o personagem “chico bento”, suas ações e seu contexto

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o personagem “chico bento”, suas ações e seu contexto
MARIA DE LOURDES DEL FÁVERI CÓRIO
O PERSONAGEM “CHICO BENTO”, SUAS AÇÕES E SEU
CONTEXTO: UM ELO ENTRE A TRADIÇÃO E A MODERNIDADE.
Marília
2006
MARIA DE LOURDES DEL FÁVERI CÓRIO
O PERSONAGEM “CHICO BENTO”, SUAS AÇÕES E SEU
CONTEXTO: UM ELO ENTRE A TRADIÇÃO E A MODERNIDADE.
Dissertação apresentada ao curso de Pós Graduação da
Universidade de Marília–SP, como requisito para a
obtenção do título de Mestre em Comunicação e
Estudos de Linguagem. Área de Concentração: Mídia e
Cultura. Orientadora: Prof. Dra. Rosangela Marçolla.
MARÍLIA
2006
UNIMAR - UNIVERSIDADE DE MARÍLIA
Reitor: Márcio Mesquita Serva
PRO-REITORIA DE PESQUISA E PÓS-GRADUAÇÃO
FACULDADE DE COMUNICAÇÃO, EDUCAÇÃO E TURISMO
DIRETORA: PROFª. DRA. SUELY FADUL VILLIBOR FLORY
CURSO DE PÓS-GRADUAÇÃO EM “COMUNICAÇÃO E ESTUDO DE LINGUAGENS”
ÁREA DE CONCENTRAÇÃO: MÍDIA E CULTURA
ORIENTADORA: PROFª. DRA ROSANGELA MARÇOLLA
Ao Agostinho, meu marido muito querido, meu
companheiro, agradeço pelo apoio, paciência e
incentivo. Aos meus filhos, Fabiana e Fernando, por
compreenderem a minha dedicação a este trabalho
Amo vocês.
AGRADECIMENTOS
A realização deste trabalho dependeu da ajuda de muitas pessoas. Agradeço a
todos que, de alguma forma, contribuíram para que ele se concretizasse, mas em
especial :
•
À professora doutora Rosangela Marçolla, pela orientação segura, pela
atenção e gentileza, e por acreditar na viabilidade dessa pesquisa.
•
Ao professor doutor João Adalberto Campato Júnior, por sua colaboração
e seu incentivo
•
Ao professor doutor Alfredo Peixoto Martins, pelo seu incentivo e seus
ensinamentos.
•
À professora doutora Lucia Correia Marques de Miranda Moreira pelo seu
bom senso e sua sabedoria
•
Ao meu marido Agostinho, por estar sempre do meu lado com seu
conhecimento e seu bom humor
•
À Rosangela Braga Barbosa pela atenção dispensada no transcorrer do
curso e sua grande amizade.
ROMANCE LIII OU DAS PALAVRAS AÉREAS
Ai, palavras, ai, palavras,
Que estranha potência, a vossa!
Ai, palavras, ai, palavras
Sois de vento, ides no vento,
No vento que não retorna,
E, em tão rápida existência, tudo se forma e se transforma!
Sois de vento, ides no vento,
E quedais, com sorte nova!
Ai, palavras, ai, palavras,
Que estranha potência, a vossa!
Todo sentido da vida
Principia à vossa porta;
O mel do amor cristaliza
Seu perfume em vossa rosa;
Sois o sonho e sois a audácia
Calúnia, fúria, derrota...
A liberdade das almas,
Ai! Com letras se elabora....
E dos venenos humanos
Sois a mais fina retorta:
Frágil, frágil como o vidro
E mais que o aço poderosa!
Reis, impérios, povos, tempos,
Pelo vosso impulso rodam...
Detrás de grossas paredes,
De leve, quem vos desfolha?
Pareceis de tênue seda,
Sem peso de ação nem de hora...
- e estais no bico das penas
- e estais na tinta que molha,
- e estais nas mãos dos juízes,
-e sois o ferro que arrocha,
- e sois barco para o exílio,
- e sois Moçambique e Angola!
Ai palavras, ai palavras,
Íeis pela estrada afora,
Erguendo asas muito incertas,
Entre verdades e galhofa, desejos do tempo inquieto,
Promessas que o mundo sopra...
Ai, palavras, ai palavras
Mirai-vos: que sois , agora?
-Acusações, sentinelas,
bacamarte, algema, escolta;
- o olho ardente da perfídia,
a velar, na noite morta;
- a umidade dos presídios
- a solidão pavorosa;
- duro ferro das perguntas,
com sangue em cada resposta;
- e a sentença que caminha,
-e a esperança que não volta,
- e o coração que vacila,
- e o castigo que galopa...
Ai, palavras, ai palavras,
Que estranha potência, a vossa !
Perdão podíeis ter sido!
- sois madeira que se corta- sois vinte degraus de escada,
-sois um pedaço de corda...
-sois povo pelas janelas,
cortejo, bandeiras, tropa...
Ai, palavras,ai palavras,
Que estranha potência, a vossa!
Éreis um sopro de aragem...
-sois um homem que se enforca
MEIRELES, Cecília. Obra poética. Rio de Janeiro,
Nova Aguilar, 1995, p.442-94.In:PLATÃO &FIORIN.
Para Entender o Texto.p.50
RESUMO
Entre todas as linguagens que fazem parte do mundo contemporâneo, iremos abordar
uma que realiza a integração entre a linguagem escrita e a linguagem visual: as histórias em
quadrinhos
Essa pesquisa objetiva estudar Chico Bento, como um representante do indivíduo
“caipira”. Como um representante do universo rural, mas de maneira inteligente, onde vive as
tradições, o folclore, com inocência e simplicidade. O personagem personifica a bondade, a
simplicidade do homem do campo, que são características que o identificam. Nesse sentido, as
histórias em quadrinhos de Chico Bento resgatam do passado (da tradição) os valores morais
para a contemporaneidade como uma alegoria do passado.
Palavras chave: história em quadrinhos, tradição, Chico Bento, caipira.
ABSTRACT
Among all of the languages which are part of the contemporary world, we will
approach one that accomplishes the integration between the written language and the visual
language: the cartoons.
This research is aimed at in studying Chico Bento, as a representative of the
“rustic” individual. It is a prototype of the rural universe, but in an intelligent way, where he
lives the traditions, the folklore, with innocence and simplicity. The character personifies the
kindness, the man's of the field simplicity, that are characteristic that identify him. In this
sense, Chico Bento's cartoons rescue of the past (of the tradition) the moral values for the
"contemporaneidade" as an allegory of the past.
Key words: cartoons, tradition, Chico Bento, tacky.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO................................................................................................................. 16
I – A GLOBALIZAÇÃO E A HISTÓRIA EM QUADRINHOS............................... 23
1.1 - História em Quadrinhos: Produto da Indústria Cultural.................................... 26
1.2 – Cultura de massa e a formação da identidade social........................................ 30
1.3 – A cultura de massa e os quadrinhos de Maurício de Sousa............................... 33
II – AGORA É HORA DAS HISTÓRIAS ... DOS QUADRINHOS........................... 40
2. 1 - A evolução das formas de comunicação: um resgate histórico....................... 41
2. 2 – As fases da evolução dos quadrinhos............................................................... 48
2. 3 – Os quadrinhos no Brasil................................................................................... 62
III - A NATUREZA E A TIPOLOGIA DOS QUADRINHOS .................................. 72
3. 1 - A linguagem da história em quadrinhos.......................................................... 74
3. 2 - Elementos que compõem uma vinheta..............................................................75
3. 3 - Planos............................................................................................................. 76
3. 4 - Os ângulos de visão........................................................................................ 86
3. 5 - O Balão, a Legenda, a Onomatopéia............................................................... 88
3. 6 – Estrutura narrativa em quadrinhos................................................................... 97
IV – MAURÍCIO DE SOUSA: UM POUCO DE SUA HISTÓRIA........................... 100
4. 1 – O Empreendedor................................................................................................ 109
V – A CONSTRUÇÃO DO PERSONAGEM CHICO BENTO.................................. 117
5. 1 – Chico Bento e o retrato de sua turma............................................................... 125
5.1.1 - A Turma da roça.......................................................................................... 129
5. 2 - Chico Bento e a cultura popular.................................................................... 131
5. 2. 1 - A folkimídia e os quadrinhos................................................................. 139
5. 2. 2 - O elo entre o passado e a contemporaneidade......................................... 141
5. 2. 3 - Recontando a história............................................................................... 143
5. 3 – Os valores e potencial dos quadrinhos............................................................... 144
5. 3. 1 - As virtudes denotadas nos quadrinhos..................................................... 152
CONSIDERAÇÕES FINAIS............................................................................... 163
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS........................................................ ...... 169
LISTA DE ILUSTRAÇÕES
PÁGINA
1 - Chico Bento e seu primo da cidade............................................................................... 37
2 - Monumento de arte rupestre no oeste da África.......................................................... 41
3 - Bisão, encontrado na caverna de Altamira................................................................... 42
4 - Os ideogramas chineses................................................................................................ 43
5 - Parte inferior da coluna de Trajano em Roma............................................................. 47
6 - Bíblia em xilogravura do século XII............................................................................. 48
7 - O Down Hogan´s Alle………………………………………………………………………... 51
8 - Yellow Kid ..................................................................................................................... 52
9 - O garoto amarelo e seu gramofone................................................................................ 53
10 - Capitão, dona Chucruts, Coronel, Hans e Fritz............................................................54
11 - Little Nemo.................................................................................................................. 55
12 - Mutt Jeff...................................................................................................................... 56
13 - Les Pieds-Nickelés (1908), de Louis Forton……………………………………….. 57
14 - As Cobranças (1867), de Ângelo Agostini.................................................................. 63
15 – A revista O Tico Tico................................................................................................ 65
16 - O amigo da Onça.....................................................................................................
67
17 – Pererê (1959).............................................................................................................. 68
18 – Made In Brazil (anos 90).............................................................................................69
19 - Plano geral....................................................................................................................77
20 - Travelling..................................................................................................................... 78
21 - Plano médio................................................................................................................. 79
22 - Plano americano........................................................................................................... 80
23 - Primeiro plano............................................................................................................. 81
24 - O ponto de vista........................................................................................................... 82
25 – Panorâmica.................................................................................................................. 82
26 - O detalhe dominando a imagem ............................................................................... 83
27 - O detalhe do “detalhe” dominando a cena.................................................................. 84
28 - Recursos de enquadramento......................................................................................... 85
30 - Ângulos de visão inferior............................................................................................ 87
31 - Ângulo de visão superior: ......................................................................................... 88
32 - Ângulo de visão médio: .........................................................................................
89
33 - Balão Fala................................................................................................................... 90
34 - Balão pensamento....................................................................................................... 90
35 - Balão cochicho............................................................................................................. 91
36- Balão berro.................................................................................................................... 91
37 - Balão trêmulo.............................................................................................................. 92
38 - Balão vibrado.............................................................................................................. 92
39 - Balão uníssono..............................................................................................................93
40 - Balão censurado.......................................................................................................... 94
41 -Balão mudo................................................................................................................. 95
42 - Balão duplo................................................................................................................ 96
43/44/45/46/47/48-Onomatopéia........................................................................................ 97
49- Maurício de Sousa no início de sua carreira.............................................................. 102
50 – Bidu.......................................................................................................................... 103
51- Cebolinha................................................................................................................... 104
52 - Chico Bento..............................................................................................................
105
53- Cascão......................................................................................................................
106
54 – Jotalhão..................................................................................................................... 106
55 – Horácio....................................................................................................................
107
56 – Mônica.....................................................................................................................
107
57 – Magali....................................................................................................................... 108
58 - O Astronauta.............................................................................................................. 109
59 – Tina,.......................................................................................................................... 109
60 – Pelezinho ................................................................................................................... 110
61 - Maurício em campanha com a Trol............................................................................ 114
62/63 - Chico Bento consultando sua galinha................................................................... 121
64- Caipira Pitando......................................................................................................
127
65 -Chico Bento e a reforma agrária................................................................................... 129
66 - Hiro............................................................................................................................. 130
67 - Rosinha........................................................................................................................ 130
68 - Zé Lelé......................................................................................................................... 131
69 - Zé da Roça.................................................................................................................. 131
70 - Tira do Hiroshi e Zezinho(l963).................................................................................. 132
71- Casamento na roça....................................................................................................... 136
72- Cozinha Caipira........................................................................................................... 137
73-Caminhos da Roça........................................................................................................ 138
74 - Chico Bento e seus pais.............................................................................................. 150
75 – Chico Bento e os repórteres....................................................................................... 151
76 - Chico Bento e o “ovo de ouro”.................................................................................... 156
77 - Chico Bento e seu amigo “príncipe”.......................................................................... 159
78 - Chico Bento e seu primo da cidade................................................................... ..........160
79 - Chico Bento e seus pais............................................................................................... 161
80 - Chico Bento e sua “amiga”......................................................................................... 161
INTRODUÇÃO
Com o desenvolvimento dos Estudos Culturais e das ciências da comunicação, nas
últimas décadas, podemos notar que estudiosos vêm se preocupando em analisar as histórias
em quadrinhos quanto à sua especificidade e ao seu impacto na sociedade como meio de
comunicação de massa. Isso mostra uma preocupação da cultura acadêmica com o ver,
compreender e revelar as histórias em quadrinhos como um elemento de destaque do sistema
global de comunicação. Sobre o assunto Oliveira diz que
originalmente surgidos na Inglaterra, na década de 1950, e trazendo na
bagagem forte influência do estruturalismo francês, o interesse dos Estudos
Culturais voltou-se primeiramente para os problemas da sociedade e da
linguagem. Na década de 1980,[...] ultrapassam as fronteiras da GrãBretanha, chamando a atenção de estudiosos de outros países, sobretudo dos
Estados Unidos da América. [...], os Estudos Culturais passam a
privilegiar a interdisciplinaridade e seu corpus deixa de ser apenas a
literatura1.
Dentro dos Estudos Culturais, a história em quadrinho, como objeto de estudo, assume
relevância após os estudos de Ariel Dorfman e Armand Matellart (1978) com o livro Para Ler
o Pato Donald, que tratou o tema com uma análise crítica. Em 1978, Umberto Eco (2000)
publica Apocalípticos e Integrados, um estudo semiológico da cultura de massa e dos meios
de comunicação. No capítulo intitulado O mito do Superman, Eco relata alguns fatos que
ilustram bem o poder de persuasão das histórias em quadrinhos.
Como um meio de comunicação impresso, as histórias em quadrinhos levam ao seu
receptor a informação, o entretenimento e a orientação, assim como podem vender produtos
por meio da publicidade. Os elementos verbais e os não verbais que compõem as revistas em
quadrinhos atuam como formas de difusão de idéias, além de persuadirem o leitor a consumir
produtos e aderir a determinados comportamentos, já que os meios de comunicação são
formadores de opinião.
Na sociedade contemporânea, o homem vive seu cotidiano inserido no mundo das
imagens. É possível ver pessoas assistindo a um trailler de um filme na TV e, ao mesmo
1
OLIVEIRA, Geisa F D’. Cultura em Quadrinhos: reflexões sobre as histórias em quadrinhos na perspectiva
dos Estudos Culturais. In: Alceu. Revista de Comunicação, Cultura e Política- v 4 nº 8 - jan / jun, 2004, p.78.
tempo, observar a mesma história em revistas de quadrinhos ou ainda acessar a um site desse
mesmo personagem ou assistir, no cinema, a um longa metragem enfocando o mesmo enredo.
Cada vez mais, a tecnologia vem potencializando a criação de signos por meio da mídia. O
excesso de signos, de técnicas de simulação vem, cada vez mais, transformando o cotidiano na
sociedade do espetáculo.
Nesse contexto, a história em quadrinhos faz parte da indústria cultural, com produção
em série massificadora que eterniza a ideologia de classe, seja dominante ou não. Tendo em
vista que as histórias podem despertar o senso crítico e reforçar vínculos, desenvolvendo um
certo tipo de olhar crítico que os recursos verbais tradicionais isoladamente não possibilitam,
podemos chegar à importância que lhes reserva o campo da comunicação.
Pretendemos com este trabalho buscar respostas no que diz respeito à relevância da
persuasão imposta pela ideologia das histórias em quadrinhos de autoria de Maurício de
Sousa, ainda que este estudo se restringirá, especificamente, a um de seus personagens: Chico
Bento. Estudar a criação deste personagem, seus costumes e seu contexto como um elo entre a
tradição e a modernidade contemporânea.
Para melhor entendimento do termo, buscamos, no dicionário da Língua Portuguesa
Houaiss, a definição da palavra tradição e encontramos: “como comunicação oral de fatos,
lendas, ritos, usos e costumes etc. E, conjunto de valores morais, espirituais etc.,transmitidos
de uma geração para outra”2. E como contemporaneidade, o dicionário define como: “que ou o
que é do tempo atual”3.
A partir da metade do século XX, o Brasil passa a ser um país mais urbanizado e
industrializado e, conseqüentemente, irrigado pela cultura das mídias. Isso causou uma
inversão na vida das pessoas, os valores passaram a ser demonstrados e conduzidos para
alterar a sensibilidade e o cotidiano do indivíduo. As gerações que se desenvolveram “neste
mundo” infestado pelos meios de comunicação e de informação, experimentaram mudanças
fundamentais nas percepções de si próprias, do mundo social e do mundo cósmico. No ano de
1961, foi criado o personagem de Maurício de Sousa: “Chico Bento”, que possui
características peculiares que o diferenciam de outros personagens: seu estilo de vestir, sua
maneira de falar, seus valores pessoais e sociais, o meio em que vive (campo), o grupo de
2
3
HOUAISS, Antonio et al. Dicionário de: Língua Portuguesa: 1ª ed. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001, p.2745.
HOUAISS, Antonio et al. Op., cit., p. 817.
pessoas com o qual convive. Aliado ao conceito de família em que ele está estabelecido, todo
esse perfil compõe e determina seu jeito de viver.
Por meio das histórias em quadrinhos, pode-se afirmar que o Chico Bento possui as
seguintes características: menino do campo, caipira, fala de forma diferente. Cuida dos
animais e plantas de tal forma que deposita neles carinho, amor e amizade, preocupa-se com o
bem-estar social, gosta de dormir depois do almoço, tem um jeito de pessoa tranqüila, seu
figurino é simples, sem a preocupação do que está ou não na moda, usa camisa xadrez e calça
curta, é fácil de fazer amigos. Tem na família uma estrutura fortalecida e valorizada, que
mantém como cultura e meio de sobrevivência a horta, as aves, e os cereais. Preserva valores
como o amor, a honestidade, a coragem e a simplicidade. O personagem pode ser o tipo que
caracteriza o homem do campo e mantém, até os dias atuais, os costumes e as idéias de um
Brasil rural. Sobre Chico Bento Oliveira comenta que
o simpático menino do interior paulista foi elevado à categoria de
objeto de estudo, pelo fato de despontar como uma unanimidade dentre
os teóricos dos quadrinhos nacionais [...] o Chico Bento permanece
impávido, citação indefectível quando o assunto é brasilidade.
Estranho poder, o desse menino4
Há apenas algumas décadas, os sujeitos formavam a sua imaginação do mundo a partir
das referências da vida no campo, no contato com as arborescências da natureza, do mundo
agrário, num tempo em que a publicização da vida não era tão eminente. Nas décadas de 1950
e 1960, os sentimentos íntimos mais profundos de nacionalismo se faziam permanecer e eram
considerados como regras na sociedade brasileira. Com a urbanização e os crescentes meios
de comunicação e de transportes, vimos uma transformação nas estruturas da vida cotidiana da
sociedade brasileira, nas décadas de 1970 e 1980 e, conseqüentemente, a formação de uma
nova mentalidade das pessoas. As mídias têm uma contribuição incisiva nesse processo ao
difundir novos hábitos de consumo, fabricando desejos e necessidades e criando a figura
pública do cidadão. A partir da década de 1990, com a evolução das cidades, as redes e
tecnologias de interação virtual tornam-se imprescindíveis e uma exigência
na
contemporaneidade. Podemos definir como oposto à modernidade contemporânea: a tradição
4
OLIVEIRA, Gêisa F D’. Op., cit., p. 78-79.
que se manifesta como o passado, revivido, da memória; a contemporaneidade é o presente, o
futuro. Podemos considerar a tradição e a modernidade como as faces de uma mesma moeda,
estabelecendo entre elas uma relação: contemporâneo é tudo o que se demarca em relação
aquilo que permanece como tradicional, tal como tradicional é tudo o que se demarca em
relação àquilo que se apresenta como moderno. Nesse sentido, de ruptura entre o que é
passado, na memória, e aquilo que se faz presente na modernidade contemporânea; buscamos
resgatar os valores e princípios de brasilidade que constituem a identidade do sujeito rural
representado pelo personagem Chico Bento. O personagem preserva a identidade “caipira”
por não se modernizar dentro dos parâmetros da cultura contemporânea, nesse sentido, Chico
Bento denota a fragmentação do indivíduo inserido na cultura atual.
Vale ressaltar que as revistas e o personagem Chico Bento, por meio da mídia,
resistem ao tempo e ao espaço, embora sujeitos à concorrência mercadológica imposta pelas
relações da globalização e a competição decorrentes das novas tecnologias, sobretudo do
computador, vídeo games, televisão e internet. No entanto, continuam brilhando e divertindo
as pessoas de todas as idades e sexos, de diferentes níveis sociais e culturais, inclusive
ultrapassando fronteiras. Essas questões são partes que ajudam a determinar o nosso objeto de
estudo para este trabalho que se encontra organizado em cinco capítulos.
O primeiro capítulo trata do processo de globalização e as histórias em quadrinhos
como um produto da indústria cultural. As HQ participam desse movimento como uma mídia
que intensifica o fluxo comunicacional entre as pessoas. Destacam a identidade do sujeito que
deixa de ser formada pela interação entre o “eu e a sociedade”, passando a ser formada pelas
‘supostas’ necessidades do homem, influenciada pela indústria cultural. No capítulo seguinte,
aborda-se a evolução das formas de comunicação do ser humano e o resgate histórico das
histórias em quadrinhos na Europa, nos Estados Unidos e no Brasil.
A seguir, o terceiro capítulo enfoca a natureza e a tipologia das histórias em
quadrinhos, ou seja, a linguagem formada por dois componentes ou códigos diferentes: a
imagem e o texto que estão irrevogavelmente entrelaçados, assim como o enquadramento que
corresponde aos personagens, cenários, planos de visão, às metáforas visuais, balões, e às
onomatopéias.
O quarto capítulo apresenta o resgate de parte da história do autor Maurício de Sousa e
sua trajetória profissional. Mostra os principais personagens que mais conquistaram a simpatia
dos leitores. O quinto capítulo aborda um breve estudo da formação do personagem “Chico
Bento” e sua relação com a cultura popular. Traz a abordagem dos valores e das virtudes
destacados dos quadrinhos de “Chico Bento” da coletânea: Um Tema Só - Mônica. A
coletânea é composta de 5 revistas publicadas no ano de 2003, na cidade de São Paulo, pela
Editora Globo, com republicações das melhores histórias criadas por Maurício de Sousa, mas
não consta a data das publicações das mesmas. Os temas das revistas são: aniversários,
passeios, fábulas, superestrela, parabéns e superaventuras.
Para encontrar respostas, que satisfazem ao objeto da pesquisa, foram efetuadas
leituras sobre o tema, abordado por autores nas áreas em questão. Após a coleta dos dados
históricos, adotamos a pesquisa bibliográfica para construirmos o corpus teórico do nosso
trabalho. Acreditamos na necessidade de adotarmos como embasamento teórico os principais
autores que possam contribuir na tentativa de chegarmos a um possível resultado acerca das
nossas hipóteses em questão.
Rubem Alves diz que todo pensamento inicia com um problema e que para fazer
ciência é preciso perceber e formular problemas. Ele recomenda a busca de um modelo, ou
seja, de uma teoria através da qual seja possível prever o comportamento da natureza no
futuro: “O espanto perante a ordem é a primeira inspiração da ciência. Quando um cientista
enuncia uma lei ou uma teoria ele está contando como se processa a ordem. É isto que
significa testar uma teoria: ver se, no futuro, ela se comporta da forma como o modelo
previu”5 A investigação que norteará essa pesquisa adotará
o segundo critério das opções metodológicas [...], e diz respeito à
seleção de uma multiplicidade de métodos de análise de pesquisa. No
caso da comunicação, por se tratar de uma disciplina ou campo
recente, ela não pode senão apoiar-se e desenvolver-se a partir das
Ciências Sociais tradicionais. Suas formas específicas de aproximação
à realidade só agora começam a ser delimitadas6 ”.
Na procura de uma resposta para a problemática do nosso objeto de estudo, a
pesquisadora Maria Immacolata Vassalo de Lopes comenta que o amadurecimento
5
6
ALVES, Rubem. Filosofia da Ciência - Introdução ao jogo e suas regras. São Paulo:Loyola 2003,p.94
LOPES, Maria Immacolata Vassalo de. Pesquisa em Comunicação. São Paulo: Loyola, 2003. p.104
metodológico no campo da Comunicação “depende do desenvolvimento das análises de seus
múltiplos níveis e dimensões, o que exige, necessariamente, uma variedade de metodologias7”,
portanto acreditamos que, no primeiro momento, a teoria da Indústria Cultural será mais
adequada, visto que, nos últimos anos, a Indústria Cultural tornou-se o setor mais ativo que
exerce total supremacia no mercado de bens culturais do País. Nesse sentido, a cultura de
massa assume uma posição histórica e ideológica na atual sociedade.
A sociedade contemporânea está envolta pela aura do consumo da cultura de massa;
cada classe social procura, de acordo com sua especificidade sócio-econômica, consumir
produtos que apresentam nítidas diferenças qualitativas entre si. Ao mesmo tempo, em que se
produzem bens culturais, mais sofisticados, esperando-se do cidadão de baixa renda que os
compre à procura de status, ocorre também que há uma produção específica de subprodutos da
cultura para manter esse mesmo cidadão nos padrões culturais de sua classe social. O prazer
da compra pode também desenvolver uma função psicossocial de auto-satisfação.
Nossa proposta é desenvolver um trabalho destinado à área de Comunicação, voltado
para a cultura de massa, considerando a propagação desta nova forma de desenvolvimento dos
meios de comunicação e cultura na atualidade, como uma das ferramentas mais utilizadas na
sociedade contemporânea.
7
Id, Ibid., p. 105
CAPÍTULO I - A GLOBALIZAÇÃO E AS HISTÓRIAS EM
QUADRINHOS
Vive-se o processo de globalização: o mundo todo conhece um pouco de todo mundo.
A mídia participa desse movimento por meio de seus produtos, intensificando o fluxo
comunicacional entre as pessoas. Como produto midiático, as histórias em quadrinhos também
se projetam, atingindo seu público, ávido por novas histórias. Walt Disney é nosso conhecido,
pois há décadas, suas HQ circulam em prateleiras brasileiras. No sentido inverso, Maurício de
Sousa freqüenta lugares distantes daqui. Não fosse a globalização, os quadrinhos de Sousa não
atravessariam as fronteiras em busca desses novos leitores.
A Revolução Industrial estabelece um limite inicial na origem das histórias em
quadrinhos, como afirma Moya “é no mapa desse período que o marco zero da história das
estórias em quadrinhos foi estabelecido8 ”. Eco compactua com Moya, ao afirmar:
A melhor prova de que a estória em quadrinhos é produto industrial de
puro consumo é que, embora uma personagem seja inventada por um
autor genial, dentro em pouco esse autor é substituído por uma equipe,
sua genialidade se torna fungível, e sua invenção, produto de oficina 9
”.
A história em quadrinhos de Maurício de Sousa nasce na terceira fase do
desenvolvimento industrial (1900 até os dias de hoje). Quando Mauricio criou seus
personagens, pouco se ouvia falar de transmissão via satélite, internet, e não tínhamos o fluxo
de informações dos dias atuais, da globalização ou mundialização cultural. A nova tecnologia
não inibiu o crescimento da indústria de entretenimento dos quadrinhos do criador de Chico
Bento, mas foi um fator facilitador para o seu crescimento, transformou-se em filmes e
desenhos para a TV.
Em estudos feitos para essa pesquisa, observamos que Maurício foi encaminhado por
seu pai desde pouca idade a tomar aulas de administração de “negócios” (com um amigo seu)
para apreender a sistemática do comércio. A afirmação nos leva a acreditar que seu sucesso na
atual sociedade globalizada foi sua visão empresarial que se estabeleceu nos moldes daqueles
que faziam sucesso em outros países. Maurício valeu se principalmente dos moldes
americanos. Dessa forma, podemos fazer algumas referências: inspirou-se nos syndicates
americanos para montar “A Maurício de Sousa Distribuições”, sistema de distribuição e
revenda de suas revistas; foi um grande admirador de (L’il Abner) Ferdinando, um “Chico
Bento” adulto e ingênuo criado por All Cap, que lhe “ensinava o lado caipira dos Estados
8
9
MOYA, Álvaro de. Shazam! 3ª ed. São Paulo: Perspectiva, 2004.p.285
ECO, Umberto. Apocalípticos e Integrados. 6 ed. São Paulo: Perspectiva, 2004. p.2
Unidos, com narrativas irônicas onde hábitos sociais e costumes políticos eram massacrados
com muito humor”, afirma Sousa10.
Ao definir o que é globalização, inclui-se, no contexto geral da palavra as questões
desencadeadas como: conhecimento, tecnologia, cultura, relacionamentos interpessoais e
capital. A globalização trouxe a comunicação mais rápida, de fácil acesso entre nações do
mundo . Essa comunicação proporcionou também a troca de experiências, o acesso a novos
conhecimentos e a diversificação das culturas entre as nações. O conhecimento, por sua vez,
gerou novas tecnologias que criaram lucros, ou seja, venda ou criação de produtos ou serviços.
Houve também uma transformação nos conceitos de atividades econômicas, equipamentos e
de profissões, extinguindo-se algumas, mas criando-se muitas outras. É o caso por exemplo da
máquina de escrever, que ficou obsoleta diante de computadores, extinguindo-se a produção
dessa ferramenta, assim como também houve a extinção das secretárias datilógrafas. Ademais,
criaram-se indústrias de computadores e novas profissões, como digitador, técnico de
informática, web design, programadores de computador, etc. Surgiu a internet, que é um
fenômeno que vem colaborando na consolidação da globalização.
Diante disso, o conceito de conhecimento também tomou outra direção, outra
velocidade; tornou-se um poder: “conhecer é poder”. Essas mudanças atingiram a todas as
regiões do Brasil, envolvendo o país em uma rede mundial de culturas e informações. As
revistas em quadrinhos resistiram, no tempo e no espaço, a todos esses novos paradigmas.
Ganharam novos formatos de design, novas texturas de papel, novas cores, novas capas.
Transformaram-se também em negócio rentável do ponto de vista mercadológico.
Além das características registradas pelos ilustres estudiosos já citados, arriscamos a
dizer que não só o Chico Bento resistiu ao tempo e ao espaço, assim como também manteve a
oportunidade de introduzir, nos quatro cantos do mundo, o perfil do brasileiro “caipira”,
representando o Brasil no planeta Terra. O Chico Bento é uma bandeira que, independente da
região do Brasil em que esteja, propaga uma ideologia cultural entre brasileiros que vivem sob
o signo da contemporaneidade, influenciados pelos meios de comunicação de massa.
1. 1 - HISTÓRIA EM QUADRINHOS: PRODUTO DA INDÚSTRIA CULTURAL
10
SOUSA, Maurício de.Crônicas . Navegando nas Letras II.. São Paulo: Globo, 2000. p.32.
O termo indústria cultural foi usado por Adorno e Horkheimer em 1940 ao tratarem de
cultura de massa. Esse novo conceito é argumentado pelos estudiosos como perspectiva de
uma nova sociedade. O ponto central de tal argumentação está baseado na idéia de que o
produto (qualquer produto) traz, em si, as marcas do sistema que o fez nascer. Dessa forma, a
indústria cultural produz bens padronizados, os quais resultam das necessidades de seus
consumidores. Essa é a maneira encontrada para vender produtos sem encontrar resistência
em seu comprador.
mas este mundo, que uns alardeiam recusar e outros aceitam e
incrementam, não é um mundo para o super-homem. É também o
nosso. Nasce com o acesso das classes subalternas à fruição dos bens
culturais, e com a possibilidade de produzir esses bens graças a
processos industriais. [...] 11.
O mercado consumidor aumenta à medida que o produto se torna mais barato, mais
acessível. Isso se consegue por meio de processos de mecanização. Dessa forma, a revista em
quadrinhos é introduzida na esfera da indústria de produção em série e busca pela
lucratividade. Com isto se estabelece uma indústria que pode fabricar e distribuir os mais
variados produtos, ou uma série de “mercadorias” culturais. Essa transformação de bens
culturais em mercadorias tem um objetivo, não único, de manipulação. Dessa forma, essas
mercadorias pensadas pela indústria cultural visam à integração da sociedade de massa,
aproximando a vida cotidiana dos indivíduos. Sobre comunicação de massa, Eco afirma:
o universo das comunicações de massa é – reconheçamo-lo
ou não – o nosso universo; e se quisermos falar de valores, as
condições objetivas das comunicações são aquelas fornecidas pela
existência dos jornais, do rádio, da televisão, da música reproduzida e
reproduzível, das novas formas de comunicação visual e auditiva12.
No entanto, podemos dizer que a publicação das histórias em quadrinho, por meio de
revistas especializadas, inseridas nesse contexto de massificação, somente tem validade para a
indústria cultural se, de alguma forma, ela puder ser reformulada e reintroduzida na sociedade
11
12
ECO, Umberto. Op. cit. p. 11.
Id., Ibid., p. 11
contemporânea. Assim, para o receptor, apesar das revistas em quadrinhos estarem sendo
apenas mais um produto para o seu consumo, ele passaria a adotar as ideologias das suas
histórias como um símbolo de sua identidade. Ou seja, a revista em quadrinhos como veículo
de comunicação, são formadoras de opinião. O leitor assimila, por meio da leitura, a ideologia
repassada pelas histórias. Assim os quadrinhos figuram como poderosos instrumentos nas
mãos de comunicólogos, professores, artistas e educadores preocupados com a melhoria da
qualidade do ensino-aprendizagem. A capacidade de influência exercida pelas histórias em
quadrinhos é defendida por Moya quando diz: “testes psicológicos aplicados em crianças
demonstraram que a informação quando transformada em história em quadrinhos era
apreendida num tempo assustadoramente pequeno [...]” 13.
Tendo em vista a condição de mecanismo regulador que exerce a história em
quadrinhos para seu receptor, podemos dizer que os personagens e as histórias de Maurício de
Sousa, que têm como público alvo o leitor, (crianças e adultos), reforçam e disseminam
ideologia, colaboram para a construção de formadores de opinião. Nesse sentido, podemos
destacar que o personagem Chico Bento preserva o ritmo de vida e seu estigma de “caipira”,
para um único desígnio, que é o de manter a imagem do indivíduo do campo na memória das
pessoas e preservar para as futuras gerações a cultura rural que é basicamente a formadora da
cultura brasileira. Nesse contexto de identificação, podemos destacar, no âmbito político e
ideológico, os chargistas “[...], de posse de um saber prévio, esses formadores de opinião
fazem uma leitura crítica e burlesca do mundo. Eles conhecem a comunidade sobre a qual se
debruçam e tentam intervir - via - humor- nesta pulsão de vida, que é a realidade”
14
. Seja o
leitor dos quadrinhos ou das charges, esse sujeito é legitimado ao ser identificado com sua
identidade em mutação e ao procurar, nos símbolos valorizados pela cultura de massa, sinais
de suas raízes culturais. Chico Bento, personagem tipicamente brasileiro, atinge grandes
massas por meio do processo de identificação.
Para Hall (1998) o mundo social apresenta uma estabilização que é mantida pelas
antigas identidades. Com a dissolução das barreiras nacionais e internacionais, os quadros de
referência do indivíduo se dissolvem e se constitui a “crise de identidade” ou seja, essa crise se
estabelece pela interferência de muitas culturas impostas ao mesmo tempo ao sujeito na
13
MOYA, Álvaro de. Shazam! 3ª ed. São Paulo: Editora Perspectiva. 1977. p. 113
OLIVEIRA, Maria Lilia S. Imagem e palavra numa leitura burlesca do mundo.In: AZEREDO, José Carlos
(org). Letras e Comunicação.Uma parceria no ensino de Língua Portuguesa. Petrópolis:Vozes. 2001. p.265.
14
sociedade em que atua. A situação de transição que impõe a sociedade global é o principal
problema vivenciado pelo sujeito contemporâneo que procura maneiras de viver em um
mundo em constante transformação e que busca a satisfação na sociedade de consumo.
A indústria cultural trabalha para reforçar esse sentimento de desejo, em que o homem
realiza suas vontades por meio do consumo, pois, na cultura de massa, a sociedade globalizada
é definida por Edgar Morin como “a identidade dos valores de consumo e são esses valores
comuns que veiculam os mass media [...]15”. A indústria cultural se fixa exatamente nesse
contexto, em que o sujeito na contemporaneidade é um indivíduo que tem sua identidade
transformada, e não lhe são oferecidas novas perspectivas, portanto aceita as identidades
impostas e coletivas, mas não abandona sua individualidade. A lembrança e a busca pelo
passado não o deixam inserir-se por completo na sociedade mundial e dessa forma sua
identidade torna-se a união de partes específicas de outras. Para Hall: “o sujeito previamente
vivido tendo uma identidade unificada e estável está se tornando fragmentado; composto não
de uma única, mas de várias identidades [...]16”. A fragmentação colabora para o indivíduo
fortalecer sua cultura regional (local). Hall comenta que “[...] as identidades locais, regionais e
comunitárias têm se tornado mais importantes17”. Dessa forma, podemos dizer que a revista
em quadrinhos, por meio de seu personagem Chico Bento, “vive” nesse contexto por manter
sua tradição de divulgar um sujeito brasileiro (caipira) que preserva a sua identidade e
conserva seu lugar como um segmento de referências imposto por sua ideologia. Guyot afirma
“[...] que as histórias em quadrinhos revelam visões de mundo particulares de uma época e que
se tornam, enquanto tais, testemunhos insubstituíveis18”. Dessa maneira, Chico Bento que faz
parte de um passado (a tradição) que permeia o terceiro milênio e é inserido na cultura global
por ter cruzado o mercado exterior, por meio de revistas impressas, internet, cinema. Harvey,
citado por Hall, “chama isso de destruição do espaço pelo tempo19”.
15
MORIN, Edgar.Cultura de Massas no Século XX. O Espírito do Tempo - I Neurose. 9ª ed. Tradução Maura
Ribeiro Sardinha. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2000. p. 42.
16
HALL, Stuart.A identidade cultural na pós-modernidade. Tradução Tomaz Tadeu da Silva e Guacira Lopes
Louro. Rio de Janeiro: DP&A 1998. p. 13.
17
Id., Ibid., p. 73.
18
GUYOT. Didier Quella. A História em Quadrinhos. São Paulo: Loyola. 1994. p.73
19
HALL, Stuart. Op.cit. p. 73.
Ainda que o personagem Chico Bento tenha-se adentrado ao sistema mundial e
inserido no processo de globalização, ele se mantém como o representante da cultura do
homem do campo, que é considerada pelos estudiosos como cultura local. Teóricos concordam
que a globalização lança uma nova interação entre o global e o local. Entretanto, quando
aceitamos que passará a existir uma nova interação entre ambos, também podemos aceitar
como certa a aniquilação das identidades locais, pois por mais que elas sejam reformuladas e
reinseridas na sociedade, passarão a ser uma identidade globalizada, que foi adotada pelo meio
local, no qual se inseriu. E as histórias em quadrinhos de Maurício de Sousa, tendo em vista
seu personagem Chico Bento, e que têm suas características únicas e exclusivas, perder-se-ão,
pois as gerações futuras não terão noção das ideologias propagadas na atualidade e muito
menos de suas origens. Esta sociedade conhecerá o que a indústria cultural ensinou e mostrou
para ela. O que, através dos mass media, ela viu e ouviu. As tradições que deveriam passar de
pai para filho já não existirão mais, pois esse conhecimento será transmitido pela mídia. O
homem, neste início do século XXI, busca uma forma de identificar-se com sociedade em que
vive. Os principais problemas para que isso aconteça são as várias transformações que sua
identidade cultural sofreu ao longo dos anos. Hoje, o homem é um ser com uma identidade
híbrida e vive sob o signo da contemporaneidade.
Para Hall (1998) a falta de identidade acontece, principalmente, pelo fato de o indivíduo não
poder viver mais na sociedade como um ser pleno. Atualmente, vive um novo estágio de
identificação, sendo um sujeito sem identidade fixa, nascido da diversidade de culturas do
mundo globalizado, tendo sua identidade reconstruída permanentemente ao longo de sua
existência. Assim, a identidade deixa de ser formada pela interação entre o “eu e a sociedade”,
passando a ser formada pelas ‘supostas’ necessidades do homem, influenciadas pela indústria
cultural. Mas ao mesmo tempo em que ele aceita usar destes símbolos da cultura de massa,
busca a valorização de sua identidade regional, tentando fazer com que ela possa coexistir com
as várias identidades globais ofertadas pela indústria cultural.
As culturas nacionais, ao produzir sentidos sobre a nação, sentidos com os
quais podemos nos identificar, constroem identidades. Esses sentidos estão
contidos nas estórias que são contadas sobre a nação, memórias que
conectam seu presente com seu passado e imagens que dela são construídas20
.
20
Id., ibid., p. 51
O sujeito contemporâneo busca referências por meio da mídia para formar sua
identidade, busca na heteronomia da sociedade global as formas de poder estar se
ressocializando neste mundo globalizado. Essa ressocialização procura na cultura de massa os
valores que se dissociaram da cultura popular. Assim, entre a cultura popular e a cultura
acadêmica, a cultura de massa procura redimensionar o indivíduo que sobrevive nas condições
de transitoriedade na atual sociedade contemporânea.
1.2 - A CULTURA DE MASSA E A FORMAÇÃO DA IDENTIDADE SOCIAL
A globalização é a mola propulsora e responsável pela mencionada perda de
referências da identidade do homem contemporâneo. Essa identidade começa a se fragmentar
no momento em que o indivíduo compartilha várias culturas impostas pela dissolução das
barreiras transnacionais, não permitindo uma identidade única, mas a coletividade de
identidades.
Na crise de identidade do homem contemporâneo questiona-se até onde a cultura está
sendo manipulada pelas identidades heterogêneas oferecidas pela indústria cultural. E até onde
o sujeito desta sociedade está se submetendo a outras culturas. Sobre a modernidade, Hall
esclarece que:
[...] as identidades modernas estão entrando em colapso, o argumento se
desenvolve da seguinte forma. Um tipo diferente de mudança estrutural está
transformando as sociedades modernas no final do século XX. Isso está
fragmentando as paisagens culturais de classe, gênero, sexualidade, etnia,
raça e nacionalidade, que, no passado, nos tinham fornecido sólidas
localizações como indivíduos sociais. Estas transformações estão também
mudando nossas identidades pessoais, abalando a idéia que temos de nós
próprios como sujeitos integrados. Esta perda de um ‘sentido de si’ estável é
chamada, algumas vezes, de deslocamento ou descentração do sujeito. Esse
duplo deslocamento - descentração dos indivíduos tanto de seu lugar no
mundo social e cultural quanto de si mesmos - constitui uma ‘crise de
identidade’ para o indivíduo21.
A crise acontece pelo fato de o homem contemporâneo viver em uma sociedade que
dissolve a todo o momento suas referências culturais ou sociais, criando novas necessidades e
valores. O homem, produto de uma internacionalização das relações econômicas, está inserido
em amplo processo fragmentário, no qual ele não consegue mais se sentir representado no
21
HALL, Stuart. Op.cit. p. 9
ambiente em que se encontra. Essa necessidade de representação faz com que ele se volte para
si, tentando encontrar-se, e, quando isso acontece, também ocorre a revalorização do local.
Entretanto, não quer dizer que esta desestruturação da identidade seja um fator
planejado pelos detentores do poder da sociedade contemporânea. Ela ocorre à revelia de todo
e qualquer processo, seja de transnacionalização ou da globalização da economia, da
sociedade e do consumo. Ela nasce do desejo do homem em conquistar novos horizontes. Essa
atual incursão em busca de novos ‘territórios’ está relacionada diretamente com o
conhecimento, com a informação e com uma tentativa, mesmo que inconsciente, de protegerse da globalização, ao mesmo tempo em que tenta dominar esse movimento global, “o próprio
processo de identificação, através do qual nos projetamos em nossas identidades culturais,
tornou-se mais provisório, variável e problemático22”.
Esse estado provisório de identificação faz com que ele mesmo, conquistando e se
inserindo em novas culturas, tente fazer a sua aparecer e prevalecer. Um bom exemplo que
procuramos destacar nesse trabalho é o sucesso das histórias em quadrinhos e de seus
personagens que abandonaram o seu regionalismo e se transformaram em um produto global,
entretanto, sob a bênção do local, pois ele estaria levando a ‘cultura’ brasileira para outras
fronteiras por meio das revistas especializadas, internet, cinema, entre outros meios de
comunicação. Dessa forma, a cultura de massa é o canal para esse desenvolvimento. Piccinin
diz que:
[...] os média que, em última análise, tornam-se ponte entre as interações
entre a cultura mundial e a cultura local, entre o público e o privado como
nos diz Touraine quando defende a idéia de que a cultura de massa penetra
no espaço privado, ocupa grande parte dele e, como reação reforça a vontade
política de defender uma identidade cultural, o que leva à
recomunitarização23.
Essa nova reconfiguração do local, promovida pela cultura de massa, por um lado,
reforça a idéia do cidadão como indivíduo autônomo, produtor, consumidor e usuário de alémfronteiras, o cidadão do “mercado-mundo” e suas redes. Mas, por outro lado, perde força a
idéia do cidadão como sujeito, com força de ação política individual ou coletiva na sociedade,
e com vínculos territoriais mais duradouros, definidos por uma comunidade. Para Ortiz:
22
id., ibid., p. 12.
PICCININ, Fabiana. Mídias e pós-modernidade: Reorganizando as interações sociais tradicionais. Banco de
papers do Intercom, Manaus - AM / 2000.
23
o consumo constitui um universo de significação capaz de modelar as
práticas cotidianas. Nele, os indivíduos se reconhecem uns aos outros e
constroem suas identidades, imagens trocadas e reconfirmadas pela interação
social. 24.
Com essa nova configuração da cultura de massa, o popular passa a ser valorizado pela
elite, ao mesmo tempo em que os códigos, que antes deveriam ser feitos de uma forma mais
simples para que a grande massa pudesse entender, mudam. Passa a existir uma inversão: a
cultura que se impunha das elites intelectual e social para a classe média, passa a impor-se das
massas às elites. A indústria cultural atua no sentido de valorizar os traços das culturas de
periferia, revalorizando o local. Hesrcovici comenta que:
O poder respectivo de cada espaço local depende de sua capacidade de
impor, no seio deste sistema mundial, certos produtos; a dimensão universal
do local se define em função da capacidade que possuem seus diferentes
produtos para se incorporar neste espaço mundial. Existem várias estratégias
possíveis: se aproveitar do exotismo, [...] ou rentabilizar os produtos no
mercado nacional para ser competitivo no mercado internacional [...] 25.
Dessa forma, as culturas passam a integrar-se aos traços do regionalismo de nações
periféricas. Esse fato pode ser constatado pela atual fase da economia global em que se
procura atingir novos mercados de consumo, fazendo com que o contrato de pertencimento do
sujeito com sua nação não entre em choque, quando em contato com o global, pois ele não irá
respeitar os diferentes particularismos, regionalismos e localismos de cada cultura, uma vez
que busca formas não somente de impor a cultura dominante de uma nação, mas a
coexistência de ambas, o que, da mesma forma, estaria acarretando a descaracterização da
cultura local. Herscovici diz que: [...] qualquer cultura é o produto da colaboração de várias
outras culturas, e não é possível isolar os elementos locais 26. Se a globalização influenciou a
dissolução da identidade do indivíduo na atual sociedade contemporânea; em sentido oposto
foi o fator que deu condições para a divulgação das histórias em quadrinhos do Chico Bento
no mercado exterior.
24
ORTIZ, Renato. Um Outro Território. São Paulo: Olho D'Água, 1996. p. 170.
HERSCOVICI, Alain. Identidade capixaba: alguns questionamentos. Vitória: Escritos de Vitória . 2001. p. 1718.
26
HERSCOVICI, Alain op. cit.. p. 14.
25
1.3 - A CULTURA DE MASSA E OS QUADRINHOS DE MAURÍCIO DE SOUSA
As culturas de massas observadas por Morin são produtos de uma indústria cultural. E
esses produtos reformulados são apresentados à sociedade com uma nova roupagem. Essa
padronização imposta pela indústria cultural e aceita pela cultura de massa é analisada quanto
ao ponto de vista contemporâneo como um momento de ruptura com o passado. Assim, o
sujeito abandona todos os seus referenciais de tradição e cultura somente para estar inserido no
mercado global. Embora, muitas vezes, ele nem saiba desta sua nova opção cultural, assim o
faz devido às condições impostas pela sociedade para a sua subsistência como um membro do
grupo. Apesar de muito se falar da individualização do homem, ele necessita fazer parte de
um grupo social, com o qual se identifique. Nesse contexto, é necessário entender que as
histórias em quadrinhos são um produto típico da cultura de massa. Seja em função crítica, ou
como diversão ou entretenimento, as histórias em quadrinhos são um veículo de informação e
têm outras funções como comenta Eco, “as histórias em quadrinhos, na maioria dos casos,
refletem a implícita pedagogia de um sistema e funcionam como reforçadoras dos mitos e
valores vigentes”. Assim, elas (HQ) influenciam na identificação do homem contemporâneo,
transferindo para sua realidade os elementos que fazem parte de cultura que a literatura
encerra e dissemina. Suas mensagens icônicas e sua linguagem fazem parte da mensagem
global e estão relacionadas com a cultura, com a história e com a formação social do
indivíduo, podendo ser um produto (fator) capaz de questionamento de uma determinada
realidade social e interferir na identidade do ser humano o que pressupõe uma relação com a
cultura, com o histórico, com a formação social do indivíduo. Para Cirne:
A estória em quadrinho pode perfeitamente ser de uma valia sem tamanho,
para a divulgação da cultura e de uma filosofia de vida bem brasileiras,
adequadas às nossas condições sócio-econômicas. O quadrinho pode ser uma
arma fabulosa em favor do espírito brasileiro, da nacionalidade e da cultura27.
Aqui, cabe rastrear, a partir de exemplos extraídos do mundo da história em
quadrinhos, uma série de questões que se produziram durante o século XX e XXI. O contexto
social sempre buscou alternativas de escape para suas mazelas sociais. Desde a Antiguidade,
27
CIRNE, Moacy. A Linguagem dos Quadrinhos: Rio de Janeiro: Vozes. 1971. p. 63.
havia a representação de espetáculos teatrais que serviam como fontes de críticas à sociedade,
a representação de questões de foro íntimo do ser humano, debate sobre questões polêmicas ou
de necessária discussão. Atualmente, pelo fato de contar e dramatizar histórias, está
profundamente conectado com os conteúdos internos contemporâneos isolados na cultura
humana. Da mesma forma, também se liga profundamente ao fato de que as pessoas buscam
uma forma de projetar uma máscara sobre a sua realidade cotidiana. Assim, o ódio, a perda, a
carência emocional, a inveja, a vontade de infligir a dor, assim como a ânsia de felicidade, são
representados nas formas das histórias em quadrinhos contemporâneas. A identificação é
outro processo atual bastante curioso que também se encontra presente, pois existe em todas as
histórias, devido à variedade dos personagens, algum tipo com o qual a pessoa se identifique
melhor e se encontre mais ligada à realidade cotidiana do espectador.
Do ponto de vista da história da arte, a história em quadrinhos não é tanto uma arte
acadêmica, porém arte pop: derivada de uma cultura de massa. Então, não se pode falar que a
história em quadrinhos faz parte de uma cultura acadêmica própria de intelectuais, mas sim de
uma cultura coletiva que é também contemporânea. Apontamos a história em quadrinhos
como um produto típico da cultura de massa. Entretanto, é possível apontar paralelos de
identificação social, quando se trata dessa nova forma de transmissão de informação. Deve-se
saber notar e delimitar quando se fala de uma cultura de massas e quando se encaixa numa
cultura criada para as massas.
Para Eco28, a primeira proposta faz uso de um meio ou canal de expressão
despreocupado pelo qual a informação chega às massas, ao enorme público da cultura urbana
ocidentalizada, sem mais finalidade do que o simples gosto ou necessidade lúdica de fazê-lo,
com uma retroalimentação de duplo sentido: a história em quadrinhos nutre a sociedade, e
vice-versa, formando ambos um todo que os identifica mutuamente.
De acordo com a segunda proposta, cultura para as massas, tem-se uma interpretação
que indica uma brecha de níveis: uma elite intelectual cultural e tecnicamente superior a uma
grande massa, a qual espera ser “alimentada” por produtos de consumo de massa.
Possivelmente, muitos se sentirão mais a gosto com esta proposta. De fato é a idéia mais
generalizada, ainda que erroneamente se diz de massas, mas traz certos envolvimentos não
28
ECO, Umberto. Leitura do Texto Literário. Lisboa: Presença. 1983.
muito agradáveis. Por exemplo, e de primeira instância, envolve certa responsabilidade e
consciência social por parte dos autores e seu discurso de quadrinhos; uma responsabilidade
que indica medir e cuidar de cada palavra e traço, pois disso dependerá afetar ou não a
ideologia de toda a massa leitora.
As opiniões a respeito prestam-se a debate: poder-se-ia opinar que deve existir uma
história em quadrinhos social, que eduque e edifique ao mesmo tempo em que entretenha;
enquanto, ao contrário, também seria possível afirmar-se que a opinião é que ninguém tem a
obrigação histórica de educar a sociedade. Isso, independentemente da insinuação de que o
autor de história em quadrinhos é superior ao seu leitor, ou que, possivelmente, assim o seja,
pelo menos no nível do conhecimento da linguagem e sua técnica, também não se trata de
confundir o poder de penetração e difusão do meio, com a execução do trabalho ou a
capacidade de assimilação passiva por parte do público.
Muitas relações podem ser montadas a partir dos fundamentos teóricos para
contextualizar a produção de Maurício de Sousa de acordo com a cultura de massa, de acordo
com o que, desde várias décadas daquele movimento artístico, pode-se entender por
'movimento pop', por 'cultura pop'. Mcluhan (1971) adverte que atualmente o 'pop' não guarda
nenhuma relação com o popular, tal como no sentido de 'pertencente ao povo'. O 'pop' é, antes
de qualquer coisa, uma tendência que se inscreve na mercantilização extrema, no consumo,
nos ditados da moda. O 'pop' são mercadorias para serem consumidas pelo povo, mas que já
não guardam relação com a expressão artística. Em outros termos, a produção cultural de
massa passou a ser outra mercadoria além de que oferece o livre mercado que, na realidade,
não é tão livre, porque o processo de concentração que vem funcionando há décadas levou ao
monopólio de poucos gigantes multinacionais ou nacionais como Maurício de Sousa.
Sem dúvidas, o mundo capitalista provocou transformações na história humana,
transformações sem volta. Graças à revolução industrial brasileira, sofrida justamente pouco
antes do início das histórias de Maurício de Sousa, as grandes massas das sociedades agrárias,
analfabetas e por sempre afastadas do âmbito cultural, puderam começar a ter acesso a um
mundo anteriormente reservado a seletas elites. A chegada dos impressos de massa
popularizou a cultura. Sobre a cultura de massa, Eco afirma:
[...] nasce numa sociedade em que toda a massa de cidadãos se vê
participando, com direitos iguais, da vida pública, dos consumos, da fruição
das comunicações; nasce inevitavelmente em qualquer sociedade de tipo
industrial. [...] a cultura de massa é própria de uma democracia popular [...]
se difundiu junto a massas enormes que, tempos atrás, não tinham acesso aos
bens de cultura29.
Em outros termos, a cultura de massa se estabelece ocupando um espaço significativo
entre as culturas acadêmica e a popular. Ela (cultura de massa) se apodera dessas culturas e
reforça a existência da imagem como um fator de manipulação na sociedade contemporânea. É
o “mundo da imagem” inserido nesse contexto, uma vez que essa expressão revela bem o
sentido generalizado de se viver em uma civilização em que as imagens são cada vez mais
numerosas e também cada vez mais atuantes, tornando-se, assim, um fator dominante na
comunicação. A imagem, desde a remota história da civilização, tem a função de representar
algo ou alguma coisa para alguém. De sua presença nas cavernas, nos símbolos religiosos, à
publicidade do século XXI, a imagem reforça as informações sobre o mundo, num caminho
percorrido através da visão, ou seja, do cérebro ao mundo real. Aumont diz que a “imagem
tem a função primeira de garantir, reforçar, reafirmar e explicitar nossa relação com o mundo
visual: ela desempenha o papel da descoberta do visual30”.
Na representação de coisas
concretas, ou de coisas abstratas, ou como um signo, a imagem é um fator preponderante no
século XXI. Tal imagem se encontra presente em traços simples nos gibis de Maurício de
Sousa, o que demonstra uma qualidade artística e visual aprimorada. Esses traços simples são
considerados por Aumont (1993) como imagens visuais planas, que se tornam as mais comuns
na sociedade de massa.
29
30
ECO, Umberto. Op.cit.. 1997. p. 44
AUMONT, Jacques. A Imagem. Tradução Estela dos Santos de Abreu. Campinas:Papirus, 1993, p.81.
Fig1. Veja o quadro “ reproduz uma imagem plana, em que, no entanto, logo se percebe um arranjo
espacial, semelhante ao que seria oferecido por uma cena real” 31.
A imagem, em psicologia, é uma representação consciente de uma impressão sensorial.
Toda impressão sensorial gera imagem do que se conhece e do que não se conhece ainda ou
do que tampouco se sabe que existe.
De acordo com essas idéias, necessárias para o estudo do contexto de massa das
histórias em quadrinhos de Maurício de Sousa, pode-se levantar uma série de afirmações.
Inicialmente, infere-se, tal como citado acima, que as histórias de Maurício de Sousa são
formadas a partir de elementos simples, imagens planas, porém com profunda conexão
emocional. Tal conexão pode ser um ponto de ligação da mídia com a sociedade de massa
com o único objetivo de massificação, isto é, todo e qualquer público, de qualquer idade, pode
encontrar no personagem o símbolo de identificação. Dessa forma a elite e a massa encontram
a mesma forma de sentir, ver e analisar o contexto produzido na história em quadrinhos.
Assim, podemos dizer que uma das portas de entrada da produção de Maurício de Sousa na
cultura de massa seja justamente a emoção linear e pouco complexa.
No entanto, ao se lidar com emoções, não se pode esquecer de que estas, apesar de
lineares e simplificadas, não deixam de ser profundas; no caso de Maurício de Sousa, e
baseiam-se em informações e vivências gerais e com significados variados, presentes em
praticamente toda a sociedade brasileira, como o contato familiar, social, a infância, as
31
AUMONT, Jacques. A Imagem. Tradução Estela dos Santos de Abreu. Campinas:Papirus, 1993, p.61.
emoções de raiva da Mônica, as compulsões e anseios da Magali, a competitividade e o
sentido de buscar bodes expiatórios do Cebolinha, a necessidade de diferenciação do Cascão, a
noção de sobrevivência rural de Chico Bento, a filosofia de Horácio.
A identificação do leitor com os personagens de Maurício resulta do que Jung nomeou
de imagens arquétipas, que são representações, como a idéia universal é apreendida pela
psique individual que caracteriza o pensamento ou sentimento. O inconsciente coletivo é a
herança adquirida da humanidade no plano psicológico, como também todas as
potencialidades psíquicas de vir-a-ser humano. Podemos dizer que trazemos desde o
nascimento o inconsciente coletivo, mas nele já estão as potencialidades psíquicas para formar
um inconsciente pessoal (complexo, ego, para manifestar a persona, sombra, anima,
animus).Tudo em potencial, que se manifesta de acordo com o desenvolvimento e a vida
pessoal de cada um.
É o sentimento de desejo e poder que une as massas e suas ideologias que se
manifestam por meio de um padrão passível de ser reconhecido. Os mesmos tipos de
personagens parecem ocorrer nos sonhos, tanto na escala pessoal quanto na coletiva. As
representações são constantes através dos tempos nas mais variadas culturas, nos sonhos e nas
personalidades dos indivíduos.
Vivendo no século XXI, numa sociedade manipulada pela repressão, pela burocracia e
pelo consumo, nada mais natural do que buscar, na fantasia, ultrapassar, esse estado de coisas.
Maurício de Sousa se apropria da imagem do caipira como uma ferramenta que dá poder ao
seu personagem. Chico Bento é uma produção artística com consciência mercadológica para
adentrar a massa embora não seja oriunda dela e sim realizada para ela.
Maurício de Sousa, parte de arquétipos sociais comuns à massa, e quando os
particulariza, pondo-lhes diversas vestimentas, não se excede nessa particularização; ele
apenas enfatiza alguns de seus traços, portanto temos a sensação de que são indivíduos, por
isso conseguimos nos identificar com eles, com a potencialidade representativa desses
personagens. Eles assumem o caráter simbólico, passam a representar (a estar no lugar de algo
para alguém). Silveira admite que “[...] arquétipos são possibilidades herdadas para
representar imagens similares, são formas instintivas de imaginar 32”.
32
SILVEIRA, Nise. Jung Vida e Obra. 13ª .ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra.1994. p. 79.
E por falar em histórias, é necessário resgatarmos a origem das histórias em quadrinhos
para compreensão do nosso objeto de estudo, inclusive enfocando a sua trajetória até os dias
atuais, inserindo-as como produto da indústria cultural.
CAPÍTULO II – AGORA É HORA DAS HISTÓRIAS ... DOS
QUADRINHOS
2.1– A EVOLUÇÃO DAS FORMAS DE COMUNICAÇÃO: UM RESGATE
HISTÓRICO DAS HQ.
Desde o início da história da humanidade até os dias atuais, o ser humano tem a
necessidade de se expressar e documentar a sua visão de mundo, sua realidade e suas crenças.
Como um ser social, ele tem a comunicação como alternativa para tornar possível a vida em
comunidade, assim como o registro e a publicação dos acontecimentos do cotidiano entre
outras infinitas funções de que a comunicação dispõe. As formas de comunicação verbal e
não-verbal também evoluíram com o passar do tempo. Os símbolos, as pinturas e os desenhos
podem ser considerados como os precursores da comunicação não-verbal.
Fig. 2 - Monumento de arte rupestre na aldeia de Songo localizada na República de Mali, no oeste da
África33
As pinturas rupestres (fig.2) são afirmações de que a comunicação, por meio de
imagens, remonta aos “murais” das grutas de Lascaux na França, Altamira na Espanha (fig. 3).
Já naquela época, a imagem tinha a função de expressar a realidade, os costumes, bem como
servir de documento histórico para nossos ancestrais.
33
IANNONE, Leila R. & IANNONE, Roberto A. O mundo das Histórias em Quadrinhos. São Paulo: Moderna,
2004, p. 10.
Fig. 3 – Na figura, temos o Bisão, encontrado na caverna de Altamira na Espanha e abaixo, animais no
teto da caverna de Lascaux na França” 34.
A arte de representar por meio de signos iconográficos foi evoluindo ao longo da
história da humanidade, na medida em que o ser humano passou a dar provas de sua evolução
como indivíduo pensante e ser social. Por volta de 3.200 a.C, os egípcios colaboraram com
essa evolução ao “desenvolveram sua escrita, os hieróglifos”. Os hieróglifos, segundo
Costella35, num primeiro momento, incidem na representação, por meio de desenhos, de
objetos e situações, que, ao serem elucidados numa ordem seqüencial,tornavam-se um relato
coerente. Já num segundo momento, estes sinais
[...] tomaram um sentido convencional e passaram a designar conceitos
abstratos, tornando-os ideogramas. Acrescentaram-se, depois, sílabas, que
articuladas formaram palavras. Afinal surgiram signos alfabéticos que,
correlacionando a escrita com a voz humana, reproduziram-na graficamente.
Eis como a escrita, a partir de uma origem pictográfica, enriqueceu-se de
caracteres silábicos e alfabéticos36.
Os chineses participam dessa evolução ao desenvolverem sistema de escrita ideográfica, que
ainda são utilizados nos dias atuais, conforme mostra a figura 4. Podemos observar que a
manipulação por meio das formas de comunicação advém desde os primeiros rabiscos feitos
34
Figura e legenda In: GOMBRICH, E.H. A História da Arte: 15ª ed. Tradução Álvaro Cabral. Rio de Janeiro:
LTC. Livros Técnicos e Científicos. 1993. p.20-21.
35
COSTELLA, Antonio. Comunicação: do grito ao satélite. 3ª ed. São Paulo: Mantiqueira. 1984. p.13
36
Id., ibid., p.13
pelo ser humano. Muito antes do surgimento da mídia impressa, os seres humanos criam uma
base de comunicação calcada em registros de dados, que já está fundamentada em interesses
de manipulação: informar, entreter, persuadir ou até mesmo visar à defesa de seus interesses,
sejam eles religiosos, políticos, econômicos ou outros.
Fig. 4 - Os ideogramas chineses serviram de base para os sistemas de escrita de idiomas distintos,
como o japonês e o coreano, entre outros 37.
Atualmente, essa prática é intensa. Os meios de comunicação buscam cada vez mais o
aprimoramento das formas e estratégias de persuasão, com o intuito de atingir seu públicoalvo, o leitor, telespectador ou ouvinte. O apelo se dirige ao receptor com o intuito de atrair
sua atenção para o consumo, trabalho que se inicia na busca de formas corretas e precisas para
a emissão da mensagem. A mídia atua através de componentes afetivos, da confecção de uma
estética e também de uma ligação com o mundo real, pois o real é a via por meio da qual os
desejos vistos, mas impossíveis de serem vividos, serão transformados em fantasias. Não se
deseja o que se tem, como não se deseja algo que não esteja ligado a um inconsciente coletivo.
É a expressão de um desejo reprimido socialmente, que atinge o conjunto da sociedade ou
então grupos sociais no seu interior. São as potencialidades e necessidades reprimidas nos
indivíduos que formam uma coletividade (grupo, classes). É no mundo da fantasia, dos
37
Figura e legenda In: IANNONE, Leila R. et al. Op. cit. p. 15.
sonhos, que o inconsciente coletivo se manifesta constantemente. Os sonhos comuns na
sociedade, ou em grupo social, são geralmente inacessíveis, mas a fantasia não é. O
inconsciente coletivo garante o processo de identificação. Sobre o assunto Hall e Lindzey
afirmam que
O inconsciente coletivo parece ser o depósito de traços de memória latente
herdados do passado ancestral do homem, [...] é o resíduo psíquico da
evolução do homem, um resíduo que se acumulou em conseqüência de
experiências repetidas durante várias gerações38
As revistas em quadrinhos, como veículo de comunicação, também utilizam estratégias
de persuasão para atrair a atenção de seus leitores. A busca do ser humano pela liberdade e
pela igualdade social é um desejo inerente aos indivíduos da sociedade contemporânea.
Maurício de Sousa, por meio do personagem Chico Bento, procura preencher essa necessidade
inerente do sujeito pela identidade do personagem. Por meio de seu contexto e de seus
costumes dissemina e representa um “mundo ideal” para o indivíduo neste século XXI: o
desejo de viver uma vida sem estresse, a superação da sociedade com tantas desigualdades
sociais. Esse mundo do personagem
é uma das formas espetaculares que o sujeito na
contemporaneidade tem de romper as barreiras e ganhar um momento de liberdade e
realização.
Para entender melhor o universo desta mídia, história em quadrinhos, vamos
contextualizar a sua origem e a sua evolução.
A origem das HQ, assim como a origem da comunicação, é matéria discutida e que não
apresenta uniformidade de opiniões entre seus estudiosos. Embora a origem tenha recebido
contribuições de diversas épocas da humanidade, alguns autores argumentam que as narrações
em forma de manifestações iconográficas deixadas pelos ancestrais nas formas de
representação dos egípcios (nas imagens de batalhas, cerimônias religiosas, registradas nas
pirâmides, as faixas ornamentais dos túmulos dos faraós), da arte grega (representada nos
relevos, nas cerâmicas, e na arquitetura) foram exemplos para o berço do desenvolvimento dos
quadrinhos na mídia impressa. As formas, as cores e a geometria dos desenhos serviram como
um aparato e sugestões
38
para os artistas desenvolverem suas obras. Em nossa pesquisa,
HALL, Calvin.S. et al. Teorias da Personalidade.18 ed. 6ª reimpressão.Tradução Lauro Bretones et al. São
Paulo: Pedagógica e Universitária Ltda.1984. p.89
incluímos a colaboração dos gregos com o retângulo de ouro39 destacado das obras artísticas.
Isso mostra as
proporções matemáticas apresentadas na arquitetura, na pintura, e nos
desenhos. O “retângulo de ouro” é a figura matemática de um retângulo que apresenta uma
proporcionalidade entre as medidas do seu lado maior dividido pelo seu lado menor, que
resulta em uma medida de 1,618 unidades que se denominou “ponto de ouro”, identificada
pela letra grega Φ em homenagem a Phidea (escultor grego). A partir dessa proporção, tudo
era construído pelos gregos: arquitetura, pintura, desenhos, etc. Dante afirma que:
Para os gregos o número de ouro representava harmonia, equilíbrio e beleza.
No Renascimento, a revalorização dos conceitos estéticos gregos levou
grandes pintores, como Leonardo da Vinci, a utilizá-la em suas pinturas40.
Essa proporção também conhecida como “divina proporção” ou “ponto de ouro” pode
ser uma forma de manifestação artística que se encontra inserida na arquitetura dos quadrinhos
de Maurício de Sousa, já que o desenhista utiliza os retângulos com maior representação
como forma geométrica para dispor seus desenhos da mesma forma que os gregos utilizavam.
Considerando esse conceito, verificamos que as medidas de comprimento dos retângulos
utilizados nas HQ do Chico Bento possuem a razão entre a medida do comprimento e a
medida da altura: um valor aproximado de um inteiro e cinqüenta e seis centésimos de
unidades de medidas (1,56). Podemos notar uma aproximação de valores ao provável “ponto
de ouro” dos quadrinhos de Maurício bem como a “divina proporção dos gregos”, uma vez
que
o ponto de ouro é um número com propriedades mágicas, [...], utilizado
através dos séculos por matemáticos, cientistas, artistas [...]”. Então,
podemos dizer que é um assunto discutido entre os estudiosos da arte41.
Buscando na história dos ancestrais, podemos verificar que várias manifestações
artísticas deram sua contribuição para o nascimento das HQ. Podemos incluir as Iluminuras
“que consistiam em ilustrações ricamente elaboradas e exigiam conhecimento de técnicas de
39
O retângulo de ouro é um objeto matemático que marca forte presença no domínio das artes, nomeadamente na
pintura, na arquitetura e na publicidade.Comentário feito pela Doutora Nícia D’Avilla no curso de PósGraduação da Universidade de Marília, no ano de 2003.
40
DANTE, Luiz Roberto. Tudo é Matemática. São Paulo: Ática, 2004. p.187
41
id., ibid., p.187
pinturas e de aplicação de ouro e prata em pó”
42
. Seus elementos decorativos eram
apresentados em formato de uma história que podem lembrar um quadrinho. Da mesma
forma, é possível incluir, entre os parentes mais remotos das HQ, a Coluna de Trajano, em
Roma. Os romanos quiseram reviver um costume do antigo Oriente: “proclamar suas vitórias,
contar suas campanhas militares e mostrar toda crônica ilustrada de suas guerras e vitórias na
Dácia (a moderna Romênia)43”. Na Coluna de Trajano, o artista, com a inventividade da arte
grega, procurou fazer a reprodução exata dos detalhes de uma “clara narrativa que gravasse as
façanhas de uma campanha, impressionando quem ficara em casa” 44. O objetivo dos romanos,
nessa representação, não era a harmonia, a beleza e a expressão dramática, mas sim o registro
de seus métodos pictóricos de narrar as estratégias de seus exércitos. Essa representação,
esculpida na Coluna, possui características mais próximas de uma HQ por apresentar a
narrativa dos soldados embarcando, acampando e combatendo, em uma seqüência de imagens,
que pode dar a idéia de uma história, por apresentar uma seqüência de fatos que compõem
uma narrativa. Scott McCloud afirma que, quando as figuras esculpidas ou desenhadas são
individuais, estas não passam de figuras. Porém, quando “são parte de uma seqüência, mesmo
uma seqüência só de duas, a arte da imagem é transformada em algo mais: a arte das histórias
em quadrinhos” 45. Veja a Coluna de Trajano (Fig 5).
A valorização da beleza e da harmonia mantida pelos gregos na arte, assim como a
narrativa por meio de signos pictográficos explorados pelos romanos, é uma tendência artística
que predomina nos quadrinhos atualmente. A imagem que sempre predominou nas mais
variadas formas de comunicação e interação se desenvolve na sociedade contemporânea com
uma importância primordial. Em sua origem, as histórias em quadrinhos não passam de uma
seqüência de ilustrações de um texto considerado fundamental, e a história constitui o meio
narrativo essencial do homem civilizado. Atualmente, a imagem evolui juntamente com o ser
humano e com a sociedade contemporânea, ganhando destaque principalmente na publicidade
atual.
42
IANNONE, Leila R. et al. Op.cit. p. 13.
GOMBRICH, E. H. A História da Arte: Op. cit. p.85-86.
44
Idem
45
MCCLOUD, Scott. Desvendando os Quadrinhos. Tradução de Hélcio de Carvalho e Marisa Nascimento Paro.
São Paulo: M. Books do Brasil. 2000. p.5.
43
Fig.5– Parte inferior da coluna de Trajano em Roma, inaugurada em 114 d. C 46.
2.2 – AS FASES DA EVOLUÇÃO DOS QUADRINHOS
Desde a Antiguidade, o ser humano procura inventar técnicas de reprodução, ou seja,
fazer cópias daquilo que produz. Com a comunicação não foi diferente. A produção em série
de imagens ou de qualquer tipo de gravura só foi possível, a princípio, com o desenvolvimento
46
Figura e legenda In: GOMBRICH, E. H. A História da Arte: Op. cit. p. 86.
da escrita e das técnicas de gravação sobre pedras ou madeira. Com o advento da
xilogravura47, nasce a possibilidade da produção de cópias idênticas à matriz, o que facilitou a
popularização da arte por meio da reprodução de texto e imagens. “Assim, a xilogravura e a
xilografia revolucionaram a maneira de registrar a escrita e os desenhos, abrindo o caminho
que levaria à impressão48” (fig 6). Embora artesanais, essas impressões já emitiam traços que
os identificariam com a indústria cultural, em que um produto cultural é produzido em série e
em grande quantidade para ser vendido como mercadoria a um público numeroso e com
formações cultural e social diversificadas.
Figura 6 - Bíblia em xilogravura do século XII. A divisão da página lembra a estrutura de uma história
em quadrinhos49.
Gradativamente, caminhamos para o marco da história da comunicação e,
conseqüentemente, das mudanças mais significativas da estrutura cultural social, econômica e
política da humanidade. O veículo de comunicação passa a ser administrado como empresa,
visando ao lucro, tendo a informação como mercadoria, fazendo parte do fenômeno chamado
indústria cultural. Este processo começa no século XV, no ano de 1440, com o
47
A xilogravura é um processo de gravação que utiliza a madeira como matriz e possibilita a reprodução da
imagem gravada sobre papel. É preciso saber que as áreas cavadas não receberão tinta e que a imagem vista na
madeira sairá espelhada na impressão; no caso de haver texto gravam-se as letras ao contrário. Esse processo de
impressão por meio da xilogravura foi retomado pela literatura de cordel que é uma espécie de poesia popular
impressa e divulgada em folhetos ilustrados. Ganhou esse nome, pois são expostos ao povo em amarrados em
cordões, que são estendidos em pequenas lojas de mercados populares, ou até mesmo nas ruas.
48
IANNONE, Leila R. et.al. Op. cit., p. 19.
49
Figura e legenda In: id., ibid., p. 18.
aperfeiçoamento da impressão com tipos móveis pelo alemão Johann Gutenberg,
revolucionando a comunicação ao possibilitar a produção de livros, jornais, boletins e demais
documentos em grande escala. O primeiro livro impresso por ele foi a Bíblia. Os primeiros
jornais surgiram nesse período, como o semanário Nieuwe Tydingen em 1605, na Antuérpia.
Em toda a Europa, outros jornais surgiam como o Frankfurter Journal em 1615, Gasette van
Antwerpen, em 1619, Weekly News, em 1622 e Gazette de France em 1631, sendo a França e
a Alemanha os países onde o jornalismo se desenvolveu mais rapidamente. Santaella comenta
que
o primeiro veículo de massa foi o jornal que deu início às características da
cultura das mídias que, embora não esteja separada das outras formas de
cultura que coexistem nas sociedades modernas, apresenta características
singulares e uma especificidade que lhe é própria50.
Com as Revoluções Francesa e Industrial nasce o jornalismo moderno. A partir da
evolução cultural dos séculos XVlll e XlX, o interesse pelo jornalismo se multiplicou como
também o número de jornais que crescia em todas as partes do mundo industrial ou préindustrial. A produção de jornais em grande escala, a partir da criação de impressoras a vapor
e a utilização da publicidade para cobrir parte das despesas dos periódicos, permitiram que o
preço do impresso caísse, possibilitando que um maior número de pessoas tivesse acesso aos
jornais, mudando o panorama do público leitor. O jornalismo torna-se cada vez mais uma
prática profissional e comercial, elaborando-se, ganhando estilo próprio e código de ética.
Assim, o jornal impresso vai conseguindo ganhar mais espaço, e sua função social
começa a se tornar relevante ao difundir idéias e transformar fatos em notícias, que se tornam
conhecidas, além de contar com sua maior atração, os folhetins. Essa mídia também
possibilitou a propagação da literatura, permitindo que vários escritores publicassem suas
histórias em capítulos nas páginas dos jornais, popularizando assim suas obras. No intuito de
atrair a atenção dos leitores, os veículos impressos começam a publicar histórias ilustradas,
charges humorísticas que, normalmente, satirizam figuras públicas da época e se tornam os
embriões do que seria chamado no futuro de histórias em quadrinhos.
As HQ se tornam um meio de expressão graças a uma escrita própria que é decorrente
de cada desenhista sob a forma de um estilo particular. Sua origem teve lugar nos processos de
50
SANTAELLA, Lúcia. Cultura das Mídias. São Paulo: Razão Social.1992. p.17
amadurecimento das formas de impressão artística. A narrativa iconográfica levou séculos até
chegar à forma reconhecida pelo público como histórias em quadrinhos. No Japão, as histórias
em quadrinhos datam do século XI. Entretanto, o termo mangá, palavra que designa a história
em quadrinhos japonesa, foi criado, de acordo com Sonia Bibe Luyten51, por Katsushita
Hokusai entre 1814 e 1849. No Ocidente, segundo Moya,
foi com a descoberta da impressão, por Gutemberg, que tudo se precipitou
[...], o grande salto foi dado. Os livros começaram a divulgar a escrita e
foram ilustrados [...] Os folhetins ilustrados eram vendidos de porta em porta,
regularmente como as novelas de hoje na TV. Os crimes pavorosos da época
eram vendidos em posters nas feiras populares, como a literatura de cordel do
nordeste brasileiro52.
As referências bibliográficas utilizadas para essa pesquisa afirmam que os quadrinhos
surgiram no seio da indústria jornalística norte-americana, mais precisamente em Nova York,
em disputa entre dois grandes jornais: o New York World, de Joseph Pulitzer, e o Morning
Journal, de Willian Randolph Hearst. Por convenção, 1895 é considerado o ano do surgimento
da primeira história em quadrinhos “exatamente no dia 5 de maio de 1895, um domingo, no
jornal World, de Nova Iorque, surgiu o primeiro personagem fixo semanal dando margem ao
aparecimento das histórias em quadrinhos[...]”53.
Para Iannone54, em 1893, o New York World desenvolve um suplemento dominical que
levou ao público histórias ilustradas. Cerca de um ano depois, esse mesmo suplemento passou
a publicar vinhetas avulsas, os Down Hogan´s Alley (fig7) que ilustravam e representavam
cenas do cotidiano. Nessas vinhetas, era destacado um personagem: um garoto careca, de
cabeça e orelhas grandes, na faixa etária de seis a sete anos, usando um camisolão de dormir.
“[...] O próprio público começou a chamá-lo de ‘Yellow Kid’, embora o autor jamais tivesse
nomeado a figurinha” 55; deu-se o nome em virtude do uso da cor amarela do seu camisolão.
Assim, nasceu o garoto amarelo (fig. 7).
51
LUYTEN, Sonia M. Bibe. Mangá -O poder dos quadrinhos japoneses. São Paulo: Estação Liberdade, 1991. p.
117-118.
52
MOYA, Álvaro de. Shazam!. 3ª ed. São Paulo: Perspectiva. 1977. 34-35
53
MOYA, Álvaro de. História da história em quadrinhos. 2ª ed. São Paulo: Brasiliense. 1993. p.18
54
IANNONE, Leila R.et.al. Op. cit. p. 31.
55
MOYA, Álvaro. Op.cit. p. 18.
Fig. 7 –O Down Hogan´s Alley, [...] já trazia o garoto oriental que se tornaria o primeiro herói das
histórias em quadrinhos56.
O desenhista desse suplemento dominical começou a inovar em suas criações,
introduzindo frases nas paredes, em cartazes, no camisolão do personagem ou em outros locais
do desenho, sem ainda a presença de balões como podemos observar abaixo (fig 8). Em 1896,
esse desenhista, Outcault, se transferiu com toda a sua equipe para o jornal concorrente,
Morning Journal, de propriedade de Willian Randolph Hearst. Entretanto, outro artista
continuou desenhando Hogan’s Alley, mantendo o garoto amarelo no jornal de Pulitzer.
Hearst, aproveitando-se da idéia do povo, batizou seu personagem como The Yellow Kid, na
56
IANNONE, Leila R. et.al. Op. cit.. p. 31.
sua tira, e encorajou seu desenhista Outcault a usar desenhos progressivos na narrativa e a
introduzir o balãozinho” 57.
Fig.8 – O vistoso camisolão do Yellow Kid não se inspirou em motivos estéticos: o amarelo foi
escolhido simplesmente por ser a única cor que ainda não tinham conseguido imprimir 58.
57
58
MOYA. Álvaro. História da História em Quadrinhos: 2ª ed. São Paulo: Brasiliense. 1993. p.53
Id., ibid.., p. 32.
Fig. 9 – “O garoto amarelo e seu gramofone foi publicado em 1896. Outcault inovou não só na forma
como na introdução dos balões com falas. Nascia assim a primeira tira cômica” 59.
Várias histórias deram suas colaborações para o crescimento dos quadrinhos: Rudolph
Dirks criou para o jornal dois personagens inspirados em Max und Moritz de Wilhelm Busch60,
The Capitain and the Kids (Os Sobrinhos do Capitão). As suas aventuras ilustradas em forma
de tiras, os comic strip (tira cômica), eram constituídas de dois meninos peraltas que
atormentavam a vida dos demais personagens da série (fig. 10).
59
IANNONE, Leila R.et al. Op. cit. p. 33.
Wilhelm Busch é considerado um dos precursores dos quadrinhos, embora a Alemanha não tenha desenvolvido
uma história dos comics, sendo ultrapassada pelos Estados Unidos, França e Inglaterra. Sua maior criação foi os
personagens Max und Morit.Cf. Moya, Álvaro. História da História em Quadrinho: p.11.
60
Fig. 10 – Capitão, dona Chucruts, Coronel, Hans e Fritz – 0s heróis da série “Os Sobrinhos do
Capitão” 61.
Esses personagens foram criados para tentar superar o sucesso do Yellow Kid e tiveram
ótima aceitação pelo público. Com suas criações, Dirks proporcionou uma nova forma de
visualização da história ao apresentar uma ordem seqüencial utilizando sinais gráficos.
Inaugurou os balões como mensageiro da linguagem verbal e as onomatopéias.
Vale ressaltar a importância da utilização de balões nas HQ, pois o “[...] balão é o
elemento que indica o diálogo entre personagens e introduz o discurso direto na seqüência” 62.
Até o aparecimento
das histórias de Dirks, o diálogo era escrito na parte inferior das
ilustrações. Acreditamos que essa forma de narrativa dificultava a interatividade entre o leitor
e o texto/ilustração. Pressupõe-se, portanto, que a comunicação direta, possível pela utilização
61
62
IANNONE, Leila R.et al. Op. cit. p. 34
CAGNIN, Luiz A. Os Quadrinhos. São Paulo: Ática. 1975. p. 121
de balões, possibilita direcionar os leitores de maneira reiterativa a um único entendimento.
Consideramos que essa compreensão unificada recai somente sobre a essência da história, pois
geralmente a narrativa dispõe de vazios63, os quais são preenchidos, de acordo com o
repertório, com a imaginação e a criatividade do leitor.
Para ganhar cada vez mais o público-leitor, os jornais contratam desenhistas que criam
as séries que competem com os concorrentes na busca
de seus leitores por meio de
pensamento e criação. Dessa forma, esse momento possibilita um ciclo de imaginação e
criatividade dos desenhistas que vai desde a escolha do personagem até situações inusitadas de
técnicas de narrativas, com a finalidade de chamar a atenção de grande número de leitores. Tal
criatividade evoluiu a ponto de tornar os quadrinhos independentes dos jornais. Iannone
(2004) cita alguns desenhistas que colaboraram com o crescimento das histórias em
quadrinhos: Windsor McCay (1869 – 1934), autor do Little Nemo in Slumberland (O pequeno
Nemo no país do sono) (fig. 11) publicada, no ano de 1905, no jornal New York World, a sua
obra [...] sempre inovando na distribuição de quadros [...] usando amplamente as cores, [...]”64.
63
55 A função do vazio consiste em provocar no leitor operações estruturadas. Sua realização de trâmite à
consciência recíproca das posições textuais. É pela seqüência de imagens conflitantes surgidas dos vazios do
texto que o significado do texto se torna vivo na consciência imaginativa do leitor. ISER, W. apud FLORY,
Suely, em seu artigo “O Leitor e o Labirinto”, pesquisado na disciplina Estudos de Recepção: os vazios do texto
e a interatividade do receptor. Programa de Pós-graduação em Comunicação da Universidade de Marília, 2004.
64
MOYA, Álvaro de. Op.cit.. p.28.
Fig. 11 – Little Nemo trazia vários elementos que mais tarde seriam utilizados pelo cinema de
vanguarda 65.
Bud Fisher, em 1907, cria a tira Mutt & Jeff, (fig12) primeira tira diária do artista,
onde o personagem Mutt é um apostador de corridas de cavalos e Jeff um atrapalhado lutador
de boxe. Vale lembrar que esses personagens fazem parte, até hoje, do dia-a-dia dos jornais
de todo mundo com a mesma criatividade e bom humor do desenhista original.
Fig.12- [...] Fisher usou a idéia de uma tira, cobrindo toda parte superior da página esportiva
com um tipo alto 66.
Conforme estudos de Iannone (2004), os Estados Unidos assumem toda a tradição do
nascimento dos quadrinhos, entretanto não podemos deixar de mencionar que o continente
europeu também foi importante quanto a sua contribuição iconográfica. Dentre alguns
desenhistas franceses, pode-se destacar Georges Colomb (1856-1945), o criador da Famille
65
66
IANNONE, Leila R. et.al Op. cit. p.38
Figura e legenda In: MOYA, Álvaro de. História da História em Quadrinhos: 1993. p. 40.
Fenouillard (1889). Moya67 comenta que esse desenhista se destaca como um autêntico
“quadrinheiro” pela sua ousadia em inovar suas formas de desenvolver os quadrinhos, uma
vez que antecipa a forma mais atual dos quadrinhos contemporâneos. Os desenhistas europeus
colocavam os textos ao pé da vinheta. Tal posicionamento é mais reflexivo e subjetivo,
perdendo espaço definitivamente para os balões (fig.13).
Fig.13 - Les Piedes-Nickéles (1908), de Louis Forton. Criado para a revista francesa L’
Epatant 68.
67
68
Id., Ibid., p. 12.
Id., ibid., p. 42.
Os balões não ganham notoriedade na Europa, com Lês Pieds Nickelés (fig.13) e se
generalizam depois da Primeira Guerra Mundial com Zig e Puce (1925), de Alain Saint
Ogan69. A comercialização dos quadrinhos ainda não estava plenamente organizada. Os
Syndicates70 foram um importante canal de difusão das HQ, bem como uma força propulsora
da serialização e padronização das suas formas. Assim, as HQ foram submetidas à produção
em série que, conseqüentemente, passa a ser distribuída por todo o mundo pelos syndicates.
Assinala-se como uma fase promissora para o desenvolvimento dos quadrinhos o ano
de 1929, o mesmo ano em que ocorreu a quebra da Bolsa de Valores de Nova York que se
estendeu até o início da Segunda Guerra Mundial. Caracteriza-se como uma fase de
apresentação de novas temáticas trazidas pelas histórias de aventuras, que tornam as revistas
mais interessantes e, conseqüentemente, adquirem mais mercados.
Como produto dessa inovação surgiu o comic book, que se fixou como
empreendimento comercial e, nessa linha, surgiram Famous Funnies, consideradas “[...] uma
verdadeira revolução no mundo dos quadrinhos. Era uma publicação semanal, em cores, que
lembrava um suplemento dominical [...]”71. Foi considerado importante meio de difusão dessa
nova tendência de mercado, e as comic strips começaram a perder espaço nos jornais devido à
falta de investimento na produção ou compra, e as poucas que eram publicadas ocuparam um
espaço reduzido nos cadernos. Assim, as histórias ficaram mais interessantes e mais criativas
e seus criadores buscaram atrair, cada vez mais, os seus leitores e, pouco a pouco, surgiram
historietas de personagens comuns e correntes que se caracterizavam por serem heróis,
soldados de guerra, magos ou homens perdidos na selva. Podemos citar o aparecimento da
ficção científica nos quadrinhos no ano de 1929, assim como se tornaram realidade a aventura
na selva e aventuras policiais. A temática das histórias em quadrinhos saiu do espaço dos
heróis para penetrar no mundo de maior realismo.
69
GUYOT, Didier Q. A história em quadrinhos. Tradução de Maria Stela Gonçalves. São Paulo: Loyola.1994.
p.69
70
Sindycate pode ser traduzido como “agência”, termo empregado no jornalismo para definir as empresas
distribuidoras de notícias, horóscopos, histórias em quadrinhos e outras matérias. Os syndicates surgiram por
volta de 1840, para abastecer os jornais rurais norte-americanos, geralmente de pequeno porte e sem estrutura,
para produzir seus próprios artigos e materiais gráficos. Cf. IANNONE, Leila R. et al. Op. cit, p. 44.
71
IANNONE, Leila R.Op. cit. p.23
Um segundo período relevante para as HQ ocorreu após a segunda Guerra Mundial,
quando elas foram submetidas à crise que povoou o mundo. Os criadores dos quadrinhos
passaram a contar a história a favor de seu país. Dessa forma surgia o Capitão América,
escrito por Joe Simon e desenhado por Jack Kirby em 1941, que mantinha uma imagem de
defensor da nação americana.
Com o fim da Segunda Guerra, o engajamento dos heróis e o conseqüente desgaste
temático das histórias em quadrinhos trouxeram vulgarização e descrédito para as mesmas e
alguns autores resolveram partir para outros heróis, em novo estilo, buscando a simpatia do
público. Foi o caso de Alex Raymond, que, em 1946, lançou Rip Kirby (detetive
intelectualizado). Nessa gama, podemos incluir Milton Caniff, o criador de Terry and Pirates,
que, em 1947 lançou Steve Canyon, ex-piloto de guerra que não faltaria aos confrontos da
Coréia e do Vietnã. No final da década de 1940, os quadrinhos passaram por críticas e
descréditos e foram considerados culpados de todas as mazelas que afetavam o ser humano. O
livro do psiquiatra F. Wertham, Seduction of the Innocent é considerado uma das
contribuições mais significativas para a cruzada anti-HQ. Guyot, ao citar F. Wertham, afirma:
[...] os quadrinhos são os responsáveis por todos os crimes e violências
que repugnam a boa consciência americana [...], a delinqüência resulta
diretamente da leitura dos quadrinhos. Desejando imitar as
personagens, os leitores se transformam em perigosos malfeitores,
assassinos, tarados sexuais [...]. Também na França as HQ sofreram
propaganda negativa. Além de haver a sua proibição nas escolas, o
partido comunista (por uma questão de antiamericanismo) e os
movimentos cristãos se uniram, a partir de 1947, para denunciar a
imoralidade e a grosseria das HQ americanas [...]72.
Para Moya (1993) os quadrinhos tentam recuperar o crédito que antes adquiriram e
ganham nova roupagem por meio de desenhistas criativos com poder imaginativo muito forte
para a reação necessária. Assim, surgiu uma plêiade de escritores com inovações temáticas e
de linguagem. Walt Kelly, por exemplo, apresenta com Pogo, uma história intelectualizada,
narrada como uma fábula de animais e introduz nos quadrinhos o aspecto político, as tiradas
filosóficas e metafísicas, a retratação de personagens da vida política. No ano de 1950, surge
Charles M. Schulz, com Peanuts e seus “mini-heróis”. A revista Mad (1952), de William M.
72
WERTHAM Apud.GUYOT, Didier Quella. Op. cit. p.20.
Gaines e Harvey Kurtzman, de cunho satírico, conquista o público americano e é um sucesso
imediato, pois
os americanos sentiam-se felizes em rir dos valores considerados mais
importantes pela sua sociedade.
Do mesmo modo (1949), a Europa desenvolve um período bastante positivo para os
quadrinhos. Segue caminho próprio e, para competir com as HQ americanas, traça novas
temáticas para retratar a realidade do Velho Mundo. Surge a revista Asterix na França, com
um minúsculo guerreiro gaulês dos tempos da dominação romana. Este mini-herói não tarda a
tornar-se o mais popular nos países de língua francesa.
Superadas as crises do pós–guerra, vêem-se razões evidentes para uma nova visão dos
quadrinhos a partir, principalmente, dos anos 60. Esta nova era tem suas raízes na descoberta
dos quadrinhos pelos intelectuais europeus, projetando um novo enfoque, do qual resulta o
Club dês Bandes Desinées, em 1962, e o aparecimento de diversas publicações periódicas,
especializadas em histórias em quadrinhos.
As novas histórias em quadrinhos surgem, concretamente, a partir da
década de 60. Não constituem um movimento único, mas apresentam
diversas características, segundo seu próprio contexto.[...] Nesses anos,
editam-se livros e revistas sobre os quadrinhos e organizam-se grupos
para sua análise e crítica. Vai ficando para trás a concepção dos
quadrinhos como simples objeto de entretenimento: assumindo esse
aspecto, comunicam-se outros elementos73.
Podemos dizer que a década de 1960 foi uma época áurea dos quadrinhos, período em
que adquirem um posicionamento mais ideológico e mais progressista. Surgem as heroínas:
Valentina e Barbarella, personagens que
representam as
mulheres mais conscientes,
portadoras das conquistas dos movimentos feministas.
A década de 1970 representa uma nova fase dos quadrinhos. Os semideuses e heróis da
Segunda Guerra já não existem mais. Alguns desenhistas revivem os heróis desaparecidos,
fazendo surgir Homem Aranha, Batman e Robin e Hulk. Dessa maneira os heróis americanos
vivem a necessidade de se mostrarem superiores em tudo.
73
ACEVEDO, Juan. Como fazer Histórias em Quadrinhos.Tradução Sílvio Neves Ferreira. São Paulo: Global.
1990. p.141
Nesse mesmo período, nos Estados Unidos, tem lugar o movimento underground que difunde
uma nova tendência ideológica para os quadrinhos em quase todos os outros países. Entre os
desenhistas mais conceituados desta fase está Crumb.
Nos EUA, assim como em outros países de avançado desenvolvimento
industrial, aparecem quadrinhos clandestinos que, aos poucos vão
afirmando sua presença: são as histórias em quadrinhos underground
[...], de argumentos e formas agressivas, expressão e protesto que
evidenciam os aspectos desumanizantes da sociedade de consumo.
Enquanto isso, pelos canais do comércio normal, alastram-se os superheróis que aposentam os fatigados heróis das décadas passadas74.
O quadrinho underground se impõe como uma nova manifestação e perfila para as
histórias em quadrinhos um significado que busca a construção de um novo homem e de
uma nova sociedade.
Nos anos 80, os quadrinhos atingem cada vez mais o público adulto. As edições
tornam-se mais luxuosas e as histórias, mais violentas. Nos Estados Unidos, destacam-se o
judeu sueco Art Spiegelman, com Maus (1982); Frank Miller, com Cavaleiro das Trevas
(1985). Surgem os ingleses Neil Gaiman, com Sandman (1985) e Alan Moore, autor de
Watchmen (1988) Batman, entre outros. Revelam-se grandes roteiristas. Os japoneses tornamse mais conhecidos no mercado mundial e aparecem como os maiores produtores e
consumidores de histórias em quadrinhos, ao lado dos Estados Unidos. Na América Latina,
sobressaem as obras dos argentinos José Muñóz, Carlos Sampayo e Carlos Trillo. Em 1990,
os mercados norte-americano e japonês consolidam-se.
O consumo em massa das revistas em quadrinhos tornou-as cada vez mais universais e
populares. Esse consumo pode ser o reflexo da identificação do indivíduo contemporâneo com
as histórias: de detetives, cientistas, super-heróis “disfarçados” e dotados de poderes
extraordinários, e personagens mais atraentes com habilidades superiores às humanas, sempre
salvando o planeta ou a sua comunidade de uma catástrofe maior, seduzem e convencem o
leitor por meio da ficção. Essa comunicação estética é, sobretudo, o desejo que o consumidor
das histórias em quadrinhos necessita para completar sua satisfação pessoal.
A satisfação pessoal só é possível pela superação de limitações que o indivíduo deseja
ver realizada para si por meio da fantasia. O personagem, Chico Bento, dá significação a esse
74
MOYA, Álvaro de. História da História em Quadrinhos: p. 143.
aspecto em sua potencialidade de “herói” que se apresenta na forma de uma criatura sublime,
que consegue a felicidade, por meio da simplicidade e da não dominação do trabalho, da
família, e da escola, e assim, supera as limitações do ser humano atual e urbano. Na verdade,
Chico Bento personifica, por meio do personagem, o desejo do individuo contemporâneo de
desafiar o mundo urbano.
Assim, é possível dizer que tanto a evolução quanto o desenvolvimento das histórias
em quadrinhos estão intimamente ligados ao seu público receptor: ao seu impacto social e à
reação dos seus leitores, ou seja, os novos gêneros e as diversidades de riquezas de conteúdo
surgem pela necessidade que têm os meios de comunicação de ampliar as formas de
transmissão de informação. Pode-se observar que a opinião do público já é levada em
consideração, pois ele é o maior consumidor dessas informações. Como toda empresa
capitalista visa a lucros, é necessário considerar a aceitação do receptor pelo produto à venda,
no caso, as histórias em quadrinhos.
Vale lembrar que a identificação mantida pelo leitor com as histórias em quadrinhos é
recorrente em todos os tipos de histórias (aventuras, guerra, etc). Maurício de Sousa, por meio
de seus personagens inspirados nos arquétipos, busca essa identificação, ao criar, no cerne da
história, uma ideologia recorrente em que ele mesmo afirma: é por meio dos personagens que
as crianças aprendem a brincar na rua com os pés no chão; ter higiene; acreditar no “anjo da
guarda”; ter bons amigos; brigar por seus ideais e etc. Em especial por meio do personagem
Chico Bento que vive no campo ao lado da natureza em um local sossegado, sem as
atribulações da vida moderna. Natureza espacial desejada por todo indivíduo da sociedade
contemporânea que gostaria de fugir das dificuldades impostas pela sobrevivência nos grandes
centros urbanos. O personagem convive com uma família feliz, tem escola, amigos e animais
de estimação. Tamanho é o seu poder: suas histórias em quadrinhos “desenhando” nosso País,
no conceito do rural, ultrapassam as fronteiras do Brasil, e, de acordo com Maurício, é o
personagem mais vendido da Turma da Mônica.
2.3 – OS QUADRINHOS NO BRASIL
Assim como nos EUA e Europa, a evolução dos quadrinhos no Brasil também se deu por
meio da propagação de caricaturas e charges políticas em jornais e revistas. Foi com
Ângelo Agostini que a charge e as HQ emergiram no Brasil. Sobre esse artista dos
quadrinhos, Cirne comenta que
sob a voltagem do humor grotesco, satírico, às vezes cáustico, a
caricatura encontrava em Agostini o seu melhor caminho: um caminho
que, em sendo político, era profundamente social em sua crítica e
costumes e dos preconceitos culturais. Só que Agostini não se
contentava com a imagem isolada, paralisada: ele avançou no tempo e
no espaço ao propor a aventura seqüenciada, marcada por cortes
gráficos que iriam determinar a estrutura narrativa de toda e qualquer
história em quadrinhos. O traço caricatural realiza-se com plenitude na
multiplicidade de desenhos cômicos, conteudístico e formalmente
interligados 75.
Herman Lima (1971) também concorda com as afirmações de Cirne e atribui o início
das HQ no Brasil ao talento de Ângelo Agostini (1843 - 1910) que iniciou sua carreira artística
em 1864, publicando ilustrações na revista “Diabo Coxo”, em São Paulo. Em seguida,
trabalhou na revista “Cabrião”, onde publicou em 1867 suas primeiras histórias ilustradas
(fig.14).
75
CIRNE, Moacy. História e Crítica dos Quadrinhos Brasileiros. Rio de Janeiro: Europa/Funarte. 1990. p.16
Fig. 14 – As Cobranças (1867), de Ângelo Agostini. 76.
Depois o artista se mudou para o Rio de Janeiro, onde continuou desenhando para as
revistas “Vida Fluminense” e “O Mosquito”. Dessas experiências vividas por Agostini, Lima
complementa que:
Foi assim que, no dia 30 de janeiro de 1869, na revista Vida
Fluminense, do Rio de Janeiro, teve origem o primeiro quadrinho
brasileiro: As Aventuras de Nhô Quim ,episódios contando as surpresas
e as desventuras de um homem simples do interior. Em 1883, na
Revista Ilustrada, Agostini dava início à publicação de sua segunda
série quadrinizada: As Aventuras de Zé Caipora77.
Podemos perceber uma tendência das HQ no Brasil: o autor se preocupa em resgatar o
nacional daquilo que é peculiar no Brasil. Isto vai acontecer na década de 1961, quando
Maurício de Sousa cria seu personagem Chico Bento, baseado no caipira brasileiro. Seus
outros personagens, que também se consagram, apresentam com características mais
universais.
76
77
Figura e legenda In: MOYA, Álvaro. História da História em Quadrinhos: p. 15.
LIMA, Herman. História da Caricatura no Brasil. Rio de Janeiro: José Olympio.1963. v 2. p.717.
Nos quadrinhos de Agostini, os textos são legendados e não se encontram o balão e
nem tampouco a onomatopéia. Em sua crítica às instituições, a caricatura era um poderoso
aliado dos movimentos sociais. Os jornais e revistas ainda eram lidos por poucos. O desenhista
italiano soube captar os traços da vida política e da vida dos tipos populares, assim como
soube lutar, por meio de seus desenhos, pela libertação dos negros escravos. Cirne afirma que:
o desenvolvimento dos quadrinhos no Brasil torna-se dinâmico dentro
da cultura de massa a partir de dois períodos importantes: o primeiro
foi o lançamento da revista O Tico-Tico publicado, em cores, pela
editora o Malho, no dia 11 de outubro de 190578
Com o surgimento da revista “O Tico-Tico”, o leitor brasileiro ganhou um veículo
impresso de qualidade, no qual vários ilustradores de renome iniciaram e desenvolveram suas
carreiras, entre eles estão: J. Carlos (criador de Lamparina), Luís Sá (autor de Peteleco, RecoReco, Bolão e Azeitona) e outros. Esse aspecto de “brasilidade”, imposto pelos nomes dos
personagens acima, lembra um período precursor do movimento de valorização da cultura
nacional. Isso se verifica pela bem-humorada denominação dos personagens - enfatizando o
espírito brincalhão e jocoso do brasileiro. São nomes com uma sonoridade rítmica musical
peculiar aos sons da música brasileira cujo ritmo é muito importante. Cirne reforça essa idéia
ao dizer que é preciso que o “quadrim brasileiro contenha, em sua essência [...] os nossos
dengos e nossos costumes” 79.
78
CIRNE, M. A linguagem dos Quadrinhos:O universo estrutural de Ziraldo e Maurício de Sousa. 3ª ed.
Petrópolis: Vozes, 1971. p. 10.
79
CIRNE, Moacy. A escrita dos Quadrinhos. Rio Grande do Norte:SeboVermelho, 2005. p.35.
.
Fig 15– Pode-se considerar que a revista O Tico-Tico foi o primeiro comic book infantil
publicado no Brasil Lançada em 1905, ela trazia comics contos, textos informativos e
curiosidades 80.
Para Cirne (1971) o segundo período foi com o “Suplemento Juvenil”, de Adolfo
Aizen, que surgiu em março de 1934 e que serviu de plataforma estética para muitos
admiradores e estudiosos dos comics” 81. Aizen foi responsável pelos lançamentos da revista
“Mirim” (1937) e do jornal de quadrinhos “Lobinho” (1938). Nos anos seguintes, surgiram
outras publicações, como o “Guri” (1940). Nesse período, o jornalista Roberto Marinho faz
chegar às bancas a publicação de “Gibi” (1939), que se torna sinônimo de revista de história
em quadrinhos no Brasil. Ademais, o cartunista Péricles cria “ O amigo da onça” (caricatura
satírica) que figurou na revista “O Cruzeiro”, a partir de 1943. Vide figura (16).
80
Figura e legenda In: IANNONE, Leila R. et al. Op. cit. p. 48.
CIRNE, Moacy. A Hora e a Vez de Maurício de Sousa Revista de Cultura. Petrópolis: Vozes, nº 10. 1970. In:
CIRNE, Moacy. A linguagem dos Quadrinhos. p. 10.
81
O personagem “O amigo da onça” surgiu num contexto brasileiro em meio à crise
política. Naquele momento, o Brasil negociava a dívida externa com o Fundo Monetário
Internacional (F.M.I). De acordo com Igayara, citado por Elíseos, “os artistas brasileiros
estavam atentos a tudo o que se passava no mundo e colocavam isso nos quadrinhos que
faziam”82. O personagem se caracterizou por apresentar um humor sádico, um comportamento
de superioridade sobre o outro, seja na intenção de frustrar suas expectativas, seja para
humilhá-lo. Nas palavras de Santos (1988) o amigo da onça encarnava o espertalhão, sem
caráter, mas simpático, que não perdia a oportunidade de tirar vantagens ou de aprontar
safadeza em cima das fraquezas humanas. Para Santos
o dia-a-dia, portanto, é um campo de ação do Amigo da Onça sobre o
outro tão forte quanto os limiares (doentes, deficientes, mendigos) [...]
tendendo mesmo a ser incorporado por eles como ponte para a derrota
do outro” 83.
Na verdade, naquela época, os quadrinhos brasileiros passavam por algumas
dificuldades geradas pelo comércio desleal dos quadrinhos norte-americanos que, dessa forma,
prejudicavam o desenvolvimento das histórias com aspectos brasileiros. Iannone diz que uma
“das exceções foi Amigo da Onça que, apesar de não ser um herói de comic, representa uma
figura característica de uma época da vida nacional”84.
82
SANTOS, Roberto Elíseos dos. Para ler os quadrinhos Disney. Tese de Doutorado apresentado na Escola de
Comunicação e Artes da Usp, São Paulo: 1988. p.337
83
SANTOS, Roberto Elíseos dos. Op.,cit, 1988. p.337
84
IANNONE, Leila R. et al. Op. cit. P.50
Fig. 16 –O amigo da onça celebrizou-se em todo país, ridicularizando cenas do cotidiano
carioca.85
A partir de 1930, os suplementos editados nos jornais favorecem o desenvolvimento
das experiências com as histórias em quadrinhos por meio da utilização de novos gêneros,
como, por exemplo, as aventuras policiais e de ficção científica. Nessa época, os quadrinhos
norte-americanos estão repletos de figuras de superseres, enquanto no Brasil os heróis ainda
continuam com características humanas e sem superpoderes.
Em junho de 1951, acontece no Brasil a Primeira Exposição Internacional das histórias
em quadrinhos, organizada por Jayme Cortez e Álvaro de Moya, e considerada por este (1977)
como a pioneira no mundo. A partir desta mostra, as revistas em quadrinhos passam a ter um
reconhecimento maior, como uma forma de manifestação artística. Santos afirma:
Nesse período, foi possível observar nos quadrinhos o sucesso das
chanchadas, ou seja, comédias musicais que reproduziam o clima
populista da época, fazendo críticas ao funcionalismo e transporte
públicos, aos buracos nas ruas, entre outras. Neste contexto merece
destaque o sucesso das HQ de terror, um gênero que se destacou tanto
quanto o humor nas histórias em quadrinhos brasileiras, tornando-se
85
IANNONE, Leila R. et al. Op. cit. P.50
referência a partir de 1950 e só entrando em declínio ao final de 1980
86
.
Nessa época, desperta, no mundo dos quadrinhos, um talento nacional, o paulista
Maurício de Sousa, que inicia sua obra em 1959, e que depois de 11 anos, se concretiza em
revistas. Em outubro de 1960, a Empresa Gráfica “O Cruzeiro” passou a publicar uma revista
considerada por Cirne como “o primeiro marco criativo dos quadrinhos brasileiros” 87. Tratase de “O Pererê” (fig.17), de Ziraldo Alves Pinto, que enfoca em suas narrativas um
personagem importante do nosso folclore, o Saci-Pererê, resgatando temas do nosso cotidiano
e da cultura nacional.
Fig 17 – PERERÊ (1959) 88.
No ano de 1964, sob a égide do regime militar, surgem as revistas de humor, terror e
aventura. Nessa época, o humor gráfico volta a satirizar a política. Os artistas brasileiros
86
SANTOS, Roberto Elíseos dos. Para ler os quadrinhos Disney: Tese de Doutorado apresentado na Escola de
Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo-USP. 1988. p.103
87
CIRNE, Moacy. A Hora e a Vez de Mauricio de Sousa.. Op. cit. p. 11.
88
IANNONE, Leila R. et al Op., Cit., p.180.
procuram veículos alternativos para editar seus protestos contra o autoritarismo do regime
militar por meio de charges, caricaturas e quadrinhos. Em 12 de outubro de 1971, a revista
“Grilo” torna-se revista tão importante quanto o “Suplemento Juvenil”.
Com a abertura política, na década de 80, vários quadrinhistas passam a abordar temas
do cotidiano e modismos da classe média em suas histórias, contudo as HQ de aventuras
policiais, as de ficção científica e até as de super-heróis continuam a fazer parte das produções
nacionais. “[...] Dentre os heróis brasileiros, o Capitão 7 foi o que recebeu maior destaque” 89.
No final da década de 80, por imposição da recessão econômica nacional e retração do
mercado editorial brasileiro, alguns artistas encontraram fora do país a oportunidade de dar
continuidade ao desenvolvimento da arte da história em quadrinhos.
A crise nacional bloqueia o mercado para os quadrinhos brasileiros.
Uma saída: desenhar para os States.[...] É uma perspectiva de futuro da
exportação em quadrinhos, desenhos e roteiros made in Brazil 90.
Fig. 18 – Made In Brazil (anos 90).
Já os anos 90 não foram muito bons para as histórias em quadrinhos brasileiras. Na
opinião de Custódio, o Plano Collor “arrasou o mercado de quadrinhos brasileiros, a exemplo
89
LEMOS, Renato (org). Uma história do Brasil através da caricatura: Rio de Janeiro: Bom Texto: Letras e
Expressões. 2001. p. 306
90
Figura e legenda In: MOYA, Álvaro de. Op. cit. p.190.
de outras artes. Dos setenta e dois milhões de exemplares vendidos em 1991, apenas a metade
é comercializada no ano seguinte” 91. Durante esse período, órgãos de incentivo à Cultura,
como a Fundação Nacional das Artes – FUNARTE - desaparecem, o que dificulta aos autores
locais conseguirem financiamento para a distribuição de suas criações. Um fator a ser
lembrado nessa época é a forte concorrência entre o produto em quadrinhos produzido
nacionalmente e o importado, “já que este último demonstrava uma grande qualidade de traços
e impressão, da mesma forma que o preço era inferior” 92.
Tal competição, apesar de intensa, também foi marcada pela valorização da cultura
nacional, o que gerou um maior distanciamento entre os personagens dos quadrinhos
importados e os brasileiros. A necessidade obriga artistas nacionais a empreenderem uma
investida em mercados tradicionais e competitivos de quadrinhos como o americano.
Atualmente, as revistas em quadrinhos, cada vez mais se aprimoram , ganham novos espaços
na mídia. Frente ao terceiro milênio, é um produto que se encontra na forma eletrônica com
grande penetração no mundo das crianças, jovens e adultos. Para reforçar esse pensamento, o
pesquisador Santos comenta que
a modernização dos quadrinhos como mídia aconteceu em 1998 com o
lançamento da revista “Cyber Comic”, que além de reunir
quadrinhistas conceituados possui um site na internet que pode ser
acessado pelo endereço: http://www.cybercomix.com.br), para o qual
os leitores podem mandar correspondências (via email), suas próprias
narrativas seqüenciais e onde é possível obter informações sobre
quadrinhos e ler entrevistas com quadrinhistas nacionais e
estrangeiros. Estes são alguns exemplos do rejuvenescimento do
quadrinho brasileiro dos anos 90 que, empregando fórmulas
consagradas no exterior ou criando as suas continua procurando espaço
no mercado editorial e na preferência do público.93
Atualmente, alguns lançamentos estão ligados a artistas de TV, que lançam no mercado
revistas em quadrinhos, nas quais eles mesmos são os personagens das histórias como, por
exemplo, a Xuxa, os Trapalhões, a Aninha (Ana Maria Braga). Santos comenta que
91
CUSTÓDIO, José de Arimatéia C. Educação? Este é um trabalho para o Super-Homem: Londrina: Uel. 1999.
p. 20.
92
LEMOS, Renato (Org.). Op. cit. p. 306.
93
SANTOS, Roberto Elíseos dos. Op. cit. p.119
a variedade de histórias em quadrinhos existentes é um sinal do
desenvolvimento que o gênero alcançou. Trata-se de várias linhas que
podem realizar descobertas e avanços. Vinculada intimamente aos
processos sociais, a evolução dos quadrinhos depende de como os
assumam os autores e editores e da relação que se estabeleça com os
leitores, relação definitiva, sentido último da história em quadrinhos. E
como afirma Calazans “[...] a HQ tem nobre origem, e ela vai
acompanhar a saga do homem até o final dos tempos 94 .
As histórias em quadrinhos, com suas especificidades, continuam a fazer parte das
opções de leitura das pessoas, como produto criado para a massa, carregado de significados e
propósitos. Dessa maneira, se faz necessário um estudo mais detalhado da composição dos
quadrinhos em sua especificidade, o que faremos no capítulo seguinte.
94
Id., Ibid., p. 119
CAPITULO III- A NATUREZA E A TIPOLOGIA DOS QUADRINHOS
Segundo Cagnin, “a história em quadrinhos é um sistema narrativo formado por dois
códigos de signos gráficos: a imagem, obtida pelo desenho, e a linguagem escrita95. Para
Marny é “uma engenhosa combinação imagem-texto [...] 96”.
Algumas histórias em quadrinhos recebem nomes especiais, como por exemplo, tira e
charge. A tira é uma história em quadrinhos curta, que quase nunca ultrapassa o número de
quatro quadros. Veiculada diariamente em jornais, a tira pode conter episódios completos ou
ser fragmentada em capítulos semanais. Cada tira tem seu personagem permanente. Já a
charge é formada, geralmente, por apenas um quadro. Apresenta mensagem cômica, irônica
ou satírica, valendo-se, para tanto, da caricatura. Basicamente o que há de comum, na charge,
nas historias em quadrinhos, no cartum, na caricatura, é o aspecto humorístico contido neles.
Dessa forma, o cartum - é composto por tecer críticas ao costumes; a charge - critica algum
fato, personagem ou acontecimento específico, mas há uma limitação temporal; a caricatura é o exagero proposital das características mais marcantes de um indivíduo; e as histórias em
quadrinhos, sempre enlaçadas a uma narrativa. Oliveira faz uma distinção entre charge e
caricatura:
a primeira preocupa-se em fazer sobressair traços marcantes do
indivíduo em questão, carrega as tintas em pontos estratégicos capazes
de dar ao observador pistas necessárias para o desvelamento da
identidade do caricato [...]. a segunda vai mais além e não se limita
apenas a ironizar, a jogar com detalhes de formas físicas do
personagem, mas acresce a esse humor, criado pela imagem
deformada, um dado bastante singular: a crítica97”.
A charge ganha força expressiva, quando a sociedade enfrenta momentos de crise. No
tecido social, que a trama do humor aparece em forma de desenhos. O objetivo maior da
charge é destacar os aspectos políticos daqueles ou daquelas pessoas que se destacam na
sociedade.
95
CAGNIN, Antonio Luiz. Os Quadrinhos. São Paulo: Ática. 1975. p.25
MARNY, Jacques. Sociologia das histórias aos quadradinhos. Porto: Civilização, 1970. p.105-106.
97
OLIVEIRA, Maria Lilia S. Imagem e Palavra numa leitura burlesca do mundo.In: AZEREDO, José Carlos
(org). Letras e Comunicação.Uma parceria no ensino de Língua Portuguesa. Petrópolis:Vozes. 2001. p.265
96
3.1 - A LINGUAGEM DA HISTÓRIA EM QUADRINHOS
A história em quadrinhos é uma forma de linguagem articulada pelas vinhetas. No
conceito de Acevedo “vinheta é a unidade mínima de significação da história em
quadrinhos”98.
No seu sentido mais amplo, linguagem é todo sistema de signos que serve para a
comunicação. A linguagem da história em quadrinhos é formada por dois componentes (ou
códigos) diferentes: a imagem (elemento figurativo, visual, icônico, pictórico) e o texto
(elemento lingüístico, verbal).
“A imagem é entendida como representação imitativo-figurativa, como cópia de
alguma coisa” segundo Cagnin99. Assim, a imagem é um signo100 icônico. Os ícones são
imitativos, possuindo íntima relação de semelhança com o objeto representado. A forma física
dos ícones tem relação direta com o objeto; ela é motivada por ter “semelhança com o real101”.
Um ícone será ícone de algo na medida em que é semelhante a esse algo e usado como signo
dele. Nos quadrinhos, as imagens são fixas. Elas podem corresponder, em geral, a uma ou
duas frases. Há histórias em quadrinhos mudas. Isso ocorre quando “só o elemento visual
assume todas as funções de representar, informar e, sobretudo, narrar102”. Alguns desenhistas
usam as histórias em quadrinhos mudas para produzir ambigüidade.
Geralmente, as histórias em quadrinhos fazem as suas imagens acompanhar-se de um
texto verbal; texto que se distingue por sua economia e que aparece, na maior parte das vezes,
em balões. Nos primórdios das histórias em quadrinhos, o texto vinha abaixo da imagem. O
texto também pode aparecer nas legendas.
98
ACEVEDO, Juan. Op. cit., p.69.
CAGNIN, Antonio Luiz. Os Quadrinhos. São Paulo: Ática. 1975. p. 32
100
Signo designa comumente “alguma coisa que está aí para representar outra coisa”. Empregado em semiótica,
denomina, então, uma forma da expressão qualquer, encarregada de traduzir uma “idéia” ou uma “coisa”. CF
GREIMAS A. J. e COUTÉS J. Dicionário de Semiótica. São Paulo: Tradução de Alceu Dias de Lima et al.
Cultrix.1979. p.423.
101
CAGNIN, Antonio Luiz. Op. cit. p. 11.
102
Id., Ibid., p.84.
99
3. 2 – ELEMENTOS QUE COMPÕEM UMA VINHETA
A narrativa na história em quadrinhos só é de possível compreensão e interatividade
devido à utilização das vinhetas, pois essas se articulam e representam, por meio de
imagens, a delimitação do espaço e do tempo da história. Portanto, os elementos que
compõem o universo de uma vinheta podem ser considerados como uma “arquitetura” dos
quadrinhos. São recursos de ornamentação que podem completar e dar ênfase ao conteúdo
da história. Segundo Acevedo, os elementos que definem, compõem e se integram à
mesma são:
o enquadramento (que corresponde os personagens e os sinais gráficos
que reforçam suas expressões, bem como os cenários em que tem lugar
sua ação), o ângulo de visão, os textos (que compreendem o discurso
que em geral se apresenta em balões e letreiros, bem como as
onomatopéias), as metáforas visuais e as figuras cinéticas, bem como o
modo em que todos estes elementos se relacionam [...] 103.
O enquadramento ou a vinheta ocupa um espaço real nas histórias em quadrinhos e sua
função principal é direcionar o olhar do leitor para a narrativa e despertar emoções. Desta
mesma forma, atua a câmera no cinema. O enquadramento delimita o espaço de visão do
leitor/receptor, além de orientá-lo para o tempo da narrativa. Eisner ensina que “[...] o ato de
enquadrar ou emoldurar a ação não só define o seu perímetro, mas estabelece a posição do
leitor em relação à cena e indica a duração do evento 104”. Outro estudioso dos quadrinhos,
McCloud, também concorda com a citação anterior ao explicar que “o quadro age como um
tipo de indicador geral de que o tempo ou o espaço está sendo dividido 105”. Ambos
delimitaram basicamente as mesmas funções para a utilização do quadro na história em
quadrinhos. Acevedo afirma que [...] no caso das histórias em quadrinhos, a narrativa se dá por
meio das vinhetas. A vinheta é a representação, através da imagem, de um espaço, e de um
tempo da ação narrada. 106
103
ACEVEDO, Juan. Op. Cit. p. 77
EISNER, Will. Quadrinhos e Arte Seqüencial: 3ª ed. 2ª tiragem. Tradução Luís Carlos Borges. São Paulo:
Martins Fontes, 2001. p.28.
105
McCLOUDE, Scott. Desvendando os Quadrinhos. Tradução. Hélcio de Carvalho e Marisa do Nascimento
Paro. São Paulo: M.Books. 2005. p 99.
106
ACEVEDO, Juan. Op., cit., p.69.
104
Pressupomos, então, que os elementos que compõem uma vinheta, juntamente com sua
estrutura geométrica (quadrado, retângulo, círculo etc), estabelecem a integração da história
em quadrinhos. Dessa maneira, “essas formas que chamamos de quadro contêm em si todos os
ícones do vocabulário dos quadrinhos107”. O tamanho das vinhetas é sempre compatível com a
sua exploração gráfica. “A vinheta redesenha o espaço real, enquadrando-o em largura e
altura. Esta limitação bidimensional do espaço real denomina-se enquadramento e, ”conforme
os espaços que representam, os enquadramentos denominam-se planos108”.
3. 3 - Os planos são tipificados em:
a - Plano geral que “é o enquadramento suficientemente amplo para situar a figura
humana completa em seu interior [...]109”. Ele permite que o leitor veja, num contexto geral, o
espaço em que decorre a narrativa.
Fig.19 - Plano geral: Inclui o cenário e as personagens envolvidas na ação110
107
id., ibid., p.99.
Acevedo, Juan. Op. Cit. p. 77
109
id., ibid., p. 79
110
SOUSA, Maurício. Coleção um Tema Só – Mônica Passeios. São Paulo: Globo, 2003. p.42.
108
b - O travelling que ocorre quando uma câmera imaginária acompanha o personagem
em seu deslocamento através do cenário.
Figura 20 - Travelling: a perspectiva da cena se faz pela noção de movimento da câmera.
fictícia111.
111
SOUSA, Maurício. Superestrela: Op. cit. p.31.
c - “O plano médio que é o mais usado na televisão (telejornais, reportagens, etc.), no
cinema e nos anúncios publicitários dos jornais112”.
Fig. 21 - Plano médio: o desenho foca o personagem na altura da cintura113.
Enquanto o plano geral agrega tanto o cenário quanto os personagens de forma
amplificada, o plano médio dá ênfase aos traços e às expressões dos personagens o que instiga
a atenção do leitor ou do espectador.
d - O plano americano que faz a vez dos nossos olhos quando conversamos com
alguém frente-a-frente, pois ficamos “[...] atentos a seu rosto, os limites de nossa percepção
visual parecem diluir-se na altura dos joelhos114”. (fig.22)
112
ACEVEDO, Juan. Op. cit. 1990. p. 72
SOUSA, Maurício Coleção .Superestrela: Op., cit., p.188.
114
ACEVEDO, Juan. Op. cit., p. 81
113
Fig. 22 - Plano americano: o personagem é enquadrado na altura do joelho115.
e - O primeiro plano
O primeiro plano destaca a afetividade e as dúvidas do personagem; apresenta seu
estado de espírito, seja de dúvidas ou de prazer. Dessa maneira, o personagem é destacado na
altura dos ombros para que sua expressão seja visualizada na verdadeira concepção de seu
sentimento. “No primeiro plano, o espaço foi delimitado e só resta ao leitor prestar atenção à
expressão do personagem” 116.
115
116
SOUSA, Maurício. Aniversários: Op. cit., p.77.
ACEVEDO, Juan. Op. cit. p. 83
Figura 23 - Primeiro plano: limita o espaço à altura dos ombros para dar maior
destaque da expressão facial117
117
SOUSA, Maurício. Passeios. Op. cit. p. 92.
f- Panorâmica que mostra uma tomada descritiva diferente do plano geral que é fixo.
Fig. 24 – Panorâmica que mostra mais de um ângulo da cena para chamar atenção para
a surpresa da cena118
g - O ponto de vista que é usado para mostrar como o personagem vê e se movimenta
pelo cenário.
118
SOUSA, Maurício.Superestrela. Op. cit. p.35.
Fig.25 - Ponto de Vista:o personagem acompanha o movimento da cena119
h- Plano de detalhe que “também chamado de primeiríssimo plano limita o espaço em
torno de uma parte da figura humana ou de um objeto em particular”.120
Fig 26 -O detalhe chama atenção para a importância da imagem121
119
SOU todo olhos! Almanaque do Cebolinha. São Paulo: Globo, nº. 46, 1998. p. 19
ACEVEDO, Juan. Op. cit. p. 83
121
SOUSA, Maurício. Superestrela. Op. cit. p.35.
120
fig 27- O detalhe do “detalhe” está em evidencia122
Uma imagem panorâmica seguida de um plano médio e de um primeiríssimo plano dá
bem mais impacto e dinamismo à cena. Planos variados e sincopados sugerem nervosismo.
Planos distantes reduzem a velocidade da leitura e dão tempo ao leitor. Mas muitos planos
distantes insinuam monotonia e expectativa. A alternância de planos distantes e aproximados
acentua o efeito de perigo e até de pânico.
122
SOUSA, Maurício. Coleção Um Tema Só. Superestrela. Op. cit. p. 72
Fig. 28- Recursos de enquadramento: Plano geral, um plano médio e um primeiro
plano aumentam a emoção do quadro na cena123
Esses recursos de enquadramento, aliados à mobilidade das vinhetas na construção das
histórias, possibilitam ao desenhista aumentar ou diminuir a ação da cena. As vinhetas
horizontais e largas deixam a leitura da narrativa mais lenta. Quando as vinhetas são
123
SOUSA, Maurício. Superaventuras. Op. cit. p. 124.
apresentadas na vertical, a leitura da ação fica mais rápida, ou pode ser um recurso usado para
descrever a arquitetura do local.
Fig. 29- Recursos de enquadramento: vários planos juntos representam mais movimento à
cena124
124
SOUSA, Maurício. Superaventura.Op. cit. p19
3.4 – ÂNGULOS DE VISÃO
Nas palavras de Acevedo, “o ângulo de visão é o ponto a partir do qual a ação é
observada. Existem três tipos de ângulos de visão: médio, superior e inferior” 125.
1- Visão inferior - fig (30) - A ação é focalizada debaixo para cima. Assim como nos
casos dos planos, a escolha de um determinado ângulo de visão não é um fato aleatório. Esta
opção tampouco obedece ao simples desejo de tornar o relato mais ameno (embora seja este
um dos seus resultados) O uso do ângulo de visão produz efeitos expressivos determinados.
Figura 30– Tomada debaixo para cima126
125
126
ACEVEDO, Juan. Op. cit. p. 93.
SOUSA, Maurício. Coleção um Tema Só – Mônica Superestrela. p. 21.
2 - Ângulo de visão superior - fig (31): “A ação é enfocada de cima para baixo127”
Figura 31 – Tomada de cima para baixo128
3 - Ângulo de visão médio: A ação é observada como se ocorresse à altura dos olhos.
Quando o desenhista quer destacar o protagonista ou o vilão, pode enquadrar em visão de
cima para baixo. O quadrinhista utiliza-se do ângulo de visão quando deseja produzir
determinados efeitos expressivos. Diz-se que há visão inferior, quando a ação é focalizada debaixo para cima, enquanto na visão superior, a ação é focalizada de cima para baixo. “O uso
do ângulo de visão produz efeitos expressivos determinados”129. (fig.32)
127
ACEVEDO, Juan. Como Fazer Histórias em Quadrinhos: São Paulo, Editora Global, 1990, p. 93.
SOUSA, Maurício. Coleção um Tema Só – Superestrela. Op., cit.,p. 21.
129
ACEVEDO, Juan. Como Fazer Histórias em Quadrinhos: São Paulo, Editora Global, 1990, p. 93.
128
Fig. 32- O olhar do leitor é dirigido aos personagens de forma natural sem a noção de
perspectivas.
3.5 - O BALÃO; A LEGENDA; A ONOMATOPÉIA
O balão pode ser definido como um elemento de formato ligeiramente circular ou
retangular, em cujo interior estão os diálogos, as idéias, os pensamentos, ou os ruídos dos
personagens. Relacionando cada balão com seus respectivos locutores, estão os
apêndices, que podem ter a forma de seta, indicando discurso expresso , ou a forma de
bolinhas, indicando discurso pensado. Em resumo, podemos dizer que o balão é uma das
formas de apresentação do texto nas histórias em quadrinhos. O balão tem uma carga de
informação. A sua forma dá indicações sobre os sentimentos que agitam os personagens.
Nesse sentido, é dotado de notável função figurativa. As modalidades básicas dos balões são
as seguintes:
a. Balão-fala: de contorno bem nítido e contínuo, representa o discurso expresso. Seu
apêndice é em forma de seta e sai da boca do falante.
FIG.33- Balão Fala130
b. Balão-pensamento: a linha do contorno é irregular, ondulada. O apêndice é formado por
pequenas bolhas que saem do alto da cabeça dos pensantes.
FIG.34 Balão pensamento 131
130
131
SOUSA, Maurício de. Fábulas. Op., cit.,p.132
SOUSA, Maurício de. Aniversários .p.161.
c. Balão-cochicho: a linha do contorno é pontilhada. É usado quando o personagem diz ao
seu interlocutor alguma coisa que não pode ser ouvida por um terceiro personagem.
FIG. 35 Balão cochicho132
d. Balão- berro: tem as extremidades dos arcos voltados para fora.
FIG 36- Balão berro133
e. Balão- trêmulo: tem linhas tortuosas como o tremular das ondas. Indica medo,
132
133
SOUSA, Maurício de. Coleção Um Tema Só- Fábulas -,p.152
id., ibid., Passeios- p.53
Fig - 37 134
f. Balão vibrado: procura reproduzir a vibração da voz tremida.
FIG. 38135
g. Balão- uníssono: engloba a fala única de diversos personagens.
134
135
id.,ibid.,.. Passeios. p. 157.
SOUSA, Maurício de. Coleção Um Tema Só - Mônica.. Aniversários. Op., cit., p. 188
fig. 39 - Balão uníssono136
h. Balão censurado: contém no seu interior símbolos (caveiras, estrelas, raios, etc),
indicativos de palavrões.
136
SOUSA, Maurício de. Coleção Um Tema Só -aniversários Op., cit.,p.182
Fig. 40 - As linhas são tortuosas e exprimem espanto137
i. Balão – mudo: balão vazio ou com sinais de pontuação, indicando apenas o estado
emocional do personagem.
137
SOUSA, Maurício de. Coleção Um Tema Só Passeios. Op., cit., p. 157
Fig - 41138
j. Balão duplo: dois balões que, pertencendo a um só personagem, são ligados entre si.
Indica que a fala foi dividida, por um breve silêncio em duas partes.
138
SOUSA, Maurício de. Coleção Um Tema Só - Parabéns ,p.151
fig.42139
Convém lembrar que existem outros tipos de balões; apenas destacamos os mais
evidentes nos quadrinhos de Maurício de Sousa .
A legenda é constituída de um discurso narrativo de dimensões variáveis. Ela
representa a voz do narrador. Pode ser encontrada emoldurada ou não, paralela a um dos lados
dos quadros. A legenda se destaca pela determinação espacial e temporal na história em
quadrinhos, além de contribuir para a caracterização psicológica dos personagens.
Chama-se também de legenda a fala dos personagens (que, no caso, não se encontra
encerrada dentro de balões) situada, principalmente, na base do quadro.
As onomatopéias são palavras que procuram reproduzir certos sons. Elas não são
exclusividade das histórias em quadrinhos: porém são expressas de maneira bastante
inventiva. Isso porque apresentam, além do evidente aspecto lingüístico, um aspecto figurativo
(tamanho das letras, volume, formas variadas, etc) que pode ser trabalhado segundo o estilo e
objetivo de cada desenhista.
139
id., ibid.,.Fábulas. p.34
fig.38
fig.43 140
fig.44141
Fig 45142Fig
46143-
Fig.40
fig.47144
140
id., ibid., Fábulas p. 64
id.,ibid., Superestrela p.170.
142
id.,ibid., Só -Passeios. P.159
143
id., ibid., Aniversários. P.131
144
id., ibid., superestrela. p..102
145
id., ibid., Passeios. P.143
141
fig. 48 145
Exemplos: “Bah!” (desagrado), “Dzzzt” (vôo curto da abelha), “Grrr” (grunhido de
um animal), “Glup” (engasgo) “Bam” (tiro de revólver) “Crash”/crack” (objeto sendo
quebrado), “ RRR ZZ” (sono); “POF’ ( explosão, queda).
3. 6 - ESTRUTURA NARRATIVA DA HISTÓRIA EM QUADRINHOS
Narrativa é o discurso que relata uma sucessão de fatos realizados por personagens,
que se desenvolvem num determinado espaço e durante um período de tempo. Nesse sentido
amplo, o conceito de narrativa abrange, além da crônica, do conto, da novela e do romance,
outras formas, como a notícia de jornal, as letras de música e as histórias em quadrinhos.
Nas histórias em quadrinhos, a narrativa é sustentada principalmente pela imagem. Isso
porque a narrativa quadrinizada existe em virtude da sucessão de quadros, que é feita, no
geral, numa ordem cronológica de causa e efeito.
Os elementos básicos de todas as narrativas são: o enredo (o que aconteceu), os
personagens (quem fez tal coisa), o tempo (quando aconteceu) e o espaço (onde aconteceu). O
enredo é ação, propriamente a história, a trama narrada, a seqüência de fatos. Na maior parte
das vezes, o enredo de uma narrativa é formado por uma situação inicial, que é alterada por
algum acontecimento, dando origem a uma situação final diferente da situação inicial. Vale
ressaltar outro elemento estrutural de suma importância da narrativa, é o narrador. Nas
palavras de Brait
não existe narrativa sem narrador [...] o narrador pode apresentar-se
como um elemento não envolvido na história, portanto uma verdadeira
câmera, ou como uma personagem envolvida direta ou indiretamente
com os acontecimentos narrados. De acordo com a postura desse
narrador, ele funcionará como um ponto de vista capaz de caracterizar
as personagens” 146.
146
BRAIT, Beth. A Personagem. 2ª ed. São Paulo: Ática. 198. p. 53.
O narrador, seja em primeira pessoa147 ou em terceira
148
, acopla recursos narrativos
para possibilitar a existência de suas criaturas de papel com o fim exclusivo de conquistar a
credibilidade do leitor.
O personagem é o ser que figura na história e nela se envolve ativa ou passivamente.
Segundo D’ Onofrio “as personagens constituem os suportes vivos da ação e os veículos das
idéias que povoam uma narrativa149”. Os personagens podem ser humanos ou não. Eles são
dotados de características éticas, sociais, religiosas, políticas, profissionais, culturais, étnicas,
etc. Os personagens, quanto à sua atuação no enredo, são classificados como principais e
secundários. O personagem principal produz os fatos mais importantes. Os personagens
secundários desempenham pequenos papéis em relação ao personagem principal. Em algumas
narrativas, é possível classificar os personagens em protagonistas e antagonistas. O
personagem protagonista150 deseja algo que ao antagonista cabe impedir. O personagem
antagonista151 dificulta, impede, ou tenta destruir o que o personagem protagonista deseja. Em
relação à composição, há personagens planas (seguem dentro do enredo, um comportamento
plano, linear e não mudam) e personagens não planas chamadas de redondas ( são as que
mudam de comportamento, evoluem, apresentam a surpresa). Foster, In: Brait, diz que
as personagens planas são construídas ao redor de uma única idéia ou
qualidade. Geralmente, são definidas em poucas palavras [...] as
personagens classificadas como redondas, por sua vez são aquelas
definidas por sua complexidade, apresentando várias qualidades ou
tendências, surpreendendo o leitor [...] 152.
Pelo fato de toda narrativa pressupor uma sucessão de eventos, o tempo passa a ser um
componente essencial dessa categoria. Na história em quadrinhos “a própria ordem da leitura
das imagens uma após a outra gera o conceito de tempo, de sucessão, de um antes e um
147
A condução da narrativa em primeira pessoa implica, necessariamente, a sua condição de personagem
envolvido com os ‘acontecimentos’, que estão sendo narrados. Por esse processo, os recursos selecionados pelo
escritor para descrever, definir, construir seres fictícios que dão a impressão de vida, chegam diretamente ao
leitor através de um personagem. In: Brait, op. cit p. 60.
148
A condução da narrativa em terceira pessoa implica quando o narrador é considerado uma câmera, capaz de
descortinar as formas que vão materializando o personagem. Esse recurso é muito antigo, é um artifício, uma
manifestação quase espontânea da tentativa de criar uma história que deve ganhar a credibilidade do leitor. “Era
uma vez...”. In: Brait., op.cit., p.60
149
D’ONOFRIO, Salvatore. O Texto Literário. São Paulo: Duas cidades. 1983. p.58.
150
protagonista é aquela personagem que ganha o primeiro plano na narrativa. In: Brait. Op., cit., p. 89.
151
antagonista é o opositor, o protagonista às avessas. In: Brait, Beth.op., cit., p.86
152
FORSTER . In: BRAIT, Beth. Op., cit., p. 41.
depois (passado, presente, futuro) e a relação lógica de causa e efeito153”. Como indicadores de
sucessão temporal nas histórias em quadrinhos, podemos citar os seguintes : as legendas
(“mais tarde”, “pouco depois” , “no dia seguinte”, etc), as cores (azul = dia, negro = noite,)
certos ícones (sol = dia, lua = noite). Já como indicadores de época histórica, podemos
destacar as legendas contendo datas precisas (Era em 1890) e as imagens indumentárias dos
personagens, estilo arquitetônico, objetos, (usos e costumes de determinadas épocas).
O espaço é o lugar, o cenário onde se passa o que se narra. “O espaço da ficção
constitui o cenário da obra, onde os personagens vivem seus atos e seus sentimentos. As
descrições de cidades, ruas, casa, móveis, etc. funcionam como pano de fundo dos
acontecimentos, constituindo índices da condição social dos personagens (ricos, pobres,
nobres, ou plebeus) e de seu estado de espírito (ambiente fechado = angústia; paisagens
abertas = sensação de liberdade)
154
”. Os espaços classificam-se em físicos, psicológicos, e
sociais. Caracterizam-se assim as histórias em quadrinhos, em sentido geral. Sua estrutura é
universal, variando-se apenas o conteúdo.
Com este trabalho enfocamos as histórias em quadrinhos brasileiras, sobretudo as que
têm como personagem principal o Chico Bento, vale, então, conhecer um pouco de seu autor,
Maurício de Sousa, para que possamos depois explanar melhor sobre o nosso objeto de estudo.
153
154
CAGNIN, Antonio Luiz. Op. cit. p.157.
D’ONOFRIO, Salvatore.Op. cit. p.64.
CAPÍTULO IV - MAURÍCIO DE SOUSA: UM POUCO DE SUA HISTÓRIA
Talento, determinação e fé são esses três fatores que compuseram seu sucesso.
Polivalente, Maurício de Sousa foi um pouco de tudo na vida: cantor, bailarino, locutor, ator,
repórter policial, desenhista, e finalmente um grande empresário do mundo da comunicação.
Tais virtudes aliadas em sua pessoa o levaram à consagração. Nasceu na cidade de Santa
Isabel-SP, no mês de outubro de 1935. Cremos que a sua vocação para as artes é herança do
seu pai Antônio Maurício de Sousa, barbeiro e poeta, e de sua mãe, a poetisa, Petronilha
Araújo de Sousa.
Fig 49 - Maurício de Sousa no início de sua carreira155
Maurício de Sousa trabalhou em rádio e, para ajudar no orçamento doméstico,
colocava em prática a sua paixão pelo desenho nos pôsteres e cartazes que produzia para
vender. Teve ilustrações publicadas nos jornais de Mogi das Cruzes. Por ter vocação pela arte
gráfica, buscou os grandes centros para desenvolver as suas técnicas de desenho, mas não
conseguindo emprego na área, trabalhou como repórter policial no jornal Folha da Manhã,
hoje Folha de S. Paulo.
155
Foto do Álbum de família enviada pela assessoria de imprensa de Maurício de Sousa no dia 25 de junho de
2005.
A experiência como repórter ajudou-o na profissão de desenhista. E com o passar dos
anos, Maurício se tornou desenhista de quadrinhos brasileiros de destaque, ou senão o único,
a perpetuar a difusão de seus personagens desde a década de 50 até hoje. Moacy Cirne conta
que o autor, já no início da década de 1960, projetou mais de 50 personagens de grande
expressividade psicológica e formal: Bidu, Cebolinha, Piteco, Horácio, Chico Bento,
Penadinho, O Astronauta, Mônica, Jotalhão”156.
A sua primeira criação foi o cãozinho Bidu, em 1959, que deu origem à sua primeira
tira publicada pela Folha de S. Paulo em julho desse mesmo ano, inaugurando assim
[...] a galeria de tipos de Maurício que viria a ser o absoluto criador de
maior resposta popular no Brasil, com merchandising, revistas, tiras de
jornais (em distribuição estilo norte-americano), televisão, cinema,
publicidade e brinquedos, conhecido pela totalidade das crianças
brasileiras. Um fenômeno.157.
Fig. 50 – O personagem Bidu, suas transformações e alguns de seus
amigos158.
Segundo Maurício, Bidu é um personagem baseado nas suas lembranças de quando
ainda trabalhava como repórter policial e não se dedicava apenas aos quadrinhos. O artista
conta que “as histórias desse cachorrinho saíam em tiras compridas, de alto a baixo do jornal.
Não tinha nome ainda. De um concurso na redação onde eu trabalhava, com cada um dando
uma sugestão, o cãozinho foi batizado159 ”.
156
CIRNE, Moacy. A Linguagem dos Quadrinhos: p. 61.
MOYA, Álvaro de. História da História em Quadrinhos: p. 177.
158
Dados enviados pela assessoria de imprensa de Maurício de Sousa para a autora no dia 20 de junho de 2005.
159
Idem.
157
A aparência de Bidu pouco mudou desde a sua primeira aparição. Continua com seu
jeito alegre, brincalhão, bem humorado e amigo fiel de seu dono, Franjinha. O cãozinho é
muito crítico e observador, por isso está sempre de olho nas atitudes dos outros personagens.
Cebolinha, um garoto de cabelos espetados que fala trocando o “R” pelo “L”, foi
inspirado em um dos meninos de sua época de infância, em Moji das Cruzes, que emprestou
suas características para o personagem criado em 1961.
Fig.51 – Cebolinha, a evolução dos traços do personagem160.
Esse personagem, mais tarde, viria a fazer parte da Turma da Mônica. Com o passar do
tempo, Cebolinha passou por algumas transformações na sua fisionomia. Ele já foi mais
gordinho, mais crescido e até mais cabeludo, mas sempre com o mesmo jeito “engraçado” de
falar. Apaixonado por aventuras, ao fazer parte da turma, seu objetivo passa a ser derrotar a
Mônica com seus “planos infalíveis”, pois seu sonho é ser líder da turminha. Sua primeira
revista foi lançada em 1973. Maurício de Sousa, ao criar seus personagens baseados em
figuras humanas, mantém nos seres de papel o caráter regional e a identidade nacional.
160
Idem
Em 1961, Maurício de Sousa cria Chico Bento, um personagem com características e
costumes brasileiros, Chico Bento é inspirado no tio-avô de Maurício, um caipira da região
centro-sul do Brasil. Em agosto de 1982, foi lançada a primeira revista, onde a Turma da Roça
,estrelada por Chico Bento, a sua namorada Rosinha, o Zé Lelé, o Hiro, o Zé da Roça, a
professora Dona Marocas, o Padre Lino e vários outros personagens vive divertidas histórias
num ambiente gostoso e pacato do interior.
Fig. 52 – Chico Bento, o nosso objeto de estudo 161.
No mesmo ano do “nascimento” de Chico Bento, Maurício cria o personagem Cascão,
que ficaria famoso por ter manias de sujeira e medo de água. A grande aceitação pelo público
tornou possível a criação de sua primeira revista em agosto de 1982.
161
Idem
Fig. 53 –Cascão, o personagem que caracteriza o medo que algumas crianças têm de tomar
banho162.
E as criações continuam. Logo em 1962, é a vez de Jotalhão, “o elefante fotogênico”
que obteve rápida aceitação dos leitores e publicitários, alcançando rapidamente o sucesso.
Fig. 54 – Jotalhão, o garoto propaganda da marca Cica163.
Foi logo requisitado para estrelar anúncios de tevê e aparecer em embalagens de
diversos produtos, além de participar de histórias ao lado da Turma da Mônica e dos amigos:
162
163
idem
idem
Raposão, o Coelho Caolho e da Rita Najura, uma formiguinha eternamente apaixonada por
esse elefante tão charmoso.
Depois foi a vez de Horácio, 1963, um pequenino e tímido dinossauro com uma
filosofia de vida “mais vale ajudar do que ser ajudado”, que passa a viver suas aventuras
juntamente com Lucinda, sua eterna namorada, o Tecodonte, o Antão, o pterodátilo Alfredo,
entre outros.
Fig. 55 – Horácio, a voz interior de Mauricio de Sousa164.
O ano de 1963 pode ser considerado como um marco na carreira de Maurício de Sousa.
Seus personagens de maior sucesso foram concebidos nesse período: Mônica, Magali e
Astronauta.
Fig. 56 – Mônica, a criação mais famosa de Mauricio165.
164
165
idem.
idem.
A Mônica, com sua personalidade marcante, foi inspirada em uma de suas filhas, de
mesmo nome. Juntamente com o seu coelhinho de pelúcia, Sansão, a garotinha fez sua estréia
na tira de número dezoito do Cebolinha e, com o passar do tempo conquistou seu estrelato
ganhando revista própria em maio de 1970.
Já a Magali se identifica com outra filha de Maurício, tanto no tipo físico quanto na sua
característica mais marcante: a loucura por comida, principalmente por melancia. Seu bichinho
de estimação é um gato angorá chamado Mingau. Sua primeira revista foi publicada em 1989.
Fig. 57 – Magali, a personagem que representa as crianças comilonas166
O Astronauta é um herói espacial que, por meio de viagens intergalácticas, transmite bom
humor, informações sérias da atualidade, companheirismo e as astúcias de um super-herói que
vive suas aventuras longe da família.
166
idem.
Fig. 58 - O Astronauta, o herói do espaço167.
Um ano depois, Maurício criou a personagem Tina (1964), que passou por
transformações como uma criança real. Ela teve várias fases: criança; depois adolescência,
quando aderiu à onda hippie, quando então fez muito sucesso.
Fig.59 – Tina, a representação da beleza feminina nos quadrinhos de Maurício168.
Mais tarde, já em 1976, o desenhista cria um dos personagens mais queridos nos
países da América Latina, o Pelezinho, que representa uma estrela do futebol mundial, o Rei
167
168
idem.
idem.
Pelé. O personagem nasceu depois de vários bate-papos entre Pelé e Maurício. Teve sua
primeira revista lançada em 1977.
Fig. 60 – Pelezinho, o personagem inspirado no rei do futebol brasileiro, Pelé169.
Esses são alguns dos personagens mais famosos de Maurício de Sousa. Não cabe aqui
mencionarmos todas as suas criações e sim as que mais se propagaram, por terem conquistado
a simpatia dos leitores. Essa difusão em massa deve-se à forma de distribuição adotada pelo
autor, que desenvolveu um serviço de redistribuição parecido com o utilizado nos EUA, os
Sindycates.
4. 1 - O Empreendedor
O espírito de empreendedor de Maurício de Sousa contribuiu para o seu sucesso,
levando-o ao mercado brasileiro e internacional. Começou sua carreira de desenhista inspirado
nos referenciais dos quadrinhos americanos. Sobre o assunto, Cirne afirma:
[...] primeiras estórias não eram tipicamente brasileiras. Eram assim
meio universais. Não havia nelas ambiente brasileiro, não havia
detalhes que as identificassem como uma produção brasileira. O
pessoal estava digerindo material americano há 30 anos, acostumados
de tal forma, que não aceitava material diferente170.
169
170
idem
CIRNE, Moacy. A linguagem dos Quadrinhos. 1973. p. 62
No início de seu trabalho, enfrentou alguns desafios: o descrédito com o personagem
das histórias em quadrinhos nacionais, a dúvida da manutenção de sua produção e a questão da
sobrevivência financeira. Nessa época (1960), as histórias em quadrinhos americanas
chegavam ao Brasil por um preço muito baixo e as histórias brasileiras não encontravam
parâmetros para uma competição mercadológica.
Mesmo com todas as dificuldades encontradas, Maurício alia seu potencial artístico à
sua “veia” comercial e desenvolve, com dedicação, o seu projeto de vida. Não se influenciou
com as vicissitudes pelas quais passavam as histórias em quadrinhos no momento. Voltado
para a administração de seu projeto, idealiza uma redistribuição de suas tiras nos moldes dos
syndicates americanos, ou seja, a mesma história em quadrinhos sairia publicada em vários
jornais. Nessa época, os jornais ainda não possuíam “off-set” e tudo era gravado em clichês171
de madeira produzido pelo próprio Maurício. Além da dificuldade tipográfica enfrentou a
problemática política da época, os veículos de comunicação se dividiam entre os pólos
políticos. Sobre o assunto Maurício de Sousa relata:
assim, era muito importante que eu conhecesse a tendência do jornal,
antes de chegar apresentando minhas histórias. Para os jornais
nacionalistas, eu tinha que apresentar meu material como
genuinamente nacional, totalmente verde e amarelo, tão bom ou
melhor que o jornal estrangeiro. Para os jornais nacionalistas com
tendências conservadoras ou de direita, eu tinha que me apresentar
como autor de histórias tão boas e nos moldes das histórias norteamericanas172.
Aos poucos e com muita habilidade, Maurício vai ganhando espaço e credibilidade dos
jornais, começa sua engenhosidade no traçado da comercialização das histórias em quadrinhos
nas adjacências de São Paulo. Inicia sua distribuição administrando e aproveitando as
experiências de outros sistemas já consagrados (revista Seleções, correio, via prospecto).
Dessa forma, dá o primeiro impulso na construção de seu império, que alguns anos mais tarde
se consagraria como um dos maiores do mundo. Estava resolvido o problema de distribuição
e divulgação de seu material, mas enfrenta outro problema, a produção de seus trabalhos que,
171
Placa de metal, gravada fotomecanicamente em relevo, obtida por meio de estereotipia, galvanotipia, ou
fotogravura destinada à impressão de imagens e textos em prensa tipográfica. CF: Houaiss, Antonio et al.
Dicionário de. Língua Portuguesa.. 1ª ed. Rio de Janeiro: Objetiva. 2001. p.739.
172
Sousa, Maurício. Crônicas: Navegando nas Letras I. p.13
pela demanda, seria impossível produzi-lo sozinho. Nessa época de 1960, ao estruturar sua
produção e conquistar o mercado brasileiro, surgiu a necessidade de formar uma equipe de
colaboradores que fizesse balões, apagasse os traços de lápis, pintasse espaços de negro,
elaborasse as letras sob a sua proteção e orientação . Sobre o assunto, Natal comenta que
a lógica fordista, no entanto, em muito pouco se suavizou desde então,
já que as histórias, produzidas por muitos desenhistas, roteiristas,
coloristas, letristas, continuam a ser creditadas unicamente a Maurício,
o que atualmente não ocorre nem mais com a Disney, cuja produção
publicada no Brasil é totalmente creditada desde o começo deste
terceiro milênio, e até festejada, com álbuns de luxo homenageando os
grandes mestres criadores pós Walt Disney.173
Sob a égide de sua proteção atualmente (e como sempre foi), seus produtos conseguem
atingir os vários cantos do país brindando o público mirim com uma criativa galeria de tipos
que, com humor e alegria, retratam o cotidiano e o imaginário de crianças e adultos, vivam
eles na cidade ou no campo, tornando os personagens conhecidos. A gama de personagens foi
inspirada em situações vividas por Maurício em sua infância ou sugerida por personagens
vivos de sua convivência diária. Vergueiro comenta que
atualmente os personagens mauricianos aparecem em 4 revistas
mensais exclusivamente para eles – façanha jamais conseguida por
qualquer autor nacional -publicado pela Editora Abril (Mônica,
Cebolinha, Cascão e Chico Bento) e em diversos almanaques
publicados, com periodicidade variada, pela mesma editora; além
disto, são também veiculados em mais de 150 jornais e revistas da
Europa e América Latina174.
Os personagens de Maurício de Sousa ganharam vida com a assimilação de atitudes e
comportamentos de seus filhos e amigos. Fato comprovado pela sua inspiração sempre em
situações reais e do cotidiano de crianças e adultos para o desenvolvimento de sua arte em
quadrinhos, além de que “a história é contada através de temas, de momentos mágicos, vividos
173
NATAL, Chris B. UNIVERSO DE CHICO BENTO: Trabalho apresentado no INTERCOM- Sociedade
Brasileira de Estudos Interdisciplinares da comunicação- UERJ- 5 a 9 de setembro de 2005.
174
VERGUEIRO,Waldomiro de Castro Santos. Histórias em Quadrinhos: seu papel na Indústria de
Comunicação de massa. Dissertação de Mestrado apresentada na Escola de Comunicações e Arte. USP- 1985.
p.50.
num envolvimento de arte, engenharia e realizações que explicam o ‘ clima’ e o ‘fato’
175
”,
como afirma ele que acredita serem seus personagens representantes de pessoas comuns, com
emoções e fraquezas normais. Assim, cria um mundo ficcional humano próximo do que
vivemos. Maurício “estoura” no mercado com suas criaturas de papel, seus trabalhos ganham
espaço e se tornam conhecidos em diversos países. “Nos anos 1970, o universo mauriciano
amplia-se de maneira considerável. 176. Assim podemos acrescentar que Maurício possui uma
equipe que trabalha sob suas ordens em atividade industrial, embora ele insista em dizer que
sua equipe trabalha com ele e não para ele. Nessa década, surge a revista Turma da Mônica
distribuída pela Editora Abril até o ano de 1986. Tem início seu investimento em
merchandising com os primeiros brinquedos de vinil da fábrica Trol (fig 61), os lençóis para
bebês do Horácio e as velas de aniversário da Turma da Mônica. Sobre o assunto, Guimarães
afirma:
a popularidade de sua galeria de personagens capitaneada pela garota
briguenta Mônica, viria pela utilização do mesmo esquema de
distribuição de tiras dos syndicates, pela inserção em publicidade e
pelo licenciamento de imagem para os mais variados produtos. A partir
da década de 1970, Mônica chegaria ás bancas de revistas,
transformando-se num fenômeno de público insuperável até hoje177.
Embora as revistas se fixem como um produto de sucesso, Maurício enfrenta, em 1980,
a invasão dos desenhos animados japoneses, como não tem desenhos para competir, perde
mercado. Contudo, enfrenta a crise e o desafio ao abrir o estúdio de animação Black & White
para fazer longa-metragem em animação. Estava preparando sua volta aos mercados perdidos,
mas não contava com as dificuldades políticas e econômicas do país: a inflação impedia
projetos a longo prazo, a bilheteria sem o controle do cinema que fazia evaporar quase 100%
da receita, a lei de reserva de mercado da informática, que impedia o acesso a tecnologia de
ponta necessária para a animação moderna.
175
SOUSA, Maurício. Crônicas. Navegando nas Letras II. p.154.
VERGUEIRO,Waldomiro de Castro Santos. Op. cit. p.51.
177
GUIMARÃES, Edgard. O que é Historia em Quadrinhos Brasileira. João Pessoa: Marca de Fantasia. 2005.
p.71
176
Fig - 61 - Maurício de Sousa em parceria com a Trol178
178
Imagem enviada pela assessoria de imprensa de Maurício de Sousa no dia 25 de junho de 2005.
Sobre as dificuldades enfrentadas com as novas tecnologias Maurício diz que
era proibido importar os computadores – que eram muito rudimentares.
Para trazer uma maquininha do Japão que era uma bobagenzinha, só
servia pra fazer uns estudos de animação a lápis. Precisei ir até o
Japão, brigar com meio mundo, brigar no Porto, com a alfândega. Era
uma calamidade. Não era como hoje, em que você pode desenhar
direto no computador. A gente precisava desenhar no acetato179.
Maurício, então, parou com o desenho animado, o que representou um encolhimento
de mercado. O autor revela: ”Chegamos a circular em mais de 20 países. Hoje (2003),
estamos em seis, porque, não tínhamos mais desenho animado, devido aos altos custos,
desenho animado é uma indústria cara”
180
. Dessa forma, concentrou-se nas histórias em
quadrinhos e no merchandising até que a situação se normalizou.
Conseqüentemente,
voltaram os planos de animação e outros projetos. E dentre eles, a criação do primeiro parque
temático: o parque da Mônica, no Shopping Eldorado em São Paulo, com a construção de
parques menores como o que foi inaugurado em Campinas. Maurício de Sousa contabiliza
seus produtos que vieram dos quadrinhos: atualmente, está presente em mais de três mil
produtos que vão desde fraldas infantis, brinquedos, alimento industrializado da marca
Perdigão, cuja participação representa mais de setenta por cento dos negócios.181
Na mídia impressa e no mundo real, com os parques temáticos, Maurício amplia os
negócios do grupo para outras mídias, como TV, cinema, e Internet. Isso gera um aumento de
propostas espontâneas de novos licenciamentos dos personagens. Para aproveitar essa
demanda monta novos grupos de trabalhos que irão desenvolver ações para atender aos
interesses dos nichos de mercado.
Atualmente, no início do terceiro milênio, é relevante a contribuição de Maurício em
campanhas sociais: pela preservação da natureza, pela segurança no trânsito, pela erradicação
do analfabetismo e da pornografia infantil e de combate à obesidade que, entre outras, fazem
dele um empresário comprometido com a realidade social, embora lhe façam duras críticas ao
afirmarem que sempre fez restrição ao social em suas histórias em quadrinhos. Por meio do
Instituto Cultural, visa levar a filosofia e o poder de comunicação dos personagens para o
179
GARATTONI, Bruno Sayeg. O rei dos Quadrinhos entra na era 3 D: O Estado de S. Paulo, 01 de maio de
2006. Suplemento Vida Digital, L 12, p.
180
Dados enviados à autora pela assessoria de imprensa de Maurício de Sousa no dia 25 de junho de 2005.
181
Idem
desenvolvimento de programas na área da saúde, do meio ambiente, da educação e da cultura.
Pretende elaborar um programa educacional em parceria com o governo brasileiro. A proposta
é uma série de desenhos animados da Turma da Mônica, que tem por objetivo pré-alfabetizar
crianças de 3 a 12 anos de todo país, e será distribuída na rede pública de ensino
fundamental182”. Sobretudo por acreditar que as histórias infantis possam influenciar as
atitudes e costumes das crianças, Maurício pretende distribuir suas revistas em
aproximadamente setenta países. Sua meta inicia-se com a campanha em quadrinhos para a
Organização Pan-Americana de Saúde, que realiza a distribuição de um gibi educativo
produzido em quatro idiomas (francês, inglês, espanhol e português) para toda a América. “A
iniciativa tem gerado resultados tão bons que em alguns países da América Central a
mortalidade infantil chegou a diminuir por conta dos hábitos de higiene que são transmitidos
de uma forma divertida183”, afirma Sousa.
Atualmente, Maurício investe no projeto de lançamento do personagem Ronaldinho
Gaúcho . Sobre o assunto Sousa diz que o projeto:
foi idéia minha. Eu falei com alguns amigos em comum, eles me
apresentaram ao jogador e, em dezembro, lançamos o personagem.
Agora estamos trabalhando pra transformá-lo num personagem
mundial, independente da copa, um personagem-símbolo para o
futebol184
Maurício, em sua trajetória, foi além de traços e cores de seus desenhos, pois
enfrentou décadas de trabalho, com transições de política econômica pouco definida no
Brasil. Soube superar esses desafios e conseguiu sobreviver como empresário, consagrando
seu perfil de versatilidade, num país em que se vive a duras penas para conseguir um
segmento do mercado consumidor. Assim, neste século XXI, Maurício comenta que
[...] os editores vivem se queixando. Mas eu continuo vendendo os
meus dois milhões de exemplares. Então, ou existe uma renovação, e
esses dois milhões de leitores são aqueles que não foram “pegos” pela
internet, ou a gente está dividindo bem o espaço. Na minha casa,
182
Entrevista exclusiva cedida à Revista Marketing, agosto de 2004. Matéria escrita por Anna Gabriela Araújo
Disponível em: www.revistamarketing.terra.com.br/matéria, acessado em 25 de março de 2005.
183
Idem.
184
GARATTONI, Bruno Sayeg. O Rei dos Quadrinhos entra na era 3 D: O Estado de S. Paulo. 01 de maio de
2006. Suplemento Vida Digital. L12.
enquanto um está na internet, jogando, outro está lendo gibi. Às vezes
não tem internet para todo mundo, então há o momento do gibi.185
Embora tenha estruturado seu império comercial (da mídia impressa, TV , internet,
merchandising e outros canais),
foi sua
persistência e
sua visão empresarial que
o
transformaram num agente da indústria cultural, sobretudo considerada como uma
característica específica do mundo capitalista.
Os meios ligados à nossa cultura, como as revistas de histórias em quadrinhos,
constituem um sistema coerente nesse sentido. Sobre o assunto, Eco adverte que:
[...] a televisão, o jornal, o rádio, o cinema e a estória em quadrinhos, o
romance popular [...] agora colocam os bens culturais à disposição de
todos, tornando leve e agradável a absorção das noções e a recepção de
informações, estamos vivendo numa época de alargamento da área
cultural, onde finalmente se realiza, a nível amplo, com o concurso dos
melhores, a circulação de uma arte e de uma cultura “popular”186.
Ao considerarmos as histórias em quadrinhos de Maurício de Sousa um meio de nossa
cultura, (cultura de massa), podemos dizer que ele se inseriu nessa sociedade globalizada
como um homem de visão transformadora, que se impôs diante de um organismo uno, se
projetou, identificando-se com a sociedade e acompanhando suas transformações culturais ao
longo desses anos. Essa integração exigiu de Maurício a busca da heteronomia da sociedade
global, as formas de poder estar se ressocializando neste novo mundo, para assim conseguir
fama e fortuna. Dessa forma, pode ser citado como o único quadrinhista brasileiro que obteve
sucesso no sistema capitalista, que conseguiu sobreviver dos quadrinhos, e que seu organismo
de produção é de responsabilidade de sua empresa: A Maurício de Sousa Produções. Afirma
Vergueiro que seu modo de produção pode ser o “modo de produção capitalista, implicando,
portanto em reproduzir as relações – e a ideologia do sistema
187
”. Contudo, conseguiu
transformar o personagem Chico Bento em autêntico representante da cultura caipira e inserilo no mercado global. Dessa forma, o Brasil se projeta em outras culturas por meio da
ideologia do personagem.
185
idem.
ECO, Umberto. Apocalípticos e Integrados. p. 8 – 9.
187
VERGUEIRO,Waldomiro de Castro Santos. Op. cit. p.51.
186
CAPÍTULO V - A CONSTRUÇÃO DO PERSONAGEM CHICO BENTO
Embora nosso objeto de estudo não seja a narrativa romanesca, podemos acrescentar
que na narrativa dos quadrinhos, o personagem também é um elemento fundamental para o
enredo da história. Geralmente a trama gira em torno deste personagem central, o protagonista
que tem como característica principal “(...) o desejo, normalmente intenso, de atingir uma
meta. O interesse em observá-lo rumando para esse objetivo é o que leva o público a se
envolver na história” 188
Sem personagem, não existe verdadeiramente narrativa, pois a função
e o significado das ações ocorrentes numa sintagmática narrativa
dependem primordialmente da atribuição ou referência dessas ações a
uma personagem ou agente189.
Ainda é possível notar que este personagem tende a seguir um determinado curso de
ação do qual dificilmente há de se desviar. Esse desejo intenso em atingir certo objetivo,
que depende da criação do autor, é o que motiva o personagem a viver, a se relacionar com
os personagens secundários e com os componentes dramáticos. Nessa afirmação podemos
incluir o exemplo do personagem Chico Bento. Esse personagem tem características
próprias do caipira brasileiro, com seus costumes, suas ações, suas crenças, o modo de
falar, mais precisamente a maneira com que o personagem pronuncia erroneamente (de
acordo com a Norma Culta) as palavras da língua portuguesa, idioma do nosso país. As
suas vestimentas, a cor amarela da sua camiseta e o azul da sua calça reafirmam duas das
cores da nossa bandeira, as quais simbolizam alguns dos elementos da nossa riqueza
natural: o ouro e o céu de anil. Às cores ainda podem ser atribuídos índices que levam o
leitor a imaginar, antes mesmo
de conhecer o personagem, somente pelo estilo de
vestuário, a sua ligação com a natureza, ou seja, com o ambiente e o local em que a família
Bento vive: a roça. Essas são algumas das características visíveis do personagem, que não
necessitam de senso crítico para serem notadas. Vale ressaltar ainda que essas
características são perenes na vida do personagem.
Podemos também notar que os elementos secundários, que também fazem parte da
narrativa, como por exemplo, o cenário onde são narradas as histórias leva o leitor a criar
188
189
HOWARD & MABLEY. Teoria e Prática do Roteiro: p.77.
AGUIAR e SILVA, Vitor Manuel. A Estrutura do Romance: p. 24.
imaginariamente a concepção do local em que vive o personagem, ou seja, o sítio da família e
a vila onde fica a maior concentração de personagens que fazem parte do enredo. O
antagonista da história é a força opositora “(...) a dificuldade que resiste ativamente aos
esforços do protagonista para alcançar sua meta. Essas duas forças opostas formam o conflito
ou os conflitos da história” 190.
Constata-se que esse personagem não tem uma criatura de papel como antagonista. A
força opositora advém das dificuldades e necessidades do ambiente em que o personagem
vive. Como por exemplo, a sua “falta de pressa”, a sua dificuldade em viver em um espaço
urbano, demonstradas geralmente quando vai visitar os primos da cidade, quando seus amigos
e ou animais ficam doentes. Nesse ponto, podemos exemplificar com a narrativa “Freud x
Giselda” (fig. 62), em que Chico Bento vai à procura de um médico psiquiatra para resolver o
problema de estresse da sua amiga Giselda, que não é nada menos que uma galinha caipira. É
cômico neste caso, pois há uma grande controvérsia entre o personagem do Dr. Tonho Cortez,
que é um psiquiatra “normal”, característica que poderia ser atribuída a este personagem por
qualquer leitor que se aventurasse nesta narrativa. Dr. Cortez trata de doenças psicológicas de
seres humanos. Quando percebe que Chico Bento está trazendo um problema de estresse da
sua amiga, galinha Giselda, o Dr. enlouquece, pois não é capaz de entender esta aproximação
tão amigável e humana entre um ser racional (Chico Bento) e um irracional como a galinha
Giselda. Há, portanto, nesta história, paradoxos de identidades. Por um lado, o leitor acha
normal esta identificação do personagem Chico Bento com a galinha Giselda, considerada
uma ‘amiga do peito’, já que a ideologia implantada neste personagem é a de uma criatura
caipira que tem os animais como entes familiares. Chico Bento, devido a sua inocência, a sua
naturalidade, trata da galinha como se ela fosse um personagem fabuloso (de fábula). Essa
personificação enfatiza e ajuda a delinear o personagem: simples mas não simplório, inocente,
mas sábio (são nas fábulas em que pela simplicidade se veiculam grandes pensamentos).
190
Cf. HOWARD & MABLEY. Op. cit., p. 58.
Fig. 62 Chico Bento consultando sua galinha191
191
SOUSA , Maurício de. Coleção Um Tema Só-Mônica - Superaventuras.Op., cit., p 143
Fig.63 - Chico Bento consultando sua galinha192
192
id., ibid., p.144
Entretanto, podemos observar que o Dr. Tonho acha um absurdo passar anos na
faculdade e depois vir a examinar uma galinha. Acreditamos que esta seria uma atitude normal
de qualquer psiquiatra, enlouquecer ao se deparar examinando uma galinha. Porém, o Dr. só se
submeteu a esse tipo de consulta porque havia montado o seu consultório na roça. É neste
ponto que podemos salientar que a ideologia imposta pelos personagens são ilustrações da
nossa realidade social que, por outro lado, podem ser propostas ideológicas implantadas no
meio social por meio das personagens.
Essa afirmação pode ser relacionada com as atitudes do Dr. Tonho Cortez, que uma
vez na roça, deixou suas crenças de lado e analisou um problema de estresse de uma ave. Tal
ocorreu devido à necessidade do momento e em função do valor emocional que o animal
representava para o Chico Bento e pelo fato de essa reintegração de um doutor, Tonho Cortez,
com o ambiente cultural da roça ser um processo quase buscado por qualquer pessoa,
considerando o mundo globalizado.
Vale salientar que o nome dos personagens é um assunto passível de notoriedade, pois
“é um elemento importante na caracterização da personagem, tal como acontece na vida civil
em relação a cada indivíduo”193. Acreditamos que o nome do personagem funciona como
indício, “como se a relação entre o significante (nome) e o significado (conteúdo psicológico,
ideológico, etc.) do personagem fosse motivada intrinsecamente”
194
. Chico Bento, apelido
designado às pessoas que tem por nome Francisco. A este nome podemos fazer algumas
analogias como, por exemplo, a Francisco de Assis, santificado pela igreja católica como o
maior exemplo de humildade humana que já viveu na terra. Francisco deixou o conforto do
seu riquíssimo lar para viver uma vida de pobreza, doando-se inteiramente a cuidar e a
amparar os pobres e oprimidos da cidade de Assis na Itália. É ainda considerado o protetor da
fauna, pois, em vida, tinha enorme afeição e cuidado para com os animais, como nos revelam
os seus escritos biográficos.
Já o sobrenome da personagem, Bento, faz alusão a rituais próprios do catolicismo,
religião que usa do termo ‘bento’ para designar algo ou alguma coisa portadora da graça de
Deus. No nome do próprio Dr. Tonho Cortez, está intrínseco a personalidade ou postura que se
193
194
Cf. AGUIAR e SILVA, Vitor Manuel. Op. cit., p. 34.
Idem, Ibidem, p. 35.
espera dos profissionais que é o “Cortez”, lembrado na definição do senso comum de cortesia,
camaradagem, simpatia.
Tendo em vista o que registramos acima acerca dos nomes Chico e Bento: podemos
inferir que o personagem de Maurício de Sousa, nos enredos das histórias em quadrinhos, em
que atua, apresenta analogia com tais mensagens, uma vez que é um personagem que ama a
vida do campo( a natureza), defende os animais e os tem como amigo, como ocorre com seus
amigos de escola. Cultiva a humildade e não hesita em ajudar os que necessitam de sua
presteza, como fazia o Santo de Assis. Aprofundando mais ainda a análise do personagem
‘Chico Bento’, vemos, em suas ações, também as características da criação maior de Monteiro
Lobato - o Jeca Tatu - que representa o caipira brasileiro com todos seus predicados, inclusive
a preguiça (‘abrasileirada’) em suas várias conotações. Sobre a preguiça, Roland Barthes
citado por Rubem Alves distingue dois tipos de preguiça:
Um deles, abençoado, é a preguiça de quem está deitado na rede de
barriga cheia. Não quer fazer nada porque na rede está muito bom. O
outro tipo é a preguiça infeliz, ligada inseparavelmente à escola. O
aluno se arrasta sobre a lição de casa. Não quer fazê-la. A vida o está
chamando numa direção mais alegre. Mas elas não têm alternativas. E
obrigado a fazer a lição. Por isso ele se arrasta em sofrimento195
Mas não percamos de vista que se aprofundarmos o olhar, a escola de Chico Bento
reflete a realidade da Educação Brasileira no tocante ao ensino fundamental e ensino médio da
escola estadual que apresenta fonte de conflitos e a aparente falta de “pressa” de estudar dos
alunos, o que compactua com a realidade do personagem.
Os personagens estão inseridos num determinado tempo e espaço, elementos
fundamentais em qualquer narrativa, visto que estes se inserem tanto no plano do emissor, no
caso o narrador e os personagens, quanto do receptor, o telespectador, leitor ou ouvinte numa
determinada época sócio-histórica, com suas ideologias e repertórios dentro da cultura daquele
contexto do tempo determinado pelo autor ao escolher para a sua história a época e o
espaço/cenário.
195
ALVES, Rubem. A escola que sempre sonhei. Sem imaginar que pudesse existir. 8 ed. São Paulo: Papirus.
2005, p.49
Horácio concebe a personagem não apenas como reprodução dos seres
vivos. Mas como modelos a serem imitados, identificando
personagem-homem e virtude e advogando para esses seres o estatuto
de moralidade humana que supõe imitação196.
Esse código de moralidade a que se refere a citação acima pode ser identificado como
uma das estratégias do autor da obra ao criar suas criaturas de papel. Brait em suas palavras
concorda com o teórico ao dizer que “Aristóteles aponta, entre outras coisas,[...]: a
personagem como reflexo da pessoa humana [...]197. Maurício de Sousa preserva os princípios
de Aristóteles e Horácio para criar seus personagens a partir de uma seleção natural, do que a
realidade oferece e concebe seus seres de papel à partir de modelos humanos. Assim, o
receptor é conduzido para um mundo de ficção que vai se formando à sua frente mediante sua
realidade. O processo de identificação do receptor com o drama de uma determinada
personagem é o que Jauss identifica como catarse, a qual “liberta o expectador de seus
interesses práticos e das implicações de seu cotidiano, a fim de levá-lo, através do prazer de si
no outro, para a liberdade estética de sua capacidade de julgar” 198.
Sobre o personagem Chico Bento, verifica-se que é apontada a tranqüilidade,
representada pelo fato de dormir no consultório do psiquiatra. Dessa forma, a preguiça pode
ser vista no homem dos núcleos urbanos, fato que, na existência real, se caracteriza pela
procura dos alimentos prontos e tecnologias que facilitem as tarefas e proporcionem uma certa
comodidade com menor esforço. Em relação aos profissionais liberais, representados na
história em questão pelo Dr Tonho Cortez, a adaptação ao meio social e as suas realidades é
uma necessidade, uma vez que no Brasil, em função de sua vasta extensão e culturas regionais
específicas, é comum os referidos profissionais se depararem com situações inusitadas quanto
a do psiquiatra que atendeu a uma galinha no consultório, ave conduzida por Chico Bento.
Outra questão abordada se refere ao nome dos personagens que de certa forma, como
já mencionado, representam região, personalidades ou religião. Esta parte inatingível da
personalidade de Chico Bento, bem como algumas qualidades que ele desperta nos leitores de
todos os tempos, serão mais explorados no capítulo seguinte.
196
BRAIT, Beth. A Personagem: 2ª.ed. São Paulo: Ática. 1985. p.35
BRAIT. Op., cit., p.29
198
JAUSS, Hans R. apud. Flory, Suely F. Villibor. Artigo: O leitor e o Labirinto, utilizado na disciplina Estudos
da Recepção: Os vazios do texto e a interatividade do receptor. Programa de Pós-Graduação em Comunicação da
Universidade de Marília. P.6
197
5. 1 - CHICO BENTO E O RETRATO DE SUA TURMA
Na década de 1960, o Brasil vive “uma primeira onda de saturação de consumo
tecnológico e dos meios de comunicação de massa [...] é o momento áureo do tropicalismo
199
”. Nesse momento de transição imposta pela Indústria Cultural nasce Chico Bento (1961)
personagem inspirado em um tio-avô de Maurício de Sousa. Em agosto de 1982, foi lançada a
primeira revista, na qual a Turma da Roça, entre eles a Rosinha, namorada do Chico Bento, o
Zé Lelé, Hiro, o Zé da Roça, a professora Dona Marocas, o padre Lino e vários outros
personagens vivem divertidas histórias num ambiente gostoso e pacato do interior .
O pesquisador Waldomiro Vergueiro afirma que Chico Bento surge na obra de
Maurício como “menino caipira baseado no Jeca Tatu de Monteiro Lobato200, que fala um
português típico do interior paulista” 201. Alguns pontos identificam o personagem de Maurício
de Sousa com o personagem de Monteiro Lobato, pois ambos nascem na roça e representam
o homem do campo. Todavia, Jeca Tatu é uma figura que representa na linguagem de Lobato
o “piolho da terra”. Expressão que configurou o sujeito, que sempre sobreviveu da terra, sem
conhecê-la, que apenas desfruta de seu alimento para sua sobrevivência e de sua família (fig
64). Sobre esse sujeito Lobato diz:
quem do alto olha para o Brasil vê [...]: o homem rural, o que
chamamos de caboclo, o negro da roça, os milhares de seres sem voz
que na terra mourejam numa agricultura de índio – queimar e plantar,
[...]. Sobre a miséria infinita desses desgraçados está ancorada a nossa
‘civilização’[...]202.
Para o estudioso Santos, o caipira Jeca Tatu, “na verdade, é um exemplo do homem do
campo esquecido pelo bem público, que não tem acesso à educação e a outros direitos,
desconhece as técnicas de plantio e, ao ver sua terra empobrecer, desiste de enfrentar a
199
200
BOSI, Alfredo. Dialética da Colonização: 3ª ed. São Paulo: Cia das Letras. 1996, p.334
Monteiro Lobato foi um intelectual que idealizou o personagem Jeca Tatu, inspirado em figuras de “carne e
osso”, representando colonos que trabalhavam em sua fazenda. Não aceitava o estilo de vida e o trabalho dos
colonos, taxando-os de indisciplinados e pouco afeitos para o trabalho. Assim, criou o personagem que simboliza
o caipira com uma conotação negativa, e se popularizou por meio do Biotonico Fontoura.
201
VERGUEIRO, Waldomiro de Castro Santos. História em Quadrinhos: Seu papel na Indústria de
Comunicação de Massa: Dissertação de Mestrado apresentada à Escola de Comunicação e Arte da USP: São
Paulo. 1985. p. 150
202
LOBATO, José Bento Monteiro. A Barca de Gleyre. São Paulo: Ática.1959. Vol. 1 e 2, p. 54-55.
situação e se acomoda203”. Dessa maneira, ambos consideram o personagem do Jeca Tatu
como representante do sujeito da vida rural. A simplicidade e a fisionomia aparente de uma
pessoa rústica são notadas na pintura abaixo que apresenta características do sujeito sem
amparo e com parcas esperanças.
Fig.64 - Caipira Pitando: Pintura a óleo do artista Almeida Júnior, tendo como
temática a vida do interior paulista, na qual destacou o tipo masculino rústico que o pintor
denominava de caipira204
Por conseguinte, podemos dizer que Maurício de Sousa intencionalmente ou não, cria seu
personagem inspirado no Jeca Tatu. Sobre o personagem, Sousa afirma:
Quanto às conclusões dos pesquisadores sobre semelhanças do Chico
com o Jeca Tatu, fica por conta desses mesmos pesquisadores. Eu,
203
SANTOS, Roberto Elíseos. Para reler os Quadrinhos Disney. linguagem, evolução e análise de HQs.Tese de
Doutorado. São Paulo: 1988, p.333.
204
Imagem In: Terra Paulista. histórias/arte/costumes. Manifestações artísticas e celebrações populares no
Estado de São Paulo. CENPEC. Imprensa Oficial. 2004.p.97.
mesmo, nunca pensei em aproximar as duas imagens. Mas essas
conclusões talvez sejam provocadas pela origem dos dois personagens:
Chico é uma montagem de características que vi e vivi na minha
infância, nas cidades de Mogi das Cruzes e Santa Isabel. Bem na área
do Vale do Paraíba. E o Jeca Tatu é um personagem criado pelo
Lobato, a partir de observações que ele fazia de roceiros do mesmo
Vale do Paraíba. Uma ou outra coisa em termos de hábitos, costumes,
uma ou outra coisa em termos de moldura, devem ser semelhante. Mas
definitivamente Chico Bento é mais um tio-avô meu, roceiro da região
do Taboão (entre Mogi e Santa Isabel), que nem cheguei a conhecer
pessoalmente, mas de quem conheci inúmeras histórias hilariantes,
contadas pela minha avó. Era uma espécie de Pedro Malazartes, tanto
que aprontava. E tinha um irmão gêmeo, Zé Bento, que no início
ignorei, para as histórias em quadrinhos. Posteriormente, quando senti
que o Chico Bento precisava de um outro personagem para a geração
de situações mais cômicas, fui buscar o tal gêmeo. Que batizei de Zé
Lelé. Nas historinhas, ele é apenas um amigo do Chico205.
Podemos dizer que o personagem nasceu no Brasil predominantemente rural. As
cidades existiam em função da economia rural, excetuando apenas as capitais, em que grande
parte dos moradores migram do campo. Sobre o assunto a pesquisadora Flávia Oliveira
comenta que
passamos de um país agrário na década de 1940, para país
industrializado médio, com um deslocamento demográfico do campo
para a cidade de vastas proporções. No limiar dos anos de 1980, o
Brasil havia, grosso modo, completado o ciclo da segunda revolução
industrial206
O personagem nasce com atitudes simples e naturais e representa os valores
tradicionais de nossa cultura rural. Maurício de Sousa afirma que o personagem fora inspirado
por um tio avô, em cujo proceder ele estabelece uma relação com Pedro Malazarte. Sobre esse
artista Santos, ao citar Roberto da Mata comenta que “[...].Pedro Malazarte- personagem que
foi interpretado no cinema por Amacio Mazzaroppi, ator com grande apelo popular e que
também se vinculou a imagem de Jeca Tatu [...]” 207 .
205
Dados disponíveis em : http//:www.monica.com.br/ mauricio/cronicas/cron269 htm.acessado:25d de abril de
2006.
206
OLIVEIRA, Flávia.A. M. Globalização, Regionalização e Nacionalismo.São Paulo: Unesp, 1999. p.62
207
SANTOS, Roberto Elíseos. Para reler os Quadrinhos Disney. linguagem, evolução e análise de H Q .Tese de
Doutorado. São Paulo, 1988, p.336.
Como arquétipo do Jeca Tatu, o personagem Chico Bento reelabora a identidade do
povo brasileiro, dada a sua integral ligação com as raízes de nossa cultura; por falar da Terra;
de ecologia com ingenuidade, sem maldades, difunde uma mensagem universal. É visto como
um matuto, um contador de “causos” , dança quadrilhas nas festas juninas, convive com
mulas-sem-cabeças, usa roupas “puídas” e chapéu de palhas.
Como uma forma de divulgação dos usos e costumes do personagem, Maurício de
Sousa lançou o livro Manual da Roça, que traz ilustrações divertidas com informações sobre a
vida na roça. O personagem é o “astro” da revista e apresenta o lugar onde vive (a roça), a
cultura de seu povo, lendas e personagens do folclore, bichos brasileiros, músicas e poesias
sobre a mata, brinquedos para montar, receitas e festas juninas.
Chico Bento representa a pureza, a simplicidade e a “falta de pressa” que podem
caracterizar algumas pessoas que moram no interior do Brasil. Mora numa casa simples de um
sítio perto de uma vila, com igreja, pracinha, coreto, escola rural, poucas casas e nenhum carro
nas ruas. Um ambiente calmo e tranqüilo onde todos se cumprimentam e se conhecem pelos
nomes. Chico anda de pés no chão, chapéu de palha e calça curta. Fala do caipira típico, canta
moda de viola.
Fig. 65 -Em uma das primeiras aparições, o Chico já vivenciava um assunto que
atravessou todos estes anos e que se mantém atual: a reforma agrária208.
Chico Bento é autêntico, entretanto, como é um tipo entre os brasileiros da roça , não
seria difícil encontrar outros personagens com seu estilo e com o seu jeito de ser.
O que enriquece e destaca seu perfil caipira é a maneira como mostra o valor das
coisas simples da vida: amizade, família, preocupação com a ecologia e o meio ambiente. Por
conta de sua força ideológica se torna o garoto propaganda na defesa do Rio São Francisco em
parceria com o IBAMA (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente), juntamente com o Instituto
208
Dados e figura disponível em : http//:www.mônica.com.Br Crônica 269.O Veio Chico. Acessado em 29 de
abril de 2006
Cultural Maurício de Sousa. Representa o bucólico: seu ideal de vida preserva as belezas do
cenário rural, a ingenuidade dos costumes, o cotidiano tranqüilo em contato com a natureza, e
seu ambiente é um mundo imaginário de paz e felicidade em contraste com a vida urbana.
Para o pesquisador Cardoso, Maurício de Sousa trabalha com o que as pessoas pensam sobre
determinado espaço e “como vêem a vida cotidiana dos lugares. No campo, o bucolismo, os
habitantes inseridos na natureza. Na cidade, o stress urbano, a fumaça, os grandes prédios, as
vidas como locomotivas do progresso”209 . Existe uma vida social no mundo do Chico Bento,
com sua linguagem diversificada e seu estilo simples de convivência social. Como o astro da
história convive bem com sua turma: Rosinha, Zé Lelé, Hiro, Zé da Roça.
5.1. 1 - A Turma da Roça
HIRO
Apesar de morar no interior, o Hiro e sua família
preservam os costumes da cultura japonesa. Foi
habitante da zona urbana, mas a família trocou a cidade
pela vida no campo. Hiro é o personagem que mantém
seu modo de vestir com camiseta pólo branca e boné,
uma forte tendência do estilo urbano.
Fig. 66210
ROSINHA
Menina da roça, bonita e decidida, é um encanto
para os olhos do Chico Bento com quem mantém um
namorinho tímido. O personagem mantém um namoro de
forma platônico e extremamente inocente. Rosinha está
sempre entre os melhores alunos da sala de aula.
Preocupa-se com o futuro. È o tipo da mocinha,
sonhadora, romântica e teimosa.
Fig. 67211
209
CARDOSO, Marcelo Z. Como as histórias em quadrinhos vêem o Brasil: de Agostini a Hugo Pratt.
Dissertação de Mestrado, apresentada na Escola de Comunicação e Artes - USP. 2000.
210
Imagem disponível em:http//: www.monica.com.br: acessado em 28 de maio de 2006.
211
Imagem disponível em:http//: www.monica.com.br: acessado em 28 de maio de 2006.
ZÉ LELÉ
Zé Lelé surgiu como personagem nas
histórias do Chico Bento não faz muitos anos.
Agradou desde o início pelo humor que traz às
histórias
e
pela
sua
participação
sempre
surpreendente. É primo do Chico.
Fig.68212
ZÉ DA ROÇA
Amiguinho e colega de escola do Chico
Bento, não fala "caipirês". Como personagem de
história em quadrinhos, surgiu em tiras diárias no
jornal Diário de São Paulo, no início da década de
1960. Seu companheiro, antes de surgir o Chico
foi o nissei (filho de japonês) Hiroshi, que teve o
nome simplificado para Hiro. A tira se chamava
"Hiroshi e Zezinho".
212
213
Fig.69213
idem
Imagem disponível em http//: www.monica.com.br: acessado em 28 de maio de 2006.
Fig. 70- Tira do Hiroshi e Zezinho, onde o Chico Bento aparecia pela primeira vez, no
ano de l963. Note o lacinho segurando a calça, que depois sumiu, e o remendo na calça, que
resolvi tirar. O galho de arruda atrás da orelha (para espantar mau olhado ) e o escapulário (ou
bentinho), pendurado no pescoço, para trazer a proteção divina214.
Chico Bento e sua turma são apresentados nas histórias em quadrinhos como
personagens ingênuos e simples, com o intuito de fazer transparecer a índole do caipira e
atender ao público leitor que compra as revistas. A representação desse personagem na cultura
brasileira mostra os caminhos pelos quais passou a zona rural e ainda os percorre hoje, em
especial os núcleos mais afastados dos grandes centros que, apesar de todos os avanços
tecnológicos, utilizam a lamparina, ou lampião.
Neste século XXI, como ocorreu nas últimas décadas do século passado, a zona rural
passa por mudanças oriundas da globalização. É presente o ciclo da atividade de monocultura,
ou seja, a atividade agrícola, que explora grandes áreas de plantio para servir de matéria-prima
para processamento agroindustrial – cana - de - açúcar, entre outras. Esse sistema acaba
levando a população de áreas rurais a mudar-se para a cidade, fazendo surgir problemas de
infra-estrutura e levando à pobreza maior. Apesar de todos os problemas vivenciados pelos
que afetam a economia que tem suas raízes na zona rural, Chico Bento bem representa esse
sujeito, com seus costumes tradicionais oriundos das raízes de nossa cultura.
5. 2 - CHICO BENTO E A CULTURA POPULAR
214
Dados e figura disponível:http//:www.monica.com.br Crônica 269.O Veio Chico. Acessado:29 de abril de 2006
A cultura na acepção da palavra
tende a se referir à arte, literatura. Hoje os
pesquisadores das ciências sociais usam o termo de forma mais ampla, para referir-se a quase
tudo o que pode ser apreendido numa dada sociedade. O signo “cultura” cuja origem se
encontra nos verbo latino colere (cultivar, criar, cuidar), vem tomando muitos significados e,
hoje, um dos maiores desafios é delimitar seu território.
Para tratar do termo cultura popular, inicialmente, buscamos, no dicionário Houaiss da
Língua Portuguesa, a definição da expressão, e, encontramos a idéia de “conjunto de costumes
de um povo215”, e como “povo, encontramos a idéia de “que se refere a uma determinada parte
do conjunto total de participantes de uma sociedade” , integrando com o “conjunto de
cidadãos de um país, excluindo-se os dirigentes e a elite econômica 216” . Dessa forma, a
cultura popular seria então um conjunto de práticas culturais sugeridas pelas camadas mais
baixas de uma determinada sociedade. Sobre o assunto Bosi adverte :
Se pelo termo cultura entendemos uma herança de valores e
objetos compartilhada por um grupo humano relativamente coeso,
poderíamos falar de uma cultura erudita brasileira, centralizada no
sistema educacional (e principalmente nas universidades), e uma
cultura Popular, basicamente iletrada, que corresponde aos mores
materiais e simbólicos do homem rústico, sertanejo, ou interiorano, e
do homem pobre suburbano ainda não de todo assimilado pelas
estruturas simbólicas da cidade moderna217.
Neste binômio de
academia e folclore, justapõe-se o crescimento dos meios de
comunicação liderando um novo momento da cultura, denominado de cultura de massa, que se
estabelece na declinidade do indivíduo, imposta pelos processos de mecanização do trabalho
gerado pela nova era moderna. A massificação de valores e produtos é imposta como condição
necessária à sobrevivência ou ao prolongamento das estruturas sociais e culturais geradas pelo
desenvolvimento capitalista. Assim, cultura de massa “substitui a arte comunitária (de folk) ou
215
HOUAISS, Antonio et al. Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. 1 ed. Rio de Janeiro:Objetiva. 2001.
p.888
216
Idem, Ibidem, p.2275
217
BOSI, Alfredo. Dialética da Colonização: op. cit. p. 309
a arte ‘alta’”
218
. Nas palavras de Virgílio Noya Pinto, o homem contemporâneo sujeito às
transformações oriundas da globalização, “pode conviver com sua cultura e com os meios de
comunicação de massa, sem destruir aquilo que está no mais profundo de suas raízes, ao
mesmo tempo universal como patrimônio humano”
219
. Essa condição só é possível porque a
história do personagem emerge do cotidiano do brasileiro, de sua universalidade. Por meio da
representação do cotidiano que Chico Bento mantém sua imagem de caipira há muitas décadas
ao preservar a ideologia do meio rural.
Se a cultura popular representa uma produção do povo que retrata, com expressões de
anseios e desejos, uma coletividade, a cultura de massa impõe ao público uma propriedade
manipuladora, que estabelece uma interdependência entre o que o receptor quer e aquilo que a
indústria cultural oferece e que se dissemina com apelo de “sentimentalismo, agressividade,
erotismo, medo, fetichismo, curiosidade220”. Nesse sentido de representação, Bosi afirma que
cultura implica em “modos de viver [...]221”. Dessa maneira, podemos incluir o personagem de
Maurício de Sousa, Chico Bento, como um representante da cultura popular, por caracterizar e
representar os costumes do homem do campo. Embora criado dentro da cultura de massa, o
personagem mantém o tipo do ser humano rural, com suas características peculiares. No
entanto seus costumes e hábitos foram mais preponderantes até o século passado, embora no
terceiro milênio essa ‘figura’ se apresente como um “representante” da vida rural com alguns
sinais de modernização. Esses aspectos modernos são oriundos do desenvolvimento dos meios
(tv, transporte,etc) que abreviam o caminho para seu crescimento como ser humano
globalizado.
O modo de se fazer representar é o modelo do indivíduo que sempre existiu na zona
rural brasileira, denotando, no personagem, características culturais caipiras. Essas
características são estudadas por Ribeiro “como um novo modo de vida que se difunde
paulatinamente a partir das antigas áreas de mineração e dos núcleos ancilares de produção
artesanal222”. Assim, pela necessidade de sobrevivência, esses grupos de mineradores se
dedicam ao artesanato e mantêm as tradições da cultura popular, nascida primeiramente com
218
COHN, Gabriel. Comunicação e Indústria Cultural. São Paulo: Companhia Editora Nacional. 1971, p. 309.
PINTO, Virgílio N. Comunicação e Cultura Brasileira. 5ed. São Paulo: Atica, 2003.p.72.
220
BOSI, Alfredo.Op., cit, 1996. p. 309
221
idem. ibidem, p. 324
222
RIBEIRO, Darci. P. 382
219
os índios e depois assimiladas pelos portugueses. A cultura popular se mantém e se propaga
mais intensamente a partir da decadência dessa mineração que resulta numa economia de
pobreza e na regressão cultural. Ribeiro comenta que “os mineradores se fazem sitiantes,
escondendo na fazenda suas penúrias. O artesanato local de roupas rústicas e de utensílios
volta a ganhar terreno e, com ele, uma economia autárquica para subsistência. [...] 223 ”.
Nessa perspectiva, Chico Bento bem representa e cristaliza o pensamento do povo
que resistiu a uma regressão econômica política e social.
Maurício de Sousa, ao criar seu personagem, acreditou no potencial e na riqueza do
conhecimento cultural do sujeito rural. A simplicidade que prevaleceu na formação humana
dessa gente, foi um dos fatores que o levaram a vencer as dificuldades imposta pela política
social que se arrasta por várias décadas como: ausência de uma educação básica,
reconhecimento nas leis trabalhistas, falta de transporte etc. Contudo, a imagem de resistência
cultural é aparente e eterna na memória da história. Nesse âmbito, o personagem agrega esses
valores e conquista cada vez mais a opinião e o gosto das crianças e adultos. A capacidade de
persuasão desse “menino” é refletida nos seus valores e princípio que demonstra em sua
história que colocados na esteira da cultura brasileira o transformam em ícone da temática
rural. Nem mesmo Maurício acreditava nessa força e capacidade psicológicas de se eternizar
na vida contemporânea e o autor diz:
Efetivamente, no início das aparições do Chico, eu ainda não tinha me
dado conta de: 1- a força do personagem. 2- que ele poderia falar o
“caipirês” sem medo e vergonha, que o público aceitaria
tranqüilamente. 3- que o “caipirês” é uma manifestação de um
regionalismo palpável, forte curioso, com história, com peso cultural.
Assim que percebi essas características, o Chico passou a ser um
personagem caipira no jeito, na fala, nos hábitos. E deu certo224
Outro ícone de sucesso do personagem pode ser o cenário utilizado nos quadrinhos
que reflete e remete ao argumento muito discutido atualmente que é a natureza e, nesse sentido
o autor evidencia a estética da cultura caipira. A presença da igreja, para o estudioso Ribeiro,
é a representação da comunidade solidária com o culto a um santo poderoso, “cuja capela pode
223
idem, ibidem, p. 380
OLIVEIRA, Geisa F. Cultura em Quadrinhos Reflexões sobre as histórias em quadrinhos na perspectiva dos
Estudos Culturais. In: Alceu. Revista de Comunicação. Cultura e Política- v 4 nº 8 - jan/jun.2004. p. 88.
224
ser o orgulho local pela freqüência com que se promovem missas, festas, leilões,e casamento,
sempre seguidos de bailes 225” . Dessa forma, o cenário da história em quadrinhos, por meio da
igreja, representa sua inserção na coletividade regional como força disciplinadora e moral. A
figura (71) é uma tela pintada a óleo que demonstra a simplicidade de um casamento na roça
que protagoniza a força do culto da igreja.
Fig.71 - Tela a óleo- Um casamento na roça.226
A moradia da família Bento (sítio), fica próxima a um vilarejo e, de acordo com
estudos de Ribeiro, essa maneira de “morar” se configura como a forma que “a população
caipira preenche suas condições mínimas de sobrevivências. As condições de sobrevivência
são rudes com nenhum conforto aparente, assim, como comprova a arte, uma tela pintada a
óleo, de Almeida Junior na fig(72) que representa uma cozinha caipira.
225
RIBEIRO, Darci. P. 384
Imagem In: Terra Paulista. histórias/arte/costumes. Manifestações artísticas e celebrações populares no
Estado de São Paulo. CENPEC. Imprensa Oficial. 2004.p.97.
226
Fig.72 - “Cozinha Caipira” pintura a óleo de Almeida Junior -1895227
Dessa forma, as pequenas comunidades condicionam o “caipira” a ter poucas
aspirações, ele sobrevive em ambiente que o faz “parecer desambicioso e imprevidente, [...]”
228
. Nas palavras de Cardoso, o interior é visto como um lugar com ótima qualidade de vida,
belas paisagens, fartura[...].A natureza é bem representada pela arte de Oscar Pereira da Silva
de 1938 com o quadro pintado a óleo “ Caminho da Roça” que apresenta uma singela
paisagem do rural com aspetos de natureza preservada, casas em forma de agrupamento que
demonstra uma união e paz entre os seres humanos.
227
Imagem In: Terra Paulista. histórias/arte/costumes. Manifestações artísticas e celebrações populares no
Estado de São Paulo. CENPEC. Imprensa Oficial. 2004.p.97.
228
idem, ibidem, p. 385
fig -73 Caminho da Roça. Tela à óleo de Oscar Pereira da Silva -1938229
Na cidade, o estresse urbano, a fumaça, os grandes prédios, as vidas como locomotivas do
progresso”230.
O pesquisador Yatsuda In: Bosi (2002), comenta que a oposição de cidade e rural é
apenas a ideologia da modernização decorrente da industrialização. Já o pesquisador
Valdomiro Silveira In: Bosi (2002), relata que o capitalismo desorganiza o universo caipira e
obriga o caboclo a sair de sua economia para vender sua força de trabalho. Bosi (2002) diz que
em 1914, Monteiro Lobato, defensor da modernização, em suas obras: Velha Praga e Urupês,
considerou o caipira “um verdadeiro estorvo”. Porém, na década de 1948, o autor desfaz essa
imagem, dando causa da indolência do caipira as injustiças sociais. Esse mesmo estudioso diz
que
229
Imagem In: Terra Paulista. histórias/arte/costumes. Manifestações artísticas e celebrações populares no
Estado de São Paulo. CENPEC. Imprensa Oficial. 2004.p.
230
CARDOSO, Marcelo Z. Como as histórias em quadrinhos vêem o Brasil: de Agostini a Hugo Pratt.
Dissertação de Mestrado, apresentada na Escola de Comunicação e Artes - USP. 2000, p.113
neste milênio com o avanço das pesquisas sociológicas e
antropológicas conferiram ao caipira o direito de estar entre os seres
humanos [...], mas dotado de consciência, cultura própria [...],
participante do processo social231
Na contemporaneidade, o conceito do núcleo rural se torna mais abrangente e mais
respeitado e os valores agregados demonstram significações dentro de um espaço da cultural
nacional. O estudioso Cirne (2005) diz que o “quadrim para se inserir na cultura brasileira
precisa participar problematicamente nos costumes e coisas do Brasil”
232
. Nos moldes da
formação social do personagem Chico Bento, podemos dizer que, ao defender a natureza e
participar da divulgação de causas sociais , e atualmente, em campanha na defesa do rio São
Francisco, é o símbolo que traduz a idéia perfeita da participação dos costumes do Brasil.
Nesse sentido, foi o personagem escolhido “por ter suas características semelhantes às da
população ribeirinha das margens do Velho Chico em Minas Mello disse considerar Chico
Bento, “o aliado ideal da campanha de educação ambiental” 233.
Maurício de Sousa quando idealizou o personagem, o Brasil já participava dos
processos da globalização. O autor intencionalmente ou não, acreditou no potencial e na força
ideológica das características do sujeito simples. A crença, na verdade, foi a bagagem cultural
apreendida e aproveitada por sua vasta capacidade intelectual e mercadológica que o levou a
usufruir um bem maior que são as nossas raízes. E atualmente esse “menino” resgata do
passado a riqueza do nosso “caldeamento cultural”. Para Ribeiro “o caipira era o produto
residual natural e necessário do latifúndio agro exportador234” e para Bosi a cultura popular
pertence, tradicionalmente, aos extratos mais pobres, o que não impede o fato de seu
aproveitamento pela cultura de massa e pela cultura erudita [...]235
A miscigenação (caldeamento cultural) deu condições para que a cultura popular se
propagasse e fosse divulgada pelos cantos do Brasil pela simplicidade e coragem do povo que
aqui se estabeleceu. No terceiro milênio, dada sua importância e riqueza (da cultura popular) é
que a mídia se apropria de seus recursos para o bem ou não de nossa cultura. Dentro dos
231
BOSI, Alfredo. Cultura Brasileira - temas e situações. 4ª ed. São Paulo: 2002.
CIRNE, Moacy. A escrita dos Quadrinhos. Rio Grande do Norte: Sebo vermelho, 2005.p.35
233
Chico Bento em defesa do Rio São Francisco: disponível em http//. www.brasiloeste.com.br/notícia/373.acesso
em 29 de junho de 2006.
234
RIBEIRO, Darci. Op., cit.,p. 390
235
BOSI, Alfredo. Dialética da Colonização: p. 326.
232
Estudos Culturais existe o estudo para essa apropriação que se denomina de Folkimídia. Para
tanto faremos um breve estudo no próximo item desse trabalho.
5. 2. 1 - A FOLKIMÍDIA E OS QUADRINHOS
O ser humano, desde a remota história de sua civilização, comemora e relembra as
datas festivas sagradas e de agradecimentos. Essas evocações fazem parte dos nossos
calendários, na sociedade contemporânea, como forma de tradição religiosa e festiva. São
essas práticas que sempre fizeram parte dos processos das transformações culturais e religiosas
da sociedade humana e das relações simbólicas entre a realidade e a ficção, dando origem aos
diversos protagonistas e suas performances nos festejos populares. São essas práticas do
passado que chegam à contemporaneidade, datando as diversidades regionais e locais de
significados, referências e desdobramentos culturais e de apropriação de valores simbólicos
que vão construindo novas identidades. Dentro desse processo cultural, as manifestações
populares, já não pertencem apenas aos seus protagonistas da cultura popular. Rosangela
Marçolla (2005) comenta que o popular folclórico abarca o universo das expressões culturais
tradicionais do “povo” presentes em manifestações folclóricas, festas, danças, ritos, crenças,
costumes, objetos, etc.
A partir da década de 1970, com a consolidação da indústria cultural impulsionada
pelos meios de comunicação de massa, os produtos folkmidiáticos se intensificam e ganham
notoriedade no Brasil. Luyten, citado por Marçolla, define o termo folkimídia como sinônimo
de folkcomunicação, ou seja, “[...] o uso tanto de elementos oriundos do folclore pela mídia
como a utilização de elementos da comunicação massiva pelos comunicadores populares” 236.
Nas palavras de Rosangela Marçolla “as culturas elitista e popular perdem aos poucos
as suas fronteiras com a consolidação gradativa e definitiva da cultura de massa. A popular
mantém-se como uma cultura regionalizada. Tanto uma como a outra (a elitista, e a popular)
não perdem a sua essência com o passar do tempo, por serem consistentes e fundamentadas
dentro do conhecimento humano237”.
236
LUYTEN In: MARÇOLLA Rosângela.Histórias reais e notícias de ficção: um olhar folkmidiático sobre o
jornalismo e a literatura infantil. Tese de doutorado apresentada na Universidade Metodista de São Paulo. Curso
de Pós Graduação em Comunicação Social. 2005. p.44.
Nesse contexto, podemos dizer que Maurício de Sousa exerce mediação entre ambas as
culturas (de massa e popular), por meio da apropriação de elementos da cultura brasileira
como manifestação e divulgação da cultura popular para os seus mais diversos interesses.
Esses interesses recaem na produção de suas revistas, no mercado consumidor e na sua
inserção no mundo globalizado. Pela mídia impressa, o “caipira” Chico Bento protagoniza o
processo de apropriação e incorporação das manifestações populares, ao manter, no conceito
do regionalismo, suas crendices e superstições e seu modo de vida. Com a globalização, as
culturas tradicionais são também de interesses dos grupos midiáticos, de turismo, de
entretenimento, das empresas de bebidas, de comidas e de tantas outras organizações sociais,
culturais e econômicas.
A obra de Maurício de Sousa representa um marco na história brasileira com as
histórias em quadrinhos na temática rural em que inaugurou com um estilo pop-regional sua
ficção, porque sincretizou elementos do Brasil rural e do Brasil urbano, e pode, assim, revelar,
por meio de ângulos ficcionais, detalhes próximos do Brasil histórico real.
Podemos dizer que Maurício de Sousa, por meio da ficção, manifesta um tipo de
alegoria do Brasil porque, de certo modo, se trata de uma representação que se aproxima do
cotidiano da zona rural e das pequenas cidades do interior. E isso pôde servir de parâmetros
para outros trabalhos que vieram posteriormente, como exemplo, programas da mídia
televisiva que enfocam o ruralismo e que utiliza os mesmos costumes culturais evidenciados
pelo personagem Chico Bento. Na realidade, os trabalhos, cujas temáticas se voltam para as
regiões rurais do Brasil, têm a característica de captar, ampliar e construir alguns detalhes da
dimensão histórica, muitas vezes, antecipando costumes e comportamentos. A história em
quadrinhos do personagem Chico Bento consegue exprimir a dimensão popular da cultura
regional (caipira), revelando até mesmo as maneiras como estas regiões convivem com as
inovações tecnológicas midiáticas. Dessa forma, podemos observar, na projeção da ficção
dessa mídia impressa, expressões da folkcomunicação. Isto é, ali se inscrevem as formas atuais
da cultura popular, mas já em sua versão de cultura híbrida. É a interação entre o artesanal, o
237
MARÇOLLA, Rosângela. Histórias reais e notícias de ficção: um olhar folkimidiático sobre o jornalismo e a
literatura infantil. Tese de doutorado apresentada na Universidade Metodista de São Paulo - Curso de Pós
Graduação em comunicação Social. 2005,p.45
midiático, o industrial, o tecnológico, configurando uma nova aparência, que podemos traduzir
como expressões de uma nova cultura popular-regional.
Nos quadrinhos de Chico Bento, seu autor evidenciou o Brasil rural, assimilou
linguagens e estilo do mundo globalizado, mas tudo isso misturado com as manifestações
locais, com a expressão mais antiga e tradicional da característica do povo brasileiro: o
“caipira”. Nesse sentido, Maurício de Sousa, traz à tona todo processo de hibridização das
raízes indígena, africana, européia e americana que compõem o “caldeamento cultural” do
Brasil. Na verdade, a representação do regional (caipira) na cultura de massa pode funcionar
como um recorte das arestas da vida social brasileira. O personagem Chico Bento adquiriu
uma dimensão global, espalhando, aos quatro cantos do Brasil, uma pronúncia da linguagem
rural (local) que, se de um lado pareceu estereotipada e “errada”, por outro apareceu de
maneira simples e ingênua, em sua dimensão de cordialidade e generosidade. Podemos dizer
que Maurício de Souza demarcou um estilo original em que o regional se metamorfoseia numa
conjuntura, que entendemos em que o antigo e o novo se fundem, gerando situações
renovadas. O aspecto rural é apresentado nos quadrinhos como um mito, ou como algo que
permanece nas canções, nos usos e costumes nas estruturas da vida cotidiana do brasileiro.
A criação de Maurício de Sousa mantém a fidelidade de seus leitores, como já dito, há
várias décadas, isso é fato que pode ser considerado um argumento sólido de que, em nossas
fantasias, buscamos no tradicional o resgate do passado, da memória. Assim, o Chico Bento,
por meio de seus princípios e valores, se firma como um elo entre o passado e o presente.
5. 2. 2 - O ELO ENTRE O PASSADO E A CONTEMPORANEIDADE: CHICO
BENTO
A nossa mente histórica abarca os processos de tradição e modernidade. Ditos como
extremos, a tradição se manifesta como fator do passado, da memória; a modernidade é o
presente, a contemporaneidade. Essa dicotomia, tradição e modernidade, não é um fator
natural, ela não existiu sempre, mas é resultado da construção e da remodelação histórica.
O passado é sempre revivido e renovado cada vez que é trazido ao presente. Toda vez
que voltamos ao passado, de algum modo, fazemo-lo a partir do presente. Assim, a tradição
pode se caracterizar como uma forma de encontrar no passado um ponto de partida que
explica e justifica a ordem do mundo na contemporaneidade presente, se os ideais tradicionais
deixassem de existir, se fossem completamente substituídos pelos da modernidade, na medida
em que esta se define como ruptura para aquele.
É no sentido de preservação que consideramos o personagem Chico Bento como fiel
representante do passado na construção desse “mundo novo”. O personagem sobrevive à
racionalização do processo de produção, à impessoalidade nas relações, à dominação das elites
que busca moldar o mundo ao seu pensamento, por meio da conquista de novos mercados
pela organização do comércio.
“Tudo é passageiro”: eis o resumo da contemporaneidade. No lugar da segurança, da
coesão social, ela (a contemporaneidade) impõe a insegurança, a crise dos parâmetros, a
desarmonia. Nas palavras de Berman, “o homem moderno vive sob o redemoinho de
permanente mudança e renovação, de luta e contradição, de ambigüidade e angústia
238
.”
Contudo, Chico Bento sobrevive a essa modernidade que se apresenta como um novo alento à
humanidade. Associa-se à ilusão de que os homens caminham em direção à felicidade e à
liberdade. Nesse sentido, as histórias em quadrinhos de Chico Bento resgatam do passado (da
tradição) os valores morais para a modernidade como uma alegoria do passado. O personagem
busca na tradição realizar uma procura e um encontro com o conhecido, o que permite que nos
reconheçamos como pertencentes à mesma origem.
Na sociedade contemporânea, mulheres e homens vivem sob o signo de uma época,
que permeia a transitoriedade, o incerto, a angústia da falta de perspectiva; da insegurança
com o amanhã; a sensação de que perdemos os valores fundamentais que dão coesão à vida
em sociedade; a impotência diante do Estado. Contudo, a história em quadrinhos do Chico
Bento, ao representar o rural, representa o retorno e o apego à tradição. Os interesses e
contradições sociais e individuais dão lugar à conciliação, à harmonia e à simplicidade; são
um resgate para a humanidade.
Na sociedade contemporânea, milhares e milhões são excluídos dos direitos e das
condições básicas de sobrevivência. Esta realidade é apresentada no instante virtual da mídia;
o real é banalizado, transformado em números estatísticos, objeto de estudo e fonte para
angariar recursos financeiros pelos que vivem dos intermináveis projetos sobre os miseráveis..
238
BERMAN, Marshall. Tudo o que é sólido desmancha no ar. São Paulo: Cia das Letras. 1986. P. 15
Neste mundo, a necessidade é irmã do medo e o próximo é inimigo real ou virtual. Como
afirma Galeano:
quem não é prisioneiro da necessidade é prisioneiro do medo: uns não
dormem por causa da ânsia de ter o que não tem, outros não dormem
por causa do pânico de perder o que têm. O mundo ao avesso nos
adestra para ver o próximo como uma ameaça e não como uma
promessa, nos reduz a solidão e nos consola com as drogas químicas e
amigos cibernéticos239.
É esse mundo que o personagem ignora em suas histórias. Ele traz a representação de
um mundo em sentido oposto que resgata do passado a experiência, a distinção entre a
realidade e a sua representação. Chico Bento se apodera do passado (tradição) como uma
forma de sabedoria que se transmite através da observação e da imitação de posturas, atitudes
e das regras. O personagem é preservado na memória do leitor como o mensageiro da paz no
momento em que a sociedade contemporânea apresenta sinais de desgaste e os sujeitos
buscam uma cultura de paz, para fugirem da insegurança causada pela violência cotidiana dos
centros urbanos.
5. 2. 3 - RECONTANDO A HISTÓRIA
O mundo nos surpreende a todo o momento. A rapidez com que as mudanças sociais
estão se processando e alterando nossa vida cotidiana impõe como prioridade o conhecimento.
A repetição e a padronização do “saber” não têm espaço, senão uma diversificação de saberes
com qualidade para que os indivíduos estejam aptos às constantes mudanças impostas pela
globalização.
O cotidiano da contemporaneidade impossibilita a manutenção de qualquer espécie de
tradição que não seja a da ruptura e, mesmo, rejeita o saber do narrador (aquele que sabe
contar). A complexidade das relações da sociedade atual manifestada nos conflitos sociais,
facções criminosas, conflitos religiosos, desigualdades sociais, desestruturação familiar,
turismo sexual, tráfico de crianças e jovens para fins excusos. Ao se discutir a tradição e
239
GALEANO, Eduardo.De pernas para o ar: a escola do mundo ao avesso. Porto Alegre: L&PM, 1999, p.0708.
contemporaneidade, os fatos não podem ser tratados com leviandade e ligeireza dos que
cultivam o assunto por simples gosto pitoresco, por literatice, sem nenhuma disciplina
intelectual ou científica, sem nenhum sentido social profundo dos fatos.
Uma ponte entre o passado, o atual e o futuro, dá-se como continuidade versus
mudanças. A política da humanização é necessária e visa aumentar o grau de coresponsabilidade na produção de saberes como eixo articulador para uma humanização como
mudança de paradigmas, mediação, inclusão e justiça, pois exclusão social gera violência,
conseqüências de violações aos direitos fundamentais do ser humano.
Há necessidade de estratégias de mobilização e articulação social entre a tradição e o
contemporâneo, porque a tensão entre elas promove um encontro de identidades culturais, a
partir da relação entre o ser humano e o espaço que o envolve. Nesse mundo em constantes
transformações onde a reflexidade faz com que cada vez mais se indeterminem os lugares,
outrora definidos e separados pelo positivismo, nada mais urgente do que aprofundar as novas
discussões sobre novos temas, há dados sempre necessários a novas aproximações sobre os
velhos temas num esforço incessante de pensar diferente daquilo que já parece instituído e
consolidado desde sempre. Nesse complexo movimento, a reflexão sobre o passado assume
cada vez mais o seu índice de atualidade findante que é iluminar as várias configurações de
possibilidades para um futuro sempre incerto e por fazer. Sobretudo quando a questão é a
formação do pensamento social e crítico do ser humano (jovens e adultos) frente a tantas
informações advindas das novas culturas impostas pela rapidez tecnológica. Assim, fazem-se
necessárias uma argumentação e uma busca de valores que ora parecem diluídos no tempo
pela modernização dos fatos e que a tradição pode nos fornecer; por isso, abordaremos
algumas, entre vários destaques, das virtudes observadas nos quadrinhos do Chico Bento.
5. 3 - VALORES E POTENCIAL DOS QUADRINHOS DE CHICO BENTO
Todos os exemplos elencados do personagem Chico Bento fazem parte da coletânea:
Um Tema Só – Mônica. A coletânea é composta de cinco revistas publicadas no ano de 2003,
na cidade de São Paulo, pela Editora Globo, com republicações das melhores histórias
editadas por Maurício de Sousa. Não consta, porém, a data de sua publicação. Cada revista
apresenta um tema: aniversários, passeios, fábulas, superestrela, parabéns, superaventuras.
Transcreveremos dos quadrinhos do personagem “Chico Bento”, os valores que são
proporcionados aos leitores contemporâneos por meio das histórias. Isso porque, de um modo
geral, todas as histórias em quadrinhos possuem elementos e mensagens que transcendem ao
mundo mercadológico. A abordagem sobre a linguagem utilizada pelo personagem “Chico
Bento”, os valores morais e culturais que o personagem apresenta são de grande valia para
nossa pesquisa, em se tratando de nosso objeto de estudo.
Herscovici afirma que não é possível falar, objetivamente, em identidade cultural numa
coletividade dividida em classes sociais, seja ela local ou nacional [...]240, embora possamos
dizer que as pessoas não são tão diferentes umas das outras, pois o que as diferenciam são o
regionalismo, o clima. No entanto, o que é mais cristalino entre as pessoas são as diferenças
sociais, ou seja, o abismo entre pobres e ricos. Trazer o personagem Chico Bento para estudo é
demonstrar que a ideologia de igualdade social é possível entre as pessoas. O personagem
representa a sobrevivência de modos e maneiras de agir adquiridos de outras épocas, embora
se confrontem com as mudanças tecnológicas e culturais impostas pela globalização e, mesmo
assim, consegue manter uma identidade única, característica de um ser humano, “ideal”. O que
remete Chico Bento a inserir-se como um elo entre a tradição e modernidade é sua
representação ideológica na sociedade contemporânea. Essa identificação está presente em
alguns aspectos de sua vida como: a presença da família unida e ideal; um genuíno
representante da vida rural; homem cordial; não se preocupa com a “moda”; sua escola é a
tradicional; seus maiores amigos são seus animais de estimação; gosta de receber visitas de
familiares; ressalta o valor que o caipira tem; dança nas festas juninas; não é consumista;
trabalha na roça; preserva a simplicidade; canta moda de viola; está sempre pronto a ajudar as
pessoas que dele necessitem; gosta de pescar.
A identificação do personagem Chico Bento com a contemporaneidade concretiza-se
no aspecto da vida rural: é a conscientização do homem, cuja preocupação começa a se voltar
para a natureza, sendo a vida rural de suma importância, quase uma religião comparada ao
espaço urbano visto como lugar de artifícios. Por outro lado, a vida rural é estigmatizada no
inconsciente coletivo como relacionada ao passado, ao atraso. Maurício destaca esse conflito
ao colocar, de maneira precisa, o confronto entre o rural e o urbano, por meio de fatos, como
a falta de luz elétrica e de saneamento básico na casa de Chico Bento.
240
HERSCOVICI, Alain. Identidade Capixaba. Alguns Questionamentos.Vitória: Escritos de Vitória, 2001. p. 14
Consciente, ou não, o autor chama a atenção para a vida rural por meio do personagem
eleito que é um representante genuíno para concretização de sua pródiga intenção. O estudioso
Guyot reforça esse pensamento ao afirmar: “[...] a história em quadrinhos, como todos os
meios de comunicação de massa, reforça as atitudes preexistentes mais do que determina outra
241
”. Tal fato se faz presente ao apresentarmos as vicissitudes que nortearam (e norteia) a vida
do homem do campo e que podem ser apreendida por meio das histórias em quadrinhos,
como estratégia de divulgação do passado, na forma representativa de um conjunto de atitudes
que demonstra a evolução de nossa força cultural estabelecida na tradição.
As histórias em quadrinhos representam e reforçam as visões desse mundo particular
de épocas passadas e prevêem outras pela criatividade do artista. Vale lembrar que o homem
chegou à Lua por meio dos quadrinhos muito antes de Neil Armstrong. Assim, o personagem
mantém, na memória das gerações, a representação do típico caipira que sobrevive há muitas
décadas em nosso país, e hoje, pela valorização da temática rural é objeto de estudo. O
indivíduo do ‘campo’ que o personagem traz à baila é para demonstrar que o atual Brasil rural
o mantém como fruto da história dos Brasis 242 e se fundamenta nas variantes da cultura
brasileira. O estudioso Ribeiro diz: “A identidade étnica dos brasileiros se explica tanto pela
precocidade da constituição dessa matriz básica de nossa cultura tradicional como por seu
vigor e flexibilidade”. É por meio dessa aglutinação que se forma o perfil do povo que ajudou
a construir a cultura de nosso país e como afirma Abreu, [...], “o povo é visto, antes de tudo,
como base da nacionalidade, a união das “três raças fundadoras”, constituídas pelo elemento
branco ou português, do africano e resultante de ambos - o mestiço243. As histórias em
quadrinhos do “Chico Bento” reforçam essa ideologia ao representar o “caipira” como
partícipe da sociedade contemporânea que mantém a lavoura como força de manutenção de
sua subsistência. Nas palavras de Ribeiro (2001), a história, na verdade das coisas, se passa
nos quadros locais, como eventos que o povo recorda e a seu modo explica. Assim, o
241
GUYOT, Didier Quella. A História em Quadrinhos. São Paulo: Edições Loyola, 1994. p.72
É a partir das culturas: crioula desenvolvida nos engenhos de açúcar do Nordeste; a cultura caipira da
população desenvolvida pelos mamelucos paulistas na mineração do ouro e mais tarde com as grandes fazendas
de café; pela cultura cabocla das populações da Amazônia nos seringais; da cultura sertaneja que se difunde
através dos currais de bois; pela cultura gaúcha dos pastoreios nas campinas do Sul que se forma a nossa cultura.
IN: RIBEIRO, Darcy. O povo brasileiro. A formação e o sentido do Brasil. 2ª ed. São Paulo: Companhia das
Letras, 2001, p. 272
243
ABREU, Marta. In: FILHO, Morais. Apud: CHALHOUB, Sidney et al. Coleção Histórias do Brasil. A
história Contada. 4.impressão. Botafogo: Nova Fronteira, 1998.p.171.
242
personagem, Chico Bento, é o elemento de intersecção da globalização com o local
reverenciado por Ribeiro entre o passado e o presente.
O caipira, que atualmente vive o processo da globalização, em sua grande maioria,
encontrado em pequenas cidades e vilas do estado de São Paulo apresenta a mesma maneira de
falar, o mesmo “vestir”, reverenciando-se o caipira do passado. Um percentual deles (com
características modernas) já possui carro como um ícone de status social, (embora não seja de
último modelo), possui telefone celular, televisão com antena parabólica. Convém ressaltar
que, embora com sinais de “modernização”, o sujeito rural conserva em seus traços, as marcas
de seus antepassados, notadamente em sua natureza,
no caráter de simplicidade
que
demonstra ao não se envolver em situações inusitadas de riscos para não ter sua integridade
ameaçada. E é dentro desse limite de crenças e da pretensão coletiva que as “coisas”
acontecem.
O personagem Chico Bento, como um mensageiro cultural, demonstra, entre outras
características peculiares, aquela de encantar pessoas de todas as idades, de qualquer região do
país, homens, mulheres e crianças. Dessa forma, quando o leitor ‘acredita’ na sua história,
decorre a certeza de que a ficção faz parte de sua realidade; é o processo de identificação com
o personagem que se aflora. Essa identificação resulta das “brechas” que a leitura deixa para
sua interpretação. O leitor utiliza sua imaginação para preencher esses vazios que o texto
impõe, vazios que serão preenchidos com a sua vivência, seus costumes, suas leituras
anteriores e suas expectativas emocionais. Flory comenta que [...] o processo de comunicação
realiza-se pelo que o texto apresenta ao seu leitor, sobretudo, pelo que se cala, ou pelo que não
se diz, mas deixa subentendido. Dessa forma, o leitor poderá construir o sentido da obra,
através de sua imaginação
244
”. A comunicação do personagem com o leitor se torna
concretizada. Essa identificação remete-se a saudades do passado, a lembranças da infância,
ao despertar pelo gosto da música sertaneja, assistir aos programas rurais da televisão.
Citamos o programa “Caminhos da Roça”, apresentado pela Rede Globo, do qual faz parte o
quadro os “causos de Chico Lorota” que são histórias de pescadores, piadas, que envolvem
situações da roça, comidas do campo e tudo parece ser cópia do “modo” como Chico vive no
campo. “Chico Lorota” tem a mesma “fala” do personagem Chico Bento. Esse programa
apresenta informações rurais da lavoura e da pecuária, destinadas às diversas camadas sociais
244
FLORY, Suely F. Villibor. Artigo: O Leitor e o Labirinto. 2003. p. 17
e culturais brasileiras, que penetram nos lares tanto do sujeito da cidade como do campo. È a
força da ideologia da cultura rural que mantém o curso do programa. Podemos dizer que a
linguagem ‘diferente’ de Chico Bento é utilizada em outras ocasiões como caracterização de
um modo de falar que está presente na nossa cultura.
Essa “cópia” personificada, em nosso entendimento, é a identificação do personagem
com uma cultura anterior maior e que resiste às imposições de várias culturas impostas no
século XXI. De acordo com as idéias de Ribeiro (2001), no período de 1580 a 1640, falavamse em nosso país línguas indígenas, com a linhagem Tupi, regradas pelos jesuítas sob uma
língua franca. Da miscigenação do povo brasileiro, surgiu o caipira que herdou a fala cultural
do índio. “Os índios, por exemplo, tinham dificuldades em articular o ‘lh’ o que fazia a
pronúncia não soar como deveria. Por isso, colher se transformou em ‘cuié’ e mulher em
‘muié’”. Assim, constatamos que Chico Bento tem a fala que se traduz numa variação
lingüística dentro da língua portuguesa245. E essa caracterização nos leva a afirmar que Chico
Bento mantém, por meio da linguagem, uma tradição brasileira que foi herdada de uma época.
O personagem prova ter a força de manipulação ideológica no sentido de manter viva sua
presença na linguagem brasileira.
Na história em quadrinhos de Chico Bento, essa mistura de culturas é observada nos
personagens que acompanham o seu “dia-a-dia; no caso, sua mãe e seu pai falam a mesma
“língua”.
245
Comentários feitos pela orientadora Dra. Rosangela Marçolla à pesquisadora, no dia 30 de junho de 2006 na
Universidade de Marília-UNIMAR.
Fig. 74 – A pronúncia dos pais é igual a de Chico Bento246.
No entanto, no quadro abaixo (fig 75), os repórteres que vieram da cidade para registrar ou
filmar a suposta galinha dos ovos de ouro, já possuem um linguajar típico do homem da
cidade; entretanto, convivem harmoniosamente e se entrelaçam em mais de uma linguagem
regional, em um único ambiente. A linguagem dos jornalistas é diferente da linguagem de
Chico Bento mas, de acordo com González (2003), essa forma de falar do repórter “nasce da
condição sociocultural do falante, ou seja do ambiente familiar e da classe social a que
pertence [...]247” .
246
247
Figura IN: SOUSA, Maurício. Coleção Um Tema Só. Fábulas. São Paulo: Globo. 2003. p. 65
GONZÁLES, Lucilene.Op. cit. p. 131
Fig. 75 – Chico Bento e os repórteres vindos da metrópole e a diversidade de
linguagens se encontrando248.
González (2003) diz que a língua falada ou escrita pode se apresentar de uma forma
regida pela norma culta, a que goza de maior prestígio, para ser usada em situações formais e
que se caracteriza como um estilo formal, ou num estilo informal com menor grau de reflexão
intelectual usado nos bate-papos com amigos, em cartas e em outras situações. Assim,
podemos dizer que a maneira como Chico Bento “fala” enquadra-se dentro da norma popular
da língua. Dentro dessa norma popular, há ainda dois tipos de variação que decorrem do fato
de os falantes pertencerem à zona urbana “Minha mulher tá precisando ir ao médico” e à zona
rural “Minha muié ta carecendo ir no dotô”. Para Platão& Fiorini, citados por Gonzáles,
[...] o bom usuário do idioma não é quem usa corretamente as regras
gramaticais, mas é aquele que é capaz de adaptar o nível da linguagem
ao seu interlocutor, ou seja, de usar uma linguagem adequada a cada
situação. Não se pode afirmar, portanto que exista uma linguagem
superior em termos absolutos: a situação concreta de comunicação é
que determina a forma de linguagem mais ou menos eficiente249.
248
249
SOUSA, Maurício. Op. cit. p 63
PLATÃO &FIORIN. IN: González. Lucilene. Op. cit. p.131.
E, nas condições de um bom “comunicador”, Chico Bento já provou que sabe muito
bem como fazê-lo. Sua linguagem, atualmente, é aceita dentro das normas estudadas e se torna
autêntica dentro de nossa realidade brasileira ao se enquadrar como diz González, (2003)
dentro da “norma popular da língua”. No entanto, Oliveira diz que
Chico Bento: passou do registro culto da língua portuguesa (no final
dos anos 70), para um nível de linguagem, digamos, semiculto (no
começo dos anos 1980) e hoje fala o mais escrachado português
caipira do interior de São Paulo. Nada disso impediu que continuasse a
ter o mesmo nome, tivesse os mesmos amigos, usasse as mesmas
roupas, vivesse as mesmas aventuras250.
Para González, “na sociedade brasileira, todos falam Português, porém o uso da língua
portuguesa varia de época em época, de região para região, de classe social para classe social
251
”. O “caipira” que o personagem impõe (sempre impôs) resulta, conforme já afirmamos, da
colaboração dos costumes indígenas, e, fundamentalmente, concretizado pela mistura de
brancos e negros, que participaram efetivamente da formação do povo brasileiro. As
colaborações dessas raças trazem nossa nacionalidade por meio de seus costumes, suas
tradições religiosas e populares. Nas palavras de Abreu In:Moraes Filho “[...] é na intimidade
desse povo inculto, na convivência direta com essa gente que conserva os seus usos
adequados, que melhor se pode estudar a nossa índole, o nosso caráter [...]” 252. A contribuição
dessa miscigenação e a participação efetiva na formação dos nossos costumes, nos remetem
aos formadores da nação brasileira. E o personagem Chico Bento se espelha na história do
Brasil para contar a “sua história regional”, e é, na sua imagem, imposta pela ficção, que ele
cultiva sua ideologia.
O brasileiro com características do personagem está radicado na zona rural e nas
pequenas cidades ou vilas do interior do Brasil, e as raízes da cultura caipira também
subsistem no passado de tantas outras pessoas que se desenraizaram da zona rural e se
modificaram com os costumes da zona urbana. O desenraizamento é visto por Ortiz como uma
250
OLIVEIRA, Fernandes Geisa.Cultura em quadrinhos: Reflexões sobre as histórias em quadrinhos na
perspectiva dos Estudos Culturais. In: ALCEU. Revista de Comunicação e Cultura e Política. V 4 nº 8 p. 88
251
GONZÁLES, Lucilene. Linguagem publicitária: análise e produção. São Paulo:Arte e Ciência, 2003. p.130
252
ABREU, Marta In: FILHO, Morais. Apud: CHALHOUB, Sidney et al. Coleção Histórias do Brasil. A história
Contada. 4.impressão, Botafogo: Nova Fronteira. 1998. p. 173-174.
perda [...], do camponês que deixa o campo para trabalhar na cidade, dos grupos indígenas,
que se afastam de seus antepassados, dos valores regionais, confrontados constantemente por
traços que o transcendem 253 ” e que não se desvinculam dessa cultura regional já agregada ao
seu jeito de ser.
Na verdade, poucos entenderam o nosso caipira como um indivíduo igual a todos
os outros, com sua cultura e sua linguagem. Atualmente, na sociedade globalizada, o indivíduo
do campo adquire outro conceito dos estudiosos, e Bosi confirma essa afirmação ao comentar
que “transferem ao sertanejo, ao homem do interior, aquele que trabalha na terra, o dom de
exprimir o Brasil254”.
5. 3. 1 - AS PEQUENAS VIRTUDES DENOTADAS NOS QUADRINHOS.
Segundo Dohme, (2000) as histórias são meios de transmitir mensagens, conceitos, e
emoções. As ações contidas nas histórias remetem a uma reflexão e fazem as pessoas
adquirirem mais experiência. Histórias são ferramentas importantes para trabalhar alguns
conceitos como caráter, raciocínio, imaginação, criatividade, senso crítico, disciplina. Nas
palavras de Dohme “os valores são fundamentos universais que regem a conduta humana. São
elementos essenciais para viver em constante evolução,[...] em direção a uma vida construtiva,
satisfatória, em harmonia e cooperação com os demais 255 ”.
Dentro do grupo de valores, que Dohme (2000) caracterizou nas histórias, podemos
revelar dentro das histórias em quadrinhos de Maurício de Sousa, quais estão agregados ao
personagem “Chico Bento”. São valores que, como podemos averiguar, estão enraizados no
comportamento do morador do campo, considerado como o sujeito caipira que representa a
cultura iletrada de nossa sociedade contemporânea, cultura vivida pelas classes menos
favorecidas que, ao mesmo tempo, pode ser vista como detentora de riquezas e recursos
poéticos que brotam da simplicidade e da autenticidade.
Sempre ouvimos dizer que a virtude só pode ser adquirida pelo exemplo e que não
se aprende em livros. É uma força que age, sobretudo no, indivíduo quando procura agir
253
ORTIZ, Renato.Globalização e Regionalização das Comunicações. São Paulo: Usp- EDUC, 1999. p.59
SODRÉ, Nelson W. História da Literatura Brasileira. apud BOSI, Alfredo.Cultura Brasileira –Temas e
Situações. 4ª ed. São Paulo: Ática. 2002. p.108
255
DOHME, Vânia D’Ângelo. Técnicas de contar histórias. 9ª ed. São Paulo: Informal . 2000. p. 22.
254
humanamente. Sponville cita os gregos, ao dizer que “virtude de um ser é o que constitui seu
valor [...] sua excelência própria” 256.
Para outra compreensão do termo valor, buscamos no dicionário da Língua
Portuguesa Houaiss o significado da palavra e obtivemos a seguinte definição: “conjunto de
princípios ou normas que, por corporificar um ideal de perfeição ou plenitude moral, deve ser
buscado pelos seres humanos.”257. Destacaremos alguns mais significativos e atuantes nos
quadrinhos de Chico Bento que podem qualificar o sujeito caipira, tais como: simplicidade ,
coragem, humildade e o amor.
A simplicidade é a característica que se manifesta tanto no personagem Chico
Bento como no caipira. Ambos demonstram a autenticidade de comportamentos que os leva a
perceber que são personagens semelhantes. São os que são, porque se bastam para si mesmos,
não necessitam de discursos ou de outros recursos para se tornarem “grandes”. Por serem
simples, vivem independentes de glória. A simplicidade que os qualifica é a própria existência
que de nada precisa para tornar o real mais perfeito. É na simplicidade do real que o
personagem constitui sua personalidade; e é na espontaneidade que busca sua consciência.
Sponville diz - “assim é o simples: um indivíduo real, reduzido à sua expressão mais simples
[...] é a mais leve das virtudes, a mais transparente e a mais rara.” 258. Devemos entender que a
simplicidade que atinge
o indivíduo caipira e o personagem não tem a conotação de
“simplório259” .
Chico Bento preserva pela sua identidade o poder de se manter no conceito do
público leitor. Esse “prodígio menino” faz de seu presente sua eternidade para sua satisfação.
Nada busca porque na plenitude de sua vida parece não querer nada, não apresenta supostas
necessidades que atingem o individuo na atual sociedade do consumo. Pela simplicidade traz
para estudo o sujeito que representa o ser humano rural como na atual sociedade que enfrenta
diariamente a violência moral e social. Como ser de papel - tem atitudes e modos de se
256
SPONVILLE, André Comte. Pequeno Tratado das Grandes Virtudes.1ª.ed.Tradução. Eduardo Brandão. São
Paulo: Martins Fontes, 2004, p. 8.
257
HOUAISS, Antonio et al. Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa: Rio de Janeiro: Objetiva. 2001. 1ª
edição, p.2825
258
SPONVILLE, André Comte. Op. cit., p.163.
259
Por simplório destacamos do dicionário a seguinte definição: que ou aquele que é muito crédulo; tolo;
ingênuo. In: HOUAISS, Antonio et al. Dicionário de: Língua Portuguesa: 1ª ed. Rio de Janeiro: Objetiva. 2001.
p. 2575 e por crédulo: que ou aquele que crê com facilidade em qualquer pessoa ou coisa, que ou o que é
destituído de malícia. Idem., ibidem., p. 864.
apresentar, como qualquer indivíduo da sociedade contemporânea, mas não vê nisso matéria
para comentários e nem objeções. Chico Bento, por meio da simplicidade - como virtude - vai
além de sua consciência e de seu pensamento; é pelo seu desprendimento de qualquer objeto
de consumo e de si mesmo que o personagem “escreve” sua liberdade.
È nessa simplicidade que as ciências se eternizam: O que torna um modelo ou uma
teoria mais aceita que os outros? É sua simplicidade e sua capacidade de explicar melhor ou
mais fenômenos; ou seja, os cientistas costumam privilegiar e apostar na simplicidade do real,
bem como do bom senso, da clareza do pensamento. Assim, também podemos dizer que
Chico Bento e o indivíduo caipira se identificam pela simplicidade e, nesse sentido, o mundo
rural é o universo de ambos e isso basta ao lado da natureza que é um bem maior. Silveira diz
que [...] esses atos simples tornam os homens simples; e como é difícil ser simples !260
É normal encontrarmos nas histórias em quadrinhos a coragem dos “heróis”. Sem
dúvidas, podemos afirmar que a coragem é uma virtude universalmente admirada. Essa
representação pode ser observada nos indivíduos, nas sociedades, em todas as épocas. Em
qualquer história em quadrinhos ou na vida real, a covardia (o oposto da coragem) é
desprezada e a coragem (bravura) é ressaltada. Pela ambivalência da palavra, a coragem pode
servir para o bem assim como para o mal. Como estamos falando de histórias em quadrinhos e
na ficção, o bem sempre vence o mal: a coragem continua eticamente valorizada.
Chico Bento demonstra coragem do ponto de vista moral porque se põe, pouco ou
muito, a serviço de outras pessoas ou de uma causa generosa. Em situações inusitadas,
também demonstra sua coragem quando, ao pintar o ovo de amarelo para dar a impressão de
ouro, teve que administrar todo um plano de negócios até colocá-lo em execução.
260
SIlVEIRA, Nise. Jung Vida e Obra. 13.ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra.1994, p. 25.
fig 76 - Chico Bento e o “ovo de ouro”
Podemos dizer que a coragem do personagem não é ausência do medo, é a
capacidade de enfrentá-lo, de dominá-lo o que se supõe que ela (coragem) existe ou deveria
existir. Chico Bento mostra em sua conduta pessoal que a coragem faz parte de sua
personalidade ao tomar providências para salvar a sua amiga de estimação (a galinha). Sua
atitude, no caso, transformou-se em virtude a serviço de outrem e de uma causa generosa,
demonstrou decisão e coragem. Assim, sempre se comportou o caipira ligado à vontade, muito
mais do que a esperança. Da mesma forma, sempre se encorajou frente aos tropeços que
enfrentou ao longo da história: chamado de “piolho da terra” por Monteiro Lobato261, por
Romeiro “de caipira, matuto, tabaréu, mandioca e outros congêneres que são expressões de
menosprezo [...]262” e consideradas entraves para a ideologia do desenvolvimento industrial.
No entanto Bosi (2002) comenta que os caipiras, os matutos são símbolos de resistência: do
campo, da industrialização; e vistos como portadores de todos os valores referentes à terra.
261
LOBATO, Monteiro. Urupês. São Paulo: Brasiliense, 1993. p. 140
ROMERO, Sílvio.Apud: Bosi Alfredo. Cultura Brasileira -Temas e Situações. 4ª ed. São Paulo: Ática, 2002.
p. 103
262
Sponville comenta que a coragem nada mais é que a vontade mais determinada e, diante do
perigo ou do sofrimento, mais necessária263”.
Dentro de pequenos valores destacados nos quadrinhos a humildade, e a falta de
ambição são fatores recorrentes do personagem. Na atual sociedade, diante da valorização dos
bens materiais, do consumismo, do “vale quanto pesa”, onde o nível social representa um forte
cartão de visitas, ainda neste meio, encontram-se pessoas desprovidas dessa frenética busca
por objetos e bens móveis e imóveis. Sobrevivem mais voltados para o dia-a-dia, encontrando
felicidade e paz com o básico para a sobrevivência. Não fazem projeções em longo prazo,
vivenciando um dia após o outro e contrariando assim o conceito geral atual do que é
importante para a felicidade. Consideramos esse pressuposto como um fragmento do Chico
Bento, que não faz projeções para o futuro, vive o hoje, e com a sensação de que o melhor
sistema é sua maneira de contemplar a vida.
No caipira, a falta de ambição pode ser decorrente das intempéries a que foi submetido
ao longo de sua existência. Sua cultura se estabeleceu numa economia de pobreza, e foi fixado
no campo sob valores de núcleos dominantes que dissolveram suas expectativas de progresso
e o levaram a ser uma pessoa de pouca visão ou de pouca ambição. Colocado à margem do
sistema social, defronta-se com as dificuldades decorrentes. Ribeiro afirma que ele sobreviveu
amparado por um senhorio que [...] para isso se fará compadre, ou foreiro, ou sequaz, ou
eleitor - geralmente tudo isto -, de quem lhe possa assegurar proteção indispensável264.
Os caipiras se firmaram vivendo isolados ou em pequenos bairros e contavam para sua
proteção com os “compadres”, a família e os membros de seu grupo com condições mínimas
de sobrevivência. Tais agrupamentos são considerados bairros rurais e foram definidos por
Melo e Souza como “grupos de convívio unificados pela base territorial em que assentam,
pelo sentimento de localidade que os identifica [...]” 265.
Na seqüência dos valores dos quadrinhos, podemos destacar um dos mais
significativos: o amor. A temática do amor é comum a quase todos os filósofos gregos,
entendida como um princípio que governa a união dos elementos naturais e como o princípio
263
SPONVILLE, André Comte. Pequeno Tratado das Grandes Virtudes.1.ed.Tradução. Eduardo Brandão. São
Paulo: Martins Fontes, 2004.
264
RIBEIRO, Darcy. Op., cit., p. 387.
265
SOUSA, Melo e. apud. RIBEIRO, Darcy. Op. cit. 384
de relação entre os seres humanos. O dicionário da Língua Portuguesa Houaiss traz as
seguintes definições para a palavra amor; nos referidos itens:
2- forma de interação psicológica ou psicobiológica entre pessoas, seja
por afinidade imante, seja por formalidade social. 2.1- forte afeição por
outra pessoa nascida de laços de consangüinidades ou de relações
sociais. 4- pessoa ou a coisa amada ou apreciada. 5.4- sentimento de
caridade, de compaixão de uma criatura por outra. 8- demonstração de
zelo e fidelidade266.
Ainda, a palavra amor (do latim amore), pode ser traduzida como “afeição”;
“compaixão”, ou , ser interpretada como: querer bem , conquista, satisfação, atração.
O conceito mais popular de amor envolve, de um modo geral, a formação de um
vínculo emocional com alguém, ou com algum objeto que seja capaz de receber esse
comportamento e alimentar as estimulações sensoriais e psicológicas para a sua motivação.
Ainda assim, são muitas as tentativas de conceituar e classificar a palavra amor. Fala-se do
amor das mais diversas formas: amor físico, amor materno, amor platônico, amor à vida. É o
tipo de amor que tem relação com o caráter da própria pessoa e a motiva a amar (no sentido de
querer bem e agir em prol).
Seguindo a trilha das virtudes delineadas por Chico Bento, o amor, no sentido de
“gostar muito” é recorrente em suas histórias em quadrinhos. O personagem demonstra seu
apreço à natureza, à família, aos animais e aos amigos. Tal fato é verificado no quadro abaixo
na fig (76) que se refere a situação em que é encontrado o “príncipe” e levado para a casa de
Chico Bento. O personagem demonstra amor ao próximo ao praticar os seus “deveres” de
cidadão que se configuraram em sua hospitalidade e de sua família ao acolherem o suposto
“príncipe” que estava perdido na mata.
Essa demonstração de dedicação do personagem é a amizade, a dos homens virtuosos,
os que desejam o bem a seus amigos por amor a eles, o que faz deles nas palavras de
Aristóteles citado por Sponville “amigos por excelência 267” .
266
HOUAISS, Antonio et al. Dicionário de: Língua Portuguesa: 1ed. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001, p.
SPONVILLE, André Comte. Pequeno Tratado das Grandes Virtudes.1ª.ed.Tradução. Eduardo Brandão. São
Paulo: Martins Fontes. 2004. p.274.
267
Nos estudos de Platão o amor é a força que impulsiona o ser humano a elevar-se ao
mundo ideal, onde residem a verdade, o bem e a beleza. É esse mundo, que o personagem
mostra aos leitores em suas histórias em quadrinhos. Por meio desses ensinamentos, os
quadrinhos de Chico Bento podem transmitir o que é perfeito, eterno e imutável para a
sociedade contemporânea que vive sob o signo da incerteza e da violência. É na esteira das
virtudes simbolizadas pelo personagem que se traduz a sua fiel concretização na opinião de
seus leitores.
Na fig (77) o “príncipe” fica perplexo com a simplicidade da moradia da família Bento,
o personagem demonstra uma superioridade de “ser” quando se justifica “casa di cabocro é
igual coração di mãe”. É o arquétipo da mãe que reforça sua ideologia e busca nos signos de
representação a preservação da vida do príncipe. Foi em nome do “amor” que o personagem
se aproximou de seu semelhante, e aceitou incondicionalmente o fato de ser responsável pelo
outro. Fig (77).
Fig.77 -Chico Bento e seu amigo “ príncipe”.268
268
SOUSA, Maurício de. Op., cit. Fábulas, p. 137
O estudioso Emmanuel Mounier diz que “a vida em sociedade é uma permanente
guerrilha. E onde a hostilidade cessa, começa a indiferença. Os caminhos da camaradagem, da
amizade, ou do amor parecem perdidos nos imensos revezes da fronteira humana”
269
. No
entanto, Chico Bento remete a outro conceito que idealiza o mundo melhor nos aspectos das
relações humanas. A atitude de idealização se faz presente como demonstra a figura (78) no
instante em que Chico Bento recebe seu primo recém-chegado da cidade que vem passar férias
no campo. Dá demonstração de amizade e amor ao levar seu primo para divertir-se e conhecer
as “delícias” da natureza nas formas de nadar no riacho, pescar e apanhar goiabas. Chico
Bento, por meio desses atos simples mas virtuosos, demonstra capacidade de acolhimento no
esforço de um ato gratuito sem o desejo de uma recompensa.
269
MOUNIER, Emmanuel. O Personalismo.Tradução de João Bénard da Costa. São Paulo: Martins Fonte.1964,
p.59.
Fig. 78 - Chico Bento e seu primo da cidade270
Saber conviver significa também saber discernir aqueles que são importantes para o
equilibrado desenvolvimento da nossa personalidade e experiência: não por simples interesses
egoístas, mas para estarmos aptos a equilibrar outros.
270
SOUSA, Maurício de. Op., cit. Passeios, p. 17 .
Fig 79 -Chico Bento e seus pais
Na seqüência de atos virtuosos, Chico Bento, no quadro na fig (80) demonstra ser fiel
à sua galinha ao demonstrar sua amizade, por evitar que sua “amiga do peito” se
transformasse num prato da culinária.
Fig - 80- Chico Bento com sua “amiga” 271
Tratou-a como um sujeito, como ser presente, dirigiu-se a ela como se fosse um ser
semelhante a si. Vê na galinha um ser que faz parte do cotidiano e de sua família e coloca sua
“amiga do peito” numa condição privilegiada de consideração e respeito, e como diz Mounier:
271
SOUSA, Maurício de. Op., cit. Fábulas, p. 61.
Chico Bento “[...] quer a sua realização como pessoa, como liberdade, quaisquer que sejam
seus dons ou defeitos [...].”272 Essa demonstração é o reconhecimento do outro. Colocar em
questão as próprias idéias, sem medo, é aprender cada vez mais e confrontar-se com a
realidade da outra pessoa é conhecê-la, é amá-la. É diante dessa posição que podemos provar a
qualidade de nosso eu, embora Mounier afirme que “o mundo dos outros não é um jardim de
delícias”, mas “[...] o amor é uma relação intensa entre duas pessoas, isto é, dois agentes
humanos livres. E o mútuo reconhecimento da liberdade própria e da do outro é não somente
sua condição necessária como também sua condição suficiente” 273.
272
273
MOUNIER, Emmanuel. Op. Cit., 68
idem., ibidem., p.196
CONSIDERAÇÕES FINAIS
As histórias em quadrinhos surgiram no mesmo período histórico do aparecimento do
cinema, do raio-x e do telégrafo sem fio. Essa nova forma de comunicação se tornou um
gênero característico do século XX. Configuradas com narrativas seqüenciais, em geral no
sentido horizontal e, normalmente, acompanhadas de textos curtos de diálogos e algumas
descrições da situação apresentadas no interior dos balões.
Difundidos em revistas e jornais, os quadrinhos se tornaram um dos mais importantes
veículos de comunicação de massa e criaram uma linguagem própria, com uma série de signos
inovadores, em grande parte incorporada, posteriormente, pelo cinema, pela televisão e pela
publicidade.
As tiras de jornais e as revistas em quadrinhos tornaram-se inquestionavelmente o
maior e mais influente campo iconográfico da história, com milhões de ilustrações produzidas
desde 1900. Essa produção certamente representa a mitologia gráfica dominante do século
XX. Nem mesmo o cinema e a televisão podem vangloriar-se de ter conseguido atingir a
grande massa da humanidade, como os quadrinhos.
Particularizando os quadrinhos no âmbito do desenvolvimento da criação de Maurício
de Sousa por meio de seu personagem Chico Bento, podemos dizer que esse autor não
pasteuriza conteúdos e não esconde individualidades locais e regionais. Em sentido contrário,
em tese, o que destacamos em nosso estudo é que as histórias em quadrinhos quanto mais
universais forem as suas problemáticas tratadas, maiores as chances de seus produtos
atingirem amplo setor da população. Dessa forma, é natural que esses veículos evitem temas
polêmicos ou direcionem de maneira particularizada à realidade que só diz respeito a grupos
sociais muito específicos. Contradizendo esse argumento, o personagem Chico Bento, garoto
caipira, divulga a realidade da população rural brasileira no sentido de enfocar as questões
específicas de uma cultura que faz parte da sociedade brasileira. Contudo, com a globalização,
questiona-se o desenvolvimento da área rural no sentido de modernização. Em nosso estudo,
observamos que, embora a modernização de técnicas de trabalho e de convivência pessoal se
faça presente em numerosos núcleos rurais mais próximos da zona urbana, o sentimento e a
ideologia do indivíduo caipira se mantêm enraizados na sua forma de vida como: preservar a
natureza, cuidar de animais, manter os amigos próximos a seu convívio e valorizar sua
identidade cultural. Nesse sentido, a história em quadrinhos do Chico Bento permanece há
mais de meio século no gosto da criança e do adulto. Essa preferência pode ser atribuída à
manifestação artística, que é visível na qualidade das cores, das imagens e conteúdo e a uma
comunicação vinculada a uma realidade do campo em que foi criada. Embora as histórias em
quadrinhos sejam produto industrial, podemos dizer que a influência da sociedade interfere na
criação do autor (ou autores) para a concretização da obra.
Convém lembrar que a obra de Ferdinando (L’il Abner) de Al Capp originou-se de
uma realidade rural norte-americana, calcada no ideário desse povo. Maurício de Sousa foi um
admirador de Al Capp e sempre conceituou bem sua obra. Tanto Al Capp como Maurício de
Sousa buscam difundir uma cultura rural e seus modos de vida para o restante do mundo,
utilizando-se das histórias em quadrinhos como elemento disseminador de ideologia.
Na linha de pensamento entre os extremos de rural e urbano, podemos dizer que o
conceito de rural como um “atraso” e o de urbano como referência a ser alcançada são um
mito que vem se desfazendo. Atualmente, as pessoas que residem nos grandes centros urbanos
procuram a tranqüilidade e o sossego da zona rural, seja em forma de diversão ou mesmo para
estabelecer moradia; ou no intuito de fugir da falta de segurança.
Nesse contexto, a diferença mais predominante entre os seres humanos é a distância
social entre as pessoas. Esse abismo para os governantes soa como inexistente, e, hoje, a
pobreza é vista como fruto da ineficiência e não da injustiça social. Por outro lado, a
globalização nos remete ao mundo mediatizado por uma dimensão virtual que liga diretamente
o local com o global. Dessa forma, a globalização pode ser fator da diluição de estruturas
locais que formam a riqueza da história nacional. No entanto, em nossa pesquisa, pudemos
notar que antigos padrões de vida dos habitantes da zona rural tornaram-se superados para o
próprio homem da terra, o que induz à busca de novas soluções que permitam a sua inserção
na modernidade sem perder o vínculo à terra. Assim, o indivíduo do campo recria as práticas e
tradições rurais e adota alguns valores e padrões de consumo urbanos no campo. Esse fato já é
assunto discutido em alguns países sobre as possibilidades de desenvolvimento para o rural
que se apóia em experiências recentes encontradas em países como a França e Estados Unidos,
onde se observa o renascimento e a revalorização do campo com a instalação neo-rural (novos
agricultores de origem urbana, profissionais liberais terceirizados, pessoas ligadas ao setor de
serviços).
O personagem Chico Bento representa a trajetória desse homem trabalhador rural que
experimenta uma diversidade de condições de vida que vai tecendo uma teia de relações entre
a cidade e o campo para assegurar a sua sobrevivência na contemporaneidade. Nesse
movimento, podemos notar tanto a recriação de práticas e tradições rurais em espaços
liminares nas periferias das cidades, quanto a adoção de valores e padrões de consumo
urbanos no campo. O homem e a mulher do núcleo rural vêm se fazendo muito marcante nos
cenários socioeconômico e literário típicos do Brasil, até por causa do linguajar próprio, seu
modo de vida e suas características.
Chico Bento, personagem que é o objetivo maior de nossa pesquisa, embora seja como
Jeca Tatu representante do homem do povo no seu agir através das histórias em quadrinhos,
não se identifica com a criação de Monteiro Lobato, já que é mais evoluído e não representa o
“atraso”. É um representante do universo rural, mas de maneira inteligente, onde vive as
tradições, o folclore, com inocência e simplicidade. Não é Pedro Malasartes, Chico Bento não
é trapaceiro.
Mais uma vez afirmamos: personifica a bondade, a simplicidade do homem do campo,
que são características que o identificam. Chico Bento não é para ser imitado na plenitude do
seu agir, como em sua linguagem que dominada pelo tom coloquial, foge aos parâmetros do
falar culto, mas reconhecido como digno representante do espaço rural, cujo proceder leva ao
conhecimento da história do campo quanto ao seu passado, bem como ao que hoje acontece.
O personagem traz um pensar que destrincha os problemas sociais aos olhos de quem
está de lado, seja no ambiente físico, seja na leitura. Na literatura, o registro do homem do
campo é visto como um recorte de originalidade. Assim, quando vemos a travessia que
Guimarães Rosa traça no Grande Sertão: Veredas, o Liso de Sussuarão que “concebia
silêncio”274 nos transportamos para história e sentimos as angústias, vividas, por dentro e por
fora, de quem atravessa aquele deserto.
Temos que admitir que tanto o homem sertanejo como o homem caipira são tipos que
apresentam semelhanças e diferenças. Para Vicentini (1997) o sertanejo é tido como um
homem forte, em que o meio o difere daquele. O sertão molda o sujeito para uma luta
constante, diária e que precisa se fazer forte para resistir às dificuldades que a seca oferece. O
caipira é caricaturizado como mais ‘lento’ e é “ apanhado nas brenhas e grotas, à beira dos
rios, com aparente preguiça e ignorante, na figura síntese de Jeca-Tatu de Monteiro Lobato275.
Em contrapartida, na narração, que também pode-se dizer síntese, o “ sertanejo de Euclides da
Cunha fôra um forte, bem apanhado por ele no interior do sertão baiano, como “rocha viva da
nacionalidade”276. Porém, ambos carregam a etiqueta do atraso em relação à industrialização
das cidades, o que recai sobre o modo de vida. E, aqui, esse aspecto é abordado positivamente,
pois são esses aspectos ruralistas que são importantes na literatura brasileira, nessa
perspectiva.
Ainda, em Grandes Sertão: Veredas, Riobaldo lembra no que matuta o pensar do
caipira. Esse personagem conta sua história a um viajante e levanta, a todo o momento, na
274
ROSA, Guimarães João. Op., cit., p. 67
275
VICENTINI, Albertina. O regionalismo de Hugo de Carvalho Ramos. Goiânia: UFG, 1997. p.37
VICENTINI, Albertina. Op., cit.,. p.37
276
narrativa, questões sobre o homem, o mundo e a vida. Essas suas experiências, também falam
de sentimentos, como: “Por esses longes todos eu passei, com pessoa minha no meu lado, a
gente se querendo bem. Diz-se que tem saudades de idéia e saudade de coração” 277.
Quando se observa o sujeito ruralista, nota-se que ele carrega uma bagagem de
guardados preciosos depositados ao longo da vida como se ali residisse toda a sua riqueza e
sua alma. Isso porque à medida que ele escuta e vivencia os casos, ele reconta e observa
lições, trejeitos. Os poetas e escritores registram esse homem rural na forma de personagens
que não deixam a cultura morrer. Dessa maneira, Cora Coralina diz que “ alguém deve rever,
escrever, e assinar os autos do passado antes que o tempo passe tudo a limpo” 278. No poema
“Caminhos dos Morros”, Cora Coralina revela modos típicos do homem rural caipira na figura
de Preto velho “[...] Preto velho calado, mascando seu fumo. Preto velho fechado, cuspindo de
banda. Preto velho enleado na sua ronha[...]279. Essa sonoridade na poética nos remete ao
silêncio de matuto que é próprio do indivíduo caipira. E, quando personagem Preto velho diz:
“ Deus dá para o tamanho da precisão”280, podemos perceber a não necessidade de acumular
bens e capital, algo ligado à religião e à cultura. É assim, que nosso estudo ressalta a presença
do indivíduo caipira ou rural, com toda sua complexidade e sua contradição, ricamente
presente nos causos, nas cantigas, nas histórias e nos achares de quem viveu ou ouviu e
reconta essa trajetória. Esse sujeito é uma herança que abriga a cultura que o Brasil veio
tecendo desde a mestiçagem do negro-índio-europeu até a massa formadora de nossa povo e,
portanto, um ser provido de guardados culturais que contribuirão para as futuras gerações.
O nosso personagem Chico Bento abarca do homem rural seu jeito sabido, seu ar
sossegado, outra vezes forte, lutador, que ora pode nadar no rio e pescar com respeito e
mansidão, ora sem se rebelar e sem se mostrar genuinamente valente.
277
ROSA, Guimarães, João. Grande Sertão:Veredas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001, p. 43
CORALINA, Cora. Poemas dos becos de Goiás e estórias mais. São Paulo: Círculo do livro. s/d., p. 09
279
idem., ibidem., p.80
280
idem., ibidem.,p. 80
278
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