Crônica de uma oficina de vídeo

Transcrição

Crônica de uma oficina de vídeo
Crônica de uma oficina de vídeo
VINCENT CARELLI
São Paulo, agosto de 1998
O projeto do Divino Tserewahú
Em setembro de 1997, depois de dez anos de atividades em diversas
aldeias, o projeto reuniu pela primeira vez numa oficina nacional 27 alunos de
treze etnias no Parque do Xingu. Durante este encontro, os índios Xavante
Divino Tserewahú e Bartolomeu Patira fizeram um convite aos alunos mais
chegados, mas sobretudo aqueles considerados mais talentosos, para
participarem da filmagem do ritual de furação de orelha em sua aldeia em
1998. Os convidados foram o Kim Abieti, os dois Suyá Winti e Nikramberi, e
os dois Xavantes, Jorge e Caimi. Também teriam desejado convidar o
Aldaiso Yauanawá do Acre mas sabiam que seria muito difícil traze-lo de tão
longe. A gente naturalmente ficou entusiasmado com a ideia e com o fato
deles terem tomado esta iniciativa, e decidimos apoiar o projeto.
O Divino, que vem filmando desde 1991 com grande aplicação, já
documentou uma série de cerimoniais em sua aldeia e, vez por outra, vem a
São Paulo editar resumos/rascunhos para levar cópias e mostrar na aldeia ou
para ceder ou vender para conhecidos não índios. Como membro da equipe
do Programa de Índio , o Divino tentou se firmar como repórter Xavante, para
filmar rituais ou conflitos em outras aldeias e durante o ano de 1995
subsidiamos várias de suas viagens. Uma delas, para filmar um conflito
envolvendo madeireiros e duas facções rivais de uma aldeia na região de
Capinápolis, quase acabou mal. Uma das facções tomou-lhe a câmera, que
só foi resgatada, com a ajuda do cacique da aldeia, depois de muitas
negociações. Em 1996, se sentindo desprestigiado em relação ao Caimi, ele
e o Bartolomeu mandaram um fax ao CTI reclamando. Foram então para a
TV Universidade em Cuiabá editar um vídeo com versão em inglês para
mandar para o festival de Nova Iorque. Este vídeo desapareceu e não
chegou a Nova Iorque, frustrando ainda mais as suas expectativas. Por
ocasião da Semana do Índio de 1997, ele conseguiu editar e veicular uma
matéria na TV local de Barra do Garça, mas ele também nunca conseguiu
uma cópia. Assim, apesar de todos os seus esforços para ter em mãos algum
trabalho finalizado as pessoas que o “ajudaram” acabavam sempre se
apropriando do trabalho.
Faltava na trajetória do Divino um produto que coroasse o seu esforço e ele
sabia que estava no momento de realizar um trabalho bem finalizado e
consistente, que lhe desse o reconhecimento que o Caimi havia alcançado
com o seu vídeo “Tem que ser Curioso”, apresentado por ele em vários
festivais internacionais. O fato de convidar os dois Xavantes da aldeia de
Pimentel Barbosa demonstrava que o conflito de competição que se tinha
criado entre eles nos anos anteriores havia sido superado com o convívio
proporcionado pelo curso do Xingu.
Mas qual teriam sido as razões que levaram o Divino a querer compartir este
1 trabalho com os seus colegas? Em primeiro lugar este ritual só se realiza a
cada cinco anos, e é de uma grande complexidade. Em alguns momentos, as
ações se desenvolvem simultaneamente em vários locais. Só a presença de
mais de uma câmera poderia viabilizar uma cobertura mais completa e
sistemática. Seu irmão Jeremias, o primeiro cinegrafista indígena de
Sangradouro, havia filmado a última furação de orelha realizada em
Sangradouro, e evidentemente tinha deixado de filmar uma série de etapas
consideradas muito importantes.
Acontece também que o Divino, pertencendo ao grupo cerimonial dos Tirowa,
deveria desempenhar uma série de funções no cerimonial deste ano das
quais os velhos da aldeia dificilmente o dispensariam apesar dele também
estar filmando. E mais do que isso, a condição de membro dos Tirowa
também o impossibilitaria de presenciar uma série de outros eventos
exclusivos de outros clãs cerimoniais. Ao chegar na aldeia, no-entanto,
percebi que, fora estes motivos objetivos que ele colocava, o Divino vinha
enfrentando toda uma série de dificuldades ligadas a política interna da
aldeia, que o haviam levado a pedir o auxílio de seus colegas de fora.
A inserção política do vídeo em Sangradouro: antecedentes
O projeto Vídeo nas Aldeias chegou até a aldeia de Sangradouro por
iniciativa e solicitação dos índios no ano de 1988, época da realização do
ritual Wai’á, o mais importante rito de iniciação masculina Xavante que
prepara os jovens para se relacionarem com as forças sobrenaturais que lhes
transmitem poder. O Lucas, jovem que chefiava o seu grupo de idade e que
teria importante função no cerimonial daquele ano, procurava algum
cinegrafista que pudesse registrar a festa que só se realiza a cada 15/20
anos. A preocupação do Lucas era de que a maioria dos anciões que dirigiam
o cerimonial naquela época provavelmente não viveriam até a realização do
próximo (como de fato aconteceu, a maioria deles já faleceu),
comprometendo assim a memória de todos os detalhes da realização do
ritual. Informado em Brasília pelo Sílbene de Almeida da existência do
projeto, ele veio até nós para pedir a filmagem que deveria ser iniciada
naqueles dias. Como eu já me encontrava comprometido com os Gavião do
Pará, filmando o ritual do Pemp na mesma data, Virgínia Valadão assumiu a
direção do trabalho com o fotógrafo Paulo César Soares.
Na época, a Virginia me havia relatado que as filmagens, que duraram mais
de vinte dias, haviam sido pontuadas por uma série de discussões e disputas
políticas, que foram sendo solucionadas à medida que foram surgindo. Por
traz de questões diretamente relacionadas com o ritual, como registrar ou
não seus aspectos secretos, se travava, entre outros, um duelo entre o líder
Alexandre, empossado e apoiado pelo grupo do Lucas, e o pessoal do
Domingos, da aldeia Dom Bosco.
Por indicação do Lucas, o Bartolomeu e o Cornélio foram escalados para
acompanhar a edição do vídeo que resultou das filmagens: “Wai’á, O
Segredo dos Homens”. Ficaram depois encarregados dos equipamentos de
2 projeção que doamos para a aldeia. O Jeremias foi indicado para o “cargo”
de cinegrafista fazendo estágio no CTI, por ser filho do então chefe de
Sangradouro, Alexandre. Havia ao assumir esta função uma expectativa de
conseguir um emprego remunerado. Quando, dois anos mais tarde, o
Jeremias assumiu a função de Chefe de Posto da FUNAI ele passou a
câmera para o Divino, seu irmão. O conflito surgido com o Domingos afinal
acabou ficando mal resolvido. Ele, que já tinha esta profissão de
conferencista no Brasil e no exterior, solicitou um cópia da edição final para
usar no seu trabalho. Nos, numa avaliação que hoje considero equivocada,
optamos por obedecer a facção do Lucas que havia solicitado a filmagem, e
que vetou a entrega da cópia para o Domingos.
A aldeia de Sangradouro já é uma aldeia muito antiga, e, como
tradicionalmente ocorre nas aldeias Xavante, a medida em que sua
população vai crescendo seus conflitos políticos vão se acirrando. “As
facções competem eternamente por poder e prestígio assim como pelo
prêmio maior: a chefia”( Maybury-Lewis, 1974: 250). A aldeia maior vai então
se fracionando em novas aldeias. Talvez devida a presença da missão, e
sobretudo do colégio, Sangradouro permanece como a aldeia mãe apesar do
seu fracionamento em diversas aldeias satélites, onde todos se reúnem
apesar de suas divergências para a realização dos grandes cerimoniais. O
momento cerimonial volta a reunir por classes de idade pessoas divididas nas
facções que dominam o cotidiano. O ritual se constitui num movimento de
contrapeso a divisão política quando inimigos políticos tem que conviver e
atuar conjuntamente nas suas funções cerimoniais.
A aldeia de Dom Bosco já era uma aldeia separada na época do Wai’á . Ao
longo destes dez anos, vários novos fracionamentos se deram e entre outros
o pai do Bartolomeu fundou a aldeia Malibu, e o Lucas fundou a aldeia da
Abelhinha, atualmente chefiada pelo Cornélio. Dois anos atrás o Alexandre
foi destituído da chefia de Sangradouro e, consequentemente, o Jeremias
também perdeu o emprego de chefe de posto. De modo que aquele grupo de
pessoas inicialmente ligadas ao projeto se dividira em grupos antagônicos (o
Bartolomeu e o Lucas envolvidos numa disputa por mulheres sequer se
falam), além de permanecer, é claro, a rivalidade do grupo da aldeia de Dom
Bosco com os demais.
No processo, se deu uma longa disputa em torno da posse dos
equipamentos de projeção entre o pessoal do Bartolomeu e do Lucas. Mas
foi a situação do Divino, com a destituição do seu pai do cargo de cacique,
que mais se complicou, por ser a função de câmera a mais disputada. Várias
gestões foram feitas junto ao CTI no sentido da gente intermediar estas
disputas, o que nós sempre nos recusamos a fazer. Mas de uma coisa não
abrimos mão, a do Divino permanecer com a câmera já que ele tinha se
mostrado apaixonado pelo ofício além de ter talento como cinegrafista. O
sogro do Divino, diretamente implicado na destituição do seu pai Alexandre,
chegou a sequestrar a sua câmera impondo ao Divino uma difícil escolha:
entregar a câmera para outro jovem se ele quisesse permanecer casado com
a sua mulher. Entre uma e outra, o Divino optou pela câmera. Depois de
vários embates ele acabou recuperando também a mulher, mas seus
3 equipamentos passaram a ficar guardados na casa do seu irmão Jeremias
para evitar algum problema no futuro.
Em 1995, fomos novamente convidados pelo Divino e pelo Bartolomeu,
ambos membros da equipe do Programa de Índio, para filmar a festa da
Onça, um ritual de nominação de mulheres. Ficamos hospedados na casa do
Lucas e embora fosse uma filmagem rápida, de apenas quatro dias, conflitos
semelhantes afloraram. Desta vez o pessoal de Dom Bosco, com
prerrogativas especiais neste cerimonial específico, protestou por não ter sido
consultado sobre a filmagem. A minha postura foi a de que eu havia sido
convidado por alguns deles. Se havia conflito entre eles a este respeito, eles
é que deveriam se reunir para resolver a questão. Disse que acataria
qualquer decisão que eles tomassem e estava disposto a retornar para São
Paulo na madrugada seguinte cancelando a filmagem.
Diante da minha postura inflexível e da minha disposição de levar a coisa no
braço de ferro, o Domingos, após uma longa conversa, resolveu recuar. É
importante dizer aqui que, fora a questão das filmagens, haviam outros
fatores que pesavam na balança. A relação do CTI com as várias facções de
Sangradouro havia evoluído ao longo dos anos para várias assessorias. A
Virginia Valadão e o Gilberto Azanha sempre atenderam as várias comissões
que vieram a São Paulo, sem discriminar a facção A, B ou C, ajudando-os a
redigir e encaminhar projetos com contatos que eles haviam articulado.
Portanto, para o Domingos, forçar um rompimento com o CTI poderia implicar
em detonar uma crise interna muito maior, já que tínhamos na aldeia uma
rede diversificada de alianças. Outro fator muito importante é de que o filme
“Wai’a, O Segredo do Homens” (1988), acima de todas as disputas, agradou
os anciões da aldeia e é motivo de orgulho geral. Da mesma maneira no caso
da festa da Onça, Sangradouro é uma das únicas aldeias Xavante que ainda
realiza este ritual, portanto tê-lo registrado seria mais um ponto a favor do
jogo de disputa de prestígio entre aldeias.
Recolocando o vídeo num novo contexto
Em todos os cerimoniais Xavante sempre há um certo número de
cinegrafistas e fotógrafos, amadores ou profissionais, vindos de fora ou
ligados à missão. Cada um vem por uma via, através do convite de algum
índio de alguma facção política. Mas ao chegarem na aldeia, o conselho dos
anciões, que coordena o cerimonial, discute caso a caso a questão da
socialização dos bens ou benefícios que cada equipe de convidados aporta,
ou será cobrado. Este é um assunto que merece uma discussão pública para
que esta compensação não se restrinja aquele que mediou o convite.
Fui para Sangradouro para esta “coprodução inter-étnica” com a mesma
postura: de não virar joguete de disputas internas e de não aceitar cobranças
indevidas para negociar a filmagem. Primeiro, porque não se tratava mais de
filmar para eles (a facção responsável pelo convite), ou para mim (para
“ganhar dinheiro” com estas imagens na versão dos opositores), mas sim de
dirigir uma oficina de filmagem cuja proposta é justamente torná-los
autônomos neste aspecto. Estava disposto a marcar a diferença do projeto
4 na questão da compensação da comunidade pela filmagem: eu não levaria
nada dali pois o fruto do trabalho seria integralmente deles (para espanto de
todos eu não estava filmando) além de estar contribuindo com a capacitação
de seus jovens e produzindo um material inteiramente apropriado por eles.
Assumi o papel de “professor”, uma função bem conhecida por quem já viveu
quarenta anos de colégio Salesiano. Fui extremamente enfático neste ponto
antes de ir para a aldeia: diante da primeira tentativa de extorsão
abandonaria o curso.
Ao chegar na aldeia fui informado que os alunos vindos de fora e eu mesmo
ficaríamos hospedados na casa do Jeremias, o irmão do Divino e filho do
Alexandre. Fiquei surpreso com a fineza da acolhida, sendo que o Jeremias
havia feito compras de comida do próprio bolso para alimentar-nos ( e não
nos cobrou nada por isso) e seu pai, que usualmente me atormenta com
infindáveis pedidos, não nos fez nenhuma cobrança. Entendemos então que
toda a família do Divino estava investindo no seu sucesso, sendo ele um
componente importante na campanha do Alexandre para reassumir a chefia
da aldeia e do Jeremias para retomar o seu emprego de Chefe de Posto. A
filmagem, o curso estava prestigiando o seu partido, quase que endossando
as suas aspirações.
Inicialmente a situação parecia cômoda, já que o Alexandre estava
empenhando em neutralizar qualquer reclamação em relação a filmagem,
além de impedir que qualquer facção me pressionasse com pedidos. Mas
rapidamente aquela situação passou a me incomodar, eu me encontrava ali
como que refém de uma facção, e o que necessitávamos para o bom
desempenho dos estudantes/cinegrafistas era uma ampla cumplicidade e
colaboração da comunidade.
O Domingos, através do seu irmão Arquimedes, bateu logo de frente: foi ao
pátio dizer que estivera comigo em Roma e me vira arrecadando dinheiro em
nome dos índios. Apesar da gravidade, a acusação não surtiu o efeito
desejado. Mas eu fui sendo chamado para sucessivas conversas “em
particular”, pelo sogro do Divino, pelo Pedro, atual cacique da aldeia ...
Entendi então que eu não poderia me omitir e que caberia a mim, primeiro
ouvir todas as queixas para poder fazer uma avaliação do contexto em que a
questão do vídeo estava colocada em Sangradouro, e, segundo, trabalhar
para colocar a filmagem acima do controle de um único grupo, angariando a
participação e a cooperação de todos.
Vários fatores, além de toda conjuntura mencionada anteriormente,
contribuíam para dar credibilidade a nossa empreita, trazendo as dissidências
a participarem. O pessoal da Abelhinha de forma nenhuma se opunha ao
trabalho, pois além da nossa histórica amizade sempre respeitou o projeto,
mas corria por fora. Haviam contratado o Giani Puzzo, que o projeto havia
contratado como professor no curso do Xingu, para desenvolver um trabalho
em separado. Sob a liderança do Lucas, professor de matemática do
segundo grau no colégio da missão, um autêntico intelectual, do Hiparendi,
jovem estudante universitário em São Paulo, esta aldeia vem trabalhando
para desenvolver um currículo diferenciado na sua escola, dando ao vídeo
5 um papel de destaque. Nada mais conforme a linha de trabalho atual do
projeto, e portanto trabalhei com sucesso para neutralizar a rejeição mútua
entre eles, o Divino e o Bartolomeu. Tseritó, o câmera iniciante da Abelhinha,
extremamente tímido, revelou ter um potencial enorme como cinegrafista,
formando com o Lucas, na direção das entrevistas, uma equipe excelente. O
próprio resultado do seu trabalho, que nos fomos valorizando, contribuiu para
neutralizar as agressões e provocações do Divino.
O sogro do Divino se queixou que frequentemente recebia acusações de que
seu cunhado estaria enriquecendo com o vídeo, e portanto gostaria de
receber uma compensação por esta situação humilhante. Na conversa com o
cacique Pedro, já que eu não queria tirar o Divino da função, me pediu que o
seu filho também recebesse uma câmera e fosse incorporado a equipe.
Respondi que não havia no momento dinheiro para isso e que se tratava ali
de um curso para alunos mais adiantadas. O Domingos, depois de ouvir a
fofoca de que eu havia passado uma descompostura no Divino por ter se
atrasado numa das filmagens, me chamou para uma conversa pedindo que
eu tomasse a câmera do Divino e escolhesse outro para a função. Em todas
as conversas e negociações tentei esclarecer a nova perspectiva do trabalho.
Depois de acertadas as questões de princípios, todas as conversas acabam
num acerto mais pragmático, afinal de contas os benefícios tem que ser
repartidos entre os diversos grupos: cada um recebeu a contribuição possível
do projeto, basicamente uma cota de combustível.
Resolvidos os impasses políticos, o trabalho prosseguiu de maneira tranquila,
assumindo uma dinâmica que foi progressivamente conquistando mais
pontos na confiança e na participação da comunidade. Visto de fora, toda
esta questão da inserção do vídeo num jogo de disputas políticas internas
pode parecer marginal ao trabalho em si, mas de fato não é. Porque não se
trata de produzir um vídeo em si, mas de ver como toda uma comunidade
pode participar e se beneficiar do processo como um todo. A aldeia de
Sangradouro, e suas aldeias satélites, é muito maior, e portanto muito mais
complexa, do que aquelas com as quais costumamos trabalhar, envolvendo
mais de 1.700 pessoas. A questão do visionamento, da circulação interna do
material e da apropriação do produto final também tem que ser tratada de
maneira diferenciada. E afinal se todos participam da festa nada mais justo
que todos tenham acesso às imagens da festa.
Na ocasião do curso dispúnhamos de um telão, que permitia um
visionamento mais amplo e coletivo, mas no dia a dia da aldeia a distribuição
passa muito mais pelos videocassetes da casas das pessoas do que pelo
pátio. Já em 1995 haviam duas antenas parabólicas na aldeia. Agora são 9
antenas, e todos eles tem videocassetes. Acertamos uma distribuição de
cópias de fitas do acervo do projeto para cada um destes grupos, fazendo
que esta circulação saia do âmbito pessoal do Divino, e portanto não fique
mais circunscrito ao controle de uma única facção, se tornando objeto de
barganha política. Afora a questão da circulação interna do material também
está sendo fundamental redefinir a apropriação do produto final para fins
angariar alianças externas. Faremos com que todas as associações
indígenas, cada uma ligada a uma das aldeias satélites, tenha o seu crédito
6 na realização do vídeo, ou, se preferirem, várias versões cada uma com o
crédito de uma das associações. Um produto como esse é de extrema
utilidade no seu trabalho de divulgar o trabalho de cada associação, na sua
busca por financiamento dos seus projetos.
É interessante notar que todas estas negociações foram se desenrolando
através de conversas “particulares”, alimentadas por uma cadeia de fuxicos.
Aliás este laboratório de intrigas não é privilégio exclusivo da questão do
vídeo. Durante a minha estadia, vários outros temas foram alvos deste tipo
de fermentação, o que me fez tomar as coisas com mais naturalidade.
Algumas vezes sugeri se não seria mais fácil chamar todo mundo para uma
conversa pública no pátio da aldeia para um esclarecimento geral de todos
estes desentendimentos, o que foi evitado por todos. Este tipo de
confrontação pode na verdade complicar mais as coisas do que resolver,
“não posso humilhar eles” diziam todos à respeito daquele que estavam a
criticar em off.
As várias facções que disputam o poder não são grupos estanques. O
parentesco as recorta todas, o que impõe relações de compromisso entre
elas. Há também regras de etiqueta que não podem ser transpostas sob o
risco de gerar crises de proporções imprevisíveis. Desta maneira, em 1995,
embora eu estivesse hospedado pelo Lucas que apoiava a filmagem e
discordava da posição do Domingos, foi ele que me obrigou a sentar para
uma conversa, se esquivando ele próprio na hora H do confronto. Da mesma
forma foi o grupo do Divino que me recomendou que fosse conversar com o
capitão Pedro. Enfim, enquanto dava esta oficina de vídeo, tive uma aula
intensiva de política Xavante.
Um salto na qualidade do trabalho
A característica dos registros que os índios vem desenvolvendo até agora,
por conta própria, tem sido de uma descrição visual, muitas vezes
fragmentada e parcial. O material se restringe aos movimentos mais
importantes dos cerimoniais, sem maiores detalhamentos de cobertura. No
caso de Sangradouro, o trabalho do mestre Adalberto, missionário que
trabalha há mais de quarenta anos com os Xavante e que a partir do final da
década de 60 produziu uma série de filmes sobre os principais rituais
(inclusive este da furação), ficou para eles como uma referência. Os filmes
são descrições visuais e cronológicas nos quais estão simplesmente
mencionados o nomes das principais etapas do ritual. Não há nem uma
locução externa, nem entrevistas dos índios situando para o telespectador no
significado do que é apresentado.
A leitura de um vídeo simplesmente através das imagens pode ser
extremamente rica e estimulante como tem comprovado a experiência do
Vídeo nas Aldeias mas não é a única de interesse para certos públicos que o
registro pretende atingir de maneira diferenciada: as crianças da própria
comunidade que são ainda muito jovens para terem este tipo de
conhecimento, e o público não índio que não tem o menor background do
7 conteúdo destas imagens, e que está precisando de conteúdo para ir um
pouco além das aparências.
A propósito das oficinas é justamente a de transpor esta etapa da mera
descrição visual dos registros, para a elaboração de documentários que
desenvolvam uma linguagem específica para chegar a um conteúdo, a uma
mensagem determinada. Para que haja uma intencionalidade, uma busca
consciente de um dado resultado durante o registro. Até agora, os vídeos
elaborados com o Siã Kaxinawá (Fruto da Aliança dos Povos da Floresta), o
Kasiripinã Waiãpi (Jane Moraita, Nossas Festas) e o Caimi Waiassé (Tem
que ser Curioso), tiveram os seus roteiros totalmente construídos a posteriori.
A partir de um conjunto de material filmado, concebemos um roteiro que foi
reforçado nos dois últimos casos, por depoimentos dos autores sobre seus
trabalhos.
A ideia era também sair da linha tele magazine que vinha sendo desenvolvida
no Programa de Índio, com matérias muito curtas e forçosamente um pouco
superficiais, onde de certa maneira do pouco que se tenha sempre se faz
alguma coisa. De certa maneira foi este formato que prevaleceu na oficina do
Xingu, na série de matérias do “Jornal do Xingu”, pois se tratava de um
primeiro e rápido contato de pessoas que não se conheciam (os alunos e os
índios das aldeias que eles documentaram) intermediado pela língua
portuguesa, já que ninguém falava a mesma língua. A proposta era entrar
numa linha documental com um tratamento mais aprofundado, especialmente
quando se desenvolve um trabalho na própria língua e sobre a sua própria
cultura.
Assim, uma oficina desenvolvida no contexto da cobertura de um cerimonial
da sua própria cultura, se revelou, como imaginávamos, metodologicamente
extremamente produtiva e proveitosa para os alunos. Não se trata de uma
situação artificial na qual se passa um exercício de câmera do tipo “me faça
um plano sequência de alguém entrando em casa”. É uma situação de
grande desafio e motivação porque há toda uma expectativa da comunidade
em relação aos resultados, além de apresentar uma diversidade de situação
a serem filmadas. Enfim é a situação ideal porque permite trabalhar
conjuntamente tanto o aprimoramento da técnica quanto a questão do
conteúdo, de maneira que imagem e conteúdo se relacionem, um objetivando
o outro.
O procedimento consistiu em dirigi-los durante os registros do cerimonial, e,
durante 2 a 3 horas diárias visionar com eles os resultados. Ali se fazia uma
crítica exaustiva dos enquadramentos, dos movimentos, do conjunto de
planos necessárias a uma boa cobertura, de como se fixar em alguns
personagens na cenas de multidão, etc. A característica própria dos
cerimoniais Xavante, em que certas cenas se repetem ao longo de semanas,
foi excelente para a prática de exercícios, tornando possível refazer até
acertar certas sequências, após visionar os erros cometidos. A partir destas
imagens se levantava uma pauta de questões relativa ao significado daquele
momento do ritual, da coreografia, da simbologia dos enfeites, etc. E eles
8 partiam então para pesquisar, sozinhos, estes conteúdos na forma de
entrevistas com os anciões da aldeia.
A situação da filmagem/reportagem é uma situação nova que pode
proporcionar um novo distanciamento e questionamento por parte dos
repórteres indígenas e ao mesmo tempo uma nova forma de interação entre
os documentaristas indígenas e seus parentes. Como eu já comentava na
introdução do relatório do Xingu, os mais velhos são os mais entusiastas do
vídeo, porque ele vem viabilizar e reforçar o seu projeto de resistência
cultural. Qual não era a satisfação destes velhos que num situação insólita se
veem procurados por estes jovens, para dar explicações sobre aspectos
tradicionais. O fato de haver na equipe dois Xavantes de uma outra aldeia
ajudou e muito a criar este novo espaço das entrevistas. Inicialmente, a
vantagem que os de fora levavam sobre o Divino é que eles não sofriam os
constrangimentos de um relacionamento anterior a filmagem, e podiam agir
com mais liberdade.
A medida em que eles foram assimilando a sistemática de uma boa
cobertura, eles aprenderam também a planejar o trabalho. Não se filma ao
acaso, depois que acorda, antes ou depois que almoçou. A filmagem passa a
moldar os seus horários e não o inverso. É preciso escolher os melhores
momentos e se antecipar a eles, e não andar a reboque dos acontecimentos.
Por exemplo, o amanhecer de madrugada no centro da aldeia é o momento
em que os anciões que dirigem o cerimonial fazem uma avaliação do
desenrolar dos acontecimentos e planejam os passos seguintes. O registro
sistemático deste momento proporciona uma autêntica crônica do ritual
podendo ser usado como um dos fios condutores da narrativa.
Estabelecemos então que todo mundo se levantaria as 4 da manhã e os
câmeras se revezariam todos os dias no pátio. O fato da gente ter marcado
presença neste espaço, além do uso possível na narrativa do filme, colocava
a filmagem no eixo correto na perspectiva dos índios, no sentido em que
estávamos valorizando os anciões, os homens do conhecimento e decisão
naquele momento.
Antes das cenas mais complexas, com movimentos simultâneos em vários
pontos da aldeia, discutimos estratégias de posicionamento das câmeras, as
sequência dos planos que dariam melhor conta da situação e de seus
movimentos.
Copiei uma série de entrevista e dei para o pessoal da Abelhinha analisar. O
Lucas me voltou com um caderno cheio de anotações sobre cada uma delas.
Anotações sobre imprecisões, aspectos controversos, interpretações
pessoais. Os Xavantes, detalhistas nas coreografias dos rituais, adoram uma
discussão sobre minúcias e interpretação dos rituais. Surgiu até a ideia de
um seminário com os anciões de outras aldeias para discutir questões
relativas aos ritos de iniciação. Ficou claro também que uma montagem
aproveitando de uma maneira mais extensiva estes depoimentos pode
resultar de material didático na própria língua para as escolas Xavante sobre
um dos temas centrais de sua cultura, que são os ritos de iniciação, e que
9 estão na base da reprodução da sua sociedade. Portanto um registro que vai
fundo na questão da informação, do conteúdo, traz um mundo de
possibilidades e interesse para eles.
Uma avaliação da equipe e da oficina
Durante os meses de junho e julho só o pessoal de Sangradouro ficou
filmando os preparativos para a etapa final. Jorge, e em seguido Caimi,
vieram para filmar a grande caçada, e a Corrida do Noni, praticada
diariamente pelos iniciandos. Aí faltou crítica e direção: deixaram de tirar
proveito do fato da cena se repetir muitas vezes para alternar as posições
proporcionando uma boa decupagem no final, eles optaram por uma única
posição média onde a gente mal enxerga o começo porque é muito distante,
os corredores passam rapidamente pela câmera , e em seguida a gente
também não vê o final direito porque fica muito longe.
Dentro das dificuldades encontradas por eles também teve o fator sorte,
como sempre. Acompanharam a caçada nos dois primeiros dias e não deu
nada. No terceiro não foram para economizar bateria, quando logo nesse dia,
se realizou a grande caçada. Perderam o momento x da caçada que seria
naturalmente o Tchan a mais do filme deles, os bichos vivos. Acontece com
todo mundo.
Embora a maioria da aldeia não estivesse assistindo as imagens que iam
sendo produzidas, os velhos já estavam dirigindo e criticando o desempenho
dos cinegrafistas da aldeia. A crítica foi grande por terem perdido o bando de
porco queixada acuado pelo fogo. Todos acompanhavam o desenrolar das
filmagens. Outra reclamação geral foi eles terem perdido “aquela saída das
bordunas que portam as flautas”. É difícil avaliar, entre avanços e recuos, o
quanto eles assimilaram. O ganho é sem dúvida enorme nesta oficina, mas
principalmente nos grandes momentos, muita gente e muita coisa
acontecendo ao mesmo tempo ainda tem muita coisa a aprender, coisas que
a gente aprende com os anos de janela.
Fora os dois Suyá, Nhikramberi e Whinti, todos os outros participantes
exercem ambas atividades de documentaristas e participantes ativos do
cerimonial. A participação de Caimi e Jorge, de Pimentel Barbosa, foi
aumentando progressivamente, começando no dia em que o Jorge
enlouqueceu e abandonou a câmera para pegar a tora e ajudar o partido dele
que estava perdendo. No final, eles ganharam dos velhos a função de
enfeitar e assistir duas madrinhas, e consequentemente na hora da corrida
para capturar as máscaras aconteceu o que aconteceu na tora, e quase não
há registros destes momentos cruciais do ritual.
Fora este inconveniente de percurso, aí esta toda a riqueza da situação em
que ação e making off se confundem, o ato de filmar está integrado ao
acontecimento, e na hora da montagem o vídeo poderá trazer, além de uma
etnografia do cerimonial, um perfil dos documentaristas e personagens da
festa. Os velhos sempre recomendavam que os cinegrafistas usem o calção
da cor e se pintem para se integrarem visualmente na cena. Falando nisso,
10 nos grandes momentos há sempre um excesso de fotógrafos e cinegrafistas
se amontoado sobre o centro de cena e obstruindo a visão mais ampla que a
maioria da aldeia prefere ter. Esta interferência incomoda muita gente e
provoca discussões acaloradas.
Caimi, extremamente maduro e equilibrado apesar de jovem, é muito
interessado pelos temas da tradição, e tem uma visão de conjunto das
coisas. A qualidade dos seus registros pode oscilar conforme seus humores
de concentração, no balanço boas produções alternadas nas entrevistas e
nas coberturas.
Jorge, que começou com uma câmera quebrada, falando pouco português,
foi sem dúvida a grande revelação da oficina no que diz respeito ao trabalho
da câmera documentarista propriamente dito. Com um belo sentido de
enquadramento, suas imagens passam um salto de qualidade em 20 dias de
trabalho, nos aspectos detalhamento, versatilidade de enfoques, movimento,
continuidade. Sempre disposto, Jorge foi assumindo cada vez mais as tarefas
mais árduas, “ir lá no começo da corrida”, “na caçada”, etc.
Divino, autor da ideia de reunir a equipe para esta produção, surpreendeu
com uma qualidade não suspeitada, o de entrevistar os seus parentes e
amigos. Produziu talvez mais da metade das entrevistas gravadas pela
equipe. Em compensação, seus constrangimentos políticos, de parentesco,
do cerimonial, muitas vezes prejudicaram as suas coberturas
Bartolomeu, professor, deu sua contribuição nos visionamentos coletivos e
principalmente na programação e decupagem do trabalho para os dias
seguintes. Também produziu importantes entrevistas.
Tseritó, como já mencionamos no começo, tem bom senso de
enquadramento e sabe bem se posicionar, mas como todos os outros teve
avanços e recuos. Também personagem do cerimonial na etapa final, ele foi
amparado no final pelo Agnello, o cinegrafista da aldeia de São Marcos.
Lucas, dirigiu um bom número de entrevistas registradas pelo Tseritó. E sob
a sua orientação que se darão os trabalhos posteriores de edição de uma
versão Xavante detalhada do ritual para ser usado em escola Xavante,
juntando para isso todos os registros.
Arquimedes, foi a relação mais difícil de administrar. Nos poucos
visionamentos que fizemos das suas imagens, sempre em particular, nos foi
deixado pouco espaço para criticar ou sugerir. Ele esteve sempre muito na
defensiva com relação a minha pessoa, marcando a crítica aos outros e
afirmando a própria superioridade.
Nikramberi e Whinti tiveram a desvantagem da língua, num trabalho que
desenvolveu o lado da palavra, mas certamente aprenderam muito sobre
cobertura. O Whinti ganhou simpatia de todos pela sua disposição e sua
discrição. Devido as dificuldades de comunicação e tempo de deslocamento,
eles não puderam participar da última etapa de gravação.
11 Para mim foi, antes de mais nada, uma prova de paciência, num primeiro
momento, que se transformou num autêntico prazer tentando entender e
administrar a dinâmica do processo, além do entusiasmo proporcionado por
cada sacada de câmera. Creio que a grande conquista da oficina foi tirar o
vídeo do terreno das disputas políticas, objeto de monopolização e
manipulação de alguns, e colocá-lo numa esfera mais consensual que é o
mundo do cerimonial. O convívio tão saboroso com a equipe e os mais
próximos, o conselho de anciões e inúmeros personagens da aldeia, acabou
de sedimentar uma relação muito próxima e participativa na segunda etapa.
No meu caso, que fui casado com uma das boas aliadas da aldeia e voltei
viúvo, fui objeto de muitas manifestações de afeto e solidariedade.
Sem luz na Missão, e muito menos na aldeia, optamos por montar a ilha na
casa do Jeremias onde a gente esteve hospedado, e funcionar com um
pequeno gerador. Mudar de um território neutro para um território marcado,
sem dúvida inviabilizou aquela aproximação com as várias equipes Xavante
de filmagem. Este acompanhamento também não se deu porque foi tal a
sucessão de acontecimentos foi tal, que mal dava tempo para assistir o que
se fazia. Portanto os três grupos seguiram cada um na sua nesta etapa,
Bartolomeu, Divino, Caimi e Jorge, de um lado, o pessoal da Abelhinha,
Lucas, Tseritó e Agnello do outro, e o Arquimedes na dele.
O trabalho de tradução agora é que nos revelará o conteúdo de tudo aquilo
que foi dito para as câmeras da equipe abrindo assim a terceira etapa da
oficina, que é a de roteirização e montagem. E esta edição, como já foi dito,
ainda tem um espaço aberto para registros de estúdio com os atores/autores
comentando alguma etapa sem costura, dar sua visão do cerimonial e
manifestar suas impressões sobre seu trabalho de filmagem. Mas este ciclo
de aprendizagem só se concluirá pela mostra do trabalho final pelos autores
a uma diversidade de audiências pelo mundo afora. Toda a trajetória deve ao
final trazer o argumento e a motivação para empreender o filme seguinte.
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