Link para o texto - Grupo de Estudos História da Educação e Religião

Transcrição

Link para o texto - Grupo de Estudos História da Educação e Religião
1
UNIVERSIDADE METODISTA DE SÃO PAULO
FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS DA RELIGIÃO
Um estudo da autoridade feminina e da
dignidade dos filisteus à luz de Gênesis 20,1-18
Por
Maria Aparecida Corrêa Custódio
Orientador: Prof. Dr. Milton Schwantes
Dissertação de Mestrado apresentada
em cumprimento parcial às exigências do
Curso de Pós-Graduação em Ciências da
Religião, para obtenção do grau de Mestre.
São Bernardo do Campo
2001
2
AGRADECIMENTOS
Para Milton Schwantes pelo acompanhamento e incentivo. Para Ricardo, Aninha,
Mercedes e Sabina pela colaboração e amizade.
Para CAPES e ADVENIAT que me possibilitaram financeiramente este curso através de
bolsa de estudos.
3
SUMÁRIO
Sinopse
Abstract
INTRODUÇÃO
07
CAPÍTULO I: RETRATOS DE SARA
11
1.1. Retratos de Sara em Gênesis 12-25
14
1.2. Retratos de Sara em Gênesis 16 e 21,8-21
24
1.3. Retratos de Sara em Gênesis 12,10-20
37
1.4. Retratos de Sara em Gênesis 20,1-18
53
1.5. Considerações finais
64
CAPÍTULO II: ESTUDO EXEGÉTICO DE GÊNESIS 20,1-18
70
2.1. Uma narrativa cheia de arte
71
2.1.1. Tradução linear do texto hebraico
71
2.1.2. A arte da narrativa
74
2.2. Uma arte cheia de encantos
75
2.2.1. A arte do Pentateuco
75
2.2.2. Um estudo do bloco literário de Gênesis 11,27 a 25,18
77
2.2.3. Um estudo de Gênesis 19 e 21
83
2.2.4. Histórias parecidas
86
4
2.3. Os encantos de Gênesis 20,1-18
90
2.3.1. Itinerário e conflito à vista
92
2.3.2. Elohim defende a mulher
99
2.3.3. Solidariedade de mulher
108
2.3.4. Dignidade de filisteu e de mulher
113
2.3.5. Elohim e Iahweh em defesa do útero
116
2.3.6. Estilo e gênero literário
119
2.3.7. Processos de construção, composição e elaboração do texto
122
2.4. Considerações finais
126
CAPÍTULO III. UMA LEITURA DE GÊNERO E DIFERENÇA
127
3.1. Disputa de poder entre homens
130
3.2. Poder de mulher e de homem
132
3.3. Poder desarticulado das mulheres
135
3.4. Teologia da solidariedade
136
3.5. Teologia da acolhida ao diferente
139
3.6. Teologia da amizade
141
3.7. Considerações finais
142
CONCLUSÃO
144
BIBLIOGRAFIA
152
ANEXO: GÊNERO E DIFERENÇA NO COTIDIANO
5
Custódio, Maria Aparecida Corrêa. Um estudo da autoridade feminina e da dignidade dos
filisteus à luz de Gênesis 20,1-18. Instituto Metodista de Ensino Superior, São Bernardo
do Campo, 2001.
SINOPSE
A maioria das obras da leitura bíblica latino-americana sobre Gênesis 20,1-18, nestes
últimos anos, salienta o conflito básico da narrativa: uma mulher é capturada para o harém
do rei com o consentimento de seu marido. Ela é uma vítima, dominada pelo poder
masculino do marido e do rei. Em meio a esse drama, Deus se posiciona a favor da mulher
e reverte o rumo da história. Sugerimos ler Gênesis 20,1-18 a partir de uma abordagem de
gênero, centrada na análise das relações sociais de poder travadas entre os diversos
sujeitos sociais. Nesta ótica, consideramos a relevância especialmente de dois atores
sociais, da mulher e do rei. A nosso ver a mulher não é meramente dominada mas reage e
resiste, participa da cena e diz palavras de dimensão solidária, porque é uma liderança com
autoridade, reconhecida pelos homens e pela comunidade. O rei estrangeiro não é
simplesmente um opressor, mas um governante digno que acolhe a revelação de Deus e
muda sua prática de vida. Apreendemos neste episódio a teologia que a mulher e o rei
desenvolvem a partir de sua experiência vivencial de encontro com Elohim e com Javé. A
discussão destas questões tem particular importância no contexto dos grupos de mulheres,
das comunidades de periferia, dos movimentos sociais e no conjunto da sociedade.
6
Custódio, Maria Aparecida Corrêa. Um estudo da autoridade feminina e da dignidade dos
filisteus à luz de Gênesis 20,1-18. Instituto Metodista de Ensino Superior, São Bernardo
do Campo, 2001.
ABSTRACT
Most of the works of Latin-American biblical reading on Gn 20, 1-18, on these last
years, points out the basic conflict of the narrative: a woman is kidnapped for the
king’s harem with the consent of your husband. She is a victim, dominated by the
masculine power of the husband and of the king. Amid that drama, God is
positioned in favor of the woman and reverts the direction of the history. We
suggested to read Gn 20,1-18 starting from a gender approach, centered in the
analysis of the social relationships of power which is faced among the several
social subjects. In this perspective, we especially consider the relevance of two
social actors, of the woman and of the king. From our point of view, the woman is
not merely dominated but she reacts and resists. She participates in the drama
and says words of solidarity dimension, because she is a leadership with
authority, recognized by the men and the community. The foreign king is not
simply an oppressor, but a worthy ruler that welcomes the revelation of God and
changes his life’s practice. We learn from this episode the theology that the
woman and the king develop starting from their living experiential encounter with
Elohim and with Yahwe. The discussion of these matters has importance in the
context of the women's groups, of the periphery communities, of the social
movements and on the whole of the society.
7
INTRODUÇÃO
Nosso trabalho tem a finalidade de oferecer uma contribuição à reflexão de Gn
20,1-18 a partir de uma leitura de gênero contextualizada na realidade latino-americana.
Pretende ser uma abordagem hermenêutica e não só exegética.
A escolha deste texto foi motivada por dois grandes desafios: primeiro o de estudar
um texto que é pouco trabalhado na bibliografia latino-americana.1 Perguntamos: Gn 20
não é um texto relevante para a pesquisa bíblica? Qual é a sua função no bloco literário de
Gn 11,27-25,18? Por que mantê-lo no silêncio? Como fazer uma leitura de gênero que
analise os papéis sociais dos diferentes sujeitos sociais que aparecem no episódio?
O segundo desafio é o de, a partir desta narrativa que relata questões do cotidiano
de modelos bíblicos como Sara e Abraão, iluminar e enriquecer a reflexão de alguns temas
da atualidade emergentes da leitura bíblica deste texto.
Um dos temas é o das relações sociais de poder e de gênero na comunidade
familial-patriarcal presentes na história de Gn 20. Queremos indagar pela função social da
mulher no quadro narrativo e seu jeito de lidar com as tramas de poder. Vamos questionar
a autoridade da mulher e o seu nível de participação na história: ela tem palavra, tem ação,
tem poder?
1
Veremos no cap.I que só foram selecionados dois textos da bibliografia latino-americana que trabalham de
forma mais densa e detalhada Gn 20,1-18. Tratam-se de “Reflexiones alrededor de dos textos”, de Mery
Cruz Calvo, e “Sara, minha irmã”, de André Chouraqui (traduzido do francês para o nosso idioma). Em
geral, as autoras e autores fazem acenos ao texto de Gn 20,1-18 quando trabalham Gn 12,10-20, pois estes
textos têm histórias parecidas. Mas a grande maioria apenas aproveita as informações de Gn 20,1-18 em
função de sua reflexão sobre Gn 12,10-20.
8
Nossas suspeitas atravessarão todos os capítulos da dissertação: podemos retratar
Sara como uma mulher operante, co-responsável nas decisões do cotidiano de sua
comunidade e solidária na relação mulher-homem?
Propomos a superação de uma imagem de mulher simplesmente dominada,
explorada e apropriada pelos homens. Intentamos questionar uma leitura bíblica que
enxerga apenas as relações de poder na perspectiva de homens dominadores e mulheres
dominadas. Não negamos essa realidade na sociedade patriarcal, mas consideramos que
essa constatação não abarca todas as tramas dos relacionamentos sociais.
Nossa segunda suspeita é a de que os espaços do micro poder asseguram um tipo
alternativo de relações sociais. Neles veremos como se rende o rei opressor. Ele reage
positivamente diante da advertência de Deus, pois resolve o conflito da narrativa e termina
em paz com o casal seminômade.
Por isso, pretendemos interpelar também uma leitura que só critica a postura do rei
e só o vê como opressor. Desejamos ultrapassar essa visão e acompanhar Abimelek na sua
trajetória de apropriação-devolução da mulher. Suspeitamos que este jeito de apresentar o
rei não é uma mera casualidade do texto bíblico. Pode ter uma intenção redacional por
trás.
Os critérios metodológicos e hermenêuticos adotados são, portanto, de uma leitura
bíblica que analisa as relações sociais de poder e de gênero vigentes no conjunto da
perícope. Nelas veremos como se articulam e se transformam as tramas conflitivas que
fazem parte da vida cotidiana da comunidade familial-patriarcal. Esta abordagem é
oriunda da leitura bíblica latino-americana que se fundamenta na perspectiva do resgate da
experiência vivencial e teológica das pessoas excluídas e empobrecidas.
Colocados os princípios e os pressupostos de nossa dissertação, agora
apresentaremos os capítulos trabalhados.
9
No primeiro capítulo, fazemos uma revisão da literatura latino-americana nestes
últimos dez anos (1990-2000), em torno da figura de Sara no bloco literário de Gn 12-25,
sobretudo dos textos que incidem sobre Gn 20. Elencamos os vários retratos tirados de
Sara nas leituras feitas nas quais ela é focalizada em suas múltiplas funções sociais. Nosso
olhar mais agudo esteve voltado para a leitura de Gn 12,10-20, texto com narrativa
parecida com a de nosso cap.20. Questionamos as posições parciais nas quais Sara foi
retratada nesses textos: uma mulher oprimida e injustiçada. Apontamos para a necessidade
de construírmos um novo retrato de Sara através do estudo exegético de Gn 20.
No segundo capítulo, apresentamos a exegese da narrativa a partir de uma tradução
mais literal de Gn 20,1-18 porque entendemos que favorece e ajuda a garantir uma maior
fidelidade ao texto original. O cerne deste segundo capítulo é a reflexão do conteúdo,
coesão e articulação da perícope, e de seu contexto social. Trabalhamos também o estilo e
o gênero literário do texto, classificado como um conto elaborado didaticamente à luz de
sua camada básica proveniente de grupo de mulheres. Destacamos o estudo do bloco
literário de Gn 11,27 a 25,18, contemplado no grande conjunto do Pentateuco. Estudamos
sinteticamente os cap. 19 e 21 de Gênesis, pois estão próximos do cap. 20. Abordamos os
textos paralelos ao nosso (Gn 12,10-20 e 26,1-11) na perspectiva de analisar os papéis
sociais atribuídos às mulheres em cada um deles. Além da exegese do texto, temos como
fio condutor a chave hermenêutica da solidariedade de Deus e da mulher.
No terceiro capítulo propomos uma leitura de gênero e de diferença permeada pela
experiência teológica dos principais sujeitos sociais. A leitura de gênero e de diferença
tem como ponto de partida a análise das relações sociais de poder, entendidas em suas
variantes como: disputa de poder entre homens, poderes de mulher e de homem, poder
desarticulado das mulheres. Desenvolvemos uma reflexão em torno de Deus Elohim e
Javé, presentes e atuantes no cotidiano familial-patriarcal-comunitário. Extraímos três
teologias distintas mas interligadas no conjunto da perícope: teologia da solidariedade,
teologia da acolhida ao diferente e teologia da amizade.
10
No final apresentamos uma conclusão global na qual salientamos e sintetizamos os
aspectos mais relevantes discutidos em cada capítulo.
Em anexo temos um ensaio de leitura de Gn 20 a partir do cotidiano vivido na
favela Heliópolis/SP. Gênero e diferença no cotidiano abordam a temática central de nosso
trabalho, a da autoridade e da diferença. Este anexo reúne depoimento de duas lideranças
comunitárias da favela. Uma das lideranças representa o grupo de mulheres e a outra a
facção da marginalidade. Este ensaio surgiu no contexto desta dissertação, por isso, o
acrescentamos aqui.
11
CAPÍTULO I
RETRATOS
DE
SARA
12
“Sou mulher,
Fui ao sepulcro do meu povo
um dia – e vi. Havia vida a proclamar
Sou mãe... dou a vida.
Sou esposa. Sou Compaixão
Sou mulher, sou dor
Sou Povo. Sou Amor-Anunciação
Meu nome é Libertação.
Sou Paz. Sou Esperança.
Sou Igualdade.
Meu nome é FRATERNIDADE
Sou apenas Maria Miguel.”2
“Permito-me acrescentar:
Nunca mais cala, amiga-irmã.
A todos que encontrares em teu caminho, nas
praças e nas ruas, nos becos e na favela,
no trem e no ônibus,
no sindicato e na fábrica, na comunidade.
Repete-lhes o teu nome FRATERNIDADE
Dize-lhes pela tua presença,
pelo teu trabalho
que de todos,
Tu és irmã.”3
2
Maria Miguel, “Sou mulher”, em Ser mulher – mística, ética, simbologia, praxe, Ana Roy, Editora
Conferência dos Religiosos do Brasil/Edições Loyola, São Paulo, 1990, p.43.
3
Ana Roy, Ser mulher, p.43.
13
“Retratos de Genésia”,4 um documentário produzido pela TV Cultura, iluminou a
escolha do título deste capítulo. Afinal, Sara de Gênesis 20,1-18 nos lembra mulheres
como Genésia, nos últimos seis anos de nossa convivência na favela Heliópolis.
Talvez, o que aproxima essas duas mulheres não são histórias comuns mas um
jeito comum de ser mulher: têm corpos atraentes porque a cabeça está sempre erguida e o
coração sempre pronto e aberto para a solidariedade! Aliás, veja o que faria Genésia se
estivesse no lugar de Sara na situação de Gn 20,1-18...!5
Para trabalharmos este primeiro capítulo, reunimos alguns artigos e algumas obras
da literatura bíblica latino-americana produzida em torno da figura de Sara em Gênesis, a
partir da tradição das histórias de Gênesis 12 a 25.6 Selecionamos as obras literárias da
Bibliografia Latino-Americana de 1978-2000, tanto as que foram produzidas na América
Latina como as que foram traduzidas para o nosso idioma, oriundas de países europeus e
da América do Norte.
Nosso olhar mais agudo se voltou para o desejo de coletar as contribuições
oferecidas a respeito da personagem Sara. Focalizamos, no estudo em questão, os textos
que discorrem ou incidem sobre Gênesis 20, objeto principal de nossa pesquisa.
Nas obras literárias analisadas encontramos vários retratos de Sara, fotografados no
chão da América Latina ou nos gabinetes teológicos, com paisagens cheias de mulheres e
crianças. Ao juntarmos os retratos, formamos um álbum da vida de Sara e de sua família,
especialmente de seu marido Abraão.
Ao lado de Sara, apareceram outras mulheres, sobretudo Agar, sua serva. Não
faltaram as crianças, representadas por Isaac e Ismael. Dado que é comum acontecer em
álbum de família, vimos gente de todo tipo nos retratos, até inimigos como reis e faraós.
4
“Retratos de Genésia” é um documentário da TV Cultura que conta a história de vida e de luta pela moradia
em Heliópolis, travadas por Genésia e sua família (lideranças comunitárias da favela de Heliópolis).
5
Anexo.
6
Bibliografia Bíblica Latino-Americana, Editora Vozes, Petrópolis, 1988-1995, vol.1-8.
14
Nesse álbum de retratos, Sara foi focalizada em várias posições, atraentes e
também repelentes! Algumas autoras
e autores conseguiram focalizar retratos mais
originais!
1.1. Retratos de Sara em Gênesis 12-25
As autoras e autores estudados tiraram vários retratos de Sara através da reflexão
do livro de Gênesis, cujos capítulos foram divididos em blocos literários de acordo com
seus interesses de pesquisa: Gn 12-25; 12-38 e 12-50. Ao tirarem retratos de Sara, essas
autoras e autores nos permitiram também tirar retratos de sua ideologia, fundamentação
teórica e elaboração teológica.
Em nossa pesquisa, selecionamos várias obras significativas que tratam do tema de
Gn 12-25, cujas constatações enriquecem o entendimento da figura de Sara e iluminam a
compreensão de Gn 20,1-18 sobre as quais passaremos a discorrer brevemente. Em geral,
as autoras e os autores trazem, como chave hermenêutica para sua reflexão bíblica, a
situação sócio-política-econômica da América Latina, com exceção de algumas obras.
Carlos Mesters, em seu livro Abraão e Sara,7 faz uma reflexão sobre Gênesis
basicamente a partir da atuação paradigmática dos personagens Sara e Abraão, embora
priorize esse homem e coloque sua mulher em segundo plano. Primeiro, ele apresenta Gn
1-11 na perspectiva de uma história de maldição que estraga a vida humana criada por
Deus. Depois, coloca Abraão (Gn 12,1-3) como aquele que traria de volta a bênção de
Deus.8
Junto com Abraão está Sara que, nessa obra, aparece à sombra de seu marido.
Carlos Mesters centraliza sua reflexão em Abraão. O capítulo que trata da história de
Abraão e Sara, focaliza os acontecimentos vividos pelo casal sob o prisma da vocação de
7
Carlos Mesters, Abraão e Sara, Editora Vozes, Rio de Janeiro, 1978, 130p.
15
Abraão, o começo de sua caminhada, o seu jeito de falar com Deus, as suas andanças e a
sua morte.9
Carlos Mesters parece ter uma visão, em relação a Sara, marcada pela questão da
descendência e da esterilidade. “Para acreditar no futuro do jeito que Deus o prometia,
Abraão tinha que acreditar em si mesmo e em Sara.”10 “Mas como? Como Sara, a esposa
estéril, podia dar à luz esse filho que Deus prometia e que Abraão esperava? Sara não foi
capaz de acreditar em si mesma. Ela também procurou um outro jeito para garantir a
promessa de Deus e encaixá-la dentro de um planejamento humano normal e realista.”11
Carlos Mesters está se referindo ao texto de Gn 16,2.
Nesse livro, o autor se dirige ao homem Genésio, nome provavelmente fictício,
para falar do homem Abraão. Em sua reflexão teológica, desfeminina Sara, comparada ao
povo, e desqualifica o povo, chamando-o de ignorante. “Genésio... você é Abraão, casado
com Sara. Sara é este povo pobre e ignorante. Chega até você o apelo de Deus que diz:
„Genésio, você tem que crer em Sara. É dela que vai nascer o futuro!. Você talvez
acredite, Genésio, mas garanto: o primeiro que vai rir é Sara, o próprio povo!”12
Carlos Mesters atribui a Abraão todas as façanhas: é graças à teimosia da fé dele
que o filho nasceu; ele teve fé em Sara e em si mesmo, e a promessa divina tomou a forma
humana de um menino.13 De Sara, fala pouco. O maior retrato de Sara é tirado de Gn
12,10-20 misturado com Gn 20, tendo como cenário a trajetória de Abraão. 14 Mas
deixemos a discussão deste assunto para um próximo momento, isto é, quando
refletiremos sobre os retratos de Sara em Gn 12,10-20.
8
Carlos Mesters, Abraão e Sara, p.1-52.
Carlos Mesters, Abraão e Sara, p.53-62.
10
Carlos Mesters, Abraão e Sara, p.87.
11
Carlos Mesters, Abraão e Sara, p.92.
12
Carlos Mesters, Abraão e Sara, p.100.
13
Carlos Mesters, Abraão e Sara, p.99.
14
Carlos Mesters, Abraão e Sara, p.59-61.
9
16
Em outra ótica de pensamento, Isolde Dreher fornece uma visão geral da figura da
mulher em Gênesis 12-38,15 considerado pela autora uma coletânea de textos que falam de
mulheres no bloco dos patriarcas seminômades.16 Em nossa leitura, atentaremos para os
comentários de 12,1 até 25,18 de Gênesis.
Um dos objetivos da autora é perceber o papel que as mulheres desempenharam na
sociedade patriarcal e a função que exercem em cada texto bíblico. Ou seja, interessa
detectar o significado da atuação feminina em cada narrativa e, no campo teológico, o
posicionamento de Deus em relação à mulher.
A partir da pesquisa de Isolde Dreher podemos apreender o retrato de Sara como
figura protagonista em cinco ocasiões no livro de Gênesis: 12,10-20; 16,1-6; 18,1-15;
20,1-18 e 21,1-7.17 Sara é a primeira mulher a aparecer nos textos em estudo. Aliás, Gn
12,1-9 é o texto que abre o bloco literário dessas narrativas.
Entre as mulheres citadas no bloco literário de Gn 12-38, Sara ocupa o primeiro
lugar na relação das protagonistas das narrativas pois aparece cinco vezes, seguida por
Agar (3x), Rebeca (3x), Raquel (2x), Lia (2x), Lia/Raquel (2x), filhas de Ló/Dina/Tamar
(1x).
Nessas narrativas, Sara está sempre relacionada com vários personagens
masculinos que, provavelmente, constituem grupos sociais distintos: com Abraão e Ló
(12,1-9), com Abraão (12,10-20, 18,1-15), com Abraão, Ismael e o anjo (16,7-16), com
Abraão, Ismael e Isaac (17,1-27; 21,8-14), com Abraão e Abimeleque (20,1-18), com
Abraão e Isaac (21,1-17), com Abraão, Het e Efron (23,1-20), com Nacor, Abraão, Isaac e
Labão (24,28-66), com Abraão, Isaac, Ismael, Efron e Het (25,1-18).
Sara emerge em tramas que envolvem a figura de oito homens, cujas etapas de vida
variam entre infância, juventude, vida adulta e terceira idade. Mas ela também vivencia
15
Esta autora tem como referência a obra de Milton Schwantes, A família de Sara e Abraão – Texto e
contexto de Gênesis 12-25, Editoras Vozes/Sinodal, Petrópolis/São Leopoldo, 1986, 91p.
16
Isolde Ruth Dreher, “Mulher em Gênesis 12-38”, em Palavra Partilhada, Centro Ecumênico de Estudos
Bíblicos, São Leopoldo, 1994, p.10.
17
Isolde Ruth Dreher, “Mulher em Gênesis 12-38”, p.12-21.
17
situações tendo outras mulheres ao seu lado que, no caso de Agar, acaba assumindo o
papel de protagonista no relato de Gn 21,8-14. Na sua pesquisa, Isolde Dreher menciona
apenas as personagens identificadas com nomes: Agar (16,7-16 e 21,8-14), Rebeca e
Melca (24,28-66).
Vale constatar que não foi evidenciada a presença de várias mulheres anônimas,
sem nome, de Roma, uma concubina de Nacor, irmão de Abraão, que lhe dera quatro
filhos (Gn 22,24) e da segunda esposa de Abraão, Cetura (25,1). Assim, faltaram a
descrição das servas de faraó (12,16), das servas e da mulher de Abimeleque (20,14.1718), da mãe de Rebeca (24,28.53.55), das servas de Rebeca (24,61), das servas de Abraão
(24,35), das filhas dos cananeus (24,37), da ama de Rebeca (24,59), das concubinas de
Abraão (25,5), da mãe de Abraão (20,12), a mulher de Ismael escolhida pela própria Agar
(21,21).18
No nosso entender, considerando a presença das mulheres anônimas, Sara aparece
como única mulher apenas em cinco textos (12,1-9; 17,1-27; 18,1-15; 21,1-7 e 23,1-20) e
não em oito textos como relatou Isolde Dreher.
Ao comentar as narrativas, a autora identifica três textos, entre os quais o de nossa
investigação, como sendo típicos de ameaça às matriarcas em Gênesis 12,10-20; 20,1-18 e
26,1-11.19 Segundo Isolde Dreher, nestes textos o enredo básico é o mesmo: migração da
família e dificuldades com o rei local que se interessa pela matriarca. Por isso, a matriarca
é sempre apresentada como irmã e não como esposa do patriarca.
Para o alvo de nossa pesquisa, esses e outros elementos pontuados da cultura
patriarcal ajudam na compreensão da herança cultural presente nas histórias bíblicas de
mulheres como Sara. Tais elementos se referem à questão de as mulheres serem vistas
como objeto e mercadoria, sujeitas a serem apropriadas por reis e haréns, definidas em
relação aos homens (filha de, esposa de, irmã de), entre outras coisas.
18
Nossa pesquisa restringiu-se apenas à relação das mulheres nos textos de Gn 11,27-25,1-18.
Isolde Ruth Dreher, “Mulher em Gênesis 12-38”, p.24.
19
18
Diante desse quadro, de uma cultura patriarcal marcada pela masculinidade, a
autora coloca que é de se admirar que mulheres ocupem lugar de destaque nos textos de
Gn 12-38.20
Vejamos também as considerações a respeito do protagonismo das mulheres de
Margot Bremer que analisa “La risa profetica de la matriarca”, focalizando Sara a partir de
Gn 18,1-16.21
A autora coloca como pano de fundo, a conjuntura de empobrecimento da América
Latina e nesta, a situação das mulheres. Esse contexto não provoca só resignação mas
também compromisso, especialmente por parte das mulheres que atuam tomando
iniciativas, interpeladas e desafiadas pelo clamor e pela agonia de seu povo.
Para ela, este novo protagonismo das mulheres nos recorda algumas matriarcas
como Sara, Rebeca, Lia, Raquel. A matriarca Sara está em condições de igualdade, no
plano da fé, com o patriarca Abraão (Is 51,2; Hb 11,11; 1Ped 3,6 e Rm 4,19).
Margot Bremer reconhece que o protagonismo abraâmico sempre foi ressaltado
mas, com uma nova compreensão, apreendemos que Sara e Abraão têm que ser vistos, na
sua linguagem, como comunidade básica, ou seja, são célula básica do povo novo.22 Ainda
conforme o linguajar da autora, Sara e Abraão, são caminheiros e sonhadores. Estão
juntos para gerar novo povo e contam com a bênção de Deus (12,3; 17,5 e 15,2).
A autora vê na risada de Sara, em Gênesis 18,13-14, um paradigma para outros
eventos bíblicos. Na sua opinião, Sara teve fé e esperança, acreditou sem ver nada e sem
ter nenhum poder. O riso antecipado de Sara se refletiu durante gerações na história de seu
povo. Assim, seu riso desembocou no cântico de Miriam (Ex 15), no cântico de Ana (1Sm
1-2), de Débora (Jz 4-5), de Judite (Jt 16), de Maria (Lc 1,45-55).
20
Isolde Ruth Dreher, “Mulher em Gênesis 12-38”, p.59-60.
Margot Bremer, “La risa profetica de la matriarca”, em Revista Acción, vol.9, Asunción, 1992, p.19-21.
22
Veja na literatura infantil, artigos como o de Francisco Catão, “Uma vida de fé”, em Família Cristã,
vol.58, n.677, São Paulo, 1992, p.69. Nesse artigo, o teólogo aborda Sara em função de Abraão, considerado
um personagem central na compreensão da aliança de Deus com a humanidade.
21
19
A nosso ver, o limite da reflexão de Margot Bremer reside na idéia de que Sara e
todas essas mulheres – Miriam, Ana, Débora, Judite e Maria – tinham plena consciência
de seu não poder. Ao mesmo tempo que Margot Bremer realça o protagonismo das
mulheres, as concebe como criaturas sem força e sem poder, à mercê do poder de Deus.
O retrato que Margot Bremer tirou nos mostra Sara impotente e angustiada,
sofrendo ao sentir-se responsável de ser célula fundacional de um povo novo sem ter nem
força e nem poder para realizá-lo. Só resta mesmo ficar à espera do poder de Deus, um
poder também masculino.
Margot Bremer vê de forma positiva essa dependência de Deus. Para ela, Sara é a
figura do povo ao manter a esperança na desesperança, o que Abraão aprendeu bem (Rm
4,18). Sara é mulher audaz (1Pd 3,6) que viveu a tensão entre um horizonte utópico e a
consciência de seu não poder.
À luz desse mesmo texto bíblico trabalhado por Margot Bremer (Gn 18,1-16),
Hans de Wit dedica o sexto capítulo da segunda parte de sua obra, 23 estudo de Gn 12-50, à
temática que ele considera o coração do ciclo de Abraão, tanto por sua localização no
global de Gn 12-25 como por seu tema: “Por que te ries?”24 Neste sexto capítulo, Hans de
Wit também reflete sobre Gn 12,10-20, o qual explanaremos posteriormente.
Com base na sua experiência chilena de, certamente, contemplar a humilhação dos
pobres e enfrentar essa situação com fé e esperança, o autor aponta uma chave
hermenêutica para Gn 18,1-16: há de se alimentar uma ilusão. Ele mostra o depoimento
de um ex-capataz que se pergunta: se o rosal floresce porque não pode florescer a vida?
Assim confiados, apesar de situações tremendamente difíceis, podemos esperar dias mais
belos (Gn 18,14).25
Entre outros apontamentos, o autor faz uma releitura do personagem Abraão e
Sara. Apresenta Sara como mulher estéril que crê na ação de Deus e, por isso, torna-se
23
Hans de Wit, He visto la humillación de mi pueblo – Relectura del Génesis desde América Latina,
Editorial Ameríndia, Santiago, 1988, 289p.
24
Hans de Wit, He visto la humillación de mi pueblo, p.185-218.
20
mulher fértil, capaz de gerar um filho. Porém, Sara é olhada como mulher em função da
missão de gestar um filho. Sara é fotografada como mãe em potencial, um corpo
transformado para procriar.
Na sua visão, a reação de Sara em Gn 18,1-16 não é estranha, pois ela está diante
de um projeto impossível e de uma mensagem de outro mundo, a de superar e vencer a sua
esterilidade.
É precisamente esta palavra chave – impossível – um fio condutor o qual recorre
todo o testemunho bíblico. Hans de Wit nos dá vários exemplos do testemunho bíblico
acerca do impossível espalhados por toda a Bíblia (Jz 13,2-20; Ex 15,1; Sl 39,6; 72,18;
78,4; 96,3; 98,1; 105,2.5; 106,7.22; 107,8.15.21.24.31; 111;4; 136,4; 139,14 e 145,5).
Assim, parece impossível que nasça um filho de Sara e Abraão. Mas a tradição
bíblica nos ensina o contrário (Gn 21,1-7). Referindo-se à realidade histórica vivida pelo
Chile e por toda a América Latina, ele diz que o problema da pobreza, do poder absoluto,
da ditadura e da exploração do povo tem as mesmas dimensões do problema da
esterilidade de Sara.
Parece impossível que os ditadores caiam, parece impossível que os planos dos
arrogantes sejam frustrados e seus tronos derrubados. Parece impossível que um dia os
famintos sejam cumulados de bens. Parece impossível que neste mundo os papéis sejam
invertidos, tão impossível quanto nascer um filho de Sara e Abraão.
Semelhante reflexão podemos verificar na crônica “Sara, a mulher que riu”, de
Carlos Dreher/Manfredo Wachs/Remi Klein,26 que sintetiza a caminhada de Sara e Abraão
em Gn 12-25. A imagem de Sara nesta crônica é de uma esposa passiva que sofre calada e
acompanha o marido em todas as decisões (Gn 12,5).
“Ela não tinha muito direito a reclamar. Ela teria que deixar os seus familiares e
seguir junto com Abraão. Naquela época, as mulheres não tinham muito direito de
25
Hans de Wit, He visto la humillación de mi pueblo, p.188-189.
21
participar das decisões. As opiniões das mulheres não eram consideradas importantes. Por
isso, Sara nem tentou dizer o que pensava. Mas, por outro lado, ela também ficou contente
com a promessa de Deus.”27
Também aqui o retrato de Sara é de um corpo pesado e causa de sofrimento para a
própria mulher, pois ela não pode engravidar. “Sara também sofria com o fato de não
poder ter filhos. Ela, às vezes, chorava escondida. Inclusive a sua própria
mãe a
incomodava. Até parecia que uma mulher casada que não tivesse filhos, tinha menos valor
que as outras.”28
O retrato de Sara é de uma esposa sem auto-estima, que vive envergonhada e
escondida na tenda (Gn 18,9). Ela até ri de sua própria situação quando os mensageiros de
Deus anunciam uma novidade para ela (Gn 18,1-16). Ri mas se enche de esperança com a
possibilidade de realizar o sonho de ser mãe.
“Passaram-se mais dias e Sara teve uma surpresa. Havia algum sinal diferente no
seu corpo. Ela desconfiava de algo. E era verdade. Ela esperava um filho. Nos primeiros
dias, nem ela acreditava (...). O seu rosto mudou. Ela não andava mais com vergonha. As
pessoas não riam mais dela, quando Sara saía da tenda.”29
Constatamos, por outro lado, que o ponto de vista de Milton Schwantes nos abre
perspectivas novas para o nosso painel dos retratos de Sara em Gn 12-25, especialmente
no estudo de Gn 12,10-20. Sua obra de referência para nossa pesquisa é A família de Sara
e Abraão – Texto e contexto de Gênesis 12-25,30 embora o autor tenha feito um ensaio de
estudo deste bloco literário em publicação anterior.31 Nesses dois textos, Milton
Schwantes faz um estudo de algumas perícopes, entre as quais a de Gn 12,10-20 e 16, o
que aprofundaremos mais adiante.
26
Carlos Dreher, Manfredo Wachs, Remi Klein, Mulheres na Bíblia – Menina, levanta-te!, Centro
Ecumênico de Estudos Bíblicos, São Leopoldo, s/ano, p.5-9 (Histórias Infanto-Juvenis).
27
Carlos Dreher, Mulheres na Bíblia, p.6.
28
Carlos Dreher, Mulheres na Bíblia, p.6.
29
Carlos Dreher, Mulheres na Bíblia, p.6.
30
Milton Schwantes, A família de Sara e Abraão, 91p.
31
Milton Schwantes, “Interpretação de Gn 12-25, no Contexto da Elaboração de uma Hermenêutica do
Pentateuco”, em Estudos Bíblicos, vol.1, Editora Vozes, Petrópolis, 1984, p.31-49.
22
Outro texto de Milton Schwantes, também norteador para nossa pesquisa, é o que
faz uma introdução a Gênesis 12-25.32 Contudo, os apontamentos desses textos que nos
permitem averiguar os retratos de Sara serão comentados, de forma mais aprofundada,
nos próximos itens.
Por enquanto, podemos antecipar a reflexão,33 dizendo que nas narrativas de Gn
12-25, segundo Milton Schwantes, Sara detém lugar proeminente. Dela se fala no
cabeçalho da coletânea (Gn 11,30) e no último episódio das narrativas (Gn 24,67).
Portanto, está refutada a tradição que identifica Gn 12-25 como histórias de Abraão.
No decurso das cenas, a coletânea vai se concentrando em Sara e seu filho Isaac. O
destaque conferido a Sara deve-se a seus múltiplos papéis sociais: mãe, progenitora,
mulher, esposa.
A novidade da proposta de Milton consiste em lançar um jeito novo de fazer
exegese a partir de questões concretas, materiais e políticas, fazendo delas a porta de
entrada para a releitura do texto bíblico.
Seu embasamento teórico, é exegese histórica, ligada à sociologia. Sua chave
hermenêutica está fundamentada na Teologia da Libertação.34 Sua
exegese testa a
hipótese de que o Pentateuco é uma composição de perícopes, oriundas da memória
familial-popular.35 Sua exegese respeita o texto bíblico como fenômeno literário: recorre
32
Milton Schwantes, “E estas são as gerações de Terá – Introdução a Gênesis 12-25”, em Revista de
Interpretação Bíblica Latino-Americana, vol.23, Editoras Vozes/Sinodal, 1996, p.45-54.
33
Veja Milton Schwantes, A família de Sara e Abraão, p.36.
34
A Teologia da Libertação aflorou na América Latina, especialmente no Brasil, nos primeiros anos da
década de 60 no contexto da análise do fenômeno do subdesenvolvimento, com um novo entendimento: este
não era um problema de atraso técnico dos países em vias de desenvolvimento mas uma consequência da
macro desigualdade entre países ricos e pobres. Sendo assim, se fazia necessário uma teologia comprometida
com a busca de mudanças estruturais na sociedade e na política, a partir dos pobres, sujeitos da
transformação social. O Concílio Ecumênico do Vaticano II (1962-1965), as Conferências Episcopais de
Medellin – com ênfase para a temática da libertação integral das pessoas humanas e da realidade sóciopolítica-econômica - (1968) e Puebla (1979) – com a resolução de se fazer uma opção preferencial pelos
pobres - da Igreja Católica também representaram marco importante para a emergência da Teologia da
Libertação (veja: Leonardo Boff, O caminhar da Igreja com os oprimidos, Editora Vozes, Petrópolis, 1988,
351p.).
35
Faremos uma síntese sobre esse tema no próximo capítulo, quando estudaremos o Pentateuco.
23
ao texto original em hebraico, às regras gramaticais desta língua, ao sentido exato das
palavras, às formas e estruturas de linguagem detectáveis no texto. 36
Com esses pressupostos, Milton Schwantes trabalha Gn 12,10-20, considerando as
questões concretas relatadas no texto bíblico. Ele evidencia o conflito social presente no
texto: dominação de homens (Abraão e faraó) sobre a mulher (Sara). Milton Schwantes
salienta uma teologia na qual a ação de Javé muda o curso da história e liberta a mulher
da opressão. Mostra que essa perícope (12,10-20) é memória popular, provavelmente de
mulher, pois a história narra uma situação na ótica feminina.37
Dessa forma, aparece um retrato mais concreto de Sara. A mulher passa a ser
entendida nas suas condições reais de vida. Os relacionamentos são analisados sob o
enfoque das relações sociais presentes nas sociedades de todas as épocas. A teologia é
construída a partir da vida concreta, da ação das pessoas envolvidas e do próprio Deus
libertador. O texto bíblico é respeitado através do método exegético.
Diferente é a abordagem de Catherine Chalier a começar pelo fato de a autora tecer
sua obra em lugar social diferente da realidade latino-americana.38 Ela resgata a história
das mulheres Sara, Rebeca, Raquel e Lia, identificando-as como matriarcas. Não é mera
identificação, mas quer apresentar um contraponto e uma oposição à tradição que sempre
destacou os patriarcas, sobretudo Abraão, como protagonistas da história de Israel.
A obra de Catherine Chalier tem três partes distintas que apresentam Sara, Rebeca,
Raquel e Lia. A primeira parte, que contém o maior número de capítulos, é dedicada a
Sara. Nela, Sara é retratada de acordo com seus vários papéis sociais visíveis ao longo das
narrativas. O painel de retratos mostra Sara como mulher bela (Gn 12,11),39 irmã de
Abraão (Gn 12,13 e 20,5.13),40 mulher estéril (Gn 11,30) e patroa de escrava (Gn16,2),41
mãe de recém nascido (Gn 21,1-7)42 e esposa falecida (Gn 23,2).43
36
Milton Schwantes, “Interpretação de Gn 12-25”, p.32-40.
Milton Schwantes, “Interpretação de Gn 12-25”, p.43-44.
38
Catherine Chalier, As matriarcas – Sara, Rebeca, Raquel e Lia, Editora Vozes, Petrópolis, 1992, 224p.
39
Catherine Chalier, “A beleza de Sara”, em As Matriarcas, p.17-22.
40
Catherine Chalier, “Sara, irmã de Abraão”, em As Matriarcas, p.23-35.
37
24
Concluímos que a maioria das obras analisadas apontam o retrato de Sara como
protagonista de Gn 12-25. Em geral, a leitura bíblica é feita na ótica da mulher e tem uma
chave hermenêutica fundamentada na realidade latino-americana.
Os retratos mais salientes tirados de Sara são de uma mulher dominada pelos
homens (Abraão e faraó/rei) e ameaçada pelo seqüestro do rei (Gn 12,10-20 e 20,1-18); de
uma mulher envergonhada por ser impotente e estéril, mas confiante no poder de Deus
(Gn 18,1-16); de uma esposa passiva no acompanhamento do marido (Gn 12,5).
Das sete obras estudadas, apenas a de Carlos Mesters (Abraão e Sara) e de Hans
de Wit (He visto la humilhación de mi pueblo) apresentam Gn 12-25 como ciclo de
Abraão.
Para dar continuidade à nossa metodologia de exposição dos retratos de Sara,
focalizaremos seus retratos em Gn 16 e 21,8-21, sem dúvida os que foram registrados em
momentos difíceis para ela.
1.2. Retratos de Sara em Gênesis 16 e 21,8-21
Vale ressaltar que os capítulos 16 e 21,8-21 de Gênesis trazem muitos retratos de
Sara na sua situação de patroa em conflito com a escrava Agar. Sara vive em meio às
tramas conflitivas com a escrava. Este conflito se desenrola no contexto do patriarcalismo
e de sua poligamia.44 Embora em posições sociais diferentes, as duas mulheres partilham,
dentro da poligamia, o mesmo homem.45
41
Catherine Chalier, “A esterilidade”, em As Matriarcas, p.36-48.
Catherine Chalier, “Do riso ao nascimento”, em As Matriarcas, p.49-67.
43
Catherine Chalier, “A impossível consolação”, em As Matriarcas, p.68-79.
44
Milton Schwantes, “Interpretação de Gn 12-25”, p.45.
45
Marli Wandermurem, Riso, gracejo e herança – Espaços de conflitos em Gn 21,1-21, Instituto Metodista
de Ensino Superior, São Bernardo do Campo, 1988, p.20.
42
25
Os retratos identificam Sara, a partir das relações sociais de poder, como uma
patroa46 ofendida,47 opressora,48 racista e desumana,49 egoísta,50 ciumenta, frustrada por
ser estéril e mesquinha.51
Sob a ótica da repressão e violência contra as mulheres nos textos bíblicos,
Irmtraud Fischer é uma das que tece comentários críticos a Sara por ocasião do conflito
com Agar, em Gênesis 16 e 21. Além de ter desencadeado um processo autoritário na
relação com a escrava, Sara não se confrontou com ela, mas recorreu à sua condição de
patroa junto a Abraão. “Sara não ajustou o conflito com Agar para não ter que colocar-se
ao nível dela. Ela se entendeu com quem era igual a ela, Abraão.”52 Na verdade, a maneira
como Sara exerceu a sua função de patroa foi criticada duramente pela grande maioria das
autoras e autores. Sara foi retratada como uma patroa que age arbitrariamente. Por trás da
patroa, existia uma mulher que carregava um peso moral e social pela sua condição de
estéril.53 Enquanto mulher estéril, sem filhos, Sara é tida como inferior à própria escrava
que concedera um filho para Abraão. Uma mulher incompetente que não conseguia gerar
um filho para o marido.54
Ao discorrer sobre a situação de Agar em Gn 16 e 21,8-21, Carlos Dreher faz este
comentário sobre Sara: “sua patroa, Sara, não tivera filhos, para tristeza de Abraão, o
patrão. E sugeriu ao marido que tentasse Agar (...) até que Sara também teve um filho.
Outro menino, para alegria de Abraão. Até então, Sara sofrera. Sentia-se menor que a
46
Há um consenso entre maioria de autores consultados acerca do papel social de patroa exercido por Sara
em Gn 16 e 21, com exceção de Catherine Chalier (em As Matriarcas, p.36-48) que analisa Gn 16 e 21 na
dimensão antropológica, ignorando as categorias sociológicas e de André Chouraqui (em A Bíblia – No
Princípio (Gênesis), Editora Imago, Rio de Janeiro, 1995, p.206-213) que faz exegese dos textos bíblicos na
linha tradicional.
47
Carlos Arthur Dreher, “Hagar, a doméstica”, em Coluna Bíblica, vol.12, São Leopoldo, 1993, 1p.
48
Wanda Deifelt, “Hermenêutica feminista negra: duas contribuições”, em Palavra Partilhada, vol.14, n.2,
São Leopoldo, 1995, p.6-21.
49
Marli Wandermurem, Riso, gracejo e herança, p.42.
50
Irmtraud Fischer, “Vai sujeita-te!, disse o anjo a Agar”, em Concilium, vol.2, Petrópolis, 1994, p.111-119.
51
Dimas A. Kuensch, “Abraão, Sara e Agar”, em Pilar, vol.2, n.14, Duque de Caxias, 1991, p.10; do mesmo
autor, “Tocou a escrava de casa”, em Alô Mundo, vol.47, Taboão da Serra, 1991, p.15-18; Isolde Ruth
Dreher, “Mulher em Gênesis 12-38”, p.38-39.
52
Irmtraud Fischer, “Vai sujeita-te!”, p.114.
53
Veja Catherine Chalier, As matriarcas, p.36-48.
54
Carlos Arthur Dreher, “Hagar, a doméstica”, 1p.
26
escrava. Agora, porém, a situação voltava ao normal. Era tão competente no trabalho que
dela esperavam, como a empregada. E era melhor, por ser patroa.”55
Todavia, a experiência vivida por Sara foi também a de uma mulher discriminada
pela sociedade porque não podia ter filhos.56 Por isso, Sara também era vista como uma
mulher à procura de uma gravidez. “Ter um filho era o seu maior sonho. Imaginem, uma
mulher casada sem filhos!.”57
Conforme Elsa Tamez,58 Sara padece do mal que é a maior vergonha para a mulher
do mundo oriental: a esterilidade. Ela se recusa a aceitar isto e recorre à sua escrava (Gn
16,5). Mas quando o filho da escrava nasce, Sara vê ameaçados seus direitos de esposa e
patroa. Prefere conservar seu status de senhora a conservar o filho de Abraão que também
seria seu, segundo as normas.59
Comentando Gn 16, Irmtraud Fischer salienta que Agar, mulher escrava, foi usada
pela patroa como solução de seu problema de infertilidade. Agar foi sexualmente
explorada. Sara só tinha em vista a si mesma. O filho concebido por Agar é o filho dos
desejos de Sara (Gn 16,2).60
Nas palavras de Haidi Jarschel, Sara tem necessidade da gravidez de Agar para
garantir a descendência de sua família. Na condição de patroa fez uso de sua escrava para
seus interesses. Mas percebe que seu poder está ameaçado quando a escrava engravida,
então, trata de mandá-la embora.61
55
Carlos Arthur Dreher, “Hagar, a doméstica”, 1p.
Bárbara Huefner, Eliad Dia dos Santos, Genilma Boehler e Marília Schuller, A história da escrava Agar,
Projeto Mulher do Instituto Pastoral da Faculdade de Teologia da Igreja Metodista, São Bernardo do Campo,
1990, 28p. Este subsídio popular fundamenta-se no artigo de Elsa Tamez, “La mujer que complicó”, p.2833, e na obra de Milton Schwantes, A família de Sara e Abraão, 91p. De Elsa Tamez, apreende as idéias
sobre Sara e de Milton Schwantes, as informações acerca do contexto social dos seminômades.
57
Dimas A. Kuensch, “Fé em Deus e pé na estrada”, em Alô Mundo, vol.44, Taboão da Serra, 1991, p.16.
58
Elsa Tamez, “La mujer que complicó la historia de la salvación”, em Media Development, vol.2, London,
1984, p.28-33.
59
O texto desta autora foi analisado criticamente por Mercedes Brancher em sua dissertação (Dos olhos de
Agar, p. 18-52).
60
Irmtraud Fischer, “Vai sujeita-te!”, p.11-119.
61
Haidi Jarschel, “A barriga como lugar de revelação – Deus-que-me-vê é Deus-conosco”, em A Cruz no Sul,
vol.4, São Paulo, 1992, p.8-9.
56
27
Confirmando esse pensamento acerca da atitude de Sara, tida como egocêntrica,
vários autores dizem que “às custas de Agar, Sara pensava garantir para si e para o clã a
descendência e a herança da terra. Sara quer garantir a posteridade – a esterilidade da
mulher legal legitima a relação sexual de Abraão com a escrava para garantir a
descendência. Sara e Abraão tinham os mesmos interesses. Nos v.2 e 3 é claro o acordo
entre eles.”62
Lúcia Weiler, em seu artigo sobre a mulher na Bíblia, busca uma chave
hermenêutica para analisar Gn 16. Toma como chave de leitura a mulher oprimida na
América Latina e na Bíblia. Propõe superar a leitura da história da salvação a partir de
Sara, a famosa esposa do grande patriarca e pai da fé, Abraão.63
A autora sintetiza Gn 16 e ao se referir à Sara diz que a narração começa
constatando a esterilidade de Sara que não dera à luz nenhum filho a Abraão. Sara maltrata
a tal ponto Agar, que esta se vê obrigada a fugir errante, sem rumo, pelo deserto.
Na cultura patriarcal, segundo Lúcia Weiler, viuvez e esterilidade são consideradas
maldição divina. A causa da esterilidade é sempre atribuída à mulher, nunca ao homem.
A condição inferior da mulher é marcada já pela sua corporeidade. Além das
rigorosas leis de pureza que a atingiam no ciclo biológico mensal da menstruação e após o
parto, a mulher não tinha valor como pessoa humana e sexuada.
Do ponto de vista sócio-jurídico, ainda segundo Lúcia Weiler, a mulher não tinha
nenhum princípio de autonomia. Seus direitos dependiam do homem (pai, marido, filho,
cunhado). Mais que pai ou esposo da mulher, o homem é seu dono, proprietário, em quase
todos os aspectos.64 Nesse contexto, não é difícil entendermos porque o matrimônio e a
fertilidade são considerados bênção divina, ao contrário da viuvez e da esterilidade
feminina.
62
Luigino de Guidi, Lucineth Cordeiro Machado, José Airton Otávio, Fátima Maria dos Santos, Inês Silva e
Maria de Jesus Silva, “A defesa do projeto na memória das mulheres”, em Estudos Bíblicos, vol.29,
Petrópolis, 1991, p.26-27.
63
Lúcia Weiler, “A mulher na Bíblia”, em Vida Pastoral, vol.31, n.150, São Paulo, 1990, p.3.
64
Lúcia Weiler, “A mulher na Bíblia”, p.5.
28
Outra autora que critica a postura de Sara é Wanda Deifelt.65 Apesar de Sara ser
parceira de Abraão nas promessas feitas por Deus e, por isso, ser vista por muitas teólogas
como uma matriarca que merece ser resgatada historicamente, a autora tem outro conceito
de Sara.
Ela comenta que simplesmente pelo fato de ser mulher, Sara não se identifica
necessariamente com outros grupos oprimidos. Para a autora, em Gn 16 e 21,8-21, Sara é
um exemplo de como, às vezes, as mulheres da Bíblia conspiraram com os homens para
dominar sobre outros homens e mulheres.
Wanda Deifelt fotografa Sara à luz de uma hermenêutica feminista negra que
considera o tripé raça, classe e sexo.66 Por isso, vê Sara como senhora, hebréia, rica e de
cor clara, mas estéril.67 Nessa lógica de pensamento, em Gn 16 Sara queria obter estima e
edificar-se por meio de sua escrava, porém, os papéis se inverteram.68
Diz a autora: “a crítica a Sara fica registrada por ela não conseguir se solidarizar
com Agar. Ela defende os interesses de Abraão mais do que ele próprio. Deus mostrou sua
misericórdia para com Sara lhe dando um filho, mas Sara não mostrou solidariedade para
com Agar.”69
O autor Dimas Kuensch apresenta o retrato de Sara com uma linguagem bastante
pejorativa: chata, ciumenta, coitada. Sara era quase uma bruxa?! “Agar vai ter um filho
com Abraão; vai se tornar importante. Sara, coitada, não consegue ter filhos. A patroa
65
Wanda Deifelt, “Hermenêutica feminista negra”, p.16.
O texto de Gn 21:1-21, sob o enfoque de uma hermenêutica feminista negra, foi muito bem trabalhado por
Marli Wandermurem, Riso, gracejo e herança, p.42.
67
Várias autoras também falam de Sara como senhora, dona, mulher rica, senhora da linhagem da nobreza e
do clã: Bárbara Huefner, Eliad Dia dos Santos, Genilma Boehler e Marília Schuller, A história da escrava
Agar, Projeto Mulher do Instituto Pastoral da Faculdade de Teologia da Igreja Metodista, São Bernardo do
Campo, 1990, p.7-11.
68
Wanda Deifelt, “Hermenêutica feminista negra”, p.17.
69
Wanda Deifelt, “Hermenêutica feminista negra”, p.18.
66
29
agora tem que respeitá-la e largar de ser chata!.”70 Também, não tá vendo que Sara tinha
ciúmes (...) Sara, coitada, não conseguia ter filhos (...) Sara devia ser chata pra burro!”71
Enquanto patroa, Dimas adverte: “a Bíblia diz que ela infernizou tanto a vida da
escrava, que esta não agüentou e fugiu.”72 Reunindo informações de Gn 16 e 21, ele
explica que o caso aconteceu de forma diferente. Agar foi expulsa da casa da patroa depois
que nasceu Isaac, o filho de Abraão e Sara.
A expulsão de Agar e de seu filho Ismael é outro conflito que danifica a imagem de
Sara (Gn 21,8-21). Segundo Irmtraud Fischer, Sara é a força motriz nesse episódio. O
motivo do conflito não é briga entre mulheres, mas a rivalidade dos filhos pela sucessão
patriarcal, pois o filho de uma escrava só era herdeiro legítimo se fosse reconhecido como
filho. Se Ismael fosse reconhecido, tornava-se o primogênito e Isaac herdaria em segundo
lugar e com menos privilégios.
Nesse episódio de Gn 21,8-21, Elsa Tamez classifica como cruel o comportamento
de Sara. Ismael, o filho da escrava, deve ir embora para não partilhar a herança com Isaac,
o filho da patroa. Conforme Elsa Tamez, Sara age assim porque quer ser a única senhora,
esposa e mãe da descendência prometida, do herdeiro esperado.
Sara recorre à legislação quando esta lhe serve, ou seja: entrega a escrava Agar ao
marido para esta lhe dar um filho (Gn16,2). Rompe quando não lhe convém, ao querer que
Abraão expulse a escrava Agar e seu filho Ismael para que ele não seja herdeiro com seu
filho Isaac (Gn 21,10).
Elsa Tamez defende a posição de Abraão ao exprimir que ele, em primeiro lugar,
se recusa expulsar Agar, pois amava muito a seu filho e quem sabe também a escrava. Esta
poderia ser uma das razões para Sara agir com tanto zelo. Pode ser ainda que Abraão não
quisesse romper com a lei, pois esta assegurava a Ismael o direito de filiação e herança.
Sendo assim, Ismael não podia ser expulso da casa de Abraão.
70
Dimas A. Kuensch, “Abraão, Sara e Hagar”, em Pilar, vol.2, n.14, Duque de Caxias, 1991, p.10.
Dimas A. Kuensch, “Tocou a escrava de casa”, p.16.
72
Dimas A. Kuensch, “Tocou a escrava de casa”, p.16.
71
30
Na visão de Marli Wandermurem, esta leitura que Elsa Tamez faz de Abraão põe
em destaque a supremacia do homem. “Há um antagonismo entre a visibilidade de Sara e
Abraão, pois, enquanto Sara é evidenciada pelo ciúme e pelo egoísmo, Abraão faz-se
visível pelo seu status. É um ser ético e político, capaz de tomar as decisões e resolver os
conflitos criados pelas mulheres.”73
Contudo, Marli Wandermurem não poupa Sara de uma crítica no seu estudo de Gn
21,1-21, à luz dos v. 9 e 10. Ela tacha Sara de racista a partir da frase: “e viu Sara o filho
de Agar, a egípcia, que deu à luz para Abraão gracejar (Gn 21,9).”74 Vendo isso, Sara quer
expulsar a escrava egípcia e seu filho, pois percebe que eles podem atrapalhar o progresso
de Isaac.
Marli Wandermurem diz que esta ação de Sara tem uma conotação de desprezo. Na
verdade, Sara carrega um sentimento de medo e hostilidade frente a Agar e Ismael. Não
apenas estranha a diferença racial deles mas se torna agressiva. Marli Wandermurem
considera que há um preconceito racial e social observável nessa cena.
O racismo individual de Sara está contextualizado e contido em um racismo
institucionalizado e cultural. Primeiro porque sua ação preconceituosa tem como objetivo
garantir a identidade legítima para Isaac ser portador da herança.
Nas descobertas exegéticas de Marli Wandermurem, a causa primária que aparece
no contexto da expulsão parece estar na questão da identificação das crianças. “Essa
identificação visa a herança. É o filho legítimo que garante o poder político e econômico
do clã. Por isso, há toda uma história que determina sua identificação e qualquer ameaça
deve ser eliminada.”75
Aí entram em jogo as práticas, as leis e os costumes estabelecidos
institucionalmente através do sistema jurídico, econômico e ideológico da sociedade.
73
Marli Wandermurem, Riso, gracejo e herança, p.27.
Marli Wandermurem, Riso, gracejo e herança, p.42-46.
75
Marli Wandermurem, Riso, gracejo e herança, p.120.
74
31
Então, o sistema jurídico julga o caso – expulsão da escrava egípcia e de seu filho –
através de critérios raciais e sociais.
O sistema econômico diz respeito à herança. Sara afirma que o filho da escrava não
co-herdará junto com seu filho. E o sistema ideológico justifica a ação de Sara e Abraão:
“não tenha temor em teus olhos pelo menino e por sua escrava (Gn 21:12).”
Quanto ao racismo cultural, está ligado ao etnocentrismo. Abraão e Sara têm a
capacidade para controlar, pelo exercício do poder, as vidas e os direitos de Agar e Ismael.
Isto porque eles detêm a supremacia cultural.
Com a valiosa contribuição de Marli Wandermurem,76 vemos um novo retrato de
Sara, tirado junto com Agar. São duas mães que lutam entre si para garantirem a posse da
herança para seus filhos. A herança da terra aos filhos lhes assegura a sobrevivência,
conforme rege o patriarcalismo, dado que a mulher é dependente economicamente do
homem.
Nessa disputa de poder, Sara goza de superioridade racial e classista. Segundo
Marli Wandermurem, essa vantagem lhe serviu de desculpa para a crueldade e
desumanidade para com a escrava.
Todavia, parece que o olhar de Marli Wandermurem sobre Sara muda quando ela
analisa a experiência teológica dessa mulher. Marli focaliza Sara sob outro ângulo.
Verifica no texto bíblico uma experiência de opressão de gênero sobre Sara, uma mulher
estéril.
A esterilidade retratada em Sara é uma opressão de gênero, pois sobre ela há o
controle biológico de seu útero. Em uma sociedade onde o valor da mulher se dá por meio
de sua procriação, ser estéril significa não se realizar. Ser fértil e exercer a maternidade
significa superar a humilhação.
76
Marli Wandermurem, Riso, gracejo e herança, p.119-128.
32
Ainda conforme as novidades de Marli Wandermurem, com Agar ocorre uma
opressão de classe e étnica. O que há de comum entre Sara e Agar, no prisma teológico, é
que ambas experimentam Deus a partir de suas opressões.
A autora também consegue tirar um retrato coletivo da experiência de Deus em Gn
21,1-21. Registra uma experiência comum entre Sara, Agar e Abraão, a de receber uma
força da Palavra de Deus.
No evento de Sara, pela Palavra de Deus ela vê sua situação de mulher estéril
transformada em mulher fértil. E a partir de sua experiência maternal define sua percepção
de Deus, dela mesma e das pessoas do seu cotidiano. Passa a se auto-valorizar e, assim,
faz uma teologia que passa pelo seu corpo de mulher grávida.
Ainda outros aspectos podem ser extraídos da reflexão sobre os retratos de Sara em
Gn 16 e 21,8-21. Irmtraud Fischer, por exemplo, analisa estes capítulos de Gênesis e
afirma que eles funcionam como uma legitimação da opressão das mulheres no processo
de teologização em textos bíblicos.
No caso de Gn 16, sua exegese assegura que várias mãos trabalharam na
composição do texto. A narrativa pode ser dividida em duas partes: uma mais original,
proveniente da memória popular de grupo de mulheres escravas, que conta a história do
ponto de vista da libertação. Outra mais intencional, oriunda de arranjos redacionais com a
função de transmitir uma mensagem teológica.77
É o que reparamos nos v.9 e 10 de Gn 16. “Mas o anjo do Senhor não apenas
manda que volte à sua patroa, de acordo com o direito consuetudinário do Antigo Oriente,
mas exige a sujeição a ela. Com isso não apenas fica restabelecido o ordenamento de serva
e senhora – Javé, portanto, como um Deus mantenedor do sistema – mas é explicitamente
legitimada a opressão e exigido o deixar-se oprimir.”78
77
Veja Milton Schwantes, “Interpretação de Gn 12-25”, p.31-49; A família de Sara e Abraão, 91p.
Irmtraud Fischer, “Vai sujeita-te!”, p.114.
78
33
A apresentação original da expulsão de Agar e Ismael, em Gn 21,8-21, é uma
história de opressão, como em Gn 16. Mas, por causa da reelaboração redacional, também
este relato se transforma em texto de terror para as mulheres, ainda conforme a concepção
de Irmtraud Fischer.
A autora salienta dois versículos de Gn 21,8-21: no v.11 Abraão só fica desgostoso
por causa de seu filho; no v.12 também Deus não diz uma palavra a respeito da mulher.
Pensamento semelhante é o de Marli Wandermurem que ressalta a função do v.12 de Gn
21,8-21: teologizar a situação de conflito colocada por Sara a Abraão.79
De acordo com Irmtraud Fischer, “é provável que se reflita em Gn 21, em conexão
com o sacrifício de Isaac, Gn 22, a renovação daquela experiência de exílio em que Deus
não protege da catástrofe mas salva dentro dela. Os relatos, paralelamente construídos, do
“sacrifício” dos dois filhos de Abraão, ambos expostos a iminente perigo de vida e salvos
exclusivamente por intervenção divina, diferem contudo essencialmente entre si.”80
A autora relata que em Gn 21,8-21 a expulsão da criança e de sua mãe foi imposta
por Sara. Mas em Gn 22 Abraão oferece o filho em sacrifício porque obedece à palavra de
Deus. Para Irmtraud Fischer, a história da tradição e da redação desses dois relatos
bíblicos documenta a tentativa duradoura de uma teologia androcêntrica de deixar
assentados os seus interesses e estruturas sociais em nome de Deus.
Mas há de se rebater essa teologia androcêntrica. “Uma afirmação central sobre a
natureza do Deus de Israel é sua caracterização como defensor dos órfãos, viúvas e
desamparados (Sl 146,9, cf. Dt 10,18). É de acordo com este teologúmeno central de Israel
que se devem pautar todos os textos da Bíblia, mesmo aqueles que, com base nos mais
fortes anseios teológicos, acham que podem mudar ou colocar em segundo plano a opção
de Javé pelos pobres.”81
79
Marli Wandermurem, Riso, gracejo e herança, p.71.
Irmtraud Fischer, “Vai sujeita-te!”, p.114.
81
Irmtraud Fischer, “Vai sujeita-te!”, p.118.
80
34
Em meio a essa teologia androcêntrica, a culpa recai sobre a mulher, na função
social de patroa. Quase nada se fala de Abraão, homem insensível que lava suas mãos
nessa situação conflitiva. Ele sempre leva vantagem, seja como marido de Sara (Gn 12,1020 e 20,1-18) ou homem possuidor de duas mulheres (Gn 16 e 21,8-21).
Aqui, o retrato de Sara é de uma patroa que reproduz, no micro espaço da casa,
relações sociais de poder opressor que, por sua vez, se espelham no macro poder que, no
caso em questão, é do patriarcalismo representado na pessoa de Abraão.
Falta explanar ainda um último comentário para fechar a galeria de retratos de Sara
em Gn 16 e 21,8-21. Como acontece em exposição de arte, deixamos para o final, talvez o
melhor painel de retratos.
De todas as obras analisadas, a que nos chamou mais atenção foi a de Mercedes
Brancher: Dos olhos de Agar aos olhos de Deus.82 Ela olhou fixamente nos olhos das
mulheres de Gn 16,1-16. Seu olhar penetrou nos olhos de Agar, nos olhos de Sara e nos
olhos de Deus. Por isso, seu olhar é tremendamente sedutor!
Há idéias novas em sua teoria,83 as quais permitem retratar Sara de forma diferente
de todas as autoras e autores citados. Logo de início, ela discorre que a grande polêmica de
Gn 16,1-16 é o controle social sobre os úteros das mulheres.
Mercedes Brancher constata que não importa o papel social que Sara e Agar
ocupam. O controle é o mesmo pois a instituição patriarcal exige produção e reprodução.
“O útero que não produz é humilhado e obrigado a buscar solução. Esta é a tensão que
encontramos entre Sara e Agar.”84
Ao analisar o v.5 de Gn 16, a teóloga pressupõe que o problema discutido dentro
da casa de Sara e Abraão extrapola o âmbito familiar e transforma-se em problema social.
82
Veja Mercedes Brancher, Dos olhos de Agar aos olhos de Deus – Gênesis 16,1-16, Instituto Metodista de
Ensino Superior, São Bernardo do Campo, 1995, 152p.
83
Mercedes Brancher, Dos olhos de Agar, p.31-114.
84
Mercedes Brancher, Dos olhos de Agar, p.31.
35
Por isso, ela examina Sara e Agar à luz de sua função social e não de seu comportamento
individual e familiar.
Mercedes Brancher desfoca o olhar da conduta pessoal e familiar das personagens.
Podemos intuir que, ao privilegiarmos esta releitura de Mercedes Brancher, tiramos de
Sara a totalidade da responsabilidade pela violência cometida contra Agar e entendemos
melhor os mecanismos sociais envolvidos neste episódio.
A autora observa que ambas estão sofrendo as consequências dos papéis sociais
que lhe são impostos pela sociedade patriarcal. Nessa sociedade, enraizada na estrutura
patriarcal, o uso da autoridade é necessário na relação de superior e inferior. A própria
estrutura social cria a necessidade de um poder hierarquizado.
Deste modo, o poder de Abraão está prolongado em Sara (16,6). Sara tem poder e
o exerce junto a sua escrava. Aqui, cabe a pergunta pela sua motivação no exercício do
poder. Mercedes Brancher recomenda perguntar-nos: será que a atitude de Sara era mesmo
para defender seu status ou era uma reação perante uma discriminação que lhe era
imposta? Será que o sistema patriarcal não lhe roubou o direito de viver, com prazer, a sua
sexualidade?
Além disso, sob o prisma feminista, Mercedes Brancher leva-nos à interpelação da
vida de mulher de Sara dentro de uma sociedade que a humilhava por sua esterilidade.
Será que Sara era feliz como mulher?
A teóloga insiste na reflexão sobre os determinismos da sociedade patriarcal ao
ponderar os papéis sociais de Sara e Agar. Para ela, a sociedade patriarcal define os papéis
sociais para as mulheres e cabe a elas apenas o cumprimento legal de sua obrigação.
Mercedes Brancher faz essa afirmação sobretudo com base nos v.1-6. Neles vemos
como o sistema social da época usa as próprias dominadas – Sara por sua esterilidade e
Agar por sua fertilidade – para repetir o sistema de dominação e exploração. “Serve-se do
36
lugar social que cada uma ocupa para colocar mulher contra mulher. Assim é o
mecanismo que as estruturas dominantes usam para escamotear seu poder opressor.”85
Retomando: o patriarcalismo usa as próprias mulheres para atingir seus objetivos,
submetendo-as aos seus padrões normativos. Nesta casualidade, a norma é procriar para
garantir a descendência ao patriarca (16,1), até porque a reprodução é algo vital para a
sobrevivência dos clãs.
Este papel é exercitado por Sara que sujeita-se à estrutura e coopera para a
discriminação social e étnica contra Agar a fim de atender às exigências que lhe são
impostas. Dessa forma, está estabelecida a luta de poder entre as mulheres.
Uma vez evidenciados esses mecanismos de funcionamento do sistema patriarcal,
é necessário deixar mais transparente a posição social de Sara.
Na realidade, Sara tem um poder relativo, na condição de esposa e israelita livre. O
poder de Sara reside na possibilidade de ter uma escrava sob seu comando e no fato de ser
israelita livre e esposa do patriarca.
Na sociedade patriarcal, o poder está na capacidade reprodutiva das mulheres (Gn
21,9-10). Sara, pelo fato de não parir, fica insignificante em seu poder social. Só resta
colaborar com o sistema sem jamais questioná-lo.
De novo aparece um retrato de Sara submissa. Em Gn 16 ela não se rebela contra
Abraão que é o agente social do patriarcalismo. Pelo contrário, ela recorre a ele (16,5-6).
Sara não se rebela contra a estrutura social que discrimina as mulheres, “não
possibilitando-lhes o direito de decidir e controlar seu corpo, seu útero.”86
Contudo, é mais saliente o retrato de Sara amarrada à estrutura patriarcal. Nessa
foto não está sozinha. Tem ao seu lado Agar e muitas mulheres seminômades.
85
Mercedes Brancher, Dos olhos de Agar, p.50.
Mercedes Brancher, Dos olhos de Agar, p.114.
86
37
1.3. Retratos de Sara em Gênesis 12,10-20
O retrato de Sara como mulher, portadora de um corpo bonito e de uma
sexualidade sedutora, fica mais claro na reflexão de textos como Gn 12,10-20.
Dependendo da ótica das autoras e autores, aparece um tipo de mulher. Mas, em geral,
mulher na função de esposa ou amante, vítima de uma situação constrangedora e de uma
sutil violência contra sua dignidade.
Enquanto a mulher Sara é focalizada de maneira vitimizada, o homem Abraão tem
sua imagem salvaguardada.
Dimas Kuensch, por exemplo, em seu artigo destinado à revista infanto-juvenil,
comenta o episódio de Gn 12,10-20 dizendo: “o rei tomou Sara como amante. Abraão,
porém, escapou com vida. Imaginem se o rei soubesse que ele era esposo de Sara! Sabem
como é rei.”87
Misturando as informações de Gn 12,10-20 e Gn 20,1-18, Dimas Kuensch
continua: “não foi bem o rei do Egito, não! Foi um outro rei, o tal de Abimeleque. Mas
viram só, que quase acontece uma desgraça com o rei? Ainda bem que ele descobriu a
tempo que Abraão tinha inventado essa história! Abraão que não era bobo! Tinha
inventado coisa nenhuma! Sara bem que era irmã de Abraão. Era irmã por parte só de
pai.”88
Carlos Mesters faz acenos parecidos: “ao entrar no Egito teve medo. O rei do
Egito gostava muito de mulheres e Sara era muito bonita. Para não ser morto pelo rei, por
ser marido de mulher tão bonita, Abraão pediu a Sara que ela se apresentasse como sua
irmã. Assim fizeram, mas tiveram azar. O rei tomou Sara como amante. Abraão, porém,
87
Dimas A. Kuensch, “Sara era bonita que só vendo!”, em Alô Mundo, vol.46, Taboão da Serra, 1991, p.1518.
88
Dimas A. Kuensch, “Sara era bonita que só vendo”, p.16.
38
escapou com vida (cf. Gn 12,11-16). A Bíblia conta que o rei foi castigado (cf. Gn 12,1720) e mostra, assim, que Deus condena o adultério.”89
Provavelmente para justificar a atitude de Abraão, o autor continua narrando a
história das andanças de Abraão, combinando o episódio de Gn 12,1-20 com 20,1-18. Diz
ele: “mais adiante, ela (a Bíblia) esclarece que Abraão não mentiu, pois ele diz: „Ela é
realmente minha irmã, filha de meu pai, mas não de minha mãe, e ela se tornou minha
mulher (Gn 20,12).”90
Até nessa história de Gn 12,10-20 que consideramos Sara personagem central,
Carlos Mesters protagoniza Abraão, o que confirma nossa suspeita levantada
anteriormente. Vejamos como ele apresenta o final da história: “este fato mostra ainda que
Abraão não era santo, quando Deus o chamou. Ele foi se santificando aos poucos, durante
a caminhada, aprendendo dos fatos. Passada a fome, Abraão voltou para a Palestina (cf.
Gn 13,1).”91
Nessa obra, fica nítida a leitura androcêntrica, diferente de uma leitura feminista da
Bíblia. Enquanto Carlos Mesters, nosso exemplo anterior, está preso na visão centrada em
Abraão, Isolde Dreher, utilizando uma abordagem feminista, está livre para avaliá-lo no
episódio de Gn 12,10-20.92
Por isso, ela escreve que histórias como essas de Gn 12,10-20, contadas num
mundo patriarcal e marcadamente masculino, desmascaram o grande patriarca Abraão.
Esta história apresenta-o como medroso, covarde, utilitarista, capaz de satisfazer-se em
receber presentes em troca da mulher que lhe salva a vida ao aceitar-se fazer-se passar por
sua irmã.
Ela diz que somente mulheres seriam capazes de contar assim esta saga, pois não
desculpam Abraão. Para parafraseá-la, dizemos que somente mulheres comprometidas
com a leitura feminista e homens solidários com esta causa são capazes de reler esta saga
89
Carlos Mesters, Abraão e Sara, p.59-60.
Carlos Mesters, Abraão e Sara, p.60.
91
Carlos Mesters, Abraão e Sara, p.60.
90
39
na ótica da mulher, o que verificaremos melhor ao longo da explanação sobre várias obras
analisadas.
Embora também expresse uma releitura centrada no personagem Abraão, o teólogo
Hans de Wit é realista na análise do comportamento do patriarca. 93 Ele chama Gn 12,1020 de um episódio de vida em perigo que mostra como Abraão abandona seu projeto e
chega a ser pior que o faraó. Todavia, para ele, Abraão não erra sozinho. Quando o casal
Abraão e Sara se aproximam da fronteira egípcia, acaba a comunhão que havia entre
ambos. Eles dispõem a separar-se e abandonam seu projeto comunitário. Sua identidade
muda dramaticamente: agora são irmãos e já não marido e mulher. Nesses caminhos, ao
entrar no Egito, Sara é imediatamente incorporada ao harém do faraó. Para sobreviver no
Egito e comer é necessário prostituir-se, uma prostituição bem paga (12,16). Uma vez
dentro do império faraônico, a saída é difícil, é causa que deve ser assumida por Deus
(12,17-19).
Conforme a concepção de Hans de Wit, o episódio do Egito ensina que há uma
tendência no homem em Israel, constante nas narrativas que envolvem Abraão, de aceitar
as coisas do jeito que elas são – aceitar o inaceitável, suportar o insuportável – e ajeitá-las
para poder sobreviver (cf. Gn 17,17.18; 18,23-33; 19,19.20; 20,1-18; 21,8-13 e 22,1-19).
E esperar a intervenção de Deus, aquele que acompanha o grupo de seminômades,
especialmente em momentos de crises e perigos, orientando-o e animando-o quando este
está a ponto de abandonar seu projeto de vida.
Sob outro prisma, Corina Lanoir reflete essa temática de Gn 12,10-20: no âmbito
da violênci a contra a mulher.94 Seu texto é pequeno, todavia, muito denso. Dele emerge
uma reflexão profunda das relações de gênero entre homem e mulher que se querem bem
mas que se vêem encurralados pela estrutura patriarcal que estabelece o jeito de conviver e
se relacionar. A autora parte sua reflexão do contexto de violência contra a mulher na
92
Isolde Ruth Dreher, “Mulher em Gênesis 12-38”, p.35-36.
Hans de Wit, He visto la humillación de mi pueblo, p.199-202.
94
Corina Lanoir, “Era Abraham um hombre violento com su esposa?”, em Servicio Evangélico de Prensa,
vol.37, Manágua, 1992, p.7.
93
40
Nicarágua, e diz que na Bíblia vários textos mencionam violências contra mulheres.
Alguns textos são menos evidentes, como Gn 12,10-20.
No entender de Corina Lanoir, Abraão teme a morte e a violência dos egípcios.
Então busca uma solução e resolve sacrificar a Sara. Pede a ela que diga que é sua irmã, e
não sua esposa, não para protegê-la senão para proteger-se a si mesmo da violência da
morte que o ameaça. Agindo assim, Abraão tece relação de dominação e de utilização de
Sara. Seu gesto consiste em propor o corpo de sua mulher como corpo diplomático para
salvar a sua vida. Segundo a autora, a atitude de Abraão é uma falta de respeito, uma
debilidade frente ao perigo, um ato irresponsável que Deus não aceita.
Corina Lanoir tenta compreender a subjetividade de Abraão. Ressalta que por trás
desta proposta tem também a confissão de um homem que expressa seu medo, seu
sentimento de impotência e de vulnerabilidade. Ele grita pedindo socorro para Sara e
confessa sua fragilidade. Para Corina Lanoir, a margem entre o abuso de poder e a
fragilidade é muito reduzida, como é estreita a margem entre a demonstração de potência e
o sentimento de debilidade.
Conclui que Abraão está equivocado. Não tem direito de exigir tanto de Sara. Cai
em uma via sem saída porque Deus lhe havia prometido uma descendência com Sara e
sem ela, essa promessa não se realizará.
Dessa autora, temos um retrato de Sara em vários ângulos: passiva, obediente,
vítima sem voz, mulher medrosa. Mas, ao mesmo tempo, Sara é uma mulher detentora de
poder. Ela intui que Sara faz o que Abraão lhe pede talvez porque sabe que não tem
alternativa, que tem que obedecer, que é uma vítima de um sistema de opressão tão forte
que nem sequer pode pensar em resistir. Ou talvez porque escolhe obedecer sem
condições, sem observações, sem reclamar por sua liberdade. A autora pergunta se esta
atitude de Sara não seria um auto sacrifício; uma violência sobre si mesma.
Todavia, Corina Lanoir narra que Sara tem poder de salvar a Abraão. Porém, tem
que renunciar a sua potencialidade de ser amada, respeitada, reconhecida. Nega sua
41
identidade, perde seu status de esposa e se expõe ao perigo de ser violentada e
transformada em objeto de intercâmbio.
Eles então se encontram em uma via sem saída. Ele por sua estratégia masculina –
a mulher tem que submeter-se – e ela por sua estratégia feminina – a mulher tem que
sacrificar-se – sem decidir nada e assumir todas as debilidades dos homens.
Corina Lanoir termina sua reflexão indicando que nesse momento Deus fala e age.
Primeiro devolve a Sara sua identidade e a Abraão sua esperança em um porvir. Deus
liberta. Diz não à servidão de Sara e Abraão no Egito, libera um homem dominado pelo
medo e a uma mulher dominada pelo medo do homem. Liberta-os de uma relação de
violência e de uma situação sem saída.
De acordo com nossa concepção, Corina Lanoir não aprofundou a questão do
poder de Sara. Poder do corpo da mulher que salva o corpo do homem (Gn 12,20), pois a
ameaça à vida chegou no seu limite: a eminência de um homicídio (Gn 12,12).
O corpo de Sara não salva Abraão através do sacrifício de submeter-se ao harém do
faraó (Gn 12,12). O corpo de Sara, muda nesta cena, salva pela palavra dita antes da
entrada no harém. Diz palavra solidária. É palavra de mulher solidária, realmente irmã de
caminhada na dimensão da fraternidade, algo que não pode faltar na relação entre mulher
e homem.
O tema da repressão de mulheres nos textos bíblicos é alvo de pesquisa de
Irmtraud Fischer,95 conforme já apreendemos nos seus retratos de Sara em Gn 16 e 21,821. Seu relato expõe vários textos bíblicos que tratam da violência sexual contra mulheres.
É o caso do estupro da mulher sem nome do levita (Jz 19), das filhas de Ló que são
expostas ao abuso sexual (Gn 19,1-11), de Tamar (2 Sm 13), de Dina (Gn 34), da coação
de Betsabéia para dormir com Davi (2 Sm 11), da acusação de adultério contra Susana (Dn
13). A entrega de Sara (Gn 12,10-20) também é um ato de violência contra a mulher, que
mereceu a interferência de Deus para libertá-la.
42
Irmtraud Fischer relacionou ainda textos bíblicos que legitimam a violência à
mulher dado que transmitem uma ideologia que fundamenta e legaliza ações repressivas
dos homens em relação às mulheres. Essa legislação, conforme a autora, deve ser vista
como violência sexual socialmente institucionalizada.
São as normas legais sobre a sedução de uma virgem (Ex 22,15s, Dt 22,23s) que
não concebem essa ação como criminosa, mas vêem o delito como lesão do direito do pai,
respectivamente, do futuro marido.
É a possibilidade do cidadão israelita livre ter relações sexuais com mulheres
virgens, escravas e prisioneiras de guerra (Nm 31,18). É o direito androcêntrico
legitimando a violência contra as mulheres, como por exemplo, na lei sobre o ciúme (Nm
5,11-31).
“De acordo com o direito veterotestamentário, dever-se-ia esperar o castigo do
homem que acusou injustamente sua mulher. Este princípio que, como intimidação contra
falsas acusações, oferece proteção contra calúnias num processo judicial sacro (Dt 19,16s;
cf. Dn 13,61s), não vale evidentemente para mulheres que foram denunciadas por motivo
sexual!”96
Na nossa opinião, Sara, oferecida para o harém do faraó (Gn 12,15), começa a
fazer parte desta institucionalização da violência sexual justificada pela arbitrariedade do
poder faraônico e masculino sobre as mulheres, reproduzidos na postura abraâmica de
dispor da esposa como se tratasse de um objeto qualquer.
Ainda segundo a autora, para resistir a tanta violência, posições diferentes são
tomadas quanto à avaliação de cada caso relatado. Alguns atos de violência são
condenados pelo senso de justiça social (2 Sm 13). Em outros, há castigo para a injustiça
cometida (2 Sm 11). Ou então Deus interfere para libertar a mulher (Gn 12,10-20). Mas a
autora conclui que nem sempre a mulher é ajudada (Jz 19).
95
Irmtraud Fischer, “Vai sujeita-te!”, p.110-119.
Irmtraud Fischer, “Vai sujeita-te!”, p.112.
96
43
Refletindo nesta ótica, não dá para escapar da reflexão sobre a influência do
patriarcado na sociedade do antigo Israel. Irmtraud Fischer exprime: “ainda que textos do
Antigo Testamento nos informem sobre algumas mulheres muito fortes e que se
impuseram inclusive politicamente, não tinham as mulheres os mesmos direitos e chances
que os homens israelitas e livres e com pleno gozo dos direitos. Esta desigualdade social
dos sexos deve ser considerada em todos os textos em geral.”97
Portanto, a fotografia de Sara é de uma mulher explorada sexualmente. Sara é
vítima do sistema patriarcal que se apoia no androcentrismo. Só mesmo um Deus
libertador pode salvá-la dessa cultura violenta.
De um lado, é importante tomar consciência e desvendar os vários tipos de
violência que assolam as mulheres. Entretanto, é preciso romper com a visão autoritária
que só enxerga a vitimação das mulheres.
Em Gn 12,10-20 Sara não é só vítima da violência social que obriga as famílias
seminômades a migrarem para terras estrangeiras (12,10). Sara não é só vítima da
violência doméstica que a impele a submeter-se ao marido (12,11-13). Não é só vítima da
violência sexual institucionalizada que a obriga a fazer parte do harém do palácio (12,15).
Sara reage pois é companheira de Abraão na busca de superar a fome (12,11). Sara
é mulher sábia pois aceita se apresentar como irmã de Abraão para preservar a vida dele
(12,13). Usou como estratégia a invenção de Abraão. Até hoje vemos essa sabedoria das
mulheres que moram em periferias violentas, como Heliópolis. São capazes de se calar e
de inventar muitas histórias para salvar a vida dos filhos e do marido, como fizeram as
parteiras do Egito (Ex 1,15-21).98
Sara é vingada por Deus que não aceita sacrifício e nem violência sexual contra a
mulher (12,17). Todavia, é preciso reconhecermos que Sara tem um corpo admirável (Gn
12,11). Por isso, o seu corpo é alvo de exploração.
97
Irmtraud Fischer, “Vai sujeita-te!”, p.111.
Veja, em anexo, o depoimento de Genésia.
98
44
Catherine Chalier vislumbra a imensa beleza de Sara, tanto a exterior como a
interior, cujos traços físicos não se alteram com o tempo, deixando-a sempre bela e capaz
de resistir às marcas da velhice.99
Comenta que Abraão demorou muito para perceber a beleza da mulher. “Foi
preciso ser expulso pela fome, efetuar uma longa viagem até ao Egito, para percebê-la.”100
A autora associa a tomada de consciência de Abraão, em relação à beleza de Sara,
com o seu medo de morrer por causa de sua mulher (Gn 12,12). Nesse momento de
inquietação e preocupação, Abraão sugere a Sara passar por sua irmã.
Ele teme que alguém se apodere de Sara, ao ver sua beleza. Por isso, decide então
pedir-lhe que aceite apresentar-se como sua irmã. É interessante a análise de Catherine
Chalier acerca desse momento crucial para o casal. Sua reflexão contribui na compreensão
das relações de gênero entre homens e mulheres.
A autora narra que, ao fazer esse pedido a Sara, Abraão não visa protegê-la, à
primeira vista. Mas “se premunir, ele mesmo, como se de antemão cedesse à fatalidade de
uma futura violência. De falto, Sara lhe obedecerá.”101
Catherine Chalier entende que houve uma troca de palavras entre homem e mulher.
Não só troca mas reciprocidade e empatia. “Pela primeira vez com efeito, na Bíblia, uma
pessoa pede um favor a outra, pede-lhe socorro. E a outra pessoa, escutando, consente em
obedecer para livrar a outrem da iminência de um destino infeliz.”102
Por trás desse pedido, Catherine Chalier detecta dois movimentos: a ordem de
Abraão e a obediência de Sara. Isso revela uma relação de senhorio e servidão. Abraão é o
senhor e Sara sua servidora.
99
Catherine Chalier, As matriarcas, p.18.
Catherine Chalier, As Matriarcas, p.17.
101
Catherine Chalier, As Matriarcas, p.20.
102
Catherine Chalier, As Matriarcas, p.20.
100
45
Contudo, a autora inocenta Abraão, colocando que ele age dessa forma devido a
sua vulnerabilidade e temor pela própria vida. E Sara obedece porque zela pela segurança
do marido. Mais do que isso, ela se preocupa com o direito do outro e com a justiça para
com ele.
Aqui cabe uma questão: e o direito da mulher que é vítima de uma dominação?
Qual é realmente a ética de justiça nesse caso? Trata-se de uma dedicação ao outro ou
submissão?
Aproveitamos o questionamento da própria autora, embora não concordemos com
o seu pensamento de justificar a ação de Abraão. “Como se pode qualificar o gesto que
consiste em oferecer o corpo de sua mulher para salvar a própria vida? Será que ele
desprezava Sara a ponto de submeter-se aos costumes que vendem barato um corpo de
mulher quando se trata de salvar um homem em perigo (Gn 19,8; Jz 19,24)?”103
Para fechar o tema da beleza de Sara, a autora salienta que o Midraxe não é sempre
indulgente com Abraão.104 O pedido de Abraão poderia pôr em perigo a promessa de vir a
ser uma grande nação, perspectiva que passa pela participação de Sara.
A crítica a Abraão está associada à impossibilidade de se cumprir a promessa. A
promessa de posteridade parece ser mais importante do que a dignidade de Sara enquanto
mulher. Dela se espera que esteja em condições para exercer a função de procriadora, em
cumprimento às perspectivas da promessa de descendência para Abraão.
Da obra de Catherine Chalier emerge mais um retrato de Sara. Trata-se de “Sara,
irmã de Abraão” – que aprofunda a dimensão do diálogo e da interação entre Abraão e
Sara nas histórias paralelas de Gn 12,10-20 e 20,1-18. 105
103
Catherine Chalier, As Matriarcas, p.20-21.
Midraxe é uma explicação rabínica do Antigo Testamento. Pode ter a forma de um comentário que explica
cada versículo do texto bíblico ou uma paráfrase do texto. São pregações escritas, feitas nas sinagogas e nas
escolas aos sábados e dias de festa, às vezes também por ocasião de acontecimentos importantes da vida
pública ou particular: guerra, fome, circuncisão, casamento, enterro (veja Dicionário Enciclopédico da
Bíblia, Editora Vozes, Petrópolis, 1971, p.988). Midraxe é uma das obras de referência para Catherine
Chalier. A autora não separa o discurso analítico e a leitura da Bíblia do midraxe rabínico.
104
46
Para a autora, no relato bíblico de Gênesis o diálogo entre homem e mulher se
inaugura com Abraão e Sara. Segundo Catherine Chalier, diálogo iniciado de maneira
estranha pois Abraão pede a sua esposa que assuma o papel de sua irmã (Gn 12,13;
20,5.13). Esta é a palavra de Abraão.
Quanto à palavra de Sara, a autora lembra que ela pediu a seu marido que tomasse
a escrava Agar, a fim de gerar-lhe, para ela, um filho (Gn 16,2). Ela identifica nas duas
conversas um ato de obediência silenciosa, onde cada um se submete ao apelo do outro.
Assim, o pedido do outro tem absoluta prioridade. Contudo, em nossa explanação nos
deteremos no pedido feito em Gn 12,13 e 20,5.13.
A pergunta lançada por Catherine Chalier é muito pertinente para quem está
olhando esta narrativa com olhos de mulher: Sara não está pondo em perigo a sua honra e
o auto-respeito ao atender esse pedido? Sem contar que, com este gesto, Sara substitui
Abraão no momento do perigo e corre todos os perigos no seu lugar.106
Todavia, a própria Catherine Chalier responde a essas indagações, sublimando a
atitude de Sara que teria colocado o bem do próximo acima do seu próprio bem, se
dispondo a negar sua condição de esposa e a mudar de identidade. Age como se a vida de
Abraão fosse mais importante e tivesse prioridade sobre a dela.
Nesse gesto de Sara, Catherine Chalier vê reflexos de uma subjetividade feminina,
a de preocupar-se com o outro, a ponto de renunciar o próprio bem por causa dele, sem
esperar gratificação.107
Não seria este um retrato de Sara mártir e sacrificada por uma bela causa, a vida de
seu marido? Não seria esta uma imagem de mulher dedicada à família e esquecida da
própria vida? Por que se espera mais da mulher a renúncia ao bem pessoal?
105
Catherine Chalier, As Matriarcas, p.23-35.
Catherine Chalier, As Matriarcas, p.24-25.
107
Catherine Chalier, As Matriarcas, p.25-26.
106
47
Esta é a típica mulher do lar que precisa resgatar a sua auto estima para cuidar
também de si mesma e não viver simplesmente em função do homem. É uma visão
tradicional de mulher, construída histórica e culturalmente.
Embora Catherine Chalier enalteça a ação de Sara, não deixa de questionar o
procedimento de Abraão. Ele teria o direito moral de exigir tanto de Sara? Sara deveria
aceitar desprezar a idéia da ética para consigo mesma? Tudo isso seria incoerência de um
homem que ainda não era bastante justo? Fraqueza diante da violência do perigo?
Desprezo por aquela que não passa de uma mulher?108
Catherine Chalier dá uma resposta um tanto filosófica, na dimensão antropológica:
“mas Sara não hesita: o relato bíblico a apresenta como o primeiro ser humano a dar
prioridade à vida de outrem acima de sua própria vida, a recusar-se a viver, se isto custar o
preço da morte do outro.”109
De novo, esta colocação nos incomoda e nos levar a perguntar: mas Sara não tinha
auto estima? Esta não é uma visão de quem pensa a mulher em relação ao homem? Cadê a
mulher autônoma que preserva a própria vida, se respeita, se ama, sem deixar de ser
solidária com as pessoas?! Onde fica a ética da autonomia pessoal, da liberdade de
pensamento e de expressão?
Só é possível concordar, em parte, com Catherine Chalier quando se faz uma
releitura de sua explanação, sob o ponto de vista da relação solidária entre mulher e
homem. Então vislumbramos o retrato de Sara solidária, capaz de dar espaço dentro de si
ao sofrimento do outro, de lhe fazer graça na linguagem da autora, 110 de fazer
solidariedade na nossa tradução.111
A autora dialoga e questiona a visão rabínica do Midraxe sobre a postura de Sara.
Os sábios rabinos imaginam as lágrimas e a prostração de Sara quando os egípcios a
108
Catherine Chalier, As Matriarcas, p.27-28.
Catherine Chalier, As Matriarcas, p.28.
110
Catherine Chalier, As Matriarcas, p.31.
111
A tradução de Gn 20:1-18, do texto original em hebraico, será apresentada no próximo capítulo.
109
48
levam para o palácio do faraó.112 “Imaginam como Sara revela sua condição de mulher
casada, ordenando a um anjo que ferisse o Faraó se ousasse tocar nem que fosse a sua
sandália.”113
Nessa visão, Sara reage dessa forma com faraó porque não poderia abdicar de sua
dignidade de pessoa criada à imagem e semelhança de Deus. Aí está um limite ao
compromisso pessoal para salvar o próximo. “Ninguém poderia renunciar à sua dignidade
de pessoa, aceitar uma coerção que fizesse tábula rasa das exigências éticas para consigo
mesmo.”114
Porém Catherine Chalier defende a atitude de Sara relatada no texto bíblico e não
conforme a imaginação do Midraxe. Ela reconhece que Sara é ética e despojada ao se
passar por irmã de Abraão. É ética no sentido de se preocupar com o bem do outro e de ser
solidária com ele. Não abandona Abraão à própria sorte.115
Como já foi dito no estudo dos retratos de Sara em Gn 12-25, diferente é a
abordagem de Milton Schwantes sobre Gn 12,10-20: ele parte de questões concretas para
entrar no texto bíblico, evidencia a trama de relações sociais presentes no texto e pergunta
pelo contexto social da narrativa.
Os retratos de Sara em Gn 12,10-20 podem ser encontrados em cinco textos
elaborados por Milton Schwantes. Em duas obras, publicadas em anos diferentes - a
primeira em 1984,116 a segunda em 1986,117 - a reflexão referente a Gn 12,10-20 parece
ser a mesma.
Logo de saída, Milton Schwantes diz que esta perícope contém uma narrativa que
discorre sobre conflitos. Mas no seu âmago está a dominação do homem (Abraão e faraó)
sobre a mulher (Sara).
112
Catherine Chalier, As Matriarcas, p.24.
Catherine Chalier, As Matriarcas, p.25.
114
Catherine Chalier, As Matriarcas, p.30.
115
Catherine Chalier, As Matriarcas, p.34.
116
Milton Schwantes, “Interpretação de Gn 12-25”, p.31-49.
117
Milton Schwantes, A família de Sara e Abraão, 91p.
113
49
A relação conflitiva do texto é de ordem sócio-política, diz respeito ao embate
entre seminômades das estepes palestinenses e o estado egípcio. Portanto, pastores e faraó
estão frente a frente em posições políticas diferenciadas pois representam grupos sociais
distintos.
Podemos dizer que, de um lado estão os pastores seminômades vivendo em
situação precária, passando fome e migrando de um lugar para outro, ameaçados pelas
condições climáticas da Palestina. De outro lado está faraó e seu palácio, desfrutando de
uma vida provavelmente farta nas cidades-estado, cercado de muitos bens e de muitas
mulheres nos haréns.
É neste cenário social que acontece a cooptação de Abraão pelo faraó. “O faraó
obtém a bela Sara e Abraão garante sua vida e, além disso, muitos presentes, entre os
quais diversas “servas”. Abraão é claramente cooptado pelo faraó. Este acordo entre
homens vai às custas da mulher. A rigor, Abraão dita este acordo a Sara. É o próprio
Abraão que entrega sua esposa ao faraó, sob o pretexto de ela ser sua irmã.”118
O retrato de Sara, na colocação de Milton Schwantes, é de uma mulher muda, que
não diz nenhuma palavra nessa cena bíblica. A sua palavra é a ação de Deus nesta
perícope. Ele atende ao grito mudo da mulher massacrada e muda a sua história.
Milton Schwantes diz que essa passagem tem seu lugar vivencial entre mulheres.
Portanto, é texto de mulher pois apresenta a situação da mulher na ótica feminina. A
perícope discorre sobre a situação da mulher do povo no âmbito da corte.
O autor informa que o reinado conheceu muitas saras: Bate-Seba (2Sm 11s),
Tamar (2Sm 13), a mulher sábia de Técoa, sem nome (2Sm 14), Abisague (1Rs 1), Atalia
(2Rs 11). “A partir da ótica da camponesa ou pastora, nossa estória denuncia o destino
impingido, no âmbito da corte, a estas e outras mulheres.”119
118
Milton Schwantes, “Interpretação de Gn 12-25”, p.43.
Milton Schwantes, “Interpretação de Gn 12-25”, p.44.
119
50
Porém, não tem só mão de mulher nesse texto. A hipótese de Milton Schwantes é
de que ocorreram alguns acréscimos por conta dos compiladores do Pentateuco. Os
acréscimos giram em torno do lugar social da cena, terras egípcias, e das pragas. Assim, a
perícope “assume a função de uma cena programática: Abraão e Sara fazem a mesma
trajetória que, mais tarde, será feita pelo grupo mosaico. Nossa perícope prefigura a
libertação dos hebreus sob a liderança de Moisés.”120
A terceira obra de Milton Schwantes, Dize que és minha irmã!,121 aborda temas de
Gênesis 12-25, especialmente a figura de Sara. Nesse texto, Milton já aponta várias
novidades no estudo de Gn 12,10-20 em relação às suas reflexões anteriores.122 Ressalta
que Gn 12,10-20 é uma releitura de Gn 20,1-18 e 26,1-11.
Gn 12,10-20 é um texto intencionalmente criado, a partir das experiências narradas
em 20,1-18 e 26,1-11. Tem uma função hermenêutica para todo o conjunto de Gn 12-25,
ou seja, sua chave de leitura é a libertação de Sara e Abraão que preconiza a libertação do
povo de Israel no Egito (Ex 1-15).
Outra peculiaridade de nosso capítulo 12 é o fato de a cena de Sara e Abraão ter
uma função especial neste começo de Gênesis 12-25. Segundo Milton, esta cena faz parte
da introdução deste conjunto de capítulos.123
“Esta começa em 11,27 até 12:9; a segunda, de 12,10 até 12,20. Na primeira o
assunto central é a promessa da terra, dada a Abraão. A segunda tematiza a libertação de
Sara. Nosso texto é, pois, uma ala da porta de entrada para os caps. 12-25. Quer orientar os
textos que lhe seguem. Tem função hermenêutica para todo conjunto. A libertação de Sara
é, portanto, chave de leitura para Gênesis 12-25!”124
120
Milton Schwantes, “Interpretação de Gn 12-25”, p.44.
Milton Schwantes, Dize que és minha irmã! Meditações sobre alguns temas de Gênesis 12-25, Centro de
Estudos Bíblicos, vol.38, Belo Horizonte, 1987, 31p.(Suplemento Boletim Por trás da Palavra).
122
Milton Schwantes, Dize que és minha irmã”, p.27-28.
123
Sobre essa temática, faremos um estudo no capítulo 2, quando analisaremos o conjunto literário de
Gênesis 11,27 a 25,18.
124
Milton Schwantes, Dizes que és minha irmã, p. 28.
121
51
Milton Schwantes usa a expressão êxodo em miniatura para explicar que Gn 12,1020 é um resumo do cenário do êxodo. Com isso, a chave de leitura – a libertação – de
12,10-20 pode abrir a porta para o entendimento de todo Gênesis 12-25. Sendo assim, os
episódios da vida de Abraão e Ló, Sara e Agar, Isaac e Ismael, personagens famosos desse
bloco literário, devem ser lidos sob a luz da libertação.
Esta suspeita, já apontada por Milton nas obras anteriores, mostra uma ação
teológica em direção à libertação feminina, pois a razão da intervenção libertária de Deus
é a subjugação da mulher às condições do harém.
Nesta obra – Dize que és minha irmã - o autor ampliou sua percepção em relação à
ação de Deus, já identificado como libertador de mulher. Milton Schwantes comenta que
Deus age em desconformidade com as ações de Abraão, tomando caminhos opostos aos
do homem.
Nessa perspectiva, o retrato de Sara é de uma mulher preciosa para Deus que, por
sua causa, exerce violência contra o reinado de faraó, ferindo-os com grandes pragas (Gn
12,17).125 A violentada foi vingada. O violento foi punido. Mas Abraão foi poupado; ficou
com os bens adquiridos às custas da mulher e a recebeu de volta (Gn 12,20).
Podemos questionar a teologia dessa narrativa, nos perguntando: por que Deus não
puniu Abraão? Afinal de contas, ele também agiu mal com Sara. Essa resposta a narrativa
não dá.
O quarto texto de Milton Schwantes, “Terra e Dignidade”,126 é mais recente, do
ano de 1990, e traz mais detalhes sobre as coincidências entre a narrativa de Gn 12,10-20 e
125
Veja as narrativas sobre as pragas em Ex 7,8-11,10 (confira também Sl 78,43-51, 105,26-36, Sb 11,6-20)
e suas respectivas explicações nas notas da Bíblia de Jerusalém. As pragas do Egito, segundo a tradição
israelita, foram enviadas por Deus para ferirem os egípcios para obrigá-los a deixar os israelitas saírem do
Egito.
126
Milton Schwantes, “Terra e Dignidade – Uma Interpretação de Gênesis 11.27 até 12.20”, em
Peregrinação: estudos em homenagem a Joachim Herbert Fischer pela passagem de seu 60 aniversário,
Editora Sinodal, São Leopoldo, 1990, p.203-216.
52
as histórias da libertação dos hebreus do Egito. Outra explanação nova é o paralelo que o
autor faz entre Gn 12,10-20; 20,1-18 e 26,1-11,127 chamando-os de histórias parecidas.128
Todavia, interessa-nos extrair os retratos de Sara à luz dessa obra. O autor
permanece fiel às suas indicações anteriores. Sara é retratada na posição de vítima e
mulher humilhada pelo próprio marido e pelo governante. Migrante e sofredora, Sara está
em sintonia com as maiorias, submetidas ao poder faraônico.
Assim, Sara é mais um objeto nas mãos de homens que querem satisfazer seu
apetite sexual, os ministros e o próprio faraó; do homem que quer conservar a vida e
aumentar seu capital, como é o caso de Abraão.
De acordo com Milton Schwantes, Sara é vítima duas vezes. Vítima da casa
patriarcal e vítima do palácio real. “Por isso, ao se ver livre da cidade – um dos agentes de
sua opressão – Sara não olha saudosamente para trás, como fizera a mulher de Ló
(19,26).”129
Sara é uma mulher encurralada e apertada pela opressão. Já não tem palavras. Sara
não diz nada! Contudo, sua dignidade de mulher é resgatada por Deus. Assim, o
patriarcado abraâmico e o imperialismo faraônico são superados.
É muito significativo o retrato que podemos verificar nessa cena. Não de Sara
sozinha mas dela com Deus. Sara ficou calada o tempo todo. Deus também ficou calado.
Não falou nada, até parece que imitou o gesto da mulher. Porém, agiu e libertou a mulher.
Isso nos mostra que, talvez, o silêncio de Sara não seja sinal de extrema
humilhação, conforme coloca Milton Schwantes, mas estratégia de sobrevivência. Talvez,
uma palavra mal dita poderia ser fatal! E uma ação bem feita, como a de Deus, seria vital!
127
Este comentário está no texto “Lutando pela Dignidade” (cf. Milton Schwantes, “Terra e Dignidade”,
p.210-216). Veja também um artigo posterior do mesmo autor que medita a questão da terra e da liberdade
da mulher, na mesma linha de pensamento do artigo citado acima (cf. Milton Schwantes, “A caminho de
terra e liberdade – Gn 12 – Um roteiro”, em Estudos de Religião, vol.5, n.7, São Bernardo do Campo, 1991,
p.129-144).
53
Assim, como já dissemos antes, Sara é sábia. Ela nos lembra tantas mulheres de
Heliópolis que também se calam diante da dor, do sofrimento e da humilhação. Calam-se
estrategicamente para se salvar, se proteger e esperar uma libertação. Calam diante dos
maridos ciumentos. Calam diante dos traficantes. Calam diante dos maus tratos.130
Mas agem às escondidas. Agem participando das comunidades de base. Agem
multiplicando a Palavra de Deus para seus filhos, para as crianças da comunidade e para as
outras companheiras. Agem aguardando o dia de poderem soltar a palavra e se libertar de
todas as amarras faraônicas de nossos tempos.131
1.4. Retratos de Sara em Gênesis 20,1-18
Finalmente chegamos à galeria que mais nos interessa, a da leitura bíblica de Gn
20,1-18. Catalogamos como textos mais densos e detalhados de Gn 20,1-18: o de Mery
Cruz Calvo, numa perspectiva de leitura bíblica latino-americana e feminista; e o de André
Chouraqui, traduzido do francês para o nosso idioma.
Milton Schwantes, ao trabalhar Gn 12-25, especialmente 12,10-20, faz acenos ao
texto de Gn 20,1-18. Igualmente, Catherine Chalier cuja obra analisa as matriarcas, entre
as quais está Sara. Porém, a grande maioria das autoras e autores não aborda Gn 20,1-18 e
quando o faz, apenas tira proveito de suas informações a fim de completar dados ou
justificar algum argumento para fundamentar a sua reflexão de Gn 12,10-20.
É interessante mencionar que Isolde Dreher dedica um capítulo de sua obra, o
terceiro, para as narrativas sobre mulheres em Gn 12-38. Nesse capítulo, ela delimita as
perícopes e analisa cada uma em particular. Tece conclusões parciais sobre a situação da
128
No capítulo 2 de nossa dissertação trabalharemos esta questão do paralelismo entre Gn 12,10-20, 20,1-18
e 26,1-11.
129
Milton Schwantes, Dize que és minha irmã, p.23.
130
Veja, em anexo, depoimento de Antônio acerca do tratamento conferido às mulheres.
131
Veja, em anexo, depoimento da líder Genésia.
54
mulher no seminomadismo e a maneira como ela é encarada pelo Deus de Israel. Todavia,
o texto de Gn 20,1-18 não foi trabalhado pela autora no referido capítulo.
Corina Lanoir não identificou Gn 20,1-18 como texto de violência contra a mulher,
embora tenha elencado Gn 12,10-20, cuja história de violência é parecida com esse texto.
Da mesma forma agiu Irmtraud Fischer. Apesar de ter relacionado os textos bíblicos que
tratam de violência sexual contra mulheres, ela ignorou Gn 20,1-18 que tem narrativa
paralela a Gn 12,10-20, considerado em sua pesquisa.
Mery Cruz Calvo, em seu breve mas denso artigo,132 faz uma reflexão sobre Gn
12,10-20 e 20,1-18. A autora tem como objetivo oferecer um aporte para as feministas,
fazendo-as enriquecer-se com a visão de um Deus mais completo e integral, e não somente
masculino.
De acordo com este enfoque, nesses textos bíblicos vamos olhar uma mulher e
como, ao seu redor e por sua causa, gera-se um conflito entre Deus e os homens que a
convertem em protagonista desta história. Este é o retrato principal que Mery Cruz Calvo
oferece de Sara em Gn 20,1-18, uma mulher com um corpo tomado pelo rei mas não
tocado por ele, um corpo defendido por Deus.
A autora salienta que há coincidências entre os dois relatos bíblicos em seus pontos
essenciais. Porém, em Gn 20,1-18 se apresentam algumas matizes que Mery Cruz Calvo
quer desenvolver como intuições em torno de duas temáticas. A primeira delas é a de que
a revelação de Deus passa por uma mulher. E a segunda, diz respeito a Abimeleque e
Abraão no seu encontro e reencontro com Deus.
A abordagem literária proposta por Mery Cruz Calvo na análise do texto está
fundamentada na teoria das fontes,133 cuja tese afirma que o Pentateuco – coleção que
contém o livro de Gênesis e, portanto, o nosso texto – é a compilação pós-exílica de quatro
documentos elaborados em épocas e lugares diferentes, e por grupos diferentes.
132
Mery Cruz Calvo, “Reflexiones alrededor de dos textos”, p.30-32.
Faremos um breve estudo da teoria das fontes no cap.II.
133
55
Para ela, o relato de Gn 20,1-18 se enquadra dentro da tradição eloísta, uma das
fontes que teria compilado o Pentateuco no 8º século, no reino do Norte. Nela Deus se
manifesta através de mediações, uma delas são os sonhos.
É o que acontece na cena de Gn 20,3-7 quando Deus se revela ao rei Abimeleque
através de um sonho no qual ele é condenado à morte por causa de Sara, pois havia se
apoderado da mulher de outro homem.
Mery Cruz Calvo assinala duas palavras que lhe parecem importantes no texto:
tomar e tocar. Abimeleque tinha consumado o tomar Sara, contudo, não chegou à tocá-la
porque houve intervenção divina. “Deus no permite que el cuerpo de Sara sea tocado (...)
Dios defensor del cuerpo de Sara.”134
Essas palavras lhe servem como chave de abertura para destacar a questão do
projeto de Deus em Sara e Abraão, um paradigma muito comum nas leituras de Gn 12-25.
Ela constrói sua argumentação, afirmando que Sara pertence a Abraão. E ele é a
manifestação do projeto de Deus que se está gestando, é o seu eleito e elo de comunicação
entre Deus e a humanidade. Sara é a mulher que gerará os descendentes que construirão o
povo de Deus. Portanto, conclui a autora, o projeto de Deus passa por Abraão e por Sara.
O rei Abimeleque está ameaçando o projeto de Deus quando toma Sara e deseja
tocá-la. Isto porque Abraão-Sara são a síntese homem-mulher na qual se cumpre os
desígnios de Deus. “Con ésto se rompe el peligro de cualquier interpretación moralista.”135
Conta Mery Cruz Calvo que Abimeleque é um rei pagão que tem uma resposta de
acolhida à revelação de Deus. Crê que por causa de Sara pode morrer. Então o medo se
apodera dele e de seus servos.
A autora afirma que Abimeleque crê em Deus, crê na sua revelação. Tudo isso
passou pela mulher que corria perigo nas mãos dos homens. Não só ela corria perigo mas
o projeto de Deus também.
56
Mery Cruz Calvo sintetiza sua concepção de Deus a partir deste episódio: é um
Deus que se totaliza na história dos homens, se revela como homem-mulher e tem uma
mensagem universal para todos. É um Deus que se coloca ao lado das pessoas indefesas:
as mulheres. Por tudo isto, Deus Salvador. Vejamos como esse Deus se relaciona com os
homens nessa história.
Chama a atenção de Mery Cruz Calvo o fato de Abraão não se situar no conflito
formulado por Deus ao rei Abimeleque que havia desejado a mulher de outro homem, sua
esposa. Por isto há uma ruptura da harmonia homem-mulher. Mery Cruz Calvo confirma
sua idéia: qualquer coisa que lhe suceda, a um ou ao outro, afeta as duas partes envolvidas
e isto é reprovado aos olhos de Deus. Assim, tanto Abraão como Abimeleque são
transgressores desta harmonia.
Abraão é transgressor porque nega a mulher e a deixa à sorte dos homens.
Abimeleque, por sua vez, quer possuí-la mas ela tem um dono, uma história em
construção e um caminho voltado para Deus. Nessa formulação, Sara é retratada como
uma mulher sinal de garantia de que o projeto de Deus se realizará.
Segundo a autora, neste relato Abraão só tem um encontro com Deus no final da
história. Porém Deus está ali desde o início, embora os homens o ignorem, continua seu
trabalho de fazer-se visível e é aqui onde Sara entra como símbolo da revelação de Deus.
“Y gracias a esta revelación Abimelec y Abraham pueden encontrar a Dios. El rey por vez
primera y Abraham como un paso más en su camino. A Dios no se le tiene nunca
definitivamente.”136
Concluindo seu artigo, ela o fecha salientando que Abimeleque é o encarregado de
restabelecer a harmonia porque percebeu claramente o pecado em que havia caído e trata
de repará-lo e ser fiel a Deus. Abraão, por sua parte, se reencontra com Deus na oração e
intercede pelo rei, sua esposa e seus servos. Recompõe-se a harmonia homem-mulher que
se encerra com a devolução da fertilidade à esposa e às servas do rei.
134
Mery Cruz Calvo, “Reflexiones alrededor de dos textos”, p.31.
Mery Cruz Calvo, “Reflexiones alrededor de dos textos”, p.32.
135
57
Todavia, o escrito de Mery Cruz Calvo tem um limite que precisa ser evidenciado,
ainda que secundário. A autora não usa uma linguagem inclusiva – masculina e feminina para alguns termos que são expressos somente no masculino como “paganos, hombres e
historia de los hombres”.
Este tipo de linguagem dificulta a emergência do feminino e a sua valorização
tanto na linguagem cotidiana como nas produções literárias. E para um enfoque feminista,
é importante a expressão de uma linguagem inclusiva.
Igualmente importante para a abordagem feminista é o estudo do contexto literário
e social de Gn 20,1-18, muito bem colocado por Milton Schwantes em seus textos,
elaborados a partir de uma ótica libertadora e feminista.
No texto Dize que és minha irmã,137 ao referir-se ao capítulo 20 de Gênesis, Milton
Schwantes o identifica como relato de mais uma mulher para o harém do reinado. Para ele,
este capítulo realça o antagonismo entre seminomadismo, representado por Sara e Abraão,
e centro urbano, cuja referência é Abimeleque. A cidade é a sede de opressão através do
estado que se impõe sobre os homens e sujeita as mulheres ao harém do palácio.
Nessa realidade, Sara é retratada como uma mulher seqüestrada para o harém de
Abimeleque, rei de Gerar. É violada em sua dignidade. É usada como escrava, é oprimida,
é injustiçada. O próprio Abraão colabora com essa sujeição de Sara. Sua vida lhe é mais
preciosa que a de sua companheira. Seus interesses assemelham-se mais ao do rei do que
aos de Sara.
Portanto, Sara é vítima de dupla opressão: vitima-a a arbitrariedade do rei citadino.
Abandona-a também o pastor seminômade. A cidade oprime esta mulher porque ela é
parte das populações dependentes, das maiorias oprimidas. A família patriarcal oprime-a
porque sua norma rege a submissão da mulher ao homem.
136
Mery Cruz Calvo, “Reflexiones alrededor de dos textos”, p.32.
Milton Schwantes, “Dize que és minha irmã, 31p.
137
58
Milton Schwantes conclui: no harém se conjugam e se complementam o
patriarcado e o reinado. Sara foi vítima de ambos, de acordo com o capítulo 20,1-18.
Em artigo posterior, “Não estendas tua mão contra o menino”,138 Milton Schwantes
tece considerações sobre os conteúdos de Gn 20,1-18. Verifica que eles estão próximos de
Gn 12,10-20: em ambos a questão central são as relações intrafamiliares e não a tensão
entre vida seminômade e vida citadina. Assim, os assuntos de Gn 20,1-18 se fixam na
relação de Sara/Abraão com os estrangeiros, com os filisteus.
Entretanto, conforme Milton Schwantes, essa história familiar tem seu eixo
alterado. O assunto deste capítulo é a opressão de Sara. Mas Sara é deslocada para a
margem do cenário, dando lugar a Abraão e Abimeleque que passam a ocupar a cena.
“São eles que falam; Sara é silenciada. Seu sofrimento, sua opressão tendem a
sumir. O problema do rei (Abimeleque) aumenta, cresce, ocupa a cena. Que alteração!
Mas, apesar disso, ainda que Sara seja deslocada do foco, seja marginalizada do cenário, a
história do cap.20, finalmente, depende da mulher. É Sara que cria a história! Ainda que
Abraão e Abimeleque estejam no centro, a narrativa permanece concreta, como também o
atesta 21,22-34.”139
Acompanhando alguns acenos da trajetória do pensamento de Milton Schwantes,
vamos percebendo que suas contribuições vão trazendo novidades e, provavelmente,
revendo conceitos através do estudo exegético. Parece que um deles é o do silêncio de
Sara, ainda que incipiente e despercebido, talvez até para o próprio autor.
No texto “Terra e Dignidade”,140 Milton Schwantes interpreta Gn 11,27 a 12,20.
Ao se referir à opressão sofrida por Sara, sem aparentes protestos, ele explicita que Sara
está encurralada, pressionada pelo patriarca (12,11-13) e pelo palácio (12,14-15), na
posição de vítima do acordo feito entre Abraão e o faraó.
138
Milton Schwantes, “Não estendas tua mão contra o menino – Observações sobre Gn 21 e 22”, em Revista
de Interpretação Bíblica Latino Americana, vol.10, Editoras Vozes/Sinodal, Petrópolis/São Leopoldo, 1991,
p.24-39.
139
Milton Schwantes, “Não estendas tua mão”, p.29.
140
Milton Schwantes, “Terra e Dignidade”, p.203-216.
59
“O aperto é tamanho que nem voz lhe resta. A humilhação é tão completa que não
se ouve nenhum som, nenhuma palavra de Sara. Ela nada diz, no que nosso texto difere da
versão no cap.20 (veja v.5).”141
Então, muda o retrato de Sara. Parece que o autor começa a captar que Sara, em Gn
20,1-18, não é muda. Ela tem palavra. Resta saber e aprofundar a qualidade e o alcance de
sua palavra.
Novos acentos são postos por Milton Schwantes, a partir de sua reflexão sobre as
gerações de Terá que perpassam Gn 12-25. A respeito do nosso capítulo, ele relata: “no
capítulo 20 claramente é retomado 12,10-20: outro seqüestro de Sara. Desta vez as
ênfases, afora as de reforçarem o evento anterior, seguem por trilhos próprios, até bastante
simpáticas ao rei estrangeiro, vítima de Abraão tanto quanto Sara.”142
Novo retrato é focalizado. Em Gn 20,1-18 Sara não é a única vítima. O rei também
é vítima. Este retrato é ambíguo. Levanta uma enorme complexidade no entendimento do
conceito de oprimido e opressor. Como pode o opressor ser tido como vítima diante de um
contexto no qual ele é o detentor do poder?
A inversão dos papéis sociais, que submete Abimeleque ao poder opressor de
Abraão, só poderá ser comprovada na dimensão da reprodução do poder nas instituições
do micro poder. Isto é, talvez Abraão tenha tido uma única chance na vida de dominar um
rei. Dominou porque era detentor de poder no âmbito do patriarcalismo. .
Também é alvo de atenção para Milton Schwantes, em Gn 20,1-18, a relação de
Sara e Abraão com os grupos e povos vizinhos, os filisteus. Para ele, os estudos futuros de
Gn 12-25 deveriam destacar, com corações mais abertos, o tema da amizade com os
ismaelitas (Gn 16 e 21), filisteus (Gn 20 e 21,22-34), moabitas e amonitas (Gn 19).
Na sua opinião, o estudo de Gn 12-25 precisa ser uma contribuição para a paz,
pois a terra de Sara e Abraão é terra de paz. As cenas narradas mostram que o povo
141
Milton Schwantes, “Terra e Dignidade”, p.214.
Milton Schwantes, “E estas são as gerações de Terá”, p.48.
142
60
israelita queria bem a seus vizinhos. Concordamos com essa idéia. É preciso resgatar e
pesquisar esta dimensão das relações sociais com povos vizinhos e estrangeiros.
Tentaremos trilhar por esses caminhos no estudo de Gn 20,1-18.
Em outro prisma, Catherine Chalier dedica quase um capítulo de sua obra para
explanar sobre Gn 20,1-18.143 Como seu estilo literário e sua teologia bíblica costumam
fazer um estudo temático da Bíblia, a sua reflexão mescla Gn 20,1-18 com outros
capítulos, especialmente 18 e 21.
A autora centraliza sua observação nos aspectos antropológicos das narrativas.
Compõe uma apresentação linear da história bíblica, deixando de lado a especificidade de
cada narrativa.
Sendo assim, apresenta Abraão e Sara estabelecidos na cidade de Gerara (Gn 20,1),
após a destruição de Sodoma e Gomorra (Gn19,24-25). Comenta que Abraão encontravase angustiado e com medo de correr risco de vida por causa da beleza de Sara. Esta teria
ficado bonita depois do anúncio da sua gravidez (Gn 18,9-15). Por isso, Abraão apresentaa como irmã ao rei Abimeleque. Nem lhe pede licença pois já haviam passado por essa
experiência antes (Gn 12,10-20).
Catherine Chalier explica que por causa de Sara, como se fosse um eco da ferida
infligida a essa mulher, Abimeleque foi prejudicado pois Deus tornou estéreis todas as
mulheres de sua casa. Informado em sonho da identidade de Sara e das ameaças que o
assolavam, o rei cedeu. E Deus prometeu conceder-lhe a graça da vida mediante a
intercessão de Abraão. Foi assim que aconteceu. Por Abraão toda a casa de Abimeleque
foi curada, sua mulher e suas servas puderam ter filhos.
Em meio dessa problemática, abordada por Catherine Chalier na perspectiva de
conflito entre seres humanos, emerge o retrato de Sara como mediadora e, ao mesmo,
causadora da mudança no corpo das mulheres da casa de Abimeleque e da rivalidade entre
Abraão e o rei.
143
Catherine Chalier, “Do riso ao nascimento”, em As matriarcas, p.49-67.
61
A superação desse conflito, cuja história inscreve-se no corpo das mulheres do rei,
passa por Sara. A restituição da paz, a contenção da agressividade e da violência, o fim da
competição entre homens, passaria pelo sacrifício da mulher.
“Entregar a irmã, restituir a esposa, rezar para que Deus não feche mais os úteros,
tudo isso enfim autoriza uma palavra de paz entre os homens. Mas qual o preço a pagar
por essa reconciliação? O texto indica sua malfadada verdade: o preço é o silêncio que se
espera da mulher, suas palavras represadas, seu consentimento sem esboçar resistência.”144
A mulher desse retrato é, no mínimo, candidata ao martírio: além de ser abusada,
consente e fica calada. Discordamos dessa imagem de Sara e propomos escutar o que Sara
diz (v.5.13). Vamos dar atenção à palavra de Sara e aprender com ela.
Será palavra de mulher passiva, sacrificada, agredida, disputada, violentada na sua
dignidade? Ou será palavra de mulher forte, estimada por Deus, respeitada por rei, temida
pelo útero das mulheres da casa de Abimeleque? O que realmente quer dizer essa mulher
enquanto agente social em Gn 20,1-18? Quem, de fato, é ela?!
Respostas para estas e outras questões buscaremos mais à frente. Certamente, não
as encontramos em obras como a da Catherine Chalier e muito menos na de André
Chouraqui. Desse tipo de abordagem, a qual respeitamos e valorizamos suas
contribuições, podemos extrair algumas idéias e alargá-las de acordo com o nosso ponto
de vista.
É o que fizemos com o texto “Sara, minha irmã”, de André Chouraqui que destinase ao estudo de Gn 20,1-18.145 Ele sintetiza a história bíblica e discorre alguns aspectos de
seus versículos, os quais aproveitaremos melhor no próximo capítulo de nosso trabalho
quando ensaiaremos uma exegese para Gn 20,1-18.
André Chouraqui é peculiar na sua explanação sobre Gn 20,1-18. Identifica o
episódio como aventura de Sara com o rei de Gerar. Menciona que o fundo da questão
144
Catherine Chalier, As matriarcas, p.51.
André Chouraqui, “Sara, minha irmã”, em A Bíblia – No Princípio, p.201-206.
145
62
dessa narrativa lhe escapa mas, certamente, está ligado a considerações místicas e
políticas. Para ele, tem a ver com relações entre as tribos, reis-sacerdotes e divindades.
De acordo com o autor, era comum um rei-sacerdote convidar a seu palácio a
mulher de um rei-sacerdote. André, então, elogia e justifica a ação de Abimeleque de
tomar Sara, discorrendo que não houve nada de vulgar no convite feito pois fazia parte dos
bons costumes da realeza (v.3-6).
O rei convidou a mulher do patriarca acreditando tratar-se da irmã deste. Portanto,
Abimeleque figura como inocente vítima do equívoco cometido por Abraão com o
consentimento de Sara.
Então, Sara deixa de ser focalizada enquanto mulher vítima de uma situação de
opressão, conforme retrataram várias autoras e autores já mencionados. A vítima, agora, é
Abimeleque. Com essa explicitação, vemos que é preciso repensar o conceito de opressão
da mulher em Gn 20,1-18.
Para tanto, nossa intuição, fio condutor da reflexão de Gn 20, prima pelo aspecto
referente à questão da mulher e das relações sociais. Aceitamos a concepção de André, de
inocentar Abimeleque, na intenção de estendermos essa reflexão para o campo
sociológico.
Supomos que Sara passa a ser vilã, tanto quanto Abraão. A mulher duplamente
oprimida, por ser esposa e por ser súdita, se junta a uma das forças masculinas para
enfrentar e até prejudicar o poder governante.
A disputa de poder entre homens, que desemboca na sujeição da mulher, toma
rumo novo. Vira disputa de poder de homem-mulher com rei. Mas o rei é diferente. Às
vezes dá a impressão que é mais digno do que o próprio patriarca. Comenta André
Chouraqui que, ao equívoco nascido da afirmação do casal patriarcal, opõe-se a extrema
nobreza da atitude de Abimeleque (v.3-6).
63
Aliás, em sua tradução, André apresenta duas alternativas para a compreensão dos
v.7-8. A primeira classifica Abimeleque como um inspirado, a quem Deus fala em sonho:
Sim, é um inspirado (v.7), o que não corresponde à nossa tradução que identifica Abraão
como profeta sendo, portanto, ele o inspirado.
Contudo, nesse embate, é o casal quem sai vitorioso, inclusive com a aprovação de
Deus que posiciona-se por causa da mulher. Disso, André dá notícias: o caso se encerra
com abundantes presentes que indenizam o casal prejudicado, quer tenham eles sofrido ou
provocado o prejuízo.
O certo é que Abimeleque dá muitos bens ao casal para sair honrosamente do
episódio. “Estes bens “velarão” os olhos dos que estão próximos de Sara, para que não a
desprezem (...) e, diante de todos, ela terá como argumentar e calar todas as más
línguas.”146
Realmente é um rei vencido, precisa ser curado. Para André Chouraqui, esta é a
última estranheza da história: o marido-irmão injuriado intercede por seu adversário e a
maldição se afasta da casa de Abimeleque, permitindo que as mulheres dêem à luz (v.1718).
“Sim, Iahweh havia retido, retido toda matriz da casa de Abimeleque, por causa de
Sara, a mulher de Abraham” (v.18), na tradução de André. A grave infração cometida foi
sancionada com a esterilidade dos ventres. A ação de Deus abriu todo útero da casa de
Abimeleque. André relaciona mulheres, ovinos, bovinos e todos os animais que estavam
impossibilitados de conceber.
Reparamos nesse gesto que Javé é um deus que toma partido. Ele fica do lado
daquelas pessoas e comunidades que estão em desvantagem social e política. Por causa
delas, Deus é capaz de fechar o útero (v.8) das instituições de poder (v.18) e, se for
necessário, rever tal procedimento (v.17).
64
1.4. Considerações finais
A leitura bíblica latino-americana feita sobre Gn 12-25 nesta última década
ofereceu importantes contribuições para a leitura popular e feminista da Bíblia. A primeira
consideração que fazemos, a partir dos retratos de Sara em Gn 12-25, é a de que a maioria
das obras analisadas propõem uma nova leitura deste bloco literário. Elas refutam a
tradição que identifica Gn 12-25 como histórias de Abraão e apresentam Sara como
protagonista deste ciclo de narrativas.
Sara detém um lugar proeminente em Gn 12-25. Ela está localizada no cabeçalho
da coletânea (11,30) e no último episódio das narrativas (24,67). A ênfase dada a Sara
deve-se às múltiplas funções sociais desempenhadas por essa mulher: ela é mãe,
progenitora, esposa, irmã e patroa.
Ao lado de Sara estão outras mulheres, as quais não nos cabe descrever nesta
análise, que ocupam lugar de destaque nos textos de Gn 12-25. Portanto, este tipo de
abordagem questiona a leitura androcêntrica das histórias bíblicas deste bloco literário.
Propõe uma chave de leitura que detecta a presença e a função da mulher nos
textos bíblicos de Gn 12-25, a partir do enfoque das relações sociais. Contudo, devemos
acrescentar nesta chave de leitura a análise das relações sociais de poder e de gênero.
A nosso ver, os conflitos sociais das narrativas decorrem do jogo de poder travado
entre os diversos sujeitos sociais no cotidiano de sua comunidade familial-patriarcal.
Nesse sentido, os retratos de Sara em Gn 16 e 21,8-21 a identificam a partir das
relações sociais de poder. O retrato de Sara é de uma patroa que reproduz, no âmbito da
casa patriarcal, relações sociais de poder opressor sobre a escrava.
Diante do sistema patriarcal, Sara é discriminada e humilhada por sua esterilidade.
Na relação com sua escrava, ela repete essa ideologia do sistema e não se solidariza com
146
André Chouraqui, A Bíblia – No Princípio, p.205.
65
Agar. Segundo apreendemos dos retratos, Sara se ajusta ao papel social que lhe é imposto
e estabelece uma relação hierárquica e autoritária com a escrava. Em síntese, as leituras de
Gn 16 e 21,8-21 nos permitem vislumbrar Sara como uma mulher amarrada à estrutura
patriarcal.
Deduzimos que o painel de retratos de Sara nesses textos bíblicos focalizam as
relações sociais de poder, porém, não aprofundam as relações de gênero.
Em meio aos conflitos sociais entre Sara e Agar, a culpa recai sobre a mulher na
função social de patroa. Abraão, que lava as mãos diante dessa situação, não é analisado
de maneira mais incisiva e contundente. Parece meio despercebido aos autores o fato dele
sempre levar vantagem, seja como marido de Sara (Gn 12,10-20; 20,1-18) ou como dono
de duas mulheres (Gn 16 e 21,8-21).
Embora os textos Gn 16 e 21,8-21 não tenham ligação direta com Gn 20,1-18
podem ser correlacionados como textos que tratam da problemática de mulheres no bojo
da sociedade patriarcal. Reconhecemos que os cap.16 e 21,8-21 têm especificidades, tais
como contexto literário e social, e conteúdos próprios.
Conforme apreendemos das obras examinadas, a leitura bíblica de Gn 12,10-20 e
20,1-18 tira retratos muito parecidos de Sara a partir da abordagem do conflito básico das
duas narrativas. Em geral, Sara é retratada na posição de vítima do próprio marido/casa
patriarcal e do rei/faraó/palácio real.
Nas leituras de Gn 12,10-20 há opiniões variadas em torno dos personagens Sara e
Abraão. Abraão tem sua imagem protegida e é justificado em sua posição por autores
como Carlos Mesters e Dimas Kuensch que centram sua leitura no protagonismo do
patriarca. Por outro lado, Izolde Dreher comenta que esta história desmascara Abraão pois
o apresenta como homem medroso e comercializador da própria mulher.
Corina Lanoir e Irmtraud Fischer colocam que ocorre uma violência contra a
mulher. Na visão de Corina Lanoir, Abraão domina Sara para se proteger. Falta-lhe com o
66
respeito mas deve ser entendido na sua subjetividade de homem frágil e dominado pelo
medo.
Sara é focalizada por Corina Lanoir como mulher obediente e detentora de poder
para salvar Abraão. Só que o salva às custas da renúncia de sua dignidade. Ela é retratada
na figura de mulher que age dessa forma porque introjetou o medo que dominou Abraão.
Por isso, Deus libertou o homem dominado pelo medo e a mulher dominada pelo medo do
homem.
Já Catherine Chalier retrata Sara sob o prisma da relação solidária, pois ela atende
o pedido de socorro de Abraão. Porém, a ação de Sara é entendida pela autora como gesto
típico de mulher, uma vez que renuncia ao bem estar pessoal para se preocupar com o bem
estar do outro.
Como dissemos acima, em Gn 12,10-20 prevalece o retrato de uma mulher
oprimida, sem voz e muda na cena bíblica, conforme enfatizou Milton Schwantes.
Mas questionamos esta chave de leitura que analisa o quadro do patriarcalismo
como instituição determinante e diretiva na vida das mulheres. De acordo com a leitura,
desse texto, Sara é vista como uma mulher oprimida e vítima do sistema patriarcal.
Precisamos fazer uma leitura que leve em conta não somente as estruturas de
dominação patriarcal, mas também analisarmos a resistência das mulheres e as estratégias
utilizadas por elas para combater essa dominação na comunidade familial-patriarcal.
Os retratos de Sara em Gn 20,1-18 focalizam também a figura de Abimeleque.
Mery Cruz Calvo o retrata como um rei que acolhe e crê na revelação de Deus. É o
encarregado de restabelecer a harmonia na relação homem-mulher. Abimeleque também é
concebido por Milton Schwantes e André Chouraqui como vítima da simulação do casal.
67
Abraão é visto como facilitador da sujeição de Sara ao rei e, simultaneamente,
encarregado de restabelecer a harmonia entre homens e mulheres na casa de Abimeleque
através de sua intercessão, segundo Mery Cruz Calvo.
Segundo a autora, Sara é percebida como símbolo da revelação divina, pois Deus a
defende e não permite que o rei a toque. Gera-se um conflito entre Deus e Abimeleque que
a convertem em protagonista da história.
Catherine Chalier considera Sara mediadora do conflito e promotora da rivalidade
entre os homens e da esterilidade das mulheres de Abimeleque. Tudo isto é superado
graças ao sacrifício pessoal de Sara.
Na leitura de Gn 20,1-18 Deus é contemplado pelas autoras e autores em suas
várias faces e não só no prisma de libertador (cf.12,10-20). Ele é apreendido por Mery
Cruz Calvo como um Deus que se revela portador de uma mensagem universal. Milton
Schwantes e André Chouraqui assinalam que Deus se coloca ao lado das pessoas indefesas
e oprimidas.
Reconhecemos que a leitura de Gn 20 focalizou de forma mais ampliada os
sujeitos sociais desta narrativa. Entretanto, precisamos aprofundar as relações sociais de
poder e de gênero. Nesta leitura, o poder é contemplado sobretudo no âmbito imperial,
com alguns acenos para sua repercussão na rivalidade dos homens.
O poder deve ser evidenciado nas relações sociais entre homens e mulheres. Não
podemos omitir, negar ou camuflar os níveis e as lutas de poder que acontecem no micro
organismo da comunidade familial-patriarcal.
Nesses espaços o poder não é posse ou alvo de disputa exclusivamente de homens.
A exemplo de Sara, as mulheres parecem participar do poder na comunidade pela força de
sua palavra (Gn 20,5.13) e de sua relação com Deus (20,3-7.18).
Os vários retratos de Sara evidenciaram não somente as múltiplas funções sociais
desempenhadas por esta personagem paradigmática, mas também um respeito ao texto
68
bíblico através da pesquisa das várias perícopes. Esta pesquisa não se restringiu a um
estudo temático da Bíblia.
Algumas autoras e autores conseguiram fazer realmente uma exegese do texto
bíblico, apoiados por uma chave hermenêutica latino-americana que considera a vida
concreta e a história das pessoas. Percebemos também contribuições relevantes para a
leitura feminista, pois muitas reflexões foram feitas na ótica da mulher, da mulher latinoamericana e da mulher do Antigo Israel.
Embora tenhamos encontrado poucas produções teóricas acerca de Gn 20,1-18, não
podemos desconsiderar as muitas obras elaboradas sobre Gn 12-25 com enfoques
diferentes, focalizando mulheres como Sara e Agar em situações específicas, com
identidades próprias, nos respectivos textos bíblicos.
Contudo, conforme já salientamos acima, ainda prevalece uma leitura que focaliza
a mulher em função do homem, seja ele marido, governante ou filho. Permanece uma
leitura que desfeminina a mulher, encarando-a como objeto de negociação entre homens
ou vítima passiva do contexto social do patriarcado.
Uma nova leitura bíblica popular e feminista de Gn 12-25 se faz necessária. Uma
leitura que perceba a mulher na totalidade de sua vida pessoal, familiar, comunitária e
social. Uma leitura que enxergue a mulher como pessoa autônoma, auto confiante e agente
social de sua própria emancipação, e não somente uma mera executora dos papéis sociais
que lhe são impostos. Uma leitura que quebre com o autoritarismo de só ver a mulher
como vítima, explorada, oprimida, dominada, discriminada, humilhada, passiva, coitada!
Tudo isto vimos nos retratos de Sara. Não queremos repetir a mesma leitura no
estudo de Gn 20,1-18. Desejamos chegar perto de Sara, entrar em contato com sua
história, com seu universo de vida e sociedade. Como não podemos retratar Sara de forma
isolada, queremos também aproximarmo-nos de todos os sujeitos sociais da narrativa de
Gn 20,1-18.
69
Enfim, percorremos um caminho; compartilhamos idéias; dialogamos com respeito
e sinceridade com as várias autoras e autores. Construímos um painel de retratos de Sara
ao longo de Gn 12-25. Vimos Sara sob vários ângulos e posições, desde a princesa bonita
e sedutora até a patroa exigente. Para ela, dizemos: “Nunca mais cala, amiga-irmã.”147
Levando conosco todas as contribuições da bibliografia latino-americana e as
observações feitas, pretendemos, no próximo capítulo, fazer um estudo exegético de
Gênesis 20 a fim de discutí-las melhor à luz da exegese deste texto bíblico.
147
Ana Roy, Ser mulher, p.43.
70
CAPÍTULO
ESTUDO
II
EXEGÉTICO
GÊNESIS
DE
20,1-18
2.1. Uma narrativa cheia de arte
Em primeiro lugar, apresentaremos uma tradução mais literal de Gn 20,1-18
porque entendemos que favorece e ajuda a garantir uma maior fidelidade ao texto original,
71
o que nos permite uma maior aproximação e contemplação deste e de suas perspectivas
exegéticas e teológicas. Por isso, lembramos da frase de Tomás de Aquino: “o desejo da
contemplação procede do amor ao objeto: pois onde há amor, aí abrem-se os olhos.”148
Assim, tentaremos abrir os olhos para deixar o texto falar por si mesmo, a partir de uma
tradução literal.
Com essa postura, testaremos nossa capacidade de ouvir o texto e de captar a
essência de sua mensagem. Isto faremos à revelia de nossa atualidade que nos impõe uma
desatenção ao essencial das coisas da vida e do cotidiano, marcados pelo caráter sofístico
e fragmentarista de nosso tempo.149
2.1.1. Tradução linear do texto hebraico
1E
partiu de lá Abraão para a terra de Neguev
e habitou entre Cades e entre Shur
e residiu em Gerar.
2E
disse Abraão de Sara a mulher dele
a minha irmã é ela
e enviou Abimeleque o rei de Gerar e tomou Sara.
3E
veio Elohim a Abimeleque no sonho da noite e disse-lhe
eis que tu morres por causa da mulher que tomaste e ela casada de um baal.
4E
Abimeleque não se aproximou dela e disse
Adonai nação em especial justa matarás?
5Não
foi ele por acaso que me disse
a minha irmã é ela
e ela em especial ela disse
o meu irmão é ele?
148
Luiz Jean Lauand, Interfaces – Estudos e traduções, Editora Mandruá, São Paulo, 1997, p.7.
72
na integridade o meu coração
e na pureza das palmas das minhas mãos
fiz isto.
6E
disse-lhe o Elohim: no sonho
em especial soube que
na integridade do teu coração
fizeste isto
e impedi também a ti de pecar contra mim
por isso não te deixei tocar nela.
7E
agora devolve a mulher do homem
eis que profeta é ele
e intercederá para ti e viverás
e se tu não devolveres sabe
eis que morrer tu morrerás e tudo o que é teu.
8E
se levantou Abimeleque de manhã
e chamou todos os ministros dele
e falou todas as palavras estas aos ouvidos deles
e temeram os homens muito.
9E
chamou Abimeleque a Abraão e disse para ele:
o que fizeste para nós
e como errei contra ti?
que trouxeste sobre mim
e sobre o meu reino erro grande
coisa que não se faz fizeste comigo.
10E
disse Abimeleque a Abraão
o que viste
eis que levaste a fazer a coisa esta?
11E
disse Abraão
eis que eu disse;
149
Luiz Jean Lauand, Interfaces, p.7.
73
certamente não há o temor de Elohim neste lugar
e me matarão por causa da minha mulher.
12E
na verdade ela é a minha irmã
a filha do meu pai ela
mas não a filha da minha mãe
e tornou-se para mim mulher.
13E
aconteceu quando me fez sair Elohim da casa de meu pai
e disse para ela:
esta a tua solidariedade que farás comigo
em todo o lugar aonde chegarmos ali dirás para mim
o meu irmão é ele.
14E
tomou Abimeleque ovelhas e bois e servos e servas e deu a Abraão
e devolveu a Sara a mulher dele.
15E
disse Abimeleque
eis que a minha terra diante de ti no bom em teus olhos habita.
16E
a Sara disse:
eis que dei mil pratas para o teu irmão
eis que ele é para ti o véu dos olhos para tudo o que contigo está
e junto a todos és justificada.
17E
intercedeu Abraão a Elohim
e curou Elohim a Abimeleque
e a mulher dele e as servas dele
e deram à luz.
18Eis
que fechar fechara Iahweh todo o útero da casa de Abimeleque
por causa da questão de Sara a mulher de Abraão.
2.1.2. A arte da narrativa
74
Nesta narrativa há toda arte embutida no jeito de contar a história, marcado por
uma linguagem simples e melhor entendida quando se evidencia o diálogo entre os vários
personagens. De fato, estamos diante de uma obra de arte dos antigos!
Para entendermos melhor esta intuição, podemos utilizar o conceito de arte de
Alfredo Bosi: “a arte tem representado, desde a Pré-História, uma atividade fundamental
do ser humano. Atividade que, ao produzir objetos e suscitar certos estados psíquicos no
receptor, não esgota absolutamente o seu sentido nessas operações. Estas decorrem de um
processo totalizante, que as condiciona: o que nos leva a sondar o ser da arte enquanto
modo específico de os homens entrarem em relação com o universo e consigo mesmos.”150
Nós, mulheres e homens, tendo o texto de Gn 20,1-18 em mãos e no coração,
podemos entrar em contato com este produto artístico dos povos antigos, estabelecer uma
relação com o universo bíblico daquela época e repensar conceitos e valores do nosso
cotidiano hoje. Por isso, vale a pena reinventar a arte inventada em Gn 20,1-18 através de
nosso estudo exegético.
Do ponto de vista da análise de uma obra de arte no campo da literatura, como
vimos, o capítulo 20 apresenta cenas sucessivas de diálogos entre os personagens: Abraão
e Abimeleque (v.2.5.9.10.11.15), Elohim e Abimeleque (v.3.4.6.7), Abimeleque e Sara
(v.5.16), Abraão e Sara (v.13). Notamos Abimeleque como o personagem que mais se
comunica pois dialoga com Abraão, com Elohim e com Sara. Abraão e Sara dialogam
entre si e com Abimeleque mas não dialogam com Elohim.
A percepção da construção literária e artística desta narrativa nos convida a uma
descoberta de seus atores principais: seriam eles detectados pela incidência de suas falas,
no caso, Abraão e Abimeleque? Ou o enredo nos aponta outros personagens com papéis
distintos e de relevante importância para o desenrolar do enredo como Elohim e Sara? E
os personagens que não falam nada, como as servas e os servos?
150
Alfredo Bosi, Reflexões sobre a Arte, Editora Ática, São Paulo, 1985, p.7-8.
75
Quem é realmente ou quem são os protagonistas da cena: quem fala mais? Quem
age mais? Quem silencia mais? Quem manda mais? Essas e outras indagações, são apenas
uma das vertentes que enveredaremos nos caminhos desta pesquisa exegética.
2.2. Uma arte cheia de encantos
Antes de prosseguirmos com esta investigação, tentaremos enxergar melhor o
texto contemplando o seu conjunto literário. Queremos garimpar o texto de Gênesis 20,118 olhando de modo especial a sua forma e, simultaneamente, o bloco literário ao qual ele
pertence e sua respectiva coletânea mais ampla que é o Pentateuco.
2.2.1. A arte do Pentateuco
O livro de Gênesis situa-se dentro do grande conjunto do Pentateuco. Entre as
teorias que explicam o surgimento do Pentateuco, há a teoria das fontes que foi elaborada
desde o século XVII, detalhada e concluída no século XIX, e aderida no século XX. Sua
tese é a de que o Pentateuco é uma compilação pós-exílica de quatro documentos.151
151
Há muito tempo estão em elaboração teses sobre a origem do Pentateuco. A primeira tese superada foi a
de que Moisés seria o autor do Pentateuco. A partir do século XVII surgiu a teoria das fontes que afirma ser
o Pentateuco compilação pós-exílica de quatro documentos: Javista (do século X a.C., do ambiente de Judá,
crítico da corte davídico-salomônica, no reino do sul), Eloista (do século VIII a.C., proveniente dos círculos
israelitas, sustentado por grupos levíticos, no reino do norte), Deuteronômio original: 12-26 (do século VIIIVII a.C, no reino do norte.) e Escrito Sacerdotal (do século VI a.C., formulado pelos exilados dentro dos
parâmetros sacerdotais, no exílio babilônico). Apesar de apresentar vários limites, essa teoria até hoje é
respeitada por vários biblistas. Contudo, a teoria das fontes tem dificuldade de provar que cada documento
tem sua linguagem específica e de conseguir unanimidade na classificação dos textos. Além disso, sua
argumentação parece ter a mesma lógica da teoria mosaíca, ou seja: não deixa de haver um único autor para
cada etapa literária (veja Norman Gottwald, Introdução socioliterária à Bíblia hebraica, Edições Paulinas,
São Paulo, 1988, p.140-160).
76
Mas vamos nos ater à proposta de compreensão do Pentateuco oriunda a partir da
teoria de Gerhard von Rad, na década de 30, século passado, que apresentou uma hipótese
de composição para esta coleção a partir de blocos temáticos como: criação (Gn 1-11),
patriarcas (Gn 12-50), êxodo (Ex 1-15), deserto (Ex 16-18 + Nm 11-36), Sinai (Ex 19 –
Nm 10), Deuteronômio (Dt 1-34).152
A partir desta hipótese de von Rad, nas últimas décadas, nova proposta foi lançada
por Hermann Gunkel que resgatou as perícopes e por Claus Westermann que aprimorou os
resultados exegéticos.153 Nessa ótica, o Pentateuco seria constituído por pequenos blocos
que são conjuntos de perícopes. A perícope é compreendida como pequena unidade
literária em si completa e autônoma. Sua vinculação ao contexto literário e ao bloco
literário seria de caráter secundário.
A origem da perícope, viria dos pequenos organismos sociais e das micro
estruturas. O espaço vivencial preferencial desta pequena unidade literária seria a família
ou o clã, que no caso do antigo Israel, são os organismos mais dinâmicos. A perícope seria
uma produção da memória familial-popular.
As perícopes são pequenas narrativas que, antes de serem redigidas e registradas,
foram preservadas na memória popular através da transmissão oral que passou por vários
estágios.154 Nelas temos fios condutores que as permeiam: genealogias, promessas e
itinerários que estão a serviço das narrativas.
No nosso cap.20 temos como fio condutor da narrativa o itinerário que abre a
história no v.1. Nesse e em outros itinerários geralmente percebemos os relacionamentos
dos israelitas com vários grupos de povos vizinhos (cf. Gn 16; 19; 20; 21,22-34; 23; 24).
152
Gerhard von Rad, “El problema morfogenético del hexateuco”, em Estudios sobre el Antiguo Testamento,
Ediciones Sígueme, Salamanca, 1982, p.11-40.
153
Milton Schwantes, A família de Sara e Abraão, p.9-17.
154
Veja uma ótima introdução à história patriarcal que aprofunda esses aspectos citados acima e fornece um
conhecimento geral para iniciar-nos na leitura de Gn 12-25: Claus Westermann, Genesis 12-36 – A
Commentary, Augsburg Published House, Minneapolis, 1985, p.23-87.
77
“Estes capítulos, que acentuam a preocupação com os vizinhos, identificam a vida e
cultura de Judá.”155
Podemos dizer ainda que a composição deste conjunto literário do Pentateuco, no
antigo Israel, foi produzida dentro de uma cultura patriarcal. Segundo Alice Laffey, nesse
conjunto literário percebe-se que as mulheres são valorizadas, mas de acordo com certas
funções e tarefas sociais que lhes são atribuídas.156
Como observaremos no estudo dos textos do nosso bloco literário – Gn 11,27 a
25,18 - as mulheres são sempre identificadas em relação aos homens que são seus
maridos, irmãos, pais ou filhos. De acordo com essa estrutura social patriarcal, as
mulheres são posse dos homens, que detêm o controle sobre elas, inclusive do seu corpo
como veremos na nossa perícope (Gn 20,1-18).
Esta breve síntese sobre o Pentateuco serve para situar o nosso texto de Gn 20:1-18
como uma pequena unidade literária, produto de memória familial-popular-comunitária
influenciada pela cultura patriarcal da época. Mas esta pequena unidade faz parte de um
conjunto literário (Gn 11:27-25:18) maior que traz incidências para o nosso texto.
2.2.2. Um estudo do bloco literário de Gênesis 11,27 a 25,18
A nossa unidade de Gênesis 20,1-18 situa-se entre os capítulos 19 e 21, que
compõem um bloco literário mais amplo, e abrange os capítulos 11,27 a 25,18 de
Gênesis.157
É interessante abordar os olhares diferentes de vários autores e elencar a
terminologia utilizada para designar este bloco literário que, a nosso ver, reforça uma
155
Milton Schwantes, “E estas são as gerações de Terá...” p.52.
Alice Laffey, Introdução ao Antigo Testamento – perspectiva feminista, Editora Paulus, São Paulo, 1994,
p.17-23.
156
78
visão androcêntrica do texto bíblico, fundamentada numa leitura muito abraâmica e
patriarcal deste ciclo de narrativas. Além disso, há divergências, ainda que leves, quanto à
delimitação deste bloco literário.
Ivo Storniolo e Euclides Balancin, em seu estudo abrangente sobre o livro do
Gênesis, caracterizam os capítulos 12 a 36 como raízes do povo de Deus. Dentro desse
bloco, os autores delimitam Gn 12,1 a 25,18 e o tematizam em torno do dinamismo de fé
de Abraão.158
No que tange à delimitação de Gn 12,1 a 25,18 André Chouraqui converge com os
autores acima mencionados pois identifica este bloco como história de Abraão.159
De forma parecida, Carlos Mesters delimita este bloco literário: Gn 12 a 25 trata da
história de Abraão e Sara. Embora o autor utilize uma linguagem mais inclusiva para
intitular a sua reflexão, contemplando o nome de Sara, o seu conteúdo revela um olhar
centrado no personagem Abraão. O patriarca é tido como um herói, chamado a destruir a
tampa da maldição e recuperar a bênção de Deus.
Na visão de Carlos Mesters,
a Bíblia descreve a situação de injustiça e de
maldição nos capítulos 1 a 11 de Gênesis. A injustiça que atrai a maldição destrói a
bênção de Deus dada no dia da criação. Para ele, esta história de maldição é revivida no
período do exílio.
Por isso, neste contexto de sofrimento no exílio, o povo de Deus é chamado a olhar
para Abraão (Is 51,1-2) e retomar a coragem e a esperança. Neste sentido, para o autor, Gn
1 a 11 já pensa em Abraão e em seus descendentes.160 Mas “é só no capítulo 12 que
Abraão aparece, chamado para trazer de volta ao mundo a bênção de Deus (cf. Gn 12,13).”161
157
Milton Schwantes, Dize que és minha irmã, p.5.
Ivo Storniolo e Euclides Balancin, Como ler o livro do Gênesis, Editora Paulus, São Paulo, 1991, p.1-37.
159
André Chouraqui, A Bíblia – No princípio, p.14.
160
Carlos Mesters, Abraão e Sara, p.21-41.
161
Carlos Mesters, Abraão e Sara, p.21-22.
158
79
Em alguns subsídios da literatura infanto-juvenil, encontramos artigos e historinhas
de Gênesis 12-25 que apresentam Abraão como protagonista e originário do povo da
Bíblia.162 A reflexão dirigida às crianças é centralizada na figura de Abraão, considerado
um personagem central na compreensão da aliança de Deus com a humanidade.163
“Não se pode ler nada na Bíblia, sem que o seu perfil se desenhe no horizonte. Não
pelo poder que teve, nem por façanhas que praticou, mas simplesmente porque acreditou.
A fé de Abraão anima toda a Bíblia. Ao lermos a sua história, no livro de Gênesis, a partir
do capítulo 12, vemos que sua grandeza vem do fato de que foi fiel ao chamado de Deus,
que fez com ele uma aliança.”164
Dimas Kuensch escreve vários artigos sobre a trajetória de Abraão e Sara.
Transmite em sua história que Abraão e Sara são pai e mãe do povo da Bíblia e nós
descendemos deles.165 O autor faz uma síntese de vários capítulos de Gn 12-25,
apresentando o nascimento das crianças Ismael e Isaac, o sacrifício de Isaac, a morte de
Sara e Abraão. Parece contar a história do ponto de vista da saliência da figura de Abraão.
Vê Sara enquanto esposa e mãe, um instrumento para Deus garantir a descendência a
Abraão.166
Embora com uma abordagem bem contextualizada e bastante convidativa para
leitoras profundamente inseridas no cotidiano das pessoas excluídas da América Latina,
como é o nosso caso, a obra de Hans de Wit também aborda Gênesis 12 a 50 de forma
androcêntrica, dedicando um capítulo para cada um dos três personagens principais:
Abraão, Jacó e José.167
162
Dimas A. Kuensch, “Fé em Deus e pé na estrada”, em Alô Mundo, vol.44, Taboão da Serra, 1991, p.1518; “Para a frente, de olho no retrovisor”, em: Alô Mundo, vol.53, Taboão da Serra, 1991, p.15-18; “Abraão,
Sara e Agar”, p.10.
163
Francisco Catão, “Uma vida de fé”, p.69.
164
Francisco Catão, “Uma vida de fé”, p.69.
165
Dimas A. Kuensch, “Fé em Deus e pé na estrada”, p.15-18.
166
Dimas A. Kuensch, “Não é bem assim, seu Abraão”, em Alô Mundo, vol.45, Taboão da Serra, 1991, p.1518.
167
Hans de Wit, He visto la humillación de mi pueblo, p.185-218.
80
Semelhante posição, que acrescenta somente a história de Isaac, encontramos na
obra de Leandre Boisvert: “los capítulos del 12 al 50 del libro del Génesis narran la
historia de Abraham, de Isaac y de Jacob, y la historia de José al interior de la de Jacob.
Todo se termina com la noticia de la muerte de José y de su entierro en Egipto. Entonces
Abraham parece ser el primer padre.”168
Em geral, o autor disserta sobre o ciclo de Abraão utilizando o referencial teórico
da sociologia, analisando a conjuntura sócio-política-econômica da época antiga, marcada
pelo embate entre a cidade opressora e os grupos migrantes e nômades.
Ao destinar o capítulo seis ao ciclo de Abraão, estamos próximos de Hans de Wit
apenas na sua delimitação inicial – Gn 11,27 - pois divergimos no fechamento de sua
delimitação – Gn 25,11 – dado que na nossa proposta o bloco vai de Gn 11,27 a 25,18.
A nossa delimitação, conforme já foi evidenciado acima, está embasada na
proposta de Milton Schwantes, apresentada em sua obra – A família de Sara e Abraão -169
que, aliás, tem norteado várias pesquisas acadêmicas e produções de subsídios e artigos de
biblistas e teólogas feministas.170
Em um artigo anterior o referido autor já começa a acenar para esta proposta de
delimitação deste bloco literário.171 O autor, por sua vez, pesquisou a opinião de vários
exegetas autores de obras consideradas clássicas na literatura bíblica.
Em seus escritos sobre os textos de Gênesis que estão localizados neste bloco
literário, Milton Schwantes retoma sempre esta proposta de delimitação.172
168
Leandre Bois Vert, Una historia de familia – Génesis 12-50, CETA/Centro de Estudios Teológicos de la
Amazonía, Iquitos, 1992, p.11.
169
Milton Schwantes, A família de Sara e Abraão, p.9-82.
170
Lilliam Díaz, “Lecturas”, em Xilotl, vol.7, n.12/13, Manágua, 1994, p.136-141; Maria Luiza Rueckert,
“Sara e Agar”, em Ide e Anunciai, vol.2, n.9, Vitória, 1995, 1p.; Bárbara Huefner, Eliad Dia dos Santos,
Genilma Boehler e Marília Schuller, A história da escrava Agar, Projeto Mulher do Instituto Pastoral da
Faculdade de Teologia da Igreja Metodista, São Bernardo do Campo, 1990, 28p.; Isolde Ruth Dreher, “A
mulher em Gênesis 12-38”, p.12-21; Mercedes Brancher, Dos olhos de Agar, p.76-78; Marli
Wandermurem, Riso, gracejo e herança, p.69-73.
171
Milton Schwantes, “Interpretação de Gn 12-25”, p.49.
81
Podemos sintetizar as contribuições de Milton Schwantes para apresentar os
capítulos de Gênesis 11,27 a 25,18 através de um esquema gráfico dividido em duas
unidades.173 Essas duas unidades não seguem um trajeto de forma linear ou sequencial dos
textos bíblicos mas aparecem interligadas, conectadas ou justapostas.
1ª unidade: terra e escravidão (11,27 – 19)
terra e escravidão (Sara)
escravidão (Agar)
11,27 – 12,9
12,10-20
13 – 14
15
16
17
18 – 19
faraó
2ª unidade: mulheres e crianças (20 – 25,18)
Sara
20
criança
21,1-21 e 22
Abimeleque
terra
morte de Sara conclusões
21,22-32
23
24-25
Abimeleque
Nosso interesse maior está voltado para a unidade onde se localiza nosso texto: Gn
20:1-18. Nessa segunda unidade, conforme a hipótese de Schwantes, temos um bloco
literário formado pelos capítulos 20-22.
De acordo com esta hipótese, a segunda unidade se divide em quatro subunidades:
20,1-18; 21,1-21; 21,22-34 e 22,1-24, pois seus conteúdos estão próximos e
interconectados, como veremos mais detalhadamente no estudo de duas unidades, 20,1-18
e 21,22-34.
172
Milton Schwantes, Dize que és minha irmã, p.5-30; “Não estendas tua mão”, p.24-39; “A caminho de
terra e liberdade”, p.129-144; “Terra e Dignidade”, p.203-216; “E estas são as gerações de Terá”, p.45-54.
173
Veja especialmente: Milton Schwantes, “Estas são as gerações de Terá”, p.45-54.
82
“Os capítulos estão entrelaçados: o cap.20 „continua‟ em 21,22-34. E 21,1-7 tanto
prepara 21,8-21 quanto 22,1-19. As cenas sobre os meninos Ismael e Isaac são paralelas,
estando contudo interrompidas pela história do poço em 21,22-34. Isso visualiza o quanto
há realmente um trançado nestes caps. 20-22.”174
Na segunda unidade de narrativas, há um recomeço da história de Israel com
Abraão e Sara, em Gênesis 20,1-18. Este capítulo é também uma espécie de portal que dá
a tônica para o que vem a seguir: histórias de mulheres e de crianças, com suas tramas e
dramas.
Na porta de entrada dessa segunda unidade de narrativas, temos o tema da
escravidão de mulher (cf. também 12,10-20 e 26,1-11 que contam histórias de Sara e de
Rebeca).
A mulher Sara está no portal que se abre para outras mulheres: as servas e a mulher
de Abimeleque (20,14.17.18), e Agar (21,1-21) que escolhe uma mulher, da terra do Egito,
para o seu filho Ismael (21,21).
Como acontece no cotidiano das famílias empobrecidas, junto com as mulheres
aparecem as crianças. Em Gn 22 ocorre com Isaac uma repetição daquilo que aconteceu
com Ismael (21,1-21).
Nesta unidade de narrativas que focaliza, possivelmente, o ciclo de Sara (20-23),
parece que aos homens é reservado o papel de tratar de negócios, algo que é muito comum
na cultura patriarcal e no senso comum da nossa atualidade.
Assim, em Gn 21,22-32 temos a questão da posse da terra. Tanto Gn 20,1-18 como
21,22-32 trazem o conflito de Abraão com a autoridade reinante, Abimeleque.
174
Milton Schwantes, “Tradições do Neguebe”, em texto mimeografado, s/p.
83
2.2.3. Um estudo de Gênesis 19 e 21
A nossa unidade de Gênesis 20,1-18 situa-se entre os capítulos 19 e 21, que fazem
parte de um bloco literário mais amplo, que envolve os capítulos 11,27 a 25,18, conforme
já mencionamos acima. Tanto o capítulo 19 como o 21 são compostos de várias perícopes.
Porém, vamos nos ater somente àquelas que consideramos mais próximas ou interligadas a
20,1-18.
O cenário da narrativa de Gn 20,1-18 se dá na cidade. Mais precisamente, na
cidade de Gerar, pois logo de início o texto informa que Abraão partiu para a terra de
Neguev e habitou entre Cades e entre Shur, e residiu em Gerar (20,1). Portanto, é em
Gerar que acontece o episódio que envolve Sara, Abraão, Abimeleque, seus servos e suas
servas. A cidade de Gerar é palco da narrativa. Uma cidade temida por Abraão (20,11).
Segundo o relato bíblico,
Gerar é o lugar social e geográfico no qual se
desencadeia toda a narrativa. Lugar sujeito a sediar várias ameaças de morte: para
Abimeleque (20,3.7), para a nação (20,4.7), para Abraão (20,11).
Ora, Gênesis 19,1-29 tece críticas à cidade de Sodoma. Coloca a vida pastoril e
seminômade como alternativa, em oposição à vida citadina. Apresenta Sodoma como
cidade de violentos: ameaçam os visitantes, pois querem abusar deles (19,4-5). Com esses
sodomitas não tem conversa e nem negociação para evitar o abuso contra os visitantes
(19,6-9). Eles quase invadem a casa de Ló. Quem defende as vítimas está sujeito a padecer
de mal maior do que os perseguidos. (19,9).
Como vimos, Sodoma é lugar violento, de ameaça à vida, (19,4-5). A alternativa
para uma vida melhor é a montanha (19,17). Por isso, a família de Ló está migrando de um
lugar para outro, mesmo que Ló não aceite viver na montanha. Ele migra de uma cidade
para outra (12,4; 13,12 e 19,12-29).
84
Também a família de Sara e Abraão migra de um lugar para outro. Essa vida de
migrante pode ser observada pelos itinerários, tão comuns em nosso bloco literário, que
emolduram o início ou o fim de várias perícopes ou unidades maiores (12,1.9.10.20;
13,1.18; 18,33; 20,1; 21,34; 22,19 e 25,11.18).
Nesses itinerários, Sara e Abraão também passam pelas cidades e nelas enfrentam
dificuldades (12,10-20 e 20,1-18). Nessas cidades, no Egito e em Gerar, acontecem
situações de
ameaça à vida, de assédio sexual, de medo e mentiras, de enganos e
justificativas.
Gênesis 19,1-29 ajuda a caracterizar o ambiente citadino. Assim, nossa suspeita é
de que Gn 19,1-29 tem o mesmo tipo de cenário de Gn 20,1-18. Nosso texto também traz
uma narrativa de ambiente citadino. Contudo, não são vizinhos, ou seja, embora tenhamos
em 20,1-18 mais uma história vivida em uma cidade, não dá para acenar que Gn 19,1-29
está relacionado à nossa unidade.
Esses dois textos parecem relacionados pelo cenário das narrações. São justamente
esses tipos de cenários que favorecem o desencadeamento de toda a problemática
enfrentada pelos personagens.
Mas a relação dos textos a partir do cenário é muito frágil para evidenciar uma
ligação mais profunda entre esses dois capítulos. Sem contar que em Gn 19,30-38 aparece
outra narrativa que envolve as filhas de Ló, mas desta vez na caverna, na montanha.
Sendo assim, apesar de toda a reflexão feita, na ótica da vida citadina, não podemos forçar
a interpretação do texto bíblico para correlacionar seus conteúdos e aproximar suas
perícopes.
Diferente é o caso do capítulo 21. Primeiro, porque inicia falando de Sara (21,1).
Conta que Iahweh visitou Sara e cumpriu a promessa de fertilizá-la. Portanto, o assunto de
Gn 21,1-7 é a fertilidade de Sara e o nascimento de Isaac.
85
A esterilidade e a fertilidade são um dos temas que finalizaram um aspecto da
narrativa de Gn 20,1-18. A casa de Abimeleque sofria do mal da esterilidade. Pois Iahweh
fechara o útero de sua casa por causa da questão de Sara. Mas Abraão orou a Elohim. E
Elohim curou a Abimeleque, sua mulher e suas servas. Essas mulheres deram à luz (20,1718). Porém, essa semelhança de subtemas também é muito frágil para evidenciar uma
ligação maior entre Gn 20,1-18 e Gn 21,1-7.
Gn 21 começa com Sara. Mas apresenta Sara com função social diferente do texto
de Gn 20,1-18. Em 21,1-7 Sara aparece como mulher procriadora, sendo gestante e mãe
que amamenta criança. Depois Sara aparece como mãe e dona da casa, esposa que sugere
ao marido a expulsão da escrava Agar (21,8-21).
É justamente na perícope na qual Sara não aparece (21,22-34) que podemos
verificar uma relação do capítulo 21 com o 20. Como já falamos, essa perícope mostra o
conflito de Abraão com Abimeleque em torno do poço de Bersabéia, lugar bem conhecido
nesse bloco literário (cf. Gn 16,1-15; 21,8-20.22-34).
Nesse episódio de Gn 21,22-34, temos algumas ações invertidas em relação a Gn
20,1-18. Primeiro, é Abimeleque que inicia a conversa com Abraão (21,22). É Abraão que
repreende Abimeleque (21,25) e lhe entrega ovelhas e bois (21,27). Em Gn 20,1-18,
Abraão inicia a conversa com Abimeleque (20,2). Abimeleque questiona Abraão (20,910). Abimeleque dá a Abraão ovelhas, bois, servos e servas, e lhe devolve Sara (20,14).
Os textos mostram também que todas as histórias deste bloco de capítulos estão
situadas no sul da Palestina, no Neguev, nas proximidades de Bersabéia. Isto quer dizer
que o lugar social é o mesmo para todas as narrativas. Em Gn 20,1-18 estamos na terra de
Neguev. Nessa região chega Agar quando é expulsa para o deserto (21,14). Ismael, o filho
de Agar, habitou no deserto sulino de Farã,
(21,21). O conflito de Abraão com
Abimeleque e seu general Ficol, ocorre no poço de Bersabéia, também na parte sul da
Palestina (21,22-34).
86
Podemos concluir que a relação do cap.20 com 21,22-34 está na relação conflitiva
entre Abraão e Abimeleque. São relações sociais de poder disputado pelos dois líderes.
Em Gn 21,22-34 a relação de força é medida pela posse do poço de Bersabéia,
provavelmente área estratégica e vital
por ser lugar de passagem e encontro dos
seminômades migrantes, e de fornecimento de água para a sobrevivência do pastoreio.
Diante de todas essas constatações, podemos concordar com a hipótese de Milton
Schwantes de que os capítulos 20 a 22 formam um bloco literário, a partir desse estudo de
20,1-18 e 21,22-34. Todavia, não nos cabe, nesse trabalho, fazer um estudo mais
pormenorizado das unidades 21,1-21 e 22,1-24.
2.2.4. Histórias parecidas
Destacamos brevemente a relação entre o cap.20 e os caps.12,10-20 e 26,1-11.
Encontramos uma narrativa paralela entre estas três histórias e tentamos reparar nos papéis
sociais conferidos à mulher.
Na opinião de Milton Schwantes, entre as três narrativas, a do capítulo 26,1-11
poderia ser a mais antiga e a de 12,10-20 a mais recente, pois é bem elaborada, o que
mostra uma intencionalidade teológica.175 Em Gn 26,1-11, “Isaac, Rebeca e Abimeleque
são os personagens principais. Depois, passou-se a contar a mesma história também de
Sara e Abraão, que, à semelhança do cap.26, contracenam com Abimeleque. Por fim,
175
Já trabalhamos este aspecto no cap.I – Retratos de Sara em Gn 12,10-20. Segundo Milton Schwantes, Gn
12,10-20 tem a intenção teológica de fazer memória da experiência do êxodo. Veja: Milton Schwantes, “A
caminho de terra e liberdade – Gênesis 12 – um roteiro liberdade”, em Estudos de Religião, vol.5, n.7, São
Bernardo do Campo, 1991, p.129-144; “Terra e Dignidade”, p.212-216.
87
surgiu nosso trecho: 12,10-20. Representa, pois, a fase mais recente – e por certo mais
elaborada e intencional.”176
Com base nessa suposição, faremos nosso estudo abordando as histórias na
seguinte ordem: cap.26,1-11; cap.20,1-18 e cap.12,10-20. Em relação à composição dessas
tradições, são interessantes as informações de Norman Gottwald.177 Segundo o autor, nas
tradições das mães e pais de Israel a primazia é, provavelmente, de Jacó, pois foi o
primeiro antepassado a ser incorporado às tradições da liga tribal israelita, de maneira que
se tornou o pai do povo.
“A primazia de Jacó nas tradições reflete provavelmente a realidade no sentido de
que a confederação tribal formou-se primeiramente na área do norte onde as sagas de Jacó
circulavam. Abraão entrou para o corpo de antepassados do Israel unido mais tarde,
provavelmente tendo já Isaac incorporado como o antepassado de um subgrupo judaíta.
Sendo incapaz de desalojar a Jacó como o progenitor imediato de Israel, foi-lhe concedida,
não obstante, a Abraão a posição respeitada de pai primordial do povo, aquele que
primeiro se aventurou em Canaã e que se tornou pai de Isaac e avô de Jacó. Deste modo,
as experiências separadas de antepassados, de grande estima para os diversos segmentos
de Israel, foram juntadas num só corpo de tradições, que refletiam a unidade combinada
das tribos confederadas.”178
Conforme podemos apreender, a tradição de Abraão entrou para o corpo das
tradições israelitas posteriormente, o que pode confirmar a hipótese de que Gn 26,1-11 é o
texto mais antigo. Tanto em Gn 26,1-11 como nos outros textos temos histórias com
detalhes variados mas com conteúdos principais muito semelhantes. “Esta tríplice
repetição mostra que os conteúdos tratados eram de grande importância. Estas três
176
Milton Schwantes, “Terra e Dignidade”, p.212.
Norman Gottwald, Introdução socioliterária, p.150-176.
178
Norman Gottwald, Introdução socioliterária, p.173.
177
88
histórias falam de um problema marcante da vida da época. Trazem à tona a situação
crítica que, de tempos em tempos, se repetia, contam algo típico.”179
Para entrar nessa problemática abordada pelas histórias, a partir de uma leitura
feminista da Bíblia, seguiremos um dos pressupostos de Elsa Tamez. Leremos essas
histórias com olhos de mulher, isto é, com consciência feminina.180 Tentaremos perceber
como as mulheres agem e reagem, como são colocadas nas narrativas e qual função social
desempenham nas relações sociais presentes nas histórias.
Logo de início, podemos dizer que o papel social mais atribuído às mulheres é
justamente o de ser mulher de um homem. Em todas as histórias, seja de Sara ou de
Rebeca, o maior destaque é para o fato de elas serem mulheres, alvo de assédio sexual e de
disputa entre homens. Aparecem disfarçadas na posição de irmãs (26,7.9; 20,2.5.12.13.16
e 12,13.19) e filhas (20,12).
São mulheres com nomes: Rebeca (26,7.8), Sara (20,2(2x).14.16.17), Sarai
(12,11.17). Às vezes são referidas como qualquer uma, sem nome: sua mulher
(26,7.8.9.10.11; 20,2.11.14 e 12,11.12.18.20), minha mulher (26,7), a mulher do homem
(20,7), mulher (20,12 e 12,15), mulher de Abraão (20,18 e 12,17), mulher dos monarcas
(20,2.3.7.14 e 12,19), mulher bela (26,7 e 12,11.14) e mulher casada de um baal (20,3), de
acordo com a nossa tradução.
No cerne das histórias, vemos mulheres tomadas dos maridos pelos monarcas
(20,2.3 e 12,15.19) e devolvidas (20,7.14 e 12,19). Vemos mulheres acariciadas (26,8) e
resguardadas de serem tocadas (26,11 e 20,6). Mulheres que despertam a cobiça e o
desejo sexual de homens do povo e do poder estatal (26,7.10; 20,2 e 12,14-15).
179
Milton Schwantes, “Terra e Dignidade”, p.212-213.
Elsa Tamez, “La mujer que complicó”, p.59.
180
89
Típicas da cultura patriarcal, as narrativas parecem apresentar uma linguagem
autoritária que indica relação de posse e poder dos homens sobre as mulheres. E poder
arbitrário dos homens fortes e poderosos, dos reis, que, por sua vez, também dominam e
mandam nos patriarcas e em suas famílias.
Aliás, as próprias famílias migrantes se encontram numa situação de humilhação,
tendo que andar de acampamento em acampamento, em terras dos outros, para viverem e
sobreviverem como estrangeiras em lugares estranhos.
Quase podemos dizer que, no tocante às mulheres, há uma reprodução das relações
sociais de poder travadas entre os opressores e os oprimidos. E estes, tornam-se opressores
das oprimidas. As mulheres são triplamente oprimidas: além de pobres e migrantes, são
tratadas como objeto sexual e, por isso, são causa de preocupação e manipulação dos
maridos (26,7; 20,11 e 12,12).
Todavia, as mulheres oprimidas e humilhadas por esses comandos sociais e
masculinos não são tão passivas e submissas quanto parecem, pois essas histórias mostram
como elas reagem e como são agraciadas pela intervenção de Deus.
1) Primeiro, porque constituem uma ameaça de morte para reis e reinados quando
não são respeitadas (26,10; 20,3.4.7.9.18 e 12,17).
2) Segundo, porque elas são causa de questionamento para os homens. Por causa
delas, reis são pressionados pelo próprio curso da história (26,10 e 12,17) e interpelados
(20,3-7), os patriarcas são questionados pelo seu comportamento (26,9-10; 20,9-10 e
12,18-19). Os homens são advertidos para não mexerem com elas e nem com seus maridos
(26,11; 20,8 e 12,20).
3) Terceiro porque elas não falam em Gn 26,1-11 e em 12,10-20 mas em Gn 20,118 Sara diz apenas o essencial para ser solidária com seu companheiro: ele é meu irmão
90
(20,5.13)! E escuta a justificativa de Abimelek, o que indica diálogo e respeito do rei para
com a mulher (20,16). Mesmo à custa de sofrimento, elas salvam e beneficiam a vida dos
maridos (26,7.9.12-14; 20,2.11-15 e 12,16.20).
Conforme dissemos, todas essas histórias têm uma riqueza de detalhes e conteúdos.
Contudo, a nossa história (20,1-18) tem um sabor todo especial por ser a única narrativa
que apresenta a palavra da mulher (20,5.13) e a palavra do rei à mulher (20,16), o que
supomos que lhe confere autoridade.
Não podemos esquecer da palavra de Deus transformada em ação a favor da
mulher e contra os homens, embora reconheça a sinceridade das palavras de Abimeleque.
A palavra de Abimeleque questiona Abraão e colabora com a ação de Deus. E a palavra de
Abraão mostra o próprio homem solicitando a solidariedade da mulher (20,13), embora
ele mesmo não seja nem um pouco solidário com ela (20,2.11).
Acima das palavras está a força de Deus que intervém a partir do corpo da mulher,
pois, para defendê-la, é capaz de fechar o útero das mulheres da casa de Abimeleque
(20,18). Aí temos paradoxos, acrescidos da estranheza dessa história que revela a
dignidade dos filisteus superando a de Abraão. São minas preciosas da exegese, dignas de
serem garimpadas através do estudo mais detalhado de Gn 20,1-18.
2.3. Os encantos de Gênesis 20,1-18
Em Gênesis 20,1-18 temos uma perícope que forma uma unidade. É uma narrativa
coesa que pode ser percebida através de várias partes. Vejamos primeiro a proposta de
91
organização do texto. Nossa proposta ora se aproxima e ora se distancia dos comentários
de Claus Westermann e de George Coats, por exemplo.
Claus Westermann considera os v. 1-2 como a parte inicial da narrativa que
começa com um itinerário.
A parte que contém o diálogo constitui o centro e a parte mais importante da
narrativa (v.3-13). Os v.3-7 tratam da questão da culpa de Abimeleque e os v.9-13 da
culpa de Abraão.
Os v.14-18 são a parte conclusiva: Abimeleque ressarce o dano restituindo Sara e
Deus repara o dano de Abimeleque através da intercessão de Abraão.181
George Coats divide o texto em quatro partes:182
I – Itinerário: v.1
II – Complicação (o plano de Abraão e as suas consequências): v.2
III – Desenvolvimento: v.3-16
A - Intervenção divina: v.3
B – Defesa: v.4-5
C - Resposta divina: v.6-7
D – Execução das instruções: v.8-16
IV – Conclusão: v.17-18
Entramos em sintonia com Claus Westermann quanto à delimitação da introdução
de Gn 20 (v.1-2) e com George Coats no tocante à conclusão da narrativa (v.17-18).
Contudo, nossa abordagem é diferente, pois em nossa chave de leitura priorizamos a
questão da mulher.
181
Claus Westermann, Genesis 12-36, p.316-329.
92
Eis nossa proposta de organização do texto:
Introdução: itinerário e conflito à vista (v.1-2)
1ª parte: Elohim em defesa da mulher (v.3-8)
2ª parte: Solidariedade de Mulher (v.9-13)
3ª parte: Dignidade de filisteu e de mulher (v.14-16)
Conclusão: Elohim e Iahweh em defesa do útero (v.17-18)
2.3.1. Itinerário e conflito à vista
1E
partiu de lá Abraão para a terra de Neguev
e habitou entre Cades e entre Shur
e residiu em Gerar.
2E
disse Abraão de Sara a mulher dele
a minha irmã é ela
e enviou Abimeleque o rei de Gerar e tomou Sara.
A introdução do nosso capítulo pode ser vista nos v.1-2: apresentação do itinerário
e lugar social (v.1), e do conflito básico da trama: palavra e ação dos homens em relação à
mulher (v.2)
É uma verdadeira vitrine, pois mostra praticamente quase todos os elementos
constitutivos da narrativa: lugar social, sujeitos sociais, conflitos sociais emergentes,
relações sociais de poder e de gênero.
Portanto, a introdução pelos v.1-2 apresenta o problema básico que desencadeia
todas as cenas da narrativa: em terra filistéia uma mulher judaita e seminômade é
apresentada como irmã de seu homem, e é tomada por outro homem, um monarca filisteu.
182
George W. Coats, Genesis:Wíth an Introduction to Narrative Literature, Grand Rapids,Eerdmans, United
States, 1983, p.149-152.
93
Assim, na abertura da narrativa (v.1) temos primeiro o anúncio do itinerário de
Abraão (cf. Gn 13:1) que é fio condutor para as cenas do nosso capítulo. Assim, o v.1
começa a introduzir a narrativa identificando o lugar social e alguns sujeitos sociais da
história, Abraão e os povos filisteus.
Três verbos diferentes – partiu, habitou, residiu – indicam a conjuntura sócioeconômica que é o pano de fundo da história.
Partir pertence à raiz ns’ , com sentido de arrancar estacas, tirar, levantar as tendas/
o acampamento, pôr-se em marcha/a caminho, empreender viagem, ir, transumar (Gn
12,4-5).
Habitar vem da raiz ysb. Em hebraico, o significado original dessa raiz seria sentarse, estar sentado. De acordo com nosso contexto, são derivados dessa raiz: assentar-se,
estar situado, estabelecer-se, alojar-se, instalar-se, avizinhar-se, acampar (Gn 13,1-3).
Residir pertence à raiz gvr que equivale a residir ou viver como hóspede (Gn
21,23.34). Está próximo também da raiz ger: hóspede em lugar estrangeiro, sozinho ou em
grupo. Este pode ter abandonado sua pátria devido à circunstâncias políticas, econômicas e
sociais. Por isso, busca proteção e abrigo em outro lugar (Gn 12,10, 26,1).
Com esta introdução, temos a apresentação da categoria social dessa narrativa.
Trata-se de um grupo imigrante, provavelmente seminômade, acostumado a percorrer um
itinerário de muitas partidas e chegadas, em busca de terra e moradia (cf. Gn 12,1.9.10.20;
13,1.18; 18,33; 21,34; 22,19 e 25,11.18).
No que se refere ao lugar social, temos bem definida a localização da região pela
qual o grupo imigrante está estabelecido: terra do Neguev, entre Cades e Shur, em Gerar.
Neguev pode ser entendida como uma região geográfica de limites indefinidos, a
partir das informações de Gn 13,1-6 e Nm 13,17-22, e dos textos que contam os itinerários
94
de Abraão e sua família. Parece ser uma região de passagem, tendo ao seu redor
áreas/lugares/povoados/cidades que alojaram as famílias seminômades (cf. também Gn
12,9 e 24,62).
Contudo, a informação é a de que Neguev é uma região seca e árida, com um
terreno bastante irregular e com pouquíssima chuva. Certamente, um lugar impróprio para
a fixação de população migrante, embora seu terreno permita pastagem de animais e
rebanhos (Gn 13,1-6).
A arqueologia confirma, de outro lado, uma ampla ocupação dessa região durante o
período da monarquia (Gn 26,26-33; 1Sm 14-15; 30,14). E os profetas predizem tanto a
desolação como a recuperação de Neguev (Jr 13,19; 17,26; 32,44 e 33,13).
Em meio à região de Neguev está Cades, uma pequena vila no limite sul da
Palestina (Nm 20,1-22; Dt 1,19; Nm 34,4; Js 14,6), provavelmente a leste de Gerar.
Cades é descrita como sendo próxima ao Neguev e de área seca e de desertos (Gn
21,14, Sl 29,8). Cades é fertilizada pelas águas de fontes e poços (Gênesis 14,7 – “Fonte
do Julgamento” -, 16,14 e 25,11– “poço de Laai-Roí” -, 21,19), quase um pequeno oásis
verde no deserto, o que pode atrair a presença de imigrantes em seus arredores.
Conforme podemos coletar nos textos bíblicos, as informações de Shur são
restritas. Provavelmente, sua área geográfica é característica de lugares situados na região
de Neguev, próximos de desertos e fontes (Gn 16,7; Ex 15,22; Nm 33,8) e também do
Egito (Gn 25,18; 1Sm 15,7; 27,8).
Chegamos em Gerar, localizada perto da cidade de Gaza (Gn 10,19), portanto entre
o Egito e a Palestina, talvez na parte sudoeste do Neguev. Supostamente é uma área de
domínio filisteu (Gn 21,22-34; 26,1.26), de disputa pela sua riqueza hidráulica (Gn 26,1522) e de abrigo para os seminômades (Gn 26,1.6.17; 1Cr 4,39).
95
Nossa história está situada fora dos limites da Palestina, pois Abraão circulou na
região de Neguev, andou por Cades e Shur, mas foi residir em Gerar, na terra de vizinhos
estrangeiros, caracterizados como filisteus. Lá residiu como hóspede (Gn 21,23.32-34).
Nossa abertura de narrativa parece uma charada. Se localizarmos a geografia
desses lugares – Neguev/Cades/Shur/Gerar – veremos que Abraão deu muitas voltas para
chegar a Gerar. Daí não entendemos porque Abraão fez esse percurso.
Todavia, é interessante observar que o itinerário não aponta somente o espaço
geográfico da história. Provavelmente, a descrição desse itinerário tem uma intenção
teológica, pois a história acontece em regiões de grande experiência de Deus (Gn 16,1314).
Mais precisamente, nossa história se dá em Gerar, colocada no meio de Cades e
Shur. Como podemos perceber pelos textos mencionados acima, essa região é palco de
grandes revelações teológicas.
Primeiro, o anjo de Deus encontra a escrava egípcia, Agar, perto de uma certa
fonte no deserto, a fonte que está no caminho de Shur (Gn 16,7). É nesse lugar que Agar
dá nome ao Deus que lhe vê (Gn 16,13). Novamente Agar experimenta Deus quando anda
errante no deserto de Bersabéia (21,14). Deus escuta seu grito de dor e lhe abre os olhos
para ela enxergar um poço (21,19).
Podemos verificar que não estamos no mesmo espaço geográfico da história de Gn
12,10-20. Esta se passa no Egito, paradigma de lugar de escravidão no qual ocorre a
libertação do povo hebreu. Para chegar e sair do Egito houve também um itinerário:
Iahweh os fez sair de Ur dos caldeus (Gn 27,31) para a terra de Canaã (Gn 11,31; 12,1-5).
De acampamento em acampamento, foram para o Neguev (Gn 12,9). Houve fome e
desceram ao Egito (Gn 12,10). Do Egito subiram ao Neguev (Gn 13,1). Possivelmente, foi
uma caminhada paradigmática e um memorial da história de libertação do povo de Israel.
96
O lugar social de Gn 20 parece indicar uma nova perspectiva para a experiência
popular. Relacionado a Agar, nosso capítulo provavelmente insinua que o forte de sua
narrativa será o da revelação de Deus. A partir de sua intervenção em defesa da mulher de
Abraão, Sara, Deus vai se revelar de muitas formas, especialmente para o rei estrangeiro,
Abimeleque.
Estamos, pois, na terra delimitada politicamente como região governada pelo rei
Abimeleque (cf. v.15) apresentado no v.2.
Com essa indicação, estão indiretamente apresentados os sujeitos sociais presentes
na cena. Pode tratar-se, nesse sentido, de relações externas do grupo judaita com seus
vizinhos (veja também 21,22-34). Então esse v.1 já mostra duas culturas que se
aproximam, a judaita e a filistéia que, no transcorrer da cena, vão se confrontar e,
simultaneamente, interagir na pessoa de seus líderes.
A identidade do grupo judaita já está expressa na cultura de povo imigrante e de
povo que busca terra para viver, outra marca forte, pois a terra era um de seus maiores
valores e alvo de interesses (cf. cap.15 e 23 de Gênesis).
Além da diferença cultural, que desafia a convivência humana e social, há a
diferença de classe social. Em terra estrangeira, os judaitas se encontram em situação
inferior, de povo sem terra e sujeito ao domínio do governo filisteu, o que se evidencia no
v.2.
Mas não se trata apenas de diferença cultural e diferença social. Estas são somente
molduras, uma espécie de contextualização para a trama principal da narrativa, em cima
da qual a história irá se desenrolar. O conflito básico, que permeará toda a narrativa (no
seu começo, meio e fim) diz respeito às palavras e ações dos homens – Abraão e
Abimeleque – em relação à Sara, mulher que, no v.2, é apresenta como irmã de seu marido
e tomada pelo rei (v.2).
97
Sendo assim, o v.2 complementa o v.1 pois coloca o que aconteceu em Gerar,
quando Abraão habita e reside nela. Além disso, o v.2 informa que Abraão não estava
sozinho, pois tinha a companhia de Sara e ainda se confronta com Abimeleque. Quer
dizer: novos sujeitos sociais emergem na narrativa: a princesa e o pai do rei, conforme a
etimologia hebraica.183
A partir da tradução do nome Abimeleque, perguntamos: afinal, quem é o pai do
rei? É Deus?! Seria uma homenagem a Deus? Por outro lado, ’b pode designar também
qualquer homem que ocupa cargo ou recebe reconhecimento semelhante ao de pai. Assim,
o título pai pode ser utilizado para alguém que está na posição de autoridade (2Rs 2,12,
1Sm 24,8-17).
Então, qual é a intenção do redator e qual é a função da teologia nesse tipo de
identificação do rei? Ocorre aí uma legitimação do poder do rei?
Sara não é só princesa. É mulher – ’sh de Abraão. É tida por Abraão como “minha
irmã” - ’hty.
O campo semântico de ’sh geralmente aparece caracterizado por um grande
número de verbos, como por exemplo, conceber. Embora em nossa narrativa não
tenhamos nenhum verbo relacionado ao campo semântico de ’sh, podemos intuir que no
âmbito do feminino há proximidade entre a introdução e a conclusão da nossa narrativa.
Se na introdução temos Sara caracterizada como mulher, na conclusão temos ações
características de mulher – deram à luz - e referência à parte do corpo da pessoa humana
que só mulher tem, o útero.
A presença de Sara já na introdução da cena, dá abertura à participação da mulher
na narrativa (v.3.7.11.12.14.18) pois encontramos mulheres anônimas, sem nome, da casa
de Abimeleque (v.14.17).
183
Tradução feita em sala de aula, pois nos dicionários consultados encontramos Abimeleque com o
98
Além disso, o verbo que inicia o v.2 – e disse – dá o tom e evidencia o estilo dessa
narrativa composta de muita conversa, diálogo e palavras. Aliás, o v.2 introduz esse verbo,
o mais usado em toda a narrativa (14x). Da raiz ’mr, o nosso “e disse” é a introdução
normal de um discurso, seja direto ou indireto, que tem como sujeitos personagens
relevantes. Veremos
que, ao longo de Gn 20, esse verbo
aparecerá nos
v.2.3.4.5.6.9.10.11.13.15 e 16. Como sujeitos aparecem Abraão (v.2.5.11(2x) e
Abimeleque (v.4.9.10.15.16) como os mais falantes. Sara (v.5.13) e Elohim (v.3.6) estão
equiparados em suas falas.
Nesse v.2 temos três verbos que revelam três ações de homens em relação à
mulher: disse (Abraão), enviou e tomou (Abimeleque).
Dizer, enviar e tomar são feitos de homens contra Sara, esposa, irmã e mulher
quase prostituída nessa abertura. Fechar o útero da casa de Abimeleque é feito de Iahweh a
favor de Sara, mulher de Abraão, na conclusão da narrativa.
A raiz do verbo enviar é slh e, conforme sua conjugação no v.2, pode ser entendido
como: envio de uma mensagem através de palavra ou carta, sem que tenha
necessariamente o envolvimento direto do mandatário (cf. Gn 27,42.45; 31,4; 32,6; 38,25;
41,8.14). No caso do nosso versículo 2, possivelmente, Abimeleque enviou seus servos
(v.8) para junto de Sara para transmitirem sua intenção de futuro.
Outra amostra da intenção de Abimeleque é o verbo tomar (e tomou Sara). Da raiz
lqh, este verbo normalmente é usado para introduzir uma segunda ação mais importante
(Gn 27,45; Jr 38,14; 40,2). A ação do rei, de tomar Sara, seria de mandar buscá-la para
depois se relacionar sexualmente com ela. Então, podemos alimentar nossa suspeita de que
Abimeleque realmente não tocou em Sara (v.6) por causa da intervenção de Elohim em
defesa da mulher (v.3-7).
significado de “meu pai é rei”. Recorremos ao hebraico mais antigo para fazer esta tradução, no qual não
temos vogais e onde o y que liga ’b com mlkh tem a função de genitivo (de).
99
2.3.2. Elohim defende a mulher
3E
veio Elohim a Abimeleque no sonho da noite e disse-lhe
eis que tu morres por causa da mulher que tomaste e ela casada de um baal.
4E
Abimeleque não se aproximou dela e disse
Adonai nação em especial justa matarás?
5Não
foi ele por acaso que me disse
a minha irmã é ela
e ela em especial ela disse
o meu irmão é ele?
na integridade o meu coração
e na pureza das palmas das minhas mãos
fiz isto.
6E
disse-lhe o Elohim: no sonho
em especial soube que
na integridade do teu coração
fizeste isto
e impedi em especial a ti de errar contra mim
por isso não te deixei tocar nela.
7E
agora devolve a mulher do homem
eis que profeta é ele
e intercederá para ti e viverás
e se tu não devolveres sabe
eis que morrer tu morrerás e tudo o que é teu.
8E
se levantou Abimeleque de manhã
e chamou todos os ministros dele
e falou todas as palavras estas aos ouvidos deles
e temeram os homens muito.
Vejamos como se dá a amarração dessa primeira parte.
100
Elohim veio à noite, no sonho, em defesa da mulher e disse que tomá-la pode
causar a morte do rei – eis que tu certamente morres por causa da mulher que tomaste porque ela é casada de um baal (v.3). Abimeleque se levantou pela manhã, chamou todos
os ministros e falou todas as palavras ouvidas. As palavras de Abimeleque provocaram o
temor de seus ministros (v.8).
O rei não se aproximou da mulher (v.4). Mas se ele não devolver esta mulher, eis
que morrerá e tudo o que é seu (v.7). Então ele pergunta se Adonai matará também uma
nação justa (v.4). Não tem alternativa para Abimeleque: ele têm que devolver a mulher e
recorrer à profecia de seu marido para conservar a vida (v.7).
Para se justificar, o rei cita as palavras de Abraão e Sara (v.5). Mesmo assim,
Elohim não o deixa tocar na mulher (v.6). Abraão e Sara não revelam seu vínculo de
marido e mulher, mas dizem que são irmã e irmão (v.5). Elohim impede o rei de errar,
apesar deste não saber da verdadeira identidade de Sara e Abraão (v.6). Abimeleque diz
que fez isto – tomar Sara - na integridade do seu coração e com a pureza das palmas das
suas mãos (v.5). Elohim, no sonho, diz que sabe da integridade do coração de Abimeleque
(v.6).
Portanto, a cena se abre com a vinda de Elohim, no sonho da noite de Abimeleque.
E se fecha com o temor dos servos de Abimeleque diante desta revelação pela manhã.
O verbo que acompanha Elohim – veio – é da raiz bv’ e tem como significado
básico a ação de vir e entrar. É um verbo de movimento e seu sentido é a vinda da
divindade como reveladora na narração, ainda que só em sonho noturno (cf. Gn 31,24; Nm
22,9.20; 1Sm 3,10).
Sonho especial (hlm) halôm, no qual Elohim aparece e de modo direto se comunica
com Abimeleque (cf. também Gn 28,10-19; 31,24; 37,5). Na verdade, esta é uma das
maneiras freqüentes de Deus se comunicar com os profetas de Israel. Interessante é o fato
de Elohim se revelar a um estrangeiro, como se revelou a Agar (16,7-12).
101
Esse estrangeiro, como Agar, dá uma resposta de acolhida à revelação de Deus.
Assim, Abimeleque é apresentado como um inspirado, a quem Elohim fala em sonho.
Estaria a narração indicando que a profecia também viria através de um estrangeiro e não
somente pelos homens como Abraão.
Mas é uma profecia que coloca no centro de sua revelação a questão de Sara: essa
mulher, tomada pelo rei é casada de um baal.
Ao utilizarmos esta tradução literal, precisamos rever o conceito de ba’al que tem
um duplo sentido de senhor e do nome de uma divindade.
A raiz, na maioria das línguas semíticas, quer dizer ou senhor ou, quando seguida
de um genitivo, dono. Além de ba’al ter o sentido de possuidor de coisas, tal substantivo
no plural é usado para se referir aos cidadãos (ba’alîm) de uma cidade (em Js 24,11 o
termo é traduzido por habitantes de acordo com a Bíblia de Jerusalém). Em Juízes 9, onde
o substantivo ocorre 16 vezes, o termo é normalmente traduzido por homens ou cidadãos.
No contexto de nossa narrativa ba’al não é uma divindade, mas tem o sinônimo de
senhor, possuidor. Se na cultura patriarcal o senhor da mulher era seu pai, ou seu irmão,
ou seu marido, então na nossa história Abraão é senhor de Sara. É tão senhor que já na
introdução a dispõe para Abimeleque (v.2).
Em Gn 20 vemos como se dá o relacionamento entre Sara e seu ba’al. Entendemos
que o casal percorre um caminho para superar uma relação de subordinação e chegar a um
vínculo fundamentado na vivência da solidariedade (cf. Os 3,18).
Para isso, Elohim foi firme e entrou no conflito vivenciado pelo casal. Ele disse a
Abimeleque: ela não pode ser tocada e tem que ser devolvida ao marido. Aproximar-se
dela pode causar a morte no reinado de Abimeleque. Devolvê-la pode fazer viver através
da intercessão de seu marido, um profeta.
102
Temos aí uma situação delicada, pois morte e vida estão próximas e se opõem. O
que está em jogo é a dignidade da mulher. Por ela passam a morte e a vida. A palavra de
Elohim é forte, é precedida por um advérbio enérgico: eis que – hnh (v3). O hnh anuncia o
verbo morrer, da raiz mvt - mot yumat (v.3 e 7(2x) que tem o sentido de matar.
A iminência da morte e o ato de matar são motivo de pergunta e questionamento
de Abimeleque dirigidos a Adonai: matarás? (v.4). E são motivo de justificativa para
Abraão diante de Abimeleque: me matarão (v.11). Sendo interpelação ou afirmação, o
matar está posto em função da causa da mulher.
Embora próximos e correlacionados, esses dois verbos – morrer (v.3 e 7) e matar
(v.4 e 11) – têm sua especificidade do ponto de vista semântico. Matar como ação violenta
e sangrenta tem a raiz hrg encontrada nos v.4 e 11.
Então podemos dizer que Abimeleque teme uma ação violenta de Adonai, a de
destruir a sua nação (v.4). E Abraão teme a ação sangrenta dos filisteus, a de lhe tirar a
vida (v.11).
Seguindo o texto bíblico, vemos que Abimeleque não se aproximou da mulher
(v.4) depois dessa advertência (v.3).
No centro desse conflito, quase mortal, estão as palavras que narram as ações de
seus sujeitos sociais.
Abraão e Sara dizem ser irmãos/primos (v.5.13). A novidade aqui são as palavras
da mulher. Sara tem palavra nesta narrativa (v.5.13). Não fica calada. Ainda que suas
palavras nos sejam contadas pelo rei (v.5) e pelo patriarca (v.13), registram sua
participação e seu posicionamento.
103
Sua palavra é importante ou então revela algo muito importante. É palavra toda
cheia de sabedoria. Diz e não diz tudo. À primeira vista, ela diz que tem um laço de
parentesco muito próximo de Abraham que vem marcado pelo sangue.
Mas essa palavra é também facilitadora de assédio sexual, pois dá margem para a
ação do rei. Se eles são irmãos/primos, a mulher pode atender aos caprichos do rei.
Porém, no transcorrer da narrativa, se percebe que sua palavra tem uma intenção
metafórica, pois esse dito é apenas sinal de sabedoria e solidariedade em defesa da vida
(v.13). É um dito contraditório, pois a transforma em objeto de disputa sexual.
Ele – Abraão - é sim seu irmão/primo, mas no sentido universal de companheiro e,
talvez, amigo íntimo (cf. Ct 5,16; 8,1-2).184 Pois somente uma mulher solidária é capaz de
enxergar no seu amor (no seu homem) também um amigo e irmão de jornada e de vida
cotidiana.
Contudo, só temos estas palavras de Sara. Os homens – tanto os personagens da
narrativa quanto os redatores do texto – calaram sua boca.
Eles não deixaram a mulher falar muito. Só o suficiente para poupar a ambos, tanto
o marido quanto o rei. As palavras foram dela. Portanto, salvo está seu marido. Inocentado
está seu rei.
Por isso, rei e reinado (nação) dizem ser justos, íntegros de coração e puros no
fazer de suas mãos (v.5).
Se sua nação é realmente justa (da raiz tsdq), o rei tem razão. Adonai não poderá
matá-la (v.4, cf. Gn 18,16-32; 19,12-29). Essa raiz tem basicamente a conotação de
184
Conforme nota da Bíblia de Jerusalém, nesse início de poema a jovem é ilógica, pois deseja algo diferente
de um amor fraterno.
104
conformidade a um padrão ético ou moral. Seu significado original é o de ser retilíneo
mediante a ética estabelecida pela vontade divina.
Nação justa, neste contexto, pode ser oriunda de condução justa e reta de seu
governante (v.5). Na tradição do A.T. a pessoa que é reta procura preservar a paz e a
prosperidade da comunidade cumprindo os mandamentos divinos acerca do próximo,
como não se aproximar e nem tocar na mulher alheia (v.4.6). Dessa forma, é dever do líder
manter a retidão na comunidade (cf. Ex 23,7-8; 1Cr 18,14; Pv 16,12).
Pode ser que o cerne da tipologia governamental de Abimeleque emane de sua
integridade pessoal. Conforme o sentido original da expressão integridade (tm/tãm), a
pessoa íntegra é perfeita-pura-reta. Então, Abimeleque poderia desfilar entre figuras como
o próprio Abraão (Gn 17,1), Noé (Gn 6,9), Jacó (Gn 25,27) e Jó (Jo 1,1).
O texto informa que Abimeleque se declara um rei de coração íntegro, cujo reflexo
interior projeta a prática exterior de homem puro e reto (Pr 27,19).
De acordo com o significado original hebraico, podemos apreender que o lebab
(coração, entendimento) de uma pessoa exprime a totalidade de sua natureza e caráter,
tanto interior quanto exterior (veja também 1Rs 8,23). Desse jeito, o coração de
Abimeleque poderia figurar como centro de responsabilidade moral. Retidão, nesse caso,
seria integridade de coração ou sinceridade de coração.
Vindo de um coração íntegro, o agir das palmas das mãos é caracterizado como
inocente, puro, limpo, sem culpa (conforme o significado da raiz nqy). Só pode mesmo ser
aceito por Elohim (v.6).
Elohim diz que observou e conheceu (a raiz do verbo – yd“- tem esse significado) a
integridade do coração de Abimeleque e, por isso, o impediu de errar e tocar na mulher.
105
Mais uma vez, vemos o relacionamento de Elohim com o estrangeiro. Ele não só se
revela, mas conhece o coração do filisteu, assim como viu os olhos da egípcia Agar
(16,13).
Temos então um paralelismo nos v.5 e 6 – na integridade o meu coração/na
integridade do teu coração – que recorda fórmulas litúrgicas da experiência orante de
Israel (1Rs 9,4; Sl 24,4; 101,2).
Mais do que palavras de manifestação ao rei, vemos uma ação de Elohim. Impedir
tem sua raiz em hskh e esta permite visualizar uma série de sinônimos para este verbo:
reprimir, deter, conter, negar permissão (1Sm 25,39).
Elohim impediu Abimeleque de errar – ht’- de cometer uma falta, literalmente.
Mas este termo também é empregado metaforicamente, no sentido de qualificar
negativamente um comportamento equivocado. Sendo assim, a raiz desse termo se
emprega sobretudo no campo teológico do A.T. para designar o pecado em geral.
Mas o que se qualifica como falta não seria o motivo, a intenção ou o sentimento
de quem a pratica senão a ação em si mesma, como vemos no tipo de questionamento de
Abimeleque a Abraão (v.9). Ação esta que pode atingir o coletivo, como no caso do erro
grande que Abraão traz para o reino de Abimeleque (v.9, cf. Gn 26,10).
Aqui se instaura mais um desafio para as conclusões de nossa exegese: um rei
desse porte, com um comportamento tão diferente do patriarca e profeta Abraão, é mesmo
rei? Ou é “pai do rei”? O redator do texto está elogiando quem? Quem está na sua
cabeça? Elogios são “rasgados” ao estrangeiro filisteu ou a ...?
Contudo, não podemos deixar de questionar esses dois homens, rei e patriarca.
Não está dito no texto mas podemos suspeitar que tanto o errar de Abimeleque
(v.6) quanto o erro grande de Abraão (v.9) afetaram basicamente a Sara. Os dois
106
cometeram uma falta contra a mulher, embora ela tenha acompanhado Abraão neste
episódio. Eles feriram a sua dignidade sexual e erraram por quererem tratá-la como objeto
sexual, tanto aquele que permitiu ao rei tomá-la – Abraão – quanto aquele que a desejou Abimeleque.
Por isso, Elohim entrou em cena e não deixou o rei nem chegar perto da mulher
(v.6). Porém, não basta deixar a mulher intocável. Faz parte da defesa da mulher, a ordem
de Elohim a Abimeleque: “devolve a mulher do homem”(v.7). Da raiz svb tem o sentido
de reconduzi-la, trazê-la de volta para o marido, o que confirma o quadro conflitivo
apresentado na introdução da narrativa. De fato, uma mulher havia sido tomada por um rei
(v.2).
A não devolução da mulher causa a morte (v.7). Mas a sua devolução confere
dignidade tanto ao rei como a ela mesma (v.14) como veremos na terceira parte desta
narrativa.
A devolução da mulher é caminho para a intercessão de Abraão em defesa do reino
de Abimeleque (v.7.17). O verbo interceder tem sua raiz em pll e apresenta o significado
primário de interceder, advogar, defender, proteger, pleitear uma decisão favorável em
prol de alguém. Em outras palavras, ser mediador de uma avaliação a favor de alguém (cf.
Nm 21,7; Dt 9,20; 1 Sm 7,5; 12,19.23).
Em geral, a intercessão se dirige sempre a Deus (v.17). São sujeitos da intercessão,
geralmente, figuras relevantes como Abraão, identificado como profeta na narrativa (v.7).
Normalmente, as pessoas são objeto da intercessão (v.7, Jó 42,8.10).
Na condição de profeta (nb’), Abraão exerce a atividade de intercessor, mediador
entre Deus e o rei, dirigindo-lhe súplicas em favor de Abimeleque (cf. também 1Sm 9,9; 2
107
Rs 3,11; Jr 27,18).185 Esse v. é o único texto do Pentateuco que confere a Abraão o título
de profeta.
Sendo assim, a intercessão de Abraão, por causa da devolução de Sara, traz vida
(v.7) também para outras mulheres e para outras vidas que virão à luz (v.17). É o que
podemos apontar a partir da explicação da raiz hyh que tem como significado fundamental
o estar vivo, em oposição ao morrer, e o conservar a vida, em oposição ao estar morto. Por
isso, hyh aparece também com o sentido de sarar e curar uma enfermidade (v.17). Mas a
condição para estar vivo, conservar a vida e ser curado por Elohim (v.17) é justamente
devolver a mulher: “devolve a mulher... e viverás...(v.7).”
É por tudo isso que o temor não pode ser somente de Abimeleque, porém, de todo
o seu reinado (v.8). Abimeleque não guarda só para si toda essa revelação. Levantou-se
cedo, dado que o verbo skn (shakam) acompanhado da expressão bbqr tem essa conotação
(Gn 21,14).
Chamou todos os servos, quer dizer, atraiu-os a si por meio do som de suas
palavras (Gn 24,57-58; 27,1; 28,1), de acordo com o significado da raiz qr’ (Kará) do
verbo chamar. Chamou a si aqueles os quais mantinha certa distância social por serem
seus servos (Gn 12,18; 26,9 e 39,14).
Servos, da raiz „bd tem o sentido de subalternos de seu senhor, o rei. Talvez esses
servos fossem oficiais ou ministros do rei (v.8). Os servos parecem ser concebidos
também como parte dos bens possuídos por seu senhor (v.14), à mercê de sua negociação
(Gn 12,16 e 24,35).
A primeira vez que os ministros de Abimeleque aparecem na nossa narrativa
confirma sua posição de inferioridade. Eles nada falam. Seus ouvidos só escutam as
palavras de seu senhor. Seus ouvidos aparecem simplesmente como meros órgãos de
185
No Pentateuco, o nome nabi aparece somente em quatro livros: Gn 20,7, Ex 7,1, Nm 11,29, 12,6 e Dt 10x.
108
audição, qualificando-os como ouvintes. Eles nada dizem. Mas esses homens temeram
muito, ou seja, respeitaram muito as palavras ouvidas.
Da raiz yr’, no modo q‟al, este verbo aparece várias vezes no ciclo de nossas
histórias: em Gn 15,1; 18,15 e 19,30. É um temor fruto de uma conscientização face a um
saber que evidencia uma transgressão das mais elementares normas éticas defendidas pela
divindade. É um temor que provoca respeito e resulta em tratar bem os estrangeiros e não
fazê-los tremer diante de ameaças à própria vida (v.11).
Esse temor é sábio porque é sinal de seguimento de Deus. Eles concordam com a
instrução de Abimeleque, pois esta veio da revelação divina. Seguindo a Deus, eles terão
vida e estarão preservados da morte (v.3 e 7). Pode ser que este temor esteja ligado à
tradição sapiencial (Gn 42,18; Ex 1,17.21). É temor que salva a vida e ultrapassa a morte.
É temor de sabedoria. É temor que impele o confronto e busca o diálogo.
Por isso, Abimeleque não chama somente seus servos (v.8). ele chama também
Abraão (v.9).
2.3.3. Solidariedade de mulher
9E
chamou Abimeleque a Abraão e disse para ele:
o que fizeste para nós
e como errei contra ti?
que trouxeste sobre mim e sobre o meu reino erro grande
coisa que não se faz fizeste comigo.
10E
disse Abimeleque a Abraão
o que viste
109
eis que fizeste a coisa esta?
11E
disse Abraão:
eis que eu disse;
certamente não há o temor de Elohim neste lugar
e me matarão por causa da minha mulher.
12E
na verdade ela é a minha irmã
a filha do meu pai ela
mas não a filha da minha mãe
e tornou-se para mim mulher.
13E
aconteceu quando me fez sair Elohim da casa de meu pai
e disse para ela:
esta a tua solidariedade que farás comigo
em todo o lugar aonde chegarmos ali dirás para mim
o meu irmão é ele.
Esta segunda parte de nossa narrativa começa com a censura de Abimeleque pela
suposta mesquinhez cometida por Abraham (v.9) e termina com a explicação centrada na
questão da solidariedade (v.13).
No centro temos palavras masculinas de acusação e de defesa. O confronto pode
ser visto até pelo paralelismo das frases dos v.9-10. São frases que identificam ações
individuais, polarizadas no eu/mim/meu e no tu/ti, que atingem o coletivo nós. Vejamos:
9o
que fizeste para nós
e como errei
contra ti
que trouxeste
sobre mim e sobre meu reino
coisa que não se faz fizeste comigo
10eis
que fizeste a coisa esta
110
O diálogo é tão polarizado que podemos identificar claramente o personalismo de
Abimeleque: provavelmente ele mesmo se auto declara “nação em especial justa” no apelo
que fez a Adonai (v.4).
Esse personalismo o coloca na posição defensiva e vitimizada (sobre mim e sobre
o meu reino), sendo que ele não havia se dado conta de ter cometido um erro (e como
errei). Percebemos que Abimeleque é tachativo com Abraão pela quantidade de frases de
acusação (4x).
A defesa de Abraão também tem uma estrutura argumentativa original e muito
próxima do raciocínio lógico.
Se ...
11certamente não
há o temor de Elohim neste lugar
Então...
me matarão por causa da minha mulher
Premissa1
12na verdade
P2
a filha do meu pai ela
P3
mas não a filha da minha mãe
Logo
tornou-se para mim mulher
ela é a minha irmã
Em meio ao diálogo, vemos os temores de dois homens. Abimeleque teme ser
culpabilizado, junto com seu governo, por ter tomado uma mulher casada (v.9). E Abraão
teme a morte, pois suspeita que não há temor de Elohim nesse lugar (v.11).
Isto é: este lugar (v.11), provavelmente a cidade de Gerar (v.1) não respeita
ninguém, nem a mulher (v.2) e nem o homem (v.11). A mulher pode ser tomada e abusada
sexualmente, e o homem pode ser assassinado.
Por causa dessa conjuntura, Abraão se defende e se justifica a partir do lugar – é
um lugar sem temor de Elohim - e, por isso, propício para a apropriação de mulher pelo
poder monárquico (v.11).
111
Não é de estranhar esse temor dos seminômades em relação às cidades. Afinal de
contas, a oposição entre vida pastoril e cidade é uma constante nos relatos do período
patriarcal (cf. Gn 18 e 19). Entre outras coisas, o poder citadino parece não respeitar
muito as mulheres, submetidas com facilidade aos impérios governistas (v.2, Gn 12,10-20
e 26,1-11). Inclusive, há casos nos quais a mulher fica viúva porque é vítima do adultério
cometido pelo rei que mata seu marido para se livrar da culpa (2Sm 11).
Nas origens de Israel, desde o período que antecede a monarquia, os imigrantes
vivenciam situações constrangedoras e enfrentam muitos perigos. Eles e elas procuram um
lugar melhor para viver (v.1). Se sua vida melhora de um lado, de outro ficam à mercê de
monarcas e têm que enfrentar muitos problemas. No caso em questão, trata-se da
apropriação da mulher que é cobiçada e desejada pelo rei.
Neste episódio, a ética começa a faltar logo no início (v.2), quando Abraão diz que
Sara é sua irmã/prima. A explicação dada por ele no v.12 não é convincente. Ele apresenta
o seu laço de parentesco com Sara. Diz que ela é sua irmã/prima só por parte de pai. Por
isso, tornou-se sua mulher (v.12).
Um argumento inválido precisa de muitas premissas para enganar seu interlocutor.
Sendo assim, não basta Abraão dizer que há laços familiares entre ele e Sara. Ele precisa
justificar-se por meio da ação e da palavra da mulher. Isto é algo muito típico dos homens,
pois eles sempre precisam se apoiar na mulher, tanto no âmbito profissional como pessoal.
Por isso, as palavras mais importantes desse diálogo, do ponto de vista do
testemunho de solidariedade, estão colocadas na boca da mulher.
13E
aconteceu quando me fez sair Elohim da
e disse para ela
esta a tua solidariedade
em todo lugar...
casa de meu pai
que farás comigo
ali dirás para mim
o meu irmão é ele
112
No v.13 Abraão demonstra reconhecer a autoridade de Sara. No diálogo de Abraão
e Sara há dois verbos que impelem a ação e a fala da mulher. Abraão disse para ela: “esta
a tua solidariedade que farás comigo... ali dirás para mim...”.
Os dois verbos são classificados como q‟al (no hebraico) e seu modo verbal é
imperativo. O verbo no imperativo pode exprimir ordem mas, às vezes, súplica ou pedido.
No v.13 parece que o tom não é de dar ordens mas de fazer um pedido e, talvez, em última
instância, uma súplica.
Nesse sentido, Abraão não dá ordens a Sara mas lhe faz um pedido: “me faça uma
solidariedade (v.13).” A solidariedade não pode ser imposta, ordenada. Ela é construída à
base de gratuidade e liberdade de expressão. Solidariedade forçada deixa de ser
solidariedade, vira obrigação.
Ora, esta possível informação, a de que Sara não recebeu ordens, nos faz detectar
um gérmen de pensamento subversivo em relação ao patriarcalismo. Nele, é a mulher que
recebe e executa as ordens do marido. Aqui, é o marido que suplica a ação da mulher.
Além disso, parece que essa súplica pela solidariedade da mulher nunca faltou nas
andanças de Abraão, desde que Elohim o fez sair da casa de seu pai (v.13, Gn 11,31; 12,1
e 24,7). É este compromisso travado entre homem e mulher que assegura vida e
fraternidade.
Por trás da memória das palavras ditas e ouvidas de Sara (v.13), Abraão nos
permite conhecer um pouco mais essa mulher. Ela deu provas de solidariedade. Exerceu a
hesed, ou seja, a solidariedade com todos os seus sinônimos: lealdade, amizade,
comprometimento, fidelidade, bondade, favor, benevolência, graça.
Podemos ver nas frases do v.13 que a palavra da mulher está colocada na dimensão
da solidariedade e da fraternidade. Portanto, na dimensão de atender a uma súplica em
113
resposta ao pedido que lhe foi feito. É uma palavra diferente da palavra do homem que
está voltado para si mesmo: casa de meu pai/ que fará comigo/ali dirás para mim.
Por isso, a cena dessa segunda parte só pode terminar com a palavra da mulher: “o
meu irmão é ele” (v.13). São palavras de solidariedade. São palavras reveladoras de
dignidade.
2.3.4. Dignidade de filisteu e de mulher
14E
tomou Abimeleque ovelhas e bois e servos e servas e deu a Abraão
e devolveu a Sara a mulher dele.
15E
disse Abimeleque
eis que a minha terra diante de ti no bom em teus olhos habita.
16E
a Sara disse:
eis que dei mil pratas para o teu irmão
eis que ele é para ti o véu dos olhos para tudo o que contigo está
e junto a todos és justificada.
Essa terceira parte começa com a ação de Abimeleque em favor de Abraão e
termina com sua palavra dirigida a Sara. Em síntese, temos ação e palavra do rei para
resolver o conflito básico da trama.
A ameaça de fraude à dignidade da mulher é banida. Os transtornos dessa situação
atemorizante são reparados. Mas não basta reparar o mal com a indenização financeira.
Esse mal quase afetou o corpo da mulher. Por isso, Abimeleque tem que lhe dar uma
satisfação no contato pessoal, dirigindo a palavra a Sara.
114
Primeiro ele indeniza a família e devolve a mulher (v.14). Demonstra que tem
poder desde os servos e as servas, que são tratados como objeto e colocados no mesmo
nível das ovelhas e bois.
Ao que indica o texto, Abimeleque trata a questão de Sara (v.18) de forma digna,
pois não restitui somente a mulher mas agracia a sua família com bens. Dá ovelhas para o
rebanho dos seminômades. Mas também lhes dá bois, animais emergentes a partir do
período da monarquia, o que supõe a necessidade de vida sedentária e de terra fixa para o
cuidado do gado (v.15). Em Gn 21,22-34, texto relacionado ao nosso, é Abraão que dá
ovelhas para captar o benefício de Abimeleque.
Além de ovelhas, bois, servos e servas, terra para habitar e da devolução da própria
mulher, Abimeleque dá mil pratas para Abraão. Todos esses bens materiais e financeiros
identificam claramente os pilares que sustentam a monarquia. Esta é feita à base de
rebanhos, sobretudo de gado, prata, terra, escravidão de servos e servas, e apropriação de
mulheres (Dt 17,14-17).
À revelia desse sistema monárquico, que concebe a mulher como uma propriedade
à disposição dos homens, Abimeleque dirige a palavra a Sara para se justificar. Ele
reconhece também a sua autoridade (v.16). Não negociou somente com Abraão (v.15).
Isto porque, certamente, Sara não é qualquer uma, é mulher de presença e de
palavra (v.5 e 13). É mulher visada pela comunidade (v.16) e pela divindade (Elohim, nos
v.3-7 e Iahweh no v.18). É mulher que põe em risco de vida todo um reinado (v.3 e 7).
Uma mulher com tamanha capacidade de influência, a ponto de incitar a ação de
Deus e do monarca, só pode ser liderança comunitária. Ainda que não tenha a autoridade
legal pois no patriarcado esta pertence ao homem, detém a autoridade legítima.
115
Sara está legitimada na sua condição de mulher preciosa para Deus e para a
comunidade. É legítima na sua ação solidária. Não precisa de muitas palavras como fazem
Abimeleque e Abraão. Precisa, sim, de ação reparadora.
Para casos desse tipo, no qual não houve efetivação do contato físico entre homem
e mulher (adultério), a legislação israelita não prevê indenização (Dt 22,13-23,1; Lv 18 e
20). Nessa história, a indenização fica por conta da importância da mulher, provavelmente
uma líder influente na vida social de sua comunidade.
E fica por conta também da generosidade de Abimeleque. O monarca estrangeiro
vai além daquilo que está previsto na lei. Para uma jovem que perde a virgindade, a lei
estabelece o pagamento de um dote de cinqüenta ciclos de prata ao pai dela (Dt 22,28-29;
Ex 22,15). Abimelek dá mil ciclos de prata para Abraão (20 vezes mais!) sem violar a
sexualidade de Sara.
Apesar de ter sido generoso, Abimeleque age dentro dos ditames da estrutura
patriarcal. Ele dá o dote a Abraão e não a Sara. Ele legitima a doutrina patriarcal que
concebe a mulher comandada pelo homem, seja ele seu irmão, pai ou marido.
Por isso, na palavra que ele dirige à mulher temos resquícios fortes da cultura
patriarcal. A nosso ver, é uma cultura que esconde a mulher (v.16). Impõe toda uma carga
de normas e preceitos, que pode ser simbolizada pelo véu nos olhos sugeridos pelo rei.
Entendemos que, ao esconder a mulher, o véu dos olhos tampa também os olhos da
comunidade em relação à experiência de opressão sexual da mulher. O véu dos olhos não
deixa ver os abusos sexuais e os riscos de vida aos quais a mulher é submetida no sistema
monárquico. Ele silencia a mulher e a comunidade.
O véu dos olhos tira a visão de conjunto da mulher e da comunidade. Com o véu
dos olhos só dá para enxergar em uma direção. Com ele nos olhos, só se enxerga bem de
perto ou embaixo dos olhos.
116
É aí que está colocada a mulher na cultura patriarcal. Bem perto da casa e do
marido, no âmbito da domesticidade. E se o marido pertencer à classe subalterna, como
Abraham, a mulher está também sob os olhos do monarca ou de qualquer outro poder
reinante.
Diferentes são os olhos desses homens. Eles não precisam usar véu. Mas seus
olhos estão vendados, pois eles não conseguem enxergar outro tipo de relação com a
mulher que não seja a da exploração de sua sexualidade. Eles não conseguem respeitá-la
sem a intervenção de Elohim (v.3-7).
Deles, são olhos que cobiçam, apenas. São olhos com olhares unilaterais, fechados
para o horizonte da solidariedade. Dela, são olhos que ultrapassam o véu para se abrirem à
relação solidária e fraterna.
É dessa forma que Sara é justificada: pela sua capacidade de testemunhar a
solidariedade e de atrair a intervenção divina.
Ela não é justificada pela indenização de sua família e nem pelo véu dos olhos que
Abimeleque lhe impõe com firmeza, pois a expressão é precedida pelo advérbio hnh.
Sara é justificada pela ação de Elohim (v.3-7) e de Iahweh em seu favor (v.18).
2.3.5. Elohim e Iahweh em defesa do útero
17E
intercedeu Abraão a Elohim
e curou Elohim a Abimeleque
e a mulher dele e as servas dele
e deram à luz.
117
18Eis
que fechar fechara Iahweh todo o útero da casa de Abimeleque
por causa da questão de Sara a mulher de Abraão.
Na conclusão de nossa narrativa, se resolve o conflito básico da trama a partir da
atuação da divindade que fecha e cura os úteros da casa de Abimeleque por causa de Sara,
mulher de Abraão (v.17-18).
Nossa história chega ao final com mais uma surpresa. Tudo corria para a má sorte
de Abraão. Só que o v.17 abre uma cena informando que Abraão intercedeu a Elohim.
Recupera, dessa forma, a função de Abraão anunciada no v.7 pelo próprio Elohim.
Contudo, se uma das intenções redacionais é a de resgatar a imagem de Abraão,
esbarra com o segundo dado que é o mais importante: Elohim faz a cura, Abraão somente
intercede por ela.
Da raiz rp’ o verbo “curar” se refere à cura de enfermidades de todo gênero,
especialmente a esterilidade (v.17). Conforme a tradição do povo israelita, a cura da
enfermidade está ligada à fé em Iahweh (v.18). O pressuposto é a convicção de que
Iahweh dirige soberanamente a história e é senhor da vida e da morte (Dt 32,39, 1Sm 2,6).
Na nossa narrativa, a cura da esterilidade tem um conteúdo profundo. Abimeleque
tomou Sara (v.2). Foi impedido por Elohim de levar avante seu projeto de se apropriar
dessa mulher (v.6). Foi advertido em sonho para não tocar na mulher (v.7).
Por isso, fez reparos e indenizações (v.14-16). Mas não foi poupado de sofrer as
consequências de seu erro (v.18). Portanto, a conclusão de nossa narrativa aponta para o
fato de que Abimeleque também foi acusado e não somente Abraão (v.9-13).
Mas suas mulheres foram curadas e deram à luz, ou seja, superaram um dos
maiores problemas relatados nas narrativas de nosso ciclo literário: a falta de filhos, isto é,
a esterilidade.
No contexto de nossa história, com essa informação de que mulher e servas são
fertilizadas pela ação de Elohim, podemos suspeitar de duas vertentes. A primeira, de
ordem política e sociológica, diz respeito à importância de recurso humano para a casa de
Abimeleque.
118
O texto não fornece dados numéricos, porém, dá a entender que se tratava de
muitas mulheres as quais sustentavam a casa de Abimeleque, provavelmente no nível da
exploração de sua sexualidade e da reprodução de crianças. Possivelmente, seriam as
mulheres da cidade de Gerar (v.1).
Temos então mais um indício do período monárquico que também se sustenta com
a garantia de bom exército para atacar, proteger e defender o reinado. E para ter um
exército, é necessário se apropriar de mulheres que possam procriar crianças, sobretudo
meninos.
Se o útero serve de órgão reprodutor para a monarquia, então Iahweh o fecha, ou
seja: veda, aprisiona, encerra, detém, domina. Iahweh exerce o controle social do útero da
casa de Abimeleque por causa da mulher.
Na verdade, Ele está impedindo a entrada de mais uma mulher (Sara) para esta
casa que intenta aproveitar sua sexualidade e seu órgão reprodutor. Parece que Iahweh
fecha úteros com uma função social espoliativa para defender um útero que resiste à essa
situação de opressão.
A segunda vertente deste episódio pode ser de ordem teológica, pois abrir útero é
garantir descendência para o povo de Israel. Por isso, Elohim cura as mulheres de
Abimeleque e as potencializa para darem à luz.
Seja para não ceder à monarquia com o fechamento do útero ou para possibilitar
descendência com a abertura do útero, em ambos os casos está repensada a função social
das mulheres. Elohim e Iahweh atestam que nenhuma mulher pode ser tomada (v.2) e
tocada (v.6) se não for na dimensão da relação solidária entre homem e mulher (v.13).
Temos
a emergência da divindade. Elohim cura as mulheres da casa de
Abimeleque (v.17). Iahweh fecha o útero delas (v.18). Pela disposição dos versos, à
primeira vista, parece que ocorre um confronto entre as ações da divindade, pois há cura e
fechamento de útero.
Constatamos que Elohim cura as mulheres porque seus úteros estavam fechados. O
controle social dos úteros se dá em benefício das mulheres e não em função da exploração
119
de seu corpo. O que existe de comum entre as ações das divindades é a defesa das
mulheres. Em primeiro lugar está a defesa de Sara e, por causa de seu resgate, Elohim
devolve a fertilidade às mulheres de Abimeleque.
2.3.6. Estilo e gênero literário
A nossa perícope se caracteriza pelo gênero literário narrativo, marcado por muitos
diálogos.
Como já dissemos no início deste capítulo, esta narrativa é realmente uma obra de
arte. Seu estilo é de um conto que, ao relatar a história começa devagar, com poucas
informações, explicando a posição e a função dos personagens ao longo do processo
narrativo.
Realmente é um texto muito bem escrito e demonstra um jeito artístico de se fazer
narrativa. O texto vai e volta no seu jeito de contar a história e desvenda aos poucos a
situação de seus personagens. Enfim, encontramos um conto cheio de artimanhas, pois
apresenta uma história provavelmente do cotidiano do povo israelita. Por isso, tem frases
simples e bem montadas.
A maioria dos verbos dessa narrativa está conjugada no modo q‟al imperfeito
consecutivo, na terceira pessoa masculina do singular, formando frases unidas pela
conjunção “e”.
Os verbos e partiu (v.1), e habitou (v.1), e residiu (v.1), e enviou (v.2), e tomou
(v.2.4), conforme nossa proposta de organização de Gn 20,1-18 exposta acima,
introduzem a narrativa e informam sobre o conflito básico da cena.
120
Os verbos e veio (v.3), e disse (v.2.) dão continuidade à narrativa e apresentam a
fala de Abraão e a emergência de Elohim e de seu discurso.
Destacamos o verbo e disse que inicia o v.2, pois evidencia o estilo dessa narrativa
que é composta de muita conversa, diálogo e palavras. Conforme já relatamos
anteriormente, este verbo é o mais usado em toda a narrativa: v.2.3.4.5.6.9.10.11.13.15.16.
Introduz a fala dos seguintes sujeitos: Abraão (v.2.5.11), Abimeleque (v.4.9.10.15.16),
Sara (v.5) e Elohim (v.3.6).
No v.13 o verbo e disse está conjugado na 1ª primeira pessoa do singular, o que
revela uma ação/fala direta de seu sujeito (Abraão). Nessa fala, Abraão está se justificando
diante de Abimeleque. Aliás, o discurso de Abraão na narrativa está marcado por verbos
que o situam nesta cena: no v.11 temos o verbo – e me matarão – conjugado no q‟al
perfeito, na 3ª pessoa do plural, com sufixo na 1ª pessoa do singular; no v.12 há o verbo e
tornou-se, conjugado na 3ª pessoa feminina do singular, (tem preposição com sufixo da 1ª
pessoa do singular).
Temos ainda o verbo e impedi (v.6) conjugado na 1ª primeira pessoa do singular.
Está situado na fala de Elohim e indica uma ação diretamente desenvolvida pelo seu
sujeito. É uma ação forte na história, pois preserva a mulher de ser tocada pelo rei.
No v.7 o verbo – e viverás – está conjugado no q‟al imperativo, na 2ª pessoa
masculina do singular. No contexto da história, este verbo faz parte do discurso de Elohim
e parece ter dupla intenção: a de fazer uma advertência ao rei e a de indicar-lhe uma
alternativa para sua situação conflitiva.
O verbo e chamou (v.8.9) também introduz um diálogo e tem a tonalidade de uma
convocação. Desta vez, é o rei que convoca os ministros (v.8) e o patriarca (v.9).
Os verbos e aconteceu (v.13); e deu (v.14); e curou (v.17) mostram a ação de seus
sujeitos e apresentam três cenas fortes: no v.13 Abraão enfrenta Abimeleque, no v.14
121
Abimeleque indeniza Abraão e no v.17 Elohim cura as mulheres da casa de Abimeleque
de sua esterilidade.
Nesse mesmo modo verbal, temos ainda: e temeram (v.8), e deram à luz (v.17) que
estão conjugados no plural e apresentam ação coletiva de seus sujeitos (dos ministros e das
mulheres de Abimeleque) que também são ações relevantes no curso da história.
Concluímos que esses verbos estão inseridos em várias frases relevantes de nossa
perícope e indicam um estilo literário marcado por uma linguagem narrativa e sequencial,
intercalada com falas dialogais.
Nas falas dialogais temos diálogos travados entre Elohim e Abimeleque (v.3-7),
Abimeleque e Abraão (v.9-13), Abimeleque e Sara (v.16). O diálogo parece ser mais
coletivo e ter um tom de assembléia/reunião no v.8 quando Abimeleque chama seus
ministros e lhes fala todas as palavras ouvidas durante o sonho.
Em meio a esse diálogo com falas mais compridas temos intercalados subdiálogos
(v.5.13). Excepcionalmente no v.5 temos indícios de subdiálogo entre três personagens:
Abimeleque, Abraão e Sara. Já no subdiálogo as falas são mais curtas e têm conteúdos que
apresentam a trama da história (v.5) ou mencionam acordos feitos entre os dialogantes
(v.13).
Nos diálogos é comum um falar e o outro responder: Elohim inicia a conversa (v.3)
e Abimeleque responde (v.4); Abimeleque questiona Adonai (v.4) e Elohim responde (v.67); Abimeleque interpela Abraão (v.9-10) e este lhe responde (v.11-13); Abraão faz um
pedido para Sara e ela lhe atende (v.13).
Parece que o que caracteriza a maior parte dos diálogos é sempre uma fala de
ataque e outra de defesa, como vemos na conversa de Elohim com Abimeleque (v.3-7) e
deste com Abraão (v.9-13).
122
Mas no v.16, temos um diálogo que é quase um monólogo, pois o homem fala e a
mulher está calada. Neste, trata-se de dar uma justificativa face aos ataques recebidos no
diálogo do rei com Elohim (v.3-7). Também no v.8, os que ouviram as palavras de
Abimeleque nada disseram, permaneceram mudos desde o início até o final da reunião
com o rei.
Concluímos que nossa narrativa tem começo, meio e fim. No desenrolar da história
ela estimula a curiosidade da leitora e leitor para irem até o final do capítulo e
desvendarem todos os mistérios da trama. E, tal como os contos que conhecemos hoje,
nem tudo nossa narrativa explica. As respostas para certas indagações e curiosidades
ficam por conta de nossa reflexão e aprofundamento.
2.3.7. Processos de construção, composição e elaboração do texto
Como nosso subtítulo indica, estamos diante de uma narrativa com processos de
composição e de redação variados.
Claus Westermann comenta que Gn 20 foi e continua sendo atribuído a uma
origem eloísta, à luz sobretudo de elementos considerados significativos: a menção de
Elohim, a divina revelação por sonho (v.3-7) e o temor de Deus (v.8.11).186 Informação
concordante é a de Norman Gottwald.187
Semelhante comentário é o de Jacques Vermeylen ao elencar textos de tipo eloísta
e afinidades de conteúdos que explicam sua origem. Diz ele que textos de tipo eloísta além
de empregarem o nome divino, Elohim, sublinham: o bom comportamento e a reta
186
Claus Westermann, Genesis 12-36, p.316-329.
Norman K. Gottwald, Introdução socioliterária à Bíblia Hebraica, Edições Paulinas, 1988, p.150-176.
187
123
intenção das personagens, a retribuição divina e as mediações do encontro com Deus que
se serve de objetos intermediários como o sonho de Abimeleque.188
Todavia, nossa crítica literária não se pautará pela teoria das fontes. Embora seja
difícil fazer afirmações e ter precisão nesse campo da análise das camadas literárias,
apresentaremos nossas suspeitas e hipóteses acerca da construção e elaboração de Gn 20.
Partimos daquilo que parece ser elementar em nossa narrativa. Consideramos como
camada mais antiga ou narrativa básica a informação de que uma mulher casada foi
tomada por um poder estrangeiro. E seu marido ficou calado, consentiu (v.2).
Suspeitamos que esta, provavelmente, é a parte fixa da história, que tem resquícios
da tradição oral. É fruto das conversas do cotidiano do povo que vão virando teologia
dentro da liturgia, dos encontros, das festas, das conversas de mulheres. Ao compartilhar a
vida, há troca e relato de experiências. De geração em geração são contadas histórias
cotidianas trançadas com religião.
Por isso, suspeitamos que essa camada básica do texto é memória de pequenos
grupos de mulheres. A quem mais interessaria partilhar e transformar em memorial uma
situação tão difícil para as mulheres? Quem mais sentiria tanta indignação a não ser as
próprias mulheres? Quem mais teria interesse de preservar na memória histórica da
comunidade um fato tão chocante e tão denunciador das más posturas masculinas?
Além de originária da tradição oral, essa narrativa básica é a matriz de três
histórias que contam o mesmo fato de forma diferenciada e de acordo com seu contexto
social e teológico (Gn 26,1-11; 20,1-18 e 12,10-20).
188
Jacques Vermeylen, “As primeiras etapas literárias da formação do Pentateuco”, em O Pentateuco em
questão, Editora Vozes, Petrópolis, 1996, p.118-164.
124
Nessa repetição, da qual Milton Schwantes diz que o texto mais antigo é o de Gn
26,1-11,189 vemos a força da memória das mulheres na vida da comunidade israelita. A
crítica à exploração de sua sexualidade foi enfática e permaneceu viva desde a sua origem.
Provavelmente há outra camada literária de nosso texto, certamente oriunda de
material antigo, talvez da época anterior ao tribalismo. Nessa camada temos memória de
seminômades, identificados como grupos abraâmicos, que narram sua situação de povo
imigrante e sem terra, e suas tramas amorosas.
Portanto, são essas memórias de grupos de mulheres e de seminômades que viram
teologia em forma de literatura. Não são nem história cronológica e nem biografias mas
são narrativas paradigmáticas.
Essas memórias, segundo Norman Gottwald, foram preservadas em alguns
santuários.190 As histórias de Abraão e Sara foram reunidas no santuário de Hebron, no sul
da Palestina. Ela e ele expressam as figuras de muitos personagens que viveram a mesma
experiência. Representam, certamente, a vida de muitas mulheres e de muitos
seminômades cujas memórias foram agrupadas como história de um único grupo. As
tradições desses grupos conseguiram transmitir também a fé num Deus muito próximo de
si, caracterizado em nosso texto como Elohim (v.3.6.11.13.17), Adonai (v.4) e Iahweh
(v.18).
Concluímos: nosso texto está inserido no Pentateuco, coletânea cuja edição final
foi feita entre o exílio e o pós-exílio, nos séculos 7º/6º a.C, no período de reorganização do
templo de Jerusalém. Ele começa com o v.1 abrindo a cena por meio de um itinerário. Este
indica, certamente, um dos acentos do redator final do texto, no esforço de ligar esta
história com o bloco literário maior do livro de Gênesis, especialmente do bloco 11,2725,18.
189
Já trabalhamos esta questão neste capítulo, no subtítulo Histórias parecidas.
Norman K. Gottwald, Introdução socioliterária, p.150-176.
190
125
Como aconteceu com as obras do Pentateuco, provavelmente nosso texto não
sofreu influência apenas dos intelectuais do templo que o editaram. Muitos grupos deram
forma a esse texto.
Enquanto elaboração final, portanto, aglutinadora de tradições e de fragmentos,
nosso texto parece apresentar uma reflexão teológica típica do pós-exílio, pois traduz
algumas das preocupações das comunidades judaitas dessa época, como a de se relacionar
harmoniosamente com os povos vizinhos e ter uma postura ética, como não enganar
ninguém (v.5.12-13).
No v.17, temos a informação de que Abraão intercedeu por Abimeleque junto a
Elohim. Esta também é uma das teses pós-exílica: o que resta é a oração. Acena para o
fato de que a função da comunidade judaica é fazer oração. Através da oração de Abraão
Deus curou as mulheres do mal da esterilidade (v.17). Este dado aponta a perspectiva de
descendência.
A questão da descendência está ligada à idéia da promessa. Aí temos elementos
pós-exílicos da teologia da promessa. Não dá para formar uma nação, um novo país, sem a
multiplicação de povo. O peso da esperança pós-exílica é ter uma nação novamente. O
Deus da promessa não pode fechar útero. Ele tem que curá-lo.
Outro sinal de que nosso texto pode ser produto de elaboração do pós-exílio,
tempo de afirmação do judaísmo, tanto da cultura como da religião, é a busca da autoidentificação com personagens paradigmáticos, especialmente com os pais e mães de
Israel, a começar de Abraão e Sara (Is 51,1-2).
126
2.4. Considerações finais
De tudo o que vimos, concluímos que cada texto bíblico tem a sua singularidade e
a sua novidade, de acordo com seu contexto literário e histórico. Cada texto é fruto da
vivência histórica de um grupo. Assim, nosso texto é uma reação literária a algo histórico
de um grupo feminino que está querendo relatar a sua vivência. Provavelmente foi escrito
por homens, mas está presente a memória de mulheres no seu núcleo básico (v.2). Nossa
narrativa é uma história de famílias e de mulheres, e não de reis. Isso indica que os grupos
minoritários e excluídos foram privilegiados.
No terceiro capítulo, enfocaremos nossa narrativa a partir de suas perspectivas
sociais e teológicas. Tentaremos deixar mais claras e explícitas as relações sociais de
poder.
127
CAPÍTULO
UMA
LEITURA
E
DE
DE
III
GÊNERO
DI F E R E N Ç A
128
No primeiro capítulo fizemos uma avaliação das leituras feitas, em torno da figura
de Sara em Gn 20,1-18, na América Latina, de 1978 até os nossos dias. Focalizamos
vários retratos de Sara a partir do bloco literário de Gn 11,27 a 25,18. A análise desses
retratos nos estimulou a buscar uma figura de Sara diferente: não mais uma mulher
dominada, explorada e sem nenhum poder de decisão.
No segundo capítulo analisamos Gn 20,1-18 por meio do método exegético.
Tentamos compreender o processo de composição do texto dentro de seu contexto social,
histórico e vivencial. Confirmamos nossa suspeita de que Sara tem autoridade nesse
episódio. Também confirmamos nossa idéia de que o texto bíblico mostra a dignidade de
povos estrangeiros à luz do personagem Abimeleque.
No terceiro capítulo pretendemos desenvolver uma interpretação sobre alguns
aspectos destacados nos dois primeiros capítulos. Inicialmente, desejamos aprofundar
como se desenvolvem as relações sociais de poder entre as personagens.
Nossa discussão se fundamenta no conceito de poder de Roberto Aguiar,
compreendido como uma relação entre pessoas, de comando e de obediência. O poder atua
em vários níveis e de várias formas em cada nível, estabelecendo-se através dos macro e
dos micro poderes.191
Podemos considerar os micro poderes como os mais eficazes, pois reproduzem o
macro poder no tecido social, atingindo as relações cotidianas que têm formas diferentes
do exercício do poder.
Segundo a denominação de Roberto Aguiar, macro poder é um conjunto de
faculdades de controle exercidas por um órgão de dominação sobre a totalidade de
indivíduos de um dado universo estatístico. Para se sustentar, o macro poder necessita de
191
Roberto Aguiar, Direito, poder e opressão, Editora Alfa-Omega, São Paulo, 1990, p.49-78.
129
poderes menores, denominados micro poderes que reproduzem os poderes maiores, seu
discurso e sua ideologia. Este tipo de poder pode atingir o controle das mentes, dos limites
da consciência e das dimensões de alienação.
No micro poder, o próprio indivíduo controlado pelo poder torna-se agente do
macro poder, ou seja, controlador de seus companheiros: pais obedientes educam os filhos
para a obediência; funcionários passivos e pacíficos repetem os rituais da burocracia e o
discurso ideológico do sistema; assistentes sociais anestesiam os conflitos; psicólogos
ajustam os pacientes aos padrões sociais; professores ensinam as versões oficiais; escolas
formam exércitos de reserva; polícia zela pelos bons costumes; trabalhadores oprimidos
oprimem suas esposas, etc.
O micro poder está presente sobretudo no âmbito do cotidiano, na história do dia a
dia que não é feita somente de grandes decisões, de grandes embates e de grandes
conflitos. Conforme o autor cita, a história cotidiana transcorre nos meandros das relações
subalternas, das situações mesquinhas, das pequenas dominações, nos dramas das
esquinas, nas camas dos casais, nos bancos das escolas.
É assim que estamos olhando nossa narrativa: uma história ocorrida no âmbito do
micro poder. É uma história que apresenta um drama amoroso, certamente oriundo da
memória de mulheres oprimidas no cotidiano de sua vida familial-comunitária. Este drama
aparece enlaçado em tramas maiores, reflexos do macro poder, como a do poder abusivo
de um monarca e da concepção patriarcal da função social feminina.
Em meio a essas tramas e dramas, temos uma teologia que prima pela
solidariedade, amizade e acolhida ao diferente, estampada na palavra da mulher, na ação
de Deus e na resposta do rei. Há uma ação teológica na vida das mulheres, pois Deus
intervém em favor de Sara e mexe no útero feminino das mulheres de Abimeleque. A
mulher seminômade faz uma ação teológica ao ser solidária com Abraão. Há uma ação
teológica na vida do rei estrangeiro, pois Deus lhe faz uma revelação. A ação de Deus é
130
um ensinamento de amizade e acolhida ao diferente. Por isso, queremos construir uma
concepção teológica de Gn 20,1-18 levando em conta a presença de Elohim e Iahweh na
vida das mulheres e do rei estrangeiro.
3.1. Disputa de poder entre homens
No nosso texto, especialmente na camada literária mais antiga (v.2), as relações
sociais de poder entre os homens são claras, a começar pelo sistema hierárquico que
envolve seus personagens. Na base piramidal estão os seminômades e no topo Abimeleque
e seu governo. As relações sociais travadas entre eles são de comando e de obediência
(v.2). Conforme já dissemos, a raiz do verbo tomar – lqh – do v.2 significa mandar buscar
e não pegar algo/alguém imediatamente. Ora, só manda buscar quem tem poder para
comandar uma ação.
As considerações de Roberto Aguiar e de Fábio Konder Comparato podem
iluminar nossa reflexão sobre a questão do poder. Segundo Roberto Aguiar, o poder se dá
mediante a inter-relação com a outra pessoa, com o diferente, relação esta que evidencia
dois movimentos: daquela que comanda e daquela que obedece. Dessa forma, o poder é
exercido por uma pessoa sobre a outra.192
192
Roberto Aguiar, Direito, poder e opressão, p.49-78.
131
Fábio Konder Comparado apresenta semelhante conceituação:193 poder é a
faculdade de impor a vontade, se fixa como um fenômeno da vida de relação entre as
pessoas. É um fenômeno próprio da vida de relações hierárquicas.194
O exercício do poder envolve uma deliberação, diz Roberto Aguiar. Quem exerce o
poder quer que a outra pessoa aja em determinado sentido, de acordo com aquilo que lhe
foi comandado, a fim de alcançar o resultado desejado. O resultado se traduz por uma
mudança ou manutenção de atitudes do comandado, tendo em vista o desejo do detentor
do poder. Este pode ordenar ou permitir. As pessoas ou grupos exercem poder sobre outras
pessoas ou grupos através de várias formas, entre elas, a força física, a força econômica e
a força política.
Provavelmente, no nosso texto, Abimeleque exerce poder sobre o grupo de
seminômades através de sua força física, econômica e política. Parece que a sua força
física se traduz pela sua força militar. Certamente, a casa de Abimeleque (v.18) era
guardada e mantida por seus servos e ministros (v.8.14).
O texto não diz, mas podemos supor que no v.2 Abimeleque ordenou e alguém do
seu comando certamente executou a ordem de buscar Sara. Então, à custa da força física,
Abimeleque pode se impor. À base de sua força econômica, Abimeleque pode se
desculpar (v.14-16). A força política está implícita na própria função desempenhada por
ele: rei de Gerar (v.2). Outro aspecto que evidencia o poder de Abimeleque é o fato dele
receber ordem para devolver a mulher tomada (v.3-7). Se ele deve devolvê-la é porque ela
estava em sua posse.
Pelo que vimos no texto bíblico, Abraão, provavelmente, consentiu que
Abimeleque tomasse sua mulher devido à imposição do mesmo, respaldada em seus
193
Fábio Konder Comparato, Educação, Estado e Poder, Editora Brasiliense, São Paulo, 1991, p. 13.
Este autor, no texto “Poder e legitimidade na sociedade contemporânea”, trabalha noções fundamentais de
poder, basicamente sua definição e essência, a partir de uma abordagem jurídica e na ótica marxista.
194
132
poderes políticos, econômicos e militares. Na condição de imigrante e seminômade, em
terra estrangeira (v.1), como não cederia à vontade do rei? Talvez possamos dizer que
Abraão lida com os poderes de Abimeleque de forma estratégica. Diante do rei poderoso,
Abraão finge que aceita a situação. Demonstra certa passividade, pois percebe que pode
correr risco de vida (v.11).
Todavia, parece que Abraão sabe do poder que possui no âmbito da casa patriarcal.
Não é poder militar e nem econômico. É poder religioso. Abraão é apresentado pela
divindade como profeta (v.7). Intercede a Elohim e é atendido (v.17). Além disso, Abraão
tem capacidade para fazer uma boa argumentação junto ao rei (v.11-13) e negociar seu
futuro (v.2.5.14-15).
O final de nossa história parece mostrar qual dos dois grupos foi o vencedor.
Embora o rei não seja declarado culpado e nem punido, ele indeniza a família de Abraão e
devolve a mulher ao marido. Quem vence são os seminômades.
3.2. Poder de mulher e de homem
As relações sociais de poder entre mulheres e homens podem ser entendidas no
âmbito das relações de gênero. Nosso cap.20 trata, portanto, de conflito de gênero. Este
diz respeito ao conflito estrutural de dominação do homem sobre a mulher, legitimado
através dos papéis sociais que culturalmente lhe foram atribuídos.
Na cultura patriarcal o papel atribuído à mulher é o de submissão e dependência
em relação ao homem. Sua função básica é a de procriar e servir o homem para lhe
133
garantir descendência. Conforme constatamos nos capítulos anteriores, Gn 20,1-18 retrata
este pensamento quando apresenta as mulheres em função dos homens, na condição de
esposa/amante (v.2-3.7.11-12.14.17-18), irmã/prima (v.2.5.12-13.16), filha (v.12) e serva
(v.14.17).
Em nível mais profundo, atingindo o tecido social mais íntimo, no interior da vida
privada do casal, podemos intuir: o poder de Abraão sobre Sara passa pelo controle de sua
sexualidade (v.2).195 Um controle que lhe permite dispor de sua mulher para entregá-la ao
rei e, com isso, se preservar de uma ameaça de morte (v.11).
No primeiro capítulo, vimos leituras que interpretam essa situação como uma ação
de homem com a cumplicidade da mulher. Sara teria sido conivente e cúmplice de Abraão
no ato de enganar Abimeleque. A posição do rei seria de vítima, tanto de Abraão como de
Sara.
Não fazemos nossa leitura nessa ótica. Preferimos entender que há disputa de
poder entre homens pelo controle da mulher. Nenhum dos homens é vítima, nem o que
favorece a situação e nem aquele que muda de intenção quando é questionado por Deus.
Nem a mulher é vítima. Nesse jogo de forças, ela é defendida por Deus e se posiciona na
dimensão da solidariedade. É uma pequena amostra de que a mulher tem valor e sua
função extrapola a procriação.
Da parte de Abimeleque, Sara é reconhecida como uma autoridade, pois ele lhe
dirige a palavra, se justifica e explica seu procedimento (v.16). Numa sociedade marcada
pela cultura patriarcal, é de se admirar que um homem dê satisfação a uma mulher, ainda
mais um rei.
195
Michel Foucault, Microfísica do poder, Edições Graal, Rio de Janeiro, 1989, p.145-152.
134
Para entendermos esse ponto de vista é interessante o conceito de autoridade de
Roberto Aguiar e de Fábio Konder Comparato. Para Roberto Aguiar, nenhum grupo, por
questão de sua própria sobrevivência, apresentará a força, o prestígio ou a influência como
motivo de sua ascensão. O argumento do grupo ou da pessoa que possui poder se baseará
na idéia da existência da autoridade para justificar sua posição de comando, de tomada e
de continuidade do poder.196
Fábio Konder Comparato salienta que a autoridade representa a influência
determinante sobre o comportamento de outrem, em razão do prestígio moral, do
conhecimento técnico, da habilidade ou experiência, do carisma.197 De acordo com
Roberto Aguiar, para deter o poder e para se tornar autoridade, são necessários recursos
como: organização, liderança, responsabilidade, moral, disciplina, justificativas e táticas.
De todos esses requisitos para uma autoridade, certamente os de Sara são liderança,
tática e habilidade para lidar com essa trama e se sair bem. Seu jeito de se relacionar com
os homens, a partir de seu próprio marido (v.5.13), dá provas disso. É um jeito que
desmonta a ação dos homens, pois ela é uma agente da solidariedade.
Analisando a história com esta abordagem, estamos rompendo com uma visão
autoritária que só vê as mulheres como vítimas do sistema patriarcal. Não negamos a
opressão da mulher, ela está bem registrada na narrativa básica de nosso texto (v.2). Mas,
em nosso texto, a mulher fala e testemunha a solidariedade (v.5.13). É ela que diz: “ele é
meu irmão”, diferente das outras versões que colocam a palavra somente na boca de
homens (Gn 12,13 e 26,7). Certamente, se esta mulher não fosse uma liderança
importante, não teria palavra na narrativa. A palavra que lhe é conferida pode ser fruto do
reconhecimento de sua autoridade na comunidade (v.16). A qualidade de sua palavra e de
sua vida alcançam Deus (v.3).
196
Roberto Aguiar, Direito, poder e opressão, p.49-78.
Fábio Konder Comparato, Educação, Estado e Poder, p. 15.
197
135
3.3. Poder desarticulado das mulheres
O fio condutor de nosso texto não versa sobre relações sociais de poder entre
mulheres. Com exceção de Sara, a presença das outras mulheres é discreta e quase passa
despercebida. São mulheres anônimas que não têm nem sequer nome. São identificadas,
conforme destacamos acima, pela sua função no âmbito da casa, na esfera da servidão
(v.14) e da reprodução (v.17).
Essas mulheres lidam com esterilidade (v.18) e fertilidade (v.17). Estéreis ou
férteis, sua função está clara: servir a casa de Abimeleque. Diante de Sara parece que elas
têm pouco valor, pois não falam nada e nem participam de algum diálogo. São controladas
pela divindade (v.17-18) e por Abimeleque (v.14).
Como parece indicar a narrativa, temos a impressão de que essas mulheres
pertencem ao harém de Abimeleque. Nesse harém, a relação entre mulheres também é
hierarquizada. Em primeiro lugar está a mulher de Abimeleque. Ela não é serva. Depois
vêm as servas, à disposição da reprodução (v.17) e da negociação do rei com o patriarca
(v.14). As servas têm valor de troca. São um dos produtos dados a Abraão em troca da
justificação do rei.
Não há comunicação entre Sara e essas mulheres. Elas estão isoladas. As mulheres
da casa de Abimeleque estão articuladas a partir somente de sua função social no reinado.
Aparecem numa atividade conjunta, a de darem a luz. Inclusive, o verbo está no plural
(v.17) o que mostra uma ação coletiva. Elas sofrem uma punição provisória (v.18). Têm
seus úteros fechados. Nessa situação, exercem o papel de couraça para o rei. Embora elas
não participem do erro dos homens, nem do rei (v.6) e nem do patriarca (v.9), são
136
atingidas e correm o risco de serem desprezadas por causa de sua esterilidade, uma vez
que na sociedade patriarcal a mulher é valorizada pela sua capacidade de dar à luz.
Mulher com útero fechado não tem valor. Por isso, o Deus que intervém em favor
de Sara (Elohim) não pode ficar intransigente em relação a essas mulheres (Iahweh). Ele
as cura e lhes garante descendência (v.17). Rompe com o padrão cultural e mostra, a partir
de Sara, que uma mulher tem valor independente de sua função de procriar. Nessa
dimensão, é um Deus que articula o poder das mulheres. Defende as mulheres e lhes
devolve a dignidade.
3.4. Teologia da solidariedade
No espaço da familial-patriarcal-comunitária encontramos diversos tipos de
relações sociais e de poderes diferenciados. Vimos que as relações sociais entre as
personagens são permeadas por vários conflitos. Estes ocorrem porque a vida cotidiana
está trançada nas relações sociais de poder. A teologia se situa em meio a estes conflitos
de poderes. Deus se revela em meio a essas relações. Podemos dizer que a imagem divina
em nosso texto é a de um Deus do cotidiano, presente e atuante nas vivências dramáticas
de seu povo, especialmente de mulheres.
O cotidiano dos seminômades, como já vimos, é marcado por muitas dificuldades,
desafios e tramas amorosas (v.1-2). Deus está no meio desses conflitos desde o início
(v.3).
137
Essa concepção de Deus retratada no texto bíblico provém de tradições antigas.
Nos v.3.6.11.13.17 (2x) Deus é chamado de Elohim. Elohim é uma forma plural de El, um
nome muito antigo usado para denominar Deus nas culturas semitas pré-patriarcais.
Os seminômades praticam a religião das divindades familiares. Cada grupo tem o
seu Deus: Deus de Abraão, Deus de Isaac, Deus de Jacó. Estas divindades acompanham os
patriarcas.
Nas tradições mais antigas nas quais está arraigado o nome Elohim, temos
justamente os nomes de “Deus dos pais”. Essa expressão está relacionada aos patriarcas.
Historicamente o Deus dos patriarcas chama-se El. Ele aparece nas fontes (Gn 16,13), nas
alianças (Gn 17,7-8), na promessa de descendência (Gn 17,15-22).
É um Deus muito próximo da família e da comunidade. Ele está perto de mulher e
de criança (Gn 21,17-20). A revelação desse Deus ocorre nas situações dadas como
perdidas ou de limite. É o que acontece com Sara, tomada pelo rei (v.2). Deus está com os
seminômades, mas se preocupa com a parte mais fraca desse grupo social: a mulher. Ele
resgata Sara das mãos de Abimeleque. Ele é solidário com a mulher. Exerce a
solidariedade na sua expressão máxima: assume a causa da mulher e a liberta da situação
de perigo.
Ao se manifestar dessa forma, Deus abre brechas para Sara internalizar valores de
solidariedade. Em sua experiência teológica ela entra em sintonia com Deus. Ela age à
semelhança de Deus. Ela é imagem feminina da solidariedade de Deus. Por isso, a vida de
Sara é preciosa para Deus. Ela não pode ter o mesmo destino de tantas mulheres que
caíram em haréns e se submeteram a reis poderosos. Sua experiência torna-se paradigma
teológico para o cotidiano das mulheres, especialmente no pós-exílio quando toda a
atenção está voltada para a reconstrução da nação e afirmação da religião judaita.
138
Deus é diferente, sua atenção está centrada na situação da mulher. Enquanto a
teologia pós-exílica se prende a leis, especialmente dos rituais religiosos, Deus se liga à
mulher e à sua luta pela liberdade. Deus se prende ao essencial, pois importa ser solidário
com a pessoa mais excluída da comunidade e ensinar caminhos de solidariedade através
do testemunho da mulher livre e libertada.
Além de Elohim, nosso texto identifica Deus com o nome de Iahweh (v.18). Nesse
verso Ele tem características de divindade de fertilidade, pois fecha e abre úteros. Tem
aspectos de um senhor, dono da história e dos povos, uma concepção típica da teologia
pós-exílica, cuja confiança em Deus é grande.
Iahweh revela-se como um Deus libertador da mulher. Ele age com mão dura
provocando esterilidade nas mulheres da casa de Abimeleque em favor de Sara (v.18).
Nessa ótica, nos lembra a tradição do tribalismo.
No período do tribalismo (1200 a 1025 a.C.) o pacto de Siquém (Js 24,1s) marca a
articulação das lideranças das tribos, consequência de um processo de encontro de povos
que lutam pela terra. A partir desse momento, começa-se a formar o povo de Israel.
Simultaneamente há uma nova formulação de Deus, concebido como divindade histórica
única.198 Iahweh passa a ser o Deus que é/acontece. Aquele que é (Ex 3,14), acontece no
meio do povo israelita. Está sempre junto de seu povo, é solidário com suas lutas. É um
Deus encarnado na realidade e no cotidiano do povo.
Em nosso texto, Iahweh acontece na vida das mulheres. Ele mergulha na
intimidade delas. Sua ação é capaz de penetrar nos seus úteros. É um Deus que entende a
198
Até então, pela tradição do grupo sinaítico, um dos grupos que formou o povo de Israel, se cultuava um
Deus chamado Iahweh – Deus das montanhas, uma divindade da natureza que se manifestava por meio de
fenômenos naturais (Jz 5,1-5). Iahweh das montanhas marcha junto com o grupo sinaítico nas migrações
para a Palestina e para Canaã em busca de terra. Mais informações: Georg Fohrer, História da religião de
Israel, Edições Paulinas, São Paulo, 1982, p.23-71.
139
mulher. Ele conhece a mulher por dentro, a partir de seu órgão gerador de vida. Ele a refaz
por dentro, curando a sua esterilidade. É um Deus que devolve a integridade à mulher.
A partir da experiência teológica de Sara podemos acreditar na solidariedade de
Deus que se mistura no cotidiano das mulheres para libertá-las. A partir de Sara, podemos
acreditar na força das mulheres que se armam de solidariedade para vencer grandes
tormentos.
3.5. Teologia da acolhida ao diferente
Deus se revela ao estrangeiro e o acolhe na sua complexidade (v.3-7). Não o
confirma em seus erros, mas o estimula a rever sua ação e mudar de vida. A exemplo do
que fez com as mulheres, Deus se revela a Abimeleque na hora da intimidade, na cama, no
sonho noturno. Este também é um sinal da proximidade de Deus.
A revelação a um rei estrangeiro tem fortes conotações teológicas e pedagógicas,
pois se constitui num ensinamento para a comunidade judaita. Tem indício de concepção
teológica pós-exílica, de grupo de teólogos sábios. Sabemos que o projeto de reconstrução
da nação no pós-exílio está calcado no estado monárquico.199 As comunidades judaitas
não conseguiram imaginar um projeto de nação sem rei. Talvez, por isso, o rei estrangeiro
receba tamanho elogio, o de ter sido agraciado com uma revelação divina.
A imagem divina nos v.3-7 é de um Deus bom, apesar de forçar o rei a se
converter. Mas o Deus mais incisivo é Iahweh (v.18). O rei se converte diante do poder de
199
Veja Jorge Pixley, A história de Israel a partir dos pobres, Editora Vozes, Petrópolis, 1991, p.91-101.
140
Iahweh, dado que Ele é capaz de esterilizar as mulheres de sua casa por causa da captura
de Sara. Contudo, o ensinamento mais profundo dessa experiência teológica é o
relacionamento respeitoso de Deus para com Abimeleque. Com essa ação, Ele ensina à
comunidade judaita a acolher o diferente, o estrangeiro. Esta ação de Deus é um desafio
para todos os tempos.
Entender Deus na sua pluralidade, na universalidade de sua manifestação, é algo
extremamente difícil e exige muita acolhida à sua revelação, como fez Abimeleque. Não
temos notícia de como a comunidade judaita acolheu esta história. Não sabemos se ela só
prestou atenção no elogio dado ao rei,
confirmando seu ideário de projeto político
monárquico, ou se aprendeu este ensinamento de Deus, o da acolhida ao diferente. Até os
dias de hoje temos dificuldade de experimentar uma teologia que acolhe o diferente. O rei,
sujeito dessa experiência teológica, é expressão do diferente que é acolhido por Deus.
Abimeleque acolhe a revelação divina porque é acolhido na sua diferença, como
estrangeiro.
No encontro deles não há choque e nem censura, mas acolhimento, embora Deus
tenha humanizado o governante. Elohim não destitui Abimeleque de seu reinado, porém o
impele a ser um rei respeitoso com as mulheres. Abimeleque não foge e nem critica
Elohim, mas o aceita e segue sua orientação. Um constrói a relação com o outro,
respeitando as diferenças de cada um. Elohim continua sendo um Deus que se solidariza
com mulheres apropriadas por reis. Abimeleque leva adiante o governo de seu território,
porém de uma forma mais justa. Deus lhe revela que mais vale uma mulher livre que um
harém cheio. Abimeleque testemunha que restituir um direito vale mais que a ampliação
de seus poderes políticos. Cada um deles constrói uma teologia que dá lugar para a
acolhida ao diferente.
141
3.6. Teologia da amizade
Provavelmente, uma das intenções desta narrativa é transmitir um ensinamento
novo para a comunidade judaita do pós-exílio em relação à questão da relação com os
grupos e povos vizinhos. Em tempos de reconstrução nacional, no qual se tem muitos
conflitos internos, deve-se almejar a paz e a amizade com os povos vizinhos.
Nas cenas narradas, percebemos que há amizade entre o grupo sarâmico/abraâmico
e os filisteus (cf. também Gn 21,22-34). O grupo israelita parece querer bem a seus
vizinhos filisteus. Embora haja tensão no início de nossa história (v.2), no final ela é
desfeita. Nossa narrativa termina em paz, sem rancor e nem inimizade.
O tema da amizade parece atingir o âmago das relações interpessoais. Vimos a
solidariedade de Sara com Abraão, certamente fruto de sua amizade com ele. Deus é
amigo das mulheres, em especial de Sara. Deus questiona Abimeleque, mas de um jeito
amigo, supostamente no intuito de fazê-lo mudar sua prática. Ele fala duro com o rei. Mas
o rei pode discutir e argumentar com Ele, o que supõe diálogo aberto e amizade.
Enfim, em Gn 20, temos uma teologia que aponta para um Deus amigo. É um Deus
cheio de sabedoria e de paz. Ele sabe lidar com os conflitos de poder e de gênero. Ele sabe
priorizar a questão da mulher (v.18).
142
3.7. Considerações finais
Nossa reflexão, ao se aproximar da narrativa bíblica, condensou a temática das
relações sociais de gênero permeadas pela concepção teológica. Em meio aos conflitos
emergentes, Deus assume a causa da mulher. E a mulher assume a causa da solidariedade.
É uma mulher de poder no âmbito do micro organismo familial-patriarcal.
Todavia, Deus não trata mal o rei. Pelo contrário, no agir de Deus, mulher e rei são
bem tratados, ainda que a prioridade seja a valorização dela e a conversão dele. Aliás, este
tripé relacional (mulher-Deus-rei) não ocorre por acaso. Nos v.4-6 estes sujeitos sociais
estão próximos da conjunção aditiva e associativa gam, traduzida por em especial.
v.4 “...
Adonai nação em especial justa matarás?” Está em perigo a nação justa. Esta
pode ser sinônimo de Abimelek. Ele se diz a personificação da nação justa (v.5).
v.5
“... e ela em especial ela disse...” Ela, além de ser sujeito da frase, refere-se a
Sara (v.2,13).
v.6
“... em especial soube que na integridade do teu coração fizeste isto...” Esta
frase tem um sujeito oculto. Sabemos que este sujeito oculto é Elohim (v.3).
A conjunção gam é uma partícula enfatizante e intensificante. Pode introduzir um
elemento já enunciado daquilo que o precede: nome (nação em especial justa), pronome
(ela em especial ela), verbo (disse-lhe... em especial soube). Parecem demarcados por gam
três personagens fortes, sujeitos e agentes da experiência teológica: a mulher, Deus e o rei
estrangeiro.
143
Com esta reflexão, apontamos para uma nova compreensão dos protagonistas da
narrativa de Gn 20. Desconstruímos a idéia de que os personagens principais são Abraão e
Abimeleque,200 embora reconheçamos a participação ativa do patriarca nesta história.
Nas perspectivas teológicas ensaiamos uma hipótese que também confirma o
protagonismo da mulher e das figuras masculinas representadas por Elohim/Iahweh e
Abimeleque. Deus e a mulher são solidários e portadores de amizade. Deus acolhe o rei
estrangeiro na sua diferença. O rei acolhe Deus e manifesta amizade com o casal de
seminômades.
Acima de tudo, apreendemos um Deus que é porque acontece no cotidiano da
comunidade familial-patriarcal. Sintonizamos com esta formulação de Deus. Admiramos o
jeito dos israelitas conceberem Deus na sua história: só é aquele que acontece. Eles não
têm uma espiritualidade essencialista, moralista, desencarnada da história. Deus não é
“Aquele que é” sem acontecer na lida de seu povo. Este é um valioso ensinamento para
nós hoje. É um estímulo para nossa reflexão acadêmica e prática pastoral. O Deus que é,
acontece na solidariedade, na acolhida ao diferente e na amizade.
200
Veja: Claus Westermann, Genesis 12-36, p.316-329; George W. Coats, Genesis wíth an Introduction to
Narrative Literature, p.149-152.
144
CONCLUSÃO
Durante este tempo que passamos com Sara, Elohim, Iahweh, Abimeleque e
Abraão, nunca estivemos sozinhas. É como diz um lembrete de Carlos Mesters: “não entre
nunca sozinho na Bíblia. Você se perderia e não encontraria nada lá dentro. Mas leve
consigo, na sua lembrança, o povo a que pertence . E não se esqueça que esta história de
Abraão e Sara foi escrita para servir de espelho também para você.”201
Portanto, em nosso estudo bibliográfico, exegético e hermenêutico de Gn 20,1-18,
trouxemos à lembrança a presença de mulheres do Antigo Israel e do cotidiano da favela
Heliópolis. Não somente mulheres, mas homens portadores de diferenças, como o rei
Abimeleque e os líderes de grupos da marginalidade de nossa realidade.
Acreditamos que os resultados de nosso estudo bíblico são frutos da abordagem
teórica adotada, do método de leitura utilizado,202 da concepção de mundo e de teologia,
do lugar social de nossa prática pastoral.
201
Carlos Mesters, Abraão e Sara, p.83.
Procuramos fundamentar nossa leitura a partir do método histórico-crítico. A crítica textual, a crítica
literária, a história das formas e a história da redação constituem os métodos científicos mais importantes
para a análise dos textos e o esclarecimento de seu significado. A crítica textual objetiva definir o texto
original. A crítica literária objetiva determinar o autor e as fontes como os diferentes extratos de composição
dos textos. Como diz José Severino Croatto, estes métodos são como um arco que sai do texto e retorna para
ele. Por outro lado, a história das formas avança mais, pois analisa os eventos e a cultura da sociedade que
transmite essas tradições. Tem como meta ver no passado um apelativo para o presente. Tenta aproximar o
texto bíblico da dimensão sociológica. A história da redação objetiva verificar como as unidades textuais
menores foram manipuladas pelos redatores até chegar aos textos que conhecemos atualmente, porém coloca
mais ênfase na formação do texto que no próprio texto. Mais informações ver: José Severino Croatto, Para
uma teoria da leitura como produção de significados, Editoras Paulinas/Sinodal, São Paulo/São Leopoldo,
1986, 75p.; Norman Gottwald, Introdução sócioliterária, p.1-55; Hans Kippenberg, Religião e formação de
classes na antiga Judéia, Edições Paulinas, São Paulo, 1988, 173p.; François Houtart, Religião e modos de
produção pré-capitalistas, Edições Paulinas, São Paulo, 1982, 250p.; Michel Clévenot, Enfoques
materialistas da Bíblia, Editora Paz e Terra, Rio de Janeiro, 1979, p.13-67.
202
145
No primeiro capítulo, analisamos textos da bibliografia latino-americana que
incidem sobre Gn 20,1-18, sobretudo a partir da personagem Sara. A leitura bíblica latinoamericana se apoiou, na sua grande maioria, em uma chave hermenêutica que considera a
vida concreta e a história das pessoas.
Nas obras examinadas apreendemos vários retratos contextualizados da
personagem Sara a partir de Gn 12-25. Analisamos seus retratos e evidenciamos suas
múltiplas funções sociais. Percebemos que as leituras focalizam Sara sempre a serviço do
homem seja ele senhor da casa patriarcal, marido, irmão/primo, governante, filho.
Perguntamos: este tipo de leitura não estaria legitimando a concepção patriarcal de
mulher, colocada sempre em função do homem e na condição de submissa e dependente
dele? Em um nível mais profundo, questionamos uma leitura bíblica que não considera a
reação e a participação da mulher no curso da história vivida.
No nosso entender, uma leitura que privilegia somente a denúncia das situações de
opressão que assolam a vida das mulheres parece centrar sua interpretação no aspecto da
submissão e da dominação da mulher. Esta leitura parece ter dificuldade de conceber a
mulher como sujeito social ativo na cena bíblica, que reage às situações de forma positiva
e de acordo com as suas possibilidades de solucionar os problemas. Especialmente na
reflexão de Gn 12,10-20, texto paralelo ao nosso, entendemos que o retrato tirado de Sara
foi de uma vítima, sem voz, passiva, obediente ao marido, medrosa, violentada, explorada
sexualmente.
Na leitura bíblica latino-americana de Gn 20,1-18, contemplamos Sara retratada
como uma mulher seqüestrada para o harém de Abimeleque e, por isso, violentada em sua
dignidade. Os qualificativos aplicados a Sara são de uma mulher usada como escrava,
oprimida, injustiçada. O que essas leituras têm em comum é sua visão teológica. A grande
maioria é unânime em considerar que Deus assumiu a causa da mulher em Gn 20.
Avançamos essa concepção teológica pois detectamos outros sinais da presença divina na
história. Encontramos um Deus que também valoriza o estrangeiro, pois se revela a ele.
146
Na interlocução com as autoras e autores, questionamos esse modelo de mulher
apresentado. Refutamos a imagem de Sara na posição de vítima e mulher humilhada pelo
próprio marido e pelo governante. Interpelamos o retrato de Sara como mártir e sacrificada
para salvar a vida do marido. Queremos romper com uma visão autoritária que só enxerga
a vitimação das mulheres. Investimos na idéia de que um novo retrato de Sara deve ser
construído através do estudo exegético de Gn 20,1-18. Apontamos, assim, na análise da
bibliografia latino-americana a necessidade de verificarmos a qualidade da relação
mulher-homem em Gn 20, a partir da abordagem de gênero, permeada pelas relações
sociais de poder.
No segundo capítulo, nos dispomos a verificar o texto original, analisar sua história
do ponto de vista do contexto social e literário, interpretar sua mensagem à luz de nossas
suspeitas hermenêuticas. Eis uma das principais investigações feitas: houve dominação ou
uma relação solidária entre mulher e homem na história bíblica? Olhamos o argumento
construído por Abraão e Sara – “ele é meu irmão... ela é minha irmã” (v.5.13).
Interpelamos se isso foi uma estratégia de sobrevivência ou um mero acordo de cúmplices
para enganar o rei. Chegamos à conclusão de que, nessas palavras, a solidariedade foi
exercida pela mulher em relação a Abraão. Mulher e homem foram co-responsáveis na
decisão tomada, embora Abraão tenha solicitado a solidariedade de Sara e ela tenha
respondido prontamente ao seu apelo.
Acenamos também para a relevância da palavra da mulher na narrativa (v. 5.13).
Uma das descobertas foi perceber que a mulher fala duas vezes nessa narrativa, ainda que
isto tenha sido indicado pelos homens. Valorizamos a fala de Sara. Potencializamos a
força da sua palavra. Ela fala pouco, mas suas palavras têm força de condução da história
e colaboram para viabilizar o confronto entre Deus e o rei, e deste com o patriarca.
Confirmamos nossas suspeitas acerca da autoridade de Sara, pois descobrimos uma
mulher respeitada por Deus (v.3-7.18), pelo rei (v.14-16) e pela comunidade (v.16). Vimos
uma mulher portadora de autoridade inclusive diante do próprio marido que lhe pede um
147
ato de solidariedade (v.13) e do rei que lhe dá satisfação e explica como resolveu o
conflito emergente (v.16).
Outro aceno que destacamos nessa dissertação é a tentativa de entender a atitude de
Abimeleque. Isto só foi possível por consideramos Gn 20,1-18 uma produção literária do
pós-exílio. O texto tem um ensinamento profundo para a comunidade judaita do pósexílio. Quer transmitir a importância da relação amistosa com povos vizinhos.
Em relação ao método exegético, reconhecemos a importância de se fazer uma
leitura do texto bíblico a partir de pequenas unidades literárias, denominadas como
perícopes. A perícope, olhada no seu conjunto e nas suas particularidades, nos ajuda a
chegar perto dos sujeitos sociais e das tramas conflitivas do texto. A perícope nos permite
levantar a hipótese da narrativa básica de nosso texto que, provavelmente, provém do
registro de narrativas orais.
Suspeitamos que a experiência vivencial de nossa narrativa é originária de
pequenos grupos populares de mulheres que contavam histórias de suas companheiras e
das mulheres de sua família-comunidade (v.2). Certamente, a narrativa básica de Gn 20 é
o v.2, cuja história está registrada em Gn 26,1-11 e 12,10-20. Essa camada básica é uma
reação literária ao fato histórico de apropriação de mulheres por reis. É produto de grupos
de mulheres que estão querendo relatar a sua vivência e provocar críticas e suspeitas em
relação à prática abusiva dos monarcas.
Deduzimos que, provavelmente, nosso texto foi tecido por muitas tradições ao
longo de sua elaboração: começou sua construção oral por meio do grupo de mulheres; no
processo de transmissão oral e de registro reuniu elementos do povo seminômade;
culminou sua redação final em tempos pós-exílicos.
148
Consideramos importante situar Gn 20,1-18 no bloco literário maior,
compreendendo 11,27 a 25,18. Confirmamos a hipótese adotada, de Milton Schwantes,203
de que há duas unidades distintas nesse bloco: 11,27 a 19 e 20 a 25,18. Nosso texto é um
portal da segunda unidade, pois abre um assunto novo, o da apropriação da mulher pelo rei
de Gerar (v.1-2). Ele forma uma subunidade com os capítulos 21 e 22. Esta subunidade
tem uma temática comum: mulheres e crianças. Tem também o mesmo lugar social,
situado ao sul da Palestina (21,1; 21,14 e 21,31-33).
Concluímos: há relevância no estudo de Gn 20, pois este é um texto de ponta, uma
vez que abre uma segunda unidade literária e trata de episódios referentes à questão da
mulher. Em relação às narrativas paralelas (Gn 12,10-20 e 26,1-11), traz a novidade da
fala da mulher (v.5.13) e da relação amistosa com o rei nas partes finais da narrativa (v.1416).
No terceiro capítulo fizemos uma leitura de gênero e de diferença permeada pelas
perspectivas teológicas. Apoiamos nossa leitura na abordagem de gênero de Heleieth
Saffioti. O gênero é relacional, quer enquanto categoria analítica, quer enquanto processo
social. O conceito de relações de gênero deve ser capaz de captar a trama das relações,
bem como as transformações historicamente sofridas através dos mais distintos processos
sociais.204
Trabalhamos sobremaneira as relações sociais de gênero e as experiências
teológicas presentes nelas. Foi uma alegria perceber um Deus do cotidiano da mulher,
fazendo-se atuante na solidariedade para com ela e na revelação ao rei estrangeiro por
causa dela.
Selecionamos os principais sujeitos sociais e acenamos para a possibilidade de que
os protagonistas da cena são: Sara, Abimeleque e Deus porque sua fala e ação são
anunciadas com ênfase (v.4.5.6) pela conjunção gam (em especial) e cada um deles está
203
Milton Schwantes, “Estas são as gerações de Terá”, p.45-54.
149
envolvido em uma profunda experiência teológica. De sua experiência teológica,
extraímos a teologia da solidariedade, da acolhida ao diferente e da amizade.
Enfim, trilhamos caminhos para elaborar uma nova concepção da paradigmática
Sara e do simpático rei Abimeleque. Encontramos uma mulher valiosa, que se tornou para
nós o rosto feminino do Deus da solidariedade. Revela-se como um paradigma de
solidariedade e de autoridade para as lideranças femininas hoje. Assim, vemos Sara
espelhada em muitas mulheres solidárias e líderes de nossas comunidades.
Diante dos dados obtidos e da reflexão produzida em nossa pesquisa, sentimos
necessidade de confrontar a nossa leitura bíblica com o depoimento de duas lideranças
significativas que ilustram a vivência da temática principal de nossa dissertação, a da
autoridade feminina e a da diferença.205 Trabalhamos a técnica de história oral temática
por considerá-la um recurso valioso na apreensão do cotidiano das pessoas.206 Escolhemos
uma líder feminina de grande expressão e um chefe de tráfico de drogas da favela
Heliópolis. Editamos um texto intitulado de “Gênero e diferença no cotidiano.”
A tentativa de relacionar o estudo acadêmico com a experiência de vida através da
técnica da história oral temática abriu novas perspectivas de leitura bíblica popular. A
primeira iluminação foi a de constatar que, sem nenhum estudo prévio mais elaborado, os
entrevistados se prenderam à narrativa básica do texto (v.2). Detectaram o cerne da
narrativa. Eles leram Gn 20,1-18 em consonância com sua própria história de vida. Um
deles se identificou com um dos personagens já na primeira vez que leu o texto.
Confirmamos nossa idéia de que as pessoas simples fazem uma boa leitura da Bíblia
porque percebem coincidências entre sua vida e a vida do povo hebreu. Comprovamos a
importância de trabalharmos histórias bíblicas com grupos populares. Sua mensagem
principal é logo captada e seu estilo sintoniza com a cultura popular que valoriza a
narrativa. Além disso, as pessoas de meio popular são muito sábias e concretas nas suas
204
Heleieth Saffioti, “Rearticulando gênero e classe social”, em Uma questão de gênero, Editoras Rosa dos
Tempos/Fundação Carlos Chagas, Rio de Janeiro/São Paulo, 1992, p.183-215.
205
Veja o anexo.
206
Definimos história oral temática no anexo.
150
leituras. Oferecem novas possibilidades de entendimento do texto e confirmam a idéia de
que ninguém é dono/a da verdade e da Palavra. Nossa função de biblistas deve ser a de
indicar caminhos e possibilidades novas de reflexão, provocar o exercício do pensamento
e da análise crítica dos textos bíblicos, sistematizar a reflexão da palavra de Deus feita
pela sabedoria popular.
Ao término deste trabalho, inferimos que as descobertas e o conhecimento
construído buscaram métodos novos nos quais desconstruímos e reconstruímos conceitos.
Pudemos desconstruir o quadro patriarcal de dominação e exploração da mulher.
Reconstruímos a função social da mulher encarada como agente e sujeito de sua história
no espaço do micro poder e a partir das relações sociais de gênero. Em outras palavras,
desfocamos a releitura de Gn 20,1-18 do prisma da exploração da mulher.
Este foi um dos grandes desafios para a nossa pesquisa: destruir o quadro patriarcal
como chave hermenêutica, no qual se vê enfaticamente a dominação da mulher, e
reconstruir a participação feminina no âmbito do micro poder. Dessa forma, restauramos o
texto bíblico na ótica da autoridade feminina a partir da solidariedade exercida pela
mulher. Demolimos também a chave hermenêutica que só vê o rei como opressor e que
considera os homens simplesmente vilões e opressores. Tentamos identificar o rei a partir
de sua postura de acolhimento à revelação de Deus.
Assim, nossa pesquisa quer ser uma contribuição para uma leitura de gênero e de
diferença, construindo novas perspectivas de relacionamento social entre as pessoas, sem
preconceitos ou rotulações.
Acreditamos que não existe interpretação bíblica neutra, pois a vida não é neutra.
Interpretamos o texto a partir daquilo que está queimando em nosso coração. A
formulação das questões para o texto dependem das perguntas que fazemos para a nossa
vida. O exercício hermenêutico consiste em transferir essas perguntas cotidianas para o
texto bíblico. Foi uma das coisas que fizemos, pois as perguntas pela autoridade feminina
151
e pela acolhida ao diferente estão presentes em nossa prática pastoral em meio popular
urbano.
Contudo, chegamos apenas à algumas conclusões. Temos muitos desafios pela
frente, sobretudo o de aprimorar uma leitura de gênero e de diferença, relacionando a
reflexão acadêmica com as apreensões populares de leitura bíblica. Temos também muito
o que pesquisar acerca da tradição oral da história bíblica e do processo de composição do
texto, seja em sua fase de transmissão de geração em geração e a de sua elaboração escrita.
Outro desafio que decorre é o de construir uma teologia capaz de transformar a
prática de vida, tornando-a mais solidária, acolhedora e amiga das pessoas e grupos
diferentes de nós. Para a nossa comunidade hoje, fica o desafio de saber acolher os
diferentes grupos e as diferentes pessoas que nos circundam, inclusive lideranças de
facções da marginalidade. E no contato com o diferente, perceber os sinais de Deus
emergentes de uma relação acolhedora e amiga.
Por hora, fica a certeza de que este trabalho nos ajuda a resgatar a auto estima das
mulheres líderes, especialmente porque são elas que acabam acolhendo os grupos e as
pessoas diferentes em nossas comunidades. Por isso, geralmente são as mulheres que
apontam os caminhos novos e mostram as novidades no seu jeito de liderar a comunidade.
São as mulheres que favorecem a aproximação com o diferente, como aconteceu com
Sara. Por causa dessa mulher Elohim se revelou ao rei estrangeiro (v.3-7).
152
BIBLIOGRAFIA
1. Publicações latino-americanas sobre Gênesis e Gênesis 20
A Formação do Povo de Deus, Publicações CRB/ Loyola, São Paulo, 1990, 159p. (Tua
palavra é vida)
ANDERSON, Ana Flora e GORGULHO, Gilberto, Deus cria para a liberdade (Gênesis
1-11), Editora Centro Ecumênico de Publicações e Estudos Frei Tito de Alencar
Lima (CEPE), São Paulo, 1992, 84p.
BALANCIN, Euclides Martins e STORNIOLO, Ivo, Como ler o livro do Gênesis –
Origem da vida e da história, 2ª edição, Edições Paulinas, São Paulo, 1991, 61p.
BOIS VERT, Leandre, Una historia de familia – Genesis 12-50, CETA/Centro de
Estudios Teológicos de la Amazonía, Iquitos, 1992, 31p.
BRANCHER, Mercedes, Dos olhos de Agar aos olhos de Deus – Gênesis 16,1-16,
Instituto Metodista de Ensino Superior, São Bernardo do Campo, 1995, 152p.
_________________, “Gênesis 23 e o povo da terra”, em Estudos Bíblicos, vol.44,
Editoras Vozes/Sinodal, Petrópolis/São Leopoldo, 1994, p.17-28
BREMER, Margot, “La risa profética de la matriarca”, em Revista Acción, vol.9,
Asunción, 1992, p.19-21
CATÃO, Francisco, “Uma vida de fé”, em Família Cristã, vol.58, n.677, São Paulo, 1992,
p.69
CRUZ CALVO, Mery, “Reflexiones alrededor de dos textos del Gênesis”, em
Solidaridad, vol.13, n.123, Bogotá, 1991, p.30-32
DEIFELT, Wanda, “Hermenêutica feminista negra - Duas contribuições”, em Palavra
Partilhada, vol.14, n.2, São Leopoldo, 1995, p.6-21
DÍAZ, Lillian, “Lecturas”, em Xilotl, vol.7, n.12/13, Manágua, 1994, p.136-141
DREHER, Carlos Arthur, “Hagar, a doméstica”, em Coluna Bíblica, vol.12, São
Leopoldo, 1993, 1p.
DREHER, Carlos, WACHS, Manfredo, KLEIN, Remi, Mulheres na Bíblia – Menina,
levanta-te!, Centro Ecumênico de Estudos Bíblicos, São Leopoldo, s/ano, 72p.
DREHER, Izolde Ruth, “Mulher em Gênesis 12-38”, em Palavra Partilhada, vol.13, n.1,
São Leopoldo, 1994, 66p.
153
FISCHER, Irmtraud, “Vai sujeita-te!‟, disse o anjo a Agar”, em Concilium, vol.2,
Petrópolis, 1994, p.110-119
GUIDI, Luigino de, MACHADO, Lucineth Cordeiro, OTÁVIO, José Airton, SANTOS,
Fátima Maria dos, SILVA, Inês e SILVA, Maria de Jesus, “A defesa do projeto na
memória das mulheres”, em Estudos Bíblicos, vol.29, Petrópolis, 1991, p.26-32
JARSCHEL, Haidi, Gênesis 25-36 - Cotidiano transfigurado, Instituto Metodista de
Ensino Superior, São Bernardo do Campo, 1994, 153p.
_______________, “A barriga como lugar de revelação – Deus-que-me-vê é Deusconosco”, em A Cruz no Sul, vol.3, São Paulo, 1992, p.8-9
HUEFNER, Bárbara, SANTOS, Eliad Dia dos, BOEHLER, Genilma e SCHULLER,
Marília, A história da escrava Agar, São Bernardo do Campo, Projeto Mulher do
Instituto Pastoral da Faculdade de Teologia da Igreja Metodista, 1990, 28p.
(Cantando a nossa história, II)
KUENSCH, Dimas A., “Fé em Deus e pé na estrada”, em Alô Mundo, vol.44, Taboão da
Serra, 1991, p.15-18
__________________, “Não é bem assim, seu Abraão”, em Alô Mundo, vol.45,
da Serra, 1991, p.15-18
Taboão
__________________, “Sara era bonita que só vendo!”, em Alô Mundo, vol.46, Taboão
da Serra, 1991, p.15-18
__________________, “Tocou a escrava de casa”, em Alô Mundo, vol.47, Taboão da
Serra, 1991, p.15-18
_________________, “Para a frente, de olho no retrovisor”, em Alô Mundo, vol.53,
Taboão da Serra, 1991, p.15-18
_________________, “Abraão, Sara e Agar”, em Pilar, vol.2, n.14, Duque de Caxias,
1991, p.10
LANOIR, Corina, “Era Abraham um hombre violento con su esposa?”, em Servicio
Evangélico de Prensa, vol.37, Manágua, 1992, p.7
MESTERS, Carlos, Abraão e Sara, Editora Vozes, Petrópolis, 1978, 130p.
REYNÉS, Jaime, Gênesis – Lecturas liberadoras de la Bíblia, Amigo del Hogar, Santo
Domingo, 1993, 103p.
ROY, Ana, Ser mulher – Mística, ética, simbologia e praxe – Algumas releituras do livro
do Gênesis capítulos 1 a 35, Loyola/Conferência dos Religiosos do Brasil, São
Paulo/ Rio de Janeiro, 1990, 72p.
RUCHERT, Maria Luiza, “Sara e Agar”, em Ide e Anunciai, vol.2, n.9, Vitória, 1995, p.1
SALVADOR, J. Frederico Dattler, “Gênesis, texto e comentário”, em Revista de Cultura
Bíblica, vol.13, n.170/173, Edições Paulinas, São Paulo, 1984, 254p.
SCHUELER, Anselmo, “Nono domingo após pentecostes”, em Igreja Luterana, vol.54,
n.1, São Leopoldo, 1995, p.77-79
154
SCHUELLER, Marília Alves, “Reflexões a partir da existência”, em Teologia Africana –
Uma introdução, Editora da Faculdade de Teologia da Igreja Metodista, São
Bernardo do Campo, 1992, p.75-82
SCHWANTES, Milton, Dize que és minha irmã, Centro de Estudos Bíblicos, Belo
Horizonte, s/ ano, 31p.
__________________, “A caminho de terra e liberdade – Gênesis 12 – Um roteiro”, em
Estudos de Religião, vol.5, n.7, São Bernardo do Campo, 1991, p.129-144
__________________, “Não estendas tua mão contra o menino”- Observações
sobre Gênesis 21 e 22”, em Revista de Interpretação Bíblica Latino-Americana,
vol.10, Petrópolis/São Leopoldo, 1991, p.24-39
__________________, A família de Sara e Abraão – Texto e contexto de Gênesis 12-25,
Editora Vozes/Sinodal, Petrópolis/São Leopoldo, 1986. 91p.
_________________, “Terra e Dignidade – Uma Interpretação de Gênesis 11.27 até
12.20”, em Peregrinação: estudos em homenagem a Joachim Herbert Fischer pela
passagem de seu 60º aniversário, Editora Sinodal, São Leopoldo, 1990, p.203-216
_________________, “Interpretação de Gn 12-25, no Contexto da Elaboração de uma
Hermenêutica do Pentateuco”, em Estudos Bíblicos, vol.1, Editora Vozes, Petrópolis,
1984, p.31-49
_________________, “E estas são as gerações de Terá – Introdução a Gênesis 12-25”, em
Revista de Interpretação Bíblica Latino-Americana, vol.23, Editoras Vozes/Sinodal,
Petrópolis/São Leopoldo, 1996, p.45-54
_________________, Projetos de esperança – meditações sobre Gênesis 1-11, Editoras
Vozes/Sinodal/Programa de Assessoria à Pastoral (CEDI), Petrópolis/São
Leopoldo/São Paulo, 1989, 93p.
_________________, “Tradições do Neguebe”, em texto mimeografado, s/p.
SILVA, Marta de Oliveira da, “Deus e a mulher”, em Comunicações do ISER, vol.10,
n.41, Rio de Janeiro, 1991, p.38-41
SOARES, Zeni de Lima e PEREIRA, Nancy Cardoso, “Caminhando com Abraão e Sara”,
em Bem-te-vi 2, vol.69, n.3, São Bernardo do Campo, 1989, 64p.
TAMEZ, Elsa, “La mujer que complicó la historia de la salvación”, em Media
Development, London, 1984, vol.2, pg.28-33, traduzido em Estudos Bíblicos, vol.7,
Editora Vozes, Petrópolis, 1985, p.56-72
WAGNER, Raul, “Conheça a Bíblia de perto”, em O Caminho, vol.6, n.7, Blumenau,
1990, p.7
WANDERMUREM, Marli, Riso, gracejo e herança – Espaços de conflitos em Gn 21,121, Instituto Metodista de Ensino Superior, São Bernardo do Campo, 1998, 160p.
WEILER, Lúcia, “A mulher na Bíblia”, em Vida Pastoral, vol.31, n.150, São Paulo, 1990,
p.2-9
155
WIT, Hans de, He visto la humillación de mi pueblo – Relectura del Génesis desde
América Latina, Editorial Amerindia, Santiago, 1988, 289p.
2. Obras exegéticas e gerais
AGUIAR, Roberto A.R. de, Direito, poder e opressão, Editora Alfa-Omega, São Paulo,
1990, 184p.
ALTER, Robert e KERMODE, Frank, Guia literária da Bíblia, Editora Universidade do
Estado de São Paulo, São Paulo, 1997, 725p.
ALONSO SCHÖKEL, Luis, Dicionário bíblico hebraico-português, Editora Paulus, São
Paulo, 1997, 798p. (Coleção dicionários)
_______________________, Hermenéutica de la palabra, Ediciones Cristiandad, Madrid,
1986, 267p. (Hermenêutica bíblica, 1)
ÁLVAREZ, Sonia E., “Women‟s Participation in the Brazilian „People‟s Church‟ - A
Critical Appraisal”, in: Feminist Studies, v.16, n.2, Indiana University Press,
Indiana, 1990, 416p.
BARBIERI, Teresita de, “Sobre la categoría de género”, em Fin de siglo, género y
cambio civilizatorio, Isis International, Santiago, 1992, p.111-128
BENTZEN, Aage, Introdução ao Antigo Testamento, vol. 2, ASTE, São Paulo, 1968,
352p.
Bíblia de Jerusalém, nova edição, revista, Sociedade
Internacional/Edições Paulinas, São Paulo, 1992, 2366p.
Bíblica
Católica
Biblia Hebraica Stuttgartensia, Karl Elliger e Wilhelm Rudolph (editores), Deutsche
Bibelgesellschaft, Stuttgart, 1967/77, 1574p.
Bíblia Sacra - Iuxta Vulgatam Versionem, 3ªedição, Deutsche Bibelgesellschaft, Stuttgart,
1969, 1980p.
Bíblia Sagrada, tradução de João Ferreira de Almeida, Sociedade Bíblica do Brasil,
Brasília, 1969, 1334p.
Bíblia TEB, Edições Paulinas/Loyola, São Paulo, 1995, 1567p.
Bibliografia Bíblica Latino-Americana, Editora Vozes, Petrópolis, 1988-95, v.1-8
156
BIDEGAIN, Ana Maria, “Gênero como categoria de análise na história das religiões”, em
Mulheres, autonomia e controle religioso na América Latina, Editora Vozes,
Petrópolis, 1996, p.13-28
BOFF, Leonardo, Igreja - Carisma e poder, Editora Vozes, Petrópolis, 3ª edição, 1982,
249p.
______________, O caminhar da Igreja com os oprimidos, Editora Vozes, Petrópolis,
1988, 351p.
BOTTERWECK, Johannes e RINGREEN, Helmer, Diccionario teológico del Antiguo
Testamento, vol.1, Cristiandad, Madrid, 1973, 1100p.
BRENNER, Athalya, Gênesis a partir de uma leitura de gênero, Edições Paulinas, São
Paulo, 2000, 447p.
BRIGHT, John, História de Israel, Edições Paulinas, São Paulo, 1980, 688p.
BROWN, Driver, Briggs, Hebrew and English Lexicon, Oxford, 1979, 1118p.
BUTLER, Judith, “Variações sobre sexo e gênero”, em Feminismo como crítica da
modernidade, Editora Rosa dos Tempos, Rio de Janeiro, 1991, 208p.
CARDOSO, Ciro Flamarion, Antiguidade oriental - Política e religião, Editora Contexto,
São Paulo, 1990, 76p.
CARDOSO, Ciro Flamarion. Sociedades do Antigo Oriente Próximo, Editora Ática, São
Paulo, 1968, 92p.
CASTRO, Mary e LAVINAS, Lena, “Do feminino ao gênero”, em Uma questão de
gênero, Editora Rosa dos Tempos/Fundação Carlos Chagas, Rio de Janeiro/São
Paulo, 1992, p.216-251
CASTRO, Mary e LAVINAS, Lena, “Do cotidiano ao gênero: a construção de um
objeto”, em Uma questão de gênero, Editora Rosa dos Tempos/Fundação Carlos
Chagas, Rio de Janeiro/São Paulo, 1992, p.216-251
CAZELLES, Henri, História política de Israel – desde as origens até Alexandre Magno,
Edições Paulinas, São Paulo, 1986, 250p.
CERESKO, Anthony R., Introduction to the Old Testament - A Liberation Perspective,
Orbis Books, New York, Maryknoll, 1992, 336p.
CHAGAS, Conceição Corrêa das, Identidade em construção, Editora Vozes, Petrópolis,
1996, 89p.
CHALIER, Catherine, As matriarcas Sara, Rebeca, Raquel e Lia, Editora Vozes,
Petrópolis, 1992, 224p.
CHOURAQUI. André, A Bíblia no Princípio (Gênesis), Editora Imago, Rio de Janeiro,
1995, 547p.
CLÉVENOT, Michel, Enfoques materialistas da Bíblia, Editora Paz e Terra, Rio de
Janeiro, 1979, 164p.
157
COATS, George W., Genesis: With an Introduction to Narrative Literature, Grand
Rapids, Eerdmans, 1983, 322p.
COLEMAN, William L., Manual dos tempos e costumes bíblicos, 1ª edição, Editora
Betânia, Belo Horizonte, 1991, 360p.
COMPARATO, Fábio Konder, Educação, Estado e Poder, Editora Brasiliense, São Paulo,
1991, 143p.
COSTA, Sílvia Generali da, Assédio sexual - Uma versão brasileira, Editora Artes Ofício,
Porto Alegre, 1995, 129p.
CROATTO, José Severino, Êxodo - Uma hermenêutica da liberdade, Edições Paulinas,
São Paulo, 1981, 179p.
______________________, Hermenêutica bíblica - Para uma teoria da leitura como
produção de significados, Editoras Paulinas/Sinodal, São Paulo/São Leopoldo,
1986, 75p.
_____________________, Los lenguajes de la experiencia religiosa – Estudios de
fenomenología de la religión, Editorial Docencia, Buenos Aires, 1994, 349p.
CROSS JUNIOR, Frank Moore, “Javé e os deuses dos patriarcas”, em Deus no Antigo
Testamento, Associação de Seminários Teológicos Evangélicos, São Paulo, 1981,
430p.
DAVIDSON B., The Analytical Hebrew and Chaldee Lexicon - Grammatical Analytical
of Each Word and Lexicographical Illustration of the Meanings, James Pott, New
York, 1284p.
DEIFELT, Wanda, “Os primeiros passos de uma hermenêutica feminista: a Bíblia das
mulheres editada por Elisabeth Cady Stanton”, em Estudos Teológicos, vol.1, São
Leopoldo, 1992, p.5-14
DIAS, Maria Odila Leite da Silva, “Teoria e método dos estudos feministas – Perspectiva
histórica e hermenêutica do cotidiano”, em Uma questão de gênero, Editora Rosa
dos Tempos/Fundação Carlos Chagas, Rio de Janeiro/São Paulo, 1992, p.39-53
Dicionário enciclopédico da Bíblia, Simão Voigt (tradutor), Editora Vozes, Petrópolis,
1971, 1.117p.
Dicionário internacional de teologia do Antigo Testamento, 1ª edição, Márcio Loureiro
Redondo, Luiz A.T. Sayão, Carlos Osvaldo C. Pinto (tradutores), Edições Vida
Nova, São Paulo, 1988, 1789p.
Diccionario teológico del Antiguo Testamento, G. Johannes Botterweck y Helmer
Ringgren (organizadores), Ediciones Cristiandad, Madrid, 1978, 1100p.
DONNER, Herbert, História de Israel e dos povos vizinhos, v.2 - Da época da divisão do
reino até Alexandre Magno, Editora Vozes/Sinodal, Petrópolis/São Leopoldo, 1997,
237p.
ELIADE, Mircea, História das crenças e das idéias religiosas, 2ª edição, Editora Zahar,
Rio de Janeiro, 1983, 284p.
158
______________, Mito e realidade, Ediciones Guadarrama, Madrid, 1968, 239p.
EMMERSON, Grace I., “Mulheres no antigo Israel”, em O Mundo do Antigo Israel –
Perspectivas sociológicas, antropológicas e políticas, Editora Paulus, São Paulo,
1995, p.353-376
FABRIS, Rinaldo, Problemas e perspectivas das ciências bíblicas, Edições Loyola, São
Paulo, 1993, 402p.
FIORENZA, Elizabeth Schüssler, As origens cristãs a partir da mulher, Edições
Paulinas, São Paulo, 1992, 237p.
FOHRER, Georg, Estruturas teológicas fundamentais do Antigo Testamento, Edições
Paulinas, São Paulo, 1982, 392p.
______________, História da religião de Israel, Edições Paulinas, São Paulo, 1982,
503p.
FOUCAULT, Michel, História da sexualidade, vol.1, 10a edição, Edições Graal, Rio de
Janeiro, 1990, 152p.
_________________, Microfísica do poder, 10ª edição, Edições Graal, Rio de
Janeiro, 1992, 295p.
GALLAZZI, Sandro, A mulher que enfrentou o palácio, Editora Vozes/Metodista/Sinodal,
Petrópolis/São Bernardo do Campo/São Leopoldo, 1987, 185p. (Comentário bíblico)
GEBARA, Ivone, “A dimensão feminina na luta dos pobres”, em Revista Eclesiástica
Brasileira, vol.45, n.178, Editora Vozes, Petrópolis, 1985, p.245-255
______________, “Hermenêutica bíblica feminista”, em Sentimos Deus de outro forma –
leitura bíblica feita por mulheres, Centro de Estudos Bíblicos, vol.75/76, 1994,
p.59-67
______________, Rompendo o silêncio, Editora Vozes, Petrópolis, 2000, 261p.
GERBRANDT, Gerald Eddie, Kingship According to the Deuteronomistic History Society
of Biblical Literature, Dissertation Series Scholars Press, Atlanta, Georgia, 1986,
225p.
GERSTENBERGER, Erhard S. (organizador), Deus no Antigo Testamento, ASTE, São
Paulo, 1981, 430p.
__________________________, “Exegese vétero-testamentária e sua contextualização na
realidade”, em Estudos Teológicos, vol.3, São Leopoldo, 1984, p.313-319
GOTTWALD, Norman, As tribos de Yahweh - Uma sociologia da religião de Israel
liberto, 1250-1050 a C., Edições Paulinas, São Paulo, 1986, 431p.
___________________, Introdução sócioliterária à Biblia Hebraica, Edições Paulinas,
São Paulo, 1988, 639p.
___________________, The Bible and Liberation – Political and Social Hermeneutics,
Orbis Books, New York, 1983, 542p.
159
HARRIS, Laird R., ARCHER, Gleason L., WALTKE, Bruce K., Dicionário internacional
de teologia do Antigo Testamento, 1ª edição, Vida Nova, São Paulo, 1988, 1789p.
HELLER, Agnes, O cotidiano e a história, 2a edição, Editora Paz e Terra, Rio de Janeiro,
1985, 121p.
______________, Sociologia de la vida cotidiana, Ediciones Península, Barcelona, 1991,
416p.
HOUTART, François, Religião e modos de produção pré-capitalistas, Edições Paulinas,
São Paulo, 1982, 250p.
IDÍGORAS, José Luis, Vocabulário teológico para América Latina, Edições Paulinas,
São Paulo, 1983, 564p.
JENNI, Ernst e WESTERMANN, Claus, Diccionario teológico manual del Antiguo
Testamento, v.1/2, Ediciones Cristiandad, Madrid, 1985, 1273p.
JESUS, Maria de, Lucineth, Luigino, Inês, Airton e Fátima, “A defesa do projeto na
memória das mulheres”, em Estudos Bíblicos, vol.29, Petrópolis, 1991, p.26-32
KARTCHVESKY, A. (organizadora), O sexo do trabalho, Editora Paz e Terra, Rio de
Janeiro, 1977, 188p.
KAUFMANN, Yehekel, A religião de Israel, Editora da Universidade de São Paulo, São
Paulo, 1989, 456p.
KIPPENBERG, Hans, Religião e formação de classes na antiga Judéia,
Paulinas, São Paulo, 1988. 173p.
Edições
KIRST, Nelson, KILPP, Nelson, SCHWANTES, Milton, RAYMANN, Acir ZIMMER,
Rudi, Dicionário hebraico-português e aramaico-português, Editora Vozes,
Petrópolis, 1986, 305p.
KOEHLER, Ludwig e BAUMGARTNER, Walter, Lexicon in Veteris Testamenti Libros,
E.J. Brill, Leiden, 1985, 1138p.
LAFFEY, Alice, Introdução ao Antigo Testamento - Perspectiva feminista, Editora
Paulus, São Paulo, 1994, 296p.
LAMBDIN, Tomas O., Introduction to Biblical Hebrew, Harvard University, New York,
1971, 345p.
LAUAND, Luiz Jean, Interfaces – Estudos e traduções, Editora Mandruá, São Paulo,
1997, 111p.
_________________, Ética e antropologia – Estudos e traduções, Editora Mandruá, São
Paulo, 1997, 143p
_______________, Provérbios e educação moral – A filosofia de Tomás de Aquino e a
pedagogia árabe do mathal, Edições HotTopos, São Paulo, 1997, 143p. (Série
acadêmica)
LERNER, Gerda, La creación del patriarcado, Editorial Crítica, Barcelona, 1990, 394p.
160
LOURO, Guacira Lopes, O corpo educador, pedagogia da sexualidade, Editora
Autêntica, Belo Horizonte, 1999, 174p.
MEIHY, José Carlos Sebe Bom, Manual de História Oral, Edições Loyola, São Paulo,
1996, 78p.
MESTERS, Carlos, Flor sem defesa - Uma explicação da Bíblia a partir do povo, 3ª
edição, Editora Vozes, Petrópolis, 1986, 206p.
MEYERS, Carol L., “As raízes da restrição – As mulheres no Antigo Israel”, em Estudos
Bíblicos, vol.20, Editora Vozes/Metodista/Sinodal, Petrópolis/São Bernardo do
Campo/São Leopoldo, 1988, 80p.
MOLA, Patrícia Fortuny Loret de, “Conversão e redefinição de relação de gênero”, em
Mulheres, autonomia e controle religiosos na América Latina, Editora Vozes,
Petrópolis, 1996, p.101-121
NASCIMENTO, Cláudio, “Marxismo, cotidiano e subjetividade”, em Cadernos Fé e
Política, vol.5, CDDH, Petrópolis, 1991, p.11-33
NETTO, José Paulo e FALCÃO, M. C., Cotidiano - Conhecimento e crítica, 3ª edição,
Editora Cortez, São Paulo, 1987, 93p.
NICHOLSON, Linda, “Feminismo e Marx - Integrando o parentesco com o econômico”,
em Feminismo como crítica da modernidade, Editora Rosa dos Tempos, Rio de
Janeiro, 1991, p.23-37
NOTH, Martín, El mundo del Antiguo Testamento, Editorial Cristiandad, Madrid, 1976,
399p.
____________, Estudios sobre el Antiguo Testamento, Editorial Sígueme, Salamanca,
1985, 316p.
ORO, Pedro Ari e STEIL, Carlos Alberto, Globalização e religião, Editora Vozes,
Petrópolis, 1997, 262p.
OSBURN, William, A Hebrew and English Lexicon to the Old Testament, 12ª edição,
Zondervan Publishing House, Michigan, 1982, 287p.
PATAI, Raphael, “O mito e história”, em O homem moderno, Editora Cultrix, São Paulo,
1972, 309p.
PEREIRA, Nancy Cardoso, Cotidiano sagrado e a religião sem nome - Religiosidade
popular e resistência cultural no ciclo de milagres de Eliseu, Instituto Metodista de
Ensino Superior, São Bernardo do Campo, 1998, 259p.
PETERSEN, Sílvia Regina, Dilemas e desafios da historiografia brasileira – A temática
da vida cotidiana, texto mimeografado, 36p.
PINSKY, Jaime (organizador), Modos de produção na antiguidade, 3ª edição, Editora
Global, São Paulo, 1984, 265p.
PIXLEY, Jorge, A história de Israel a partir dos pobres, Editora Vozes, Petrópolis, 1990,
135p.
161
PRADO, Consuelo de, “Eu sinto Deus de outro modo”, em Revista Eclesiástica Brasileira
(REB), vol. 46, Editora Vozes, Petrópolis, 1986, p.15-29
PURY, Albert de (organizador), O Pentateuco em questão, Petrópolis, Editora Vozes,
1996, 324p.
RAD, Gerhard von, El libro del Génesis, Ediciones Sígueme, Salamanca, 1985, 539p.
(Biblioteca de estúdios bíblicos, 18)
_______________, “El problema morfogenético del hexateuco”, em Estudios sobre el
Antiguo Testamento, Ediciones Sígueme, Salamanca, 1982, p. 11-40 (Biblioteca de
estúdios bíblicos, 3)
_______________, Teologia do Antigo Testamento, 2 volumes, 2a edição, Editora Aste,
São Paulo, 1996, 948p.
RASHI, Bereshit com Rashi traduzido, I.U. Trejger, São Paulo, 1993, 253p.
REY, M. Jesus Buxo, Antropología de la mujer – Cognición, lengua e ideología cultural,
Editorial Antropos, Barcelona, 1988, 215p.
ROBINSON, Edward, A Hebrew and English Lexicon of the Old Testament, Mifflin,
Boston, 1149p.
ROSALDO, Michelle e LAMPHERE, Louise (coordenadoras), A mulher, a cultura e a
sociedade, Editora Paz e Terra, São Paulo, 1979, 254p.
SAFFIOTI, Heleieth, “Conceituando o gênero”, em Mulher brasileira é assim, Editora
Rosa dos Tempos, Rio de Janeiro, 1994, 283p.
________________, “Rearticulando gênero e classe social”, em Uma questão de gênero,
Fundação Carlos Chagas/Editora Rosa dos Tempos, São Paulo/Rio de Janeiro, 1992,
p.183-215
________________, A mulher na sociedade de classes - Mito e realidade, Editora Vozes,
São Paulo, 1969, 404p.
SAMPAIO, Tania Mara Vieira, Movimento do corpo prostituído da mulher na beleza do
cotidiano - Uma aproximação da profecia atribuída a Oséias, Instituto Metodista
de Ensino Superior , São Bernardo do Campo, 1997, 236p.
_________________________, “Elementos significativos da hermenêutica bíblica
feminista”, em Sentimos Deus de outra forma – Leitura bíblica feita por mulheres,
CEBI vol.75/76, 1994, p.52-58 (A palavra na vida)
_________________________, “Considerações para uma hermenêutica de gênero do
texto bíblico”, em Revista de Interpretação Bíblica Latino-Americana, vol.37,
Editoras Vozes/Sinodal, Petrópolis/São Leopoldo, 2000, p.7-14
SÁNCHEZ, Caro J. M. e BARRERA. J. Trebolle, A Bíblia e seu contexto, v.1, Edições
Ave Maria, São Paulo, 1994, 567p.
SCHEREINER, Josef, Palavra e mensagem – Introdução teológica e crítica aos
problemas do Antigo Testamento, Edições Paulinas, São Paulo, 1978, 579p.
162
SCHNEIDERS, Sandra M., As mulheres e a palavra, Edições Paulinas, São Paulo, 1995,
80p.
SCHWANTES, Milton, “A origem social dos textos”, em Estudos Bíblicos, vol.16,
Editora Vozes/Metodista/Sinodal, Petrópolis/São Bernardo do Campo/São
Leopoldo, 1988, p.31-37
___________________, “Caminhos da teologia bíblica”, em Estudos Bíblicos, vol.2,
Editora Vozes/Metodista/Sinodal, Petrópolis/São Bernardo do Campo/São
Leopoldo, 1987, 66p.
___________________, História de Israel - Local e origens, vol.7, n.1, São Leopoldo,
1984, 166p. (Série exegese, 7/1)
___________________, História de Israel, vol.7, São Paulo, 1992, 26p. (Mosaicos da
Bíblia)
___________________, Sofrimento e esperança no exílio – História e teologia do povo
de Deus no Século VI a.C., Editora Sinodal/Paulinas, São Leopoldo/São Paulo,
1987, 134p.
___________________, Teologia do Antigo Testamento - Anotações, vol.9, n.1,
Faculdade de Teologia da IECLB, São Leopoldo, 1986, 67p. (Série exegese)
SCOTT, Joan, Gênero - Uma categoria útil para análise histórica, SOS Corpo, Recife,
1991, 27p.
SELLIN, Ernst e FOHRER, Georg, Introdução ao Antigo Testamento, vol.2, Edições
Paulinas, São Paulo, 1977, 825p.
SPEISER, E.A., Gênesis – A New Translation with Introduction and Commentary,
Doubleday, New York, 1962, 378p. (The Anchor Bible)
TAMEZ, Elza (organizadora), El rostro femenino de la teología, DEI, San José, 1986,
286p.
TAMEZ, Elza, PEREIRA, Nancy Cardoso e SAMPAIO, Tania Mara V., Las mujeres
toman la palabra, DEI, San José, 1989, 111p.
The Anchor Bible Dictionary, vol.1, David Noel Freedman, Published by Doubleday, New
York, 1992, 1232p.
The Anchor Bible Dictionary, vol.5, David Noel Freedman, Doubleday, New York, 1992,
1230p.
The Hebrew e Aramaic Lexion of the Old Testament, v.1, E.J. Brill, Leiden, New York,
1994, 365p.
The Hebrew e Aramaic Lexion of the Old Testament, vol.2, E.J. Brill, Leiden, New York,
1994, 906p.
The International Standard Bible Encyclopaedia, v.4, James Orr (editor), The Howard Severance, Chicago, 1915, 3541p.
163
TECHI, Molina, “No hay silencio que pueda apagar la voz que nace”, em Nuevamerica,
vol.59, Buenos Aires, 1993, p.6-7
UTCHENKO, Sergei, “Classes e estruturas de classes na sociedade escravagista antiga”,
em Textos 2 - Modos de produção na antigüidade, 3a edição, Global Editora, São
Paulo, 1986, p.157-168
WESTERMANN, Claus, Genesis 12-36 – A Commentary, Augsburg House, Minneapolis,
1985, 604p.
___________________, Genesi, Edizioni Piemme, Casale Monferrato, 1989, 338p.
____________________, Teologia do Antigo Testamento, Edições Paulinas, São Paulo,
1987, 202p.
WILLIAM, Delores, Sisters in the Wilderness - The Challenge of Womanist God-talk,
Orbis Books, Maryknoll, 1993, 287p.
WOLFF, Hans Walter, Antropologia do Antigo Testamento, Edições Loyola, São Paulo,
1975, 329p.
__________________, Bíblia: Antigo Testamento – Introdução aos escritos e aos
métodos de estudo, Edições Paulinas, São Paulo, 1978, 144p.
YATES, Kyle M., Nociones esenciales del hebreo bíblico, Casa Bautista de Publicaciones,
San José, 1979, 301p.
ZIMMERLI, Walter, Manual de teologia del Antiguo Testament, Ediciones Cristiandad,
Madrid, 1980, 290p.
ZORRILLA C. Hugo, Lenguaje y pensamiento del Antiguo Testamento - Compreensión
de la voz de Dios como palabra humana, 2a edição, Guatemala, Ediciones Semilla,
1991, 154p.
164