revista de estudos modernos - Anamorfose

Transcrição

revista de estudos modernos - Anamorfose
REVISTA DE ESTUDOS MODERNOS
Volume 1 • Nú m e ro 1 • 2 013
REVISTA DE ESTUDOS MODERNOS
Vol ume 1 • Número 1
RidEM
Rede Interdisciplinar de Estudos Modernos
IFHT - UERJ
Rio de Janeiro
Dez. 2013
Anamorfose - Revista de Estudos Modernos
Rede interdisciplinar de Estudos Modernos (RidEM)
Instituto Multidisciplinar de Formação Humana com Tecnologias (IFHT-UERJ)
R. São Francisco Xavier, 524/sala 12040
Maracanã – Rio de Janeiro/RJ
CEP 20550-900
Conselho Editorial
Carlos Ziller Camenietzki (UFRJ, Brasil)
Henrique Cairus (UFRJ, Brasil)
João Camillo Penna (UFRJ, Brasil)
Jorge Coli (Unicamp, Brasil)
José Antonio Vasconcelos (USP, Brasil)
Lorelai Brilhante Kury (Fundação Oswaldo Cruz, Brasil)
Lorenzo Mammì (USP, Brasil)
Luis Bacigalupo (PUCP, Peru)
Luiz Camillo Osorio (PUC–RJ, Brasil)
Marcelo Jacques de Moraes (UFRJ, Brasil)
Marcos Martinho (USP, Brasil)
Oscar João Abdounur (USP, Brasil)
Rodrigo Guerizoli (UFRJ, Brasil)
Stefano La Via (Università di Pavia, Itália)
Editor
André Rangel Rios (IMS-UERJ)
Comissão editorial
Maya Suemi Lemos (IFHT-UERJ)
Rafael Marcelo Viegas (FL-UFRJ)
Editoração e design gráfico
Leonardo Caldi Magalhães
Endereço postal
Anamorfose - Revista de Estudos Modernos
A/C Comissão Editorial
Instituto Multidisciplinar de Formação Humana com Tecnologias (IFHT-UERJ)
R. São Francisco Xavier, 524, sala 12040
Maracanã - Rio de Janeiro
Cep: 20550-900
Brasil
Contato
[email protected]
Esta publicação conta com o apoio da FAPERJ e da CAPES
Anamorfose é uma publicação semestral da Rede Interdisciplinar de Estudos
Modernos – RidEM (Instituto Multidisciplinar de Formação Humana com Tecnologias / IFHT- Universidade do Estado do Rio de Janeiro / UERJ), que reúne pesquisas e
discussões multidisciplinares com ênfase nos séculos XVI a XVIII. Debates, eventos e
processos sociais, culturais e políticos desse período, assim como seus antecedentes
e suas consequências – ou reinterpretações –, são o foco principal, além da relevância
dada a questões metodológicas. A revista é aberta a temas de áreas como história, filosofia, sociologia, antropologia, literatura, música, mas também ciências exatas, médicas e biológicas. Trata-se
de uma publicação de história intelectual em sentido amplo. Anamorfose tem, por um
lado, a proposta de se pôr, desde o início, dentro do cenário internacional do debate
acadêmico, e, por outro, integrar os pesquisadores brasileiros que se ocupam da primeira modernidade e suas repercussões nacionais e mundiais.
São aceitos artigos em português, espanhol, inglês, francês e italiano. Os trabalhos, acompanhados de resumos, serão submetidos ao Conselho Editorial.
Sumário
07
08-35
Editorial
Il tempo come tema di arie e dialoghi –
Le vecchie nutrici delle opere seiscentesche veneziane
Ligiana Costa
36-59
Genèse et ruine de la modernité –
Des tableaux de vanités aux natures mortes de Bernd et Hilla Becher
Maya Suemi Lemos
60-85
No seio das doutas virgens.
Análise pastoral de um texto preambular de Montaigne
Rafael Marcelo Viegas
86-98
Negociações semânticas acerca da fisiologia da melancolia na
Universa medicina, de Jean Fernel (1497?-1558)
André Rangel Rios
Editorial
Anamorfose é uma revista semestral, mantida e animada pela RidEM (Rede
interdisciplinar de Estudos Modernos – IFHT, UERJ) e estruturada por meio da
plataforma Seer/OJS. São aceitas contribuições de estudiosos de todas as áreas do
conhecimento, que versem sobre temas referentes ao período que vai do século XV
ao século XVIII. Os números são temáticos, mas contribuições livres são aceitas, em
função da disponibilidade e adequação ao contexto, obedecidos os critérios definidos
pelos editores.
Este primeiro número traz, sobretudo, contribuições de membros da RidEM.
Ligiana Costa pondo em cena a “velha nutriz” na ópera veneziana do século XVII,
comentando sua presença em vários temas de árias e diálogos. A seguir, Maya Lemos,
como que reenfatizando a força da passagem do tempo, compara o trabalho fotográfico
de Bernd e Hilla Becher sobre instalações industriais abandonadas com os tableux de
vanités. Rafael Viegas analisa o topos da “excelência da vida no campo” partindo de
seu contexto na literatura bucólico-pastoral clássica até chegar à inscrição feita por
Montaigne em uma parede de seu château (por ocasião de seu afastamento da vida
pública). Por fim, André Rios, em uma leitura da Physiologia, de Jean Fernel, descreve
brevemente não só o significado e a função da bile negra, mas a instabilidade semântica
de termos-chave da fisiologia (inclusive atra bilis) e o manejo, basicamente positivo,
feito por Fernel em decorrência dessa instabilidade.
A partir do segundo número – com o dossiê “Melancolia”, tema do simpósio
promovido pela RidEM em novembro (com apoio da Capes) –, Anamorfose integrará
definitivamente a logística da plataforma Seer/OJS, por ora em fase de teste (neste
primeiro número tanto a proposição dos artigos quanto o envio dos pareceres anônimos
ainda ocorreram, em sua maioria, fora do sistema). Gradualmente implementada no
país, essa plataforma permite gestão integrada de pareceres, contribuições, revisões e
postagens online, sendo indicada pelos órgãos de fomento à pesquisa como o modelo
futuro para revistas acadêmicas de qualquer porte. No próximo ano, os trabalhos
publicados em Anamorfose passarão a ser registrados sob a licença Creative Commons.
Agradecemos à Faperj, à Capes, ao IFHT/UERJ, ao IMS/UERJ, ao IL/UFRJ e ao
Escritório do Livro e de Mediatecas da Embaixada da França pelo apoio nesse trajeto de
formação da RidEM, assim como na realização de suas primeiras atividades, das quais
Anamorfose se constitui como dimensão importantíssima.
O calendário de futuras contribuições será disponibilizado na página da Rede, no
endereço www.ridem.net .
André Rangel Rios
EDITORIAL
7
Anamorfose - Revista de Estudos Modernos, 1 (2013), pp. 08-35
Il tempo come tema di arie e dialoghi - le vecchie
nutrici delle opere seicentesche veneziane
Ligiana Costa
La scelta di questa immagine1come epigrafe a quest’articolo dedicato al rapporto delle
vecchie con «i difetti del tempo» – secondo le parole di Crocca nel Pastor reggio di
Ferrari – ha lo scopo di fornire un analogon visivo contemporaneo al tema che ci
accingiamo a trattare. È un autoritratto di Cindy Sherman, fotografa americana, in cui
l’artista si impossessa di uno stile classico di stampo pittorico, che dà rilievo al misto di
grottesco e malinconia, anche in ragione del cortocircuito rappresentazione/realtà che
l’immagine suscita.
La caducità
Il tema del trascorrere del tempo e della vanità dell’uomo e del mondo è consueto
nella letteratura italiana del Cinquecento e avrà, come vedremo, una forte ricaduta
sulla costruzione dei ruoli dei quali ci occupiamo in quest’ articolo, le vecchie nutrici
comiche delle opere veneziane del ‘600. Questo topos letterario è legato in particolare
alla stagione controriformistica che dà inizio all’era moderna. Il principio del
contemptus mundi, nozione caratteristica di questa epoca di messa in discussione e
nello stesso tempo rivalutazione della religiosità, alimenta con tutti i suoi concetti e
le sue imagines l’espressione di una visione pessimistica dell’esistenza.2 La fragilità e
1 Cindy Sherman, Untitled #222 (fotografia a colori), 1990, Michael and Jeanne Klein.
2
M. Lemos, Du discours moral au discours musical – Le thème de la vanité dans la musique italienne post-tridentine, tesi di
dottorato, Université Paris IV, Sorbonne, 2006, p.5.
8
A N A M O R F O S E - R E V I S TA D E E S T U D O S M O D E R N O S • V O L I • N º I • 2 0 1 3 • R i d E M
la brevità della vita sono dunque cardini che reggono il campo tematico della vanitas,
che anima gran parte della produzione poetica e di conseguenza musicale del tardo
rinascimento.3
La rappresentazione del rapido corso del tempo e delle sue conseguenze
sull’uomo viene spesso associata all’immagine di una figura femminile invecchiata. La
donna costata quanto sia effimera la bellezza e ostenta le proprie rughe, testimonianze
tangibili del passaggio inafferrabile del tempo. Nell’ultimo libro delle Metamorfosi di
Ovidio ritroviamo Elena di Troia in lacrime davanti allo specchio:
Flet quoque, ut in speculo rugas adspexit aniles,
Tyndaris, et secum, cur sit bis rapta, requerit.
Tempus edax rerum, tuque, invidiosa Vetustas,
omnia destruitis, vitiataque dentibus aevi
paulatim lenta consumitis omnia morte. 4
Il dipinto di Giorgione, La vecchia (1508 ca.), è un tipico esempio della rappresentazione,
sub specie humana, della tematica della vanità e del trascorrere del tempo. La vecchia
porta in mano un cartiglio recante la scritta «Col tempo», indica se stessa con la mano
e, con la bocca semiaperta, sembra dire al pubblico: “Con il tempo sono diventata così”.
Giorgione. La Vecchia (olio su tela), 1502-1503 ca., Galleria
dell’Accademia, Venezia, Italia.
3 Fra gli esempi più rilevanti, il terzo madrigale della Selva morale e spirituale (1640) di Claudio Monteverdi, con testo di
Angelo Grillo: «È questa vita un lampo / ch’all’apparir dispare / in questo mortal campo. Che se miro il passato, / è già morto
il futuro ancor non nato / il presente sparito / non ben ancor apparito. / Ahi lampo fuggitivo e si m’alletta! / e doppo il lampo
pur vien la saetta!».
4 «Piange anche la Tindàride, quando scorge nello specchio le rughe senili, e dentro di sé si domanda come abbiano potuto
rapirla due volte. O Tempo divoratore, e tu, invidiosa Vecchiaia, voi tutto distruggete e a poco a poco consumate ogni cosa
facendola morire, rosa dai denti dell’età, di morte lenta». libro XV, Ovidio P. N., Metamorfosi, a cura di Piero Bernardini Marzolla,
Torino, Einaudi, 1994, p. 615.
I L T E M P O C O M E T E M A D I A R I E E D I A LO G H I – L E V E CC H I E N U T R I C I D E L L E O P E R E S E I C E N T E S C H E V E N E Z I A N E
9
Dal punto di vista interpretativo e stilistico, il quadro di Giorgione viene spesso
accostato all’Avaritia di Albrecht Dürer, dipinta sul dorso di un ritratto di un giovane
uomo. In questo caso la tematica del tempo viene combinata con un altro messaggio
morale, che completa la raffigurazione della vanitas.
Albrecht Dürer, Allegoria dell’avarizia (olio su tela), 1507, Kunsthistorisches Museum.
Come si può osservare dalla foggia degli abiti, in entrambi i casi non ci troviamo
di fronte a nobildonne, bensì a figure di vecchie popolane. L’ultima, soprattutto, ci
rimanda anche all’immaginario delle vecchie nutrici grazie al seno scoperto e alla
presenza del denaro. Da notare inoltre la presenza della componente moraleggiante:
nel primo caso esplicitata attraverso il cartiglio, nel secondo come emblema stesso
del quadro. Importante infine sottolineare il contrasto fra l’elemento morale quello
popolare e basso che l’immagine della vecchia porta con sé.
In questa prospettiva si potrebbe sostenere che le vecchie nutrici delle
opere seicentesche veneziane siano portatrici della vanitas all’interno degli intrecci.
Nell’insieme di arie e dialoghi che compongono il nostro corpus il concetto di vanità
emerge chiaramente. Le vecchie delle scene veneziane riconoscono la brevità e la
caducità della vita ma, diversamente dal repertorio di madrigali e canzoni che trattano
il tema, esse cercano di offrire soluzioni e sollievo a questa immutabile realtà. La
nozione di vanitas viene dunque combinata con l’oraziano carpe diem, con un esito
vitalistico: la sola via di uscita dalla certezza della finitudine è approfittare del momento
presente, essendo tale momento presente la gioventù (nei casi di arie indirizzate alle
giovani protette) o la vecchiaia stessa (in forma di tentativi di conquiste amorose o di
immersione nei ricordi del passato).
Jean François Lattarico aveva già osservato la particolarità di questi ruoli
10
A N A M O R F O S E - R E V I S TA D E E S T U D O S M O D E R N O S • V O L I • N º I • 2 0 1 3 • R i d E M
riferendosi alle due vecchie del libretto Gli amori di Apollo e Dafne di Busenello:5
Quant à Filena, elle peut en toute vraisemblance apparaître comme le
logothète du poète: ses propos sont un mélange de pessimisme lucide
(sur la caducité de la vie humaine) et une invitation à jouir du temps
présent. Ainsi les vers que Busenello lui prête («Ninfa non vagheggiata,
e non goduta / è una morta pittura, che soggiace alla polve»; «La voluttà
pentita / non fa tornare in dietro / la già trascorsa vita»; «Godiam la luce
in sin che dura il giorno, / che l’andata mortal non fa ritorno») semblent
être la transposition librettistica de ses propres sonetti morali.6
La problematica del tempo riguarda direttamente le vecchie nutrici più che ogni altra
tipologia di ruolo delle scene veneziane, per ovvi motivi di età avanzata ma anche
per la presenza del desiderio di amare e l’impossibilità di realizzarlo. Trattandosi di
un personaggio anziano, la vecchia è testimone privilegiata dei fatti accaduti prima
dell’azione e del passaggio del tempo.
Ci si chiede se esista tentativo cosciente da parte dei librettisti di mettere in
scena i valori e l’etica della vanitas attraverso questi ruoli comici, o se il discorso da
loro sostenuto non sia che un riflesso naturale della produzione poetico-musicale
contemporanea. I riferimenti al discorso della vanitas compaiono in diverse sfaccettature
nelle arie delle vecchie nutrici: come rimpianto del passato, come avvertimento ai
giovani di amare finché si è giovani o come pura meditazione sulla fugacità del tempo.
«La memoria è flagello»7
Pochi sono i libretti del Seicento veneziano ad avere una coppia di vecchie fra i
protagonisti. Meno rari sono i casi di due servi maschili, forse come un riflesso della
tradizione di coppie di zanni nei canovacci della Commedia dell’Arte. Si osserva però,
nei rari casi di genere femminile, una tendenza dei librettisti a concepire i due ruoli
come contrappunto l’uno dell’altro: una vecchia moraleggiante dedita al contemptus
mundi e una che, come la maggioranza delle vecchie del nostro repertorio, loda i piaceri
della vita. Rientrano in questa casistica:
Opera
Vecchia moraleggiante Vecchia lasciva
Gli amori di Apollo e di Dafne (1640)
Cirilla
Filena
L’incoronazione di Poppea (1643)
Arnalta
Nutrice
L’Helena rapita da Theseo (1653)
Nisa
Riffea
5 J.F. Lattarico, «“Diva anzi più che diva” Les représentations de la Fortuna dans les melodrammi di Gian Francesco Busenello»,
in Italie(s), X, p. 103.
6 Ivi, p. 104.
7 Nisa in L’Helena rapita da Theseo, di Badoaro, 1653 (I/2).
I L T E M P O C O M E T E M A D I A R I E E D I A LO G H I – L E V E CC H I E N U T R I C I D E L L E O P E R E S E I C E N T E S C H E V E N E Z I A N E
11
Interessante osservare che i primi due casi sopracitati riguardano libretti di Busenello,
celebre membro dell’Accademia degl’Incogniti e autore di una serie importante di
sonetti, fra cui un sonetto morale (XCIV) sul topos della fugacità del tempo:
Moralità XCIV
Movi, ingegno, all’eccelso, e lascia in queste
caliginose valli il buio, il tetro.
Ergiti all’adamante e sprezza il vetro;
ne gl’occhi tuoi splendor bugiardo arreste.
Cenericia e canuta è homai la veste,
che d'oro fu nelle stagioni addietro.
Su favolose scene il ver penetro;
cercai salubrità dentro alla peste.
In grembo a miglior studj habbiam ricchezza,
cui di fortuna l’insolente fromba
suderà in van per adeguar l’altezza.
Del mondano clangor sprezziam la tromba:
la rondine a comporre il nido è avvezza:
sia nostra cura al ben compor la tomba. 8
Il tema della caducità dell’uomo è particolarmente caro a Busenello, che lo esplora
in tutta la sua produzione letteraria, inclusi i libretti.9 Non sembra dunque illogico
il desiderio di contrapporre una nutrice “morale” ad un’altra “lasciva” in certi testi.
Un terzo libretto di Busenello può essere a questo riguardo invocato: si tratta della
Prosperità infelice di Giulio Cesare dittatore (1646), probabilmente mai messo in
musica. Le due vecchie in esso presenti sono Eufrosina e Aspasia, nutrici di Cornelia e
Cleopatra rispettivamente. Eufrosina condivide con Cirilla e Arnalta un propensione
gnomica di sfondo più pessimistico:
[I/5]
Eufrosina
Eufrosina decrepita
venuta agl’anni in odio
tuoi turbolenti dì
qual sorte ha prolongati infino a qui?
[…]
8 Il sonetto è conservato in forma manoscritta presso la Biblioteca Nazionale Marciana di Venezia; cit. in F. Busenello, I sonetti
morali ed amorosi di Gian Francesco Busenello (1598-1659), testo critico a cura di Arthur Livingston, Venezia, Prem. Stab.
Grafico Fabbris di S., 1911, p. 72.
9 Qualche esempio di questa costante: il coro in Gli amori di Apollo e Dafne che canta «Tutto invecchia, tutto cade / si corrode
il duro bronzo / e’l marmo fin» o i versi messi in bocca al ruolo comico del servo Vaffrino in Statira: «Chi dicesse alla polve, un
uom sarai/ riderebbe la polve / di proposta sì strana / pur la polve s’incarna, e al fin si umana / più differenza è da la sabbia
all’uomo / che dal servo al regnante».
12
A N A M O R F O S E - R E V I S TA D E E S T U D O S M O D E R N O S • V O L I • N º I • 2 0 1 3 • R i d E M
La fresca età, che in ore si dissolve,
da dolori del parto è tormentata,
e la vecchiaggia stroppia, e beffeggiata,
è in forma humana un cumulo di polve.
Aspasia si colloca fra le vecchie scaltre e lascive, come si può osservare in questo dialogo
istruttivo con Cleopatra:
[IV/1]
Aspasia
In questo primo incontro
serba però il decoro, e con mistura
di sussiego, e sorriso,
con argute vicende
d’Amore, e di rigore arma il bel viso.
Lussureggia con reggie bizzarie,
e con arti profonde
d’un lascivir pudico,
d’un vezzeggiar severo
confondi, e innamora il genio altero.
Son superbi i romani,
hiperboleggia nelle lodi, e sappi
che il lodator scaltrito,
ancorché sia di falsità convinto,
già mai non fù, ne sarà mai punito,
il secol nostro autentica le frodi
mascherate da lodi.
Fra i libretti di Busenello il caso più evidente di contrapposizione fra due vecchie si
trova nell’opera sopracitata Gli amori di Apollo e Dafne: Filena, descritta nel libretto
come «amica e consigliere di Dafne» e notata in chiave di soprano, e Cirilla, nel libretto
chiamata «vecchia» e scritta in chiave di tenore. Cirilla è un personaggio raro fra tutti gli
altri del nostro corpus poiché non ha nessuna traccia di comicità e incarna pienamente
tanto il contemptus mundi quanto la vanitas. È lei che apre l’azione, quasi come un
personaggio allegorico (ricorda sotto molti aspetti l’Humana Fragilità del Ritorno
d’Ulisse in Patria), con un’aria strofica con incipit-motto in evidenza, nella quale loda i
pregi della povertà e della decrepitezza che conduce alla fine della vita:10
10 Nel libretto L’Alciade di Faustini portato alle scene nel 1667 nel Teatro Santi Giovanni e Paolo vi è un’aria, cantata dalla
vecchia Elibea (III/7) che sembra fare eco a quella di Cirilla: «O felice povertà / nelle selve / tra le belve / unqua il fulmine non
và, /o felice povertà. //Altri nato in mezo à boschi / dalla Gregia / và alla regia, / e d’Egitto re si fa, / o felice povertà. //Vada pur
tra le boscaglie / vag’ Adone / le corone, / ed il trono in Cipro havrà, /o felice povertà».
I L T E M P O C O M E T E M A D I A R I E E D I A LO G H I – L E V E CC H I E N U T R I C I D E L L E O P E R E S E I C E N T E S C H E V E N E Z I A N E
13
Le strofe che seguono sono le seguenti:
Il rio, che qui vicino
corre con pie’ d’argento
comparte a questo corpo,
che rassembra del tempo il simulacro,
dolce bevanda e commodo lavacro.
Gradita povertà ecc.
L’invidia, o l’ambizione
non appesta i miei sensi;
genio semplice e puro,
ch’all’innocenza altrui frodi non tesse,
non conosce perfidia, né interesse.
Gradita povertà ecc.
14
A N A M O R F O S E - R E V I S TA D E E S T U D O S M O D E R N O S • V O L I • N º I • 2 0 1 3 • R i d E M
Questa cadente etade
sempre più mi rallegra perché di giorno in giorno
più m’avvicino alla beata sorte:
ché per passare al Ciel ponte è la morte.
Gradita povertà ecc.
Alla fine, in un recitativo, Cirilla rievoca il sogno premonitorio che ha avuto e decide di
consultare il saggio Alfebiseo per averne un’interpretazione:
Chi scaccia il sonno a forza
traballa et isbadiglia,
e gl’occhi stanchi e fralli,
che per l’età chiaro guardar non ponno,
per non si contristar, stan chiusi al sonno.
Ma che torbido sogno
m’inquieta stamane?
Mi par che in questa pioggia
una donzella vaga e delicata
siasi in ruvido tronco trasformata!
Ma colà vedo il saggio
Alfesibeo, ch’intende
di natura e del cielo
le ragioni recondite e profonde:
ei saprà dir ciò che’l mio sogno asconde.
L’ultima scena dell’intreccio è agita dalle due vecchie, che per la prima ed ultima volta
si confrontano; curiosamente questa intera scena non è presente nel manoscritto
musicale. Le due vecchie osservano la trasformazione di Dafne in albero e sentenziano
in accordo con le precedenti posizioni. Filena, che prima aveva insistito affinché Dafne
si affidasse alle grazie d’Amore, dà la colpa a Dafne stessa che rifiutò i “godimenti”;
Cirilla abbandona la tematica nella sua declinazione più universale per confrontarsi con
la questione vera e propria del desiderio femminile, facendo specialmente riferimento
alla società contemporanea. Chiude la scena e l’intera opera una critica feroce di Filena
alle vecchie ritrose:
Filena
Hor hai finite, o Dafne,
l’indomite pazzie.
Non era meglio, o stolta,
compiacere ad Apollo,
che diventare un tronco?
Hor delle colpe tue soffri la pena,
si pazza già non sarà mai Filena!
Ricusar dolci baci,
rifiutar godimenti
per crescer alle selve amori novi!
I L T E M P O C O M E T E M A D I A R I E E D I A LO G H I – L E V E CC H I E N U T R I C I D E L L E O P E R E S E I C E N T E S C H E V E N E Z I A N E
15
ben il volgo ha ragione
nel dir che'l mondo tutto è opinione.
Un incalmo de fiori
si paga a prezzo d’oro,
et è pompa e thesoro de' giardini;
un incalmo de frutti
si guarda e custodisce,
e gli si dà a misura e pioggia, e Sole,
e negl'horti de’ sensi innamorati,
e nei giardini amabili dell'alme
opinion non vuol, ch'amor s’incalme.
Quel che lice e conviene
alle colombe istesse,
che della purità sono l’idee;
quel che lice agl'agnelli
essempi d’innocenza, e d’humiltade,
tra le ninfe e i pastori
è nota di vergogna e dishonori!
O Filena infelice
non serenar mai più la faccia mesta:
tempi e costumi rei, che legge è questa?
Cirilla
Alfesibeo m’ha detto
il mistero del sogno,
et è toccato a Dafne il trasformarsi.
Filena
Guarda Cirilla, guarda,
ecco l’albore novo,
in cui cangiossi l’ostinata Dafne.
Cirilla
Metamorfosi bella, et honorata,
ninfa degna d’eterne ricordanze!
E tu circondi di mordace biasmo
un’azzione si nobile et illustre?
Tranguggia quelle voci
scostumata Filena,
che il fiore virginale conservato
divide per metà con Giove istesso
il titolo d’eterno, e di beato.
E donzella ben nata
più stimar de’ la gioia dell’honore,
che le proprie pupille, e’l proprio core.
Se bene (o nostri dì caliginosi!)
hor sono le cittelle
pur troppo baldanzose,
né tali io le vorrei:
così già non s’usava a’ tempi miei!
16
A N A M O R F O S E - R E V I S TA D E E S T U D O S M O D E R N O S • V O L I • N º I • 2 0 1 3 • R i d E M
Hora la giovinetta
dal guscio a pena uscita
alla finestra aspetta,
se al vezzo alcun la invita:
mentre di latte ancor sua bocca sente
studia co’ sguardi avvelenar la gente.
Morde il labro lascivo,
poi con la lingua il molce,
fa l’occhio semivivo
in un delirio dolce:
mentre l’incauta madre è intenta all'ago
getta la sfacciatella i baci al vago.
Nel fior dell’età verde
coglie d’infamia il frutto.
Ma su l’honor che perde
apre un fondaco brutto,
perché subordinando inganni rei
si vende per donzella a cinque e a sei.
Se fosse in mia balia
citella senza ingegno,
le trarrei la pazzia,
a fé, con questo legno,
ché può sol un baston co’ suoi rigori
mortificar pruriti, e pizzicori!
Filena
Se tu non fossi vecchia
avresti altri pensieri,
ma in somma così va
fredda decrepità,
che rincresce a se stessa, e gli altri annoia;
mentre di dolce brillo i spirti ha privi,
fa la satrapa addosso ai sensi vivi.
Queste vecchie beffane
insensate et insane
mordon sempre co’ detti lor pungenti,
mentre per morder pan non hanno denti.
Sempre fanni bisbigli
con sciapiti consigli,
e stanche homai di godimenti mille,
hor che non posson più, fan le Sibille.
Un altro caso che può, in maniera immediata, darci una nozione della complessità di
I L T E M P O C O M E T E M A D I A R I E E D I A LO G H I – L E V E CC H I E N U T R I C I D E L L E O P E R E S E I C E N T E S C H E V E N E Z I A N E
17
questi ruoli è la coppia di «vecchie abitanti in capanna» del libretto L’Helena rapita da
Theseo (1653) di Badoaro con musica (perduta) di Cavalli, ma attribuita spesso anche a
Jacopo Melani. Nella scena in cui appaiono i due personaggi per la prima volta vi è una
didascalia che sottolinea lo stato decrepito di Nisa e pone un dubbio su quello di Riffea,
che all’interno del libretto si caratterizza chiaramente come una vecchia: «Nisa vecchia
cadente, e Riffea manco vecchia».11 Il dialogo fra le due vecchie in versi sciolti è costruito
intorno alla contrapposizione delle tesi sostenute da queste. Tutte e due sono coscienti
della decrepitezza che le riguarda, ma Nisa ha una visione puramente negativa e quindi
più strettamente legata al concetto di vanitas rispetto a Riffea che cerca di godere il
presente grazie ai ricordi del passato, un carpe diem basato sui ricordi: “cogli l’attimo
per ricordare”. Riffea dice «Hor dei passati dì / pur godo allhor che penso», mentre Nisa
sostiene che la «memoria è flagello»:
[I/2]
Nisa
Stanca son di portar ceneri, et ossa
Riffea sorella amara
questa machina antica,
che poco basta a sostener natura
tremante, e mal sicuta
varca tombe, e sepolcri,
e con si picciol legno
disperdo l’hore in misurar la fossa.
Stanca son di portar ceneri, et ossa.
Riffea
Corronsi dietro ò Nisa
la tua cadente, e la mia vecchia etade;
ma tu vivi dolente
ogn’hora mesta sei
io rubbo dolcemente
al tempo, et alla morte i giorni miei.
Fuggiamo sorella
la noia, e ‘l martir;
è mal esser vecchia
ma peggio è morir.
Nisa
A questa mia decrepità cadente
assai maggior fatica
è ’l viver del morire.
Con mille affanni, e doglie
compro quest’hore corte
e con un sol sospir pago la morte.
Riffea
Col cangiarsi dei dì non che degl’anni
11 A meno che non si debba leggere “manco” come “anco”.
18
A N A M O R F O S E - R E V I S TA D E E S T U D O S M O D E R N O S • V O L I • N º I • 2 0 1 3 • R i d E M
si cangiano i diletti
scorre l’humana voglia
variabile, e mista
se si perde un piacer un sen s’acquista.
Ogni età seco porta il suo goder
pur, che lieto si viva
ogni cosa è piacer.
Le delizie del cor mutano tempre,
e quel, ch’oggi gradì non piace sempre.
Giovine, e bella sì
hebbi diletti al senso,
hor dei passati dì
pur godo all’hor, che penso.
Così l’età cangiata ha doppia gloria
gode pria le bellezza hor la memoria.
Nisa
Mal discorri sorella
ciò, che di ben passò resta in affanno
se l’utile rammenti hor trovi il danno;
che del goduto bene,
e del perduto bello
i pensieri son pene
la memoria è flagello.
Riffea
O che gioia il pensar
nei trionfi passati
l’amoroso pennar
di mille innamorati
Nisa
O che duolo il soffrir
dietro le cose andare
un sempre van desir
delle gioie passate
Riffea
Non mi torrà
la fredda età
con i rigori sui
ch’al fin non possa dir io bella fui
Nisa
Stolta Riffea sei tu;
se fosti fresca, e bella, hor non sei più
è vano pregio in cominciar da su.
Più avanti Theseo e Peritoo («re de Lapiti in Tessaglia») portano Helena alla capanna
delle due vecchie perché veda la «vecchia consolatrice» e in questo momento, rapportate
I L T E M P O C O M E T E M A D I A R I E E D I A LO G H I – L E V E CC H I E N U T R I C I D E L L E O P E R E S E I C E N T E S C H E V E N E Z I A N E
19
alla gioventù di Helena, le diverse posizioni delle due vecchie vengono nuovamente
contrapposte:
[I/3]
Nisa
Non te l’invidio io no
Riffea
Io sì
io te l’invidio sì
buon pro vaga donzella
io benché vecchiarella
se vecchio ho ’l volto, ho giovine il desio
Theseo
Riffea canuta, e saggia
questo ricco tesoro
di raggi, rose, et oro
tesoriera selvaggia a te consegno
tu per serbarlo adopra
la tua fede, e l’ingegno.
Riffea
Se rubbomi il piacer l’età vorace
apprestar gioie a gl’altri almen mi piace
[…]
In questo momento Helena si dispera e le vecchie iniziano una specie di indottrinamento
alla giovane in settenari piani e tronchi, nel quale a parlare è esclusivamente Riffea, la
più pragmatica fra le due. Tre volte viene ripetuto il ritornello cantato dalle due vecchie
«Altro non ti dirà / bocca, che sia verace».
Riffea
Udisti certo ancora
dirti ch’il bel seren
d’ogni più vaga aurora
tosto all’Hespero vien.
à due
Altro non ti dirà
bocca, che sia verace
Riffea
Tramontarà
tua gran beltà,
portalo cara in pace
Riffea
20
A N A M O R F O S E - R E V I S TA D E E S T U D O S M O D E R N O S • V O L I • N º I • 2 0 1 3 • R i d E M
Fà nel verno passaggio
lucido il sole in ciel;
ma col suo fianco raggio
non può stemprar il gel
à due
Altro non ti dirà
bocca, che sia verace
Riffea
Vola, sen và
la fresca età,
portalo cara in pace
Bella connobbi anch’io
le ricchezze d’Amor,
hor nel guadagno mio
cangio in argento l’or
à due
Altro non ti dirà
bocca, che sia verace
Riffea
Tempo non sta
toglie se da,
portalo cara in pace.
In seguito, di fronte all’angoscia di Helena di essere desiderata sia da Peritoo che da
Theseo, la vecchia Riffea consiglia non soltanto di godere del momento presente, ma
anche di tenersi i due amanti.
«O Tempo divoratore»12
Il tempo è il maggior responsabile per la decrepitezza e, conseguentemente, per
l’impossibilità di una vita amorosa attiva. Le vecchie costituiscono la personificazione
della decadenza fisica, andando al di là della idea astratta di vanitas. Il carattere comico,
inerente a questi ruoli, prende in contropiede la serietà del tema con i suoi effetti di
parodia e di travestimento; questa particolarità rende rari i casi di arie o momenti
totalmente seri (come i casi sopra citati). La constatazione della decrepitezza viene
solitamente accompagnata dal ricordo di una gioventù felice e sessualmente attiva.
Numerosi sono gli esempi di arie strutturate in questo modo: un primo momento di
12 Ovidio P. N., op. cit., p. 615.
I L T E M P O C O M E T E M A D I A R I E E D I A LO G H I – L E V E CC H I E N U T R I C I D E L L E O P E R E S E I C E N T E S C H E V E N E Z I A N E
21
lamento serio e un secondo momento di ricordi della gioventù e degli amori passati.
Un esempio può essere quello dell’aria strofica (II/16) della vecchia nutrice Alcesta
nell’Erismena di Aureli/Cavalli (1655), nella quale i due momenti formano le due strofe
dell’aria, una che inizia con la parola «Maledetto» e l’altra con «Benedetto». Prima
dell’aria strofica vi è un piccolo recitativo di rassegnazione:
Anche nel Giasone di Cicognini/Cavalli, dato al Teatro San Cassiano nel 1648, troviamo
un esempio di questa struttura dove due strofe sono in contrasto sui contenuti ma
musicalmente sono identiche. Nel caso di quest’aria di Delfa la struttura si fa un po’
più complessa poiché le due strofe hanno già all’interno di sé stesse un momento
22
A N A M O R F O S E - R E V I S TA D E E S T U D O S M O D E R N O S • V O L I • N º I • 2 0 1 3 • R i d E M
contrastante ben chiaro poeticamente esplicitato dalla congiunzione avversativa “ma”.
I versi sciolti che prima intercalano un settenario tronco e un endecasillabo:
[I/8]
Delfa
Voli il tempo se sa,
rotin gli anni fugaci al corso loro,
mi rubi pur l’età
i fior dal volto e dalle chiome l’oro,
sen vada a tramontar
la mia bellezza in mar d’eterno oblio,
ma ch’io lassi d’amar
no’l farò, non a fé,
non a fé, no 'l farò, non io, non io.
L’amor in gioventù
è un prurito nascente e non ha possa,
ma da i quaranta in giù
nel cor s’incarna e penetrò nell'ossa;
potrà scemarmi ogn’or
il tempo avaro, la fierezza e ‘l brio,
ma ch’io rineghi amor,
dica pur chi vuol dir,
chi vuol dir, dica pur, non io, non io.
Musicalmente questa negazione della vecchiaia che allontana l’amore viene sottolineata
con un passaggio in tre, come possiamo osservare:
I L T E M P O C O M E T E M A D I A R I E E D I A LO G H I – L E V E CC H I E N U T R I C I D E L L E O P E R E S E I C E N T E S C H E V E N E Z I A N E
23
24
A N A M O R F O S E - R E V I S TA D E E S T U D O S M O D E R N O S • V O L I • N º I • 2 0 1 3 • R i d E M
Tipico di questi ruoli è anche la negazione della vecchiaia, dell’effetto distruttore del
tempo sulla bellezza, delle capacità di seduzione e, soprattutto, di soddisfare gli amanti.
Il paradosso fra l’età di questi personaggi e il loro discorso è, come abbiamo visto in più
passaggi, ciò che dà corpo al grottesco e al gioco comico. A disquisire sul tempo e la
caducità non vi sono soltanto le vecchie nutrici ma sono loro che offrono una soluzione
a questa problematica. Molti sono i prologhi dove tale tematica viene sollevata come
una premessa all’intreccio o semplicemente come un preambolo morale al pubblico. La
presenza di questi personaggi allegorici del Tempo nelle scene drammatiche veneziane
è un proseguimento della tradizione di prologhi allegorici degli oratori romani, come
è il caso nella Rappresentazione di anima e di corpo di Manni/Cavalieri. Nel repertorio
veneziano qualche esempio dell’intervento del Tempo nel prologo lo si può trovare ne
La prosperità infelice di Giulio Cesare dittatore di Busenello o ancora in Germanico sul
Reno di Corradi/Legrenzi.
Il tempo può diventare dunque motivo di burla e oggetto di sfida per i nostri
personaggi, come è il caso di Dalisa in Annibale in Capua che, innamorata del paggio
Gilbo, canta l’aria seguente (II/4) nella quale sfida i poteri distruttori del tempo. Si può
notare che si tratta di un’aria particolarmente ricca di melismi (se comparata alla gran
I L T E M P O C O M E T E M A D I A R I E E D I A LO G H I – L E V E CC H I E N U T R I C I D E L L E O P E R E S E I C E N T E S C H E V E N E Z I A N E
25
parte delle arie del nostro corpus) e che le parole in cui compaiono questi melismi sono
sia parole legate alla velocità del passaggio del tempo sia parole che caratterizzano la
vivacità della vecchia («edace», «fugace », «vorace», «sfavillanti», «brillanti»):
Una visione molto meno positiva del tempo che passa e delle possibilità offerte della
vecchiaia è mostrata dalla figura di Elisena nella Statira di Busenello/Cavalli data nel
1656 al San Giovanni e Paolo. In tutto il libretto vi è un solo momento in cui Elisena
ammette di poter sentire, anche se vecchia, i desideri di una volta.13 Elisena, in modo
molto simile alla Nutrice di Ottavia dell’Incoronazione di Poppea, dello stesso autore,
descrive le conseguenze che l’età sul corpo fisico in questo recitativo (I/10), il quale si
conclude con un veloce ricordo di un passato in balia di Amore:14
13 Tale passaggio (I/13) nella p. 145: «Io, che son donna e giungo agl’anni cento, / lontana da pruriti, e pizzicori,/ sentendo
questi lascivetti amori, / mi stransustanzio in un maschil talento. / Ma vedi, il re ch’adori, / a noi rivolge i passi, / sentirò pur le
dolci melodie, / e starò in disparte con gli occhi bassi».
14 In qualche caso sono altri personaggi a descrivere gli attributi fisici e sentimentali delle vecchie. Tale è il caso in Gli amori di
Alessandro Magno e di Rosane di Cicognini/Ferrari nell’aria di Arsalto (II/4): «Vecchiarella ch’è impazzita / riso, e gioco rende a
ogn’un, / già perde l'età fiorita, / onde scherzo è di ciascun; / per lei fiamma più non ho, / carne vecchia affé non vò. // Biondo
il crin fatto è d'argento, / il bell’occhio inlanguidi,/ pende il labbro, crespo è il mento, / e la guancia impalidi, / e ne gl’anni
s’avanzò. / carne vecchia affé non vò[…]».
26
A N A M O R F O S E - R E V I S TA D E E S T U D O S M O D E R N O S • V O L I • N º I • 2 0 1 3 • R i d E M
La continuazione di questo recitativo è l’aria in cui compaiono strofe composte da
tre quaternari tronchi nei quali la vecchia richiama l’attenzione in modo leggero al
veloce corso del tempo e della gioia - intercalate a strofe di due endecasillabi – in cui
la complessità della questione (in veste ancora più vicina al concetto di vanitas) viene
approfondita con una conclusione di carattere oraziano «niente è il fu, il sarà inganna
spesso, / disponi sol d’un fuggitivo adesso». Si potrebbe quasi trovare un senso in una
lettura intercalata delle strofe, leggendo separatamente i versi quaternari tronchi e poi
gli endecasillabi:
Elissena
Gioventù,
non è più,
quel che fu.
Il fine, poco fia che s’allontani,
che stenta l’oggi al ritrovar domani.
Quello ch’è,
male a fé,
tiensi in piè
Quando il posto tener credi occupato,
soffia via le tue polvi il tempo alato.
Se d’Amor
t’arde il cor,
I L T E M P O C O M E T E M A D I A R I E E D I A LO G H I – L E V E CC H I E N U T R I C I D E L L E O P E R E S E I C E N T E S C H E V E N E Z I A N E
27
godi il fior,
che se all’opre stamane il senso è ardito,
avrai stasera il polso indebolito.
Ti so dir,
che il gioir,
sa fuggir,
niente è il fu, il sarà inganna spesso,
disponi sol d’un fuggitivo adesso.
La vecchia Lenia, della versione mai portata alle scene dell’Eliogabalo di Cavalli15 fa, nel
recitativo e in seguito nell’aria strofica nella scena III/11, riferimento al viso impallidito
risultato della vecchiaia:
15 È noto il caso del libretto e della messa in musica dell’Eliogabalo di Aureli, che inizialmente fu messo in musica da Cavalli
(1668) ma andò alle scene con modifiche nel libretto, fatte dallo stesso Aureli, e con musica di Giovanni Boretti. Il ruolo della
vecchia ha nei due libretti nomi diversi: nella versione per Cavalli si chiama Lenia e nella versione per Boretti si chiama Nisbe,
anche i loro interventi vengono modificati da uno all’altro. Vi è ancora una versione dello stesso libretto del 1686 per il Teatro
Sant’Angelo nel quale la vecchia viene sostituita per un’altra tipologia di ruolo, la mora schiava, in questo caso chiamata
Alimena.
28
A N A M O R F O S E - R E V I S TA D E E S T U D O S M O D E R N O S • V O L I • N º I • 2 0 1 3 • R i d E M
Il correre del tempo, che per le vecchie è un supplizio e porta in se tutti i risultati fisici
che le abbiamo viste descrivere, può essere per i paggi un’idea più che gradita. Eudemo,
come il suo seguace Cherubino, chiede che il tempo passi velocemente per che arrivi
l’età in cui potrà godere i frutti dell’amore. Nella stessa scena (dopo che il paggio si
è addormentato) la vecchia Plancina fa il contrappunto al discorso del giovane,
lamentandosi della sua vecchia età:
Eudemo
Hore volate, fuggite o dì,
sì che grande anch’io diventi,
e contenti
poi colei ch’ho nel pensiero
perch’io son, a dir il vero
troppo picciolo così.
Hore ecc.
I L T E M P O C O M E T E M A D I A R I E E D I A LO G H I – L E V E CC H I E N U T R I C I D E L L E O P E R E S E I C E N T E S C H E V E N E Z I A N E
29
Anni correte, deh vieni età,
sarò forse all’hor gradito,
nel schernito
qual fanciul vano, e leggiero,
perch’io sono, a dir il vero
troppo picciolo così.
Hore ecc.
Germanico non viene,
et io di sonno moro.
E che sarebbe se cedessi alquanto
a dolce oblio profondo?
Non caderebbe il mondo.
sede e s’addormenta
Plancina
Crin d’argento,
senso lento
è gran martir.
Stan con gl’anni
solo affanni
e non gioir.
Fra gli attributi fisici risultanti dal passaggio del tempo, il più nominato dalle vecchie
delle scene veneziane è il bianco dei capelli. Fra le metafore più usate per menzionare
i capelli bianchi troviamo «brine» e «neve», parole che esprimono anche il freddo,
la scomparsa del desiderio e delle possibilità. Lisa, nutrice in Diocletiano di Noris/
Pallavicino del 1675, usa una struttura un po’diversa dalle altre arie di questo genere:
nel recitativo si ricorda di un passato di conquiste amorose e nell’aria riconosce che con
l’età se ne vanno le possibilità di realizzazione del desiderio (I/13):
30
A N A M O R F O S E - R E V I S TA D E E S T U D O S M O D E R N O S • V O L I • N º I • 2 0 1 3 • R i d E M
Nell’Amore della patria superiore ad ogni altro di Francesco Sbarra, dramma musicale
composto per «felicissimo parto della ser.ma Adelaide real principessa di Savoia»
la vecchia Lisarda fa riferimento ai capelli bianchi come segno inconfondibile del
passaggio del tempo, testimoniando anche la pratica antichissima di tingersi i capelli:16
[II/1]
Lisarda
[…]
Posson tingersi le brine,
che sul crine
ogni giorno il tempo fiocca;
si può rendere alla bocca
anco il dente già caduto;
che dell’arte con l’aiuto
questi, e altro si può fare:
ma tornare
in gioventù?
No, no, no;
Non si può,
donne mie non si può più.
Fidalba,vecchia nutrice di Zaffira nella Rosilena di Aureli (1664) dopo esser stata
16 Un piccolo approfondimento sulla questione dei capelli bianchi si trova nel capitolo «La vecchiaia come motivo derisorio»,
p.25
I L T E M P O C O M E T E M A D I A R I E E D I A LO G H I – L E V E CC H I E N U T R I C I D E L L E O P E R E S E I C E N T E S C H E V E N E Z I A N E
31
abbandonata in mezzo ad una fugga per il “peso degl’anni” si lamenta e allo stesso
tempo trova nel tingersi i capelli la soluzione per il suo problema:
Infelice e dove andrò?
Mal veduta
è la femina canuta
ma so ben quel, che farò
con un poco di cinabro
tingerò le guancie e’l labro,
e sotto ner colore in un momento
coprirò del crin l'argento;
so che faccia miniatta
è da giovani accolta e accarezzata.
Nel Mutio Scevola, dopo un tipico dialogo fra vecchia e paggio,17 la vecchia, pur
ammettendo che la bellezza va portata via dal tempo, non rinuncia al desiderio e alla
speranza di godere (I/17):
Porfiria
Benché il tempo, che fuggi,
la bellezza gli involò,
il desio dei più bei di
donna mai lasciar non può.
La speranza di gioir
con i giorni può cessar
ma la forza del desir
mai non usa abbandonar.
Erasmo da Rotterdam nel già citato Elogio della Follia fa una (crudele) descrizione
delle vecchie che nonostante l’età cercano di godere la vita.18 La follia sarebbe dunque il
rimedio alla sofferenza della constatazione del passaggio del tempo e delle conseguenze
sul corpo delle donne (dell’essere umano in generale). Lenia nel finale del primo atto
dell’Eliogabalo di Aureli/Cavalli canta insieme a Nerbulone la sua capacità di provare
gli effetti d’amore nonostante gli effetti devastatori del tempo:
17 Il dialogo è trascritto nella p.162.
18 Passaggio citato nel capitolo «La vecchiaia come motivo derisorio», p.25.
32
A N A M O R F O S E - R E V I S TA D E E S T U D O S M O D E R N O S • V O L I • N º I • 2 0 1 3 • R i d E M
Il rapporto con la vecchiaia e con le conseguenze del tempo sul corpo sono dunque un
punto importante nella creazione dei ruoli di vecchie. Sull’ambiguità dell’accettarsi o
meno in quanto vecchia citiamo un passaggio del dialogo fra la balia Lisaura e Celindo
in La donna più sagace fra l’altre, testo teatrale di Cicognini:
[I/5]
Celindo
Dite di vostro commodo.
Lisaura
Lasciatemi sedere perché io son vecchia, sapete.
Celindo
Come a voi piace.
Lisaura
Non vo sedere, no, che io non son vecchia.
Celindo
Per giovine vi tengo.
Lisaura
E pur volevi che io sedessi.
Celindo
Cara Lisaura, speditemi.
Il discorso morale e complesso della caducità delle cose, della vanità del mondo ha
un registro alto e viene professato da un personaggio popolare e di origini basse, è
fondamentale per la comprensione dei ruoli delle vecchie nutrici comiche nel repertorio
musicale veneziano del Seicento. Se l’opera veneziana ha come uno dei principali
apporti drammaturgici l’incontro fra sfere basse ed alte della società e dello spettacolo,
I L T E M P O C O M E T E M A D I A R I E E D I A LO G H I – L E V E CC H I E N U T R I C I D E L L E O P E R E S E I C E N T E S C H E V E N E Z I A N E
33
si potrebbe dire che i personaggi delle vecchie nutrici dei libretti rappresentino
la sintesi di questa mescolanza fra generi e sfere che è l’opera veneziana in sé. Una
microstruttura che riflette il principio fondatore della macrostruttura in cui è inserita.
34
A N A M O R F O S E - R E V I S TA D E E S T U D O S M O D E R N O S • V O L I • N º I • 2 0 1 3 • R i d E M
Resumo
Abstract
Este artigo é retirado de uma pesquisa apro-
Quest’articolo è tratto da una ricerca appro-
fundada sobre os personagens das velhas
fondita sui ruoli delle vecchie nutrici comi-
amas de leite cômicas nas óperas do século
che nell’opera del seicento veneziano, ruoli
XVII veneziano, personagens que povoaram
che hanno popolato le scene degli allora
as cenas dos então recentes teatros públicos
recenti teatri pubblici italiani. Fra le carat-
italianos. Entre as características destes per-
teristiche di questi ruoli vi è la meditazione
sonagens está a meditação sobre a caducida-
sulla caducità della vita che si dà tanto in
de da vida, que ocorre tanto em um registro
un registro denso, riprendendo le proprietà
grave, retomando as características da dou-
del contemptus mundi quanto, e questo in
trina patrística do contemptus mundi, quan-
modo più ricorrente, in vena comica, utili-
to, e isto de maneira mais recorrente, em veia
zzando di questo tema per sedurre giovani
cômica, utilizando este tema para seduzir
pagi o per stimolare gli accoppiamenti amo-
jovens pajens ou para estimular as uniões
rosi. Attraverso esempi del corpus in ques-
amorosas. Através de exemplos do corpus
tione, il topos viene analizzato, creando
em questão, o topos é analisado, estabele-
paralleli anche con la produzione teatrale
cendo-se paralelos também com a produção
coeva e anteriore.
teatral coeva e anterior.
Sobre a autora
Ligiana Costa é cantora e musicóloga, doutora em Musicologia pelas Universidades
de Tours (França) e Milão (Itália), com mestrado em Filologia Musical da Renascença
e Idade Média pela
Faculdade de Musicologia de Cremona (Itália). Sua pesquisa doutoral abordou aspectos da ópera barroca veneziana.
I L T E M P O C O M E T E M A D I A R I E E D I A LO G H I – L E V E CC H I E N U T R I C I D E L L E O P E R E S E I C E N T E S C H E V E N E Z I A N E
35
Anamorfose - Revista de Estudos Modernos, 1 (2013), pp. 36-59
Genèse et ruine de la modernité - des tableaux
de vanités aux natures mortes de Bernd et Hilla
Becher
Maya Suemi Lemos
Depuis la fin des années 1950, et près de quarante ans durant, les photographes
allemands Bernd et Hilla Becher se sont consacrés à fixer par l’image des bâtiments
industriels désaffectées, réalisant alors un travail de recensement systématique
devenu célèbre. Des centaines de constructions obsolètes de l’industrie dite lourde1
– gazomètres, hauts-fourneaux, châteaux d’eau, silos, fours calcaires, récupérateurs
de chaleur, tours d’extraction, tours de refroidissement – ont été ainsi registrées par le
couple allemand, dans une véritable archéologie de l’ère industrielle. À la fois imposants
et dérisoires, ces énormes édifices condamnés à la disparition s’érigent dans les clichés
des Becher comme autant de monuments : ruines et célébration d’une modernité
industrielle désuète. Architectures vidées de sens, elles nous causent impression
précisément par leur scandaleuse inutilité.
1 C’est à dire, des mines de charbon, usines calcaires, aciéries, usines sidérurgiques.
36
A N A M O R F O S E - R E V I S TA D E E S T U D O S M O D E R N O S • V O L I • N º I • 2 0 1 3 • R i d E M
Illustration 1 : Haut-fourneau, Youngstown, Ohio, États-Unis, 1981.
Photo : Bernd et Hilla Becher. © 2006 Bernd & Hilla Becher
GENÈSE ET RUINE DE LA MODERNITÉ – DES TABLEAUX DE VANITÉS AUX NATURES MORTES DE BERND ET HILLA BECHER
37
Illustration 2 : Four à chaux, Hönnetal, Sauerland, Alemagne, 1996.
Photo : Bernd et Hilla Becher. © 2006 Bernd & Hilla Becher
38
A N A M O R F O S E - R E V I S TA D E E S T U D O S M O D E R N O S • V O L I • N º I • 2 0 1 3 • R i d E M
Illustration 3 : Dépôt à charbon, Mine de Carolinenglück, Bochum, Alemagne, 1967. Photo : Bernd et
Hilla Becher. © 2006 Bernd & Hilla Becher
On a dit des clichés de Bernd et Hilla Becher qu’ils sont à la photographie ce
que les natures mortes sont à la peinture. En effet, dans une narrative descriptive
paradoxale, ces oeuvres semblent s’assimiler particulièrement aux natures mortes dites
« de vanité » du XVIIe siècle, en ce qu’elles mettent en évidence, par un image qui se veut
réaliste ou objective, non pas ce qui est, dans sa présence manifeste, mais justement
ce qui n’est pas ou qui n’est plus – la vacuité foncière que cacherait le spectacle de la
matière. Les unes comme les autres semblent opérer une quête ontologique qui révèle
non pas seulement les choses telles qu’elles apparaissent et s’imposent aux sens, mais
aussi les évidences du néant auquel elles seraient vouées. Dans les vanités comme dans
ces clichés, la matière, frappée de précarité, est donnée à voir dans sa marche certaine
vers l’abolition, fût-elle abolition de sens ou abolition physique. Scrutée avec un regard
GENÈSE ET RUINE DE LA MODERNITÉ – DES TABLEAUX DE VANITÉS AUX NATURES MORTES DE BERND ET HILLA BECHER
39
de naturaliste, voire d’anatomiste, la matière nous est offerte comme un spectacle du
vide pour le moins ostentatoire.
Illustration 4 : Pieter Boel. Vanité – allégorie des vanités du monde. 1663, Huile sur toile, 207 × 260 cm,
Palais des Beaux-Arts, Lille.
Nous proposons ici une lecture comparative qui identifie dans ces deux
manifestations artistiques, si éloignées dans le temps, des avatars d’une même perplexité
face à la nécessaire déchéance de toute chose, de toute construction et, par-là même,
de tout sens. Jalonnant respectivement le début des temps modernes et le déclin de
la modernité industrielle (et circonscrivant ainsi ce que Zygmunt Bauman a appelé la
modernité solide ou lourde) (Bauman, 2000), les vanités picturales et les photographies
de Bernd et Hilla Becher semblent constituer des trace de deux moments historiques
convergents de fractures, de perte de repères, de crise de sens et de valeurs.
Nostalgie de l’ancien monde
Les natures mortes de vanité – ainsi que les autres types ou sous-genres de
natures mortes du XVIIe siècle – furent exhumées grâce au travail de l’historiographie
de l’art du XXe siècle, vers les années 1930. Des études y ont été consacrées depuis, qui
ont décrypté le discours sous-jacent à la représentation de ces objets aussi nombreux
40
A N A M O R F O S E - R E V I S TA D E E S T U D O S M O D E R N O S • V O L I • N º I • 2 0 1 3 • R i d E M
qu’hétéroclites, entassés avec artifice sur une table et offerts frontalement aux yeux des
spectateurs dans une peinture méticuleuse, souvent illusionniste, à savoir un discours
moral qui, appuyé sur l’idée du caractère éphémère et inconstant des choses du monde,
avertirait le spectateur sur le manque de consistance et de valeur de tout ce qui relève
des instances terrestres et mondaines. Rangés sous la bannière de la sévère sentence
de l’Ecclésiaste – vanitas vanitatum et omnia vanitas –, des crânes, des sabliers, des
bougies à peine éteintes et des horloges rappellent, aussi statiques qu’éloquents, le
passage véloce du temps et notre fin inéluctable ; des fleurs, des fruits, des verres à demi
vides, des instruments de musique et des objets d’art illustrent l’impermanence des
choses de la nature ainsi que la fugacité des plaisirs procurés par les sens ; des bijoux,
des pièces ou des objets d’or et d’argent, couronnes et pourpre rappellent l’inconstance
de la richesse, du pouvoir et de la fortune ; des livres usés, des outils de mesure et de
géométrie avertissent, enfin, sur le caractère vain de toute connaissance et de toute
entreprise humaine.
Dans les vanités, l’être semble traqué dans la multiplicité de la matière : les
objets les plus divers sont collectionnés et interrogés un à un dans leurs plis et replis.
Les peintres s’appliquent à les fendre, de manière à montrer de quoi ils sont faits : fruits
pelés, coques brisées, gibiers écorchés, tarte éventrée épandant sa garniture, pendule
ouverte exhibant ses rouages. Coupés, renversés, décortiqués, mais aussi reflétés par
le miroir ou par des surfaces polies, ils sont examinés dans leurs multiples couches et
facettes (Alpers, 1990 : 160). Comme lors d’une dissection, on inspecte chaque détail
des objets : le regard tranche, incisif comme le scalpel, et pénètre les recoins obscurs et
cachés des choses. C’est en effet le regard de l’anatomiste et celui du microscopiste que
paraît s’approprier le peintre, dans la perfection illusionniste de ses objets écorchés.
GENÈSE ET RUINE DE LA MODERNITÉ – DES TABLEAUX DE VANITÉS AUX NATURES MORTES DE BERND ET HILLA BECHER
41
Illustration 5 : Willem Claesz Heda. Petit déjeuner avec tarte aux framboises.
1631, Huile sur bois, 54 x 82 cm, Gemäldegalerie, Dresden.
42
A N A M O R F O S E - R E V I S TA D E E S T U D O S M O D E R N O S • V O L I • N º I • 2 0 1 3 • R i d E M
Illustration 6 : Willem Claesz Heda. Petit déjeuner avec tarte aux framboises (détail). 1631, Huile sur
bois, 54 x 82 cm, Gemäldegalerie, Dresden.
Svetlana Alpers a examiné les liens qui nouent la peinture hollandaise du XVIIe
siècle à une philosophie baconienne de la connaissance, fondée sur l’observation directe
de la nature (Alpers, 1990 : 137-138). Dans ce contexte, la peinture, la microscopie et
l’anatomie, toutes trois expressions de la passion de l’observation, paraissent se
solidariser dans un rapport commun au visible, celui-ci étant pris comme la seule
condition à la connaissance et à l’intelligibilité des choses et de la nature2.
2 Le scientifique expérimental Robert Hooke, dans sa Micrographia, de 1664, affirme « qu’il est moins besoin de puissance
d’Imagination, de précision de Méthode, de profondeur de Réflexion (encore que l’adjonction de celle-ci, lorsqu’on peut en
disposer, ne manque pas de parfaire le résultat obtenu) que d’une Main loyale et d’un Œil fidèle pour examiner et recenser
les choses elles-mêmes, telles qu’elles se présentent à nous » (cité par Svetlana Alpers, L’Art de dépeindre : la peinture
hollandaise au XVIIe siècle, Paris, Gallimard, 1990, p. 139).
GENÈSE ET RUINE DE LA MODERNITÉ – DES TABLEAUX DE VANITÉS AUX NATURES MORTES DE BERND ET HILLA BECHER
43
La peinture rejoint ainsi, deux technès alors en plein essor, lesquelles conduisent
toutes deux pourtant à un même paradoxe fondamental : si l’anatomie des corps et le
rapprochement des objets par les artifices optiques peuvent nous dévoiler en quelque
sorte la face cachée des choses, ils ne révèlent pas moins dans ces choses-là une fragilité
ontologique ultime, qu’ils mettent en évidence. Le regard perçant – l’œil assisté par les
lentilles – peut, certes, nous détourner des croyances, de l’imagination trompeuse, et
nous mener vers le monde des choses concrètes (Hooke, 1664, cité par Alpers, 1990 :
139), mais la plongée à outrance dans la matérialité apparente des choses finit par
nous confronter à l’interrogation : Que reste-t-il des choses, une fois leurs couches
successives écorchées, une fois leurs infimes détails inspectés ? Qu’y a-t-il au-delà
des apparences ? La multiplicité des apparences ne traduit-elle pas l’occultation ou la
disparition effective de l’être ? L’anatomie des choses peut bien s’avérer une anatomie
du vide.
L’enquête menée par les tableaux de vanité nous apparaît en effet comme
une enquête feinte, son interrogation s’avérant plutôt rhétorique. Car si les vanités
dénombrent et interrogent toutes les choses du monde manifeste, c’est bien pour
conforter la certitude du vide que celles-ci recouvrent. Si elles recensent tout ce que
peut produire et rassembler la nature humaine, c’est pour mieux en dévoiler la fragilité
et la vanité. Tout apparaît, dans leur inventaire du monde, menacé par la ruine, rongé
par le voisinage toujours pressant de l’anéantissement, aboli jusque dans son essence
ultime et, par là même, jusque dans son sens3.
On a compris l’essor remarquable des vanités du XVIIe siècle comme une réaction
aux profondes mutations qui ont eu lieu alors dans le monde occidental, et qui vont
dans le sens d’un rééquilibrage en faveur de la rationalité scientifique et technique, du
progrès matériel, de la soumission de la nature aux besoins et au profit humains. Ces
mutations entraînent une crise éthique à laquelle le discours véhiculé par les vanités
tente de faire face, par la réaffirmation véhémente des valeurs traditionnelles. S’élevant,
dans une époque de franche prospérité économique, contre toute attachement aux
biens matériels et mondains – richesses, plaisirs, pouvoir et renommée –, contre les
ambitions prométhéennes de la raison scientifique, les vanités seraient les derniers
feux d’un code moral en crise, affaibli par les pratiques sociales et économiques
modernes déjà en vigueur. La vulgarisation du discours sur la vanité des choses du
monde, répété ad nauseam, ressassé jusqu’à son épuisement (non seulement par le
moyen de l’art pictural, mais aussi dans tous les domaines de la représentation – la
sculpture, la littérature, le théâtre, la musique), finit, paradoxalement, par participer
au processus d’évacuation des valeurs morales anciennes qu’il transmet, et par laisser
la place à une morale davantage en accord avec les pratiques sociales modernes4.
3 Voir à ce sujet : « Une ontologie du rien » (Maya Suemi Lemos, Du discours moral au discours musical : le thème de la
vanité dans la musique de l’Italie post-tridentine, thèse de doctorat soutenue à l’Université de Paris IV – Sorbonne, 2006,
2006, pp. 48-59).
4 Lemos, Du discours moral au discours musical, pp. 164-173
44
A N A M O R F O S E - R E V I S TA D E E S T U D O S M O D E R N O S • V O L I • N º I • 2 0 1 3 • R i d E M
Ruines de la civilisation industrielle
Si les tableaux de vanité annonçaient au XVIIe siècle, par leur discours
réactionnaire, l’avènement d’une mentalité moderne, les clichés de Bernd et Hilla
Becher nous apparaissent comme des témoins du déclin de celle-ci, donnant à voir
l’affaissement des matérialisations ultimes de l’esprit moderne. Figurations, tous, de
la ruine, ces tableaux et ces clichés circonscrivent, ensemble, la période moderne. Les
uns donnent à voir les vestiges d’un monde ancien et de ses valeurs désormais révolus,
alors que les autres – de véritables natures mortes eux aussi – exhibent les vestiges du
grand et dernier édifice moderne, la civilisation industrielle.
« Quand je suis arrivée à Düsseldorf dans les années 50 », déclare Hilla Becher,
« j’ai été très impressionnée par la région de la Ruhr. À l’époque, la Ruhr était encore
une région très active, avec beaucoup de hauts fourneaux, des aciéries, des mines. Et
j’étais toujours très émue de regarder défiler, par la fenêtre du train, ces nombreuses et
étranges créatures ».5 L’industrie lourde allemande dont parle la photographe
eut un cycle de vie court : en plein essor dans les années 1930, elle est déjà en déclin vingt
ans plus tard, et, lorsque Bernd Becher, son mari et collaborateur, prend ses premières
photographies, en 1958, dans les alentours de Siegen, sa ville natale, les premières
fonderies de la région avaient déjà été démolies. Initialement, ces clichés avaient pour
Bernd Becher un sens autobiographique, car la majorité de ses ancêtres avait travaillé
dans l’industrie minière, en qualité de mineurs ou affectés dans les hauts-fourneaux.
Très vite pourtant, la conscience de la menace qui pesait sur ces énormes constructions
lui donna la mesure de leur intérêt documentaire, le poussant à opérer un recensement
systématique d’autant plus légitime qu’aucune institution d’état ne se souciait de les
registrer6.
Nous étions persuadés que, d’une manière très particulière, elles [ces
constructions] étaient des témoins de leur époque, par leur architecture ;
et que cette architecture était complètement liée à l’économie, ou plutôt,
à la pensée de la économie industrielle. Et puis, il est arrivé un moment où
je me suis rendu compte que ces objets allaient disparaître. Or, je pensais
qu’il s’agissait d’une architecture qui avait la même importance que celle
des cathédrales datant du Moyen Age, qui nous ont transmis la pensée
d’autrefois.7
En effet, c’est bien parce qu’ils prévoyaient la disparition de ces imposants
monuments, de ces ruines qui donnaient à voir « un certain esprit du temps, une
certaine mentalité »8 que les Becher se sont dédiés à les fixer systématiquement en
5 Déclaration de Hilla Becher en entretien (in Krief, 2001-2004).
6 Susanne Lange, Bernd and Hilla Becher – Life and Work, Massachusetts, The MIT Press, 2007, p. 9.
7 Déclaration de Bernd Becher (in Krief, 2001-2004).
8 Déclaration de Hilla Becher (in Krief, 2001-2004).
GENÈSE ET RUINE DE LA MODERNITÉ – DES TABLEAUX DE VANITÉS AUX NATURES MORTES DE BERND ET HILLA BECHER
45
photographie9.
À l’instar des vanités, les photographies des Becher tentent de figurer le « à
peine mort » : ce qui, hier, faisait encore sens et qui, soudainement, perd sa valeur.
Aux vestiges du repas à peine terminé, aux fleurs fanées des vanités – emblèmes de la
déchéance de toute chose – correspondent les colosses modernes des Becher, encore
opérants hier, aujourd’hui désuets et inutiles. Les clichés du couple montrent une
modernité encombrante, lourde et obsolète, dont le sens et la rationalité sont mis en
question :
La motivation (de notre travail) peut être comparée à celle de Tinguely,
ou Panamarenko. L’idée est de montrer que certains aspects du monde
industriel ne sont pas rationnels ; qu’à partir d’une base rationnelle ou
fonctionnelle, les choses peuvent devenir irrationnelles. Ainsi, Tinguely
fait des machines qui ne produisent rien ou qui se détruisent elles-mêmes.
Cette irrationalité est présente aussi dans la structure économique.
Chaque fonderie produit son maximum. Elle doit à chaque fois grandir
pour survivre. Elle est obligée d’être de plus en plus grande et productive.
Elles deviennent plus grandes car on croit que la croissance est illimitée.
Elle ne l’est pourtant pas. Et même lorsque la société n’a plus besoin
d’autant de fer, les fonderies grandissent encore. A Baltimore, on a décidé
de bâtir le plus grand haut-fourneau du monde occidental. Et alors
est venue la crise dans l’aciérie. Ce sont des dinosaures. Et ils se sont
consumés eux-mêmes.10
Ce sont les ruines de la modernité lourde telle que l’a décrite le sociologue Zygmunt
Bauman : modernité obsédée par le volume, par l’étendue et par la croissance11 et qui
arrive à son terme, écrasée sous son propre poids, incapable, de par ses structures trop
solides et inertes (fussent-elles des structures physiques ou structures de la pensée),
de répondre aux impératifs de la civilisation post-industrielle : vitesse, adaptabilité,
fluidité, fragmentation, multiplicité, instantanéité, relativité.
Hilla et Bernd Becher, nés dans le début des années 1930, appartiennent à une
génération qui, pour avoir vécu dans une période-charnière, fut témoin autant de
9 Bernd Becher avait tenté de registrer les bâtisses industrielles désaffectées par le moyen du dessin et de la peinture. Or,
voulant les saisir dans leurs moindres détails, il arrivait souvent qu’elles soient démolies avant même qu’il ne puisse terminer
ses dessins ou peintures. C’est ainsi qu’il s’est procuré une caméra photographique, avec le but initial de sauvegarder l’image
des constructions, ce qui lui permettrait de terminer tranquillement les dessins en cas de disparition des constructions. Par
la suite, ayant découvert, dans les mines abandonnées, d’anciennes photographies d’installations industrielles, il fut frappé
par la qualité de ces clichés faits par des photographes industriels anonymes du passé. Il prit alors la décision de tenter de
photographier ces installations de manière aussi précise qu’elles ne l’avaient été dans le passé, sans aucune interprétation
personnelle, et telles qu’elles se présentaient alors, dans leur état d’usage. Cf. Bernd Becher, en entretien avec Michael Köhler
(Lange, Bernd and Hilla Becher, 2007, pp. 187-188).
10 Bernd Becher, en entretien avec James Lingwood (Lange, 2007, p. 192).
11 Zygmunt Bauman, Liquid Modernity, Oxford, Polity Press, 2000.
46
A N A M O R F O S E - R E V I S TA D E E S T U D O S M O D E R N O S • V O L I • N º I • 2 0 1 3 • R i d E M
l’espoir suscité par le dernier élan de la grande industrie moderne européenne que des
désillusions du progrès12 qui l’ont suivies. Ce qui distingue leur projet de celui de leurs
devanciers – les nombreux peintres et photographes, essentiellement allemands, qui
dans les années 1920-1930 s’étaient déjà voués à registrer l’image de la ville moderne
industrielle et de ses environs, et dont le choix formel a fortement inspiré le couple
Becher, comme nous le verrons – c’est bien son sens archéologique, sa référence à ce
qui n’est plus, qui n’a plus de place dans le présent. S’il est vrai que l’on décèle déjà chez
certains de ces artistes de l’entre-deux-guerres une forte suspicion envers la croissance
industrielle et ses effets13, c’est dans les photographies du couple Becher que le décalage
de ces lourdes structures modernes, devenues vite archaïques devient une évidence.
Leur travail s’inscrit ainsi dans un contexte de crise d’un modèle de développement et
de raisonnement, qui, en dépit de la prospérité qu’il ait pu apporter, ne répond plus
aux exigences naissantes, qu’elles soient pratiques, sociales ou éthiques. Comme le
remarquait déjà le sociologue Raymond Aron, la société moderne ne réussissait pas
à « apaiser la faim » qu’elle-même engendrait, « faim peut-être plus spirituelle que
matérielle »14
Ainsi y-a-t-il, entre les images des Becher et les vanités, convergence de
conjonctures : apparues dans des périodes de prospérité matérielle, elles répondent
toutes deux à des circonstances particulières de décalage entre les structures sociales
et les valeurs en vigueur, mais aussi d’épuisement de modèles, de perte de repères,
d’ébranlement des certitudes. L’une comme l’autre font preuve d’une conscience aiguë
de la crise.
Leur finalité les rapproche également : elles s’appliquent à saisir par l’image une
certaine vacuité, un certain manque de sens – métaphore d’une modernité laquelle
elles estiment mener à nulle part, et dont elles essayent, chacune en son temps, de
dresser le portrait. Il faut remarquer que, dans les deux cas, cette vacuité est placée et
représentée au cœur même de la matière solide : au cœur des fruits et des multiples
objets amoncelés sur les tables des vanités, au cœur des bâtiments industriels massifs,
au cœur de ces choses que nous avons presque l’impression de pouvoir toucher, grâce
à la perfection illusionniste de la représentation. Ne serait-ce pas là une figuration
anticipée de la solidité, de la lourdeur à laquelle on identifie aujourd’hui cette modernité
dont elles ont fait, a priori et a posteriori, la critique ?
Mais il y a aussi convergence dans les moyens, c’est-à-dire, dans leur mode
opératoire et dans leur esthétique. Les images des Becher s’assimilent aux vanités dans
un rapport semblable au visible, dans une confiance commune à la capacité cognitive de
l’observation directe des objets, de l’inspection systématique de ses détails. Hilla Becher
12 Reprenant l’expression qui sert de titre à l’essai de Raymond Aron (Raymond Aron, Les désillusions du progrès – essai sur
la dialectique de la modernité, s.l., Calmann-Lévy, 1969), écrit en 1964-65.
13 Le peintre Carl Grossberg, dont l’œuvre fut certainement un des plus remarquables registres de l’apparat industriel
allemand d’entre-deux-guerres, a avoué, dans une lettre datée de 1934 : « Malgré tous les succès idéels, je suis pris d’un
pessimisme sans fond qui ne me lâche plus » (in catalogue de l’exposition Carl Grossberg, 1976, p. 14).
14 Aron, 1969, p. VIII.
GENÈSE ET RUINE DE LA MODERNITÉ – DES TABLEAUX DE VANITÉS AUX NATURES MORTES DE BERND ET HILLA BECHER
47
ne se réclame-elle pas, en écho avec ce que nous avons vu de la démarche des peintres
des vanités, d’une « anatomie comparative appliquée aux vestiges industrielles » ?15
Illustration 7: Lubeck-Herrenwyk, 1983.
Photo : Bernd et Hilla Becher. © 2006 Bernd & Hilla Becher
En effet, dans les images des Becher, on identifie le même effort pour saisir la matière
apparente, matérialisé en un souci extrême de netteté et de précision. Il est redevable,
en principe, à une indéniable filiation à l’esthétique de la Nouvelle Objectivité
allemande des années 1920-30. Ce n’est pourtant pas une coïncidence anodine si
c’est dans cette période de plein essor du réalisme objectif que sont redécouverts, par
l’historiographie (et le marché) de l’art du XXe siècle, ceux que l’on a appelés, à tort
ou à raison, les « peintres de la réalité »16 du XVIIe siècle, y compris ceux des…vanités.
Leur touche minutieuse et habile, leur remarquable aptitude à capturer les apparences
correspondaient bien au goût du temps et ne sont pas sans influence sur les peintres
du réalisme du XXe siècle. Ainsi pourrions-nous affirmer qu’il y aurait aussi, dans la
photographie des Becher, un héritage effectif du langage pictural du XVIIe siècle, par le
biais du réalisme objectif.
15 Déclaration de Hilla Becher, in : http://filiation.ens-lsh.fr/serie/serie_B3.html. Nous soulignons.
16 Expression utilisée pour la première fois par le critique d’art Champfleury en 1863, reprise lors de l’exposition de 1934 au
Musée de l’Orangerie à Paris, qui a marqué la redécouverte des peintres de la première moitié du XVIIe siècle en France. Elle
fut organisée par les conservateurs du musée du Louvre, Paul Jamot et Charles Sterling.
48
A N A M O R F O S E - R E V I S TA D E E S T U D O S M O D E R N O S • V O L I • N º I • 2 0 1 3 • R i d E M
Même si la critique a pu rattacher le travail du couple de photographes à l’art
conceptuel, c’est bien à la Nouvelle Objectivité que leur projet de recensement a
immédiatement renvoyé, tant du point de vue du sujet – prisé par les peintres et les
photographes allemands réalistes des années 1920 et 193017 – que du point de vue des
exigences esthétiques : refus de tout pathos, désir de saisir la réalité de façon objective,
telle qu’elle apparaît à nos yeux. De cela, il en résulte des images délibérément sobres et
froides, plaquées en des compositions en angle droit, parallèles au cadre, d’un réalisme
souvent illusionniste, marquées par l’attention donnée aux moindres détails.18 N’estce pas là, d’ailleurs, un protocole esthétique tout à fait semblable à celui des vanités ?19
La description des tableaux de la Nouvelle Objectivité, faite par l’historien de
l’art Sergiusz Michalski, pourrait très bien concerner les photographies du couple
Becher : « C’est le renoncement à tout ce qui pourrait créer une atmosphère, et la
netteté avec laquelle les objets sont représentés en dépit de la profondeur du tableau
qui suscitent ce sentiment particulier de vide et d’éloignement entre le spectateur et
l’image »20. Profondeur de champ et netteté dans toute la surface de l’image : ce sont
là précisément les paramètres auxquels s’astreignent les Becher, qui ne sont pas sans
contraintes techniques, comme le confirment leurs déclarations :
Nous les photographions [les bâtiments] dans presque tous les cas avec
un téléobjectif, pour éviter les déformations. Quelques fois nous prenons
une focale très longue, jusqu’à 600 millimètres. Il faut donc travailler
avec deux trépieds pour éviter la moindre vibration. 21
Les temps d’exposition sont relativement longs dans nos travaux.
Premièrement en raison du grand format : on doit régler le diaphragme
sur une ouverture très petite, pour obtenir une grande précision sur toute
la surface de l’image. Deuxièmement parce que nous travaillons toujours,
17 Citons les représentations picturales de chemins de fer, installations industrielles et environnements urbains industrialisés,
surtout de Carl Grossberg (qui a anticipé leur démarche avec son projet inachevé de recenser en des images aussi précises
et neutres que possible l’ensemble des activités de l’industrie allemande, alors en plein essor), mais aussi de Franz Radziwill,
Max Radler, Reinhold Nägele, Immanuel Kneyer, Xaver Fuhr, Carl Barth; les photographies de Albert Renger-Patzsch, et de
Hans Finsler. En effet, Bernd Becher assume l’importance qu’a exercée sur son travail une familiarité avec le courant de la
Nouvelle Objectivité, courant au travers duquel il a découvert des devanciers. Voir à ce sujet son entretien de 1989 avec
Michael Köhler (Lange, 2007, p. 187-191).
18 Bernd Becher déclare, en effet, avoir été favorisé par le contact avec le professeur Karl Rössing, à l’époque de ses études
à la Staatliche Akademie der Bildenen Künste de Stuttgart : le vécu de celui-ci au sein de la Nouvelle Objectivité lui permettait
de comprendre l’intérêt de son élève à dépeindre des objets architecturaux individuels dans leurs détails plus précis. Cf.
entretien de Bernd Becher avec Michael Köhler (Lange, 2007, p. 188). Au sujet de l’esthétique de la Nouvelle Objectivité, voir
Roh (Franz Roh. Nachexpressionismus – Magischer Realismus, Leipzig,1925, p. 119).
19 Surtout, en l’occurrence, celui des vanités des années 1600-1638, qui furent - ce qui est d’autant plus significatif - les
premières à être exhumées au XXe siècle, dans les années 1930 (Jacques Foucart, « La peinture hollandaise et flamande de
vanité : une réussite dans la diversité », Les vanités dans la peinture au XVII siècle, catalogue de l’exposition du Musée du Petit
Palais, Paris, 1991, p. 56).
20 Sergiusz Michalski, Nouvelle Objectivité, Köln, Benedikt Taschen Verlag, 1994, p. 160.
21 Déclaration de Bernd Becher (Krief, 2001-2004).
GENÈSE ET RUINE DE LA MODERNITÉ – DES TABLEAUX DE VANITÉS AUX NATURES MORTES DE BERND ET HILLA BECHER
49
ou presque toujours, par temps couvert, donc un temps pas très clair.22
Ne voulant pas manipuler les images, ils s’obligeaient, de surplus, à photographier
dans le brouillard, afin que l’arrière-plan disparaisse, laissant isolé l’objet à capturer.
De façon à montrer l’objet dans tous ses détails, ils préféraient une lumière diffuse
(évitant ainsi les ombres au maximum) et le temps d’hiver, de sorte que la végétation
cache moins la vue de l’objet dans sa totalité23. Ce sont là des données significatives,
qui dénotent une approche de la réalité semblable à la celle du collectionneur et du
naturaliste, que l’on avait déjà identifiée dans la démarche des peintres des vanités.
Dans le cas des clichés des Becher, elle est tout à fait évidente : recensement d’objets
pris individuellement ; isolement et neutralisation de ceux-ci ; exclusion de leur
environnement et de tout élément spontané ; classification ; définition de catégories,
espèces et sous-espèces fondées sur les aspects de la fonction de l’objet, sa forme,
donnés de construction, matériels de construction et variantes géographiques. C’est ce
que confirment les paroles de Hilla Becher :
La multiplicité des prises de vue que nous avons collectionnées, tout
d’abord par fascination ou sentimentalité, il fallait bien y mettre de l’ordre.
Ce classement, nous l’avons fait après-coup, ayant fait la connaissance de
ces objets. Nous avons d’abord défini les formes de base. Mais au fil du
temps, nous avons appris que ces formes comprenaient des variétés et des
sous-espèces.24
22 Déclaration de Hilla Becher (Krief, 2001-2004). Hilla et Bernd parlent de temps d’exposition longs d’environ vingt
secondes, considérablement contraignants, donc, si l’on veut obtenir une image nette et statique.
23 « La [notre] seule consigne artistique était, et l’est demeurée par la suite, de prendre les objets individuels par eux-
mêmes, les aidant seulement à remplir l’image – ce qui n’était pas toujours en accord avec leur situation, lorsqu’ils étaient
placés au milieu d’un chaos architectonique ou bien au milieu de la végétation. Ce seul artifice artistique était nécessaire à
ce qu’ils puissent être vus et reconnus dans leur forme entière ». Hilla Becher, en entretien avec Michael Köhler (Lange, 2007 :
188), notre traduction.
24 Hilla Becher, en entretien avec Michael Köhler (Lange, 2007, p. 188), notre traduction. Il ne semble pas un hasard si Bernd
Becher fait référence à Carl von Linné, naturaliste suédois du XVIIe siècle, auquel on attribue la paternité de la taxonomie
moderne, lorsqu’il parle des typologies, choisies par le couple comme forme de systématisation et exposition de leurs clichés,
où les bâtiments apparaissent classifiés selon leurs formes et leurs fonctions.
50
A N A M O R F O S E - R E V I S TA D E E S T U D O S M O D E R N O S • V O L I • N º I • 2 0 1 3 • R i d E M
Illustration 8: Tours d’extraction, Alemagne, 1972-1983.
Photo: Bernd et Hilla Becher. © 2006 Bernd & Hilla Becher
GENÈSE ET RUINE DE LA MODERNITÉ – DES TABLEAUX DE VANITÉS AUX NATURES MORTES DE BERND ET HILLA BECHER
51
Illustration 9 : Tours de refroidissement, Alemagne, 1964-1993.
Photo: Bernd et Hilla Becher. © 2006 Bernd & Hilla Becher
52
A N A M O R F O S E - R E V I S TA D E E S T U D O S M O D E R N O S • V O L I • N º I • 2 0 1 3 • R i d E M
Illustration 10: Haut-founeaux, Alemagne, Luxembourg, États-Unis, 1970-1989.
Photo: Bernd et Hilla Becher. © 2006 Bernd & Hilla Becher
GENÈSE ET RUINE DE LA MODERNITÉ – DES TABLEAUX DE VANITÉS AUX NATURES MORTES DE BERND ET HILLA BECHER
53
Illustration 11: Étuves, Belgique, Alemagne, France, Luxembourg, 1982-1995.
Photo: Bernd et Hilla Becher. © 2006 Bernd & Hilla Becher
54
A N A M O R F O S E - R E V I S TA D E E S T U D O S M O D E R N O S • V O L I • N º I • 2 0 1 3 • R i d E M
Illustration 12 : Gasomètres, Alemagne, 1983-1992.
Photo: Bernd et Hilla Becher. © 2006 Bernd & Hilla Becher
Leurs compositions par type de bâtiments – les typologies – sont « inspirées
de l’esprit de classification encyclopédique du XIXe siècle, avec ses taxinomies, ses
catalogues comparatifs », affirme-t-elle25. La démarche presque scientifique est un
gage d’objectivité – mot d’ordre qu’ils assument entièrement et auquel ils s’efforcent
d’obéir sans épargner les moyens.
Pour moi, le but de la photographie est de regarder d’une manière
objective. Pourquoi est-ce que je devrais transmettre mes sentiments et
mon état d’âme à quelque chose qui s’exprime par soi-même ?26
C’est justement cette quête d’objectivité qu’avait contraint Bernd Becher, au
départ peintre et typographe, à abandonner ses pinceaux. Ayant conclut que les
bâtiments tels qu’ils étaient dans la réalité l’intéressaient davantage que leur reflet
dans les dessins et les tableaux, il se penche définitivement vers la photographie,
plus apte, selon lui, à capter la réalité de l’objet : « le plus naturaliste qu’il soit, il est
25 Déclaration de Hilla Becher in http://filiation.ens-lsh.fr/serie/serie_B3.html.
26 Déclaration de Hilla Becher (in Krief, 2001-2004).
GENÈSE ET RUINE DE LA MODERNITÉ – DES TABLEAUX DE VANITÉS AUX NATURES MORTES DE BERND ET HILLA BECHER
55
impossible d’éviter, dans le dessin, un angle subjectif », assure-t-il27.
Or, ce qui est à la fois frappant et fascinant dans cette démarche, et ce à quoi
nous ne pouvons nous soustraire de penser, c’est que cette objectivité voulue, ce désir
de capter la réalité telle qu’elle se montre aux yeux se traduit, dans leur praxis, par des
artifices poussés et contraignants, par des subterfuges techniques complexes et des
manœuvres qui semblent en fin de compte s’accorder étrangement avec l’idée de réalité
et d’objectivité. Est-ce bien là l’image de l’objet véritable, artificiel et habilement isolé
de son cadre, de son arrière-plan ? Est-ce bien là une image réelle, cette image fixée
sans distorsion optique dans toute sa grande surface, et d’une netteté en profondeur
qu’aucun œil ne saurait capter ? L’exclamation de l’historien de l’art Jacques Foucart
au sujet des vanités et du supposé réalisme hollando-flamand du XVIIe siècle semble
doublement opportune : « comme si d’ailleurs le seul spectacle émerveillé du monde
des apparences et sa saisie n’étaient pas déjà en soi des hautes abstractions ! »28.
En effet, les efforts que font Bernd et Hilla Becher pour capturer la réalité de
l’objet semblent impliquer, paradoxalement, l’abstraction de la réalité immédiate de ce
dernier. En 1968, Hilla prit une photographie éloquente : Bernd, vu de dos, se prépare
à photographier un complexe minier que l’on aperçoit à l’horizon, et dont on distingue
à peine les silhouettes des tours d’extraction, voilées par le brouillard. Son attention,
toute absorbée par l’image lointaine et vague, ignore les seuls objets saisissables qui
l’entourent : des enfants posant pour la photo, des maisons ouvrières, l’herbe et le sol
pierreux. La vision des bâtisses industrielles que nous donne ici Hilla (peut-être à son
insu) se prêterait bien à la caractérisation de ce qui était alors la véritable condition
de ces monuments : fantomatiques, s’effaçant au loin, inutiles et oubliés au fond du
paysage.
27 Lange, 2007, p. 9.
28 Foucart, 1991, p. 55.
56
A N A M O R F O S E - R E V I S TA D E E S T U D O S M O D E R N O S • V O L I • N º I • 2 0 1 3 • R i d E M
Illustration 13: Bernd Becher photographiant une mine dans le Nord d’Angleterre, 1968.
Photo: Hilla Becher. © Hilla Becher
Pourtant, ce n’est pas dans ce mode que Bernd et Hilla prétendent donner à voir
ces ruines. À l’inverse, ils tentent de les capturer avec précision et de les exposer à
l’extrême. Et cela – apparent paradoxe –, moyennant ce qui, précisément, fait écran à
leur contemplation directe et immédiate : le brouillard, l’apparat optique et ses artifices
techniques. Les peintres des vanités, eux aussi, par le moyen d’une technique poussée
à l’extrême, faisaient contempler des objets hyper-exposés (anatomisés, exhibés dans
leurs couches multiples, dans leurs plis et menus détails, dans toutes leurs facettes),
voulant, par-là, dire d’une réalité qui se dérobe et s’échappe à la vue, d’une réalité qui
n’est plus, malgré la hyper-présence de ses vestiges.
Dissipant toute illusion moderne d’objectivité, Bruno Latour nous a montré,
dans le domaine de la philosophie de la science, que ce qui apparaît à travers la lentille
du microscope n’est plus l’objet, mais une abstraction, une construction autre. L’art en
avait déjà fourni des preuves depuis longtemps. Les vanités et les clichés de Bernd et
Hilla Becher semblent figurer exemplairement cette abstraction, cette « construction
autre », née de la contemplation de la pure matérialité de l’objet. Or, que sont finalement
les ruines, sinon ces objets disloqués, dont on contemple les seuls vestiges matériels,
et qui, par là-même, acquièrent une réalité tout autre, un sens résolument nouveau ?
GENÈSE ET RUINE DE LA MODERNITÉ – DES TABLEAUX DE VANITÉS AUX NATURES MORTES DE BERND ET HILLA BECHER
57
Références bibliographiques
ALPERS, Svetlana. L’Art de dépeindre : la peinture hollandaise au XVIIe siècle, Paris,
Gallimard, 1990
ARON, Raymond. Les désillusions du progrès – essai sur la dialectique de la modernité,
s.l., Calmann-Lévy, 1969
BAUMAN, Zygmunt. Liquid Modernity, Oxford, Polity Press, 2000
FOUCART, Jacques. « La peinture hollandaise et flamande de vanité : une réussite dans
la diversité », Les vanités dans la peinture au XVII° siècle, catalogue de l’exposition du
Musée du Petit Palais, Paris, 1991, 55-68
HOOKE, Robert. Micrographia, Londres, 1665
LANGE, Susanne. Bernd and Hilla Becher – Life and Work, Massachusetts, The MIT
Press, 2007
LEMOS, Maya Suemi. Du discours moral au discours musical : le thème de la vanité
dans la musique de l’Italie post-tridentine, thèse de doctorat soutenue à l’Université de
Paris IV – Sorbonne, 2006
MICHALSKI, Sergiusz. Nouvelle Objectivité, Köln, Benedikt Taschen Verlag, 1994
MUNIER, Roger. Mélancolie, Paris, Le Nyctalope, 1987
ROH, Franz. Nachexpressionismus – Magischer Realismus, Leipzig, 1925
SCHMIED, Wieland. Neue Sachlichkeit und Magischer Realismus in Deutschland 19181933, Hanover, 1969
_____________ Catalogue de l’exposition Carl Grossberg, Gemälde, Aquarelle,
Zeichnungen und Druckgraphik 1914-1940, Darmstadt, 1976
Documents vidéographiques
Contacts, vol. 3, La photographie conceptuelle, réalisation Jean-Pierre Krief, Arte
France, KS Visions, Le Centre National de la Photographie, 2001-2004
58
A N A M O R F O S E - R E V I S TA D E E S T U D O S M O D E R N O S • V O L I • N º I • 2 0 1 3 • R i d E M
Resumo
Abstract
O artigo propõe uma leitura comparativa
L’article propose une lecture comparative
do levantamento fotográfico de ruínas da
du
indústria pesada do século XX, empreendido
vestiges de l’industrie lourde du XXe siècle
por Bernd e Hilla Becher, e das naturezas-
entreprit par Bernd et Hilla Becher, et les
mortas do tipo “Vanitas” do século XVII.
natures mortes dites « de vanité » du XVIIe
As duas manifestações artísticas marcam,
siècle. Ces deux manifestations artistiques
respectivamente, o início da primeira
qui jalonnent, respectivement, le début
modernidade e o declínio da modernidade
des temps modernes et le déclin de la
industrial
modalidades
modernité industrielle, nous paraîssent
diversas de uma mesma perplexidade frente
comme des avatars d’une même perplexité
à caducidade de todas as coisas, de toda
face à la déchéance de toute chose, de
construção e, consequentemente, de todo
toute construction et, par-là même, de
sentido. Ambas manifestam exemplarmente
tout sens. Démarches exemplaires d’une
uma mesma tentativa de abordagem objetiva
tentative d’approche objective de la réalité,
da realidade, e nos fornecem vestígios de
elles semblent constituer, toutes les deux,
dois momentos históricos convergentes na
des traces de deux moments historiques
história das mentalidades: de fratura, de
convergents de fracture dans l’histoire des
crise do sentido e dos valores.
mentalités, de crise de sens et de valeurs.
parecem
ser
recensement
photographique
des
modernidade,
Mots-clés : première modernité, Bernd
Bernd Becher, Hilla Becher, ruínas, indústria
Becher, Hilla Becher, ruines, industrie
pesada, vanitas, objetividade
lourde, vanitas, objectivité
Palavras-chave:
primeira
Sobre a autora
Maya Suemi Lemos é professora adjunta na Universidade do Estado do Rio de
Janeiro e doutora em História da Música e Musicologia pela Universidade de Paris IV
– Sorbonne.
GENÈSE ET RUINE DE LA MODERNITÉ – DES TABLEAUX DE VANITÉS AUX NATURES MORTES DE BERND ET HILLA BECHER
59
Anamorfose - Revista de Estudos Modernos, 1 (2013), pp. 60-85
No seio das doutas virgens. Análise pastoral de
um texto preambular de Montaigne
Rafael Marcelo Viegas
I
O tema da “excelência da vida no campo”, equivalente ao bordão “melhor ficar
longe da cidade”, é um antiquíssimo e resiliente topos cultural, que pode ser facilmente
ligado à literatura de fundo bucólico-pastoral – aquela que, grosso modo, deita raízes
nos Idílios de Teócrito (e seus imitadores ou continuadores, como Bion de Phlossa e
Moschos de Siracusa) mas, sobretudo, nas releituras campestres dos idílios promovidas
por Virgílio (a partir das suas Bucólicas), tradição latina continuada pelas obras de
Calpúrnio Sículo e de Nemesiano. Por um lado, o cenário idealizado de pastores
instalados em colinas férteis e verdejantes, sob o sol de um Mediterrâneo benfazejo
(na Sicília ou nas montanhas da Arcádia grega), dados ao cultivo do amor e das artes
poético-musicais. De outro lado, a noção de que a cidade (ou, mais propriamente, a
civilização imperial, cortesã etc.) deturpa a essência do homem – essência, que seria,
de maneira ampla e geral, a de acompanhar ciosamente os ciclos mais elementares da
natureza. O mito da Época de Ouro não está longe1.
Como vimos mais acima, uma longa tradição liga o material clássico grecoromano, sobretudo a écloga latina virgiliana, até Sannazaro e a literatura pastoral
posterior2. O arquétipo dessa crescente produção renascentista continua sendo, em
linhas gerais, o texto das Bucólicas, mas estas não constituem o único texto de cunho
campestre de Virgílio. As Geórgicas, num contexto estético diferente, também são
uma obra agrária – na verdade, do ponto de vista do conteúdo, bem mais agrária que
a anterior, uma vez que em diversos momentos lida, por assim dizer, com aspectos
propriamente “técnicos” da agricultura3. Neste ínterim, o mérito de pô-la na moda
vem das obras latinas do poeta, dramaturgo e erudito italiano Angelo Poliziano (14541494)4. Embora já houvesse escrito um poema (o Manto) no molde das Bucólicas, foi
a partir do seu Rusticus (quer dizer, “O Homem do Campo”) – que tinha entre outros
objetivos servir de propedêutica literária à sua interpretação pública dos Trabalhos e
os Dias, de Hesíodo, e das Geórgicas – que esta obra de Virgílio passou a ser conhecida
1 Harry Levin, The Myth of the Golden Age in the Renaissance, OUP, 1968; Georges Minois, A Idade de Ouro (orig. francês 2009),
Unesp, 2011.
2 Para o desenvolvimento da pastoral pós-virgiliana, Roland Mayer, “Latin Pastoral after Virgil” in Marco Fantuzzi & Theodore
Papanghelis (eds.), Brill’s Companion to Greek and Latin Pastoral, pp. 451-466.
3 É onde Virgílio banca o fazendeiro, na expressão de Philip Thibodeau, Playing the Farmer. Representations of Rural Life in
Vergil’s Georgics, University of California Press, 2011.
4 L. P. Wilkinson, The Georgics of Virgil, A Critical Survey (1978), University of Oklahoma Press, 1997², p. 292.
60
A N A M O R F O S E - R E V I S TA D E E S T U D O S M O D E R N O S • V O L I • N º I • 2 0 1 3 • R i d E M
de um público mais amplo, ainda que, claro, restrito à capacidade de compreender o
latim clássico5. Seja como for, os dois textos de Poliziano relembraram aos humanistas
europeus uma linhagem poética celebrando a vida no campo, valorizando tanto
modelos agrários (a dinâmica do campo tomada em seu aspecto mais concreto e
ordinário) quanto bucólicos.
Felix ille animi divisque simillimus ipsis,
quem non mendaci resplendens gloria fuco
sollicitat, non fastosi mala gaudia luxus,
20 sed tacitos sinit ire dies et paupere cultu
exigit innocuae tranquilla silentia vitae,
urbe procul, voti exiguus ; sortemque benignus
ipse suam fovet ac modico contentus acervo
non spes corde avidas, non curam pascit inanem ;
securus quo sceptra cadant, cui dira minentur
astra et sanguinei iubar existiale cometae6.
O cenário aqui pode ser entendido na lógica pastoral mais clássica: a
superioridade ética do campo, aliada à vida simples e frugal, longe das intempéries e do
tumulto do mundo, é quase um resumo do que, de fato, o leitor encontra no texto das
Bucólicas de Virgílio – bem como nas Bucólicas de Calpúrnio Sículo. Mas a expressão
literal do trecho citado não está nas Bucólicas e sim, como era o objetivo do Rusticus
no final das contas, nas Geórgicas:
felix qui potuit rerum cognoscere causas
atque metus omnis et inexorabile fatum
subiecit pedibus strepitumque Acherontis auari:
fortunatus et ille deos qui nouit agrestis
Panaque Siluanumque senem Nymphasque sorores.
illum non populi fasces, non purpura regum
flexit et infidos agitans discordia fratres,
aut coniurato descendens Dacus ab Histro,
5 É preciso entender que uma parte dos humanistas cumpria um papel detetivesco e a comunidade contemporânea de
latinistas e grecistas ansiava por novidades de ordem editorial advindas da pesquisa nos arquivos das bibliotecas e nos
repositórios de documentos Europa adentro – obsessão de colecionador que nem todo mundo estava, evidentemente, apto a
fazer – ou simplesmente edições críticas (comparando-se manuscritos de origem diferente) de textos já conhecidos.
6 “Feliz em espírito e comparável aos próprios deuses é o homem que não está preso às tentações da glória, com seus falsos
esplendores, ou aos prazeres malévolos da luxúria arrogante, mas aceita os dias de maneira discreta e, em seu modesto modo
de vida, passa seu tempo na tranquilidade silente de uma vida sem mácula, longe da cidade, com poucos desejos. Ele aceita
seu quinhão resignadamente e é feliz com suas modestas posses. Não alimenta ávidas esperanças ou preocupações vazias no
coração. É indiferente à queda dos reinos, aos que são afetados pelos mórbidos signos no céu e ao brilho fatal dos cometas
cor-de-sangue” (Angelo Poliziano, Rusticus, vv. 17-26).
N O S E I O D A S D O U TA S V I R G E N S - A N Á L I S E PA S T O R A L D E U M T E X T O P R E A M B U L A R D E M O N TA I G N E
61
non res Romanae perituraque regna; neque ille
aut doluit miserans inopem aut inuidit habenti.
quos rami fructus, quos ipsa uolentia rura
sponte tulere sua, carpsit, nec ferrea iura
insanumque forum aut populi tabularia uidit7.
A longa fórmula, retomada por Poliziano, ainda que dita em termos geórgicos, traduz
à perfeição o estado de espírito bucólico que será retomado pelos poetas árcades
posteriores. O discurso pastoral, por definição ideal e intangível (utópico-edênico),
e o discurso agrário (supostamente didático e ao alcance da enxada ou do arado),
funcionam, efetivamente, numa rede mútua de valorizações8.
Entretanto, um detalhe importante sobressai nestas adaptações. Muito embora a
dinâmica diferencial entre real (agrário) e ficcional (bucólico) possa ter sido importante
para Virgílio, ela não existe para Poliziano: temos aí um homem urbano, um cortesão do
Renascimento italiano, mais especificamente do humanismo florentino e da corte dos
Médicis, e Geórgicas e Bucólicas, para ele, são, ambos, modelos puramente literários.
O mesmo para Petrarca e Boccaccio. E, claro, literário será também o uso desses temas
em Sannazaro9.
7 “Feliz o que pode conhecer a causa das coisas e que pôs sob os pés todos os medos, e o inexorável destino, e o ruído do
avaro Aqueronte. Mas afortunado também aquele que conhece os deuses campestres, e Pã, e o velho Silvano, e as ninfas
irmãs. Este, nem os feixes [fasces, machado amarrado com feixes de madeira, símbolo do poder dos cônsules romanos]
outorgados pelo povo, nem o púrpura dos reis conseguiram dobrar, nem a discórdia que impele os irmãos sem fé [provável
referência aos irmãos que disputavam o trono parta], nem o Dácio que desce do conjurado Ister [i.e., o Danúbio; os dácios, que
habitavam a região entre o Danúbio e o Mar do Norte – a Transilvânia e a Moldávia atuais –, eram uma ameaça bárbara temida
pelos romanos], nem os negócios de Roma, nem os reinos destinados ao declínio. Ele não vê em torno de si nem indigentes
a rogar por misericórdia, nem ricos a invejar. Os frutos que dão os ramos, aqueles que as benevolentes campanhas fornecem
de graça, ele os colhe sem conhecer nem as leis de ferro, nem o fórum insensato, nem as tábuas do povo [os atos civis que
ficavam guardados no templo de Saturno]” (Virgílio, Geórgicas, II, vv. 490-502).
8 Esta simbiose entre dois modelos, o bucólico e o agrário, a princípio díspares, é um signo importante do valor desse
material para Poliziano. Para Virgílio, o modelo agrário das Geórgicas estaria, em teoria, mais próximo de sua história pessoal
enquanto filho de proprietários rurais (daí sua qualidade “didática”, obviamente discutível embora reconhecida como evidente
por muitos de seus contemporâneos) que o modelo pastoral idealizado das Bucólicas. Mas Virgílio discorre acerca do agrário
não num tratado técnico sobre a agricultura – como o De Agri Cultura, de Catão (160 a.C.) ou De re rustica, de Marcus Varrão
(116 a.C.-27 a.C.) – e sim em seu longo poema, literário para todos os efeitos, de 2188 hexâmetros dactílicos. Logo, os dois
modelos literários, da qual as Bucólicas (bucólico) e Geórgicas (agrário) são os representantes fundacionais, podem até ser
separados por comodidade técnica e estilística, mas são em muitos aspectos interdependentes do ponto de vista ético e
da concepção de mundo. Embora não se vejam signos propriamente árcades nas Géorgicas (nestas não há flautas, nem
disputas de versos, nem espaço para amores perdidos), é evidente que aí também se trata, tal como nas Bucólicas, de um
modelo idealizado. Logo, os dois modelos se entrecruzam num ziguezague histórico e teórico-literário: e um não pode ser
considerado sem o outro. O debate atual separou, naturalmente, o modelo bucólico-pastoral da mimese do mundo campestre,
considerando a cena pastoral (idealizada), como pano de fundo e pretexto a instâncias indiretas de crítica política e social, em
vez de representação concreta do mundo. Mas isto pode ser colocado em discussão: ver, por exemplo, Ken Hiltner, What Else
is Pastoral? Renaissance Literature and the Environment, que defende uma ideia de discurso pastoral como discurso agrário –
quer dizer, ligado também à descrição concreta da natureza.
9 Iacopo Sannazaro (Francesco Erspamer, ed.), Arcadia – L’Arcadie, Les Belles Lettres, 2004.
62
A N A M O R F O S E - R E V I S TA D E E S T U D O S M O D E R N O S • V O L I • N º I • 2 0 1 3 • R i d E M
Vimos, no capítulo anterior, um resumo dessa evolução da pastoral moderna.
Vimos também que a França, claro, não ficou imune a este sucesso. A primeira geração
francesa influenciada por Sannazaro (a partir de meados do século XVI) produziu
um sem-número de textos bucólicos, entre poesia, drama e prosa10. Some-se aí o
impacto da disseminação das novelas imperiais, recém-descobertas pelos humanistas
e traduzidas para o francês por Amyot na década de 155011, e teremos um resumo da
produção literária propriamente moderna (no sentido de vanguarda) desta época: e
foi assim que os pastores Dáfnis, Alexis, Córidon, por oposição aos cavaleiros Artur,
Galvain, Perceval e Amadis, tomam de assalto o cenário subtextual da segunda metade
do século XVI12.
Para alguns autores franceses da geração posterior, no entanto, essa tradição
bucólico-agrária ganhará, aos poucos, contornos diferentes. Uma série de importantes
tratados técnicos sobre a agricultura já havia sido publicada por volta de meados do
século XVI13. Porém, quando escritores como Pierre Charron14 escrevem, na virada do
século seguinte, sobre o campo e seu significado, numa perspectiva mais filosófica
que técnica, vemos que modelo pastoral e modelo agrário (ou doravante modelo
“agrônomo”, se considerarmos que a Agronomia moderna tenha nascido por esta
época15) já se confundem com uma dinâmica de discussão de viés sócio-político (a
10 “Indeed, the 1570s and early 1580s saw a flurry of rustic celebration, especially in the circle surrounding Pierre de Ronsard
and the already elderly Jean Dorat, and De Thou was clearly caught up in this movement” (Ingrid de Smet, “Pastoral Politics in
the Poetry of Jacques-Auguste de Thou, 1553–1617” in Canadian Review of Comparative Literature, March-June 2006, p. 116).
Para o regime pastoral especificamente francês dessa época ver Alice Hulubei, L’eglogue en France au XVIe siècle, Paris, Droz,
1938.
11 Peças relativamente inéditas (oriundas do final da Antiguidade, não entraram nos cânones dos principais gramáticos e
retores romanos, logo, não foram estudadas na Idade Média), exerceram uma influência enorme na Europa literária a partir da
década de 1540, quando começaram a ser traduzidas para as línguas modernas: sobretudo Clitofonte e Leucipéia, de Aquiles
Tatius (~II d.C.); a Etiópica, ou Theagenes e Charicléia, de Heliodoro de Emesa (~III d.C.); e Dafnis e Cloé, de Longo (~II d.C. – III
d.C.). Delas retiraram-se enredos, temas e personagens de inúmeras peças século XVII adentro – das tragicomédias do Barroco
às tragédias de Racine, passando por Shakespeare – e, muito embora não tenham influenciado a Arcadia de Sannazzaro, pois
esta é anterior à sua redescoberta, foram fundamentais na produção subtextual da geração seguinte de escritores europeus
(Belleforest, d’Urfé, Cervantes e daí por diante), permitindo uma mudança profunda no paradigma narrativo da época. Para
sua ligação com a literatura pastoral, ver M. Di Marco, “The Pastoral Novel and the Bucolic Tradition” in Fantuzzi & Papanghelis
(eds.), Brill’s Companion to Greek and Latin Pastoral, pp. 479-498.
12 Cf. Michel Simonin “La disgrace d’Amadis” in L’encre & la lumière (1976-2000), Paris, Droz, 2004, pp. 189-234.
13 Charles Estienne, Praedium rusticum (1554), traduzido para o francês por Jean Liébault em 1564 como L’Agriculture et la
maison rustique – inúmeras reimpressões; as Vinti giornate dell’ agricoltura et de piaceri délia Villa etc. (1550), de Agostino
Gallo, pai da agronomia italiana, sucesso editorial com mais de vinte edições e reimpressões, foi traduzido por François de
Belleforest em 1570 como Secrets de la vraye agriculture, et honestes plaisirs qu’on reçoit en la mesnagerie des champs. Deve-se
computar aí os tratados antigos, sobretudo os latinos, que circulavam, na primeira metade do século XVI, publicados quase
sempre em conjunto, como antologias: Os Trabalhos e dos Dias, de Hesíodo, os Econômicos de Xenofonte, as Geopônicas de
Cassiano Bassus, o De Agricultura de Catão o Antigo, o Res rustice de Varrão, o De re rustica de Columela, o De re rustica de
Palladius, e, claro, as Géorgicas de Virgílio e a História Natural de Plínio o Antigo, entre outros.
14 No De la Sagesse (1600), capítulo 58 do Livro I (Comparaison de la vie rustique et menée ès villes), ele nos dá seu veredicto:
“Les villes sont prisons mesmes aux esprits, comme les cages aux oyseaux et aux bestes”.
15 “II est communément admis, et à juste titre, qu’avec Le Théâtre d’Agriculture et mesnage des champs s’ouvre la voie de la
science agricole moderne. Dès sa préface, Olivier de Serres, en fondant l’agriculture nouvelle sur la triade « science, experience
et diligence », se distingue de son prédécesseur le plus connu, Charles Estienne, plus théoricien que praticien. Or, il faut
N O S E I O D A S D O U TA S V I R G E N S - A N Á L I S E PA S T O R A L D E U M T E X T O P R E A M B U L A R D E M O N TA I G N E
63
análise atual dos poemas campestres virgilianos ressaltam, aliás, o mesmo aspecto),
dando margem a uma reflexão moral, ascética (ainda que, obviamente, não monástica),
aliada ao tema do retiro do mundo – tema que ganhará vigor (literário e religioso)
na décadas seguintes16. Mesmo um agrônomo como Olivier de Serres ficará, como
veremos abaixo, tentado a refletir de modo filosófico a respeito do campo – embora, no
seu caso, protestante retirado em suas terras por conta das Guerras de Religião, não se
trate apenas de simbolismo literário quando diz ser no campo que se protege contra a
“fascheuse (...) foule du peuple”17. O desprezo da corte já era o topos de uma importante
obra espanhola de 1539, o Menosprecio de corte y Alabanza de Aldea, de Antonio de
Guevara, traduzido em francês por Allègre (Du mespris de la court & de la louange de la
vie rustique) em 154218. Mas é a geração que escreve entre 1570-1580 que vai aprofundar
esse menosprecio em território francês: e quando isso acontece, entramos já no reino
particular e, de certa forma, pós-pastoral das vies rustiques – que podemos definir
como uma moda cultural paradoxalmente cortesã19.
O De re rustica, de Varrão, já oferecia um ponto de vista mordaz dos valores
éticos da agricultura e da vida no campo em relação à cidade:
désormais compter avec l’expérience née de la pratique et de la confrontation des savoirs savants et paysans” (Danièle Duport,
“La ‘science’ d’Olivier de Serres et la connaissance du ‘naturel’” in Bulletin de l’Association d’étude sur l’Humanisme, la Réforme
et la Renaissance, n° 50, 2000, pp. 85-95).
16 Bernard Beugnot, Le Discours de la retrait au XVIIe siècle, PUF, 1996.
17 Le théâtre de l’agriculture et ménage des champs (1600), 4 Vols., Paris, Meurant, 1802, IV, p. 626. 19 edições e reimpressões
até 1675. Irresistível não enxergar nesta expressão um trocadilho com o fasces populi do livro II das Geórgicas de Virgílio (v. 495)
citado mais acima, apesar da etimologia aceita para o adjetivo médio-francês fascheuse (na grafia atual, fâcheux, -euse, quer
dizer, “irritante” ou “fastidioso”) faça-o derivar do latim fastidium e não de fasces, nominativo plural de fascis, -is (“feixe”): usado
no plural, fasces significa o machado envolto em feixes de madeira, símbolo dos cônsules romanos. Ver Martine Gorrichon
“Sources latines d’Olivier de Serres” in Bulletin de l’Association d’étude sur l’Humanisme, la Réforme et la Renaissance, n° 50,
2000, pp. 45-58. Para um estudo mais amplo, Jean Boulaine & Richard Moreau, Olivier de Serres et l’évolution de l’agriculture,
L’Harmattan, 2002.
18 Antonio de Guevara (éd. bilingue critique de Nathalie Peyrebonne), Du mespris de la court et de la louange de la vie rustique,
Classiques Garnier, 2012. Ver Pierre Civil, “Le thème de l’éloge de la vie rustique en Espagne au XVIème siècle” in Gabriel-André
Perouse & Hugues Neveux (eds.), Essais sur la Campagne à la Renaissance, Société Française de Seiziémistes, 1991, pp. 103114.
19 Considera-se aqui, claro, uma moda literária e cultural pois poucos autores rustiques tinham, de fato, a experiência real
da vida no campo – o que não quer dizer que a discussão a respeito dos valores atribuídos ao mundo rural por seus autores
seja diminuída. Entre os escritores e as obras desta geração contamos, dentre outros, Les plaisirs de la vie rustique (1574) de
Monsieur de Pibrac; Les Plaisirs de la vie rustique et solitaire (1583) de Claude e Pierre Binet; La columbière ou maison rustique
(1583) de Philibert Hegemon; Les Plaisirs du gentilhomme champestre (1583), de Nicolas Rapin; Le Plaisir des champs, divisé
en quatre parties selon les quatres saisons de l’année, où est traicté de la chasse et de tout autre exercice recréatif, honneste et
vertueux (1583) de Claude Gauchet; Plaisirs et félicités de la vie rustique (1584) de Germain Forget; Les propos rustiques de
Noël du Fail. Obras algumas vezes editadas em conjunto, no formato de antologias. Para o contexto, ver Jacqueline Bouchet,
“Vrai ou faux amour de la campagne à la cour des derniers Valois” in Gabriel-André Perouse & Hugues Neveux (eds.), Essais
sur la Campagne à la Renaissance, Société Française de Seiziémistes, 1991, pp. 57-72; Pauline Smith, The Anti-Courtier Trend
in Sixteenth Century French Literature, Droz, 1966; Jeannice Brooks, Courtly Song in Late Sixteenth Century France, University
of Chicago Press, 2000, esp. Cap. VI, “Pastoral Utopias”; para o significado do que era ser um nobre rural por essa época, ver
Arlette Jouanna, La France du XVIe siècle, PUF, 2002³, cap. IV; e Emmanuel Le Roy Ladurie, História dos Camponeses Franceses
(2002), 2 Vols., Civilização Brasileira, 2007, esp. cap. II.
64
A N A M O R F O S E - R E V I S TA D E E S T U D O S M O D E R N O S • V O L I • N º I • 2 0 1 3 • R i d E M
Viri magni nostri maiores non sine causa praeponebant rusticos Romanos
urbanis. Ut ruri enim qui in villa vivunt ignaviores, quam qui in agro
uersantur in aliquo opere faciendo, sic qui in oppido sederent, quam qui
rura colerent, desidiosiores putabant. Itaque annum ita diviserunt, ut nonis
modo diebus urbanas res usurparent, reliquis septem ut rura colerent. Quod
dum servaverunt institutum, utrumque sunt consecuti, ut et cultura agros
fecundissimos haberent et ipsi valetudine firmiores essent, ac ne Graecorum
urbana desiderarent gymnasia20.
Mas a fórmula literária que define o modelo rustique utilizado pelos franceses está em
Horácio, declarado admirador das Bucólicas21:
Beatus ille qui procul negotiis,
ut prisca gens mortalium,
paterna rura bubus exercet suis
solutus omni faenore
neque excitatur classico miles truci
neque horret iratum mare
forumque vitat et superba civium
potentiorum limina22.
20 “Não por acaso, grandes homens, nossos ancestrais, preferiam os romanos do campo aos da cidade. Com efeito, assim
como nas terras, os que vivem na casa de campo são mais fracos do que quem se ocupa da lavoura fazendo algum trabalho,
julgavam mais ociosos os que se estabeleciam em cidades do que quem cultivava a terra. Assim, dividiram o ano de modo que
apenas a cada oito dias eles se dessem aos assuntos urbanos, mas, nos outros sete, cultivassem os campos. Enquanto tiveram
esse costume, lograram duas coisas: possuir os mais fecundos campos, cultivando; e serem eles próprios de melhor saúde,
sem acharem falta dos ginásios urbanos à grega” (Varrão, Das coisas do campo, II, 1, [trad. Matheus Trevizam], Ed. Unicamp,
2012, pp. 126-127).
21 A influência rusticizante de Virgílio contaminou os escritores latinos seus contemporâneos e sucessores diretos: “Horace
was not alone in his admiration of Virgilian pastoral. The contemporary erotic elegist, Tibullus, ‘rusticated’ the essentially
urban code of elegy by dreaming of love in the country; his very first elegy strikes this unusual note. Like Horace, he too picks
up Virgil’s ideal of the Golden Age (1.3.35–48), as a contrast to the grim reality of warfare. Tibullus’ work in turn influenced
Propertius, who tries his hand at a recodification of elegy, by joining his mistress in a rustic retreat (2.19). The contrast between
town and country is particularly stressed, and Propertius expresses satisfaction that once in the country his mistress will be
out of the way of urban temptations (shows, and trysting places). Like Virgil’s Gallus, he fancies he’ll do some hunting (ipse ego
venabor, l. 17), not great big lions or wild boars of course (too dangerous), but hares and birds. One last poet’s engagement
with the pastoral mode deserves a word. Ovid incorporated many poetic modes in his kaleidoscopic Metamorphoses, and the
bucolic world is certainly not neglected, particularly in the tales of Pan and of Narcissus” (Roland Mayer, “Latin Pastoral after
Virgil” in Fantuzzi & Papanghelis (eds.), Brill’s Companion to Greek and Latin Pastoral, p. 453).
22 “Feliz aquele que, afastado dos negócios, / como a antiga raça dos mortais, / cultiva os campos paternos com seus bois,
/ liberto de toda usura; nem, como soldado, é despertado pela trombeta ameaçadora / nem teme o mar irado; / aquele que
evita o foro e as soberbas moradias / dos cidadãos mais poderosos” (Horácio, Epodo II, vv. 1-8 e ss; tradução de Arlete José
Mota in Calíope n° 20, 2010, pp. 101-105).
N O S E I O D A S D O U TA S V I R G E N S - A N Á L I S E PA S T O R A L D E U M T E X T O P R E A M B U L A R D E M O N TA I G N E
65
E, efetivamente, o primeiro dos poetas rustiques, Monsieur de Pibrac, retoma de modo
categórico esses termos horacianos, mas que também são os termos georgianos de
Virgílio relidos pelo Rusticus de Poliziano:
O bien-heureux celuy, qui loing des Courtisans,
Et des Palais dorez pleins de soucis cuisans,
Sous quelque pauvre toict delivré de l’enuie,
Jouyst des doux plaisirs de la rustique vie :
La trompette au matin ne l’esveille en sursaut,
Pour hardy des premiers se trouver à l’assaut ;
Ou guindé sur le mast d’un vaisseau n’importune,
Par prieres & vœux le courroncé Neptune.
Il ne luy chaut d’avoir la faveur des grands Rois,
Ny les premiers honneurs aux joustes & tournois,
Les couronnes de prix richements estoffées,
Ny les chars entaillez de superbes trophées ;23
Por sua vez, Olivier de Serres afirma, invocando Virgílio e em torno de um verso de Les
plaisirs de la vie rustique de Pibrac:
Virgile tient qu’à l’homme des champs ne manque, pour sa félicité , que de
connoître son bonheur, disant :
­ h ! que par trop seroient heureux les laboureurs ,
O
S'ils savoient leur bonlieur, auxquels loin des horreurs,
Du discord martial, d'une volonté franche,
De vivre largement, la terre juste épanche24
(...) ­Ces contentemens ont induit plusieurs grands personnages à chanter
le plaisir des champs, s’égayant sur tant riche sujet, dont plusieurs livres
se trouvent écrits, remplis de telle belle nature, et beaucoup d’illustres
hommes à se retirer en la solitude de la campagne , pour, hors de bruit ,
jouir en repos des aises dont elle abonde. La sérénité du ciel, la salubrité
de l’air, le plaisant aspect de la contrée, montagnes, plaines, vallons ,
coteaux, bois , vignobles, prairies , jardins, terre à bled, rivières, fontaines,
ruisseaux, étangs, les beaux promenoirs et jardins, prairies, et d'un autre
côté, la contemplation des belles tapisseries des fleurs, les beaux ombrages
23 Guy Du Faur de Pibrac, Les plaisirs de la vie rustique composez par le S. de Pyb. à Paris, par Federic Morel, Imprimeur du
Roy, 1575 (BNF, Res Ye 4628), vv. 1-12. [Gallica]
24 Virgilio, Geórgicas, II, 458: O fortunatos nimium, sua si bona norint, / agricolas! quibus ipsa, procul discordibus armis, / fundit
humo facilem victum justissima tellus.
66
A N A M O R F O S E - R E V I S TA D E E S T U D O S M O D E R N O S • V O L I • N º I • 2 0 1 3 • R i d E M
des arbres, la joyeuse musique des oiseaux, les divers chants et langages
du bétail, gros et menu, louant le créateur, en sont les principales causes;
y en ayant d'autres infinies, qui ne se peuvent réciter, pour la nourriture,
vèture, port et plaisir de l’homme, dont Dieu a rempli la terre.
­Là dessus, dit le sieur de Pibrac :
Bref, en l’homme des champs, on ne sauroit choisir
Un jour, heure ou moment, sans honnête plaisir25
Entre lesquelles plaisantes commodités, ceste – ci est remarquable, qu’es
champs, vous n’y voyés que de vos amis, vos ennemis ne vous allans
jamais visiter. Et si bien vous n’y estes pas beaucoup accompaigné de vos
semblables, vous y esprouvés véritable ce commun dire, qu’il vaut mieux
estre-seul, que mal accompaigné ; se pratiquant tous les jours ès villes,
combien fascheuse y est la foule du peuple, parmi lequel sont contraints
de vivre ceux qui y habitent, estans souvent forcés de faire bonne mine à
tels dont ils ne sont guières aimés : au lieu de la saincte liberté, en laquelle
vit nostre noble mesnager26.
Dessas passagens, interligadas como vasos comunicantes, decantamos uma substância
ascética evidente, que, a partir de uma arquitetura mental (e de uma fraseologia)
latina, desconfia (ao menos textualmente) dos elementos e dos quadros sociais que
habitam as grandes cortes do Renascimento europeu. Esta reatualização rustique do
topos bucólico-pastoral tem, contudo, certos pressupostos que devem ser levados em
consideração quando se fala em valorização da vida rural no final do século XVI – uma
vez que esta nova cena deve ser entendida não exatamente no contexto bucólicorenascentista mas já no contexto pré-moderno da civilité, a noção-chave que define o
comportamento cortesão por essa época27.
25 Ver Guy Du Faur Pibrac, Les quatrains de Pibrac; suivis de ses autres poésies, Paris, A. Lemerre, 1874 [Gallica, BnF YE- 30060],
p. 117.
26 Olivier de Serres, Le Théâtre de l’Agriculture et Ménage des Champs (1600), Vol. IV, Paris, Meurant, 1802, p. 626 (conclusion).
Encontrei a referência a Pibrac primeiramente em Maxime Gaume, Inspiration et les sources de l’Oeuvre d’Honoré d’Urfé, Université
de Saint-Etienne, 1977, p. 288.
27 Para a reflexão clássica sobre o valor da civilité, ver Norbert Elias, O Processo civilizador (1939), 2 Vols., Zahar, 2000. E
também Orest Ranum, “Courtesy, Absolutism, and the Rise of the French State, 1630-1660” in The Journal of Modern History,
Vol. 52 n° 3 (Sep., 1980), pp. 426-445; Michael Curtin, “A Question of Manners: Status and Gender in Etiquette and Courtesy”
in The Journal of Modern History, Vol. 57 n° 3 (Sep., 1985), pp. 395-423; Jacques Revel “Os usos da civilidade” in Philippe
Ariès, Georges Duby & Roger Chartier (eds.), História da Vida Privada, Vol. 3, Da Renascença ao Século das Luzes (1986), Cia
das Letras, 2006, pp. 169-209; Marvin Becker, Civility and Society in Western Europe, 1300-1600, Indiana University Press,
1988; Jennifer Richards (ed.), Early Modern Civil Discourses, Palgrave Macmillan, 2003; Anna Bryson, From Courtesy to Civility:
Changing Codes of Conduct in Early Modern England, Clarendon Press, 1998, p. 24.
N O S E I O D A S D O U TA S V I R G E N S - A N Á L I S E PA S T O R A L D E U M T E X T O P R E A M B U L A R D E M O N TA I G N E
67
Tal contexto é, a um só tempo, coerente e paradoxal. Por um lado, a França
do Renascimento e do Ancien Régime é, para todos os efeitos, uma França rural: com
quase 90% de sua população habitando o campo, a existência de uma literatura que o
valorize seria quase que, olhando a partir da nossa experiência contemporânea, uma
obviedade sócio-cultural. Mas, paradoxalmente, o que ocorre é o contrário. Como todas
as suas instituições importantes (legislativas, religiosas, culturais) estão nas cidades e
nas cortes (sobretudo, já por essa época, em Paris), a França pré-moderna pensa sua
realidade interna de um modo esquizofrênico, transformando a cidade (minoritária
em quase tudo) numa obsessão que permeia e controla todas as instâncias da sua vida
intelectual28. Valorizar o campo, neste contexto, mesmo literariamente, tem certo ar
de heterodoxia irônica. Além do mais, ressaltar sua superioridade em relação à cidade
(tema essencial dos teóricos e poetas da vie rustique) implicaria, em última análise, num
tipo de renúncia – uma renúncia complexa, claro, por conta das denegações implícitas
e da lógica de legitimação social e cultural que a Cidade por excelência (Paris e sua
corte, em nosso caso) impõe às classes abastadas francesas por essa época. Pois a Corte
real do final do século XVI é já uma cosmologia particular: diferentemente dos quadros
medievais da noblesse d’épée, onde o rei é um primum inter pares, a “nova” nobreza
francesa, rural ou cortesã, de espada ou de robe, falida ou rica, que toma forma decisiva
a partir dessas últimas décadas – mas cujo processo começa bem antes, com François I
–, é uma aristocracia a mando do (e decorada pelo) Estado. E, em última análise, quando
ocupando postos judiciários, é, na maioria das vezes, direta ou indiretamente, paga por
ele29. Progressivamente, essa nobreza vai-se agregando à Corte naquela simbiose que
define a clássica esfera político-administrativa da França moderna, sobretudo a partir
de Henrique IV e dos Bourbons: a dos nobres estatizados30.
28 “As Hugues Neveux has recently observed, the geographic descriptions of France’s regions and provinces which developed as
a literary genre from the second half of the sixteenth century onward regularly devoted as much as ninety per cent of their space
to describing the towns of the regions in question. This reflects more than the simple fact that the most impressive architectural
monuments of the kingdom were located disproportionately in the cities. Most of the institutions from law courts to episcopal sees
which governed people’s lives and souls were found there as well. Much of the country’s wealth was, if not generated, then spent
and displayed in the towns. And cities possessed exceptional significance in regional and national politics, as events from the Wars of
Religion to the Revolution would demonstrate. Furthermore, it can be argued that between the years 1500 and 1789, the dominance
exercised by cities over France’s economic and social life increased substantially” (Philip Benedict “French cities from the sixteenth
century to the Revolution” in Philip Benedict, Cities and Social Change in Early Modern France, Routledge, 1992, pp. 6-7).
29 O fato de ser nobre paysan não significava, em absoluto, opulência ou tranquilidade financeira por si só: “Les revenus du
domaine forment l’essentiel des ressources des gentilhommes campagnards, même si l’apport des droits seigneuriaux n’est
pas négligeable lorsque ceux-ci sont perçus en nature. Ces moyens suffisent le plus souvent à leur procurer une vie conforme
aux exigences de leur état” (Arlette Jouanna, La France de la Renaissance, Perrin, 2009², pp. 227-228).
30 Os chevaliers e títulos honoríficos concedidos pela Coroa francesa se multiplicam sensivelmente por essa época
e a transformação dos gentilhommes em funcionários públicos é um dos pilares de um Estado Moderno apoiado,
administrativamente, nos quadros da sua noblesse de robe: “A Corte é, antes de mais nada, um instrumento do poder real. Ela
sustenta a nobreza, domesticando-a. Para muitas linhagens que se encontram em dificuldades devido ao modo de vida nobre,
à preocupação com as aparências e à recusa de medir despesas, ‘fazer a corte’ e obter do soberano colocações, benefícios e
doações são o único meio de escapar da ruína e da decadência social. É cada vez mais frequente que gaviões provincianos
se apresentem ao rei para obter dele uma garantia de manter sua posição” (Jean Jacquart, François Ier, Fayard, 1981, p. 384).
“Entre os Montaigne, sabe-se que o problema não é nem tanto a ‘preservação’, mas sim a elevação da posição social, sendo
68
A N A M O R F O S E - R E V I S TA D E E S T U D O S M O D E R N O S • V O L I • N º I • 2 0 1 3 • R i d E M
Para a elite que não só afirma literariamente, mas que efetivamente vive, a vie
rustique, quer dizer, a nobreza paysan de fato, estar retirada no campo (longe da Corte)
significa estar longe da cidade e de suas benesses civilizatórias. Mas para os rustiques
cortesãos – que valorizam o campo de modo literário ou estetizado –, seria certamente
um exagero imaginar que teorizam ou pregam algum tipo de retiro semi-monástico.
Para os rustiques, valorizar o campo não significa dizer que, automaticamente, a
civilização por inteiro é um mal31. Não se trata de macrobiótica social, de abandono
do valor civilizatório da cidade para uma utopia animalesca do puro e do ingênuo,
pois temos aqui um contexto de vida retirada onde os modelos são ainda e sempre
obviamente aristocráticos e cortesãos: micro-ambientes que flutuam sob os poderes
da cité. Pois mesmo quando, eventualmente, não está na Corte, essa aristocracia
continua, às margens do mundo urbano, mesmo a léguas de distância da cidade mais
próxima, funcionando com as armas da civilité: ou antes, contrabandeia e capitaliza
a civilité em armadura, brasão e moral32. É evidente que nem Pibrac, nem Philippe
Desportes33, e tampouco Olivier de Serres se pensam bárbaros porque escrevem sobre
o campo (ou eventualmente a partir dele), glorificando ou estetizando sua excelência.
Muito pelo contrário: o funcionamento da camuflagem aristocrática, já presente, aliás,
na concepção teócrito-virgiliana de pastoral (aquela que põe pastores rústicos falando
mais importante consolidar uma ascensão do que não afundar. Entretanto, na mente de Pierre Eyquem, a vocação de seu
engenhoso herdeiro é inscrever-se nesse movimento que poderia ser descrito como a nacionalização da Corte, no qual
a pequena ou média nobreza provinciana toma parte de bom grado” (Jean Lacouture, Montaigne a cavalo, p. 52). Para o
contexto geral da mutação nobiliárquica no Renascimento francês, ver John Russell Major, From Renaissance Monarchy to
Absolute Monarchy: French Kings, Nobles, and Estates, John Hopkins University Press, 1997; Keith Cameron, From Valois to
Bourbon: Dynasty, State and Society in Early Modern France, Liverpool University Press, 1989; Arlette Jouanna. Le devoir de la
révolte. La noblesse française et la gestation de l’État modern, 1559-1661, Fayard, 1989; Guy Chaussinand-Nogaret (ed.), Histoire
des élites en France, du XVIe au XXe siècle, Tallandier, 1991; George Huppert, Les Bourgeois Gentilshommes. An Essay on the
Definition of Elites in Renaissance France, University of Chicago Press, 1977; e para o caso específico de Montaigne, ver George
Hoffmann, Montaigne’s Career, Clarendon Press, 1998.
31 Não devemos esquecer, claro, que a valorização do campo em relação à cidade (e vice-versa) funciona por vagas e depende
de um sem-número de fatores que, muitas vezes, nada têm a ver com a vida no campo em si: “Nos tempos da Renascença, a
cidade fora sinônimo de civilidade, o campo de rudeza e rusticidade. Tirar os homens das florestas e encerrá-los numa cidade
era o mesmo que civilizá-los. Como dizia um diálogo elisabetano, um fidalgo criado na cidade seria mais ‘civilizado’ do que
um educado no campo. A cidade era o berço do aprendizado, das boas maneiras, do gosto e da sofisticação. Era a arena de
satisfação do homem. Adão fora colocado em um jardim, e o Paraíso terrestre associado a flores e fontes. Mas, quando os
homens pensavam no paraíso da salvação, geralmente o visualizavam como uma cidade, a nova Jerusalém. (...)”. No entanto,
o século XVIII começará a inverter essa noção: “(...) já bem antes de 1802, tornara-se lugar-comum sustentar que o campo era
mais bonito que a cidade. ‘Ninguém’, escrevia William Shenstone em 1748, ‘preferirá a beleza de uma rua à de uma relva ou
um bosque; na verdade, os poetas não achariam muito tentador o Elíseo, se o concebessem como uma cidade’” (Keith Thomas,
O Homem e o Mundo Natural, pp. 290-291).
32 “The advantages of the country life are not limited to the abundance of good food, clean air, and fresh water that Guevara
and his French imitators describe. The nobleman in the country is his own master, the ‘petit roi’ of his environs; at court, only
the most powerful enjoy such freedom, while the majority of noblemen of modest fortunes live in servitude and obscurity. In
the rural village, he is honored by the inhabitants of lower social status, and there are people much poorer than he upon whom
he may bestow his liberality” (Jeanice Brooks, Courtly Song in Late Sixteenth-Century France, p. 361).
33 “O bien-heureux qui peut passer sa vie | Entre les siens, franc de haine et d’envie, | Parmy les champs, les forests et les bois,
| Loin du tumulte et du bruit populaire, | Et qui ne vend sa liberté pour plaire | Aux passions des princes et de rois !” (Oeuvres,
Bergeries, I, p. 431).
N O S E I O D A S D O U TA S V I R G E N S - A N Á L I S E PA S T O R A L D E U M T E X T O P R E A M B U L A R D E M O N TA I G N E
69
em sofisticado grego-helenístico ou em hexâmetros dactílicos), continua no contexto
rustique tão vivo, em sua medida, quanto nas idealizações literárias de Poliziano
e Sannazaro: pois aristocratas rurais também têm seu séquito local de empregados,
vizinhos, amigos e frequentadores34. Logo, a civilité não só continua em funcionamento
no campo como é uma carapaça utilizada como forma instrumental de poder. Por esses
e outros motivos, o que os rustiques franceses valorizam no campo não é a natura
naturans, mas a natura naturata: não a natureza selvagem e primitiva dos bosques e
dos rincões perdidos – que será a de Rousseau e a dos Românticos alemães –, mas a
paisagem fértil e cultivável do Vale do Loire e da Île-de-France35.
Ainda assim, o valor ascético do décor agrário-pastoral nas vies rustiques é
evidente e podemos extrair dele até mesmo, pela via de uma amplificação de ordem
ética, um valor medicinal. Este está de par com certas recomendações pré-modernas
contra a melancolia e que envolvem alguma espécie de phármakon pastoral36. Não por
acaso, quando Robert Burton se expressa neste sentido na Segunda Partição da sua
Anatomia, após haver examinado as curas possíveis da melancolia (meios lícitos ou
ilícitos, dietéticos, ascéticos – nas Seções 1 e 2) chegando às proposições de ordem
consolatória (mas antes de passar às digressões de ordem propriamente farmacológica
– na Seção 4), usa exatamente o trecho de Poliziano (que também são os termos de
Pibrac) que citei mais acima, associado ao famoso trecho do Epodo II de Horácio:
Beatus ille qui procul negotiis
Paterna rura bobus exercet suis. [Horácio, Epodo II, 1-2]
34 Vemos, por exemplo, no diário de Gilles de Gouberville (escrito entre 1549 e 1562), oriundo da pequena e modesta
nobreza campestre que não pertence necessariamente à noblesse de épée, uma sucessão de situações que demonstram seu
enorme prestígio junto aos habitantes de sua região: o pároco que espera sua presença na igreja para dar início à missa;
os camponeses que batem à sua porta para dirimir contendas legais – apesar de seu estatuto específico de nobreza não
prever prerrogativas de cunho judiciário; os pedidos de apadrinhamento dos recém-nascidos e assim por diante (Cf. Arlette
Jouanna, La France du XVIe siècle, p. 82). Temos, neste caso, um retrato bastante consistente de um microcosmo social paysan,
hierarquizado por um elemento da pequena nobreza campestre, mas que é, na verdade, um sistema bem horizontalizado de
trocas diretas: “a familiaridade rural entre patrão e empregado, vivendo muito perto um do outro, em constante relação na
família doméstica, nas atividades do campo: as ordens dadas para a realização das tarefas do dia, o salário pago diretamente
pelo dono, o universo do trabalho em comum nos prados, nos campos e nos bosques” (Madeleine Foisil, “A Escritura do foro
privado” in Philippe Ariès, Georges Duby & Roger Chartier (eds.), História da Vida Privada, Vol. 3, Da Renascença ao Século
das Luzes (1986), Cia das Letras, 2006, p. 344). Para o texto de Gouberville, usei Le Journal du Sire de Gouberville (Eugène de
Beaurepaire, ed.), 2 Vols., Caen, Henri Delesques, 1892. Ver Philippe Hamon, “Gilles de Gouberville officier” in Les Cahiers
du Centre de Recherches Historiques, n° 23, 1999; Madeleine Foisil, Le Sire de Gouberville, Flammarion, 2001². Ver também
Emmanuel Le Roy Ladurie, História dos Camponeses Franceses (2002), 2 Vols., Civilização Brasileira, 2007, esp. cap. II
35 Jacqueline Bouchet, “Vrai ou faux amour de la campagne à la cour des derniers Valois”, p. 60.
36 Federico Schneider, Pastoral Drama and Healing in Early Modern Italy, 2010, especialmente o último capítulo “The Pastoral
phármakon”, pp. 203-210: o contexto, neste caso, refere-se mais a uma teoria do drama pastoral como phármakon [quer dizer,
droga medicinal], mas é iluminador para a relação da pastoral com a melancolia. Ver também Laurent Giavarini, “Représentation
pastorale et guérison mélancolique au tournant de la Renaissance: questions de poétique” in Etudes Epistémè, n° 3 (avril 2003),
pp. 1-27; Laurence Plazenet, “Inopportunité de la mélancolie pastorale: inachèvement, édition et réception des œuvres contre
logique romanesque” in Etudes Épistémè n° 3 (avril 2003), pp. 28-95.
70
A N A M O R F O S E - R E V I S TA D E E S T U D O S M O D E R N O S • V O L I • N º I • 2 0 1 3 • R i d E M
Happy he, in that he is freed from the tumults of the world, he seeks no
honours, gapes after no preferment, flatters not, envies not, temporiseth
not, but lives privately, and well contented with his estate;
Nec spes corde avidas, nec curam pascit inanem
Securus quo fata cadant. [Poliziano, Rusticus, vv. 24-25]
He is not troubled with state matters, whether kingdoms thrive better by
succession or election; whether monarchies should be mixed, temperate,
or absolute; the house of Ottomans and Austria is all one to him; he
inquires not after colonies or new discoveries; whether Peter were at Rome,
or Constantine's donation be of force; what comets or new stars signify,
whether the earth stand or move, there be a new world in the moon, or
infinite worlds, &c. He is not touched with fear of invasions, factions or
emulations;
Felix ille animi, divisque simillimus ipsis,
Quem non mordaci resplendens gloria fuco
Solicitat, non fastosi mala gaudia luxus,
Sed tacitos sinit ire dies, et paupere cultu
Exigit innocuae tranquilla silentia vitae. [Poliziano, Rusticus, vv. 17-21]37
Poderíamos estender essas considerações, mas, para o que me propus aqui, esse pequeno
resumo já mostra algumas possibilidades. Fazendo uma temerosa inflexão de ordem
geral, poderíamos dizer que, na sociedade europeia pré-moderna, a disseminação da
literatura pastoral se dá não apenas na aplicação recontextualizada de um modelo
literário helenístico-romano, mas faz parte de uma ampla, contínua e dinâmica reflexão
sobre certos padrões de comportamento e ação envolvendo a cidade e o campo. Essa
reflexão canibaliza e ressignifica elementos de ordem literária na criação de um universo
bastante particular de práticas sócio-culturais. E é a partir de um contexto diretamente
derivado da vie rustique francesa, que por sua vez depende de topoi pastorais clássicos
e modernos (apoteose da vida no campo, phármakon pastoral, revalorização de temas
agrários na literatura, melancolia difusa, complexificação denegatória da civilité), que
gostaria de analisar o texto abaixo.
37 “[Beatus ille...] Feliz daquele que, livre dos tumultos mundanos, não busca honras, não se embasbaca atrás de promoções,
não bajula, não inveja, não temporiza, mas vive reservado e contente com seu estado, [Nec spes...]. Não se perturba com
assuntos de estado, ou se reinos prosperam melhor por sucessão ou eleição, se monarquias deveriam ser mistas, temperadas,
ou absolutas; a casa de Osmã e a Áustria para ele são a mesma coisa; ele não questiona sobre colônias e novas descobertas;
se Pedro está em Roma, ou se a doação de Constantino fora feita à força; que significam cometas e novos astros, se a Terra
está imóvel ou movente, se há um novo mundo na Lua, ou infinitos mundos, etc. Ele não se comove por medo de invasões,
facções ou emulações; [Felix ille...]” (Robert Burton, A Anatomia da Melancolia [tradução de Guilherme Gontijo Flores], Vol. III
da edição brasileira, Segunda Partição, Seção 3, Membro 3, Subseção 1, p. 204. As citações em latim estão no original inglês.).
N O S E I O D A S D O U TA S V I R G E N S - A N Á L I S E PA S T O R A L D E U M T E X T O P R E A M B U L A R D E M O N TA I G N E
71
II
An. Christi 1571 aet. 38, pridie cal. mart., die suo natali, Mich. Montanus,
servitii aulici et munerum publicorum jamdudum pertaesus, dum se
integer in doctarum virginum recessit sinus, ubi quietus et omnium
securus (quan)tillum in tandem superabit decursi multa jam plus parte
spatii: si modo fata duint exigat istas sedes et dulces latebras, avitasque,
libertati suae, tranquillitatique, et otio consecravit38.
Estas linhas ornam uma das paredes da Torre do château de Montaigne e tudo indica
que foram escritas logo após a entrega do posto que Michel ocupava desde 1557 no
Parlement de Bordeaux (seu primeiro posto, na Cours des Aides do Perigord, em 1556, foi
absorvido pelo Parlement quando a Cours foi extinta em 1557). Seu pai, Pierre Eyquem
de Montaigne, morrera um pouco antes, em 1568, e parece que Michel, a partir daí Sire
de Montaigne e até então parlamentar por conta dos desejos de ascensão nobiliárquica
da família, se sentia finalmente livre para cortar o último dos cordões umbilicais39.
38 “No ano do Cristo de 1571, com a idade de trinta e oito anos, na véspera das calendas de março, no aniversário de seu
nascimento, Michel de Montaigne, já há muito tempo entediado com a escravidão da Corte do Parlamento e dos cargos
públicos, sentindo-se ainda bem disposto, vem isolar-se para repousar no seio das doutas Virgens, na calma e na segurança;
aí ele atravessará os dias que lhe restam para viver. Esperando que o destino lhe permita aperfeiçoar esta habitação, estes
doces refúgios paternos, ele os dedicou à sua liberdade, à sua tranquilidade e a seu lazer". A citação em latim em Michel de
Montaigne, Ensaios, Vol. 1, p. LXXXII; a tradução, de Costhek Abilio, p. LIX.
39 “Embora Jacques-Auguste de Thou veja em Montaigne (de longe) um magistrado ‘assíduo’, a experiência de Montaigne
com a toga não deixa de ser uma série de desculpas para se esquivar, de viagens a trabalho, de férias fora de época. É
significativo que a primeira referência a seu nome nos arquivos da região de Guyenne seja relativa a uma falta... E que o
principal caso que conduziu, segundo os arquivos municipais, tenha envolvido a cobrança do imposto sobre bois, vacas e
carneiros...” (Jean Lacouture, Montaigne a cavalo, p. 100).
72
A N A M O R F O S E - R E V I S TA D E E S T U D O S M O D E R N O S • V O L I • N º I • 2 0 1 3 • R i d E M
Do ponto de vista formal, esta inscrição de 1571, não é nem literatura, nem
filosofia, nem história, nem ciência, mas uma efeméride, como as que foram escritas
pelos Montaigne nas Efemérides de Beuther40. E as efemérides, que se associam tanto
ao diário íntimo avant la lettre quanto a eventos de ordem cósmica, religiosa e civil,
recortam um momento singular no tempo do indivíduo e do mundo. No entanto, embora
efeméride, podemos facilmente ampliar seu quadro hermenêutico. Efetivamente, a
inscrição pode ser entendida como o primeiro exemplo do mesmo impulso por citações
que anima a ornamentação das famosas traves da sua Biblioteca41. Neste caso, podemos
acrescentar-lhe também uma faceta gnômica explícita – aquela que, por sua vez, é tão
característica do próprio texto dos Ensaios. Se entendida assim, a inscrição de 1571
constitui o primeiro momento da economia citacional que os anima: é sua abertura
simbólica e concreta, ainda que algo paradoxal42.
Com isso em mente, este pequeno texto explicitamente arcaizante43 – a princípio
claro em seus objetivos imediatos (aposentadoria parlamentar e exclusivismo da vida
intelectual), mas no fundo bastante enigmático – pode ser lido no quadro das inscrições
de ordem monumental, como as do antigo Egito ou da antiga Pérsia44. Ou, ao contrário,
como documento de derrota e capitulação45. Pode ser lido como grafito: marcando ou
40 As Éphémérides de Beuther eram uma espécie de agenda (trazendo apenas os dias e os meses) que mostrava as principais
datas comemorativas do calendário. Não trazendo indicação do ano, e como metade de cada página era em branco, o usuário
podia inscrever nela suas próprias efemérides (casamentos, nascimentos, óbitos, festas) durante praticamente a vida toda, e
mesmo além – a agenda passando de pai para filho, por gerações. Ver “Notes de Montaigne inscrites sur son exemplaire des
‘Ephémérides’ de Beuther” in Montaigne (Albert Thibaudet & Maurice Rat, eds.), Œuvres Complètes [Bibliothèque de la Pléaide],
Gallimard, 1962, pp. 1401-1415.
41 Sabe-se que a inscrição de 1571 foi gravada e pintada em um painel na parede do gabinete contíguo, mas as inscrições
gregas e latinas da Biblioteca do château foram talhadas em baixo relevo nas 48 traves e vigas de madeira do seu teto (o
que as torna solidárias de um dos topoi pastorais, como veremos abaixo). Ver Alain Legros, Essais sur poutres. Peintures et
inscriptions chez Montaigne. Klincksieck, 2003².
42 Neste caso, ironicamente, a primeira das citações desta economia gnômica (quer dizer, as frases gregas e latinas das traves
que se juntam às infinitas citações de autores antigos nos ensaios) não só não está no texto dos Ensaios como é do punho do
próprio Montaigne. Reforça o aspecto gnômico geral, obviamente, o fato de a inscrição de 1571 também estar em latim, como
a maioria das citações presentes nas traves e nos Ensaios.
43 “(...) tournée dans l’style de l’épigraphie classique” (Hugo Friedrich, Montaigne, p. 22).
44 Podemos considerar a arte rupestre pré-histórica como inscrições monumentais, mas esta a que me refiro aqui precisa da
invenção da escrita. A inscrição de Behistun (nos montes Zagros, província de Kermanshah, no Irã) é um exemplo disso que
chamo de inscrição monumental: imensa (25 x 15 m), foi gravada por volta de 515 a.C. na rocha de uma falésia, a 100 m de
altura, a mando de Dario I (550-486 a.C.). Escrita em três línguas (antigo persa, elamita e acadiano), conta a história da sua
ascensão ao poder diante de Smerdis da Pérsia. Tem pois uma dimensão solene, grave, institucional e ao mesmo tempo de
júbilo, que caracteriza o ato conquistador.
45 Como se sabe, o título Chevalier de l’Ordre de Saint Michel foi outorgado a Michel de Montaigne também em 1571, a mando
do rei Charles IX. A designação chevalier quer dizer, entre outras coisas, que o nobre com esse título descende da mesma
linhagem dos nobres equestres romanos (a ordo equester reorganizada por Augusto como segunda ordem do Estado, lotada
sobretudo nas províncias). Assim como os membros da ordo equester romana, que eram proprietários rurais (o equestre típico
é um “bonus agricola”), o chevalier embora, essencialmente, um soldado, pode ficar sentado atrás de uma mesa, trabalhando
diante de uma pilha de papel, rodeado por seus assessores ou cuidando de suas terras. Neste caso, um soldado que se alinha
na tradição das antigas decúrias judiciárias do Império, perfazendo uma carreira no Direito e não no exército (Cf. Paul Corbier,
L’épigraphie latine, esp. cap. 5, “Les cursus équestres et leur fusion avec les carrières sénatoriales au IVe siècle”, pp. 63-77). Desse
modo, a inscrição de 1571 pode ser lida como um documento, irônico, de capitulação: à entrada na ordem dos cavaleiros
N O S E I O D A S D O U TA S V I R G E N S - A N Á L I S E PA S T O R A L D E U M T E X T O P R E A M B U L A R D E M O N TA I G N E
73
poluindo o espaço público ou privado com palavras de ordem, codificações secretas,
esotéricas ou simplesmente ininteligíveis (o latim tem, nisso, algumas vantagens e a
criadagem do château constitui seu público incompreensivo)46. Neste caso, é também
solidário às garatujas de banheiro, quer dizer, marca de comportamento eliminativo47.
Pode ser lido como inscrição de caráter votivo, amoroso ou profético (no registro
pastoral)48, ou como inscrição devocional e simbólica aos daimones ancestrais – os
antigos romanos diriam de devoção aos deuses “Lares”49. Pode ser lido como documento
corresponde a saída da vida pública.
46 Podemos pensar nos antigos graffiti (que para nós perderam completamente a noção de coisa ordinária para entrar no
corpus sagrado dos monumentos) mas também no grafito moderno, demarcando uma cultura ou sub-cultura específica (o
caso do hip-hop é um exemplo, cf. Janice Rahn, Painting without Permission: Hip-Hop Graffiti Subculture, Greenwood Press,
2002). Sem muita elucubração, também podemos pensar o texto na ordem da pichação pura e simples. Há, em todo caso,
uma longa tradição associada a essas operações. “Most out-of-place inscriptions can be classified as tourist graffiti, inner-city
graffiti of toilet graffiti. Tourist graffiti are scratched on rocks, trees and monuments by passing visitors and consist mainly of
names, dates and simple expressions of affection. Roman soldiers left them on the pyramids during their occupation of Egypt,
and hundreds of Greek and Latin inscriptions of the form ‘Kilroy was here’ have been found on rocks at a popular resting spot
beside an ancient trail in Palestine. Inner-city graffiti tend to be more elaborate, featuring names, images and statements of
identity painted on city walls, often staking territorial claims. Toilet graffiti – dubbed ‘latrinalia’ by one scholar – appear on
bathroom walls. They are produced in a setting that is an unusual mixture of private and public. All graffiti-writing requires a
certain amount of secrecy, and bathroom stalls are more private than the spaces where other forms of graffiti are produced,
allowing wall-scribblers more time and leisure to compose their messages. The chances of being caught in the act of writing
are minimal if the latch is correctly engaged” (Nick Haslam, Psychology in the Bathroom, Palgrave, 2012, pp. 114-115).
47 Roger-Henri Guerrand, Les lieux. Histoire des commodités, La Découverte, 1985; Nick Haslam, Psychology in the Bathroom,
Palgrave, 2012; Harvey Molotch & Laura Noren, Toilet: Public Restrooms and the Politics of Sharing, NYU Press, 2010.
48 Se considerarmos a inscrição de 1571 (apesar de pintada numa parede) como mais um texto somado ao conjunto gnômico
das traves, podemos aproximá-las das inscrições que ocorrem nos subtextos bucólicos, inscrições em madeira (quer dizer,
nas árvores clássicas da literatura pastoral: a faia, o plátano, a cerejeira e o pinheiro), ora alimentando a mitologia de uma
iminente época de ouro (Virgílio, Bucólicas IV; Calpúrnio Sículo, Bucólicas, I, vv. 21-89; Bucólicas, IV, vv. 128-136); ora lembrando
recados eróticos entre amantes (Calpúrnio Sículo, Bucólicas, III, vv. 43 e ss; Virgílio, Bucólicas, V, vv. 13 e ss). Teócrito também
faz referência ao plátano ornado por uma inscrição votiva: “(...) tomando um estilete de prata verteremos o untuoso licor gota
a gota sobre um plátano umbroso. E uma inscrição será gravada sobre sua casca para ser lida pelo passante, como fazem os
dórios: ‘Honrem-me, sou a árvore de Helena’” (Idílios, XVIII, v. 45-49). O tema é retomado por Sannazaro, no prólogo da sua
Arcadia.
49 Juntamente com a pietas – quer dizer, o respeito à memória familiar e cívica –, o culto aos deuses Lares é um dos fundamentos
da vida religiosa romana, desde a época real. Ele era atribuição exclusiva do pater familias (função, aliás, muito parecida
com a de Michel de Montaigne a partir da morte de Pierre Eyquem, noves fora as diferenças históricas mais imediatas), e
normalmente era prestado num altar (o lararium ou sacrarium) que ficava no atrium (peça frontal da casa, próximo à porta), o
que faz do culto doméstico aos Lares uma religião de foyer: “The paterfamilias was responsible for maintaining the traditional
rites of his family, the worship of the Lares and Penates and the other sacra inherited from his ancestors and destined to be
passed on to his descendants (the sacra familiae); while on the country estate, as we learn from the agricultural handbook of
Cato the Elder, the whole household (familia) including the slaves, would gather together for ceremonies to purify the fields
and to pray to the gods for protection and for the fertility of crops and herds” (Mary Beard, John North & Simon Price, Religions
of Rome, Vol. 1, CUP, 1996, p. 49).
74
A N A M O R F O S E - R E V I S TA D E E S T U D O S M O D E R N O S • V O L I • N º I • 2 0 1 3 • R i d E M
mágico50. Como epitáfio, cenotáfio ou placa memorial51 – e, neste caso, uma derivação
possível é a de ser lido como uma inscrição de esquife52. Pode ser lido como documento
50 Inúmeros papiros gregos mágicos (que respondem pela sigla técnica PGM), por exemplo, mostram não apenas conjuntos
de recitações ou fórmulas, utilizadas em práticas rituais ou semi-rituais, mas também regras para confecção de amuletos
(filactérios) – que, uma vez sacralizados pelo ritual mágico, precisam permanecer junto ao corpo ou nos aposentos dos que
esperam receber dele algum benefício (o olho de boi ou ferradura na porta de entrada das casas de hoje são sobrevivências
dessas práticas antigas). Ver sobretudo Hans Dieter Betz (ed.), The Greek Magical Papyri in translation, University of Chicago
Press, 1986. E também Christopher Faraone & Dirk Obbink (eds.), Magika Hiera. Ancient Greek Magic and Religion, OUP, 1991;
John Gager (ed.), Curse Tablets and Binding Spells from the Ancient World, OUP, 1992; Marvin Meyer & Paul Mirecki (eds.),
Ancient Magic and Ritual Power, Brill, 2001; Paul Mireki & Marvin Meyer (eds.), Magic and Ritual in the Ancient World, Brill,
2001; Matthew Dickie, Magic and Magicians in the Greco-Roman World, Routledge, 2001; Jan Bremmer & Jan Veenstra (eds.),
The Metamorphosis of Magic from Late Antiquity to the Early Modern period, Peeters, 2002; Richard Kieckhefer, Magic in the
Middle Ages, CUP, 1989. Boa compilação de ilustrações de amuletos para diversos fins em Sheila Paine, Amulets. A World
of Secret Powers, Charms and Magic, Thames & Hudson, 2004; e também Claude Lecouteux, Le livre des talismans et des
amulettes, Imago, 2005. Um exemplo de fabricação de filactério no contexto greco-romano é o PGM VII, linhas 579-590 (Cf.
Betz, Op. cit., p. 134) – e a inscrição de 1571, com sua logística obsequiosa e de invocação, permite aproximá-la desse tipo
de artefato mágico. No mesmo sentido, a partir de um raciocínio consideravelmente surrealista, a inscrição de 1571, se relida
nesse contexto, poderia levar a uma reavaliação ampla e complexa da própria atividade citacional montaignista: a inscrição,
somando-se à economia gnômica das traves, por sua vez ampliada pela economia gnômica dos próprios Ensaios, formariam
um conjunto sentencioso relativamente coeso e solidário, doravante lido na perspectiva dos grimoires – livros mágicos
contendo compilações de fórmulas e feitiços variados, quase sempre de segunda mão, e seu modus operandi. Ver Owen
Davies, Grimoires, a History of Magic Books, OUP, 2009; Claude Lecouteux, Le Livre des Grimoires. De la magie au Moyen Age,
Imago, 2008³. Neste caso, inverteríamos completamente a ordem das coisas: não o texto dos Ensaios sendo ornamentado por
citações, mas as citações ornamentadas pelo texto dos Ensaios. Por último, como reforço a essa dimensão mágico-religiosa,
não devemos esquecer que o latim, apesar de toda a sua importância para o humanismo do Renascimento, é também uma
língua eclesiástica e, em última análise, também uma língua esotérica.
51 O túmulo e o epitáfio são, visualmente, e enquanto memento mori, os signos árcades da melancolia – elemento explorado,
mais tarde, por Guercino e, sobretudo, por Nicolas Poussin em suas telas retratando Les Bergers de l’Arcadie. O memento mori,
como vimos, já era valorizado como componente pastoral desde Sannazaro (o topos tumular arcadiano foi extraído da Écloga
XII da sua Arcadia). A mais completa iconografia da melancolia (e da melancolia associada ao memento mori) que conheço é
Jean Clair, Mélancolie. Génie et folie en Occident, Gallimard, 2005. Para o epitáfio na Antiguidade, Maureen Caroll, Spirits of the
Dead: Roman Funerary Commemoration in Western Europe, OUP, 2006. Para uma poética do túmulo, Scott Newstock, Quoting
Death in Early Modern England. The Poetics of Epitaphs Beyond the Tomb, Palgrave, 2009. Para a morte na Arcádia ver Bruno
Damiani & Barbara Mujica, Et in Arcadia ego: essays on death in the pastoral novel, University Press of America, 1990. Para uma
perspectiva geral do tema da morte e do fúnebre, Jean-Claude Schmitt, Os Vivos e os Mortos na Sociedade Medieval (1994), Cia
da Letras, 1999; e, claro, Philippe Ariès, O Homem diante da Morte (1977), 2 Vols., Francisco Alves, 1982, e História da Morte no
Ocidente (conferências de 1974), Nova Fronteira, 2012 [Saraiva de Bolso].
52 No sentido dos coffin texts egípcios, textos exequiais inscritos no interior dos sarcófagos com o fim de ajudar o morto no
trajeto ao além e no desenrolar da vida póstuma. São, no final das contas, documentos mágicos. A maior parte das inscrições
vem dos textos piramidais do Império Antigo (~2700-2180 a.C.) e do chamado Livros dos Mortos – o que quer dizer que,
inicialmente, eram de domínio exclusivo dos faraós. Depois do colapso do Império Antigo, inscrições desse tipo passam
a figurar também nos sarcófagos comuns (de quem tinha dinheiro para comprá-los, claro), fenômeno denominado pelos
especialistas de “democratização da vida além-túmulo”. Muitos desses textos implicam numa dramatização de um tribunal
divino, o que não deixa de ser interessante no contexto pós-parlamentar de Montaigne (os parlements franceses do Ancien
Régime são instituições de caráter jurídico, quer dizer, tribunais, e não de caráter legislativo): “Salve Thoth e seu Tribunal. Salve,
ó Thoth, em quem está a Paz dos deuses, e todo o tribunal que está contigo!” (Faulkner, I, texto 9). Ver Steven Snape, Ancient
Egyptian Tombs: The Culture of Life and Death, Wiley-Blackwell, 2012; Raymond O. Faulkner, The Ancient Egyptian Coffin Texts, 3
vols., 1972-78. Para os textos do Livro dos Mortos, E. A. Wallis Budge, O Livro Egípcio dos Mortos (1923), São Paulo, Pensamento,
1993.
N O S E I O D A S D O U TA S V I R G E N S - A N Á L I S E PA S T O R A L D E U M T E X T O P R E A M B U L A R D E M O N TA I G N E
75
utópico53. Como documento escatológico-milenarista54. Ou simplesmente como
literatura de parede, onde a própria casa é entendida como livro55.
A inscrição indica ou pressupõe, portanto, um cosmo complexo e cheio de
energia potencial. Ela sugere não apenas uma posição de princípio (no registro ético
ou moral), mas também um lugar – um locus amoenus56 – múltiplo, multifacetado e
com características bastante peculiares. Aqui, no entanto, quero explorar apenas uma
dimensão fracionária desse locus, aquela que se liga à expressão mais propriamente
ascética da vie rustique.
E de fato, sem muito esforço, extraímos da inscrição de 1571, ao menos em
princípio, um modelo de vida onde o Rusticus se sentiria em casa: o innocuae tranquilla
silentia vitae (do verso 21) unido ao urbe procul e ao voti exiguus (do verso 22) do poema
de Poliziano se casam com o ubi quietus, o ominum securus, o dulce latebras do texto da
inscrição – ainda que, neste último caso, isto se dê num contexto que negocia com esse
território austero da vie rustique e, aparentemente (por oposição ao texto de Poliziano,
53 A nova Idade do Ouro é, claro, também um topos pastoral. Em Virgílio, ele parece escapar do contexto das outras écoglas,
mas o fato de ser um tema “um pouco mais alevantado” que os “arbustos e as humildes tamargueiras” da temática pastoral
estrita não quer dizer que também não seja um tema pastoral – afinal de contas, a Écogla IV (que fala do nascimento de um
menino prodigioso, que governará uma Roma beatífica e que terá ampla repercussão nas discussões milenaristas cristãs) foi
publicada pelo próprio Virgílio como sendo uma... écloga. A passagem mais característica desse universo edênico é: “Ultima
Cumaei venit iam carminis aetas; | Magnus ab integro saeclorum nascitur ordo. | Iam redit et Virgo, redeunt Saturnia regna
[Já chegou a última idade da profecia de Cumas; a grande série de séculos recomeça. Já também retorna a virgem, voltam
os reinos de Saturno]” (Virgílio, Bucólicas IV, vv. 4-6). Mais tarde, Calpúrnio Sículo igualmente celebrará sua própria época
beatífica: “aurea secura cum pace renascitur aetas | et redit ad terras tandem squalore situque | alma Themis posito iuvenemque
beata sequuntur | saecula, maternis causam qui vicit Iulis [Assegurada a paz, renasce a Idade de Ouro e, uma vez eliminada a
torpeza e a sordidez, a benéfica Témis regressa, enfim à terra. Tempos felizes acompanham este jovem: saiu vitoriosa a causa
dos maternos Julos]” (Calpúrnio Sículo, Bucólicas, I, vv. 21 e ss.). Estas passagens reforçam a ligação da literatura pastoral como
um todo com os dispositivos utópicos (faceta que tem lugar preponderante também no desenvolvimento da vie rustique). Na
citação de Virgílio, a referência é especialmente interessante, pois esse dispositivo utópico é anunciado, além da expressão
Saturnia regna, pelo termo Virgo – que tem importância estrutural no texto da inscrição de 1571, como veremos abaixo. A
dimensão utópica, neste caso, é, evidentemente, aquela que invoca o nascimento de um novo ciclo do tempo, um novo
começo, uma nova ordem – compatíveis, portanto, com a atmosfera explícita da inscrição feita por Montaigne.
54 Faço uma consideração a respeito mais adiante. Para uma literatura geral sobre o milenarismo ver Norman Cohn, The
Pursuit of the Millennium: Revolutionary Millenarians and Mystical Anarchists of the Middle Ages, OUP, 1970; Barry Brummett,
“Premillennial Apocalyptic as a Rhetorical Genre” in Central States Speech Journal 35 (Summer 1984), pp. 84-93; Stephen
O’Leary, Arguing the apocalypse: a theory of millennial rhetoric, OUP, 1998; Bernard McGinn, Visions of the End. Apocalyptic
Traditions in the Middle Ages, Columbia University Press, 1979.
55
Na Inglaterra elisabetana, por exemplo, as paredes são também utilizadas para comportar textos, sobretudo textos
poéticos. No Welspring of wittie Conceights (anônimo, 1584) ou no A Hundreth good pointes of husbandry, lately maried unto
a hundreth good poynts of huswifery (1570) de Thomas Tusser, encontramos propostas literárias específicas para esse tipo de
inscrição: “At the end of the Welspring of wittie Conceights occurs a set of ‘Certaine worthie sentences, very meete to be written
about a Bed-chamber or to be set up in any convenient place in a house’. The appendices to Thomas Tusser’s A Hundreth good
pointes of husbandry… similarly include a series of something called ‘Husbandly Poesies’ – ‘Poesis for the hall’, ‘Posies for the
Parler’, ‘Posies for the gest’s Chamber’ and ‘Posies for thine own bed Chamber’. These two sets of poems bear witness to the
surprising fact that the Elizabethan householder was advised to write on his, or her, own walls. Evidence that such advice was
followed is furnished by two Hertfordshire properties, on whose interior walls selections from Tusser’s posies can still be read”
(Juliet Fleming, Graffiti and the Writing Arts of Early Modern England, Reaktion Books, 2009, p. 29).
56 Alexander Samson (ed.), Locus Amoenus. Gardens and Horticulture in the Renaissance, Wiley & Sons, 2012.
76
A N A M O R F O S E - R E V I S TA D E E S T U D O S M O D E R N O S • V O L I • N º I • 2 0 1 3 • R i d E M
que é altamente virtuosístico), não tenha em si grandes aspirações literárias57. Claro,
por “modelo de vida” devemos entender o sentido que a palavra “modelo” guarda em
termos de singularidade, de valor ideal: na inscrição de 1571, trata-se obviamente de
uma tomada de posição, uma carta de intenções (o cansaço do trabalho no Parlamento
conduziu à entrega do cargo e à vida doravante voltada para o château), mas não
necessariamente de uma práxis real que deva ser entendida ao pé da letra58. E, neste
caso, temos em funcionamento um exemplo de menosprecio – com suas inerentes
contradições e paradoxos cortesãos.
Seja lá como for, quer espelhe uma necessidade contingente ou uma mera
intenção superficial, há algo de irônico nesta declarada ascese rústica, pois o “seio das
doutas virgens” [doctarum virginum sinus] alia uma densidade altamente sexualizada
à imagem do οἶκος ancestral. Essa correlação irônica se fortalece na medida em que
“sinus virginum” coincide actancialmente, no texto da inscrição, com “dulces latebras”
enquanto os lugares invocados como os de repouso e de reflexão59. Pois sinus pode ser
entendido como seio, mas também como vagina60; e o substantivo latebras, embora
seja um termo elegante para refúgio, está muito próximo do adjetivo latebrosus – que,
associado a locus, pode significar tanto o lugar oculto, o recanto profundo e obscuro,
quanto o lugar desrespeitável61. Sem contar que o mesmo radical também serve à
57 “[A inscrição de 1571 é] o pior e menos verdadeiro dos textos que [Montaigne] jamais escreveu” (Jean Lacouture, Montaigne
a cavalo, p. 143).
58 A decisão pelo recolhimento, provavelmente preparada há muito tempo mas anunciada no dia do seu aniversário (28
de fevereiro), tem algo de teatral. Teatral também será a data de publicação da primeira edição dos Ensaios, 1 de março de
1580, no dia seguinte ao seu aniversário de 47 anos. Montaigne considerava seus novos ciclos sócio-profissionais como
renascimentos? Certamente gostava de dramatizá-los. Seja como for, o “retiro do mundo”, como se sabe, mostrou-se um
exagero: mesmo depois da entrega do cargo em 1571, Montaigne continuou uma intensa vida social e política, muito pouco
ascética e solitária. Para uma análise histórica do tema do recolhimento, ver Georges Minois, Histoire de la solitude et des
solitaires, Fayard, 2013; e Bernard Beugnot, Le Discours de la retrait au XVIIe siècle, PUF, 1996. Para uma abordagem sociológica,
ver Roelof Hortulanus, Anja Machielse & Ludwien Meeuwesen, Social Isolation in Modern Society, Routledge, 2006. Em todo
caso, por razões que explico mais abaixo, não gostaria de assimilar muito rapidamente o tema do contemptus mundi (na lógica
místico-eclesiástica) à inscrição de 1571. Para este último, ver Michel de Certeau, Jean Daniélou et alli, Le mépris du monde,
Cerf, 1965.
59 A tradução de Costhek para a inscrição de 1571, que segue literalmente a de Villey (pelo que se vê, o texto em português
foi feito a partir do francês e não do latim), assumiu “dulces latebras, avitasque” como “doces refúgios paternos”, mas seria mais
correto e literal dizer “refúgios doces e avoengos”. Muito embora possa ser subentendida, uma vez que Michel de Montaigne
colocou a inscrição num dos cômodos do castelo que herdou do pai, não é a palavra “păternus, -a” que figura literalmente
no texto em latim mas ăvīta [genitivo de ăvītus]: adjetivo que designa não o pai, mas o avô, o que muda completamente o
contexto. Agradeço a Gustavo Olivieri a observação.
60 “Sinus is used of the vagina or womb by Tibullus, 1.8.36: ‘teneros conserit usque sinus’; cf. Ovid Fast. 5.256 ‘tangitur et tacto
concipit illa sinus’. As an anatomical (or near-anatomical) term sinus strictly denoted the space between the chest and the arms
held in front of the chest as if to clasp an object (= ‘bosom’). It is not from this usage that the above anatomical examples could
be derived, but from its use in application to any hollow space or cavity” (J. N. Adams, The Latin Sexual Vocabulary, Duckworth,
1982, p. 90).
61 É este, por exemplo, o sentido de latebrosus no contexto de uma comédia de Plauto, as Báquidas. A entrada no Lewis-Short
dá o seguinte: “lătēbrōsus, a, um, adj. latebra, full of lurking-holes or coverts, hidden, retired, secret. Lit. (rare but class.): loca,
lurking-places, disreputable haunts, Plaut. Bacch. 3, 3, 26: via, * Cic. Sest. 59, 126: locus, Liv. 21, 54: viae, Amm. 14, 2, 2: loca,
id. 17, 1, 6: flumina, Verg. A. 8, 713: latebrosae tempora noctis, Luc. 6, 120: serpens, Sen. Oedip. 153: latebrosa et lucifuga natio,
Min. Fel. 8, 4.—Poet.: pumex, i. e. full of holes, porous, Verg. A. 12, 587”. A citação de Plauto: Magis illectum tuom quam lectum
N O S E I O D A S D O U TA S V I R G E N S - A N Á L I S E PA S T O R A L D E U M T E X T O P R E A M B U L A R D E M O N TA I G N E
77
formação do perigoso substantivo latebricola62. Lugar desrespeitável onde se vai para
repousar sobre as vaginas das doutas musas/virgens...63.
Na inscrição de 1571 temos, evidentemente, uma lógica rústica e pastoral – mas
que se cristaliza perfeitamente na performance contemplativa e extática do otium cum
litteris humanista64. Afinal de contas, a rusticidade não se contrapõe à civilização65.
Mas tal performance, em princípio ascética (ou puramente intelectual), existe num
cenário erótico irônico e subliminar. A tensão entre os elementos masculinos e
femininos presentes no texto em latim (expressos por vocábulos intelectualizados e/ou
da tradição monástica, e que ordinária e classicamente são esvaziados de perspectiva
corporal, como quietus, otium, tranquillitas, libertas) pode ser lida como perversamente
complementar a esta densidade erótica e, na esteira desse jogo de significados, a
relação estrutural entre latebras e sinus (relidos e ressignificados, como fiz acima, nos
difamáveis domínios da lubricidade) não faz senão amplificá-la66.
metuo. mala tu es bestia. | nam huic aetati non conducit, mulier, latebrosus locus. [Tenho menos medo dos teus jantares que das
tuas iscas; és um animal sagaz. Na minha idade, moça, devemos evitar esses lugares de má reputação] (Báquides, Ato I, cena
I, vv. 55-56). O contexto (a peça trata de uma escrava meretriz emprestada que não quer voltar ao seu dono) é evidentemente
irônico, mas os tradutores do final do século XIX e início do século XX que verteram esta peça para as línguas modernas
(ao menos nas versões que pude checar em francês e inglês) esvaziaram por completo a expressão latebrosus locus de seu
sentido sexual. No subúrbio carioca dos anos 1970, traduziríamos a expressão latebrosus locus por “inferninho”, gíria da época
para puteiro – guardando assim as características tectônicas e abscônditas de latebrosus, embora com um colorido judaicocristão que não se aplica a Plauto. “Inferninho” é bom ainda por outra razão: coincidentemente, o mais famoso latebrosus
locus intelectual que se conhece hoje é o Enfer da Bibliothèque Nationale (sendo “enfer” um termo genérico usado pelos
bibliotecários franceses para designar suas sessões de livros licenciosos e pornográficos), o que, a partir do projeto intelectual
de Montaigne (a Biblioteca do château estreitamente ligada à produção dos Ensaios), só faria re-energizar sexualmente o
contexto da inscrição e da vida intelectual de seu autor.
62 Quer dizer, “o que frequenta lugares de baixa reputação”. Mais uma vez, o contexto é de uma comédia de Plauto, Trinummus,
v. 240: latebricolarum hominum corruptor.
63 É interessante notar que Starobinski, embora não tenha atentado para a possibilidade desse bricabraque terminológico
psicodélico, também faz uso de uma leitura algo erótica de “sinus virginum” partindo, porém, do conceito psicanalítico de
regressão: “A libertação vai de par com o encerramento. Uma estrita oposição se manifesta entre a expressão do desgosto, a
vontade de ruptura (servitii aulici et munerum publicorum jamdudum pertaesus) e o ato votivo que consagra e circunscreve
estreitamente o lugar de retiro ([...] libertati suae, tranquillitatique, et otio consecravit). Esse lugar é metaforicamente o “seio
das doutas Musas” (doctarum virginum sinus): trata-se, seguramente, das paredes que lhe oferecem, ‘ao curvar-se’ [Ensaios, II,
3, p. 828], a coleção das obras de poesia, de filosofia, de história que ele quer cercar-se. A imagem do afastamento (recessit)
do lugar oculto (dulces latebras), a figura feminina das Musas (...) evocam, para o leitor moderno o conceito psicanalítico de
regressão, com seu cortejo de noções associadas” (Jean Starobinski, Montaigne em Movimento, p. 17). Ainda assim, Starobinski
insiste que “a inscrição inaugural de 1571 não deve ser lida essencialmente como um documento psicológico”.
64 A fórmula deriva de um trecho das Cartas de Sêneca: (...) otium sine litteris mors est et hominis vivi sepultura [O ócio sem
o estudo é a morte, a sepultura do homem ainda em vida] (Epistulae morales 82, 3), servindo como divisa ou inspiração para
diversos humanistas do Renascimento (Cf. Hugo Friedrich, Montaigne (1949), Gallimard, 1968, p. 22).
65 Como já adiantava Idas, personagem de Calpúrnio Sículo: “Ne contemne casas et pastoralia tecta: rusticus est, fateor, sed
non et barbarus Idas [Não desprezes as minhas choupanas nem meus abrigos pastoris. Confesso que Idas é rústico, mas não
bárbaro]” (Bucólicas II, vv. 60-61). Ainda aqui, a inscrição de 1571 acompanha a tradição pastoral, valorizando um de seus
aspectos fundamentais: a imagem do rústico aristocrático.
66 “Quando Montaigne evoca a tranquilidade (quietus, depois tranquillitas), a segurança (securus), o repouso (otium), pode-se
acreditar que não faz mais do que confirmar a natureza regressiva de seu desejo. Por certo, a casa é o lugar ancestral (avitas
sedes) e remete à linhagem dos ancestrais masculinos, mas essa masculinidade, ligada desde 1477 à propriedade dominial,
acha-se contrabalançada (para a argumentação psicanalítica) pelo gênero feminino de sedes e pela preponderância dos nomes
78
A N A M O R F O S E - R E V I S TA D E E S T U D O S M O D E R N O S • V O L I • N º I • 2 0 1 3 • R i d E M
O jogo erótico não é, evidentemente, estranho ao bucolismo normativo. É
importante não perder de vista que o regime pastoral tem firme no horizonte, desde
sempre, o amor e o amor erótico: é para entender o amor que o Gallus de Virgílio está na
Arcádia da última écloga; e é o amor erótico que está em jogo quando o pastor Córidon
se desespera diante do desprezo do belo Alexis, ou quando Ástaco e Idas disputam
um torneio poético para conquistar a jovem Crócale (Calpúrnio Sículo, Bucólicas II):
não se espera nada de intelectual quando tais desprezos forem contornados, quando
tais conquistas se concretizarem67. Por sua vez, o desenraizamento topográfico da
pastoral em direção a uma autonomia aplicável a contextos não bucólicos, quer dizer,
sua desterritorialização68, torna esse jogo erótico pastoral (filtrado pelos mecanismos
da vie rustique) um dispositivo aplicável também ao contexto da Biblioteca do château.
Quando relidos no ethos pastoral, a amizade e o erotismo se complementam e se
energizam neste espaço da vida intelectual, sobretudo quando sabemos que a Biblioteca
tem sua origem nos livros herdados de Étienne de La Boétie, o amigo por excelência
de Montaigne69. Eis, portanto, outra relação bastante sintomática de reificação erótica
da Biblioteca como um latebras/latebrosus locus70. Ainda uma vez, a inscrição de
1571, como elemento fundacional da economia gnômica e do processo intelectual
femininos, na lista dos termos que a inscrição consagra (depois de libertas e tranquillitas, apenas otium não é feminino, mas
neutro!)” (Starobinski, Montaigne em Movimento, p. 17).
67 Note-se também que o regime erótico pastoral latino, continuado pela pastoral pré-moderna, teve como complemento a
redescoberta da erótica das antigas novelas imperiais.
68 Ampliação de contexto, como vimos, presente já em Sannazaro, quando adaptou o bucolismo pastoral clássico
(exclusivamente agrário) para um milieu não-campestre, substituindo os pastores pelos pescadores da região de Nápoles (as
Eclogas piscatoriae foram publicadas em 1526). Ver Jacopo Sannazaro, “Piscatory Eclogues” in Latin Poetry (Michael Putnan,
ed.), Harvard University Press [I Tatti Renaissance Library], 2009, pp. 102-141.
69 “On ne peut qu’en supposer les motifs [do retiro de Montaigne]; lui-même s’est exprimé de façon très vague à ce sujet. Ils
tiennent peut-être dans l’obligation, survenue à la mort de son père, de reprendre la charge du château en qualité d’héritier. Il
est possible que des déceptions politiques, la satiété de sa magistrature, le chagrin d’avoir perdu son ami La Boétie, aient joué
leur rôle. Nous savons en tout cas qu’il s’installa dans sa ‘librairie’, entouré de livres dont la plupart lui venaient de la succession
de La Boétie (…).” (Friedrich, Montaigne, p. 22).
70 Um dos elementos mais fundamentais da civilité, a conversação, não escapa de uma perspectiva erótica – complementada
na imagem do casamento heterossexual como dispositivo que desfaz, no cidadão comum (quer dizer o cortesão que não é
nem eclesiástico, nem asceta em busca de Deus), os perigos da solidão (problema complexo no contexto corteggiano, uma
vez que impede o exercício das virtudes civis que são próprias ao homem socializado): “(...) et con la medesima raggione
debbiamo porre quest’altro fondamento, ch’essendo l’huommo animal sociabile, ami di natura sua la prattica de gli altri
huomini, & habbia in odio la solitudine, & facendo il contrario offenda l’istessa natura” (Stefano Guazzo, La Civil Conversazione,
Tomazzo Bozzola, 1574, pp. 4-5). Milton, por exemplo, falará do casamento insistindo nesses termos: “In The Doctrine and
Discipline of Divorce, [John] Milton argues that the original purpose of marriage was ‘to comfort and refresh [man] against
the evil of solitary life’, assuaging ‘God-forbidden loneliness’ with ‘meet and happy conversation’. And, as Milton insists in
Tetrachordon, such fulfillment is possible only in the heterosexual relation...” (Melissa E. Sanchez, Erotic Subjects: The Sexuality
of Politics in Early Modern English, OUP, 2011, p. 212). Se não há referências diretas ao casamento na inscrição de 1571,
sobram especulações sobre esse lugar privilegiado onde se unem erotismo e civilité: “Montaigne dirá que não sabe se não
preferiria ter produzido um filho ‘nascido de um comércio [acointance, termo que até o século XVI é “próprio da linguagem
nobre da ‘courtoisie’” (Cf. TLF-i), significando neste caso comércio no sentido sexual] com as musas a um produto das suas
relações [acointance] com minha mulher’ (Ensaios II, VIII, p. 401 [“Da Afeição dos pais pelos filhos”, CA II, p. 105])” (Starobinski,
Montaigne em movimento, p. 17). Ver também Georges Minois, Histoire de la solitude et des solitaires, Fayard, 2013; e Peter
Burke, A Arte da Conversação (orig. inglês 1993), Ed. UNESP, 1995, esp. cap. 4.
N O S E I O D A S D O U TA S V I R G E N S - A N Á L I S E PA S T O R A L D E U M T E X T O P R E A M B U L A R D E M O N TA I G N E
79
que ressignifica a Biblioteca e suas traves em dispositivo rustique, embora tenha um
funcionamento interno irônico e multifacetado, permanece de fato sincrônica a uma
das instâncias maiores do regime pastoral: esse lugar do retiro e da solidão é não só um
lugar do cultivo da amizade, da amizade perdida que permanece no culto da memória
(pública e privada) e do luto (pelo amigo e pelos ancestrais), como também o lugar do
prazer e, mais profundamente ainda, o do gozo71.
Por sua vez, esse dispositivo ascético, que se esvazia em ironia sexual implícita,
precisa também ser lido em paralelo ao dispositivo político que lhe é inerente: a decisão
de um funcionário de Estado de entregar seu cargo também é irônica na medida em
que esta ação apenas o liberta de compromissos imediatos com a ordem hierárquica
a qual ele estaria preso, se continuasse empregado no Parlamento. A frase “Servitii
aulici et munerum publicorum jamdudum pertaesus” precisa, portanto, ser entendida
em seu sentido literal. Cansado da escravidão da corte e dos cargos públicos – e não
do trabalho, dos compromissos aristocráticos que sua posição exige e da ação política
ordinária72. Ele pode, perfeitamente, agora que não representa mais o Estado, tornarse capaz de ações políticas concretas sem necessariamente revogar sua condição de
71 Resistirei à tentação de colocar no rol desta análise o funcionamento dos vários modelos monásticos cristãos, desde as
primitivas regras cenobíticas de Antônio e de Pacômio até às ordens criadas no século XVI – modelos que exprimem, em
teoria, microcosmos ideais, ainda que permeados de problemas práticos de todas as cores e tamanhos. Mas é evidente que
as correlações são totalmente possíveis, sobretudo na insistência – estabelecida pelos reguladores desses contextos ascéticoanacoréticos – da problemática sexual como um dos pilares de sua organização teórica e prática. Uma leitura montaignista
mais tradicional (p. ex., Friedrich, Montaigne, p. 21 e ss; Legros, Essai sur poutres, p. 239 e ss.), claro, valorizará a cena quase
religiosa do “espaço votivo” ao falar da inscrição de 1571 – concepção que se liga, em última análise, à visão da Biblioteca do
château como um tipo de monastério laico. Mas gostaria de acrescentar que, quando observo o cosmo citacional das traves
conjuntamente com a inscrição de 1571, fica-me também a impressão irresistível e característica do pin-up – sobretudo se
considerarmos as inscrições nesse contexto do gozo, ainda que intelectual. Logo, outra leitura possível é, para dizer o mínimo,
a de inversão irônica dessa perspectiva monástica em uma dinâmica sexualizada – cujo rastro nos levaria, com um pouquinho
mais de esforço, às margens totalmente laicas do... bordel. Ver Mark Gabor, Pin-up, a Modest History, Taschen, 1996²; Maria
Elena Buszek, Pin-up grrrls: feminism, sexuality, popular culture, Duke University Press, 2006.
72 No trecho, Costhek Abílio parece ter se baseado exclusivamente na tradução francesa feita por Villey e não no texto
latino da inscrição, pois literalmente “aulici”, em latim, significa apenas “corte”, no sentido de “corte do rei” – e não “corte
do Parlamento”, como traduz Villey: aulĭcus, a, um, adj., of or belonging to a prince’s court, princely: apparatus, Suet. Dom. 4;
luctatores, id. Ner. 45.—Hence subst.: aulĭci, ōrum, m., courtiers, Nep. Dat. 5, 2; Suet. Calig. 9 (cf. Lewis-Short). Neste caso, ela
só teria razão em manter o acréscimo se entendermos “corte” como “corte de justiça” – quer dizer, neste caso, o Parlement
de Bordeaux (no Ancien Régime, os parlements são instituições judiciárias e não legislativas), local de trabalho do Sire de
Montaigne. No entanto, criaríamos aí uma ironia ainda mais profunda, pois uma coisa é a “corte” (i.e., a corte do Rei) e outra
coisa é o “Parlement” (instituição mantida pelo Rei, mas que, em diversos momentos, por articulações de cunho políticonobiliárquico e pelas idiossincrasias da casuística judiciária, podia paradoxalmente fazer oposição ao poder real). Embora seu
papel de oposição ao poder real só seja plenamente sentido no século XVIII, os Parlements provincianos, assim como outras
instituições administrativas regionais (cours des aides, chambres de comptes etc.), são uma força de equilíbrio na dinâmica
de poder do Absolutismo francês: “Si nous tenons compte de leurs origines qui nous sont bien connues, de leurs pouvoirs
exactement délimités, calqués sur ceux des organes similaires qui existaient dans l’entourage du roi, il est clair qu’elles [as cortes
provincianas] ne possédaient aucun caractère représentatif, et qu’elles ne pouvaient exercer aucune action politique. Elles
n’auraient jamais inquiété le gouvernement central, si leur activité ne s’était pas parfois manifestée en faveur des autonomies
provinciales : elles répondaient en effet à ce désir, généralement répandu, d’une administration renfermée dans un cadre
régional étroit, et exercée par de magistrats originaires du pays [quer dizer, da região]” (Roger Doucet, Les institutions de la
France au XVIe siècle, Tome I, Picard, 1948, p. 211)
80
A N A M O R F O S E - R E V I S TA D E E S T U D O S M O D E R N O S • V O L I • N º I • 2 0 1 3 • R i d E M
neutralidade – o que lhe será útil quando exercer o futuro papel de mediador entre
Henrique de Navarra e Paris73. Neste aspecto, ainda uma vez, a inscrição de 1571 pode
ser lida a partir do contexto bucólico clássico, pois a neutralidade do enquadramento
político, embora não seja nominalmente declarada nos subtextos, é também uma
das facetas explícitas do regime pastoral e, especialmente, da sua dinâmica utópica –
ainda que a faceta implícita (que é a crítica subliminar ao poder constituído, dimensão
valorizada pelos críticos atuais da pastoral) diga justamente o contrário. Tanto a IV
Écloga de Virgílio quanto as éclogas I e III, de Calpúrnio Sículo, localizam a Época de
Ouro após o advento de uma figura política real: Polião (neto de Otaviano) e Nero,
respectivamente – segundo uma leitura mais tradicional. Pois a estabilidade edênica
da pastoral depende de ações políticas diretas e concretas, de manutenção da ordem
e de apaziguamento militar e/ou diplomático do cenário externo e interno74. Restaria
saber que ordem existe na França (a agitadíssima França dos Guise e da Liga) em
157175. Ou se o texto aponta, nas crises preliminares que culminarão na Noite de São
Bartolomeu (23-24 de agosto de 1572), seja para uma ordem política e social que precisa
se reestabelecer de imediato para que a França não mergulhe no caos da guerra civil
(onde a inscrição alcançaria seu sentido edênico pleno76); seja para uma nova ordem
do indivíduo em relação às tensões crescentes e inevitáveis das Guerras de Religião (no
que a inscrição, escrita em 1571, representaria, de certa forma, uma profecia77). Neste
sentido, enquanto registro pastoral (funcionando numa dinâmica de forte crise de
identidade social, política e religiosa da França na segunda metade do século XVI, mas
também a da crise do indivíduo que remodela sua própria existência – no que não se
poderia desprezar, no caso de Montaigne, também uma dinâmica intelectual própria
ao ceticismo renascentista), a inscrição seria também um phármakon78.
73 “Até então [1586], esse católico confesso pôde atravessar sem maiores obstáculos as tempestades da guerra, considerado
pelos seus [católicos] como um fiel aliado do poder, pelos reformados como um tolerante exemplar, respeitoso em relação
a suas crenças, cujo irmão, irmã e muitos amigos haviam abraçado a Reforma. Seus textos sobre a guerra, que permeiam o
primeiro tomo dos Ensaios, mostram duas faces do mesmo homem: facilmente envolvido ( junto aos católicos) nas operações
longe de sua propriedade, do Poitou à Île-de-France, mas pacífico quando a batalha chega perto de seus horizontes familiares,
de sua casa e dos seus” (Jean Lacouture, Montaigne a cavalo, p. 249).
74 “É ele [o recém-entronizado imperador da época, i.e., Nero] que concede paz às minhas montanhas; é graças a ele que,
se me apraz cantar ou pisar, em ritmo ternário, a relva flexível, ninguém mo impede. Não só posso cantar dançando, como
também gravar os meus cantos na casca verde de uma árvore, sem que as estridentes trombetas de guerra abafem a minha
siringe” (Calpúrnio Sículo, Bucólicas, IV, vv. 128-136).
75 Sobre o contexto político envolvendo a Liga Católica, ver Jean-Marie Constant, La Ligue, Fayard, 1996. E também Pierre
Miquel, Les Guerres de Religion, Fayard, 1980.
76 “Guerras civis” e “reestabelecimento da ordem” são tópicas subliminares das Bucólicas clássicas, como vimos acima.
77 O anúncio de uma nova Civitas Dei, mas de caráter particular e privado – como convém, aliás, numa visão grosseira, aos
politicamente céticos.
78 Para alguns críticos (por exemplo, Susan Snyder, Pastoral Process: Spenser, Marvell, Milton, Stanford University Press, 1998), e
resumindo aqui seus argumentos de maneira simplista, a pastoral tem por pano de fundo a alienação. Snyder pensa a nostalgia
como o conceito chave da pastoral – sendo isso o que define, na prática, o que ela entende por alienação: “Nostalgics suffered
from anxiety, depression, disruption of eating and sleeping. They were likely to court death through active or passive means. In
a variety of ways they withdrew from present life, obsessed instead with private fantasies of the lost home” (Pastoral Process, p.
17). O sentido de nostalgia usado por ela, por sua vez, vem do médico suíço Johannes Hofer (Dissertatio medica de nostalgia,
N O S E I O D A S D O U TA S V I R G E N S - A N Á L I S E PA S T O R A L D E U M T E X T O P R E A M B U L A R D E M O N TA I G N E
81
Não discutirei aqui no detalhe o contexto profético-milenarista e o contexto
utópico, mas precisamos levar em conta que este último pode ser lido de maneira
implícita no texto da inscrição e podemos explorá-lo de maneira especulativa de modo
mais incisivo. Como vimos mais acima, na IV Écloga de Virgílio, o termo Virgo da
expressão “Iam redit et Virgo, redeunt Saturnia regna [Já também retorna a virgem,
voltam os reinos de Saturno]” implica numa assunção do reino de Saturno, quer
dizer, o retorno a uma era de pujança e de plena potência. Os escoliastas virgilianos
interpretaram a expressão literalmente, como sendo uma referência à constelação da
Virgem, mas, como se entende hoje, ela poderia ser também Astréia (a versão romana da
Δίκη, deusa grega da Justiça)79. Entendida como deusa ou constelação, temos a palavra
latina virgo como marca contextual, elemento de anunciação dos novos tempos – no
que efetivamente é o caso do contexto evangélico (no sentido propriamente grego, o de
“boa nova”, do termo) da inscrição de 1571. Por esse motivo, o virginum (da inscrição) é
tão evidentemente implicado na síntese de um momento edênico para Montaigne que
sua associação imediata ao virgo (signo da Época de Ouro) da IV Écloga torna a relação
etimológica entre esses dois termos uma obviedade quase absoluta.
Entretanto, tal como na perspectiva do bucolismo clássico, os novos bons tempos,
a nova era de Saturno, implicam sempre numa melancolia de fundo: a que reconhece
sua própria finitude como inexorável80. A pujança e o bem-estar, signos maiores da
Arcádia, se posicionados no âmbito dessa perspectiva cíclica ou circular do tempo
cósmico, terão certamente um fim – o que permite reconhecer sua abordagem temporal
na linhagem também clássica do tema do Eterno Retorno81. Na inscrição de 1571, o reino
oder Heimwehe, Basel, 1688, translated by Carolyn Kiser Anspach in The Bulletin of the Institute of the History of Medicine Vol.
2-6, 1934, pp. 379-91) sendo a caracterização clínica do Heimweh (ou mais particularmente do Schweizerheimweh, quer dizer,
a “saudade” de casa dos mercenários suíços de Luís XIV) o expediente, em Hofer, do que seriam essas “fantasies of the lost
home”. Além disso, Snyder divide a nostalgia/alienação pastoral em dois vetores – uma pastoral “árcade” (nostalgia centrada
na dimensão espacial) de uma pastoral “edênica” (nostalgia centrada na dimensão temporal). Logo, utilizando-se as categorias
de Snyder, poderíamos afirmar que, na inscrição de 1571, desilusões de todas as ordens (políticas, religiosas, filosóficas) nos
fazem localizar no texto o princípio nostálgico de “evasão do real” – um dispositivo inerente à esfera bucólica tradicional.
Sendo esse “real” aqui entendido na discussão essencialmente rustique do menosprecio da corte, quer dizer, se reportando
indissoluvelmente à ontologia do mundo cortesão, teríamos na inscrição de 1571 tanto o aspecto mais particularmente
temporal (quer dizer, o in illo tempore da Idade do Ouro: “doutas virgens”, “refúgio ancestral”) quanto o aspecto espacial
(“corte” ou “corte do Parlamento”). Logo, a inscrição poderá ser lida, na nomenclatura de Snyder, como um exemplo de
pastoral plena, ao mesmo tempo árcade e edênica. Este tipo de leitura, por sua vez, permite pensar uma resultante terapêutica
à pastoral – uma vez que tal evasão do real equivaleria a uma catarse. Os dispositivos rustiques têm, certamente, esse efeito – e
a inscrição de 1571 acompanha, de certo modo, essa conformação catártica geral.
79 João Pedro Mendes, Construção e Arte das Bucólicas de Virgílio, p. 224, n. 7; Jérôme Carcopino, Virgile et le mystère de la
IVe Éclogue. Paris, L’Artisan du Livre, 1943².
80 Não podemos esquecer aqui a associação de Saturno com a melancolia – ainda que esta relação direta não seja encontrada
nos textos fundadores da etiologia atrabilar, mas uma formulação muito posterior, já árabe-medieval – porque as teorias
renascentistas do gênio, que Montaigne segue de perto, reconhecem-na como uma de suas coordenadas mais elementares.
Para a melancolia e Saturno, ver Rudolf & Margot Wittkower, Les enfants de Saturne, Macula, 1991; Erwin Panofsky, Fritz Saxl
& Raymond Klibansky, Saturne et la mélancolie, (1923-69²), Gallimard, 1989; para a melancolia e o gênio, ver Noel L. Brann,
The Debate over the Origin of Genius during the Italian Renaissance, Brill, 2002; e também Michael Screech, Montaigne et la
mélancolie (1984), PUF, 1992.
81 Mircea Eliade, Le mythe de l’éternel retour (1969), Gallimard, 1991.
82
A N A M O R F O S E - R E V I S TA D E E S T U D O S M O D E R N O S • V O L I • N º I • 2 0 1 3 • R i d E M
das doutas virgens/musas, no contexto da Biblioteca (o latebras/latebrosus locus),
existirá, portanto, somente até a morte daquele que ordenou seu registro na parede do
quarto contíguo (e, posteriormente, porá inscrições na própria Biblioteca, nas traves
que flutuam acima dela): graffiti e garatujas que projetam sua sombra melancólica a
partir dos “dos tempos que [a Michel de Montaigne] restam para viver”. A inscrição
de 1571 é, portanto, como lembrei mais acima, também uma mensagem apocalíptica,
uma prece para o fim dos tempos. Apesar do contexto edênico do momento presente
(doctarum virginum recessit sinus, ubi quietus et omnium securus (quan)tillum...), das
forças revigoradas que apontam para uma nova era, ela é subitamente transfigurada
em um memento mori ou uma vanité a partir da imagem diferida da morte e do fim (...
in tandem superabit decursi multa jam plus parte spatii)82. O que, mais uma vez, ajuda
a inflar o domínio semântico da inscrição até atingir as descrições pré-modernas da
melancolia (que tem na vanitas, pictorialmente, um elemento chave)83.
Por outro lado, se a inscrição de 1571 pressupõe, nessa dedução melancólica
indireta, a finitude e a morte, no sentido inverso, ao pé da letra, ela se refere à vida, embora
unicamente à vida daquele que mandou gravá-la na parede. E, de fato, o locus amoenus
do responsável pela inscrição foi preparado e pensado exclusivamente para si mesmo:
representa o fim de um ciclo (ancestral, amical, profissional), do qual seu autor se toma
por herdeiro direto e privilegiado; e também o início de um novo, embora este que se
82 Uma vanité é uma derivação do gênero pictórico natureza-morta, com forte acento alegórico em torno da noção de
finitude da vida: é a estetização pictural do memento mori. O termo (de uso corrente no mercado das artes francês por volta
de 1652) foi transportado da Pintura para as Letras já no século XVII. “Le critère d’une vanité en littérature, le premier et le plus
évident, repose sur cette articulation textuelle entre une matière austère et pessimiste traditionnellement identifiée autour
du memento mori et de la vanité de toutes choses face au temps qui passe (savoir, gloire, richesses, beauté) et la volonté de
donner à voir une représentation artistique au sens large en termes de beauté et d’effets” (Thierry Brunel, “«Vanités textuelles»,
«Vanités littéraires», validité du concept et critères de reconnaissance dans la littératures du XVIIe siècle?” in Études Épistémè,
22, 2012). A vanité literária será, claro, uma especialidade do Barroco. A expressão vanitas/vanité, por sua vez, vem do texto
hebraico do Qoheleth (Eclesiastes), quer dizer, o “pregador das assembleias”, que a tradição cristã latina assimilou através
da Vulgata: “(…) vanitas vanitatum omnia vanitas [vaidade de vaidades, é tudo vaidade]” (Ecl., 1:2). Sabe-se que onze, das
dezesseis sentenças veterotestamentárias das traves, são citações do Eclesiastes: “En tout, entre les sentences et les Essais,
Montaigne cumule une cinquantaine d’emprunts bibliques distincts, dont quatorze, proportion considérable – entre le quart
et le tiers –, en provenance de L’Ecclésiaste. Aucun autre livre de la Bible n’a de loin la même importance pour l’auteur des
Essais” (Jean-Charles Darmon, Littérature et vanité, PUF, 2011, pp. 10-11). Ver Alain Tapié (ed.), Les Vanités dans la peinture au
XVIIe siècle [catalogue de l’exposition du Musée des Beaux-Arts de Caen], Albin Michel, 1990; M. Moutahar, Les Vanités, Ed.
Traversière, 1994; Karine Lanini, Dire la vanité à l’âge classique. Paradoxes d’un discours, Honoré Champion, 2006. Para o gênero
natureza-morta, ver Norbert Schneider, Naturezas Mortas (or. alemão Stillleben, 1999), Taschen, 1999; Claus Grimm, Natures
mortes (2 Vols.), Herscher, 1996.
83 “Le système de représentation du XVIe et du XVIIe siècle établit une étroite parenté entre la mélancolie, la mort et la
conscience de la vanité. La bile noire, qui présente les deux qualités contraires à la vie (froideur et sécheresse), est l’humeur de
la mort. (...) La mélancolie est aussi associée au passage du temps et au sentiment de la vanité. Saturne est Chronos, le Temps
qui ‘dévore ses œuvres’ et qui met en évidence la fugacité de toute chose. (...) L’iconographie met en évidence la parenté
étroite de la mélancolie et du savoir de la vanité. La Melancholia I de Dürer représente en arrière-plan un sablier, symbole
du passage du temps qui obsède le mélancolique et, de manière générale, la mélancolie est souvent associée à des objets
exprimant l’inanité des choses matérielles (des sabliers, des souches d’arbres, des colonnes brisées ou de crânes)” (Christine
Orobitg, Garcilaso et la mélancolie, Presses Universitaires du Mirail, 1997, pp. 159-160). Para a articulação pictural da vanitas
com a Melancolia, ver Jean Clair, Mélancolie. Génie et folie en Occident, Gallimard, 2005.
N O S E I O D A S D O U TA S V I R G E N S - A N Á L I S E PA S T O R A L D E U M T E X T O P R E A M B U L A R D E M O N TA I G N E
83
abre seja totalmente autorreferente. Não há sombra de parentes, consortes, qualquer
sinal de que tudo aquilo que está descrito e pressuposto na inscrição (o atestado desse
novo ciclo) possa estar sendo oferecido também para sua esposa, sua linhagem, seus
filhos, netos, bisnetos ou amigos. Operação sumamente diferente da que preparou
seu bisavô, legando aos Eyquem-Montaigne (o próprio Michel o reconhece usando
a expressão avitasque) o latebras que é agora sua propriedade exclusiva84. E muito
diferente do gesto de Etienne de La Boétie, ao doar em testamento os livros que Michel
instalou no aposento contíguo e serão, doravante, seus companheiros durante os vinte
anos de composição dos Ensaios85. A inscrição de 1571 é, portanto, para usar a expressão
do topos pictural que surgirá algumas décadas depois86, o Et in Arcadia ego de Michel
de Montaigne: o início de um projeto intelectual individual (e individualista) de toda
uma vida sob o signo paradoxalmente melancólico, vaidoso, tumular e exequial (em
outras palavras, pastoral, na roupagem moderna de Sannazaro) do seu próprio fim.
Vemos, pois, que uma dinâmica pastoral pode se estabelecer a partir de um amplo
espectro de questões heterogêneas (e não apenas da retomada do tema campestre em
si). O exemplo da inscrição de 1571 mostra como essa dinâmica, funcionando já no
contexto da vie rustique, poderia ter afetado um intelectual nobre vivendo o fim do
“beau XVIe siècle”. Por extensão, e ao menos a título de exercício, a lógica paysan tornaria
possível uma abordagem também pastoral de diversos capítulos dos Ensaios – o que,
no final das contas, permitiria uma releitura do seu contexto geral, ressignificando
alguns extratos, ampliando ou redimensionando seu campo teórico e, sobretudo, seu
significado literário.
84 Como se sabe, o bisavô de Michel, Ramon Eyquem, comprou a propriedade de Montaigne (castelo e título nobiliárquico)
em 1477. Tratava-se, então, de uma senhoria pertencente a outro comerciante da região, Guillaume Duboys, que por sua
vez havia adquirido as terras da nobreza arruinada pela Guerra dos Cem Anos. Ligadas a um título nobiliárquico, as terras de
Montaigne são um investimento em longo prazo, oferecido à sua descendência – sobretudo porque Ramon, que contava já
com 75 anos, não deveria mesmo imaginar que sobreviveria tempo suficiente para tornar-se um aristocrata. De fato, morreu
cerca de um ano depois, em 1478.
85 Legros, Essai sur poutres, p. 248.
86 Por conta dos quadros de Guercino (1622) e sobretudo de Poussin (1638). Ver Erwin Panofsky, “Et in Arcadia Ego”, p. 387
e ss.
84
A N A M O R F O S E - R E V I S TA D E E S T U D O S M O D E R N O S • V O L I • N º I • 2 0 1 3 • R i d E M
Resumo
Pouco estudada entre nós, a inscrição de 1571
– o texto escrito por Montaigne para decretar
sua aposentadoria parlamentar e ao mesmo
tempo dar início à sua carreira intelectual –
permanece como um signo estruturante não
apenas da sua biografia como também da escritura dos Ensaios. Neste artigo, faço algumas considerações que permitem entendê-la
numa dinâmica ampla, deitando raízes na
literatura bucólico-pastoral clássica e apontando para formas de leitura centrífugas, de
modo a recontextualizá-la num dispositivo
narrativo multifacetado.
Sobre o autor
Rafael Marcelo Viegas é pós-doutorando na área de Letras na Universidade Federal
do Rio de Janeiro
N O S E I O D A S D O U TA S V I R G E N S - A N Á L I S E PA S T O R A L D E U M T E X T O P R E A M B U L A R D E M O N TA I G N E
85
Anamorfose - Revista de Estudos Modernos, 1 (2013), pp. 86-98
Negociações semânticas acerca da fisiologia da
melancolia na Universa medicina, de Jean Fernel
(1497?-1558)
André Rangel Rios
Nos anos 1960, era frequente o uso do termo incomensurabilidade1. Em 1966,
Michel Foucault comentou a palavra “vida” na epistème da, segundo sua nomenclatura, Era Clássica como sendo incomensurável com seu uso na Era Moderna, ou seja,
em cerca de uma década, a palavra teria mudado de significado2. À parte os exageros
próprios à retórica filosófica daquela época, de fato, a questão da incomensurabilidade de conceitos científicos é um tema que segue demandando atenção; sobretudo se
estivermos lidando, o que é o nosso caso, com palavras e conceitos de quatro ou cinco
séculos atrás. Na verdade, a própria classificação e composição dos saberes, no pré-moderno, não se sobrepõe facilmente ao significado que lhes damos hoje. Por exemplo,
o que se entendia por “história” no século XVI, embora os livros de história de então
possam servir de material de análise ou de informação para que se escreva história
hoje, diferiam em sua função e modo de escrita do que se pratica atualmente como história. Da mesma forma, a medicina – ainda que, por exemplo, no século XVI o estudo
da anatomia tenha descrito estruturas no corpo humano que seguem sendo ensinadas
até hoje (por vezes sob o nome de anatomistas daquela época) – era uma atividade com
funções sociais e, portanto, com mecanismos de validação de seu saber, bem como de
atribuição de prestígio a seus praticantes, extremamente diversos do que temos hoje.
No entanto, dizer que Fernel era um médico não causa dúvida ou desconforto; do mesmo modo, entende-se que seu livro Universa medicina, de 15533 (mas, em parte, uma
reunião de textos anteriores retrabalhados), seja um livro de medicina, ainda que o
que nele é apresentado como medicina, incluindo a própria descrição do corpo humano e sua relação com seu meio ambiente, ou até mesmo com o cosmo (a astrologia,
por exemplo, era um saber relacionado à prática médica), assim como a maioria dos
procedimentos terapêuticos, pouco têm a ver com que entendemos atualmente como
medicina.
No entanto, não é necessário ser historiador para se ter claro que as doenças
descritas não necessariamente correspondem a seus homônimos atuais, ainda que,
muitas vezes, possam ser correlacionadas com o que vemos na prática médica de hoje.
1 O termo “incommensurability” foi usado incialmente por Kuhn e Feyerabend.
2 Foucault, sem mencionar o termo “incomensurabilidade”, mostra os sentidos extremamente diversos entre as duas epistèmes
– assim como seu virtuosismo argumentativo – no capítulo “Cuvier” (ver: Michel Foucault, As palavras e as coisas, São Paulo,
Martins Fontes, 2007, pp. 362-386 – publicado originalmente em 1966).
3 Uso a edição: Jean Fernel, Universa medicina, Paris, j. Stoer, 1578; acessada por meio da Bibliothèque interuniversitaire de
medicine: http://www.bium.uni-paris5.fr/hsitmed/medica/cote?00391a. Citarei apenas passagens da Physiologia, indicando o
livro e o capítulo.
86
A N A M O R F O S E - R E V I S TA D E E S T U D O S M O D E R N O S • V O L I • N º I • 2 0 1 3 • R i d E M
Uma discussão usual é até que ponto a lues venerea do século XVI se refere à sífilis ou a
um conjunto de doenças venéreas reunindo, entre elas, principalmente a sífilis e a gonorreia. Por sua vez, a apresentação da haemorrhois, ao que tudo indica, corresponde,
aos olhos dos médicos de hoje, a hemorróidas. Incomensurabilidade, comensurabilidade e sobreposições parciais estão presentes a cada página de Universa medicina, de
modo que lê-la nos põe em um constante e complexo processo de negociação semântica4.
Assim, o termo melancolia, quanto a sua fisiologia, difere frente ao que se entende hoje por depressão; no entanto, do ponto de vista clínico o termo depressão –
apesar de ser um conceito em mudança acelerada nas últimas décadas – ainda pode ser
parcialmente relacionado a alguns sintomas do SMD-5. O que se passa é que, de fato,
quando se lê um livro de “medicina” do século XVI, o que, logo de início, se busca fazer
é um balanço do, por assim dizer, grau de incomensurabilidade que deve ser atribuído
aos termos de outrora. Esse modo de proceder buscando “traduzir” ou mesmo medir
o passado em vista ao presente talvez seja inevitável, e, por vezes, o melhor parece ser
apresentar logo a comparação e seu resultado, de modo a que se possa prosseguir com
a discussão mais aprofundadamente. Na verdade, o problema dessa comparação é que
ela, em geral, é parcial demais, não passando de uma negociação semântica preliminar
que, após um limitado ganho em compreensão, é posta de lado. Ao contrario, é necessário explorá-la mais amplamente.
Atualmente a aceitabilidade da medicina se deve em muito a ela ser compreendida como eficaz. A ela é atribuída uma eficácia múltipla. Não se trata somente do que
o paciente considere como benéfico para ele, mas, primordialmente, de uma eficácia
contábil: a medicina é economicamente viável, tanto em termos individuais quanto
4 Não é o objetivo deste texto expor o que entendo por “negociações semânticas”. Sendo breve, posso remeter aos “jogos
de linguagem” de Wittgenstein. No entanto, minha escolha do termo “negociação” visa incluir a perspectiva de que, tal como
num mercado com oferta e procura, chega-se a um preço, que pode, logo a seguir, mudar, ou seja, a negociação não é só
um jogo, mas um ato performático (com efeitos múltiplos) que estabelece um preço (ainda que instável), de modo a efetuar
um ato, que pode ser jurídico, de transferência de propriedade. De fato, as negociações semânticas levam em consideração
não somente o sentido das palavras, mas a forma como elas se articulam e as figuras de retórica das quais elas participam,
no caso, cabe explicitar que, ao usar essa expressão, estou me referindo também a toda a discussão das últimas décadas
sobre a importância das metáforas na filosofia (elevando, portanto, esse debate em conta na leitura de um texto “médico”
que é eivado por termos e metáforas filosóficas). A discussão sobre o uso de metáforas em filosofia ganhou posição de
cada vez mais destaque a partir da publicação de “Licht als Metapher der Wahrheit”, de Hans Blumenberg, em 1959 (sobre a
importância de H. Blumenberg, ver: Anselm Haverkamp & Dirk Mende, Metaphorologie. Zur Praxis und Theorie, Frankfurt a.
M., Suhrkamp, 2009). Relevantes para mim são ainda as publicações: Ralf Konersmann (Org.), Wörterbuch der philosophischen
Metaphern, Darmstadt, WBG, 2011; Bernard H. F. Taureck, Metaphern und Gleichnisse in der Philosophie: Versuch einer kritischen
Ikonologie der Philosophie, Frankfurt a. M., Suhrkamp, 2004; Lutz-Henning Pietsch, Topik der Kritik. Die Auseinandersetzung
um die Kantische Philosophie (1781–1788) und ihre Metaphern, Berlin, de Gruyter, 2010. Além disso, posso recomendar o
Historisches Wörterbuch der Philosophie, que, embora seu primeiro editor, Joachim Ritter, tivesse como proposta evitar incluir
nele metáforas, passou a apresentá-las quando assumido pelos editores subsequentes (sobre essa questão, ver: Haverkamp
& Mende, p. 9 e sgs.). Neste meu breve texto, porém, referindo-me somente a termos “médicos”, eu esteja talvez – apesar do
debate de fundo que busco atualmente desenvolver sobre a questão da metáfora – apenas fazendo uso, de um modo menos
sofisticado e mais discreto, do que Koselleck apresenta em seu trabalho (por exemplo, ver: Reinhart Koselleck, Begriffsgeschichten, Frankfurt a. M., Suhrkamp, 2006, mais especificamente ver : “Sozialgeschichte und Begriffsgeschichte”, pp. 9-31).
Negociações semânticas acerca da fisiologia da mel ancolia na Universa medicina
87
populacionais. A medicina se insere em um complexo sistema de bem-estar social (sistema que, dependendo do país, é mais ou menos eficiente): o saber médico não cura
apenas sinusite, mas participa da prevenção, da promoção de saúde, da admissão de
trabalhadores, da segurança laboral, da vigilância sanitária, da concessão de licenças
médicas e de aposentadorias, assim como do financiamento dessas atividades, ou seja,
da arrecadação para o pagamento dos benefícios, da compra de medicamentos, do suporte à pesquisa e assim por diante. Os gastos com a saúde atingem cerca de 16% do
PIB norte americano e 12% do francês. Trata-se, portanto, de uma atividade cuja eficácia se relaciona à sua viabilidade econômica, o que leva a que, por um lado, se recorra
a procedimentos testados e controlados, enfim, a que os recursos sejam bem geridos,
e, por outro, a que sempre se busque, ainda que isso aconteça por meios eticamente
questionáveis, o aumento do lucro, seja a nível da consulta médica seja na produção
industrial de medicamentos. Foi já em vista a esse contexto de eficácia econômica que
mencionei acima, a título de exemplo, o DSM-5, ou seja, um sistema de classificação de
transtornos psiquiátricos que é um dispositivo em um maquinário sócio-assistencial
que vai desde o atendimento e acompanhamento de um paciente por um profissional
médico, passando pela indústria farmacêutica e pela assistência hospitalar, podendo
resultar em licenças e aposentadorias. O diagnóstico tem de funcionar em consonância
com o financiamento à assistência. No entanto, tratando-se de um sistema complexo, o
que seja sua eficácia e sua viabilidade econômica (o quanto, por exemplo, deve ser ônus
individual ou governamental) são questões sempre em debate: por vezes, questões
científicas pesarão mais nas conclusões, por vezes, o resultado pode ser um conjunto
de decisões assumidamente políticas. De toda a forma, os valores orçamentários em
torno dos quais o debate é travado dependem de uma medicina normatizada inserida
em um sistema econômico com legislação trabalhista e proteção social. Digamos que,
se, no século XVI, a astronomia – dependendo da formação do médico – poderia ser
importante na decisão terapêutica, na França de hoje é a securité sociale a moldura
mais abrangente. Enfim, a credibilidade da medicina se deve hoje a essa inserção em
instituições vitais para o funcionamento e reprodução sociais. Decidimos ir a um médico porque sabemos que nossa dor de ouvido poderá ser curada, mas, ainda que não
tenhamos mais esperança que nossa dor crônica possa ser sequer aliviada, também
vamos ao serviço médico para obtermos licença no trabalho ou aposentadoria, que será
concedida porque o governo ou a seguradora têm – ou deveriam ter – seus meios de
controle sobre os critérios para concessão de benefícios.
Minha questão mais ampla é a de quais inter-relações o saber médico contido
em um livro como Universa medicina, de Jean Fernel, usufruía que o levavam a ter
uma posição de credibilidade. Em outras palavras, como a medicina referida a textos
eruditos, escritos em latim, levava a que médicos formados com base em sua leitura –
ou, como é o caso de Fernel, vindo a redigir e rever esses mesmos textos – alcançavam
prestígio social e, até mesmo, o que parece também ter ocorrido com Fernel, a auferir
88
A N A M O R F O S E - R E V I S TA D E E S T U D O S M O D E R N O S • V O L I • N º I • 2 0 1 3 • R i d E M
honorários significativos? Talvez forçando um pouco o significado das palavras, poderia perguntar: qual a “eficácia” da medicina erudita no XVI? Qual a sua articulação com
os demais saberes que a levava a ter credibilidade, apesar da concorrência com diversos
outros saberes também tidos como terapêuticos? Ainda que, desde já, possa indicar
que, havendo grande difusão de práticas curativas na sociedade do século XVI, ou seja,
vários indivíduos confiavam e praticavam procedimentos que faziam parte da cultura
da época (sendo, muitas vezes, disseminados por todas as classes sociais) ou que eram
oferecidos por “charlatães”, os médicos de formação erudita, como que num processo
de negociação com sua clientela, também recorriam, por vezes, a essas mesmas práticas. Enfim, trata-se de um processo de legitimação com múltiplas estratégias, que, devido à requerida brevidade, não poderei expor aqui. Me limitarei a comentar, em linhas
gerais, o entendimento do corpo, seu funcionamento e, especificamente, da fisiologia
da bile negra na primeira parte da Universa medicina: na Physiologia. Somente quando, em um outro texto mais extenso, eu vier a abordar todos os aspectos da melancolia
na Universa medicina será possível discutir em mais detalhe por que a melancolia, tal
como descrita por Fernel, era aceita na época e por que um livro como Universa medicina veio a adquirir grande prestígio por décadas. A fisiologia de Descartes, apesar
do atomismo e à parte algumas idiossincrasias (como sua compreensão da glândula
pineal)5, se baseia em grande extensão em argumentos e “observações” iguais ou similares às de Fernel; sendo que, se, seguindo Harvey, Descartes argumentou a favor
da circulação do sangue, mantém-se, porém, com a doutrina de Fernel e de outros em
uma obstinada defesa do calor inato (em Fernel: calidum innatum) próprio ao coração,
que, segundo Descartes, vaporizaria o sangue, causando a diástole6.
O livro Universa medicina7 está dividido em duas partes: Physiologia e Pathologia (Fernel é frequentemente citado como tendo sido o primeiro autor a usar, em um
livro relevante, o termo pathologia e como havendo contribuído para divulgar a palavra
physiologia), contendo ainda dois apêndices: um sobre os prognósticos e outro sobre
a terapêutica (que, por sua vez, inclui um tratado sobre a sangria). Além de haver dois
anexos importantes: um tratado sobre a lues venerea e um outro sobre as causas ocultas. Ao longo desse volume de quase 800 páginas, o tema melancolia ocorre em diversas
ocasiões; no entanto, me restringirei a apresentar, em linhas gerais, a fisiologia da bile
negra tal como é discutida na Physiologia. Assim, me restringirei também a comentar,
na Physiologia de Fernel, alguns deslocamentos da semântica de termos médicos do
século XVI. Mostrarei, portanto, na Physiologia, um pouco de como Fernel argumenta
e, consequentemente, incrementa sua credibilidade, que, sem dúvida, se deve a muito
mais: tanto à extensão de sua obra quanto a sua prática clínica e de ensino.
5 René Descartes, As paixões da alma, in: Os Pensadores, São Paulo, Abril Cultural, 1973, p. 238: Art. 31 e 32. Neste texto
não me proponho a comentar Descartes; as alusões a ele, um autor mais conhecido, visam apenas facilitar a leitura (sobre a
medicina em Descartes, ver: Vincent Aucante, La philosophie médicale de Descartes, Paris, PUF, 2006).
6 René Descartes, Discurso do Método, Quinta Parte.
7 Um resumo e breve discussão da vida de Fernel e do seu Universa medicina podem ser encontrados em Charles Sherrington,
The Endeavour of Jean Fernel, London, Dawson of Pall Mall, 1974 (reprinted).
Negociações semânticas acerca da fisiologia da mel ancolia na Universa medicina
89
A Physiologia é constituída por sete livros. O primeiro deles descreve as partes
do corpo humano, ou seja, é um tratado de anatomia; Fernel o publicou originariamente dois anos antes do livro de Vesalius, em 1543, ou seja, apesar de, em sua redação, ter se beneficiado da intensificação dos estudos em anatomia que levaram a De
humani corporis fabrica, o texto de Fernel, porém, é, com apenas 50 páginas, breve e
sem ilustrações; no entanto, o que é mais importante destacar é que Fernel está escrevendo 80 anos antes de Harvey, ou seja, para ele é evidente que o sangue não circula, de
modo que, sendo a circulação do sangue algo que faz parte não só de nossa percepção
do corpo, mas que também usamos a metáfora da circulação disseminadamente para
entendermos as cidades, a economia ou a ecologia, assim como outras eventos corporais (como os hormônios e as metástases), enfim, já que somos familiarizados com
ela, temos de estar atentos para entendermos o que, segundo os médicos do tempo
de Fernel, faz o sangue se difundir pelo corpo e quais são especificamente as funções
das artérias, das veias e do coração. O segundo livro versa sobre os “elementos”: terra,
água, ar e fogo. O terceiro discute os “temperamentos”, ou seja, o equilíbrio, ou desequilíbrio, na combinação dos elementos. O quarto trata dos espíritos e do calor inato:
dois temas que, aliás, estão fortemente presentes na fisiologia de Descartes. O quinto
comenta as “faculdades”, que são as atividades que se originariam da alma enquanto
princípio da vida, ou seja, uma faculdade é uma vis: se Descartes explicou, quase um
século depois, a diástole argumentando que o coração seria uma fornalha vaporizando
o sangue8, pouco antes Harvey manteve-se fiel à explicação de que a sístole se devia a
uma facultas pulsifica9, enfim, é essa facultas ou vis que Molière usou como pilheria em
O doente imaginário. O sexto livro apresenta a fisiologia dos humores: sangue, pituíta,
bile amarela e bile negra; assim como as três concoctiones, que são essenciais para a
compreensão de sua fisiologia. O sétimo livro é dedicado à procriação humana. Desses
sete livros, são o segundo, o terceiro e o sexto os que mais têm a contribuir para uma
exposição preliminar, baseada na Physiologia, sobre a fisiologia da bile negra segundo
Fernel.
No entanto, particularmente importante é o livro sobre os “elementos”, onde
Fernel deixa claro que não está se referindo aos elementos que percebemos pelo tato,
mas aos que são apreendidos especulativamente. O prefácio do livro 2 começa, de fato,
com uma critica às limitações do conhecimento e com elogios a quando pela “dedicação à filosofia” (philosophandi studio) e atentos às “marcas das pegadas dos homens
célebres” (celebrium virorum impressa... vestigia) se vai das partes visíveis para aquelas
“que são aprendidas apenas pelo pensamento” (quae cogitatione sola discuntur). Ou
seja, os “elementos” de Fernel não são a terra, a água, o ar e o fogo que podemos perceber pelos cinco sentidos, mas elementos puros, porque os que percebemos já seriam,
8 Descartes segue Aristóteles na doutrina sobre o calor próprio ao coração, diferindo nisso de Galeno, como, aliás, como
muita propriedade, indica Plemplius, em: Descartes, Oeuvres (AT), vol. 1, p. 497.
9 William Harvey, Opera omnia, medicorum londinensi edita, 1766 (De motu cordis, publicado originalmente em 1628), ver:
Prooemium – acessado pelo Google.
90
A N A M O R F O S E - R E V I S TA D E E S T U D O S M O D E R N O S • V O L I • N º I • 2 0 1 3 • R i d E M
em alguma medida, o resultado de uma combinação, ainda que, em cada um deles,
haja a predominância de algum deles. Os elementos são, portanto, princípios metafísicos, apreendidos especulativamente. No entanto, apesar desses esclarecimentos iniciais, Fernel discutirá os elementos tal como se eles fossem aqueles que percebemos.
De fato, ele, por exemplo, no capítulo 3, reafirma que os elementos “não são corpos”
(corpora non sunt) e que suas formas nós “as separamos a partir da noção de elemento”
(eas ab elementi notione abducimus).
Uma breve recapitulação histórica, nesse momento, pode ser proveitosa. A teoria dos quatro humores começa no corpus hipocrático. A princípio, são mencionados
apenas três humores: o sangue, a pituíta e a bile amarela; a bile negra seria uma degeneração da bile amarela. Somente no Sobre a natureza do homem (De hominis natura)
é que a bile negra é considerada um humor tal como os outros três. E é exatamente o
Sobre a natureza do homem que Galeno veio a considerar como o tratado que exporia
os conceitos essenciais de Hipócrates, baseando nele sua interpretação e hierarquização quanto à autenticidade e validade do conteúdo das demais obras a ele atribuídas.
Foi também apenas durante a época do império romano que os quatro elementos –
ar, terra, água e fogo – passaram a ser associados aos quatro humores, o que permite
compor um quadro das oposições e correlações entre os elementos, os humores e as
estações do ano e as quatro qualidades primárias (quente, seco, úmido e frio), tal como
apresenta Vivian Nutton10:
Verão
Bile
Quente
Primavera
Sangue
Fogo
Ar
Úmido
Seco
Terra
Água
Outono
Bile negra
Frio
Inverno
Fleuma
Resumo esquemático do sistema humoral de Hipócrates em
Sobre a natureza do homem segundo Vivian Nutton
10 Vivian Nutton, Capítulo 1 “Medicine in the Greek World”, in: Lawrence I. Conrad; Michael Neve; Vivian Nutton; Roy Porter,
The Western Medical Tradition 800 BC to AD 1800, Cambridge, Cambridge University Press, 1995, p. 25.
Negociações semânticas acerca da fisiologia da mel ancolia na Universa medicina
91
Nutton indica ainda que, durante a Idade Média, ainda foram acrescentados
os quatro temperamentos e, até mesmo, os quatro evangelistas11. Ou seja, trata-se de
um esquema que se manteve em mudança. No entanto, o que me parece importante destacar é que o quadro acima, ainda que nos seja esclarecedor, permitindo que
apreendamos a estrutura das oposições e similaridades, exclui o que, a meu ver, é particularmente relevante: as negociações semânticas e interpretativas que permitiram a
acomodação dos termos não somente em uma estrutura plausível, mas também permitiram tornarem plausível uma estrutura que lhes conferia lugares contrapostos. O
quadro acima é uma compreensão estrutural básica da semântica dos termos frequentemente usados na medicina por séculos. Trata-se, portanto, de um quaternário semântico efetivo, ainda que sempre questionado. Ele é estável, mas sua estabilidade é,
como veremos ao discutirmos o texto de Fernel, relativamente precária. O que se passa
é que a estrutura quaternária não faz cessar as negociações, ainda que as limite, já que,
desde de seu estabelecimento, os termos passam a depender dela para terem sua significação melhor compreendida. De fato, Fernel inova a compreensão dessa estrutura:
para ele, as faculdades não se originam dos humores, mas, ao reduzir a importância
dos humores, são os espíritos e o calor inato que ganham preponderância; por isso,
sua fisiologia pospõe a exposição dos humores, antecipando-a pela apresentação dos
elementos, funcionando como um preâmbulo para a explicação sobre os espíritos e o
calor vital. No entanto, esse deslocamento na hierarquia fisiológica não faz com que ele
deixe de ser um galenista; afinal, os humores seguem sendo amplamente importantes
em sua fisiologia e, do mesmo modo, em sua patologia, assim como em seus procedimentos terapêuticos.
A estrutura quaternária, envolvendo elementos, qualidades primárias e humores, permanece em Fernel, mas nele, tal como em outros autores, seus termos e contraposições, bem como inter-relações, seguem em um processo de negociação semântica;
processo que tanto a questiona quanto a revalida. Que o raciocínio médico humoral
será posto de lado, nós o sabemos; vários fatores – que também foram, sem dúvida,
negociações interpretativas – contribuirão para isso, entre eles, as discussões sobre o
método em medicina, a anatomia renascentista, o atomismo, a circulação do sangue e
as transformações na química; no entanto, não é esse o nosso tema.
De fato, discutir a fundo a questão da negociação semântica não é a proposta
deste texto. Ainda assim, é necessário esclarecer que ela não se dá apenas no que toca o
trabalho do historiador ou o do pesquisador que busca mudar uma estrutura de compreensão de termos inter-relacionados: a negociação semântica é prática comum na
linguagem, ou seja, apesar do texto de Fernel ser em latim e, portanto, de acesso relativamente limitado, ele busca torná-lo claro o suficiente para que seus colegas médicos
o entendam – e possam explicar em francês para seus pacientes os processos fisiopatológicos –, porque, como se sabe, a cultura médica, na época, não se restringia apenas
aos médicos formados. Em vista disso, indicarei alguns momentos em que negociações
11 Nutton, 1995, p. 25.
92
A N A M O R F O S E - R E V I S TA D E E S T U D O S M O D E R N O S • V O L I • N º I • 2 0 1 3 • R i d E M
semânticas (o que, além do deslocamento do significado das palavras ou da ordem de
exposição do conteúdo, inclui metáforas e símiles, bem como recurso, ou não, à autoridade de “homens célebres”) ocorrem na estruturação argumentativa da Universa medicina. Fernel, nesse capítulo sobre os elementos, está negociando semanticamente ao
manter os termos fundamentais de sua fisiologia (terra, água, ar e fogo) em oscilação
entre o transcendental e o cotidiano: as argumentações e explicações, como veremos,
tanto vão na direção de deslocar quanto de estabilizar o sentido das palavras. Aceitar
participar desse processo de negociação, que persistirá ao longo de todo o livro, assim
como da prática médica, é essencial para sua compreensão. Do mesmo modo que os
quatro elementos oscilam entre transcendência e cotidianidade, os quatro humores
também o farão. Os quatro humores também estariam sujeitos à mesma oscilação, pois
seriam constituídos a partir desses quatro elementos fundamentais; no entanto, essa
discussão não ocorre no Universa medicina: o que é dito é, por exemplo, que a pituíta
é formada a partir de uma porção fria e crua do quilo (chylus) e o humor melancólico a
partir de uma porção fria e terrosa do quilo (chylus), ou seja, os humores são tratados
muitas vezes (embora, como veremos, nem sempre) como se fossem apenas substâncias físicas – ou, no caso, sucos –, cujas qualidades poderiam ser conhecidas empiricamente e que seriam formadas a partir de outras substâncias físicas. Assim, a mesma
oscilação entre transcendental e empírico também estará presente na discussão sobre
os humores, havendo os humores puros e naturais, os putrefeitos e os antinaturais.
Do mesmo modo, o livro 4, sobre os espíritos e o calor inato, é uma longa prática
de negociação entre o sentido transcendental e o empírico de suas palavras-chave. No
entanto, é importante acrescentar, a “negociação” é também um treino de compreensão e argumentação; pode-se dizer que é parte de um exercício de formação identitária
do médico, que, ao habilitar-se no jogo semântico do jargão profissional, saberá se
apresentar e agir como é esperado dele.
Vida, espírito e calor inato se equivalem. O mais comum é que espírito e calor
inato ocorram conjuntamente (por exemplo: innato calido et proprio spirito – lib. 4, c.
7). Além disso, o calor inato muitas vezes coincide com o calor empírico; afinal, quem
está vivo, em geral, é, em alguma medida, quente. No entanto, o calor varia de órgão
para órgão, sem que se o possa relacionar isso com a importância de sua atividade para
a vida humana. É o que vemos se considerarmos o processo de assimilação dos alimentos, que passa por três concocções: 1. a mastigação, deglutição e formação do conteúdo
estomacal (o chymus) que é passado ao duodeno quando se torna o quilo (o chylus); 2.
A transformação no fígado do chylus nos humores (uma fase complexa de transformação, mas que não requer muito calor); 3. a absorção dos humores na alimentação e formação dos órgãos, ossos e músculos; de fato, o calor, a cada concocção, não corresponde ao valor da atividade do órgão, porque, sobretudo, o fígado não é percebido como
particularmente quente, apesar de sua função essencial. De toda a forma, o calor está
presente em todas essas fases. Mas o calor se deve à alma, com a qual os espíritos pare-
Negociações semânticas acerca da fisiologia da mel ancolia na Universa medicina
93
cem se relacionar sem dificuldade, côo que em continuidade, não havendo, portanto,
em Fernel, tal como há em Descartes, qualquer problematização da relação, ou seja, da
transição ou comunicação, entre os espíritos e a alma. De toda a forma, é interessante
que o espírito seja considerado como tendo uma origem fisiologicamente explicável,
além de ser fisiologicamente, no caso, pelas artérias difundido pelo corpo; no entanto,
ao se difundir por todo o corpo ele passa a se assemelhar à alma, que Fernel considera
imortal e criada por Deus. O espírito seria formado a partir do ar inspirado que, juntamente com o sangue, seria fervido no ventrículo esquerdo, quando ocorreria a diástole.
Na sístole, o conteúdo do ventrículo seria atraído para as artérias, o que ocorreria a
um só tempo, ou seja, Fernel não entende que o pulso, a partir da abertura da válvula
aórtica, se propague ao longo das artérias12. Assim, o coração é um órgão realmente
quente, ou seja, onde o calor inato é particularmente intenso e que, além disso, o calor
tátil também: “o coração somente pelo tato é caracteristicamente quentíssimo” (Cor
solo tato definitum est calidissimum – lib. 3, c. 6). Sobre isso, Fernel argumenta com
toda a segurança que “aberto o peito de um animal, e colocando os dedos no ventrículo
esquerdo, sente-se que esse lugar, comparado com todos os outros que há no animal
é o mais quente”13. No entanto, a semente de uma planta, que contém a planta que é
viva, não é quente: o calor inato estaria presente nela, mas não se manifestaria como
calor sensível. O calor inato é, portanto, tanto algo manifesto quanto transcendental,
tanto uma qualidade que se manifesta de um modo sensível nos corpos vivos quanto
um componente transcendental, vivificante do corpo.
Sem dúvida, o espírito, essa substância tênue formada pelo ar aquecido no coração, media o corpo e os humores com a alma, que é a causa primária das faculdades.
E são muitas as faculdades. Há faculdades nutritivas, procriativas e aumentativas (as
que fazem o corpo crescer). Há faculdades atrativas, que, por exemplo, atraem o sangue para as artérias, a bile negra para o baço ou a amarela para a vesícula biliar. Enfim,
são mais do que pode ser exposto aqui. De uma forma geral, Fernel não está inovando
sobre esse tema. O que lhe é característico é valorizar mais a alma, ou seja, valorizar
mais essa instância transcendental que é a alma. No entanto, apesar disso, sua fisiologia segue, como as de outros autores, desenvolvendo, com pequenas modificações,
a negociação dos elementos, dos humores e dos espíritos entre o córporo-sensível e a
instância transcendental.
O que se pode dizer é que uma das contraposições que está em negociação é
a do puro e do impuro, onde o puro, evidentemente, está mais próximo do transcendental e o impuro do sensível (onde, é claro, a própria fronteira entre puro e impuro,
assim como sua permeabilidade, podem estar em questão – e o estão, em especial, em
12 Lib. 4, c. 12: spiritum profert vitalem per arteria toto corpore diffusum atque consertum...
13 Lib.3, c. 6: dissecto animantis pectore, digitisque in sinistrum cordis sinum immissis, sentiatur hic locus omnium quem in
animal sunt calidissimus. À objeção de Plemplius de que o coração não seria quente a ponto de ferver o sangue e de que nos
peixes, que são frios, o coração também pulsa, Descartes responde propondo que haveria, no coração, uma substância semelhante a um fermento: in recessibus cordis nonnihl humoris instar fermenti residere (AT, vol. 1, p. 523).
94
A N A M O R F O S E - R E V I S TA D E E S T U D O S M O D E R N O S • V O L I • N º I • 2 0 1 3 • R i d E M
Descartes). Nos humores essa questão é discutida detidamente. A posição de Fernel é
a de que o fígado produz e expele o humor sangue puro, mas que ele logo se mistura: “o
sangue que sai do fígado e chega às veias maiores não pode ser extremamente uniforme
e puro” (lib. 6, c. 7). No entanto, a discussão, à qual ele acaba por dedicar um capítulo
inteiro, é a de se não haveria nas veias apenas três humores, ou seja, se o conteúdo das
veias não seria mais do que uma mistura dos demais três humores, de modo que essa
mistura, e somente ela, seria o sangue, não havendo necessidade de que, além desses
três humores, ainda houvesse um quarto: o sangue seria, portanto, apenas a mistura
não precisando ser mais um humor. Fernel para defender que os humores são quatro
descreve as propriedades de cada um. O que mais nos interessa é que, na continuação
dessa discussão, no capítulo 9, ele discute a diferença entre a pituíta e as duas biles.
Particularmente relevante é que ele argumenta que há diferentes biles negras.
Segundo Fernel (no lib. 6, c. 9), cada humor se apresenta em três tipos: 1. alimentar, 2. supervacâneo (ou seja, enquanto moderadamente excessivo) e 3. antinatural. No caso da melancolia, 1. há um suco com qualidades brandas que circula no
sangue e serve como alimento, sendo benéfico e vindo a ser chamado de suco melancólico (melancholicum succum), ou mesmo sangue melancólico (melancholicum sanguinem), mas não de bile negra (atra bilis). Além dele, 2. haveria a bile excessiva (supervacanea), que é a que, atraída do fígado que a produz, é retirada do sangue pelo baço e
nele guardada. A princípio, esse humor é natural, não sendo, portanto, maléfico; por
isso também, pode ser chamado de humor negro (ater humor) – e não bile negra (atra
bilis); termo que, nessa passagem, é usado com sentido negativo (sentido negativo
que nem sempre ocorre ao longo do livro). No entanto, esse ater humor pode se tornar
maléfico, na medida em que, pela sua combustão ou pela ação do calor natural, ele se
putrefizer, adquirindo uma qualidade ácida e azeda, enfim, um amargor, convertendose, por assim dizer, em cinzas; nesse caso, sim, é conveniente falar em bile negra (atrem
bilem). E essa atra bilis se constitui a partir de três processos diferentes.
Antes de apresentar os três tipos de “bile negra”, é importante ressaltar que essa
passagem é um bom exemplo da instabilidade semântica das palavras, ao mesmo tempo que é por meio dessa instabilidade que a doutrina, com as nuances necessárias tanto
para que as diversas partes do livro se articulem quanto para que as argumentações
adquiram a devida credibilidade e legitimidade quer por assimilar, embora várias vezes
com deslocamentos e ambiguidades, os conceitos e textos de autores de renome quer
por permitir que as doutrinas que são apresentadas realmente se mantenham como
sendo plausíveis no ensino e na prática médica. O que me parece mais interessante
aqui é que a negociação semântica sobre a bile negra limita e desloca o uso comum do
termo para que ele exatamente signifique o que não é propriamente a bile negra, enquanto, nessa passagem, a bile negra vai receber como designação preferencial os termos: melancholicum succum e ater humor. O que se vê também nessa passagem é que
melancholia, por ser um termo associado ao humor natural e alimentício adquire um
Negociações semânticas acerca da fisiologia da mel ancolia na Universa medicina
95
sentido positivo frente a atra bilis, que seria uma degenerescência antinatural e perniciosa, seria, até mesmo, como é afirmado nesse mesmo capítulo: o pior dos humores
(atra bilis ea, quae omnium est humorum deterrima). No caso, o que deveria ser dito
é que a atra bilis não é um humor; no entanto, segue sendo considerado um humor,
sem pôr em dúvida a estrutura quaternária básica, que, na verdade, mantém-se fundamental para que esses deslocamentos (ou negociações) semânticos sejam praticados,
ou seja, a estrutura quaternária é, de certo modo, revigorada com essas alterações semânticas, embora, é claro, se possa pensar que, a mais longo, foram exatamente essas
mudanças e reacomodações semânticas que levaram ao abandono da teoria humoral,
isto é, da estrutura semântica quaternária.
O primeiro dos três tipos de bile negra é o que se origina da putrefação do suco
melancólico, tornando-se como que cinzas. O segundo tipo é o que se origina da bile
“vitelina”, ou seja, de um tipo degenerado de bile amarela (vitellum quer dizer gema de
ovo, ou seja, trata-se de uma bile que é amarela demais e que provoca doença).
De resto, em meio a discussão dos processos de degeneração que levam à bile
negra, Fernel assinala que nem o sangue nem a pituíta doce (a que é o verdadeiro humor pituíta) se transformam na deletéria bile negra. No entanto, é interessante complementar: a pituíta doce pode se transformar em sangue. O terceiro tipo de bile negra
se origina da pituita falsa, que, embora discutida a partir da explicação sobre as diferentes espécies do humor pituíta, que também se divide em três tipos: 1. o alimentício,
2, o supervacâneo e 3. o antinatural, por ser uma pituíta do terceiro tipo, ou seja, por ser
antinatural, não é pituíta. É essa pituíta falsa, que, portanto, não é pituíta e que pode
se transformar na terrível bile negra, que, por sua vez, não seria um humor e, portanto,
seria um outro falso humor. Ambos são falsos e, portanto, não são propriamente humores, mas são classificados e entendidos a partir dos humores e, assim, participam
semanticamente do quaternário, embora, em certa medida, também contribuam para
indicar que o quaternário é insuficiente para compreender a fisiologia, ainda que, no livro de Fernel, essa insuficiência pareça ser aproveitada como virtude, porque assegura
a agilidade e adaptabilidade do quadro semântico explicativo geral.
Enfim, o que vemos é que os humores, ora são discutidos tal como se fossem
resultado de transformações de corpos sensíveis, ora a partir de seu significado mais
abstrato, tal como se pode os apreender na estrutura quaternária.
É possível dizer que essa passagem de Fernel sobre a melancholia é apenas
confusa e contraditória. Hoje em dia existem textos que são não mais que confusos e
contraditórios. Do mesmo modo, ao longo da história sempre tais textos existiram e,
sem dúvida, continuarão a existir. Em alguma medida, eles fazem parte do processo
de negociação semântica, ainda que talvez não sejam a melhor escolha para analisar
o que está em debate. No entanto, essa passagem de Fernel é parte de um importante
capítulo em seu livro e é redigido com cuidado e atenção. Não há por que taxá-lo de
confuso. Antes, se o julgarmos confuso é porque não estamos conseguindo apreender
96
A N A M O R F O S E - R E V I S TA D E E S T U D O S M O D E R N O S • V O L I • N º I • 2 0 1 3 • R i d E M
minimamente quais as negociações que estão em curso e quais as regras que elas buscam seguir ou mudar. Sem dúvida, se nos ativermos por demais à estrutura semântica
quaternária e buscarmos reduzir tudo o que é dito a ela, não conseguiremos ver o que
está em negociação e poderemos somente, de um modo condescendente, descartar o
texto como incoerente. Se, no entanto, compreendermos que a estrutura quaternária é
apenas a matriz semântica básica a partir da qual as palavras, várias delas com sentidos
ou valências semânticas diversas, podem ser negociadas, adquirindo e perdendo novas
nuances, de modo a se tornarem compatíveis ou repelentes umas frente às outras, vindo, desse modo, a possibilitar que o texto seja composto com maior ou menor coesão,
sendo visto como mais ou menos relevante frente a seus concorrentes, termos novas
questões a discutir, enfim, novas negociações a entabular com a Universa medicina e
com a textualidade e prática médicas do século XVI.
Negociações semânticas acerca da fisiologia da mel ancolia na Universa medicina
97
Resumo
Abstract
Baseando-se somente na Physiologia, de Jean
Resorting only to the Physiologia, of Jean
Fernel, o artigo descreve a fisiologia da bile
Fernel, this study describes the physiology
negra, discutindo como termos-chave dos
of the black bile, discussing how key terms
textos médicos do século XVI apresentam
of the medical language of the 17th Century
sentidos instáveis. É mostrado, em especial,
show instable meanings. The author high-
que, quando Fernel comenta a bile negra, ele
lights that, when Fernel comments on the
indica que esse conceito tradicional se des-
black bile, he points out that this tradition-
dobra em três diferentes com inter-relações
al concept is actually to be unraveled in
diversas entre si e com os demais humores.
three different concepts, which have divers
No entanto, esses sentidos instáveis são en-
interrelations among them and the other
tendidos de um modo basicamente positivo,
humors. However, these instable meanings
no caso, como um espaço de manobra para
are understood positively, that is to say, as
negociações semânticas que permitem ex-
a room for maneuver to semantic negotia-
plicações fisiológicas que tanto se mantêm
tions that allow physiological explanations
referidos à tradição médico-textual erudita
that, on one hand, remain referred to the
quanto acrescentam nuances e postulam no-
erudite medical books and, on the other
vas interações.
hand, add nuances and postulate new inter-
Palavras-chave: história da medicina, histó-
actions.
ria intelectual, Jean Fernel, bile negra, me-
Keywords: history of medicine, intellectual
lancolia
history, Jean Fernel, black bile, melancholy
Sobre o autor
André Rangel Rios é médico (FCM-RJ), doutor em Filosofia (Freie Universität Berlin)
e professor associado na Universidade do Estado do Rio de Janeiro
98
A N A M O R F O S E - R E V I S TA D E E S T U D O S M O D E R N O S • V O L I • N º I • 2 0 1 3 • R i d E M