Apresentação - Escola Letra Freudiana
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Apresentação - Escola Letra Freudiana
Apresentação Cem anos do "Projeto"! Que projeto? O texto, os cem anos já decorridos de um projeto e aqueles a vir? Ao debruçar-nos sobre o "Projeto" cabe ressaltar o que ele têm de muito peculiar se bem o articulamos na série dos textos de Freud, não podemos esquecer que foi escrito para não ser lido. Houve uma decisão de não publicá-lo, e isso marca uma diferença — se está na série freudiana, também está fora dela. Ele ex-siste à obra. É um texto que questiona a temporalidade de uma série que se supõe ordenada no mundo e nos questiona enquanto leitores, exatamente, nesse ponto de fratura. Com o que se depara o leitor do "Projeto"? Escrito em 1895 sobre forte transferência com Fliess, articula na teoria freudiana o que é do trauma na constituição da histeria; estabelece a ruptura entre a linguagem neuronal e a analítica; antecipa a interpretação dos sonhos, bem como, algo do além do princípio do prazer já, aí, se enuncia. E principalmente elabora uma estrutura a tal ponto que, a posteriori, podemos dizer ser um texto avant Ia lettre. Há cem anos..., nos faz pensá-lo no campo da história. Emilio Rodrigué se encarrega disso com "História do Projeto". No entanto a abordagem histórica se mostra insuficiente, o "Projeto" nos surpreende por ser um texto irreproduzivel, não faz série, desafia a lei do simbólico e reaparece no real. Como texto não dado a ler produz um efeito, com três letras cp, y e a> fez-se a tentativa de escritura do real com que se defronta Freud — o real do sexo, do trauma Há um outro encontro com o real aqui em questão, o real do texto. Texto de difícil leitura e que por isso mesmo exige leitores decididos. É o que vemos na II Parte de nossa revista, possíveis leituras, pontuais, sobre o Outro primordial, a dor, o ego e a ligação, desejo proton-pseudos, erro, de autores intimados pelo "Projeto"... texto que retorna. O texto banido pelo autor, no entanto, tal como fonte, continua vivificando a produção da psicanálise, lançando-a a outros campos do saber. Na III Parte da Revista temos a articulação do "Projeto" em extensão como uma forma de pensar a psicanálise na sua relação com os discursos existentes. Ao final, o que está sempre de inicio, o encontro com a clínica, centrado sobre esse ponto de certeza que não engana ao sujeito — a angústia frente ao desejo do Outro. Nosso projeto com esta revista é de convidar outros leitores decididos a debruçarem-se sobre os textos, causados na produção de uma psicanálise a vir. EV R.S.M.P. História do Projeto Emílio Rodrigué Foi nos tempos do Petromyzon. Talvez seja questão de falar de um Freud jovem pavloviano e de um Freud maduro freudiano; ou de um Freud neurólogo e um Freud psicólogo. Mas houve um tempo em que ambos coincidiam. Assim, em abril de 1886, quando assume a direção no serviço de neurologia da clínica Kassawitz, abre-se o período áureo neurológico. Daí saíram os brilhantes artigos sobre hemianopsia e hemiplegia infantil, culminado, cinco anos mais tarde com a publicação do livro sobre as afasias. Este livro foi publicado em 1891, meses antes de iniciar seu primeiro caso de psicoterapia pelo método catártico. Freud tem 35 anos e acaba de mudar-se para Berggasse 19. Ele doravante poderá falar alto como eminência em hemiplegia cerebral infantil. Confiante, transmite seus sentimentos a Fliess: "Dentro de poucas semanas dar-me-ei o prazer de enviar-lhe um pequeno livro sobre as afasias. Nele sou muito despudorado, teço armas com seu amigo Wernicke, com Lichthein e com Grashley, e chego até arranhar o poderosíssimo Meynert"1. Frente a hipótese "localizacionista" wernickiana, Freud opõe um aparelho funcionando em termos de processo. Ele parte da noção da "desinvolução" de Hughlings Jackson. Segundo esta teoria, os níveis mais complexos e refinados da habilidade lingüística se perdem primeiro, enquanto que os mais primitivos são conservados durante um tempo maior, sendo os últimos a serem atingidos. Aqui vemos pela primeira vez a proposição de um mecanismo de "regressão", processo involutivo que segue o caminho inverso do evolutivo. Para Hughlings Jackson o espírito humano apresentava uma série hierarquizada de níveis de funcionamento: as funções voluntárias "superiores" cobriam e dominavam as funções inferiores2. Freud assinala: "Na avaliação do aparelho da linguagem sob condições patológicas, adotamos como guia a doutrina de Huglings Jackson de que todos os modos 4 100 ANOS DE PROJETO FREUDIANO de reação representam instâncias de uma regressão funcional de um aparelho altamente organizado, correspondendo então a estados prévios de seu desenvolvimento"3. Já nas primeiras páginas, Freud introduz o termo de Spracheapparat — "aparelho de linguagem" — como se se tratasse de algo banal aos olhos e ouvidos da época. Este aparato, segundo Steingel, "é o irmão mais velho do 'aparelho psíquico'"4. Ele pode ser descrito como uma organização hierárquica de funções com um substrato orgânico. Tomou este termo emprestado de Meynert, que acabava de falar de um Seelenapparat, "aparelho da alma". Apesar da novidade, Charcot, condiscípulo de Broca, já tinha se aproximado da noção de "aparelho de linguagem", ao estabelecer uma afinidade entre as teorias da linguagem e as da imagem. Apoiando-se nos estudos de Ribot, considerou que a palavra possuía quatro elementos: a imagem auditiva, a imagem visual, a imagem motora de articulação e a imagem motora gráfica5. Freud privilegia a imagem acústica enquanto Charcot a visual. Freud fala duma "projeção" da periferia na massa cinzenta da própria medula espinhal, embora provavelmente exista uma "representação" disso no córtex, baseada, porém, antes em agrupamentos funcionais que topográficos. O que prenuncia por cinco anos as idéias do "Projeto". Aqui, na discussão com Meynert, Freud desenvolve sua reflexão fundamental sobre o significado da "afasia agnóstica", concepção sua de um distúrbio funcional da linguagem que compromete o vínculo associativo entre Dingvorstellung (representação de coisa) e Wortsvorstellung (representação da palavra). No aparelho da linguagem a representação de coisa é aberta a novas impressões, enquanto a de palavra se mantém fechada. Se levanta, então, o problema do normal e do patológico, já que alterações lingüísticas podem ocorrer nos atos falhos do sujeito normal. O Discurso do afásico, então, passa a ser considerado como uma genuína parapraxis. Efeitos do sujeito, dirá Nassif, oitenta anos mais tarde . Afinal de contas, a linguagem é algo que se adquire e o aparelho de linguagem é algo que se constrói, "peça por peça", como paradigma de aprendizado. Momentos onde a fala começa a falar-se. Dessa forma, a problemática do discurso afásico nos coloca na trilha do discurso histérico. Daí que Eduardo Sande diga: "Sobre vários aspectos o texto das afasias é a mais avançada tópica freudiana, principalmente no que diz respeito à este aparelho, às associações de objeto e à representação palavra"7. O "discurso afásico" com seus efeitos de sujeito, é concebido como distúrbios que precisem ser corrigidos ou atenuados . "No entanto, aquilo que nesse aparelho aparece como falha, será precisamente aquilo que vai ter as mais importantes conseqüências para o futuro teórico do aparelho de linguagem" . O "discurso afásico" não alcançou o estatuto do "discurso histérico", ainda que sua antecipação hoje em dia se torne evidente. HISTÓRIA DO PROJETO 5 Essa é a pré-história do "Projeto". O 'Projeto" é o casamento improvável de um sapo com uma borboleta Ensaio marcado por sua própria história que lhe reservou o papel de "curinga" da psicanálise. Grande revenant, ele nos chega na incompletude de rascunho que entra em cena meio século depois de ser escrito. Sulloway tem toda razão quando afirma que "Não há nenhum outro texto, na história da psicanálise que tenha provocado um corpus de discussão semelhante" . Sua importância é exagerada por uns, que encontram nele o essencial da teoria psicanalítica; minimizada por outros, que o consideram um mero texto pré-psicanalítico11. Jones o classifica como um desplante, melhor ainda, como a última tentação fisicalista. O que significa, neste período do pensamento freudiano, a elaboração do "Projeto de uma Psicologia"? Para Strachey o sistema teórico aqui esboçado não tem sexo, o que o leva a considerá-lo um "torso renegado pelo seu criador"12. Ele está divorciado da clínica. Numa primeira leitura, ninguém diz que foi escrito depois dos "Estudos". Esse caráter ambíguo de fóssil premonitório, parece ter sido compartilhado pelo próprio Freud que, nas cartas a Fliess, ora o apresenta como seu mais importante e ambicioso conclave teórico, ora lhe retira todo valor. Assim, seu estado de espírito alterna do "orgulho e felicidade" à "vergonha e aflição" . O esquema do "Projeto" anuncia a cibernética e a informática. Poderia ser leitura obrigatória dos estudantes desse fascinante campo que é a Inteligência Artificial. O âmbito ocupado pela ficção neurológica deste ensaio será posteriormente o solo da metapsicologia; a explicação neurológica cederá o lugar a uma decifração de sentido. Nele, as intuições estão em germe e muitas noções futuras, consideradas como aquisições definitivas da psicanálise, aparecem enunciadas pela primeira vez, nesta galeria de futuras manchetes. Uma intenção contundente anima o "Projeto", aparecendo no primeiro parágrafo: A finalidade deste projeto é estruturar uma psicologia que seja uma ciência natural: isto é, representar os proccessos psíquicos como estados quantitativamente determinados de partículas materiais específicas, dando assim a esses processos um caráter concreto inequívoco . Profissão newtoniana de fé cientificista. Um positivismo radical depois de produzir dois ensaios matizados como Sobre as afasias e os "Estudos sobre a histeria". Um passo a ré no aprés coup de sua caminhada. Mas será bem assim? Não pensado para ser publicado, o "Projeto" é, como Sulloway nos lembra, um super-rascunho, nada mais que isso. A quarta parte, até agora perdida, ficou inconclusa 15. Essa seria a cabeça que o torso precisava. Tinha a ver com a psicopatologia do recalque. Freud, em 8 de outubro de 1985, manda os dois primeiros cadernos a Fliess, fazendo o comentário que o terceiro caderno continha realmente a chave do sistema . 6 100 ANOS DE PROJETO FREUDIANO As duas idéias principais em jogo são colocadas no segundo parágrafo da introdução: 1- O que distingue a atividade do repouso é da ordem quantitativa: a quantidade ( 0 encontra-se submetida as leis gerais do movimento. 2- As partículas materiais em questão são os neurônios (A/)"17. Uma quantidade, então, circula por uma rede. Nenhuma das duas idéias, em si mesmas, constituem uma novidade . Cabanis tão cedo como em 1824 pensava em energia circulando pelos nervos. Waldeyer, por sua vez, quatro anos antes do "Projeto", já "havia apontado o neurônio como o suporte material e a unidade fundamental do sistema nervoso"19. A originalidade emerge na articulação feita por Freud. Recapitulando, o aparelho psíquico está construído por três sistemas de neurônios. <p carrega percepção; v|/, memória e co, consciência. A percepção flui por neurônios permeáveis, isto é, não opõem resistência; a memória demanda uma captação, uma marca, uma certa resistência neuronal. O terceiro sistema, inaugura o complexo âmbito da qualidade, próprio da consciência. Do ponto de vista anatômico, o sistema cp corresponderia a substância cinzenta da medula espinhal, enquanto o sistema v|/ corresponderia a substância cinzenta do cérebro; o primeiro tendo contato direto com o mundo externo e o segundo carecendo de ligações periféricas . O sistema co, por contraste, não teria referente anatômico. Mas a consciência, na medida que lida com essa qualidade que são os sentimentos, estaria "localizada" no coração. Este aparato ilustra como a subjetividade se constrói na interface do organismo com seu ambiente. Nas palavras de Lacan, "este aparelho é, essencialmente, uma topologia da subjetividade . O aparelho psíquico no "Projeto" é fundamentalmente um aparelho de memória. O "ego oficial", como Freud o denomina na carta de 6 de janeiro de 1896 , seria a rede neuronal vy. A função principal do sistema co é a de passar para o sistema \j/ signos de realidade ou signos de qualidade (Realitàtszeichen ou Qualitãti szeichen). Estes signos, fornecidos pelas transformações em co, permitem aos neurônios cp distinguir percepção da lembrança. Essa função da consciência sobre o ego é denominada de "atenção psíquica"23. Para explicar a permeabilidade de co, Freud apela aoperíodo. Noção fliessiana "não totalmente clara", lamenta-se Strachey24. No período, se toma em conta a característica temporal da passagem de Qri: "Os neurônios co são incapazess de receber Qi, mas em compensação apropriam-se aoperíodo de excitação. Esta afeição pelo período, com um mínimo de presença de Qi, modula o funcionamento da consciência"25. Garcia-Roza interpreta esta passagem afirmando que a "resposta de co se faz em função não de uma certa quantidade, mas de umperíodo, onde entra o fator tempo. Esta temporalidade não é reduzível a quantidade, trata-se do tempo puro, HISTÓRIA DO PROJETO 7 de uma temporalidade descontínua ou periódica, pura qualidade"26. Período nos leva ao domínio da música. Daí que seja interessante a tese de Suzanne K. Langer que disse que os sentimentos têm uma estrutura musical. Nessa problemática das diferenças, dos tempos, dos períodos fliessianos, Freud e Bergson, por caminhos diferentes, levantam tendas no mesmo canto filosófico. É pela memória que o psíquico se constitui. Esta condição de perenidade lembra a teoria bergsoniana sobre a conservação integral do passado. Pa:*a ambos o passado se conserva integralmente. O esquecimento é ativo e não passivo: "esquecemos por eficiência e não por deficiência"27. Finalmente, eles partilham a idéia do caráter seletivo da memória, concebendo esta como um contínuo fluxo de material mnêmico. Para Bergson a ciência é incapaz de pensar a memória. O método científicodedutivo é bom para quantidades; ou seja, a extensão, a especialização das coisas. A ciência, isto é, a inteligência, dá-se bem com a matéria — ela é seu objeto próprio — mas fracassa frente ao espírito com sua dimensão temporal. O tempo, para Bergson, é a própria substância da subjetividade, entendido não como tempo cronológico, que em verdade é espaço mascarado e não tempo, e sim como duração, ou seja, como pura qualidade. A duração não é uma sucessão de instantes, pois neste caso não haveria senão o presente, mas um prolongamento do passado "roendo" o futuro. O psíquico é duração, porque se trata de um tempo que é da essência da vida. Na duração pura o "passado está prenhe de um presente absolutamente novo". O psíquico é qualidade e liberdade, o oposto a quantidade e determinismo29.0 passado não é o presente que passou, é ele mesmo passado que avança e aumenta sem cessar, conservando-se integralmente30. Uma diferença importante entre Freud e Bergson está dada por essa relação entre matéria e memória: entre cérebro e lembrança. No "Projeto", com sua rede neuronal, o suporte cerebral para os processos psíquicos está subentendido. Em Bergson a matéria cinzenta e a subjetividade formam duas séries divergentes: matéria e memória, "A vida ascende, a matéria cai" . O aparelho assim configurado apresenta a seguinte dificuldade: o sistema cp é responsável pela percepção, "mas Freud nos diz que o princípio de prazer também se exerce precisamente sobre a percepção, que o processo primário visa a uma identidade de percepção. Sendo assim, como distinguir quando essa identidade perceptiva se faz de uma forma alucinatória ou real? O bebê não sabe distinguir o seio real do seio alucinado, ocorrendo então uma frustração, já que ele reage ao objeto alucinado como se fosse real. Trata-se do que Lacan falando do infans, aponta como sendo o paradoxo do princípio de realidade"22. Justo nesse lugar entra em ação o ego neurônico do 'Projeto", encarregado de impedir o desprazer. Para dito fim, uma parte do sistema \\r se diferencia e passa a desempenhar a função de inibição do desejo, quando se trata de um objeto 8 100 ANOS DE PROJETO FREUDIANO alucinado. Esse sistema é chamado de "ego". O ego é, portanto, uma formação do sistema y e não do sistema "CD". Repito: O ego é o sistema \|/; a consciência o sistema ca. o primeiro é definido da seguinte maneira: "O ego é a totalidade das catexias y, existentes em determinado momento, nas quais cumpre diferenciar uma porção permanente e outra variável"33. Seu objetivo fundamental é dificultar a passagem de Q; dito de outro modo, inibir o desejo, quando se trata do seio alucinado. Este ego neuronal não tem nada a ver com o ego da segunda tópica. Ele é uma formação particular no interior do sistema \y. Não se trata do ego entendido como sujeito, cavalgando barrado na vida, senão um dispositivo de controle34. A função da inibição exercida pelo ego neuronal vai levar Freud a fazer uma das contribuições mais importantes do "Projeto": a distinção entreprocesso primário eprocesso secundário. O processo primário é pura descarga; o secundário, na demora, se desenvolve da percepção à inteligência, permitindo a escolha entre diversas vias de descarga. Como o assinala Anzieu: "Dá para ver que Freud reconhece a importância da produção teórica de Breuer: a energia livre caracterizando o processo primário e a energia ligada, o processo secundário" . O processo secundário resulta de uma transformação do primário. São duas etapas na diferenciação do aparelho psíquico. O sonho é o território do processo primário; a vigília, a atenção o raciocínio e a linguagem são talentos do processo secundário. No "Projeto" se esboça uma teoria onírica. Freud acaba de sonhar com Irmã, portanto, "os sonhos são realizações de desejo". Além disso, "as idéias oníricas são de caráter alucinatório". "Fecha-se os olhos e alucina-se; torna-se a abri-los e pensa-se com palavras"36. Este caráter alucinatório antecipa a noção de regressão. Aqui continua o que foi dito nos "Estudos", mas agora só a "histeria de defesa" é reconhecida. Simplificando, à maneira de Azar Sarkis, podemos dizer que a parte dedicada à psicoterapia da histeria "repousa sobre dois pilares: o símbolo e o après coup . O processo de simbolização é descrito da seguinte maneira: B tem certos pontos de contado com A. Acontece um evento que consiste em A+B. A representa uma circunstância acessória enquanto B possui o que é necessário para produzir um efeito duradouro. Quando uma lembrança desse fato ressurge, tudo se passa como sev4 houvesse tomado o lugar à&B. A, então, substituiB, e assume a função de símbolo38. Freud constata empíricamente que este processo de defesa frente a representação B só se realiza quando B está tingido de sexo. Para tal fim ele introduz um fragmento de análise de uma paciente chamada Emma, que não pode ser outra que Emma Eckstein, pela natureza do caso e porque o "Projeto" não estava pensado para ser publicado, um "apelido clínico" era desnecessário. As idéias mais promissoras do "Projeto" apareceram no "Capítulo VII" do livro dos sonhos e lá constatamos o que Freud necessitava: um dispositivo que funcionasse como uma máquina, mas como uma máquina fictícia, um modelo HISTÓRIA DO PROJETO 9 para armar, como diria Cortazar, sem relação com a trama neurológica. Era preciso esse artefato para o cálculo metapsicológico. Mas a empresa era prematura para a época. Numa recapitulação final, podemos dizer que o dispositivo está montado. Acontece que o "Engendro" sente, percebe, alucina, lembra - mas ele não fala. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 1. MASSON, J.M. Carta de Freud à Fliess de 2-5-91, Correspondência SigmundFreud\WilIhelm Fliess, Rio, Imago, 1986, p.28. 2. JACKSON, J.H. "Evolution and dissolution oi the nervous system", 1884, em Selectd writing of Hughlings Jackson, II, 1931, p.155-204. 3. FREUD, S. On Aphasia, Londres, 1951, p.87. 4. STENCEL, E. "A re-evaluation oi Freud's book (On Aphasia). Its Significance for psychoanalysis", Int). Psychoanal, 1954. 5. ROUDINESCO, E. História da psicanálise na França. A batalha dos cem anos, I, Rio, Zahar, 1986, p.31. 6. NASSIF, J. Freud l'inconscient, 1977, p.338. 7. SANDE, E. "A Metapsicologia não concluída-perdida de Freud", texto apresentado no Espaço Moebios em setembro de 1992, Salvador, Bahia, p.4. 8. NASSIF, J. Freud 1'inconsdent, 1977, p.419. 9. CARCIA-ROZA, LA. Introdução a metaps/co/ogía freudiana -1, Rio, Zahar, 1991, p.66. 10. SULLOWAY, F.J. Freud, biologiste de Vesprit, Paris, Fayard, 1981, p.110. 11. Paul Cranefield, por exemplo, fala de seu "efeito provisório e nefasto" (P.Granefield, "Some problems in writing the history of psychoanalysis", Psychiatry end its history - Methodological problems in research, editado por G. Moria e J. Brand, 1970, pg.54). Por outro lado, Wollhein vai tão longe como para concluir que o essencial da sua obra se encontra presente neste esboço teórico (R.WoIlhein. Sigmund Freud, Viking press, 1971, p.59) 12. FREUD, S. Obras Psicológicas Completas Ed. Standart, vol.l, Rio, Imago, 1977, p.393. 13. FREUD, S., Anfàngen der Psychoanalyse, Londres, Imago Publishing Co., p.136. 14. Ibidem, p.295. 15. JONES, E. A vida e a obra de Sigmund Freud, Rio, Imago, vol.l, 1989, p.381. 16. SULLOWAY, F. Freud, biologiste de 1'esprit, op.cit., p.117. 17. FREUD, S. op.cit., p.296. 18. GARCIA-ROZA, L.A. introdução a metaps/cotogía freudiana - op.cit, p.79. 19. Citado por GARCIA-ROZA, LA. op.cit, p.79. 20. Ibidem, p.96. 21. LACAN, J. L'éthique de Ia psychanalyse - Le Séminaire, livre VII, 1986, Paris, Seuil, p.51. 22. Carta de Freud a Fliess de 6-1-96, Correspondência Sigmund Freud\Wilhelm Fliess, op.cit., p.209. 23. FREUD, S. op.cit. p.360-1. 24. Ibidem, p.307. 25. Ibidem, p.314. 26. GARCIA-ROZA, L.A. op.cit. p.110. 27. Impressão, traço e texto, Manuscrito, p.2 28. RUSSELL, B. História da Filosofia Ocidental, Brasília, Ed.Universidade de Bra., 1982, p.347. 10 100 ANOS DE PROJETO FREUDIANO 29. BERGSON, H. L'évolution créatrice, 1907. La evolución créadora, Barcelona, Colmena, 1912. 2 v. 30. GARCIA-ROZA, L.A. "Impressão, Traço e Texto", Manuscrito, p.3-4. 31. RUSSELL, B. História da Filosofia Ociental. Brasília, ed. Universidade de Bra., III, 1982, p.343. 32. GARCIA-ROZA, L.A. O mal radical em Freud, Rio, Jorge Zahar, 1990, p.97. 33. FREUD, S. Obras Completas. Op.cit. p.323. 34. GARCIA-ROZA, L.A. Freud e o inconsciente, Rio, Zahar, 1988, pg 56. 35. ANZIEU, D. A auto-analise de Freud e a descoberta da psicanálise, Porto Alegre, Artes Médicas, 1989, p.64. 36. FREUD, S. Obras Completas. Op.cit. p.339. 37. AZAR, AMINE e SARKIS, ANTONIE, Freud, les femmes, l'amour, Paris, Z'Editions, 1993, p.64. 38. FREUD, S. Obras Completas, p.349. O Outro Primordial no Projeto Freudiano Maria Cristina Vecino Vidal Cem anos depois qual seria a importância do retorno ao "Projeto" (Entwwf)! Como o lemos agora? Num a-posteriori este manuscrito de 1895 traz o fundamento da teoria psicanalítica. Freud interroga nele o modo de entrada do infans na estrutura da linguagem e seu confronto com o Outro real representado inicialmente pela quantidade. A preocupação de Freud é, segundo suas palavras "estruturar uma psicologia que seja uma ciência natural, representar os processos psíquicos como estados quantitativamente determinados"1.0 aparelho que Freud apresenta supõe uma arquitetura neuronal que possibilita a circulação de quantidades energéticas. A quantidade vem sempre do exterior, seja do mundo externo ou do corpo próprio, existente como radicalmente alheio ao sujeito. Nessa exterioridade radical manifesta-se o caráter intrusivo da quantidade como presença de um Outro pré-histórico. A quantidade expressa o registro do inassimilável da experiência, e permite teorizar o insuportável para o aparelho. A quantidade sem nome dá o modelo da dor e do trauma. Há então uma Q inicial, insuportável mas indispensável, pois é a que impulsa o trabalho de simbolização. Ela representa um estado de tensão inicial que força o aparelho a desenvolver sistemas simbólicos e a instaurar a função de um juízo. A atividade judicativa tem notícias dessas quantidades, do desconforto que produzem e indica como elas podem ser transmitidas e descarregadas, ou seja, constitue uma diferenciação na estrutura indiferenciada das quantidades. Os processos primários de juízo são marcados pela predominância dos processos associativos entre a catexia desiderativa (quantidade que vem do interior) e a catexia perceptiva (quantidade que vem do exterior). Os processos secundários do juízo emergem pela alteração dos processos associativos e sua função primordial seria o reconhecimento do objeto enquanto ausente e o adiamento da descarga 13 14 100 ANOS DE PROJETO FREUDIANO das quantidades. Essa diferenciação no processo de juízo, deixa um resto que foge a toda articulação possível. Freud disse: "o que chamamos aí coisas são resíduos subtraídos ao juízo"2. A judicação só é possível pela não coincidência entre o complexo desiderativo e o complexo perceptivo. Sua coincidência interromperia provisoriamente o processo de pensamento. Este é representado numa escrita minimal de três letras: a, b, c. O complexo desiderativo seria hipoteticamente a + b e a percepção a +c, sendo a, portanto o que permanece constante, a Coisa, enquanto que b é o elemento variável, que pode faltar, o atributo da Coisa e c aquele elemento que, no lugar áebéa marca da não coincidência. Dela provém o ato na tentativa de encontrar o b faltante. Freud exemplifica este processo no lactente: suponhamos que a imagem mnêmica desejada seja a do peito materno com o mamilo, visto de frente, mas a primeira percepção real obtida de dito objeto tem sido uma visão lateral, sem o mamilo. A memória da criança incluirá uma experiência adquirida casualmente ao amamentar, segundo a qual a imagem frontal se transforma numa imagem lateral quando se realiza um determinado movimento cefálico. A imagem lateral percebida agora conduz ao movimento da cabeça e uma prova lhe demonstrará que este movimento deve efetuar-se no sentido inverso com o fim de obter a percepção da imagem frontal. Freud ilustra com esse exemplo o encontro sempre faltoso do lactente com o objeto seio, inerente a desemelhança no campo do Outro. A identidade de percepção que o aparelho tenta reproduzir encontra um elemento c diferente de b, impulsor da função do juízo. A Coisa, escrita com a letra a, é o constante, o inominável, que não se deixa apreender por atributo nenhum e permanece como causa do desejo e do ato do sujeito. A Coisa (das Ding) é o que sobra e resta à articulação simbólica dos juízos primários e secundários. É resto, mas também funciona como causa desses processos. Está fora, mas seu destino é ser substituída no aparelho. Está no solo da simbolização. Todo o sistema de substituição se apoia sobre das Ding que organiza o idêntico e o diferente. A primeira apreensão da realidade pelo sujeito é através do que Freud denomina Nebenmensch = neben: próximo, mensch: homem. Seria o homem próximo, o vizinho, o semelhante. É a partir do próximo que Freud articula a função do Outro nas dimensões nomeadas a partir de Lacan: Imaginário, Simbólico e Real. Freud reconhece no complexo do semelhante uma parte muda, inassimilável que permanece imutável: a Coisa (Das Ding). O primeiro Outro, encontra no próximo um suporte, é dividido em duas porções, uma das quais dá impressão de ser uma estrutura constante que persiste como Coisa, enquanto que a outra porção pode ser compreendida no início da atividade da memória, quer dizer reduzida a uma informação sobre o próprio corpo do sujeito4. O OUTRO PRIMORDIAL NO PROJETO FREUDIANO 15 É o que o eu reconhece através de sua própria experiência, de seus próprios movimentos. A qualidade do objeto que pode ser formulada como atributo, entra no investimento do sistema psi (y) e constitui as representações primitivas, as primeiras Vorstellungen, a partir das quais o aparelho regula o prazer-desprazer. "Das Ding é absolutamente outra coisa"5: excluída no interior do campo do Outro, ela não recebe atributos, não é predicavel. É o fora-significante na estrutura da linguagem que inaugura uma nova topologia do sujeito. Lacan coloca a Coisa no centro e, em volta dela, o mundo subjetivo do inconsciente, estruturado nas cadeias signifícantes, mas destaca a dificuldade de sua representação topológica: "está no centro mas no sentido de estar excluída"6. A noção de das Ding formulada por Freud no "Projeto" presentifica uma divisão constitutiva no campo do Outro e, portanto, no sujeito. Na relação com o Outro, algo no sujeito é expulso. É em torno desse primeiro exterior expulso que se orienta o encaminhamento subjetivo. O sujeito, na sua relação com a realidade, vai ao encontro do objeto que é, desde sempre, perdido. Vai a procura daquilo que é imposível de ser achado: Das Ding — o Outro absoluto — a mãe. A lei de proibição do incesto determina a inacessibilidade da mãe. É o que está no fundamento de das Ding. Freud designará posteriormente como interdição do incesto o princípio da lei primordial, mola de todos os desenvolvimentos culturais e, ao mesmo tempo, identifica o incesto como o desejo mais fundamental, o desejo do filho pela mãe. Só há desejo porque o objeto é interditado e inatingível. O desejo pela mãe não poderia ser satisfeito pois representaria o fim da demanda e do inconsciente. A mãe ocupa o lugar da Coisa como impossível no inconsciente. Lacan diz no Seminário A ética da psicanálise o passo dado por Freud, no nível do princípio do prazer, é o de mostrar-nos que não há Bem Supremo, que o Bem Supremo que édas Ding, que é a mãe, o objeto do incesto, é um bem proibido e que não há outro bem7. Das Ding, lugar ao qual a mãe é chamada, não permite constituir o ideal de uma mãe completa como presença que responda as necessidades da criança. A mãe aparece sempre no lugar do Outro como falta nas três dimensões que, a partir de Lacan, podemos distinguir na experiência analítica: - No Simbólico, como Outro da linguagem. - No Imaginário, sustentada no complexo do próximo, como semelhante. - No Real enquanto das Ding. A mãe vem a ocupar o lugar do Outro simbólico para a criança, Outro da linguagem que aparece, no "Projeto", em termos de intervenção do mundo externo, ajuda alheia chamada a socorrer a carência inicial, denominada desamparo (Hilflósigkeif). Essa intervenção constitui a ação específica. Incapaz de realizá-la 16 100 ANOS DE PROJETO FREUDIANO sem ajuda exterior o organismo é compelido a inscrever-se na linguagem e, com isso, trocar suas necessidades em demanda. Ele não só recebe o alimento, recebe também a palavra O grito tem uma função primordial nessa inscrição, por estar enlaçado desde o início com a linguagem. O grito é, em princípio, um meio de descarga da tensão acumulada e, ao mesmo tempo, a expressão do estado de desamparo e urgência inicial. O Outro, representado pela mãe, escuta o grito da criança e o interpreta no seu sistema de significação. A criança escuta seu próprio grito que lhe retorna como rudimento significante do exterior. Nesse instante, o sujeito se divide em, aquele que emite o som e aquele que recebe a notícia: "só falta um curto passo para chegar a invenção da linguagem"8. Freud destaca, no "Projeto", a função do grito na ordem de um apelo ao Outro que possibilita a entrada do sujeito no Simbólico. O grito, que é abertura do sujeito no campo do Outro, precede a primeira inscrição pela via da experiência de satisfação. Ela é a marca da impossibilidade do encontro do sujeito com o objeto. Não há primeiro encontro. Trata-se sempre de um (re)encontro pois o objeto é, desde sempre, perdido. A primeira experiência inscreve o sujeito no campo do desejo. Quando, ante a falta de objeto, são investidos, simultaneamente, os traços da experiência de satisfação o desejo emerge presentificando a dimensão de perda e de retorno a uma satisfação já experimentada. Na dimensão imaginária situamos o lugar da mãe enquanto objeto: "esse objeto próximo, íntimo ao sujeito, seu primeiro objeto satisfatório, seu primeiro objeto hostil e também sua única força auxiliar"9. É no próximo que o ser humano aprende por primeira vez a (re)conhecer. O semelhante, enquanto outro e imagem, informa ao sujeito sobre os movimentos de seu corpo próprio. Freud escreve: dos complexos perceptivos emanados de seu semelhante serão em parte novos e incomparaveis como por exemplo seus traços na esfera do visual; mas outras percepções visuais (o movimento de suas mãos, por exemplo) coincidirão no sujeito com sua própria lembrança de impresões visuais similares emanadas do próprio corpo, lembranças com as quais ficarão associadas outras lembranças de movimentos experimentados por ele mesmo. Igualmente acontecerá com outras percepções do objeto; assim por exemplo, quando este imita um grito, evocará a lembrança do próprio grito do sujeito e, decorrente disso, a de suas próprias vivências dolorosas . O Outro primordial está encarnado no Nebenmensch que permite a constituição do infans como corpo, em especularidade à imagem do corpo do outro. No começo o corpo próprio é o corpo do outro, a imagem do outro é a própria imagem fundamento da identificação pela qual o "sujeito da superfície"quer se ver como unidade: o corpo do outro, lhe é tão próximo como o seu. Teria podido amá-lo da mesma forma que a ele mesmo antes que ele fosse outro e que lhe seja tão próximo como o seu... Pode se servir deste outro, desde então vazio, como de um espelho O OUTRO PRIMORDIAL NO PROJETO FREUDIANO 17 para proteger aí a superfície que é ele mesmo para ver aí desenhar-se a Coisa, que não tem nome que poderia ser o fim do gozo . Estas palavras de Lacan destacam que esta imagem do complexo do próximo já opera como função de separação do gozo do Outro, sendo das Ding o vazio que está no cerne de sua formação, produzindo o traço diferencial que se inscreve no Simbólico. Na relação com o Outro há sempre uma dimensão de perda. Segundo Lacan, Freud "coloca na origem da conquista da realidade o objeto perdido, que não pode atingir, pois mesmo presente sua lembrança o situa numa outra cena". Esse resto que se perde que portanto fica excluído de toda símbolização e de todo revestimento imaginário é o das Ding que, no "Projeto", representaria o Outro absoluto, aproximando a dimensão real enquanto impossível. Freud escreve no "Projeto" e na correspondência à Fliess um aparelho desprovido de qualquer referência psicológica, portanto, no limite, o texto não é para ser lido. Foi precisamente com esta escritura que Freud apresentou a função primordial do Outro pré-histórico, inigualável, que antecede ao sujeito como função do desejo. Esse Outro primordial não só oferece sua face de luz com seus traços distintivos mas sua face de sombra onde se prefigura o lugar de uma falta. O nó que Lacan constitui com os três registros não só orientam a leitura de Freud, mas permite revelar no texto, a função de um Outro heterogêneo primordial na constituição do sujeito. No entanto, Lacan salienta que no texto freudiano não há nada que faça supor a existência do nó borromeano. Os psicanalistas que se ocuparam da criança produziram uma ocultação do lugar do Outro como falta preenchendo-o com a mitologia da relação mãe-filho. O nascimento do sujeito é uma subtração operada no campo do simbólico. O Outro barrado pelo significante, que separa o sujeito do gozo, indica a não complementação possível entre o recém nascido e sua mãe. A criança representa parte da falta do Outro que ela nunca chegará a preencher. A Coisa é o vazio na imagem que nunca poderá reencontrar. O Outro primordial é o lugar da subtração e o advento do sujeito na dimensão da linguagem repete a perda originária. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 1. FREUD, S., "Projeto para uma Psicologia para neurólogos" in Obras Completas, v.XXII, Buenos Aires, Santiago Rueda, 1956, p.378. 2. Ibidem, p.410. 3. Ibidem, p.411. 4. Ibidem, p.413. 5. LACAN, J., A ética da psicanálise, Rio, Jorge Zahar, 1986, p.68. 18 6. 7. 8. 9. 10. 11. 100 ANOS DE PROJETO FREUDIANO Ibidem, p.91. Ibidem, p.90 FREUD, S., "Projeto para uma Psicologia para neurólogos", op.cit, p.438. Ibidem, p.413. Ibidem, p.413 LACAN, )., Conference a l'Évolution Psychiatriquete23.7.7962: "De ce que J'enseigne", in Petits Ecrits et Conferences. p.586. 12. Ibidem, p.588. Sobre a Experiência de Dor Maria Lessa de Barros Barreto A idéia em torno da qual gira este trabalho é que, exatamente como Freud coloca no "Projeto", a experiência de dor faz parte da estrutura e merece estatuto da mesma importância ao da experiência de satisfação. A primeira parte reflete o particularismo da experiência, a partir do ouvidovivido na clínica, na Psicanálise, e se apresenta como uma reflexão sobre a dor. É mesmo uma questão de refletir, de espelho, na media em que é o "estágio do espelho que dá a regra de partição/separação entre o imaginário e o simbólico"1. A função imaginária é a que "preside ao investimento do objeto enquanto narcísico" . E o simbólico é o "inconsciente enquanto discurso do Outro (A), onde o sujeito recebe, sob forma invertida sua própria mensagem" . O real surgirá enquanto traumático — presença pulsional da dor, incomodando o sujeito. A segunda parte é a palavra de Freud no que diz respeito à dor, mas enquanto "além do princípio do prazer" e "masoquismo". 1. A dor é a melancolia do organismo, um chorar silencioso do corpo, resultado da incidência do real da separação. O que resta, o que fica da separação. Presença de das Ding enquanto o irrepresentável, o impossível de dizer, apontando ao objeto a de um Real que se impõe. Que se impõe sobre o Imaginário, visível na passagem do esquema L para o esquema R. 19 20 100 ANOS DE PROJETO FREUDIANO Marca da passagem do analista da posição de "morto, seja por seu silêncio onde é o Outro (A), seja anulando sua própria resistência onde é o outro (a) — sob as incidências respectivas do simbólico e do imaginário"6 para a posição de objeto a, onde não é mais o outro, mas o lugar do Real enquanto implicado na construção fantasmática do sujeito em análise. A dor, avanço real, seria ainda uma afecção, uma inflamação narcisista impedindo o esquecimento e mantendo a lembrança. Mantendo "o que não quer ou não pode ser esquecido" presente, aceso. Conservação então de certas situações vivenciadas, de posições investidas anteriormente — mandatos, vínculos que não se pode e/ou não se quer largar e/ou deixar para trás. Representando o que não se quer perder. Gozo vivido, gozo do vivo, que resiste à imposição de uma barra. Corte Real no Imaginário do corpo, esquivando-se ao campo Simbólico. Avanço Real cortando o Imaginário, ainda fugindo do Simbólico, mas já impossível de ser evitado. Além da distração - prestar atenção em outra coisa — quando é possível, isto é, no caso da dor ir até um certo limite, e da sedação — por medicamentos e/ou drogas — quando a dor ultrapassa este limite, porque é tão difícil encontrar outros meios de estancar a dor? Por que a dor está sempre escapando ao nosso alcance? Por que tanta dificuldade de se atacar a dor de frente, com todas as nossas forças? O que faz a dor permanecer? E, quando conseguimos saná-la, por que é tão recorrente? O trabalho da dor é um longo trabalho para a análise. Se podemos suavizá-la por um momento ou mesmo dela nos distanciar, o seu retorno, sua repetição parece indicar que estamos lidando com uma "maneira de ser" do organismo, estrutura que diz algo para além da possível compreensão, para além do entendimento. A presença da dor representa a vida, enquanto força pulsional, mas também a morte — como se apontasse de forma crua para o limite da vida, portanto castração advinda do Real. Se a dor acompanha, temos que saber viver com ela sem que ela nos domine. Porque a dor tem força suficiente para nos matar em vida, nos tornando mortosvivos. Então, estrategicamente, temos que fazer da dor, se dela não podemos escapar, uma forma, mesmo paradoxal, da vida nos ensinar. "A dor deixa trilhamentos (Bahnungen) permanentes atrás de si" , nos diz Freud no "Projeto". A dor enquanto trilhamento é manifestação da pulsão sexual, mas também da pulsão de morte. Caminho necessário do possível no campo do impossível. Nosso "instinto assassino" porque a dor é assassina, como qualquer caminho, como Édipo nos ensinou. Nosso querer insistente em nos matar e também em matar algo em nós. Só assim produzindo alternativas, criando veredas em meio obscuro, desconhecido. Muitas vezes levando ao erro, poucas vezes acertando. SOBRE A EXPERIÊNCIA DE DOR 21 A dor, repete Freud em "Além do princípio do prazer", "impede a neurose"8 e, consequentemente, alguma elaboração possível para o indivíduo. A dor "bloqueia" a angústia no sentido de ser um sofrer concreto do organismo, presença não do objeto a, mas presença da ferida aberta de um qualquer objeto arrancado sem anestesia. Quase como um corte no perverso. Talvez uma separação do Outro perverso. E, a partir daí, resistência ao trabalho de luto por esta perda. Mas a dor é inibição, enquanto um não poder dizer, uma mudez desesperada. E sintoma como expressão de que algo não funciona, não está dando certo. Num mais além da conta, "do que se pode contar". i Amarração do Real enlaçando os três registros, e portanto presença de nó. Momento nodal contingente onde o indivíduo está frente a decisão de ir ou não adiante. Problema crucial da análise em que o recuso ao acting-out é freqüente, quando não se passa ao ato precipitadamente. Zona de perigo, em que todo um trabalho anterior pode ser desconsiderado. E cuja conclusão dependerá de como lidar com este nó. Cioran fala da "experiência da fatalidade", de uma "hierarquia de perplexidades", do "horror de ser apenas uma alma dentro de" um organismo que vai envelhecendo depressa9. A dor expressa arrependimento, remorso e sentimento de culpa. Sinal que "desmascara a irrealidade do mundo exterior.9" O corpo, invólucro do real, abriga o grito do indivíduo frente a este real. Este grito é a dor. 2. Em "Além do princípio do prazer", Freud diz que "existe na alma uma forte tendência no sentido do princípio de prazer, embora esta tendência seja contrariada por forças e circunstâncias, de maneira que o resultado final talvez nem sempre se mostre em harmonia com esta tendência"10. Que "as pulsões sexuais são difíceis de 'educar', e que partindo dessas pulsões, ou do próprio eu, o princípio do prazer com freqüência consegue vencer o princípio de realidade, em detrimento do organismo como um todo"1 *. E que "há um processo pelo qual o recalque transforma uma possibilidade de prazer numa fonte de desprazer"12. O fato é que "não se pode recordar a totalidade do que se acha recalcado, e o que não se é possível recordar, se é obrigado a repetir como se fosse uma experiência contemporânea"13.0 indivíduo é então obrigado "a reexperimentar alguma parte esquecida de sua vida"14. É a 'compulsão à repetição' "que deve ser atribuída ao recalcado inconsciente e que busca evitar o desprazer que seria produzido pela liberação do recalcado. O esforço é no sentido de conseguir a tolerância do desprazer pôr um apelo de realidade" . 22 100 ANOS DE PROJETO FREUDIANO A dor seria justamente um anteparo a esta situação. Em sofrimento, o indivíduo está incapaz de suportar o desprazer que permitiria o caminho no sentido do princípio de realidade. O Real — como tantas vezes — se apresenta antes da questão. A dor 'literalmente' incapacita o indivíduo de andar em direção ao desprazer da recordação, de sua elaboração. Voltando ao texto freudiano, aprendemos que a "vida sexual infantil está condenada à extinção." E que isso se dá em "aflitivas circunstâncias e com acompanhamento dos mais penosos sentimentos. A perda do amor e o fracasso deixam atrás de si um 'dano permanente' à auto-consideração, sob a forma de uma 'cicatriz narcisista'. São repetidas situações indesejadas e emoções penosas de desprezo, ciúme, etc. Experiências repetidas sob a pressão da compulsão, muitas vezes junto à negação de um comportamento ativo por parte do indivíduo, que não cessa de afirmar sua inocência". Desde o "Projeto", Freud vem colocando que são "traumáticas quaisquer excitações provindas do exterior que sejam 'significantemente' poderosas para atravessar o escudo protetor da vesícula viva. O conceito de trauma implica uma ruptura numa barreira protetora, sob outros aspectos, eficaz contra os estímulos." Frente ao trauma são colocadas "em movimento todas as medidas defensivas 'possíveis'. Ao mesmo tempo, o princípio de prazer é momentaneamente posto fora de ação. Surge o problema de dominar estas quantidades que irromperam, e vinculá-las no sentido psíquico, a fim de que delas se possa então desvencilhar. "O desprazer específico do "sofrimento físico" provavelmente resulta de que o escudo protetor tenha sido atravessado numa área limitada. Todos os outros sistemas são empobrecidos, de maneira que as funções psíquicas remanescentes são grandemente paralisadas ou reduzidas. O sistema deve ser capaz de receber um influxo adicional de energia nova e convertê-la em investimento em repouso, isto é, de vinculá-lo psiquicamente." Dependendo desta capacidade, graves podem ser "as conseqüências da ruptura no escudo protetor contra estímulos. Estamos frente ao 'caráter paralisante do sofrimento' e o empobrecimento de todos os outros sistemas"17. Mais adiante, Freud faz uma articulação muito importante entre dor e neurose. "Um grande dano físico causado simultaneamente pelo trauma diminui as possibilidades de que uma neurose se desenvolva. A "falta de preparação para a angústia" tem um efeito traumático; e o dano físico simultâneo, exige um hiperinvestimento narcisista do órgão prejudicado. É sabido que distúrbios graves na distribuição da libido, tal como a melancolia, são temporariamente interrompidos por uma moléstia orgânica intercorrente"1 . Quer dizer, a dor impede a neurose. A dor bloqueia a neurose que, como já frisamos acima, não deixa de ser uma possibilidade de elaboração. Com dor, o indivíduo fica paralisado; com neurose, pode até fazer análise. SOBRE A EXPERIÊNCIA DE DOR 23 Quase no final do texto — ainda "Além do princípio do prazer" — Freud faz uma observação importante sobre o recalque. "Aquilo que numa minoria de indivíduos humanos parece ser um impulso incansável no sentido de maior perfeição, pode ser facilmente compreendido como resultado do 'recalque pulsional' em que se baseia tudo o que é mais precioso na civilização humana - (realização intelectual, sublimação ética, etc.)" 9. Então perguntamos: seria a dor uma dificuldade, uma falha neste recalque? Seria a dor uma expressão não-elaborada, não-sublimada do mal estar na civilização? 2.1 Instados pelo "Projeto" para falar da dor, gostaríamos ainda de nos referir a outro texto "O problema econômico do masoquismo". Entendemos que a dor seria um masoquismo da carne, masoquismo não-simbolizado, exibição silenciosa ou mesmo ruidosa do masoquismo. A dor que não passa é confirmação de que o grito, o masoquismo são estruturantes. Paradoxalmente, concordância e manifestação de revolta da estrutura. Indicação precisa dos pontos erogeneizados pela história do sujeito em questão. A topografia da dor é a topografia do sujeito, por exemplo, a dor nas articulações aponta o inarticulável, a dor no estômago o indigerível, etc. A dor seria portanto uma forma "dolorosa" do indivíduo se reconhecer e de admitir a pulsão de morte. Do não preenchimento do vazio, portanto aceitação da ausência, da falta Equação do conceito de sexualidade e da hipótese do narcisismo, enquanto masoquismo e 'ferida narcísica'. Façamos, então, o percurso neste texto de Freud. "Quando dor e desprazer não são mais sinais de alarme, mas podem ser alvos em si mesmo, o princípio de prazer é paralizado, o vigia da nossa vida anímica narcotizado"20. O masoquismo se apresenta sob três configurações: como uma condição da excitação sexual, como a expressão de ser feminino e como uma norma do comportamento vital - respectivamente, um masoquismo erógeno, feminino e moral"21. (O que lembra aquela frase enigmática do "Projeto" de que "o desamparo dos seres humanos é a fonte primordial de todos os motivos morais"22.) "O primeiro, o masoquismo erógeno, o prazer da "dor"... O terceiro, como sentimento de culpa, inconsciente. O masoquismo feminino, conhecemos a partir das fantasias masoquistas, cujo conteúdo manifesto supõe as mais variadas atrocidades"23. "Fantasias que transportam a pessoa a uma situação característica da feminilidade, expressando também um sentimento de culpa, que supõe ter cometido algo criminoso (mesmo sendo deixado indeterminado), mas que deve ser punido através de todos os procedimentos dolorosos e torturantes. O masoquismo feminino baseia-se sobre o primário, erógeno, o prazer da dor"23. "Após a parte principal da pulsão de morte — pulsão de destruição, pulsão de domínio, vontade de poder — ter sido transposta para o exterior sobre os 24 100 ANOS DE PROJETO FREUDIANO objetos, permanece como seu resíduo, no interior, o masoquismo erógeno, que tem o próprio ser como objeto. Masoquismo que seria testemunho e resto do amálgama da pulsão de morte e Eros" . No masoquismo moral, foi afrouxada sua relação com a sexualidade. (Aqui) o próprio "sofrimento" é o que importa, podendo ser causado por poderes ou circunstâncias impessoais. O sofrimento que a neurose traz consigo é o que a torna valiosa para a tendência masoquista. Uma forma de sofrimento pode ser substituída por outra e só importa poder conservar uma certa quantia de sofrimento. No masoquismo moral, portanto, há uma necessidade que é satisfeita através de castigo e sofrimento. Podemos então dizer que a dor é um problema econômico, também podendo ser considerada como masoquismo. E terminamos com Lacan em "Kant com Sade": "...a dor tem, como o prazer, seu termo: é o esvanecimento do sujeito"25. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 1. LACAN, J. "De nossos antecedentes" in Écrits, Paris, Éditions du Seuil, 1966, p.69. 2. "Subversão do sujeito e dialética do desejo no inconsciente freudiano" in op.cit, p.822. 3. "A psicanálise e seu ensino" in op.cit, p.439. 4. "O Seminário sobre 'A Carta Roubada" in op.cit., esquema L, p.53 5. "De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose", (1956) in op.cit, esquema L p.548, esquema R p.553. 6. "A coisa freudiana ou sentido do retomo a Freud em psicanálise" (1955) in op.cit, p.430. 7. FREUD, S. "Projeto para uma psicologia",(1895) in "Edição Standart das Obras Completas", v.l, Rio, Imago, 1976, p.409. 8. "Além do princípio de prazer", (1920) in op.cit, v.XVIII, ibidem, p. 46-47, 49-50. 9. CIORAN, E.M. "Silogismos da Amargura", (1952), Rio, Ed. Rocco Ltda., 1991, p.21-22, 24 e 27. 10. FREUD, S. "Além do princípio do prazer", (1920), in op.cit, ibidem, p.20. 11. Ibidem, p.21 12. Ibidem 13. Ibidem, p.31 14. Ibidem, p.32-33 15. Ibidem 16. ibidem, p.32-36 17. Ibidem, p.42-46 18. Ibidem, p.49-50 20. Freud, S., "O problema econômico do masoquismo", (1924), tradução de E.Vidal in Pulsão e Cozo - Revista da Letra Freudiana, Escola, Psicanálise e Transmissão, Rio, 1992, p. 119. 21. Ibidem, p.121. 22. FREUD, S., "Projeto para uma psicologia", (1895) in op.cit, p.422. SOBRE A EXPERIÊNCIA DE DOR 25 23. "O problema econômico do masoquismo", (1924) in op.cit., p.121 e 123. 24. Ibidem, p.125. 25. LACAN, J. "Kant com Sade", in op.cit, p.774. BIBLIOGRAFIA BARRETO, M.LB. Resumo de oito aulas sonbre o "Projeto", abril/junho de 1989, da Letra Freudiana, no Seminário "O eu na teoria de Freud", não publicado. "Além do princípio de prazer, a repetição", in op.cit., FREUD, S. "Entwurf einer Psychologie" in Aus den Anfagen der Psychoanalyse, Londres, Imago, 1950. "Jenseits des Lustprinzips" in Gesammelte Werke, Band XIII, Frankfurt, S.Fischer Verlag, 1978. VIDAL, E. "Masoquismo originário: ser de objeto e semblante" in Revista op.cit. O Ego no Projeto e o Problema da Ligação Octávio de Souza Para a comemoração dos 100 anos do "Projeto para uma psicologia científica", escolhi abordar algumas reflexões sobre a concepção de ego tal como formulada por Freud neste texto que festejamos. Antes de abordar a questão do ego, ou do eu, no "Projeto", gostaria de fazer algumas observações a respeito do entrelaçamento de conceitos psicanalíticos com significações da língua corrente, entrelaçamento este que, quando é o eu que está em jogo, ganha um contorno que pode ser útil realçar. É de se notar que quando se refere ao inconsciente, por exemplo, Freud toma todos os cuidados necessários para distinguir com rigor o emprego do termo em sua versão popular do emprego do termo em sua concepção psicanalítica. Vocês certamente se lembram das primeiras páginas do artigo metapsicológico sobre "O inconsciente", quando se trata de distinguir o inconsciente em seu sentido descritivo, do inconsciente em seu sentido dinâmico. O mesmo cuidado observamos quando se trata de definir o que a psicanálise entende por sexualidade, conceito muito mais amplo para a psicanálise do que o senso comum está disposto a admitir, pelo menos o senso comum da época em que a psicanálise surgiu. Inconsciente e sexualidade são apenas exemplos, que tomo ao acaso, de cuidados de distinção entre conceito e senso comum, que podemos encontrar a cada passo da teorização psicanalítica. Já quando se refere ao eu, e é isso que quero destacar, tais cuidados não parecem preocupar Freud além de uma certa medida. Na Conferência XXXI das "Novas conferências introdutórias" sobre a psicanálise, por exemplo, defendendo-se da acusação de pan-sexualismo feita contra a psicanálise, e explicando as razões que levaram a psicanálise a estudar em primeiro lugar as 27 28 100ANOS DE PROJETO FREUDIANO pulsões sexuais e o recalcado, deixando para uma etapa posterior o estudo mais detalhado do eu, Freud diz o seguinte: Desde o início dissemos que os seres humanos adoecem devido a um conflito entre as exigências da vida pulsional e as resistências que neles surgem contra ela; e nem por um momento esquecemos essa agência resistente, repulsora, recalcante (...) que coincide com o eu da psicologia popular.1 Ou ainda um pouco mais adiante, referindo-se à sua proposta de destacar do eu a sua consciência crítica, descrevendo-a como a instância diferenciada do superego: Eu agora estou preparado para escutá-los me perguntando desdenhosamente se a nossa psicologia do ego não faz mais do que tomar, literalmente, e no sentido mais ingênuo, abstrações comumente usadas, transformando conceitos em coisas. A isto, eu responderia que na psicologia do ego é difícil escapar do que é universalmente conhecido; tratar-se-á, muito mais do que de novas descobertas, de novas maneiras de olhar as coisas e de novas maneiras de arranjá-las. Daí podemos afirmar que, por mais convencido que estivesse sobre as surpreendentes novidades que a psicanálise traria sobre o eu, para Freud não havia nenhum problema, muito pelo contrário, em confundir o eu enquanto conceito analítico com o eu enquanto noção popular. Tanto a psicanálise quanto o senso comum, quando falam do eu, se referem à mesma coisa, mesmo que possam manifestar pontos de vista diametralmente opostos sobre a sua constituição, sobre sua função ou sobre seu estatuto moral. Para Lacan, quero arriscar, as coisas também parecem se apresentar mais ou menos do mesmo modo. Por mais inesperadas que sejam suas concepções sobre a formação do eu a partir de sua elaboração do estádio do espelho, por mais contrária ao senso comum que seja sua afirmação do eu como função de desconhecimento, Lacan, quando fala do eu, fala do mesmo eu que cada um considera como eu. A respeito do eu, portanto, não há confusão a ser desfeita quanto ao referente, quanto à coisa de que se está falando. Somente uma radical mudança de juízo quanto à sua função e ao seu valor: onde o senso comum acreditava encontrar certeza e unidade, a psicanálise denuncia ilusão e divisão. Não se trata de corte ou descontinuidade em relação à concepção tradicional do eu, somente de acréscimos e, em conseqüência destes mesmos acréscimos, de mudança na avaliação do seu valor funcional. Assim, no Seminário II, podia-se ouvir Lacan dizer: [o eu na teoria freudiana] Não é uma noção que se identifique ao eu da teoria clássica tradicional, embora ela a prolongue — mas, em razão do que ela acrescenta, o eu toma, na perspectiva freudiana, um valor funcional completamente diferente.3 Se alguma diferença podemos encontrar entre Freud e Lacan no recorte da coisa que é o eu, essa diferença se deve à preocupação de Lacan, patente do início O ECO NO PROJETO E O PROBLEMA DA LIGAÇÃO 29 ao fim do seu ensino, em demonstrar a inserção da psicanálise na história da formação da subjetividade moderna. Deste modo, ainda no Seminário II, Lacan prossegue dizendo que: O homem contemporâneo tem uma certa idéia de si mesmo que se situa num nível meio-ingênuo, meio-elaborado. A crença que ele tem de ser constituído assim e assado participa de um certo meio ambiente de noções difusas, culturalmente admitidas. Ele pode imaginar que ela é devida a uma tendência natural, ao passo que de fato ela lhe é ensinada, por todos os lados, pelo estado atual da civilização. Minha tese é a de que a técnica de Freud, em sua origem, transcende essa ilusão que, concretamente, tem uma eficácia efetiva sobre a subjetividade dos indivíduos. Na seqüência da mesma lição, após comentar, a propósito da linguagem, a impossibilidade de pensar o momento anterior ao surgimento da linguagem sem o emprego das próprias categorias da linguagem, Lacan prolonga seu raciocínio, desta vez referindo-se à noção do eu: Do mesmo modo, nós não podemos mais pensar sem esse registro do eu que adquirimos no curso da história, (...). Sendo assim, parece-nos que Sócrates e seus interlocutores deveriam, como nós, ter uma noção implícita dessa função central, que o eu deveria exercer neles mesmos uma função análoga à função que ele ocupa tanto em nossas reflexões teóricas, quanto na apreensão espontânea que temos de nossos pensamentos, de nossas tendências, de nossos desejos, (...). É muito difícil pensarmos que toda essa psicologia não é eterna. Será que é assim mesmo? A questão merece ao menos ser colocada. Colocá-la nos incita a olhar de mais perto, para ver se não há um certo momento no qual essa noção do eu deixa-se ser percebida em seu estado nascente.5 Este momento do nascimento da noção do eu é datado por Lacan no cogito cartesiano, ou seja, no surgimento do discurso científico, marca de uma profunda modificação na concepção que os homens fazem da verdade em sua relação com a tradição e o saber. Portanto, se quisermos destacar alguma diferença entre as concepções de Freud e de Lacan referentes ao eu, não podemos deixar de levar em consideração o peso atribuído por Lacan ao valor cultural do eu, valor esse que, embora não se possa afirmar ausente em Freud, se encontra dissolvido pela linguagem cientificista de suas construções metapsicológicas. O peso atribuído por Lacan ao valor cultural do eu, como fica implícito na referência ao cogito cartesiano, é correlativo da radical reavaliação da relação entre ciência e psicanálise que opera no retorno à Freud de Lacan. É, aliás, na divergência sobre o estatuto ético da ciência que podemos encontrar a racionalidade da maior parte dos deslocamentos de ênfase que o ensino de Lacan impõe ao conjunto conceituai da obra de Freud. Se para Freud a psicanálise existe como ciência; para Lacan a psicanálise não existe sem a ciência, na medida em que a considera uma resposta, sintomática, à perda, decorrente da emergência do discurso da ciência, de um certo estatuto da verdade na condição humana. 30 100 ANOS DE PROJETO FREUDIANO Manter no horizonte a divergência entre Freud e Lacan quanto aos desdobramentos éticos do discurso científico, não bastasse o próprio título do texto que nos reúne, "Projeto para uma psicologia científica", é de fundamental importância para a compreensão do que tenho a lhes dizer. Por ora irei me restringir a tecer algumas comparações entre, por um lado, o mecanismo da ligação tal como se apresenta na obra de Freud, particularmente no Projeto onde aparece como função tributária do ego e, por outro lado, alguns temas desenvolvidos por Lacan, que, ao meu ver, se avizinham do conceito de ligação freudiano. Esse pequeno esboço comparativo que lhes apresento é o início de uma pesquisa mais ampla que visa estabelecer um mapeamento dos destinos, na teoria do sujeito em Lacan, das funções por Freud atribuídas ao ego. Essa pesquisa parte do pressuposto que o ego é um dos conceitos psicanalíticos que mais sofreu deslocamentos na leitura de Freud por Lacan. Para não ficar sozinho nessa afirmação que, à primeira vista, pode ser encarada como polêmica, cito, de Moustapha Safouan, a seguinte passagem: No "Esboço da Psicanálise", seu testamento teórico, Freud deixou da técnica psicanalítica uma apresentação da qual seria ir contra a evidência negar que é a ela mesma que permaneceram fiéis sua filha, Anna Freud, e os três protagonistas da ego psychology, Hartmann, Kris e Loewenstein. Creio ser desnecessário lembrar o quanto esta apresentação da técnica psicanalítica, incluída no referido testamento teórico de Freud, é tributária de uma concepção de Lacan, esta última construída a partir da ênfase na teoria do narcisismo. No entanto, quero acrescentar, para evitar mal-entendidos, que a perspectiva dessa pesquisa, da qual lhes apresento o início, não é a de corrigir Lacan, numa visada epistêmico-universitária, denunciando as distorções que operou em relação à teoria de Freud. Sua perspectiva, pelo contrário, é a de procurar a razão dos deslocamentos operados nas funções do ego por Lacan em sua necessidade de relançar a radicalidade das descobertas da psicanálise, numa época em que as esperanças iluministas, que encontramos no nascedouro da psicanálise, se viram desmanteladas pelos efeitos tardios apenas vislumbrados por Freud do desenvolvimento da técnica. Todos os comentários de Lacan a respeito das relações entre o discurso da ciência e o totalitarismo, disto dão testemunho. Feitas essas observações, passemos ao exame substantivo do ego noprojeto e do problema da ligação na obra de Freud. No 'Projeto", ao ego é atribuída, fundamentalmente, a função de inibir ou de ligar a energia livre do processo primário, transformando-o em processo secundário, equivalente, neste texto, à atividade do pensamento. Já nesse ponto, cabe observar uma diferença em relação às elaborações posteriores de Freud, tais como podemos encontrar no capítulo VII da "Interpre- O EGO NO PROJETO E O PROBLEMA DA LIGAÇÃO 31 tação dos Sonhos", por exemplo. No "Projeto", a função do pensamento não é atribuída ao processo primário. Embora já se refira à realização de desejo no âmbito purificado do processo primário. Esse fato, contudo, não nos obriga a afirmar a inexistência de pensamentos inconscientes no escopo do "Projeto", visto que o ego, sem o qual não há a atividade do pensamento, é definido como: a totalidade dos investimentos psi, num dado momento, na qual um componente permanente é distinguido de um componente em mutação. É fácil constatar que as facilitações entre os neurônios psi são parte das possessões do ego (...)7. Vemos, então, que o ego no "Projeto" se define como um sistema muito mais lábil do que será, posteriormente, o sistema pré-consciente sistema este concebido como uma localidade psíquica, distinta do inconsciente, cujos conteúdos são obtidos por tradução das representações do sistema inconsciente. No "Projeto", pelo contrário, o ego se justapõe, e mesmo engloba, a totalidade das facilitações que compõem os próprios caminhos do processo primário. Não é à toa que Lacan, em uma das passagens em que propõe uma nova tradução para o Wo Es war soll Ich weráen freudiano, dirá, numa referência explícita ao ego do "Projeto", que o Ich, nesse momento, é o que sempre foi na pluma de Freud, do princípio ao fim de sua obra: o sujeito do inconsciente, ou seja, a totalidade da cadeia significante. Retornemos à questão da ligação. A ligação da energia propiciada pelo ego fornece ao aparelho psíquico um critério para distinguir entre memória e percepção, ou seja, uma prova de realidade, mais tarde concebida como função do princípio de realidade. A ligação da energia se mostra de utilidade para o organismo, ou para o aparelho psíquico, em duas situações fundamentais, por Freud referidas como "estado desejante" e "reinvestimento de uma imagem mnêmica hostil". No primeiro caso, o do estado desejante, através da ligação da energia, evita-se a alucinação do objeto de satisfação, o que permite, à posteriori, a obtenção de uma indicação de qualidade que serve como critério de realidade. No caso do reinvestimento da imagem hostil, através da ligação da energia, evita-se a defesa primária, o que permite, à posteriori, a operação do critério de realidade. Nesse nível de funcionamento, a prova de realidade apenas permite que o organismo mame na presença de seio, procure o seio na sua ausência, fuja diante da presença do objeto hostil ou repouse na sua ausência. É importante ressaltar que a ligação de energia apenas permite que a prova de realidade seja obtida, mas não se confunde com ela. A questão que fica é a de se a função da ligação da energia se esgota no propiciamento das condições de funcionamento da prova de realidade. Como veremos, este não parece ser o caso, a menos que possamos entender nossa concepção de realidade para toda a realidade psíquica 32 100 ANOS DE PROJETO FREUDIANO A meu ver, o que muitas vezes atrapalha a consideração da importância da ligação da energia é o fato de que o ensino corrente da psicanálise privilegiou o evitamento da alucinação do objeto no estado desejante como o principal exemplo das vantagens da prova de realidade. No entanto, para o que diz respeito à prática psicanalítica, a situação do reinvestimento da imagem hostil, e a possibilidade do evitamento da defesa primária propiciado pela ligação da energia, é, sem dúvida alguma, muito mais importante em suas conseqüências. Todos sabemos que, em nossa prática, dificilmente nos vemos compelidos a evitar que o analisando alucine o seio, ou que se espatife contra as paredes por alucinar uma porta quando lhe acontece desejar veementemente sair às pressas do consultório do analista. O fato é que a prova de realidade não nos ajuda apenas a nos orientar em relação aos objetos do nosso meio ambiente. A prova de realidade não se restringe a possibilitar que a criança pare de alucinar o seio e vá até a geladeira buscar sua mamadeira. Brincadeiras à parte, esta mudança no comportamento de uma criança é de fundamental importância, visto que se apresenta como uma instância mínima daquilo que Freud chama de "ação específica". A defesa primária contra o reinvestimento de uma imagem hostil é um mecanismo do processo primário que faz com que a passagem de energia "pule" o neurônio correspondente à memória do objeto hostil, desinvestindo-o de energia. A ligação egóica tem por função permitir que a imagem hostil seja moderadamente investida de energia, sem que uma produção excessiva de desprazer ocorra. Trata-se de um processo inverso ao que ocorre no estado desejante, no qual, por mais que o desprazer decorra do investimento das possibilidades de percurso da energia através dos neurônios. O que o evitamento da defesa primária propicia não é a aquisição de um objeto de satisfação, mas a possibilidade de que uma memória possa ser revisitada pelo investimento enérgico. Neste caso, o que se ganha não é um objeto de satisfação, mas uma memória, ou, melhor dizendo, uma representação. Trata-se, em uma análise de uma ampliação do alcance do pensamento e, consequetemente, de uma ampliação do alcance da palavra. Para Freud, do início ao fim de sua obra, o princípio de realidade e a ligação da energia dizem respeito ao objetivo primeiro da análise: o levantamento do recalque. Sem isso em mente, sempre tenderemos, principalmente nós, lacanianos, a não avaliar em toda a sua extensão o que Freud quer dizer quando afirma, ao longo de toda sua obra, que a finalidade da análise é substituir o princípio do prazer pelo princípio da realidade. Retomemos o nosso raciocínio. No âmbito do "Projeto", Freud atribui ao ego duas funções aparentemente antagônicas: por um lado, o ego evita a defesa primária, por outro, ele é o agente da defesa patológica ou do recalque. No que se refere à defesa patológica, o problema que Freud se propõe a explicar é "o fato de que no caso de um processo egóico ocorram conseqüências que estamos acostumados apenas em relação aos processos primários . A explicação que ele O EGO NO PROJETO E O PROBLEMA DA LIGAÇÃO 33 fornece para o fato pode ser resumida do seguinte modo: o ego é surpreendido na medida em que sua atenção é normalmente voltada para a percepção, e não para a memória por uma memória que desencadeia um excesso de descarga sexual. A partir daí, a função egóica de ligação é colocada fora de ação. O ego passa a funcionar do mesmo modo que o processo psíquico primário, com a única diferença da produção suplementar de uma formação simbólica estável de caráter compulsivo. Sem nos determos nem nas complicações derivadas da diferenciação entre percepção e memória, nem no valor enunciativo que poderíamos atribuir à formação simbólica compulsiva, retenhamos apenas a questão da relação do ego com o excesso sexual. Para ir direto ao ponto, coloco a seguinte questão: qual o valor ético que podemos atribuir à fuga, ou ao rechaço, por parte do ego, do excesso sexual? Adianto minha resposta: é minha opinião que, neste caso, não podemos nos contentar em atribuir ao ego o papel de agente do recalcamento, se, por recalcamento, estivermos dispostos a compreender apenas o rechaço pelo "moi" do desejo inconsciente. Permitam-me fazer o papel de advogado de defesa do ego: o fato do ego se proteger contra o excesso de sexualidade da situação traumática não pode ser atribuído, simplesmente, à sua função de desconhecimento em relação ao desejo inconsciente. Se quiséssemos falar em sujeito desejante, ao invés de ego, seríamos obrigados a dizer que o sujeito desejante também se protege contra o excesso de sexualidade, na medida em que este excesso, no vocabulário de Lacan, se chama gozo, e que a função do desejo, como todos sabemos, não pode se exercer sem um certo afastamento do gozo. Esse afastamento do gozo é propiciado pelo ego do "Projeto" em duas etapas. Num primeiro momento, de modo patológico, pelo recalque. Num segundo momento, após um trabalho de rememoração, que não posso qualificar senão como analítico, pelo levantamento do recalque, levantamento este que não pode se efetivar de outra forma senão pelo evitamento da defesa primária, a qual, como vimos, só pode ser levada a efeito com o recurso do ego. É somente a partir daí que a representação traumática pode ingressar na atividade do pensamento, e, consequentemente, ser tocada pela palavra. O ego do "Projeto", para dizer de modo sucinto, é tanto o agente do recalque quanto o sujeito do inconsciente que pode vir a se enunciar como "je", tal como nos promete Lacan. O mecanismo da ligação da energia, como sabemos, é tratado por Freud, logo depois do "Projeto", como uma função exercida pelo pré-consciente sobre o inconsciente, pelo processo secundário sobre o processo primário, pelo princípio da realidade sobre o princípio do prazer. 34 100 ANOS DE PROJETO FREUDIANO Contudo, em 1920, em "Além do princípio do prazer", o processo de ligação é, por assim dizer, recuado. Passa a ser concebido como solidário da compulsão à repetição, atribuído ao próprio funcionamento do processo psíquico primário, independente de qualquer contribuição do ego, do pré-consciente, do princípio da realidade, e até mesmo do princípio do prazer. Nessa concepção, o mecanismo de ligação se torna pré-condição para o exercício do princípio do prazer, e podemos observar uma certa ruptura entre o processo psíquico primário e o princípio do prazer, até então, para todos os efeitos, estreitamente solidários. Parece ser esse nível de ligação que Lacan privilegia com sua lógica do significante, na medida em que lhe permite pensar processos enunciativos operando livremente no inconsciente, sem a necessidade da contraposição produtiva do ego, o qual restrito a uma função de desconhecimento. Acredito poder encontrar, em Lacan, redescrições do mecanismo de ligação, funcionando exclusivamente no nível do processo psíquico primário, em várias passagens do seu ensino. Uma delas é a que trata das duas operações lógicas da alienação e da separação, as quais desembocam na produção do sujeito desejante a partir do sujeito acéfalo da pulsão ou do sujeito purificado da linguagem. A mesma coisa se pode afirmar das passagens do SeminárioXVII, nas quais a incidência do Si sobre o S2 instaura a representação do sujeito por um significante privilegiado, o significante mestre, para todos os outros significantes da cadeia, enquanto que, num momento lógico anterior, Lacan afirma não existir nenhum significante privilegiado, um significante só operando pela sua diferença em relação a todos os outros significantes, o que faz com que, em suas palavras, nesse nível, o sujeito seja "representado, sem dúvida, mas também não representado. Nesse nível, algo permanece escondido em relação a esse mesmo significante"9. O problema para o qual quero chamar a atenção, é que todos esses mecanismos descritos por Lacan, nos quais julguei poder encontrar ressonâncias com o mecanismo de ligação freudiano operando exclusivamente no processo psíquico primário, são mecanismos de linguagem, e que, por isso mesmo, podem ser desencadeados sem a intervenção de qualquer ato de palavra. Onde, então, encontrar processos, em Lacan, que possam ser aproximados dos mecanismos de ligação tais quais definidos por Freud em relação ao ego, e que, portanto, se efetuam pelo intermédio da palavra? Creio que tais processos podem ser procurados na teoria da verdade de Lacan. Muito Lacan nos diz sobre a verdade. No artigo "L'étourdit", por exemplo, nos diz que a verdade é um dito, ao qual um dizer ex-siste10. Será que seria legítimo aproximar o dizer das operações lógicas da linguagem que vijem no Id, e reservar o dito da verdade para as condições de ligação atribuídas ao ego no "Projeto"? O EGO N O PROJETO E O PROBLEMA DA LIGAÇÃO 35 É claro que se levarmos em conta tudo o que Lacan pôde dizer sobre a verdade ao longo do seu ensino, seremos obrigados a concordar que a referência à teoria da verdade em Lacan, e referência nenhuma, são coisas quase que equivalentes. Tomo então o Seminário XVII com suas paradoxais afirmações a propósito da verdade. Apenas duas citações: Só há verdade a respeito do que esconde o desejo de sua falta.11 Nessa passagem, a verdade pode ser compreendida como desvelamento da falta constitutiva da castração. Agora uma outra passagem, do mesmo seminário: O amor pela verdade é o amor dessa fraqueza da qual nós levantamos o véu, é o amor disso que a verdade esconde, e que se chama a castração. Reviravolta na compreensão: agora a verdade é apresentada como velando a castração. Talvez seja a partir desta última citação que possamos compreender porque Lacan afirma que o amor pela verdade pôde levar um Sade a recusar essa mesma verdade, "caindo assim num sistema tão obviamente sintomático" A recomendação de reserva em relação ao amor pela verdade pode ser aproximada à recomendação de desconfiança em relação à ilusão de unidade do ego. O x da questão parece estar não na possibilidade de enunciar com este mesmo dito. Nas conferências que proferiu nos Estados Unidos, Lacan deixa entrever que o dito da verdade, do mesmo modo que o ego, pode se apresentar como uma totalidade enganosa: A verdade, diz-se como se pode, quer dizer, somente em parte. Mas do modo como ela se apresenta, ela se apresenta como um todo. E é aí que está a dificuldade: é que é necessário fazer com que quem está em análise se dê conta de que esta verdade não é toda, que ela não é verdadeira para todo mundo, que ela não é geral, que ela não vale para todos.14 Termino aqui, como se deve em todo início de pesquisa, com uma pergunta, a mais ingênua possível: Os paradoxos da verdade em Lacan não parecem rimar, nem que seja de longe, com os paradoxos do ego no "Projeto" e os paradoxos da ligação ao longo de toda obra de Freud? REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 1. FREUD, S., 2. 3. LACAN, ) . , Paris, 4. "The dissection of the psychal personality", Standart Edition, v.XXII: p.57. idem: p.60 Le moi dan Ia théorie de Freud et dans Ia technique de Ia psychanalyse: Editions du Seuil, 1978, p.23. idem:p.12. 36 100 ANOS DE PROJETO FREUDIANO 5. idem: p.14. 6. SAFOUAN, t e transferi et /e désir de 1'analyste: Paris, Editions du Seuil, p.76. 7. FREUD, S., "Project for a scientific psychology", Standart Editon, v,l: p.323. 8. ibidem: p.353. 9. LACAN, ]., L'envers de Ia psychanalyse: Paris, Editions du Seuil, 1991, p.101. 10. "Cest ainsi que le dit ne va pas sans dire. Mais se le dit se pose toujours en vérité, füt-ce à ne jamais dépasser un midit (comme je nVexprime), le dire ne s'y couple que d'y ex-sister, soit de n'être de Ia dit-mension de Ia vérité" (Lacan, Vétourdit", Scilicet4, p.8). 11. L'envers de Ia psychanalyse, p.69. 12. ibidem: p.58. 13. Uenvers de Ia psychanalyse: p.76. 14. "Conférences et entretiens dans des universités nord-americaines", Scilicet 6/7, p.43-44. A Imagem do Desejo Maria Elisabeth Timponi de Moura Destinado a elaborar um modelo de aparelho psíquico que preenchesse a lacuna da teoria freudiana frente à questão da separação do afeto de uma representação sexual e seu enlace com outra representação no sintoma, o "Projeto" acabou resultando num tratado sobre o desejo. Faz-se ruptura da Psicanálise com os demais campos do saber, na medida em que vincula o desejo se a uma divisão radical do aparelho psíquico. Essa divisão determina a radicalidade da divisão entre processo primário e processo secundário. Genialidade da intuição freudiana em relação a qual Lacan observa que ainda não apreendemos completamente a originalidade. Submetido ao princípio do prazer e "pura ficção teórica", a denominação de processo primário deve-se a sua localização no tempo, mas deve-se, sobretudo, por manter na relação com o processo secundário "uma função reguladora de maior importância e de maior capacidade funcional." Orientando-se basicamente pela busca da identidade de percepção, "o processo primário significa a presença do desejo em sua forma mais despedaçada."1 Asatisfação alucinatória é o elemento que vai distingui-lo enquanto produção específica do saber psicanalítico. Satisfação alucinatória que, no nível de suporte da constituição do humano, Das Ding, não fornece simplesmente satisfação mas fornece as "coordenadas de prazer". É o termo de referência que estará ali disponível, organizando não só a faculdade da percepção mas inaugurando cadeias de representação e ordenando uma busca em direção ao objeto. A linguagem é inventada no ponto de insuficiência do aparelho em diferenciar as percepções das imagens. Estreitamente vinculada aos restos da relação com o outro: imagem sonora, imagem verbal, neurônios motores, e aos estados de desejo (resíduos da experiência de satisfação e de dor), tem a função de distribuir as catexias de maneira tal que o aparelho se atenha ao princípio do prazer. Linguagem enquanto estrutura, entre percepção e consciência, fornecendo componentes aos trilhamentos e regulando os processos de descarga, colocando o princípio do prazer em movimento. 37 38 100 ANOS DE PROJETO FREUDIANO A originalidade do "Projeto" está em colocar nos trilhamentos o lugar em que o prazer é engendrado, colocando o princípio da realidade comprometido com os efeitos da parte não assimilável do aparelho psíquico. Referindo-se à propriedade do aparelho em barrar a quantidade que vem do exterior sustentando-o por uma quantidade psíquica Psi com o papel de crivo, Lacan situa o organismo assim como o mundo exterior como exteriores ao aparelho neurônico no 'Projeto". O significante opera uma transmutação daquilo que é da ordem do somático, da ordem da percepção, dos órgãos dos sentidos, num outro corpo que é o da linguagem, que o precede, e que, sustentando o sujeito, situará no outro a referência que indicará aos órgãos sua função. Na parte VII do artigo "O Inconsciente", de 1915 Freud vai constatar que a esquizofrenia exterioriza o que nas neuroses de transferência está no inconsciente. A impossibilidade de se reportar ao simbólico enquanto corpo resulta numa proliferação de significação em seu corpo físico. O sistema de percepção se interpõe desorganizando a estrutura das frases. O que o delírio de Schreber revela, pelas inúmeras figuras que invadem seu corpo físico, é a fragmentação em imagens que o outro pode assumir quando falta o elemento simbólico organizador. A imagem está situada nas margens da relação com o outro enquanto agente do simbólico e tem o estatuto de significante. Feita da associação do som do grito com "imagens motoras de movimentos da própria pessoa" reconduz a atenção para essas últimas, contornando assim o ponto de fratura da relação com o outro, garantindo a restituição do princípio do prazer. (Parte III - Projeto) É enquanto tal que ela participa da economia psíquica. Resgatando o termo Ebenbild usado por Freud no final da "Interpretação dos Sonhos", Lacan ressalta a dimensão invariável de uma imagem que se produz "logo à entrada no campo da linguagem, de um extremo a outro acompanhando sem variação a estruturação do desejo do sujeito"3. Trata-se de uma imagem fixa, sempre a mesma. Se Das Ding fornece as coordenadas do prazer, o recurso à fixidez de uma imagem introduz a dimensão de subjetividade ao princípio do prazer. Como ser falante, o recurso à fixidez da imagem como ponto limite, como sustentação no campo do desejo, só é possível no fantasma. A espefícidade do saber que o campo Psicanalítico instaura a partir da experiência clínica, traz a notícia de um desejo vinculado não a um objeto, mas a um fantasma. Sustentação provisória, e elemento de passagem quando o sujeito frente a perdas reais ou imaginárias perde "o valor do que o liga ao significante". A IMAGEM D O DESEJO 39 No esquema feito por Freud no "Projeto" sobre o caso Emma, a liberação sexual se liga por uma seta a um ponto que posteriormente será ocupado pelo fantasma. O que a "mentira histérica" do caso Emma revela é a presença do objeto a enquanto agente de um discurso indicativo de que "a liberação sexual não se vinculava ao atentado quando ele foi cometido"4. Tradução das pulsões parciais no contexto edípico por uma cena onde a figura do pai conjuga amor e espancamento, o fantasma fornece satisfação sexual ao sujeito. A experiência analítica mostra que a imagem da cena fantasmática pode se constituir em um bem; pode se apresentar para o sujeito como substância no nível do princípio do prazer. Duplamente lugar de revelação e de retenção na via do desejo impõe ao analista o dever ético de atravessá-lo. Articulação do discurso do analista como borda na antinomia entre desejo e gozo promovendo uma diferenciação entre imagem e percepção. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 1. LACAN, J., Le désir et ses interpretations, lição 4. Inédito. 2. FREUD, S., "Projeto para uma Psicologia Científica" in Obras Completas, livro XII, Rio, Imago Editora, 1975. 3. LACAN, ) . , Les non-dupes errent, sem.XXI, inédito. 4. FREUD, S., op. cit BIBLIOGRAFIA "Psicologia de los processos oníricos" in Obras Completas, Biblioteca Nueva, tercera edicion, cap.VII. LACAN, ]., A Ética da psicanálise, Rio, Jorge Zahar Ed., 1988. As psicoses, Rio, Jorge Zahar Ed., 1985. Proton pseudos Eduardo Alfonso Vidal O rascunho de 1895 — os editores o denominaram "Entwurf' — foi escrito para não ver a luz da publicação. No desejo de Freud suas anotações não seriam lidas a não ser por um único leitor e destinatário. Após um difícil trajeto o já batizado "Projeto" é publicado em 1950 com uma parte da correspondência — censurada — a Fliess. Inicia então outro percurso. Vamos nos ater àquele que o toma como texto fundamental para a formulação de uma ética da psicanálise. O "Projeto" é um texto que chamaremos de "originário" no sentido em que sua leitura, a-posteriori, permite estabelecer o traçado da construção freudiana do aparelho psíquico. Isto não implica na suposição de que a psicanálise já estava lá em 1895 numa visão iluminada de Freud. Só depois constatamos que Freud não se desviou da urgência de dar uma resposta articulada e sistemática às questões recorrentes da clínica da histeria que afunilavam-se no ponto do "atentado sexual". O substrato neuronal serve de suporte para escrever circuitos e relações entre elementos diferentes que são nomeados por letras cp, y, ca. Elas escrevem um aparelho sem substância feito de conexões e barreiras de contato em que o livre fluir das quantidades deve vencer uma magnitude de resistência. O sujeito que ali se prefigura não é o agente da série de processos que se realizam sem o saber. O aparelho freudiano está imerso na quantidade pura que o acossa desde o exterior. Ele deve realizar o trabalho primordial de distribuição desses investimentos energéticos nas vias de descarga. No entanto, as necessidades da vida impedem o escoamento total da quantidade. A descarga a zero será impedida e o aparelho se habituará a lidar com quantidades crescentes em seus circuitos. É o tempo do estabelecimento de Bahnungen — trilhamentos — decisivos na estruturação do sujeito. O trilhamento consiste numa cadeia articulada de elementos, uma via preferencial de marca da passagem da quantidade. O trilhamento supõe localização psíquica diferenciada, um mínimo de inibição no fluxo da quantidade e adiamento da descarga. O trilhamento introduz o nó da diferença e o tempo. O enodamento não é conatural ao aparelho e resulta de um ato que implica o Outro. O aparelho do "Projeto" opera no campo da linguagem e o Outro é determinante 41 42 100 ANOS DE PROJETO FREUDIANO de sua constituição. A experiência de satisfação é um trilhamento originário dessa ordem. Entre a urgência da necessidade e esse algo que possa satisfazê-la, intercala-se outro termo que articula o grito da criança a um Outro que o escuta. O Outro aporta com o alimento a palavra. Desse modo não há apenas satisfação da necessidade mas emergência do desejo. Esse complexo denominado "primeira experiência de satisfação" consiste em trilhamentos duradouros a serem reativados toda vez que a urgência ressurja e o objeto não esteja mais presente. Desde os primórdios o organismo humano, chamado à dimensão da palavra,é sensível ao que o Outro deseja além daquilo que lhe oferece. O estado desiderativo tende ao reencontro de uma satisfação que já terá sido. Ali o sujeito faz a experiência da falta inerente à satisfação; ali ele encontra o desejo do Outro. A orientação do sujeito é comandada pelo desejo que terá, a partir da formulação da "Interpretação dos sonhos" (1900), estatuto de indestrutível e inconsciente. Freud inscreve o desejo numa dimensão trágica — o destino humano é trilhado inexoravelmente por ele. O Outro é o lugar da palavra, do traço distintivo, da representação. O desejo é movimento incessante e aponta para outra coisa diferente da representação. Essa outra coisa é, no Outro, a Coisa O Outro, partido, não-todo traço é o lugar da Coisa. Das Ding, a coisa, é residual ao juízo e ao projeto freudiano em seu conjunto. Os poucos parágrafos no texto que se referem à coisa a aproximam, sem elucidá-la, ao modo do impossível: resto excluído do juízo, imutável, inassimilável, que permanece idêntico à coisa. Coisa soberana e impossível, o desejo no aparelho se funda à distância da coisa. Freud estabelece em 1895 a impossibilidade da coisa ser assimilada pela representação. No hiato que aí se abre faz emergência um desejo — não de reencontro pois a Coisa é impossível — sempre deslocado, vestido e revestido; não é isso, mas outra coisa. Esse hiato é o cerne do "Projeto" freudiano. Causa de desejo e também de recusa, o hiato é desconhecido, preenchido, apagado. A função do discurso é obturá-lo de algum modo. Proton pseudos é o nome de sua ocultação na histeria, como paradigma da neurose. Coube a Freud escutar a histérica desde esse outro lugar articulando os elementos recalcados de seu discurso para restituir ali a fenda aberta do inconsciente. Que a histérica funda a psicanálise, é hoje bem aceito. Pois bem, a operação freudiana consiste em articular a histérica num discurso em que o sintoma, chamado a dizer o que ele não sabe, venha a produzir esse sedimento de saber nomeado inconsciente. Enquanto o discurso médico olha impotente a cena que o transborda e o submerge no fracasso, Freud decide escutar o que a histérica tem a lhe dizer. Do encontro com o que a palavra não diz, engana, mente, nasce a psicanálise. Na segunda parte do "Entwurf', Freud sistematiza a experiência acumulada desde o encontro com Janet e seus trabalhos com Breuer até o tratamento pela palavra que inicia nos anos noventa do século XTX. jcprôxov \)/euôoÇ escreve Freud, primeira mentira, se lê na tradução do grego. O significante não PROTON PSEUDOS 43 se deixa capturar numa referência unívoca. Pseudos significa mentira e falsidade e também, erro e mentira, ditos sem intenção de mentir, para tranqüilizar. Na extensão, pseudos tem acepção de invenção poética e, na arte da guerra, uma ação disfarçada. O verbo vyeúôro significa enganar alguém na sua esperança ou expectativa; na voz passiva — ser enganado. Numa segunda acepção remete a convencer de erro ou de mentira, enganar no seu interesse, derivando-se mentir, dizer uma mentira. Ainda nesta acepção destaca-se o caráter de faltar a uma jura ou uma promessa. Em Plutarco, encontra-se o sentido de algo que parece ser e não é. Proton pseudos é o engano fundamental do sujeito na linguagem. O sujeito não encontrará jamais a verdade primeira ou toda. Há uma esperança do ser falante de que a palavra não minta. A histérica é uma inconformada com o engano da palavra e reivindica justiça: que nunca lhe mintam nem a tomem por mentirosa; isso ela não perdoa! Nesse ponto o discurso "científico" da medicina se atola ao atribuir à histérica intencionalidade de mentir. Coube à Freud inventar — a invenção poética se figura na palavra pseudos —, inventar um discurso que levasse a sério a palavra de alheamento do sujeito ao que determina seu sintoma, a sexualidade. Proton pseudos, a primeira mentira histérica, consiste na substituição integral da coisa pelo símbolo. A histeria é esse engano: desejo de fazer desaparecer a coisa, o apagamento de sua ex-sistência — nisso o recalque demonstra sua eficácia. A histérica é um laço social entre representações. Fundado sobre o recalque, esse discurso pretende esgotar-se na substituição, sem nada saber do que resta. Com Freud podemos reduzir esse laço a letras e escrever A/B onde A substitui B e o sujeito que emerge dessa equação perdeu qualquer enlace com a coisa. Freud ilustra a substituição com a figura do cavaleiro que se bate em duelo pela luva de sua dama e sabe que a importância da luva radica na relação à dama, o que não impede também venerar a dama e oferecer-lhe seus serviços de outras maneiras. A histérica que cai em prantos ou foge apavorada da cena por causa de A, não sabe da associação A-B e B perdeu para ela qualquer significação. Pretende tratar o real integralmente pelo simbólico, esquecendo o resto que se perde no que ela diz. Das Ding comanda a orientação subjetiva na escolha da neurose. Tudo se ordena para histérica numa radical aversão à coisa, enquanto evoca-se ali a insatisfação do primeiro objeto. O recalque se mostra eficaz ao cortar todo enlace que aproxime da coisa, e determinar um falso enlace "A é compulsiva, B é recalcada".1 Freud apresenta o caso de Emma para ilustrar o Proton pseudos. Como se estabelece a mentira em Emma? Na primeira cena relatada pela paciente (Cena I) Emma foge em pânico da loja ante o riso de dois jovens vendedores que zombam de seus vestidos (KJeider). Um deles a atraiu sexualmente. Estrutura-se a seguir 44 100 ANOS DE PROJETO FREUDIANO o sintoma de agorafobia. O trabalho analítico empreendido por Freud restabelece na palavra do sujeito os enlaces interrompidos pelo recalque. Os "falsos enlaces" (fabche Verknüpfungen) são quebrados. Libertadas do falso nó do recalque, as cadeias são rearticuladas de outro modo. Assim o riso (das Lachen) dos vendedores está no lugar do riso debochado (das Grinsen) do dono da confeitaria que beliscou seus genitais, através de seus vestidos (Kleider) na cena II, aos oito anos de idade. A cena I, relatada, reenvia à cena II, reconstruída. Todo o complexo (linhas de tracejadas) estava representado na consciência através da única representação "vestidos", evidentemente a mais inofensiva. Havia-se produzido aqui um recalque com formação de símbolo." (Der ganze komplex (gebrochene Linien) est im Bewusstsein vertreten durch die eine Vorstellung "Kleider", offenbar die harmloseste. Es ist hier eine Verdrangung mit Symbolbildung vorgefallen.)1 O atentado sexual o belisco nos genitais através dos vestidos não entra na consciência e sim apenas outro elemento em qualidade de símbolo, os vestidos. O significante allein, sozinha, indica o lugar do sujeito na cadeia; ela estava só... ante o Outro, ante o desejo fisgado no olhar de gozo. No intervalo entre as duas cenas Emma entra na puberdade e encontra uma abertura para novas possibilidades de gozo. O trauma não é o acontecimento pois Emma não experimenta angústia na cena com o dono da confeitaria. Só há trauma quando o sujeito acede ao gozo experimentado no seu corpo no tempo do desencadeamento sexual. Freud reconhece que a sexualidade humana é defasada. O "antes" sem significação do atentado sexual demanda outro acontecimento que sela o trauma, nachtrâglich , só depois. O sujeito se determina nesse intervalo como divisão no gozo. A angústia emerge ante a excessiva proximidade do "objeto" caído da divisão subjetiva. Protonpseudos é uma configuração significante de falso enlace, que implica uma escansão temporal, o hiato em que o sujeito se depara com o desejo do Outro. O Outro — pré-histórico e imemorial — está no cerne da relação da histérica — de insatisfação — ao desejo. A histérica engana, se engana, em relação a esse desejo que ela pretende seja purificado do gozo. A Coisa seria inteiramente substituída pelo símbolo e o desejo deslizaria infinitamente de uma representação à outra. Porém a Coisa não se deixa substituir inteiramente e há retornos. Uma parte desse gozo execrável retorna, no riso e no olhar, apesar de banido pela representação. O afeto sinaliza a proximidade da Coisa. Ele é quantidade, intensidade à espera de qualquer representação que lhe sirva de apoio. O afeto não é sentimento nem emoção, ele "afeta" o corpo na angústia indicando que algo não anda bem no Proton pseudos. Pois se a angústia não engana ao assinalar a incidência do desejo que provém do Outro, o afeto deslizante entre as representações colabora com sua intensidade para selar o engano do sujeito: o pranto ante representação — A, excessivamente intensa, serve para mascarar B, recalcada. PROTON PSEUDOS 45 Um salto de quase cem anos: a conferência de Lacan sobre a histeria em 26 de fevereiro de 1977 em Bruxelas. Proton pseudos, diz Lacan, é a escroqueria2, termo que "inventamos" em português como misto de escroque e histeria. Nesses cem anos de Projeto freudiano muito se disse e se escreveu da tna psicanálise. A histérica constituía no final do século passado um laço social que não se limitava a eficácia de seus sintomas. Relações de saber, de amor e de ciência se ordenavam em torno da histérica. Foi ela quem "soprou" a Freud a psicanálise, na medida em que ele soube escutá-la, isto é, constituir o discurso que estabeleceu a relação entre as palavras e a sexualidade. O mais surpreendente foi constatar que o sintoma histérico se apresentava como uma densa trama simbólica e se dissolvia junto com as palavras ditas. Freud pensou que se tratava da representação, die Vorstellung, e a localizara no cerne do inconsciente iniciando uma série de equívocos e erros. O que a histérica dizia eram palavras "inconscientes" que não guardavam relação nenhuma com a representação. Ao postular que o inconsciente é estruturado como uma linguagem, Lacan o resgata da dependência da representação. A sua materialidade é o significante. A primazia da representação produz o desconhecimento sistemático do real e a prática psicanalítica não se diferencia da histeria estabelecendo com ela uma colaboração cúmplice de rejeição da coisa. O tão difundido mito edipiano não teria constituído um velamento do enigma da sexualidade da histérica? De que serviria a Dora o saber sobre amor ao pai quando sua questão estava em outro lugar, o desejo do Outro causado por uma mulher. Poderia advir algo novo dessa referência constante ao pai cujo desejo a histérica se esforça em sustentar com seu sintoma? Ahisteria freudiana encontra no amor ao pai o rochedo que faz obstáculo à pergunta por um gozo não-todo fálico. O discurso da histérica, baseado no laço social da identificação, inventa o semblante. Como semblante do que causa seu discurso a histérica mostra sua divisão do sujeito encarnada no sintoma. O semblante — sem sua referência não é pensável a articulação do discurso — designa, pois, a função da verdade. Que a divisão do sujeito venha como semblante de agente vela a verdade em que se sustenta o discurso da histérica: o a-mais de gozo que, sob a barra, anima seu sintoma. Precisamente porque ela faz copular o semblante e o falo. O gozo sexual encontra no falo o significante e o termo que permite sua conjugação ao semblante. A verdade do gozo da histérica radica na crença no falo como sendo o único termo possível de causar seu gozo por ser o "objeto" privilegiado que não a enganaria. Fazer o homem é seu modo de sustentar o semblante fálico deixando intacta a questão enigmática da sexualidade feminina. Que as psicanalistas mulheres não tenham, nesse século, avançado na direção de desvelar o ponto crucial do gozo da mulher não só revela a pregnância do semblante fálico no discurso mas os benefícios derivados de sua manutenção. Verifica-se sua incidência no teatro e nas roupagens que vestem a cena: a "primeira mentira" de Emma encontra no significante Kleider — vestidos — um suporte para o recobrimento da falta introduzida pelo desejo do Outro. Pois o que há entre a vestimenta e o corpo não é outra coisa senão o 46 100 ANOS DE PROJETO FREUDIANO objeto inapreensível e fugidio, incomensurável ao significante. A afinidade que ele mantém com a vestimenta faz suspeitar que detrás da aparência não há nada. É o lugar do pudor e do púbis que só como velado se faz público. A função do veu é tributária da castração e o seu levantamento demonstraria que ali, no lugar do Outro, há nada. O estatuto do objetos deve ser interrogado a partir da função do semblante no discurso. A histérica faz troca e trucagem, esperando que o falo recubra integralmente o gozo e ela não tenha que saber nada além disso. Que a histérica "ditasse" a Freud o mito do Édipo não ocultaria o que seu gozo deve ao falo e a castração... de seu parceiro, o que lhe permitiria restar longamente na insatisfação? A um século das primeiras histéricas, o laço social que elas constituíam foi substituído pela "doidera psicanalítica"2: basta deparar-se com a banalização das noções freudianas que configura essa babel da psicanálise no século. Desarticulados e recalcados os conceitos fundamentais, assistimos ao ressurgimento da função do preconceito que rejeita a alienação essencial do sujeito no significante e no gozo. Não há de surpreender que aquilo rejeitado retorne nas formas mais refinadas de segregação de gozo. É do analista considerar a "escroqueria" de sua prática ao menos no que se refere ao real como ponto de fuga do discurso. Existiria, nesse horizonte, a hipótese de um discurso que não seria do semblante? Para o analista, não todo o semblante é fálico; haveria, pois, disjunção entre semblante e falo. O discurso analítico estaria à escuta de um discurso que não seria do semblante, ali onde se marca o limite imposto no discurso pela relação sexual. A invenção do inconsciente, como meio-dito da estrutura de linguagem, apresenta o gozo como efeito de discurso. "O inconsciente não faz semblante. E o desejo do Outro não é um querer falho" , diz Lacan. O inconsciente é um saber que consiste no ciframento. E no ciframento, para além de qualquer utilidade, está o gozo sexual fazendo obstáculo a que essa parte do real, a relação sexual, possa se escrever. O analista é encarnado por um semblante dessa abjeção que é o objeto a. O silêncio do analista corresponde ao semblante do objeto e leva o inconsciente produzir mais-de-gozar. O analista, na medida em que é um dejeto do dizer, intervém ao nível do inconsciente. Há chance, então, de disjunção e ruptura do semblante não sem que se evoque o gozo como efeito de escritura, uma sulcagem operada no real. É do discurso analítico manter, nos discursos existentes, a hiância aberta por Freud, o inconsciente como um saber que aproxime um pouco mais do real. REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS 1. FREUD, S. "Entwurf einer Psychologie" - 1895 - London, Imago Publishing Co., LTD, London. PROTON PSEUDOS 47 2. LACAN, }., Propôs sur l'hystérie. Conferência pronunciada em Bruxelas em 26 de fevereiro de 1977. 3. "Discours prononcé le 6 décembre 1967 à I'EFP". in Scilicet 2/3, Paris, Seuil. Tradução in publicação da Escola Letra Freudiana n°0'. BIBLIOGRAFIA LACAN,)., Le Séminaire livre VII -UEthique de Ia Psychanalyse, Paris, Seuil. Le Séminaire livre XVII- UEnvers de Ia Psychanalyse, Paris, Seuil. Séminaire 18- D'un discours qui ne serait pas du semblant, inédito. Séminaire 21- Les non-dupes-errent, inédito. "Lituraterre", in Ornicar41. Paris, Navarin. Véveil du printemps", in Ornicar 39. Paris, Navarin. "Introdution à Tédition allemande d'un premier volume des Écrits" Scilicet 5, Paris, Seuil. "Conférences et entretiens dans des universités nord-américaines". Scilicet 6/7. Paris, Seiul. A Boa Lógica do Erro Ana Maria Portugal Maia Saliba Analista é um sujeito que partindo de premissas falsas consegue chegar a conclusões perfeitamente equivocadas Millôr1 O erro se destaca entre os fenômenos descritos por Freud, em 1901, na Tsicopatologia da Vida Cotidiana"2, como caracterizado por não ser reconhecido como tal pelo sujeito. Este lhe dá valor de verdade, lhe dá crédito e não o toma como lembrança falsa ou algo equivocado, ao contrário dos outros lapsos, que trazem todos a dimensão de falha, de tropeço. Frente ao erro, o sujeito não se mostra dividido. Até na escrita, o tesouro da língua alemã registra o erro, Irrtum, com radical distinto dos outros fenômenos de lapsos, compostos todos com o prefixo ver, de origem germânica: versprechen, verhòren, verlesen, vergreifen, vergessen (lapsos de fala, de escuta, de leitura, atos descuidados e esquecimento, respectivamente). Irrtum, o erro, tem sua origem latina. Este destaque do erro em relação aos outros lapsos é visível na obra de 1901, mas nas edições posteriores, tanto quanto nas conferências sobre asFehlleistung, "Parapraxias", de 1916, o erro se mistura aos outros lapsos, e não chama especialmente a atenção. Mas é que desde o "Projeto"3, na parte III, dedicada a "Uma tentativa de apresentar os fenômenos psíquicos normais", no final do final, Freud surpreendenos com esta questão: "Como pode surgir erro na via do pensar? O que é o erro?" 49 50 100 ANOS DE PROJETO FREUDIANO Ou seja, como é possível que um aparelho, regido pelas regras biológicas da defesa primária e da atenção — descritas em todo o percurso do "Projeto" — como é possível que tal aparelho coloque um sujeito numa via de engano, sem ser alertado, pelo pensamento, para esta situação? A opção de Freud pelo termo "pensamento", Gedanken, quer como processo, quer como conteúdo, aponta ao privilégio de unidades no campo da palavra — fala e escrita — questões que em textos posteriores, como por exemplo "O Inconsciente"5, vão dizer de recursos da psicanálise como cura. Nestes recursos, as representações Pré-Conscientes, — Wortvorstellungen — Representações de Palavra, possibilitarão, como uma instigação de fora, reavaliar para o neurótico, seus esforços de recuperar o objeto, para sempre perdido. É uma operação especial, pois não se trata do processo secundário dominante no Pré-Consciente, mas que, contudo, não o esgota. Isso quer dizer que processo secundário e Pré-Consciente não se igualam. Pois, é exatamente das relações ou re-ferências (Beziehung) das palavras com as representações inconscientes da Coisa, onde precisamente claudica o processo secundário, que o Pré-Consciente, com as Wortvorstellungen, adquire um valor precioso, com unidades passíveis de modificação e alteração. Esta é sua diferença em relação aos processos inconscientes, que, como sabemos, são inalteráveis, por serem caminhos, que uma vez trilhados, nunca desmancharão seu sulco. Do que posso extrair do texto freudiano, e principalmente da passagem final do "Projeto", é que está aí o campo do erro, recortado na região do Pré-Consciente, e indicado, no crédito que o sujeito lhe dá, o sulco da divisão, o ponto de falha radical do saber, ponto que daí por diante será marcado por um litoral, letra. Nos efeitos da análise, é função de escritura, escolher no tesouro da língua, um sinal que indique o oco dessa operação. Vejamos o que Freud aponta nesta parte final do "Projeto". Logo nos fala de uma primeira cisão. É que o pensar prático, original, que é a meta final de todo processo do pensar, apresenta cortes ou cisões em outros tipos de pensar, que modificam as vantagens do pensar prático: a de preceder o estado de expectativa e trazer uma configuração da ação específica, o que encurtaria o intervalo entre a percepção e a ação. O valor da prontidão é o que importa e para isso deve servir o pensar, como premeditado. Se ele persiste demais, torna-se inutilizável. A primeira cisão é a formação de juízo, à qual o Eu chega através de uma descoberta em sua própria organização, pela coincidência parcial dos investimentos de percepção e as informações provindas do próprio corpo. Nisso, separa-se a parte constante, não compreendida, a coisa e a parte variável, compreensível, as propriedades ou atributos da coisa. A BOA LÓGICA DO ERRO 51 Várias articulações se fazem nessa via, para as quais têm importantíssimo papel as associações de fala, Sprachassoziation, vindas das representações sonoras, Klangvorstellung, em associação estreita com as imagens motoras de fala, que são revestidas de qualidade de descarga.8 Na experiência de satisfação, a informação do grito, e a dor, que o objeto desperta, assim como a emissão de sons da parte de certos objetos, possibilitam encontrar, pela tendência à imitação, que faz parte do juízo, a informação de movimento correspondente a esta imagem sonora. E Freud conclui: "Não falta muito agora para inventar a linguagem" Mas o que persiste como desejado é o estado-coisa, que vai sendo intensamente trabalhado e que faz-se valer independentemente da percepção real, que é circunstancial. O estado-coisa é constante. O trabalho de pensar com juízos em vez de complexos perceptivos apresenta grande economia. Não sabemos, no entanto, se a unidade do pensar assim obtida é apenas a representação de palavra.10 Na criação do juízo, o erro já pode ter feito sua intromissão, por não serem precisamente idênticos os complexos-coisa e os complexos-movimento, e entre as divergências podem estar alguns cuja omissão vicie o resultado na realidade. É um defeito, uma carência {Mangel) do pensar: substituir um elemento por um complexo. Mas ao mesmo tempo esta é a vantagem das associações de fala, porque elas são "limitadas em número e exclusivas". Freud fala aqui da Língua como sistema ordenado de fonemas, e dando ênfase ao que poderíamos anunciar como significante: Da imagem sonora, Klangbild, a excitação passa para a imagem de palavra, Wortbild, e desta para a descarga. São portanto, imagens de lembrança...11 Dessa conjunção disjuntiva surge o primeiro erro: enganos do juízo, Urteilstãuschung ou erros, Fehler, incorreções das premissas. Outra fonte de erro pertence também ao campo do juízo, mas do lado da percepção, pois estas não foram completamente percebidas, por estarem fora do campo dos sentidos. São erros de ignorância. Ou então o Eu se desviou das percepções, faltando o pré-investimento psíquico, e produziu percepções inexatas e curso incompleto do pensar: são erros de falta — Mangel — da atenção.1 A conseqüência asfalta da atenção é que o curso do pensar pode optar por trilhamentos melhores, mas puramente associativos, isto é, não conduzidos por investimento de desejo, o que terminará silenciosamente no investimento de algum neurônio vizinho, cujo destino não conhecemos como deve acontecer inúmeras vezes ao dia Estes erros descritos até aqui são erros ligados àformação e criação do juízo. Vamos agora aos erros do pensar (re)conhecedor.14 52 100 ANOS DE PROJETO FREUDIANO O trilhamento (Bahnung) e suas ligações ( Bindung- bindem= atar, ligar, fixar) como conseqüência do juízo secundário (beurteilen= julgar, apreciar) fazem abreviar o pensar prático. O trilhamento surge para estabelecer ligação pronta entre dois investimentos, podendo percorrer ou festejar (begehen=festejar) a via direta, em vez da antiga, mais laboriosa. Estabelece-se um trilhamento do pensar, mas nesse trabalho, pode ser adotada uma via inadequada, por causa das produções de novas vias de deslocamento. Os erros do pensar reconhecedor são então: aparcialidade, e a incompletude. Por não ter conseguido evitar os investimentos-meta, houve parcialidade na análise das percepções, e por não terem sido percorridas todas as percepções, a análise foi incompleta. Fazendo um registro da diversidade de termos usados por Freud para indicar essas funções em falha, destacamosMangel, Tãuschung, Fehler e Irrtum, isto é, carência, engano, incorreção e erro, que apresentam nuances interessantes: Mangel16 = falta, defeito, penúria, pobreza, necessidade, carência. Tãuschung = engano, ilusão. Fehler = erro, falta, falha, afastamento da direção, incorreção, infração às regras; falha determinada, fraqueza, insuficiência. Irrtum = erro, julgamento errado, conclusão errada, equívoco, erro involuntário. Desde a carência concreta à abstração de uma conclusão errada ouequívoco, passando pela ilusão ou engano, pela incorreção ou infração, os vários termos demonstram a precariedade do aparelho, que termina naparcialidade e incompletude, para lidar com o desejo que se atrela ao estado-coisa. O outro tipo de pensar, o crítico ou examinador, dá origem a outro tipo de erro, o erro lógico. O pensar crítico ou examinador se justifica porque o processo de expectativa, seguido da ação específica, apesar de todas as regras, pode conduzir ao desprazer em vez de satisfação. Então o pensar crítico procura encontrar algum erro de pensamento ou falta psicológica {Mangel). O pensar crítico se detém frente ao desprazer intelectual da contradição. Nisto consiste o erro lógico, na desatenção às regras biológicas, que se apoiam na ameaça do desprazer e na atenção e podem ser transpostas para as regras da lógica, onde o desprazer é a contradição. Freud menciona ainda os erros na açãoi8, quer correspondam ao investimento total das imagens de movimento, ou aquelas que pertencem à parte arbitrária da ação específica. O que acontece é uma queda do nível do Eu, e as qualidades monótonas dessas imagens de movimento, que são sensórias, não se associam a representações de palavra, ao contrário, servem a elas. O efeito do movimento A BOA LÓGICA DO ERRO 53 não é o desejado, pois elas fogem do trilhamento, utilizando vias motoras especiais. Será esta passagem uma antecipação de toda a questão doagir e da repetição? De toda esta exposição sobre erros, o que gostaria de destacar é que neste ponto de Juro que o aparelho apresenta, o sujeito deposita crédito, tomando sua conclusão errada como certa, seja porque seguiu o desejo, que não pode parecer estranho / familiar, seja porque as respostas que deu ao não-sabido do desejo se chocam numa grande contradição. Colocamos então uma pergunta: haverá um tema privilegiado, ou mais rigorosamente falando, um ponto, ou cego ou muito luminoso, que lance o sujeito nesta situação? No texto freudiano, encontramos algumas articulações que trazem certas coincidências, como que um vetor que se traça sempre numa determinada direção. Indicarei três delas: no tema dos sonhos absurdos, no capítulo dos erros e no mal-estar, cuja causa, o sentimento de culpa inconsciente, se declara o mais absurdo dos erros. O que nos revela o absurdo Contradição, absurdo, este é um dos temas do trabalho do sonho (Traumarbeit), os sonhos absurdos, que encontramos na Traumdeutung19. Apesar de concluir, que o trabalho do Inconsciente "não pensa, não calcula, não julga , Freud destaca a questão do absurdo, da contradição, e percebe, pela sua análise, que o tema que cai mais facilmente sob este erro lógico é o tema da morte do pai. Tais sonhos dizem: "...há algo de errado com o pai." 21 0 pai aparece deformado, defeituoso do ponto de vista plástico, mesmo que se esforce por "permanecer diante dos olhos do filho, após a morte, grande e imaculado..." "O pai estava morto e não sabia..." de seu desejo de morte. Freud confessa encontrar freqüentemente uma inclinação a manter os olhos abertos para a fraqueza do pai. Entretanto, diz ele a piedade filia] exigida de nossas mentes pela figura de um pai, particularmente após a sua morte, fortalece a censura, que impede qualquer crítica desse tipo de ser expressada claramente A manutenção do absurdo no sonho indica a presença de uma polêmica particularmente acirrada e apaixonada.... Meu pai era o objeto explícito do ridículo... tratar como espantalho uma figura que era sagrada... a censura permite dizer mais o inverídico que o verdadeiro. 54 100 ANOS DE PROJETO FREUDIANO O inverídico permitido pela censura é a presença do absurdo, contrabalançado pela contradição. Os sonhos contêm elementos absurdos se o trabalho do sonho for defrontado com a necessidade de representar alguma crítica, ridículo ou derrisão que pode estar presente nos seus pensamentos. O que mostra estar presente nos pensamentos é isso, a insuficiência da representação "Pai" para dar conta dos paradoxos do prazer e do gozo, com que o desejo tem que se confrontar. E por outro lado, que credenciais tem c "Pai" e o que há de errado com o "Pai" para prestar-se a preencher este ponto paradoxal? Há outra passagem de Freud, que aliás já mencionamos, que nos faz insistir nesta pergunta. Falo do capítulo dos erros na Tsicopatologia da Vida Cotidiana", onde os três primeiros exemplos, aliás, os únicos que constam da primeira edição de 1901, são exemplos do próprio Freud e exatamente em torno da questão do "Pai". Eles lhe ocorreram quando escrevia a "Interpretação dos Sonhos", durante uma viagem, pretendendo fazer posteriormente alguma correção necessária, na consulta às fontes. O que o surpreende é a coincidência em torno do pai.25 Io) Troca de Marbach por Marburg, como a cidade de nascimento de Schiller. A troca se justificou por intrusões de pensamentos de crítica inamistosa ao pai. Vemos que aqui a solução se dá por via metafórica, simbólica. Schiller é o pai da literatura alemã. 2o) Troca do pai de Anibal, Amílcar, por Asdrúbal, erro não visto em três revisões. Freud o analisa como sendo uma troca àopai pelo irmão, pois que preferiria ter sido filho do irmão, em vez de filho do pai, o que lhe permitiria ter tido melhores condições de vida. São fantasias abafadas, reprimidas (unterdrückt). A via imaginária mostrou aqui sua preferência, ainda mais que sabemos pelo próprio Freud, o quanto gostaria de ser como o conquistador Aníbal. 3o) Escreve Freud: "Zeus castrou seu pai Cronos e o destronou. Localizei a atrocidade uma geração adiante, pois foi Cronos que a cometeu contra seu pai Urano". O irmão de Freud o teria dito: Uma coisa que você não deve esquecer é que quanto à conduta de sua vida, você realmente não pertence à segunda, mas à terceira geração em relação a seu pai. O erro está onde Freud fala da devoção filial. Mas ao lado desta explicação notamos que a atrocidade entre filho e pai, a castração, como contrapartida de uma atrocidade anterior, entre pai e filho, esta devoradora, real. Na borda do real, o mito se constrói e faz história. A BOA LÓGICA DO ERRO 55 O mal-estar e o Pai: o sentimento de culpa inconsciente No cap. VII do "Mal-estar na Cultura"26, a origem do sentimento inconsciente de culpa aponta às relações entre o Eu e o Supereu, para tentar explicar o porquê do incremento de agressividade do Supereu, que age sadicamente sobre o Eu, agressividade essa que não provem diretamente da agressividade dos pais do sujeito em questão. O sentimento de culpa e a necessidade de punição surgem como um resto (Rest), sustentando a afirmativa paradoxal de que "a renúncia pulsional exigiria cada vez mais renúncias pulsionais." Contra a autoridade, que a impede de suas primeiras e também muito significativas satisfações, a criança deve ter desenvolvido uma quantidade considerável de tendências agressivas, não importando o tipo de privação (Entsagung) pulsional exigida. Premida pela necessidade, ela é obrigada a renunciar (Verzicht) à satisfação dessa agressão vingativa. O que a ajuda a sair dessa situação economicamente difícil, é o caminho de conhecidos mecanismos, nos quais, através da identificação, aceita em si a autoridade inatacável, que então se torna o Supereu, tomando posse de toda a agressão que a criança gostaria de exercer contra ela. O Eu da criança deve se contentar com o triste papel da autoridade assim rebaixada (erniedrigt), do pai. Como freqüentemente acontece, há uma inversão da situação. "Se eu fosse o pai e você a criança, eu te trataria mal." A relação entre o Supereu e Eu é um retorno, deformado pelo desejo, das relações reais entre o Eu ainda indiviso e um objeto externo. Podemos destacar desta passagem, três condições sob as quais se apresenta apulsão: Triebentsagung, Triebversagung e Triebverzichtrespectivamente,privação pulsional, frustração pulsional e renúncia pulsional (castração) A Entsagung apontaria ao impossível de dizer da pulsão, a privação. A Versagung, literalmente, falha no dizer da pulsão, pois que ela contorna um objeto e tem que passar pelo desfiladeiro do significante, alienada à demanda. A Verzicht, renúncia, apontando à obediência às normas da cultura, sob a égide do F e das estruturas do parentesco. Castração, que, no entanto implica em ganho simbólico, é troca. De toda esta contingência pulsional, o responsável é o Pai (é o que propõe Freud). Ele acena para o gozo, ele propõe a ordem, ele exige renúncia. Tudo está na mão do Pai, que, portanto, deve ser amado. Mas por outro lado, o Pai não tem resposta, nem para aprivação (Entsagung) e nem para a frustração ou falha no dizer (Versagung) da pulsão. Só para a renúncia (Verzicht), onde se marca a castração. Assim sendo, o Outro, o Pai, é inconsciente, não existe, "e por isso eu o odeio. Mas o faço existir, amando-o". É o que se pode ter no andar superior do grafo da Subversão de Lacan, no lado direito, como a escrita da pulsão: $ 0 D. Do outro 56 100 ANOS DE PROJETO FREUDIANO lado, está escrita sua inconsistência, S (fi.) e por isso eu o odeio. Estão aí, neste vetor do grafo, o ódio e o amor ao Pai. O Eu não pode usar agressividade contra o Pai, para vingar-se de suas proibições e incompetências. O Eu deve amá-lo, como autoridade inatacável. Degrada o Pai, em fantasia. A agressividade vai para o Supereu, e o Eu se identifica com o Pai degradado. A culpa ou pecado do Pai recaem sobre o Eu. O conflito é encenado internamente, só que invertido. A identifiação com o Pai degradado submete-se ao recalque, manifestando-se no sentimento de culpa inconsciente, que se expressa no mal-estar. E a agressividade do Supereu para com o Eu é abafada, subdeposta (unterdrückt)28 na fronteira das representações préconscientes, como interdição e exigência de gozo, apontando sua origem proscrita no gozo do Pai. Esta passagem mostra o masoquismo como a resposta do sujeito à inconsistência, ao absurdo das exigências em torno do Pai, mantendo no entanto o Pai a salvo, fora de questão. O erro é deslocado, das exigências ao Pai, diretamente para a pele do sujeito, que, por identificação, se degrada num gozo de vítima. É a presença do real, da pulsão de morte. Que outras respostas pode o sujeito produzir neste lugar de erro, de conclusão errada? Talvez o sintoma, que com sua vertente significante, traduz esse gozo pela via simbólica, dando ao sujeito um lugar de certa sofrida garantia. Mas sua estrutura de retorno mantém viva a pergunta: Pai, não vês que estou queimando? E continua exigindo cada vez mais... Se, no entanto, tomarmos o sintoma como real, não pela via da conclusão errada, mas pela via do equívoco, voltamos ao campo do erro, bem exatamente no seu ponto de origem, que o texto do "Projeto" nos acena. Vimos que o erro tem sua razão primeira na cisão que sofrem os processos do pensar, quando se separa de seus atributos a parte constante, a Coisa, como não compreensível. E o que permanece constante é o desejado estado-coisa (gewünschte Ding-Zustand)29 Equívoco30, do latim aequivocu, quer dizer aquilo que tem mais de um sentido ou se presta a mais de uma interpretação. Na lógica, sofisma verbal que consiste em dar sentidos diferentes a uma palavra dentro de um mesmo raciocínio. É curioso que o prefixo latino aeque31, no entanto, quer dizer justamente, igualmente, como testemunham muitas palavras de nosso vocabulário, como por exemplo equiparar, equivalência e outras. E vocu refere-se a voco, vocare, que é um verbo que se traduz por nomear, chamar, invocar. A BOA LÓGICA D O ERRO 57 Então, o equívoco, nesse lugar do erro, não se produz por igualar os chamados, as vozes, os sentidos, mas por igualar o sentido à voz, ao chamado, pois o que importa aqui não é o conteúdo expresso nas várias vozes, mas dependendo da voz, na sua condição de resto, é que justamete se abrirá alguma coisa, talvez a Coisa, das Ding — coisa inédita, constante, tão desejada. REFERENCIAS BIBÜOGRFICAS 1. FERNANDES, M. - Millôr Definitivo - A Bíblia do Caos - Porto Alegre - L & M Editores, 1994, p.22. 2. FREUD, S. - "Zur Psychopathologie des Altagslebens" - 1901 - Cesamme/te Werke Band IV - Frankfurt am Main - Fischer Verlag - 1978 - p.243 (Edição Standart Brasileira - vol.VI - Rio - Imago Editora - 1 9 7 6 - p.263) 3. - "Entwurf einer Psychologie" -1895 - in "Aus den Anfãngen der Psychoanalyse" - London -1950 - p.461 (ESB - vol.l - Rio - Imago Editora -1977 - p.501) - Tradução Livre. 4. - Op.cit. - p.451 - (ESB - p.487) 5. - "Das Unbewubte" - 1913 - CW - Band X - op.cit - p.302-303 - (ESB vol.XIV - op.cit - p.232-233) 6. Optamos aqui por manter o verbo substantivado "pensar", e não o substantivo "pensamento", para trazer a força de ato que fica presente no texto alemão. No texto do "Projeto", está sempre o verbo no infinitivo, usado como substantivo: das Denken, das Erkennen, das Reproduzieren, das Erinnern, das Urteilen, respectivamente, o pensar, o (re)conhecer, o reproduzir, o lembrar, o julgar. 7. FREUD, S. Op.cit. "Entwurf..." - p.462 (ESB - "Projeto..." - p.501) 8. Ibidem - p.443 (ESB - p.480) 9. Ibidem-p.445 (ESB-p.481) 10. Ibidem - p.462 (ESB - 502) 11. Ibidem - p.443-444 (ESB - 478-479) 12. Ibidem - p.462 (ESB - p.502) 13. Ibidem - p.442 (ESB - p.476) 14. Ibidem - p.464 (ESB - p.504) 15. Ibidem - p.463 (ESB - p.5O3) 16. Para tradução desses termos foram usados os dicionários: Langenscheidts Taschenwõrterbuch - Alemão-Português, Berlin Schõneberg e Wahríg Deutsches Wõrterbuch, Mosaik Verlag, München. 17. FREUD, S. - Op.cit. - p.464-465 (ESB - p.505) 18. Ibidem - p.465-466 (ESB - p.505-506) 19. FREUD, S. - "Die Traumdeutung" - 1900 - CW- Band ll-lll - op.cit., p.455-474 20. Ibidem-p.511 (ESB-p.541) 21. Ibidem - p.430 (ESB - p.456) 22. Ibidem -p.431 (ESB-p.458) 23. Ibidem - p.432 (ESB - p.459-460) 24. Ibidem - p.437 (ESB - p.465) 25. Ibidem - p.438-439 (ESB - p.466-467) 25. FREUD, S. - "Zur Psychopathologie des Altagslebens" - 1901 - CW - Band IV p.243-245 (ESB - vol.VI - op.cit., p.263-266) 58 100 ANOS DE PROJETO FREUDIANO 26. - "Das Unbehagen in der Kultur"-1930 - CW- Band XIV - op.cit, p.488-489 (ESB-vol.XXI-op.cit., p.153) LACAN, J. - Écrits - Paris - Éditions du Seuil - 1966 - p.819. FREUD, S. - Op.cit. - p.489 - (ESB - p.153) - Op.cit. - "Entwurf..." - p.462 (ESB - "Projeto..." - p.502) Novo Dicionário Aurélio - Rio - Editora Nova Fronteira - 1986. Ibidem 27. 28. 29. 30. 31. Projeto... Texto que Retorna Maria Cristina Ferraz Coelho O "Projeto"-texto manteve-se pouco tempo nas mãos de Freud. Como sabemos, começou a escrevê-lo em 4 setembro de 1895, e, em 10 de outubro do mesmo ano, já o descartava. A partir daí, sequer faz referência a este trabalho, embora as idéias aí presentes retornem à medida que avança na sua teoria. É um texto marcado pela falta. Não foi nomeado, não foi concluído nem foi publicado por Freud. Anos depois, ao reencontrá-lo nas mãos de Marie Bonaparte, mais uma vez quis descartá-lo e mantê-lo excluído de sua obra. A ela devemos o destino que lhe foi dado: entregou-o aos editores d&Aus den Anfãgen der Psychoanafyse que o publicaram em 1950, sendo logo em seguida traduzido por Strachey, que tenta preencher as lacunas do texto com colchetes e parênteses onde insere palavras supostas. Emílio Rodrigué, na sua recém-escrita e ainda inédita biografia Freud no século, designa o "Projeto" com um apelido instigante, que também menciona a falta: "torso renegado" - produto do casamento improvável de um sapo com uma borboleta. Figura truncada do torso, falta a cabeça, a quarta parte prometida a Fliess, que deveria conter a chave do sistema. Freud optou por ouvir a "voz silenciosa" que lhe dizia que suas explicações não eram suficientes. Do alvoroço provocado pela importância de sua publicação, restaram interpretações como "último e desesperado esforço para apegar-se à anatomia cerebral", que o situaram como escrito pré-psicanalítico. Entretanto uma nova perspectiva de leitura se abre, a partir do corte efetuado por Lacan no seu retorno à obra de Freud. No seminário O eu na teoria de Freud e na técnica da psicanálise, o 'Projeto" adquire estatuto de texto metapsicológico. No seminário A relação de objeto, a noção de objeto perdido desenvolvida no "Projeto" é articulada à de objeto da 59 60 100ANOS DE PROJETO FREUDIANO pulsão oral dos "Três ensaios sobre sexualidade", o que, para Lacan, serve para explicitar que a primeira dialética da relação de objeto apresentada por Freud já é marcada pela busca do reencontro. Mas é no seminário de 1959-60 que ao "Projeto" é dado um lugar-chave. Nele Lacan encontra inspiração e fundamentos para definir uma ética própria à psicanálise, ética do desejo, inscrita no universo da falta. Talvez, ponto de partida para se pensar a incidência de Lacan no "Projeto"-texto, no projeto freudiano e no projeto da psicanálise. A ética da psicanálise distingue-se das concepções filosóficas e religiosas até então formuladas, que se orientam na direção de aproximar o prazer à felicidade e ao bem supremo. Para Freud, o bem supremo está perdido por estrutura, é impossível de se recuperar, já que o princípio do prazer se funda na exclusão de um objeto originariamente perdido. Não se trata tampouco do ideal do amor humano, concluído sob a primazia genital; não se trata do ideal de autenticidade, nem do ideal da não-dependência, como aparece subjacente a algumas concepções ditas psicanalíticas. Inscreve a ética da psicanálise fora do âmbito do ideal, para situá-la em outro lugar, visando a relação do sujeito ao desejo. A partir de indicações fornecidas por Lacan, a nossa proposta é articular, em torno da falta, algumas idéias presentes no "Projeto": a experiência de satisfação e o seu resíduo não assimilável, a série prazer-desprazer e a função do juízo relacionada à primeira partição do sujeito, que retornam em outros textos da obra de Freud - capítulo VII de "A interpretação dos sonhos", "Além do princípio do prazer" e "A negação". A experiência de satisfação no "Projeto" e seu retorno no capítulo VII da Interpretação dos Sonhos Freud expõe pela primeira vez a experiência de satisfação no capítulo VII, onde, também pela primeira vez, apresenta um modelo do aparelho psíquico, "evitando a tentação de determinar a localização psíquica por qualquer modo anatômico", retratando-o como um microscópio ou uma máquina fotográfica. A experiência de satisfação é fundamental para a estruturação e funcionamento do aparelho e serve como ponto de partida para se pensar como o sujeito é introduzido na ordem simbólica e como se constitui o desejo humano. Originariamente trata-se da satisfação de uma necessidade biológica, através da "ação específica". Experiência que se inscreve como memória de outra ordem, a "marca mnêmica desiderativa", que força a separação entre satisfação da necessidade e realização de desejo. Por quê? Quando surge novo estado de urgência, o aparelho, sob o domínio do processo primário, persegue a marca mnêmica, o reencontro com o objeto mítico, na busca de restabelecer a satisfação original. Um impulso desta espécie, diz Freud, é o desejo, força que impulsiona o funcionamento dos PROJETO... TEXTO QUE RETORNA 61 processos psíquicos no sistema inconsciente, regulados pelo prazer-desprazer. A sua realização está no reaparecimento da percepção pela via alucinatória. O sonho como realização de desejo é a sua grande descoberta. É um aparelho que de início se dirige ao engano. Frente à inadequação deste funcionamento, o processo secundário, regido pelo princípio de realidade, vai exercer a função de inibição e retificação, visando assegurar a existência do objeto na realidade externa através da identidade de pensamento. Lacan, em 1955, para demonstrar a categoria do simbólico em Freud, faz um percurso no qual inclui o capítulo VIL O sonho, assim como outras formações do inconsciente, permite apreender a presença da função simbólica que está em jogo - a subjetividade é tratada como sistema organizado, e o inconsciente estruturado como linguagem. A experiência de satisfação é então abordada pelo viés do desejo, marco central na teoria freudiana que estabelece a relação do ser com a falta. Não existe satisfação efetiva do desejo e, sim, uma realização metafórica. O desejo é de nada, nunca pode ser nomeado, só advém à existência através do símbolo. Por não ser satisfeito, se repete, articulado à cadeia significante e à insistência do automatismo da repetição. Neste momento da teorização lacaniana, o desejo está situado no mais além, como repetição, enquanto o prazer está ligado à homeostase e satisfação biológica. O mecanismo homeostático do organismo é rompido pela cadeia simbólica que se sustenta na repetição, cuja estrutura também é simbólica. Posicionamento teórico que será reformulado em 1960, quando o desejo é conivente com o prazer, e o gozo, com a satisfação. No "Projeto", ao procurar introduzir a hipótese de um aparelho psíquico, Freud faz uma tentativa frustrada de relacioná-lo à anatomia, posição contrária àquela tomada em 1891, quando propõe o "aparelho da linguagem" na monografia "As Afasias". O aparelho é representado com base no modelo arco-reflexo, orientado pelo princípio de inércia. A descarga, função primordial, está associada ao prazer, enquanto o excesso, ao desprazer. A experiência de satisfação, que encontra sua marca na materialidade das cadeias neuronais, também é considerada ponto de partida para explicar a sua origem. Mas, em 1895, Freud apresenta questões que estão excluídas no capítulo VII: a condição do desamparo infantil é explorada; a função do juízo é fundamental para a organização do aparelho; a experiência de satisfação deixa um resíduo não assimilável - das Ding. A impossibilidade de efetivar a ação específica, coloca o bebê humano no lugar de absoluta dependência de um outro que, por sua vez, decifra, nomeia e promove aquilo de que ele necessita. A experiência de satisfação, cujo paradigma é a amamentação, compõe o que Freud chama Nebenmensch ou o "complexo do próximo", ao qual se refere: "essa via de descarga adquire a importantíssima 62 100 ANOS DE PROJETO FREUDIANO função secundária de comunicação, e o desamparo inicial dos seres humanos é a fonte primordial de todos os motivos morais" (Freud, v.l, p.422). Esse encontro marca a presença do Outro, da ordem simbólica, como decisiva para o estabelecimento dos efeitos da linguagem na estruturação da subjetividade. Encontro jamais descrito com tanta precisão por Freud, selado pela impossibilidade e pela produção de um resto. Trata-se da primeira apreensão da realidade pelo sujeito, elaborada de tal forma que introduz uma nova concepção do sujeito e do objeto, rompendo com a noção de relação de complementaridade entre ambos. O complexo do objeto, como é denominado, é dividido em duas partes. Das Ding, a Coisa, é o elemento isolado como Fremde, estranho; perdido para sempre, paradoxalmente está sempre presente, é a parte constante do complexo. Não está submetido às leis que regulam o funcionamento do aparelho e esquiva-se à função do juízo. A outra parte refere-se a tudo aquilo que pode ser formulado como atributos. Estes estão submetidos à função do juízo e presentes na atividade do pensamento, que visa a identidade e indicação da realidade. No seminário^ ética da psicanálise, Lacan retoma a experiência de satisfação, desta vez pontuando das Ding - objeto que o sujeito tenta reencontrar, mesmo frente à impossibilidade do reencontro, por ser perdido por estrutura. É em torno de das Ding que se organiza o campo do desejo. Em sua direção, as Vorstellüngen inconscientes atraem-se umas às outras, trilhamentos percorridos e regidos pelo princípio do prazer. Anterior a qualquer inscrição e ao recalque, das Ding aparece como uma referência ao real. Está articulado também ao gozo, satisfação própria de um corpo atravessado pela materialidade do significante. Das Ding também pode ser a mãe, diz Lacan, sendo seu correlato o desejo incestuoso. A interdição do incesto é a lei primordial; ao mesmo tempo, o incesto é o desejo mais fundamental. Uma menção à perda da mãe não como função anaclítica de apoio da necessidade e, sim, como lugar da perda originária do gozo. Neste seminário, Lacan faz reformulações teóricas importantes. Corresponde ao momento em que se defronta com o limite do simbólico na cura a partir do qual o gozo é introduzido. Há modificação da tríade necessidade-demanda-desejo, para gozo-demanda-desejo, modificação que contém uma redefinição do conceito de real. As conseqüências iriam repercutir, de forma marcante, na direção da cura. A série prazer-desprazer: os paradoxos do princípio do prazer Vejamos agora o retorno do princípio do prazer, cuja problematização foi se efetivando até 1920. Em "Além do princípio do prazer", Freud dispõe-se a encontrar solução. Até então, ele havia sustentado o império do princípio do prazer. Todas as possíveis rupturas pelo viés do desprazer não eram suficientes para contradizê-lo, PROJETO... TEXTO QUE RETORNA 63 apesar de, nas entrelinhas do "Projeto", já se encontrarem idéias que contrariam esta definição. Em 1920, ao incluir o fator econômico para interrogar o valor deste princípio, aparece pela primeira vez algo que questiona os seus limites. Não se trata da inibição do princípio do prazer pelo princípio de realidade, que apenas protela a satisfação. Não se trata tampouco do desprazer provocado pelas formações substitutivas, caso em que o prazer buscado por um sistema produz desprazer em outro. Trata-se do que inicialmente denomina "a reação mental ao perigo externo". Perigo externo ou ponto de exterioridade que se mostra no interior da estrutura? Trauma e dor são experiências descritas de forma semelhante nos dois textos que estão sendo considerados. Concepção freudiana que faz alusão ao encontro traumático do ser vivente com a linguagem e possibilita pensar a dimensão própria da pulsão. Refere-se à irrupção súbita de excitação, provinda de fora, suficientemente poderosa para atravessar qualquer proteção da superfície e atingir o organismo - o "escudo protetor" do "Além do princípio do prazer", quando usa o modelo da vesícula, correlato óbvio das telas protetoras do "Projeto", onde Freud compara: "é como se o organismo tivesse sido atingido por um raio". É o mais imperativo de todos os processos e provoca total distúrbio no funcionamento energético do organismo. Situação em que o princípio do prazer é colocado fora de ação. Para a excitação proveniente do interior, pulsões ou "exigências da vida", não há escudo nem proteção. O desprazer provocado é tratado como se atuasse desde fora, o que faz pensar o trauma como interior à estrutura, onde a irrupção pulsional opera. O trabalho do aparelho será na direção de vincular a energia livre, função independente e mais primitiva, além do domínio do princípio do prazer. Conclui, então, que a pulsão não se encontra totalmente regulada pelo prazer-desprazer, assim como, em 1895, afirma que os restos da experiência de satisfação (estados de desejo) e da experiência da dor (afetos) se furtam à vinculação procurada pela atração de desejo e pela defesa primária. Há algo que escapa e força a busca da satisfação e não do prazer. Assim, uma nova dimensão do prazer aparece: como lei, articulado ao desejo, tem a função de regular a direção a ser percorrida na cadeia significante, barrando a insistência repetitiva do gozo. Juan Carlos Cosentino, nos textos que apresenta em Pontuaciones freudianas ãeLacan, considera duas rupturas do princípio do prazer. A primeira diz respeito à perda da homeostase do organismo, efeito da experiência de satisfação, onde se produz o corte entre satisfação da necessidade e realização do desejo. Aí se impõe e se sustenta o prazer de desejar, e a realização do desejo encontra uma satisfação: 64 100 ANOS DE PROJETO FREUDIANO satisfação parcial da pulsão, quando articulada à cadeia significante, via pela qual se estabelece uma ligadura e o gozo se articula ao desejo. A segunda ruptura aponta para a perda inaugural do gozo. É introduzida por Freud na sua indagação sobre a reação frente ao perigo externo. Trata-se da irrupção do traumático, da energia não ligada, que invade o aparelho psíquico. A sua insistência está na compulsão da repetição, trabalho do aparelho que busca fazer ligadura. No "Além do princípio do prazer", a tensão produzida no funcionamento energético abre o caminho que Lacan percorreria até "a economia política do gozo": Produção operada pela ação do significante sobre o corpo, quando se estabelece a perda da complementaridade sexual, a perda originária do gozo. Perda econômica que implica uma contabilidade a partir da qual pode-se falar de ganhos e de uma distribuição que varia segundo a estrutra do discurso - as formas suplementares de gozo, cuja dimensão é sempre parcial. A função do juízo 30 anos depois A função do juízo faz seu retorno em "A negação". Relacionada ao conceito de das Ding, como está no seminário A ética da psicanálise, permite nova abordagem sobre a divisão originária. Cabe uma observação sobre o valor do texto "A negação" que utilizamos aqui, traduzido do alemão por Eduardo Vidal e seguido de seus comentários na Revista da Letra Freudiana Ano VII - no. 5. Em 1895 o juízo é definido como meio de reconhecimento de um objeto. Não é uma função primária e, sim, um processo que só se torna possível graças à inibição exercida pelo eu. A funçãp judicativa é evocada pela diferença entre a catexia de desejo e o investimento de uma percepção que lhe seja semelhante, visando a coincidência parcial entre ambos. Provoca a dissecação do complexo perceptivo e age exclusivamente sobre uma parte do complexo, os atributos ou predicados, parte que pode ser compreendida e se presentifica nas vinculações que caracterizam as diversas formas de pensamento. A Coisa, das Ding, primeiro exterior, está fora de significado; é resíduo que se esquiva ao juízo. Produto da atividade do significante que ao mesmo tempo lhe escapa, Lacan aproxima-a ao conceito do real. Não pode ser apreendida, está sempre no mesmo lugar, lugar que as representações circunscrevem, organizando o campo do desejo. No texto de 1925, a função do juízo é introduzida como referência ao "não" do discurso, como operação que age sobre a frase. O significante precedido do não pode ser chamado à cadeia, possibilitando a suspensão do recalcado, ao mesmo tempo em que mantém o essencial do recalque. Freud quer saber sobre a origem desta função. E o faz no campo do Outro, ao relacionar o juízo às pulsões e ao apontar para a distinção pré-subjetiva do dentro e fora. PROJETO... TEXTO QUE RETORNA 65 Duas decisões cabem ao juízo: atribuição e existência. A primeira, atribuição de uma qualidade - boa ou má - está sob o domínio da lei do prazer. O eu-prazer introjeta o objeto da satisfação que tem qualidade boa. Decisão tomada sem suposição de sujeito. Aí não é o sujeito quem julga, quem decide, ele é, antes, julgado. Freud escreve na língua das antigas moções da pulsão oral: "quero comer isso ou quero cuspi-lo", assegurando a partição primeira: "quero introduzir isso em mim e quero expulsar isso de mim". No introjetado está a inscrição do significante a partir do campo do Outro, operação simbólica. O expulso, o estranho, Fremde, resto da operação de inscrição, fica fora da simbolização e determina o real. A outra decisão do juízo recai sobre a comprovação da existência, na realidade, de uma representação inconsciente. Interesse do eu real, que se efetiva através da prova de realidade. Não importa apenas introjetar o bom, incluir uma representação, mas decidir se algo que já foi afirmado pode ser reencontrado também no mundo de fora, certificar-se de que ainda existe, de modo que se possa apoderar-se dele. Freud considera como condição para a instalação da prova de realidade que tenham sido perdidos os objetos que trouxeram originaríamente a satisfação real, ou seja, o resto da experiência de satisfação. Para evitar o engano da satisfação alucinatória, a prova de realidade tem que levar em conta a falta fundante do campo da representação. Freud conclui que o julgar se estabelece a partir da inclusão no eu e expulsão do eu, realizados conforme o princípio do prazer. Encontra uma correspondência na oposição das pulsões. A afirmação, substituto da unificação, pertence a Eros. ABejahung - afirmação primeira, está correlacionada a uma inclusão significante. A negação, sucessão da expulsão, pertence à pulsão de destruição. Comporta uma expulsão do eu, que constitui o real excluído da ordem do simbólico. Em "A negação" reencontramos o das Ding, o estranho, Fremde, na mesma função daquilo que do interior do sujeito, encontra-se originariamente levado para um primeiro exterior. Topologia que Lacan denomina exterioridade íntima, um exterior que está dentro e um interior que está fora. Espaço onde o sujeito se constiui em relação ao Outro. Concluímos afirmando a importância do trabalho que Lacan faz sobre o "Projeto"-Texto, que reflete a sua incidência na psicanálise e marca a sua presença nesses 100 anos de Projeto Freudiano. BIBLIOGRAFIA FREUD, S. "Projeto" para uma psicologia científica". Obras Completas Ed. Standard Brasileira,. Vol. I - Rio de Janeiro: Imago, 1977 66 100 ANOS DE PROJETO FREUDIANO . "A interpretação dos sonhos". Obras Completas Ed. Standard Brasileira, Vol. V - Rio de Janeiro: Imago, 1972 . "Além do princípio do prazer". Ed. Standard Brasileira, Vol. XVIII - Rio de Janeiro: Imago, 1976 . "A negação". Revista da Letra Freudiana - Ano VIM, Rio, no. 5 LACAN, J. Seminário II: O eu na teoria de Freud e na técnica da psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1985 . Seminário VII: A ética da psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1988 VIDAL, E. Comentários sobre "Die Verneinung". Revista da Letra Freudiana - Ano VIII, Rio, no. 5 . "A torção de 1920". in Revista da Letra Freudiana - Ano XI, Rio, n fi 10/11/12 CONSENTINO, J.C.. Cap. I e Cap. IV de Más allá dei principio de placer. Pontuaciones freudianas de Lacan: Acerca de Más allá dei principio de placer. Buenos Aires: Ed. Manantial, 1992 RODRIGUÉ, E. Sigmund Freud-Um século de psicanálise 1895-1995 Ed. Escuta, 1995 (no prelo) O Projeto Freudiano Renato R. P. de Carvalho Um homem como eu não pode viver sem um cavalo de batalha, sem uma paixão devoradora, sem um tirano. Encontrei um. A serviço dele não conheço limites. Trata-se da psicologia, que foi sempre minha meta distante a acenarme, e que agora, desde que deparei com o problema das neuroses, aproximou-se muito mais. Estou atormentado por dois objetivos: examinar que forma irá assumir a teoria do funcionamento mental, se introduzirmos considerações quantitativas, uma espécie de economia das forças nervosas, e, em segundo lugar, extrair da psicopatologia um lucro para a psicologia normal.1 (25.05.1895) Neste ano de 1895 Freud está no auge de sua transferência à Fliess. Envia ao amigo várias cartas que revelam uma espécie de ciclotimia, são marcadas por um tom de angústia, dão a impressão de que algo muito importante está para ser produzido. Com efeito, no final do ano envia à Fliess o manuscrito do "Projeto". No biênio 1895/1896 são escritas as obras mais importantes de toda a correspondência: o próprio "Projeto", a carta de 1 de janeiro de 1896, o "Manuscrito K" e a célebre "Carta 52". A amizade, que começara em 1887, torna-se uma espécie de amor cego de 1894 a 1896 e, a partir daí, começa a declinar. Como disse muito bem Mannoni, no seu estudo sobre a "Análise Original", a relação dos dois produziu do lado de Fliess "um delírio de saber" e do lado de Freud "um saber sobre o delírio". É sob a influência dessa relação que Freud vai inventar a psicanálise, estabelecendo os seus fundamentos teóricos e apontando os caminhos do seu desenvolvimento futuro. No entanto a relação apresenta caraterísticas, no mínimo, curiosas. De um lado Freud, educado na disciplina de um pesquisador de laboratório, desenvolvendo uma teoria a partir da observação de fatos clínicos, decorrentes de um longo trabalho com pacientes histéricas. De outro, Fliess, um otorrino de prática limitada, que constrói um delírio paranóico, publicado em 1897, com o 69 70 100 ANOS DE PROJETO FREUDIANO incentivo e a aprovação de Freud sob o título As relações entre o nariz e os órgãos genitais femininos apresentadas segundo suas significações biológicas. "A relação sexual não há. É preciso escrevê-la", diz Lacan. E Freud escreve. Mas, não só escreve, vai além, procura identificar as variáveis relevantes, designá-las por letras e estabelecer uma sintaxe que as articule. Busca estabelecer uma escritura da psicanálise. E este esforço se inicia justamente quando sua paixão por Fliess é mais intensa. Este ocupa o lugar do Outro que detém um saber universal; está incluído no fantasma de Freud. Do lado de Fliess, não há fantasma, há delírio. Segundo relato de sua viúva, ele nem leu o manuscrito do "Projeto". Parece-me que a escritura tem aí o papel de proteger Freud da invasão de um delírio que se produz no lugar do Outro. Posteriormente, diversos discípulos de Freud que, como Fliess, acreditavam na relação sexual, ameaçaram a teoria psicanalítica com suas construções delirantes. No "Projeto" está implícita uma topologia e uma lógica. Parece-me que poderíamos considerar a topologia como a de uma cadeia simples cp \y co. Na carta de 1 de janeiro de 1896 Freud modifica a estrutura: qualidade, excitação e quantidade passam a relacionar os sistemas cp, \|/ e © de um modo tal que se faltar um destes predicados os outros dois desaparecem, o que me parece configurar uma estrutura borromeana de três elos. Não se trata aqui de estabelecer uma correspondência biunívoca entre o sistema cp y co de Freud e o sistema RSI de Lacan. Poderíamos considerar que RSIecp y co correspondem a semânticas da estrutura enquanto o caráter borromeano corresponderia à sintaxe. O PROJETO FREUDIANO 71 A lógica do texto é uma lógica do não-todo ou uma lógica para-completa conforme nos ensina Vappereau. Se o objeto da realidade pudesse coincidir com o objeto do desejo o sistema se completaria e seria inconsistente. A consistência só se mantém faltando um elemento que o complete. Em uma passagem, diz Freud que o eu sofre desvalimento "quando no estado de desejo investe de novo o objeto-recordação e então decreta a descarga; não obstante, a satisfação por força faltará, porque o objeto não tem presença real mas somente uma representaçãofantasia." A única maneira de não acontecer isto é o eu inibir as recordações desejadas para que possa se sobressair o signo de realidade objetiva, ou seja, haverá uma discordância permanente entre o objeto da realidade e o objeto desejado. Ora, este é o mecanismo do desejo, é o que faz o aparelho funcionar. Mais tarde, no capítulo VII, da "Interpretação dos Sonhos", ele dirá que o desejo é o motor do aparelho psíquico. É curioso que Freud tenha renegado toda a correspondência a Fliess, seja pelo horror das lembranças da relação, depois que a transferência se desfaz, seja pelo fato de estar tentando apoiar os fenômenos da "psicologia" em uma escritura neurológica. O fato é que os trabalhos desta época marcarão os desenvolvimentos futuros e o real da estrutura ficará de certa forma escamoteado durante muitos anos até ressurgir em "Além do princípio do prazer" e "O eu e o isso". Esta última obra, publicada em 1923, constitui um extraordinário esforço de Freud de produzir novamente uma escritura da psicanálise, já agora despida de qualquer referência neurológica, condensando mais de 20 anos de teorização em um texto que surpreende pela sua concisão. O "Projeto" e "O eu e o isso" têm muitas semelhanças. A motivação para a elaboração dos dois textos é clínica; no primeiro, clínica da histeria, no segundo a melancolia. Em ambos, a estrutura, ou "arquitetura", leva a uma separação entre prazer e gozo. A causa de tensão da estrutura é o furo, o real. Em ambos há uma estrutura ternária, no primeiro uma topologia de nós enquanto no segundo é sugerida uma topologia de superfícies. O desenho de Freud no texto mais recente lembra a representação do cross-cap proposta por Lacan. A linha do recalque poderia talvez ser pensada como a linha de invaginação do cross-cap. O mais importante desses dois textos é que eles estabelecem um vetor para o desenvolvimento da teoria psicanalítica com implicações éticas e políticas: a partir da clínica produzir uma escritura da psicanálise que, retroativamente, produza efeitos sobre a própria prática clínica. Este é o projeto freudiano, retomado por Lacan a partir da década de cinqüenta A grande diferença de Lacan para Freud foi ter produzido uma escritura da experiência analítica, introduzindo o objeto a, sua contribuição para a psicanálise conforme ele mesmo disse, enquanto Freud ainda se colocava como o cientista que olha para o seu objeto, no caso, o aparelho psíquico. 72 100 ANOS DE PROJETO FREUDIANO Já no Seminário 1, Lacan declarava que a psicanálise só avançaria se introduzisse os símbolos da sua prática. Muito mais tarde ele vai dizer "só se transmite matemática". Ele estava consciente de que só uma escritura de estilo matemático, articulada por uma lógica própria, poderia defender a psicanálise dos efeitos deletérios dos narcisismos individuais e grupais, bem como dos desvios delirantes. Ao contrário de Freud, que na "História do movimento psicanalítico" propõe uma Instituição universal comandada por alguém com muita autoridade, Lacan nunca se enganou em relação aos grupos. Por isso ele cria o Cartel como estrutura, o passe como dispositivo de aferição das análises didáticas e a dissolução sempre presente como vórtex na Instituição analítica. Noprojeto freudiano , sustentado em uma lógica do não-todo, desenvolvido por Lacan, o trabalho permanente de escritura é pré-requisito para sustentar a psicanálise como uma prática ética. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 1. 2. MASSON, J.A. Correspondência completa de Sigmund Freud para Wilhelm Fliess 1887-1904, Rio, Imago Editora Ltda, 1986, p.130. FREUD, S. "Poyecto de psicologia" in Obras Completas de Sigmund Freud, vol.1, Buenos Aires, Amorrortu Editores, 2 s ed., 1988, p.370. A Ideologia da (In)Satisfação Paulo Becker O "Projeto" de Freud não era inocente. A estrutura do texto que leva este nome é demasiado inteligente, demasiado exata para que fosse totalmente ignorante de suas conseqüências. À medida em que seus escritos vão avançando, Freud faz cada vez mais uso daquele truque do narrador, através do qual ele se coloca no lugar de um suposto interlocutor, usando expressões do tipo, "o leitor atento poderia objetar", ou "aqui se poderia argumentar...", etc.... Ele é cada vez mais elegante; se tomamos este grau cada vez maior de elegância como uma das metas essenciais, no sentido ético, do homem Freud, podemos dizer que o "Projeto" foi bem sucedido. De fato, poderemos dizer, com Lacan, que o projeto freudiano é de natureza essencialmente ética. Mas em 1895, Freud é um interlocutor tão rigoroso quanto selvagem. Seu método é cruel; vamos utilizar as próprias armas do inimigo, até a exaustão. Levamos os seus argumentos às últimas conseqüências, e a verdade lhe cairá, não como uma maçã, mas como uma bigorna sobre a cabeça. Ser-lhe-á impossível dizer que não é a sua verdade. A relação do sujeito à verdade é de constrangimento. As frases são do tipo: somos forçados a, é imperativo admitir... assim ele leva o positivismo científico, naquela época e agora, ao canto do ringue. Ora, vocês não querem o materialismo? Então, eu lhes ofereço a pulsão, este é o nosso Bem material. Mas será forçoso admitir também que a matéria é paradoxal. Em oposição à toda concepção vigente, esta matéria não tem substância, não carrega em si uma força positiva inerente, e não é mensurável; ela possui signos que alertam para o seu excesso. A pulsão é tão material quanto um buraco pode ser material. As zonas erógenas são tão fisiológicas quanto a capacidade do organismo de enganar-se acerca dos seus objetos. E o fato de a matéria poder dar-se a ler, uma vez que é cientificamente comprovado que ela é entranhada de signos, signos que alertam sobre a satisfação e a dor, confere uma estranha materialidade ao próprio pensa73 74 100 ANOS DE PROJETO FREUDIANO mento. Até aqui, pareceria que Freud apenas antecipou, o que já seria muito, uma ciência nova, inteiramente assimilável no decorrer do século. Mas a coisa vai muito além disto. Pois o que se depreende das suas proposições não é só um novo estatuto do Eu, aqui definido como um sistema organizado de dendrítos e axônios que facilitam ou inibem as descargas. Surge uma questão fundamental; o que é este sujeito que está entre o prazer e a dor (tanto faz), onde é que ele está, se não está nos sistemas descritos? O seu lugar anunciado é o de um transmissor de diferenças entre períodos de excitação. Entre os órgãos do sentido de um lado, e as sensações conscientes de qualidade por outro, atua uma instância que é, em si, uma lacuna da excitação. Com relação a um ponto hipotético de saturação, ela é uma conta a menos, ou um quantum a menos. Mais do que um transmissor de diferenças, que ainda se poderia substancializar, o sujeito que se anuncia é uma diferença. Não é ele que promove os atributos ou qualidades, mas terá que participar como um intervalo entre os períodos, para que então advenham à consciência. Ser uma pura diferença implica não ter atributos e, nas palavras de Freud, "não ter duração, não deixar atrás de si rastro algum, e não poder ser reproduzido". Os juízos, de atribuição e de existência, são os novos agentes infiltrados no terreno da Ciência, assim como quem não quer outra coisa. Se querem sair do campo do idealismo filosófico, e submeter a questão ao tratamento da psicologia científica, então deverão admitir forçosamente que o juízo é um equívoco. Equívoco que está na estrutura mesma do juízo, nas informações de que dispõe para formular suas premissas e conclusões. As informações, geradas a partir das barreiras de contato, chegam truncadas, deformadas, uma mistura palatável da Percepção e da Lembrança. O objeto real é o impossível para o sujeito. O campo da realidade é praticamente definido aqui como uma cena, cujos enquadres são o limite da Percepção, que é a alucinação, e o limite da Lembrança, que é o sonho. Quanto mais der de cara com as Portas da Percepção, o sujeito será um alucinado. Quanto maior o predomínio da Lembrança, ele será um sonhador. A certeza é uma solução de compromisso entre o que se percebe e o que se lembra. Não se trata mais de ensaio e erro, gerando uma ética do tipo, conhecer o erro para não repeti-lo. É impossível não repeti-lo. Trata-se antes de errar com uma nova convicção! Recebem aqui o golpe, simultaneamente, a razão idealista e a razão científica. E qual o sujeito que resta aí? Além de alguém sempre mais ou menos alucinado ou sonhador, ele é aquele que garante esta solução de compromisso. Ele é a própria falta de correspondência entre o signo do que se percebe e do que se lembra. Ele é novamente, e não poderia deixar de ser, um intervalo, uma diferença, um entre-signos: e tem algo a sustentar. Do que assume como verdade, não há outra garantia senão a sua decisão, que é a sua aposta. E Freud demonstra que a aposta do juízo é a aposta do desejo. A pergunta fundamental que Lacan propõe ao sujeito encontra um eco: foste fiel ao teu desejo? Aqui se A IDEOLOGIA DA (IN)SATISFAÇÃO 75 evidencia que o estatuto do sujeito que emerge do Projeto freudiano é ético. A sutileza de Freud se faz sentir quando ele quase pede desculpas ao seu suposto interlocutor, o científico, por introduzir de maneira necessária, naquela máquina complexa, uma instância que aprende com a Biologia. Quem aprende o quê com quem? Esse que aprende não pode ser definido a partir do mesmo campo. O sujeito que se constitui como intervalo ou pura diferença, seja porque garante a diferença entre o prazer e a dor, seja porque mantém um intervalo entre o sonho e a alucinação, é um sujeito que assume um compromisso ético. Este compromisso pode ser definido como manter-se exilado do gozo. O mito de Édipo, o exilado original, não deixa de expressá-lo, na medida em que ele era casado com a mãe, gozava da mãe, e não sabia. Como se diz hoje, era feliz e não sabia. Outra frase que escutei recentemente: "estou muito melhor agora do que não estava!", dito de forma verdadeiramente entusiasmada com a melhora. Sempre onde isso era, o sujeito não sabia, estava em outro lugar. A satisfação que se coloca para ele é sempre paradoxal. E o seu ato não será sem conseqüências. A cada descarga de excitação, se cria uma nova via de facilitações, uma memória da descarga. E Freud define a memória como uma redução a uma informação sobre o próprio corpo. A cada decisão, o sujeito vai escrevendo, com o que se passou, os destinos da pulsão, criando as suas vias. Elas estarão facilitadas, e será cada vez mais penoso recalcá-las. Sob este ponto de vista, não há uma distinção entre o que ele é e o que ele faz. Este conceito está explícito em outro texto posterior, o "Bloco Mágico", onde o sistema de traços mnêmicos constitui uma escrita. Freud escreve o "Projeto" sob o impacto da descoberta da histeria e sua relação com a sexualidade. O discurso histérico aposta no Pequeno Grande Pênis, ao invés de apostar no Falo. Daí serem tolerados os graus mais absurdos da decepção, da frustração e até mesmo da real privação, mas nunca a castração! Na oscilação entre a Toda-Potência e a impotência do Outro, o discurso histérico sustenta uma ideologia da insatisfação, na medida em que aposta no desejo insatisfeito, e não aceita a satisfação paradoxal. Ele caiu como uma luva nas décadas seguintes, os anos 20,30, e 40, aquele início charmoso do capitalismo, onde, ainda tomando de empréstimo algo do humanismo religioso, principalmente a purificação pelo sofrimento, o discurso dominante propõe uma promessa de satisfação, sob a forma do consumo moderado, o emprego, a mobilidade social e o amor burguês. A insatisfação há de ser sustentada, não propriamente o desejo. A sociedade será tolerante com os sintomas, e abrirá um campo enorme para os psicologismos adaptativos. A sociedade psicanalítica também esconde o projeto freudiano na gaveta. Como sempre na histeria, ninguém quer saber do lixo que isso produz, não é responsável por esses restos. 76 100 ANOS DE PROJETO FREUDIANO O cinema de Hollywood desta época espelha muito bem o ideal dominante. AIngrid Bergman de Casablanca não fica mal como símbolo disso tudo. De fato, enquanto a guerra avança, ela vive aquele drama: quando ama a um, foge com o outro. E quando vai com o outro, ela deixa o desejo com o Um. Isso tudo chorando um balde de lágrimas, num tom levemente depressivo. Tudo deverá ser sustentado com leveza; o que é mais heavy é varrido para debaixo do tapete. Nove entre dez estrelas do cinema vão sofrer de depressão e alcoolismo graves, anunciando a era das heavy drugs. Mas isto é creditado a um lado excepcional e escandaloso. É impressionante como os efeitos da guerra demoraram a se fazer sentir na sociedade americana. Foi necessária uma outra Na primeira metade deste nosso século, o Projeto freudiano esteve devidamente engavetado. Comparemos com a abordagem que faz Bunuel, no seu filme O Obscuro Objeto do Desejo. Enquanto o personagem se perde na dúvida interminável sobre se a mulher tem ou não tem o Falo, as bombas terroristas explodem em volta, como uma ruptura daquele fluxo metonímico da insatisfação. O discurso dominante agora decreta que não há mais sonho, apenas um pretenso real da satisfação que se tem que buscar toda. Ávida social é regida por uma máquina de gozar, que define os que são aptos. Os felizardos se apropriarão de uma parte cada vez maior do gozo, e o resto deve apodrecer como resto. Esta nova versão do discurso do Mestre teve como base o discurso histérico que o precedeu. Produz, por exemplo, uma lógica econômica perversa na Europa, onde é aceitável que metade da população esteja excluída como muito pobres, desempregados e francamente miseráveis. E o pior somos nós aqui no Brasil, e em geral na América Latina, copiando isso. Ora, nós já temos know-how sobre o assunto. Os restos se acumulam de forma absolutamente intolerável: nós temos tentado inclusive o extermínio sistemático destas populações, mas a nossa capacidade de produzi-las é sempre maior do que a capacidade de exterminá-las. O Rio de Janeiro, por exemplo: de general em general, retornamos agora a velha máxima que reza: bandido bom é o bandido morto. Poderíamos levar a nossa experiência para o Velho Mundo, alertando-os para o fato de que os guetos não se acomodam no limite que lhes foi traçado. Rapidamente, os felizardos se verão cercados pela massa turco-latino-afro-árabe de excluídos, em número suficiente para emperrar o funcionamento da máquina, como já está acontecendo. O discurso do Senhor sustenta portanto a ideologia da satisfação, e não deixa de se interessar pelos restos que produz, mas se propõe como aquele que pode controlar os seus efeitos. Agora talvez teremos a interveniência mais ampla do "Projeto" freudiano. É certo que a questão ética virá com força nesta virada do século, e o crescimento vertiginoso das diversas religiões atestam isso. O discurso analítico tem um papel importante a desempenhar. Ele reivindicará o lugar para o sujeito que não cede sobre o seu desejo, diferenciando-se do desejo insatisfeito do sujeito histérico e do imperativo do gozo que o complementa. Das Ding ou o Lugar do Analista na Cultura Noêmia Santos Crespo No "Projeto para uma Psicologia Científica", Freud esboça uma primeira formalização da lógica que rege o funcionamento do aparelho psíquico. Situa sua emergência num organismo cujo estágio infantil se caracteriza pelo mais extremo desamparo. Submetido às pressões da existência, tal organismo terá de construir penosamente seu acesso à realidade — correndo o risco de extraviar-se neste percurso. Os circuitos reflexos pré-formados deste organismo são incapazes de assegurar sua sobrevivência. O recém nascido humano não vem ao mundo equipado com a habilidade inata de outros mamíferos. Para enfrentar necessidades vitais elementares como a fome, tal filhote não possui recurso melhor que descarga motora do choro. Insuficiente para drenar a tensão proveniente do interior do corpo, o choro pode, no entanto, atrair a atenção de um "adulto experiente" que realize para a criança uma "ação específica" adequada às circunstâncias, provendo o alimento. Satisfeita aí a necessidade, ocorre uma plena descarga da tensão acumulada no aparelho psíquico — experiência primeva de satisfação, que será inscrita na memória. Para Freud, o retorno da pressão da necessidade faria com que a imagem mnêmica do objeto satisfatório fosse reativada, desencadeando a sucção reflexa de um seio alucinado. Só o desprazer provocado pela frustração poderia forçar o aparelho a criar mecanismos de controle para esta tendência alucinatória primitiva. Com o tempo, diz Freud, o aparelho modifica sua dinâmica primária, voltada para a descarga completa de toda quantidade e de toda tensão. Abandona o princípio de inércia; "aprende" a reter uma certa tensão em seu sistema psi, capaz de contrarrestar a tendência à alucinação e capacitar o aparelho a ações específicas de complexidade crescente. 77 78 100 ANOS DE PROJETO FREUDIANO Contudo, para que tal "aprendizagem" seja possível, "o desprazer permanece como o único meio de educação" . Se ao seio alucinado sempre se superpusesse um seio idêntico no real, como poderia o aparelho reter alguma tensão — ou seja, como poderia constituir-se um sujeito capaz de discernir alguma alteridade? Em "A Negação", Freud indica que "uma condição essencial para o estabelecimento da prova de realidade é que se tenham perdido objetos que outrora trouxeram satisfação real"2. No "Projeto...", Freud faz intervir a perda deste objeto já na inscrição mnêmica da experiência de satisfação. O complexo perceptivo do objeto satisfatório terá um registro heteróclito, desdobrável entre uma certa porção constante (o "neurônio a", referente à "coisa") e outras porções variáveis ("neurônios b, c, d", "atributos da coisa"). Ora, a "coisa" em si mesma já é conotada por Freud como um "resto substraído ao juízo". Temos aqui um paradoxo: o complexo perceptivo inscrito na memória é desigual a si mesmo. Pelo menos uma parte dele fica fora do pensar, do lembrar, do julgar e do reconhecer. E é a esta "porção constante do complexo perceptivjo" crivado pelo sistema psi que Freud fará corresponder "o núcleo do eu". A inscrição do objeto da satisfação primeva é, assim, o registro de sua perda, memorial de sua 'ex-sistência". O "um" do traço se faz acompanhar do zero, do conjunto vazio, lugar desertado por Das Ding. A presença desta ausência será a sombra de todo reencontro futuro com qualquer objeto, por mais satisfatório que ele seja. O "núcleo do eu" vem a ser onde a Coisa se perde: "Wo Es war, soll Ich werden." Daqui para frente, nunca mais será possível um completo escoamento da tensão do aparelho. A repetição da experiência satisfatória, lida pelo crivo da inscrição primordial, por mais que se encaixe nos traços desta inscrição, portará uma desigualdade no cerne de sua identidade mesma. Entre a satisfação obtida e a satisfação esperada restará doravante uma diferença, que fará do desejo indestrutível o núcleo de nosso ser (Freud, "Interpretação dos Sonhos"). Assim, a permanência da tensão "ligada" no sistema psi pareceria corresponder à expulsão da Coisa do campo das inscrições — ou melhor, à sua constituição, por este campo, como resto excluído. Ora, a rede das "recordações conceituais" assim organizada intermediará doravante toda passagem de quantidade entre percepção e consciência; tenderá a traduzir toda representação do objeto em termos de "um pálido incubo da relação com o mundo, de um gozo extenuado" — inscrevendo uma ausência em toda a presença. Só assim o aparelho poderá fazer uso dos signos de qualidade provenientes da percepção, distinguindo entre os objetos presentes aos sentidos (mas "esvaziados" em relação aDas Ding, devido à intermediação do sistema psi) e os objetos ausentes aos sentidos, presentificados de modo ainda mais tênue pela pura reativação do traço mnêmico. DAS DINC OU O LUGAR DO ANALISTA NA CULTURA 79 Em sua releitura da teoria freudiana, Lacan faz intervir a dimensão do Outro numa anterioridade lógica radical à constituição do sujeito. Retornando à cena da experiência de satisfação primeva descrita por Freud, ele a descreve "grávida desse Outro a situar aquém das necessidades que ele pode suprir". O Outro se perfila de antemão, face ao desamparo da criança, "já tendo o privilégio de satisfazer as necessidades, isto é, o poder de privá-las da única coisa pela qual elas são satisfeitas".4 Para que as necessidades da criança obtenham satisfação, elas têm de passar primeiro pelos "desfiladeiros do significante". É o Outro quem "traduz" o choro da criança, e suporta sua dependência no interior de um universo de linguagem. É no campo do Outro que a necessidade se transcreve em demanda — é de lá que ela retorna configurada na lógica do significante. Antes de ser alimentada, a criança é falada. A ação específica para o indivíduo da espécie humana exigirá a intermediação do simbólico; este indivíduo só poderá sair de seu desamparo e dependência radicais se receber do Outro as inscrições de um sistema estruturado como uma linguagem (o sistema "psi" do "Projeto"). Lugar do tesouro do significante, o Outro deve estar separado do gozo para possibilitar a emergência de um sujeito protegido da intrusão alucinatória. Cumprida esta pré-condição, a própria lógica do significante determina uma interdição do gozo. Depois de inscrita nesta lógica, uma experiência de gozo (como a "vivência de satisfação" primeva descrita por Freud no "Projeto") tende a sofrer uma perda de intensidade a cada repetição:"(...) é que, nessa mesma repetição, produz-se algo que é defeito, fracasso"5. Uma vez "sabida", isto é, registrada pelo traço unário e "reconhecida" na repetição, esta experiência sofre um "desperdício de gozo":"(...) no nível mais elementar, o da imposição do traço unário, o saber trabalhando produz, digamos, uma entropia"6. Ora, é justamente esta perda que no entender de Lacan vai causar todo o trabalho do aparelho psíquico — exatamente como no "Projeto" freudiano. "De fato, é apenas nesse efeito de entropia, nesse desperdiçamento, que o gozo se apresenta, adquire umstatus. Eis porque o introduzi de início com o termo Mehrlust, mais-de-gozar. É justamente por ser apreendido na dimensão da perda (...) que esse não-sei-quê (...) fez gozo, e gozo a repetir. Só a dimensão da entropia dá corpo ao seguinte há um mais-de-gozar a recuperar"7. "Eé no lugar dessa perda, introduzida pela repetição, que vemos aparecer a função do objeto perdido, disso que eu chamo a . Causa do "desejo indestrutível' postulado por Freud, diferença entre o gozo esperado e o gozo obtido, este objeto irrecuperável move o sujeito falante: "(...) o que o impulsiona, o que trabalha nele, o que o torna de uma outra ordem de saber, (...) é a função do mais-de-gozar como tal". "Esta é a dimensão na qual se necessita o trabalho, o saber trabalhando(...) . É a inscrição do Nome do Pai no lugar do Outro que prove a estabilização e a demarcação do campo da realidade, correlativa à extração do objeto "a" — 80 100 ANOS DE PROJETO FREUDIANO herdeiro conceptual do "Das Ding" freudiano. A expulsão de "Das Ding" do campo do juízo, a perda pelo sujeito de objetos que outrora trouxeram uma satisfação real, supõem uma perda correspondente no campo do Outro. É preciso que haja ao menos alguma margem não-recoberta pelo "pisoteio de elefante do capricho do Outro"; "É esse capricho (...) que introduz o fantasma da Toda-potência não do sujeito, mas do Outro onde se instala sua demanda (...), e com esse fantasma a necessidade de seu refreamento pela Lei"10. Na psicose, ocorre um fracasso neste refreamento do Outro pela Lei. Com a foraclusão do Nome-do-Pai, o sujeito fica exposto ao que Freud caracterizou no "Projeto..." como um livre curso de quantidades desligadas: nada vem fazer limite ao circuito das facilitações primárias, nada pode lastrear um "fora" deste circuito. "Das Ding" não se separa do "complexo do semelhante". Na clínica da neurose, encontramos algo como uma separação malfeita, um corte pela metade. Inibição, sintoma e angústia são convocados para escorar as paredes que separam o sujeito do gozo do Outro, fazendo seu eco ao Nome-do-Pai. Significativamente, já nos "Complexos Familiares" Lacan relacionou o nascimento da Psicanálise a uma crise subjetiva decorrente de um "declínio da imago paterna" — declínio este "condicionado pelo retorno de efeitos extremos do progresso social no indivíduo (...): concentração econômica, catástrofes políticas . Lacan fala mesmo nesse texto de uma "grande neurose contemporânea", que comenta nos seguintes termos: "Nossa experiência nos leva a designar sua determinação principal na personalidade do pai, sempre carente de alguma forma, ausente, humilhada, dividida ou postiça. É essa carência que, de acordo com nossa concepção do Édipo, vem não só exaurir o impulso instintivo como também prejudicar a dialética das sublimações . Se a função paterna se define pela interdição do gozo do Outro, segue-se que algo na ordem social vigente pareceria a Lacan dificultar o exercício desta função. A dinâmica do nosso "progresso social" conspiraria contra a estabilização de um limite ao gozo. Décadas mais tarde, Lacan procura na contribuição de Marx o fio condutor para o mapeamento do que vem a denominar nosso "sintoma social" — atribuindo mesmo a Marx o pioneirismo no manejo de uma noção "moderna" de sintoma. Afinal, no texto de Marx, as crises e os paradoxos que assolam as sociedades não são tratadas como contingências cegas, desvios de seu suposto funcionamento normal: são antes pensadas como manifestações "sintomáticas" de uma lógica essencialmente paradoxal que regeria toda sociedade dividida em classes. O antagonismo latente ou manifesto entre dominantes e dominados constituiria um buraco central em torno do qual se amarrariam e reamarrariam todas as sociedades pós-neolíticas — assim, para Marx, "a História de todas as sociedades que existiram até nossos dias tem sido a história das lutas de classes"13. DAS DING OU O LUGAR DO ANALISTA NA CULTURA 81 Os antagonismos de classe já são demarcados por Marx em sociedades que floresceram séculos antes de Cristo em torno do modo de produção dito asiático e do escravismo antigo. Mas, historicamente, a exploração dos escravos e servos teria sido sempre mantida dentro de certos limites — exceto em situações, extremamente incomuns antes do capitalismo, em que a produção fosse destinada prioritariamente à venda no mercado: "Não foi o capital quem inventou o trabalho excedente. Toda vez que uma parte da sociedade possui o monopólio dos meios de produção, tem o trabalhador (...) de acrescentar ao tempo de trabalho necessário à sua própria manutenção um tempo de trabalho excedente destinado a produzir os meios de subsistência para o proprietário dos meios de produção. (...) Todavia, é evidente que numa formação econômico-social em que predomine não o valor-de-troca mas o valor-de-uso do produto, a mais valia fica limitada por um conjunto mais ou menos definido de necessidades, não se originando da natureza da própria produção nenhuma cobiça desmensurada por mais-valia. Na antigüidade, o trabalho em excesso só atingia as raias do monstruoso quando estava em jogo obter valor-de-troca em sua materialização autônoma, em dinheiro, com a produção de ouro e prata." . Curiosamente, o próprio Marx fala da perda de um certo limite "patriarcal" à exploração do trabalho quado passa a predominar a produção de valor de troca, no alvorecer do capitalismo: "O trabalho dos negros nos estados meridionais da Améria do Nortepreserva va certo caráter patriarcal enquanto a produção se destinava principalmente à satisfação direta das necessidades. Na medida porém em que a exportação de algodão se tornou interesse vital daqueles estados, o trabalho em excesso dos negros e o consumo de sua vida em 7 anos de trabalho tornaram-se parte integrante de um sistema friamente calculado. Não se tratava mais de obter deles certa quantidade de produtos úteis. O objetivo passou a ser a produção da própria mais-valia" . Em "O Capital", Marx descreve a sociedade em que vivemos como uma gigantesca máquina de expansão e acumulação de riqueza abstrata. Definida em termos de "trabalho morto", tempo de trabalho cristalizado em valores de troca, esta riqueza se transforma em capital quando ingressa majoritariamente numa lógica de "reprodução ampliada" — isto é, quando passa a circular regida pelo imperativo absoluto da acumulação da mais-valia. Esta é definida como o tempo de trabalho que se toma ao operário além daquele necessário para que este produza sua própria subsistência — valor excedente destinado ao mercado; valor que se contabiliza e se expande indefinidamente. Aqui, Lacan subscreve explicitamente a teorização de Marx. Data do alvorecer do capitalismo a ocorrência de uma espécie de mutação sui generis, e decisiva, do Discurso do Mestre — correlativa à contabilização e à acumulação do maisde-gozar em termos de mais-valia, propiciando a expansão do capital. Esta monetização do mais-de-gozar contribuiria para "esvaziar" ou para obscurecer a separação estrutural entre o sujeito dividido e o gozo, a impotência que os separa. 82 100 ANOS DE PROJETO FREUDIANO Se "a linguagem, mesmo a do Mestre, não pode ser outra coisa senão demanda, e demanda que fracassa"16, este fracasso é de alguma forma camuflado pelo êxito do mecanismo de acumulação da mais-valia, pelo totalitarismo do mercado em sua lógica impessoal. Marx denuncia o arrebentamento dos limites tradicionais à exploração dos dominados, que se seguiu à prevalência do Mercado como ordenador das trocas sociais. Em "O Capital", descreve com indignação as diversas manifestações e os efeitos perversos da superexploração do trabalho que observa, ao vivo, em sua sociedade. É verdade que esta face obscena do sintoma social contemporâneo — um "rosto de Medusa", no dizer de Marx — recebeu maquiagens e plásticas nos 128 anos que nos separam da publicação do "Capital". Hoje, por exemplo, a maioria dos Estados modernos limita a exploração do trabalho através de legislação trabalhista e previdenciária. Mas isto resultou de lutas sociais penosas, muitas delas inspiradas nos significantes-mestres do próprio Marx, que chegaram a desembocar em revoluções socialistas. Presentemente, alguns autores sugerem que a derrocada do chamado socialismo real representa uma séria ameaça às conquistas sociais dos trabalhadores nos países capitalistas (por ex., Hobsbawn, 1992). Neste cenário atual, mesmo no entender de cientistas políticos marxistas como Hobsbawn, "por enquanto não há nenhuma parte do mundo que apresente com credibilidade um sistema alternativo ao capitalismo" . É com os efeitos subjetivos de um laço social marcado pela instabilidade de todos os limites, onde a cada dia "tudo o que era sólido e estável se esfuma", que lidamos como psicanalistas desde Freud. Ora, toda a lógica de nossa ordem social gira em torno do imperativo primário do Mercado: expandir e acumular riqueza abstrata, multiplicar e diversificar as mercadorias, gerar demanda para as mesmas via publicidade. Este mecanismo corporifica um Outro dotado de um saber cumulativo — a ciência e a tecnologia modernas — que comanda, sem rodeios: goza, compra, consome. A felicidade é prometida por este saber, oferecida no corpo de cada mercadoria. Todo este movimento, porém, não faz mais que exasperar a entropia do gozo e a falta-degozar — afinal, como Freud já indicara em seu "Projeto", qualquer objeto de satisfação é impotente para restituir-nos Z)as Ding. A sucessão de experiências de prazer com os mais diversos bens só faz sublinhar a distância que os separa do Bem Supremo que é a Coisa? do Bem Supremo que é a Coisa. Assim, Lacan descreve a dinâmica do capitalismo como uma ciranda retroalimentada pelo alargamento progressivo da insatisfação, que ela mesma catalisa: "(...) a mais-valia é a causa do desejo do qual uma economia faz seu princípio: o da produção extensiva, por conseguinte insaciável, da falta-de-gozar. Por um lado se acumula para acrescentar os meios desta produção a título de capital. Por outro estende o consumo, sem o qual esta produção seria vã, justamente DAS DINC OU O LUGAR DO ANALISTA NA CULTURA 83 por sua incapacidade para produzir um gozo como qual ela pudesse desacelerar-se"18. Nossa cultura não parece capaz de prover, em sua ideologia dominante, uma nominação estável para a falta no Outro. Os antigos viam nos males do mundo um efeito insondável da vontade dos deuses — fora de cogitação podermos cooptá-los ou compreendê-los; o certo é que deles, definitivamente, não teríamos a chave da felicidade. O cristianismo relegou para o Além a satisfação do desejo junto ao Pai; o mundo, vale de lágrimas, era um lugar onde o sujeito deveria dar provas de sua virtude pela fé e pelas obras, cercado pelo mistério e pelo silêncio de Deus. Ora, na cultura tecnológica moderna, somos induzidos a crer que tudo o que nos aflige tem, ou terá um dia, solução pelo progresso da Ciência. Ninguém precisa, e nem deve, conformar-se com a falta, que perdeu todo o valor de lastro moral. Assim, o mal-estar na nossa cultura deriva de uma insatisfação que só tem como traduzir-se em termos de frustração. A dificuldade em barrar o imperativo "goza!" traduzido em "consome!" pode levar à delinqüência os que se sentem excluídos; já a insatisfação que se acumula no usufruto da ciranda de bens, se não encontra um derivativo capaz de ancorar o sujeito, pode levá-lo a diversas formas de desespero. Ao grito de "Não é isto!", com que saudámos o atendimento de cada demanda, a economia do consumo de massa responde: então será aquela, e mais aquela, e mais aquela mercadoria. É como se a ordem social vigente corporificasse um Outro que se recusa a separar-se do seio "e, em lugar do que não tem," sufoca-nos "com a papinha asfixiante do que tem". Ora, "É a criança alimentada com mais amor que rechaça o alimento e joga com sua recusa como um desejo (anorexia mental)"19. Seria a drogadicção, epidemia expansionária na moderna sociedade de consumo, uma variante desta "anorexia mental"? Numa primeira abordagem, o toxicômano parece antes encarnar documente a obediência em sua aparente rebeldia, — submete-se ao Outro que empanturra, que não falta, que satisfaz. Como observa Charles Melman, "(...) o que se chama para nós a 'sociedade de consumo' repousa sobre um ideal, mas ignora que este ideal é o toxicômano que o realiza. Com efeito, o sonho de todo publicitário, de todo fabricante é de realizar o objeto do qual ninguém poderia mais passar sem; objeto que teria qualidades tais que apaziguaria, ao mesmo tempo, as necessidades e os desejos, que necessitaria de uma renovação permanente, uma perfeita dependência . Por outro lado, a conduta do drogadicto pode ser também lida como uma sucessão de actings voltados a "retificar a dimensão da falta no campo do Outro", como observa Ligia Bittencourt num escrito onde, justamente, discute o caso clínico de uma toxicômana21.0 buraco no Outro, o drogadicto procuraria cegamente construí-lo, escrevê-lo, com seu corpo devastado, caído, ou mesmo morto. 84 100 ANOS DE PROJETO FREUDIANO Poderia ler-se aí uma dimensão ética, e até trágica, da toxicomania na nossa cultura. Levando ao pé da letra, e até as últimas conseqüências, o imperativo de gozo proveniente do Outro — consumindo mercadorias supostamente capazes de suspender a diferença entre o prazer esperado e o prazer obtido — o drogadicto faria do seu próprio corpo o resto caído, perdido para o Outro. Assim, o adoecimento do drogadicto viria fazer limite ao saber do Outro e a sua potência. No final do seminário da Angústia, Lacan postula que a carência da função paterna, tão amiúde encontrada na clínica, nos revela "a necessidade da articulação, do apoio, da manutenção desta função — que o pai, na manifestação de seu desejo, saiba a que se refere dito desejo", tendo podido (...) "reintegrá-lo a sua causa, qualquer que ela seja, ao que há de irredutível na função de " a " . O desejo do analista deveria cumprir esta mesma exigência: "Sem dúvida, convém que o analista seja aquele que tenha podido (...) reintegrar seu desejo a este "a" irredutível, e num grau suficiente para oferecer à questão do conceito de angústia uma garantia real" . No Sem.17, Lacan sugere que o discurso do analista tenha sido condicionado pelo discurso da Ciência (que "não deixa para o homem lugar algum"24) e pelo discurso do Mestre contemporâneo ("a prática analítica é propriamente iniciada por esse discurso do Mestre" ). Na transferência, o analista é suposto saber, e faz semblante do objeto perdido — Tirésias com mamas, como diz Lacan no Sem. 11; mas "é desta idealização" que ele "tem que tombar, para ser o suporte do "a" separador" . Deve catalisar a verificação pelo analisante do buraco que afeta o saber e o ser do Outro. Frente à vocação totalitária do discurso do Mestre modernizado, "em sua curiosa copulação com a ciência", o analista é convocado a encarnar Daí Ding — e, fazer ex-sistir o furo onde o sujeito pode alojar-se como desejante. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 1. FREUD, S. "Projeto para uma Psicologia Científica" in Obras Completas, v.l, Biblioteca nova, 1981, p.237. 2. "A negação" in Obras Completas, op.cit., p.264 3. LACAN, J. A Ética da Psicanálise, Rio, Jorge Zahar, 1988, p.79. 4. "A significação do falo" in Ecrits, S.Paulo, Perspectiva, 1978, p.268 5. Seminário XVII, O Avesso da Psicanálise, Rio, Jorge Zahar, 1992, p.44. 6. Ibidem, p.46 7. Ibidem, p.47-48 8. Ibidem, p.46 9. Ibidem, p.48 10. LACAN, J. "Subversão do sujeito e dialética do desejo no Inconsciente Freudiano" in Escritos, op.cit., p.296-297. 11. Os complexos familiares, Rio, Jorge Zahar, 1987, p.60. 12. Ibidem, p.61 DAS DING OU O LUGAR DO ANALISTA N A CULTURA 85 13. MARX, K. "Manifesto do partido comunista" in Textos, v.ll, S.Paulo, Ed.sociais, 1977, p.2. 14. O capital, livro I, Rio, Ed.Civilização Brasileira, 1968, p.265-266. 15. Ibidem, p.266 16. LACAN, J. Seminário XVII, op.cit, p.117 17. Hobsbaun, E. "Adeus a tudo aquilo" in Depois da perda, Black hurn, S.Paulo, Ed.Paz e Terra, 1992, p. 104 18. LACAN, J. Radiofonia, Barcelona, Ed.anagrama, 1977, p.59. 19. "A direção da cura e os princípios de seu poder" in Escritos li, México D.F., SigloXXI, 1985, p.608. 20. MELMAN, C. Alcoolismo, delinqüência, drogadição: uma outra forma de gozar, S.Paulo, Ed.Escuta, 1992. 21. BITTENCOURT, L. "A paixão triste ou a narcose do desejo" in A vocação do êxtase, Rio, Imago, 1994, p.63. 22. LACAN, J. Seminário X Angústia, inédito. 23. Ibidem. 24. Seminário XVII, op.cit., p.138. 25. Ibidem, p.144. 26. LACAN, J. Seminário XI, Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise, Rio, Jorge Zahar, 1985, p.258. De Projetos e de Máquinas Carlos Eduardo Estelita Lins 1 A marca do Projeto e o problema da escrita Gostaria inicialmente de tratar do nome do texto que estamos homenageando. Em primeiro lugar devemos notar que o manuscrito não tinha nome. Os editores da Gesamelte Werke, Ilse Gubrich-Simitis e Angela Richards lembram que foram os editores dos Anfànge que entitularam este texto "Entwurf einer psychologie" ou seja: "Projeto de uma Psicologia".1 Mas, na carta a Fliess de 27 de abril de 1895, Freud fala de uma "Psychologie für den Neurologen" isto é: psicologia para os neurologistas. "Projeto" é portanto um apelido, uma alcunha forjada por um outro para designar um manuscrito que seu redator preferia ver destruído. Tratarse-ia de um filho sem nome? De um bastardo? Maria Bonaparte obtém os manuscritos de um livreiro, causando embaraço para um Freud surpreso com sua própria juventude. Em função deste atraso algo fica embargado no processo de nomeação. Este texto é marcado pelo fato de estar destituído de marca. Mas, um século depois, o 'Projeto" se chama projeto, tem portanto um nome. Nome adquirido. Esta é sua marca. Texto inominado e abominado, traz consigo a questão do nome e da máquina. É um texto que maquina e urde a metapsicologia que viria depois. A questão da economia de seu próprio nome é uma questão escrita e não deixa de ter afinidade com o nome próprio. Sua nomeação se dá a partir da escrita Paradoxalmente é um escrito fundador de uma teoria da escrita psíquica, mas que não teve seu nome inscrito senão depois. Projeto vem a ser uma alcunha evidentemente metonímica, um nome de guerra: projeto para alguma coisa, subtítulo explicativo que originou a posteridade "Projeto"="Entwurf'. Aliás, no singular: o "Projeto", indicando que na teoria psicanalítica freudiana só teve um e só há lugar para um. Este é seu lugar destacado e marcado. O "Projeto" era um elemento da correspondência à Fliess e simultaneamente é uma carta à posteridade. Começou a ser escrito à lápis. Podia ser apagado. Traz consigo o problema de uma inscrição, da representação psíquica, a talDarstellung. Trata de como poderiam representar impressões, examinando portanto a natureza do traço. A presença da energia 87 88 100 ANOS DE PROJETO FREUDIANO atravessando um sistema e deixando um tipo especial de facilitação, de rastro, de sirgagem, de Bahnungen. Eis aqui um sistema de notação e um modelo de memória que prescinde do traço entendido como presença durável e permanente de uma marca. Esta representação de memória, uma quase-máquina de escrita neurônica, pensa um tipo de marca que não é resultante do gesto (tempo) em um suporte (espaço). "Fábula neurológica" segundo Derrida, "Psicologia geral de Freud" para Lacan. O "Projeto" é um marco, e também uma marca peculiar. Sendo marcado pelo século dezenove podemos dizer que também foi capaz de marcar profundamente o vinte. Talvez o "Projeto" funcione, hoje, como uma espécie de marca muito peculiar, pois trata exatamente de um sistema de notação ou marcação. Um sistema que discute as condições de possibilidade da própria marcação. Sua etimologia desembaraça alguns fios condutores. Com Wurfel trata-se do jogar, é o jogo de dados primo-irmão do spielen que está em jogo. Werfen é lançar algo, jogar para frente, no adiante do pró-jectar que nos chega pelo latim. Jactu é simultaneamente um impulso e uma expulsão. O que foi atirado ao futuro. Menos uma teoria, seja psicologia para neurologistas ou neurologia dos psicólogos, e bem mais uma espécie de limite da representação onde o traço é a própria diferença, onde toda teoria se destitui e simultaneamente se constitui a partir de sua diferença. Para Freud, no "Projeto", a memória é representada pelo jogo da diferença. O vigor desta marca é uma afirmação. Aquilo que no texto sobre a denegação aparece como uma Behajung primordial: todo não incide sobre um sim primeiro. No "Entwurf' houve entwerfung e não verwerfung. Deste modo, descrever é antes de tudo jogar para a frente. Jogar para a luz: assim como entstehen é criar, ent-werfen é precipitar-se em atirar algo adiante. Eis a lógica deste apelido: projeto não é algo que normatiza e regula do exterior o que deve ser edificado depois, trata-se ao contrário de um lançar de dados imanente ao jogo que se desenrola a seguir. O 'Projeto" diz algo sobre o projeto da escrita freudiana: descrever aquilo que escapa constituindo uma espécie de fenomenologia do equívoco (vide a parte final que trata dos sonhos e áoproton pseudos). O conjunto da obra freudiana, seu trabalho, nos impede de falar em descrição psicológica. Poderíamos nos perguntar se o 'Projeto" seria um tipo de rótulo, uma marca registrada. Mas, esta marca se coloca diretamente sobre o psíquico? Freud teria então direitos de copyright, etc... O que exatamente vem a ser o dispositivo do "Projeto"? Poderíamos tomá-lo por uma máquina. E, enquanto máquina, de que se trata? Lettera, Ollivetti, Burrowghs, Wordperfect, etc. A Máquina d'escrever msscaEntwurf... Poderíamos supor que é uma máquina de escrever que se esconde sob as garatujas freudianas sacudidas pelo trem. Entretanto, encontrar muito apressadamente a máquina de escrever do "Projeto" pode ser um engano. O DE PROJETOS E DE MÁQUINAS 89 sistema de inscrição imaginado por Freud tem suas peculiaridades. Jacques Derrida, em um texto seminal sobre o assunto, "Freud e a cena de escritura", sustenta que a concepção freudiana da escrita ainda não estava formulada naquele momento. Passemos então ao problema, sem que tenhamos que admitir necessariamente sua hipótese. 2. Escrever e descrever. A representação da memória. Para entendermos como Derrida interpreta o "Entwurf' é preciso avaliar a situação da psicanálise na metafísica, especialmente o difícil problema das relações entre ambas — para Derrida a filosofia se ocupa de seu fim, mas que quer dizer para a psicanálise ocupar-se de seu próprio fim? A finitude e sua analítica constitui a questão principal da filosofia desde Heidegger, mas neste compasso de repetição não podemos situar para o psicanalista a questão do fim da psicanálise. Caricaturando, diremos que para Jacques Derrida, Freud aparece num modelito semelhante ao Nietzsche lido por Heidegger. É alguém que anuncia e realiza o final de uma festa da qual ainda participa e precisa participar. Nietzsche teria fechado as portas da metafísica, mas ficou do lado de dentro. De modo análogo, o conceito de traço em Freud, traz o germe de sua liberação do fonologocentrismo, mas ainda capitula. A escrita é o xis da questão. Derrida posiciona-se pela inexistência da escrita, de um dispositivo de escrita ou de uma máquina de escrever no "Projeto". A máquina freudiana seria encontrada bem mais tarde, no "Wunderblock". A problemática da dupla inscrição e do contra-investimento, presente na Metapsicologia, fica em posição intermediária e transitória, mas escrita enquanto tal existe somente no bloco mágico, dispositivo de escrita caligráfico e máquina de escrever não-tipográfica. Como diz ele: Do "Projeto" (1895) à "Nota sobre o Bloco Mágico" (1925), uma estranha progressão: uma problemática da bahnung é elaborada para se conformar cada vez mais a uma metáfora do traço escrito. De um sistema de traços funcionando segundo um modelo que Freud teria querido natural tcuja escritura é perfeitamente ausente, orientamo-nos para a configuração de traços que já não podemos representar senão pela estrutura e pelo funcionamento de uma escrita. O sentido de escrita é decidido aí. AsBahnungen do "Projeto" não se constituem simplesmente como antes, mas, indicam o que há de entitativo em todo ente, a sua perspectiva enquanto diferença: colocação da diferença ontológica. Escrita reduz-se simplesmente à inscrição, mas enquanto tal, plena. Inscrição esta que vigora como diferença e não mais apenas como ente, presença burra e derivada que avaliza o esquecimento do ser. Sigmund Freud produz uma inesperada ruptura com a concepção corriqueira do traço quando afirma que as facilitações-Bahnungen4 representam memória: Das Gedãchtnis sei dargstellt durch die Unterschiede in den Bahnungen zwischen den y Neuronen. 90 100 ANOS DE PROJETO FREUDIANO onde a diferença é duplamente sublinhada. Os editores do "Entwurf' assinalam que esta é a única palavra com duplo sublinhado no manuscrito original. São necessários dois traços para marcar a emergência do conceito de traço em estado puro. Duplicação medusante como índice da castração e artefato gráfico com que a mão de Freud hesita em tocar na máquina que se engendrava. A marca evanescente descreve e inscreve sua permanência: uma escrita não-escrita. É neste sentido que Derrida afirma que a escritura está perfeitamente ausente. Devemos notar que o caráter descritivo do "Projeto" confunde-se com sua regra de construção. Podemos dizer que no "Projeto" a máquina de descrever predomina sobre aquela de escrever. O "Projeto" é às vezes entendido como uma tarefa descritiva por Freud. De qualquer modo isto dubla e matiza o problema de uma escrita secundária e arrastada pela matéria fônica, que seria mera transcrição desta. O escriba volta a infestar o legislador. Jacques Derrida descreve a relação do "Entwurf' com o "Wunderblock". Todos os modelos mecânicos serão experimentados e abandonados até a descoberta do Wunderblock, máquina de escrita de uma maravilhosa complexidade, na qual será projetado o todo do aparelho psíquico. Da descrição do aparelho psíquico como totalidade passou-se à projeção de sua totalidade em uma máquina de escrever. Do mecanismo, construiu-se uma máquina. Sabemos que as primeiras páginas do manuscrito foram escritas à lápis, e podiam muito bem ter sido apagadas. Entretanto, o apagamento de traços com que o "Projeto" lida é ainda mais terrível e destrutivo que esta ameaça externa. Trata-se de uma questão interna, interior e intrínseca à sua economia conceituai. A questão de uma máquina de escrever envolve necessariamente a existência de uma máquina de apagar. Vemos surgir no "Projeto" uma disjunção incontornável entre Consciência e Memória, que aparece de modo diferente da filosofia clássica alemã, pois implica e exige a escrita em sua descrição. Se a máquina de escrever pode pretender representar a totalidade do psíquico é sobretudo porque possui um dispositivo de apagamento que temporaliza o processo sucessivo. Eis o espaçamento das marcas, a tecla space-bar que mimetiza o funcionamento da consciência enquanto dispositivo espaço-temporal linear. Sob este aspecto, Lacan nos lembra no Seminário 2 que a Consciência e o Eu encontram-se defasados em relação à racionalidade intrínseca do "Projeto". A máquina de descrever apagava tão bem e tão rápido que nos deixava em palpos de aranha, o que não acontece no "Bloco Mágico". O problema que deve ser pensado a partir desta questão sobre uma escrita não-linear e não-sucessiva vem a ser exatamente o hipertexto. Um hipertexto é a rede por excelência. Trata-se de um encadeamento da escrita que rompe com o esquema espaço-temporal baseado na sucessão. O suporte para a escrita coloca uma questão para o conceito de tempo ao permitir uma rede DE PROJETOS E DE MÁQUINAS 91 rizomática de conexões. O espaçamento e a temporalidade estão novamente se acotovelando. Contudo, aproximemo-nos da descrição de seu papel, em que papel se inscreve a descrição, qual seu papel efetivo? Descrever o "Projeto" seria descrever a descrição, mas não se trata absolutamente de uma descrição qualquer, pois enquanto descrição do psíquico, é a descrição da mente, é a descrição do cérebro eletrônico, da rede das redes, ou da condição de possibilidade de qualquer descrição. Fazê-lo seria conhecer o conhecimento além de tentar fundar uma psicologia transcendental contra o próprio Kant. O papel desta descrição é, e não é, o mesmo papel onde se dá sua escrita. Já que o suporte da inscrição mnêmica das Bahnungen é um campo sináptico abstrato, talvez hoje o reconheçamos bem mais em uma rede neural do que na interioridade frenológica ou globalista de cem anos atrás. A rede neuro-sináptica do "Entwurf' tem porém uma peculiaridade que a distingue de um modelo de rede neural. É uma rede que lida com o campo do Outro e portanto está às voltas com o engano, mas é também uma rede generalizada onde se problematiza a conexão. A concepção de rede generalizada em que estamos desde já imersos, permite leituras renovadas do "Projeto" e seu projeto de máquina psíquica. A proposta de Türing sobre a inteligência artificial consiste em postular que uma máquina que se fizesse passar por humana poderia ser considerada inteligente. Isto nos coloca em cheio na questão do engano e do erro. É por aí que surge o campo do Outro. É a partir disto que o dizer se destaca do dito. De onde justifica-se a suposição de que o teste de Türing é uma conjectura sobre a origem da nomeação. No "Projeto" freudiano esta problemática aparece com o grito da criança que exige interpretação: uma criança chora de fome, chora porque está com frio, chora por isto ou por aquilo. Isto é condição de possibilidade para o engano tão fértil ao projeto humano, cuja dimensão pertence integralmente à tradição cartesiana do sujeito dividido (a partir do gênio maligno ou deus enganador que Lacan tanto destaca e privilegia). Parece-me que o "Projeto", relido em sua atualidade, não apenas coloca as questões enormemente atuais da inteligência artificial e dos paradigmas da psicologia cognitiva, mas sobretudo nos convida a pensar rede e redes, representação e quantidade, signos e energia, soft e hardware. Este é o panorama do "Projeto": uma teoria generalizada das redes onde o termo ecologia se aplica tanto quanto a noção de interconectividade. A língua exclui comunicação, mas excluirá necessariamente a conexão? Problema de uma ecologia psíquica generalizada, a situarse talvez como departamento da semiologia geral saussureana ou na semiótica global de Peirce. A pretensão descritiva do "Projeto", seu projeto secreto porém evidente de descrição, fica eclipsado sob a complexidade das questões tratadas: experiências de satisfação, desejo, pulsão, memória, consciência, ego. A tipologia neuronal freudiana (cp\j/co) descreve uma rede complexa. A descrição no "Entwurf' passa 92 100 ANOS DE PROJETO FREUDIANO pelos espinhos ou ganchos onde Freud repetidamente se detém: O "Projeto" é sobretudo uma teoria da pulsão, termo aliás ausente, mas que é retomado enquanto tal em "A Pulsão e seus destinos". Trieb não é simplesmente romantismo alemão, é sobretudo uma teoria da coçeirinha, do prurido. O "Projeto" também énebenmensch e desejo em sua realização alucinatória. Observemos que ocorre uma disseminação de versões da experiência de satisfação a partir do nosso manuscrito: "Interpretação dos Sonhos", 'Três ensaios sobre a sexualidade", "Formulação sobre o princípio de funcionamento mental" trazem retomadas da questão do desejo encenada a partir do dito bebê freudiano. A partir dele podemos fazer algumas inferências nada psicológicas: existe nomeação implícita no grito e no choro, sua interpretação é língua materna. O grito preside a exclusão da coisa, evento nomeante que supõe oNebenmensch, etc. A teoria do desejo encontra sua enunciação fundamental no "Projeto" e na Traumdeutung. A partir dele se entrelaçam duas narrativas duplamente míticas pois tratam da origem de toda origem. Indica-se uma problemática ético-ontológica: o desejo e sua realização alucinatória, a pulsão enquanto estímulo interno. A relação de ambas "narrativas" ou "descrições" exige uma consideração sobre a escrita enquanto possibilidade de se representar memória A disjunção kantiana das formas puras da sensibilidade se evidencia: ou sucessão ou simultaneidade, o que quer dizer, ou consciência ou memória. Mas esta formulação implica no esquecimento como síntese reprodutiva. Até então nada de novo senão a preocupação em formular o psíquico a partir de uma teoria mais acabada da inscrição. É, porém, neste traço originário ex-stático e ex-sistente, traço de que não há traço pois só vigora a partir de seu apagamento, que encontramos todo o forrobodó. O paradoxo da origem se coloca claramente: a escrita psíquica que descreve o psíquico necessita da escrita de antemão. Por sua vez, esta mesma escrita não poderia vir a ser sem o psíquico Freud tem uma concepção do originário, de uma arché e de um ur- que obedece a este paradoxo. Houve certamente uma radical afirmação nisto que é o escrever do descrever e o descreve de um escrever anterior a qualquer escrever. Diremos deste modo que a inscrição da escrita é imanente ao projeto do "Projeto". 3. Da marca à rede. Da escrita e da máquina. Mas, como Lacan se apropria do "Entwurf'7 Não me ocupo com sua interpretação, que vai sendo construída de modo quase barroco ao longo dos primeiros seminários, mas da regra de apropriação que lhe orienta, destacando os conceitos que são condições de possibilidade para esta interpretação. Inicialmente é preciso observar que o "Projeto"; é situado como um tipo de máquina face à outras descritas por Freud. Dirá Lacan: DE PROJETOS E DE MÁQUINAS 93 Vocês verão a máquina de sonhar" Traumdeutung" reencontrar esta máquina "Entwurf donde há pouco eu evocava o esquema à propósito do discurso do outro (...)8 Ao enumerar tantas máquinas, que estratégia orientaria Lacan? Esta passagem revela sua apurada percepção ao destacar que o discurso do Outro e o campo da linguagem constituem uma rede onde a máquina neural do "Projeto" se insere. Um sistema de inscrição se revela maquinaria. Entretanto, devemos nos perguntar até que ponto a máquina importa para ele, e se sua importância não se concentra na função da repetição. A máquina é o dispositivo que permite darstellen (representar, figurar) a repetição no início da obra de Lacan. Admitindo esta hipótese, diríamos que ele não se interessa por uma máquina universal , mas ao contrário, tenta a partir do objeto e sua distância da coisa descrever a anti-máquina absoluta: a repetição é repetição do objeto perdido, portanto da diferença, o que se repete jamais deve ser entendido como a demanda ou os circuitos Wiederkehr. Esta máquina obedece ao regime da repetição, mas não é evidente que se trate de repetição do Mesmo10. No "Projeto", a mesma máquina (de escrita e inscrição) é construída a partir de dois regimes distintos de repetição. A maquinaria alucinatória goza extraindo da diferença o Mesmo — seu funcionamento não serve para nada. A maquinaria do pensamento trabalha sobre aquilo que resiste a este processo tentando encontrar na diferença o semelhante. A repetição bruta, do Mesmo, parece situar-se como Gozo, é comemoração de um Gozo originário imputado ao pai da horda Notemos que para Lacan uma máquina é um relógio (lembremos dos relógios moles e gozosos de Salvador Dali). Um relógio é o paradigma da máquina. O que quer dizer que ele a conhece como um circuito repetitivo. Parece-me que o que importa na máquina é uma tentativa de exegese da repetição. Encontramos também a teoria dos jogos operando enquanto máquina intersubjetiva: o par ou ímpar, o bridge, as adivinhações de Dupin, o paradoxo, o sofisma. Tudo aquilo onde se indica o limite e o circuito faz curto-circuito. Ousaríamos indicar aí uma acepção mais geral de máquina para Lacan: máquina é tudo aquilo que faz circuito. A máquina definida pela repetição: o circuito. Isto permite que a física aristotélica se intrometa, situação de tiquê e de automatôn na repetição. A repetição é um encontro com a diferença através do que ela possui de evasivo. Contra a repetição da demanda e contra a repetição do semelhante, o que se repete é a diferença. Podemos dizer que, desde o seminário da "Carta Roubada", Lacan formula uma noção de repetição necessariamente diferencial, que pretende traduzir a essência da problemática freudiana da compulsão à repetição. É preciso notar que o encaminhamento desta questão passa pela teoria dos jogos, e sobretudo por uma tentativa de isolar, na intersubjetividade inerente ao jogo, uma dimensão simbólica, lógica e significante. Embora inseparável deste 94 100 ANOS DE PROJETO FREUDIANO tipo de imaginário, a intersubjetividade pode ser discernida como constituinte da costura destes dois registros. O jogo e o relógio aparecem como modelos de uma repetição que ocorre, mas que não restringe nem limita o pensamento freudiano da repetição. Do mesmo modo, a partir da leitura lacaniana de Freud, encontramos dois paradigmas que são reunidos nesta reflexão: o netinho defronte ao espelho da Wiederholungzwang e o bebê freudiano em sua Befriedigungsertebniss tentando reencontrar, e em certo sentido, repetir, uma experiência de satisfação que só pode ser constituída, e também em certo sentido repetida, a partir de um objeto fundamentalmente perdido, irrepetível enquanto tal. Se a máquina integra a estratégia de aproximação empregada por Lacan ao apropriar-se do "Entwurf', o ato constitui seu horizonte. A rede de implicações do agir no "Projeto" é desvelada por Lacan. Mas, como falar de ação livre, portanto de ética, se o agir humano aparece na descrição freudiana do "Projeto", estritamente circunscrito ao conceito de ação específica? A liberdade desta repetição paira enigmática sobre o texto. Liberdade de repetir com a monotonia de um relógio ou de um circuito. No fundamento de todo agir se encontra secretamente, não apenas a satisfação, o soberano Bem, mas uma compulsão em atingir um limite que aboliria qualquer limite e faria a repetição a que os bens nos condenam coalescer-se um único evento. Esta noção que cintila no "Entwurf", de uma ação que é específica no sentido de apresentar aquilo que é necessário e próprio, ao impróprio do desejo e ao inútil do Gozo, esta noção funciona no "Projeto" como forma pura de toda e qualquer ação do homem que está ao lado do homem. (Nebenmensch)u. O rumo que Lacan dá à estas reflexões é o privilégio da ação em sua dimensão ética, ato formal a partir do dever, articulado com uma maquinaria significante puramente formal. Em certo momento da teorização de Lacan, ao retomar o "Projeto" no período de "Kant com Sade" e do "Seminário da Ética", vemos surgir um Kant cujo imperativo categórico fica travestido em máxima sadiana. Espécie de universalização pelo avesso de um princípio de crueldade. Repetição e ação, o significante e o eterno retorno do mesmo ou da diferença. Talvez a maior contribuição de sua leitura do "Projeto" ao tematizar práxis e ação específica aponte para o problema de uma política do desejo. O Nebenmensch e a ação específica assinalam a dimensão do humano situando a questão de uma ética centrada no desejo. 4. Redes e Topologia Mas, então, se não podemos facilmente dizer que uma máquina age, o que seria uma máquina? Questão colocada ao hardlsoftware e também ao rizoma. Teremos possivelmente no que chamo de "dispositivo de "Entwurf" uma infinidade de máquinas virtuais, onde também deve ser incluída a máquina de escrever (nem que seja para contrariar Derrida). Porém, o que salta aos olhos é que na rede DE PROJETOS E DE MÁQUINAS 95 neural simplificada do "Projeto" começa a se colocar claramente a questão da relação da máquina com a rede. Poderíamos talvez, de modo figurado, pesar uma ecologia psíquica no que tange às relações complexas da ordem imaginária com o simbólico. O masoquismo da máquina se opõe a seu mecanismo. Para responder ao problema ôntico da máquina, diremos que uma máquina tem afinidade com uma marca. Deste modo elidimos a questão da essência da técnica, levando em consideração, entretanto, a discussão freudiana sobre das Ding tal como Lacan nos oferece. A marca é inerente ao mecanismo: o que introduz a questão do corpo em nossa digressão. Máquinas supõem números. Por este viés entram as marcas como o que de tal cabe à máquina. O relógio foi a máquina por excelência dirá Lacan citando Koyré. No horizonte cartesiano organismo e mecanismo estão sempre juntos. Mas, pode haver além das máquinas desejantes deleuzianas acionadas a partir de um corpo sem órgãos, máquinas que prescindiam de corpo? Pode-se pensar sem o corpo? Máquinas que se resumam à conexões e circuitos rizomáticos? Seria Freud um pensador das redes? No início do estruturalismo, a curiosidade cibernética de Lacan o leva a chamar os primeiros computadores de "máquinas-de-pensar-como-o-homem", em um tom aproximadamente levistraussiano, o que não deixa de ser uma resposta provisória que exige decifração. O "Projeto" suscita na atualidade a questão de uma ecologia psíquica. Resta então tentar pensar o nervoso como rede, assumir uma noção hiperextensiva das redes: o simbólico como rede superinclusiva e regra de materialidade infinita. Tentar pensar as redes neurais e o problema da metáfora de um sistema que se confunde com o simbólico, enfim, a ecologia de uma rede absoluta e, sobretudo, a pertinência deste tipo de problema. Falar em rede absoluta é postular uma hipotética realização do real, paradoxal à medida em que este é necessariamente desrealização (encontro faltoso com o real, etc). Podemos enfim, dizer que a máquina psíquica do "Entwurf' inaugura uma problemática relativa à conectividade e à extensão material e conceituai das redes a partir do domínio da escritura. Uma rede psíquica interna, circunscrita a unidade de uma máquina, é lançada no regime rizomático de um exterior pleno de Qn em suas relações de entropia e entalpia que constituem necessariamente uma rede extensiva e generalizada. O paradoxo energético é talvez o que salta aos olhos no fisicalismo do "Projeto" onde a rede se abre as trocas energéticas se fecham. Caberia então uma pergunta sobre o registro do real. Real e rede seriam conceitos mutuamente exclusivos? A resposta me parece difícil, mas, sob o enfoque de uma rede generalizada, poderíamos postular que o simbólico é princípio de ramificação, conectividade, enquanto o real é vigência da trama, simulação de totalidade. Esta seria a tarefa de descrever a ecologia de uma rede pensada enquanto uma topologia específica: fazendo trança borromeana. Das Ding são resíduos que escaparam ao verurteilung, ao julgamento, segundo Freud, mas sabemos que a Coisa freudiana é um conceito colhido por Lacan no "Projeto", uma espécie de pérola de seu ensino. 96 100 ANOS DE PROJETO FREUDIANO Neste evasivo estruturante desenha-se o processo de formação de realidade. Há um tasco que pertence ao múltiplo da intuição sensível mas não pode ser sentido! Não pode ser sentido, nem por isso seria noumeno ou coisa-em-si; o real do "Projeto" é o sensível que não pode ser sentido e simultaneamente o pensável que não pode ser pensado. Curiosamente o real comparece no final da obra de Lacan em uma estranha referência à escrita: aquilo que não cessa de não se escrever. Não apenas não se escreve, mas seu modo de ser é a impossibilidade da escrita. Impossibilidade insistentemente renovada do nó, dos nós, de uma rede, de qualquer rede enfim. Para concluir, diremos que Lacan se apropria do "Projeto" a partir de alguns operadores conceituais que permitem sua interpretação. Destacamos especialmente a noção de máquina em sua dupla incidência: máquina como relógio repetitivo e máquina como jogo interativo. Esta vertente dirige-se para o ato e a ética, sobretudo se o motor desta máquina é o princípio do prazer. Deste modo surge uma questão paradoxal à margem da reflexão freudiana, de grande atualidade: seria legítimo falar em máquinas que agem? Esta pergunta parece estar implícita na racionalidade do "Projeto", assim como uma concepção de uma rede complexa desenhando uma topologia interconectiva. A isto poderíamos denominar ecologia generalizada, à medida que explicitássemos os registros de real, simbólico e imaginário envolvidos. Esta ecologia em sua estrutura de rede ou rizoma, suscita todo tipo de questão topológica. Nesse ínterim, o 'Projeto" cessa de nos descrever e nos sonha, ficamos aqui simples e puramente como um sonho do "Projeto". RERERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 1. "das Originalmanuskript trãgt Keinen Titel." cf, nota e introdução dos editores, Gesammelte Werke, Nacgtragsband, 1987: 375 e sq. 2. Poderíamos aproximar o sentido de meta do termo projeto (Entwurf), o que permitiria inclusive agrupar os títulos com que Freud batizou outros textos fundamentais, que funcionam como matrizes metapsicológicas: "Para além de" (Janseits), "Meta-psicologia" {Metapsychologie). Este texto é um disfarce para a metapsicologia geral ou generalizada que propõe. 3. DERRIDA, J., "Freud e a cena da escritura", A Escritura e a Diferença, p.183. 4. Traduziríamos as Bahnungen, com a ajuda de Guimarães Rosa, por "aviamentos", hiperveredas, "descaminhos do Demo". Lacan utiliza a expressão sirgagem relativa ao rastro de deslocamento marítimo do casco de uma embarcação. 5. A memória é representada através das diferenças de facilitações entre os neurônios 6. DERRIDA, J., "Freud e a cena da escritura", op.cit 183. 7. Se quisermos buscar algum referencial filosófico para esta temática podemos falar em rutura no esquema espaço-temporal e abertura para imagens-tempo (Gilles Deleuze), ou ainda, em ser-para-a-morte e cura no angustiar-se fundamental e existencial do tempo ocupado (Martin Heidegger). DE PROJETOS E DE MÁQUINAS 97 8. Lacan, ]., Seminário 2: Paris, Seuil, p. 123. 9. A noção de "máquina universal" aparece na informática como índice do questionamento das fronteiras conceituais excessivamente rígidas entre hardware e software. 10. Assim como máquina evoca o conceito fundamental de repetição, devemos admitir que a repetição na obra de Lacan parece dialogar com as grandes questões do pensamento contemporâneo, a saber: a compreensão a partir do objeto ou do sujeito, ou a discussão sobre o retorno do Mesmo e de uma repetição diferencial. 11. Ha pelo menos três versões bastante distintas deste bebê hipotético, que representa uma pequena máquina narcísica. A primeira é exatamente a do Entwurf, que caracteriza-se por privilegiar o discurso do Outro, conectando os ovos ou mônadas narcísicas em uma rede de mal-entendidos constituída pela linguagem. 12. Traduzir literalmente Nebenmensch por próximo, causa um certo desconforto pois este próximo precisa ser aquilo que há de mais distante. Neste sentido, em pleno acordo com a interpretação heideggeriana de das Ding como entfemung: distanciamento, lonjura, cafundó do judas. A Função da Angústia Juan Carlos Cosentino Tradução: Paloma Vidal O enigma sobre a "origem" da angústia está presente no início da indagação que Freud realiza sobre a neurose. Retorna, modificado, depois de anos de teorização analítica, em 1932. No começo "o sinal de interrogação" acompanha essa pergunta que vem como subtítulo do "Manuscrito E" em 1894: "Como se origina, de onde nasce a angústia?". Então, se separa da transferência e fica situada fora do campo analítico. Com a publicação do caso clínico do pequeno Hans, Freud introduz a história de angústia e a situa novamente no campo da análise. A pergunta, um pouco modificada, insiste: quando sobrevém a angústia? A resposta demora, mas é a ocasião, com efeito retroativo, em que introduz o complexo da castração. A pergunta reaparece com a 32a conferência, "Angústia e vida pulsional", mas no intervalo produziu-se uma virada, conseqüência desse segundo passo teórico. "De que se tem medo na angustia neurótica?" "Como se concilia esta com a angústia realista ante perigos externos?". A primeira versão da teoria, onde a neurose de angústia não corresponde ao mecanismo de defesa, não se sustentará por muito tempo. A satisfação sexual, que se tornará problemática para o sujeito humano com a introdução da pulsão, não é suficiente para causar a neurose de angústia. Ao contrário, com a angústia e a partir das fobias típicas, essa neurose desfaz o nó entre a nostalgia e a satisfação. O fracasso da função de um sonho chave na análise do pequeno Hans introduz a irreversibilidade da angústia. 101 102 100 ANOS DE PROJETO FREUDIANO Chamamos angústia patológica uma sensação de nostalgia angustiada desde o momento em que já não se pode cancelá-la apontando-lhe o objeto ansiado. A angústia se adianta. Separa nostalgia (desejo) e satisfação (pulsão), torna complexo o estatuto do objeto e questiona o império do princípio do prazer. Entre 1926 e 1932 opera-se, na verdade, uma mudança de pergunta, que é antecipada primeiro pelas fobias típicas e depois pela histeria de angústia. Tal mudança não aponta tanto para a origem senão para a função da angústia e se segura num novo vínculo, a angústia-perigo exterior. Este novo vínculo permite, no "Complexo sobre a angústia", distinguir a situação traumática da indefensão*, da situação de perigo. A partir da série angústia-perigo-i/fcfe/msão, ergue-se um novo fundamento para a angústia que permitirá situar "o lugar próprio" da mesma e, conseqüentemente, diferenciar "seu fenômeno". A neurose de angústia: as fobias ocasionais Freud se confronta, desde o início, com o problema da angústia. Como fenômeno freqüente demais, a angústia o conduz a separar a neurastenia de uma neurose independente: a neurose de angústia Chama a atenção para esta entidade clínica diferente e a isola conjuntamente com a criação de outra nova entidade: a neurose obsessiva. Entre 1894 e 1895 distingue a neurose de angústia da neurastenia e, ao mesmo tempo, diferencia as obsessões das fobias. Como escreve em "Obsessões e fobias", umas e outras que até esse momento se encontravam assim indiferentemente agrupadas — não pertencem à neurastenia propriamente dita, como tampouco dependem da degeneração mental. "São neuroses separadas, com um mecanismo especial e de uma — diferente — etiologia" . É precisamente sobre o fenômeno da angústia que Freud vai fundar sua distinção, o que lhe permite, ao mesmo tempo, introduzir a neurose obsessiva. Nas fobias ó estado emotivo é sempre a angústia, enquanto que nas verdadeiras obsessões pode ser, com igual direito que a ansiedade, outro estado emotivo, como a dúvida, o remorso, a cólera3. Por sua vez, entre as fobias, distingue dois grupos caracterizados pelo objeto do medo. As fobias comuns: um medo exagerado das coisas que a todo mundo aborrece um pouco (a noite, a solidão, a morte, etc). As fobias ocasionais: um medo de condições especiais que não inspiram temor ao homem sadio (por exemplo, a agorafobia e outras fobias de locomoção). A FUNÇÃO DA ANGUSTIA 103 Sendo assim, à especificidade da angústia acrescenta-se outra diferença com as fobias da neurose obsessiva. As neuroses ocasionais não são obsessivas como as verdadeiras obsessões, isto é, junto com a angústia, elas não aparecem a não ser em condições especiais que podem, então, ser evitadas cuidadosamente. Recordemos que, em "As neuropsicoses de defesa", para Freud "existem fobias puramente histéricas" e que as fobias e as representações obsessivas formam parte da neurose obsessiva4. Por sua vez, em "Obsessões", situa as fobias comuns com as fobias da neurose obsessiva. Não obstante, para o enlace secundário do afeto liberado pode aproveitar-se qualquer representação. Por exemplo, uma angústia liberada, cuja origem sexual não deve ser recordada, versa sobre as fobias primárias comuns do ser humano diante de certos animais, da tempestade, da escuridão, etc, ou sobre coisas que inequivocadamente estão associadas com o sexual (o urinar, a defecação, o sujar-se, o contágio em geral)5. Então, ambas fobias, as comuns e as ocasionais, introduzem uma novidade: o objeto e o medo. As fobias se apresentam com um estatuto muito particular em relação à angústia, tendo a emergência de um objeto que provoca medo como um meio de canalizá-la. Vale dizer, "o estado emotivo não aparece (...) senão nessas condições especiais que o doente evita cuidadosamente' . A segunda diferença, neste momento, entre a angústia da fobia e a da neurose obsessiva situa-se na etiologia. Para chegar à etiologia, Freud parte de outro ponto: "o mecanismo da fobia é totalmente diferente do das obsessões". O mecanismo da substituição não vale para as fobias da neurose de angústia. Não se revela, via análise, uma idéia inconciliável, substituída. Nunca se encontra outra coisa além da angústia que não provém de uma representação recalcada e "que por uma sorte de eleição colocou em primeiro plano todas as idéias aptas a tornarem-se objeto de uma fobia"7. O enlace do afeto liberado aproveita qualquer representação, mas é secundário. Vale dizer, a angústia se enlaça com um conteúdo de representação ou de percepção — o estatuto do objeto — e o despertar desse conteúdo psíquico é a condição capital para que aflore a angústia8. Pois bem, "o grupo das fobias típicas (ou ocasionais), das quais aagorafobia é o protótipo, não se deixa reconduzir ao mecanismo psíquico" da histeria e da neurose obsessiva; ao contrário, o mecanismo do agoraf obia diverge num ponto decisivo do mecanismo das representações obsessivas e das fobias reduzíveis a estas: aqui não se encontra nenhuma representação recalcada da qual se teria divorciado o afeto da angústia9. 104 100 ANOS DE PROJETO FREUDIANO Novidade surpreendente, com alguma diferença do segundo passo teórico e ainda longe da angústia de castração: como não se separou de nenhuma representação recalcada, a angústia não tem representação aqui, é de outra natureza que a representação. Situa-se, antecipando a dimensão da falta, na própria abertura que constitui o inconsciente. No entanto, a pergunta do "Manuscrito E" decide o rumo. Na agorafobia pode ser encontrada a recordação de um ataque de angústia e, na verdade, o que o doente teme é seu retorno. Mas, como a angústia desta fobia não se divorciou de nenhuma representação recalcada, "tem outra origem" . De novo, "é preciso perguntar-se: qual pode ser a fonte?"11. Freud estabelece, então, uma neurose especial a neurose de angústia — cujo sintoma principal é esse "estado emotivo". E "assim as fobias formam parte da neurose de angústia e quase sempre vêm acompanhadas de outros sintomas da mesma série". A neurose de angústia é de origem sexual, mas "carece de mecanismo psíquico em sentido próprio". A excitação sexual somática é desviada do psíquico e recebe, devido a isso, um emprego anormal: o ataque de angústia. No entanto, a angústia das fobias obedece a outras condições. "Têm uma estrutura mais complicada que os ataques de angústia simplesmente somáticos" . Nelas a angústia se enlaça com uma representação, que vale como objeto, e o medo a dosifica. O despertar dessa representação é a condição capital para que aflore a angústia. Em tal caso, a angústia é desprendida, de um modo que se assemelha ao que acontece, por exemplo, com a tensão sexual pelo despertar de umas representações libidinosas14. Mas, na verdade, para Freud, não está claro ainda o vínculo que este mantém com a teoria que ele sustenta sobre a neurose de angústia. Enquanto as fobias privilegiam o vínculo com o objeto do medo, antecipando seu terceiro passo teórico (a reação angústia-perigo exterior), a neurose de angústia acentua o vínculo com a acumulação da excitação, devido a uma "satisfação insuficiente", que não admite derivação psíquica e que se libera como angústia. Nesta tensão entre o exterior da fobia e o interior da neurose de angústia, uma pergunta formulada por Freud introduz outra perspectiva: porque o aparelho psíquico quando funciona com insuficiência para dominar a excitação sexual "cai no estado afetivo peculiar da angústia" . A psique cai no afeto da angústia — responde — quando é incapaz de tramitar um perigo que se aproxima de fora; cai na neurose de angústia quando é incapaz de reequilibrar a excitação (sexual) endogenamente produzida. A FUNÇÃO DA ANGUSTIA 105 Mas com seu funcionamento, o aparelho psíquico, na neurose de angústia, produz um deslocamento: é "como se este projetara a excitação para fora"16. Reaparece o exterior da fobia e o objeto do medo e, com ele, se antecipa a virada que retroativamente introduz em 1926. Esse autêntico perigo exterior: o da castração. Por sua vez, afeto e neurose se situam num estreito vínculo recíproco; o primeiro é a reação a uma excitação exógena e a segunda uma reação frente a uma situação endógena análoga. Mas enquanto o afeto é um estado passageiro, a neurose é crônica. A extinção exógena atua como golpe único e a endógena como uma força constante. O estreito vínculo exterior-interior introduz também uma diferença que vinte anos mais tarde, em "Pulsões e destinos de pulsões", alojará, como uma força constante, a pulsão. Este outro vínculo excitação endógena-pulsão reorienta a pergunta: de onde nasce a angústia? Freud se atem, no "Manuscrito K", ao modelo da neurose de angústia onde, de igual modo que na neurose compulsiva (Zwang), "uma quantidade proveniente da vida sexual causa uma perturbação dentro do psíquico", apesar do princípio regulador, o de constância.17 A fonte da angústia assim como a fonte da representação compulsiva fazem confluir, sem apagar sua especificidade, fobias e obsessões que Freud diferenciara ao isolar a neurose de angústia. A intuição da participação na vida psíquica de uma fonte de desprendimento de desprazer, independente do princípio de constância, ilumina, logo da separação fobias-obsessões, a atual confluência num ponto diferente. Para chegar a esta confluência foi necessário, como assinalamos, isolar a neurose de angústia, criar a neurose obsessiva e separar as obsessões das fobias. Mas faltará, para situar esse ponto pulsional, a entrada conceituai da exigência pulsional. Existirá lugar, então, para que irrompa a perturbação econômica, núcleo genuíno do perigo. A exigência pulsional está presente em 1896: as obsessões têm curso psíquico compulsivo (Zwangskurs) por causa "da fonte que contribui para sua vigência"18. Retorna em 1909: o objeto do medo, na fobia, canaliza a angústia e, por sua vez, em certas circunstâncias pode acentuá-la. Freud se referirá ao cavalo como imagem do terror no caso clínico do pequeno Hans. Para a cura da neurose de angústia, como neurose atual, aposta na desejada satisfação sexual como prazer psíquico. Solução insuficiente: ainda não sabe que com a excitação endógena introduziu a exigência da pulsão que opera sempre como força constante. Com a angústia das fobias típicas, na dissimetria que introduzirá o objeto do medo, começaram a se distanciar nostalgia e satisfação. 106 100 ANOS DE PROJETO FREUDIANO A histeria de angústia: a irreversibilidade da angústia. Uma senhora de meia idade, que se queixava de estados de angústia e que não considerava concluída sua feminilidade, procura Freud. Esta consulta o conduz, em 1910, a diferenciar a histeria de angústia e a retomar, com certa interrogação, a neurose de angústia. Esta não será a última oportunidade em que Freud volta à neurose de angústia, mas com a introdução desta nova entidade clínica, a angústia já não ficará dissociada da transferência. No texto "Sobre a psicanálise silvestre" escreve que a ocasião da irrupção da angústia desta mulher havia sido a separação do seu último marido. O aumento da mesma ocorre depois de consultar um jovem analista. Este último determinara que a causa de sua angústia era a privação sexual e concluíra propondo, com diferentes alternativas, que retomasse uma vita sexualis "normal". Tratava-se, segundo esse suposto analista, de um descobrimento novo que Freud havia feito em relação às neuroses atuais. Então, com o reforço da angústia, a paciente não demorou a consultá-lo. Freud a recebe, e a escuta. Assinala que não deve se considerar "verdadeiro, de cara, tudo que os neuróticos falam sobre seu analista". No campo da análise intervém a transferência: o analista tem que assumir, em certas oportunidades, a "responsabilidade" dos desejos secretos reprimidos dos neuróticos. Mas ainda que seja curioso, tais inculpações dos pacientes "em nenhuma parte encontram mais credibilidade do que entre os outros analistas"19. Feita esta declaração, liga esta situação às pontuações sobre a psicanálise silvestre. Começa pelos erros que chama científicos. O conceito do sexual é muito mais amplo na psicanálise: "também é atribuído ávida sexual toda atividade de sentimentos ternos". Sua fonte: as moções sexuais primitivas, ainda que experimentem uma inibição de sua meta sexual ou que a tenham permutado por outra, já não sexual. "Preferimos, então, falar de psico-sexualidade, pois não omitimos, nem subestimamos o fator anímico da vida sexual". A palavra "sexualidade" se emprega no mesmo sentido amplo do vocábulo "lieben" na língua alemã. Uma insatisfação anímica com todas suas conseqüências pode estar presente quando não falta um comércio sexual normal. Ao contrário, o coito ou outros atos sexuais só permitem descarregar uma medida mínima das aspirações sexuais insatisfeitas. Isso é testemunhado pelas satisfações substitutivas, vale dizer, os sintomas neuróticos. Sem dúvida, seu jovem colega simplificou muito o problema, A FUNÇÃO DA ANGÚSTIA 107 só insistiu no fator somático do sexual; em conseqüência, "tem que assumir a total responsabilidade pelo seu proceder".20 Esse proceder leva-o a situar um segundo mal-entendido. Segundo a psicanálise, uma insatisfação sexual é a causa da neurose. No entanto, os sintomas neuróticos surgem de um conflito entre a libido e o recalque. Ficou para trás essa vita sexualis que levaria à almejada satisfação. A existência do conflito põe em questão "que a satisfação sexual constitui em si a panacéia universal". Se a paciente não tivesse nenhum conflito já teria apelado muito antes para alguns dos recursos que o jovem analista propôs. Até aqui tudo parece muito claro, mas como no horizonte diagnóstico reapareceu a velha neurose de angústia, o fator somático ainda retorna para o veredicto junto com certa dificuldade. As chamadas neuroses atuais como a neurose de angústia pura dependem desse fator somático para a vida sexual. Não obstante, a respeito delas não conta "ainda com uma representação certa sobre o papel do fator psíquico e do recalque". Sendo assim, como antecipamos, o valor estrutural que o fator psíquico e o recalque adquiriram interroga e questiona a suposta pureza da neurose de angústia. Novamente, a satisfação apontada, com os diferentes recursos que são aconselhados a esta mulher, deixa fora conflito e recalque junto com o diagnóstico de uma histeria de angústia que Freud propõe. Então, já não sobra espaço algum para a psicanálise: "onde interviria aqui o tratamento analítico, no qual vemos o principal recurso para o caso dos estados de angústia?"22. Pouco tempo antes, com a análise do pequeno Hans, Freud havia proposto, como nova entidade clínica, a histeria de angústia. Com esta proposta recupera as fobias típicas. Mas agora se produz uma novidade: o mecanismo psíquico destas, que antes se situava fora dele mesmo, concorda, exceto num ponto, com o da histeria. Trata-se de um ponto decisivo. Está apto a estabelecer a separação: nas fobias a libido, desprendida do material patógeno em virtude do recalque, não é convertida numa intervenção corporal como na histeria, mas libera-se como angústia. Na primeira versão de sua teoria não se encontra nenhuma representação recalcada da qual se tenha divorciado o afeto da angústia. Há lugar para a falta, deixando de lado a "origem", enquanto que a angústia é anterior, com muita antecipação ao recalque. Mas será necessário esperar até 1926. Na segunda versão, a libido liberada como angústia se divorciou de uma representação recalcada, enquanto que a formação substitutiva, um animal mais ou menos apto a ser objeto de angústia, se estabelece pela via do deslocamento. Mas a parte quantitativa não desapareceu, e sim se transpôs em angústia. Sendo assim, devido a cada aumento da moção pulsional "a muralha protetora 108 100 ANOS DE PROJETO FREUDIANO adia o problema". Só se introduziu, junto com o mecanismo psíquico e a representação, o objeto que vale como representante e o medo que mediatiza a angústia. Então, nesta fobia aos cavalos, quando surge a angústia? Em relação à aparição da fobia, que acontece aos 4 anos, não há no histórico do pequeno Hans um acontecimento crítico que a explique. Não se trata do nascimento da irmã que ocorre quando ele tem 3 anos. Tampouco se trata da ameaça da mãe que coincide com o começo da masturbação ativa, também nessa idade. Estes fatos têm um papel a posteriori, mas, ao menos diretamente, não são desencadeantes. Frente à ameaça materna, Hans "responde ainda sem consciência de culpa, mas é a ocasião em que adquire com efeito retroativo o complexo de castração"?* A pergunta sobre a aparição da angústia permanece aberta. Um sonho que fracassa vai lhe permitir diferenciar a emergência da angústia da constituição da fobia. Nas comunicações iniciais dos primeiros dias de 1908, como nota do pai a Freud, lemos: "Hans (4 anos) aparece de manhã chorando; a mãe pergunta-lhe por que chora e ele diz: quando dormia pensei que você estava longe e eu não tenho nenhuma mamãe para que me acaricie (liebkosen). Portanto, um sonho de angústia. Algo parecido notei nele já no verão (julho - agosto) em Gmunden. Ao anoitecer, a maioria das vezes ia para a cama com um disposição muito sentimental e uma vez fez a observação (aproximada): se não tivesse nenhuma mamãe, se você fosse embora, ou coisa parecida; não me lembro com exatidão. Infelizmente, quando ele estava com essa disposição triste, a mãe sempre o acolhia em seu leito. Mais ou menos a 5 de janeiro aproximou-se cedo da mãe, que estava na cama, e disse: Tia M. falou: 'Mas que lindo pintinho você tem (Tia M. tinha se hospedado quatro semanas antes na nossa casa; certa vez viu como minha mulher dava banho no rapazinho e, de fato, disse isso a minha mulher, Hans escutou-a e procurava aproveitar isso.) No dia 7 de janeiro ele vai, como de costume, ao Stadtpark (parque municipal situado perto do centro de Viena) com a babá; na rua começa a chorar e pede que o levem para a casa, quer agradar (schneicheen) a mãe. Quando em casa perguntam por que não quis continuar e começou a chorar, não quer dizer nada. De tarde está alegre como de costume; ao anoitecer tem visível angústia, chora e não conseguem separá-lo da mãe; uma e outra vez quer agradá-la (acariciarse). Depois recobra a alegria e dorme bem. No dia 8 de janeiro, minha própria mulher sai para passear com ele para ver o que acontece. Leva-o a Schõnbrunnn, lugar aonde ele gosta muito de ir. De A FUNÇÃO DA ANGÚSTIA 109 novo começa a chorar, não quer seguir caminho, tem medo. Acaba indo, mas é visível que sente angústia No caminho de volta de Schõnbrunnn diz à mãe: tive medo de que um cavalo me mordesse. (De fato, em Schõnbrunn inquietouse quando viu um cavalo.) Quando anoitece me dizem que teve um ataque parecido ao do dia anterior, com pedido de agradar a mãe. Tranqüilizam-no. Diz chorando: sei que me levarão de novo para passear e depois o cavalo entrará no quarto. Esse mesmo dia, a mãe pergunta-lhe: Você passa a mão pelo faz-pipi? E sobre isso, ele diz: Sim, cada anoitecer, quando estou na cama. No dia seguinte, 9 de janeiro, recomendam-lhe, antes da sesta, que não passe a mão pelo faz-pipi. Interrogado ao acordar, ele diz que passou durante um tempinho. 25 Nesse fragmento clínico — suficiente, como um todo, para nos orientar — Freud situa "o começo da angústia, assim como da fobia". Mas nos indica que temos bom fundamento para separar uma da outra. Trata-se desse "ponto temporal com estágio inicial" que a maioria das vezes se descuida ou silencia. A perturbação é introduzida no verão de 1907 com pensamentos terno-angustiados e, mais tarde, nos primeiros dias de 1908, com um sonho de angústia que o desperta. O conteúdo do sonho é perder a mãe, de modo que ele já não possa "se acariciar" com ela. Deduz, com sua segunda teoria da angústia, que a ternura em relação à mãe aumentou enormemente: "é o fenômeno básico de seu estado". E nos lembra, para assim confirmá-lo, das suas duas tentativas de seduzir a mãe. A primeira se produz ali onde o pênis de Hans é sancionado como "uma porcaria" por sua mãe, ainda no verão. E a segunda, ali onde elogia seu genital aproveitando o comentário da Tia M., pouco antes de que irrompa a angústia ao andar pela rua. "É essa aumentada ternura pela mãe que subitamente se transforma em angústia", sucumbe ao recalque. Em 1909 trata-se da transformação da libido recalcada em angústia, mas a mesma angústia interroga o recalque. De onde provém o estímulo para o recalque?, pergunta-se. Da intensidade da moção, não dominável pela criança? Por acaso cooperam outros poderes ainda não discernidos? Com o estímulo para o recalque, constitui a fobia. Mas, como a angústia indica certo fracasso do recalque, há lugar também para que irrompa essa intensidade da moção pulsional não dominável pelo simbólico pois não pode ser ligada. E mesmo sustentando que a libido recalcada se transforma em angústia, a aparição como perturbação de dita angústia interroga — antecipando o mais além do princípio do prazer — o estatuto da satisfação e do objeto. O sonho de angústia constitui esse estágio inicial que marca o começo da angústia que se antecipa à constituição da fobia. Nesse "ponto temporal" (Zeitpunkt), muitas vezes descuidado ou silenciado, se introduz a perturbação que no começo carece de objeto. É, ainda, angústia e 110 100 ANOS DE PROJETO FREUDIANO não medo. Hans (no começo) não pode saber do que tem medo. E quando, nesse primeiro passeio com a babá, não quer dizer do que tem medo é porque ele também não sabe. Diz o que sabe: que na rua lhe falta a mãe com quem pode se acariciar, e que não quer se apartar dela. Para Freud, deixa vislumbrar assim o sentido primeiro de sua aversão a andar na rua. Por outro lado, seus estados angustiados — duas vezes repetidos antes de deitar-se — e, não obstante, de nítida coloração terna provam que no começo da doença não existe uma fobia ao andar na rua ou a passear, nem tampouco aos cavalos. Como explicar, então, o estado ao anoitecer? A angústia corresponde, então, a uma nostalgia recalcada, mas não é o mesmo que a nostalgia; o recalque conta também em algo. Este dito recalque inscreve um antes e um depois e torna dissimétricas nostalgia e angústia e, conseqüentemente, prazer e satisfação. A nostalgia poderia se transformar em satisfação plena (voei in Befiiedigung) apontando-lhe o objeto ansiado; para a angústia essa terapia não serve, ela permanece mesmo que a nostalgia pudesse ser satisfeita, já não é possível tornar a transformá-la plenamente em libido: a libido é retirada no recalque por alguma coisa26. A angústia — como indicamos — desamarra nostalgia e satisfação, questiona o estatuto do objeto e interroga o império do princípio do prazer. Nessa impossibilidade de tornar a transformar a angústia em libido, não só cai a "satisfação plena" e o objeto ansiado, como também a primeira muda de signo e o segundo se torna inquietante. No caso clínico, comenta que os "estados de angústia não são provocados por uma satisfação"27. Vale dizer, refere-se a essa satisfação, acorde com o princípio, quando Hans está alojado como objeto de prazer. Com a emergência da angústia há desacordo entre prazer e satisfação. É necessário, então, referir-se ao desprazer da satisfação, ao prazer no desprazer, para produzir uma virada e antecipar o nome freudiano do gozo. No sono trata-se "de uma separação" . Os chamados pensamentos terno-angustiados, prévios ao sono, preparam-na. No entanto, como assinala Freud na "Epícrise", as relações cronológicas não impedem de atribuir influxo demais à ocasião para a irrupção da doença — a transformação da angústia libidinosa em angústia — pois "em Hans observam-se indícios de estados de angústia há muito tempo atrás, antes que visse tombar o cavalo de diligência na rua"29. A posteriori, comenta, a neurose se atou diretamente a essa vivência acidental e conservou seu rastro na entronização do cavalo como objeto de angústia. Mas nesse ponto temporal trata-se já não da angústia e sim da fobia. A FUNÇÃO DA ANGÚSTIA 111 Retomando, então, à angústia; estabelecida tal separação — como castração e como fracasso do sono — não há retorno possível: Hans já não é mais o objeto de prazer. Com a aquisição retroativa do complexo de castração — essa nova separação da mãe — cai o jogo de esconde-esconde. A comparação, em 1957, introduz, para Lacan, a angústia como angústia da insuficiência: a diferença entre aquilo pelo que é amado (corpo = falo) e seu pênis "como algo miserável"30. Depois do sonho, "está com a mãe e apesar disso tem angústia". É — indica-nos Freud — o que se mostra em Hans por causa do segundo passeio, quando a mãe o acompanha. Agora está com a mãe e, no entanto, tem angústia, isto é — insiste — uma nostalgia dela não saciada. Na "Epícrise" escreve que se trata de um genuíno sonho de castigo e recalque "no qual, além disso, fracassa a função do sonho, posto que a criança desperta com angústia do seu sono". Novamente considera que a criança sonhou com as ternuras com sua mãe, sonhou com dormir com ela; sendo assim todo prazer se transformou em angústia e todo conteúdo de representação se transformou em seu oposto (pois) o recalque - outra vez, um antes e um depois — obteve a vitória sobre o mecanismo do sonho. Freud supõe a existência em Hans de uma excitação sexual acrescentada. E mesmo que o objeto de dita excitação continue sendo a mãe, o decisivo, novamente, é a transformação da excitação sexual em angústia. Nessa dita transformação, há lugar para o despertar contingente de impressões anteriores — esses indícios de estados de angústia de muito tempo atrás — por causa do "ocasionamento" da doença. Sendo assim, quando "a angústia resistiu à prova"31 não se trata, então, da nostalgia não saciada pelo objeto, nem da nostalgia da mãe, nem mesmo da comparação, mas da iminência do objeto: intervém a pulsão. O pênis, com a mudança de estatuto do objeto, se tornou real quando Hans teve suas primeiras ereções, vale dizer, com a primeira excitação sexual. Ali onde no começo a angústia carece de objeto que a dosifique, com a virada que se produz, ela já não é sem objeto: há lugar para essa libido retida. Mas seu valor se modificou: não corresponde ao objeto de uma nostalgia erótica recalcada, mas sim ao descobrimento traumático da realidade sexual em seu próprio corpo. A pulsão participa Trata-se do pênis como traumático, como pertencente ao exterior do corpo, como uma coisa separada, como um cavalo — a angústia retorna apesar da fobia — que começa a se levantar e dar coices. Talvez — escreve Freud — teria sido possível aproveitar a angústia ao 'fazer barulho com as patas' para preencher lacunas em nosso procedimento de prova. (...) O pai não pôde confirmar minha conjetura de que na criança se mobilizava 112 100 ANOS DE PROJETO FREUDIANO uma reminiscência sobre um comércio sexual entre os pais, observado por ele no quarto . Em 1957, para Lacan também resta um enigma: a questão de saber se o Krawalmachen, um dos temores que a criança experimenta diante do cavalo — que faça barulho com as patas — não está relacionado com o orgasmo, inclusive um orgasmo que não seria o seu: uma cena proibida entre os pais. Compreende-se, então, a virada que se produz em 1976. Já não se trata nem da comparação, nem da angústia da insuficiência, pois "o gozo que resulta desse Wiwimacher (fazer-xixi) lhe é alheio até o ponto de estar no princípio de sua fobia"33. A insuficiência é do Outro: o gozo não pode ser ligado e, enquanto tal, não pode ser comparado. O cavalo — lemos no caso clínico — "foi sempre para a criança o modelo do prazer de movimento, ("Sou um potro", dizHans aos pulos) mas como este prazer de movimento inclui o impulso no coito, a neurose o limita, e o cavalo é oentronizado — para nossa surpresa — como imagem sensorial do terror. Parece que a neurose não deixa às pulsões recalcadas outra dignidade que a de brindar os pretextos para a angústia dentro da consciência"34. Do prazer ao terror, modifica-se o valor do objeto: o Heimlichtorna-seunheimlich, passa-se da nostalgia à iminência do objeto. Intervém o objeto de borda da pulsão. A angústia resiste à prova do passeio com a mãe e vê a necessidade de encontrar um objeto; em dito passeio "se exterioriza pela primeira vez o medo de ser mordido por um cavalo". A mudança de libido em angústia para Freud se projetou sobre o objeto principal da fobia: o cavalo. É importante notar: trata-se "dos cavalos de angústia"35. O cavalo morde (substituto do pai), mas também cai: o cavalo da diligência previamente tombara na rua Freud refere-se ao entrelaçamento pulsional. Com o cair substitui a mãe mas também, enquanto tomba e esperneia — o Krawallmahen — o próprio pênis como traumático. Não há lugar para a reversão da angústia, uma vez liberada, em libido. Esta reversão começa a desatar os complexos dos quais provém a libido. Há lugar para uma libido de objeto e, também, ali onde intervém a pulsão, para uma libido-resto. É esta irreversibilidade da angústia em libido que modifica, junto com a introdução ao gozo, o valor do objeto. Agora é esse fazer barulho que introduz a perturbação e não aqueles pensamentos terno-angustiosos. Reaparece o desprazer da satisfação. Trata-se do desagradável. Introduz-se, via Krawallmachen, a dimensão da voz. Neste chamado mudo, talvez seja necessário situar o nó que une o desejo à angústia, no instante da iminência do objeto. Será necessário esperar, porém, 1963. A função da angústia se antecipa à cessão do objeto como libido-resto. A não reversão terá, então, se recuperado: como perda da libido e como constituição do A FUNÇÃO DA ANGÚSTIA 113 sujeito. A angústia-função será, pois, um tempo na constituição do desejo, esse momento em que se desprende o objeto a como causa do mesmo. Em seu retorno, esta irreversibilidade da angústia em libido anuncia que ali onde o sujeito "se aterra de sua satisfação" intervém a pulsão. O perigo externo: angústia, medo, terror. Em 1916 "o problema da angústia continua sendo um ponto nodal e um enigma" no qual confluem, sem entrarem em acordo, angústia neurótica e realista. A angústia realista, como antes a fobia, dá entrada ao perigo externo: é possível tratá-la sem considerar de modo algum o estado neurótico? Freud questiona, criticando o que inicialmente comenta na 25a conferência, que a angústia realista seja racional e adequada. A única conduta adequada frente a um perigo seria a fria avaliação das próprias forças, comparadas com a magnitude da ameaça e o decidir-se em conseqüência: se a fuga, ou a defesa, ou ainda, chegado o caso, o ataque. Mas "numa situação assim — comenta — não há lugar algum para a angústia"; ao contrário, a eficácia da reação é "melhor se não se chega ao desenvolvimento de angústia". Se irrompe angústia, a irrupção resulta inadequada: "paralisa toda ação, mesmo a da fuga". Então, a reação frente ao perigo precisa conciliar angústia e ação de defesa. E como "o desenvolvimento de angústia nunca é adequado", Freud decompõe "a situação de angústia". O primeiro que encontra em dita situação é a disposição ou predisposição (Bereitschaft) para o perigo (Gefahr). Evidencia-se num aumento da atenção sensorial e numa tensão motriz. Esta disposição expectante é o antecedente da angústia sinal e sua falta introduz o terror. Nesta disposição se origina, por um lado, a ação motriz e, por outro, "o que sentimos como estado de angústia". Se o desenvolvimento de angústia se ajusta a uma mera ameaça ou se limita a um sinal, então a disposição à angústia (Angstbereitschaft) leva à ação: a fuga, a defesa ativa ou o ataque. Daí a disposição para a angústia parecer-lhe afinal o mais adequado e o desenvolvimento da angústia o mais inadequado. Não é possível tratar — comoveremos — o vínculo angústia-perigo exterior que Freud introduziu, sem considerar a angústia neurótica. Mas ainda não se conecta, como em 1926, com a castração na mãe e com o mais além pulsional. Só o terror (Schreck), na sua diferença com a angústia e com o medo (Furcht), adianta o efeito de um perigo que não é recebido com disposição à angústia. 114 100 ANOS DE PROJETO FREUDIANO O fenômeno do terror introduz, então, um novo perigo tão exterior como esse perigo exterior, fazendo confluir, por um instante, angústia neurótica e realista. Antecipa com a pulsão, um objeto-borda que escapa àquele da reversibilidade da libido. E prepara, junto com a inquietante estranheza, iniciando uma mudança, esse horror da satisfação que clama por um ponto de exterioridade para o aparelho psíquico, diferente do princípio do prazer. Na conferência volta novamente à angústia. Para o núcleo do afeto se refere à "repetição de uma determinada vivência significativa . Uma impressão muito cedo que situa, como conseqüência das lacunas da verdade individual"38, na pré-história. Dito estado afetivo adota a mesma construção que um ataque histérico e aponta, como este, à "decantação de uma reminiscência"39. A "Carta 52" nos orienta neste ponto. O ataque histérico é ação (Action) e não mera descarga e, como tal, retém o caráter original de toda ação: ser um meio para a reprodução do prazer. "Dirige-se ao outro, mas acima de tudo a esse outro pré-histórico, inesquecível, a quem nenhum posterior igualará"40. Desde esta perspectiva: o que se repete? De que impressão se trata? O que decanta? Sobre o fundo daquelas lacunas, essa impressão precoce volta em inibição, como lugar da angústia com a indefensão e como fenômeno com o terror: esse Outro — pré-histórico — está irremediavelmente perdido. Ali onde a primeira satisfação mítica se repete como falha, o enfrentamento com um perigo, que não é recebido com disposição para a angústia, reproduz em 1926, introduzindo uma mudança, o "prazer" do horror, e deixa a insuficiência do lado do Outro que não pode ser garante desse gozo. Na conferência, por outro lado, o acento se desloca em outra direção. A impressão precoce que em qualidade de repetição reproduz o afeto de angústia, introduz o ato do nascimento. Esta versão inicial do ato, com o enorme incremento dos estímulos que sobrevém no nascimento, situa esta primeira angústia como uma angústia tóxica. "O nome angústia (Angst) — angustiar, estreitamento (Enge) — destaca o rasgo da falta de ar, que nesse momento foi conseqüência da situação real, e hoje se reproduz quase regularmente no afeto". Fica como antecipação que o dito primeiro estado de angústia se origina na separação da mãe. No entanto, ainda não aparece a comparação, como ocorrerá em 1926, com a castração da mãe. A separação se ordena em outra direção: leva a que nenhum sujeito possa se subtrair a esse efeito (esse primeiro estado de angústia profundamente incorporado), por mais que, "como o legendário Macduff, tenha sido arrancado prematuramente do seio materno, e por isso não tenha experimentado por si só o ato do nascimento". A FUNÇÃO DA ANGUSTIA 115 No entanto, o mesmo ato do nascimento — em 1916 "fonte e modelo do afeto de angústia" — o conduz a outro lugar quando se inspira no pensamento ingênuo do povo. Este "nexo importante" entre a angústia e o nascimento, desvelado certeiramente pela sabedoria popular, se detém em outro lugar: "ante o singular e pequenino objeto que, com a aparição da criança,/o/ o mecômio". Esse outro lugar — como assinalamos — com a indefensão do Outro, leva em 1963, no tempo da angústia, à cessão do objeto na construção do desejo... Há muitos anos — comenta Freud — um assistente relatou, entre um grupo de jovens médicos de hospital, uma história engraçada que havia ocorrido na última prova de parteiras. Quando perguntaram a uma candidata o que significava o fato de que no parto aparecesse mecônio na água do nascimento, respondeu sem vacilar — e caladamente tomei partido por ela — que a criança está angustiada41. A função da angústia. Com "Inibição, sintoma e angústia" a angústia do nascimento retorna. Mas nesta circunstância se ordena de forma diferente do que em 1916. Acomparação com essa angústia primeira leva-o à castração na mãe, e a analogia à angústia traumática. "A primeira vivência de angústia (a do nascimento) poderia ser comparada a uma castração da mãe (de acordo com a equação filho-pênis)"42. A libido da mãe desliza de novo, como na menina, ao longo da equação simbólica, para uma nova posição. "Resigna o desejo de pênis para substituí-lo pelo desejo de um filho e com este propósito toma o pai como objeto de amor" . Seu complexo de Édipo culminará no desejo de receber como presente um filho do pai. Sendo assim, esta substituição, que pertence ao complexo de Édipo, reintroduz o que já estava logicamente antes: a castração na mãe. Por tratar-se de uma nova separação, sustenta-se, como Freud escreve a Rank (44), nos princípios já estabelecidos: o Édipo e a função do pai. Por isso a castração na mãe — um momento logicamente anterior à própria constituição do sujeito como sujeito sexuado — se ordena ao redor do falo. "Só pode ser apreciada retamente a significatividade do complexo de castração se ao mesmo tempo se toma em conta sua gênese na fase do primado do falo"4 . A inscrição particular de dita castração que retorna com a equação é, como núcleo da neurose, o complexo de castração. 116 100 ANOS DE PROJETO FREUDIANO No capítulo seguinte de "Inibição" introduz, afastando-se ainda mais da posição de Rank, a angústia traumática que sustenta também na angústia do nascimento. "A reflexão nos conduz mais além dessa insistência na perda do objeto", vale dizer, a angústia sinal. "Então a situação que valorizou como perigo e da qual quer se resguardar é a da insatisfação, o aumento da tensão de necessidade, frente a que — a indefensão é importante". Tanto se o eu vivenciar num caso — escreve — uma dor que não cessa, e em outro um êxtase de necessidade que não pode achar satisfação em relação com o princípio do prazer, a situação econômica é, em ambos, a mesma e o desvalidamento motor encontra sua expressão no desvalidamento psíquico. Vemos agora que a situação da insatisfação em que as magnitudes de estímulo alcançam um nível de desprazer — perto da dor — sem que sejam dominadas por emprego psíquico e descarga, tem que estabelecer para o lactente a analogia com a vivência de nascimento e angústia traumática — é a perturbação econômica pelo incremento das magnitudes de estímulos na espera de tramitação. A perturbação econômica constitui, agora, o núcleo genuíno do perigo. Como situar esta perturbação econômica, núcleo do perigo e já não da castração na mãe? A angústia do nascimento como a angústia do lactente "não precisa de interpretação psicológica", quer dizer, "psicologicamente não nos diz nada". Esta ausência de significação situa a perturbação econômica como um dos nomes freudianos do gozo e, ao mesmo tempo, como fora da função da palavra. A isto se refere em "Inibição" ao comentar que a angústia traumática como tal "carece ainda de todo conteúdo psicológico . Retorna a analogia; não se trata de identidade. A angústia traumática não corresponde ao trauma do nascimento, exceto que o trauma do nascimento também vale como irrupção de gozo ou como perturbação econômica. Somente a magnitude da soma de excita ção converte uma impressão em fator traumático, paralisa a operação do princípio de prazer, confere sua significatividade à situação de perigo. Porque não poderia ser possível — pergunta-se — quando intervém fatores traumáticos sem referência às supostas situações de perigo, que a angústia não se provocasse como sinal, mas que nascesse como algo novo com um fundamento próprio? Com o mais além, "a experiência clínica nos diz de maneira taxativa que é assim"47: na experiência do unheimlich ou nos sonhos da neurose traumática irrompe como fator traumático, nesse mesmo ponto de perda inaugural do gozo que introduziu a castração na mãe, essa libido-resto. A FU NÇÃO DA ANG ÚSTIA 117 Não se trata da libido de objeto, nem da libido narcisista. Esse resto reafirma a importância da experiência sexual que, por tal causa, se denomina traumática e inaugura o que não pode ser ligado: o gozo pulsional como satisfação substitutiva. Tal dita experiência sexual confronta o sujeito, pela primeira vez com a indefensão, ou ainda, com a angústia traumática, pois tampouco conta com "esse outro pré-histórico e inesquecível" que possa ser garante desse gozo parcial e intransferível. A relação angústia-perigo exterior, em 1926, redefine o "perigo pulsional interior". Por um lado, "a exigência pulsional não é um perigo em si mesma; o é somente porque compreende um autêntico perigo exterior: o da castração"48. Na fobia — retorna o pequeno Hans — só se substitui um perigo exterior — o da castração — por outro perigo também exterior: o do cavalo que morde. Por outro, quando intervém o fator traumático, esse mesmo cavalo com o Krawallmachen — como em 1916 — introduz, com o terror, um novo perigo que situa de outra maneira a exterioridade da pulsão: reaparece, como antecipamos, fora-de-representação e fora-do-corpo especular, a dimensão da voz. No "Complemento" diferencia a situação traumática da indefensão, da situação de perigo e introduz uma novidade esperada: a angústia pulsional. Esta angustia pulsional, que se apropria do fenômeno do horror, que releva a angustia traumática e que recorta o núcleo da perturbação econômica, se sustenta na "reação originária frente à indefensão no trauma"49. Dita reação originária permite situar a angústia como função. Enquanto a função da angústia — como assinala Lacan — é anterior à cessão do objeto, o perigo está ligado ao caráter de cessão do momento constitutivo do objeto a. Com a função da angústia, logicamente anterior ao desprendimento do objeto, o momento de indefensão alcança o Outro. Retorna a castração na mãe: "o ponto de angústia está a nível do Outro". A angústia original — o lugar da angústia — se situa a nível do Outro que nada pode fazer com isso que lhe escapa, nada o une a esse grito, já que a cessão do objeto é um "entre-dois"; situa-se entre o Outro e o sujeito. Daí que "quanto à causa de seu desejo o ser humano está ante tudo submetido a tê-la produzido num perigo que ele ignora"50. A série freudiana angúsúa-pengo-indefensão aponta para o sujeito: um voltar a passar por esse "entre-dois" como indefensão no trauma, ou seja, por esse momento de constituição subjetiva. Retorna, então, neste voltar a passar — nosso ponto de partida — o fenômeno da angústia. 118 100 ANOS DE PROJETO FREUDIANO REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 1. LACAN, J. El Seminário, libro X, La angustia, lição de 5 de dezembro de 1962, inédito. 2. FREUD, S. "Obsesiones y fobias", O.C, Buenos Aires, A.E., III, p.75. As referências, salvo indicação, correspondem a O.C, Buenos Aires, Amorrortu Editores, (A.E.), 1978-85. 3. Ibidem, p.75. 4. FREUD, S. "Las neuropsicosis de defensa", O.C, Buenos Aires, A.E., III, p.58. 5. Ibidem, p.55. 6. FREUD, S. "Obsesiones...", op.cit., p.81. 7. Ibidem, p.82. 8. FREUD, S. "A propósito de las críticas a Ia neurosis de angustia" O.C, Buenos Aires, A.E., III, 1878-85, p.133. 9. "Las neuropsicosis", op.cit, p.58. 10. Ibidem. 11. FREUD, S. "Obsesiones...", op.cit, p.81. 12. Ibidem, p.82. 13. FREUD, S. "A propósito...", op.cit, p.133. 14. Ibidem. 15. FREUD, S. "Sobre Ia justificación de separar de Ia neurastenia un determinado síndrome en calidad de neurosis de angustia" O.C, Buenos Aires, A.E., III, 1978-85, p.111. 16. Ibidem, p. 112. 17. FREUD, S. Fragmentos de Ia correspondência con Fliess: "Manuscrito K", A.E., I, p.262. 18. "Nuevas puntualizaciones sobre las neurospsicosis de defensa", O.C, Buenos Aires, A.E., III, 1978-85, p.171. 19. "Sobre ei psicoanálisis silvestre", O.C, Buenos Aires, A.E., XI, 1978-85, p.222. 20. Ibidem, p.223. 21. Ibidem. 22. Ibidem, p.225. 23. FREUD, S. "Lo inconsciente", O.C, Buenos Aires, A.E., XIV, 1978-85, p.180. 24. "Análisis de Ia fobia de un nino de cinco anos (ei pequeno Hans)", O.C, Buenos Aires, A.E., X, 1978-85, p.9. 25. Ibidem, p.21-3. 26. Ibidem, p.23-4. 27. Ibidem, p.25. 28. LACAN, J. te Séminaire, livre IV, La relation d'objet, Paris, Seuil, 1994, p.243. 29. FREUD, S. "Análisis...", op.cit, p.109. 30. LACAN, J. "La relation...", op.cit, p.226-27. 31. FREUD, S. "Análisis...", op.cit, p.96-7. 32. Ibidem, p.109. 33. LACAN, J. "Conferência en Cinebra", in Intervenciones y textos 2, Bs.As., Manantial, 1988, p. 128. 34. FREUD, S. "Análisis...", op.cit, p.111-2. 35. Ibidem, p.102; 99. 36. Ibidem, p.97. 37. FREUD, S. "25 1 conferência. La angustia", O.C, Buenos Aires, A.E., XVI, 1978-85, p.358-60. 38. "23a conferência. Los caminos de Ia formación de sintoma", O.C, Buenos Aires, A.E., XVI, 1978-85, p.338. A FUNÇÃO DA ANGÚSTIA 39. 40. 41. 42. 43. 44. 45. 46. 47. 48. 49. 50. 119 "25a conferência", op.cit, p.360. "Carta 52", A.E., I, p.280. "25a conferência", op.cit., p.361-2. "Inhibición, sintoma y angustia", O.C, Buenos Aires, A.E., XX, 1978-85, p.123. "Algunas consecuencias psíquicas de Ia diferencia anatômica entre los sexos", O.C, Buenos Aires, A.E., XIX, 1978-85, p.274. "Carta a Rank dei 25 de agosto de 1924", in revista Seminário Lacaniano n%, Bs.As., 1994. "La organización genital infantil", O.C, Buenos Aires, A.E., XIX, 1978-85, p.147. "Inhibición...", op.cit., p.125-35. "32a conferência. Angustia y vida pulsional", O.C, Buenos Aires, A.E., XXII, 1978-85, p.87. "Inhibición...", op.cit, p.120. Ibidem, p. 155-6. LACAN, J. El Seminário, libro X, "La angustia", lição de 3 de julho de 1963, inédito. * N.T. Ao substantivo indefension não encontramos correspondente em português, onde, no entanto, temos os adjetivos indefeso e indefenso. O autor o utiliza para traduzir ao espanhol o termo Hilflosigkeit de importância na elaboração freudiana do 'Projeto". Propomos então criar o termo indefensão em fidelidade à articulação teórica do texto. Sonhos de Angústia Maria Lucía Silveyra Tradução: Paloma Vidal Introdução Hoje, a cem anos do Projeto Freudiano, é um fato que as coordenadas simbólicas nas quais se inscreve a psicanálise têm variado. O discurso analítico se difunde nos diferentes âmbitos da cultura. Conseqüentemente, esta situação tem propiciado distorções que, em algumas circunstâncias, o distanciam do que fora o projeto do criador da Psicanálise. Distorções que acentuam mais a adaptação do que o conflito. O inconsciente também se modificou no que diz respeito às suas formas de apresentação. Em certos casos o discurso de nossos analisandos dista bastante do daquelas primeiras histéricas que Freud nos apresentava em seus "Estudos sobre a histeria". Recordamos que, já no início, Freud se depara com a necessidade de introduzir certas variações na técnica analítica como maneira de responder aos obstáculos da sua prática: desde a arte da interpretação até as resistências e a repetição. Poderíamos dizer que na atualidade os obstáculos que encontramos são outros, mas, de uma forma ou de outra, eles são necessariamente parte do trabalho analítico e do desafio que ele mesmo impõe. Por sua vez, continuamos sendo convocados num mesmo ponto: o do sofrimento subjetivo. O fato de termos crianças como analisandos não nos isenta de ter que enfrentar as mesmas dificuldades: o fechamento do inconsciente. No entanto, certas respostas próprias das crianças à intervenção analítica não deixam de surpreender por seu caráter direto ou por sua rapidez. 121 122 100 ANOS DE PROJETO FREUDIANO Vale a pena recordar as vacilações que oportunamente manifestara Freud a respeito disso: ...a análise de uma perturbação na infância parecerá mais digna de confiança, mas seu conteúdo não pode ser muito rico já que será preciso emprestar à criança muitas palavras e pensamentos e ainda assim os estratos impenetráveis, profundos serão inacessíveis para a consciência. Logo acrescentará: de qualquer maneira é lícito afirmar que as análises das neuroses da infância podem oferecer um interesse particularmente grande. O serviço que prestam na compreensão da neurose dos adultos eqüivale mais ou menos ao que os sonhos das crianças brindam a respeito dos sonhos dos adultos [...] O que ocorre é que neles vem à tona de maneira inequívoca o essencial da neurose porque estão ausentes as estratificações que se depositaram depois.2 Em se tratando da psicanálise e da ética do desejo é no caso por caso que tentaremos dar respostas a estes interrogantes. Os sonhos: sintoma e fantasma Tomei dois sonhos da análise de uma criança que caracterizo como sonhos de angústia. Sonhos que constituem um momento privilegiado da cura. Por um lado, como via de acesso à própria interrogação sobre o sintoma manifesto de sua neurose infantil: uma neurose secundária. Por outro, o esboço de certos pontos de fixação fantasmática, cujo destino na constituição subjetiva terá ficado por ora suspenso. A respeito dos sonhos, Freud nos ensina que, se bem é função dos mesmos atuar como guardiões do sono, há sonhos — como neste caso os sonhos de angústia — que contrariando o princípio do prazer fracassam na tentativa de elaboração do desejo inconsciente, interrompem o sono e provocam o despertar. Despertar para o encontro traumático com a sexualidade, sexualidade marcada por uma falta. Cada sujeito tentará de uma maneira peculiar velar dito trauma, o real da castração. Sintoma, angústia, vicissitudes do fantasma, são montagens que o dispositivo analítico permitiu levar a cabo, desdobramento em transferência, dos momentos peculiares de uma análise. Para orientar a exposição do caso recordarei as palavras de Freud ao referir-se aos sonhos de angústia: "A angústia nos sonhos, me seja permitido insistir, é um problema de angústia e não um problema de sonho."3 SONHOS DE ANGÚSTIA 123 Numa ocasião o analisando sonhou que se afundava em areias "molhadiças". Num cartaz lia-se a palavra "Perigo". Comentou que havia tido a sensação de não poder se mexer e disse "se estas areias chupam você, você desaparece". Quando acordou assustado, havia feito xixi na cama. Durante o relato corrige e diz: "movediças, não molhadiças." Em outro sonho havia um vampiro dentro da cama. E também uma torta. O vampiro queria chupar-lhe todo o sangue e ele gritou. Em ambos sonhos destaca-se um significante: "ser chupado", forma própria da gramática pulsional. Este significante que estabelece a equivalência entre as areias e o vampiro — ambos o chupam — remete na cadeia associativa a outro significante: "desaparecer". Chupar e desaparecer abrem o caminho para sintoma e para fantasma. A condensação que se produz no lapso molhadiça por movediça toma, no equívoco, valor de interpretação e o leva em suas associações a fazer xixi na cama. Manifestam-se, então, através desta produção, por um lado os sonhos e o lapso — pontuações próprias do inconsciente e que veiculam um desejo — epor outro, o fantasma, que em sua versão imaginária, remete ao objeto em jogo. Há um fracasso na dimensão da representação que aproxima ao objeto, objeto causa do desejo que o coloca em questão. São sonhos que, como no "Homem dos Lobos", ativam um fantasma — em nosso caso: "ser chupado" — e provocam angústia. Sabemos do valor fundante da angústia na constituição do desejo, desejo de ser desejado pelo Outro. Necessariamente lugar de desamparo, onde indefeso diz do sonho: "não podia me mexer". O desejo toma, neste caso, a forma regressiva da oralidade veste a fantasia de vampiro ou areia chupadora. Precisamente destaca-se em ambos os sonhos o fato de que tanto seu corpo como seus conteúdos, no sangue, por exemplo, valem enquanto objetos a serem chupados. O sangue eqüivale, em suas associações, ao xixi. O vampiro havia sido até esse movimento da análise um personagem habitual em seus jogos, em seus desenhos. Mas até a aparição dos sonhos ele não fazia comentários a respeito. Voltemos à angústia. Lacan se refere ao vampirismo para situar o ponto de angústia entre a mãe e a criança, ponto que está a nível do corpo da mãe. A angústia da criança ante a falta da mãe situa-se no esgotamento do peito. Na clínica encontramos que, correlativamente a este fantasma, a posição vampiresca da criança é uma resposta possível: "chupar-ser chupado". "Não por acaso evoquei a imagem fantasmática do vampiro que não é sonhada nem concebida de outro modo pela imaginação do que como esse modo de 124 100 ANOS DE PROJETO FREUDIANO fusão ou de substração primária na fonte mesma da vida, onde o sujeito agressor pode encontrar a fonte de seu gozo"4. O descobrimento da sexualidade entre os pais é um dos nomes da castração. No caso clínico do "Homem dos Lobos", da história de uma neurose infantil, Freud se refere à cena primordial e diz que a criança interrompeu o estar junto de seus pais mediante uma evacuação que lhe deu motivo para berrar. Freud diz ainda, e isso nos interessa especialmente em relação a nosso analisando, que, em ocasiões de índole parecida, a observação do comércio sexual entre os pais acabou em uma micção. Acrescenta que ambos fatos, a evacuação e a micção, podem ser tomados como signos da primeira excitação sexual. À excitação sexual e satisfação pulsional do sintoma, a criança responde com enurese, "fazendo xixi na cama". Já numa carta a Fliess, Freud assinala que "uma criança que molhe a cama regularmente até os sete anos (...) deve ter vivenciado excitação sexual na infância". Nos 'Três ensaios", referindo-se ao diagnóstico diferencial, considera que a enurese noturna quando não responde a um ataque epiléptico, corresponde a uma pulsão. Lacan se detém em seus desenvolvimentos sobre a angústia nessa cena primordial do caso clínico mencionando: os pontos de fixação da libido se encontram sempre ao redor de alguns desses momentos que a natureza oferece a essa estrutura eventual de cessão subjetiva . Neste caso, os sonhos advertem de um perigo, perigo ligado ao desejo que o coloca em questão como sujeito. Este perigo — precisa Lacan — é, de acordo com a indicação freudiana mais precisamente articulado, o que está ligado ao caráter de cessão do momento constitutivo do objeto a6. Enquanto que a função da angústia é anterior à cessão do objeto, o perigo está ligado ao caráter de cessão do objeto parcial, do objeto a e de sua posição desejante. Quanto à causa de seu desejo, o ser humano está ante tudo submetido a tê-lo produzido num perigo que ele ignora . Poderíamos dizer que os sonhos na cura possibilitam, ao ativar o fantasma, voltar a passar por esse momento de constituição subjetiva. O desdobramento fantasmático, a construção, produto da cadeia significante, recorta o objeto pulsional e comove o sintoma, ao mesmo tempo que nomeia a angústia e lhe dá uma proteção: o desejo da mãe disfarçado de vampiro. SONHOS DE ANGUSTIA 125 Frente à castração cede fazendo xixi na cama. O que nomeia como objeto a, o xixi, é o gozo, o gozo autoerótico. "Fazer xixi na cama" é o sintoma, "chupar" o verbo ao redor do qual se ordena o sintoma e o fantasma e que abre à dimensão pulsional da oralidade, colocando em jogo um objeto: o peito. Há articulação entre o sintoma e o fantasma. Estabelece-se a equivalência no inconsciente entre o peito e o pênis, entre o chupar e o fazer xixi na cama. São as teorias sexuais infantis que no dizer de Freud resultam indispensáveis para a concepção das mesmas neuroses, nas quais estas teorias conservam vigências e cobram um influxo que chega a comandar a configuração dos sintomas . E acrescenta: o que há nessas teorias de correto é explicado por sua proveniência dos componentes da pulsão sexual, já em movimento dentro do organismo infantil. Alguns dados da história A mãe o apresenta como uma criança superdotada, tanto por seu desenvolvimento físico como por sua capacidade intelectual. O ingresso na escola não confirma esta fantasia. Passa a ser apenas um a mais no grupo das crianças. É o momento de queda do imaginário, do ser diferente, que ambos compartilhavam. Nascem irmãos gêmeos, ambos meninos: acidente, não sem conseqüências, na história. Há o encontro com a castração do Outro materno que o desaloja do lugar ideal de falo, desde o qual completava imaginariamente a mãe. Frente a imagem da completude reage com agressividade: chiliques diante da cena dos irmãos mamando, chupando dirá ele, e que freqüentemente derivam na masturbação ou no xixi na cama. Com as primeiras excitações sexuais começa a enurese. Da equação corpo-falo ao descobrimento do pênis real que irrompe como traumático é um gozo fálico de difícil assimilação simbólica. Nas seções se interessa pelas comparações: presente-ausente, grande-pequeno, vivo-morto, entre outras. Constrói aviões de papel. Apincípio são tão grandes que não pode fazê-los voar. Vai reduzindo-os de tamanho e consegue que se mantenham no ar. Traz um quebra-cabeça com cujas peças se monta o corpo humano. Como é de se esperar num jogo para crianças, o "pinto" não figura entre as peças. Adverte, então, que este pode faltar. Nas aulas de judô, perto do fim do ano, obtém como prêmio por seu desempenho a ponta de uma faixa. Esperava algo mais. Faz a passagem do pênis real a uma solução simbólica, produto da conseqüente modulação da angústia. 126 100 ANOS DE PROJETO FREUDIANO Com respeito à relação entre a criança e a angústia, Freud refere-se às histerias de angústia como as que aparecem mais cedo na vida: "são diretamente as neuroses da época infantil". Apesar de alguns medos, que foram cedendo no curso da análise, no caso desta criança, não se constitui uma fobia. O desejo do analista operou e tornou possível a constituição de um saber, de uma ficção fantasmática, esboço de resposta ao impossível do real. Até aqui chegou a análise: fica como questão a verificar o destino do objeto que virá ao mesmo tempo a velar e a assinalar a falta. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 1. FREUD, S., "Da história de uma neurose infantil. O.C v.XVII, Buenos Aires, Amorrortu Ed. 2. Ibidem 3. FREUD, S., A Interpretação dos Sonhos. O.C, V, op.cit 4. LACAN, J., O Seminário, livro 10, A angústia. Inédito. 5. Ibidem. 6. Ibidem. 7. Ibidem. 8. FREUD, S., "Da história de uma neurose infantil". Op.cit. 9. Ibidem.