desta edição - Escola Paulista de Magistratura

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desta edição - Escola Paulista de Magistratura
diálogos&debates
Revista trimestral ano 4 n. 3
ed. 15 março 2003 R$ 4,50
DA ESCOLA PAULISTA DA MAGISTRATURA
BRASIL 2004:
50 ANOS SEM UM PROJETO
Entrevista exclusiva com o novo
presidente do Tribunal de Justiça,
desembargador Luiz Elias Tâmbara
O que mudou sem a inflação nos
dez anos de Plano Real
Reforma do Ensino: para onde vai
a universidade brasileira
E S C O L A PA U L I S TA D A M A G I S T R AT U R A
Órgão d o Tr i b u n a l d e J u s t i ç a d o E s t a d o d e
São Pau l o
ritos de passagem,
sumário
Diretor Desembargador Carlos A. Guimarães e Souza Júnior
Vice-diretor Desembargador Octávio Roberto Cruz Stucchi
diálogos&debates
Diretores Des. Demóstenes M. Braga e Juiz Régis Rodrigues Bonvicino
Conselho editorial
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Barbosa, Prof. Antonio Angarita, Dalmo do Vale Nogueira Filho, Prof.
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Alquéres (Imprensa Oficial do Estado de São Paulo), Juiz Antonio
Carlos Villen, Dep. Sidney Beraldo e Arnaldo Madeira, Jaime de Castro
Júnior (Banco Nossa Caixa S/A), Luis Francisco da Silva Carvalho
Filho (advogado), Rolf Kuntz (jornalista)
Editor Carlos Costa
Editor de arte Ricardo Assis
Repórter Sérgio Praça
Colaboraram neste número: Evelyn Carvalho, Fábio Fujita, Gustavo Scatena,
Henrique Kipper, Evaldo Vieira, Clarice Chiqueto, João Marcos Coelho, Flávio
Vianna, Fernão Ketelhuth, Jaime Aparecido da Silva, Rolf Kuntz, Marcello Simão
Branco, Tiana Chinelli, Fernando Araújo.
Editoração eletrônica Negrito Design Editorial
Coordenação editorial César Lacerda
Projeto gráfico Ricardo Assis • Negrito Design Editorial
Arte Tomás Martins • Ana Paula Fujita
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IMPRENSA OFICIAL DO ESTADO
D E S Ã O PA U L O
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A revista diálogos&debates é uma publicação trimestral da Escola Paulista da Magistratura, órgão do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. Números atrasados podem ser solicitados (de acordo com disponibilidade de estoque) à Assessoria de Imprensa, a/c de César Lacerda, Escola Paulista da Magistratura, Rua da Consolação, 1483,
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A força do Judiciário está na moral de seus juízes 6
Entrevista Des. Luiz Elias Tâmbara
Um projeto para o Brasil
marcas no tempo
12
por Evaldo Vieira
Agilizar o Judiciário sem mudar a Constituição
18
por Clarice Chiqueto
Berlioz, o compositor escritor
22
por João Marcos Coelho
Ensino superior: a reforma anunciada
27
por Flávio Vianna
É preciso encontrar saídas
32
Entrevista Fernando Novais
John Fante: o relançamento de “Pergunte ao pó” 37
por Fernão Ketelhuth
O Brasil é um parlamentarismo?
40
por Sérgio Praça
TV: imitação de poderes
45
por Jaime Aparecido da Silva
Uma nova agenda para o comércio global
47
por Rolf Kuntz
América Latina: a democracia incompleta
50
por Marcello Simão Branco
Plano Real: dez anos sem o dragão
56
Entrevista Heron do Carmo
A punição por meio das urnas
por Sérgio Praça
62
C
omo publicação trimestral, esta revista Diálogos &Debates de algum modo marca a passagem do tempo. Lançada num mês de setembro, início de primavera, suas edições acompanham as estações do ano e suas mudanças. “Os
ritos de passagem desempenham um papel importante na
vida do homem”, escreveu o filósofo romeno Mircea Eliade. “Pois eles envolvem sempre uma mudança, trazendo
no bojo um desejo de melhora...” E este número da revista marca, por excelência, esse passar do tempo e essa busca
de novos caminhos.
O exemplar começa com a entrevista do desembargador
Luiz Elias Tâmbara, o novo presidente do Tribunal de
Justiça do Estado de São Paulo. A três dias de sua posse,
ele nos falou sobre os planos e as metas de sua gestão à
frente do Judiciário nos próximos dois anos (entre eles a
conclusão do projeto de modernização e informatização
dos serviços do Judiciário e a capacitação dos servidores) e
até de um sonho: a construção de um novo prédio para o
Tribunal. Um homem de convicções sólidas, Tâmbara sabe
que está bem apoiado quando diz que “a força do Judiciário
se baseia na moral de seus juízes”.
Em seguida, o sociólogo e cientista político Evaldo Vieira
faz uma outra leitura da passagem do tempo: o ano de 2004
marca os 50 anos da morte de Getúlio Vargas e 40 do início
da ditadura militar. Como pano de fundo, traz à discussão
a falta de um projeto para o Brasil. Ou esse é o projeto do
Brasil, ser um país sem projeto?, pergunta.
Coordenador-geral do índice de preços ao consumidor
CEP 01310-100, São Paulo, SP, tel. 3256 6781, fax. 3258 5912.
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(IPC) divulgado pela Fipe (Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas) durante as duas últimas décadas, o economista Heron do Carmo é um dos maiores especialistas
em inflação. Ele analisa como foi essa década de estabilidade após o Plano Real (“Dez anos sem o dragão”) e fala com
otimismo sobre as perspectivas de crescimento econômico.
Talvez para esse otimismo venha contribuir a nova agenda para o comércio global, como comenta o jornalista Rolf
Kuntz ao analisar os caminhos da Organização Mundial
do Comércio (OMC) e a atuação do chamado Grupo dos
20, coordenado pelo Brasil e que pôs no centro dos debates, com eficácia nunca vista, as ambições e o discurso dos
países emergentes e dos pobres.
Um especialista em problemas do ensino superior, o jornalista Flávio Vianna aponta alguns dos rumos que, após a
sôfrega expansão das universidades particulares, uma inevitável reforma não pode se furtar. Afinal, é preciso saber
para onde e como seguir adiante com a política do ensino
superior, diz ele. Já Marcello Simão Branco destrincha duas
décadas da democracia incompleta da América Latina. Não
é pouco: são 20 anos sem ditadura. Mas essa democracia arrasta enormes problemas institucionais, econômicos e sociais que aumentam a insatisfação com o regime.
Há ainda outros textos neste número. A jornalista Clarice Chiqueto mostra os avanços do sistema de arbitragem e
mediação. O historiador Fernando Novais fala sobre nossa
formação como país. O jornalista Sérgio Praça prova por
que o Brasil, ao contrário do que se comenta, não é um
“parlamentarismo de fato”. Boa leitura e até junho.
Carlos Costa
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O recém-empossado presidente do Tribunal de Justiça de São Paulo
fala dos planos e das metas de sua gestão e garante:
“a força do judiciário está na moral de
seus juízes”
ENTREVISTA LUIZ ELIAS TÂMBARA
POR CARLOS COSTA
FOTOS TIANA CHINELLI
O
ficialmente empossado no dia 3 de fevereiro,
o 71º presidente do Tribunal de Justiça de São
Paulo relacionou, no discurso que pronunciou
na ocasião, os 15 pontos de seu plano de metas para este biênio. Um projeto de fôlego para
esse magistrado de longa trajetória (“37 anos dedicados à
toga”, diz ele), que convida o Ministério Público e a OAB a
contribuir na discussão de caminhos que aprimorem a eficiência do Judiciário. Luiz Elias Tâmbara não economiza
nem nos sonhos (“Nosso sonho é o novo e moderno prédio para abrigar o Tribunal de Justiça de São Paulo, em terreno desapropriado para esse fim há 30 anos, com área de
12 mil m², entre as ruas Tabatingüera e Conde de Sarzedas,
o que concorrerá para a revitalização do centro da cidade,
hoje bastante deteriorado”), como se verá nesta entrevista,
concedida por ele alguns dias antes da posse oficial.
diálogos&debates Falemos um pouco de sua trajetória.
Quando o senhor entrou na magistratura?
luiz elias tâmbara O meu encanto pela magistratura vem
ainda dos bancos escolares. Direcionei meu estudo para o
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curso clássico, pois já pensava em fazer direito e tinha o sonho de ser juiz de direito.
diálogos&debates Havia algum caso de juiz em sua família?
luiz elias tâmbara Não, minha família é de imigrantes italianos, meu avô era relojoeiro e joalheiro, meu pai trabalhava com ótica e gostava muito de música. Éramos quatro
irmãos, eu o terceiro. O irmão acima de mim fazia direito,
como eu, o mais jovem fez medicina. Então, me formei em
dezembro de 1965 e já participei do primeiro concurso que
se abriu, em maio do ano seguinte. Em setembro de 1966
era nomeado juiz substituto em Ribeirão Preto. Na época
não havia essa procura que há hoje, com quase 50 candidatos por vaga. Éramos 340 postulantes, fizemos apenas uma
prova escrita, aqui mesmo no tribunal, fomos aprovados
50 na fase escrita, e depois na oral 25. Comecei em Ribeirão Preto, ali trabalhei diretamente com o dr. Dalton Silveira Vita, um grande mestre, um exemplo de juiz. Ele foi meu
orientador e formador, pois naquela época não havia a Escola da Magistratura. A gente dependia muito do juiz com
quem se iniciava. Trabalhei também com o dr. Oswaldo da
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riências como os juizados itinerantes, a presença da Justiça no Poupatempo ou o CIC-Centro Integrado de Cidadania serão cuidadas com atenção na minha gestão. Vejo
com bons olhos a participação do Judiciário em todas essas
frentes, como no Poupatempo, onde a presença da Justiça
se caracteriza pela informalidade e pela rapidez. O anseio
de todos, hoje, é uma resposta rápida do Judiciário. Devemos descomplicar, simplificar ao máximo.
diálogos&debates No fundo, um dos problemas cruciais do
Judiciário é... a falta de fundos. Essa coisa de ser o primo
pobre dos três poderes.
luiz elias tâmbara E é exatamente isso o que ocorre com o Judiciário. Veja, fui visitar o presidente da Assembléia no dia
seguinte ao da minha eleição. Era minha primeira visita.
Fui lá para demonstrar a consideração e o apreço ao Poder
Legislativo de São Paulo, e também para deixar claro que
os poderes devem ser harmônicos. E isso rendeu o que vejo
como uma consideração do Legislativo, que foi a aprovação,
em regime de urgência, do projeto de Lei de Taxas Judiciárias, que é a lei das custas judiciais. Isso representará um
aumento da receita para o fundo de modernização do Tribunal de Justiça. Não deixou de ser um bom começo.
diálogos&debates Há algum projeto que pense em investir
na recapacitação e na melhora dos quadros humanos do
tribunal? Como cursos para os juízes, para os assistentes
judiciários e o pessoal administrativo? Há programa para
instalação de novas varas?
luiz elias tâmbara Sim, há um cronograma aprovado, e em
andamento, de abertura de novas varas. Temos um concurso para novos magistrados em realização e um concurso para escreventes. Quanto à capacitação, há o belíssimo
trabalho desenvolvido pela Escola Paulista da Magistratura, não apenas na formação inicial dos novos juízes, como
também na reciclagem dos conhecimentos dos juízes já na
carreira. Penso até que um dos critérios para aferir o merecimento deveria passar por esses cursos oferecidos pela Escola da Magistratura. Quanto ao quadro de servidores, temos algumas idéias que queremos concretizar, como a capacitação dos diretores, cursos de administração pública,
para melhorar a gestão do serviço, e também cursos para os
servidores, no sentido de melhorar o atendimento ao público, um aspecto vital na prestação do Judiciário.
diálogos&debates Para realizar tudo isso, dois anos de Presidência não são um prazo muito curto?
luiz elias tâmbara Veja, a magistratura tem um regramento
próprio, que passa pela Constituição e pela Lei Orgânica da
Magistratura, que rege os cargos e mandatos do Tribunal.
Claro que tudo isso pode ser rediscutido agora, com a reforma do Judiciário, que está na pauta do dia, com o Congresso falando em reforma do Judiciário – e nós do Judiciário também pensamos que há coisas a serem mudadas,
entre elas o período dos mandatos, ao menos a possibilidade de reeleição.
diálogos&debates O senhor não vê um toque oportunista nesses comentários sobre reforma do Judiciário e sobre controles externos da magistratura? Ou até no desejo, de um ministro do atual governo, de enquadrar o Ministério Público?
luiz elias tâmbara Há uma dificuldade do Executivo de conviver com um Judiciário independente e forte. Tudo seria
muito mais fácil se o Judiciário estivesse nas mãos do Executivo. Na realidade, elegeu-se o controle externo da magistratura como um tema recorrente – mas até agora ninguém definiu ou arriscou quem comporá esse controle externo. Vejo problemas, pois deveria ser um conselho nacional, e isso implica um novo órgão, com pessoas de dentro
e de fora, com as dificuldades na composição e no ônus:
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“E por que não se fala num Conselho Ético da República,
que fiscalize os três poderes? Ou será que não há no
Executivo ministro com comportamento não ético?”
cargos, despesas, para que esse conselho possa funcionar. E
quem comporá esse conselho? Haverá incompatibilidade,
por exemplo, em que advogados o componham. Pois como
poderá um profissional militante – com causas e processos em andamento – participar desse controle? Porque há
incompatibilidade entre o patrocínio de causas e a fiscalização do comportamento do juiz. Isso é sério e parece que
ninguém pensou nisso. E por que não se fala em um Conselho Ético da República, que fiscalize os três poderes? Ou
será que no Executivo não há ministro nenhum fazendo
algo ou tendo comportamento não ético? Não é que não
existam mazelas no Judiciário. Há, claro, mas é uma parcela restrita, como esse escândalo na Justiça Federal, sob
o foco da mídia com a operação denominada Anaconda.
Mas são apenas três juízes – sendo que um deles já estivera afastado sob suspeita de comportamento não compatível. Mas isso é pontual. Querer generalizar a partir disso
é injusto. A maioria dos juízes tem dedicação, comportamento modelar.
diálogos&debates Como o senhor vê o atual movimento que
acontece em Portugal, em que advogados, promotores e juízes se juntam no debate e na discussão em torno do que
eles chamam de “a cultura judicial comum”?
luiz elias tâmbara Penso que é algo que começamos a gestar aqui, pois estamos todos envolvidos com a prestação jurisdicional. Advogados, promotores, juízes, nos empenhamos em aplicar e exercer e ministrar a justiça. O advogado
que pede, o juiz que decide, o ministério público que move
ações, temos de nos unir na discussão dessa cultura comum,
aproveitar a oportunidade e pensar que caminhos quere-
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mos para a nossa atuação. Estamos iniciando nossa gestão
com a busca desse convívio com a Ordem dos Advogados
e com o Ministério Público de São Paulo – o tripé para a
realização de fóruns para a discussão dos nossos problemas, antecipando-nos a ingerências externas, com esse clima de paixão que vivemos hoje, com a Magistratura sendo exposta na mídia, de modo geral. Se o Judiciário tivesse
se antecipado em apresentar propostas, hoje não teríamos
de nos sujeitar a reformas que vêm de fora, pensadas por
quem não conhece o Judiciário, por quem não sabe como
é a vida de um juiz.
diálogos&debates Abrimos espaço para sua mensagem aos
juízes de nosso Estado.
luiz elias tâmbara Sou um juiz em final de carreira, alcancei
muito mais do que imaginava conseguir na vida como magistrado. Meu ideal era ser juiz. Chegar a desembargador foi
um prêmio. Não aspirara tanto. Depois disso, ter sido eleito para o cargo de corregedor geral no biênio anterior, e
agora para a Presidência do Tribunal, entendo como o coroamento de minha carreira, uma carreira de 37 anos só de
toga, de magistratura. Há 37 anos presto serviço à Justiça
de minha terra. Trinta anos a mais do que Jacó serviu a Labão, pai de Raquel, serrana bela. Se possível fosse, serviria
outros 37 anos para manter aquilo que sempre foi nosso: a
austeridade e a probidade moral, a honra e a dignidade para
trabalhar, repetindo com o triste pastor que “mais valera se
não fora para tão grande amor tão curta a vida”. Desejo aos
juízes que mantenham acesa a chama do ideal, pois dos juízes depende a eficácia do nosso tribunal. A força de nosso
Judiciário está na força moral de seus juízes. 
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Silva Ferreira, com quem mantive um relacionamento muito bom. Quando cheguei aqui ao Tribunal ele era desembargador. Trabalhamos juntos, aprendi muito com ele.
diálogos&debates Depois desse começo em Ribeirão Preto,
qual foi sua primeira comarca?
luiz elias tâmbara Fui promovido para Nhandeara, 100 km
pra lá de São José do Rio Preto, e ali durante as férias forenses eu era designado para responder pela circunscrição de
Votuporanga, acumulando Fernandópolis, Jales, Santa Fé
do Sul e General Salgado. Era um mês de muita correria.
De Nhandeara fui promovido para Guaíra, perto de Barretos, comarca que faz divisa com Minas Gerais. Em Guaíra permaneci pouco mais de um ano. Acabei beneficiado
pela reforma do Código Judiciário, de agosto de 1969, que
reduziu as entrâncias de quatro para três, e assim, quando estava na segunda entrância, fui promovido direto para
a última, em Presidente Prudente, onde instalei a terceira
vara da comarca. Fui juiz ali de dezembro de 1969 até julho
de 1974. Foi a cidade onde parei mais, amadurecendo nos
conhecimentos jurídicos. Retomei o magistério, agora no
superior, pois quando estudava direito dei aulas de língua
portuguesa no Senac. Agora, juiz em Presidente Prudente,
passei a lecionar Direito Civil e Processo Civil. Dei aulas ali
até 1978 – mesmo após a transferência para a capital, em
1974, continuei dando aula lá.
diálogos&debates Qual foi sua missão, já na capital?
luiz elias tâmbara Vim para cá e instalei a 7a Vara da Fazenda
do Estado, onde permaneci até 1978, quando fui convocado para o Tribunal de Justiça como substituto de segundo
grau. Em dezembro de 1979 fui promovido para o Segundo Tribunal de Alçada, ficando ali até minha posse como
desembargador, em 1o de junho de 1983. Vou completar
agora em junho 21 anos no Tribunal de Justiça. Mas ainda
continuei com o magistério e os estudos jurídicos. De 1976
a 1992 lecionei Processo Civil no curso de direito da FMU.
Em 1992 encerrei a carreira no magistério.
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diálogos&debates O senhor foi eleito corregedor geral no
biênio anterior. Isso foi importante em sua formação, para
conhecer as entranhas do poder que agora preside?
luiz elias tâmbara Sim, pois acabei conhecendo bem alguns
meandros. Além desse cargo, que é de direção superior do
Tribunal, pois o corregedor integra o Conselho Superior da
Magistratura, participei de várias comissões. Fui conselheiro
do Conselho Supervisor do Juizado de Pequenas Causas; integrei as Comissões do Regimento Interno; de Organização
Judiciária, e a de Jurisprudência do Tribunal. Na comissão
de Jurisprudência, fui designado supervisor da biblioteca do
Tribunal, o que me deu uma visão bastante abrangente da
parte administrativa, dos problemas concretos do Tribunal.
Na Corregedoria, esse conhecimento se ampliou, pois tive
uma visão do Judiciário em todo o Estado de São Paulo.
diálogos&debates Com essa visão privilegiada, quais serão as
grandes pautas de sua atuação à frente do Tribunal?
luiz elias tâmbara Me preocupam dois problemas que considero os mais graves. O primeiro é a estagnação da carreira. O outro é o volume de trabalho. Começo considerando
a estagnação. Veja, o magistrado faz uma carreira, e toda
carreira implica um percorrer de degraus, e o juiz se entusiasma e se entrega mais à carreira com a perspectiva de ser
promovido, de escalar esses degraus. Mas não é isso o que
se vê hoje. Em meu tempo, como acabo de rememorar, fui
substituto um ano e meio, em um ano fui para a primeira
entrância, mais outro e já estava na segunda, em três anos
era juiz de terceira entrância. Após mais quatro anos, vim
para a capital já na entrância especial. Fiquei nessa condição de 1974 a 1979, indo a seguir para o Segundo Tribunal
de Alçada Civil. Hoje um juiz pára muito mais tempo em
cada um desses degraus, sem ver perspectivas de carreira.
Acho isso um problema grave.
diálogos&debates Sem falar no viés do critério de antiguidade e de merecimento, em que acaba se impondo apenas
o primeiro, não?
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“Estamos empenhados em levar a Justiça aonde o cidadão está, lá na
periferia, e não fazer o cidadão subir as escadarias do Palácio da Justiça”
luiz elias tâmbara Sim, essa é uma questão complexa, mas
o certo é que são dois os critérios e nem sempre se conta
apenas com o da antiguidade. Talvez faltem critérios mais
objetivos para aferir o merecimento, pois muitas vezes são
casos não comparáveis, dado que as sentenças passam por
diferentes órgãos de segundo grau, mas é o Conselho Superior da Magistratura quem dirá do merecimento. Mas o
segundo problema sério é o volume de serviço que temos
hoje, tanto em primeiro como em segundo grau, embora
seja mais crítico no caso do segundo grau, dos processos
que se acumulam aqui no Tribunal. Há excesso de recursos
processuais, que são usados com total generosidade pelas
partes, enfim, já sabemos...
diálogos&debates O excesso de processos não é conseqüência também da falta de informatização?
luiz elias tâmbara O Tribunal paulista, por ser de longe o
maior judiciário do Brasil, ficou parado no tempo nessa
questão da modernização. A informática só deslanchou
mesmo na gestão precedente à minha, a do desembargador Nigro Conceição. Agora prevemos a conclusão do processo de informatização em rede de todo o Tribunal de São
Paulo até o final deste ano. É claro que com a informatização haverá simplificação, a comunicação será mais fluida, o
juiz terá acesso à jurisprudência do tribunal, com mais de
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600 mil acórdãos que podem ser consultados pelos juízes,
e essa é uma das prioridades da minha gestão.
diálogos&debates E quais são as outras?
luiz elias tâmbara Elas têm também a ver com o descongestionamento dos tribunais, e aqui passamos por uma experiência que tem dado certo e funciona, que é a mediação
em segundo grau. Eram recursos que aguardavam distribuição ou que estão chegando ao tribunal e oferecemos às
partes a possibilidade de reabrirem para uma fase de conciliação e de acordo. Isso começou como um projeto piloto e tem sido tão bem-sucedido que o estamos convertendo em uma realidade definitiva, como setor permanente do
Tribunal de Justiça. Pretendemos implantar ainda a mediação no primeiro grau.
diálogos&debates Que é onde até caberia mais...
luiz elias tâmbara Sim, até porque a mediação em primeiro
grau aliviaria o volume de trabalho dos tribunais – não só
o de Justiça, mas os de alçada, o primeiro e o segundo. As
metas são, portanto, a informatização, o mais rápido possível, e a mediação em segundo e primeiro grau, além dos
juizados especiais de pequenas causas. Estamos empenhados em levar a Justiça aonde o cidadão está, lá na periferia,
e não fazer o cidadão subir as escadarias do Palácio. Expe-
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um projeto
para o brasil
2004: 50 anos da morte do ditador Getúlio Vargas;
40 anos do começo da ditadura militar. Sem projeto,
um projeto para o Brasil ou um projeto do Brasil?
N
Ilustração Kipper
o século XX o Brasil ficou marcado, em meio
a outros períodos de exceção, por duas longas
ditaduras. Uma, ditadura pessoal, quase um cesarismo; a outra, ditadura mais modernizada,
com um chefe de plantão, trocado de tempos
em tempos. Duas ferozes tiranias, não devidamente apuradas pelo Direito, que se distinguiram em vários aspectos,
além de serem ditadura pessoal ou não.
Um desses aspectos diferenciadores das duas épocas de
tirania declarada está no fato de que a primeira, a ditadura pessoal de Getúlio Vargas (1930-1945), desenhou um
arremedo de projeto nacionalista para o Brasil, ao passo
que a ditadura militar (1964-1985) consumou a eliminação da possibilidade de um projeto para o Brasil, por via
política e estatal.
Os eflúvios da ditadura militar estão por aí até hoje, porque depois dela se manteve a confrontação entre o furor de
destruição do arremedo de projeto varguista (pelos governos posteriores aos generais) e a denodada defesa desse arremedo por parte de seus remanescentes.
Portanto, nunca se concretizou o projeto do Brasil e do
seu povo, mas tentou-se montar um arremedo de projeto
para a Nação, de cunho conservador, elitista e antiliberal,
E N S A I O
POR EVALDO VIEIRA
contra quem se bateram valorosamente os governos militares e vêm-se batendo também valorosamente os governos
depois deles, igualmente elitistas e antipopulares.
Este ano de 2004, no qual transcorrem 50 anos da morte de Getúlio Vargas e 40 anos do início do chamado “movimento militar”, instaurando a ditadura das Forças Armadas no Brasil, revela que não existe um projeto histórico do
Brasil, criado pelo povo, em seu aspecto de povo, que vive
em um território há séculos e possui um modo próprio de
sentir, agir e pensar, sem versões dadas por elite de qualquer espécie.
A chamada revolução de 1930, que deu o poder a Getúlio Vargas, agiu intensamente contra os trabalhadores em
geral, operários ou não, dominando-os por meio da repressão policial, do Tribunal de Segurança Nacional e do Ministério do Trabalho, controlador das organizações dos trabalhadores e justificador desse controle. A legislação trabalhista consagrada por Vargas, sugerida na Constituição de
1934 e efetivada na Constituição outorgada de 1937, também descumprida nas promessas desse texto, ligou o trabalhador ao direito do Estado, de modo passivo e subserviente, produzindo um único conjunto formado de empregado,
empregador e Estado.
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Não se deve aprofundar aqui a apreciação clara da origem e do ideário dessa legislação social, porque já foi motivo de pesquisa em diversos estudos, inclusive em meu livro
Autoritarismo e Corporativismo no Brasil (São Paulo, Cortez Editora, 1981). O denominado Estado Novo de Vargas
(1937-1945) aumentou a repressão aos trabalhadores recalcitrantes, até pelo extermínio deles, avivando ao mesmo
tempo a propaganda das benfeitorias do governo, avançando no procedimento de combate aos desobedientes – algo
que existia antes de 1930, mas foi aperfeiçoado depois dessa
data. Com isso, o Estado Novo esmerou-se em elevar a dependência dos trabalhadores em relação ao Estado.
Os líderes operários, os trabalhadores, os rebeldes em geral, nacionais ou estrangeiros, foram castigados usualmente com tortura física, com prisão, com expulsão, com exílio
e toda sorte de arbitrariedades, tudo
protegido pela censura da imprensa e pela desinformação quase completa por parte da população. O chefe da nação, como Vargas era conhecido, apresentava-se perante a sociedade
brasileira na condição de homem da
ordem, oferecendo paz social internamente e afastando o país externamente das calamidades mundiais.
O Brasil seria um lugar aprazível
em meio a tantos conflitos políticos,
econômicos, sociais e militares existentes lá fora. Os representantes do comércio e da indústria, e mais os ideólogos do regime, homenagearam Getúlio Vargas, ano a ano, em seu aniversário, como “uma das
personalidades de maior relevo no cenário mundial”. A crítica e a oposição ao varguismo não foram caladas de todo,
mas, de outra parte, muitos setores da oligarquia agrária e
da burguesia urbana trocaram favores com o governo da
ditadura, tão ou mais ativamente que na Primeira República. Vargas lutou contra as oligarquias que não o apoiavam e beneficiou generosamente as oligarquias que lhe foram servis.
Foi um tempo em que, apesar das dificuldades da agricultura (por causa dos baixos preços internacionais na exportação dos produtos primários, como por exemplo o
café), o comércio e a indústria cresceram significativamente, alcançando lucros excepcionais. Ainda assim, as indústrias duraram pouco, pois se em 1920 existiam 13.336 delas,
em 1940 restavam apenas 2.078 firmas, sobrevivendo pouco
mais 15,58% das empresas criadas antes de 1919, segundo
informações contidas nos censos de 1920 e de 1940.
Em particular, nos últimos anos do Estado Novo, de
1942 a 1944, apareceram visivelmente a inflação, as filas, o
câmbio negro, os baixos salários, o alto custo de vida, o enriquecimento instantâneo e a emergência de novos ramos
da burguesia. Porém lucros excepcionais ampliaram-se a
tal ponto que o governo getulista considerou-os abusivos e
escandalosos, taxando parte desses lucros e intitulando-os
de “lucros extraordinários”.
Se as coisas corriam desse modo internamente, nas relações internacionais Vargas teve de enfrentar o pagamento
da dívida externa, muito elevado em proporção aos recursos nacionais. Adiando tal pagamento de 1934 para 1938,
Getúlio anunciou que não iria saldar a dívida externa, na
mensagem de final de ano de 1937, explicando a decisão:
“...suspendemos o pagamento da dívida externa, por imposição de circunstâncias estranhas à nossa atividade. Não significa isso renegar compromissos. Foi-se a época em que a escrituração das nossas obrigações se fazia no estrangeiro, confiada a bancos e
intermediários; não mais nos impressiona a falsa atitude filantrópica dos
agentes da finança internacional, sempre prontos a oferecer soluções fáceis e
vantajosas. A inversão de capitais imigrantes é, sem dúvida, fator ponderável do nosso progresso, mas não devemos esquecer que ela
se opera diante das reais possibilidades remunerativas aqui
encontradas, contrastando com a baixa dos juros nos países
de origem. Compreende-se, assim, o motivo por que, se não
hostilizamos o capital estrangeiro, também não podemos
conceder-lhe outros privilégios, além das garantias normais
que oferecem os países novos em plena fase de crescimento”. Portanto, Vargas mantinha-se entre a invocação nacionalista e a insolvência do país.
Semeado na década de 1910 principalmente por Alberto Torres, cultivado por Oliveira Vianna e outros na década de 1920, o nacionalismo recebeu forte impulso nos
anos de 1930, como ocorreu em toda a América Latina. De
modo geral, o nacionalismo dizia respeito à nacionalização da economia e à limitação da iniciativa estrangeira no
Brasil. O Estado Novo exibiu um nacionalismo sem orientação definida, incerto, mais para atender às necessidades
do momento e acompanhar tendências anteriores. Não foi
incomum a nacionalização de empresas estrangeiras, endi-
O Estado Novo exibiu
um nacionalismo sem
orientação definida,
mais para atender às
necessidades do momento
e tendências anteriores
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vidadas e equipadas com material antiquado, que tinham
funcionado desde o início do século XX, haviam conhecido
bons lucros e na ocasião se acham decadentes.
A Constituição de 1937, outorgada pelo ditador, determinava em seu artigo 145 que “só poderão funcionar no
Brasil os bancos de depósito e as empresas de seguro, quando brasileiros os seus acionistas”. O Ministério do Trabalho,
em portaria de 10 de fevereiro de 1938, assegurava os direitos concedidos nas licenças anteriores, não obstante só
autorizava a abertura de “sociedades cujo capital pertença
a pessoas de naturalidade brasileira”. A mesma Constituição de 1937 concentrou na União o direito de legislar sobre
energia e água, ratificando ainda normas anteriores.
O Conselho Técnico de Economia e Finanças, de 1937,
deu parecer acerca da siderurgia, depois confirmado pelo
Conselho Federal do Comércio Exterior. Segundo esse parecer: 1) não será conveniente aos interesses nacionais a exploração e comércio de minério por particulares estrangeiros ou empresas pertencentes a estrangeiros, e possuidores
das minas, no regime atual de exportação; 2) a nossa siderurgia, indústria básica para a nação, deverá ser estabelecida num grande centro de consumo e de distribuição de seus
produtos. Em 1938, o governo getulista criou a Comissão
Executiva do Plano Siderúrgico.
A nacionalização na ditadura Vargas aconteceu sobretudo por intermédio de organismos consultivos (conselhos
técnicos, para Oliveira Vianna), voltados ao exame de problemas específicos, sem competência para ocupar-se com
plano geral para o país.
São eles o Conselho Federal de Comércio Exterior, o
Conselho Técnico de Economia e Finanças e o Conselho
Nacional de Minas e Metalurgia. Com o advento da Segunda Guerra Mundial (1939-1945), foram criados outros órgãos consultivos, como a Comissão Reguladora do Abastecimento e da Produção, a Comissão de Defesa da Economia Nacional, substituída pela Coordenação da Mobilização Econômica. Com o final da Guerra, instalaram-se
o Conselho Nacional de Política Industrial e Comercial e a
Comissão de Planejamento Econômico.
A Constituição de 1937 igualou os crimes contra a economia popular aos crimes cometidos contra a segurança do
Estado. A Lei Contra a Economia Popular, decretada pelo ditador em 1938, estabelecia que “os crimes definidos nesta lei
são inafiançáveis e serão processados e julgados pelo Tribunal de Segurança Nacional”. Essa lei foi de modo geral rejeitada pelo comércio e pela indústria, tendo provocado nos anos
seguintes ao seu surgimento um alto número de prisões.
E N S A I O
O projeto nacionalista da ditadura de Getúlio Vargas
manteve a dependência dos países exportadores de matérias-primas, como o Brasil, em relação aos países industrializados. Ao longo da Segunda Guerra Mundial, tornaram-se
habituais os empréstimos de governo a governo, e os Estados Unidos passaram a influir mais ativamente nesse campo, na forma de colaboradores da participação do Brasil na
guerra. Tal colaboração consistiu particularmente no incentivo à exportação de matérias-primas, na venda de armamentos e no financiamento da construção da Companhia
Siderúrgica de Volta Redonda (RJ).
Vargas foi mais combatido depois da Segunda Guerra Mundial, ocasionando sua renúncia do poder da União
em 29 de outubro de 1945. A resistência ao getulismo e a
seu arremedo de projeto nacionalista para o Brasil cresceu
progressivamente durante a sua vida e depois de sua morte. Para evitar outra renúncia forçada, se ele suicidou em
24 de agosto de 1954, durante seu segundo governo, para
o qual fora eleito em 3 de outubro de 1950, com 48,7% da
votação total. Depois do suicídio, a herança varguista encontrou oposição, cada vez mais acirrada, de civis, de militares e da Embaixada dos Estados Unidos, constituindo
uma das pseudocausas do golpe de Estado de 31 de março de 1964.
Com esse golpe, João Goulart (Jango) foi afastado definitivamente da Presidência da República e transformado
em asilado político no Uruguai. Sua deposição foi explicada à população, dentre outros motivos, primordialmente em razão da premência de eliminar o varguismo. Isso
queria dizer, de modo especial, o arremedo de projeto nacionalista para o Brasil, edificado de 1930 a 1945 e de 1951
a 1954. Goulart fora ministro do Trabalho no segundo governo Vargas, até fevereiro de 1954 e como o mais importante sucessor dele, fora eleito vice-presidente da República em 1955 e em 1960.
Em 31 de março de 1964, por ocasião do golpe de Estado, João Goulart ocupava a Presidência da República desde 7 de setembro de 1961, substituindo Jânio Quadros, que
renunciara ao cargo em 25 de agosto daquele ano. Assim, o
arremedo de projeto nacionalista para o Brasil, originado
da ditadura pessoal de Getúlio Vargas, foi substituído pela
impossibilidade de projeto para o Brasil, por via política e
estatal, ao abrigo do golpe de 1964, que iniciou a ditadura
militar (1964-1985).
Desde logo, o Ato Institucional no. 1, editado em 9 de
abril de 1964 pelo chamado Supremo Comando Revolucionário, justificava-se: “Para demonstrar que não preten-
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diálogos&debates
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demos radicalizar o processo revolucionário, decidimos
manter a Constituição de 1946, limitando-nos a modificá-la apenas na parte relativa aos poderes do presidente da
República, a fim de que este possa cumprir a missão de restaurar no Brasil a ordem econômica e financeira e tomar as
urgentes medidas destinadas a drenar o bolsão comunista,
cuja purulência já se havia infiltrado não só na cúpula do
governo como nas suas dependências administrativas”.
O primeiro presidente da República oriundo das Forças
Armadas, marechal Humberto de Alencar Castelo Branco,
eleito em 11 de abril de 1964, declarou então à população
brasileira: “Defenderei e cumprirei com honra a Constituição do Brasil. Cumprirei e defenderei, com determinação,
pois serei escravo das leis do país e permanecerei em vigília para que todos as observem com zelo”. No entanto, ao
terminar sua gestão, em 1967, Castelo
Branco falava das vantagens na troca
da Constituição de 1946 pela Constituição de 1967: “A nova Constituição
coroa a alma da modernização institucional ao estabelecer regras para elaboração e votação do Orçamento, transformando o seu verdadeiro programa
nacional de trabalho”.
O governo de Castelo Branco prenunciou, às vezes de maneira branda,
muitas tendências da ditadura militar
que lhe seguiria. Quanto a estas tendências, chamam atenção a repressão e a arbitrariedade.
Apenas ao longo do governo castelista, que foi o primeiro
dos cinco governos militares, ocorreram 3.747 atos punitivos, isto é, mais do que três atos punitivos por dia. Entre
1965 e 1966, tal governo impôs três Atos Institucionais, 36
Atos Complementares, 312 Decretos-Leis, 19.259 Decretos,
além de 11 propostas de emendas constitucionais enviadas
ao Congresso Nacional.
Outra tendência marcante da ditadura militar, já anunciada na fase de Castelo Branco, foi o antinacionalismo, sintetizada na seguinte declaração desse presidente: “O nacionalismo se deturpou a ponto de se tornar disfarçado em favor dos sistemas socialistas”. E declarou ainda sobre a independência nacional: “A independência é um valor terminal.
Instrumentalmente, é necessário reconhecer um certo grau
de interdependência que é necessário levar a ponto de cercear contactos comerciais e financeiros com países de diferentes sistemas políticos e econômicos”.
A interdependência explicitou-se no “Acordo sobre Ga-
rantia de Investimentos entre os Estados Unidos do Brasil e
os Estados Unidos da América”, assinado em 1965 pelo Embaixador Juracy Magalhães e por David Bell, CoordenadorGeral da “Aliança para o Progresso”. Pelo Acordo, “o Governo do País Recipiente” aprovava projetos e atividades, e “o
Governo Garantidor” fornecia o investimento para eles. O
artigo III do Acordo prescrevia: “1. Se o Governo Garantidor efetuar um pagamento em sua moeda nacional a determinado investidor, em decorrência de uma garantia concedida em conformidade com o presente Acordo, o Governo do País Recipiente, observada a restrição do parágrafo
seguinte, reconhecerá a sub-rogação, operada em favor do
Governo Garantidor...” Além disso, estabelecia o artigo IX:
“... as disposições do presente Acordo, com respeito a garantias concedidas durante sua vigência, permanecerão em vigor pelo período de duração dessas garantias, o que, em nenhuma hipótese,
deverá ultrapassar, em 20 anos, a denúncia do Acordo”.
Mesmo decretado pelo Congresso
Nacional, voto contrário à ratificação
do “Acordo sobre Garantia de Investimentos entre os Estados Unidos do
Brasil e os Estados Unidos da América” apontava o privilégio aos investidores estrangeiros, o aumento da desnacionalização da indústria brasileira
e a permissão para o garantidor e o investidor fixarem arbitrariamente o montante do valor das
garantias. O otimismo nacional diminuía: no segundo semestre de 1967, 24.656 cartas recebidas pelo marechal Arthur da Costa e Silva, o segundo presidente indicado pelas
Forças Armadas, pediam o controle do custo de vida, o aumento de salários e perguntavam sobre a reforma agrária,
os problemas da educação, as deficiências do Banco Nacional de Habitação e da Previdência Social.
Após o fim da ditadura militar, em 1985, confirmou-se e
reconfirmou-se a impossibilidade de haver um projeto para
o Brasil, por via política e estatal, menos ainda um projeto
histórico do Brasil, destinado a seu povo.
Os governos posteriores à ditadura militar conviveram
com o endividamento interno e externo, e igualmente com
a inflação (ou, se quiser, com a hiperinflação). Tais governos
se convenceram, ou foram convencidos, de que somente
poderão enfrentar um e outra por meio do predomínio do
mercado, pela intensificação de sua competitividade. Necessitavam ser suprimidos o Estado intervencionista, car-
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Ilustração Kipper
Apenas ao longo do
governo Castelo Branco,
primeiro dos cinco
militares, ocorreram
3.747 atos punitivos,
mais do que três ao dia
torial e burocrático, parasitário, corporativo, apequenando
os servidores e os funcionários públicos, vistos como “marajás”, estes na versão do presidente da República Fernando Collor de Mello, eleito em 1989.
Em lugar da política e do Estado, colocaram-se a técnica, a economia e as finanças; em lugar da democracia e da
Constituição Federal de 1988, vicejaram o pragmatismo, a
economia sem teoria econômica. Enfim, vicejou a moedagem, por baixo da nomenclatura “estabilização monetária”,
com a promessa de gerar mais investimentos estatais nos
programas sociais.
Era preciso negar muito mais explicitamente o arremedo de projeto nacionalista de Vargas. A “superação da era
varguista”, sugerida por Fernando Henrique Cardoso no Senado Federal, antes de sua eleição para a Presidência da República, em 1994, converteu-se preferencialmente em grave
E N S A I O
situação social do que em liquidação do arremedo de nacionalismo construído por Getúlio Vargas.
Desindustrialização, desemprego avançando, endividamento interno e externo cada vez maior, rigor orçamentário destinado a pagar dívida interna e externa, maior dependência externa, clientelismo, conciliação constante, falso consenso. Esse é o panorama da atualidade no Brasil.
2004: cinqüenta anos da morte do ditador Getúlio Vargas; quarenta anos do começo da ditadura militar. Sem projeto, um projeto para o Brasil ou um projeto do Brasil? Eis
a questão! Como dizia Alexis de Tocqueville, o povo é soberano, mas vive na miséria. 
Evaldo Vieira, advogado e sociólogo, é doutor em Ciência Política pela USP
e professor titular da FEUSP. Foi professor titular na UNICAMP e na PUC/SP; autor de artigos e de livros, como Poder Político e Resistência Cultural.
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Rápidas soluções com poucos gastos: a
arbitragem e mediação mostram que é possível
agilizar o judiciário sem mudar a
POR CLARICE CHIQUETO
P
roblemas trabalhistas, quebra de cláusulas contratuais, partilha de bens e conflitos surgidos em
relações de consumo são alguns dos problemas
que têm sido resolvidos por arbitragem de maneira muito mais rápida e econômica do que a
oferecida pela Justiça Comum. Instituída pela Lei 9.307, de
setembro de 1996, a cláusula arbitral é uma das melhores
alternativas para desafogar o sistema Judiciário brasileiro.
Incluída em mais de 95% dos contratos internacionais,
segundo o advogado Jairo Saddi, coordenador dos cursos
de Direito do IBMEC Educacional, o uso da arbitragem tem
aumentado no Brasil. “Todos os contratos nacionais que
envolvem valores acima de US$ 100 mil já possuem essa
cláusula arbitral”, exemplifica. A Associação Brasileira de
Arbitragem (Abar) é outro exemplo. Surgiu em 1997 e, de
lá para cá, solucionou pouco mais de 12 mil procedimentos. Desses, aproximadamente 9 mil foram resolvidos desde
o ano 2000 – em 2003 o número foi de 3,5 mil.
“A arbitragem é a maneira mais rápida de a população
fazer sua própria reforma do Judiciário. Mas, infelizmente,
apesar do crescimento, ainda são poucas as pessoas, e até
mesmo advogados, que pensam em recorrer a ela para resolver conflitos”, afirma Felix Feichas, coordenador-executivo da Corte Brasileira de Mediação e Arbitragem Empresarial (CBMAE), uma das câmaras associadas à Confederação das Associações Comerciais e Empresariais do Brasil (CACB).
Na arbitragem, as partes escolhem uma câmara ou um
tribunal arbitral para administrar o caso. Em seguida esco-
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lhem os árbitros que irão, junto com as partes, buscar a solução do problema. Cabe aos envolvidos indicar os árbitros.
Podem entrar em consenso e indicar apenas um ou escolher
cada qual o seu e estes dois indicarem um terceiro, imparcial. Os árbitros são sempre especialistas no assunto abordado. Dependendo de cada caso, podem ser engenheiros,
médicos, arquitetos, advogados, psicólogos. Quando não há
consenso entre as partes na escolha, as câmaras possuem listas de especialistas capacitados a arbitrar.
Com a mesma força de uma sentença judicial, uma
das principais vantagens da solução arbitral é a rapidez.
De acordo com a própria Lei nº 9.307, os casos devem demorar no máximo 180 dias, salvo se as partes decidirem
em conjunto que o processo precisa de mais tempo para
ser resolvido. “A celeridade é, sem dúvida, um dos pontos
importantes. Em média, não levamos mais do que 70 dias
para alcançar uma solução, sendo que 99% dos casos trabalhistas são resolvidos em apenas uma audiência de algumas horas”, afirma a conselheira administrativa da Abar,
Edilene Sorrente.
Segundo Feichas, os processos de arbitragem têm precisado, em média, de quatro a cinco sessões de uma ou duas
horas – o equivalente aos seis meses estipulados na lei –
para que a solução seja alcançada. “Não é comum, mas os
procedimentos podem levar mais tempo. Depende da negociação entre as partes. A lei é orientativa. Tivemos casos
resolvidos em apenas uma sessão e um que precisou de 14
meses para ser concluído, pois as partes exigiram pareceres
técnicos que demoraram”, explica.
A R B I T R A G E M
constituição
Atualmente existem mais de 100 câmaras de arbitragem
no país. Só o Conselho de Arbitragem do Estado de São
Paulo possui 95 associadas, e a CACB, 54 – algumas em comum. Felix Feichas conta que a CACB pretende ampliar a
arbitragem no país em 2004, consolidando uma rede nacional de câmaras que possam se relacionar e trabalhar em
conjunto. O objetivo é que cada Estado tenha, no mínimo, uma câmara ligada à Associação Comercial. “Apesar
do crescimento, a arbitragem ainda não é praticada em escala comercial no Brasil. São raras as câmaras que se autosustentam, a maioria precisa de suporte. Acredito que até
julho de 2005 alcançaremos esse objetivo e 2004 será fundamental para essa meta. Pretendemos dobrar o número
de associadas”, afirma.
Custos e honorários dos árbitros
O custo dos processos arbitrais varia muito, pois depende
do valor da causa discutida e da localização da câmara de arbitragem. Em todos os casos, duas taxas
fixas devem ser pagas: a de registro, que
costuma variar entre 0,5% e 5% do valor da causa; e a de administração, que
vai de 0,01% a 5%, normalmente. Negociações que envolvem grandes empresas e valores mais altos são atingidas
pelas menores percentagens.
Além dessas taxas, as partes devem arcar com o custo dos árbitros,
que costuma girar em torno de 4% a 5% do valor da causa.
Em cidades do interior, uma pequena causa custa em torno de R$ 220,00; em cidades grandes, como o Rio de Janeiro e São Paulo, o gasto com o mesmo processo pode chegar a R$ 2.500,00.
Na Abar, por exemplo, em ações que envolvem valores até
R$ 10 mil é cobrado pelas duas taxas 5% do valor total da
causa; acima disso, o mínimo cobrado é de R$ 800,00 e cada
caso é analisado pela diretoria da associação. Já os honorários
dos árbitros são de 5% do valor da causa, sendo que o piso
é de R$ 1.500, 00. No Caesp, as causas voltadas para as áreas
cível e comercial variam de R$ 1 mil a R$ 15 mil reais, e os
árbitros, em média, de R$ 50,00 a R$ 200,00 a hora.
Na CBMAE, as pequenas e microempresas têm desconto
de 50% e o preço também varia de acordo com o valor da
causa. A taxa de registro vai de 3%, para causas até 15 mil, a
0,01%, para aquelas acima de R$ 145 milhões. Já a administrativa vai de 5% a 0,05%. O valor dos árbitros varia muito, de acordo com a localidade e com
a especialização de cada um.
Fogem desses numerários os processos trabalhistas, que, como envolvem causas de valores baixos, são mais
baratos. Na Abar, por exemplo, o custo
total de um procedimento trabalhista é de R$ 300,00, incluindo taxas e
árbitros. E os associados da Associação Brasileira de Lojistas de Shoppin-
Todos os contratos
nacionais que envolvem
valores acima de U$
100 mil já possuem a
cláusula arbitral
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diálogos&debates
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gs, graças a um convênio firmado entre as duas entidades,
pagam ainda menos: R$ 240,00. No Caesp, o valor de uma
trabalhista varia de R$ 300,00 a R$ 1 mil, também incluindo o pagamento dos árbitros.
Já custos mais altos só são cobrados pelas câmaras que
trabalham quase exclusivamente com causas internacionais. “São as câmaras mais elitistas, que resolvem problemas de grandes corporações internacionais e negócios que
envolvem causas acima de R$ 1 milhão. O Centro de Mediação da Câmara de Comércio Brasil-Canadá, por exemplo, cobra no mínimo cerca de R$ 30 mil por caso. Mas ela
arbitra em causas que envolvem valores altíssimos, de grandes empresas com problemas em relacionamentos internacionais. Normalmente os valores são até cobrados em dólar
nessas câmaras”, explica o presidente do Caesp e diretor-financeiro do Conselho Nacional das Instituições de Mediação e Arbitragem (Conima), Cássio Teles Ferreira Neto. No
conselho paulista, em 2003, foram resolvidos 12 procedimentos envolvendo grandes empresas e causas acima de R$
1 milhão – a maioria gerada por problemas de interpretação de cláusula contratual.
Existem também as câmaras e os tribunais arbitrais que
trabalham com preços mais baixos por serem subsidiadas
por associações ou sindicatos, como o Tribunal Arbitral de
São Paulo (Tasp), subordinado à Junta Comercial do Estado (Jucesp) e à Associação Comercial de São Paulo (ASCP).
Criado em junho de 1998, o Tribunal é uma associação civil mantida basicamente com os recursos arrecadados pelos serviços prestados e possui atualmente 40 árbitros. Desde sua fundação, o número de casos atendidos cresceu de
27 processos atendidos no primeiro ano, passou para 2.600
em 2002 e para mais de 2.000 até agosto do ano passado. O
preço cobrado é de R$ 150,00 de taxa de registro, mais 6%
do valor da causa, para árbitros e demais gastos processuais.
Edilene acredita que a arbitragem no Brasil é barata
se comparada com o Poder Judiciário. “O brasileiro perde muito na Justiça Comum por causa de todos os trâmites processuais, e ainda corre o risco
de ter seus bens penhorados”, afirma.
“Com arbitragem, um caso que envolva de R$ 1,5 milhão a R$ 2 milhões vai custar cerca de R$ 50 mil.
Na Justiça estatal, para resolver um
caso como esse, a pessoa, além de pagar mais, pode ter uma casa que vale
R$ 5 milhões penhorada por R$ 1 mil,
por exemplo”.
Mediação: forma de evitar a demora
Além da arbitragem, a mediação também começa a ser
bastante usada como forma alternativa de resolução de conflitos. Nela as partes chegam juntas, com o auxílio do mediador, à solução do caso – diferentemente da arbitragem,
em que, apesar do debate entre partes e árbitro, é este quem
decide, como se fosse um juiz.
Entretanto, como ainda não foi regulamentada por lei,
ela é usada informalmente. “Este ano, cresceu muito no Caesp a busca pela mediação. Apesar de não ter validade de
sentença judicial, em 90% dos casos as partes cumprem o
estabelecido”, afirma Ferreira Neto. O advogado conta também que, muitas vezes, após chegarem a um consenso por
meio da mediação, as próprias partes pedem para que a
decisão seja convertida em sentença arbitral para que, homologada pelo juiz, tenha validade judicial e não possa ser
descumprida.
No Caesp, os casos de mediação são resolvidos, em média, em apenas um mês e possuem custos mais baixos que
os de um processo judicial ou arbitral — em torno de R$
300 no total. A maioria dos casos que buscam a mediação
no Caesp, cerca de 75%, é ligada ao direito de família. Direito indisponível, ele não pode ser solucionado por meio
da arbitragem, que não abrange casos desse tipo. “Os problemas que podem ser resolvidos por arbitragem são os
que envolvem valor econômico, como os de herança. Mas
mesmo assim ela é pouco usada para problemas de família. Dos quase 13 mil casos que solucionamos com arbitragem desde 1999, menos de 30 foram direcionados à família”, diz Ferreira Neto.
Segundo Feichas, houve este ano um crescimento de
40% a 50% nos casos de mediação da Cbmae. “Com ela, as
relações comerciais e sociais são preservadas, pois as partes
chegam juntas a um acordo. Geralmente tentamos primeiro a mediação. Quando não dá certo, partimos para a arbitragem”, esclarece. O coordenador-executivo entende que as
duas soluções se complementam. “Se as partes querem celeridade e manutenção da relação amigável, buscam a mediação, que pode
levar de algumas horas a dois meses.
Se existe desavença e não há muito
esforço para manter a relação, mas
ambos querem celeridade, procuraram a arbitragem. Já quando a variável tempo e a relação entre os envolvidos não são importantes, busca-se a
Justiça estatal”.
Com a mesma força de
uma sentença judicial,
uma das principais
vantagens da solução
arbitral é a rapidez
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diálogos&debates
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A R B I T R A G E M
Existem três textos de projeto de
lei que objetivam regularizar a mediação. Um é o Projeto de Lei 4.827/
98, da deputada federal Zulaiê Cobra
(PSDB-SP), já aprovado pela Comissão de Constituição e Justiça e de Redação da Câmara; outro é um anteprojeto formulado por membros do
Instituto Brasileiro de Direito Processual (IBDP) e da Escola Nacional de
Magistratura (ENM); e o terceiro é o texto do anteprojeto
do Conima. Os dois últimos estiveram em consulta pública este ano e ainda estão no Tribunal de Justiça. Todos esperam avanços na reforma do judiciário para saber qual o
próximo passo a tomar.
para 3% este ano”, conta Ferreira Neto.
Nas câmaras associadas à CACB,
dos cerca de 14 mil casos resolvidos
em 2003, 90% foram casos de mediação. A maioria, trabalhista, seguida de
comercial e familiar. “A arbitragem é
mais direcionada para os casos de relação comercial e empresarial, que em
geral envolvem consórcios de pequenas e microempresas que estão com
problema com uma grande corporação por quebra contratual. Os setores que mais se utilizam dela são os de metalurgia, automobilística, industria mecânica, vestuário, telecomunicação e indústria pesada, ou seja, segmentos que usam
muito a terceirização dos serviços”, afirma Felix Feichas.
Ferreira Neto ressalta que a área pública (empresas estatais), mesmo com números ainda pouco significativos,
começou a usar as resoluções alternativas este ano, principalmente a mediação. “Elas preferem a mediação à arbitragem porque nesta a decisão é de um terceiro e nem sempre
o órgão público aceita”, explica. Ele acredita que, em 2004,
a arbitragem vai crescer muito em três áreas: médica, trabalhista e do consumidor.
Na médica, o Caesp já firmou este ano um convênio com
o hospital paulistano Nove de Julho e está negociando com
outros seis. “A arbitragem vai levar mais agilidade e credibilidade às relações entre hospitais, pacientes e administradoras de planos de saúde. Isso porque a função de resolver os
conflitos caberá aos próprios médicos, pesquisadores e especialistas de cada área, o que dará mais segurança aos envolvidos”, afirma Ferreira Neto. 
Com arbitragem, um
caso que envolva de
R$ 1,5 milhão a R$ 2
milhões vai custar
cerca de R$ 50 mil
Áreas mais procuradas
Tanto na mediação como na arbitragem, a área mais
procurada para resolução alternativa de conflitos é a trabalhista. Só no Caesp e na Abar ela foi responsável por cerca
de 4,5 mil procedimentos em 2003, de um total de 7 mil.
Depois dela, merecem destaque as áreas de direito do
consumidor, comercial e imobiliário. No Tribunal Arbitral
de São Paulo, por exemplo, as questões comerciais, como
contratos e cobranças, são 40% do total, e as imobiliárias,
30% – as trabalhistas, outros 30%. No Caesp, as áreas cível e comercial representam juntas 30% das 4 mil causas
atendidas pelo conselho paulista este ano. “No Brasil, as
áreas cível e comercial são a maior demanda, com quase
de 90% do total. A de consumidor também está crescendo, mas ainda é baixa. No Conselho, saltou de 1% em 2002
PRIMEIRA PÓS-GRADUAÇÃO DO PAÍS EM ARBITRAGEM ABRE EM 2004
A partir do ano que vem, advogados e especialistas de outras áreas que atuem em processos de arbitragem terão a possibilidade de se especializar na área por meio de um curso de
longa duração. O Ibmec Educacional vai oferecer, em 2004, a
primeira turma de pós-graduação em Direito Arbitral do país.
Com duração de aproximadamente 18 meses e 360 horas, o
curso começa em maio e conta com 35 vagas.
“Nosso objetivo é capacitar e treinar advogados e demais
árbitros. Mas não pretendemos ser uma câmara de arbitragem. Queremos aprofundar o tema ao máximo para formar
profissionais capacitados”, afirma o coordenador-geral dos
cursos de direito do Ibmec, o advogado Jairo Saddi.
A R B I T R A G E M
O curso do Ibmec pretende formar profissionais capacitados a atuar inclusive em processos de arbitragem internacional. Para tanto, professores estrangeiros vão ministrar aulas específicas sobre o tema, abordando casos concretos de
conflitos internacionais. O curso será aprofundado na área do
consumidor, na processual e na trabalhista e terá custo total
de aproximadamente R$ 16 mil.
São parceiros do Ibmec no projeto a norte-americana
Duke University, o Centro de Mediação da Câmara de Comércio Brasil-Canadá e a Câmara de Mediação e Arbitragem
de São Paulo da Federação das Indústrias do Estado de São
Paulo (Fiesp).
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diálogos&debates
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berlioz, o compositor escritor
Só agora, após os 200 de seu nascimento, a França se penitencia
do tratamento que concedeu a um de seus maiores compositores,
que, para sobreviver, escrevia críticas e crônicas
POR JOÃO MARCOS COELHO
M
“
inha vida é um romance que me interessa
muito.” A frase do compositor Hector Berlioz bem poderia ser apenas mais uma “boutade” a respeito dos seus ruidosos romances, que movimentaram Paris durante boa
parte do século XIX; ou então suas peripécias para conseguir mostrar ao público ambiciosas obras sinfônicas que
exigiam enormes contingentes de músicos; ou, até, de suas
sempre presentes dificuldades financeiras, que o acompanharam por toda a vida.
Mais do que mero “bon mot”, entretanto, o romance de
sua vida consumiu-lhe parte substancial de seu tempo e
acabou revelando um escritor talentoso que vai muito além
do interesse musical ou técnico. Numa vastíssima produção, ele constrói, à la Balzac, um magnífico painel da vida
cultural não só francesa, mas européia e russa (Tchaikovski,
por exemplo, assistiu-o em São Petersburgo).
Provavelmente Berlioz escreveu tanto quanto compôs.
Colocados lado a lado, as partituras de obras-primas do
romantismo musical, como a Sinfonia Fantástica, A Condenação de Fausto, Romeu e Julieta, Beatriz e Berenice, A Infância de Cristo, o Requiem, Benvenuto Cellini e o portentoso Os Troianos, equivalem ou são ultrapassadas, em volume, pelas 600 páginas de Memórias, às 10 mil páginas de
Correspondência, em dez volumes, 7 mil páginas de crítica
musical distribuídas em sete volumes, o manual O Maestro
e o fundamental Tratado de Instrumentação e Orquestração.
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E, além de tudo isso, o compositor se dedicou à ficção propriamente dita, com Les Soirées d’Orchestre, Le Voyage Musical e Les Grotesques de la Musique.
O “eu” em primeiro lugar
Nascido em 11 de dezembro de 1803, Hector Berlioz deveria ter sido médico segundo os desejos da família. Mas,
ao chegar a Paris, aos 18 anos incompletos, troca a faculdade pela música após assistir a uma representação da ópera Ifigênia em Tauride, de Gluck (1714-1787). Imediatamente, o responsável pela reforma do melodrama – que se
pode resumir como retorno aos padrões estéticos gregos,
realçando-se a função expressiva da orquestra – transformou-se em seu ídolo máximo, ao lado de Beethoven (“o
rei dos reis”) e de William Shakespeare, que inspirou boa
parte de suas obras.
A frase do autor de O Mercador de Veneza que abre as
Memórias é sintomática: “A vida é uma sombra efêmera: um
grotesco comediante que, enquanto dura seu papel, movimenta-se e gesticula no palco do teatro e emudece depois
para sempre; é um conto narrado por um idiota, estrepitoso e com fúria, que não faz o menor sentido”.
Sem dúvida, essa santa trindade formada por Gluck, Beethoven e Shakespeare – talvez seja adequado acrescentar
Goethe, pois Berlioz tinha verdadeira obsessão pelo Fausto – guiou-lhe os passos na vida e na obra. Um itinerário
onde o seu “eu” megalomaníaco chocava-se o tempo todo
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com a realidade exterior. Tanto que,
daí em diante, conforme abundantes
registros nas memórias e na correspondência, Berlioz começou um verdadeiro calvário pessoal e profissional.
Aluno no Conservatório de Paris, detestou Luigi Cherubini (1760-1842),
que acabara de assumir a direção da
escola. Ridicularizou cruelmente sua
pronúncia nas Memórias, como, por
exemplo, “Zé ne veux pas, zé ne veux pas” (o tom é de uma
sinceridade espantosa, pois o compositor passou os manuscritos ao amigo virtuose do piano e compositor húngaro Franz Liszt pedindo-lhe a publicação póstuma). E arrumou o primeiro de uma série de poderosos inimigos que
travaram de todo jeito suas pretensões.
Concorreu (e foi recusado três vezes) ao Prix de Rome,
bolsa de estudos que concedia uma estadia de dois anos na
Villa Medicis, em Roma, a jovens compositores franceses.
Na quarta, escreveu a cantata de Sardanápalos, bem ao gosto dos juízes que odiava – conseguiu a bolsa, mas descartou
90% da obra. Tentou inutilmente, ao longo da vida, obter
cargos que lhe dessem segurança econômica: a direção da
Orquestra de Concertos do Conservatório de Paris, a direção da Ópera de Paris e até um posto de professor no Conservatório. “A França está descartada de meu mapa musical”, desabafou quando se transferiu por um tempo para
Londres. “País de cretinos [onde] tudo está morto, exceto
a autoridade dos imbecis.” Metternich, o todo-poderoso do
Império Austro-Húngaro, convidou-o para reger a Capela
Real de Viena; até Nova York acenou com um contrato supervantajoso, mas Berlioz demorou anos para se convencer
de que seu destino era ser endeusado fora de seu país. Paganini, o endiabrado virtuose do violino, ajoelhou-se publicamente diante de Berlioz e afirmou alto e bom som: “Beethoven está morto, só Berlioz pode revivê-lo”.
Dezenas de viagens distribuídas ao longo de seus 65 anos
de vida comprovam a tese de que a França jamais aceitou
um de seus maiores compositores. Berlioz cativou audiências da Itália à Alemanha, da Inglaterra à Rússia, incluindo Riga e Moscou, além de São Petersburgo, sem contar cidades como Praga, Viena e Budapeste. Por incrível que pareça, esse recalque com relação ao compositor só agora é
parcialmente reconhecido, em pleno ano de 2003, quando
se comemoram os 200 anos de seu nascimento. Os franceses – autoridades culturais, orquestras e salas de concerto, e até a imprensa – penitenciam-se do tratamento per-
verso que o país concedeu a Berlioz.
Dois exemplos flagrantes: a melhor
biografia do compositor foi escrita
pelo dublê de jornalista e musicólogo inglês David Cairns e foi editada
primeiro em inglês (o primeiro volume em 1989, o segundo em 1999). Só
agora, com apoio oficial, os dois volumes que totalizam quase 2 mil páginas chegam ao leitor francês. E, afronta grave, também nas gravações os campeões defensores de
Berlioz são ingleses: os maestros Colin Davis, em primeiro lugar, o maior berlioziano da atualidade, já registrou em
disco mais de uma vez a integral de suas obras; e John Eliot
Gardiner, praticante da chamada música historicamente informada, aquela feita com instrumentos de época e levando em conta pesquisas musicológicas.
Liszt e Richard Strauss, que também escreveram muitos
poemas sinfônicos).
As semelhanças, nesse caso, não são mera coincidência.
O enredo da Fantástica é o seguinte: um jovem músico apaixona-se por uma mulher que “reúne todos os encantos do
ser ideal”. Sob efeito do ópio, os delírios da paixão – descreve-se aqui o primeiro e mais notável movimento da sinfonia, “Rêveries et Passions” – encarnam numa “idéia fixa”
cuja melodia identifica a mulher amada. A célebre “idéia
fixa” perpassa toda a sinfonia. Reaparece na valsa do segundo movimento, “Um Baile”; perturba a doçura da “Cena
Campestre”; surge na “Marcha para o Suplício” como “um
derradeiro pensamento de amor interrompido pelo golpe
fatal” (aqui nosso herói sonha que matou sua amada); finalmente, em “Sonho de Uma Noite de Sabá”, a idéia fixa
assume o status de “ária de dança ignóbil, trivial e grotesca”, no meio de um sonho onde o desafortunado músico
se vê numa cerimônia de Sabá das bruxas que se desenrola em seu próprio funeral. Não por acaso, a Sinfonia Fantástica é a mais popular e emblemática obra de Berlioz – e
ocupa um lugar privilegiado como uma das obras-primas
sinfônicas do romantismo musical.
O cerco a Harriet já completava três anos quando a sin-
Para conquistar a atriz
Harriet Smithson, ele
compõe a que é talvez
sua autobiografia musical,
a Sinfonia Fantástica
CLÁSSICOS
O amor nem sempre é lindo
Ninguém como Berlioz levou mais a sério suas paixões
e as entranhou em sua criação musical. E provavelmente ninguém as descreveu com maior empenho. Shakespeare, por exemplo, não era bem visto em Paris quando, em
1827, o jovem compositor assistiu a algumas representações
de suas peças na capital francesa, a cargo de uma trupe inglesa. Foi amor duplo à primeira vista, avassalador, pelo
dramaturgo e pela atriz irlandesa Harriet Smithson. “Chego agora ao maior drama da minha vida”, diz ele à página
83 do primeiro volume das Memórias. “Assisti à primeira
representação de Hamlet no Odeon. Vi Harriet Smithson
no papel de Ofélia (...). O efeito de seu prodigioso talento,
ou melhor, de seu gênio dramático, em minha imaginação
e em meu coração, só é comparável à emoção que me fez
sentir o poeta de quem ela era digna intérprete. Nada mais
posso acrescentar.” Berlioz espalha por praticamente todos
os cafés de Paris sua paixão, declara-se publicamente a ela,
envia-lhe uma carta propondo casamento. A recusa o leva
a tomar veneno.
Não desiste. Cerca-a de todas as maneiras. E imagina
a estratégia ideal, irrecusável, para conquistá-la. Compõe,
então, uma sinfonia que é praticamente uma autobiografia
musical. Chama-a de Sinfonia Fantástica e coloca o subtítulo “Episódio da Vida de um Artista”. Faz publicar na imprensa parisiense um texto explicando passo a passo cada
um dos cinco movimentos. Esse “credo” da música romântica é o primeiro e quem sabe melhor exemplo de música
de programa do século XIX (com seguidores ilustres como
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fonia estreou em 1830. E ainda assim ela resistiu. Só capitulou mesmo outros três anos depois. Mas então já estava
gorda, era alcoólatra, sofria de depressão. Berlioz, no entanto, casou-se com ela assim mesmo.
O “imbroglio” sentimental em que se transformou sua
vida sentimental levou-o a manter, nos anos 1850, uma
fogosa e carnal paixão pela cantora Maria Recio (“miava como duas dúzias de gatos”). E, em sua última década
de vida, Berlioz reencontrou Estelle, a sua paixão de puberdade. Do espírito à carne, e de volta ao espírito. Estelle já era avó. “Adoro sentar-me ao lado dela, contemplá-la
fazendo tricô, pois ela faz tricô, apanhar seus óculos, pois
ela usa óculos...”
A cidade ideal
As 10 mil páginas de crítica musical iniciada na década
de 1830 significaram o sustento do compositor, a quem nenhum órgão do governo dava um emprego decente. “Trabalho como um negro”, escreveu em 1835, ano em que fazia crítica musical simultaneamente para quatro jornais e
revistas parisienses. Seu longo depoimento nas Memórias
vale ser citado: “Permaneci em Paris, quase exclusivamente
ocupado em meu ofício, não diria de crítico, mas de cronis-
Tertúlia musical: Liszt, ao piano, toca Beethoven para Berlioz e Czerny, tendo à sua direita o violonista Ernst. À esquerda, Kriehuber, autor do desenho.
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ta, o que é muito diferente. O crítico (supondo-o homem
honrado e inteligente) só escreve se tem uma idéia, se quer
esclarecer uma questão, combater um sistema, se quer censurar ou elogiar. Então, sobram motivos que considera reais para expor sua opinião, para distribuir a censura ou o
elogio. O infeliz cronista, obrigado a escrever sobre tudo o
que cai em sua seção, só precisa cumprir a tarefa que lhe é
imposta; freqüentemente não tem a menor opinião sobre os
assuntos que se vê forçado a tratar; esses assuntos não provocam nem sua cólera nem sua admiração. Mas deve comportar-se como se acreditasse em sua existência, como se
tivesse um motivo para lhes dar sua atenção, como se devesse tomar partido, pró ou contra”.
Recusando-se, portanto, a agir como escriba de aluguel, a serviço deste ou daquele interesse, em geral pouco ou nada confessáveis, Berlioz acumulou uma montanha de inimigos na
França – e até fora dela. Não hesitou,
por exemplo, em criticar a superficialidade da música de Liszt – logo Liszt,
um dos raros defensores de suas obras
em toda a Europa.
Assim, exilado em seu próprio país, amargurado e ressentido, Berlioz recorreu algumas vezes à ficção para extravasar o que um crítico francês chamou de “ardor napoleônico”. Entre esses escritos está um muito curioso, intitulado “Euphonia ou a cidade musical”. Em pouco mais de 40
páginas, ele faz o que se poderia chamar de “music-science-fiction”, pois projeta no século 24 a cidade ideal, onde os
músicos e a música determinariam o dia-a-dia, a estrutura
formal – toda a vida de seus habitantes.
Euphonia fica na Sicília, no século 24, e é governada pela
música. Xilef, personagem que pode ter sido tomado de empréstimo a Félix Mendelssohn (1809-1847), é compositor
e “prefeito das vozes e dos instrumentos de cordas”; Shetland, também compositor, é “prefeito dos instrumentos de
sopro”. Entre as personagens femininas estão Mina, uma
cantora dinamarquesa, e sua criada Fanny. Lá os compositores têm total poder e estão libertos de qualquer preocupação material. As mulheres são todas cantoras ou criadas.
Xilef passeia pela cratera do Etna (o vulcão estava extinto,
e sua cratera transformara-se num belo lago). “Arte, natureza e liberdade”, escreve Jacques Amblard. “O paraíso. (...)
Berlioz sonha fazer de sua vida uma arte total e onisciente,
onipotente, do mesmo jeito que uma criança sonha viver
num mundo inteiramente povoado de brinquedos.”
Na cidade ideal, as festas religiosas deixaram de determinar o calendário. Agora, as festas musicais são as mais importantes. Os compositores são endeusados e entronizados. Gluck e Beethoven, naturalmente, possuem lugar de
honra nesse panteão.
De volta ao presente real, Berlioz encerra, em 1º de janeiro de 1865, suas memórias com estas palavras: “Qual dos
dois poderes pode elevar o homem até as alturas mais sublimes, o amor ou a música? É uma grande questão. Acredito, porém, que se pode dizer o seguinte: o amor não pode
dar uma idéia do que é a música, mas a música, sim, pode
dar uma idéia do que é o amor... Por que separar uma da
outra? São as duas asas que possui a alma. Vendo de que
modo alguns entendem o amor, e o
que buscam nas criações artísticas,
involuntariamente penso sempre nos
porcos, que com seu ignóbil focinho
chafurdam a lama entre as mais belas flores, para encontrar as trufas que
tanto adoram. Mas tratemos de não
pensar mais na arte... Estelle! Estelle!
Agora poderei morrer sem amargura
e sem ódio”. 
“O amor não pode dar
idéia do que é a música,
mas a música, sim, pode
dar uma idéia do que é o
amor”, escreveu Berlioz
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uma reforma
anunciada
A sensível e sôfrega expansão das universidades particulares em
anos recentes coloca autoridades, mantenedores e estudantes
diante de questão inescapável: para onde e como seguir adiante?
POR FLÁVIO VIANNA
O
número é inédito na educação superior brasileira: mais de meio milhão de diplomas de graduação entregues em 2003. Para muitos dos estudantes, uma tímida comemoração se mescla à
consciência de falta de perspectivas no mercado
de trabalho. De olho neles, analistas e agentes do setor lembram com preocupação um fato inevitável. No final deste
ano, uma leva renovada de graduados, mais numerosa do
que a anterior, irá também deixar a faculdade, numa seqüência natural para um sistema movido por sensíveis taxas
de crescimento. A expansão das universidades particulares,
aumento da inadimplência, novos cursos, mais e mais vestibulandos: são evidentes os sinais de que o ensino superior caminha a passos largos mas carece de ampla revisão a
respeito de que rumos tomar. A movimentação de entidades e autoridades do setor para um debate abrangente teve
início, com ares de urgência, na troca da administração federal, no início do ano passado, quando surgiu com mais
força, por razão da despedida do ex-ministro Paulo Renato Souza da pasta da Educação, a reflexão sobre o que deve
vir agora pela frente.
Sob o governo de Fernando Henrique Cardoso, o ensino
superior despertou para a demanda por vagas na univer-
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sidade. Há hoje, segundo Censo da Educação Superior de
2002 (o mais recente realizado pelo Inep-Instituto Nacional
de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira, autarquia responsável por dados estatísticos referentes à educação nacional), 1.637 escolas espalhadas pelo país, entre públicas e privadas, e elas abrigam 227.884 mil professores e
3,47 milhões de alunos matriculados em cursos de graduação presencial. Entre 1997 e 2002, o número de escolas e
matrículas cresceu nada menos que 181,8% e 178,8%, respectivamente – uma marca espantosa. Foi um período de
predominância da iniciativa privada, que apresentou uma
taxa de 209% de expansão. “O ensino superior como está
hoje é muito desigual, tendo como jóias da coroa os bons
cursos de mestrado e doutorado, dignos de qualquer país.
Mas tais jóias vêm dentro de uma casca podre e regida por
regulamentos absurdos e disfuncionais. Além disso, o setor
público é homogeneamente muito caro e heterogeneamente bom. As dez melhores universidades superam em valor o
que custam. Mas muitas outras têm custos elevados e pouquíssima qualidade. O setor privado é vibrante, dinâmico e
igualmente heterogêneo. Vem crescendo e se modernizando
muito rapidamente. Oferece um ensino de qualidade média
a um terço do custo das universidades públicas, cujo ensino,
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Aluno que trabalha ou operário que estuda?
À falta de recursos para investir na universidade pública, o governo de Fernando Henrique Cardoso chamou para
perto a iniciativa privada, de modo a evitar um gargalo no
ensino superior. “No Brasil, o crescimento acanhado do ensino público por falta de verbas em razão dos acordos feitos com o Fundo Monetário Internacional [FMI] ensejou
um crescimento enorme do ensino privado. Mas não foi o
ensino privado apenas que cresceu. O crescimento ocorreu
dentro de uma deliberada política do Ministério da Educação de fazer com que a iniciativa privada pudesse atender à
demanda que não era atendida pelas universidades públicas”, observa o deputado Gastão Vieira (PMDB-MA), presidente da Comissão de Educação da Câmara dos Deputados.
“Eu acho que o ensino privado tem um papel importante.
Acima de tudo, ele é barato e cria faculdades, universidades, centros de ensino, com o dinheiro que vem da iniciativa privada, não do governo. Vamos imaginar se o governo
teria condições de bancar as inúmeras universidades particulares como as que foram criadas no país. Portanto, não
sou contra o ensino privado e penso que, neste momento,
ele cumpre um papel importantíssimo, o de atender à demanda de milhares e milhares de jovens brasileiros”, observa o deputado. Naturalmente, a abertura acelerada de novas escolas e cursos, ainda que sob supervisão do MEC, que
implementou sistemas de avaliação e acompanhamento do
ensino, gerou conseqüências marcantes, e o que se prega
hoje é a necessidade de uma reforma universitária.
Nesse sentido, dois pontos são colocados com maior
insistência: financiamento e autonomia universitária. “É
preciso mais verba para a educação. No governo anterior,
foi aprovado que 7% do Produto Interno Bruto seria destinado a esse setor, decisão que foi vetada pelo presidente Fernando Henrique Cardoso. No momento, investe-se
apenas 4%”, aponta o presidente da
União Nacional dos Estudantes, Gustavo Petta. “Acreditamos também que
é preciso ter um controle social do ensino privado, criando regras de qualidade para esses cursos, já que 70% dos
estudantes são matriculados nessas escolas e 88% das instituições são particulares. É claro que não é possível todo
mundo estudar na escola pública, pois existe uma demanda crescente. Por isso, seria importante também ampliar o
crédito para estudantes”, reforça Petta. “Existem mensalidades fora da realidade brasileira, que é essa de desemprego
alto. Enfim, são várias barreiras para pagar uma faculdade e
a inadimplência pode chegar aos 30% e 40%. O presidente
Luiz Inácio ‘Lula’ da Silva prometeu beneficiar 480 mil estudantes durante seu mandato, mas ainda estamos muito
longe disso. Apenas 70 mil receberam crédito para estudar
este ano”, aponta o presidente da UNE.
A própria Comissão de Educação da Câmara dos Deputados se dedica ao estudo de medidas viáveis para o surgimento de novas linhas de crédito ao ensino superior, como
destaca o seu presidente. “O alto grau de inadimplência é
discutido, a comissão tem uma enorme preocupação com
a questão do financiamento, tem tentado formas alternativas de financiar o ensino superior por meio da utilização
do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço [FGTS] ou de
recursos que a Caixa Econômica Federal recebe para administrar o Fundo de Garantia, a Bolsa-Escola, enfim, outros programas do governo. Mas, infelizmente, nós ainda
não sensibilizamos suficientemente o governo no sentido
de que ele encare esse problema como um grande desafio”,
afirma o deputado Gastão Vieira.
Arthur Roquette de Macedo, membro do Conselho Nacional de Educação (CNE), acrescenta ao debate: “Na verdade, existem várias propostas para melhorar o financiamento ao aluno e às instituições, principalmente ao aluno.
É evidente que o que está aí é insuficiente. Não atende às
necessidades do país, da sociedade, dos alunos e das instituições. Propostas como a do uso do FGTS são importantes, porque a maioria do alunado é composta por trabalhadores. Na verdade, no Brasil, ocorre uma situação interessante. Não temos praticamente a figura do aluno que
trabalha, o que temos em maior percentagem é o trabalhador que estuda. Portanto, a oportunidade de utilização do
FGTS constitui um avanço. Outra possibilidade é a utilização de parte dos recursos dos depósitos compulsórios, que
existem em grande quantidade. Uma
outra condição que poderia ser colocada é a da remessa de lucros. Seria
muito interessante que corporações
internacionais, do setor ou não, destinassem um pequeno percentual de
suas remessas de lucros para financiar
o ensino, para dar bolsa para o aluno”,
conclui Roquette de Macedo.
No último Provão,
de 26 áreas avaliadas,
apenas odontologia e
fonoaudiologia tiveram
média acima de 50%
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em média, não é melhor, embora as de qualidade superior
quase sempre sejam públicas”, avalia o economista e especialista em educação Cláudio de Moura Castro.
Cristovam Buarque entrega cargo a Tarso Genro
Fora da esfera governamental, entidades representativas
do setor apresentam ao governo suas próprias avaliações do
cenário atual, com críticas e sugestões de medidas. A Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de
Ensino Superior (Andifes), por exemplo, deverá enviar ao
Palácio do Planalto um projeto para a reforma universitária, em divergência a documentos divulgados pelo Banco
Mundial e pelo Ministério da Fazenda em que são condenados os gastos do governo com as universidades federais.
Para a entidade, a reforma universitária deve promover basicamente o crédito estudantil e a autonomia, com a ressalva de que autonomia não deve ser confundida com soberania. Por sua vez, 20 intelectuais ligados ao Fórum de Políticas Públicas, instalado no Instituto de Estudos Avançados
da Universidade de São Paulo (USP), pedem um resgate do
“poder acadêmico” de cada universidade, o que, na prática,
significa dizer que recairá sobre o MEC e sobre as agências
de fomento à pesquisa um pequeno poder de decisão.
Na opinião de Antonio Carbonari Netto, reitor do Centro Universitário Anhangüera e vice-presidente do Sindicato das Entidades Mantenedoras de Estabelecimentos de
Ensino Superior no Estado de São Paulo (Semesp), “é importante distinguir que existe uma grande diferença entre
as relações jurídicas no Direito Público e no Direito Privado: os particulares agem com ampla liberdade, mas não têm
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poderes e prerrogativas, enquanto a administração pública é detentora de poderes e prerrogativas, mas não tem liberdade. Os particulares podem fazer tudo aquilo que a lei
não proíbe, a administração pública somente pode fazer o
que a lei determina”.
Qualidade de ensino: algo que se esfuma
Fator contrário a todas as idéias e propostas, a descontinuidade de políticas públicas dificulta a implementação
de um plano duradouro para a área. Essa é a critica de Ana
Maria Costa de Souza, chanceler do Centro Universitário
do Triângulo (Unit). Segundo ela, “vivemos, lamentavelmente, políticas de governo e não políticas de Estado. Mudou o governo, mudam-se as regras. Ficamos oito anos com
uma política que recebeu todas as críticas e agora pensamos
numa proposta para os próximos quatro anos. Ela não irá
se concretizar rapidamente. Toda essa discussão, essa revisão, requer muito tempo. Quando mudar o governo, vamos
começar tudo outra vez? O que está aí precisa ser revisto.
Agora, será que nada pode ser aproveitado, vamos descartar e começar do zero?” Para a professora, exemplos como
o do Exame Nacional de Cursos, o Provão, ultimamente em
destaque na mídia por causa da decisão do MEC de substituí-lo por um novo sistema de avaliação, devem chamar
a atenção de autoridades e da opinião pública para o ris-
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Petta: necessidade
de verba para
educação e linhas
de crédito
Cláudio de Moura
Castro: ensino
superior ainda
“muito desigual”
audiologia) registraram média geral acima de 50, numa escala de zero a 100.
Recentemente, a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB)
traduziu em números as críticas que faz à baixa qualidade
do ensino jurídico no país. De 215 cursos avaliados, segundo performance no Provão, a entidade aprovou apenas 28%
(60 cursos), distribuídos em 22 Estados e no Distrito Federal. No Estado de São Paulo, 12 escolas receberam selo de
qualidade. Na capital foram apenas três. “Nossa intenção é
que a OAB tenha poder de veto. Hoje, o que a Ordem faz é
emitir um parecer meramente opinativo, o que quer dizer
que mesmo que a Ordem seja contra a instalação de uma
nova faculdade, ela, por questões políticas, se instala. E isso
UNIVERSIDADE PÚBLICA PARA QUEM PRECISA
Os prejuízos do sucateamento da universidade pública, salvo os centros de pesquisa e tecnologia que sustentam status de referência no país, recaem justamente sobre
quem tem menos opções de escolha: o estudante de baixa
renda. Um estudo do Inep-Instituto Nacional de Estudos e
Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira mostra que universidades públicas, ao contrário do que os concorridos vestibulares fazem crer, concentram alunos mais pobres, em
todas as 26 áreas da graduação avaliadas pelo Provão de
2003. No caso de pedagogia, 44% dos estudantes dizem
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Os caminhos da mercantilização
Foto Divulgação
Foto Divulgação
F o t o A n t o n i o L a rg u i
co, precisamente na área de Educação, da descontinuidade.
Em um de seus primeiros pronunciamentos públicos à
frente do MEC, o ministro Tarso Genro deu mostras do que
argumenta a professora Ana Maria Costa de Souza. Ele chamou de contraditória a proposta do seu antecessor, Cristovam Buarque (demitido do cargo, por telefone, em viagem
ao exterior), de pagamento de mensalidades em universidades públicas. “A universidade é pública, os alunos não têm
de pagar mensalidade. Importa discutirmos quais são os
novos padrões de financiamento da universidade no contexto de um país absolutamente desigual, de um país que
tem excelências universitárias, que tem estruturas universitárias totalmente degradadas, que tem uma enorme diferenciação social que, em última análise, compõe esse quase
apartheid social que vive o país”, disse o ministro na abertura da 7ª edição do MEC Debate, ciclo de discussões mensais
promovido pelo ministério. Mais adiante, Genro demonstra a vontade de alterar mesmo o que ainda não foi testado
na prática, como é o caso do novo sistema de avaliação de
cursos, instituído em atropelo por Medida Provisória (MP)
– e ainda motivo de muitas dúvidas –, para substituir o Exame Nacional de Cursos, o Provão.
Aqui surge um dos fortes aspectos negativos do ensino superior, cujo tratamento deve merecer atenção especial por parte do governo e de mantenedores e gestores de
escolas. Como subproduto da impressionante expansão do
setor, a qualidade do ensino, em muitos casos, caiu para segundo plano. Apesar da cultura de avaliação, difundida com
a adoção do Provão, muitos cursos e escolas não conseguem
ratificar em conceitos a qualidade de ensino que tanto pregam em campanhas publicitárias de véspera de vestibular.
A última edição do Provão revelou que, das 26 áreas de conhecimento avaliadas, apenas duas (Odontologia e Fono-
ter renda familiar mensal de até R$ 720,00. Dos que cursam faculdades particulares, apenas 24% deram essa mesma resposta. Mesmo em cursos considerados caros, como
o de odontologia, a predominância se confirma na mesma
faixa de renda – 5% de formandos em escolas públicas e
2,9% no ensino privado. Na distribuição por Estado, o Maranhão concentra o maior taxa de graduandos de baixa renda (47,5%). No extremo oposto, o Distrito Federal registra
16,6% de participantes da pesquisa com renda familiar
mensal declarada de mais de R$ 7.200.
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Deputado Gastão
Vieira: propostas na
Câmara para o uso
do FGTS e da CEF no
crédito educativo
Roquete de
Macedo: alerta
contra a
mercantilização
do ensino
às vezes sem biblioteca, sem corpo docente, sem conteúdo
programático”, descortina o presidente da seção de São Paulo, Luiz Flávio Borges D’Urso.
“Que a educação de nível superior precisa crescer nós
sabemos, porque os números mostram isso. Agora, precisa
crescer com qualidade. Por outro lado, sabemos que existe
um número grande de vagas ociosas. Ou seja, já temos um
número elevado de vagas à espera de alunos, provocado
pela chegada das classes C e D, que não têm condições de
pagar as mensalidades. Se o crescimento maior é de escolas
particulares, nós só podemos melhorar o preenchimento
dessas vagas, para alunos que querem estudar e não podem.
Estamos falando do direito da população brasileira de ter
acesso à universidade. O que não podemos fazer é permitir
que isso ocorra de forma desordenada, da mesma maneira
que devemos rever os padrões de qualidade para verificar a
expansão”, propõe Ana Maria Costa de Souza.
De sua parte, Cláudio de Moura Castro, perguntado
sobre quais ajustes de curto prazo favoreceriam o sistema
como um todo, cita o antigo Provão. “Com ele, o ensino privado estava desnudado e sujeito à concorrência. Com as novas conjugações de força, os piores agentes do setor privado
se juntaram à esquerda mais bolorenta para criar uma avaliação inviável, um castelo de cartas, obscuro, difuso e sujeito a todo tipo de vícios e corrupções”, condena.
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Qualquer que seja o plano da reforma universitária, ele
deverá descrever o comportamento a ser assumido pelo
Brasil diante da tentativa de instituições norte-americanas, canadenses, sul-africanas e australianas de transformar a educação, no âmbito da Organização Mundial do
Comércio (OMC), em bem comercial. A pressão é grande para a abertura de mercado, o que, não é difícil prever,
deve implicar em novos riscos de perda de qualidade e desordem na regulação. “Eu não tenho dúvidas de que as empresas estrangeiras virão para o Brasil na área da educação
superior, comprando instituições ou fazendo associações. Já
existem algumas atuando no Brasil. Aliás, tenho chamado a
atenção para esse fato há cerca de cinco anos. Nesse contexto, outro aspecto importante pelo risco que representa é a
tentativa da Organização Mundial do Comércio de incluir
a educação como um dos setores de serviços catalogados
no GATT-Acordo Geral sobre o Comércio de Serviços”, esclarece Arthur Roquette de Macedo. A resistência na OMC,
até o momento, tem se dado no campo da ética, de como
lidar com a perspectiva da educação voltada abertamente
para o lucro. Afinal, educação trata de valores e do futuro
do país ou é um negócio como outro qualquer?
Macedo faz a distinção: “Na verdade, sempre dissemos
que a instituição educativa é uma empresa e ela tem de ser
gerida como empresa. Evidentemente, é uma empresa que
apresenta características distintas, por exemplo, das de uma
Mercedes-Benz, de um McDonald’s. O compromisso social
de uma instituição de ensino é distinto, é maior. Envolve
peculiaridades que estão acima dos compromissos de qualquer outro setor da economia. Além do compromisso social, é preciso levar em conta que a ética também é distinta. Além disso, a instituição está formando recursos humanos e deve ser avaliada e regulamentada pelo Estado. Logo,
precisa ser submetida a uma série de avaliações”.
Quanto à educação nos termos propostos na OMC, o
membro do CNE deixa um alerta. “Quando se mercantiliza a educação, da forma como propõem alguns países na
OMC, ou quando se entra em uma forma desvairada de fusões, aquisições, franquias e mercantilização de instituições,
você deixa de atender ao compromisso social, aos princípios éticos e à necessidade de a instituição de ensino ter
uma cultura regional. Leva-se à pasteurização da educação
com perda da identidade nacional”, encerra. 
Flávio Vianna é jornalista e escreve sobre problemas do ensino superior
brasileiro.
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O historiador Fernando Novais fala sobre os problemas da nossa formação como
capitalismo tardio, vê nos jovens valores positivos, mas deixa um alerta:
é preciso encontrar saídas
P
rofessor aposentado do Departamento de História da USP e lecionando no Instituto de Economia da Unicamp, Fernando Novais é do time
dos acadêmicos que deixaram lastro: sua principal obra, Portugal e Brasil na Crise do Antigo Sistema Colonial (1777-1808), é hoje um clássico da historiografia e revolucionou a maneira de estudar a colonização
portuguesa na América. Nela o autor cria um novo sentido
para a colonização ao entendê-la como parte de um sistema
mais amplo, o contexto de concorrência mercantil entre as
nações européias, e analisando o Brasil sob a ótica do processo de acumulação de capital. Novais também dirigiu a
História da Vida Privada no Brasil (Companhia das Letras),
coleção que interpreta diversos períodos históricos sob a
ótica da chamada Nova História, num diálogo com outras
disciplinas das ciências sociais. À luz de idéias apresentadas
no capítulo “Capitalismo Tardio e Sociabilidade Moderna”,
escrito em co-autoria com o economista João Manuel Cardoso de Mello (quarto volume da coleção), Fernando Novais concedeu a Diálogos&Debates esta entrevista:
diálogos&debates O que significa haver no Brasil um capitalismo tardio?
fernando novais Essa expressão foi usada pelo João Manuel
Cardoso de Mello em sua tese de doutoramento, e se refere ao capitalismo que nasceu tardiamente, quando o resto do mundo já estava desenvolvido. É o caso do Brasil. As
sociedades das antigas colônias não se formaram como as
sociedades burguesas da Europa, mas como núcleos escravistas ou sob trabalho compulsório. Só na segunda metade
do século XIX, as colônias se constituem como sociedades
capitalistas, quando o capitalismo já está desenvolvido no
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mundo todo. Uma idéia que está no capítulo que escrevemos na História da Vida Privada é que o verdadeiro capitalismo selvagem é esse nosso capitalismo tardio e periférico.
E é selvagem porque não se fizeram os abrandamentos da
social-democracia, não se desenvolveram políticas sociais,
como ocorreu ao largo do século anterior na Inglaterra, por
exemplo. E, nesse sentido, o capitalismo no Brasil é selvagem. O capitalismo central se desenvolveu sobre uma formação social anterior. Aqui, simplesmente se impôs, sem
encontrar a reação de uma formação social anterior, com
quem teve de negociar. A sociedade não participou de sua
formação, o regime de trabalho não era assalariado. O capitalismo nas sociedades avançadas teve de dialogar com
as estruturas que substituía e isso aparece na sociabilidade
– resultando quase em um compromisso: os valores tradicionais ainda conseguem impedir que a mercadoria seja o
único critério de sociabilidade. E isso ocorreu aqui, na periferia. Nós temos um capitalismo tardio e por isso não temos
uma sociabilidade moderna. Aqui é tudo mercadoria.
diálogos&debates É possível suavizar essa perversidade do
capitalismo tardio? Até que ponto esses problemas não têm
a ver com a falta de uma política que divida as riquezas?
fernando novais Essa pergunta é complicadíssima: se é possível? Não se pode ter uma resposta cientifica para isso. Afinal, essa é uma questão política e moral, então até acho possível que se possa suavizar essa perversidade. Pois se acreditarmos que a humanidade não tem solução, viramos todos
ENTREVISTA FERNANDO NOVAIS
POR FERNANDO ARAÚJO E CARLOS COSTA
FOTOS GUSTAVO SCATENA
suicidas. Então, quem tem um mínimo de moral na cabeça
acredita que sim. Em segundo lugar, especialmente no Brasil, diante das questões econômicas de dependência, não se
tem conseguido suavizar a perversidade de um capitalismo
tardio. Houve muitas experiências de buscar suavizar o capitalismo. Como no capitalismo semiperiférico da Rússia
czarista, por exemplo. E a experiência deu no que deu: um
desastre sob todos os aspectos, pois havia ali os valores morais da sociedade feudal, uma sociedade sagrada...
diálogos&debates Esse hibridismo de antigo trafegando com
o moderno?
fernando novais Veja, quando a modernidade e o mundo
moderno se desenvolvem, a partir do século XVI, com o Renascimento, até o século XVII, com a Ilustração, esses valores são destruídos pela luta de classes. Mas não são destruídos, assim, sem pôr nada no lugar. A sociedade burguesa
emergente teve de inventar valores, aceitar alguns compromissos, negociar, como pode ser a noção da república, do
bem comum. Já isso não ocorreu nas colônias. Eles vieram
aqui para explorar; trouxeram os escravos, o Brasil mandava tudo para Portugal, não se poupava para investir aqui.
Por isso Sergio Buarque de Hollanda dizia: “Nós nos sentimos uns desterrados em nossa própria terra”. Claro que
“A negociação ocorrida na metrópole não aconteceu nas colônias. Vieram
para explorar, trouxeram escravos, não se poupava para investir aqui”
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houve outras experiências e a História está em curso, mas
ainda não foi descoberto um modelo. Se você analisar como
a sociabilidade se desenvolve no Brasil, vê formas exacerbadas de mercantilização das relações sociais humanas como
não há em outros países de primeiro mundo.
uma taxa de 1,8% ou 2% ao ano, daqui a 50 anos a diferença entre nós e os EUA terá dobrado. Nós precisamos crescer 8% ou 9% ao ano para, em 50 anos, nos aproximarmos
dos EUA de hoje. Mas se eles crescem 4% e nós crescemos
2%, onde vai dar essa loucura?
diálogos&debates Uma contradição que as Estatísticas do Século XX, que o IBGE lançou no final do ano passado, mostra é que no Brasil os filhos melhoram seu padrão de vida
se comparados com seus pais. E esse é um dado positivo.
Então por que estamos em situação pior?
Fernando Novais Estamos em uma situação melhor, sob
certos aspectos – ou sob muitos aspectos. O problema é que
não se trata apenas de nível de vida. Sob esse ponto, puramente material, melhoramos. Mas aumenta a diferença entre aqui e o centro. Se continuarmos nesse ritmo de melhora, estaremos cada vez mais distantes dos países centrais.
Se o Brasil crescer, como tem crescido nos últimos anos, a
diálogos&debates Os EUA teriam que parar de crescer para
a gente chegar ao que são hoje?
fernando novais Exatamente! Mas a questão não é só numérica. Melhoramos o nível de vida, mas não o nível de relação – a criminalidade, os padrões de comportamento,
a crueza das relações sociais. O sujeito melhorou o nível
de vida em relação aos seus pais, como dizem os dados do
IBGE, mas não melhoraram as relações entre pais e filhos.
E o número de gente que precisa de psicanálise por causa
disso é enorme. Veja a qualidade da produção da arte, algo
difícil de avaliar. Nós vivemos, no Brasil das décadas de 50
e 60, uma explosão de criatividade na literatura e nas ar-
“Em que outro lugar sindicato de patrão e de empregado se juntariam
para formar uma quadrilha e assaltar a sociedade? Isso aconteceu aqui”
tes. E essa produção baixou nos anos 80 e os 90 não retomaram. Os grandes compositores não tiveram sucessores,
ainda nos referimos aos mesmos nomes, seja Chico Buarque ou Caetano Veloso.
diálogos&debates Do ponto de vista das artes plásticas também. Niemeyer continua uma referência. E isso não ocorre
apenas aqui. O México teve toda aquela explosão de Diego
Rivera, Frida Kahlo.
fernando novais Completamente! Não é por acaso que o México é o único país que teve revolução e revelou essa cultura diferente. O surto do Realismo Mágico na América Espanhola ocorreu nos anos 60 e 70. Mas também não há sucessores para García Márquez, Vargas Llosa, Julio Cortázar.
Não há, hoje, gente com 40 anos com o mesmo vigor. Quer
dizer: progresso material houve, progresso cultural correspondente, não. A arte não cresce, aí a gente pode começar
a delirar, pois a grande arte geralmente corresponde a momentos de decadência e de crise. Por exemplo, o barroco
mineiro: a mineração começou a entrar em decadência em
1750, e todas as grandes obras são posteriores a 1760. Ou
seja, as grandes obras são de períodos de decadência e não
de avanço. Aleijadinho é um artista da decadência.
diálogos&debates O vácuo moral, o esvaziamento das questões culturais se explicam muito por esse capitalismo que
aconteceu tardiamente? Pelo fato de não termos amadurecido a economia, embora tenhamos práticas de consumo
de nações desenvolvidas?
fernando novais É essa a idéia. Nós não pensamos o capitalismo tardio como um sistema econômico apenas, estamos
pensando um tipo de modo de produção em um sentido
mais amplo: num modo de vida que engloba relações econômicas, sociais, culturais. A característica é o desenvolvimento material não correspondendo ao desenvolvimento
de uma sociabilidade moderna. É um trabalho preliminar
que ainda não está claro. São problemas que procuramos
equacionar. Ver a correlação, por exemplo, que existe entre o tipo de religiosidade brasileira e o tipo de economia
que se formou.
diálogos&debates Uma idéia presente em seu livro é que instituições como a democracia, a escola, a igreja e a família
podem frear o funcionamento desregulado e destrutivo do
capitalismo. Como isso ocorre?
fernando novais Veja como isso funciona bem no capitalismo europeu. Há amarras antes mesmo de aparecer a social-
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democracia, que só chegou ao poder no século XX. Há forças morais que circulam e impedem a descrença total. No
Brasil, o ponto de partida do capitalismo, como eu disse,
não foi sobre uma outra sociedade anterior. Foi a sociedade escravista que apareceu combinada com o capitalismo.
Por exemplo, o que o Gilberto Freyre diz do catolicismo à
brasileira? O sujeito tem intimidade com os santos... Isso é
muito divertido, dá samba... mas é gravíssimo! Porque os
laços morais começaram a virar patacoada. Não quer dizer
que valores da sociabilidade têm que ser necessariamente
religiosos. Mas, se não é religioso, tem que ser alguma outra
coisa, algum outro valor. Na França, onde houve a Revolução Francesa, há os valores da República, por exemplo.
diálogos&debates Nesse terreno dos valores, como ficamos
neste tempo de cultura de massa?
fernando novais A cultura de massa é por definição utilitária.
O que é cultura de massa? Fazer aquilo que a massa quer.
Em vez de estabelecer um diálogo com a massa, quer manipular a massa: é preciso descobrir o que ela gosta para vender mais. Qual a diferença entre o artista que escreve um
conto e o sujeito que escreve o roteiro de uma telenovela?
O artista cria aquilo que acha bom. Claro que ele quer atingir o público. Ele quer que o público goste daquilo que ele
acha bom. Já o outro quer saber o que o público gosta para
criar o que fará sucesso. Se você parte do ponto de vista de
que o público é bom, tudo bem. Esse é um problema complicado: o povo é sempre bom. Tem uma bondade natural.
O público, eu acho, é ruim. Basta ver, pergunte para a massa
o que é bom: Guimarães Rosa ou Paulo Coelho? Preferem
Paulo Coelho. É esse o público. A cultura de massa transmite valores negativos sempre, por definição.
diálogos&debates Outro dia dava no jornal que o Brasil era
campeão de desigualdade social na América Latina. E o atual governo tem, ou pelo menos tinha, uma proposta social.
Como o senhor vê essa situação?
fernando novais É uma situação dramática. Para ser franco,
sobre o governo atual, estou em uma fase de perplexidade
na qual acho que permanecerei por muito tempo. Agora
entendo por que na literatura brasileira não houve o surto
do realismo mágico dos hispano-americanos. Porque a realidade aqui é mais mágica do que a ficção. Como entender coisas que nenhuma teoria explica? Como juntar sindicato de trabalhador com sindicato de patrão, formar uma
quadrilha e assaltar a sociedade, como fizeram aqui em São
Paulo o sindicato de donos de transportadoras de ônibus e
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de volta ao pó
Relançada no Brasil, obra de John Fante atrai
milhares às livrarias. Como explicar o sucesso de
um autor pouco conhecido?
o dos motoristas e cobradores. Nenhuma teoria da luta de
classes explica uma coisa dessas! Pois aconteceu aqui, uma
greve de motoristas e proprietários para boicotar a prefeitura. O mais incrível nesse panorama do novo governo é
que foram apenas uma meia dúzia de deputados e a senadora do PT que protestaram contra os rumos da atual administração. Só oito! De um PT que vivia reclamando! E
foram expulsos. Onde está a decantada coerência do PT? É
possível uma coisa dessas? A política econômica do Palocci
é a mesma do Fernando Henrique Cardoso, com a diferença de que é mal aplicada, pois para isso o governo anterior
tinha mais competência, ao menos.
diálogos&debates Do ponto de vista econômico, continuam
vigentes os ditames do Consenso de Washington?
fernando novais Sim, e são apenas quatro pontos. E agora
o PT repete a mesma receita. “Para haver desenvolvimento precisa: primeiro, abertura econômica; segundo, estabilização da moeda; terceiro, equilíbrio cambial; quarto, privatizações. Essas quatro políticas promovem o desenvolvimento”, rezava o Consenso de Washington. Dizem os críticos: isso realmente mantém a estabilidade nos preços, o que
é uma coisa boa. Só que não faz crescer a economia. Além
disso, aumenta o desemprego. O crescimento não passa de
2% e nós precisamos de 6% ou 7%. Além disso, aumenta o
desemprego. Em todos os países está acontecendo isso. Em
todos. Veja o Chile, apontado com um modelo, e pegue a
taxa de desemprego de lá: 12%. Isso é altíssimo! E em todos os países está acontecendo isso.
diálogos&debates Como o jovem interfere nessa realidade?
fernando novais O estudante universitário passou de uma
posição contestadora radical para uma postura conserva-
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dora radical. Estou me aposentando e acho extremamente
difícil conviver numa universidade onde o professor quer
fazer greve e o estudante não quer. Isso para mim é a quadratura do círculo. Nas últimas greves dos professores por
reivindicação salarial, os estudantes não deram apoio. E exigiam reposição de aula. Mas essa é uma atitude conservadora que se vê dos dois lados. Mas vejo ainda no jovem mais
resistência a essa mercantilização das relações do que nos
mais velhos. Também, se não acontecesse isso, aí não tinha
mesmo mais no que pensar. No entanto, ainda há uma mercantilização grande, por exemplo na escolha dos cursos, da
carreira a seguir. O estudante visa a aquilo que dá mais dinheiro, não pensa em sua realização pessoal, em uma vocação. Há certa desvalorização das profissões mais trabalhosas, que exigem maior dedicação e que dão “menos retorno financeiro”. Por outro lado, há alguns indícios positivos,
como são os jovens engajados em ONGs. Aquilo que falei
no início: se a gente acreditar que não há nenhuma saída,
então se mata. O difícil é identificar as saídas. A sociedade
deve ter sensibilidade para perceber essas saídas.
diálogos&debates Há quem diga que a atual geração faz política, mas de uma maneira diferente: discursam menos e
agem mais. O senhor concorda?
fernando novais Em alguns setores, sim, mas não tão generalizado. Existem as ONGs e existem outros movimentos sociais. Mas alguns movimentos caminharam na direção do estilo do antigo radicalismo político. Por exemplo,
o MST. O MST se encaminhou para um movimento político cujos objetivos deixaram de ser a reforma agrária, algo
que, de resto, é uma das dívidas da sociabilidade em nosso
país. Deixou de se preocupar com a reforma agrária para
ocupar outros espaços. 
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E
mbora tenha se tornado um negócio lucrativo a
partir dos anos 30, a literatura norte-americana
jamais gozou de unanimidade durante o século
XX. Fortemente atrelada ao cinema hollywoodiano, foi alvo constante de críticas que a classificavam como predominantemente comercial e rasa. O escritor
e crítico literário H. L. Mencken costumava explicar que os
livros produzidos nos EUA eram ruins porque “seus autores
não estavam contra o país”. Sua única ressalva dizia respeito a um jovem de origem italiana, de quem recebia, vez ou
outra, uma carta na redação da revista The American Mercury. “Há, sim, um bom escritor americano”, afirmava ele,
“e se chama John Fante.”
Nascido a 1909 em Denver, no Colorado, Fante foi um
dos primeiros escritores a contestar de modo eficaz o american way of life do pós-guerra. Em meio a um mar de prosperidade, contava a história dos “vencidos”, daqueles que por
alguma razão não se satisfaziam com uma geladeira ou um
carro de traseira rabo-de-peixe. Irônico e visceral, seu relato se tornou precursor de uma geração inteira de escritores cujos ícones são os beats Jack Kerouac, William S. Burroughs e Pier Paolo Pasolini. Influenciou também autores
aclamados ainda hoje como Raymond Chandler, Dashiel
Hammett e J. D. Salinger. Charles Bukowski, romancista
e contista de enorme sucesso, nunca escondeu que a lei-
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POR FERNÃO KETELHUTH
tura de Fante lhe serviu como estímulo para ingressar na
carreira de escritor. “Aquele era um homem sem medo da
emoção”, dizia.
Rumo a Los Angeles
Leitor voraz de James Joyce e Feódor Dostoiévski, Fante começou a escrever menos pelo gosto literário que pela
obstinação de sair da pobreza. Filho de um imigrante italiano, ganhou da mãe uma rígida educação católica da qual
nunca se desvencilhou. Freqüentou o colégio jesuíta até os
18 anos, quando obteve vaga na Universidade do Colorado. Lá permaneceu por pouco tempo. Em 1929, mudou-se
para Los Angeles, então o paraíso daqueles que, como ele,
buscavam alcançar fama e reconhecimento.
O começo não foi nada animador. Sem inspiração, Fante se viu obrigado a trabalhar como ajudante de garçom e a
residir em hotéis baratos. Após quase dois anos, conseguiu
sua primeira inserção em uma revista de literatura, a já citada The American Mercury. Por meio dela, conheceu Mencken, de quem se tornou amigo e confidente.
Apesar da relação estreita com o respeitado crítico, nunca ganhou afago. Seu livro de estréia, The Road to Los Angeles (Rumo a Los Angeles), finalizado em 1936, foi considerado subliteratura e acabou rejeitado pela editoras. A frustração não o impediu de tentar uma segunda vez: em 1938,
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conseguiu a publicação de Wait Until
Spring, Bandini (Espere a Primavera,
Bandini). A novela, indicada por dois
críticos do New York Times ao posto
de melhor do ano, relata a infância de
Fante por meio de seu alter-ego Arturo Bandini. Filho de um imigrante italiano, Bandini experimenta não
somente as agruras da miséria, como
também as provenientes de uma sociedade preconceituosa, imbuída do desejo de excluir todas as minorias situadas ao seu redor. Se hoje o tema parece recorrente, na época causou impacto. O New York Times
destinou dois artigos recheados de elogios ao livro. O Los
Angeles Times, três.
sível obter outros dois livros do autor sem grande procura. 1933 Was A
Bad Year (1933 Foi um Ano Ruim) e
Dreams From Bunker Hill (Sonhos de
Bunker Hill) foram editados no formato de bolso pela L&PM, do Rio
Grande do Sul. O primeiro, lançado
nos EUA apenas em 1985, conta a história de Dominic Molise, outro jovem
pobre de origem italiana que almeja
sucesso no beisebol. O último, posto no mercado americano três anos antes, traz de volta Bandini na pele de um roteirista de cinema em Hollywood.
Sonhos de Bunker Hill é também autobiográfico. Casado
com a poetisa Joyce Smart e tendo de sustentar quatro filhos, Fante aceitou convite, no início dos anos 40, para escrever roteiros em Los Angeles. Embora tenha trabalhado
em 13 filmes e produzido um programa de TV, nunca gostou da profissão, à qual se referia como “a mais desagradável
do Reino de Deus”. Além de ter seus textos alterados, o que
habitualmente o fazia perder o bom humor, Fante não se
sentia livre para criar. Pago para escrever histórias de sucesso, era obrigado a utilizar uma linguagem mediana, recurso capaz de atrair milhões às bilheterias, mas que, segundo
ele, não oferecia nada de novo ao espectador. Seus roteiros
mais ousados jamais ganharam as telas.
Mesmo sob a vigilância cerrada da crítica, alguns filmes roteirizados por Fante alcançaram êxito comercial. Em
1957, ele adaptou seu segundo best seller, publicado no ano
anterior: Full of Life, crítica sagaz à família americana, foi
estrelado por John Conte e Judy Holliday. O dinheiro amealhado não deu a Fante a almejada independência financeira, mas proporcionou sua saída do cinema. Pouco afeito aos
luxos concedidos pelos estúdios de Hollywood e já bastante doente, abandonou a carreira em 1966, após finalizar o
roteiro de Maya. O filme, protagonizado por Clint Walker
e Jay North, descreve as aventuras de dois garotos dispostos a salvar um elefante branco na floresta.
Em Hollywood, teve
seus textos alterados,
o que lhe tirava o bom
humor. E não se sentia
livre para criar
Do pó viemos, ao pó...
Em 1939 Fante concluiu Ask The Dust (Pergunte ao Pó),
sua obra de maior sucesso. Nela, Bandini reaparece como
um aspirante a escritor na emergente Los Angeles. Morando em hotéis de terceira, o personagem perambula atrás
de glória, dinheiro e um mínimo de inspiração. Ao mesmo
tempo, envolve-se numa relação sentimental tumultuada,
por meio da qual veste sua fantasia predileta, a de herói falível. Dois traços de personalidade do autor se sobressaem:
a culpa decorrente de um catolicismo enraizado e a desconfiança vinda do preconceito racial de que era vítima. A
narrativa mistura ficção e realidade, num jogo intenso que
opõe a realidade aos devaneios de Bandini.
Lançado no Brasil em 1984 pela Brasiliense, Pergunte ao
Pó não demorou a se tornar uma espécie de relíquia. Com
tradução e abertura de Paulo Leminski e prefácio de Bukowski, chegou a ser vendido em sebos de São Paulo por até
R$ 120. Devido à intensa procura, a editora José Olímpio
decidiu comprar os direitos do escritor junto a seu agente nos EUA. Recolocou o livro à venda em maio deste ano,
com tradução de Roberto Mugiatti. O êxito foi acima do
esperado: em uma semana, os primeiros 5 mil exemplares
já estavam esgotados. De acordo com a editora, outros 8
mil foram vendidos em menos de cinco meses. O número,
se não faz do livro um best seller, foi suficiente para reerguer a editora carioca e estimular o relançamento de parte
da obra de Fante. Além de Pergunte ao Pó, está nas livrarias
desde setembro Espere a Primavera, Bandini.
Sonhos de Bunker Hill
Enquanto a obra completa de Fante não chega, é pos-
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diálogos&debates
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Sucesso tardio
A decisão de largar o mundo das estrelas não amenizou
o sofrimento de Fante. Em 1955, o escritor descobriu que
sofria de diabetes e teve as pernas amputadas acima do joelho, devido a problemas circulatórios. Considerando-se
uma aberração, atravessou uma turbulenta crise de criatividade só encerrada pouco antes de sua morte. Em 1980,
ao saber da situação difícil pela qual passava Fante, Buko-
L I T E R AT U R A
wski enviou a seu editor um exemplar de Pergunte ao Pó e
uma ameaça: só concluiria seu livro, se visse republicada a
obra do ídolo.
Apesar da cegueira, Fante ainda encontrou ânimo para
ditar à esposa sua última obra, Sonhos de Bunker Hill. Morreu a 8 de maio de 1983, deixando um legado ainda hoje
bastante explorado. Nos últimos 20 anos, teve quatro livros
inéditos publicados nos EUA: 1933 Foi um Ano Ruim, Oeste
de Roma, Rumo a Los Angeles e O Grande Faminto. Como
se não bastasse, ganhou sete biografias e teve dois de seus
livros filmados, Pergunte ao Pó e Espere a Primavera, Bandini. Seu filho, Dan Fante, segue suas pegadas e é hoje um
escritor de relativo prestígio nos Estados Unidos.
Em entrevista cedida a um jornal de Los Angeles no ano
passado, Dan comparou a literatura de seu pai à praticada
atualmente nos EUA: “Muitos escritores da atualidade abusam da terceira pessoa e parecem escrever com os braços encolhidos. Meu pai jamais fez isso. Em Ask The Dust, ele não
só escreveu em primeira pessoa, como também usou as próprias tripas. É isso que faz dele alguém singular. Um imortal”.
Fiéis seguidores
Embora apenas uma restrita fatia da obra de John Fante
se encontre disponível no Brasil, não é de hoje que ela motiva fãs por aqui. Alguns artistas premiados admitem que os
livros do escritor americano alteraram o curso de suas carreiras. É o caso do diretor de teatro Felipe Hirsch, autor de
peças de sucesso como A Vida É Cheia de Som e Fúria (prêmio Shell de melhor direção em 2000) e Nostalgia. Apaixonado pela “emoção de Fante” desde a juventude, Hirsch
nunca escondeu a importância do escritor em seu trabalho.
Em Nostalgia, o dramaturgo presta homenagem ao escritor:
o personagem principal, Artur, é inspirado em Arturo Bandini, o alter-ego do autor de Pergunte ao Pó.
“O Fante foi jovem a vida inteira”, diz Hirsch, sem esconder o fascínio. “Ele era um amargurado que tinha uma
escrita tipicamente californiana. Era mais profundo e emocional que os beatniks, que o idolatravam.”
A habitual ausência de perspectivas nos personagens de
Fante influenciou o dramaturgo Mário Bortolotto. Autor
de peças como Felizes para Sempre, Diário das Crianças do
Velho Quarteirão e Brutal, Bortolotto reconhece traços de
Fante em seus textos. “Ele escrevia com uma falsa delicadeza impressionante. Era uma escrita forte e viril, mas parecia que vinha de alguém frágil e hesitante. É muito fácil
você se pegar enternecido lendo Fante.”
Foi essa característica de Bandini que chamou a atenção
do cineasta Philippe Barcinski. Diretor e roteirista de Palíndromo (melhor curta-metragem, direção, crítica e montagem no Festival de Gramado de 2001), ele se surpreendeu com o “jorro desenfreado” de Fante. “Gosto muito desse jogo onde o mundo descrito está sendo claramente intermediado por alguém cujas impressões não são isentas”,
explica. Para Barcinski, o cinema atravessa um período de
transformação que encontra paralelo na literatura. Na sua
opinião, hoje não somos tão radicais na aceitação de personagens como os da década de 60, mas não maquiamos a realidade como nos anos 80, época na qual os winners davam
as cartas. “Assumimos melhor nossas fragilidades e não por
acaso nos identificamos com Bandini”, avalia. 
Os 10 livros de Fante
O roteirista John Fante
Espere a Primavera, Bandini (1938)
Pergunte ao Pó (1939)
Sonhos de Bunker Hill (1982)
Rumo a Los Angeles (1985)
Vinho da Juventude (Dago Red) (1940)
Um Casal em Apuros (Full of Life) (1956)
The Brotherhood of the Grape (1977)
1933 Foi um Ano Ruim (1985)
Oeste de Roma (1986)
O Grande Faminto (2000)
Wait Until Spring, Bandini (1989)
Something for a Lonely Man (1968) (TV)
Maya (1966)
The Richard Boone Show (1963) (TV)
My Six Loves (1963)
The Reluctant Saint (1962)
Walk on the Wild Side (1962)
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Jeanne Eagels (1957)
Full of Life (1957)
My Man and I (1952)
Youth Runs Wild (1944)
East of the River (1940)
The Golden Fleecing (1940)
Dinky (1935)
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O presidencialismo já foi posto à prova em dois plebiscitos e venceu.
Mas cientistas políticos dizem que nosso sistema é eficaz como o de
uma democracia européia. Afinal,
o brasil é um
parlamentarismo?
T
Ilustração Kipper
em-se dito na crônica política, ultimamente, que o
Brasil funciona como um parlamentarismo. Luiz
Inácio Lula da Silva, o presidente que afirmou que
ocupar este cargo é difícil, “mas dá bastante oportunidade para viajar”, seria o chefe de Estado. José
Dirceu, o ministro-chefe da Casa Civil e responsável (desde janeiro de 2004) pela coordenação e implementação das
políticas públicas de todo o gabinete, seria o chefe de governo – ou seja, o primeiro-ministro.
Meras provocações. Há uma confusão entre o que diferencia presidencialismos de parlamentarismos. O “parlamentarismo” que vigorou no país entre setembro de 1961
e janeiro de 1963 foi, em verdade, um “semi-presidencialismo”. João Goulart foi chefe de Estado enquanto Tancredo Neves, Brochardo da Rocha e Hermes de Lima se revezaram como primeiro-ministro.
Em 1963, o povo foi convocado para opinar sobre o sistema de governo que deveria ser implementado no Brasil.
Votaram a favor do presidencialismo 9,4 milhões de eleitores (76%). A favor do parlamentarismo: 2 milhões. Houve cerca de 40% de abstenção. 25 anos depois, durante a
Assembléia Constituinte, surgiram diversos defensores do
parlamentarismo. Uma facção do PMDB, que depois se tor-
P O L Í T I C A
POR SÉRGIO PRAÇA
nou PSDB, continha os parlamentaristas mais ardorosos.
Na Constituinte, 344 deputados votaram pelo presidencialismo e 212 votaram contra. A decisão final sobre sistema
de governo seria realizada em plebiscito, cinco anos mais
tarde, quando 37 milhões dos cidadãos, ou 55%, escolheram definitivamente o presidencialismo como nosso sistema de governo.
Desde o mais recente plebiscito, um importante debate na ciência política brasileira se centrou em torno de aspectos referentes a diferenças no sistema de governo. Estudiosos afirmam que a eficácia legislativa do Executivo e a
disciplina partidária no Brasil são comparáveis a regimes
parlamentaristas. No período pós-Constitutinte, o Executivo federal foi responsável pela iniciativa de 86% das leis
sancionadas. Dados sobre 20 países parlamentaristas mostram taxas equivalentes: 86,4% (1971-1976) e 89,9% (19781982). Além disso, entre 1989 e 1998, a probabilidade de
um parlamentar votar de acordo com o líder de seu partido foi de 89%.
O objetivo deste texto é verificar até que ponto o Brasil
pode ser considerado um parlamentarismo. Assim, apresentamos as três principais diferenças entre os dois sistemas
para, a seguir, analisar o processo de formação de coalizões
março 2004
diálogos&debates
41
de governo no Brasil e em alguns regimes parlamentaristas. Dois aspectos também são centrais para definir se um
sistema é parlamentarista ou não: o número de gabinetes
ministeriais dados a partidos e a disciplina partidária dentro do Legislativo. Centramos nossa atenção nesses temas
nas duas últimas seções do texto.
Diferenças básicas entre os sistemas
São três as principais diferenças entre sistemas presidencialistas e parlamentaristas, apresentadas pelo cientista político holandês Arend Lijphart no clássico Parliamentary
Versus Presidential Government, de 1992.
“No parlamentarismo, o Executivo depende da confiança do Legislativo. No presidencialismo, o Executivo é independente do Legislativo.” Enquanto no sistema presidencialista impera o princípio de separação de poderes, no parlamentarismo ocorre a fusão entre o Executivo e o Legislativo. Nos dois sistemas, o Judiciário é independente dos
demais. O que significa depender da confiança do Legislativo? Significa que, no parlamentarismo, o Executivo tem
necessariamente maioria no Legislativo (eleita ou formada
por coalizões) – senão pode ser derrubado através de uma
moção de censura. (Existem também os governos minoritários, que não seguem exatamente essa lógica.) Ou seja: a
maioria dos deputados concorda, ao menos tacitamente,
com a figura do chefe do Executivo. O mesmo não ocorre
no presidencialismo.
“No parlamentarismo, o chefe do Executivo é escolhido
pelo Legislativo. No presidencialismo, o chefe do Executivo
é eleito diretamente pelo povo.” Existe alguma variação entre os diversos países que adotam o parlamentarismo, mas é
sempre a composição do Legislativo que determina quem é
o primeiro-ministro. Na Inglaterra, onde o sistema é bipartidário, o primeiro-ministro é o líder do partido mais votado nas eleições. No presidencialismo, a escolha do chefe do
Executivo é mais pessoal. A população vota diretamente em
candidatos que, às vezes, possuem fracos vínculos partidários – no Brasil, dois exemplos clássicos são Jânio Quadros
(UDN-PDC-PTN) e Fernando Collor de Mello (PRN).
“No parlamentarismo, o gabinete do Executivo é colegiado. No presidencialismo, o Executivo é unipessoal (presidente).” Em regimes parlamentaristas, o primeiro-ministro não é chefe dos outros ministros. Precisa consultá-los
antes de tomar decisões importantes. (Novamente, existem
variações de grau entre os diversos países que adotam o sistema parlamentarista.) Ao contrário, em regimes presidencialistas, o presidente é quem importa de fato. As decisões
42
diálogos&debates
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dos outros ministros são subordinadas a ele, que as aprova
ou não. Os ministros atuam como agentes do presidente.
É, portanto, um sistema muito mais centralizado do que o
parlamentarista.
O presidencialismo de coalizão
Naquele que é provavelmente o mais influente texto
da ciência política brasileira nos últimos 20 anos, Sérgio
Abranches descreve algo que, como jabuticaba, é uma peculiaridade do Brasil: o presidencialismo de coalizão. Entre
os 17 países comparados em seu estudo, o caso brasileiro é
o único no qual convivem um sistema eleitoral proporcional, o multipartidarismo, o federalismo e o presidencialismo. Vale lembrar a lei de Duverger, segundo a qual o sistema majoritário leva ao bipartidarismo – e o proporcional,
ao multipartidarismo. Assim, países nos quais este último
sistema vigora permitem a representação de interesses bastante diversos. Algo crucial, em termos democráticos, para
países como o Brasil, em que há grande heterogeneidade
social e regional.
No entanto, o sistema proporcional no presidencialismo
pode levar a uma complicação, também no que se refere à
democracia “desejável”: o excesso de atores políticos em posição de veto. Ao permitir que um número elevado de partidos e candidaturas tenha peso (e obtenha representação
no Legislativo) nos anos de eleições para presidente, o sistema inibe as chances de um só partido obter uma maioria
substancial no Congresso. Em 2002, o Partido dos Trabalhadores amealhou 91 das 513 cadeiras disputadas na Câmara dos Deputados. Outros seis partidos obtiveram cada
um mais de 5% das cadeiras. É um Legislativo fragmentado. Assim, o partido do presidente sempre necessita se aliar
a outros, pós-período eleitoral, para tentar garantir uma
maioria que aprove sua agenda legislativa.
A formação de uma coalizão nesses moldes se torna ainda mais premente se considerarmos, como fazem Cláudio
Gonçalves Couto e Rogério Arantes, que a Constituição
brasileira contém políticas públicas. Isso significa que para
um partido ou coalizão conseguir mudar matérias relativas a praticamente qualquer área – saúde, educação, previdência etc. – necessita aprovar emendas constitucionais.
Para que isso aconteça, requer-se 3/5 dos votos da Câmara dos Deputados em um primeiro momento. Ora, partido nenhum, sob um sistema proporcional como o brasileiro, obterá tamanha maioria, mesmo quando vence as
eleições coligado a outras legendas. Então a coalizão é formada. Como?
P O L Í T I C A
De acordo com Argelina Figueiredo e Fernando Limongi, na influente coletânea Executivo e Legislativo na nova ordem constitucional, o sistema político brasileiro não difere
muito dos regimes parlamentaristas. “Os presidentes ‘formam o governo’ da mesma forma que os primeiros-ministros em sistemas multipartidários, isto é, distribuem ministérios aos partidos e formam assim uma coalizão que deve
assegurar os votos necessários no Legislativo. As linhas que
dividem parlamentarismo e presidencialismo não são tão
rígidas como a literatura afirma.”
Em primeiro lugar, a natureza da coalizão em um presidencialismo difere daquela que ocorre em um parlamentarismo multipartidário. No primeiro sistema – ao menos no
caso brasileiro – os partidos que pertencem à coalizão não
firmam oficialmente nenhum tipo de acordo no qual determinam as políticas públicas que serão objeto da agenda
legislativa trilhada. Mas nos parlamentarismos isso ocorre.
São os coalition agreements (acordos intracoalizão).
Assinar acordos formais, internos à
coalizão de governo, é uma prática comum em muitas democracias do oeste da Europa. Variam muito quanto à
abrangência e conteúdo. Podem exigir
que as políticas públicas implementadas pelo gabinete estejam subordinadas à aprovação dos partidos que formam a coalizão. Existem também regras procedimentais que muitas vezes
servem como uma espécie de ‘constituição’ da coalizão. Podem incluir, por exemplo, uma promessa mútua: nenhum partido votará no parlamento contra propostas de outro partido que pertence à coalizão (disciplina intracoalizão). Ou então exigir que todos os projetos de lei propostos serão anteriormente aprovados pelos
partidos da coalizão.
Na Alemanha, para ficar em um exemplo, o tema da política externa é bastante detalhado no acordo intracoalizão
que é firmado. Deixa pouquíssimo espaço para interpretações ou desvios jurídicos. A burocracia do ministério, juntamente com o gabinete do chanceler, controla a implementação desse acordo. De acordo com estudo de Rudy
Andeweg e Wilma Bakema, o acordo intracoalizão assumiu
gradualmente cada vez mais importância na Holanda, um
parlamentarismo monárquico. É considerado lei. Alguém
acredita que qualquer espécie de acordo programático firmado por partidos brasileiros, mesmo no período pós-eleitoral, tem alguma validade?
Distribuição partidária dos ministérios
Não se deve pressupor que um gabinete presidencial integrado por políticos de dois ou mais partidos constitua um
governo de coalizão. Somente os gabinetes que apresentam
uma alta correspondência entre o percentual de postos ministeriais e os pesos dos partidos no Congresso podem ser
considerados como tal, se formos exigentes na definição do
termo “coalizão”.
No governo de Collor, 60% dos ministros, em média,
não tinham filiação partidária nenhuma. Como se pode
denominar de governo de coalizão uma administração
que basicamente não teve ministros partidários nos seus
quadros? Nunca tivemos, desde 1985, nenhum governo
inteiramente composto por ministros partidários. Sob a
presidência de Sarney, 22% dos ministros não eram filiados. No governo Itamar, 45%. Sob a primeira presidência
de Fernando Henrique Cardoso, 32% dos ministros não
tinham partido.
Mas há importantes diferenças
dentro das presidências. De acordo
com Octavio Amorim Neto, Itamar
Franco nomeou 20% de políticos sem
filiação partidária para seu primeiro
ministério, enquanto que, para o último, nada menos do que 76% dos
membros do gabinete não tinham sigla partidária.
Quanto mais partidário é o critério de seleção dos ministros, maior o
apoio legislativo dos partidos ao presidente, ficando assim
o governo mais próximo de funcionar como uma coalizão parlamentarista ao estilo europeu. Assim, os primeiros
anos da presidência de Sarney e os dois mandatos de FHC
são os períodos mais “parlamentaristas” de governo desde
a redemocratização.
Nos parlamentarismos, freqüentemente os acordos intracoalizão especificam quais ministérios serão distribuídos
para cada partido, além de estabelecer regras que dão aos
partidos poder decisivo – não apenas de consulta – quando ocorrem reformas ministeriais. Em muitas democracias
parlamentaristas, como a Inglaterra e a Irlanda, leis ou costumes exigem que os membros do gabinete sejam, simultaneamente, deputados.
Nunca tivemos, desde
1985, nenhum governo
composto apenas por
ministros que pertençam
a partidos políticos
P O L Í T I C A
Disciplina partidária no Brasil: índices “parlamentaristas”?
Ainda seguindo a agenda de pesquisa de Fernando Limongi e Argelina Figueiredo, cabe agora observar outro as-
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diálogos&debates
43
pecto referente à formação de coalizões duradouras no presidencialismo brasileiro: a disciplina partidária. Para esses
autores, só é possível pensar na possibilidade de governo
de coalizão quando se pode falar em partidos capazes de
agir enquanto tais.
Analisando um universo de 221 votações nominais durante o período 1989-1994, Limongi e Figueiredo sustentam ter encontrado disciplina partidária na Câmara dos
Deputados. “Para uma votação qualquer na Câmara, a probabilidade de um parlamentar votar com a liderança de seu
partido é de 89%. Sabendo qual a posição assumida pelos
líderes dos partidos, podemos prever com acerto o resultado da votação em 93.7% dos casos”, afirmam.
No entanto, médias podem enganar. Os autores calcularam o índice de Rice, utilizado para medir o grau de disciplina, dos principais partidos na Câmara dos Deputados entre 1989 e 1994. Seu cálculo é simples: percentual de
deputados que seguem o voto da liderança menos o percentual dos que não o fazem. Deve-se contar a abstenção
como voto “não” se o governo orienta o voto “sim”. Quando o índice é igual a 100, o partido mostra-se totalmente
disciplinado. Quando o índice é 0, o partido mostra-se dividido ao meio.
Existe grande diferença entre os índices dos partidos no
período estudado pelos autores e o índice obtido na votação
do Projeto de Emenda Constitucional (PEC) 40/03 – a reforma da previdência do governo Lula aprovada em 2003.
Obviamente, trata-se de apenas uma votação analisada sob o governo Lula. Mas as diferenças são gritantes. O
PT, que nessa votação teve uma taxa de 73.8, perde o posto de partido mais disciplinado para o PL, cujo índice foi
de 89.8. Como observa Carlos Ranulfo Melo, “a disciplina
da base do governo foi muito baixa: apenas 60.5, para um
índice que varia de 0 a 100. Se forem considerados apenas
os votos dos partidos de esquerda, o desempenho não melhora: o índice fica em 65.8%”.
Os achados de Figueiredo e Limongi não podem ser desprezados. Costumava ser consenso na ciência política brasileira que o que importava, dentro do Legislativo, era o parlamentar individual. As agremiações partidárias seriam irrelevantes. Com esse estudo, os autores conseguiram destruir esse senso comum. No entanto, a disciplina dos partidos no Brasil não atinge níveis parlamentaristas.
Por quê? É importante salientar vários aspectos, e nem
todos cabem neste artigo. Primeiro: em um parlamentarismo, o primeiro-ministro pode ameaçar dissolver o Legisla-
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tivo, convocando novas eleições, para assegurar a disciplina partidária. Em 1993, o primeiro-ministro britânico John
Major (Partido Conservador) enfrentava resistência de deputados do “baixo clero” de seu partido quanto à ratificação
da assinatura do Tratado de Maastricht, sobre a União Européia. Mostrando sua disposição em convocar novas eleições, Major conseguiu a “cooperação” dos deputados.
Cabe um parêntese sobre esse mecanismo com o qual
o primeiro-ministro chantageou sua base governista. A incerteza sobre a data das eleições torna mais complicado o
controle eleitoral dos representantes no parlamentarismo.
A maioria dos parlamentarismos prevê algum tipo de dissolução precoce do Legislativo. A data das eleições é geralmente determinada pelo primeiro-ministro e/ou seu partido. Conseqüentemente, esse poder de dissolver o parlamento e convocar novas eleições pode ser usado estrategicamente, com objetivos partidários. Essa capacidade de
manipulação e incerteza da data das eleições reduz a eficácia do controle dos representantes pela população. Os cidadãos não sabem ao certo quando poderão punir maus e
recompensar bons deputados.
O único país em que o deputado perde o mandato se
votar contra a orientação do partido é a Índia, um sistema parlamentarista. Existem outras formas de controle. Na
Áustria (país semipresidencialista), por exemplo, os candidatos a postos no Legislativo são obrigados a assinar uma
carta de “demissão” com a data em branco, para o partido
preencher caso o deputado aja de maneira insubordinada.
Mas é, atualmente, um mecanismo sem eficácia. Punições
mais eficazes são: demitir indicados para o setor público
pelo deputado, demitir o deputado de cargos no partido
ou em sindicatos aos quais ele pertence.
Quais os efeitos disso? Índices de disciplina partidária extremamente altos, se comparados com os dos partidos brasileiros. Na Alemanha, entre 1949 e 1990, o índice de Rice dos três principais partidos esteve sempre acima de 90%. Na França, um sistema semipresidencialista,
todos os partidos com cadeiras no Legislativo obtiveram
média acima de 75% no período 1946-1973. Todos os partidos noruegueses apresentam índices superiores a 90% entre 1979-1994.
Se o Brasil tem uma Constituição que institui a divisão dos
poderes, se seus presidentes formam coalizões em um sistema proporcional, distribuindo ministérios para quem não
é filiado e se a disciplina de seus partidos é razoável, porém
incerta, nosso país é tudo, menos um parlamentarismo. 
P O L Í T I C A
Drama de família de Guarulhos (SP) mostra como a TV pode, e às
vezes consegue, substituir as instituições, efetuando uma
imitação de poderes
N
o início de setembro do ano passado, num dia
bastante chuvoso na Grande São Paulo, a produção do programa Brasil Urgente – um tipo de
jornalismo que mistura informação com sensacionalismo – descobriu quase que por acaso
uma pauta que tinha todos os ingredientes para satisfazer
os mais de 1 milhão de telespectadores diários do programa (levando em conta só a capital).
Devido à falta de assunto, a chefia de reportagem decidiu investir alto num telefonema dado por uma moradora
da periferia de Guarulhos, pouco antes de o programa ir ao
ar. Preocupada com a situação de um casal com dez filhos,
que passava fome e tentava se esconder da chuva debaixo
de um tapume improvisado, a dona de casa viu no Brasil
Urgente um meio rápido e eficaz de resolver um problema
que atinge milhões de brasileiros.
Mesmo sem saber, fornecia ao Brasil Urgente a principal
matéria do programa, ou seja, um tema simples e de baixa complexidade que poderia facilmente ser transformado
numa história de alto impacto, capaz de prender a atenção
do telespectador e aumentar a audiência, que atinge uma
média de 5 pontos.
Ao se dirigir a Guarulhos, o repórter Lúcio Tabarelli encontrou o cenário perfeito para seduzir o público. Transferida provisoriamente para a garagem da comovida dona de
casa, a família estava mal alimentada, vestia roupas sujas.
As crianças – incluindo uma garotinha de pouco mais de 1
ano – estavam mal agasalhadas. O roteiro ficou ainda mais
“atraente” quando Tabarelli entrevistou o chefe da família,
Edemilson Pereira da Silva. Desempregado há dois anos, o
ex-catador de papelão encontrava-se naquela situação por-
T E L E V I S Ã O
POR JAIME APARECIDO SILVA
que, segundo ele, teria sido obrigado a vender a carrocinha
com que ganhava a vida para quitar uma dívida contraída
para alimentar os filhos.
O discurso emocionado de Edemilson deu resultado: a
TV fez com que o drama fosse “resolvido” rapidamente.
Em menos de dez minutos, moradores da região se revezavam para levar comida e roupa para as crianças. Houve
até a promessa de um emprego e de um terreno para construção de uma casa.
A comovente história rendeu 20 minutos ao vivo no Brasil Urgente e, como não poderia deixar de ser, dramáticos
comentários de José Luiz Datena, que não perdeu a oportunidade para culpar o governo nos níveis federal, estadual e municipal (no caso, a Prefeitura de Guarulhos) pela situação da Família Silva.
No dia seguinte, a equipe do Brasil Urgente voltou a repercutir o caso. Foram mais 7 minutos de reportagem ao
vivo, com cenas que não deixavam dúvidas sobre o poder
da TV: em menos de 24 horas, o ex-catador de papel Edemilson conseguira grande quantidade de alimentos e roupas, terreno para construir a casa e até emprego num supermercado.
Para garantir a audiência, o câmera destacava a fisionomia “mais saudável” das dez crianças, carne no prato de todos, a carteira profissional na mão de Edemilson. Para completar, os previsíveis comentários de Datena, que não fez
questão de esconder o orgulho pelo seu programa, diante
do “fracasso” das instituições, ter se transformado numa alternativa para ajudar uma família em dificuldades.
Apesar do sucesso de crítica e público, é provável que a
história da Família Silva não tivesse a mesma sorte caso a
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diálogos&debates
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produção do Brasil Urgente se preocupasse em respeitar um
dos princípios básicos do jornalismo: ouvir o outro lado. Se
o repórter entrasse em contato com a Prefeitura de Guarulhos, seria informado que Edemilson Pereira da Silva recebia atendimento da Secretaria de Assistência Social e Cidadania do município desde junho de 2002.
Segundo relatório assinado pela assistente social Edina
Ferreira da Silva, a família tinha recebido alojamento provisório da Prefeitura, além de cesta básica e leite em pó para
os filhos. Ainda segundo o documento, Edemilson recebia
acompanhamento de um funcionário do Fundo Social de
Solidariedade e estava inscrito no Programa Renda Mínima, o que lhe garantiria um benefício mensal de R$ 300.
Mesmo sem ser procurada pela TV Bandeirantes, a Assessoria de Imprensa da Prefeitura de Guarulhos entrou em
contato com a produção do programa no dia que o caso foi
ao ar, para dar sua versão. Mas foi informada de que Datena não mais faria ataques aos órgãos
públicos – e que, portanto, não seria
necessário ouvir ninguém.
Na verdade, ao reivindicar um direito que lhe cabia, a Prefeitura não
buscava desqualificar a difícil situação vivida pela família Silva, mas somente oferecer condições para que o
telespectador construísse sua opinião
levando em conta todos os elementos
que envolviam o caso. Ou seja, o poder público municipal não poderia ser “massacrado” pelo
apresentador como se nada tivesse feito para ajudar Edemilson Pereira da Silva.
Embora lamentável, a atitude tomada pelo Brasil Urgente só confirma uma tendência cada vez mais comum
nos programas sensacionalistas. Para aumentar a audiência, rasga-se a ética e ignoram-se versões que podem comprometer histórias apresentadas como verdades absolutas.
Ao se recusar a ouvir o outro lado, o apresentador corroborou o que diz a acadêmica argentina Beatriz Sarlo: “A esfera
pública eletrônica não é apenas um lugar de onde se emite informação, nem onde se constrói opinião. Passou a ser
também um lugar onde a opinião se contrapõe às instituições, disputando com elas a jurisdição para decidir sobre
os conflitos privados que se transformam em públicos justamente para serem subtraídos das instituições”.
Do ponto de vista midiático, é indiscutível a eficiência de
programas como o Brasil Urgente em transformar histórias
privadas em casos de “interesse” público e expor à exaus-
tão mazelas de pessoas menos favorecidas, como a Família
Silva, como se tivessem soluções para todos os problemas.
Afinal, como aponta Beatriz Sarlo em seu livro Paisagens
Imaginárias: “A democracia midiática é insaciável em sua
voracidade pelas vicissitudes privadas que se transformam
em vicissitudes públicas...”
No entanto, a psicóloga Vera Silva alerta que não se deve
aceitar o argumento de que tais estratégias (muitas vezes
verdadeiras baixarias) só ganham espaço em função do
acesso maior dos pobres aos aparelhos de TV: “A literatura
de cordel, as fotonovelas, as revistinhas, as rodas de dança e
de ‘causos’, as reuniões religiosas e novenas no passado reuniram as pessoas e serviram como circuladores de hábitos e
de informações. Nunca li em nenhuma pesquisa que eram
focos de baixaria por serem utilizadas pelos pobres. O cotidiano dos pobres não é feito de baixaria”, observa.
De acordo com pesquisa realizada pela psicanalista Ana
Olmos, especializada em infância e
adolescência e presidente da ONG
TVer, as maiores vítimas dessas apelações são as crianças, que passam uma
média de quatro horas por dia à frente
de um aparelho de TV. “Ou seja: sendo
educadas, em geral, para a violência, o
consumo, o sexo prematuro”, ressalta.
A reação sugerida por Ana Olmos
é lenta, mas começa a ganhar apoio da
sociedade. Coordenador da campanha
“Quem Financia a Baixaria é contra a Cidadania”, o deputado federal Orlando Fantazini (PT-SP) já contabiliza mais
de 10 mil denúncias contra programas que desrespeitam a
dignidade e fazem apologia do crime, da prática de tortura,
do linchamento e outras formas de violência, além da discriminação racial, sexual e religiosa. A campanha apontava, em dezembro passado, a novela global Kubanacan como
campeã das reclamações.
Com medo de perder anunciantes, uma vez que as denúncias podem ser encaminhadas diretamente para as empresas que patrocinam os programas, vários apresentadores
têm moderado o discurso, negociando alteração de horários e mudanças no formato de programas. Apesar da demora, é louvável a preocupação de políticos com o que o é
veiculado na TV.
Em tempo: fábrica de gerar esquecimentos, a TV se esqueceu do caso da família Silva com a mesma rapidez com que o
expôs para todo o Brasil em quase meia hora de programação
ao vivo. Esperamos que os políticos não façam o mesmo. 
“A esfera pública
eletrônica passou a
ser um lugar onde as
opiniões se contrapõem
às instituições”
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diálogos&debates
março 2004
T E L E V I S Ã O
Num ano movimentado para a diplomacia econômica, as reuniões
intergovernamentais, com os emergentes organizados no G-20, estão construindo
uma nova agenda para o
comércio global
O
ano de 2004 será extraordinário para a diplomacia econômica. Em fevereiro, delegados de 148
países deverão retomar em Genebra as negociações globais de comércio, para tentar concluí-las
até o final de dezembro, ainda no prazo original.
Nunca houve negociações tão amplas e tão ambiciosas, nem
tiveram as economias em desenvolvimento, em rodadas anteriores, papel tão importante na discussão das normas comerciais. A atuação do chamado Grupo dos 20, coordenado pelo Brasil, pôs no centro dos debates, com eficácia nunca vista, as ambições e o discurso dos emergentes e dos pobres. Mas será necessário um enorme trabalho de conciliação para tornar possível um acordo até o fim do ano.
A rodada global, lançada em Doha em novembro de
2001, continua muito perto do ponto zero, depois do fiasco da 5ª Conferência Ministerial da Organização Mundial
do Comércio (OMC), em Cancún. Apesar do fracasso, houve algum progresso na discussão de pontos importantes. O
avanço está registrado num texto produzido pelo presidente do encontro, o chanceler mexicano Luis Ernesto Derbez.
Esse documento poderá ser o ponto de partida para a nova
etapa da negociação.
Algum otimismo ressurgiu no final do encontro do G20 em Brasília, em dezembro, com a participação do comissário de Comércio da União Européia, Pascal Lamy, como
E C O N O M I A
POR ROLF KUNTZ
convidado. Ele acenou, no final, com maior flexibilidade
em relação à política agrícola, tema de importância central
para os países em desenvolvimento.
Esse é outro ponto notável da rodada. Na primeira grande negociação comercial do século XXI, a agricultura é um
dos assuntos mais difíceis, como se o mundo vivesse, ainda,
a era da famigerada Lei dos Cereais, combatida no começo
do século XIX por David Ricardo. Ainda mais notável é a
divisão de interesses nessa questão: o lado protecionista é o
dos países mais avançados, descritos com freqüência como
pós-industriais. São os grandes opositores de um comércio
agrícola mais aberto e menos afetado por subsídios à produção e à exportação.
Ainda em fevereiro, representantes de 34 países iniciaram na cidade mexicana de Puebla o que poderia ser, se
desse tudo certo, a etapa final de constituição da Área de
Livre Comércio das Américas (Alca), um projeto inaugurado em 1994. Também esse projeto quase naufragou, no
desastroso encontro vice-ministerial de outubro, em Port
of Spain, capital de Trinidad e Tobago. Uma operação de
salvamento, coordenada por americanos e brasileiros, permitiu relançar o projeto da Alca, em novos termos, numa
reunião ministerial em Miami, em novembro. Todos admitiram que parte dos assuntos poderá ficar para discussão na rodada geral da OMC. Isso inclui a política ameri-
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diálogos&debates
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cana de subsídios à agricultura e questões mais complexas
ligadas a investimentos, serviços, propriedade intelectual e
compras governamentais.
Além de envolvido na discussão da Alca, o Mercosul, formado por Brasil, Argentina, Paraguai e Uruguai, continuará empenhado em negociar um acordo de livre comercio
com a União Européia. Também esse trabalho tem avançado lentamente, mas ganhou impulso no segundo semestre
de 2003 e poderá, segundo representantes brasileiros e europeus, ser concluído em 2004.
Ao mesmo tempo, o governo brasileiro, sozinho ou em
conjunto com os três parceiros do Mercosul, tentará ampliar os vínculos econômicos com a África do Sul, a Índia e
a China, três dos sócios mais importantes do G-20. A China
converteu-se, nos últimos dois anos, num dos três ou quatro maiores mercados para as exportações brasileiras.
As três maiores negociações, a da OMC, a da Alca e a
do Mercosul com a União Européia, são interligadas por
mais de um vínculo. As agriculturas mais subsidiadas e
mais protegidas são as da Europa, dos Estados Unidos e
do Japão. Os americanos têm recusado, na Alca, uma discussão ampla de sua política agrícola. Argumentam que
seria um desarmamento unilateral, se a União Européia
preservasse as suas barreiras e os seus subsídios. Os europeus, nas conversações com o Mercosul, têm utilizado
argumento semelhante, embora acenando com algumas
concessões. A questão desemboca, portanto, na rodada
global da OMC.
Além disso, a rodada geral de negociações deve estabelecer o novo piso das obrigações de todos os participantes do
sistema global. Será uma nova referência para os acordos bilaterais ou regionais de comércio. O avanço das discussões
na OMC poderá influenciar, portanto, a avaliação e as estratégias de cada participante das demais negociações. Isso
valerá tanto para as áreas em que o Brasil é demandante –
como agricultura e regras de ações antidumping – quanto
para aquelas em que seu interesse é muito menor – como
normas para investimentos e compras governamentais.
Como princípio, a diplomacia brasileira, desde o governo do presidente Fernando Henrique Cardoso, tem atribuído especial importância às negociações globais. Para a
maior parte dos Estados, mesmo para aqueles classificáveis
como potências médias, sistemas desse tipo são os mais seguros e com melhor distribuição de poder.
Uma ordem multilateral pode ser confortável para as
potências maiores e até para a detentora, como os Estados
Unidos, de uma clara hegemonia militar, econômica e tec-
48
diálogos&debates
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nológica. Todas podem ganhar, de alguma forma, com o
império da lei ou seu equivalente no plano internacional.
Para a maioria dos atores, no entanto, as vantagens de um
sistema razoavelmente ordenado e com padrões de arbitragem confiáveis, ou geralmente confiáveis, podem ser muito mais sensíveis.
O papel da OMC: evitar o confronto direto
A OMC pode estar longe de ser um sistema ideal para
as economias em desenvolvimento, e suas normas ainda
refletem principalmente os interesses das grandes potências. A ordem constituída na Rodada Uruguai, encerrada
em 1994, resultou essencialmente do acordo entre os governos mais influentes do Primeiro Mundo. Apesar disso,
essa ordem oferece alguma segurança para a maioria dos
participantes.
Em princípio, qualquer associado pode pedir a abertura
de um processo. Além disso, o recurso à arbitragem é utilizável coletivamente, permitindo alianças ocasionais que
seriam improváveis em outras condições. Em dezembro, o
governo americano concordou em eliminar salvaguardas
contra a importação de aço adotadas em março do ano anterior. Essas barreiras haviam sido consideradas ilegais por
um painel de arbitragem solicitado pela União Européia e
por mais sete países – Brasil, China, Coréia do Sul, Japão,
Noruega, Nova Zelândia e Suíça. Os Estados Unidos haviam
recorrido e a decisão foi confirmada em novembro pelo Órgão de Apelação da OMC.
Dificilmente ações unilaterais das maiores potências seriam contestáveis com alguma eficácia num sistema sem
mecanismos de arbitragem e de retaliação como os da
OMC. Pode-se argumentar que a retaliação nem sempre é
aplicável, especialmente quando a parte condenada é muito mais poderosa que a vencedora do processo. Mas os sistemas legais e judiciais de cada Estado também são imperfeitos e insuficientes, muitas vezes, para neutralizar as diferenças de poder entre as partes. Reconhecer esse dado não
equivale a qualificar as leis e os tribunais como irrelevantes
para a distribuição da justiça. O ajuste ou enfrentamento
direto entre as partes seria uma estratégia provavelmente
pior na maior parte dos casos.
Países dispostos e não dispostos
Se uma ordem multilateral é um ativo importante, vale
a pena investir na busca de novo acordo global. Se a rodada fracassar, ou se as discussões emperrarem outra vez, o
mundo se converterá num mosaico de acordos bilaterais
E C O N O M I A
e regionais. Multiplicar acordos desse tipo foi a estratégia
anunciada pelo representante de Comércio Exterior dos Estados Unidos, Robert Zoellick, logo depois de confirmado
o fracasso de Cancún.
Lá mesmo, no Centro de Convenções da cidade, ele deu
uma entrevista ameaçadora, dividindo o mundo entre países dispostos e não dispostos a participar da liberalização
comercial. Os Estados Unidos, segundo Zoellick, buscariam entendimento com os de boa vontade, negando ao
demais as delícias do livre acesso ao mercado americano. O
Brasil foi classificado no segundo grupo, juntamente com
os participantes mais convictos do G-20.
Criou-se uma lenda naquela tarde. O Brasil e seus parceiros ganharam a fama de ter causado o fracasso do encontro, pela resistência à proposta americano-européia para a agricultura. Mas o desfecho ocorreu por um desentendimento sobre os chamados temas de Cingapura – relações entre comércio e investimento, políticas de concorrência,
facilitação de comércio e transparência em compras governamentais.
Esses temas haviam sido propostos pelos países mais desenvolvidos na
Conferência Ministerial de Cingapura,
em 1996. Não foram incluídos na Agenda de Doha, definida
em 2001. Várias delegações de países pobres opuseram-se à
negociação desses assuntos. Afinal, combinou-se incluir as
quatro questões na agenda, a partir de Cancún, se houvesse consenso explícito. Os europeus pressionaram o tempo
todo pela inclusão dos temas de Cingapura. No final, aceitaram reduzir sua pretensão, concentrando sua exigência
num item. Mas o ministro de Botswana rejeitou, em nome
de seu grupo, negociar facilitação de comércio. Em seguida,
o representante coreano insistiu na manutenção dos quatro temas. Nesse momento, o presidente da conferência, o
mexicano Derbez, decretou o fracasso de Cancún. O G-20
foi totalmente inocente nesse episódio.
Esse grupo é assim chamado, hoje, por ter sido criado
em 20 de agosto. Essa explicação foi inventada no fim de
2003 para justificar a manutenção do nome. O bloco foi
realmente formado em agosto, por iniciativa da representação brasileira em Genebra. Indianos e chineses apoiaram a proposta de um grupo destinado a batalhar pela
mudança das políticas agrícolas do mundo rico. O bloco, formado inicialmente por 17 países, chegou a Can-
cún, em setembro, com 20 participantes e chegou a reunir 22 países.
A criação do G-20 foi uma reação à proposta conjunta
de Estados Unidos e União Européia para agricultura, apresentada em Genebra em 13 de agosto. Pelo documento conjunto, os subsídios internos de interesse dos Estados Unidos
seriam preservados, o corte dos subsídios à exportação poderia estender-se a perder de vista e as facilidades de acesso aos mercados poderiam ser concedidas de forma discriminatória. O novo grupo dos países em desenvolvimento
apresentou uma semana depois documento próprio, tentando revalorizar a agenda de Doha. No dia 24, o presidente do Conselho Geral da OMC, o uruguaio Carlos Perez del
Castillo, propôs um esboço geral para
a declaração ministerial de Cancún, reproduzindo, na parte da agricultura, o
essencial da proposta EUA-UE.
Foi esse o documento inicial dos
trabalhos em Cancún. O G-20 manteve a resistência, coordenado pelo Brasil. No quarto dia da reunião, o penúltimo, um novo esboço, preparado
pelo mexicano Luis Ernesto Derbez,
foi discutido. Ainda reproduzia, em
vários pontos, a proposta americanoeuropéia, mas criava brechas para mudanças mais ambiciosas. Os ministros do G-20 criticaram
o documento, mas o classificaram como bem melhor que
o do Perez del Castillo. Com alguns acertos, seria aceitável
para todos. No último dia, de manhã, diplomatas brasileiros e de outros países do G-20 davam como praticamente certo um acordo que permitiria fechar a declaração ministerial. Nessa altura, o impasse final estava sendo armado
noutra área. Uns 70 países se opunham à incorporação dos
temas de Cingapura, que envolvem, para muitos, enormes
dificuldades técnicas e políticas.
O G-20 foi devastado, em seguida, por pressões de Washington. Latino-americanos interessados em acordos comerciais com os Estados Unidos abandonaram o bloco, deixando-o reduzido, no pior momento, a 16 participantes.
Na reunião de Brasília já eram 18. O grupo é heterogêneo,
porque alguns de seus membros, como Índia e China, defendem apenas uma limitada abertura do comércio agrícola. Mas o grupo, apesar de tudo, parece preparado para
manter um papel importante na próxima etapa da Rodada
de Doha. Se as negociações serão produtivas e terminarão
num prazo razoável é outra questão. 
Dificilmente ações
unilaterais das maiores
potências seriam
contestáveis com alguma
eficácia num sistema
sem mecanismos como
os da OMC
E C O N O M I A
março 2004
diálogos&debates
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duas décadas de
democracia
incompleta
Após 20 anos sem ditadura, a
América Latina ainda sofre problemas
institucionais, econômicos e sociais que
aumentam a insatisfação com o regime
POR MARCELLO SIMÃO BRANCO
Ilustração Kipper
A
América Latina experimentou no início da década de 80 dois fenômenos de forte impacto histórico: redemocratização e crise econômica. Os
países foram, aos poucos, saindo do sombrio período autoritário dos anos 60 e 70, para um processo de transição política que os levou de volta à democracia. Esse foi um acontecimento virtuoso vivido não só por
esta região, mas por todo o mundo, naquilo que o cientista
político americano Samuel Huntington chamou de “terceira onda da democratização” (as duas primeiras ocorreram
após a Primeira e a Segunda Guerra Mundial).
Já o segundo fenômeno que marcou o subcontinente latino-americano foi de cunho econômico, com uma forte recessão, acelerada especialmente por crises de dívida externa,
inflação galopante, déficit público e desemprego. Cunhouse até a frase “a década perdida”, não só nas manchetes de
jornais como também nos compêndios econômicos.
Mas o que vamos abordar aqui é o processo políticoinstitucional. Afinal, neste início do século XXI, bem ou
mal, a região já vive duas décadas sob a vigência do regime democrático. Isso não é pouco numa região do planeta tão afeita a rupturas institucionais, com golpes militares e sob os auspícios de líderes populistas em um passado
A M É R I C A
L AT I N A
histórico não muito distante. Vinte anos de democracia já
nos possibilitam um exame que possa realizar ao mesmo
tempo um balanço das principais características observadas e as perspectivas que se avizinham para a região, de
uma forma geral.
Em lugar de construir um relato cronológico dos períodos que os regimes democráticos da região enfrentaram,
é mais interessante realizar uma análise das principais características destas democracias e os efeitos que elas vêm
produzindo – inclusive no grau de confiança dos cidadãos
com relação ao regime e às suas instituições, como veremos em algumas tabelas. Mas antes dessa exposição, uma
definição básica de democracia, que balize os argumentos
e dados apresentados. Democracia é um regime político
que promove eleições competitivas livres e limpas para o
Executivo e o Legislativo. Pressupõe uma cidadania ativa e
abrangente, com proteção dos direitos civis e políticos, no
qual os governos eleitos de fato governam e os militares estão controlados pelo poder civil.
Esta definição política algo estendida de democracia já
vislumbra algumas das características (e problemas) principais dos regimes políticos da América Latina: dificuldades no processo de institucionalização política e a carência
março 2004
diálogos&debates
51
na aplicação dos direitos civis – e, por conseqüência, também dos direitos políticos. E tudo isso em um ambiente de
contingência socioeconômica bastante desfavorável, o que
só tensiona as relações sociais e políticas.
De acordo com o cientista político argentino Guillermo O’Donnell, alguns países da região – especialmente na
América do Sul – não têm garantido o pleno funcionamento do mandato presidencial e das instituições políticas correlatas, por um tempo indefinido. Ocorrem as eleições, o
presidente eleito toma posse, mas não há garantias de que
ele cumprirá o seu mandato até o fim, pois forças civis –
algumas das vezes apoiadas veladamente por militares –
questionam seus atos de governo, confrontando a legitimidade do seu mandato. Essa tendência, na verdade, passou a
ser verificada com mais regularidade empírica na segunda
metade dos anos 90, quando alguns governos eleitos dentro das regras constitucionais foram derrubados por motivos não-constitucionais, ou seja, devido, principalmente, ao descontentamento com a política econômica. Casos vários podem ser citados, como os do Equador (1997
e 2000), Argentina (2001) e Bolívia (2003). Sem falar nas
duas tentativas de golpe de Estado mal-sucedidas na Venezuela e no Paraguai.
Dois fatos chamam a atenção nesse fenômeno de retirada do poder dos presidentes eleitos. Primeiro: mesmo sendo removidos do cargo, a estrutura formal do regime segue
dentro das normas democráticas, ou seja, o regime não se
torna uma ditadura. É escolhido um novo governante até a
convocação de novas eleições. Segundo: essa tendência inverte uma outra muito presente na primeira metade dos
anos 90, quando alguns líderes políticos eleitos democraticamente tinham um estilo de governo francamente populista e autoritário como, por exemplo, Alberto Fujimori no
Peru, Fernando Collor de Mello no Brasil e Carlos Menem
na Argentina. É dessa fase a adoção do receituário neoliberal do Consenso de Washington, que rezava, entre outras
medidas, uma ampla privatização das empresas estatais e
uma menor presença do Estado na economia. No plano político, não por coincidência, temos a adoção do mecanismo da reeleição em vários países para, entre outras razões,
não mudar a orientação política neoliberal dos governos e
eternizar os líderes populistas de plantão.
Sabemos como se desenrolou a história: Fujimori deu
um autogolpe em 1992 e depois de chegar à sua terceira eleição foi defenestrado em 2002 – por causa de fraudes na eleição. Collor sofreu um bem-sucedido processo de impeachment em 1992, por causa de escândalos de corrupção. Me-
52
diálogos&debates
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nem ficou dez anos no poder, com uma reeleição, deixando
uma herança de corrupção e crise econômica. E, mais recentemente, sobrevive a esse perfil populista o presidente venezuelano Hugo Chávez, não sem tensões institucionais que já
levaram o país a um fracassado golpe de Estado em 2002.
Esse processo de institucionalização política incompleta
não termina, contudo, com a insegurança dos líderes eleitos
com a conclusão do seu mandato. Corolário deste problema é a fraqueza dos sistemas partidários destes países, que
não conseguem conduzir as tensões do processo político,
ou canalizar e representar demandas importantes de grupos
marginalizados da sociedade. Exemplar e recorrente neste
ponto é o caso de países como Equador e Bolívia, onde uma
ampla parcela da população não se faz representar na arena política, como a maioria indígena. E foram movimentos liderados por organizações indígenas e camponesas os
principais responsáveis pela queda dos presidentes desses
países. Contribui para isso também o desenho constitucional falho, pois em alguns desses países as eleições podem ser decididas pelo Congresso, caso um candidato não
vença no primeiro turno (como na Bolívia), ou então existe a controversa possibilidade de ser votado um referendo
na metade do mandato de um governante, como na Venezuela, o que só traz tensões ao sistema político do país, entre outros casos.
Em meio a contextos tão incertos do ponto de vista institucional é oportuna uma reflexão acerca do que, afinal de
contas, os latino-americanos pensam sobre o regime político em que vivem. Aderem plenamente aos valores democráticos? Em caso afirmativo, estão satisfeitos com as características concretas destas democracias? Como vêem as instituições que estruturam o sistema político? Estas perguntas, e algumas outras complementares, são feitas a alguns
milhares de latino-americanos todos os anos – em 17 países, entre eles o Brasil –, por meio do instituto de pesquisa
Latinobarometro, sediado em Santiago, Chile. Acompanhe
alguns dados dessas pesquisas.
Por esses dados, verificamos como é baixo o grau de confiança dos cidadãos numa das instituições-chave da democracia representativa, o Legislativo. Apenas o Chile chega
próximo dos 50%, enquanto todos os outros países apresentam uma porcentagem baixa, incluindo o Brasil. Este levantamento é de 1996: quatro anos depois, podemos comparar a evolução desta instituição da democracia com o regime em seu conjunto.
Vemos que há um alto grau de insatisfação com a democracia concreta, da forma como ela funciona. Dos paí-
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ses apresentados, chama a atenção que
apenas dois, Costa Rica e Venezuela,
têm um grau de satisfação que supera os 50%. E o Brasil tem o mais alto
grau de insatisfação, com apenas 18%.
Além disso, observe como os dados da
primeira tabela pouco convergem com
os da segunda. Apenas o Brasil e a Bolívia apresentam um grau de confiança/
satisfação parecido, ao analisar o Parlamento e o regime político como um
todo. Nos demais países, o grau de insatisfação (desconfiança) com respeito ao Parlamento é expressivamente
maior do que com o grau de insatisfação com a democracia em seu conjunto.
Na realidade, estes resultados não são surpreendentes e
podem ter duas interpretações: uma negativa e outra positiva. Negativa, se os cidadãos perceberem que, após sucessivos governos, a situação político-institucional e socioeconômica não melhora, gerando movimentos contrários à
manutenção do governo eleito, como já apontado em vários exemplos recentes. Positiva, se em linhas gerais revela
que as pessoas estão mais críticas em relação à democracia
real e ainda mais críticas se voltam seus olhos para um aspecto particular de sua estrutura institucional. Mas isso não
significa que as pessoas queiram substituir o regime democrático por um autoritário.
Ainda citando os dados de pesquisas do Latinobarometro, no levantamento realizado em 2003, 66% dos latino-
americanos consideram que a democracia é indispensável para o desenvolvimento de seus países e que não
pode haver democracia sem partidos
políticos ou congressos. Ou seja, majoritariamente, existe adesão aos valores e princípios do regime. Questionase, sim, seu desempenho e ainda mais
o de suas instituições. Pode-se argumentar que isso é contraditório, devido aos movimentos antidemocráticos
dos últimos anos em remover governos eleitos, mas é preciso lembrar que
mesmo os grupos civis que lideraram
esses movimentos mantiveram a continuidade formal da democracia, não houve uma regressão
autoritária. E também temos que lembrar que este índice
revela uma média e, como tal, leva em conta os vários países
e seus tamanhos populacionais diferentes. Brasil e México,
por exemplo, com as duas maiores populações do subcontinente, influenciam uma média positiva, ainda mais porque
não tiveram problemas institucionais nos últimos anos.
Em todo caso, esta avaliação dos chamados “cidadãos
críticos”, para usar uma expressão da cientista política americana Pippa Norris, vem de encontro a uma tendência internacional de queda do nível de confiança dos cidadãos
com relação aos regimes democráticos e suas instituições.
Também nos Estados Unidos e na Europa Ocidental – é
bom lembrar, regiões do mundo desenvolvidas do ponto
de vista socioeconômico, com democracias longamente es-
TABELA 1 – CONFIANÇA NO LEGISLATIVO
TABELA 2 – SATISFAÇÃO COM A DEMOCRACIA
66% dos latinoamericanos consideram
que a democracia é
indispensável para o
desenvolvimento de seus
países e que não pode
haver democracia sem
partidos políticos ou
congressos
Países
Satisfação com a democracia*
Países
Confiança no Legislativo*
Chile
43
Costa Rica
61
Argentina
25
Venezuela
55
México
22
Argentina
46
Bolívia
21
México
37
Costa Rica
20
Chile
35
Brasil
19
Colômbia
27
Venezuela
19
Bolívia
22
Colômbia
15
Brasil
18
* Porcentagem de pessoas que dizem ter “grande” ou “muita”
confiança no Parlamento. Fonte: Latinobarometro, 1996.
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* Porcentagem de pessoas que dizem estar muito satisfeitas com
a democracia em seu país. Fonte: Latinobarometro, 1999-2000.
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diálogos&debates
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tabelecidas –, os cidadãos confiam menos nos partidos, no
governo, no parlamento, nos políticos, nos tribunais, na
polícia, nos militares. Mas isso não significa que as pessoas
não queiram viver em uma democracia. Elas apenas estão
mais exigentes quanto ao desempenho das instituições. E
que estas têm tido mais dificuldades em atender às crescentes demandas sociais, em um mundo cada vez mais internacionalizado e interdependente, do ponto de vista econômico, tecnológico e cultural.
Desta forma, a redução da confiança popular nas instituições políticas não é, necessariamente, efeito da “alienação”, da falta de compromisso com a democracia ou de
resquícios de valores autoritários. É, antes, a constatação
sensata de que as instituições atualmente existentes privilegiam interesses e concedem pouco
espaço para a participação do cidadão
comum, cuja influência na condução
dos negócios políticos é quase nula. Em
suma, as promessas da democracia representativa não são realizadas.
E o cenário latino-americano se insere cabalmente nesse contexto maior,
ainda mais por causa de seus vários
problemas estruturais. Uma ponderação oportuna do cientista político brasileiro Luis Felipe Miguel é de que “nos
países redemocratizados da América
Latina, as pesquisas adotam, muitas vezes, pressupostos bastante normativos,
associando a desconfiança nas instituições representativas à adesão a valores autoritários”. Pois é
isso, numa primeira vista, o que mais chama a atenção nos
números do Latinobarometro devido, também, à memória recente que temos das ditaduras que assolaram a região.
Talvez seja o caso de modificar alguns aspectos metodológicos da pesquisa mas, mais importante, seria que os países democráticos da região fossem mais eficientes do ponto de vista institucional e econômico, mais transparentes e
seguidores da lei em suas ações e mais abertos a uma maior
participação do cidadão nos assuntos públicos.
Como argumenta O’Donnell, o prestígio das instituições políticas vem decaindo também por causa de “recor-
rentes escândalos de corrupção e pelo desrespeito que vários presidentes têm demonstrado pela autonomia das demais instituições do governo e do Estado”. Poderia acrescentar a percepção de incapacidade das instituições mencionadas em buscar alternativas para crises econômicas e
seu efeito mais grave: a crescente desigualdade social. “Essa
debilidade também surge no aspecto do Estado, que é o responsável mais direto pela tessitura e garantia das relações
sociais: seu sistema legal. Os nossos regimes são democráticos – para não falar dos casos em que há governos autoritários ou semidemocráticos –, porém, com um Estado de
Direito intermitente e tendencioso”, reforça O’Donnell.
Já o americano James Malloy indaga em que medida esses problemas de institucionalização pelo qual passam a
maioria dos países latino-americanos
estão relacionados com a dificuldade
de extensão e efetivação dos direitos,
especialmente os civis – o que também aumenta a percepção de desconfiança dos cidadãos. Pois se a todos cabem as liberdades políticas pertinentes
a um regime democrático, muitos, no
entanto, têm os seus direitos sociais e
civis básicos negados ou bastante prejudicados. As pessoas votam sem coerção física, seus votos são apurados corretamente – com raras exceções – e, ao
menos em princípio, elas podem exercer seus direitos de expressão, associação, locomoção e outros semelhantes.
Na prática, contudo, os direitos civis de grandes parcelas da
população são mal aplicados ou desrespeitados. A burocracia pública é ineficiente, a polícia, em boa parte, é violenta
e corrupta e o poder Judiciário é lento, de difícil acesso por
pessoas pobres. Resumindo, se o regime político, em tese,
tem suas regras e seus procedimentos claros e funcionais,
falta democratizar as estruturas componentes do Estado. É
uma situação que O’Donnell chama de inefetividade da lei
ou falha da aplicação da rule of law (Estado de Direito), especialmente aos cidadãos marginalizados. Contudo, também instituições centrais da sociedade vêem-se privadas do
pleno exercício dos seus direitos, como a liberdade de ex-
É baixo o grau de
confiança dos cidadãos
numa das instituições –
chave da democracia,
o Legislativo. Apenas o
Chile chega próximo dos
50%. Os outros países
apresentam porcentagem
baixa, incluindo o Brasil
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diálogos&debates
março 2004
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pressão e informação, sofrendo perseguições judiciais e censura em países como Venezuela, Colômbia e Peru.
O ex-editor da revista de política internacional americana Foreign Affairs, Faared Zakaria, vê nessa tendência a
cristalização do que ele nomeia de uma “democracia iliberal”, isto é, sem os princípios liberais que ajudaram a formar o que é uma democracia em termos contemporâneos.
De acordo com ele, este déficit legal e civil é repetidamente
visto nas chamadas novas democracias, tanto dos países da
América Latina, como também dos antigos países socialistas do Leste Europeu e ex-integrantes da antiga União Soviética. “A tendência de um governo democrático em acreditar que possui soberania (isto é, poder) absoluto pode
resultar na centralização da autoridade, muitas vezes por
meios inconstitucionais e com conseqüências dolorosas. Na década de 80,
alegando representar o povo, governos
eleitos usurparam de maneira sistemática os poderes e direitos de outros segmentos da sociedade, uma usurpação
tanto horizontal (isto é, de outros órgãos do governo nacional), como vertical (de governos regionais e locais, assim como do setor privado e de outros
grupos não-governamentais.)”. Embora estas características usurpatórias
não tenham desaparecido – ao menos
em parte do cenário latino-americano
–, elas têm sido confrontadas mais recentemente com uma reação social de
cunho não-constitucional – como vimos linhas acima. Ou
seja, combate-se uma tendência autoritária do Estado, com
uma reação de tendência também autoritária de grupos sociais. Perdem as regras, os procedimentos e os valores democráticos em todos os casos.
De qualquer forma, não se deve levar por um clima pessimista nesta análise. É preciso separar as características comuns à maior parte dos países das características específicas de cada um deles. Desta forma, é possível ter tanto uma
noção de conjunto, como também reter as virtudes que a
democracia de determinado país possa apresentar.
Neste contexto, o caso do Brasil é ambíguo, pois pode
nos servir tanto de parâmetro positivo como negativo. Positivo ao menos no que concerne ao seu aspecto institucional – sistema partidário em processo de desenvolvimento e
amadurecimento e eleições regulares e com amplo sufrágio
universal. E de parâmetro não muito positivo, no que diz
respeito à extensão e aplicação da lei e das características
de ineficiência e autoritarismo por parte de estruturas do
Estado. Ainda assim, é notável ressaltar que, nestes 20 anos
de democracia na América do Sul, o Brasil, ao lado do Chile
e do Uruguai, foram os únicos países que não enfrentaram
desafios ilegais à sua estrutura institucional.
Dentro deste quadro, o Brasil sob o governo de Luiz Inácio Lula da Silva – pela primeira vez em sua história, um governo de partido de esquerda no poder – será um teste importante para a democracia na América Latina. “Como o maior país da região, o rumo do Brasil deve definir o
rumo dos outros países. Enquanto o
Brasil permanecer institucionalmente
estável, não vejo condições para uma
onda de golpes na América Latina”, argumenta Octavio Amorim Neto. Isso
certamente é um alívio, mas não encerra a problemática institucional da região, dada a tendência preocupante dos
últimos anos de se remover um governo constitucional por meio do que outro cientista político, o uruguaio Luís
Costa Bonino, chama, de uma forma
um tanto imprecisa, de “golpe social”.
Diante disso, é imprescindível que os regimes democráticos latino-americanos consigam viabilizar economicamente suas sociedades. Governos competentes jogam um
papel importante, não há como negar. Pois a desigualdade
econômica é o principal fator exógeno ao ambiente político de baixa institucionalização e pouca extensão de direitos civis, problemas que têm potencializado o grau de insatisfação e desconfiança dos cidadãos na maior parte das
jovens democracias latino-americanas.
Como o maior país
da região, o rumo do
Brasil deve definir
o rumo dos demais
países. Caso o Brasil
permaneça estável, não
há condição para uma
nova onda de golpes na
América Latina
A M É R I C A
L AT I N A
Marcello Simão Branco é doutorando em Ciência Política pela Universidade de São Paulo.
março 2004
diálogos&debates
55
dez anos
Banco Central praticamente toda semana revisava as previsões. Isso não causou imprevisibilidade.
sem o dragão
Um dos maiores especialistas em
inflação analisa como foram estes
dez anos de estabilidade e fala
com otimismo sobre
crescimento econômico
ENTREVISTA HERON DO CARMO
POR SÉRGIO PRAÇA
C
oordenador-geral do índice de preços ao consumidor (IPC) divulgado pela Fipe (Fundação
Instituto de Pesquisas Econômicas) durante as
duas últimas décadas, o economista Heron do
Carmo é provavelmente o maior especialista em inflação no país. Saiu do cargo de coordenador do
IPC no segundo semestre de 2003, para se dedicar à redação de sua tese de livre-docência na FEA-USP, instituição
pela qual é doutor em economia. Heron se mostra otimista com o futuro econômico do Brasil, que deverá apresentar crescimento do PIB em 2004 – ainda aquém, porém, do
que o país precisa. Se as previsões econômicas são confiáveis? Heron afirma que sim, desde que elas sejam permanentemente atualizadas. Confira abaixo os principais trechos de sua conversa:
diálogos&debates Haverá um “espetáculo do crescimento”
em 2004, como prometeu o presidente?
heron do carmo Acho que não haverá esse espetáculo. O
presidente da República, para se comunicar com o grande público, tem de usar algumas expressões, algumas figuras de linguagem... Mas tudo indica que o país tem condições de iniciar um processo de crescimento com menor
volatilidade do que ocorreu nos últimos anos. Talvez cres-
56
diálogos&debates
março 2004
diálogos&debates A política do BC foi agressiva em 2003?
heron do carmo O problema do BC é que ele teve que se contrapor a algo que não é usual: uma incerteza política. Teve
de tentar usar a política monetária, além de tudo, para se
contrapor a um problema que é de ordem política. O Banco
Central fez uma política muito cautelosa que resultou, felizmente, no melhor. Estávamos com uma inflação de mais de
10% por semestre – ou seja, 20% ao ano – e estamos agora com uma inflação em torno de 2% por semestre. Nós tivemos mais inflação no primeiro trimestre de 2003 do que
nos nove meses restantes. Graças, em parte, à política ortodoxa. A partir de meados de 2003, o BC afrouxou bastante essa política. A taxa de juros estava em 26,5% e fechou
o ano com 16,5%. Houve um afrouxamento significativo
nas condições de política monetária no segundo semestre
do ano passado.
diálogos&debates Existe um número ideal para a taxa de juros?
heron do carmo Quanto menor, melhor – desde que não cause distorções na economia. É possível, na conjuntura atual,
reduzir a taxa de juros nominal para algo em torno de 10%.
O problema é que não dá para sair de uma situação como a
que estamos agora para uma situação de 10%. Tem que ser
de maneira gradual, tateando, para não perder o que já ganhou. Devemos terminar 2004 com uma taxa de juros na
faixa de 12,5% a 13%. Sou mais otimista do que o mercado, que pensa em 13,5%, mais ou menos. E deve haver uma
continuidade dessa taxa de juros até 2005, até tender a um
número um pouco superior à taxa de juros vigente na Europa e nos Estados Unidos e em boa parte dos países asiáticos que estão com uma economia estabilizada.
diálogos&debates Como funciona o índice de preços ao consumidor?
heron do carmo A questão básica do índice de preços ao
consumidor é que ele é tomado como a principal medi-
FOTOS EVELYN TEIXEIRA
cer pouco – 3%, 4% – mas com uma base sustentável. Não
se espera mais crescer 4,5% em um ano, depois cair para
1%, voltar para 3%... Vamos entrar em uma fase de crescimento mais pujante, mas ainda aquém do que o país precisa. Isso abrirá possibilidades de um crescimento rápido
em médio prazo.
diálogos&debates O Banco Central, no início de 2003, previu um crescimento de 2,8% do PIB. Teve que diminuir sucessivamente as previsões ao longo do ano. No fim, “arriscou” que o crescimento seria de 0,3%. Isso não pode afetar
a confiança nas instituições?
heron do carmo Desde que a instituição revise as previsões,
não há problema. Provavelmente, o Banco Central fez essas previsões baseado no que o mercado achava. Também
se basearam em determinadas hipóteses que mudaram. O
BC acabou adotando uma política econômica muito mais
agressiva do que parecia possível. Às vezes, a instituição
quer adotar uma política que é tecnicamente recomendável, mas não tem ambiente político para fazer isso. O Banco
Central atua de forma praticamente independente, apesar
de não o ser de fato. Você pode fazer uma previsão supondo
certas condições que depois não se realizam. O importante
é perceber que o cenário mudou e retificar a previsão. E o
E N T R E V I S TA
“Não haverá o tal ‘espetáculo do crescimento’ em 2004. O presidente,
para se comunicar com o público, usa certas figuras de linguagem...”
da do índice de inflação no mundo todo. Por quê? Porque a finalidade da economia é analisar questões relacionadas ao bem-estar. Como atender os desejos das pessoas com recursos limitados? Em economia, cuidamos
de bens e serviços. Economia, portanto, trata do aumento do bem-estar da sociedade. Naturalmente, para
que possamos verificar se está havendo um ganho de
bem-estar ou não, é necessário saber, quando temos
inflação, por que os valores aumentaram. Se as famílias estão gastando mais com uma série de produtos, isso
acontece porque os preços aumentaram ou porque as disponibilidades de bens e serviços (o consumo) aumentaram? Calculamos o índice de inflação para que possamos
descontar das variações de valor, que são mais fáceis de
heron do carmo Exatamente. Tendo informações desse tipo,
o consumidor pode tomar decisões melhores. Por exemplo: “Vou trocar meu local de compra porque o tomate subiu muito”. Mas se o tomate subiu em todos os pontos de
venda, para que comprar em outro lugar? Vai ter de pegar
o carro, ou andar mais, para comprar o produto. Quanto
mais informação o consumidor tiver, melhor. Acrescenta
utilidade ou reduz o custo de comprar bens e serviços.
diálogos&debates Qual o grau de confiabilidade do índice?
heron do carmo É elevado, se considerarmos que o índice é
uma média. Se a situação é de muita dispersão dos preços
– alguns aumentaram muito, outros diminuíram –, a média continua sendo uma informação importante, mas tem
“O excesso de leis que protegem o emprego formal estão acabando com ele!”
perceber, aquelas variações unicamente atribuídas a preço. E com isso podemos calcular as variações de quantidade, associadas ao bem-estar. O indicador de inflação,
portanto, tem um propósito indireto. As pessoas associam a variações muito grandes de inflação uma situação ruim em termos de bem-estar. A função do índice é
essa, basicamente.
diálogos&debates Que tipo de informações úteis o índice
traz para as pessoas?
heron do carmo O consumidor se baseia no IPC para saber se
o que afeta o bolso dele afeta o de todos. Além da inflação,
há outro tipo de informação importante no índice. São as
informações desagregadas. Em janeiro, houve um aumento do IPVA do carro, das mensalidades escolares, as frutas
sobem de preço por causa da chuva. Ou seja, o consumidor consegue distinguir aquilo que de fato está pressionando seu orçamento em um determinado período.
diálogos&debates E essa é uma informação confiável que ele
tem para poder planejar melhor seu orçamento.
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de ser relativizada. Se em média a inflação subiu 1%, pode
ser que alguns produtos subiram 10% e outros caíram 9%.
Assim, o consumidor pode comprar mais produtos que estão caindo e se beneficiar, outros não. Por isso é importante
ter as informações desagregadas, para aumentar a credibilidade do índice. Se você fala que produtos subiram e caíram, é uma informação melhor para o consumidor do que
apenas o índice de inflação.
diálogos&debates Em um país instável como o Brasil, é possível fazer previsões econômicas com razoável certeza?
heron do carmo Sim, mas temos uma incerteza elementar,
expressa em uma célebre frase de [John Maynard] Keynes:
a longo prazo estaremos todos mortos. Ou seja, o futuro a
Deus pertence. Quando alguém faz previsões, supõe que
não haja alterações significativas na estrutura do problema. É utilizar o passado para fazer uma previsão. A natureza não dá saltos, como diz o prefácio do livro Princípios
de Economia, de Alfred Marshall [publicado em 1890, é uma
das mais influentes obras da economia mundial], então, para
fazer uma previsão a curto prazo, você tem uma chance
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bem razoável de acerto. A imprensa fala às vezes em erros
de previsões. “Apostaram que o superávit comercial seria 18
bilhões de reais, mas foi 25...”. Isso não é necessariamente
um erro grande. O fundamental é que você acertou na direção. Às vezes, não dá para acertar na mosca porque existe
uma série de fatores incontroláveis. A previsão é feita utilizando algumas variáveis mais importantes como referência e controlando as outras. Se alguma das variáveis estiver
controlada no modelo, mas não na vida prática, a previsão
fica errada. Vou dar um exemplo: a China importou como
nunca do Brasil em 2003. Quem poderia imaginar que a
China pudesse se constituir no segundo maior importador
do país? Quem podia imaginar, por exemplo, que em 2001
haveria os atentados de 11 de setembro?
com a desigualdade, o desemprego é sem dúvida o principal problema social do Brasil. De certa forma, os dois estão associados. O desemprego é um dos problemas mais difíceis de resolver. Mesmo com a economia crescendo, não
há garantia de que nós tenhamos uma redução expressiva
no desemprego. Por causa do aumento de produtividade
e das novas tecnologias. O trabalho mudou radicalmente no período pós-guerra. Não existem mais, como antes,
profissões tão rigorosamente delimitadas. As empresas têm
poucos níveis de hierarquia. As pessoas trabalham, mas o
emprego formal está acabando no Brasil. O excesso de leis
que protegem o emprego formal está acabando com ele!
Seria melhor ter uma carga tributária menor sobre o trabalho, leis de proteção não tão rigorosas, mas efetivamen-
“Nós tivemos mais inflação no primeiro trimestre de 2003 do que nos nove
meses restantes. Graças, em parte, à política econômica ortodoxa”
diálogos&debates Que “previsões” são críveis em relação à
economia brasileira em um futuro próximo?
heron do carmo Há certo consenso – e é pouco provável que
isso não seja atingido – que a economia vai crescer mais em
2004, que a inflação vai ficar mais baixa, que o saldo comercial talvez fique um pouco menor que em 2003, que o risco
Brasil deve cair um pouco até o fim do ano. Tudo indica que
isso vai se concretizar. O problema é que, ao fazer previsões,
é necessário também dar um número. Ninguém quer saber
apenas as direções. Aí, é claro, podem ocorrer diferenças. “O
risco Brasil vai cair para 300 pontos!”. E acaba caindo para
250... “O saldo comercial será de R$ 23 bilhões!”. Pode ser
de 20, 25... “O PIB do país vai crescer 3,5%!”. Pode crescer
5%... Mas a direção do processo é confiável.
diálogos&debates O desemprego é hoje o principal problema econômico do país?
heron do carmo É o principal problema do mundo, não só
do Brasil! Japão e Europa têm desemprego elevado. Junto
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te uma situação melhor de trabalho. Parte da população é
muito protegida – o setor público, por exemplo. Ao mesmo
tempo, grande parte dos trabalhadores vive uma situação
de falta total de proteção, que são aqueles que pertencem
ao mercado informal. Não têm garantia nenhuma. Camelôs, por exemplo. Essa questão do trabalho é institucional,
não só econômica.
diálogos&debates A Lei de Responsabilidade Fiscal foi, sem
dúvida, um avanço. O PT, que era contra a lei quando de
sua aprovação, hoje a cumpre. É um sinal de maturidade
democrática?
heron do carmo Sim, isso mostra bem como as instituições
foram se consolidando. A Lei de Responsabilidade Fiscal foi
fundamental para a estabilidade. Não temos mais o problema de orçamentos estourarem em ano eleitoral, porque o
funcionário de carreira é co-responsável pelo cumprimento da lei. Como ele quer continuar em seu cargo, muitas vezes o governo deseja fazer alguma coisa que infringiria essa
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lei e acaba sendo brecado pela burocracia. Mas, como tudo,
também essa lei precisa de ajustes.
acompanhar e punir. Além disso, é muito mais fácil trabalhar
e planejar em um ambiente com inflação mais baixa.
diálogos&debates Em 2004 completamos dez anos sem hiperinflação. Quais foram os efeitos sociais disso?
heron do carmo Taxas de inflação acima de 4%, 5%, perturbam a alocação de recursos na economia. O consumidor e o
produtor têm dificuldades para lidar com uma situação na
qual a informação não é muito segura. Se a inflação é de 5%,
isso significa que alguns produtos estão subindo 20%, outros
estão caindo 5%. Em um cenário como esse, é muito difícil
tomar decisões. E as variações mudam ao longo do tempo:
um produto que estava subindo até hoje não sobe amanhã,
por exemplo. Quando você tem inflação mais baixa, a economia fica mais previsível. Há um risco menor de incorrer
em erros. Outro avanço importantíssimo que ocorreu com
o fim da hiperinflação foi o combate à corrupção. A redução da inflação ajudou isso, porque hoje o crime não caduca.
Antigamente, o crime era cometido com o cruzeiro, depois
vinha o cruzado, cruzado novo... Mas se alguém roubou R$
100 milhões em 1994, hoje, dez anos depois, ainda é possível
diálogos&debates No que se refere à Justiça, a queda da inflação teve algum efeito importante?
heron do carmo O fim da indexação e a redução da inflação
devem reduzir, a longo prazo, a demanda de causas judiciais envolvendo o governo, porque muitas delas envolvem
problemas de correção monetária. Sem inflação, isso some
da pauta. Daqui a dez, 20 anos, isso pode contribuir para
reduzir a pressão sobre a Justiça. Por exemplo: existem milhares de causas relacionadas ao fundo de garantia, para recuperar o valor do fundo de garantia do passado. Isso envolve correção monetária. Sem inflação, não existem essas
causas. Na Justiça do Trabalho, existem demandas judiciais
que envolvem reajuste de salários, por exemplo. Problemas
de falências e concordatas estão ligados a isso também. Reduzindo a inflação, esse tipo de problema diminui drasticamente. Existe uma série de problemas que envolvem, na
verdade, cálculos de índice de inflação. Com a inflação permanentemente baixa, há menos demandas judiciais.
“Com a inflação permanentemente baixa, há menos demandas judiciais”
“O Brasil devia ter começado a fazer o acerto fiscal no primeiro governo
FHC, não no segundo. Não foi feito por questões políticas, e isso nos custou”
diálogos&debates Em 2003, o Plano Real completou dez
anos. Uma longevidade espantosa, para o Brasil. Resumidamente, quais foram os principais erros e acertos do plano?
heron do carmo O principal acerto foi a desindexação da
economia sem grandes intervenções. Fundamentalmente,
o Plano Real visava reduzir a inflação. Mas são atribuídos
ao plano objetivos que ele não tinha: retomar o crescimento
econômico, privatização... Isso não era o objetivo. O Plano
Real terminou em 1997, quando a economia acertou os preços. As maiores críticas que são feitas ao plano têm a ver, na
verdade, com a Presidência de Fernando Henrique Cardoso.
De lá para cá, tivemos uma política econômica meio desequilibrada, com a qual o fundamento monetário foi muito
reforçado e a parte fiscal ficou a dever. Ou seja, o Brasil devia ter começado a fazer o acerto fiscal no primeiro governo FHC, não no segundo. Não foi feito por questões políticas, e isso nos custou.
diálogos&debates Que medidas no âmbito da microeconomia poderiam ser tomadas para retomar o crescimento?
heron do carmo Algumas medidas normativas, institucionais. A economia brasileira tem de ser desregulamentada. Deveríamos ter instituições mais parecidas com as que
existem no resto do mundo. O Brasil, por questões históricas, tem instituições muito diferentes do padrão dos países
que hoje são líderes. Nossa estrutura tributária, por exemplo, é muito diferente da de países europeus. É importante
reduzir essa assimetria, sempre respeitando nossas tradições. É necessário mexer na carga tributária urgentemente, assim como nos regulamentos que tratam de toda a bu-
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rocracia para abrir e fechar empresas. Aumentar o padrão
do imposto de renda de pessoa física, e criar um imposto
sobre o valor adicionado em substituição a todos os outros
que já existem. O problema é que o governo não consegue
fazer isso porque precisa de todo o dinheiro que está arrecadando agora, mas não quer dizer que não se possa fazer
isso ao longo do tempo. O governo sabe que a distribuição
de impostos é injusta, sabe que tem uma série de problemas em termos de regulação. Mas questões ligadas à burocracia podem ser as mais difíceis de resolver.
diálogos&debates Por que o sr. acha que o governo tem clareza em relação à tributação se ele prorrogou a CPMF (Contribuição Provisória [sic] sobre Movimentação Financeira) até 2007?
heron do carmo O governo precisa de todo o dinheiro que
está arrecadando agora. Com o crescimento econômico, é
possível trocar gradualmente impostos ruins por impostos
bons. Já está previsto na lei da reforma tributária, recémaprovada, desonerar máquinas e equipamentos, desonerar
o mercado de trabalho. Reduzir impostos sobre importações, reduzir impostos incidentes sobre a folha de salários...
está tudo previsto. Reduzir gradualmente a CPMF, Cofins,
Pis. As mudanças vêm ocorrendo, mas no momento têm a
restrição de que o governo tem de continuar arrecadando
o que recolhe agora. Senão complica o fundamento fiscal.
Mas se crescer 4%, por exemplo, terá essa folga para fazer
um acerto. Sem arrecadar menos, pode reajustar a forma
como se arrecada. Seria uma maneira também de sustentar melhor o crescimento econômico. 
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a punição por meio
das urnas
POR SÉRGIO PRAÇA
N
o Brasil, diz-se, os eleitores não prestam atenção em seus representantes no Legislativo. Distantes dos anseios da sociedade, ineficazes em
uma Câmara dos Deputados na qual o processo
legislativo é altamente centralizado e dependente do Executivo, nossos deputados federais não seriam bem
fiscalizados pelos eleitores. Disso decorre a falta de accountability, termo que significa algo como “responsabilização”
– e para o qual, jactam-se alguns, não existe bom equivalente em português.
Mas sensos comuns como esse existem para ser derrubados. E efemérides como os 20 anos da votação da emenda Dante de Oliveira, que instituiria eleições diretas no país
após um interregno militar de 21 anos, existem para ser comemoradas. Eram tempos de reafirmação da democracia
no país. Nada melhor, para isso, do que punir os parlamentares que votaram contra a emenda das diretas.
Na época, mais precisamente em 25 de abril de 1984, havia 479 deputados federais no Brasil. 298 votaram a favor da
emenda, 181 não o fizeram. Entre esses, a maioria foi covarde: 113 não compareceram para votar. Três se abstiveram.
Apenas cerca de um terço, ou 65 deputados, votou nominalmente contra a emenda Dante de Oliveira.
Alguns autores mostram que a taxa de deputados que se
candidatam à reeleição é relativamente baixa, se comparada com a de parlamentos de outros países. Nas eleições de
1986, 1990 e 1994, respectivamente, 63,5%, 65,4% e 70,4%
buscaram se manter no cargo. Esse índice é baixo por diversos motivos. Um dos principais é o fato de o deputado
individual ter pouquíssimo poder de decisão dentro do Le-
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gislativo, especialmente devido a mecanismos como a mesa
diretora e o colégio de líderes. Essa impotência não é exclusiva dos parlamentares que moram em Brasília. Estudo realizado na Câmara Municipal de São Paulo, onde atuam 55
vereadores, mostra que apenas algo em torno de 20% dos
projetos de lei apresentados individualmente pelos deputados entre 2001 e 2003 foram aprovados e sancionados, contra cerca de 70% de êxito do Executivo.
Fim do parêntese. 311 dos 479 deputados que pertenciam à Câmara em 1984 foram candidatos à reeleição. Daqueles que votaram a favor da emenda das diretas e se recandidataram, um total de 191 parlamentares, 123 obtiveram sucesso. Uma taxa de 64%. Os deputados que não
apoiaram a medida foram mais rejeitados: apenas 45% se
reelegeram.
Isso significa que a população brasileira conseguiu utilizar, ao menos parcialmente, o principal mecanismo democrático do qual usufrui: o voto. A lista da votação nominal
de 25 de abril foi amplamente divulgada pela imprensa. Fenômeno semelhante só ocorreu, salvo melhor juízo, na votação do impeachment de Collor. Munidos da informação
sobre quem vetou as diretas, os eleitores os puniram. O website da Câmara atualmente fornece ao eleitor a oportunidade de saber como os deputados votam em cada matéria.
Oito deputados que votaram contra a proposta de Dante
de Oliveira ainda estão presentes no Congresso. Já é tempo
de defenestrá-los. 
Sérgio Praça é mestrando em Ciência Política pela USP e coordenador de comunicação do Movimento Voto Consciente (www.votoconsciente.org.br)
Ú LT I M A
P Á G I N A

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