para casar e mulher negra, apenas um
objeto de prazer: "O meu pêlo queimado lhe incomoda / não é artigo de
moda / que você usa para se mostrar...”
Mas foi a música intitulada “Se Jesus fosse um homem de cor” ,
composição de Claudio Fontana, aquela que mais incomodou e provocou a
mobilização dos aparelhos censórios. Ao contrário de sua outra popular
composição, “O homem de Nazareth” , na qual Claudio Fontana apenas
exalta a figura de Cristo, em “Se Jesus fosse um homem de cor” ele
relaciona a temática religiosa com a questão racial e com isso denuncia a
extensão do preconceito em nossa sociedade. Com um refrão em forma de
pergunta, a canção convidava corações e mentes à reflexão no início dos
anos 70:
...TALVEZ NINGUÉM TENHA PASSADO O QUE PASSEI
E OS MEUS PROBLEMAS SÃO DE COR
EU QUIS PINTAR MEU CÉU DE AZUL, DE AMOR E PAZ
E O MUNDO INTEIRO NÃO DEIXOU
A MINHA FÉ NÃO MODIFICA NEM SE ABALA
MAS EU NÃO POSSO ME CALAR
MINHA PERGUNTA NECESSITA UMA RESPOSTA
SERÁ QUE ALGUÉM ME PODE DAR?
VOCÊ TERIA POR ELE ESSE MESMO AMOR
SE JESUS FOSSE UM HOMEM DE COR?
Esta "pergunta que não pode calar" foi formulada pelo compositor Claudio
Fontana em 1973, durante uma visita a Angola, país que naquele ano era
ainda colônia portuguesa. Na época o cantor Nelson Ned fazia muito
sucesso no continente africano, principalmente em Angola e Moçambique,
e em suas excursões a esses países, o seu empresário Genival Melo levava
também outros artistas que ele tinha sob contrato, caso do cantor Claudio
Fontana.
Foi exatamente numa dessas viagens à África que lhe veio a idéia de
relacionar a questão racial à temática religiosa.
"Quando eu cheguei na portaria de um hotel em Luanda, testemunhei
uma cena que me marcou muito: vi um cidadão branco, português,
agredir de uma forma terrível um negro que estava ali carregando as
malas dos hóspedes. E aquilo me chocou muito na hora. Aí eu fui para
o quarto do hotel e fiquei pensando: 'Meu Deus! Se o Cristo que eu
amo, e que toda a humanidade ama, não fosse branco e de olhos azuis,
como nos é pintado e mostrado, será que as pessoas o amariam da
mesma forma? Será que esse cidadão que eu vi agora bater nesse
negro, teria por Cristo algum amor se Ele fosse um homem de cor?'
Enfim, a coisa foi se avolumando e eu saí de Luanda com esse tema na
cabeça. Mais tarde, ao retornar ao Brasil, num daqueles momentos
com vontade de compor, peguei o violão e fiz Se Jesus fosse um homem
de cor."
É evidente que, embora a idéia para esta composição lhe tenha surgido após
testemunhar este episódio na África, o compositor Claudio Fontana - que se
projetou como "o perigo moreno da juventude" - já vislumbrava a questão
racial no cotidiano da sociedade brasileira, tema que ele havia abordado na
balada “Estou amando uma garota de cor”. Ou seja, quando ele agora diz
"talvez ninguém tenha passado o que eu passei / e os meus problemas são
de cor", não está se referindo apenas ao episódio que envolveu um negro
africano e um colonizador português em Luanda.
Lançada em 1973, numa gravação do cantor Tony Tornado, e depois pelo
próprio Claudio Fontana, a composição incomodou as autoridades
eclesiásticas e militares da época, ainda mais porque, durante as
apresentações da música em programas de TV, no momento do refrão
"você teria por ele esse mesmo amor / se Jesus fosse um homem de cor?" , Tony Tornado erguia o pulso, repetindo o gesto dos militantes do
movimento Black-power nos Estados Unidos. Resultado: o cantor e o
compositor foram intimados a depor na Polícia Federal. Claudio Fontana
recorda:
"Eles chamaram a gente lá na Federal e pediram para eu explicar o
que eu queria dizer com aquilo; se eu e o Tony Tornado estávamos
querendo fazer algum movimento de protesto no Brasil e tal. 'Vocês
querem jogar os negros contra os brancos?' Evidentemente,
respondemos que não, senão seríamos presos ali mesmo."
Apesar deste clima repressivo e inquisitório, alguns outros artistas
populares também resistiam. Em pleno 1970, ano de euforia coletiva com o
tri-campeonato mundial de futebol, de otimismo com o "Milagre
Econômico" e de veiculação de várias mensagens ufanistas, o cantor
Agnaldo Timóteo - que estava no auge do sucesso - tornou-se porta-voz de
uma canção intitulada “Vergonha de mim”, composição de Sílvio César
que aborda o problema dos meninos de rua, questão social que até aquele
momento ainda não havia sensibilizado a mídia nem a maioria da
população. Na primeira parte da letra da música feita especialmente para
Agnaldo Timóteo gravar - , o cantor recorda a sua infância de menino
pobre do interior:
QUANDO EU ERA CRIANÇA
EU TINHA VERGONHA DE NÃO TER NADA
DE SER TÃO POBRE
EU TINHA, SIM, VERGONHA DE MIM...
Na segunda estrofe aparece o cantor sorrindo e orgulhoso por ter
finalmente vencido na vida e ser o dito cidadão respeitável:
...MAS EU CRESCI E VENCI
E HOJE ESTOU AQUI E SOU O QUE SOU
EU TENHO ORGULHO ENFIM
EU TENHO ORGULHO, SIM
EU TENHO ORGULHO DE MIM...
Na terceira estrofe dá-se uma reviravolta no tema e o artista confessa agora
sentir-se incomodado por ter conseguido tudo o que quis em um país cujo
quadro social exibe crianças morando nas ruas:
...MAS OUTRO DIA EU VI UM MENINO
TÃO POBREZINHO E TÃO SOZINHO
QUE EU TIVE VERGONHA DE TER TANTA COISA
E DE SER FELIZ TANTO ASSIM
E TIVE RAIVA DE MIM, DE NÃO LUTAR
DE NÃO PODER FAZER O MUNDO MUDAR...
E, no refrão, a ênfase no sentimento de culpa ao descobrir-se uma pessoa
individualista, limitada, alienada, distante dos problemas sociais:
...EU SÓ SEI CANTAR, EU SÓ SEI CANTAR
MAIS NADA SEI, MAIS NADA SOU ENFIM
EU TIVE VERGONHA DE MIM
EU TIVE, SIM, VERGONHA DE MIM.
De certa forma, já está presente nesta canção gravada por Agnaldo Timóteo
em 1970 o sentido crítico daquilo que Raul Seixas mais tarde chamaria de
“ouro de tolo”, o deslumbramento com o dinheiro e o sucesso em um país
marcado pelo abismo que separa os poucos ricos dos muitos pobres.
Este mesmo olhar atento às contradições do nosso "belo" quadro social
aparecia na obra do compositor Isaías Souza, parceiro do cantor Evaldo
Braga em sucessos como “Tudo fizeram para me derrotar”, e autor da
também citada “Não importa sua cor”. A sua composição “Garoto de
rua” - talvez uma referência à trajetória do próprio Evaldo Braga - fala
mais uma vez daqueles que viviam (e vivem) suas infâncias no espaço
público das grandes cidades brasileiras. "Um garoto de rua me pediu um
trocado / para comprar um pão / lamentou sua fome / e não me disse
seu nome...” Lançada em março de 1976, a canção tornou-se um dos
destaques do LP do cantor Balthazar, que em tom dramático, pergunta: "E
de quem será filho o garoto que estende a mão? / provocando tumultos
/ endereços ocultos / precisando de educação..."
No início dos anos 90, quando o drama dos meninos de rua finalmente
sensibilizou a classe média e alcançou os meios de comunicação do país, a
revista Veja publicou a reportagem de capa "Os filhos da miséria e do
crime", informando ao leitor que "os primeiros sinais de que havia algo de
errado na infância brasileira foram captados há 13 anos (1978), através da
arte. Chico Buarque de Hollanda cantava os versos seus e de Francis Hime
em “Pivete” : “No sinal fechado / ele vende chicletes / capricha na
flanela / e se chama Pelé...” (570)
Ao dar o pioneirismo na abordagem do tema à gravação de Chico Buarque,
a matéria da revista Veja demonstra de que maneira está cristalizada uma
memória da música popular que credita a abordagem da temática social
naquele período apenas aos artistas da MPB Entretanto como aqui
procuramos revelar, diversos cantores/compositores "cafonas" estavam
também atentos à realidade social brasileira e, em alguns temas, se
antecedendo aos seus colegas de formação universitária, até mesmo porque
a percepção desta realidade para eles era mais imediata A denúncia do
autoritarismo - e entendendo autoritarismo não apenas como uma forma de
governo, mas como uma prática que perpassa toda a nossa relação social não foi privilégio naquela época apenas de nomes como Chico Buarque,
João Bosco ou Gonzaguinha; pontuou também o trabalho de cantores
populares como Paulo Sérgio, Waldik Soriano, Odair José, Fernando
Mendes, Dom & Ravel e outros menos conhecidos do público de classe
média.
Não se quer dizer que haja nos discos desses artistas refutação ou combate
aberto à ordem social, mas sim mensagens dotadas de uma lógica que se
transforma em atos de resistência, considerando-se as dificuldades de
recusar ou mesmo questionar o projeto político-social conduzido pelos
militares no período do AI-5. Nunca é demais lembrar que aquele foi um
tempo de ênfase no patriotismo e de acentuada crença no mito da união de
todas as classes em prol de um objetivo comum.
Entretanto, ao descrever a dura realidade dos pobres, dos negros, dos
meninos de rua, das empregadas domésticas, dos imigrantes nordestinos,
dos camponeses sem terra, dos analfabetos, dos homossexuais e das
prostitutas, os artistas "cafonas" revelavam de uma maneira simples e clara
- e para um grande público - aquilo que os ideólogos do regime procuravam
dissimular ou esconder; ou seja, as desgraças do cotidiano e o caráter
conflitivo, autoritário e excludente da sociedade brasileira.
NOTAS BIBLIOGRÁFICAS
(SEGUINDO A NUMERAÇÃO SEQUENCIAL DO CAPÍTULO):
540. "Os cafonas também são geniais" - Folha de S. Paulo, 12-11-1983.
541. Decreto promulgado em 13 de maio de 1888. A chamada Lei do
Ventre Livre, promulgada em 1871, na prática, em nada favoreceu o negro
porque em seu Artigo 1º dizia que os filhos menores da mulher escrava
"ficarão em poder e sob a autoridade dos senhores de suas mães, os quais
terão obrigação de criá-los e tratá-los até a idade de oito anos completos.
Chegando o filho da escrava a esta idade, o senhor da mãe terá a opção, ou
de receber do estado a indenização de 60$000, ou de utilizar-se dos
serviços do menor até a idade de 21 anos completos". Apud Francisco de
Assis Silva. História do Brasil: Colônia, Império, República. São Paulo:
Moderna, 1992, p. 182.
542. Versos de “Meu velho pai”. Para outras indicações ver índice de
canções citadas em Fontes e bibliografia.
543. "O sucesso transformou a simples empregadinha em cantora famosa:
Carmen Silva" - O Fluminense, 23-6-1976.
544. O compacto simples com “Adeus solidão” aparece em 1° lugar em
vendagem no mês de maio de 1970, no Rio. Fonte: Ibope - Pesquisa sobre
vendas de discos - Acervo do Arquivo Edgar Leuenroth / Unicamp.
545. Versos da canção “Empregada doméstica”. Ver índice de canções
citadas em Fontes e bibliografia.
546. Aprovada pelo Decreto-lei n° 5.452, de 1° de maio de 1943, a CLT
reunia todas as resoluções tomadas pelo governo de Getúlio Vargas na área
trabalhista: salário mínimo, carteira profissional, limitação da jornada de
trabalho, férias, normas de segurança e regulamentação da Justiça do
Trabalho.
547. No rótulo do disco aparece o nome de Andreia Teixeira - pseudônimo
utilizado
pelo locutor Luiz Aguiar, a quem Odair José ofereceu a parceria na
composição. Para outras indicações ver índice de canções citadas em
Fontes e bibliografia.
548. Carlos Lemos. História da casa brasileira. São Paulo: Contexto, 1989,
p. 79
549. Carlos Lemos. Cozinhas, etc. São Paulo: Perspectiva, 1978, p. 160. O
autor também destaca que, oficialmente, o quarto de empregada sempre
inexistiu nos projetos de apartamentos, porque isto exigiria área compatível
com os mínimos legais. Nos processos de aprovação de plantas, o pequeno
cômodo reservado às domésticas aparece sob o eufemismo de "despensa,
depósito ou rouparia". Op. cit. p. 161.
550. Programa A vida, o talento e a arte - Rádio Globo, 25-7-1998.
551. "O cantor do Dia da Empregada foi abandonado pelas domésticas” Jornal da Tarde, 8-11-1973.
552. "O Odair José é o terror das empregadas / distribuindo beijos /
arranjando namoradas..." Para outras indicações ver índice de canções
citadas em Fontes e bibliografia.
553. Versos de Lá lá lá em três atos. Ver índice de canções citadas em
Fontes e bibliografia.
554. Roberto DaMatta. “Carnavais, malandros e heróis: para uma
sociologia do dilema brasileiro”. 6° ed. Rio de Janeiro: Rocco, 1997, p 176.
555. 'Á primeira grande greve" - Veja, 24-5-1978
556. Apud Nosso século (1960-1980), op. cit, p. 285.
557. “A vida nas fábricas" - Veja, 27-9-1978.
558. "Greve, greve, greves - Movimento, 22-5-1978.
559. "Sarau político com a fina flor da MPB^N”O Globo, 2-5-2002.
560. "Timóteo não tem medo de Sinatra" - Folha de S. Paulo, 5-1-1980.
561. "Lições da Greve - ”suplemento da revista Tribuna Operária, Outubro
de 1980.
562. Depoimento incluído no LP "Santo Dias" - Associação Instrutora da
Juventude Feminina / Instituto Sedes Sapientiae E 1982.
563. Apud Nosso século (1960-1980), op. cit, p. 286.
564. "Companheiro, você está presente" – Movimento, 5 a 11-11-1979.
565. Depoimento incluído no LP "Santo Dias" - Associação Instrutora da
Juventude Feminina / Instituto Sedes Sapientiae 17 1982.
566. Registre-se que em nenhum momento de seu livro Gilberto Freyre
utiliza a expressão "democracia racial", mas o enfoque que ele dá ao tema
das relações raciais no Brasil permitiu a propagação deste mito. Ver
Gilberto Freyre Casa-grande & senzala: formação da família brasileira sob
o regime da economia patriarcal”. 31ª ed. Rio de Janeiro: Record, 1996.
567. Aerp (Assessoria Especial de Relacões Públicas), oficializada no
governo Costa e Silva em Janeiro de 1968; ARP (Assessoria de Relações
Públicas), oficializada no governo Geisel em Janeiro de 1976.
568. Ver Carlos Fico, op. cit., especialmente o capítulo “A propaganda da
ditaduras.
569. Verso de Pára com isso. Ver índice de canções citadas em Fontes e
bibliografia.
570. "Os filhos da miséria e do crime" - Veja, 29-5-1991.
TRADIÇÃO E MODERNIDADE
(VERTENTES INTERPRETATIVAS DA MÚSICA POPULAR
BRASILEIRA)
“É assim, de repente eles descobrem que o cara é gênio. Como
descobriram que o Luiz Gonzaga e o Lupicínio eram gênios. Tudo é
uma questão de tempo.”
(Luiz Ayrão)
A música de Waldik Soriano ou de Nelson Ned não costuma ser objeto de
análise ou debate, a não ser excepcionalmente, em conversa de botequim.
Em determinados lugares, se alguém a evoca, não vem o reforço, o apoio
dos outros. A tendência é ainda considerá-la sob a conotação anedótica,
como se a produção musical desta geração de cantores/compositores não
tivesse nada a ver com a nossa realidade social.
Por que o público de classe média universitário associa o período do AI-5
apenas à obra de artistas como Chico Buarque, Caetano Veloso ou
Gonzaguinha? E por que este público geralmente só conhece e canta as
canções do repertório da MPB?
Em estudo clássico sobre a memória, o francês Maurice Halbwachs destaca
a relação direta existente entre as recordações de cada pessoa e as
experiências vividas no grupo social, desenvolvendo um conceito de
memória que, para além do fenômeno individual e psicológico, a privilegia
como um fenômeno coletivo e social. "Nossas lembranças permanecem
coletivas, e elas nos são lembradas pelos outros, mesmo que se trate de
acontecimentos nos quais só nós estivemos envolvidos, e com objetos
que só nós vimos. É porque, na realidade, nunca estamos sós." (571)
Isto significa que as recordações de cada indivíduo dependem de seu
relacionamento com a classe social, com os grupos de convívio e os grupos
de referência peculiares a este indivíduo. É o universo no qual nós estamos
inseridos que determina o desempenho da nossa memória e fornece as
categorias com as quais cada um de nós elabora o seu pensamento.
E é esta comunhão de valores que compartilhamos com os membros do
grupo social e o entendimento comum dos símbolos e dos significados que
definem o caráter social das memórias individuais. Portanto, se evocamos
determinadas canções - e esquecemos outras - , é porque o nosso grupo
social, a situação presente, nos fazem recordar ou esquecer.
Mas, como também destaca Halbwachs, em uma mesma sociedade coexiste
uma pluralidade de memórias coletivas, construídas por diferentes grupos
sociais e instituições, com diferentes formas de representar o passado. E
este reconhecimento do caráter potencialmente problemático da memória
tem levado outros autores da área de ciências sociais a ressaltar a
importância de memórias "subterrâneas" (emergentes/instituintes), que,
como parte integrante das culturas dominadas, se opõem ao caráter
opressor e uniformizados da memória coletiva nacional (oficial/instituída)).
(572)
Le Goff destaca que a memória coletiva não é somente uma conquista, é
também um instrumento e um objeto de poder, configurando-se um dos
mais sólidos alicerces da dominação Da mesma forma que os fatos são
conservados e comemorados, diz o autor, "os esquecimentos e os silêncios
da História são reveladores deste mecanismo de manipulação da memória
coletiva". (573) Assim, o ato de esquecer não está relacionado apenas ao
aspecto voluntário, estratégico e harmônico; pode ser também fruto de
conflitos e divergências, de manipulação exercida por grupos dominantes
sobre dominados, ou de vencedores frente a vencidos.
Esta reflexão acerca da pluralidade de memórias e os conflitos e tensões
que as permeiam nos remete ao conceito referido por Michel Pollak de
"enquadramento da memória". (574) O autor afirma que a luta pela
construção de uma versão única e homogênea do passado levaria os setores
dominantes de um grupo social a promover este trabalho de
"enquadramento de memória", que é realizado parcialmente por
historiadores, sociólogos, jornalistas.
E é este trabalho de "enquadramento" de uma memória coletiva em um
nível mais global o que permite que a história de uma determinada
sociedade passe a ser freqüentemente oficializada e contada a partir da
perspectiva dos vencedores e líderes, deixando a memória das minorias ou
vencidos relegada ao esquecimento. Como também observa Olga Brites da
Silva, "a possibilidade de construção de uma versão unívoca do passado
repousa no poder de decidir sobre o que será ou não preservado enquanto
registro à disposição da posteridade". (575)
No campo específico da música popular brasileira - tema deste livro - a
memória é também um objeto de disputa e da mesma forma apresenta os
seus "enquadradores" (críticos, pesquisadores, historiadores, musicólogos).
Trata-se então de analisar agora que grupos sociais eles representam e de
que critérios se valem para determinar quais as canções ou compositores
que devem ser esquecidos ou preservados na memória nacional.
No Brasil, após a eclosão da bossa nova, no fim dos anos 50 - quando
efetivamente a canção popular começou a ser objeto de debate e análise por
parte das elites culturais - , desenvolveram-se duas principais vertentes
interpretativas da nossa música: a vertente da "tradição” e a vertente da
"modernidade". Dualismo que não surgiu nesta época e nem se restringe ao
tema da produção musical. Desde pelo menos 1922, a tensão entre
“tradicional" e "moderno" ocupa o centro do debate político-cultural no
pais, refletindo o dilema de uma elite em busca de sua identidade nacional.
(576)
No caso específico da música popular a primeira vertente, a da "tradição",
tem na obra do critico e historiador José Ramos Tinhorão a sua principal
fonte. Publicado em 1966, seu livro Música popular: um tema em debate é
um marco na bibliografia da canção brasileira. Foi o primeiro trabalho de
pesquisa e análise sociológico sobre transformação, ascensão e decadência
de alguns dos principais gêneros de nossa música urbana.
Incorporando o ideário nacionalista estabelecido por Mário de Andrade na
década de 20, (577) o livro de Tinhorão, que reúne estudos e alguns artigos
publicados anteriormente em jornais e revistas, era direcionado ao público
de classe média universitário que naquele momento ouvia, produzia e
debatia a música popular. E este debate estava presente nas canções (
Influência do jazz, de Carlos Lyra); nos palcos (show 1º Tempo: 5 x 0, de
Miéle e Bôscoli); (578) na imprensa (Revista Civilização Brasileira); e nas
ruas (passeata em São Paulo contra a guitarra elétrica).
Em meio a este clima radical e participante e em que diversos intérpretes e
compositores assimilavam informações e influências da música norteamericana, Tinhorão fazia a defesa intransigente de uma música popular
brasileira "autêntica", "pura", "tradicional" e "legítima", contra a
"linguagem universal" pretendida pelos adeptos da bossa nova, que,
segundo ele, nada mais era do que uma "pasta sonora, mole e informe".
(579)
Para o autor não poderia haver o desenvolvimento de uma música
popular"autêntica" através da aquisição de elementos "universais" via
compositores da classe média. O que haveria, neste caso, seria a
"descaracterização" e "alienação" da cultura popular.
Produzido num período em que o determinismo econômico imperava na
maioria das análises marxistas, o livro de Tinhorão traz uma interpretação
da cultura fundada numa certa leitura do materialismo histórico, com que
estabelece relações de determinação entre os níveis econômico e cultural da
sociedade
Assim, diz ele, dentro do mesmo espírito que levara o presidente Juscelino
Kubitschek a saudar com um discurso de afirmação nacionalista o
lançamento dos primeiros modelos de automóveis JK no Brasil, "os rapazes
dos apartamentos de Copacabana, cansados da importação pura e simples
da música norte-americana, resolveram também montar um novo tipo de
samba, à base dos procedimentos da música clássica e do jazz", surgindo a
partir daí a bossa nova. (580)
E já na apresentação do livro Tinhorão justifica a sua preferência pelo
samba tradicional "com o fato de no presente instante do
desenvolvimento brasileiro, a cultura das camadas mais baixas
representar valores permanentes e históricos (o latifúndio não foi
ainda abolido), enquanto a cultura da classe média reflete valores
transitórios e alienados (o desenvolvimento industrial ainda se submete
às implicações do capital estrangeiro)."
Assim, conclui ele, "enquanto o que se chama de evolução no campo da
cultura não representar uma alteração da estrutura sócio-econômica
das camadas populares, o autor continuará a considerar autênticas as
formas mais atrasadas (os sambas quadrados de Nelson Cavaquinho,
por exemplo) e não autênticas as formas mais adiantadas (as
requintadas harmonizações do samba de bossa nova)." (581)
Como simbolos de "tradição" e "autenticidade" em nossa música, além de
Nelson Cavaquinho, ficaram cristalizados nomes como os de Ismael Silva,
Noel Rosa, Wilson Batista, Cartola, Carlos Cachaça, Zé Kéti, Nelson
Sargento, Clementina de Jesus e compositores que, mesmo sendo de uma
outra geração, estão identificados a esta linhagem - Paulinho da Viola,
Elton Medeiros, João Nogueira, Martinho da Vila e outros. Flexibilizandose um pouco o conceito gramscimiano, eu subdefiniria esta vertente
interpretativa de “nacional-popular".
A segunda vertente, a da "modernidade", foi sistematizada num trabalho do
poeta e ensaísta Augusto de Campos. Publicado em março de 1968, seu
livro Balanço da bossa (que também inclui textos de Brasil Rocha Brito,
Júlio Medaglia e Gilberto Mendes) é outro marco na bibliografia da canção
brasileira e uma contundente resposta às posições dos adeptos da vertente
da "tradição". E já no texto introdutório Augusto de Campos revela estar
consciente de que Balanço da bossa "é um livro parcial, de partido,
polêmico. Contra. Definitivamente contra a Tradicional Família Musical.
Contra o nacionalismo-nacionalóide em música. O nacionalismo em escala
regional ou hemisférica, sempre alienante. Por uma música nacional
universal." (582)
Reunindo estudos e artigos publicados anteriormente em alguns
suplementos literários de jornais de São Paulo, o livro apresenta o que seria
a primeira análise técnica sobre a bossa nova (escrita pelo musicólogo
Brasil Rocha Brito) e o primeiro aval teórico para a obra de Caetano
Veloso e Gilberto Gil (escrito pelo próprio Augusto de Campos) e isto
quando os dois compositores eram ainda pouco conhecidos e o
tropicalismo ainda não havia se definido como um movimento. (583)
Disposto a combater o que ele ironicamente tachou de "TFM" (Tradicional
Família Musical), Augusto de Campos propunha a atualização da música
popular brasileira, no sentido da abertura experimental em busca de novos
sons e novas letras.
Ou seja, uma música popular "moderna", aberta às influencias das
principais conquistas da música internacional (notadamente do jazz e do
rock inglês) e às conquistas da poesia concreta que o próprio Augusto e o
seu irmão Haroldo de Campos ajudaram a consolidar a partir de 1956. E
para quem recorria à máxima de Mário de Andrade, segundo a qual "o
artista que procura se expressar na arte universal corre o risco de, de
repente, se surpreender fazendo arte de outra nacionalidade que não a sua",
Augusto de Campos respondia: "E daí? Desde quando a arte tem carteira de
identidade? Qual a nacionalidade de Stravinski: russo, francês, americano
ou simplesmente humano?" (584)
O curioso é que nesta sua batalha a favor do "som universal”, o poeta
concretista também recorria a Marx e Engels, citando uma passagem do
Manifesto do Partido Comunista na qual os pensadores alemães anteviam
que "em lugar do antigo isolamento de regiões e nações que se bastavam a
si próprias, desenvolve-se um intercâmbio universal, uma universal
interdependência das nações. E isto tanto na produção material quanto na
intelectual. As criações intelectuais de uma nação tornam-se propriedade
comum de todas A estreiteza e o exclusivismo nacionais tornam-se cada
vez mais impossíveis; das inúmeras literaturas nacionais e locais, nasce
uma literatura universal". (585)
Em coerência com a ideologia nacional-desenvolvimentista, que ainda
envolvia diversos intelectuais brasileiros naquele período, em Balanço da
bossa Augusto de Campos defendia uma música popular adequada à
realidade de um país que – acreditava-se - estaria ultrapassando o
subdesenvolvimento para ingressar numa nova era de país desenvolvido.
Assim, não são poucas as vezes em que ao longo do livro aparecem
palavras
como "avanço", "evolução", “revolução", “renovação", “vanguarda", em
oposição a "atraso", "tradicional", "conservadores", "sectários",
"saudosistas", "puritanos" e "xenófobos”.
E respondendo quase que diretamente a José Ramos Tinhorão, Augusto de
Campos proclamava que "é preciso acabar com essa mentalidade derrotista,
segundo a qual um país subdesenvolvido só pode produzir arte
subdesenvolvida. A produção artística brasileira (...) já adquiriu
maturidade, a partir de 1922, e universalidade desde 1956. Não tem que
temer coisa alguma. Pode e deve caminhar livremente. E para tanto não se
lhe há de negar nenhum dos recursos da tecnologia moderna dos países
mais desenvolvidos: instrumentos elétricos, montagens, arranjos, novas
sonoridades". (586)
Como símbolos de "modernidade" e "evolução" em nossa música popular
ficaram cristalizados nomes como os de Dick Farney, Lúcio Alves, Johnny
Alf, Tom Jobim, João Gilberto, e a geração que surgiu da influencia direta
da bossa nova - Caetano Veloso, Gilberto Gil, Edu Lobo, Elis Regina, Gal
Costa e outros. Para contrapor à primeira vertente, eu sub-definiria esta
segunda de "universal-popular".
É importante frisar que, passado o momento de radicalismo inicial, estas
duas vertentes interpretativas necessariamente não se opõem entre si; na
maioria das vezes se complementam. Talvez com as exceções de José
Ramos Tinhorão, que permanece contrário a tudo que pareça bossa nova, e
do jornalista e escritor Ruy Castro, autor do livro Chega de saudade, que
parece contrário a tudo o que não seja bossa nova, (587) todos os demais
críticos, pesquisadores e ensaístas da nossa música popular (incluindo
Augusto de Campos) vão exaltar tanto os cantores/compositores
identificados com a "tradição como os identificados com a "modernidade".
Afinal, a chamada "linha evolutiva da música popular brasileira" expressão criada por Caetano Veloso em 1966 (588) e adotada por Augusto
de Campos e por alguns críticos de música popular até os dias de hoje acaba dando organicidade ao processo, pois apresenta os compositores
"modernos" como aqueles que deram um "passo à frente", mas continuam
herdeiros naturais de uma "tradição" da nossa música popular, que remonta
aos sambas de Ismael Silva, Noel Rosa, Wilson Batista e outros bambas.
E será ancorado nestas duas vertentes interpretativas - a da "tradição" e a da
"modernidade" - que, a partir de meados dos anos 60, o público de classe
média e formação universitária passará a eleger os cantores/ compositores
de sua preferência.
Uma parte deste público, mais identificado com a linha “nacional-popular",
preferirá ouvir Paulinho da Viola, Zé Kéti, Cartola, Nelson Cavaquinho,
Clementina de Jesus, e menos Caetano Veloso, Gilberto Gil e Gal Costa;
uma outra parte, mais identificada com o que eu defini de "universalpopular", preferirá ouvir Caetano Veloso, Gilberto Gil, Gal Costa, Milton
Nascimento, e menos Zé Kéti, Cartola, Nelson Cavaquinho e Clementina
de Jesus. Mas são exatamente todos estes artistas - os da "tradição" e os da
"modernidade"”- que hoje formam aquilo que o público de classe média
qualifica de MPB.
A análise específica da preferência musical do público de classe média e
formação universitária é fundamental porque é deste segmento da
população que saem os críticos, pesquisadores, historiadores, musicólogos,
enfim, os "enquadradores" da memória da nossa música popular.
E isto ajuda a explicar por que a quase totalidade do que existe publicado
sobre música popular brasileira biografias, ensaios, estudos acadêmicos e
coleções em fascículos se refere a gêneros e compositores identificados ou
com a "tradição" ou com a "modernidade". Assim, temos biografias de
sambistas como Sinhô, Wilson Batista, Geraldo Pereira, Paulo da Portela;
análises sobre a produção musical de Ismael Silva, Noel Rosa, Dorival
Caymmi; estudos e ensaios sobre a obra de Caetano Veloso, Gilberto Gil,
João Gilberto, Johnny Alf; e teses e livros sobre o tropicalismo, a bossa
nova e, principalmente, o samba: samba-enredo, samba malandro, samba
de breque, samba de roda, samba-canção, samba-exaltação, origem do
samba, mistério do samba, decadência do samba etc. etc (589)
Enquanto isso, toda uma outra vasta produção musical popular que não está
identificada nem à "tradição" nem à "modernidade" encontra serias
dificuldades para obter reconhecimento da crítica ou espaço na
historiografia. (590) E é o que acontece com esta geração de
cantores/compositores considerados "cafonas". Afinal, nomes como Waldik
Soriano, Nelson Ned ou Agnaldo Timóteo estão muito longe de qualquer
coisa do que se considera de "raiz" e "tradição" ou "modernidade" e
"evolução".
Ao contrário, são geralmente associados a "atraso", "subdesenvolvimento"
e "pobreza". Na visão positivista de "linha evolutiva da música popular",
estes artistas estariam muitos rolos atrás daqueles identificados à
"modernidade".
E mesmo aqueles compositores que seguem a linha do samba, como Benito
di Paula e Luiz Ayrão, têm a sua produção musical tachada de "sambãojóia", expressão surgida em 1970 para designar um samba considerado
descaracterizado, aboletado, distante das chamadas autênticas fontes
populares. Portanto, fora da "tradição" ou da "modernidade", não há
salvação. Compreende-se assim porque esta geração de
cantores/compositores tem sido relegada na maioria das "memórias
enquadradas" da nossa música popular e não tenha tido - até agora
nenhuma voz na historiografia. (591)
E isto se evidencia mais uma vez nas mais recentes publicações sobre a
música popular. O livro MPB: A história de um século, do pesquisador
Ricardo Cravo Albin, apresenta diversos personagens da história da música
popular brasileira, tudo ilustrado através de 400 fotos distribuídas década a
década: dos pioneiros do fim do século XIX - Xisto Bahia, Nozinho e
Patápio Silva - até a miscelânea do fim do século XX - Daniela Mercury,
Skank, Gabriel o Pensador - , passando pelos cantores do rádio (década de
40), pela bossa nova (década de 50), pela jovem guarda e o tropicalismo
(década de 60). Porém, ao focalizar os anos 70, o autor destaca apenas os
cantores/compositores identificados à MPB: Ivan Lins, João Bosco,
Gonzaguinha, Djavan, Luiz Melodia, Ednardo, César Costa Filho, Fausto
Nilo e outros.
É evidente que um trabalho que procura abranger um século de música
popular dificilmente seria completo e o autor adverte sobre isso ao falar dos
"riscos das súmulas, ou mesmo das abreviações de uma longa história".
(592)
Entretanto, o que se quer destacar aqui é que a exclusão da geração de
cantores/compositores "cafonas" é recorrente na produção historiográfica
da nossa música popular, e o livro de Ricardo Cravo Albin é apenas mais
um exemplo.
Afinal, ao longo de suas mais de 400 páginas ilustradas com 400 fotos não
há nada referente a nenhum dos artistas "cafonas" da década de 70. Nem
mesmo Agnaldo Timóteo, que permanece há três décadas em evidência;
nem Nelson Ned, apesar do sucesso nacional e internacional; nem Benito di
Paula, Luiz Ayrão ou Wando, autores de diversas canções de sucesso.
Melhor sorte no livro tiveram os ainda pouco conhecidos cantores Tomaz
Lima e Titane, que aparecem com destaque em fotos e texto; o primeiro
porque, segundo Cravo Albin, "emprega a música como terapia, adaptando
milenares mantras indianos em arranjos de bossa nova", e a segunda porque
foi "considerada por intelectuais como Ziraldo e Lélia Coelho Frota a
cantora do ano 2000". (593)
Outra obra que ressalta apenas artistas identificados à "tradição" ou à
"modernidade" é a coleção História do samba, conjunto de 40 fascículos e
CDs lançado pela Editora Globo em 1997. Coordenada pelo artista plástico
Elifas Andreato, a coleção traz a gravação de 480 sambas: dos ancestrais
João da Baiana, Donga e Sinhô, abarcando Miguel Gustavo, Caetano
Veloso, Gilberto Gil e chegando até aos anos 80/90 com composições de
Dicró, Bezerra da Silva e Zeca Pagodinho.
E a proposta da obra, segundo o texto de apresentação, é contar a história
do samba "desde suas origens mais remotas, de suas mais hipotéticas ou
estranhas ramificações, passando por todo o processo de crescimento e
sedimentação, até o fastígio de fim-de-século, em que, em vez de pelo
telefone, o samba agora se comunica até pela internet". (594)
Mas, apesar da abrangência alegada, entre os 480 sambas incluídos nos 40
CDs da coleção não há nenhum da autoria de Benito di Paula, Wando ou
Luiz Ayrão.
O repertório desta geração de artistas também não aparece na coleção
MPB/Compositores, conjunto de 40 fascículos e CDs lançado em 1996 pela
mesma Editora Globo. Embora focalize nomes como Pixinguinha e Wilson
Batista, a coleção privilegia compositores surgidos a partir do período da
bossa nova, chegando até os anos 80, com Cazuza.
E de certa forma isto está justificado na apresentação da obra, onde se diz
que até meados deste século a nossa produção musical é marcada por
"ensaios, talentos que foram espalhando sementes no imaginário do povo e
dos compositores (...) Foi apenas no final da década de 50 que todas estas
sementes se fundiram, se misturaram e deram origem à nova música
popular no Brasil” (595) Mas, como já disse anteriormente, neste "popular"
não estão incluídos nomes como Waldik Soriano, Odair José ou Nelson
Ned.
O livro 500 Anos da Música Popular Brasileira, publicação do MIS
lançada em 2001, apresenta texto e farto material iconográfico que
focalizariam “os aspectos mais relevantes de nosso cancioneiro, das danças
de Diogo Dias e seus companheiros com os índios de Porto Seguro, no
apogeu das Luzes do século XV, aos sucessos do 'mangue-beat' do
crepúsculo do século XX” (596) E de fato, ali há fotos e nomes de
representantes da velha guarda, da jovem guarda, da tropicália, da bossa
nova, da geração dos festivais, dos roqueiros do Circo Voador, do funk, do
punk, do rap, da axé-music e até do gênero heavy-metal com a banda
Sepultura. Já sobre a geração "cafona" dos anos 70, nenhuma foto,
nenhuma palavra.
Deixando de lado a produção específica sobre música popular e partindo
para a análise dos livros didáticos de História que a cada ano contribuem
para a formação de milhões de jovens brasileiros e cada vez mais utilizam a
letra da canção popular como documento histórico - constata-se que é total
a exclusão do repertório "cafona".
Em um livro de história bastante utilizado por estudantes do primeiro grau,
Brasil vivo, de Chico Alencar, Marcus Ribeiro e Claudius Ceccon, na parte
referente ao regime militar, estão citados trechos de 19 canções: todas de
compositores identificados à MPB (Milton Nascimento, João Bosco, Tom
Zé, Francis Hime e outros). O mesmo se verifica no livro Nova história
critica do Brasil: 500 anos de história mal-contada, obra dirigida a
estudantes do segundo grau. No capítulo referente aos anos 70 aparecem os
nomes de 21 cantores/compositores: de Chico Buarque a Hermeto Pascoal,
passando por Tom Zé, Wagner Tiso e Egberto Gismonti; ou seja, mais uma
vez, apenas artistas que naquela época eram consumidos por um público
intelectualizado e de classe média.
O que nos leva à constatação de que, pelo menos no que diz respeito à
música popular brasileira, a história continua sendo mal contada.
Além desses dois livros citados, consultei outros 15 livros didáticos de
História, publicados entre 1992 e 1999, e em todos eles, nas páginas
referentes ao período do regime militar, só aparecem músicas e músicos
identificados à MPB: Chico Buarque, Geraldo Vandré e Caetano Veloso,
os mais freqüentemente citados. É como se cantores populares como
Waldik Soriano e canções de sucesso como Eu não sou cachorro, não e
Pare de tomar a pílua não tivessem existido na história do Brasil.
Portanto, no campo específico da música popular brasileira, estamos diante
de uma produção historiográfica autoritária e excludente. O que os
"enquadradores" da memória da nossa música popular consideram como
parte da "história" ou representativo do período do regime militar é
somente aquela produção musical que atingia o público de classe média e
nível universitário. Aquilo que apenas as camadas mais pobres da
população brasileira ouviam ou admiravam não é considerado digno de
registro ou pesquisa.
É importante destacar que este processo de silenciamento e esquecimento
não atinge apenas esta geração de Odair José e Waldik Soriano. Outras
gerações de artistas populares não identificados à "tradição" ou à
"modernidade" também estão excluídas. Veja-se o caso, por exemplo, do
cantor mineiro Altemar Dutra.
Intérprete de canções como O trovador, Sentimental demais e Brigas (da
dupla Jair Amorim e Evaldo Gouveia), o cantor despontou com grande
sucesso em 1963, vendendo milhares de discos e alcançando mais tarde
grande popularidade em vários outros países da América Latina.
Entretanto, durante sua carreira artística, Altemar Dutra jamais conseguiu
opinião favorável da crítica, e hoje, passados mais de 20 anos de sua morte,
ainda não obteve na produção historiográfica um reconhecimento à altura
do talento que milhões de brasileiros lhe atribuem. E isto acontece porque
Altemar Dutra se destacou basicamente como intérprete de bolero, gênero
que no Brasil não é identificado nem com a "tradição" nem com a
"modernidade".
É o caso também do cantor e compositor baiano Anísio Silva, um dos
maiores fenômenos de popularidade da história da música brasileira e que
apareceu no cenário artístico em 1957, com a idade de 37 anos,
colecionando a partir daí uma série de sucessos nacionais: Sonhando
contigo, Interesseira, Quero beijar-te as mãos, Alguém me disse e várias
outras que naquela época giravam nas vitrolas sem parar.
O curioso é que para a surpresa dos críticos - que sempre o desprezaram Anísio Silva contava entre os seus milhões de admiradores com um de
ouvido insuspeito: o cantor João Gilberto. Porém, a partir de meados dos
anos 60, Anísio Silva foi perdendo espaço para outros ídolos do rádio e
hoje, mais de uma década após sua morte, é um nome praticamente riscado
da produção historiográfica da nossa música popular. Assim como Altemar
Dutra, Anisio Silva também se destacou como intérprete de bolero. Nem
"tradição", nem "modernidade".
Melhor sorte tiveram cantoras de samba como Clementina de Jesus e Aracy
de Almeida, que estão identificadas à "tradição" e por isso são hoje
exaltadas e decantadas em diversas publicações da música popular
brasileira. Como também o são os cantores Dick Farney e Lúcio Alves,
identificados à "modernidade". Já Nelson Gonçalves enfrentou fortes
resistências.
Em 1966, quando o Museu da Imagem e do Som do Rio de Janeiro iniciou
a gravação de uma série de depoimentos para a posteridade com artistas da
música popular, a ênfase recaiu sobre personagens da velha guarda ligados
à "tradição": João da Baiana, Donga, Pixinguinha, Heitor dos Prazeres,
Ataulfo Alves, o que não impediu que um jovem compositor chamado
Chico Buarque, na época com 22 anos, também fosse convidado a falar.
Nelson Gonçalves, àquela altura já com quase 50 anos de idade e mais de
25 de carreira, considerava-se também pronto para relatar a sua história de
vida ao museu. Entretanto, os integrantes do Conselho Nacional de Música
Popular do MIS - que elegiam os nomes para depor (599) - julgaram que a
produção musical do cantor não justificava a gravação de seu depoimento
naquela instituição. Este fato magoou profundamente Nelson Gonçalves, a
tal ponto que, anos mais tarde, quando o MIS finalmente se convenceu de
que o cantor merecia ser ouvido, desta vez foi o próprio Nelson que se
recusou a falar, morrendo em 1998 sem deixar o seu depoimento gravado.
Este episódio envolvendo Nelson Gonçalves e o MIS é mais um exemplo
da dificuldade que um artista popular não totalmente identificado à
"tradição" ou à "modernidade" encontra para ser "enquadrado" na memória
da música popular brasileira. Afinal, o intérprete de A volta do boêmio
nunca esteve identificado à "modernidade", pois, ao contrário de artistas
como Dick Farney e Johnny Alf, ele nunca revelou influências do jazz;
como também nunca esteve totalmente identificado à "tradição", visto que
os seus sambas-canções, em grande parte de autoria do compositor Adelino
Moreira, eram considerados abolerados, descaracterizados ou simplesmente
de mau gosto.
Outra geração de artistas que se defronta com dificuldade semelhante à de
Nelson Gonçalves é aquela formada pelos chamados cantores do rádio:
Cauby Peixoto, Francisco Carlos, Ivon Curi, Nora Ney, Zezé Gonzaga,
Ellen de Lima, Jorge Goulart, Rosita Gonzalez, Adelaide Chiozzo,
Marlene, Emilinha Borba e outros que entre os anos de 1945 e 1958 tinham
como espaço nobre o programa de César de Alencar, nas tardes de sábado
na Rádio Nacional.
Situado exatamente entre o tempo da "tradição" (o pré-45) e o tempo da
"modernidade" (o pós-58), o mundo musical da era do rádio "é visto como
o reino do improviso, do descompromisso profissional, do baixo nível
artístico, da futilidade. De certa forma, não se atribui qualquer
importância musical a essa época". (600)
Mas isto mais uma vez se explica porque a quase totalidade desses artistas
também não está devidamente identificada nem à "tradição" nem à
"modernidade". Duas exceções são o cantor Jorge Goulart - aquele que
mais facilmente consegue ser identificado à "tradição" - e a cantora Nora
Ney - a mais próxima da "modernidade" - e que talvez por isso mesmo
tenham sido contemplados com um livro-tributo do historiador Alcir
Lenharo, que justamente procura enfatizar "o papel inovador exercido
por Nora na evolução do canto e na própria relação com o gosto pela
música popular".(602)
Já os cantores Cauby Peixoto e Ângela Maria, embora ainda desfrutem
maior popularidade que os seus colegas da época, enfrentam maior rejeição
dos "enquadradores" e, assim como Nelson Gonçalves, também não foram
convidados pelo Conselho Nacional de Música Popular do MIS a registrar
os seus depoimentos para a posteridade.(603)
Ao concluir esta análise, citarei apenas mais alguns artistas que, ao
contrário dos "cantores do rádio", encontram muito mais facilidades para
serem "enquadrados" na memória da nossa música popular. É o caso do
cantor Moreira da Silva, famoso intérprete de samba de breque e do
discurso da malandragem (tema que fascina diversos intelectuais
brasileiros), (604) logo identificado à "tradição"; como também a cantora
Nara Leão, considerada musa da bossa nova, facilmente identificada à
"modernidade".(605)
E quando um artista consegue ser identificado ao mesmo tempo tanto a
uma vertente quanto a outra, torna-se "unanimidade nacional". É o caso de
Chico Buarque, que é admirado pelos adeptos da vertente da "tradição" que vêem em sua obra uma continuação dos sambas dos tempos de Noel
Rosa - e também pelos adeptos da vertente da "modernidade" que
enxergam inovações harmônicas (606) e, principalmente, elaboradas
construções poéticas na obra do compositor. (607)
Assim, compreende-se o resultado de uma pesquisa que a revista IstoÉ
realizou com seus leitores para a escolha de "o músico brasileiro do século
XX". De uma lista de 30 nomes apresentados pela revista - Chico Buarque,
Ary Barroso, Caetano Veloso, Pixinguinha, Roberto Carlos, Tom Jobim,
Noel Rosa, entre outros - , o seu público leitor, que possui um perfil de
classe média e nível universitário, escolheu exatamente Chico Buarque,
eleito por 76,48% dos votos. (608)
Mas esta escolha do autor de Carolina como o "músico do século" se
explica porque, entre todos os artistas da música popular brasileira, ele é
aquele que melhor sintetiza em sua obra os anseios dos adeptos da
"tradição" e os da "modernidade".
Em segundo lugar na pesquisa ficou o compositor Tom Jobim, que embora
possua um reconhecimento internacional muitíssimo maior que o de Chico
Buarque, é um nome no Brasil muito mais identificado com a
"modernidade" e que ao longo de sua carreira sofreu duras críticas dos
adeptos da vertente da "tradição", notadamente de José Ramos Tinhorão,
que dizia: "O Tom Jobim é importante para a sua cultura de classe
média. Para a música popular não tem importância nenhuma." (609)
Ao contrario de Chico Buarque, Tom Jobim não une - segundo ouvidos
mais radicais - "tradição" e "modernidade".
Observo que esta concepção da nossa música converteu-se numa quase
obsessão entre os principais críticos musicais do pais.
Os trabalhos mais elogiados são justamente aqueles nos quais eles
identificam uma dessas duas vertentes ou, melhor ainda, aqueles que, na
percepção dos críticos, apresentam a mistura entre "tradição" e
"modernidade", entre "passado" e “presente". A jornalista Ana Maria
Bahiana, por exemplo, faz uma análise bastante elogiosa da trajetória
musical de Moraes Moreira, qualificando-o de "compositor engenhoso"
porque, segundo ela, o artista baiano foi "capaz de trabalhar e misturar as
formas mais tradicionais de música brasileira - samba, seresta, trevo
principalmente - e dar a tudo uma urgência e uma veemência pessoais,
modernas". (610)
Pelo mesmo motivo o critico Tárik de Souza louva o trabalho realizado
pelo pernambucano Chico Science e sua Nação Zumbi, destacando que
com aquela mistura de maracatu/hip hop, rock/baião, "a modernidade, em
mais um ciclo vital, acertava seu relógio com a tradição".
E Nelson Motta saúda Max de Castro como uma grande revelação do ano
2000 porque "a música dele tem um pé na melhor tradição brasileira - nos
afro-sambas de Baden Powell, em Chico Buarque, em Jorge Benjor e um
pé no futuro, na música de hoje, em todas as possibilidades que a eletrônica
dá de mistura de signos, drum'n’bass, hip hop, em todas estas
variantes".(612)
Constata-se, por outro lado, que a força desta vertente interpretativa
aparece não apenas no trabalho dos críticos, pesquisadores e divulgadores
de histórias da nossa música popular. Reflete-se também na produção
discográfica de uma nova geração de artistas da MPB, que teve sua
memória musical formada sob a influência destes mesmos criticos,
pesquisadores e divulgadores.
Um outro exemplo ilustrativo disto é o da cantora carioca Marisa Monte.
Filha da alta classe média, ex-estudante de canto lírico, Marisa despontou
para o sucesso no fim dos anos 80 com o epíteto de "eclética",
notabilizando-se por releituras de antigas canções do repertório popular.
Em entrevistas à imprensa a cantora afirmou que seu conhecimento do
passado musical brasileiro se deve muito ao conjunto de discos e fascículos
publicados pela Editora Abril nos anos 70, a coleção História da música
popular brasileira - obra que, como já vimos, ajudou a consolidar entre o
público de classe média esta concepção da nossa música sob o foco da
"tradição" e da "modernidade".
Pois bem: nos cinco CDs até agora gravados por Marisa Monte, além de
composições da própria cantora e algumas outras do repertório
internacional, só foram incluídas regravações de temas identificados
àquelas duas vertentes interpretativas. (613)
Ali ouvem-se, por exemplo, o samba de Bubu da Portela, Esta melodia, e o
rock dos Mutantes, Ando meio desligado; composições de Candeia,
Monsueto, Cartola, Nelson Cavaquinho, Pixinguinha (todos da "tradição")
e de Caetano Veloso, Gilberto Gil, Jorge Benjor, Tim Maia, Lulu Santos,
Arnaldo Antunes ("modernidade"). Já todo um outro vasto segmento do
repertório musical brasileiro que não se enquadra nesta duas vertentes, não
mereceu, até agora, espaço nos discos da "eclética" Marisa Monte. (614)
Em um artigo publicado na Folha de S Paulo, o jornalista Ruy Castro
constatava, surpreso, que ninguém se atreve a classificar de "cafona" a letra
de Rosa, música de Pixinguinha, que Orlando Silva cantava (e Marisa
Monte regravou): "Tu és divina e graciosa / estátua majestosa / do amor
por Deus esculturada / e formada com ardor / da alma da mais linda
flor..." (615)
Ora, a explicação para isto é simples: Pixinguinha, o autor, e Orlando Silva,
o intérprete, estão identificados à "tradição" da nossa música popular. É
isto que dá a Rosa um valor cultural que provoca suspiros nos ouvintes, em
vez de gargalhadas mesmo que a letra desta valsa seja similar a outras
gravadas por Waldik Soriano ou Agnaldo Timóteo.
Pense-se, por exemplo, em três famosas cantoras brasileiras: Clara Nunes,
Elis Regina e Ângela Maria. Qual delas é freqüentemente associada à
cafonice? Com certeza, a intérprete de Babalu, porque ao contrário de
Clara Nunes, Ângela Maria não canta samba de raiz e nem exalta figuras
afro-brasileiras como Oxum e Iemanjá; e diferentemente de Elis, nunca
revelou influências do jazz ou da bossa nova.
E nisto reside todo o mistério do "brega” ou "cafona": recebem estes
adjetivos aqueles artistas e aquela produção musical que o público de
classe média não identifica, ou encontra dificuldade de identificar, à
"tradição" ou à "modernidade". Quanto mais longe dessas duas vertentes,
mais perto do "brega", e vice-versa.
Creio que esta explicação acaba de uma vez por todas com aquela máxima
de que brega é uma coisa que todo mundo reconhece quando ouve mas não
sabe definir o que é. Até porque, algumas tentativas de definição não me
pareceram muito satisfatórios.
Numa entrevista, perguntaram a Caetano Veloso: "Qual é a sua definição
de brega?". O cantor respondeu que "brega é uma palavra há muito
tempo utilizada na Bahia para designar a zona de prostituição e que,
mais tarde, passou a adjetivar "toda música considerada de mau gosto
ou sentimental ou meramente muito popular e não de elite. Terminou
virando um conceito mais geral de música não elitizada". (616)
Explicação semelhante foi dada por Tárik de Souza a uma pergunta
formulada pela cantora Ângela Maria: "O que é brega?". O critico
respondeu que "é um tipo de música feito para vendagem imediata,
dentro de um padrão de emoção exagerada, simplificada, mais fácil de
ser assimilada". (617) Com poucas palavras, Marisa Monte também
respondeu sobre o tema. "O brega é um conceito muito confuso. Para
mim, brega é aquilo que se faz com a intenção de ganhar dinheiro."
As explicações de Marisa, Tárik e Caetano são pertinentes mas não dão
conta do fenômeno porque, insisto: há muita produção musical com
aqueles mesmos predicados que, no entanto, não é considerada "brega".
Apelo comercial, por exemplo, aparecem nos sambas de Bezerra da Silva,
Zeca Pagodinho e Martinho da Vila, três grandes vendedores de discos que
também fazem uma música simplificada, fácil de ser assimilada, não
elitizada como, aliás, sempre fizeram os autores de antigos sambas e
marchinhas carnavalesCO.
Ao que me consta não há qualquer complexidade ou riqueza harmônica em
temas como Ala-La-Ô, Mamãe eu quero, Chiquita Bacana e várias outras
hoje consideradas "clássicos" da música popular brasileira. E forte carga
sentimental não é privilégio de Nelson Ned ou Odair José; aparece também
no trabalho de Herivelto Martins, Nora Ney, Dalva de Oliveira e até
mesmo no de Elizete Cardoso, que acentua a alta dramaticidade de versos
como os de Vinicius de Moraes em sua pré-bossa nova Serenata do adeus:
"Ah!, mulher, estrela a refulgir / parte, mas antes de partir / rasga o
meu coração! / crava as garras no meu peito em dor / e esvai em
sangue todo o amor..."
Resumindo e simplificando: "brega" ou "cafona" é toda aquela produção
musical que o público de classe média não identifica à "tradição" ou a
"modernidade".
Digo "público de classe média" porque os segmentos populares, o chamado
povão, não têm maiores preocupações com raízes ou vanguardas. Por isso
eles admiram tanto um Agnaldo Timóteo como um Jackson do Pandeiro,
cantor e compositor paraibano que não é considerado "brega", porque no
próprio nome dele encontram-se ecos daquelas duas vertentes: Jackson
"modernidade", Pandeiro "tradição". Aliás, nenhum artista da música
brasileira que traz em seu nome instrumentos como pandeiro, viola e
cavaquinho é rotulado de "brega" ou "cafona".
O fato é que o cantor ou compositor deste país que não tiver a sua obra
musical identificada à "tradição" ou à "modernidade" está condenado ao
desprezo da crítica e ao esquecimento por parte dos "enquadradores" da
memória da nossa música popular. E é o que acontece hoje com artistas
como Agnaldo Timóteo, Nelson Ned, Waldik Soriano, Odair José e vários
outros que não se enquadram em nenhuma daquelas duas vertentes - vão
todos para o ralo comum do "brega" ou do "cafona".
Mas de que maneira esta geração de cantores/compositores analisa este
fato? "Não existe música brega; o que existe são analistas
preconceituosos", define Agnaldo Timóteo. (619)
E como eles percebem a ausência dos seus nomes na produção
historiográfica da música popular brasileira?
Perguntado se algum representante do Museu da Imagem e do Som já o
teria convidado alguma vez para gravar o seu depoimento naquela
instituição, Timóteo respondeu:
"Nunca, eles não me dão nem confiança. Nem a mim nem ao Cauby,
Benito di Paula, Nilton Cesar, Nelson Ned, Moacir Franco, Waldik
Soriano, Reginaldo Rossi. Aqueles idiotas pensam que nós não
existimos E nós existimos."
Mas este fato deixa Timóteo chateado?
"Que nada! Cada vez que eu abro a boca, onde quer que eu esteja, se
estiverem dez pessoas, vibram; se estiverem dez mil pessoas, também
vibram. Eu sou um monstro de cantor. Eu sei o que represento. Ao
abrir a boca, o meu inimigo fica desmoralizado. Um cara como eu,
gordo, feio, cabelo duro, preto, se não fosse um monstro de cantor, já
teria desaparecido. Eu sei o que sou. Não estou nem aí pra eles. E não
adianta: o tempo vai se encarregar de deixar essa discriminação
sepultada."
A idéia do tempo como senhor da razão também marca o depoimento do
cantor e compositor Luiz Ayrão. Ao analisar o porque de nomes como o
seu e o de Benito di Paula não serem destacados nas diversas publicações
sobre a história do samba e da música popular brasileira, ele diz:
"Hoje não somos reconhecidos, mas daqui a pouco seremos chamados
de deuses. Isso é questão de tempo. Antigamente, em determinados
locais, se você falasse em Lupicínio Rodrigues, você era chutado para
fora. Se você falasse em Luiz Gonzaga, o cara morria de rir na sua
cara. Se você falasse em Noel Rosa, sabe o que que eles diziam? 'Porra,
cara, isso é compositor de mesa de botequim.' De Lupicínio diziam que
era um crioulo que fazia música pra puta, e Luiz Gonzaga, com aquele
chapéu engraçado, era um cangaceiro que cantava baião. Sabe de
quem que o pessoal gostava? De João Gilberto, Antônio Carlos Jobim,
Vinicius de Moraes. Os mais velhos um pouco gostavam de Dick
Farney, de Frank Sinatra. Era assim."
Luiz Ayrão estaria então convencido de que a sua produção musical poderá
conquistar também um lugar na historiografia da nossa música popular?
"Claro" afirma ele "tem muita coisa boa na minha obra, tem músicas
boas, tem poesia. Eu sei que hoje o meu nome não está em nenhuma
dessas coleções de história da música popular brasileira. Mas um dia
vai estar. Um dia eles vão dizer 'porra, está faltando alguém... tem
mais alguém?' 'Tem o Luiz Ayrão' 'Ih, é um gênio esse cara.' É assim,
de repente eles descobrem que o cara é gênio. Como descobriram que o
Luiz Gonzaga e o Lupicinio eram gênios. Tudo é uma questão de
tempo."
Os exemplos citados por Luiz Ayrão efetivamente estão corretos: estes três
nomes da música popular brasileira - Noel Rosas Lupicínio Rodrigues e
Luiz Gonzaga - só obtiveram reconhecimento da crítica e das elites
culturais do país quando o período de maior sucesso popular de cada um
deles já havia terminado.
Reconhecimento que Noel Rosa - pelo fato de morrer muito jovem - não
chegou a testemunhar. Luiz Gonzaga, por exemplo, já um ídolo popular
nos anos 40, só começou a obter algum prestígio a partir do fim da década
de 60, quando jovens compositores como Caetano Veloso e Gilberto Gil
passaram a destacar a importância que a obra do rei do baião teve para a
formação musical de cada um deles.
Numa entrevista concedida ao poeta Augusto de Campos em 1968,
Gilberto Gil afirmava: "O primeiro fenômeno musical que deixou lastro
muito grande em mim foi Luiz Gonzaga. (...) Ele é tão emocionante
como Caymmi e João Gilberto." (620) Prestígio que se acentuou com a
gravação que, do exílio em Londres, Caetano Veloso fez da famosa Asa
branca, enfatizando o parentesco analógico entre a dor do retirante
nordestino e a dos exilados brasileiros naquele momento: "Hoje longe
muitas léguas / numa triste solidão / espero a chuva cair de novo / pra
mim vortá pro meu sertão." Mas como o próprio Caetano Veloso
destaca, "havia gente que, na época de Luiz Gonzaga, considerava o
baião uma espécie de sujeira". (621)
Da mesma forma, as composições de Lupicínio Rodrigues só deixaram o
espaço restrito dos cabarés a partir de 1971, quando durante a gravação de
um especial de televisão, o cantor João Gilberto, para surpresa de todos,
apresentou em versão bossa nova um antigo samba-canção lançado pelo
cantor Francisco Alves: "Quem há de dizer / que quem você está vendo /
naquela mesa bebendo / é o meu querido amor..." (622) A partir daí, estava
dado o sinal verde para que outros intérpretes da MPB também cantassem o
que eram consideradas "as horrendas letras" do velho Lupi. (623)
É depois desta releitura de João Gilberto que surgem as regravações de
Felicidade (com Caetano Veloso), Quem há de dizer (Maria Bethania),
Volta (Cal Costa), Nervos de aço (Paulinho da Viola), Esses moços, pobres
moços (Gilberto Gil), Maria Rosa e Cadeira vazia (ambas com Elis
Regina). Todas versões apresentadas entre 1972 e 1974.
Mas além de Lupicínio Rodrigues e Luiz Gonzaga, outros exemplos podem
ser citados: Cartola e Nelson Cavaquinho só foram considerados gênios da
nossa música quando já eram quase sexagenários. Em meados da década de
50, nos chamados "anos dourados", Cartola lavava carros nas ruas da Zona
Sul do Rio de Janeiro. E o compositor Geraldo Pereira, hoje considerado
pelos críticos um grande revolucionário do samba, morreu pobre e
esquecido em 1955.
Foi só a partir de meados dos anos 60 que a vertente da "tradição", que vai
recuperar grande parte desta geração de sambistas, se estruturou em
espaços como os do restaurante Zicartola e o do Museu da Imagem e do
Som, ambos no Rio de Janeiro.(624)
O que hoje é chamado de a "era de ouro da música popular brasileira" - o
período compreendido entre 1930 e 1945 - não foi percebido assim por
seus contemporâneos.
É uma construção posterior, feita pelo crítico de música Lúcio Rangel no
fim dos anos 50, e que os demais críticos e historiadores a partir daí
adotaram. Para se ter uma idéia, entre 1930 e 1945 não havia nos grandes
jornais brasileiros nenhuma seção focalizando o lançamento de discos de
música popular. As hoje celebradas gravações de Noel Rosa, Orlando
Silva, Carmen Miranda, Mário Reis, Francisco Alves e Silvio Caldas não
eram consideradas dignas de serem sequer comentadas pelos jornalistas da
grande imprensa do nosso pais. Que naturalmente utilizavam páginas e
mais páginas analisando os lançamentos de música clássica, as grandes
operetas e as peças de canto lírico. (625)
Portanto, os depoimentos de Luiz Ayrão e Agnaldo Timóteo chamam
atenção para um traço recorrente na história da nossa sociedade: a de que a
passagem de uma obra musical de uma categoria inferior para outra
superior é, muitas vezes, uma questão de tempo. É o que aconteceu
também nos Estados Unidos com o jazz, que inicialmente restrito aos
bordéis e guetos negros, alcançou mais tarde as platéias brancas dos
grandes palcos de teatros, sendo hoje saudado por muitos críticos como a
melhor música do século XX.
E é o que se verifica também em outras manifestações artísticas. Como
observa Teixeira Coelho, "com que horror foram recebidas as primeiras
imagens de uma garrafa de Coca-Cola ou de um posto de gasolina
pintadas onde antes figuravam apenas os 'grandes temas' da arte. Foi
fácil esquecer, então, que se Rembrandt pintava um grupo de
comerciantes ao redor de uma mesa num ambiente claro-escuro era
porque aquela era a realidade de sua época cuja contrapartida atual
será, por exemplo, um grupo de mecânicos e frentistas reunidos num
posto de gasolina ao redor de um caminhão Ford". (626)
É claro que não devemos cair num relativismo determinista e achar
que toda obra de arte e todo artista que não têm reconhecimento no
presente terão no futuro. Entretanto, são vários os aspectos que
determinam a valorização ou a revalorização de um determinado
trabalho artístico - e estes aspectos muitas vezes são exteriores à obra
em si. Um exemplo mais recente no campo da música popular é o da
canção Debaixo dos caracóis dos seus cabelos, de Roberto e Erasmo
Carlos.
Lançada no LP de Roberto Carlos em dezembro de 1971, Debaixo dos
caracóis dos seus cabelos fez grande sucesso na época, mas, como
tantas outras músicas do cantor, não continuou fazendo parte do seu
repertório. Era mais ou menos como Quando as crianças saírem de
férias, uma antiga gravação de Roberto Carlos que grande parte do
público conhece, mas não revela maior vontade de ouvi-la outra vez em
shows ou em especiais de televisão.
Porém, isto começa a mudar a partir de 1992, quando durante a temporada
do show Circulado, no Canecão, Caetano Veloso rememorava fatos
relacionados à sua prisão e exílio e, para a surpresa do público, antes de
cantar Debaixo dos caracóis dos seus cabelos confidenciava:
"Nós acreditávamos, e eu acredito ainda hoje, que a ditadura militar
tenha sido um gesto saído de regiões profundas do ser do Brasil,
alguma coisa que dizia muito sobre nosso ser intimo de brasileiros.
Vocês não podem imaginar como minha dor era multiplicada por essa
certeza. No entanto, uma vez no exílio, chegavam até nós, saídas de
regiões não menos profundas do ser do Brasil, vozes que nos tentavam
dizer que isso não era tudo. Essa canção, por exemplo, que eu vou
cantar agora, foi composta para mim por essa razão: "Um dia a areia
branca / seus pés irão tocar / e vai molhar seus cabelos / a água azul do
mar / janelas e portas vão se abrir / pra ver você chegar..."
A partir desta revelação, o antigo sucesso Debaixo dos caracóis dos seus
cabelos foi revestido de outro significado e o seu destino começou a
mudar. A tal ponto que hoje, mesmo aquelas pessoas que não se declaram
fãs de Roberto Carlos costumam dizer "mas eu gosto daquela música que
ele fez para o Caetano".
Portanto, a canção que estava praticamente esquecida, que era apenas mais
um daqueles antigos hits de Roberto Carlos, de repente, torna-se bonita,
outros cantores começam a gravá-la e, em 1998, é saudada no caderno de
cultura do jornal O Globo como "um clássico do cancioneiro popular".
(628)
E, inclusive, contribuiu para que a produção musical de Roberto e Erasmo
Carlos alcançasse maior aceitação por parte de determinados setores que
ainda manifestavam certa resistência em relação à dupla. Afinal, só em
1997 os dois artistas receberam o prêmio Shell de Música Brasileira, troféu
instituído em 1980 e anualmente oferecido a um compositor popular pelo
conjunto de sua obra. Antes de Roberto e Erasmo Carlos, já haviam sido
premiados Martinho da Vila, Edu Lobo, Paulinho da Violão Glberto Gil,
Braguinha e outros nomes mais facilmente identificados à "tradição" ou à
"modernidade".
Então, neste sentido, os argumentos de Agnaldo Timóteo e Luiz Ayrão
encontram certa base no processo social. A avaliação da obra de um
compositor de música popular no Brasil pode mudar e tem mudado com o
tempo. E esta esperança também aparece, a seguir, no depoimento de
Benito di Paula. Ao comentar a ausência de seu nome nas diversas
publicações sobre a história da música popular brasileira, e na do samba em
particular, ele diz:
"Mas será que os caras conhecem o meu trabalho? A questão está aí,
né? Às vezes eles não conhecem, coitados. Eles nunca me perguntaram
nada. Mas eu não tenho nada contra. Desde o momento que está se
falando da música brasileira, da nossa cultura, acho tudo muito bom.
Se incluírem o meu nome, está ótimo; se não incluírem, também está
legal. Não tenho a menor preocupação com isso. Eu estou totalmente
feliz por ter gravado os meus discos e por ter a minha carreira. Então
está legal, acho que não devo me preocupar com eles, nem eles comigo.
Aí fica zero a zero. Um a zero pra eles, nunca. Sempre zero a zero, que
é um placar salutar. Ninguém ainda ganhou esse jogo. Continuaremos
jogando."
Mas será que o jogo ainda não teria mesmo terminado? "Não" - enfatiza o
cantor - "o jogo não termina nunca. E nem o samba." Os depoimentos
seguintes vão abordar outros aspectos. Dom, por exemplo, vai mais uma
vez evocar o boicote ideológico para explicar a ausência da dupla Dom &
Ravel no acervo de depoimentos do Museu da Imagem e do Som:
"Eu penso que é porque eles têm interesse em que o nosso nome e a
nossa imagem fiquem esquecidos na memória nacional. São pessoas
que querem que sejam lembradas aquelas personalidades que eles
acham que são heróis, que lutaram por uma mudança no processo
político brasileiro. Nós, como somos tidos por eles como artistas que
ajudaram a manter o retrocesso, não merecemos ser preservados na
memória. É uma coisa mais ou menos assim, tipo castigo."
Nelson Ned é um nome que transcende a fronteira verde-amarela. Depois
de Carmen Miranda, ele é o cantor brasileiro que alcançou maior sucesso
popular fora do país - e sem a "política de boa vizinhança" que favoreceu a
carreira da Pequena Notável no exterior. (629)
Além do enorme público latino dos Estados Unidos, a voz de Nelson Ned
conquistou audiência em cerca de 30 países e três continentes: África,
Europa e toda a América, do sul ao norte, do Chile ao Canadá, passando
pelas Antilhas Holandesas, República Dominicana, México, Colômbia,
Venezuela e, principalmente, Cuba, por sinal, único país americano que
ainda não assistiu a Nelson Ned ao vivo. "Nunca vou cantar lá, enquanto
Cuba for comunista. Sou pela democracia", diz ele,(630) que, no entanto,
não se negou a fazer shows na Argentina do ditador Rafael Videla, no
Panamá do truculento Omar Torrijos, no Haiti do sanguinário Baby Doc, na
Espanha do moribundo Francisco Franco e até na África do Sul sob o
regime do apartheid. Aliás, se Nelson Ned só aceitasse realmente cantar em
palcos da democracia, nos anos 70 ele não faria show nem mesmo em Ubá,
sua cidade natal.
A projeção internacional de Nelson Ned começou em Setembro de 1970,
quando ele participou do I Festival da Canção Latino-Americana de Nova
York. Transmitidas ao vivo pelo canal 47, a voz e a imagem do cantor
brasileiro causaram repercussão além de levar o prêmio de melhor
intérprete, ele logo recebeu uma proposta de contraio da gravadora United
Artists.
Com gravações em espanhol num estúdio de Nova York, em março de
1971 era lançado nos Estados Unidos e em vários países hispanos o seu
primeiro LP internacional, "Canción Popular". O sucesso foi rápido e
intenso. "Aí a mulherada começou a dar em cima de mim, comecei a
ganhar muitos dólares, a ter limusines, Lincolns Continentais e suítes
presidenciais à minha disposição - coisas, até aquele momento,
inimagináveis para ruim", lembra Nelson Ned. (631)
Em fevereiro de 1973 ele se apresentou na concha acústica da La Media
Torta, em Bogotá, para uma multidão de aproximadamente 80 mil pessoas,
quebrando o recorde de público que ali pertencia a Carlos Gardel.
"Loucura por Nelson Ned! Sensacional êxito!", alardeou a manchete do
jornal El Espectador, de Bogotá. (632)
Grande público também acorreu a shows de Nelson Ned na Cidade do
México (Estádio Netza), em Lisboa (Pavilhão dos Esportes), em Madri
(Gran-Teatro Real), em Joanesburgo (City Hall), em Los Angeles (Shirine
Auditorium) e em Nova York (Madison Square Garden). Mas o ápice desta
sua performance internacional se deu no dia 16 Junho de 1974, quando
Nelson Ned lotou, por duas vezes, o famoso Carnegie Hall de Nova York palco de artistas como Frank Sinatra, Ella Fitzgerald, Ray Charles, e
também da bossa nova de João Gilberto e Tom Jobim, que ali se
apresentaram pela primeira vez ao público norte-americano em novembro
de 1962.
Aliás, o anúncio de que Nelson Ned faria apresentações no mesmo espaço
outrora ocupado pela bossa nova não foi bem recebido por alguns setores
da Zona Sul carioca: "Tremei sacrossantos cultores da sagrada bossa
nova. Dia 16 de Junho, vosso venerado templo será ocupado por nada
menos, nada mais que por Nelson Ned, emérito bolerista e baladista
lacrimoso", lastimava um colunista do Jornal do Brasil.(633)
Mas se a apresentação dos bossa-novistas no Carnegie Hall gerou
controvérsias (segundo alguns foi um sucesso, segundo outros, um
fracasso), (634), o duplo show de Nelson Ned não deu margem a dúvidas,
conforme relato da revista Veja: "Com fama ou sem fama, com talento
ou sem talento, quem quiser dar um concerto no Carnegie Hall de
Nova York - talvez o auditório de maior prestígio do mundo - só
precisa pagar o preço e alugá-lo. Mas enchê-lo duas vezes no mesmo
dia, com ingresso a 5 e 8 dólares, e ser aplaudido de pé por um público
delirante, bem, isso é outra história. Pois foi exatamente o que
conseguiu realizar, na semana passada, o cantor brasileiro Nelson
Ned." (635)
Naquele mesmo ano a revista Records World de Nova York lhe concedia o
disco de ouro pela grande vendagem nos Estados Unidos da balada Happy
Birthday, my Darling (versão de Parabéns, Parabéns Querida), principal
faixa do LP "Nelson Ned in Action". "Uma coisa muito importante dos
americanos é o respeito que eles tem pelos artistas", afirma o cantor. "Eu
gravei a sessão de cordas de um dos meus discos no estúdio Criteria, com
24 músicos da Filarmônica de Miami Quando entrei no estúdio pela
primeira vez, os músicos se levantaram e me aplaudiram." (636)
Aos que o acusam de divulgar uma produção musical desvinculada da
realidade brasileira, Nelson Ned desdenha. "Eu sou um intérprete de
identificação mundial. Canto o amor, não falo em morro, em samba.
Não sou um cantor geográfico." (637)
Engana-se, entretanto, quem imagina que este sucesso do cantor pelo
mundo afora atinge somente o cidadão comum e de poucas letras. Um
fã confesso de Nelson Ned é o prêmio Nobel de literatura Gabriel
García Márquez, que disse ter escrito Crônica de uma morte anunciada
ao som de Tudo passará e Se as flores pudessem falar, antigos sucessos
de Ned. (638) Aliás, em um programa de televisão, o escritor
colombiano ouviu a seguinte pergunta de Chico Buarque. “As suas
preferências musicais causam espanto em muita gente, principalmente
aqui no Brasil. Eu queria saber se os seus romances fossem música,
seriam samba, tango, som cubano ou um bolero vagabundo mesmo?".
De forma elegante, García Márquez respondeu: "Eu gostaria que
fossem um bolero composto por você e cantado pelo Nelson Ned."
(639)
Mas de que maneira o hoje cantor gospel Nelson Ned analisa o fato de seu
passado musical não merecer maiores atenções dos brasileiros que
pesquisam a história da nossa música popular? Afinal, a produção
discográfica do cantor raramente é focalizada em livros sobre o tema.
"Eu não estou preocupado com isso. Até porque, hoje eu tenho outros
valores. Antes eu não estava preocupado porque tinha status nos
Estados Unidos, hoje, porque sou um evangelista. E mais: eu tenho
certeza que a resistência em relação ao meu nome se quadruplicou.
Porque agora eu tenho um compromisso com a Bíblia. E a Bíblia é a
única coisa que essas pessoas não querem ver"
Na entrevista que realizei com Odair José ele também procura não dar
muita importância ao fato de jamais ter sido convidado a ir gravar um
depoimento no MIS.
"Não fui e também não iria. O que eu preciso fazer na minha vida é
trabalhar. Eu tenho três filhos, tenho uma esposa, tenho alguns
amigos, então eu quero apenas trabalhar. Eu não quero ser uma
história, não estou mais preocupado com isso. Então, eu não iria, não.
As pessoas que preservem isso, eu não. Acho que o meu trabalho foi
apenas profissional e continuo fazendo ele, mas não acho que fiz
grande coisa. Então, não acho que eu mereça estar em museu, falar em
museu, acho que não mereço. Eu vou fazer o quê, lá? Contar mentiras?
Se eles acharem que eu mereço, então depois que eu morrer que eles
inventem as próprias histórias deles. Não estou preocupado com isso."
Odair José não considera então o seu trabalho como parte da história da
música popular brasileira? "Considero" - diz o cantor - , "mas o
problema é dos historiadores, não é meu. Sei que fiz algumas coisas
que serão eternas, mas sei também que eu não sou um grande
compositor, não sou um grande músico, não sou um grande cantor, eu
sei disso. Eu sempre procurei fazer uma coisa que fosse diferente e
procurei me colocar como uma espécie de repórter musical. E o meu
trabalho é apenas profissional. Eu sou um rapaz que até hoje trabalha
para sustentar a família. Então não quero saber de museu, não quero
saber de história, não quero saber de porra nenhuma."
Talvez devêssemos relativizar um pouco este discurso da indiferença que
aparece nos depoimentos de Nelson Ned e Odair José. Isto porque,
procurados para uma entrevista a este livro, os dois foram muito solícitos e
demonstraram satisfação por serem lembrados para um trabalho de
pesquisa sobre a história da música popular brasileira.
Nelson Ned, por exemplo, ao início do depoimento, declarou sentir-se
honrado por ter o seu nome incluído no projeto. "Eu fico muito honrado,
sinceramente." Da mesma maneira o cantor Agnaldo Timóteo confessou
sentir-se envaidecido com a inclusão do seu nome. Portanto, para além da
indiferença, o que o discurso destes artistas deixa transparecer é um certo
ressentimento com a freqüente exclusão de seus nomes.
E isto, de certa forma, também aparece, a seguir, na resposta de Waldik
Soriano ao porquê de seu nome raramente ser citado nos trabalhos
produzidos pelos divulgadores de histórias da nossa música popular. "Sei
lá" - diz o cantor -, "eu acho que o brasileiro é muito besta. Mas lá
aparece o nome de muita gente que não tá com nada, né? E a mim não
interessa também, não. Eu sou um cantor de quase cem discos
gravados, sou autor de quase mil músicas. Se depois de tudo isso, os
caras ainda não reconhecem a gente, eu também não reconheço eles.
Não me merecem, não."
O cantor Wando expressa sentimento semelhante ao comentar o fato de
nomes como o seu, Luiz Ayrão e Benito de Paula não aparecerem entre os
3.500 verbetes da segunda edição, revista e ampliada, da Enciclopédia da
musica brasileira, publicada em 1998. (640)
"Isto chama-se sonegação de informação. E é uma coisa sacana porque
se propaga a idéia de que no Brasil só existe Chico Buarque de
Hollanda, Caetano Veloso e Gilberto Gil. E aqui está um cara que já
vendeu 10 milhões de discos neste país. E fato de dados só até 1995.
Então eu devo ter alguma importância. E estou dando o exemplo do
meu trabalho porque tenho quase 400 obras gravadas, e por diversos
artistas. Mas vejo que pessoas como Benito di Paula, que também tem
uma história muito importante, não se fala dele; não se fala do Luiz
Ayrão, e a história da música popular acaba ficando aleijada."
E qual a explicação de Wando para este descaso com ele e seus colegas?
“Acho que é preconceito mesmo. Porque não se teve a consciência de
parar e ouvir, ver, sentir e saber: 'o que que esse cara sabe produzir,
de que que esse cara fala, quem que esse cara escuta, quem é que esse
cara está influenciando, a quem que ele está alcançando'. Então não
houve esse tipo de cuidado." O MIS não teria convidado Wando a gravar
um depoimento para a posteridade? "Não, eles nunca me chamaram.
Nunca pediram os meus discos, nunca perguntaram quantas músicas
eu tenho gravadas, nunca me perguntaram nada."
Portanto, como até agora a história da música popular brasileira foi escrita
e "enquadrada" por uma elite intelectual que despreza tudo aquilo que não
está identificado à "tradição" ou à "modernidade", é esta elite que, em
última análise - e valendo-se daquilo que Marilena Chauí chama de o
"discurso competente" (641) - , define o que é bom ou ruim, o que merece
ou não ser preservado na memória musical do país. Assim, nomes como
Chico Buarque, Cartola, Gilberto Gil, Paulinho da Viola e Milton
Nascimento são hoje considerados patrimônios de nossa música.
Outros como Nelson Gonçalves, Cauby Peixoto e Roberto Carlos são
apenas aceitos. Já cantores/compositores populares como Wando, Waldik
Soriano, Odair José, Nelson Ned, Luiz Ayrão e Benito di Paula foram, por
assim dizer, "barrados no baile" da MPB.
A historiografia da música popular brasileira não reconhece a obra de
nenhum destes artistas. Eles constituem um capítulo da história da canção
popular que os críticos, pesquisadores e acadêmicos consideram menor,
sem dignidade artística, intelectual e nem mesmo como fenômeno social. É
possível dizer que hoje esta geração de cantores/compositores está
perdendo a batalha no campo da memória da música popular.
Entretanto, como observou Benito di Paula, o jogo continua e, como
mostraremos a seguir, lances da partida podem ser vistos à beira de um
túmulo no maior cemitério da cidade do Rio de Janeiro.
NOTAS BIBLIOGRÁFICAS
(SEGUINDO A NUMERAÇÃO SEQUENCIAL DO CAPÍTULO):
571. Maurice Halbwachs. A memória coletiva. São Paulo: Vértice, 1990, p.
26.
572. Ver Michel Pollak. "Memória, Esquecimento, Silencio". In Estudos
históricos. Rio de Janeiro: Cpdoc/FGV, V. 2 Nº 3,1989; Jacques Le Goff.
História e memória. Campinas: Ed. Unicamp, 1996.
573. Jacques Le Goff, op. cit., p. 426.
574. Michel Pollak, op. cit, pp. 9-12.
575. Olga Brites da Silva. "Memória, preservação e tradições populares". In
O direito à memória: patrimônio histórico e cidadania. São Paulo:
SMCIDPH, l992, p. 12.
576. No período do Estado Novo, por exemplo, o debate sobre "tradição" e
"modernidade" aparece no discurso de intelectuais como Almir de Andrade
e Azevedo Amaral, colaboradores da revista Cultura Política.
577. Ver, por exemplo, de Mário de Andrade. Ensaio sobre a música
brasileira. São Paulo: Martins, 1962 e Aspectos da música brasileira. Belo
Horizonte: Vila Rica, 1991. Registre-se que embora o autor tenha
problematizado diversas questões da música brasileira ao longo da sua
obra, a ênfase recaiu sobre a música erudita e folclórica. A chamada canção
de consumo, aquela difundida através do rádio, não mereceu maiores
atenções de Mário de Andrade.
578. Show de bossa nova estrelado por Claudette Soares e Taiguara no
Teatro Princesa Isabel, no Rio. Em determinado momento do espetáculo,
Taiguara rasgava exemplares do livro Música popular: um tema em debate,
de Tinhorão, e atirava as páginas numa cesta de lixo - para delírio da
platéia.
579. José Ramos Tinhorão. Música popular: um tema em debate Rio de
Janeiro: Saga, 1966, p.38.
580. Idem, p. 24.
581. Idem, p. 6.
582. Augusto de Campos. Balanço da bossa; antologia critica da moderna
música popular brasileira. São Paulo: Perspectiva, 1968, p. 10.
Dois dos artigos em que Augusto de Campos chama a atenção para a obra
de Caetano Veloso e Gilberto Gil - "Boa palavra sobre a música popular" e
"O passo à frente de Caetano Veloso e Gilberto Gil" - foram publicados
originalmente no jornal Correio da Manhã, em 14-10-1966 e 19-11-1967,
respectivamente.
584 Augusto de Campos, op. cit, p. 148.
585. Idem, p. 130. O trecho citado por Augusto de Campos encontra-se na
página 70 do Manifesto do Partido Comunista. Karl Marx & Friedrich
Engels. 10ª Edição-Petrópolis: Vozes, 2000.
586. Augusto de Campos, op. cit., pp. 144-145.
587. É com notório desprezo e ironia que nas páginas de seu livro Ruy
Castro se refere a vários cantores populares não identificados à bossa nova
como, por exemplo, Silvio Caldas, Vicente Celestino, Dalva de Oliveira,
Herivelto Martins, Ataulfo Alves, Wilson Batista, Lupicínio Rodrigues e,
principalmente, Luiz Gonzaga, o rei do baião, ritmo que "só servia como
coreografia para se matar uma barata no canto da sala”. A geração de
novos artistas surgida após a bossa nova (Geraldo Vandré, Gilberto Gil,
Caetano Veloso, Roberto Carlos) não merece melhor tratamento no livro,
com exceção daqueles que se deixavam acompanhar por Edson Machado
ou Milton Banana à bateria. Aliás, o autor confessa que “nunca se
conformou quando o Brasil começou a trocar a Bossa Nova por
exotismos". Ruy Castro. Chega de saudade: a história e as histórias da
bossa nova, op. cit, p.15.
588. "Só a retomada da linha evolutiva pode nos dar uma organicidade
para selecionar e ter um julgamento de criação. Dizer que o samba só
se faz com frigideira, tamborim e um violão sem sétimas e nonas não
resolve o problema". A idéia de Caetano Veloso foi expressa em uma
mesa redonda sobre música popular brasileira promovida pela Revista
Civilização Brasileira e transcrita sob o título "Que caminho seguir na
música popular brasileira". Revista Civilização Brasileira Nº 7, maio, 1966,
p. 378. Em sua fala, Caetano Veloso procurava responder às idéias
expressas por José Ramos Tinhorão no livro Música popular: um lema em
debate, lançado naquele mesmo ano.
589. Ver, por exemplo, Muniz Sodré. Samba, o dono do corpo. Rio de
Janeiro: Codecri, 1979; Hermano Vianna. O mistério do samba. Rio de
Janeiro: Zahar, 1995; Nei Lopes. O samba na realidade... Rio de Janeiro:
Codecri, 1981; Beatriz Borges. Samba-canção: fratura e paixão. Rio de
Janeiro: Codecri, 1982; Monique Augras. O Brasil do samba-enredo. Rio
de Janeiro: FGV, 1989; Luiz Fernando de Carvalho. Ismael Silva: samba e
resistência. Rio de Janeiro: José Olympio, 1980; Pedro Alexandre Sanches.
Tropicalismo: decadência bonita do samba. São Paulo: Boitempo, 2000
590. Um exemplo disto é o livro A canção no tempo: 85 anos de músicas
brasileiras, vol. 2 (19581985), no qual os autores relacionam as canções
que, segundo eles, "o povo brasileiro consagrou através dos anos". Era
de se esperar que, pelo menos desta vez, a produção musical de nomes
como Paulo Sérgio, Odair José e Waldik Soriano aparecesse com
algum destaque, visto que esses artistas são reconhecidamente
populares em todo o Brasil e, principalmente no período de 1968 a
1978, produziram diversas canções de sucesso.
Entretanto, embora afirmem que no livro foram incluídos dois tipos de
canções- "as que obtiveram sucesso ao serem lançadas, não
importando sua qualidade ou permanência, e as que não obtiveram
sucesso imediato, mas, em razão de sua qualidade, acabaram por
merecer a consagração popular" - , constata-se que, pelo menos para
os anos 68/78, eles privilegiaram claramente o segundo tipo; ou seja,
aquelas canções que eles julgam de "qualidade" (leia-se, identificadas
à "tradição" ou à "modernidade").
Só isto explicaria o fato de que para aquele período sejam creditados a
Chico Buarque 29 composições de sucesso e a Waldik Soriano, apenas
3. Já Caetano Veloso aparece com 21 sucessos; Odair José com 6. E até
mesmo a um representante da velha guarda, o compositor Cartola,
para o período 68/78 lhe são atribuídas 9 canções de sucesso; ao cantor
Lindomar Castilho, nenhuma. Ver Jairo Severiano & Zuza Homem de
Mello. A canção no tempo: 85 anos de músicas brasileiras, vol. 2 (19581985). São Paulo: Ed. 34,1998.
591. Os dois únicos livros publicados até agora destacando artistas desta
geração de cantores/compositores "cafonas" – A vida de Waldik Soriano:
minhas lutas e minhas glórias, op. cit., e O pequeno gigante da canção: a
vida de Nelson Ned, op. cit. - são na verdade a edição de duas longas
entrevistas encomendadas pelos dois cantores: a de Waldik Soriano ao seu
"amigo de longa data" Bernadino de Campos e a de Nelson Ned ao pastor
Jefferson Magno Costa, que aparecem como co-autores de cada uma dos
trabalhos.
59~ Ricardo Cravo Albin. MPB - a história de um século. Rio de Janeiro:
Funarte; São Paulo: Atração Produções Ilimitadas, 1997, p. 16.
593. Idem, pp. 436-437.
594. História do samba. São Paulo: Ed. Globo, 1997, capítulo 1, p.5.
595. MPB compositores. São Paulo: Ed. Globo, 1996, texto de contracapa
dos fascículos.
596. Vários autores. 500 anos da música popular brasileira. Rio de
Janeiro: MIS/Faperj, 2001, p.10.
597. A lista completa de todos os livros didáticos de História analisados
encontra-se na última parte deste trabalho (Fontes e bibliografia ).
598 O livro Acorde na aurora: música sertaneja e indústria cultural, de
Waldenyr Caldas, é uma exceção na historiografia. Ali o autor analisa a
obra de duplas sertanejos urbanizadas, com destaque para o trabalho de Léo
Canhoto e Robertinho, ou seja, artistas não identificados à "modernidades
ou à "tradição", nem mesmo à música caipira. Entretanto, bastante
influenciado pela teoria apocalíptica de Adorno (o livro é de 1977), o autor
analisa esta produção musical para concluir que "ela possui o barbitúrico
da alienação que causa a ação hipnógena sobre a consciência
proletária, embotando-a de tal modo que a sua realidade concreta já
não pode ser percebida. Assim, os laivos deixados pelo barbitúricos da
canção sertaneja nublam ainda mais o viver sombrio do proletariado
paulista, e, por extensão, do próprio proletariado brasileiro". Waldenyr
Caldas. Acorde na aurora; música sertanejo e indústria e cultural. 2ª ed.
São Paulo: Nacional, 1979, p. 25, 26.
599. Presidido por Ricardo Cravo Albin, o Conselho Nacional de Música
Popular Brasileira do MIS era composto de 40 integrantes, entre os quais se
incluíam José Ramos Tinhorão, Sérgio Cabral, Ari Vasconcelos, Lúcio
Rangel, Hermínio Bello de Carvalho, Guerra-Peixe, Jacob do Bandolim,
Almirante, Sergio Porto e Mozart de Araújo.
600. Alcir Lenharo. Cantores do rádio: a trajetória de Nora Ney eJorge
Goular e o meio artístico de seu tempo. Campinas: Ed. Unicamp, 1995, p.
8.
601. O crítico musical Tárik de Souza, em texto que acompanha um CD de
Jorge Goulart, destaca que o cantor "foi bem-sucedido tanto nos embalos
carnavalescos quanto nos sambas. Sua interpretação definitiva de A voz do
morro praticamente entronizou o sambista Zé Keti". CD “Jorge Goulart”
(Coleção Mestres da MPB) Warner Music - P. 1995.
602. Alcir Lenharo, op. cit., p. 111.
603. Registre-se que em 2001, ao completar 50 anos de carreira e quase 70
de idade, Cauby Peixoto conseguiu, finalmente, maior espaço na
historiografia com o lançamento de sua biografia escrita pelo jornalista
Rodrigo Faour. Bastidores: Cauby Peixoto, 50 anos da voz e do mito. Rio
de Janeiro: Record, 2001.
604. Ver, por exemplo, Claudia Matos. Acertei no milhar: samba e
malandragem no tempo de Getúlio. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982;
Alexandre Augusto Gonçalves. Moreira da Silva: o último dos malandros.
Rio de Janeiro: Record, 1996; Gilberto Vasconcelos & Matinas Suzuki Jr.
“A malandragem e a formação da música popular brasileira". In Antonio
Flavio Pierucci (org.) O Brasil republicano: economia e cultura (19301964) 3a ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1995; Letícia Vianna. Bezerra
da Silva: produto do morro: trajetória e obra de um sambista que não é
santo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.
605. Ver Artur da Távola. "Nara Leão e a Bossa Nova" In Vozes do Rio: o
sentir brasileiro na cultura carioca. Brasília: CDI (Camara dos
Deputados), 1991; Gilberto Vasconcelos. “A musa popular brasileira" In
op. cit.
606. O músico Almir Chediak, por exemplo, defende que "a música de
Chico Buarque é sempre muito bonita e de harmonias elaboradas".
Ver reportagem "Um autor cada vez mais sofisticado" O Globo, 4-9-1999.
607. Sérgio Cabral afirma que em Chico Buarque “o letrista novo produz o
melodista novo. E tudo vira inovação.” (Texto de contracapa do LP "Chico
Buarque” - 20 anos de sucesso" - Elenco 111996.) A exaltação do letrista
Chico Buarque é compartilhada também pelos seguintes autores: Affonso
Romano de Sant'anna. Música popular e moderna poesia brasileira.
Petrópolis: Vozes, 1978; Anazildo Vasconcelos da Silva. A poética e a
nova poética de Chico Buarque. Rio de Janeiro: Ed. Três A, 1980; Charles
A. Perrone. Letras e letras da MPB. Rio de Janeiro: Elo, 1988; Adélia
Bezerra de Meneses. Desenho mágico - poesia e política em Chico
Buarque. São Paulo: Hucitec, 1982.
608. Istoé – “Chico Buarque: o músico do século". Edição especial, 12-31999. Segundo o texto de apresentação "a indicação dos vencedores
obedeceu a um rigoroso processo. Primeiro, um júri de 30
personalidades indicou 30 destaques. A partir dessa lista, o leitor foi
convocado a escolher os premiados, indicando sua preferência numa
cédula encartada em “IstoÉ”. Do júri formado pela revista fizeram
parte José Ramos Tinhorão, Sérgio Cabral, Nelson Motta, Tárik de
Souza, Julio Medalha, entre outros.
609. "Tinhorão enterra todo mundo”- O Pasquim, 20 a 26-2-1973. Em
seu livro Música popular: um tema em debate, Tinhorão também afirma
que Tom Jobim chegou à canção popular "pela frustração das
ambições no campo da música erudita" e que ele é um compositor que
"apropria-se de músicas norte-americanas e "esconde o nome Antonio
sob o apelido americanizado de Tom". José Ramos Tinhorão, op., cit.,
p. 25.
610. “O bazar de Moraes Moreira"- Nova, novembro de 1980.
611. "Morte do líder ameaça o maracatu atômico”- Jornal do Brasil, 4-21997.
612. Rodas de leitura: Nelson Motta - Centro Cultural Banco do Brasil, 31-2001. (Acervo Arquivo Histórico CCBB.) Na mesma palestra Nelson
Motta também faz rasgados elogios ao CD “Tanto tempo" de Bebel
Gilberto, justificando que "o disco da Bebel tem um pé no passado, na
melhor tradição brasileira, e um pé no futuro. Por isso é que eu acho
interessante".
613. CDs "Marisa Monte"”EMI-Odeon P. 1988/ "Mais" -EMI - P. 1990/
"Verde anil amarelo cor de rosa e carvão" - EMI –P. 1994/ "Barulhinho
bom" - EMI - P.1996/ "Memórias, crônicas e declarações de amor"- EMI P. 2000.
614. Em seus shows Marisa Monte tem se permitido uma maior abertura
musical com a inclusão de alguns números como, por exemplo, Conga,
Conga, Conga, antigo sucesso de Gretchen. Entretanto, como ela mesma
afirma, "cantei esta música num show, mas nunca a gravaria. Show é uma
coisa mais efêmera, mais etérea. Ele fica registrado apenas nas retinas e na
mente das pessoas". Ver reportagem "Marisa Monte juntando talentos,
revelando tesouros" - A Tarde, 11-9-1994.
615. "Os cafonas também são geniais" - Folha de S. Paulo, 12-11-1983.
616. CD "Caetano Veloso: um bate-papo exclusivo" - Universal / Shopping
Music- s.d.
617. “A voz dos exagerados"- Jornal do Brasil, 9-5-1993.
618. "Marisa Monte mais suave, mais doce"- A Tarde, 26-5-1991.
619. LP "Programa de rádio Agnaldo Timóteo - Continental , P. 1990.
620. Augusto de Campos, op. cit., pp. 179-180.
621. Idem, p. 190.
622. Versos de “Quem há de dizer”. Ver índice de canções citadas em
Fontes e bibliografia. O programa de televisão com João Gilberto, do qual
também participaram Caetano Veloso e Gal Costa, foi gravado pela TV
Tupi em agosto de 1971.
623. É com este adjetivo que Ruy Castro contrasta as letras de canções de
Lupicínio Rodrigues às da bossa nova. Ruy Castro. Chega de saudade: a
história e as histórias da Bossa Nova, õp. cit., p. 132.
624. Para esta redescoberta de antigos sambistas muito contribuiu também
o trabalho do cantor João Gilberto, que desde o seu primeiro LP na Odeon,
em 1959, sempre incluía algum samba antigo: Aos pés da cruz (Marino
Pinto-Zé da Zilda); A primeira vez (Bide-Marçal); Bolinha de papel
(Geraldo Pereira) e outros.
625. A primeira e única publicação daquele período a dar espaço aos
lançamentos de música popular foi a revista Phono Arte, empreendimento
dos jornalistas Cruz Cordeiro e Sérgio Vasconcelos que, entretanto,
circulou apenas até o número 50 (fevereiro de 1931). Cf. Sérgio Cabral.
ABC do Sérgio Cabral: um desfile de craques da MPB. Rio de Janeiro:
Codecri, 1979, pp. 140-143.
626. Teixeira Coelho. O que é indústria cultural. São Paulo: Brasiliense,
1986, p. 23.
627. Vídeo Circulado ao vivo´/i] Caetano Veloso – Polygram/Vídeo Filmes
- P. 1992.
628. "O amor em espanhol e português"- O Globo, 2-9-1998.
629. A importância da América Latina para a estratégia dos Estados
Unidos na Segunda Guerra levou o governo Roosevelt a propalar a defesa
hemisférica como necessidade para o combate ao inimigo externo. Como
parte deste projeto, a "política de boa vizinhança", inaugurada pelo
Departamento de Estado em 1933, pregava o intercâmbio cultural entre as
repúblicas americanas - o que favoreceu a carreira internacional de vários
artistas latinos, entre os quais Xavier Cougat, Tito Guizar, Dolores Del
Rio, Lupe Vélez, Carole Lombard e, principalmente, Carmen Miranda, "a
musa da política de boa Yizinhança". Ver Ana Rita Mendonça. Carmen
Miranda foi a Washington. Rio de Janeiro: Record, 1999, p. 65.
630. "O tamanho do sucesso: apenas um metro e meio" - Última Hora, 1-21982.
631. Nelson Ned d'Ávila Pinto & Jefferson Magno Costa, op. cit., p. 79.
632. Manchete citada na reportagem "Nelson Ned faz sucesso na
Colômbia" - Jornal do Brasil, 13-2-973.
633. "Ned no (ex?) templo da bossa" - Jornal do Brasil, 2-6-1974.
634. O fracasso do show de bossa nova no Carnegie Hall foi sustentado
pela revista O Cruzeiro na reportagem "Bossa nova desafinou nos EUA"
(O Cruzeiro, 8-12-962), e por José Ramos Tinhorão no livro O samba
agora uai... a farsa da música popular no exterior. Rio de Janeiro: JCM,
1969, pp. 106-107. Já o sucesso dos bossa-novistas - na verdade, os
aplausos ocorreram durante todo o show"- é enfatizado por Ruy Castro no
livro Chega de saudade: a história e as histórias da Bossa Nova, op. cit. p.
330.
635. "O estrangeiro" - Veja, 26-6-1974.
636. "Nelson Ned: 'Quando canto, as pessoas sentem que meu tamanho é
apenas um detalhe físico"”Correio Braziliense, 16-3-1982.
637. "Ned, muito acima da vã filosofia" - Folha de S. Paulo, 31-1-1982.
638. Conforme informação de Ruy Castro. "Os cafonas também são
geniais" - Folha de S. Paulo, 12-11-1983.
639. Programa Conexão Internacional - Rede Manchete, Setembro de 1983
(Acervo de videoteca do Museu da Imagem e do Som).
640. Na primeira edição da Enciclopédia da música brasileira, publicação
de 1977 - ano em que esta geração de artistas "cafonas" ainda ocupava
espaço na mídia - foram induídos os verbetes de Timóteo, Waldik, Odair
José, Nelson Ned e Paulo Sérgio. A segunda edição, lançada em 1998,
embora atualizada com 400 novos verbetes, não acrescentou nenhum outro
"cafona" àquela lista, permanecendo de fora da enciclopédia nomes como
Wando, Benito di Paula, Luiz Ayrão, Dom & Ravel, Claudia Barroso,
Fernando Mendes, Claudio Fontana, Reginaldo Rossi e outros.
641. Marilena Chauí Cultura e democracia; o discurso competente e outras
falas op. cit., pp 3-13.
CAPÍTULO FINAL:
O JOGO DA MEMÓRIA
(FLORES E CANÇÕES À BEIRA DO TÚMULO DE PAULO
SÉRGIO)
“Ele não morreu, estará sempre vivo na história da música popular
brasileira”
(Jeni Macedo Lessa)
Embora esquecida pelos "enquadradores" da memória da nossa música
popular, a produção musical "cafona” permanece guardada em
determinadas estruturas de comunicações informais e, a partir da análise de
certos dados, é possível comprovar que ela é patrimônio afetivo de grandes
contingentes da população brasileira. Afinal, a maioria dos artistas desta
geração, mesmo afastada da programação diária das principais emissoras
de rádio e TV ou dos grandes palcos do Rio e de São Paulo, prossegue
cantando suas canções em shows por todo o país.
Como destaca o cantor Luiz Ayrão, "não estamos na mídia, mas
continuamos trabalhando. Faço show todo fim de semana. Se não tiver
passagem aérea, vou dirigindo” (642)
Além deste contato direto com o público, estes cantores são ouvidos
principalmente através de discos, fitas e agora CDs. E coletâneas reunindo
os principais sucessos de Paulo Sérgio, Evaldo Braga, Odair José e outros
estão freqüentemente em catálogo e à disposição do público nas lojas de
disco.
O compositor Nenéo, que teve várias de suas composições lançadas pelo
cantor Paulo Sérgio ao longo dos anos 70, e hoje grava com grupos de
pagode e duplas sertanejos, afirma que as antigas gravações de Paulo
Sérgio continuam lhe rendendo um bom direito autoral. "Tem músicas
que eu gravei com ele naquela época que me rendem mais dinheiro no
fim do mês do que algumas das que eu gravo atualmente. O Paulo
Sérgio continua vendendo disco."
De fato, este popular cantor e compositor capixaba, falecido precocemente
em 1980, emerge como um emblema da permanência da lembrança da obra
musical desta geração de artistas entre determinados segmentos da
sociedade brasileira. E, para demonstrar isso, basta ver o culto que os fãs
realizam à sua memória, ou seja, à memória do ex-alfaiate que durante toda
a sua carreira artística foi considerado pelos críticos apenas um replicante
musical de Roberto Carlos.
Após a grande repercussão de seu primeiro LP em 1968, Paulo Sérgio
manteve-se regularmente nas paradas de sucesso e com boas vendagens de
discos até o fim da década de 70. Mas sempre se apresentando em espaços
populares: circos, clubes do subúrbio e programas de auditório como os de
Chacrinha, Bolinha e Raul Gil E foi exatamente entre um programa de
auditório e o palco de um circo que ele cantou pela última vez.
Era um dia de domingo, 29 de julho de 1980. À tarde, Paulo Sérgio esteve
na TV Bandeirantes participando mais uma vez do Programa do Bolinha,
que naquela data comemorava 13 anos no ar No fim do programa,
entretanto, houve um desentendimento entre o cantor e uma das
freqüentadoras do auditório.
As versões sobre a causa deste desentendimento são contraditórias. As
pessoas próximas a Paulo Sérgio afirmam que a senhora Oneida Maria
Xavier, na época com 27 anos, casada, residente em São Paulo, tentou se
aproximar do cantor e foi rechaçada; ela, por sua vez, afirma que o cantor
tentou seduzi-la e, com a negativa, ficou irritado, gerando o bate-boca.
"Ele começou a me xingar e me chamou de prostituta. Para irritá-lo,
retruquei que ele era um péssimo cantor e que Roberto Carlos era
muito melhor do que ele. Ele ameaçou me matar e passar o carro por
cima de mim. Quando deixei o teatro, ele abandonou seu carro e
correu atrás de mim. Me refugiei na porta de um prédio, enquanto as
pessoas o seguravam. Fui depois, dar queixa no 5° Distrito” (643)
O fato é que naquele fim de tarde de domingo Paulo Sérgio saiu do
programa do Bolinha bastante abalado, dirigindo-se para Santo Amaro,
região da Grande São Paulo, onde realizou apresentação em um circo.
Embora já demonstrasse evidentes sinais de não estar se sentindo bem, à
noite o cantor seguiu para a cidade de Itapecerica da Serra, onde mais tarde
faria show em um outro circo. Sueli Coutinho, na época uma das "pauletes"
(bailarinas que faziam a coreografia dos shows de Paulo Sérgio), relata
como foi esta derradeira apresentação do cantor. "Pouco antes de começar
o show, ele já sentia forte dor de cabeça. Logo depois de cantar a
primeira música, levou a mão à fronte e começou a empalidecer. Foi
para o seu ônibus-camarim, pedindo ajuda. Dei-lhe dois comprimidos.
Ele começou a babar e balbuciar. Entrou em coma no próprio
camarim e saiu de lá na ambulância." (644)
Levado às pressas para o hospital, Paulo Sérgio foi direto para a UTI,
morrendo horas depois de aneurisma cerebral.
Tinha 36 anos e 13 LPs gravados. Levado para o Rio de Janeiro, onde
residiam seus pais, o corpo do cantor foi enterrado no Cemitério São
Francisco Xavier, no Caju. E, desde então, a imprensa vem registrando que
o túmulo de número 30.831 da quadra 14, que pertence a Paulo Sérgio, é
sempre um dos mais visitados do Rio de Janeiro no Dia de Finados.
Com uma área de 864 mil metros quadrados, o cemitério do Caju, como é
mais conhecido, é um dos maiores da América Latina, e abriga em seu solo
cerca de 500 mil túmulos distribuídos e organizados segundo uma
hierarquia da própria sociedade (pobres, remediados e ricos).
Ali estão sepultados os ex-presidentes da República Hermes da Fonseca e
Prudente de Morais, os atores Procópio Ferreira e Oscarito e vários ídolos
da nossa música popular: Noel Rosa, Orlando Silva, Cartola, Wilson
Batista, Lamartine Babo, Jackson do Pandeiro, Dolores Duran, Newton
Mendonça, Miguel Gustavo e, mais recentemente, o "síndico" Tim Maia e
o mangueirense Carlos Cachaça. Mas é ao túmulo do cantor Paulo Sérgio
que um número maior de pessoas acorrem para prestar homenagens a cada
dia 2 de novembro.
E o registro do fenômeno aparece anualmente na imprensa. Em 1981, por
exemplo, o jornal O Dia informava que "Entre os ídolos mais festejados
no Dia de Finados está o cantor Paulo Sérgio, falecido em 1980. Ontem
um grupo de mais de 40 pessoas, vindas de São Paulo, realizou uma
grande homenagem ao cantor, junto ao seu túmulo, no cemitério do
Caju. Capas de discos, reportagens publicadas e fotos de todos os
tamanhos e tipos foram espalhados pela sepultura, ao lado de faixas.
Uma delas dizia: 'Paulo Sérgio, seus fãs sentem muita saudade; você
vive em nós através de suas canções"'. (645)
No ano seguinte, com o título de “Fãs não esqueceram o cantor Paulo
Sérgio", a reportagem do jornal O Dia voltou a registrar a homenagem,
agora com a presença de um número maior de pessoas. "O túmulo do
cantor Paulo Sérgio, falecido em 1980, foi o que reuniu maior número
de visitantes no Caju. Um grupo de 50 moças vindas especialmente de
São Paulo ficou todo o tempo ao lado do mausoléu do artista;
pregaram faixas, cartazes e tocaram discos do cantor, com seus
maiores sucessos. Às 10 horas foi feita uma homenagem, quando o
cantor Gilson Monteiro cantou música especialmente feita para o
ídolo. Enquanto ele cantava as fãs choravam e tinham crises
nervosas." (646)
Além de Gilson Monteiro, outros nomes da música romântica das décadas
de 80 e 90 também gravaram canções em homenagem a Paulo Sérgio, fato
que confirma a importância do trabalho do cantor para uma nova geração
de artistas agora chamados de "bregas".
E um primeiro exemplo é a composição Tributo a Paulo Sérgio, na qual o
cantor Paulo Moraes recorda o seu cantato inicial com a música do ídolo:
"Já faz muitos anos / que num clube eu ouvi uma canção / falava juras
de amor / palavras lindas do coração / parei pra perguntar / o nome
daquele cantor / foi quando eu ouvi o delírio das fãs / gritando 'Paulo
Sérgio chegou!..."'
Na balada Lembranças de um amigo, o cantor Luis Geraldo também evoca
esta primeira audição e fala da importância da música de Paulo Sérgio em
sua vida: "Há muito tempo atrás eu lhe conheci / cantando no rádio o
que eu precisava ouvir/ dancei suas músicas / cantei suas canções / o
tempo passou / relembro as emoções..." E na canção Lembranças de um
ídolo, o cantor Tarcys Andrade faz seu relato do impacto da morte de Paulo
Sérgio: "No dia em que você partiu / um povo chorou / chorou sentindo
a falta de você. ."
Ausência e saudade que permanecem e se explicitam a cada Dia de Finados
no cemitério do Caju.
Em 2 de novembro de 1987 sete anos após a morte de Paulo Sérgio - lá
estão os jornais novamente a registrar o fato. "No túmulo do cantor Paulo
Sérgio a movimentação era intensa. Centenas de fãs colocavam
pôsteres, ligavam vitrolas com discos do cantor e conversavam sobre
sua vida. Uma caravana de admiradores de São Paulo distribuía letras
de suas músicas e Jeni Macedo Lessa e seu marido Candido da Silva
Lessa, tios do cantor, explicavam que ele estava vivo na lembrança de
todos. 'O Paulo era muito querido, hoje toda a nossa família virá aqui.
Ele não morreu, estará sempre vivo na história da música popular
brasileira"'. (647)
É claro que a "história" a qual os tios do cantor se referem não é a mesma
que é escrita por aqueles que se notabilizaram como historiadores da nossa
música popular, para quem o nome Paulo Sérgio não tem nenhum
significado ou importância. Mas o processo social é assim mesmo, afinal,
vivemos em uma sociedade de classes e a versão histórica que sobressai é
geralmente a das classes dominantes, das quais os fãs de Paulo Sérgio não
fazem parte. E por isso eles resistem, trazendo ao conhecimento da
sociedade uma história até então silenciada, ocultada, negada.
Se nas manifestações de 1981 os jornais registram a presença de um grupo
de 40 moças vindas de São Paulo, e na de 1982, um grupo de 50, nesta
última citada, a de 1987, registram a participação de caravanas e a presença
de centenas de fãs. O tempo passa e o culto à memória de Paulo Sérgio
parece aumentar.
Um aspecto que ao longo desses anos a imprensa também permite verificar
é o contraste entre a movimentação em torno do túmulo de Paulo Sérgio e o
relativo abandono dos túmulos de outros ídolos da música popular
brasileira enterrados no cemitério do Caju.
No mesmo dia em que o Jornal do Brasil informa que o túmulo de Paulo
Sérgio "amanheceu enfeitado de palmas, rosas e agapantos", (648) a
reportagem do jornal O Dia registra "como nota triste, a sepultura de
Dolores Duran, esquecida e empoeirada. A autora de versos como 'eu
quero a rosa mais linda que houver / para enfeitar a noite de meu bem'
passou o Dia de Finados sem que uma só flor fosse colocada no
mármore frio que a esconde." (649)
Em outro ano novamente a imprensa constata que no túmulo de Paulo
Sérgio, "decorado com flores, fofos e faixas", houve "vigília durante
todo o dia", mas que "a sepultura de Noel Rosa estava mais
abandonada do que nos anos anteriores. E a de Cartola foi caiada e
pintada às pressas, na véspera, por dois funcionários da Santa Casa de
Misericórdia". (650)
O contraste mais evidente, porém, se verifica na movimentação em torno
dos túmulos de Paulo Sérgio e o do cantor Orlando Silva. Isso porque, por
um desses caprichos do destino, os túmulos dos dois artistas encontram-se
colocados frente a frente no mesmo cemitério. Paulo Sérgio e Orlando
Silva. Orlando Silva e Paulo Sérgio. O "cantor das multidões" e o "cantor
das empregadas". O ex-alfaiate e o ex-cobrador de bonde. Dois brasileiros
de origem humilde, dois cantores românticos, dois ídolos populares em
tudo o mais tão diferentes e que agora repousam bastante próximos na
mesma quadra 14 do cemitério do Caju. Mas ali, sob a lápide fria que os
encobre, o "cantor das multidões" é agora Paulo Sérgio.
Na mesma reportagem que informa que no túmulo de Paulo Sérgio "a
movimentação era intensa" com a presença de "centenas de fãs", o jornal O
Dia descreve que no túmulo de Orlando Silva havia apenas dois solitários
fãs reverenciando a sua memória: "Edna Brandão, de 69 anos, residente
em Olaria, e conhecedora de todas as músicas do cantor, ficou alguns
minutos rezando sobre sua sepultura. Depois chegou outro fã, Israel
Barcelos, de 60 anos, morador de Bento Ribeiro", que protestou:
"Eu estou revoltado. É um absurdo que um nome da importância de
Orlando Silva não seja lembrado num dia como este. O brasileiro tem
memória curta." (651)
Não se deduza daí que o cantor Orlando Silva ou nomes como Noel Rosa,
Cartola e Dolores Duran estejam hoje esquecidos na sociedade brasileira.
Afinal, cada um desses artistas tem as suas principais canções
freqüentemente cantadas e citadas, são objetos de estudos acadêmicos,
possuem biografias publicadas, estão com a sua produção musical
catalogada em museus e, de tempos em tempos, tem a sua vida e obra
analisadas em artigos de jornais e retratadas em musicais de teatro e
especiais de televisão.
O que os diferencia em relação a Paulo Sérgio é o espaço onde são
cultuadas suas memórias e o grupo social que lhes dá suporte. O culto à
memória de Paulo Sérgio alcança maior visibilidade no cemitério do Caju
porque este é único espaço possível para os seus fãs, que pertencem àquele
grande segmento da sociedade brasileira que não tem acesso à
universidade, não trabalha nas redações de jornais, não produz programas
de televisão, não organiza museus ou centros culturais, não escreve livros e
nem teses acadêmicas.
Já grande parte dos admiradores da obra de Noel Rosa, Cartola, Orlando
Silva e Dolores Duran se situa hoje num segmento de classe média urbana
que dispõe de todos estes meios para dar visibilidade à memória de seus
ídolos e não precisa do cemitério. Se hoje o túmulo de Orlando Silva fica
vazio nos dias de finados é porque a maioria daqueles brasileiros de origem
humilde que fizeram dele "o cantor das multidões" e com ele tiveram uma
relação intensa e profunda, morreram junto com ele, já que a expectativa de
vida no Brasil até bem pouco tempo atrás não passava dos 60 anos.
O próprio Orlando Silva viveu este limite, falecendo em 1978, aos 62 anos.
Então, neste sentido, não é que o brasileiro tenha memória curta; ele tem é
vida curta. Os dois solitários fãs do subúrbio carioca que estão à beira do
túmulo de Orlando Silva em 1987 são talvez sobreviventes daquela
multidão que o acompanhava no fim dos anos 30.
E eles têm em comum com os fãs de Paulo Sérgio a origem social e a
identificação com os valores de um Brasil mais tradicional, de raízes
interioranas, que conserva esta tradição do culto à memória dos entes
queridos no Dia de Finados. Como enfatiza à beira do túmulo de Paulo
Sérgio a fã Adelina Macedo, que todos os anos organiza uma caravana de
admiradores que viaja de São Paulo ao Rio de Janeiro: "Enquanto viver,
não deixo de prestar minha homenagem ao Paulo Sérgio." (652)
Esta devoção ao cantor pode ser antevista na grande aglomeração ocorrida
no dia do seu sepultamento, em 30 de julho de 1980. Embora nenhum dos
principais jornais do Rio e de São Paulo tenha dado qualquer destaque à
notícia da morte de Paulo Sérgio - - o Jornal do Brasil e O Estado de S.
Paulo sequer noticiaram o fato - , as cenas ocorridas no dia do seu
sepultamento mereceram manchete.
Com o titulo de "Multidão em desespero no enterro do artista", a
reportagem do jornal O Dia informava que "mais de 2.000 pessoas
compareceram ao enterro do cantor Paulo Sérgio e provocaram um
dos maiores tumultos já registrados no cemitério do Caju. As fãs, que
chegaram a quebrar as portas da capela onde o corpo estava sendo
velado, tiveram que ser contidas por um grupo do Batalhão de Choque
da PM (...) A chegada do corpo já provocou o primeiro tumulto.
Familiares e amigos, ajudados por uns poucos policiais, tentaram
formar um cordão de isolamento, mas não conseguiram conter a
grande massa humana, que exigia que o caixão fosse aberto. Foi
solicitado reforço policial e para lá se dirigiram um grupo do Batalhão
de Choque da PM e elementos do 4° Batalhão (...) Os soldados
presentes só conseguiram retirar o corpo na hora do sepultamento,
com muito esforço, fazendo um isolamento humano com ajuda de
cordas (...) No momento em que era colocada a tampa na sepultura do
cantor, milhares de fãs começaram a cantar a música Ultima canção
(...) Os policiais ficaram até o final das cerimônias e só receberam
ordens de se retirar depois que a última fã deixou o cemitério. Eles
diziam que, em vista do ambiente, quase de loucura, temiam que as
mulheres tentassem desenterrar o cadáver e quebrar a tampa da
urna." (653)
Para concluir, avancemos a escala do tempo. Vamos agora para os anos 90,
era da pós-modernidade, da globalização, do neoliberalismo, da decretação
do fim da História e de todas as utopias.
Mais de uma década após o enterro de Paulo Sérgio e lá estão os seus
admiradores a provar que a História não acabou. "O túmulo de Paulo
Sérgio é o mais visitado no Caju, apesar de lá estarem enterradas
celebridades como o ex-presidente da república Prudente de Morais. A
balconista Adibe Menezes, 30 anos, conterrânea do cantor, afirmou
que só veio morar no Rio porque é aqui que está o túmulo de Paulo
Sérgio." A mesma reportagem informava que o pedreiro Edvan Pereira de
Assis, 39 anos, que dirige o fã-clube do artista no Rio, chegou ao cemitério
às 5 horas, munido de toca-fitas, faixas e flores. "Há seis anos que eu
venho aqui e passo o dia ouvindo música. A de que mais gosto é Ultima
canção, comentou o fã." (654)
Um pedreiro, dirigente do fã-clube, e uma balconista, que engrossa as
estatísticas de migração interna só para ficar mais próxima ao túmulo de
seu ídolo, são indicações de que segmento da população brasileira cultua
até os dias de hoje a memória do cantor Paulo Sérgio.
E se pensarmos na quantidade de tantos outros pedreiros, balconistas,
garçons, porteiros empregadas domésticas espalhados pelos mais
longínquos recantos do Brasil e que provavelmente gostariam de participar
das homenagens ao cantor no Rio de Janeiro e não podem - , é possível
chegar à conclusão de que estamos diante de um fenômeno: o fenômeno
Paulo Sérgio.
E este fenômeno por si só já revela o fosso que separa a memória de grupos
sociais marginalizados da memória nacional dominante. Revela ainda os
limites do processo de "enquadramento da memória", referido por Michael
Pollak. A maior parte dos críticos, pesquisadores e divulgadores de
histórias da música popular brasileira procura sempre ressaltar nomes como
os de Cartola, Candeia, Clementina de Jesus, Dick Farney, Lúcio Alves todos identificados à "tradição" ou à "modernidade” -, mas é a um
representante da canção popular "cafona" que espontaneamente ano após
ano um número maior de brasileiros dirige as suas homenagens.
É como se estes brasileiros insistissem em conservar justamente aquilo que
os profissionais de uma memória coletiva nacional decidiram esquecer.
Mas este fato é apenas mais um sintoma do grande divórcio existente entre
elite e povo no Brasil. Além de excluídos dos benefícios do sistema
econômico, para grandes contingentes da população brasileira não lhes
resta nem o registro da sua história, dos seus ídolos, dos seus intérpretes.
Por isso mesmo, ao realizar anualmente à beira do túmulo de Paulo Sérgio
uma espécie de ritual em homenagem ao ídolo falecido em 1980, seus fãs
realizam também um ato de resistência. Eles dão visibilidade a uma
memória que se encontra subterrânea, sem canais de expressão e
desprovida de "enquadradores". Em um esforço contrário ao movimento de
silenciamento e esquecimento empreendido pelas elites culturais do país, os
fãs de Paulo Sérgio formam, assim, uma espécie de memória underground,
que segue viva no cemitério, nos cabarés, nos barracas e nas casas simples
com cadeiras na calçada em subúrbios de todo o Brasil.
FIM
NOTAS BIBLIOGRÁFICAS
(CONFORME NUMERAÇÃO SEQUENCIAL EXISTENTE NO
CAPÍTULO):
642. “A hora e a vez do brega" - Jornal do Brasil, 3-6-1999.
643. “A verdade sobre a morte de Paulo Sérgio" - Fatos & Fotos, 18-81980. Segundo o jornal O Dia, de 29-7-1980, consta de um boletim da 5ª
Distrital de São Paulo que “Às 20 horas e 30 minutos de domingo,
compareceu àquela delegacia Oneida Maria Xavier Loreto, acompanhada
de quatro testemunhas para formalizar uma queixa- crime de ameaça de
morte contra o cantor Paulo Sérgio".
644. “A verdade sobre a morte de Paulo Sérgio" - Fatos & Fotos, 18-81980.
645. "Fãs de Paulo Sérgio lembram o seu ídolo" - O Dia, 3-11-1981.
646 "Fãs não esqueceram o cantor Paulo Sérgio" - O Dia, 3-11-1982.
647. "Cardeal lembra em missa o lado misterioso da vida” - O Dia, 3-111987.
648. "Cemitérios recebem 2 milhões de pessoas no Dia de Finados" - Jornal
do Brasil, 3-11-1980.
649. "Dom Eugênio lembra verdade básica no Dia de Finados” - O Dia, 311-1980.
650. “Finados leva a cemitérios do Rio 1 milhão 150 mil" - Jornal do
Brasil, 3-11-1983.
651. "Cardeal lembra em missa o lado misterioso da vida" - O Dia, 3-111987.
652. "Finados leva mais de 1,5 milhão de pessoas ao Caju" - Jornal do
Brasil, 3-11-1991.
653. "Multidão em desespero no enterro do artista" - O Dia, 31-7-1980
654. "Show no túmulo de Paulo Sérgio" - O Dia, 3-11-1992.

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