As Crianças Invisíveis na Literatura Brasileira

Transcrição

As Crianças Invisíveis na Literatura Brasileira
Brigham Young University
BYU ScholarsArchive
All Theses and Dissertations
2009-11-16
As Crianças Invisíveis na Literatura Brasileira:
Meninos de rua, na rua e outras crianças em
situação de risco
Mario Cesar Miranda Melo
Brigham Young University - Provo
Follow this and additional works at: http://scholarsarchive.byu.edu/etd
Part of the Spanish and Portuguese Language and Literature Commons
BYU ScholarsArchive Citation
Melo, Mario Cesar Miranda, "As Crianças Invisíveis na Literatura Brasileira: Meninos de rua, na rua e outras crianças em situação de
risco" (2009). All Theses and Dissertations. Paper 1959.
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As Crianças Invisíveis na Literatura Brasileira:
Meninos de rua, na rua e outras crianças
em situação de risco
Mario Cesar M. Melo
A thesis submitted to the faculty of
Brigham Young University
in partial fulfillment of the requirements for the degree of
Master of Arts
Christopher C. Lund, Chair
Frederick G. Williams
Vanessa C. Fitzgibbon
Department of Spanish and Portuguese
Brigham Young University
December 2009
Copyright © 2009 Mario Cesar M. Melo
All Rights reserved
ABSTRACT
As Crianças Invisíveis na Literatura Brasileira:
Meninos de rua, na rua e outras crianças
em situação de risco
Mario Cesar M. Melo
Department of Spanish and Portuguese
Master of Arts
The United Nations Children's Fund (UNICEF) estimates that tens of millions of
homeless children spend a large portion of their lives on the streets, where they are exposed to all
forms of abuse and exploitation. In Brazil, approximately eight million children are in this
situation. Despite the prolonged and increasing gravity of this situation, there are few and only
partial studies showing how these children have been represented in Brazilian literature.
Brazilian authors ignored the problem almost completely until the decade of 1960, with
the exception of Jorge Amado and a few others. Since then João Antônio, Rubem Fonseca,
Clarice Lispector, José Louzeiro, Chico Buarque de Holanda, and Paulo Lins, among many
others have chosen to make street children characters in fiction. Many of the greater successes in
Brazilian literature during the past years directly or indirectly address the theme of street
children. This thesis documents the gradual inclusion of the sociological phenomenon of street
children—so long ignored in Brazilian society and even more so in imaginative literature—into
the Brazilian literary canon and suggests that the consciousness-raising activity of these writers
is a profound contribution to any eventual solution to this problematic demographic. Our review
is a historical one, beginning with the first years of Brazilian colonization and running through to
the twenty-first century.
Keywords: meninos de rua, crianças em situação de risco, Jorge Amado, Paulo Lins
AGRADECIMENTOS
Eu gostaria de agradecer especialmente ao meu orientador, Dr. Christopher Lund, por
todo o seu apoio e suporte durante esses dois últimos anos e principalmente pelas inúmeras
revisões e conselhos durante a elaboração de minha tese. Também aos meus outros professores,
em especial Frederick G. Williams, Vanessa C. Fitzgibbon, Blair Bateman e Douglas
Weatherford.
Gostaria também de agradecer pela amizade e apoio de meus colegas e amigos do
Departamento de Espanhol e Português, assim como do pessoal administrativo.
Um sincero obrigado a minha esposa Heather e filhas Alicey e Olivia, e aos meus pais,
Manoel e Alice, pelo suporte e amor que sempre me dedicam.
iv
Índice
Abstract
ii
Agradecimentos
iii
Introdução
1
A estrutura e objetivos da tese
4
Capítulo I – Do século XVI ao início do século XX: As crianças esquecidas
7
As primeiras crianças na literatura brasileira
11
A criança em dois contos de Machado de Assis
13
Os meninos de rua no final do século XIX
16
O Bom Crioulo e Canaã: duas perspectivas diferentes da infância na virada do
século XX
17
Monteiro Lobato, Lima Barreto, Manuel Bandeira e a dualidade criança/menor
20
O primeiro menino de rua na literatura brasileira e Piá sofre? Sofre
24
Capítulo II – Jorge Amado, Comunismo e meninos de rua
28
Sobre dois capítulos de Jubiabá
31
Capitães da Areia: o primeiro romance sobre meninos de rua na literatura brasileira
37
Sob a lua, num velho trapiche abandonado
40
v
Noite da Grande Paz, da Grande Paz dos teus olhos
48
Canção da Bahia, Canção da Liberdade
48
Capítulo III – As crianças invisíveis em tempos de Ditadura: 1937-1985
55
Os meninos de rua entre 1937 e 1960
55
A criança nos sertões brasileiros: Graciliano Ramos, João Cabral de Melo Neto e
Guimarães Rosa
56
O cinema brasileiro e as crianças de rua nas décadas de 40 e 50
59
A criança na obra de Carolina de Jesus
62
As crianças invisíveis na década de 1960
65
João Antônio e a marginalidade
66
Roberto Freire e João Pão
71
Clarice Lispector e as Caridades Odiosas
72
As crianças invisíveis na década de 1970
76
La Pietà de Cecília Prada
77
Rubem Fonseca e a Estética da Violência
78
A Infância dos mortos de José Louzeiro
81
As crianças de rua de Chico Buarque de Holanda
85
vi
As crianças invisíveis na primeira metade da década de 1980
90
O Favelário de Drummond
91
Capítulo IV – As crianças invisíveis em tempos de Democracia: 1985-2009
94
As crianças invisíveis nos últimos anos do século XX
94
O massacre da Candelária
97
Central do Brasil
100
Cidade de Deus de Paulo Lins
101
As crianças invisíveis no século XXI
106
Cidade de Deus de Fernando Meireles
108
Depois de Cidade de Deus
109
Conclusão
113
Obras citadas
119
Anexos
“Children Out of Sight, Out of Mind, Out of Reach”
131
1
INTRODUÇÃO
A literatura brasileira, em maior ou menor grau, sempre esteve interessada e envolvida
nas grandes questões sociais da época em que foi produzida. A Escrava Isaura, de Bernardo
Guimarães; 1 O Cortiço, de Aluísio de Azevedo; 2 Memórias Póstumas de Brás Cubas, de
Machado de Assis; 3 “Negrinha”, de Monteiro Lobato; 4 Capitães de Areia, de Jorge Amado; 5
Guimarães Rosa, com Grande Sertão, Veredas 6 e mais recentemente Paulo Lins, com Cidade de
Deus, 7 são apenas alguns exemplos disso.
Muitos desses livros e das grandes obras da literatura brasileira tratam dos excluídos da
sociedade. Mas existe um extremo da exclusão, quando os excluídos não são somente pobres —
eles nem sequer são cidadãos. Não tem lar ou documentos. 8 Eles simplesmente não existem. As
crianças de rua brasileiras foram ignoradas por séculos, 9 mas nas últimas décadas têm feito a
sociedade brasileira estremecer e se sentir sob ameaça, o que significa que simplesmente ignorar
o problema deixou de ser uma opção viável. Milhões de crianças 10 vivem e/ou trabalham hoje
nas ruas das grandes cidades brasileiras, esquecidas e ignoradas, usando seu potencial apenas
para sobreviver nas condições mais adversas e impossíveis de imaginar.
1
Publicado durante a campanha abolicionista no Brasil, em 1875, conta a história de uma escrava de pele branca e
mostra o sofrimento e injustiças com que a mesma é tratada.
2
Romance naturalista publicado em 1890, conta a história do surgimento de um cortiço, que pode ser considerado
uma pré-favela.
3
Romance de 1880, marco inicial do realismo, mostra a hipocrisia da sociedade brasileira do século XIX.
4
Conto de 1920 será analisado no segundo capítulo dessa tese.
5
Estudado no segundo capítulo desta tese.
6
Romance de 1956, obra-prima do Guimarães Rosa, trata da vida dos jagunços nos sertões do Brasil.
7
Estudado no quarto capítulo desta tese.
8
Veja o relatório Excluded and Invisible da UNICEF em "The State of the World's Children 2005." UNICEF. 2006.
28 julho 2009. <http://www.unicef.org/sowc06/index.php>.
9
"The State of the World's Children 2006." UNICEF. 2006. 28 julho 2009.
<http://www.unicef.org/sowc06/index.php>.
10
Idem.
2
Para se entender um pouco melhor a extensão do problema das crianças invisíveis no
Brasil, deve-se considerar que em 2006 a UNICEF11 dedicou sua publicação anual, The State of
the World’s Children, às crianças abandonadas. O relatório “Excluded and Invisible” que pode
ser encontrado em sua íntegra no site da UNICEF12 e cujo comunicado à imprensa “Children Out
of Sight, Out of Mind, Out of Reach: Abused and Neglected, Millions of Children Have Become
Virtually Invisible” se encontra nos anexos dessa tese, estima que o número de crianças
invisíveis em todo o mundo é de dezenas de milhões e aumenta a cada dia. Cabe salientar que
esses números são estimativas. Como explicado no mesmo relatório, metade das crianças que
nascem nos países em desenvolvimento, excluindo a China, não é registrada, e sendo assim não
podem ser contadas de forma precisa. No Brasil, ainda de acordo com o mesmo relatório, estimase que milhões de crianças vivem e/ou trabalham nas ruas, e como as crianças de rua de outras
partes do mundo, sofrem abusos e são como que invisíveis aos olhos da sociedade.
A razão porque escolhi o tema das crianças invisíveis na literatura brasileira é que quando
era criança em Salvador, tive a oportunidade de conhecer e conviver com muitas crianças de rua,
devido ao trabalho de minha mãe em uma organização não governamental que assistia algumas
dessas crianças. Em 2002 comecei minhas pesquisas sobre o assunto e em 2003, junto com
alguns amigos, comecei uma organização não governamental providenciando educação para
crianças em situação de risco que, infelizmente, fechou em 2007 por falta de fundos. Ao
11
A UNICEF ou United Nations Children's Fund “is on the ground in over 150 countries and territories to help
children survive and thrive, from early childhood through adolescence. The world's largest provider of vaccines for
developing countries, UNICEF supports child health and nutrition, good water and sanitation, quality basic
education for all boys and girls, and the protection of children from violence, exploitation, and AIDS. UNICEF is
funded entirely by the voluntary contributions of individuals, businesses, foundations and governments”.
Tomas, Martin, and Kate Mayhew. "Pregnancy 300 times deadlier in developing world." UNICEF, 15 Jan. 2009. 28
Julho 2009.
<http://www.unicef.com.au/More/MediaCentre/Mediareleases/Pregnancy300timesdeadlierindevelopingworld/tabid/
244/Default.aspx>.
12
"The State of the World's Children 2006: Children Out of Sight, Out of Mind, Out of Reach." UNICEF. 14
dezembro 2005. 28 julho 2009. <http://www.unicef.org/sowc06/press/release.php>.
3
começar minhas pesquisas para esta tese em 2008, especificamente na área de literatura
brasileira, pois em estudos sociológicos a quantidade de publicações é colossal, fiquei surpreso
ao ver quão pouco havia sido publicado sobre o tema, cujas manifestações socio-geográficas
alcançam hoje proporções catastróficas. É importante notar que o fenômeno tem sido
incorporado na literatura mundial já faz algum tempo, por exemplo, Gavroche em Les
Miserables de Victor Hugo (1862) e o grupo de crianças que roubavam nas ruas de Londres em
Oliver Twist (1837-1839) de Charles Dickens. A grande diferença é que estas crianças são
brancas enquanto que as crianças de rua brasileiras, em sua grande maioria, são negras ou
mestiças.
Como já foi dito, não existem estatísticas precisas sobre essas crianças invisíveis, mas a
UNICEF também estima que 45 por cento das crianças brasileiras vive abaixo da linha de
pobreza, sendo a maior parte dessas crianças negras ou pardas 13. A questão racial então está
intrinsecamente associada com a existência das crianças invisíveis, em especial com a existência
das crianças de rua. Na maioria da obras que serão estudadas neste trabalho as crianças retratadas
não são brancas.
Até o presente momento não encontrei nenhuma referência a crianças vivendo nas ruas
em nenhuma obra de ficção brasileira antes de 1922, ano de publicação da primeira edição de
Dentro da Vida de Ranulpho Prata. 14 Isto não significa que não existam referências a crianças
vivendo nas ruas em obras de ficção publicadas em data anterior, mas não existe, que seja de
meu conhecimento, nenhum trabalho crítico catalogando estas publicações. Também durante a
13
“Dados sobre a infância e a adolescência: Diversidade e equidade no Brasil.” UNICEF - Brazil. 26 Set. 2009.
<http://www.unicef.org/brazil/pt/siab03_2a.pdf>.
14
Escritor sergipano, conhecido por sua amizade com Lima Barreto e pelo romance Navios Iluminados de 1937.
4
ditadura do Estado Novo, 15 de 1937 a 1945, e durante a primeira parte da Ditadura Militar, 16 de
1964 a 1970, muito pouco foi publicado sobre este tópico na literatura brasileira. Note que antes
de 1850, ano da abolição do tráfico de escravos, 17 o negro praticamente não existe na literatura
brasileira, 18 e depois de 1888, com a abolição da escravatura, 19 o problema da criança de rua
começa realmente a se tornar preocupante.20 Assim como a abolição da escravatura, a entrada
em massa de enormes contingentes de imigrantes no Brasil trouxe como conseqüências a
miséria, a exclusão social e a pauperização de vastas camadas sociais. 21
A estrutura e objetivos da tese
A tese terá quatros capítulos, além da conclusão. O capítulo 1 estuda a questão da criança
na literatura brasileira, em especial as crianças marginalizadas que precedem às crianças de rua,
do século XVI até a década de 1920 do século XX, quando as primeiras crianças vivendo nas
ruas aparecem como personagens importantes na literatura brasileira. Atualmente nas obras de
sociologia existe uma diferença entre crianças de rua e crianças na rua. 22 O primeiro grupo se
refere às crianças que vivem nas ruas sem nenhum contato com a família. O segundo grupo são
as crianças que tem ainda algum vínculo familiar. Algumas delas voltam para casa todos os dias,
15
Para mais informações sobre o Estado Novo de Getúlio Vargas, veja D'Araujo, Maria C. O estado Novo. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar, 2000.
16
Para mais informações sobre a Ditadura Militar no Brasil, veja "História Da Ditadura Militar No Brasil." Mundo
Antigo: Portal de História, Geografia, Cultura e Arte. Mundo Antigo, 13 Junho 2008. 28 Julho 2009.
<http://www.tg3.com.br/ditadura>.
17
No dia 4 de setembro de 1850 foi assinada a lei Eusébio de Queiroz, que proibia o tráfico de pessoas da África
para o Brasil.
18
Um dos poucos que escreveram sobre os negros antes de 1850 foram Antônio Vieira, José Basílio de Gama, Santa
Rita Durão, Cláudio Manuel da Costa e Tomás Antônio Gonzaga. Rabassa, Gregory. O negro na ficção brasileira.
Trans. Ana M. Martins (Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1965) 82-84.
19
A Lei Áurea, que abolia a escravatura no Brasil, foi assinada em 13 de maio de 1888, pela princesa Isabel.
20
Santos, Marco A. "Criança e criminalidade no início do século." História das crianças no Brasil. (São Paulo:
Contexto, 1999) 210-30.
21
Idem 228.
22
Koller, Silvia H., and Claudio S. Hutz. Meninos e meninas em situação de rua: Dinâmica, diversidade e
definição. Associação Nacional de Pesquisa e Pós-graduação em Psicologia. CEP-RUA/UFRGS, 1996. 27 Julho
2009. <http://www.infocien.org/Interface/Colets/v1n12a02.pdf>.
5
outros periodicamente, algumas vezes por semana ou por mês. Neste trabalho não é feita a
diferenciação entre criança de rua e criança na rua.
O segundo capítulo trata de Jorge Amado, que em 1935 e 1937 escreveu dois romances
sobre um dos maiores problemas sociais que o Brasil enfrentaria durante o resto do século XX e
ainda enfrenta em 2009, o da criança de rua. Seus dois romances, Jubiabá e Capitães de Areia,
foram queimados em praça pública e proibidos no Brasil até 1944, 23 acusados de propagarem a
doutrina comunista. Os dois livros mostram a violência com que as crianças reagem quando
submetidas à violência de uma sociedade cruel e desigual.
O terceiro capítulo trata das obras de ficção, tendo como personagens crianças de rua, na
rua e outras crianças em situação de risco, publicadas entre 1937 e 1985, entre o início da
ditadura do Estado Novo e o final da Ditadura Militar no Brasil. Serão abordadas obras de
Clarice Lispector, João Antônio e Chico Buarque de Holanda, entre outros. Também será
abordado o romance Infância dos mortos, que foi adaptado para o cinema em 1980 com o título
Pixote.
O quarto capítulo trata das publicações fictícias mais recentes, publicadas após o final da
Ditadura Militar. Será estudado, entre outros, o romance Cidade de Deus de Paulo Lins,
publicado em 1997, uma mistura de etnografia e fantasia que relata a instalação e o crescimento
do tráfico de drogas nas favelas brasileiras a partir de 1970. O livro conta a história de diversos
personagens que, no final dos anos 60, foram morar num conjunto habitacional no Rio de
Janeiro. Mostra a realidade cruel da pobreza e da exclusão social em que vivem milhões de
brasileiros. O romance foi adaptado para o cinema e Cidade de Deus, o filme, foi indicado a
23
Raillard, Alice. Conversando com Jorge Amado. Trans. Annie Dymetman. (Rio de Janeiro: Record, 1990) 103.
6
quatro Oscars 24 em 2004. Apesar de não tratar especificamente da questão das crianças de rua,
Cidade de Deus tem esse tema como pano de fundo. O romance foi baseado em entrevistas que o
autor conduziu no período de 1986 a 1993 25 na favela Cidade de Deus e escrito num período de
dez anos.
No estudo da literatura brasileira não existem trabalhos diretamente relacionados
especificamente com o fenômeno das crianças invisíveis na literatura brasileira. Duas
publicações da década de 1980, O menino na literatura brasileira 26 e Os pobres na literatura
brasileira, 27 ignoram completamente o problema de meninos de rua. A primeira cita Jorge
Amado, mas o único trabalho do mesmo que é citado é o romance O menino grapiúna. 28
Capitães da Areia, o romance mais vendido de Jorge Amado e que trata somente do drama de
meninos de rua não é sequer mencionado. A segunda publicação ignora Jorge Amado
completamente, como se ele nunca tivesse escrito sobre pobres. Mas a literatura brasileira tem
contribuído para mostrar essas crianças não só ao Brasil, mas ao mundo, e este trabalho então se
propõe a apresentar as principais obras brasileiras, incluindo, mas não se limitando a novelas,
romances, contos e produções cinematográficas, que abordam a temática das crianças invisíveis.
A escolha das obras abordadas na tese baseia-se na importância e impacto das obras tanto na
sociedade brasileira quanto internacionalmente.
24
"Cidade de Deus (2002)." The Internet Movie Database (IMDb). 28 Julho 2009.
<http://www.imdb.com/title/tt0317248>.
25
Lins, Paulo. Cidade de Deus romance. (São Paulo: Companhia das Letras, 1997) 2.
26
Resende, Vânia M. O menino na literatura brasileira. São Paulo: Perspectiva, 1988.
27
Schwarz, Roberto, org. Os pobres na literatura brasileira. São Paulo: Brasiliense, 1983.
28
O Menino Grapiúna é um romance autobiográfico que trata de acontecimento e emoções vividos durante a
infância de Jorge Amado.
7
CAPÍTULO I
DO SÉCULO XVI AO INÍCIO DO SÉCULO XX: AS CRIANÇAS ESQUECIDAS
O fenômeno do abandono de crianças não é novo. O primeiro registro escrito sobre
crianças abandonadas encontra-se no código babilônico de Hamurábi, do II milênio antes de
Cristo. 29 Já na tradição judaica, dois exemplos clássicos de abandono de bebês aparecem no
Velho Testamento, Ismael foi abandonado por Agar sob um arbusto para que não morresse, 30 e
Moisés foi abandonado num cesto de vime no Nilo e encontrado pela filha do faraó.31
Na introdução de And Now My Soul Is Hardened: Abandoned Children in Soviet Russia,
1918-1930, Alan Bates afirma que crianças órfãs e abandonadas eram encontradas nas ruas das
grandes cidades desde tempos remotos:
Orphaned and abandoned children have been a source of misery from earliest times.
They apparently accounted for most of the boy prostitutes in Augustan Rome and, a few
centuries later, moved a church council of 442 in southern Gaul to declare: “Concerning
abandoned children: there is general complaint that they are nowadays exposed more to
dogs than to kindness.” 32
Foi estimado que os romanos urbanos abandonaram entre 20 e 40 por cento de seus filhos
nos três primeiros séculos da era cristã.33 As tradições judaicas e romanas do abandono de
crianças e dos cuidados com as crianças desamparadas foram passadas para os primeiros cristãos
romanos, e ainda no século II, os moralistas da época condenavam o ato de abandono dos filhos,
29
Marcílio, Maria L. História social da criança abandonada. (São Paulo: HUCITEC, 1998) 21.
Genesis. Bíblia Sagrada. (London: Trinitarian Bible Society, 1994) 21, 8-23.
31
Idem 12-16.
32
Ball, Alan M. And now my soul is hardened abandoned children in Soviet Russia, 1918-1930. Berkeley:
University of California, 1994.
33
Marcílio, Maria L. História social da criança abandonada. (São Paulo: HUCITEC, 1998) 25.
30
8
afirmando que os que assim faziam eram assassinos de menores, e que essas crianças
abandonadas poderiam cometer incesto futuramente, com outro abandonado que fosse seu
parente, ou que do ato do abandono poderia advir infanticídio, estímulo a relações extra
matrimoniais ou à prostituição.34
Já na literatura mundial moderna, as crianças de rua têm aparecido desde o século XVI.
Publicado na Espanha em 1554, La vida de Lazarillo de Tormes y de sus fortunas y
adversidades, romance anônimo que tem a honra de ser apontado como a fundação de um gênero
literário, o romance picaresco, tem também a honra de ser a primeira obra de ficção que traz
como personagem um menino que vive nas ruas, sem família, tentando conseguir sobreviver. 35
Outras obras célebres que trazem crianças de rua como personagens incluem Oliver Twist de
Charles Dickens, publicado na Inglaterra entre 1837 e 1839, na forma de folhetim, e Os
miseráveis, de Victor Hugo, publicado na França em1862. No Brasil, embora existam registros
de crianças órfãs e abandonadas desde o século XVI, 36 a criança de rua não aparece na literatura
até o início do século XX, como será abordado posteriormente.
As crianças brasileiras no século XVI, órfãs ou não, tinham destinos diferentes a
depender da raça, brancas, índias ou negras. As brancas e índias eram confiadas aos jesuítas, as
negras eram mercadoria e, se fugiam, tentavam encontrar quilombos onde se refugiavam. 37
Segundo Esther Arantes, que faz parte de um projeto sobre a História da assistência à Infância
34
Marcílio, Maria L. História social da criança abandonada. (São Paulo: HUCITEC, 1998) 27.
Koller, Silvia H., and Claudio S. Hutz. Meninos e meninas em situação de rua: Dinâmica, diversidade e
definição. Associação Nacional de Pesquisa e Pós-graduação em Psicologia. CEP-RUA/UFRGS, 1996. 27 Julho
2009. <http://www.infocien.org/Interface/Colets/v1n12a02.pdf>.
36
Para mais informações sobre a história das crianças no Brasil, consulte Del Priore, Mary, org. História das
crianç as no Brasil. São Paulo, SP: Editora Contexto, 1999 e/ou De Freitas, Marcos C., org. História social da
infância no Brasil. São Paulo: Cortez, 1997.
37
Chambouleyron, Rafael. "Jesuítas e as crianças no Brasil quinhentista." História das crianças no Brasil. Org.
Mary Del Priore. (São Paulo: Contexto, 1999) 55-83.
35
9
no Brasil e cujas pesquisas foram feitas por mais de 20 anos em diferentes arquivos públicos
brasileiros:
Durante os primeiros séculos da colonização portuguesa, a prática em relação à criança
indígena era a de separá-la de sua família para moldá-la aos costumes ditos civilizados e
cristãos, e em relação à criança negra era a de sua incorporação como força de trabalho
escravo, tão logo atingisse a idade de sete anos. 38
Vemos então que as crianças tinham destinos estabelecidos nos primeiros séculos da
história do Brasil, as negras iriam aprender um ofício, as índias e as brancas iriam para as escolas
dos Jesuítas. Os primeiros jesuítas chegaram ao Brasil em 1549, e desde então a estratégia foi
ensinar o maior número de meninos, eles abriam uma escola sempre que abriam uma igreja. 39
Em 1685 Alexandre de Gusmão, nascido em Portugal, mas formado em colégios da
Companhia de Jesus no Brasil, publica Arte de criar bem os filhos na idade da Puerícia, que
apresenta as normas cristãs referentes à criação dos meninos e meninas. A educação para
Alexandre de Gusmão é um ato de amor muito importante para as famílias e para a sociedade.
No prefácio de sua obra Gusmão apresenta o ato de educar como sendo “uma obrigação dos da
Companhia de Jesus, fica clara a razão, porque me resolvi fazer este Tratado, que intitulo Arte de
criar bem os filhos na idade da Puerícia, para que os pais de família saibam a obrigação, que tem
de criá-los e saibam também como há de fazer com acerto”. 40
38
Arantes, Esther M. "A reforma das prisões, a Lei do Ventre Livre e a emergência no Brasil da categoria do menor
abandonado." Pol Psicologia Online. Conselho Federal de Psicologia, 10 Dez. 2008. 1 Agosto 2009.
<http://www.pol.org.br/pol/export/sites/default/pol/noticias/noticiaDocumentos/ A_reforma_das_prisxes.pdf>.
39
Chambouleyron, Rafael. "Jesuítas e as crianças no Brasil quinhentista." Org. Mary Del Priore. História das
crianças no Brasil. (São Paulo: Contexto, 1999) 55 a 74.
40
Gusmão, Alexandre de. A arte de criar bem os filhos na idade da puerícia. Lisboa, 1685.
10
Em 1713 foi publicado em Portugal Orphanologia Practica, 41 de Antonio de Payva e
Pona, que tinha sido Juiz de Órfãos. O livro explica como fazer os inventários e as partilhas dos
bens dos órfãos, assim como explica quem seriam os responsáveis pelos órfãos. Existe um
cuidado em se detalhar todas a situações possíveis para que nenhuma criança ficasse
desamparada. 42 Aos sete anos as crianças órfãs eram dadas por “soldada”,
43
ou seja, eles
iriamtrabalhar como aprendizes em algum ofício, e ganhariam um salário chamado “soldada”. Se
os órfãos fugissem (o que devia acontecer, já que existem procedimentos estabelecidos para essa
situação), se a culpa fosse do patrão, devido a maus-tratos, o patrão deveria pagar o tempo que o
órfão serviu, sem que este seja obrigado a retornar ao antigo trabalho. Se a culpa fosse do órfão,
deveriam terminar o tempo de serviço, e servir outro tanto pelo tempo que estivera fugido. 44
Orphanologia Practica indica algumas considerações importantes sobre a criança
brasileira no período em que o Brasil era parte de Portugal. Primeiro, o cuidado que havia para
que a criança portuguesa pobre (não existem menções no livro às crianças negras ou índias) fosse
cuidada nos primeiros anos de vida. Segundo, a idade com que as crianças pobres entravam no
mercado de trabalho era muito baixa, sete anos, a mesma das crianças negras escravas, e as
condições de trabalho, apesar de não serem descritas, deviam ser as mais diversas possíveis.
Os jesuítas que vieram ao Brasil para trabalhar como missionários e catequizar aos
índios não se ocuparam das crianças abandonadas nem das ilegítimas, fossem filhas de escravas
41
Pona, Antonio de Paive e. Orphanologia practica. Lisboa, 1713.
Segundo Antonio de Paiva e Pona, a criança, se um dos pais estivesse vivo, seria cuidado por este; se o mesmo se
recusasse e se a criança não tivesse parentes que pudessem cuidar dela, ou fosse filha de religiosos ou de mulheres
casadas, a criança órfã seria criada por hospitais ou albergarias; se não houvesse estas na cidade, pelo conselho da
cidade; se isso não fosse possível, pessoas seriam pagas para cuidar da criança até a idade de sete anos. Pona,
Antonio de Paiva. Orphanologia practica. (Lisboa, 1713) 179.
43
Idem 180-181.
44
ibidem 181.
42
11
ou de mulheres livres. Crianças abandonadas nas rodas dos expostos45 não eram admitidas nos
colégios dos jesuítas. 46
Segundo Judite Trindade, a concepção de infância como etapa de um ser inocente e frágil
foi esboçada e construída nos séculos XVI e XVII devido a uma nova sensibilidade burguesa que
teve como base a separação entre a criança e o adulto. A infância era então considerada como o
processo ou etapa de construção do homem. Acreditava-se que a criança era incapaz de se
prover, seja do ponto de vista material ou moral. Mas tão logo fosse ultrapassada a etapa de
maior dependência, passava-se a cobrar outro tipo de comportamento da criança, no qual a noção
de aprendizagem estava fortemente arraigada. Até meados do século XIX, em geral, a criança
era considerada como algo tão irrelevante e tão sem valor em face do adulto, que seu estudo se
afigurava como desnecessário e desprovido de rigor científico. Era necessário somente protegêla, geralmente de acordo com as normas cristãs. Mas essa proteção era somente um dever moral
visto como responsabilidade das mães e, na falta delas, de pessoas bem intencionadas. 47
As primeiras crianças na literatura brasileira
Com relação à literatura brasileira, conforme observado por Marisa Lajolo, a primeira
criança que é citada se encontra no texto de fundação da literatura brasileira, a carta de Pero Vaz
de Caminha ao rei português D. Manuel, em 1500. 48 Caminha descreve essa criança da seguinte
forma: “tambem andava hy outra molher moça com huu menjno ou menina no colo atada com
45
Marcílio, Maria L. "A roda dos expostos e a criança abandonada na História do Brasil. 1726-1950." Org. Marco
C. de Freitas. História social da infância no Brasil. (São Paulo: Cortez, 1977) 51-76.
46
Marcílio, Maria L. História social da criança abandonada. (São Paulo: HUCITEC, 1998) 131.
47
Trindade, Judite M. "O abandono de crianças ou a negação do óbvio." SciELO - Scientific electronic library
online. Set. 1999. 22 Set. 2009. <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S010201881999000100003>.
48
Lajolo, Marisa. "Infância de papel e tinta." História social da infância no Brasil. Org. Marcos C. Freitas. São
Paulo: Cortez, 1997. 225-46.
12
pano nõ sey de que aos peitos, que lhe nõ parecia se nõ as pernjnhas. mas as pernas da may e o al
nõ trazia nhuu pano”. 49
Da primeira personagem infantil da literatura brasileira aparecem então só as pernas. E
mais de três séculos depois outra criança índia aparece em outro texto da literatura brasileira,
Moacir, o filho de Iracema e Martim, logo no início de Iracema de José de Alencar, romance
publicado pela primeira vez em 1865. A criança aparece no início do romance, mas o que se
conta é o final da história. Iracema morta, Martim e o filho estão numa jangada sem rumo. Se
levássemos em conta que os rios naquela altura eram as ruas, teríamos o primeiro menino de rua.
Mas essas duas crianças brasileiras tinham pelo menos um dos pais os protegendo.
Casimiro de Abreu com seu poema famoso “Meus oito anos” 50 canta a saudade que
sente de sua infância querida, a “aurora” da sua vida. Chora a infância que os anos não trazem
mais. Suspira pelo amor, os sonhos e as flores das tardes fagueiras que passava debaixo de
laranjais. Suspira de saudade da beleza daqueles dias. Da inocência e do sonho dourado que
existiam então. E chama vida de um hino de amor. Este poema traz a infância idealizada e
representa a inocência e felicidade associadas à mesma.
Estes são apenas alguns exemplos, mas ilustram como a criança foi apresentada nos
primórdios da literatura brasileira. Frágil, inocente, pura e sempre protegida. Mas essa
abordagem da infância não continuou por muito tempo. Ainda no século XIX, Machado de Assis
em alguns de seus contos mostrou adultos exercendo tirania sobre crianças. 51
49
Castro , Silvio. A carta de Pero Vaz de Caminha. 2 a ed.( Porto Alegre: LP&M, 1985) 49.
Moisés, Massaud. A literatura brasileira através dos textos. 12 a ed. (São Paulo: Cultrix, 1986) 156-57.
51
Resende, Vânia M. O menino na literatura brasileira. (São Paulo: Perspectiva, 1988) 179.
50
13
A criança em dois contos de Machado de Assis
O “Conto de Escola” de 1884 é na primeira pessoa, a história se passa em 1840. Pilar, um
garoto de 10 anos, tem o primeiro contato com a corrupção e a delação. Ele recebe uma moeda
de um colega de classe, o filho do professor, para ajudá-lo com uma tarefa de escola e ao ser
denunciado por outro colega é punido pelo professor. Mas um dos pontos interessantes do conto
para o tema das crianças de rua é o fascínio que a rua tinha sobre Pilar:
Com franqueza, estava arrependido de ter vindo. Agora que ficava preso, ardia por andar
lá fora, e recapitulava o campo e o morro, pensava nos outros meninos vadios, o Chico
Telha, o Américo, o Carlos das Escadinhas, a fina flor do bairro e do gênero humano.
Para cúmulo de desespero, vi através das vidraças da escola, no claro azul do céu, por
cima do morro do Livramento, um papagaio de papel, alto e largo, preso de uma corda
imensa, que boiava no ar, uma coisa soberba. E eu na escola, sentado, pernas unidas com
o livro de leitura e a gramática nos joelhos. 52
No início do conto, ele narra o castigo que recebe do pai por passar dois dias sem ir à
escola, para somente vagar pelas ruas, e no dia seguinte ao episódio com a moeda, ao invés de ir
procurar a mesma, segue pelas ruas do Rio de Janeiro, primeiro seguindo um grupo de fuzileiros,
depois só vagando pela cidade.
Na rua encontrei uma companhia do batalhão de fuzileiros, tambor à frente, rufando. Não
podia ouvir isto quieto. Os soldados vinham batendo o pé rápido, igual, direita, esquerda,
ao som do rufo; vinham, passaram por mim, e foram andando. Eu senti uma comichão
nos pés, e tive ímpeto de ir atrás deles. Já lhes disse: o dia estava lindo, e depois o
52
Assis, Machado de. 50 contos de Machado de Assis. Org. John Gledson. 2 a ed. (São Paulo: Schwarcz, 2007) 327.
14
tambor... Olhei para um e outro lado; afinal, não sei como foi, entrei a marchar também
ao som do rufo, creio que cantarolando alguma coisa: Rato na casaca... Não fui à escola,
acompanhei os fuzileiros, depois enfiei pela Saúde, e acabei a manhã na Praia da
Gamboa. Voltei para casa com as calças enxovalhadas, sem pratinha no bolso nem
ressentimento na alma. E contudo a pratinha era bonita e foram eles, Raimundo e
Curvelo, que me deram o primeiro conhecimento, um da corrupção, outro da delação;
mas o diabo do tambor... 53
Machado de Assis nesse conto mostra um pouco o fascínio que as ruas têm sobre as
crianças pobres brasileiras, por ser um local de liberdade onde elas podiam por alguns momentos
escapar da tirania que sofrem. 54
Em outro conto onde também aparecem crianças, “Pai contra mãe”, publicado pela
primeira vez em 1906, o protagonista Cândido Neves tem o trabalho de capturar escravos
fugidos e receber a recompensa. Por ser esse um trabalho incerto e por ter Cândido um defeito
sério, o de não agüentar emprego ou ofício, ele e sua esposa viviam em um estado de quase
miséria. Ao nascer seu primeiro filho, Cândido recebeu de sua tia Mônica que vivia com o casal
um conselho duríssimo, o de levar a criança à roda dos enjeitados. 55 Completamente contrário à
idéia, mas obrigado pela extrema pobreza em que vivia a aceitá-la, Cândido leva seu filho para a
supracitada roda. Mas no caminho da roda, em um lance de sorte ele avista uma mulata, escrava
fugida, cuja recompensa por sua captura era de cem mil réis. Cândido então deixa o filho com
53
Assis, Machado de. 50 contos de Machado de Assis. Org. John Gledson. 2a ed. (São Paulo: Schwarcz, 2007) 333.
Muito foi escrito sobre as crianças de rua, em especial sobre a rua como sendo um espaço de liberdade , onde as
crianças, principalmente escravas ou pobres, podiam fugir um pouco de seus afazeres diários e serem crianças. Para
ler mais sobre a história das crianças brasileiras e a rua, consulte Kelly, Alain P. "Medo, Vergonha, Necessidade e
Protagonismo: Os Meninos de Rua em Salvador/BA-BRASIL e em Dacar/SENEGAL." Diss. UFRJ, 2005. CPDA
UFRJ. UFRJ, 2005. 28 Julho 2009. <http://www.ufrrj.br/cpda/static/teses/d_alain_pascal_2005.pdf>.
55
Segundo Maria Marcílio, as rodas dos expostos ou rodas dos enjeitados foi um sistema criado na idade média e no
Brasil durou de 1726 até 1950. As rodas eram os locais onde crianças enjeitadas eram abandonadas. Marcílio, Maria
L. "A roda dos expostos e a criança abandonada na História do Brasil. 1726-1950." Org. Marco C. de Freitas.
História social da infância no Brasil. (São Paulo: Cortez, 1977) 51-76.
54
15
um farmacêutico, captura a escrava que estava grávida, a retorna ao dono e recebe a recompensa.
A escrava fugida aborta em sua frente.
O conto trata do tema da opressão. A criança escrava, mais fraca, morre antes mesmo de
nascer, para que o filho de Cândido possa se salvar do destino que o espera. “O dono, pela força
de seu dinheiro, domina a consciência moral de Cândido e este, pela sua força física, domina a
escrava. É a lei do mais forte que, em cadeia pisa no mais fraco: mors tua vita meã.”56 Este conto
representa a técnica de Machado de Assis sugerida por Antonio Cândido, que “consiste
essencialmente em sugerir as coisas mais tremendas da maneira mais cândida (como os ironistas
do século XVIII); ou estabelecer um contraste entre a normalidade social dos fatos e a sua
anormalidade essencial.” 57
Machado de Assis com este conto também ilustra muito bem a dualidade que existia (e
que infelizmente ainda existe) no Brasil com relação às suas crianças, que até o final do século
XX foram rotuladas como menor, se eram de classes sociais mais baixas, ou crianças
propriamente dita, os filhos dos mais abastados. Uma conseqüência de um regime construído
sobre a relação desigual senhor/escravo. 58
56
D'Onofrio, Salvatore. "A ironia do destino no conto machadiano." Conto brasileiro: Quatro leituras. (Petrópolis:
Vozes, 1979) 11-38.
57
Candido, Antonio. "Esquema de Machado de Assis". Vários escritos. (São Paulo: Duas Cidades, 1977) 15-32.
58
De acordo com Esther Arantes, mesmo com o final da escravidão em 1888 e com a proclamação da República em
1889, a dualidade criança/menor continua. O código penal de 1890 regulamentou a idade de imputabilidade penal
em 9 anos, permitindo o envio de crianças e adolescentes para as casa de detenção. O código Civil de 1916 tratou
dos “filhos de família” enquanto que o Código de menores de 1927 tratava dos menores abandonados, o que
constituía um duplo estatuto de menoridade, o da criança e o do menor. Essa dualidade continuou durante a maior
parte do século XX, só na Constituição Federal de 1988 é adotada a Declaração Universal dos Direitos das Crianças,
o que leva a promulgação do Estatuto da Criança e do Adolescente em 1990. O que ainda não eliminou
completamente a dualidade menor/criança. Arantes, Esther M. "A reforma das prisões, a Lei do Ventre Livre e a
emergência no Brasil da categoria." Pol Psicologia Online. Conselho Federal de Psicologia, 10 Dez. 2008. 1 Agosto
2009. <http://www.pol.org.br/pol/export/sites/default/pol/noticias/noticiaDocumentos/ A_reforma_das_prisxes.pdf>.
16
Os meninos de rua no final do século XIX
Lígia Costa Leite, professora de psiquiatria na UFRJ, defendeu sua tese de doutorado em
comunicação e cultura em 1996, tese que foi dois anos depois publicada com o título Meninos de
rua: O rompimento da ordem 1554/1994. Neste livro ela apresenta diversos trechos de
reportagens e editoriais publicados no Brasil em diferentes épocas sobre as crianças de rua. Em
18 de junho de 1898 foi publicado um editorial no Jornal do Commercio sobre o grave problema
das crianças de rua, que em “faculdades livres” aprendem, sem que as autoridades competentes
tomem nenhuma providência, a serem permissivas, imorais e criminosas:
[. . .] A imprensa, louvando a energia da polícia, chama a atenção das autoridades
competentes para as faculdades livres em que se ensina a imoralidade e a arte de furtar ou
de roubar. Meninas de dez anos já são doutoras. Vendem flores, sem excluir as de
laranjeiras. Criançolas de oito anos, bacharéis em latrocínios, espantam a gente sisuda
não tanto pelo que fazem, mas pelo que permitem fazer. 59
O editorial faz referência a meninas de dez anos, já consideradas doutoras e vendendo
flores de laranjeira, símbolos de pureza e inocência. O que representa neste contexto a venda da
virgindade. Já os meninos de oito anos com sua violência espantam a gente sisuda, sendo
diferentes dos meninos de oito anos que os poetas cantam em seus versos, crianças que são a
imagem da ternura, pureza e vulnerabilidade.
O editorial continua descrevendo crianças de um ou dois anos que sem o saber, já
ganham um salário. Crianças magras e pálidas, cobertas de feridas, que atraem a piedade dos que
59
Leite, Lígia C. Meninos de Rua: O rompimento da ordem 1554 / 1994. (Rio de Janeiro: UFRJ IPUB, 1998) 92.
17
as vêem, e essa piedade é descrita como um crime involuntário. Já que a criança mais sofredora é
a que mais comoverá, essa é também a que conseguirá uma receita mais abundante:
Os artistas da mendicidade, conscientes de sua força e de nossa fraqueza, afinam suas
crianças para a dor como um músico afina seu violino. Eles deformam os pezinhos dos
recém-nascidos, eles cegam os pequeninos, para que esses desgraçados apanhem mais
dinheiro para os seus exploradores.60
Após serem expostas as crueldades cometidas contra essas crianças, o editorial compara a
vida que elas levam com à dos animais. Enquanto o criador engorda o porco e a vaca, e com mil
cuidados trata da saúde de seus bichos, o que vive da mendicidade infantil faz o contrário. A
criança tem que parecer moribunda, coberta de andrajos e de ferimentos. Mas sem que morra,
para que não se perca a fonte de renda.
O editorial termina pedindo que as autoridades persigam esses martirizadores de crianças,
que fazem da caridade cúmplice de ladroeira. 61 Um contraste interessante entre o incômodo que
as crianças maiores, que roubam e se prostituem causam, em relação com o espírito de piedade
que as criancinhas maltrapilhas causam.
O Bom Crioulo e Canaã: duas perspectivas diferentes da infância na virada do século XX
O bom crioulo de Adolfo Caminha, escrito em 1895, também mostra a criança em uma
perspectiva diferente da abordada pelos escritores brasileiros do século XVI ao início do século
XIX. Ainda que frágil e desprotegido, um grumete de quinze anos se torna objeto de paixão de
Amaro, escravo fugido que se torna marinheiro:
60
61
Leite, Lígia C. Meninos de Rua: O rompimento da ordem 1554 / 1994. (Rio de Janeiro: UFRJ IPUB, 1998) 94.
Idem 95.
18
Sua amizade ao grumete nascera, de resto, como nascem todas as grandes afeições,
inesperadamente, sem precedentes de espécie alguma, no momento fatal em que seus
olhos se fitaram pela primeira vez. Esse movimento indefinível que acomete ao mesmo
tempo duas naturezas de sexo contrários, determinando o desejo fisiológico da posse
mútua, essa atração animal que faz o homem escravo da mulher e que em todas a
espécies impulsiona o macho para a fêmea, sentiu-a Bom-Crioulo irresistivelmente ao
cruzar a vista pela primeira vez com o grumetezinho. Nunca experimentara semelhante
cousa, nunca homem algum ou mulher produzira-lhe tão esquisita impressão, desde que
se conhecia! Entretanto, o certo é que o pequeno, uma criança de quinze anos, abalara
toda a sua alma, dominando-a, escravizando-a logo, naquele mesmo instante, como a
força magnética de um imã. 62
Amaro, o bom crioulo do título, quando ainda adolescente era escravo, mas fugiu de seu
senhor e embarcou como marinheiro. 63 Alguns anos depois, já com uma reputação estabelecida
de bom marinheiro, Amaro conheceu um rapaz pobre de quinze anos, que passara a trabalhar
como grumete em seu navio. O romance aborda o tema do homossexualismo entre Amaro e o
rapaz de 15 anos. O tema do homossexualismo e o abuso sexual aparecerão constantemente nos
romances abordando crianças de rua, como veremos depois, em obras como Capitães da Areia
de Jorge Amado e Infância dos Mortos, de José Louzeiro,.
62
Caminha, Adolfo. Bom-Crioulo. (Rio de Janeiro: Edições de Ouro, 1963) 51.
Uma opção para muitas crianças pobres de todas as raças era trabalhar nos navios como grumetes, em condições
mais que desumanas e sofrendo abusos de todas as formas, incluindo sexual. Para mais informações ver Ramos,
Fábio P. "A história trágico-marítima das crianças nas embarcações portuguesas do século XVI." História das
Crianças no Brasil. Org. Mary Del Priore. (São Paulo: Contexto, 1999) 19-54.
63
19
Em Canaã, de 1902, Graça Aranha descreve a luta do imigrante europeu para se
estabelecer no Brasil. 64 Logo no início do romance é apresentada uma criança, um menino de
nove anos que serve como guia:
Na frente do imigrante vinha como guia um menino, filho de um alugador de animais no
queimado. […]
- Tu voltas logo para casa, ou queres descansar um pouco? Fica até à tarde...
- Oh! patrão... o pai diz que eu volte já; hoje é dia de ir com a mãe fazer lenha, após tratar
dos animais, consertar a rêde que a canoa de seu Zé Francisco arrebentou esta
madrugada; e nós vamos à noite, antes da lua aparecer, deitar a rêde, porque hoje, se a
água estiver quente, é noite de peixe... O pai disse.
O imigrante compadecido testemunhava naqueles nove anos do desgraçado a assombrosa
precocidade dos filhos dos miseráveis. 65
64
Segundo Boris Fausto, a vinda de imigrantes para o Brasil, com exceção dos portugueses , colonizadores do País,
delineou-se a partir da abertura dos portos às "nações amigas" (1808) e da independência do País (1822): “Os
monarcas brasileiros trataram de atrair imigrantes para a região sul do país, oferecendo-lhes lotes de terra para que
se estabelecessem como pequenos proprietários agrícolas. Vieram primeiro os alemães e, a partir de 1870, os
italianos, duas etnias que se tornaram majoritárias nos estados de Santa Catarina e Rio Grande do Sul. Entretanto, a
grande leva imigratória começou em meados de 1880, com características bem diversas das acima apontadas. A
principal região de atração passou a ser o estado de São Paulo e os objetivos básicos da política imigratória
mudaram. Já não se cogitava de atrair famílias que se convertessem em pequenos proprietários, mas de obter braços
para a lavoura do café, em plena expansão em São Paulo. A opção pela imigração em massa foi a forma de se
substituir o trabalhador negro escravo, diante da crise do sistema escravista e da abolição da escravatura (1888). Ao
mesmo tempo, essa opção se inseria no quadro de um enorme deslocamento transoceânico de populações que
ocorreu em toda a Europa, a partir de meados do século XIX, perdurando até o início da Primeira Guerra Mundial. A
vaga imigratória foi impulsionada, de um lado, pelas transformações sócio-econômicas que estavam ocorrendo em
alguns países da Europa e, de outro, pela maior facilidade dos transportes, advinda da generalização da navegação a
vapor e do barateamento das passagens. A partir das primeiras levas, a imigração em cadeia, ou seja, a atração
exercida por pessoas estabelecidas nas novas terras, chamando familiares ou amigos, desempenhou papel relevante”.
Fausto, Boris. "Um Pouco de História." 06 set. 2009. <http://www.projetoimigrantes.com.br/int.php?dest=hist>.
65
Aranha, Graça. Canaã. 11 a ed. (Rio de Janeiro: F. Briguiet, 1959) 6-8.
20
Novamente a criança brasileira pobre é retratada, mas um fator novo entra na composição
da população brasileira, os imigrantes europeus de outros países que não Portugal. Descendentes
desses imigrantes passaram também a fazer parte do contingente das crianças de rua brasileiras.
Monteiro Lobato, Lima Barreto, Manuel Bandeira e a dualidade criança/menor
Monteiro Lobato com seu conto “Negrinha,” publicado em 1920 em um livro de contos
homônimo, ilustra a condição da criança pobre e negra no Brasil após a abolição da escravatura.
Uma menina mulata de sete anos que morre de tristeza ao descobrir que a vida era mais que os
maus-tratos que sempre tinha recebido.
Negrinha era uma pobre órfã de sete anos. Preta? Não; fusca, mulatinha escura, de
cabelos ruços e olhos assustados.
Nascera na senzala, de mãe escrava, e seus primeiros anos vivera-os pelos cantos
escuros da cozinha, sobre velha esteira e trapos imundos. Sempre escondida, que a
patroa não gostava de crianças.
Excelente senhora, a patroa. Gorda, rica, dona do mundo, amimada dos padres, com
lugar certo na igreja e camarote de luxo reservado no céu. Entaladas as banhas no trono
(uma cadeira de balanço na sala de jantar), ali bordava, recebia as amigas e o vigário,
dando audiências, discutindo o tempo. Uma virtuosa senhora em suma — “dama de
grandes virtudes apostólicas, esteio da religião e da moral”, dizia o reverendo.
66
Lobato ironicamente continua exaltando as qualidades da patroa e descreve como a
menina chamada Negrinha cresceu. É uma história não muito diferente das obras de literatura
que abordam o tema das crianças de rua e que serão analisadas em breve:
66
Lobato, Monteiro. "Negrinha." Negrinha. 13 a ed. (São Paulo: Brasiliense, 1967) 3.
21
Assim cresceu Negrinha — magra, atrofiada, com os olhos eternamente assustados.
Órfã aos quatro anos, por ali ficou feito gato sem dono, levada a pontapés. [...] 67
Tempo houve em que foi a bubônica. A epidemia andava na berra, como a grande
novidade, e Negrinha viu-se logo apelidada assim — por sinal que achou linda a
palavra. Perceberam-no e suprimiram-na da lista. Estava escrito que não teria um
gostinho só na vida — nem esse de personalizar a peste... 68
A menina vivia então em terríveis condições, mas por ser a única vida que conhecia, era
resignada com seu destino. Até certo dezembro, quando duas sobrinhas da Inácia descritas
como “lindas meninas louras, ricas, nascidas e criadas em ninho de plumas,” vieram passar
férias com a tia. Negrinha então percebe a diferença com que essas crianças eram tratadas e que
existiam brinquedos. O conhecimento dessa terrível desigualdade humana a matou:
Negrinha, coisa humana, percebeu nesse dia da boneca que tinha uma alma. Divina
eclosão! Surpresa maravilhosa do mundo que trazia em si e que desabrochava, afinal,
como fulgurante flor de luz. Sentiu-se elevada à altura de ente humano. Cessara de ser
coisa — e doravante ser-lhe-ia impossível viver a vida de coisa. Se não era coisa! Se
sentia! Se vibrava!
Assim foi — e essa consciência a matou. 69
Monteiro Lobato neste conto, de maneira ainda mais explícita que Machado de Assis
em “Pai contra mãe”, explora a monstruosa dualidade que existia na forma como crianças de
diferentes classes sociais eram tratadas. O fenômeno que se originou com as relações
senhor/escravo explica, embora não justifique o tratamento dado às crianças de rua no Brasil
até nossos dias. Com relação ao narrador do conto, embora ele seja onisciente, seus
comentários irônicos permitem que identifiquemos sua simpatia pela vítima e a crítica contra a
crueldade e a opressão. A finalidade do autor é obviamente chamar a atenção dos leitores
67
Lobato, Monteiro. "Negrinha." Negrinha. 13 a ed. (São Paulo: Brasiliense, 1967) 4.
Idem 5.
69
Ibidem 11.
68
22
sobre a crueldade e a injustiça. No caso particular, a crueldade e injustiça contra crianças
indefesas.
Também em 1920, no mesmo volume de contos intitulado Negrinha, encontra-se o
conto “O Fisco”, onde o narrador elabora sucessivas comparações entre o organismo humano
e a vida na cidade:
A rua é a artéria; os passantes, o sangue. O desordeiro, o bêbado e o gatuno são os
micróbios maléficos, perturbadores do ritmo circulatório determinado pelo trabalho, em
particular dos imigrantes italianos. O soldado de polícia é o glóbulo branco - o fagocito
de Metchenikoff. Mal se congestiona o tráfego pela ação anti-social do desordeiro, o
fagocito move-se, caminha, corre, cai a fundo sobre o mau elemento e arrasta-o para o
xadrez. 70
O micróbio no conto era uma criança maltrapilha, apavorada e sem entender o que
estava acontecendo. Pedrinho com nove anos, o filho mais velho de um casal de italianos,
decide construir uma caixa de engraxate para trabalhar e ajudar os pais. Um fiscal que passa
pelo lugar pede por sua licença de trabalho. O garoto, que não possuía a tal licença e não
entendia o que se passava, é levado pelo fiscal para casa, que toma as economias da família,
como multa. O menino leva uma surra no quintal e o fiscal gasta o dinheiro da multa no
botequim mais próximo. Assim como em “Negrinha”, o objetivo do conto é o de denunciar e
chamar a atenção do leitor sobre uma camada da população pobre e oprimida. Mas agora os
personagens são imigrantes italianos pobres.
Também em 1920, Lima Barreto com seu livro de contos Histórias e Sonhos, representa
personagens pobres e marginalizados. Segundo Júlia Marchetti Polinésio, em O conto e as
classes subalternas, até 1920 o sentimento de piedade ou simpatia pelos humildes e a atitude
de denúncia às injustiças sociais eram somente expressões esporádicas no contexto das obras
literárias. Lima Barreto foi o primeiro escritor brasileiro cuja obra foi uma crítica sistemática
70
Lobato, Monteiro. "O fisco." Negrinha. 13 a ed. (São Paulo: Brasiliense, 1967) 53.
23
em favor dos injustiçados e dos sofredores.71 O conto “O Moleque”, publicado em Histórias e
Sonhos, trata de um menino pobre, filho de uma lavadeira negra, que não tem tempo de
estudar ou brincar. Trabalha duramente para ajudar a mãe. O conto ao retratar as favelas do
Rio de Janeiro em 1920 chama a atenção por não buscar atrair o leitor pelo exótico e sim
como um protesto, “uma tentativa de denunciar a desumanidade e a injustiça da condição de
vida dessa parte da população.” 72
Manuel Bandeira também percebeu as crianças de rua. 73 Em um poema de 1921 ele
descreve as crianças que vendiam carvão nas ruas, que ele descreve como raquíticas, mas
mesmo assim crianças, que brincam e dançam pelas ruas:
Os meninos carvoeiros
Passam a caminho da cidade.
- Eh, carvoero!
E vão tocando os animais com um relho enorme.
Os burros são magrinhos e velhos.
Cada um leva seis sacos de carvão de lenha.
A aniagem é toda remendada.
Os carvões caem.
(Pela boca da noite vem uma velhinha que os recolhe,
[dobrando-se com um gemido.)
Eh, carvoero!
Só mesmo estas crianças raquíticas
Vão bem com estes burrinhos descadeirados.
A madrugada ingênua parece feita para eles...
Pequenina, ingênua miséria!
Adoráveis carvoeirinhos que trabalhais como se brincásseis!
Eh, carvoero!
Quando voltam, vêm mordendo num pão encarvoado,
Encarapitados nas alimárias,
Apostando corrida,
Dançando, bamboleando nas cangalhas como espantalhos
[desamparados!) 74
71
Polinésio, Julia M. O conto e as classes subalternas. (São Paulo: Annablume, 1994) 69.
Idem.
73
Também segundo a UNICEF e outras entidades de apoio às crianças de rua, existem dois grupos, as crianças na
rua e as crianças de rua. O primeiro grupo, que consiste em aproximadamente 75% do total, são crianças que ainda
tem algum contato com a família, mas passam a maior parte de seu tempo nas ruas, tentando conseguir algum
dinheiro.
74
Bandeira, Manuel. Antologia Poética. 2 a ed. (Rio de Janeiro: Ed. Do Autor, 1961) 56-57.
72
24
Essas crianças apesar de serem aparentemente felizes, são descritas como raquíticas,
esfomeadas e espantalhos desamparados. O narrador, ainda que sinta uma empatia pelos meninos
carvoeiros, o que podemos constatar quando afirma que os “Adoráveis carvoeirinhos” trabalham
como se brincassem, mostra-nos ao mesmo tempo a exploração dessas crianças. A crítica se faz
maior quando os meninos carvoeiros que não se dão conta da “ingênua miséria” são comparados
aos “espantalhos”. Essas crianças são seres manipulados, ignorantes e alienados da situação em
que se encontram, e por isso seres “desamparados”.
Manuel Bandeira, Lima Barreto, Machado de Assis e Monteiro Lobato mostram uma
faceta da criança brasileira que tinha sido ignorada por centenas de anos. A criança
marginalizada pela sociedade. A criança de rua propriamente dita não aparece na literatura
brasileira até meados da década de 1930 75 com Jorge Amado. Mas em “Negrinha” e em “O
Fisco” de Monteiro Lobato, em “O Moleque” de Lima Barreto e em “Meninos Carvoeiros” de
Manuel Bandeira, pode-se ver que o tema das crianças marginalizadas já estava na literatura
brasileira no início do século XX. Machado de Assis com seus contos se preocupou com o tema
da opressão às crianças ainda no século XIX.
O primeiro menino de rua na literatura brasileira e Piá sofre? sofre
Um menino vivendo nas ruas só aparece pela primeira vez na literatura brasileira em
1922, no romance Dentro da Vida, de Ranulpho Prata, médico sergipano e escritor mais
conhecido por sua amizade com Lima Barreto e por seu romance Navios Iluminados de 1937.
O romance Dentro da Vida narra a história de Bento, um garoto pobre que por um tempo
se torna menino de rua devido à morte dos pais. Luis Bueno em seu livro Uma história do
75
Em Dentro da Vida de 1922, escrito por Ranulpho Prata, o protagonista vive nas ruas por um tempo, mas o tema
central do livro não são as crianças de rua.
25
romance de 30 aponta esse romance, Dentro da Vida, como um precursor do romance de 30 por
apresentar características precoces do mesmo, como o tom de depoimento e a escolha do
protagonista, um garoto pobre que até foi menino de rua. 76 Mas para esse trabalho, Dentro da
Vida é reconhecido por ser a primeira obra de ficção brasileira onde o tema das crianças vivendo
nas ruas é abordado.
“Piá não sofre? Sofre”, conto de Mário de Andrade publicado em 1923, é parecido com
“Negrinha”, de Monteiro Lobato. Conta a história de um garoto pobre de quatro anos, Paulino,
filho de um presidiário e de uma italiana. A mãe que era lavadeira mal ganhava para viver e
frustrada com a pobreza extrema em que se encontrava, ao invés de dar carinho, espancava
Paulino. Paulino crescia então assustado e faminto:
Teresinha acordava de fadiga, com a mãozinha do filho batendo na cara dela. Ficava
desesperada de raiva. Atirava a mão no escuro, acertasse onde acertasse, nos olhos, na
boca-do- estômago, pláa!.. Paulino rolava longe com uma vontade legítima de botar a
boca no mundo. Porém o corpo se lembrava duma feita em que a choradeira fizera o salto
do tamanco vir parar mesmo na boca dele, perdia o gosto de berrar. Ficava
choramingando tão manso que até embalava o sono da Teresinha. Pequenininho,
redondo, encolhido, talqualmente tatuzinho de jardim. 77
A fome que Paulino sentia era tão grande que ele passou a comer qualquer coisa que
encontrasse:
76
Bueno, Luis. Uma história do romance de 30. (São Paulo: Edusp, 2006) 84.
Andrade, Mário de. "Piá não sofre? Sofre." Os melhores contos Mário de Andrade. Org. Telê A. Lopes. (São
Paulo: Global, 1988) 37.
77
26
Nessa esperança de matar a fome, Paulino foi descendo a coisas nojentas. Isto é,
descendo, não. Era incapaz de pôr jerarquia no nojo, e até o último comestível inventado
foi formiga. Porém não posso negar que uma vez até uma barata... Agarrou e foi-se
embora mastigando, mais inocente que vós, filhos dos nojos. Porém, compreende-se,
eram alimentos que não davam sustância nenhuma. 78
A mãe de Paulino passa a morar com um espanhol, que traz comida para casa, mas
Paulino é levado para morar com a família de sua avó paterna. Na nova casa a fome não é mais
um problema, mas os maus tratos são ainda mais difíceis de agüentar. Paulino ainda vê a mãe
mais uma vez, ela passa na rua em frente à casa onde Paulino vivia. Tornara-se uma prostituta e
agora bonita e bem vestida se compadece do filho, mas reflete que ele seria um “trambolho nas
pândegas”
79
e se vai, deixando o filho sofrendo e sozinho. A grande diferença entre “Negrinha”
e “Piá não sofre? Sofre” é que a piedade, que é o sentimento prevalecente em “Negrinha”, se
converte em raiva no conto de Mário de Andrade. Paulino é o mais indefeso do grupo social de
que faz parte, e todos descarregam a própria revolta nesta criança:
Mas os carrascos são vítimas, também, no círculo fechado da miséria em que não há
espaço para bons sentimentos. O menino, que está no degrau mais baixo da escala social,
suporta as pressões de todos os que lhe estão acima; por sua incapacidade de defesa,
inocente atração para agredir, constitui a válvula de escape ao ódio dos adultos, vítimas
por sua vez, da injustiça e da opressão. A consciência por parte do autor, da
78
Andrade, Mário de. "Piá não sofre? Sofre." Os melhores contos Mário de Andrade. Org. Telê A. Lopes. (São
Paulo: Global, 1988) 40.
79
Andrade, Mário de. "Piá não sofre? Sofre." Os melhores contos Mário de Andrade. Org. Telê A. Lopes. (São
Paulo: Global, 1988) 48.
27
impossibilidade de solução para esse círculo cruel, transforma-se na raiva narrativa que
permeia todo o conto mas que, percebe-se, nada mais é do que compreensão e amor.80
O título do conto “Piá não sofre? Sofre” ironicamente critica o ideal de pureza e
felicidade da infância cantada pelos poetas brasileiros. A palavra piá é usada no Sul do Brasil
como um sinônimo de menino e a pergunta de Mário de Andrade, se no Brasil criança sofre, tem
sua resposta imediata no título do conto.
Apesar de não haver muitas obras de literatura tratando do problema da criança de rua no
período que abrange do século XVI até os anos vinte do século XX, desde o século XIX iniciouse na literatura brasileira uma conscientização do dualismo em que as crianças brasileiras viviam,
e vivem até hoje. As crianças pobres, marginalizadas e excluídas foram representadas na
literatura brasileira até meados da década de 1930 como humildes e submissas, e usadas pelos
autores com o objetivo de expressar piedade ou revolta. Em 1935, porém, Jorge Amado muda a
perspectiva das crianças pobres na literatura brasileira de forma mais que radical: suas crianças
de rua são maduras, ainda que extremamente jovens. Elas sentem o peso da injustiça que sofrem
e desafiam a autoridade da classe dominante, como veremos a seguir.
80
Polinésio, Julia M. O conto e as classes subalternas. (São Paulo: Annablume, 1994) 99-100.
28
CAPÍTULO II
JORGE AMADO, COMUNISMO E MENINOS DE RUA
Jorge Amado é sem dúvida alguma um dos mais famosos e conhecidos autores
brasileiros e não só escritor, mas também político que participou ativamente da vida política
brasileira, tanto em seus livros como fora deles. Filho de fazendeiros, Jorge Amado desde cedo
foi rebelde, fugiu do colégio interno onde vivia em Salvador quando tinha 13 anos de idade e
viajou por dois meses pelo interior da Bahia:
Estive lá dois anos, 1923 e 1924, e, em 1925, ao voltar das férias, como eu não
conseguira de meus pais que me tirassem dali, fugi do colégio. Então parti sozinho,
atravessei todo o sertão da Bahia até Sergipe, onde morava meu avô, o pai de meu pai.
Foi uma experiência extraordinária. 81
Essa experiência vivendo sozinho pelas ruas da Bahia aos treze anos pode ter sido um dos
fatores que o levou a interessar-se pelas crianças de rua. Dois anos após essa experiência, quando
tinha quinze anos, Jorge Amado começou a trabalhar em um jornal e aos dezoito publicou seu
primeiro romance, O país do carnaval de 1931. Participante ativo da vida pública, ele conseguiu
legalizar as religiões africanas que defendia em seus romances: “Tive sorte, em 46, quando fui
deputado da Assembléia Constituinte, de fazer aprovar um artigo na Constituição que garantia a
liberdade religiosa no Brasil.” 82
81
82
Raillard, Alice. Conversando com Jorge Amado. Trans. Annie Dymetman. (Rio de Janeiro: Record, 1990) 31.
Idem 37.
29
Jorge Amado foi grande admirador de Dickens e Victor Hugo,83 sendo fortemente
influenciado por suas obras, o que se pode constatar nas duas obras que iremos discutir aqui,
Jubiabá e Capitães da Areia. Mas ele também teve outras influências importantes:
- Eu falei das influências estrangeiras sobre mim e minha geração – a literatura soviética,
a literatura norte-americana e a de outros países; quando se falava de romance proletário,
toda literatura de esquerda que vinha dos anos 20, Upton Sinclair, os socialistas nos
Estados Unidos – Tudo isso, não é?, pesa sobre o “romance de 30.” Os romances de Dos
Passos, Steinbeck, Hemingway, Erskine Caldwell; os romancistas soviéticos num
momento de liberdade, quando ainda esta literatura tinha uma grande força romântica e
revolucionária, Babel, Fedaiev, Ostrovski, os grandes romances documentários sobre as
crianças abandonadas e a sua reintegração, as peças de Maiakovski, suas poesias e peças
de teatro, os livros de Ilf e Petrov […] 84
Pode-se concluir então que o tema das crianças de rua não foi obra do acaso. Além da
influência de Dickens e Victor Hugo, Jorge Amado era fortemente influenciado pelos autores
soviéticos e seus romances sobre as crianças abandonadas, o que é consistente com as
convicções políticas de Jorge Amado. O fato de ser comunista foi uma das grandes críticas que
Jorge Amado sempre tem sofrido e com respeito às suas convicções políticas, o próprio Jorge
Amado em uma entrevista explicou seus ideais:
Quero o socialismo, porque com ele não haverá fome, não existirá essa terrível miséria
nordestina. Mas hoje não mais abro mão da liberdade em troca disso. A palavra mais aí é
importante, porque quando jovem eu aceitava isso. Mas chega um momento em que se
83
84
Raillard, Alice. Conversando com Jorge Amado. Trans. Annie Dymetman. (Rio de Janeiro: Record, 1990) 44.
Idem 99.
30
quer as duas coisas, que haja comida e liberdade. Infelizmente, em geral, não há nem
liberdade nem comida. Também no mundo capitalista não há muita liberdade. Ela é
muito limitada. Muitos dirão que é impossível socialismo com liberdade e responderei
que se trata do direito ao sonho.85
Esta entrevista foi publicada em 1981, uma prova de que os ideais socialistas de Jorge
Amado não acabaram nos anos cinqüenta, quando ele abandonou o partido comunista. 86 Ao
deixar de militar no partido comunista, Jorge Amado deixou de escrever sobre crianças de rua,
mas independente de suas convicções políticas, a importância de Jorge Amado é indiscutível na
literatura brasileira. Além de mudar a imagem do negro na literatura 87 e de trazer as tradições e
deuses africanos na literatura brasileira, ele também é um fenômeno cultural, com um alcance no
Brasil que poucos escritores conseguiram, vendendo mais de 30 milhões de romance entre 1930
e 1997.88
Levando-se em conta que o Brasil ainda é um país em desenvolvimento, onde livros
ainda são quase que um artigo de luxo, o número de livros de Jorge Amado vendidos pode dar
85
Entrevista de Jorge Amado em O Estado de São Paulo de 17/5/1981, citada em Machado, Ana M. Romântico,
sedutor e anarquista: Como e por que ler Jorge Amado hoje. (Rio de Janeiro: Objetiva, 2006) 91.
86
Segundo Ana Maria Machado, Jorge Amado deixou o partido comunista após uma viagem a então União
Soviética. Ele por muito tempo havia se recusado a acreditar nos horrores que eram relatados por outros intelectuais
sobre os horrores cometidos pelos soviéticos, teve suas dúvidas transformadas em certeza em 1956 e chegou a um
momento de sua carreira onde teve que aceitar a realidade do que acontecia no mundo comunista. Deixou de militar
no partido comunista e sua obra se libertou dos “dogmas e da disciplina que a permeavam até então”. Idem 90.
87
Giorgio Marotti afirmou que “After Jorge Amado, literature dealing with Black theme continues to develop, but
has been unable to renew its perspectives or its energy. Amado fought and won a precise battle for the dignity of
men, incorporating the Black as an active element in Brazilian civilization”. Marotti, Giorgio. Black Characters in
the Brazilian Novel. Los Angeles: UCLA, 1987) 398.
88
Em O Brasil best-seller de Jorge Amado a autora explica ter escolhido Jorge Amado como o objeto de seus
estudos: “A escolha revelou-se pertinente , quando descobri que seus livros estão traduzidos em 39 idiomas e, mais
ainda, quando a Editora Record – que detém os direitos de publicação desde 1975 – confirmou que Amado ainda é o
autor que mais vende no Brasil. A soma de todos os exemplares vendidos pela Record de 1975 a 1997 foi de
20.050.500 – sendo Capitães da Areia o campeão de vendas, com 4,3 milhões, por se adotado em escolas de todo o
Brasil. Mas tem-se uma pista no jornal O Estado de São Paulo de 4-5-1975, que publicou a manchete “Jorge
Amado: 10 milhões de exemplares”. Adicionando os 10 milhões anunciados no jornal de 1974 à cifra da Record de
20 milhões de 1975 até os dias atuais, chegamos a uma estimativa de 30 milhões só no Brasil”. Goldstein, Ilana S. O
Brasil Best Seller de Jorge Amado. (São Paulo: Senac, 2003) 20.
31
uma idéia da dimensão do alcance que a obra de Jorge Amado atingiu. Deve-se levar em conta
também que sua obra além de ser adaptada para o cinema e o teatro, foi também adaptada para a
televisão, em forma de novelas e minisséries, o que explica como a grande parte da população
brasileira está familiarizada com os personagens e histórias de Jorge Amado. 89
Sobre dois capítulos de Jubiabá
Jubiabá é considerado por alguns críticos como a primeira obra-prima de Jorge Amado.
Foi publicado em 1935, quando Jorge Amado tinha apenas 23 anos e é dirigido a trabalhadores e
estudantes, refletindo a vinculação de Jorge Amado com a Aliança Nacional
Libertadora.90Alguns indicativos do sucesso da obra são:
Jubiabá virou novela radiofônica em 1946, teve duas adaptações para o palco e em 1987
tornou-se filme para cinema e televisão, com direção de Nelson Pereira dos Santos. Além
das edições portuguesas, o livro está traduzido em alemão, búlgaro, chinês, espanhol,
francês, grego, húngaro, inglês, italiano, norueguês, polonês, romeno, russo e tcheco. 91
Para entender melhor a época em que Jubiabá foi escrito, é importante salientar que a
década de 30 marcou a ascensão de Hitler ao poder na Alemanha, o início da Segunda Guerra
Mundial e o estabelecimento do Estado Novo 92 de Getúlio Vargas no Brasil. Neste clima de
89
Para mais informações sobre Jorge Amado, ver Fundação Casa de Jorge Amado. Ed. Arthur G. Sampaio. 07 Set.
2009. <http://www.jorgeamado.org.br>.
90
A Aliança Nacional Libertadora (ANL) foi uma organização política criada oficialmente em março de 1935 pelo
Partido Comunista do Brasil e declarada ilegal em junho do mesmo ano. Para mais informações sobre a ANL
consulte "Os grandes marcos da história política." BNDS. 06 Out. 2009.
<http://www.bndes.gov.br/SiteBNDES/export/sites/default/bndes_pt/Galerias/Arquivos/conhecimento/livro_gv/IIpa
rte.pdf>.
91
Goldstein, Ilana S. O Brasil Best Seller de Jorge Amado. (São Paulo: Senac, 2003) 135.
92
A ditadura imposta por Getúlio Vargas no período de 1937 a 1945 ficou conhecida como Estado Novo. Segundo
Ana Corti, apesar da simpatia de Vargas pela Alemanha e pela Itália, com a Segunda Guerra Mundial que começou
em 1939, e principalmente com a entrada dos Estados Unidos no conflito, o Brasil combateu ao lado dos Aliados.
Com a derrota de Hitler em 1945, o mundo foi tomado pelas idéias democráticas e o regime autoritário brasileiro já
não podia se manter. Getúlio Vargas foi deposto pelos militares em 29 de outubro de 1945, sob o comando de Góes
32
exaltação da supremacia da raça branca, que Vargas apoiava, Jorge Amado escreveu seu
romance Jubiabá. O mais importante aspecto para esse trabalho é a infância de Balduíno como
uma criança de rua, que ocupa dois capítulos, de um total de 28 capítulos do livro. Ainda assim é
importante ressaltar os pontos principais que o livro aborda e as razões que o levaram a ser
censurado e queimado em praça pública. 93
Em 1935, ano da publicação de Jubiabá, a Alemanha estava impregnada pelas idéias de
Hitler, que tinham muitos simpatizantes no Brasil, principalmente no governo, que se dispunha a
criar uma imagem branca do país. 94 Jorge Amado no primeiro capítulo de Jubiabá mostra uma
luta de boxe entre um lutador negro, Antônio Balduíno e um alemão, representante da raça
superior acalentada por Hitler, o alemão perdendo a luta para o negro. 95 Se não bastasse isto para
provocar o governo, ele também apresenta em Jubiabá o candomblé, a religião dos africanos,
Monteiro, um dos homens diretamente envolvidos no golpe de 1937. A abertura democrática levou ao poder o
general Eurico Gaspar Dutra, como presidente eleito pelo voto popular, dando fim a um dos períodos mais
autoritários e violentos da história do Brasil. Corti, Ana P. "Estado Novo: A ditadura de Getúlio Vargas." História
do Brasil. Uol Educação. 07 Set. 2009. <http://educacao.uol.com.br/historia-brasil/ult1689u31.jhtm>.
93
Cópia da Ata de Incineração, publicada no jornal O Estado da Bahia, em 17 de dezembro de 1937:
Aos dezenove dias do mês de novembro de 1937, em frente à Escola de Aprendizes Marinheiros, nesta cidade do
Salvador e em presença dos senhores membros da comissão de buscas e apreensões de livros, nomeada por ofício
número seis, da então Comissão Executora do Estado de Guerra, composta dos senhores capitão do Exército Luís
Liguori Teixeira, segundo-tenente intendente naval Hélcio Auler e Carlos Leal de Sá Pereira, da Polícia do Estado,
foram incinerados, por determinação verbal do Sr. coronel Antônio Fernandes Dantas, comandante da Sexta Região
Militar, os livros apreendidos e julgados como simpatizantes do credo comunista, a saber: 808 exemplares de
Capitães da areia, 223 exemplares de Mar morto, 89 exemplares de Cacau, 93 exemplares de Suor, 267 exemplares
de Jubiabá, 214 exemplares de País do carnaval, 15 exemplares de Doidinho, 26 exemplares de Pureza, 13
exemplares de Bangüê, 4 exemplares de Moleque Ricardo, 14 exemplares de Menino de Engenho, 23 exemplares de
Educação para a democracia, 6 exemplares de Ídolos tombados, 2 exemplares de Idéias, homens e fatos, 25
exemplares de Dr. Geraldo, 4 exemplares de Nacional socialismo germano, 1 exemplar de Miséria através da
polícia. Disponível em Duarte, Eduardo A. "Leitura e cidadania." Unicamp. 2002. 01 Agosto 2009.
<http://www.unicamp.br/iel/memoria/projetos/ensaios/ensaio19.html>.
94
De acordo com Ana Dietrich, o partido nazista brasileiro (1928-1938) estava inserido em uma rede de filiais deste
partido instaladas em 83 países do mundo e comandadas pela Organização do Partido Nazista no Exterior, cuja sede
era em Berlim. O grupo instalado no Brasil teve a maior célula fora da Alemanha com 2900 integrantes sendo
estruturado de acordo com regras e diretrizes do modelo organizacional do III Reich. Dietrich, Ana M. "Nazismo
tropical? O partido Nazista no Brasil." Diss. USP, 2007. Biblioteca digital de teses e dissertações. USP, 03 Agosto
2007. 1 Agosto 2009. <http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8138/tde-10072007-113709/>.
95
Amado, Jorge. Jubiabá. 48 a ed. (Rio de Janeiro: Record, 1987) 15-18.
33
quando a única religião legal no país nos anos 30 era a católica. 96 Mas as maiores provocações
foram, sem dúvida, além do tratamento do negro não como o “outro” mais como um ser humano
pleno, a história do amor de Balduíno e Lindinalva, uma mulher branca, outro caso até então
inédito na literatura brasileira e tratado pela sociedade brasileira da época como tabu 97 e a
exposição da miséria e incompetência das autoridades no que diz respeito às classes mais baixas,
em especial os meninos de rua.
É inegável a influência que os escritores franceses tiveram sobre Jorge Amado 98 e em
especial em Jubiabá é difícil não observar as semelhanças, quer sejam intencionais ou não, com
Os Miseráveis de Victor Hugo. Pode-se notar a semelhança entre Fantine e Lindinalva, as duas
tornam-se prostitutas para poderem sustentar filhos ilegítimos, as duas mesmo tendo sido
prostitutas são amadas por homens que as vêem quase como santas. Os dois livros apresentam
crianças de rua e os dois livros mostram a insurreição do povo contra seus opressores: em
Jubiabá os trabalhadores grevistas; em Os Miseráveis, os estudantes revoltosos. Mais um ponto
em comum são as acusações que os dois livros receberam:
Em seu estudo sobre Victor Hugo e Os Miseráveis, o peruano Mário Vargas Llosa lembra
os ataques feitos ao utopismo do livro por Lamartine, ao dizer que o romance seria capaz
96
É Interessante notar que Jorge Amando quando eleito deputado no ano de 1946 colocou no Congresso Nacional a
lei que permite a liberdade de religião no Brasil
97
Laura Moutinho em Razão, cor e desejo revisa os clássicos da literatura brasileira, analisando os romances
conhecidos abordando relacionamentos afetivo-sexuais inter-raciais. Partindo de Aluísio Azevedo (O cortiço) e
Adolfo Caminha (O bom crioulo), ambos do período naturalista, e passando por Jorge Amado, representante do
romance regionalista (Jubiabá e Gabriela, cravo e canela) dentre outros. Em Jubiabá, de Jorge Amado, ela conclui
que fica patente que o par 'homem negro'/'mulher branca' é um contato 'tabu' porque irrealizável no período em que
foi escrito. Moutinho, Laura. Razao, Cor e Desejo. São Paulo: Unesp, 2004.
98
Raillard, Alice. Conversando com Jorge Amado. Trans. Annie Dymetman. (Rio de Janeiro: Record, 1990) 44.
34
de “induzir o ser humano a odiar aquilo que o salva, a ordem social, e a delirar por aquilo
que é a sua perdição: o sonho impossível.”
99
Lamartine também ao se referir a Victor Hugo, defendia que a mais terrível e homicida
paixão que se pode infundir às massas é a paixão do impossível. 100 Quanto a Jorge Amado, como
já vimos, seu livro foi queimado em praça pública pelas mesmas razões, induzir as camadas
populares a odiar a ordem social vigente.
“Mendigo,” o primeiro dos dois capítulos que trata da época em que Antônio Balduíno,
ou Baldo, era menino de rua, trata das aventuras do “imperador da cidade negra da Bahia”, como
é apresentado o menino Baldo, e do grupo de crianças de rua de que faz parte. A forma que ele
encontra para mendigar é original, o grupo de crianças aborda as pessoas, com um deles, o
menino conhecido como Gordo, cantando:
Esmola pra sete ceguinhos..
Eu sou o mais velho,
esse é o segundo,
os outros estão em casa,
Papai é aleijado,
Mamãe é doente,
Me dê uma esmola
pra sete orfãozinhos,
são todos ceguinhos... 101
99
Machado, Ana M. Romântico, sedutor e anarquista: Como e por que ler Jorge Amado hoje. (Rio de Janeiro:
Objetiva, 2006 ) 143.
100
Idem 144.
101
Amado, Jorge. Jubiabá. 48 a ed. (Rio de Janeiro: Record, 1987) 67.
35
E as pessoas mais corajosas retrucavam: “- Então como é... São sete e tem aí mais de
dez... São órfãos e têm pai e mãe doentes... Ceguinhos e vêem tudo... Como é isso?” 102 Segundo
o narrador do romance ninguém tinha coragem de se opor aos moleques cantando e se
aproximando cada vez mais, as pessoas para se ver livres do grupo de crianças maltrapilhas
sempre davam esmolas.
Neste trecho Jorge Amado mostra o trabalho de campo que fez e também mostra que
algumas técnicas que as crianças de rua usavam na década de 1930 não diferem muito das usadas
atualmente. As crianças de rua passam o dia em grupos grandes, o que as fazem parecer sinistras
ou ameaçadoras, por questões de segurança. As crianças visam sua própria sobrevivência e a
sobrevivência do grupo.103 Esses grupos são organizados de acordo com a idade e a experiência
de rua e a noite se dividem para buscar lugares para dormir, algumas das crianças voltam para as
casas de seus familiares, outros buscam lugares onde passar a noite.
O mesmo capítulo também explora outros temas comuns às crianças de rua, como a
homossexualidade: Sem Dentes, um mulato de dezesseis anos tenta estuprar Felipe, um garoto
loiro de dez anos, filho de uma prostituta francesa que o abandonara, e é impedido por Baldo; 104
a partilha do dinheiro que conseguiam pedindo esmolas entre as crianças do grupo 105 e a doença
de um membro do grupo e os esforços do grupo para conseguir ajuda para o enfermo. 106 Esses
episódios também confirmam estudos recentes, da década de 1990, sobre crianças de ruas. Esses
102
Amado, Jorge. Jubiabá. 48 a ed. (Rio de Janeiro: Record, 1987) 68.
Koller, Silvia H., and Claudio S. Hutz. Meninos e meninas em situação de rua: Dinâmica, diversidade e
definição. Associação Nacional de Pesquisa e Pós-graduação em Psicologia. CEP-RUA/UFRGS, 1996. 27 Julho
2009. <http://www.infocien.org/Interface/Colets/v1n12a02.pdf>.
104
Amado, Jorge. Jubiabá. 48 a ed. (Rio de Janeiro: Record, 1987) 68-69.
105
Idem 71.
106
Ibidem 74-77.
103
36
estudos “referem-se a um forte senso de mutualismo e altruísmo encontrado entre as crianças de
rua de seu continente, bem como a outros aspectos sadios no desenvolvimento psico-social.” 107
O capítulo encerra-se com uma declaração da liberdade e do poder dessas crianças, em
especial de Baldo:
O imperador da cidade come nos melhores restaurantes, anda nos automóveis mais
luxuosos, mora nos arranha-céus mais novos. E sem pagar nada. Depois do meio-dia vai
com seu grupo a um restaurante e diz qualquer coisa a um garçom. Este bem sabe que
não é negócio brigar com esses moleques. Dá as sobras de comida embrulhadas em
jornais. Certas vezes até sobra comida que eles jogam nas latas de lixo. E velhos
mendigos comem as sobras das sobras. [. . .]
E ele e sua guarda de honra só dormem nas portas dos mais novos arranha-céus, onde os
empregados sabem que todos aqueles moleques têm navalhas, punhais, canivetes.
Isso quando não preferem dormir no areal do cais do porto, olhando os navios enormes,
as estrelas no céu, o verde mar misterioso. 108
“Moleque”, o segundo capítulo de Jubiabá que trata dos meninos de rua, conta o final da
vida de Baldo como menino de rua e o final do bando que ele lidera. Mostra o primeiro contato
de Baldo, agora com 15 anos, com os trabalhadores do cais em greve, 109 a luta com outro grupo
de crianças de rua, que se dispersa deixando o grupo de Baldo ainda mais forte. 110 O capítulo
também relata a prisão do grupo, que é levado a uma delegacia e espancado. Os garotos ficam
107
Koller, Silvia H., and Claudio S. Hutz. Meninos e meninas em situação de rua: Dinâmica, diversidade e
definição. Associação Nacional de Pesquisa e Pós-graduação em Psicologia. CEP-RUA/UFRGS, 1996. 27 Julho
2009. <http://www.infocien.org/Interface/Colets/v1n12a02.pdf>.
108
Amado, Jorge. Jubiabá. 48 a ed. (Rio de Janeiro: Record, 1987) 78.
109
Idem 80-82.
110
Ibidem 85
37
presos por oito dias, fichados e então soltos. 111 A morte de Felipe no dia de seu aniversário e a
separação do grupo 112 encerram o capítulo. Somente Viriato, o Anão, continuou a pedir esmolas
e a viver nas ruas, os outros seguiram destinos diferentes. 113
Em uma entrevista publicada em Conversando com Jorge Amado, de Alice Raillard,
Jorge Amado explica que em Jubiabá, assim como em Mar Morto e em Capitães da Areia, suas
experiências como adolescente solto pelas ruas de Salvador; seu contato diário com o povo da
cidade; com os problemas do povo baiano refletem-se de maneira imediata. O próprio Jorge
Amado na mesma entrevista considera Jubiabá o mais bem-feito desses três livros do ponto de
vista da estrutura e lembra que por muito tempo foi o mais popular e o mais vendido desses três
romances. Mas que atualmente (a entrevista foi publicada em 1991) Capitães da Areia, o menos
bem-feito dos três também do ponto de vista da estrutura e que surgiu de dois capítulos de
Jubiabá, é o mais vendido de seus romances, com um grande público principalmente entre os
jovens. 114
Capitães da Areia: o primeiro romance sobre meninos de rua na literatura brasileira
Capitães da Areia é o primeiro romance brasileiro que trata exclusivamente dos meninos
de rua e conta as aventuras de um grupo de crianças que vivem nas ruas da cidade de São
Salvador da Bahia de Todos os Santos, ou simplesmente Salvador. Publicado em 1937, pouco
depois de implantado o Estado Novo, este livro teve a primeira edição apreendida e exemplares
queimados em praça pública de Salvador por determinação da ditadura, acusado de ser uma
111
Amado, Jorge. Jubiabá. 48 a ed. (Rio de Janeiro: Record, 1987) 86-87
Idem 87
113
Ibidem 88.
114
Raillard, Alice. Conversando com Jorge Amado. Trans. Annie Dymetman. (Rio de Janeiro: Record, 1990) 105.
112
38
forma de expandir o comunismo. 115 Mesmo sendo essa uma das razões de Jorge Amado ao
escrever Capitães da Areia, sem dúvida nenhuma ele conseguiu denunciar o que se passava com
os meninos de rua brasileiros, a tortura que essas crianças sofriam nos reformatórios e
delegacias. Também teve a coragem de falar sobre as religiões africanas existentes no Brasil e de
denunciar os abusos do poder público.
Capitães da Areia, de Jorge Amado foi concluído e publicado pela Livraria José Olympio
Editora, em setembro de 1937, pouco antes da implantação do Estado Novo, como já comentado
anteriormente. O lançamento editorial acontece sem a presença do autor, que estava em viagem.
Segundo Renard Perez, em Jorge Amado: Notícia Biográfica, estudo inserido em Jorge Amado
Povo e Terra: 40 Anos de Literatura, o escritor nesse momento fazia o percurso pela costa do
Pacífico, subindo até o México e Estados Unidos. Na viagem, ainda segundo Perez, Amado
termina Capitães da Areia e o envia ao editor para impressão. E o que acontece em seguida a
Jorge Amado também foi registrado por Perez:
“[..] em fins de outubro, volta ao Brasil; mas tem, logo em seguida, um período de
complicações políticas, conseqüência da situação nacional, que culminará, a 10 de
novembro, com o advento do Estado Novo. É preso por dois meses, seus livros são
proibidos no país.” 116
Mas o romance não continua proibido por muito tempo, já perto do final da ditadura de
Getúlio Vargas, em 1944 aparece a segunda edição. 117 Desde então tem se tornado o livro mais
115
116
Raillard, Alice. Conversando com Jorge Amado. Trans. Annie Dymetman. (Rio de Janeiro: Record, 1990) 103.
Perez, Renard. "Jorge Amado: Notícia biográfica." Jorge Amado, povo e terra. (São Paulo: Martins, 1971) 235-
36.
117
A 2ª edição, 1944, saiu pela Livraria Martins Editora, São Paulo.
39
vendido de Jorge Amado, com quase 100 edições 118 e adaptações para o teatro, televisão, rádio e
cinema. 119
O romance é dividido em três partes. Antes delas, no entanto, encontra-se uma seqüência
de reportagens e depoimentos fictícios, explicando que os “Capitães da Areia” é um grupo de
meninos abandonados e marginalizados que aterrorizam Salvador. A primeira reportagem,
intitulada Crianças Ladronas, reporta o assalto à casa de um comendador no bairro mais chique
de Salvador. A reportagem exige que o Chefe de polícia e o Dr. Juiz de Menores tomem
providências. Seguem-se cartas do secretário do Chefe de Polícia e do Dr. Juiz de Menores,
ambos tentam se esquivar da responsabilidade de capturar os meninos de rua, o segundo enaltece
o reformatório, um local onde os meninos de rua recebem paz e são tratados com o maior
carinho. Depois aparecem as cartas de uma mãe e do Padre José Pedro, narrando as condições
terríveis nas quais as crianças vivem no reformatório. A seguir uma carta do diretor do
reformatório, negando as acusações feitas e acusando o padre de mentiroso. A mesma carta
convida um redator do Jornal para visitar o reformatório. A visita é feita e as condições do
estabelecimento consideradas impecáveis. Com essa introdução Jorge Amado prepara o caminho
118
O site da Fundação Casa de Jorge Amado apresenta uma breve história das edições do romance: “ da 39ª edição
em diante, passou a ser publicado pela Editora Record, Rio de Janeiro. A 98ª, 1999, a edição mais recente, 57ª desta
editora, com fixação de texto por Paloma Jorge Amado e Pedro Costa, tem capa de Pedro Costa, sobrecapa com
reprodução de quadro de Aldemir Martins, vinhetas das ilustrações de Poty por Pedro Costa, retrato do autor por
Jordão de Oliveira, foto do autor por Zélia Gattai. No exterior, além da edição portuguesa, foram feitas traduções
para o alemão, árabe, croata, espanhol, francês, grego, húngaro, inglês, italiano, japonês, libanês, norueguês, russo,
tcheco e ucraniano”. "Capitães da Areia." Fundação Casa de Jorge Amado. 01 Agosto 2009.
<http://www.jorgeamado.org.br/jorge_obras.htm>.
119
Também no site da Fundação Casa de Jorge Amado: “Teatro: espetáculo adaptado pelo padre Valter Souza,
Salvador, 1958; adaptação de Carlos Wilson, encenada por diversos grupos teatrais no Brasil e no exterior;
adaptação de Roberto Bomtempo, pela Companhia Baiana de Patifaria, 2002. Dança: espetáculo adaptado pelo
Grupo Êxtase, Minas Gerais, 1988; por Raymond Foucalt e Plinio Mosca, França, 1988; por Friederich Gerlach,
Alemanha, 1971; por Nanci Gomes Alonso, Argentina, 1987. Cinema: filme Capitães da areia, adaptação do
cineasta Hall Bartlet, Los Angeles, Estados Unidos, 1971, com algumas cenas exteriores tomadas em Salvador.
Exibido nos Estados Unidos e em outros países, mas continua inédito no Brasil. Uma nova versão cinematográfica
do filme está sendo rodada ( 2009) pela neta do escritor. Televisão: minissérie, Rede Bandeirantes, direção de
Walter Lima Jr., roteiro e adaptação de José Loureiro e Antônio Carlos Fontoura, 1989. “Capitães da Areia.””
Fundação Casa de Jorge Amado. 01 Agosto 2009. <http://www.jorgeamado.org.br/jorge_obras.htm>.
40
para denunciar os poderes públicos e os meios de comunicação. Os meninos de rua conhecidos
como Capitães da Areia serão apresentados no decorrer do romance, assim como o reformatório
e o Padre José Pedro.
Sob a lua, num velho trapiche abandonado
A primeira parte do romance, intitulada “Sob a lua, num velho trapiche abandonado,”
conta algumas histórias quase independentes sobre alguns dos principais Capitães da Areia. O
romance Capitães da Areia começa com uma descrição romantizada do trapiche onde mais de
100 crianças abandonadas dormiam:
Sob a lua, num velho trapiche abandonado, as crianças dormem. Antigamente aqui era o
mar. Nas grandes e negras pedras dos alicerces do trapiche as ondas ora se rebentavam
fragorosas, ora vinham se bater mansamente. A água passava por baixo da ponte sob a
qual muitas crianças repousam agora, iluminadas por uma réstia amarela de lua. Desta
ponte saíram inúmeros veleiros carregados, alguns eram enormes e pintados de estranhas
cores, para a aventura das travessias marítimas. Aqui vinham encher os porões e
atracavam nesta ponte de tábuas, hoje comidas. Antigamente diante do trapiche se
estendia o mistério do mar-oceano, as noites diante dele eram de um verde escuro, quase
negras, daquela cor misteriosa que é a cor do mar à noite. Hoje a noite é alva em frente ao
trapiche. É que na sua frente se estende agora o Areal. 120
Os personagens desta primeira parte são em sua maioria masculinos e não existe um
protagonista propriamente dito, possivelmente uma influência dos ideais comunistas de Jorge
Amado na época em que escreveu o romance. Vemos o grupo como o personagem central, sendo
120
Amado, Jorge. Capitães da Areia. 13 a ed. (São Paulo: Martins, 1965) 31.
41
alguns dos personagens mais importantes da primeira parte do romance Pedro Bala, Sem-Pernas,
Professor e o Padre José Pedro.
Pedro Bala, órfão desde os cinco anos, curiosamente um garoto branco de cabelos loiros,
empregou anos em conhecer a cidade:
Hoje sabe de todas as suas ruas e de todos os seus becos. Não há venda, quitanda,
botequim que ele não conheça. Quando se incorporou aos Capitães da Areia (o cais
recém-construído atraiu para as suas areias todas as crianças abandonadas da cidade) o
chefe era Raimundo, o Caboclo, mulato avermelhado e forte. [. . .]
Uma noite, quando Raimundo quis surrar Barandão, Pedro tomou as dores do negrinho e
rolaram na luta mais sensacional que as areias do cais jamais assistiram. Raimundo era
mais alto e mais velho. Porém Pedro Bala, o cabelo loiro voando, a cicatriz vermelha no
rosto, era de uma agilidade espantosa e desde esse dia Raimundo deixou não só a chefia
dos Capitães da Areia, como o próprio areal. Engajou tempos depois num navio.
Todos reconheceram os direitos de Pedro Bala à chefia, e foi dessa época que a cidade
começou a ouvir falar nos Capitães da Areia, crianças abandonadas que viviam do
furto. 121
Pedro Bala é um herói pouco convencional, ele rouba e mesmo violenta meninas
indefesas. A justificativa para seus atos é aparente quando Pedro Bala após estuprar uma menina
negra, mostra o desespero de sua vida de criança pobre e abandonada. Ele tenta se limpar do ódio
que sente da cidade rica e mostra também a pena que sentia da pobre menina negra que tinha
estuprado, também uma criança. 122
121
122
Amado, Jorge. Capitães da Areia. 13 a ed. (São Paulo: Martins, 1965) 33.
Idem 108.
42
Outro dos personagens centrais do romance é o Professor, obcecado por livros e que tinha
um grande talento para pintura. João José, o Professor, desde o dia em que furtou um livro de
histórias numa estante de uma casa da Barra passou a roubar livros. Mas nunca vendia os livros,
ele os empilhava no fundo do trapiche, sob tijolos, para que os ratos não os roessem. Lia seus
livros constantemente e era ele quem, muitas noites, contava aos outros meninos histórias de
aventureiros, de homens do mar, de personagens heróicos e lendários. O Professor era o único
que sabia ler entre eles e mesmo tendo freqüentado a escola somente por um ano e meio, o treino
diário da leitura despertou sua imaginação e “talvez fosse ele o único que tivesse uma certa
consciência do heróico de suas vidas:” 123
O pivete-professor figura como síntese da utopia da leitura. Com ele, ler e narrar tornamse atitudes políticas. Os volumes roubados e empilhados entre tijolos metaforizam a
construção da consciência e do edifício da cidadania entre os pobres. O livro é retratado
como portador da verdade e peça principal dessa construção, que, ao contrário da simples
pregação retórica - de que são exemplo as falas do padre José Pedro - surge aprimorada
pelo encanto do texto ficcional, a despertar o olhar crítico pela via do imaginário. Nesse
momento, o menino alfabetizado torna-se "O Professor". Ele abre o livro e lê histórias
para os companheiros ainda analfabetos, repetindo, aliás, o gesto presente em Suor e,
mais tarde, retomado outra vez em Subterrâneos da liberdade. Da leitura da utopia à
utopia da leitura, prevaleceram o encanto da escrita e o empenho político de dar ao
personagem que lê o poder formador e demiúrgico dos narradores. 124
123
Amado, Jorge. Capitães da Areia. 13 a ed. (São Paulo: Martins, 1965) 37
Duarte, Eduardo A. "Leitura e cidadania." Unicamp. 2002. 01 Agosto 2009.
<http://www.unicamp.br/iel/memoria/projetos/ensaios/ensaio19.html>.
124
43
Foi apelidado Professor porque num livro furtado ele aprendera a fazer mágicas com
lenços e níqueis. Além da mágica, ele também contava aos outros meninos as histórias que lia ou
que inventava, “fazia a grande e misteriosa mágica de transportá-los para mundos diversos, fazia
com que os olhos vivos dos Capitães da Areia brilhassem como só brilham as estrelas da noite da
Bahia.” 125
Sem-Pernas é outro personagem importante. Ele é um menino coxo que se infiltrava nas
casas ricas se fingindo de órfão desamparado para que depois o grupo roube a casa. É
profundamente revoltado e consciente de seu defeito físico e dos preconceitos da sociedade. Um
dia entra em uma casa onde é recebido com amor não fingido, e tem que tomar a decisão mais
difícil de sua curta vida:
Porque naquelas casas, se o acolhiam, se lhe davam comida e dormida, era como
cumprindo uma obrigação fastidiosa. Os donos da casa evitavam se aproximar dele, e o
deixavam na sua sujeira, nunca tinham uma palavra boa para ele. 126
Mas desta vez estava sendo diferente. Desta vez não o deixaram na cozinha com seus
molambos, não o puseram a dormir no quintal. Deram-lhe roupa, um quarto, comida na
sala de jantar.127
Em um dos episódios mais dramáticos de Capitães da Areia, o Sem-Pernas teve que
escolher entre o que sempre tinha sonhado, uma mãe que o amava, e seus companheiros de
sofrimento. Ele sempre conseguiu entrar nas casas, mas nunca foi tratado com amor. Desta vez,
porém, tinha sido diferente. Sem-Pernas finalmente tinha encontrado pessoas que o amavam e
125
Amado, Jorge. Capitães da Areia. 13 a ed. (São Paulo: Martins, 1965) 37-38.
Idem 140.
127
Ibidem 141.
126
44
um lugar seguro onde viver. Mas ao pensar na possibilidade de fazer parte dessa família e
abandonar seus amigos, ele se comparava a um estivador que fora comprado para furar uma
greve “Tinha sido comprado por êste carinho como o estivador fôra comprado por dinheiro.” 128
Teve então que fazer a decisão mais difícil de sua curta vida, deixar sua nova mãe:
Então os lábios do Sem-Pernas se descerraram e ele soluçou, chorou muito encostado ao
peito de sua mãe. E enquanto a abraçava e se deixava beijar, soluçava porque a ia
abandonar e, mais que isso, a ia roubar. E ela talvez nunca soubesse que o Sem-Pernas
sentia que ia furtar a si próprio também. 129
Este episódio também traz novamente a questão ideológica do comunismo, onde os
interesses do grupo são mais importantes que os sentimentos pessoais. Ana Maria Machado, em
Romântico, sedutor e anarquista: Como e por que ler Jorge Amado hoje observou que quando o
Sem-Pernas é recebido com carinho pela família burguesa que o vê como substituto de seu filho
morto, o episódio começa com um eco nítido de Oliver Twist. Oliver que foi recebido pelo seu
benfeitor, que o acolheu, vestiu, alimentou, deu- lhe um quarto em sua casa e começou a tomar
providências para adotá-lo. Machado vê isso quase como uma citação de homenagem ao
romancista inglês, influência reconhecida e admiração confessada de Amado. Tudo então faz
supor que o contato com a bondade e o carinho vão operar uma transformação no destino do
personagem, ainda que após dificuldades e peripécias, e que o pobre menino irá encontrar um
porto seguro onde poderá ser feliz, como ocorreu com o Oliver de Dickens ou a Cosette de
Victor Hugo, ou tantas outras crianças abandonadas e sofredoras cuja sorte muda nos romances
do século XIX. Mas ela também observa que em Jorge Amado a ética é outra, de classe. Ele fez
128
129
Amado, Jorge. Capitães da Areia. 13 a ed. (São Paulo: Martins, 1965) 147.
Idem 148.
45
com que a moral do grupo e a solidariedade se sobreponham ao afeto, ao sentimento individual
de agradecimento e ao que pode parecer apenas um caso de moralidade burguesa tradicional. 130
Sem-Pernas trocou a família que sempre sonhou pelos seus companheiros e amigos de infortúnio
e depois, no final do romance, prefere o suicídio ao reformatório.
O último dos personagens desta primeira parte tratados aqui com mais detalhes é o padre
José Pedro, um sacerdote de família humilde, que trabalhara como operário por cinco anos antes
de conseguir entrar no Seminário, e que sempre teve muitas dificuldades por não ser muito
brilhante. Preocupa-se sinceramente com as crianças de rua e por muito tempo tentou fazer
contato com elas. Contrasta profundamente com os outros sacerdotes católicos que aparecem no
romance:
O Padre José Pedro sorriu de novo. Sabia perfeitamente que Boa-Vida estava mentindo.
Há muito que ele aguardava uma oportunidade para travar relações com as crianças
abandonadas da cidade. Pensava que aquilo eras a missão que lhe estava reservada. Já
fizera umas tantas visitas ao Reformatório de menores, mas ali lhe punham todas as
dificuldades porque ele não esposava as idéias do diretor de que é necessário surrar uma
criança para a emendar de um erro. [. . .]
O padre José Pedro não era considerado uma grande inteligência entre o clero. Era
mesmo um dos mais humildes entre aquela legião de padres da Bahia. [. . .]
130
Machado, Ana M. Romântico, sedutor e anarquista: Como e por que ler Jorge Amado hoje. (Rio de Janeiro:
Objetiva, 2006) 68-70.
46
Porém seu grande desejo era catequizar as crianças abandonadas da cidade, os meninos
que, sem pai e sem mãe, viviam do roubo, em meio a todos os vícios. O padre José Pedro
queria levar aqueles corações todos a Deus.131
O padre José Pedro tentou conseguir casas para adotar os Capitães da Areia, mas
percebeu que a liberdade era o sentimento mais arraigado nos corações dessas crianças e por isso
tentou outros meios. É acusado pelo Cônego de ser comunista e de ofender a Deus e à Igreja, ao
declarar os meninos de rua inocentes dos crimes que cometiam. Ele defende que as crianças
roubavam para comer porque os ricos que tinham muito, para dar às igrejas, não se lembravam
que existiam crianças com fome. 132
O Padre José Pedro tenta ajudar os Capitães da Areia e quebra a lei por causa disso.Ele
não avisa as autoridades que um dos garotos tinha o alecrim. E ao mesmo tempo em que os
meninos de rua se relacionam bem com o padre José Pedro, que tenta ajudá-los, o padre enfrenta
situações difíceis porque seus superiores na igreja Católica não se mostram preocupados com os
problemas dos meninos abandonados.
Outros personagens importantes que são apresentados na primeira parte são Volta Seca,
afilhado de Lampião, que odeia a polícia e quer ser cangaceiro; Gato, que se tornará um
malandro quando mais velho, e que se apaixona por uma prostituta; João Grande, um menino
negro enorme, de 13 anos, segundo em comando do grupo; Querido-de-Deus, um capoeirista
amigo do grupo, que dá algumas aulas de capoeira para Pedro Bala; a Mãe de Santo
Don’Aninha; e Pirulito, que é profundamente religioso e que quer ser padre.
131
132
Amado, Jorge. Capitães da Areia. 13 a ed. (São Paulo: Martins, 1965) 83-84.
Idem 174.
47
Um dos acontecimentos mais marcantes da primeira parte é a chegada do carrossel
mambembe, esse episódio tem o objetivo de mostrar que os meninos que compõem o grupo dos
Capitães da Areia, apesar de tudo o que eles têm que enfrentar em suas vidas diárias, são
somente crianças, e como crianças também tem a capacidade de se divertir:
No começo da noite caiu uma carga de água. Também as nuvens pretas logo depois
desapareceram do céu e as estrelas brilharam, brilhou também a lua cheia. Pela
madrugada os Capitães da Areia vieram. O Sem Pernas botou o motor para trabalhar. E
eles esqueceram que não eram iguais às demais crianças, esqueceram que não tinham lar,
nem pai, nem mãe, que viviam do furto como ladrões.133
Outro acontecimento importante e que vai mudar o destino dos Capitães da Areia é
quando a varíola ataca a cidade, matando um deles:
Omolu mandou a bexiga negra para a cidade. Mais lá em cima os homens ricos se
vacinaram, e Omolu era uma deusa da África, não sabia desta coisa de vacina. E a varíola
desceu para a cidade dos pobres e botou gente doente, botou negro cheio de chaga em
cima da cama.[. . ]
Omolu tinha mandado a bexiga negra para a cidade alta, para a cidade dos ricos. ..
Mas como a bexiga já estava solta (e era a terrível bexiga negra) Omolu teve que deixar
que ela descesse para a cidade dos pobres. Mas como Omolu tinha pena dos seus
filhinhos pobres, tirou a força da bexiga negra, virou alastrim que é uma bexiga branca e
tola quase um sarampo. 134
133
134
Amado, Jorge. Capitães da Areia. 13 a ed. (São Paulo: Martins, 1965) 94.
Idem 161.
48
A mesma varíola deixará Dora órfã. Dora é a personagem feminina central que aparecerá
na segunda parte do livro.
Noite da Grande Paz, da Grande Paz dos teus olhos
Na segunda parte encontra-se uma história de amor. A menina Dora, com 13 anos, tornase a primeira “Capitã da Areia”. Ela perde os pais, que morrem durante a epidemia de alastrim, e
por ser filha de “bexiguento” não consegue abrigo em nenhum lugar. Sem opção e com um
irmãozinho de seis anos, vai para o trapiche dos Capitães da Areia com Professor e João Grande.
A princípio os outros meninos querem estuprá-la, mas depois de alguma briga, decidiram que ela
era ainda uma menina e não lhe fariam mal, e ela passa a fazer parte do grupo.
Dora participa ativamente do grupo e é a única personagem feminina merecedora de
destaque, passando a ser como uma mãe para os garotos abandonados. As outras personagens
femininas são as negrinhas que os meninos “derrubavam” nos areais, as prostitutas, como Dalva,
que é a amante de Gato, e a Mãe de Santo Don’Aninha. Mas se Dora é para a maioria deles uma
mãe e para alguns uma irmã, para Pedro Bala ela se torna a namorada e noiva. Quando Pedro e
ela são presos, eles são torturados, respectivamente no Reformatório e no Orfanato. Depois de
algum tempo presos eles escapam, mas Dora morre logo depois, enfraquecida pelos maus-tratos
recebidos no Orfanato. A morte de Dora encerra a segunda parte do romance e é a motivação
para a maioria das mudanças na vida dos Capitães da Areia.
Canção da Bahia, Canção da Liberdade
A última parte do romance apresenta o destino dos integrantes do grupo. Sem-Pernas
suicida-se, jogando-se do Elevador Lacerda, um dos pontos turísticos mais conhecidos de
49
Salvador, para não ser preso pela polícia; Professor muda-se para o Rio de Janeiro e se torna um
pintor de sucesso; Gato se torna um malandro; Pirulito se torna frade; o padre José Pedro é
mandado para uma paróquia em uma pequena cidade no estado da Bahia; Volta Seca se torna um
cangaceiro 135 do grupo de Lampião; João Grande torna-se marinheiro; Querido-de-Deus
continua sua vida de capoeirista e malandro; Pedro Bala se envolve com os trabalhadores do cais,
e como acontece também em Jubiabá, os meninos de rua ajudam numa greve em Salvador.
Pedro Bala eventualmente se torna um líder dos trabalhadores.
As crianças de rua chefiadas por Pedro Bala no romance Capitães da Areia são acima de
tudo vítimas. A violência cometida pela sociedade contra as crianças, descrita no romance,
recebe a única resposta possível por parte das crianças do grupo. Mais violência. Jorge Amado
definitivamente defende e apóia as crianças de rua, mas apesar de tratar essas crianças como
heróis, ele não ignora que elas são um problema. Os meninos crescem, mas o problema do qual
fazem parte não termina:
A desigualdade que gera os menores infratores é a mesma que produz o cangaceiro
(Volta Seca) e o marginal urbano (Gato); é a mesma que propicia o surgimento do artista
engajado (Professor) e do ativista político (Pedro Bala). Ao final, os meninos tomam
corpo de adultos, mas continua a tensão que os opõe ao mundo e que exige deles novas
armas. Amado faz da desigualdade não apenas o núcleo, a enervação central do romance.
Ao mimetizá-la, quer falar a história do outro, a história a contrapelo, centrada nas vozes
subalternizadas. E, ao trazer essas vozes para o centro do projeto socialista que embala
seus primeiros escritos, quer construir, pela via literária, a solução. Apontando aos
135
Bandido do nordeste brasileiro.
50
marginais o caminho da luta de classes, em pleno alvorecer do Estado Novo, Jorge
Amado ostentava, provocativamente, o lado subversivo da utopia. 136
O objetivo de Jorge Amado em seu romance Capitães da Areia é conscientizar os
trabalhadores, os estudantes e o público em geral de que havia uma solução para os problemas
sociais. Em especial uma forma de resolver o problema das crianças de rua e da sociedade
capitalista, e essa solução seria o socialismo. Como já foi comentado, Jorge Amado se
decepciona com o modelo comunista soviético na década de 1950, mas ele nunca desiste do seu
sonho socialista, do final da fome e da miséria, mas sem perda da liberdade. 137 Ainda do
professor Duarte em Leitura e Cidadania, 138 encontra-se a explicação do sonho socialista de
Jorge Amado, onde as crianças de rua abandonam a delinqüência para se tornarem politicamente
engajadas. Pedro Bala ao passar por sua experiência com a morte, ao perder Dora, renasce e
passa a ser um revolucionário, “um organizador de greves, dirigente de partidos ilegais, perigoso
inimigo da ordem estabelecida:” 139
A idealização romanesca compõe o retrato modelar do oprimido, o "romance proletário"
empresta-lhe uma consciência para impulsioná-lo em sua afirmação como indivíduo. O
vôo da morte de Sem Pernas, que pula das alturas da cidade rica rumo à cidade baixa,
marca o momento agônico do pathos na trajetória do grupo, romanesca descida aos
infernos, preparatória à elevação e reconhecimento definitivos dos personagens. Algo
semelhante ocorre com Pedro Bala em sua fuga da prisão e no mergulho no oceano
acompanhando o cadáver da amada. Com isto, transforma-se também a ação do romance.
136
Duarte, Eduardo A. "Leitura e cidadania." Unicamp. 2002. 01 agosto 2009.
<http://www.unicamp.br/iel/memoria/projetos/ensaios/ensaio19.html>.
137
Goldstein, Ilana S. O Brasil Best Seller de Jorge Amado. (São Paulo: Senac, 2003) 20.
138
Duarte, Eduardo A. "Leitura e cidadania." Unicamp. 2002. 01 agosto 2009.
<http://www.unicamp.br/iel/memoria/projetos/ensaios/ensaio19.html>.
139
Amado, Jorge. Capitães da Areia. 13 a ed. (São Paulo: Martins, 1965) 300.
51
A recorrência ao substrato mítico - morte e renascimento do herói - emoldura a leitura
amadiana da utopia socialista. Mais tarde, a delinqüência infantil cede lugar ao
engajamento proletário. Os garotos crescem. Mais que isto, são impulsionados do mundo
da sobrevivência individual para a rebeldia de uma classe que se levanta. Não será ainda
a revolução, mas o salto sonhado por Jorge Amado naqueles idos de 37. 140
Jorge Amado em Bahia de Todos os Santos: Guia das ruas e dos mistérios da cidade do
Salvador,
141
de 1944, dedica um capítulo às crianças de rua. Ele refere-se a Capitães da Areia e
explica um pouco quem são essas crianças de rua que se tornaram personagens de seu livro que
mais vende no Brasil: 142
Os molecotes atrevidos, o olhar vivo, o gesto rápido, a gíria de malandros, os rostos
chupados de fome, vos pedirão esmola. Praticam também pequenos furtos. Há quase oito
anos escrevi um romance sobre eles, os Capitães da Areia. Os que conheci naquela época
são hoje homens feitos, malandros do cais, com cachaça e violão, operários de fábrica,
ladrões fichados na polícia, mas capitães da areia continuam a existir enchendo as ruas da
cidade, dormindo ao léu. Não são um bando surgido ao acaso, coisa passageira na vida da
cidade. É um fenômeno permanente, nascido da fome que se abate sobre as classes
pobres. Aumenta diariamente o número de crianças abandonadas. Os jornais denunciam
constantes malfeitos desses meninos que têm como único corretivo as surras na polícia.
Os maus tratos sucessivos. Parecem pequenos ratos agressivos, sem medo de coisa
140
Duarte, Eduardo A. "Leitura e cidadania." Unicamp. 2002. 01 Agosto 2009.
<http://www.unicamp.br/iel/memoria/projetos/ensaios/ensaio19.html>.
141
Como explicado pelo subtítulo, trata-se de um "Guia de ruas e mistérios" de Salvador, capital do estado da Bahia.
A obra foi escrita originalmente em 1944 e segundo o próprio Jorge Amado em seu guia: “Esse é bem um estranho
guia, moça. Com ele não verás apenas a casca amarela e linda da laranja. Verás igualmente os gomos podres que
repugnam o paladar. Porque assim é a Bahia, mistura de beleza e sofrimento, de fartura e fome, de risos álacres e de
lágrimas doloridas.” Amado, Jorge. Bahia de Todos os Santos. 11 a ed. São Paulo: Martins, 1965.
142
"Capitães da Areia." Fundação Casa de Jorge Amado. 01 agosto 2009.
<http://www.jorgeamado.org.br/jorge_obras.htm>.
52
alguma, de choro fácil e falso, de inteligência ativíssima, soltos de língua, conhecendo
todas as misérias do mundo numa época em que as crianças ricas ainda criam cachos e
pensam que os filhos vêm de Paris no bico de uma cegonha. Triste espetáculo das ruas da
Bahia, os “Capitães da Areia”. Nada existe que eu ame com tão profundo amor quanto
estes pequenos vagabundos, ladrões de onze anos, assaltantes infantis, que os pais
tiveram de abandonar por não ter como alimentá-los. Vivem pelo areal do cais, por sob as
pontes, nas portas dos casarões, pedem esmolas, fazem recados, agora conduzem
americanos ao mangue. São vítimas, um problema que a caridade dos bons de coração
não resolve. Que adianta os orfanatos para quinze ou vinte? Que adiantam as colônias
agrícolas para meia dúzia? Os “Capitães da Areia” continuam a existir. Crescem e vão
embora mas já muitos outros tomaram os lugares vagos. Só matando a fome dos pais
pode-se arrancar à sua desgraçada vida essas crianças sem infância, sem brinquedos, sem
carinhos maternos, sem escola, sem lar e sem comida. Os “Capitães da Areia”,
esfomeados e intrépidos! 143
Jorge Amado neste curto capítulo descreve o problema do menor abandonado na
sociedade brasileira, que infelizmente ainda não mudou. Ele defende que o problema da criança
de rua é uma conseqüência da distribuição injusta da riqueza, com as diferenças de classe e má
distribuição de renda e os efeitos da marginalidade nas crianças e adolescentes discriminados.
Jorge Amado também explica seus sentimentos por essas crianças, um amor profundo, e as
descreve como dotadas de uma inteligência profunda. Jorge Amado mostra em Capitães da
Areia e em Jubiabá uma profunda intimidade com as crianças de rua da época, e sua perspectiva
das crianças pobres é extremamente diferente da comumente aceita em todas as sociedades. As
143
Amado, Jorge. Bahia de Todos os Santos. 11 a ed. (São Paulo: Martins, 1965) 143-44.
53
crianças pobres de Jorge Amado não são seres vulneráveis, fracos, amedrontados e necessitados
de proteção. Pelo contrário, são inteligentes, capazes de trabalhar arduamente e de usar sua
inteligência para resolver problemas muitas vezes bem complicados. Esta visão dos meninos de
rua, inovadora na época, está sendo comprovada em muitos estudos nas últimas décadas. 144 Não
que Jorge Amado apóie o estilo de vida dos meninos de rua, mas o que ele tenta mostrar é que
essas crianças não são seres fracos e incapazes. São na verdade lutadores e sobreviventes de uma
realidade difícil de imaginar para as pessoas de classe média ou alta. Waldir Freitas Oliveira, em
seu ensaio 2002: Os 65 Anos de Capitães da Areia, defende as idéias defendidas por Jorge
Amado:
Capitães da Areia é, sem dúvida, um documento valioso para a compreensão de uma
época, na Bahia. Sua elaboração resultou da vivência intensa do autor nas ruas, becos e
ladeiras da cidade que ele conheceu, adolescente, acreditando, como Pedro Bala, ser
capaz de mudar o mundo para torná-lo mais justo e beneficiar os mais pobres,
condenando, em sua missão sinceramente assumida de escritor engajado, como foram,
durante algum tempo, chamados os autores de livros como os seus, numa sociedade que
144
Ver, por exemplo, Meninos e meninas em situação de rua: Dinâmica, diversidade e definição, por Silvia Koller
e Claudio Hutz. Este trabalho mostra porque a sociedade em geral apresenta uma visão negativa dos meninos de rua,
os autores defendem que a maioria dos estudos a respeito desse grupo refere-se a problemas de difícil controle,
como por exemplo: uso de drogas; promiscuidade, doenças e sexualidade; falta de adaptação, exclusão e
marginalidade. Em contrapartida, Koller e Hutz investigam estudos positivos sobre as crianças de rua, por exemplo,
Carraher e colaboradores revelou em 1985 que a vida na rua leva as crianças à uma aprendizagem natural de
matemática; outros estudos comprovam que o viver nas ruas não impede o desenvolvimento de valores e não gera
deficiências morais específicas em crianças e adolescentes. Koller, Silvia H., and Claudio S. Hutz. Meninos e
meninas em situação de rua: Dinâmica, diversidade e definição. Associação Nacional de Pesquisa e Pós-graduação
em Psicologia. CEP-RUA/UFRGS, 1996. 27 Julho 2009.
<http://www.infocien.org/Interface/Colets/v1n12a02.pdf>.
54
se negava a reconhecer-se injusta, mantidas as estruturas que garantiam, somente aos
ricos, os privilégios. 145
Jorge Amado com seus dois romances tratados neste capítulo, Jubiabá e Capitães da
Areia, representa um grande avanço na literatura brasileira para os meninos de rua. As crianças
pobres representadas na literatura brasileira deixam de ser frágeis e desamparadas, passando a
reagir à violência que sofrem, talvez não da forma ideal, mas da única forma possível: com mais
violência. Diferentes da personagem Negrinha, de Monteiro Lobato, ou do Paulino, de Mário de
Andrade, essas crianças se voltam contra seus algozes e tentam se defender.
145
Oliveira, Waldir Freitas. 2002: os 65 anos de Capitães da areia. Revista de Cultura da Bahia. n. 20, 41-53
(Salvador: Conselho Estadual de Cultura, 2002) 51.
55
Capítulo III
AS CRIANÇAS INVISÍVEIS EM TEMPOS DE DITADURA: 1937-1985
Depois de Jorge Amado e seu Capitães da Areia de 1937, outro romance de sucesso
sobre os meninos de rua não seria publicado até 1977, 146 um intervalo de 40 anos. Mas se
romances sobre as crianças de rua não foram publicados entre 1937 e 1977, contos, crônicas,
poemas, filmes e música sobre o tema apareceram constantemente neste período. Autores como
João Antônio, Roberto Freire, Clarice Lispector, Chico Buarque de Holanda, Carolina de Jesus e
Rubem Fonseca abordaram o tema da pobreza e da marginalidade. Embora esses autores não o
fizessem de maneira sistemática, eles e outros autores trouxeram o tema das crianças de rua para
a literatura brasileira. Esse capítulo tratará dessas obras que abordam direta ou indiretamente o
tema das crianças de rua e que foram publicadas entre 1937 e 1985.
Os meninos de rua entre 1937 e 1960
Durante o período de 1937 até o início da década de 1960 muito pouco foi publicado
sobre as crianças de rua na literatura brasileira. Muitos fatores podem explicar o pouco interesse
nas crianças de rua pelos romancistas brasileiros, por exemplo, a censura do Estado Novo (19371945) de Getúlio Vargas, que governou de 1930 a 1945 e de 1951 a 1954. Também de 1964 até
meados da década de 1970 a censura da Ditadura Militar (1964-1985) proibiu que muito fosse
dito sobre a miséria em que a maior parte da população brasileira vivia. 147 Outros fatores
também contribuíram para explicar essa falta de interesse nas crianças de rua na época conhecida
como a terceira fase do modernismo, que se iniciou em 1945, de acordo com Maria Granzoto:
146
Ano de publicação de Infância dos mortos, de José Louzeiro.
Maia, Maurício. "Censura, uma processo de ação e reação." Org. Maria L. Carneiro. Minorias silenciadas. (São
Paulo: Edusp, 2002) 469-512.
147
56
Com a transformação do cenário sócio-político do Brasil, a literatura também se
transformou. O fim da Era Vargas, a ascensão e queda do Populismo, a Ditadura Militar e
o contexto da Guerra Fria foram, portanto, de grande influência na Terceira Fase. Na
prosa, tanto no romance quanto no conto, houve a busca de uma literatura intimista, de
sondagem psicológica e introspectiva, tendo como destaque Clarice Lispector. O
regionalismo, ao mesmo tempo, ganha uma nova dimensão com a recriação dos costumes
e da fala sertaneja com Guimarães Rosa, penetrando fundo na psicologia do jagunço do
Brasil central. A pesquisa da linguagem foi um traço característico dos autores citados,
sendo eles chamados de instrumentalistas. 148
Todos esses fatores, principalmente a censura e os outros interesses dos escritores
brasileiros da época, contribuíram para que os meninos de rua continuassem ignorados pelos
romancistas. Mas se as crianças pobres das grandes capitais brasileiras eram ignoradas, escritores
como Guimarães Rosa, João Cabral de Melo Neto e Graciliano Ramos abordaram, ainda que de
forma indireta, as crianças que viviam em pobreza absoluta nos sertões brasileiros.
A criança nos sertões brasileiros: Graciliano Ramos, João Cabral de Melo Neto e
Guimarães Rosa
Vidas Secas de Graciliano Ramos, publicado em 1938, conta a história de uma família de
retirantes que foge da seca. Os membros da família são Fabiano e sinhá Vitória, o menino mais
velho e o menino mais novo, que curiosamente são anônimos, a cachorra Baleia e o papagaio.
Os dois meninos são crianças pobres e sofridas que não tem noção da miséria em que viviam.
Depois de muita miséria e sofrimento, o romance termina com a família, sem o papagaio que foi
148
Granzoto, Maria. "Modernismo no Brasil." Artculturalbrasil. 8 Julho 2009. 28 Julho 2009.
<http://artculturalbrasil.blogspot.com/>.
57
comido e sem Baleia que morreu doente, indo para uma cidade grande, onde inúmeros outros
meninos vindo dos sertões brasileiros também foram:
E andaram para o sul, metidos naquele sonho. Uma cidade grande, cheia de pessoas
fortes. Os meninos em escolas, aprendendo coisas difíceis e necessárias. Êles dois
velhinhos, acabando-se como uns cachorros, inúteis, acabando-se como Baleia. Que iriam
fazer? Retardaram-se temerosos. Chegariam a uma terra desconhecida e civilizada,
ficariam presos nela. E o sertão continuaria a mandar gente para lá. O sertão mandaria
para a cidade homens fortes, brutos, como Fabiano, sinhá Vitória e os dois meninos. 149
João Cabral de Melo Neto também denunciou a infância abandonada na pobreza
absoluta. Morte e vida Severina, escrito entre 1955 e 1956, conta a viagem de Severino do
interior de Pernambuco até o litoral, buscando uma vida melhor. Ao chegar à capital, Severino se
desespera ao encontrar somente miséria, e decide se suicidar. Senta-se em frente ao rio
Capibaribe e conversa com José Carpina, morador de um dos mocambos que existiam entre o
cais e a água do rio, e pergunta ao mestre Carpina se havia alguma razão para continuar vivo:
Seu José, mestre carpina,
que diferença faria
se em vez de continuar
tomasse a melhor saída:
a de saltar, numa noite,
fora da ponte e da vida? 150
O longo poema denuncia a vida miserável dos habitantes dos sertões brasileiros e o que
estes encontram nas grandes cidades brasileiras ao fugir da seca: mais miséria ainda. O
nascimento do filho do Mestre Carpina, que acontece durante a conversa deste com Severino,
149
Ramos, Graciliano. Vidas Sêcas. 15 a ed. (São Paulo: Martins, 1966 ) 159.
Melo Neto, João C. "Morte e Vida Severina." Cultura Brasileira. 29 Agosto 2009.
<http://www.culturabrasil.pro.br/joaocabraldemelonetoo.htm .
150
58
traz o tema das crianças pobres para o poema. Durante as festividades comemorando o
nascimento da criança, uma cigana descreve a vida das crianças pobres no Recife, crianças que
disputam com animais qualquer comida disponível. A fome as obriga a buscar no lixo o que
comer:
Cedo aprenderá a caçar:
primeiro, com as galinhas,
que é catando pelo chão
tudo o que cheira a comida
depois, aprenderá com
outras espécies de bichos:
com os porcos nos monturos,
com os cachorros no lixo. 151
Outro autor que também expôs a miséria em que as crianças nos sertões brasileiros
viviam foi Guimarães Rosa. Em Grande Sertões Veredas de 1956, Riobaldo, o narrador e exjagunço, relata vários casos de crianças sofrendo nos sertões brasileiros:
[. . .]botam o menino sem comer, amarram em árvores no terreiro, ele nu nuelo, mesmo
em junho frio, lavram o corpinho dele na peia e na taca, depois limpam a pele do sangue,
com cuia de salmoura. A gente sabe, espia, fica gasturado. O menino já rebaixou de
magreza, os olhos entrando, carinha de ossos, encaveirada, e entisicou, o tempo todo
tosse, tossura da que puxa seco peitos. Arre, que agora visível, o Pindó e a mulher se
habituaram de nele bater, de pouquinho em pouquim foram criando nisso um prazer feio
de diversão – como regulam as sovas em horas certas confortáveis, até chamam gente
para ver o exemplo bom. 152
151
Melo Neto, João C. "Morte e Vida Severina." Cultura Brasileira. 29 Agosto 2009.
<http://www.culturabrasil.pro.br/joaocabraldemelonetoo.htm .
152
Rosa, João G. Grande Sertão: Veredas. 11 a ed.(Rio de Janeiro: J. Olympio, 1976) 13-14.
59
Esse menino é espancado periodicamente pelos pais, que acreditam que o demônio o
possui. Mas crianças sofrendo nos sertões são muitas, “Órfão de conhecença e de papéis legais, é
o que a gente vê mais nesses sertões.”153 Guirigó , outra criança pobre que é descrita no romance,
é um menino negro de uma pequena cidade chamada Sucruiú, onde a seca faz com que todos
sofram terrivelmente:
Tão magro, trestriste, tão descriado, aquele menino já devia de ter prática de todos os
sofrimentos. [. . .]Jagunço distraído, vendo um desses, do jeito, à primeira, era capaz de
bondade de desfechar nele um tiro certo, pensando que padecia agonia, e carecesse dessa
ajuda, por livração. 154
Esses três autores mostraram as condições de vida dos pobres no sertão brasileiro, o que
explica as razões da migração das famílias rurais para os grandes centros urbanos, que como
veremos a seguir é umas das grandes causas do aumento de crianças de rua a partir de 1960.
O cinema brasileiro e as crianças de rua nas décadas de 1940 e 1950
Nas décadas de 1940 e 1950 não existem romances sobre crianças de rua, crianças pobres
das grandes cidades brasileiras. Mas no cinema elas apareceram. A produtora de filmes
Atlântida 155 produziu seu primeiro filme em 1943, “Moleque Tião”, trazendo Grande Otelo 156 no
papel principal. “Moleque Tião” fez enorme sucesso, e foi também a primeira vez que um
153
Rosa, João G. Grande Sertão: Veredas. 11 a ed.(Rio de Janeiro: J. Olympio, 1976) 35.
Idem 299-300.
155
Maior produtora de filmes no Brasil durante a década de 1940, foi fundada por Moacyr Fenelon, Alinor Azevedo
e José Carlos Burle em 1941. "História: Assim era a Atlântida." Atlântida Cinematográfica. Young Media, 2005. 29
Agosto 2009. <http://www.atlantidacinematografica.com.br/sistema2006/historia_texto.asp>.
156
Ator brasileiro negro, foi descrito por Orson Wells como “The greatest comic actor of the 20th century”. Fez
sucesso no Brasil desde o início da década de 1940 até 1994, ano de sua morte. Trabalhou no cinema e na televisão.
Stam, Robert. Tropical Multiculturalism: A Comparative History of Race in Brazilian Cinema and Culture.
(London: Duke, 1997) 88.
154
60
moleque, um menino de rua, apareceu no cinema brasileira. 157 O filme conta a história de um
menino negro que quer ser artista de teatro e foge para o Rio de Janeiro. Chegando no Rio, ele
vive nas ruas e é preso e mandado para um orfanato, de onde foge, e depois de muitas aventuras
realiza seu sonho de ser artista de teatro.158
Na década de 1940 somente “Moleque Tião” trouxe o tema das crianças de rua para o
cinema brasileiro. Na década de 1950 mudanças contribuíram para que o tema da marginalidade
e da pobreza fossem mais exploradas pelo cinema brasileira. Uma dessas mudanças foi a
chegada da televisão no Brasil, trazida por Assis Chateaubriand em setembro de 1950, que
ajudou a terminar com as chanchadas, 159 um estilo de cinema que fez muito sucesso no Brasil,
mas que por diversas razões acaba no final dos anos 50. Também o suicídio de Getúlio Vargas
em 1954, com um tiro no coração, contribuiu para a grande mudança no cinema brasileiro.
Getúlio Vargas acreditava que o cinema era um instrumento de caráter pedagógico, pois segundo
ele o cinema era capaz de aproximar, pela visão incisiva dos fatos, os diferentes núcleos
humanos dispersos no vasto território da República. Por meio do cinema as informações
ideológicas seriam transmitidas ao povo, que aprenderiam os valores e os ideais do Estado
através de imagens, o que seria beneficial principalmente aos analfabetos. O cinema era usado
então como um meio de propaganda para a formação do patriotismo e da imagem do Brasil
branco. 160
Um ano após o suicídio de Getúlio, o filme “Rio, 40 Graus” foi rodado no Rio de
Janeiro. Completamente diferente das chanchadas, teve um orçamento extremamente baixo e
157
Rodrigues, João C. O negro e o cinema brasileiro. (Rio de Janeiro: Globo, 1988) 26.
Stam, Robert. Tropical Multiculturalism: A Comparative History of Race in Brazilian Cinema and Culture.
(London: Duke, 1997) 90-91.
159
As chanchadas eram comédias populares e musicais produzidas no Brasil até 1960. O estúdio mais famoso que
produzia chanchadas era o Atlântida. Idem 83.
160
Rodrigues, João C. O negro e o cinema brasileiro. (Rio de Janeiro: Globo, 1988) 57-58.
158
61
mostrou um Brasil pobre e negro. A favela, com seus desafios e com as pessoas encurraladas
nela, muitas delas buscando uma saída, foi mostrada. Um ponto de destaque no filme é a falta da
figura de um herói, claramente uma influência dos ideais comunistas do diretor.161 De interesse
para o tema das crianças de rua é que o filme acompanha a vida de cinco crianças da favela que
vendem amendoim, e suas aventuras pelas ruas do Rio de Janeiro num domingo ensolarado. As
cinco crianças descem da favela e vão para diferentes pontos da cidade, Praia de Copacabana,
Pão de Açúcar, Corcovado, Quinta da Boa Vista e Maracanã. Em cada um desses locais é
contada uma história diferente.162.
Mesmo tendo que lutar pela sobrevivência, essas crianças continuavam sendo crianças,
brincando e buscando se divertir. Tentando mostrar a realidade fragmentada da favela e do Brasil
que tinha sido escondida até então, “Rio, 40 graus” é considerado o precursor do Cinema Novo,
um movimento cinematográfico brasileiro focalizado na política e cultura nacional. 163
Outro filme da década de 1950 abordando o tema da favela foi “Orpheu Negro”, um
filme francês rodado no Brasil, com atores brasileiros, roteiro baseado numa peça de teatro
brasileira, e em português. 164 “Orpheu Negro” oferece uma visão lírica e falha ao não mostrar o
desastre social que é a favela. Camus, o diretor francês do filme, descreve o Brasil como um
“country without roots, made of transplanted races, without a tradition of expression” onde
“blacks live in favelas in order to flee from civilization.” 165 Pessoas, independente da cor de sua
pele, vivem nas favelas simplesmente por falta de opção econômica. Crianças pobres aparecem
161
Simões, Inimá F. "A censura cinematográfica no Brasil." Org. Maria L. Carneiro. Minorias silenciadas. (São
Paulo: Edusp, 2002) 355-57.
162
Stam, Robert. Tropical Multiculturalism: A Comparative History of Race in Brazilian Cinema and Culture.
(Londres: Duke, 1997 ) 160.
163
Hart, Stephen M. Companion to Latin American film. (Rochester, NY: Tamesis, 2004) 50.
164
Stam, Robert. Tropical Multiculturalism: A Comparative History of Race in Brazilian Cinema and Culture.
(Londres: Duke, 1997) 170.
165
Idem 172.
62
no filme de Camus, mas o drama das crianças que trabalham nas ruas para sobreviver, o que
acontece com a maioria das crianças moradoras de favelas, não é mostrado no filme.
A criança na obra de Carolina de Jesus
Outra obra interessante escrita na década de 1950, mas publicada em 1960, foi o diário de
Carolina de Jesus, uma moradora de uma favela brasileira em São Paulo. Em Quarto De
Despejo, Carolina de Jesus registrou os fatos corriqueiros de uma favela abrangendo o período
de 1955 a 1960, mostrando um pouco as opções que as crianças das favelas encontram. Todo o
diário mostra a preocupação de Carolina com as crianças da favela, e suas reflexões sobre
diversos temas, incluindo literatura:
(. . .) Toquei o carrinho e fui buscar mais papeis. A Vera ia sorrindo. E eu pensei no
Casimiro de Abreu, que disse: “Ri criança. A vida é bela”. Só se a vida era boa naquele
tempo. Porque agora a época está apropriada para dizer: “Chora criança. A vida é
amarga.” 166
Neste curto trecho, Carolina faz uma reflexão muito acurada sobre o papel da criança na
literatura brasileira, o ideal da criança brasileira feliz de Casimiro de Abreu não se aplica às
crianças com que ela convive. A presença das crianças é comum no diário:
… Quando cheguei na favela os meninos estavam brincando. Perguntei-lhes se alguém
havia brigado com eles. Responderam-me que só a baiana. Uma vizinha que tem 3 filhos.
E que a Leila brigou com o Arnaldo e queria jogar a sua filha recém-nascida dentro do rio
Tietê. E foram brigando até a rua do Porto. E a Leila jogou a criança no chão. A criança
166
Jesus, Carolina M. Quarto de Despejo: Diário de uma favelada. (São Paulo: Francisco Alves, 1963) 27.
63
tem dois meses. (. . .) As mulheres queriam ir chamar a policia para levar a menina no
Juizado. Eu estava cançada, deitei. Não tive coragem nem de trocar a roupa. 167
.. Na favela tem muitas crianças. As crianças são sempre em maior número. Um casal
tem 8 filhos, outro tem 6 e daí por diante. 168
Quarto de Despejo mostra a realidade da favela e os fatores que impulsionam tantas
crianças a viver nas ruas e apesar de ainda despertar interesse em países como os Estados
Unidos, não é muito lido atualmente no Brasil. A autora morreu pobre e esquecida em 1977. 169
Em Cinderela Negra, de 1994, foram publicadas algumas memórias interessantes da
infância de Carolina de Jesus aos sete anos, uma criança negra e pobre, que ainda morava no
interior do Brasil e sua breve experiência com a escola:
Eu estava com sete anos e acompanhava a minha mãe por todos os lados. Eu tinha um
medo de ficar sozinha. Como se estivesse alguma coisa escondida neste mundo para
assustar-me. Eu ainda mamava. Quando senti vontade de mamar comecei a chorar.
“Eu quero irme embora!
Eu quero mamar!
Eu quero irme embora!”
A minha saudosa professora D. Lanita Salvina perguntou-me: “Então a senhora ainda
mama?”
“Eu gosto de mamar”
As alunas sorriram.
“Então a senhora não tem vergonha de mamar?”
167
Jesus, Carolina M. Quarto de Despejo: Diário de uma favelada. (São Paulo: Francisco Alves, 1963) 59.
Idem 62.
169
Bom Meihy, José C., e Roberto M. Levine. Cinderela negra: A saga de Carolina Maria de Jesus. (Rio de
Janeiro: UFRJ, 1994) 43.
168
64
“Não tenho!”
“A senhorita está ficando mocinha e tem que aprender a ler e escrever, e não vai ter
tempo disponível para mamar, porque necessita preparar as lições. Eu gosto de ser
obedecida! Estais ouvindo-me D. Carolina Maria de Jesus?”
Fiquei furiosa e respondi com insolência.
“O meu nome é Bitita. Não quero que troque o meu nome.”
“O teu nome é Carolina Maria de Jesus.”
Era a primeira vez que eu ouvia pronunciar o meu nome.
Que tristeza que senti. Eu não quero este nome, vou trocá-lo por outro.
A professora deu-me umas reguadas nas pernas, parei de chorar. Quando cheguei na
minha casa tive nojo de mamar na minha mãe. Compreendi que eu ainda mamava porque
era ignorante, ingênua e a escola esclareceu-me um pouco.
Minha mãe sorria dizendo:
“Graças a Deus! Eu lutei para desmamar esta cadela e não consegui. A minha mãe foi
beneficiada no meu primeiro dia de aula. Minha tia Oluandimira dizia:
“É porque você é boba e deixa esta negrinha te dominar.” 170
Aos sete anos, mesma idade que as crianças negras escravas começavam a integrar a
força de trabalho, 171 Carolina de Jesus mais de 30 anos após a abolição da escravatura, uma
menina negra, vai para a escola, onde leva reguadas e aprende que é feio mamar quando se tem
sete anos de idade. Aprende também que é ingênua e ignorante. Infelizmente não passa muito
170
Bom Meihy, José C., e Roberto M. Levine. Cinderela negra: A saga de Carolina Maria de Jesus. (Rio de
Janeiro: UFRJ, 1994) 173-74.
171
Arantes, Esther M. "A reforma das prisões, a Lei do Ventre Livre e a emergência no Brasil da categoria do menor
abandonado." Pol Psicologia Online. Conselho Federal de Psicologia, 10 Dez. 2008. 1 agosto 2009.
<http://www.pol.org.br/pol/export/sites/default/pol/noticias/noticiaDocumentos/ A_reforma_das_prisxes.pdf>.
65
tempo na escola, o que acontece com muitas crianças pobres ainda hoje no Brasil. E também
ilustra o fenômeno da migração do interior para as grandes cidades. Sua família fugindo da
pobreza muda-se para São Paulo e passa a viver em uma favela, como acontece com milhares de
brasileiros.
As crianças invisíveis na década de 1960
A partir da década de 1960 as crianças de rua passaram a ocupar um espaço maior na
literatura brasileira. A explicação para isso é que até meados dos anos 50 o Brasil era um país
rural. Sob a renovação representada pelo modernismo de 22 e os movimentos literários
posteriores, e com a problemática urbanização não planejada do país, a realidade urbana
gradualmente começou a fazer parte do imaginário do país e a partir dos anos 60 passou a ser
predominante na literatura brasileira. 172 O crescimento demográfico, a urbanização acelerada e a
construção de indústrias favoreceram o crescimento das favelas e dos cortiços nas grandes
cidades e esses mesmos fatores favoreceram a exploração da mão-de-obra urbana e
despreparada. O resultado de tudo isso foi um grande aumento no número de crianças
abandonadas e de crianças que tiveram que trabalhar nas ruas para ajudar financeiramente a
família.
Outro fato histórico do período importante para os meninos de rua foi que em 1964 os
militares no poder criaram a Funabem, Fundação Nacional de Bem-Estar do Menor, que, em
cada Estado, seria representada pela Febem, Fundação Estadual de Bem-Estar do Menor, tendo
como objetivo básico formular e implantar a política do bem-estar do menor. Mas poucos
resultados foram alcançados por essa fundação na década de 1960. 173 Na verdade a situação da
172
173
Pinto, Manuel C. Literatura Brasileira Hoje. (São Paulo: Publifolha, 2004) 83.
Marcílio, Maria L. História social da criança abandonada. (São Paulo: HUCITEC, 1998) 226.
66
criança e do adolescente se agravou no Brasil devido ao acelerado processo de urbanização do
país durante o regime militar. No início da década de 1960 a maior parte da população brasileira
se encontrava nas cidades, quase 56%, o que significava que muitos trabalhadores rurais,
expulsos do campo pela mecanização da lavoura, passaram a morar em favelas e cortiços e a
expor suas famílias à marginalidade. 174 As famílias, ao migrarem do campo para cidade,
perderam seu contexto cultural, o suporte de familiares e da vizinhança. As mulheres tinham
como opção de emprego a fábrica, os serviços domésticos e a prostituição. Muitas vezes mãe
solteira, a mulher migrante foi quem mais contribuiu para aumentar a quantidade de crianças
maltrapilhas e desamparadas que se tornaram uma constante nas grandes cidades brasileiras. 175
Neste período muitos escritores começaram a perceber as crianças de rua e o tema de
crianças vivendo e/ou trabalhando nas ruas foi abordado de forma mais constante. Um dos
autores brasileiros mais importantes da década de 1960, que se dedicou ao temas dos excluídos
sociais foi João Antônio.
João Antônio e a marginalidade
João Antônio, filho de pai português e mãe brasileira, nasceu em São Paulo em 1937.
Viveu grande parte de sua vida entre a metrópole paulista e a cidade do Rio de Janeiro. O autor
notabilizou-se pelo enfoque nas classes dos submundos da metrópole paulistana, bem como seu
cuidadoso trabalho com a linguagem dos marginais. Em 1962 publicou seu primeiro livro de
174
Silva, José M. "Maioridade penal, redução ou barbárie." Jornal Opção Online. Jornal Opção, 23 Nov. 2003. 30
Agosto 2009. <http://www.jornalopcao.com.br/index.asp?secao=Manchete&idjornal=55>.
175
Marcílio, Maria L. História social da criança abandonada. (São Paulo: HUCITEC, 1998) 192-193.
67
contos, Malagueta, Perus e Bacanaço. Morreu em 1996 no Rio de Janeiro, tendo publicado mais
de dez livros de histórias curtas. 176
Nas obras de João Antônio os pobres podem assumir um de dois papéis, o de otário ou o
de malandro. O otário é o trabalhador que segue as regras, tem um emprego e uma família. O
malandro é o que transgride essas mesmas regras. Mas tanto os otários quanto os malandros são
marginalizados nos contos de João Antônio, diante da situação de opressão que os engloba. 177 As
crianças estão presentes em muitos contos deste autor, e na violência que é uma constante nos
contos a consciência do mal não aparece. O mundo dos personagens de João Antônio é um
mundo desesperado, onde os personagens encobrem com um cinismo agressivo sua tristeza
profunda e a mesquinhez de suas vidas. 178
Dois dos contos de Malagueta, Perus e Bacanaço, o livro de contos de estréia de João
Antônio, trazem meninos de rua como protagonistas. “Frio” trata de um garoto negro de 10 anos
que leva um pequeno embrulho de drogas para seu amigo e protetor Paraná durante uma noite
fria:
Pequeno, feio, preto, magrelo. Mas Paraná havia-lhe ensinado todas as virações de um
moleque. Por isso ele o adorava. Pena que não saísse da sinuca e da casa daquela Nora, lá
na Barra Funda. Tirante o que, Paraná era branco, ensinara-lhe engraxar, tomar conta de
carro, lavar carro, se virar vendendo canudo e coisas dentro da cesta de taquara. E até ver
horas. 179
176
Martin, Vima L. Literatura e marginalidade: Um estudo sobre João Antônio e Luandino Vieira. (São Paulo:
Alameda, 2008) 19.
177
Idem 70.
178
Polinésio, Julia M. O conto e as classes subalternas. (São Paulo: Annablume, 1994) 138-39.
179
Martin, Vima L. Literatura e marginalidade: Um estudo sobre João Antônio e Luandino Vieira. (São Paulo:
Alameda, 2008) 61-62.
68
O menino Nego atravessa a cidade de São Paulo para entregar o pacote ao amigo e
protetor. O frio a que se refere o título do conto não é somente devido à baixa temperatura,
também são conseqüências do medo e solidão que Nego sente. O menino não tem família nem
sequer um nome. Nego é o seu apelido. Paraná, o seu protetor, oferece o aprendizado que um
jovem sem família ou amigos necessita. Como se proteger do frio a noite, como ver as horas no
relógio, como se esconder da polícia. Sua fidelidade e obediência ao seu mestre são completas.
Ele atravessa durante a madrugada as perigosas ruas de São Paulo, para levar um misterioso
embrulho até um ferro-velho. O conto ilustra que mesmo no universo da criança abandonada há
lugar para a amizade e a lealdade. Paraná apesar de ser um marginal, também parece sentir uma
afeição genuína pelo menino Nego. Já a admiração e obediência de Nego por Paraná se devem a
imagem de malandro esperto que Paraná possui, capaz de escapar dos policiais e de outros
malandros, um herói aos olhos do menino.
Nego ainda conserva sua inocência, apesar de conviver com marginais ainda não está
corrompido, podemos perceber isso no decorrer do conto, nos pensamentos do menino sobre
cavalos, cachorros, sobre ver o mar e brincar com amigos. No final do conto, já no ferro-velho,
ele não encontra Paraná e guarda o embrulho, sem saber que carrega drogas e que já se iniciou
no caminho da marginalidade. O frio a que o título do conto se refere pode representar o
abandono de toda a espécie a que uma criança é exposta e o que isso significa para ela. O conto
termina com o menino sozinho, não sabemos o que aconteceu com Paraná, e somos deixados a
imaginar o destino de Nego.
Meninão do Caixote conta as desventuras de outro menino, dos seus doze aos seus quinze
anos, que se vicia no jogo de sinuca. O conto de 20 páginas mostra o conflito entre ser otário e ir
para a escola, ou malandro e ganhar dinheiro nas ruas:
69
Mas a malandragem continuava, eu ia escorregando difícil, matando aulas, pingando
safadezas. O colégio me enfadava, era isto. Não conseguia prender um pensamento,
dando de olhos nos companheiros entretidos com latim ou matemática.
- Cambada de trouxas!
Dureza, aquela vida: menino que estuda, que volta à casa todos os dias e que tem papai e
tem mamãe. Também não era bom ser Meninão do Caixote, dias largados nas mesas da
boco do inferno, considerado, bajulado, mandão, cobra. Mas abastecendo meio mundo e
comendo sanduiche, que sinuca é ambiente de maior exploração. 180
O garoto não se interessa pela escola, acha que estudar é para os trouxas, não para os
espertos. Sua única preocupação é o mundo dos malandros e o jogo de sinuca. Mas a dualidade
consiste em não haver satisfação em nenhum dos dois caminhos que ele tem como alternativa.
Entre ser trouxa ou malandro, a segunda opção parece a mais acertada, mas o garoto parece
desejar que houvesse uma terceira opção, que infelizmente não existe. João Antônio, em outro
conto, Guardador, questiona as razões que levam as pessoas a serem caridosas e a dar esmola.
Também reflete sobre como as classes mais privilegiadas vêem os miseráveis.
(..) Difícil saber. Por que as pessoas dão esmolas? Cabeça branquejando, o boné pendido
de um lado reflete dúvidas.
Três tipos de pessoas dão. Só uma minoria – ninguém espere outro motivo – dá esmolas
por entender o miserê. Há a maior parte, no meio, querendo se ver livre do pedinte. O
180
Martin, Vima L. Literatura e marginalidade: Um estudo sobre João Antônio e Luandino Vieira. (São Paulo:
Alameda, 2008) 91.
70
terceiro grupo, otários da classe média, escorrega trocados a esmoleiros já que, vestidos
direitinhamente, encabulariam ao tomar o flagra em público – são uns duros, uns tesos.181
O personagem, um homem velho que trabalha guardando carros pondera sobre as razões
que levam as pessoas a dar esmolas. Nas ruas das grandes cidades brasileiras se encontram
pessoas de todas as idades, geralmente crianças, que trabalham cuidando do carro na ausência do
proprietário. Por uma pequena quantia em dinheiro o dono do carro evita o transtorno de
encontrar seu carro com um pneu furado ou com a pintura arranhada, se encontrar seu carro. Esse
guardador de carros não tem muitas ilusões sobre a caridade mostrada por seus semelhantes. A
minoria segundo ele realmente entende pelo que passa a pessoa que mendiga. O mesmo
guardador descreve meninos de rua dormindo em uma praça, imundos e ameaçadores. Bem
diferentes do Nego que estudamos no outro conto de João Antônio. A linguagem utilizada pelo
autor é a mesma usada pelos moradores de rua, e sua descrição dos menos privilegiados na
sociedade brasileira é assustadora:
A praça aninhava um miserê feio, ruim de se ver. A praça em Copacabana tinha de um
tudo. De igreja á viração rampeira de mulheres desbocadas, de ponto de jogo do bicho e
parque infantil nas tardes e nas manhãs. Pivetes de bermudas imundas, peitos nus, se
arrumavam nos bancos encangalhados e ficavam magros, descalços, ameaçadores.
Dormiam ali mesmo, à noite, encolhidos como bichos, enquanto ratos enormes corriam
ariscos ou faziam paradinhas inesperadas perscrutando os canteiros.[. . .]182
181
182
Antônio, João. "Guardador." Guardador. (Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1992) 50-51.
Idem 55.
71
A obra de João Antônio denunciou a exclusão gerada pelo poder instituído, mas nunca
buscou fazer mudanças ou aderiu a uma ideologia partidária. 183 Suas crianças de rua assumem
com uma atitude de desafio o caminho não escolhido e sua incapacidade de sair do mundo
fechado da malandragem e do crime. 184
O que existe em comum entre todas as crianças de rua de João Antônio é a necessidade
de sobreviver nas ruas, vencendo a fome e o medo, não só da polícia e das autoridades, mas
também do malandro mais forte e dos sistemas de lei criados pelos próprios marginais.
Além de ilustrar as várias faces da questão do menor abandonado, João Antônio com sua
linguagem literária serviu-se de aspectos do jornalismo como uma forma de se apoiar em dados
da realidade, tornando sua ficção uma discussão acentuadamente mais social e engajada pela
consciência de luta e questionamento. Por meio da violência retratada nos contos vemos uma
realidade urbana cruel, onde as crianças das classes mais pobres têm que decidir entre o
conformismo ou a revolta, entre ser otário ou ser malandro. Pode-se observar também que as
crianças de rua dos contos de João Antônio buscam por uma terceira opção, mas outras opções
parecem não existir. Não existe saída para a situação em que vivem, estão todas encurraladas e
tem que ou lutar para sobreviver ou se conformar com a situação em que vivem.
Roberto Freire e João Pão
Em 1964, ano do golpe militar que instituiu a Ditadura Militar no Brasil, a TV Record
apresentou a minissérie “João Pão,”185 de Roberto Freire, que contava as aventuras de um
183
Martin, Vima L. Literatura e marginalidade: Um estudo sobre João Antônio e Luandino Vieira. (São Paulo:
Alameda, 2008) 24.
184
Polinésio, Julia M. O conto e as classes subalternas. (São Paulo: Annablume 1994) 137.
185
"João Pão (1964)." The Internet Movie Database (IMDb). 29 Agosto 2009.
<http://www.imdb.com/title/tt0235926/>.
72
menino de rua. Após o término da minissérie, Roberto Freire, escritor, dramaturgo, jornalista,
médico e ex-psicanalista escreveu livros voltados para o público infantil contando as aventuras
do mesmo João Paulo. A minissérie e os livros que a seguiram, alguns deles com edições
publicadas em 2003, contam a história do menino de rua João Pão.
João aos sete anos, um menino órfão, foge do juizado de menores onde vive e passar a
viver com um mendigo que o ensina a superstição de carregar sempre um pão na camisa, para ter
sorte. Por isso passa a ser chamado pelos amigos de João Pão. Quando o mendigo morre, João
Pão então com nove anos passa a fazer parte de um grupo de meninos de rua e suas aventuras são
contadas. Temas como prostituição infantil, abuso sexual, delinqüência, corrupção da polícia,
amizade e solidariedade são abordados.
Como Jorge Amado, que viveu com um grupo de crianças de rua em Salvador antes de
escrever seu Capitães da Areia, Roberto Freire também viveu com um grupo de crianças de rua,
morando embaixo de uma ponte do rio Capibaribe no Recife, para compreender melhor a vida
dessas crianças. 186 Também como Jorge Amado, Roberto Freire foi comunista. Foi preso e
torturado diversas vezes durante a ditadura militar no Brasil. Aparentemente, um ponto em
comum dos escritores que se interessaram pelo tema das crianças de rua até o final da Ditadura
Militar no Brasil foi o comunismo.
Clarice Lispector e as Caridades Odiosas
A obra de Clarice Lispector tem sido classificada como subjetiva, intimista, alienada
quanto às questões sociais de sua época 187 e essencialmente voltada para a linguagem, 188 mas
186
"Moleques de Rua de Roberto Freire." Moderna. Editora Moderna. 29 Agosto 2009.
<http://www.moderna.com.br/catalogo/encartes/85-16-03627-8.pdf>.
187
Kadota, Neiva P. A tessitura dissimulada: O social em Clarice Lispector. (São Paulo: Estação Liberdade, 1997)
20.
73
mesmo sendo assim não é incomum observar inquietações sociais em sua obra. A Hora da
Estrela talvez seja a obra de Clarice Lispector que melhor trabalha a questão social. Macabéa é
uma nordestina que reúne todos os estigmas da fome, da miséria e da impotência a reação, a
única forma que pode se aproximar de seu sonho de se casar com um homem loiro rico foi sendo
atropelada por um alemão em uma mercedes e morrendo. 189 Porém em uma crônica ela também
se mostrou inquieta com o drama das crianças de rua.
“As caridades odiosas” publicado em A Descoberta do Mundo, de Clarice Lispector,
uma reunião das crônicas publicadas no Jornal do Brasil, de 1967 a 1973, é uma das raras
publicações deste período, parte dos anos de chumbo da Ditadura, 190 abordando o tema das
crianças de rua. Com maestria a autora tenta explica seus sentimentos em relação a uma criança
de rua:
Foi em uma tarde de sensibilidade ou de suscetibilidade? Eu passava pela rua depressa,
emaranhada nos meus pensamentos, como às vezes acontece. Foi quando meu vestido me
reteve: alguma coisa se escanchara na minha saia. Voltei-me e vi que se tratava de uma
mão pequena e escura. Pertencia a um menino a que a sujeira e o sangue interno davam
um tom quente de pele. 191
Ela então explica que o menino estava de pé no degrau de uma grande confeitaria. E
explica que os olhos da criança, mais do que suas palavras meio engolidas, informaram-na de sua
paciente aflição. Paciente demais. Ela percebe vagamente um pedido, antes de compreender o
188
Kadota, Neiva P. A tessitura dissimulada: O social em Clarice Lispector. (São Paulo: Estação Liberdade, 1997)
140.
189
Idem 137.
190
O período mais repressivo da ditadura militar no Brasil, iniciou-se com o AI-5 em 13 de dezembro de 1968, e foi
até o final do governo Médici, em março de 1974. Medina, Cremilda. "As múltiplas faces da censura." Org. Maria
L. Carneiro. Minorias silenciadas. (São Paulo: Edusp, 2002) 421-34.
191
Lispector, Clarice. "As caridades odiosas." A descoberta do mundo. (Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984) 381.
74
seu sentido concreto. Ainda aturdida ela o olhava, ainda em dúvida se fora a mão da criança o
que ceifara seus pensamentos. 192
A criança de rua pede então que ela lhe compre um doce. E Clarice Lispector continua
em sua crônica: “Acordei finalmente. O que estivera pensando antes de encontrar o menino? O
fato é que o pedido deste pareceu cumular uma lacuna, dar uma resposta que podia servir para
qualquer pergunta, assim como uma grande chuva pode matar a sede de quem queria uns goles
de água.” 193
E então a autora começa a discutir seus sentimentos em relação à criança: “Sem olhar
para os lados, por pudor talvez, sem querer espiar as mesas da confeitaria onde possivelmente
algum conhecido tomava sorvete, entrei, fui ao balcão e disse com uma dureza que só Deus sabe
explicar: um doce para o menino.” 194 A autora não sabe explicar sua reação, ela racionaliza: “De
que tinha eu medo? Eu não olhava a criança, queria que a cena, humilhante para mim, terminasse
logo. Perguntei-lhe: que doce você... ” 195 O menino então aponta para o doce que queria, antes
mesmo que a pergunta fosse terminada, como que com medo que ela desistisse de sua caridade
que como definida por ela mesma, era odiosa. A cronista então ordena com aspereza à caixeira
que o sirva, e oferece outro doce ao menino escuro, que ainda esperava com ansiedade pelo
primeiro. O menino a olha um instante, e diz com delicadeza insuportável, mostrando os dentes,
que não precisa de outro não. Ele poupava a bondade da cronista. 196 Mas ela insiste e compra
outro doce para o menino escuro, que foge como os doces na mão, e a crônica termina da
seguinte forma:
192
Lispector, Clarice. "As caridades odiosas." A descoberta do mundo. (Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984) 381.
Idem 381.
194
Ibidem 382.
195
Ibidem 382.
196
Ibidem 382.
193
75
-Afinal, uma alma caridosa apareceu. Esse menino estava nesta porta há mais de uma
hora, puxando todas as pessoas que passavam, mas ninguém quis dar.
Fui embora, com o rosto corado de vergonha. De vergonha mesmo? Era inútil querer
voltar aos pensamentos anteriores. Eu estava cheia de um sentimento de amor, gratidão,
revolta e vergonha. Mas, como se costuma dizer, o sol parecia brilhar com mais força. Eu
tivera a oportunidade de... E para isso fora necessário um menino magro e escuro... E
para isso fora necessário que outros não lhe tivessem dado um doce.
E as pessoas que tomavam sorvete? Agora, o que eu queria saber com auto crueldade era
o seguinte: temera que os outros me vissem ou que os outros não me vissem? O fato é
que, quando atravessei a rua, o que teria sido piedade já se estrangulara sob outros
sentimentos. E, agora sozinha, meus pensamentos voltaram lentamente a ser os
anteriores, só que inúteis. 197
Clarice Lispector mostra nesta crônica sua relutância em ver o problema da criança de rua
e também seu desconforto ao ser perturbada pela dura realidade da miséria alheia. Este
desconforto pode explicar em parte o fato do fenômeno dos meninos de rua ser ignorado pelos
escritores brasileiros por tanto tempo. Essa crônica foi publicada no Jornal do Brasil em seis de
dezembro de 1969,198 em uma época que os jornais eram censurados e que o milagre econômico
brasileiro era a “realidade”. Apesar de ter participado de uma passeata em 1968 contra a Ditadura
Militar, esse texto de Clarice Lispector escapou à censura e denunciou a existência das crianças
de rua em 1969.
197
198
Lispector, Clarice. "As caridades odiosas." A descoberta do mundo. (Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984) 383.
Idem 774.
76
As crianças invisíveis na década de 1970
O início da década de 1970 foi parte do período conhecido como anos de chumbo (19681975), onde a censura foi intensificada. Muitos artistas brasileiros foram exilados ou se autoexilaram neste período. Também na década de 70, com o “milagre econômico” do general
Emílio Médici, a população urbana no Brasil era de 52 milhões de habitantes, enquanto a
população rural era de 41 milhões de pessoas. 199 O Brasil definitivamente passava a ser um país
urbano. Na década de 1970 também os grupos de extermínio, que começaram a surgir na década
de 1950, estavam em seu auge. 200 Esses grupos, compostos geralmente de policiais, ex-policiais
e seguranças matavam crianças de rua, mendigos, homossexuais e prostitutas, geralmente a
serviço de comerciantes da área ou outras pessoas e existiram pelo menos até a década de 1990,
como é comprovado por esse artigo do jornal O Globo de 1993:
Não existe uma tabela. O preço pode variar entre uma caixa de cerveja, um almoço ou um
milhão de cruzeiros. Mas não é difícil conseguir que integrantes de grupos de extermínio
eliminem um menor de rua até de graça. Ex-PMs da praça da Harmonia afirmam que
pode-se matar por favor ou para limpar a área e a execução sumária pode ser
encomendada por qualquer um que se sinta incomodado com a presença dos menores de
rua: comerciantes, bicheiros ou os próprios matadores. 201
Na década de 1970, durante os Anos de Chumbo da Ditadura, os jornais eram censurados
e artigos denunciando a existência de meninos de rua e seu extermínio eram proibidos. 202 Em
1979, devido à pressões de Organizações não-governamentais brasileiras e estrangeiras e à
199
Silva, José M. "Maioridade penal, redução ou barbárie." Jornal Opção Online. Jornal Opção, 23 Nov. 2003. 30
Agosto 2009. <http://www.jornalopcao.com.br/index.asp?secao=Manchete&idjornal=55>.
200
Idem.
201
Lopes, Geraldo. O massacre da Candelária. (São Paulo: Página Aberta, 1994) 81.
202
Maia, Maurício. "Censura, uma processo de ação e reação." Org. Maria L. Carneiro. Minorias silenciadas. (São
Paulo: Edusp, 2002) 507.
77
Declaração Universal dos Direitos da Criança, foi elaborado o Estatuto do Menor, que
oficializava o papel da Funabem e buscava prevenir ou corrigir as causas do desajustamento de
menores. Mas a pobreza urbana crescia rapidamente, a violência crescia geometricamente e o
quadro social era assustador e o Estatuto do Menor também fracassou.203
La Pietà de Cecília Prada
Cecília Prada nasceu em 1929, em São Paulo. Escritora, tradutora, jornalista, historiadora
e dramaturga brasileira, escreveu Menores do Brasil: a loucura nua em 1981, uma obra de
sociologia sobre os meninos de rua. No campo da ficção publicou o conto “La Pietà”, em 1978,
intercalando a notícia do atentado de 1972 à escultura “La Pietà” de Michelangelo com a história
de uma mulher favelada grávida de sete meses que é espancada pelo irmão e tem que ir ao
hospital. Com ironia a autora contrasta as imagens do atentado à estátua e à forma que é tratada a
mulher pobre e seu filho. O conto termina com o nascimento prematuro e morte da criança:
... o seu menino, o médico sacudia, batia com força, cinzento e inerme o menino
permanecia, não bata no meu menino, tão pequenino, não bata no meu menino, no meu
menininho, no meu filhinho, não bata, não bata em mim, não me machuquem, não
machuquem meu filhinho..
... seu nome bem visível no peito da virgem:
MICHELANGELO BUONARROTI FECIT.
E então trouxeram. Eles reunidos, o médico, as enfermeiras, trouxeram: o seu menino. O
seu menino morto. Um pedacinho de carne a mais, com manchas de sangue pisado no
203
Silva, José M. "Maioridade penal, redução ou barbárie." Jornal Opção Online. Jornal Opção, 23 Nov. 2003. 30
Agosto 2009. <http://www.jornalopcao.com.br/index.asp?secao=Manchete&idjornal=55>.
78
rosto. Trouxeram o menino. A enfermeira, ao colocá-lo nos seus braços, virou a cabeça
para o lado.
O grupo está talhado num só bloco de mármore de Carrara e mede 1,74 m de altura por
1,94 m de largura.
Nos braços rígidos, sem embalo, o filho, ela, ambos, para sempre fixos, duros – pedra.
Para sempre.
E o escultor Giacomo Manzu, autor da Porta dos Mortos de São Pedro, inaugurada em
1964 por Sua Santidade o Papa Paulo VI, ao saber do nefando crime, prorrompeu em
soluços: “É o atentado mais grave contra a civilização e a cultura que se cometeu até
agora. O mundo exige um castigo exemplar para o culpado.” 204
O conto critica duramente os meios de comunicação, a igreja católica e os interesses em
geral das classes mais abastadas. Enquanto grande parte da população do Brasil e do mundo
estava chocada contra um atentado a uma estátua, independente do valor da mesma, a mensagem
da autora é que o valor de uma mãe e filho de carne e osso, não de pedra, independentes de sua
classe social, é muito maior. Cecília Prada insinua que o atentado mais grave contra a civilização
e a cultura que se pode imaginar acontece corriqueiramente nas ruas brasileiras, onde crianças
são violentadas e mortas cada dia.
Rubem Fonseca e a Estética da Violência
Rubem Fonseca nasceu em Minas Gerais, em 1925. Formado em Direito, trabalhou como
comissário de polícia no Rio de Janeiro entre 1952 e 1958, onde suas experiências serviram de
204
Prada, Cecília. "La Pietà." Cenas da Favela. (Rio de Janeiro: Ediouro, 2007) 51-52.
79
inspiração para muitos de seus livros. Os personagens de Rubem Fonseca são assaltantes,
marginais e assassinos, produtos de um meio urbano desfavorável. Em seus contos é mostrado
que o crime e o roubo não são somente a única saída, mas também uma forma individual de
mostrar a revolta dessas pessoas. Outra característica importante de Rubem Fonseca é que ele
também elimina a tradicional dicotomia entre o narrador culto e o personagem de condição social
inferior e vai ainda mais longe, assumindo como própria a personalidade de marginais e
criminosos. 205
O conto “Feliz Ano Novo” de 1975 que dá título a um livro de contos de Rubem Fonseca,
expõe o contraste entre pobres e a burguesia. No conto um grupo de homens jovens, não é
especificado a idade deles, mas possivelmente teriam entre 14 e 18 anos, tem seus membros
descritos pelo narrador, que é um deles, como negros, pobres, feios e desdentados.206 O conto se
inicia com o narrador vendo na televisão que “as lojas bacanas estavam vendendo adoidado
roupas ricas para as madames vestirem no réveillon”
207
e “também que as casas de artigos finos
para comer e beber tinham vendido todo o estoque.” 208 Logo em seguida, o narrador expõe a sua
situação: “Vou ter que esperar o dia raiar e apanhar cachaça, galinha morta e farofa dos
macumbeiros.” 209
Estão num lugar que cheira mal, entre drogas, armas e objetos roubados e decidem se
vingar da situação em que vivem e invadir uma mansão em meio a uma festa de Ano Novo. Os
três assaltantes são mostrados como selvagens ferozes, eles invadem a festa, destroem, sujam,
estupram, matam só pelo prazer de matar e para se vingarem de sua pobreza. A linguagem é
205
Polinésio, Julia M. O conto e as classes subalternas. (São Paulo: Annablume, 1994) 115.
Fonseca, Rubem. "Feliz Ano Novo." Feliz Ano Novo. 2 a ed. (São Paulo: Schwarcz, 2001) 14.
207
Idem 13.
208
Ibidem 14.
209
Fonseca, Rubem. "Feliz Ano Novo." Feliz Ano Novo. 2 a ed. (São Paulo: Schwarcz, 2001) 14.
206
80
extremamente obscena e violenta, reproduzindo a expressão natural dos personagens e o conto é
extremamente cruel, por usar a violência como matéria-prima. Rubem Fonseca aponta, com esse
conto, para a possibilidade de revolta das classes social e economicamente oprimidas contra a
burguesia que tenta ignorá-las. O que se tornou a realidade hoje, mais de trinta anos depois que o
conto foi escrito é que as classes média e alta brasileiras vivem em casas policiadas noite e dia,
com muros altos e grades.
Em outro conto do mesmo livro, “Intestino grosso”, um conto que é como uma paródia
de uma entrevista, Rubem Fonseca expõe seu pensamento sobre os males de nossa civilização e
sobre o homem moderno, referindo-se especificamente às crianças, de forma bem pouco
ortodoxa:
Você disse, pelo telefone, o lema, adote uma árvore e mate uma criança. Isso significa
que você odeia a humanidade?
Meu slogan podia ser, também, adote um animal selvagem e mate um homem. Isso não
porque odeie, mas ao contrário, por amar meus semelhantes. Apenas tenho medo de que
os seres humanos se transformem, primeiro em devoradores de insetos, depois em insetos
devoradores.210
Como observado por Júlia Polinésio, em O conto e as classes subalternas, o amor aos
semelhantes, principalmente aos humildes e desamparados, em Rubem Fonseca veste-se de
violência e é tão bem disfarçado nesta roupagem que a máscara da violência parece ser a própria
essência do discurso. 211
210
211
Fonseca, Rubem. "Intestino Grosso." Feliz Ano Novo. 2 a ed. (São Paulo: Schwarcz, 2001) 163.
Polinésio, Julia M. O conto e as classes subalternas. (São Paulo: Annablume, 1994) 51.
81
A Infância dos mortos de José Louzeiro
Até meados da década de 1970 o único romance de impacto sobre as crianças de rua na
literatura brasileira foi Capitães da Areia, de 1937, mas que foi censurado até 1944, como vimos
no capítulo anterior. Só em 1977 outro romance sobre crianças de rua novamente faria sucesso
no Brasil, Pixote: infância dos mortos de José Louzeiro, escritor e jornalista brasileiro nascido no
Maranhão, em 1932.
Pixote: Infância dos mortos teve um impacto muito grande quando lançado em plena
Ditadura Militar. Durante o governo Médici, José Louzeiro trabalhava como jornalista no jornal
Folha de S. Paulo quando sofreu com a censura e a falta de liberdade de expressão. Escreveu três
reportagens sobre o caso Camanducaia, um crime que chocou o Brasil. Na cidade mineira de
Camanducaia foram jogados em um despenhadeiro mais de cem crianças e adolescentes,
moradores de rua da capital paulista. As reportagens foram censuradas e José Louzeiro decidiu
publicá-las em forma de livro. José Louzeiro, em entrevista a uma revista, explica o surgimento
de seu romance sobre essas crianças de rua:
Assumi comigo mesmo o compromisso de escrever livros e mais livros quando deixei o
jornalismo, na Folha de S. Paulo (na capital paulista), em 1973 por causa da censura que
os ditadores estabeleceram para a imprensa. Lembro que a matéria que fiz sobre os cem
meninos que a polícia paulista “jogou fora” em um despenhadeiro, nas proximidades da
cidade mineira de Camanducaia, foi toda censurada. Garantiram os censores que a
matéria não tinha fundamento. [. . .]
82
Escrevi então sobre o Pixote - A Infância dos Mortos – contando que também fosse
censurado. Para surpresa minha isso não aconteceu. 212
Assim surgiu, a partir do caso Camanducaia e da realidade trágica de meninos e meninas
de rua, Pixote: Infância dos mortos, o romance mais conhecido sobre o tema das crianças de rua
da década de 1970. O romance foi publicado em 1977 e adaptado para o cinema em 1981 com o
título de “Pixote: A Lei do Mais Fraco”. O personagem Pixote, mesmo tendo uma breve
participação no livro de Louzeiro, foi inspiração para que, quatro anos mais tarde, o diretor
Hector Babenco lançasse o filme.
O romance descreve a trajetória de um grupo de meninos de rua do Rio de Janeiro que se
tornam amigos. Pixote é o menor deles, tendo apenas 11 anos de idade. Seus amigos são Dito,
Fumaça e Manguito. O personagem principal do livro é Dito. Dos amigos de Pixote, ele é o mais
velho e é o que planeja o que as crianças vão fazer. Como epígrafes encontram-se os seguintes
textos:
Os fatos que substanciam esta narrativa foram tirados do nosso amargo cotidiano. O autor
não teve a preocupação de alinhá-los, cronologicamente, nem se absteve de descrever
situações brutais, que mostram muito bem o grau de desumanização a que chegamos.
e
Há cerca de 15 milhões de menores abandonados ou em estado de carência no Brasil, à
espera de alguma ajuda. Representam pouco menos de um terço dos 48 milhões 226 mil
718 brasileiros entre zero e 18 anos distribuídos pelo Norte (3,83%), Nordeste (31,64%),
Sudeste (42,91%), Sul (16,64%) e Centro-Oeste (5,08 %).
212
"José Louzeiro. E agora, José?" Interview by Stella M. Mendonça. Revista Condomínio. Cipa Administradora,
Julho-Agosto 2008. 27 Julho 2009. <http://www.condominioeetc.com.br/38/entrevista.shtml>.
83
Jornal do Brasil, 5-4-76.213
As duas epígrafes confirmam o caráter documental da obra. Observe que a notícia do
Jornal do Brasil de 1976 estima 15 milhões de menores vivendo em situação de rua. O número
de crianças de rua no Brasil sempre tem sido um mistério. Enquanto que algumas fontes estimam
que atualmente esse número esteja entre 7 e 10 milhões, outras fontes afirmam que esses valores
são superestimados. Uma importante fonte de confusão está na definição de quem são as crianças
de rua, se são consideradas somente as crianças que vivem permanentemente nas ruas, sem
contato nenhum com sua família, essas cifras seriam bem menores. 214
As denúncias que o romance faz são inúmeras. Logo no primeiro capítulo, Pixote é
assassinado pelo segurança de um cemitério, e enterrado sem nenhuma identificação. Dito e seu
grupo voltaram para matar um segurança, como retaliação pela morte de Pixote. Também vemos
o uso de crianças pelos traficantes de droga, Dito e seu grupo vão entregar um pacote de cocaína
em São Paulo. Depois da entrega, eles são enganados pela mulher que recebe o pacote e presos
pela polícia, onde são torturados pelo delegado e depois colocados em uma cela comum, onde
são abusados sexualmente pelos outros presos. Conseguem fugir e matam a mulher que os traiu.
Depois Dito é preso e torturado para confessar quem era responsável pela morte da mulher:
Dito mal se agüenta nas pernas. Caramelo esfrega-lhe folhas de jornal no rosto, nas costas
e nas pernas. Segura-o por um braço, Roxão pelo outro, levam-no para o xadrez. O
carcereiro abre a porta, empurram-no para dentro. Está tão machucado que os prisioneiros
sentem-se penalizados. A princípio nenhum deles ousa dizer nada ou fazer qualquer
brincadeira, embora o garoto tenha caído de costas e esteja completamente nu. O homem
213
Louzeiro, José. Pixote: Infância dos mortos. 5a ed. (São Paulo: Global, 1987) 6-7.
Koller, Silvia H., and Claudio S. Hutz. Meninos e meninas em situação de rua: Dinâmica, diversidade e
definição. Associação Nacional de Pesquisa e Pós-graduação em Psicologia. CEP-RUA/UFRGS, 1996. 27 Julho
2009. <http://www.infocien.org/Interface/Colets/v1n12a02.pdf>.
214
84
mais velho, de cabelos já grisalhos, curva-se sobre Dito. Outros dois arrumam folhas de
jornal num canto, puxam-no para cima dos papéis. 215
O extermínio das crianças de rua por seguranças e policiais é uma constante no romance.
Eles são torturados, recebem tiros, são obrigados a pular de edifícios, são jogados em
despenhadeiros. Essas crianças são vistas como bandidos perigosos e como tal são tratadas. A
tortura e abuso sexual que sofrem nas delegacias e nas ruas; o preconceito que impede que essas
crianças consigam um trabalho honesto; a crueldade com que as crianças de rua são tratadas; a
capacidade que elas têm de reagir à violência com mais violência ainda e a hipocrisia da
sociedade no que se refere às crianças de rua são também abordados por Louzeiro em seu
romance. Uma das partes mais chocantes do romance, baseado nas reportagens de Louzeiro que
foram censuradas, é o episódio onde mais de cem crianças de rua são obrigadas a se despir e são
lançadas em um despenhadeiro:
Um dos garotos tentou escapar, foi seguro pelos policiais que começaram a espancá-lo. O
policial que batia terminou levantando o pequeno, atirando-o por cima dos bancos. Isso
foi o bastante para que os cães avançassem. [. . .]
Em meio ao tumulto os primeiros garotos rolaram pela porta, os policiais que já estavam
aguardando por eles continuaram a bater-lhes, deram-lhes pontapés, os que tentavam dar
a volta do carro e escapar tinham os braços torcidos, eram esbofeteados e empurrados da
beira da estrada.[. . .] Ele sentiu o espaço faltar aos seus pés. Só então teve consciência de
que tinham sido jogados em um despenhadeiro.216
Mais de 50 crianças escapam com vida. Este grande grupo de crianças tinha sido
capturado nas ruas de São Paulo e atirado no despenhadeiro próximo a uma pequena cidade
215
216
Louzeiro, José. Pixote: Infância dos mortos. 5a ed. (São Paulo: Global, 1987) 159.
Idem 170-72.
85
afastada da capital do estado. As sobreviventes são levadas à delegacia, onde o delegado
consegue que as prostitutas da cidade costurem roupas para as crianças e levadas de volta à
capital. O delegado primeiro pede ajuda às mulheres religiosas da cidade, que se recusam a
ajudar, só então busca a ajuda das prostitutas.
No final do livro Dito é assassinado por policiais, sendo atirado do alto de um prédio. Ele
e um amigo estavam assaltando um supermercado, a polícia chega, eles fogem para o topo do
edifício e são forçados a saltar. Extremamente brutal, Infância dos Mortos mostra o mundo
terrível da criança de rua brasileira, sem tentar poupar o leitor dos detalhes dos crimes cometidos
por e contra crianças de rua.
As crianças de rua de Chico Buarque de Holanda
Chico Buarque de Holanda escreveu peças teatrais (Roda Viva de 1968, Calabar de 1973,
em parceria com Ruy Guerra, e Gota d’Água de 1975, em parceria com Paulo Pontes), um
musical (Ópera do malandro, de 1978) e romances (Fazenda Modelo, de 1974, Estorvo, de
1991, Benjamim, de 1995 e Budapeste, de 2003). Mas é como compositor de música popular
brasileira que Chico Buarque se destaca, tendo escrito mais que cem letras de música. 217
Chico Buarque sempre teve a preocupação de escrever sobre os problemas sociais no
Brasil. Em uma entrevista de 1978, ele explica sua posição política em relação aos problemas
sociais brasileiros:
Desde a primeira música que gravei, “Pedro Pedreiro”, venho sendo atacado nesse
sentido [..] “Pedro Pedreiro” retrata a situação do pedreiro que está esperando o trem, que
enfim já vem, e o trem chega e não muda nada. Realmente, eu não proponho mudanças.
217
Pinto, Manuel C. Literatura brasileira hoje. (São Paulo: Publifolha, 2004) 116-117.
86
A idéia é justamente essa: constatar uma situação, colocar uma situação, confiando no
critério das pessoas que vão ouvir minha música, ou assistir à peça. E que elas tirem daí
alguma conclusão. Eu tenho até uma certa antipatia pelo trabalho que, ao mesmo tempo,
representa uma situação e se propõe e jogar uma solução. Parece-me óbvio. É uma
questão de gosto pessoal mesmo. Eu prefiro a visão mais jornalística: taí, a situação é
essa, vocês tirem a conclusão que quiserem. 218
A preocupação de Chico Buarque é a de constatar situações na sociedade brasileira, e
expô-las, sem preocupar-se com soluções. Cabe ao seu público tirar as conclusões. Ele expõe o
problema das crianças de rua em pelo menos três canções, “Pivete”, de 1970, “O Meu guri”, de
1981, e a mais recente “Ode aos ratos”, de 2006, que também será tratada neste capítulo, apesar
de não fazer parte do período de 1937 a 1985.
Em “Pivete”, Chico Buarque em parceria com Francis Hime usou um samba alegre e
termos usados pelos meninos de rua para denunciar a tragédia que se abate sobre grande parcela
das crianças brasileiras.
No sinal fechado
Ele vende chiclete
Capricha na flanela
E se chama Pelé
Pinta na janela
Batalha algum trocado
Aponta um canivete 219
Nas grandes cidades no Brasil é comum encontrar nos semáforos, esperando o sinal ficar
vermelho, crianças com flanelas para limpar os vidros do carro, vendendo doces ou pedindo
dinheiro. Para essas crianças não faz diferença trabalhar ou mendigar, ou mesmo roubar usando
um canivete. Além de fazer alusão ao jogador Pelé, são feitas alusões a outro jogador de futebol,
218
Buarque, Chico. "Veja - 02/08/78 - Como falar ao povo?" Interview. Site Oficial de Chico Buarque. Wagner
Homem. 29 Agosto 2009. <http://www.chicobuarque.com.br/>.
219
Buarque, Chico. "Pivete." Site Oficial de Chico Buarque. Wagner Homem. 29 Agosto 2009.
<http://www.chicobuarque.com.br/construcao/mestre.asp?pg=pivete_78.htm>.
87
Mané Garrincha, o das pernas tortas, provavelmente por ser a profissão de jogador de futebol
uma das poucas esperanças que uma criança pobre tem de ascender socialmente:
Sonha aquela mina, olerê
Prancha, parafina, olará
Dorme gente fina
Acorda pinel
Zanza na sarjeta
Fatura uma besteira
E tem as pernas tortas
E se chama Mané 220
A letra da música insinua também que mesmo com todas as dificuldades, a criança de rua
continua feliz, sonha com moças, surfa, rouba carros e dirige na contramão, agindo como se
fosse Emerson Fittipaldi, corredor brasileiro de fórmula 1. A narrativa de “Pivete” é feita do
ponto de vista da criança de rua, que apesar de aterrorizar a cidade procura diversão e liberdade.
Já em “Meu guri”, a tragédia da criança pobre brasileira pobre é narrada pelo ponto de vista da
mãe da criança. A mãe orgulhosa do filho e que apesar de tão pobre não ter nem nome para dar
ao mesmo, vai sobrevivendo e acredita em seu filho quando ele diz que ainda “chega lá”:
Quando, seu moço, nasceu meu rebento
Não era o momento dele rebentar
Já foi nascendo com cara de fome
E eu não tinha nem nome pra lhe dar
Como fui levando, não sei lhe explicar
Fui assim levando ele a me levar
E na sua meninice ele um dia me disse
Que chegava lá 221
A mãe orgulhosa do filho que trouxe para ela uma bolsa que tinha até documentos para
que ela finalmente pudesse se identificar mostra não somente a ingenuidade dessa mãe, também
sua inocência. De forma patética a mesma reza para que seu filho chegue a casa em segurança,
220
Buarque, Chico. "Pivete." Site Oficial de Chico Buarque. Wagner Homem. 29 Agosto 2009.
<http://www.chicobuarque.com.br/construcao/mestre.asp?pg=pivete_78.htm>..
221
Buarque, Chico. "O meu guri." Site Oficial de Chico Buarque. Wagner Homem. 29 Agosto 2009.
<http://www.chicobuarque.com.br/construcao/mestre.asp?pg=omeuguri_81.htm>.
88
com seu carregamento de artigos que ela desconhece que são roubados, porque a atual onda de
assaltos está terrível:
Me trouxe uma bolsa já com tudo dentro
Chave, caderneta, terço e patuá
Um lenço e uma penca de documentos
Pra finalmente eu me identificar, olha aí
[. . .]
Chega no morro com o carregamento
Pulseira, cimento, relógio, pneu, gravador
Rezo até ele chegar cá no alto
Essa onda de assaltos tá um horror 222
[. . .]
O progresso do guri que deixou a mãe tão orgulhosa foi conseqüência dos crimes que ele
comete. Como em “Pivete”, não existe a questão do certo e errado, o crime se torna um trabalho
como qualquer outro, indispensável para que a família sobreviva. Quando o filho morre, a mãe já
quase louca por uma vida de sofrimentos e privações continua ignorando a realidade terrível que
se abate sobre sua família. Ela acha o filho lindo no jornal, com a venda nos olhos e só as
iniciais. Por ser menor de 18 anos o menino não pode ser identificado:
Chega estampado, manchete, retrato
Com venda nos olhos, legenda e as iniciais
Eu não entendo essa gente, seu moço
Fazendo alvoroço demais
O guri no mato, acho que tá rindo
Acho que tá lindo de papo pro ar
Desde o começo, eu não disse, seu moço
Ele disse que chegava lá 223
Enquanto “Pivete” nos mostra um menino de rua na perspectiva do próprio menino, e
“Meu guri” na perspectiva de sua mãe, “Ode aos ratos”, de Chico em parceria com Edu Lobo,
mostra os meninos de rua na perspectiva do resto da sociedade. Escrita quase trinta anos depois
222
Buarque, Chico. "O meu guri." Site Oficial de Chico Buarque. Wagner Homem. 29 Agosto 2009.
<http://www.chicobuarque.com.br/construcao/mestre.asp?pg=omeuguri_81.htm>.
223
Idem.
89
de Pivete, Ode aos ratos denuncia a condição terrível da criança brasileira pobre, “sobrevivente à
chacina e à lei do cão”224 em pleno século XXI:
Rato de rua
Irrequieta criatura
Tribo em frenética proliferação
Lúbrico, libidinoso transeunte
Boca de estômago
Atrás do seu quinhão
Vão aos magotes
A dar com um pau
Levando o terror
Do parking ao living
Do shopping center ao léu
Do cano de esgoto
Pro topo do arranha-céu 225
Os meninos e meninas de rua que continuam aumentando em quantidade de maneira
assustadora, em sua “frenética proliferação”, andam em grupos levando o terror aos mais
abastados. Esfaimados são como ratos em busca de comida, procurando qualquer coisa que
possam comer. São escolhidos os nomes em inglês dos locais onde as crianças de rua aterrorizam
os de classe média e alta: no parking, no living e no shopping center. Uma alusão clara aos
estrangeirismos na língua portuguesa e também ao capitalismo representado pelos Estados
Unidos da América.
Sobrevivente
À chacina e à lei do cão
Saqueador da metrópole
Tenaz roedor
De toda esperança
Estuporador da ilusão
Ó meu semelhante
Filho de Deus, meu irmão 226
Essas crianças que são sobreviventes de chacinas saqueiam as cidades, apavorando e
destruindo esperanças. Mas, de acordo com o narrador, são filhos de Deus e nossos irmãos. Essa
224
Buarque, Chico. "Ode aos ratos." Site Oficial de Chico Buarque. Wagner Homem. 29 Agosto 2009. <
http://www.chicobuarque.com.br/construcao/mestre.asp?pg=ode_ratos_01.htm>.
225
Idem.
226
Ibidem.
90
é a mensagem para o público de Chico Buarque, composto não pelos excluídos da sociedade, que
são os meninos de rua e outros marginalizados, e sim pelos mais abastados. As crianças de rua
são nossos semelhantes. Chico Buarque mais uma vez mostra o problema sem indicar as
soluções, mas nas três músicas ele aponta o agravamento do problema. Em “Pivete” as crianças
de rua são somente crianças buscando sobreviver, mas também se divertir. Em “Meu Guri” o
crime passa a predominar, mas ainda existe a relação com a mãe e a situação passa a ser mais
desesperadora, com o menino morrendo. A terceira música, “Ode aos Ratos”, denuncia a
situação desesperadora que existe agora. As crianças de rua são como pequenos monstros
destruindo tudo o que está ao seu alcance. Mas a mensagem é que ainda assim são nossos irmãos
e nossos semelhantes.
Outras obras da década de 70 que não serão discutidas com detalhes incluem: A Rosa dos
Ventos, 227 de Odette de Barros Mott, publicado em 1972; Lando das Ruas,228 de Carlos de
Marigny, publicado em 1975; Pivete, 229 de Henry Correia de Araújo, publicado em 1977; e Os
meninos da rua da praia,230 de Sérgio Caparelli, publicado em 1979.
As crianças de rua na primeira metade da década de 1980
Durante a década de 1980 a sociedade brasileira continua interessada no fenômeno dos
meninos de rua. Devido ao aumento da violência e da pobreza urbana, a sociedade procurou
organizar-se e numerosos grupos de defesa dos direitos da criança são criados, por exemplo, a
Pastoral do Menor. Todos esses grupos tinham como objetivo salvaguardar os direitos das
crianças e adolescentes, violados freqüentemente pela polícia e pelas Febems dos estados. 231
227
Mott, Odette B. A rosa dos ventos. 28a ed. São Paulo: Atual, 1993.
Marigny, Carlos. Lando das Ruas. 6 a ed. São Paulo: Brasiliense, 1981.
229
Araújo, Henry C. Pivete. Belo Horizonte: Comunicação, 1977.
230
Caparelli, Sérgio. Os meninos da rua da praia. Porto Alegra: L&PM, 1979
231
Marcílio, Maria L. História social da criança abandonada. (São Paulo: HUCITEC, 1998) 226-27.
228
91
O tema das crianças de rua se tornou comum na literatura brasileira. Em 1982 foi
publicado Amarelinho,232 curiosamente sobre um menino de rua branco, em outras obras sobre o
tema as crianças de rua são geralmente negras ou mulatas. Amarelinho é o personagem-título da
obra de Ganymédes José. Um menino miúdo e desconjuntado, joelhos que mais parecem bolas
de tênis, loiro magro e anêmico, de olhos azuis descorados. Ele é usado por seu grupo para entrar
nas casas. Por ser tão pequeno pode passar por qualquer espaço pequeno.
O Favelário de Drummond
Também na década de 1980 Carlos Drummond de Andrade, o poeta maior entre os
modernistas e um escritor comprometido com os problemas sociais 233 abordou o tema das
crianças de rua. Ele defendia a necessidade de ser engajado socialmente e de não ficar indiferente
diante de injustiças. Em uma entrevista publicada em 1995 ele afirma que:
Eu acho que o compromisso social é do homem. Ele não pode ficar indiferente diante de
uma injustiça: se você vê uma criança apanhando de um adulto, você se revolta – se tiver
força para impedir, você impede. Então, Numa escala universal, o homem deve sentir a
crueldade das relações políticas e sociais vigentes no mundo. Agora, isso não tem nada a
ver com o artista, com o escritor: é uma coisa natural no ser humano, a menos que ele
seja pervertido por natureza ou incapaz de reação diante desses fenômenos. Não vejo
como a gente pudesse agir somente voltado para essas coisas, como se fosse uma espécie
de obrigação pessoal do indivíduo. Alguns acham que meus livros politicamente
engajados, digamos assim, são os melhores; outros preferem os não-engajados, de
232
233
José, Ganymedes. Amarelinho. São Paulo: Moderna, 1982.
Williams, Frederick G. Poets of Brazil: A Bilingual Selection/ Poetas do Brasil: uma seleção bilíngüe. (Provo:
BYU, 2004) 294.
92
tendência mais abstrata, como Claro enigma. Eu não sei, não tenho opinião. Fiz todos
eles, assumo a responsabilidade por todos: cada um goste daquilo que achar melhor. 234
Em 1984 Drummond publicou “Favelário Nacional”, um poema dedicado às favelas
brasileiras. Onde Drummond mostrou não ignorar a pobreza que nos cerca. O neologismo que é
título do poema, favelário, se relaciona a termos como berçário e aquário, dando uma noção de
conjunto, de união às favelas brasileiras. Neste longo poema, em duas pequenas estrofes ele trata
da infância pobre, “Olheiros” expõe o uso que os traficantes têm para as crianças nas favelas,
elas vigiam os morros para avisar quando a polícia ou outros inimigos chegam:
9. Olheiros
Pipa empinada ao sol da tarde,
sinal que a polícia vem subindo.
Sem pipa, sem vento,
sem tempo de empinar,
o assovio fino vara o morro,
torna o corpo invisível, imbatível. 235
Ao vigiar as entradas do morro usando pipas coloridas ou se não há vento, assovios, os
olheiros tornam os traficantes imbatíveis. Não há como encontrar esses bandidos invisíveis. O
segundo poema, “Competição”, aborda a miséria em que as crianças pobres vivem, tendo que
dividir o lixo com os cães e os urubus:
11. Competição
Os garotos, os cães, os urubus
guerreiam em torno do esplendor do lixo.
234
Caminha, Edmilson. Palavra de escritor. (Brasilia: Thesaurus, 1995) 69.
Andrade, Carlos D. "Favelário nacional." Org. Nelson De oliveira. Cenas da favela. (São Paulo: Ediouro, 2007)
211.
235
93
Não, não fui eu que vi. Foi o Ministro
do Interior. 236
Esses dois poemas de Carlos Drummond de Andrade, assim como as outras obras sobre
crianças de rua publicadas desde o início da década de 1960 trouxeram essas crianças e outros
representantes das camadas mais baixas da sociedade brasileira para a literatura. Essas obras
também mudaram o panorama da literatura brasileira e fizeram com que a ficção se tornasse
matéria-prima para reflexões de cunho social, como bem observado por Júlia Polinésio em O
conto e as classes subalternas. Júlia Polinésio defende que ao se estabelecer este novo método de
narrar, o mesmo difundiu-se, codificou-se, e o que foi ruptura e inovação tornou-se norma. Ela
explica que depois da grande modificação formal operada na década de 60, onde se subverteu a
relação entre o narrador e os personagens humildes representados, estes passaram a povoar, em
grande escala, a literatura brasileira. Esses personagens elevados à categoria de protagonistas da
ficção literária são membros das mais baixas camadas sociais, onde estão incluídos os meninos
de rua, captados na inteireza de sua condição humana. Júlia Polinésio também observa que a
tendência dos escritores brasileiros atuais é a conscientização da possibilidade de usar a ficção
como matéria-prima para reflexões de cunho social. Os escritores modernos tentam fazer, assim,
de sua voz, um protesto contra as estruturas sociais que oprimem essa grande parte da população
sem oferecer-lhe qualquer oportunidade de modificação.237
236
Andrade, Carlos D. "Favelário nacional." Org. Nelson De oliveira. Cenas da favela. (São Paulo: Ediouro, 2007)
212.
237
Polinésio, Julia M. O conto e as classes subalternas. (São Paulo: Annablume, 1994) 153.
94
Capítulo IV
AS CRIANÇAS INVISÍVEIS EM TEMPOS DE DEMOCRACIA: 1985-2009
Com o final da ditadura militar em 1985, a situação das crianças invisíveis não mudou
muito. A pobreza e a violência urbana continuaram a aumentar e grupos de extermínio também
continuavam a matar crianças de rua, assim como mendigos, prostitutas e homossexuais. 238 As
próprias crianças de rua também se tornaram ainda mais violentas e em 1990 foi criado o
Ministério da Criança e aprovado o Estatuto da Criança e do Adolescente, ECA, e a Funabem
que falhou por quase três décadas foi finalmente extinta. Mas apesar de ser considerado um dos
Estatutos mais avançados da atualidade, quase 20 vinte anos depois do mesmo ser aprovado
ainda não existe solução para garantir os direitos das crianças e dos adolescentes no Brasil. 239
Mas se nas ruas as crianças invisíveis continuaram a sofrer com o término da Ditadura
Militar, ironicamente no cinema e também na literatura elas fizeram mais sucesso que nunca.
Nesse capítulo serão abordados filmes como “Central do Brasil” e “Cidade de Deus”, que
fizeram sucesso no Brasil e no resto do mundo, ganhando inúmeros prêmios; Capitães de Areia
sendo transformado em minissérie de televisão e filme, e outros romances, crônicas, contos e
filmes do período de 1985 a 2009.
As crianças invisíveis nos últimos anos do século XX
Muito foi publicado sobre as crianças invisíveis após o final de Ditadura Militar em 1985.
Um Sinal de Esperança de Giselda Laporta Nicolelis, 240 romance publicado em 1987, conta a
história de Oldemar, um menino criado pela avó em uma favela brasileira, que resiste ao assédio
para trabalhar no tráfico de drogas. Também em 1987 é publicado um livro com um título bem
238
Lopes, Geraldo. O massacre da Candelária. (São Paulo: Página Aberta, 1994) 84.
Marcílio, Maria L. História social da criança abandonada. (São Paulo: HUCITEC, 1998) 227-28.
240
Nicolelis, Giselda L. Um sinal de esperança. São Paulo: Moderna, 1987.
239
95
sugestivo para este trabalho: O menino na Literatura Brasileira, que segundo a própria autora,
busca o “levantamento e a análise de obras, a partir da constante “infância” como motivo, e da
criança, como personagem” 241 e se propõe a explorar a narrativa brasileira do período de 1922 a
1987. A autora dedica um capítulo a Jorge Amado, mas concentra-se somente no romance autobiográfico O Menino Grapiúna e nem sequer comenta as crianças que aparecem em Capitães da
Areia ou em Jubiabá. Nenhuma criança de rua aparece em O menino na Literatura Brasileira,
como se crianças de rua não fossem crianças. Ironicamente, o ano que a autora se propõe a
começar suas pesquisas, 1922, é o ano em pela primeira vez um menino de rua aparece em um
romance brasileiro. Outra obra também com um título sugestivo para esse trabalho, publicada
quatro anos antes de O menino na Literatura Brasileira foi Os pobres na literatura brasileira 242
que também ignora as crianças de rua.
Em 1988 Leila Iannone publica Eu gosto tanto de você.
243
A obra trata de um padre, o
padre Thomas, que vai passar a noite de Natal junto com as crianças abandonadas que vivem na
praça da Sé. As crianças são de diferentes faixas etárias, sofridas e famintas, e se envolvem com
drogas e assaltos.
Outra minissérie, desta vez na Rede Bandeirantes de Televisão, aborda o tema das
crianças de rua e indica mais uma vez o sucesso de Capitães da Areia de Jorge Amado (1937)
cinqüenta anos depois de sua publicação. O romance foi livremente adaptado para uma
minissérie homônima de 10 capítulos em 1989. 244. A minissérie conta a história de Pedro Bala e
do grupo de meninos de rua que rouba nas ruas de Salvador, mas a ação se passa nos anos 80 e
introduz temas como a AIDS, o tráfico de drogas e as armas modernas.
241
Resende, Vânia M. O menino na literatura brasileira. (São Paulo: Perspectiva, 1988) 21.
Schwarz, Roberto, org. Os pobres na literatura brasileira. São Paulo: Brasiliense, 1983.
243
Iannone, Leila. Eu gosto tanto de você. São Paulo: Moderna, 1988.
244
"Capitães da Areia (1989)." The Internet Movie Database (IMDb). 29 Agosto 2009.
<http://www.imdb.com/title/tt0229111/>.
242
96
Em 1992, Millôr Fernandes em uma crônica tenta explicar a falta de sucesso do governo
com relação às crianças de rua:
A velha história; todo o dia o cara alimenta com alface o filhote de tigre, certo de que
assim ele cresce vegetariano. Um dia, já adulto o tigre, o cara sorri, feliz com sua
experiência, e o tigre come o cara. Os nossos homens públicos agem parecido; deixam as
crianças abandonadas, sem alimento, sem casa, sem educação, sem fé, e com muita cola
na cuca, certos de que assim elas se transformarão em cidadãos experientes, mais
adaptadas à luta pela vida. Quando as crianças viram criminosas, as autoridades fecham
os olhos. Não os delas próprias, que andam sempre bem abertos pra qualquer licitação
que passe distraída. Legislam. Ah, como legislam! Obrigam todos os meios de
comunicação a pôr uma tarja negra - ridícula - cobrindo os olhos dos monstrinhos que
criaram, a fim de que estes não sejam identificados. E está resolvido o problema do
menor.( Jornal do Brasil, 22 abr. 1992)245
Millôr nesta crônica explica como os homens públicos resolvem o problema do menor
abandonado. Eles não fazem nada. Deixam as crianças sem nenhum apoio, abandonadas em
todos os sentidos, mas os mesmos homens públicos não perdem a esperança de que elas se
tornarão cidadãos experientes e adaptados à luta pela vida. Quando essas mesmas crianças se
tornam criminosas, ao invés de criar leis que as protejam efetivamente e as tirem da situação de
risco em que vivem, obrigam aos meios de comunicação a colocar uma tarja negra nos olhos das
crianças para que as mesmas não sejam identificadas. Como se isso fizesse qualquer diferença.
245
Leite, Lígia C. Meninos de Rua: O rompimento da ordem 1554 / 1994. (Rio de Janeiro: UFRJ IPUB, 1998) 217.
97
Outras obras sobre o tema também foram escritas na década de 1990: Crianças na
Escuridão, de Júlio Emílio Braz, publicado em 1991 246 conta a história de um grupo de meninas
que vive nas ruas catando papel para sobreviver; O gato que amava Girl de 1997 escrito por
Antônio de Pádua e Silva 247 tem como narrador um gato e se passa em Cuiabá; e Água luminosa
de Domingos Pellegrini 248 publicado em 1998 conta a história de um menino pobre, um de
classes média e um malandro, que se tornam amigos.
Em 1996 o filme “Como Nascem os Anjos,” 249 dirigido por Murilo Sales, expõe mais
uma vez a dura realidade da violência. Duas crianças fogem de uma favela do Rio de Janeiro em
companhia de um adulto, Maguila, que tinha matado sem querer o chefe do tráfico de drogas.
Eles pedem água em uma mansão e fazem reféns o dono da casa e a filha, ambos americanos.
Para piorar a situação Maguila mata o motorista do americano e leva um tiro no joelho. Toma
bebidas alcoólicas para suportar a dor do ferimento e dorme. O filme mostra uma situação
absurda onde as duas crianças acabam sozinhas agindo sem liberdade e sem possibilidade de
escolha, presas na casa com os reféns, e a polícia e a imprensa os cercando.
O massacre da Candelária
O massacre da candelária, um dos exemplos mais conhecidos da ação de grupos de
extermínio, aconteceu na madrugada do dia 23 de julho de 1993. Carros pararam em frente à
Igreja da Candelária. Logo após, os homens que chegaram nos carros atiraram no grupo de mais
que setenta crianças e adolescentes que estava dormindo nas proximidades da Igreja. Como
resultado da chacina, seis menores e dois maiores morreram e várias crianças e adolescentes
ficaram feridos.
246
Braz, Júlio E. Crianças na escuridão. São Paulo: Moderna, 1997.
Silva, Antonio P. O gato que amava Girl. São Paulo: Atual, 1999.
248
Pellegrini, Domingos. Água Luminosa. São Paulo: Moderna, 1998.
249
"Como Nascem os Anjos (1996)." The Internet Movie Database (IMDb). 29 Agosto 2009.
<http://www.imdb.com/title/tt0115929/>.
247
98
Baseado nesta chacina foi publicado o romance O massacre da Candelária de Geraldo
Lopes em 1994. Geraldo Lopes é um jornalista brasileiro que trabalhou em grandes jornais
como: O Globo, Diário de Notícias, Jornal do Brasil e Última Hora, além das TVs Globo, Tupi
e Record. O Massacre da Candelária foi seu primeiro romance.
O romance reportagem tem sua história intercalada com notícias de jornal da época sobre
as crianças e sobre o massacre. A razão do massacre foi que em uma onda de assaltos na região
da praça da Candelária, os meninos e meninas de rua estavam muitas vezes ferindo as pessoas
sem terem recebido nenhuma provocação.250 Assaltavam pessoas idosas também, quando essas
saiam dos bancos após recebendo a aposentadoria, e foram responsáveis pela morte de uma
viúva de um sargento de polícia. 251 Agindo dessa forma, e sendo constantemente mencionadas
nos jornais da cidade, essas crianças chamaram a atenção de um grupo de extermínio.
Uma das meninas que fazia parte do bando da Candelária explica as razões que
impulsionava o bando a ser tão violento:
[. . .] Vocês sabem que não gosto mesmo de pedir. Esses caras têm nojo da gente. Quando
a gente vai levar um papo, antes de dizer qualquer coisa eles já vão enxotando. Eles são
tudo igual. Assim que eu vim pro grupo era a mesma coisa. Parava um carro no sinal, eu
ia lá a fim de pedir uns trocados, o careta ou a madama ia logo levantando os vidros. Eles
têm nojo, medo, sei lá o quê. Com o tempo fui ficando cum raiva. Aprendi que é melhor
roubar. Quando a gente pede, tá se humilhando muito, aí eles deitam e rolam. Quando a
gente mete o caco de vidro, eles tremem, dão logo a grana. Com esses garçons é a mesma
250
251
Lopes, Geraldo. O massacre da Candelária. (São Paulo: Página Aberta, 1994) 87-88.
Idem 98.
99
coisa. Já cansei de ser enxotada de restaurante. Prefiro catar. Se vocês se dão bem,
continua pedindo. Eu me viro de meu jeito.252
A menina explica que age com violência porque é a única forma que ela encontra para
conseguir o que necessita. Ela tem que escolher entre ser algoz ou vítima, e decide-se pela
primeira opção. Se as pessoas a ignoram quando pede ajuda, ela toma o que quer. Mais uma vez
a questão levantada por João Antônio entre ser otário ou malandro. A violência então se torna
cada vez maior e a solução que muitos encontraram foi destruir os meninos de rua. O massacre
aconteceu à noite, enquanto as crianças dormiam. Dois carros estacionaram, os homens saíram
armados e usando máscaras, e atiraram nas crianças. O massacre teve repercussões
internacionais. Divulgou-se uma sexta-feira sangrenta. Como o massacre aconteceu durante a
madrugada, os jornais não puderam fazer uma ampla divulgação na mesma sexta-feira, mas as
emissoras de rádio divulgaram o massacre durante todo o dia. Na mesma noite, os noticiários das
emissoras de televisão exibiram imagens chocantes, e no dia seguinte, sábado, os principais
jornais do Rio de Janeiro publicaram fotografias que chocaram não só o Brasil, mas quase todo o
mundo com a chacina que ficou conhecida como o Massacre da Candelária. 253
A diferença entre esse massacre e outros que aconteceram previamente envolvendo
crianças de rua foi que o Massacre da Candelária teve repercussão internacional e providências
tiveram que ser tomadas. No caso Camanducaia onde mais que cem crianças de rua foram
jogadas em um despenhadeiro, o incidente que inspirou José Louzeiro a escrever Infância dos
Mortos, a Ditadura Militar proibiu que o incidente fosse publicado nos jornais. Infelizmente, a
252
253
Lopes, Geraldo. O massacre da Candelária. (São Paulo: Página Aberta, 1994) 117.
Idem 123-24.
100
atenção dada às crianças de rua após o massacre não durou muito tempo. Logo foram sendo mais
escassas as reportagens sobre o massacre:
A cada dia, o noticiário sobre a chacina da Candelária ficava mais minguado em jornais,
revistas, rádio e televisão. Os mortos foram enterrados em dias alternados. Os meninos de
rua, levados pelos educadores do Cerim e de outras instituições, empunhavam cartazes
pedindo justiça. A cada enterro apareciam no cemitério deputados e vereadores de vários
partidos, fazendo mil promessas. Os educadores explicavam que os políticos estavam
querendo tirar proveito, mas a molecada não entendia bem dessas coisas. 254
Nenhuma mudança aconteceu na vida dos sobreviventes, continuaram crianças de rua.
Mas pelo menos um dos sobreviventes da chacina, Sandro Barbosa do Nascimento, voltou a ser
notícia, quando se tornou o responsável pelo seqüestro do ônibus 174, episódio que foi adaptado
para o cinema em 2002 como “Ônibus 174.” 255
Central do Brasil
O filme “Central do Brasil”, dirigido por Walter Salles, ganhou o Golden Globe de
melhor filme estrangeiro em 1999 e deu a Fernanda Montenegro uma indicação para o Oscar de
melhor atriz no mesmo ano. 256 No filme Fernanda Montenegro é uma professora primária
aposentada, Dora, que trabalha na estação Central do Brasil escrevendo cartas para pessoas
analfabetas, cartas que geralmente não envia.
Assim conhece Josué, um menino de nove anos e sua mãe, Ana, que pede a Dora que
escreva uma carta para seu marido. Logo após de ter escrita a carta, Ana é atropelada e morre e
254
Lopes, Geraldo. O massacre da Candelária. (São Paulo: Página Aberta, 1994) 129.
"Ônibus 174 (2002)." The Internet Movie Database (IMDb). 29 Agosto 2009.
<http://www.imdb.com/title/tt0340468/>.
256
Hart, Stephen M. Companion to Latin American film. (Rochester, NY: Tamesis, 2004) 179.
255
101
Josué fica sozinho morando na estação Central. Por ser Dora a única pessoa com quem Josué
teve contato na cidade, ele a segue, insistindo para que ela escreva outra carta para seu pai
contando sobre a morte da mãe e que ele está sozinho. A princípio ela tenta evitar o garoto, que
passa a viver abandonado na estação, mas decide ajudá-lo ao mesmo tempo que ganha algum
dinheiro fácil. Entrega-o para adoção, recebendo dinheiro por isso. Dora se arrepende,
acreditando que o menino será assassinado para que seus órgãos sejam vendidos, e decide levá-lo
de volta para sua família, no interior do Brasil.
Os temas da criança de rua, do tráfico de crianças para a venda de órgãos, e a migração
do sertão brasileiro para as grandes capitais são abordados no filme, que fez grande sucesso no
Brasil e também em outros países.
Cidade de Deus de Paulo Lins
Segundo Manuel da Costa Pinto, em Literatura Brasileira Hoje, o romance Cidade de
Deus foi saudado pela crítica e pelo público como o acontecimento literário mais importante dos
últimos tempos na literatura brasileira. 257 O romance de Paulo Lins, escritor nascido no Rio de
Janeiro e ex-morador da favela Cidade de Deus, baseia-se em fatos reais. Parte do material
utilizado no romance foi inspirado em entrevistas feitas por Paulo Lins para o projeto Crime e
criminalidade nas classes populares, da antropóloga Alba Zaluar, e de artigos nos jornais O
Globo, Jornal do Brasil e O Dia.258 O romance conta a história da formação da favela Cidade de
Deus no Rio de Janeiro e da evolução do tráfico de drogas na mesma, e divide-se em três partes.
A história de Cabeleira trata da época em que a pobreza era o contexto do crime na favela
Cidade de Deus e sobre os assaltos e roubos que eram cometidos pelos habitantes criminosos da
257
258
Pinto, Manuel C. Literatura Brasileira Hoje. (São Paulo: Publifolha, 2004) 129.
Lins, Paulo. Cidade de Deus. (São Paulo: Schwarcz, 1997) 549.
102
favela. A história de Bené trata do crescimento, endurecimento e profissionalização do crime e
dos assassinatos e políticas de terror usadas para garantir a paz na favela, indispensável para o
comércio das drogas, já que os usuários de drogas precisam sentir-se seguros para entrar na
favela. A história de Zé Pequeno trata da guerra das quadrilhas, onde a violência é descontrolada
e a morte de uma pessoa se torna uma coisa banal.
Crianças aparecem constantemente no romance, de todas as idades, desde bebês até
crianças de oito, nove e dez anos. Sendo assassinadas impiedosamente e algumas com somente
oito anos assassinando também. O assassinato de um recém-nascido é descrito com detalhes na
primeira parte do livro, 259 o suposto pai decepa os braços e pernas da criança viva, para se vingar
da esposa, o casal que era negro tinham tido um filho branco. Também na última parte do livro,
durante uma luta entre a polícia e os traficantes, um bebê de sete meses tem a cabeça
estraçalhada por um tiro de escopeta. 260
Zé Pequeno, que quando criança era conhecido como Dadinho, um dos personagens
centrais do romance, tem sua história relatada desde seu nascimento. Ele nasceu na favela
Macedo Sobrinho, aos quatro anos perde o pai, aos seis anos já trabalha com bandidos,
carregando armas até perto do local a ser assaltado. 261 Ao ser preso pela primeira vez, o
delegado proibiu os detetives de espancá-lo, segundo o delegado era “errado uma criança na
delinqüência, mas muito mais errado é não ter ninguém para saciar os seus desejos infantis.” 262
Dadinho ainda bem pequeno começa a matar as pessoas que ele rouba e muda-se com a família
para a favela Cidade de Deus. Ao completar 18 anos já era conhecido pela polícia, resolve então
259
Lins, Paulo. Cidade de Deus. (São Paulo: Schwarcz, 1997) 80-82.
Idem 447.
261
Ibidem 184.
262
Ibidem 185.
260
103
trocar de nome, passou a se chamar Zé Pequeno e passa a falar que Dadinho havia morrido e que
a boca-de-fumo controlada por Dadinho era agora de um tal de Pequeno. 263
Zé Pequeno é capaz de atrocidades terríveis, ele mata impiedosamente. Em um episódio
do romance, duas crianças assaltam um ônibus cheio de moradores da favela, Zé Pequeno que
havia proibido assaltos dentro da favela, castiga os pequenos infratores:
Os quadrilheiros formaram uma fila dupla, obrigaram os ladrões a passarem três vezes
entre eles, dando-lhes coronhas sem nenhuma piedade. Bigolinha, de nove anos,
desmaiou. Pequeno achou que isso não passava de truque para parar de apanhar e por isso
deu-lhe chutes e mais coronhadas. Em seguida, dando gargalhadas, descarregou sua
pistola 9 milímetros no corpo do menino. Deu ordem para Camundongo Russo atirar no
pé do outro ladrão, depois, pegou outro revólver, apontou para o menino e mandou que
fosse embora sem olhar para trás, do contrário morreria. 264
Os traficantes espancam as crianças até que uma delas, de nove anos, desmaia. Zé
Pequeno mata esse menino por achar que ele estava fingindo para não apanhar mais e manda um
dos garotos que ele comanda atirar no pé de outro menino. Em outro episódio, Mané Galinha,
inimigo de Zé Pequeno, planeja com sua quadrilha como se livrar de Pequeno. Um dos garotos,
de oito anos, se oferece para eliminar Pequeno, se Galinha providenciar uma arma:
-Se me der um ferro, eu formo o bonde para passar ele!- disse Filé com Fritas, um dos
esculachados, de apenas oito anos.
263
264
Lins, Paulo. Cidade de Deus. (São Paulo: Schwarcz, 1997) 213.
Idem 286.
104
[. . .] Tu tem é que parar com essa onda de roubar e procurar uma escola... Tu é criança,
rapá! - disse Galinha.
-Meu irmão, eu fumo, eu cheiro, desde nenenzim que peço esmola, já limpei vidro de
carro, já trabalhei de engraxate, já matei, já roubei... Não sou criança não. Sou sujeito
homem! 265
Essa fala do garoto de oito anos, que já matou e já roubou, e por isso não é mais criança,
já é um homem, faz também parte do filme. O homem em um corpo de criança já havia passado
por muitas das experiências que os homens adultos da favela passaram antes de ser considerados
homens. Pediu esmolas, teve diferentes empregos, cometeu diferentes crimes, incluindo roubar e
matar. Como um homem adulto da favela o mesmo garoto é assassinado:
Pequeno se aproximou com Pinha. Biscoitinho, irado com a resposta de Filé com Fritas,
mandou que ele se deitasse no chão. O menino disse que morreria em pé, porque sujeito
homem morre é em pé. Somente uma lágrima escorreu-lhe pelo rosto liso. É assim que
choram os sujeitos homens de pouca idade: apenas uma lágrima muda na hora de morrer.
Pinha deu-lhe uma coronhada e disse:
- Não deita por bem, deita por mal.
Fritas caiu desmaiado, Biscoitinho pediu o fuzil a pequeno, colocou o cano dentro da
boca do menino e disparou oito vezes, movimentando em círculo o cano do fuzil para ele
nunca mais xingar sua mãe. Depois Pinha esfaqueou seu corpo para ele também nunca
265
Lins, Paulo. Cidade de Deus. (São Paulo: Schwarcz, 1997) 410.
105
mais deixar de obedecer ordem sua. O corpo do menino era só um amontoado de
sangue. 266
O garoto de oito anos morre, depois de uma vida curta mais cheia de experiências no
mundo do crime. Roubando, matando e usando drogas. Com referência às crianças vivendo nas
ruas, encontra-se no romance um grupo de meninos de rua conhecido como Caixa Baixa, por não
terem dinheiro como a quadrilha de Zé Pequeno. A idade média desses meninos era de sete
anos, 267 e faziam pequenos furtos para poder comer e comprar drogas:
Por volta das seis da manhã, os caixa-baixas, entorpecidos de cocaína e maconha,
escutaram um tiro. Movimentaram-se rapidamente, engatilharam as armas e ouviram a
voz de um homem que falava de um ponto mais alto do morro:
- Aí, vocês tão cercados, tem um monte de revólver apontado! É melhor colocar os ferro
no chão e ficar bonitinho.
[. . .]
Lampião atirou seguidamente na direção da voz, dando início a um intenso tiroteio. Três
caixas-baixas morreram no local, cinco foram rendidos e os outro doze escaparam.
- Vocês é daonde?
- Cidade de Deus.
- Tava pensando que aqui era morro de otário, né? Tira a roupa!
Obedeceram.
266
267
Lins, Paulo. Cidade de Deus. (São Paulo: Schwarcz, 1997) 418.
Idem 297.
106
- Agora vai ali pra beirinha pra brincar de voar.
Os cinco foram para a beira do precipício.
- Agora pula, um de cada vez, da direita pra esquerda. Quando eu falar um, pula o
primeiro, quando eu falar dois, pula o segundo...
O primeiro não obedeceu e levou uma rajada de metralhadora nas costas, os outros
pularam sem o assassino contar.268
O que mais choca no romance é a extrema violência com que as crianças são tratadas e
também como elas reagem. São assassinadas e torturadas impiedosamente, crianças de oito anos
ou menos, que por sua vez matam também impiedosamente. Mais uma vez pode-se observar a
diferença entre os oito anos das crianças de rua e os oito anos do poeta Casimiro de Abreu, que
descreveu o ideal de infância das crianças que tem pais ou qualquer espécie de família e recebem
proteção e sustento.
As crianças invisíveis no século XXI
Em 2000 foi publicado Inferno de Patrícia Melo, escritora, roteirista de TV e cinema e
dramaturga. Nascida na cidade de São Paulo, Patrícia Melo tem sua obra publicada em nove
países. Inferno é a história de José Luís Reis, apelidado Reizinho, um menino que começa a
trabalhar para o tráfico de drogas aos onze anos como olheiro, vigiando o morro para avisar se
havia polícia. Em um de seus primeiros dias como olheiro para os traficantes da favela, ele se
distrai e não dá o alarme quando a polícia aparece. É então castigado duramente e depois leva um
268
Lins, Paulo. Cidade de Deus. (São Paulo: Schwarcz, 1997) 537-38.
107
tiro na mão para nunca mais esquecer suas responsabilidades. 269 Reizinho chega a ser o líder do
morro, mas enquanto ainda criança é preso acusado de usar drogas e roubar, e é levado a um
Centro de Recolhimento de Menores:
Foram oito dias terríveis, só pensava em fumar, aflito, dando socos na parede, tremendo,
a gengiva sangrando, os funcionários gritando com ele, se você quer confusão, podemos
facilitar sua vida. Vamos, arrumem a cama. Dobrem os cobertores, você aí, estou de olho
em você. Você vai para a parede. De costas. De manhã queriam que ele assistisse às
aulas, você não pode ficar na cama, dizia uma velhota, levante, vá escovar os dentes,
inútil, assistentes sociais preenchiam fichas, gritavam com ele, no almoço, fique sentado,
proibimos facas, garfos, palitos, tudo que houver ponta, em pé, todos, as histórias, a
comida horrível, arroz nojento, roubei um supermercado, matei um padeiro, assaltei um
posto de gasolina, meu me ensinou a bater carteira, e à noite, mais infelicidade, sentia
uma tristeza tão grande no peito, junto com outros meninos, vendo televisão, uma
tristeza, uma vontade de morrer, queria morrer, não voltar para casa, nem pai, nem
Suzana, queria morrer de verdade. 270
A descrição do reformatório por Reizinho e como ele se sentia, lembra o reformatório em
Capitães da Areia de Jorge Amado. Reizinho ao ser preso foi espancado pela polícia e seu
dinheiro repartido entre os policiais, e suas pedras de crack que ele carregava em um saco
plástico, colocadas no bolso de um policial. Mais uma vez a corrupção das autoridades é
denunciada, assim como os maus-tratos recebidos nos reformatórios, mais de sessenta anos
depois de Capitães da Areia. Mas o tratamento recebido por Reizinho também mostra como
269
270
Melo, Patrícia. Inferno. (São Paulo: Companhia das Letras, 2000) 17.
Idem 98.
108
mudaram as políticas em relação ao menino criminoso no Brasil, em Pixote: Infância dos
mortos, da década de 1970, os meninos eram torturados brutalmente pela polícia e jogados em
celas com prisioneiros adultos tão terríveis quanto os policiais.
Cidade de Deus de Fernando Meireles
O romance Cidade de Deus de Paulo Lins foi adaptado para o cinema em 2002 sendo
dirigido por Fernando Meireles. O filme Cidade de Deus recebeu quatro indicações para o Oscar
em 2004 e inúmeros prêmios. 271 Diferente do romance, que não tem um personagem central,
todo o drama no filme é contado a partir do ponto de vista de Buscapé, um garoto pobre da
comunidade que resiste à tentação de entregar-se ao aparentemente mais fácil caminho da
criminalidade. O filme mostra crianças roubando, matando e sendo assassinadas, às vezes por
outras crianças. Uma das cenas mais chocantes do filme é quando os garotos do “caixa baixa”,
um grupo de meninos de rua, são torturados pelo bando do Zé Pequeno que obriga os garotos a
decidir se queriam um tiro na mão ou no pé. Depois ele obriga um garoto de seu bando a matar
uma das crianças do “Caixa Baixa”. Também Zé Pequeno quando criança, conhecido então
como Dadinho, entra em um motel após um assalto, encontra os funcionários e hóspedes do
motel amarrados e indefesos, e os mata sem nenhuma piedade.
O enorme sucesso do filme trouxe para as crianças moradoras de favelas, que são em
grande parte as crianças que se encontram nas ruas brasileiras trabalhando e muitas vezes
também roubando e cometendo outros tipos de delito, reconhecimento e fama. Devido a todo
esse sucesso, Alex Pereira Barbosa, conhecido como MV Bill, em uma carta publicada em 20 de
janeiro de 2003 ameaçou começar uma guerra se não houvesse nenhum tipo de compensação
para a favela:
271
"Cidade de Deus (2002)." The Internet Movie Database (IMDb). 29 Agosto 2009.
<http://www.imdb.com/title/tt0317248/>.
109
Aviso: vou colocar todo mundo na bola. O mundo inteiro vai saber que esse filme não
trouxe nada de bom para a favela, nem benefício social, nem moral, nenhum benefício
humano. O mundo vai saber que eles exploraram a imagem das crianças daqui da CDD.
O que vemos é que o tamanho do estigma que elas vão ter que carregar pela vida só
aumentou, só cresceu com esse filme. Estereotiparam nossa gente e não deram nada em
troca para essas pessoas. Pior, estereotiparam como ficção e venderam como verdade. 272
Segundo MV Bill o filme estimulou preconceitos raciais e sociais e também reforçou os
estereótipos das favelas, mostrando-as como centros de violência e brutalidade. Mas devido ao
apoio da mídia e a intervenção de políticos e governantes, em 4 de fevereiro de 2003 MV Bill em
outra carta declarou que “A Cidade de Deus está mais perto do que nunca do céu.”273 Apesar do
livro e do filme homônimo Cidade de Deus não apresentarem nenhuma saída para as crianças
encurraladas na favela e no meio da guerra do tráfico de drogas no Rio de Janeiro, o grande
sucesso do filme trouxe para essas mesmas crianças esperança. Essa esperança veio por meio dos
inúmeros projetos realizados na favela Cidade de Deus, tanto por organizações brasileiras quanto
organizações de outros países.
Depois de Cidade de Deus
Depois do sucesso de Cidade de Deus o tema das crianças envolvidas no tráfico de
drogas tornou-se ainda mais popular. O documentário “Falcão: Meninos do tráfico” foi
transmitido pela Rede Globo de televisão no Brasil, no programa “Fantástico” em 2006. Falcões
são os garotos das favelas que vigiam os morros para avisar sobre a chegada da polícia ou de
272
Citado em Fitzgibbon, Vanessa C. "Em torno dos "Re-Sentimentos" raciais brasileiros: Raça e identidade
nacional em Viva o Povo Brasileiro de João Ubaldo Ribeiro e Cidade de Deus de Paulo Lins." (Diss. University of
Wisconsin-Madison, 2006) 358-59.
273
Idem 360.
110
qualquer outro inimigo e o documentário trata da vida de 16 meninos que trabalham para o
tráfico de drogas, sendo filmado entre 2000 e 2006. Desses 16 meninos, 15 foram assassinados e
tiveram seus enterros exibidos no documentário. O sobrevivente chegou a trabalhar para os
produtores, mas voltou ao tráfico de drogas e atualmente está preso.274
O programa da TV Globo exibiu o documentário de 58 minutos sobre esses meninos,
mostrando-os constantemente com metralhadoras, granadas e drogas, como cocaína. O
documentário foi resultado do trabalho do rapper carioca MV Bill e seu empresário, Celso
Athayde, em favelas de vários Estados. O documentário não tem narração e é legendado, como
se não fosse em português, trazendo a tradução de gírias, como "arrego = propina". As cenas são
escuras e a maioria foi gravada em câmeras digitais. “Falcão-Meninos do tráfico” foi adaptado
para o cinema e lançado como filme também em 2006. 275
Délcio Teobaldo, escritor, professor e jornalista mineiro, publicou Pivetim 276 em 2008.
Pivetim conta a história de um menino de rua negro. O autor teve a idéia enquanto pesquisava
sobre a infância de Machado de Assis e encontrou vários meninos de rua. Na noite de entrega do
IV Prêmio Barco a Vapor de Literatura Infantil e Juvenil, no SESC de Vila Mariana, em São
Paulo, Délcio Teobaldo falou sobre as razões que o levaram e escrever sobre meninos de rua. Ele
explica que “o livro me custou muito para ser escrito”. Seu livro foi pensado durante muitos anos
de pesquisa e contatos com as populações de rua, mas escrito rapidamente. A história tinha
amadurecido nos últimos quatro anos enquanto Teobaldo fazia pesquisas para escrever um
romance sobre a infância desconhecida do escritor Machado de Assis:
274
Mattos, Laura. "Fantástico" exibe documentário sobre tráfico juvenil." Folha Online. Jornal Folha de São Paulo,
19 Mar. 2006. 07 Set. 2009. <http://www1.folha.uol.com.br/folha/ilustrada/ult90u58925.shtml>.
275
Idem
276
Teobaldo, Délcio. Pivetim. São Paulo: SM, 2008.
111
Moleque preto, epilético, gago, prognata, favelado, órfão de pai e mãe, Machadinho,
como era conhecido na infância, era igualzinho a estes pivetins que nos incomodam e
desafiam nossa caridade ou medo, seja na Praça da Sé, em São Paulo; na Praça da
Estação, em Belo Horizonte; no Largo da Carioca, no Rio de Janeiro, em Guajamirim,
Bolívia, onde estive recentemente, ou em quaisquer praças, becos e morros deste país. 277
A inspiração para escrever Pivetim foi a infância de Machado de Assis, que vendia doces
nas praças do Rio de Janeiro quando era criança, e graças ao seu amor pelos livros, conseguiu
escapar à pobreza e à criminalização. Délcio Teobaldo em seu discurso também explicou que
quando encontra um “pivetim” com uma lata de cola entorpecente ou um trezoitão engatilhado,
pensa em Machado de Assis, vendendo doces nas praças de um Rio de Janeiro pestilento,
ameaçador à infância, como permanece ainda hoje. Ele também explica que Machado de Assis,
apesar das limitações físicas e circunstâncias sociais, teve oportunidade. O que os “pivetins” de
hoje buscam. Reclamam uma mão estendida para que vivam a infância plena e esquecer de vez o
medo de crescer. Teobaldo conclui afirmando que se o livro Pivetim contribuir para provocar
discussões neste sentido, a conquista do quarto prêmio Barco a Vapor terá valido à pena. 278
Délcio Teobaldo e seu Pivetim buscam trazer a tona discussões sobre as crianças de rua e suas
necessidades, o que o filme “Cidade de Deus” conseguiu em 2003 para os habitantes da favela
Cidade de Deus.
Também em 2008, O Gralha, Menino de Rua, 279 de Lourdes Carolina Gagete, conta a
história de um órfão que foge da Febem e passa a morar nas ruas de São Paulo. Em 2009
277
Teobaldo, Délcio. "Moleques e mestiços no mesmo Espelho.br." Dobras da Leitura - Literatura Infantil e
Juvenil. Dobras da Leitura, 26 Agosto 2008. 07 Set. 2009.
<http://www.dobrasdaleitura.com/revisao/delcioteob.html>.
278
Idem.
279
Gagete, Lourdes C. O Gralha, Menino de Rua. São Paulo: Paulus, 2008.
112
Capitães da Areia 280 foi filmado em Salvador, dirigido por Cecília Amado, a neta de Jorge
Amado. O romance de Jorge Amado mais de 70 anos após sua publicação ainda continua a ser
atual e a fazer sucesso. As filmagens foram concluídas em junho de 2009 e o filme será lançado
em 2010.
280
Amado, Cecília. "Capitães da Areia" Capitães da Areia. Tecnopop, 02 Julho 2009. 07 Set. 2009.
<http://www.capitaesdaareia.com.br/noticia.php?titulo=capitaes-da-areia-conclui-filmagens-em-salvador>.
113
CONCLUSÃO
A literatura brasileira tem se interessado pelos excluídos sociais desde o século XIX,
sendo A Escrava Isaura e O Cortiço alguns exemplos disso. No início do século XX escritores
como Monteiro Lobato, Lima Barreto e Manuel Bandeira começaram a se interessar pelas
crianças excluídas pela sociedade, o que também foi visto no século XIX, mas muito
esporadicamente. Jorge Amado na década de 1930, com Capitães da Areia, traz os meninos de
rua aos olhos do público, tornando-os protagonistas de um romance e expõe um problema que
existia por muito tempo, mas que tinha sido quase que completamente ignorado pelos escritores
brasileiros até então, o dos meninos de rua. Depois de Capitães da Areia e até meados da década
de 1970, as crianças invisíveis apareceram de forma significativa na literatura brasileira, mas
sem muita repercussão na sociedade brasileira. Com o a urbanização acelerada providenciada
pela Ditadura Militar e o “Milagre Econômico” do início da década de 1970, a violência urbana
cresceu assustadoramente e os meninos de rua passaram a ter um papel de maior destaque nos
meios de comunicação. Tornaram-se mais comuns então os grupos de extermínio e as obras de
ficção sobre os meninos de rua. Pixote: Infância dos mortos de José Louzeiro e o filme que se
baseou neste livro fizeram grande sucesso. Após o final da ditadura militar, o tema das crianças
invisíveis se tornou mais comum ainda, e dois dos filmes brasileiros que mais fizeram sucesso
nas últimas décadas, Cidade de Deus e Central do Brasil, ambos de certa forma tratam do
problema das crianças de rua.
Os meninos de rua se tornaram parte do imaginário brasileiro. O “pivete”, que é como é
chamada a criança abandonada, se encontra por toda parte nas grandes cidades brasileiras, nos
semáforos limpando as janelas dos carros, nas ruas, nas portas dos restaurantes, nas praias e na
frente de lojas pedindo esmolas e assaltando. O uso dessas crianças como personagens de ficção
114
é polêmico, alguns se opõem. “Cidade de Deus”, como vimos, foi duramente criticado, inclusive
pelos moradores da favela do mesmo nome, por marginalizar ainda mais suas crianças. Outros
defendem o filme e vêem a diferença que ele fez para essas mesmas crianças ao trazer os olhos
do mundo para seus problemas. Devido pelo menos em parte à visibilidade que as crianças de
rua alcançaram com essas obras literárias, em especial Cidade de Deus, organizações foram
criadas e os poderes públicos mobilizados para tentar resolver o problema.
Mário Vargas Llosa, um escritor peruano, define uma função das grandes obras de
literatura que pode ser aplicada à questão das crianças invisíveis:
A literatura, por sua vez, foi e, enquanto existir, continuará sendo um denominador
comum da experiência humana. Aqueles de nós que leram Cervantes, Shakespeare, Dante
ou Tolstoi entendem uns aos outros e se sentem indivíduos da mesma espécie porque, nas
obras desses escritores, aprenderam o que partilhamos com seres humanos,
independentemente de posição social, geografia, situação financeira e período histórico.
Nada nos protege melhor da estupidez do preconceito, do racismo, da xenofobia, do
sectarismo religioso ou político e do nacionalismo excludente do que esta verdade que
sempre surge na grande literatura: todos são essencialmente iguais. Nada nos ensina
melhor do que os bons romances a ver nas diferenças étnicas e culturais a riqueza do
legado humano e a estimá-las como manifestação da multifacetada criatividade
humana. 281
Jorge Amado, João Antônio, José Louzeiro e mesmo Paulo Lins com seu criticado
romance trouxeram para a sociedade brasileira perspectivas novas e contrastantes da criança
281
Llosa, Mario V. "Um mundo sem romances - Readers Digest Março de 2003." A importância da literatura.
Yahoo! GeoCities. 07 Set. 2009. <http://www.geocities.com/Athens/Olympus/3583/literatura.htm>.
115
brasileira pobre. Independente da violência com que agem, mesmo matando em alguns casos,
elas ainda são crianças e têm sonhos e sentimentos. Se as crianças que conhecemos estivessem
na mesma situação dessas crianças de rua brasileiras, elas provavelmente não agiriam de forma
diferente.
Dois pontos em comum nas obras literárias que foram analisadas neste trabalho são a
extrema violência com que estas crianças agem (ou reagem) contra a sociedade e a aparente falta
de solução para o problema das crianças de rua.
Com relação à extrema violência, isso não é uma exclusividade das crianças de rua
brasileiras, nem sequer das crianças de rua de qualquer parte do mundo. É comum encontrar nos
noticiários dos países considerados de primeiro mundo crimes atrozes cometidos por crianças ou
contra crianças. Só para citar alguns exemplos, na Inglaterra em abril de 2009, 282 dois irmãos, de
11 e 10 anos, espancaram e torturam dois outros meninos, de 9 e 10 anos, de maneira tão brutal
que esse episódio poderia ser perfeitamente incorporado em Cidade de Deus, o filme ou o livro.
No Arizona, em 2008, um garoto de oito anos matou a tiros o pai e outro homem, o motivo do
duplo homicídio não foi esclarecido. 283 Também nos Estados Unidos cerca de 100.000 menores
de 17 anos são presos cada ano por crimes violentos, como estupro, roubo e assassinato, sendo
desses, aproximadamente 30.000 menores de 14 anos. 284 Os crimes violentos cometidos por
jovens menores de 17 anos correspondem então a aproximadamente 17% do total de crimes
violentos nos Estados Unidos.
282
"Brothers, 10 and 12, plead guilty to brutal attack." Ksl.com - Utah News, Sports, Weather and Classifieds. 03
Set. 2009. 07 Set. 2009. <http://www.ksl.com/?nid=235&sid=7794334>.
283
"Arizona Boy, 9, Pleads Guilty to Murdering Dad - Local News | News Articles | National News | US News."
FOXNews.com. FOX News, 19 Fev. 2009. 07 Set. 2009. <http://www.foxnews.com/story/0,2933,496267,00.html>.
284
"Bureau of Justice Statistics Spreadsheets - Crime & Justice Electronic Data Abstracts." Office of Justice
Programs. Department of Justice USA, 11 Mar. 2009. 07 Set. 2009. <http://www.ojp.gov/bjs/dtdata.htm>.
116
Quanto à aparente falta de solução para o problema das crianças de rua na literatura
brasileira, com exceção de Jorge Amado que queria tornar os meninos de rua revolucionários
socialistas, nenhuma das obras aqui estudada mostra uma saída possível, ou mesmo esperança
para essas crianças nas grandes cidades. Mas se na literatura não se encontra solução ou
esperança, existem alguns raros casos em que algumas crianças de rua conseguiram mudar seu
destino. Ana Luiza dos Anjos, uma menina negra, logo após seu nascimento, foi abandonada
dentro de uma caixa de sapatos em uma rua de São Paulo. Viveu 18 anos na Febem. Depois mais
18 anos nas ruas de São Paulo, roubando e usando drogas. Um dia viu pela vitrine um filme que
passava na TV, “Carruagens de Fogo”, e assistiu a história de dois corredores que participaram
das Olimpíadas de 1924. No dia seguinte os garotos de rua com que “trabalhava” roubaram um
par de tênis e o dinheiro da inscrição para ela participar da corrida São Silvestre em São Paulo.
Começava sua carreira de atleta. Ela parou de usar drogas e foi medalha de ouro na meiamaratona Internacional de Santiago; Campeã da São Silvestre na categoria de 40 a 44 anos; é
recordista brasileira máster dos 800, 1.500 e 5.000 metros. Também já participou em corridas em
várias partes do mundo, por exemplo, Nova York, Tóquio e Estados Unidos.
Outro exemplo, Roberto Carlos Ramos, analfabeto, também negro, morou também nas
ruas dos seis aos treze anos. Sua vida se assemelhava um pouco com a de Ana Luiza dos Anjos,
pois roubava, usava drogas e vivia brigando nas ruas de Belo Horizonte. Segundo ele, chegou a
fugir 132 vezes da Febem e era considerado irrecuperável quando o milagre aconteceu. Foi
adotado por uma pedagoga francesa aos 13 anos, analfabeto e incorrigível. Aos 19 anos foi
aceito em uma universidade brasileira, se tornando pedagogo e depois mestre em literatura
117
infantil. Roberto Carlos adotou vários meninos de rua e atualmente faz palestras em escolas e
faculdades do Brasil. 285
Os motivos pelos quais a literatura sobre os meninos de rua no Brasil não mostra
nenhuma esperança para essas crianças são vários. Deve-se levar em conta que a situação é
extremamente difícil. Não existem fáceis soluções se os escritores querem retratar a realidade.
Também os artistas que tratam do tema das crianças de rua buscam uma arte “engajada”, não
uma “arte pela arte”. Enquanto a arte pela arte busca não se posicionar politicamente, o que não
deixa de ser um ato político que geralmente atende os interesses das classes dominantes, os
artistas engajados não estão satisfeitos com a ordem existente, e querem uma nova ordem.
Mostrar os problemas sem soluções aparentes nas circunstâncias atuais é um bom método para
favorecer mudanças políticas e sociais. A existência de um número tão grande de excluídos,
grande parte deles ainda crianças, é uma evidência de que são necessárias mudanças no Brasil.
Existe um grande desconforto na sociedade brasileira em relação às crianças de rua, que
muitas vezes andam em grupos e são ameaçadoras, capazes de matar. Bem diferentes das
crianças com que convivemos e que são cantadas pelos poetas. Aprendemos na literatura
brasileira dedicada ao problema das crianças de rua que responsabilizar a polícia e as autoridades
é o que se faz geralmente, esperando que eles resolvam o problema. O que não tem funcionado.
No Brasil, o agravamento do problema ocorreu devido às migrações para os grandes centros
urbanos, especialmente por parte do povo nordestino fugindo das secas. O que gerou mão-deobra sem qualquer qualificação, habitações deficientes, como os cortiços e favelas,
285
Esses dois casos de crianças de rua foram citados por Neto, Maurílio A. "Meninos de rua que viraram heróis."
Jornal Local On-Line - Capa. 12 Feb. 2007. Web. 23 Sept. 2009.
<http://www.jlocal.com.br/artigos.php?pesquisa=2363>.
118
promiscuidade sexual, abuso sexual e, finalmente, degradação da família. Outros fatores são a
péssima distribuição de renda e também de terra no Brasil.
A dolorosa situação das crianças de rua do Brasil tem chamado atenção do mundo inteiro
graças principalmente ao cinema brasileiro. O número de obras de ficção sobre os meninos de
rua assim como o número de meninos de rua no Brasil continua crescendo. O que esse trabalho
se propôs a fazer foi pesquisar, de uma perspectiva histórica, as obras de ficção mais importantes
sobre os meninos de rua até 2009. A razão que justificou essa pesquisa é que o sucesso do tema
é inegável. Capitães da Areia, o livro mais vendido de Jorge Amado, “Cidade de Deus”, um dos
filmes brasileiros de maior sucesso e repercussão internacional, e todos os outros livros e filmes
sobre o tema das crianças invisíveis que têm sido lançados no mercado editorial brasileiro nestes
últimos anos comprovam esse sucesso. O grande benefício desse tema na literatura foi mostrar a
realidade em que vivem os meninos de rua, o que mobilizou organizações em todo o mundo para
ajudar essas crianças.
119
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Vogt, Carlos. "Trabalho, pobreza e trabalho intelectual: O quarto de despejo, de Carolina Maria
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130
Williams, Frederick G. Poets of Brazil: A Bilingual Selection/ Poetas do Brasil: uma seleção
bilíngüe. Provo: BYU, 2004.
131
Anexos
Press Release 286
Children Out of Sight, Out of Mind, Out of Reach
Abused and Neglected, Millions of Children Have Become Virtually Invisible
LONDON, 14 December 2005– Hundreds of millions of children are suffering from severe
exploitation and discrimination and have become virtually invisible to the world, UNICEF said
today in a major report that explores the causes of exclusion and the abuses children experience.
The agency said that millions of children disappear from view when trafficked or forced to work
in domestic servitude. Other children, such as street children, live in plain sight but are excluded
from fundamental services and protections. Not only do these children endure abuse, most are
shut out from school, healthcare and other vital services they need to grow and thrive.
The State of the World's Children 2006: Excluded and Invisible is a sweeping assessment of the
world's most vulnerable children, whose rights to a safe and healthy childhood are exceptionally
difficult to protect. These children are growing up beyond the reach of development campaigns
and are often invisible in everything from public debate and legislation, to statistics and news
stories.
286
"The State of the World's Children 2006: Children Out of Sight, Out of Mind, Out of Reach." UNICEF. 14
dezembro 2005. 28 julho 2009. <http://www.unicef.org/sowc06/press/release.php>.
132
Without focused attention, millions of children will remain trapped and forgotten in childhoods
of neglect and abuse, with devastating consequences for their long-term well-being and the
development of nations. The report argues that any society with an interest in the welfare of its
children and its own future must not allow this to happen.
Meeting the Millennium Development Goals depends on reaching vulnerable children
throughout the developing world" said UNICEF Executive Director Ann M. Veneman, launching
the report in London. "There cannot be lasting progress if we continue to overlook the children
most in need - the poorest and most vulnerable, the exploited and the abused."
WHY CHILDREN BECOME INVISIBLE
In the past, UNICEF has reported extensively on how poverty, HIV/AIDS and armed conflict are
undermining childhood itself. Excluded and Invisible details how these factors, as well as weak
governance and discrimination, deprive children of protection from abuse and exploitation, and
exclude them from school, healthcare and other essential services at alarming rates.
The report finds that children who lack vital services are more vulnerable to exploitation because
they have less information on how to protect themselves, and fewer economic alternatives.
Children who are caught in armed conflict, for example, are routinely subjected to rape and other
forms of sexual violence. It is these children – alone and defenseless – who are being ignored.
The report argues that children in four circumstances are most likely to become invisible and
forgotten:
133
Children without a formal identity. Every year, over half of all births in the developing world
(excluding China) go unregistered, denying more than 50 million children a basic birthright:
recognition as a citizen. Children who are not registered at birth do not appear in official
statistics and are not acknowledged as members of their society. Without a registered identity,
children are not guaranteed an education, good healthcare, and other basic services that impact
their childhood and future. For example, unregistered children are denied a place in school when
birth certificates are required to gain access. Simply put, children who do not have a formal
identity are not counted, and they are not taken into account.
Children without parental care. Millions of orphans, street children, and children in detention
are growing up without the loving care and protection of their parents or a family environment.
Children caught in these circumstances are often not treated as children at all.

An estimated 143 million children in the developing world - 1 in every 13 children have suffered the death of at least one parent. For children in deep poverty the loss of
even one parent, especially a mother, can take a lasting toll on their health, and
education.

Globally, tens of millions of children spend a large portion of their lives on the streets,
where they are exposed to all forms of abuse and exploitation.

More than 1 million children live in detention, the vast majority awaiting trial for
minor offenses. Many of these children suffer gross neglect, violence, and trauma.
Children in adult roles. The report argues that children who are forced into adult roles too early
miss crucial stages of childhood development.
134

Hundreds of thousands of children are caught up in armed conflict as combatants,
messengers, porters, cooks, and sex slaves for armed groups. In many cases they have
been forcibly abducted.

In spite of laws against early marriage in many countries, over 80 million girls across
the developing world will be married before they turn 18 – many far younger.

An estimated 171 million children are working in hazardous conditions and with
dangerous machinery, including in factories, mines and agriculture.
Children who are exploited. Shut away by their abusers and held back from school and
essential services, children who are the victims of exploitation are arguably among the most
invisible. Their lives and numbers are virtually impossible to track.

Some 8.4 million children work in the worst forms of child labour, including
prostitution and debt bondage, where children are exploited in slave-like conditions to
pay off a debt.

Nearly 2 million children are used in the commercial sex trade, where they routinely
face sexual and physical violence.

Every year, it is estimated that millions of children are trafficked into underground
and illegal worlds where they are forced into dangerous and degrading forms of work,
including prostitution.

A vast but unknown number of children are exploited as domestic servants in private
homes. Many are banned entirely from going to school, suffer physical abuse and are
underfed or overworked.
135
The report also asserts that children who live in ‘fragile states’ – countries that are unable or
unwilling to provide basic services for their children – are virtually invisible. Discrimination on
the basis of gender, ethnicity or disability also factors into the exclusion of children. For
example, discrimination shuts millions of girls out of school and blocks critical services for
children from ethnic minorities and indigenous groups. An estimated 150 million children live
with disabilities globally, many without opportunities for education, healthcare, and nurturing
support because of routine discrimination.
MEETING OUR COMMITMENTS TO CHILDREN
The State of the World’s Children argues that the world must go beyond current development
efforts to ensure that the most vulnerable children are not left behind. Governments bear primary
responsibility for reaching out to these children, and must step up their efforts in four key areas:

Research, monitoring and reporting: Systems to record and report on the nature and
extent of abuses against children are essential to reaching excluded and invisible
children.

Legislation: National laws must match international commitments to children, and
legislation that fosters discrimination must be changed or abolished. Laws to
prosecute those who harm children must be consistently enforced. For example, weak
law enforcement perpetuates the climate of impunity that surrounds the rape of
children.

Financing and capacity-building: Child-focused budgets and the strengthening of
institutions that serve children must complement laws and research.
136

Programmes: Reform is urgently required in many countries and communities to
remove entry barriers for children who are excluded from essential services, for
example, eliminating the requirement of a birth certificate to attend school.
The report also outlines concrete actions that can be taken by civil society, the private sector,
donors and the media to help prevent children from falling between the cracks. These and other
efforts by people and organizations at all levels of society help to build a protective environment
for children – one that protects children from abuse in the same way that immunization and
adequate nutrition protect them from disease.
Governments, families and communities must do more to prevent abuse and exploitation from
happening in the first place and to protect children who fall victim to abuse. Laws that hold
perpetrators of crimes against children accountable must be implemented and vigorously
enforced; attitudes, traditions and practices that are harmful to children must be challenged; and
children themselves must get the information and life skills they need to protect themselves.
“Those who harm children rob them of opportunities to grow up safe, healthy and with dignity,”
Veneman said. “To ensure that children are protected, the abuse and exploitation of children
must be brought to light and those who violate children brought to justice.”
The Authority on Children
The State of the World’s Children is UNICEF’s annual flagship publication. It is the most
comprehensive survey of global trends affecting children and provides the most thorough
almanac of up-to-date statistical data on children. SOWC is used globally by governments,
137
NGOs, and academic institutions as the authority on childhood. Data tables from the report are
fully searchable at www.unicef.org/sowc06/statistics/statistics.php.
For further information and interviews please contact:
Alfred Ironside, UNICEF Media, on assignment in London (+1 917) 476-1635
Kate Donovan, UNICEF Media, on assignment in London, (+1 917) 378-2128
Gina Dafalia, UNICEF Media, London (+ 44) 207 312 7695
Allison Hickling, UNICEF Media, New York (+1 212) 326-7224
Oliver Phillips, UNICEF Media, New York (+1 212) 326-7583

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