William Shakespeare - Beatriz Viégas

Transcrição

William Shakespeare - Beatriz Viégas
LIVRO: Coletânea de artigos sobre Shakespeare
William Shakespeare, 1596, e Quiara Alegría Hudes, 2006:
duas peças traduzidas e algumas semelhanças no processo
Beatriz Viégas-Faria
INTRODUÇÃO
O objetivo da presente análise é traçar um paralelo entre O mercador de
Veneza e Elliot: fuga para um soldado, dois títulos da dramaturgia de língua inglesa
separados entre si por 410 anos. Traduzi as duas peças em 2007 – Shakespeare para
publicação (Coleção Pocket L&PM) e Hudes para leitura dramática (Centro da Cultura
Judaica, São Paulo) com direção de William Pereira. Quiara Hudes é uma jovem
dramaturga estadunidense, autora de vários musicais, com formação em música (Yale
University) e criação dramatúrgica (Brown University). Sua peça Elliot, a soldier’s
fugue, ficou entre as três finalistas do prêmio Pulitzer de 2007 (categoria Drama).
Hudes é descendente de porto-riquenhos e de judeus.
Este ensaio limita-se à apreciação de apenas um dos vários elementos
temáticos presentes nas duas peças, qual seja, o contexto de diferentes etnias em
contato (e em conflito) e seus respectivos preconceitos, passando por uma verificação,
através de alguns exemplos, de como esse elemento foi (ou poderia ter sido)
trabalhado durante o processo tradutório.
Em seguida, faz-se breve apresentação de um estudo sobre estratégias
tradutórias opcionais que implicam em alguma alteração (shift) no texto traduzido em
relação ao texto-fonte. Esse estudo, da finlandesa Hilkka Pekkanen (2007), serve de
base para a classificação e a apreciação dos exemplos selecionados com o intuito de
ilustrar estratégias tradutórias de minha escolha, conforme terminologia usada em
Estudos da Tradução.
The Merchant of Venice / O mercador de Veneza
Em O mercador de Veneza, temos Shakespeare apresentando ao público esse
grande comerciante do título, Antônio, dono de vários navios mercantes, cidadão
importante da cidade-estado e cristão fervoroso. É um homem que pratica a bondade
e a compaixão para com o próximo (desde que este seja igualmente cristão); é um
cidadão cumpridor das leis (não as questiona, mesmo quando estão contra ele), e
segue uma moral que não aceita a usura (para tanto, cita a Bíblia): o empréstimo de
dinheiro, a seu ver, deveria ser praticado de modo “cristão”, sem a cobrança de juros.
Daí Antônio desprezar os judeus de Veneza (considerados estrangeiros residentes),
que cobravam juros pelos empréstimos.
Os judeus, no entanto, tinham importância vital para a economia de Veneza,
porque era com o empréstimo a juros que faziam movimentar os negócios e mesmo
contribuíam para a vida política da cidade-estado, pois possibilitavam o financiamento
de guerras. Como não eram considerados cidadãos de Veneza e sim cidadãos da
“pátria judaica”, aos judeus eram impostas regras de todo tipo: não podiam ter, por
exemplo, propriedades em Veneza. Em matéria de residência, viviam segregados.
Como não eram facilmente identificáveis pelo aspecto físico (como eram os negros,
por exemplo), eram obrigados a usar algum tipo de identificação nas vestimentas. Já
que a eles era vedada praticamente toda e qualquer oportunidade na vida econômica
da sociedade cristã, restava-lhes a prática da usura como meio de sustento.
Assim sendo, quando ao fim da peça Antônio impõe a conversão de Shylock ao
cristianismo, isso representava, àquela época, bani-lo física e geograficamente de sua
comunidade judaica, de todo o seu suporte social. A conversão, como esclarece
LUPTON (2004, p. 3), “com sua ênfase religiosa, esconde, subjacente, um conjunto de
transformações jurídicas [...] algum processo de naturalização [...] Uma Bula Papal de
1542, incentivando a conversão ativa dos judeus, estipulava que os convertidos se
tornassem cidadãos do lugar onde fossem batizados”.1 Isso significava vantagens
econômicas e sociais, além de conjugais, dentro do mundo cristão, mas, em
contrapartida, o exílio involuntário de sua “pátria judaica”.
Já na Cena 3 do Ato 1, Shylock, o judeu, queixa-se de Antônio: “Detesto o
sujeito por ser um cristão, mas detesto ainda mais porque, assim humilde e simplório,
ele faz empréstimos de graça e reduz a taxa de juros aqui para nós em Veneza. [...]
Ele odeia a nossa sagrada nação judaica e me insulta a mim [...] e ofende as minhas
1
Minha tradução.
2
boas ofertas e o meu bem-merecido e suado sucesso, que ele chama de ganhos em
cima dos juros” (p. 37).2
I hate him for he is a Christian;
But more, for that in low simplicity
He lends out money gratis, and brings down
The rate of usance here with us in Venice.
[…]
He hates our sacred nation, and he rails
[…]
On me, my bargains, and my well-won thrift
Which he calls interest. (1, 3, p. 34-43) 3
Ainda que fossem de Veneza, os judeus eram estrangeiros de uma pátria virtual,
sujeitos a todo tipo de restrição social – entre outras, constituíam crime relações
sexuais entre judeus e não-judeus. A filha de Shylock, Jéssica, converte-se ao
cristianismo quando foge de casa para se casar com seu amado Lorenzo.
Se tanto Antônio como Shylock são de Veneza, quando Shylock está falando
de Antônio e se refere a “our sacred nation” (nossa sagrada nação), penso que o leitor
brasileiro do século XXI tomaria essa nação “nossa” como sendo Veneza. Para não
abrir nota de rodapé, preferi no corpo do texto colocar um acréscimo: “judaica”.
É interessante observar que os usurários judeus de Veneza não cobravam
juros, contudo, quando o empréstimo era concedido para outro judeu. Pode-se dizer
que, na visão de Antônio, entre eles, os judeus tinham um comportamento “cristão”.
Nesta comédia de Shakespeare (também classificada como problem play, onde
Shylock desponta como notável personagem trágica), na continuidade do enredo na
Cena 3 do Ato 1 (logo após a fala acima mencionada, de Shylock falando consigo
mesmo, à parte), temos Antônio, por circunstâncias excepcionais, pedindo um
empréstimo a Shylock. Antes de dizer que está disposto a conceder um empréstimo a
Antônio, Shylock tem uma série de falas, quando, entre outras coisas, argumenta: “O
senhor me chama de infiel, de cão raivoso, e cospe na minha gabardina de judeu”. E
mais adiante, na mesma fala, com óbvia ironia: “‘Mui justo senhor, o senhor cuspiu em
mim na última quarta-feira, o senhor me enxotou em um tal dia e, de outra feita, me
chamou de cachorro; e, em consideração a essas cortesias, vou lhe emprestar estes
tantos dinheiros’” (p. 40).
You call me misbeliever, cut-throat dog,
2
Todas as citações de O mercador de Veneza em tradução são tiradas da edição L&PM (Porto Alegre:
2007), minha tradução.
3
Todas as citações de The Merchant of Venice são tiradas da edição The New Cambridge Shakespeare
(Cambridge, 2003), editada por M.M. Mahood.
3
And spit upon my Jewish gaberdine,
(…)
‘Fair sir, you spat on me on Wednesday last,
You spurned me such a day, another time
You called me dog; and for these courtesies
I’ll lend you thus much monies.’ (1, 3, p. 103-121)
Neste caso, a solução tradutória foi abrir nota de rodapé referente à palavra
“cão” (dentro da expressão “cão raivoso”, em sentido pejorativo que depois se repete
no vocábulo “cachorro”): “Para os judeus, os cães eram sinônimo de sujeira,
imundície”. Hoje penso que uma solução – para palco, por exemplo, a fim de evitar
notas – seria manter a expressão “cão raivoso” e depois usar “cachorro imundo”. De
qualquer modo, a informação extra, de um sentido implícito sociocultural que carregam
as palavras “cão” e “cachorro” nessa passagem de O mercador de Veneza, estaria
perdida.
Vale a pena ressaltar aqui que o filme de Michael Radford (Fox, 2004) não só
tem essa fala (Al Pacino no papel de Shylock), como também mostra previamente, em
cena bem anterior, Antônio (Jeremy Irons) cuspindo no rosto de Shylock.
Na Cena 2 do Ato 1 de O mercador de Veneza, temos Pórcia, principal
personagem feminina, apontando os defeitos de cada um de seus pretendentes. As
falas são cômicas, repletas de sentidos implícitos, como, por exemplo, quando
perguntada sobre o pretendente francês: “Deus o fez e, portanto, vamos deixá-lo
passar por homem” (p. 32). “God made him, and therefore let him pass for a man.” (2,
1, p. 46) Por inferência, essa frase diz que o pretendente francês de Pórcia não é
homem. Para o leitor/espectador de hoje, essa frase solta, sem outro contexto, levaria
a crer que o francês em questão é homossexual. Convém ressaltar que a noção de
homossexualidade não existia à época de Shakespeare, quando as amizades (entre
mulheres ou entre homens) eram vínculos afetivos normalmente tão ou mais fortes
que o vínculo matrimonial.
Contudo, uma vez que sentidos implícitos do tipo implicatura conversacional
(como é o caso nessa fala de Pórcia) são por natureza indeterminados, pode-se
parafrasear a inferência: o pretendente francês da lady “é tudo, menos um homem”. O
sentido é ambíguo até que se desfaz a ambiguidade, pois Pórcia continua, contando
que o francês faz tudo melhor que os outros: “é todos os homens dentro de homem
nenhum. [...] é capaz de esgrimar com a própria sombra. Se eu tivesse de me casar
com ele, estaria me casando com vinte maridos” (p. 32-33). E essa fala de Pórcia
termina com outra magnífica ambiguidade: “se fosse louco por mim, eu não teria como
4
retribuir” (p. 33). “[...] he is every man in no man. [...] he will fence with his own shadow.
If I should marry him, I should marry twenty husbands.” (1, 2, p. 58-60)
No entanto, a frase “vamos deixá-lo passar por homem” – mesmo que a
tradução fosse “vamos deixá-lo passar por um homem” – nos tempos de hoje
dificilmente será entendida com outro significado que não “ele é homossexual”, mesmo
dada a continuação da fala, tal a força da expressão em nossa sociedade atual (se ele
não é homem, então é gay – por dedução lógica). Fica bastante difícil para a tradução
escapar dessa inferência, inexistente no texto-fonte à época do autor. Uma solução
talvez fosse uma inversão na ordem das frases: deixar para o fim dessa fala
descritiva/explicativa de Pórcia a sua frase inicial com alguns ajustes: “... estaria me
casando com vinte maridos. Mas Deus o fez e, portanto, vamos deixá-lo passar por
um homem”.
Continuando em sua análise dos pretendentes, Pórcia (cidadã da fictícia
Belmonte) faz a crítica do inglês, um jovem barão (ou seja, Shakespeare faz uma
crítica aos ingleses): “Ele não fala latim, nem francês, nem italiano [Pórcia fala essas
três línguas e não fala inglês]. Ele é um retrato de tão bonito [...] E que maneira
estranha de se vestir! Acho que ele comprou seu gibão na Itália, os calções bufantes
na França, o chapéu na Alemanha, e os modos... em tudo quanto foi lugar” (p. 33). “he
hath neither Latin, French, nor Italian [...] He is a proper man’s picture […] How oddly
he is suited! I think he bought his doublet in Italy, his round hose in France, his bonnet
in Germany, and his behaviour everywhere.” (1, 2, p. 57-62) A tradução abre uma nota
de rodapé ao fim dessa fala: “Os ingleses eram motivo de piada na Europa àquela
época, por não terem um estilo próprio no vestir-se, sendo, portanto, ‘ecléticos’. Um
livro de grande sucesso entre os ingleses alfabetizados daquela época foi a tradução
[feita por John Florio] de um manual de etiqueta italiano”.
Vale aqui comentar que a tradução de termos de peças de indumentária
nunca é fácil. Não se tem no léxico de língua portuguesa a exata tradução de muitas
peças que eram ou são usadas em outras culturas (a burka é um exemplo) ou em
outros tempos. O bonnet masculino é um tipo específico de chapéu; a tradução optou
pelo hiperônimo. E hose não são apenas os calções, mas inclui também as meias ou
ceroulas.
Pórcia, além de descrever com bom humor seus pretendentes francês e inglês,
vê defeitos também no príncipe napolitano, no Conde Palatino, no lorde escocês e no
alemão, sobrinho do Duque da Saxônia. Quando lhe anunciam a chegada do Príncipe
de Marrocos, o comentário de Pórcia é o seguinte: “Se ele tiver o caráter de um santo
5
e as feições de um demônio, prefiro que venha a ser meu confessor, e não meu
marido” (p. 35). “If he have the condition of a saint, and the complexion of a devil, I had
rather he should shrive me than wive me.” (1, 2, p. 106-108) Como ao tempo de
Shakespeare o diabo era convencionalmente retratado como uma figura de cor preta,
para o público do teatro elizabetano ficava fácil inferir da fala de Pórcia que, se o
Príncipe de Marrocos fosse negro (e, de acordo com os conceitos de beleza da época,
por ser negro ele seria necessariamente feio), ela não o desejava para marido.4
Se pensarmos em uma tradução para palco em vez de para publicação, talvez
fosse solução (funcional) para imediata compreensão de uma plateia brasileira de hoje
a tradução que substituísse “as feições de um demônio” por algo como “a pele escura”
– onde se explicitaria o preconceito. Pré-conceito, aliás, que o próprio Príncipe de
Marrocos vai se encarregar de exprimir: “Não me detesteis por minha aparência [...] Eu
vos digo, senhorita, este meu aspecto já meteu medo nos mais valorosos soldados.
[...] Eu não trocaria esta cor de pele, a menos que fosse para roubar vossos
pensamentos, minha nobre rainha” (p. 43).
Mislike me not for my complexion,
[…]
I tell thee, lady, this aspect of mine
Hath feared the valiant; […]
[…]
[…] I would not change this hue,
Except to steal your thoughts, my gentle queen. (2, 1, p. 1-12)
Na Cena 1 do Ato 4, temos Shylock, o judeu, no tribunal veneziano,
defendendo com brilhantismo lógico sua posição de cobrar aquilo que lhe é devido:
uma libra da carne do corpo de Antônio, o mercador de Veneza.
Que julgamento devo temer, se não faço nada errado? Os senhores têm entre vocês
muitos escravos, que os senhores compraram e que, como se fossem seus jumentos,
seus cachorros, suas mulas, os senhores usam de modo abjeto, em tarefas nojentas.
Porque os senhores os compraram. Devo então dizer-lhes “Libertem os seus escravos!
[...]”, devo dizer-lhes isso? Os senhores vão me responder “Os escravos são nossos”.
Pois eu lhes respondo assim. Essa uma libra de carne que exijo dele foi comprada a
peso de ouro; ela é minha, e vou levar o que é meu. Se isso me for negado, meus
senhores, as suas leis são uma vergonha.” (p. 100-101)
What judgement shall I dread, doing no wrong?
You have among you many a purchased slave,
Which, like your asses and your dogs and mules,
You use in abject and in slavish parts
4
Aqui, a tradução mais correta talvez fosse “a pele da cor do diabo” (ou seja, se o Príncipe for negro) em
vez de “as feições de um demônio” (ou seja, se o Príncipe for feio). De qualquer maneira, entendendo
complexion como a cor da pele (do rosto) ou como as feições, o público elizabetano entenderia que
complexion of a devil seria de cor negra. Por outro lado, o público brasileiro de hoje, que conhece a
expressão idiomática “feio como o diabo”, poderia se perguntar de que cor é a pele do diabo.
6
Because you bought them. Shall I say to you,
‘Let them be free! […]
[...]’? You will answer,
‘The slaves are ours.’ So do I answer you.
The pound of flesh which I demand of him
Is dearly bought; ’tis mine, and I will have it.
If you deny me, fie upon your law (4, 1, p. 89-101)
Neste caso, a tradução, para tornar ainda mais contundente a fala de Shylock em sua
agressividade verbal, soluciona o adjetivo purchased por uma oração adjetiva (“que os
senhores compraram”) que mais adiante recebe eco em “Porque os senhores os
compraram”. Em vez de empregar a tradução literal “muitos escravos comprados”
(many a purchased slave), preferi usar de expressão a meu ver argumentativamente
mais forte, pois explicita o agente da compra (purchase). Ao mesmo tempo, estou aqui
fazendo uso da técnica tradutória de compensação – quando em outras passagens
das falas da peça não foi possível incluir no texto traduzido uma repetição que havia
no texto-fonte. (A repetição pode ficar impedida por várias razões, como, por exemplo:
cacofonia, ritmo da frase, efeito estético.)
Note-se que essa fala de Shylock é ambígua – numa primeira leitura, pode
parecer que Shylock tem posições claramente antiescravagistas. Contudo, todo o seu
discurso argumenta na direção de fazer valer o seu direito à carne de Antônio; é uma
argumentação com base em Lógica (se x, então y = se os senhores podem, eu
também posso [mesmo não sendo um cidadão de Veneza] porque tenho comigo uma
nota promissória vencida e porque a lei está do meu lado). Se Shylock acredita estar
moralmente certo ao pedir a carne de Antônio (a premissa y é V, i.e., verdadeira),
então ter escravos e tratá-los de modo abjeto tanto pode estar certo como errado (a
primeira premissa x pode ser V ou F, e a asserção é V). Contudo, se Shylock acredita
estar moralmente errado ao pedir a carne de Antônio, isso quer dizer que sua
premissa y é F e, para que a asserção seja V, a premissa x deve ser necessariamente
F, ou seja: Shylock acredita que ter escravos é moralmente errado. Em outras
palavras, se é (legalmente) correto ter escravos, é (legalmente) correto para Shylock
ter a carne de Antônio – por necessidade lógica. Sua argumentação é impecável e
irrefutável e, de fato, o tribunal não a refuta, mas pede a ele que se mostre
misericordioso.
Veja-se que, na verdade, Shylock está tomando o tópico da escravidão dos
negros não para condenar os venezianos por serem escravagistas, mas sim para
adverti-los de que estarão incorrendo em erro jurídico se não lhe derem ganho de
causa. O leitor fica sem saber se Shylock condena ou aprova a escravatura.
7
Elliot, a soldier’s fugue / Elliot: fuga para um soldado
Vejamos agora, no texto de Quiara Hudes, exemplos similares de dificuldade
tradutória em relação a expressões que fazem referência a diferenças étnicas com
seus respectivos significados socioculturais embutidos no texto. Elliot, a personagemtítulo, é um fuzileiro naval, americano e descendente de porto-riquenhos. As cenas da
peça alternam-se em dois movimentos musicais: fugas e prelúdios. No movimento
6/Fuga, Elliot está conversando com outro fuzileiro naval, e os dois estão no front de
batalha da Guerra do Iraque.
ELLIOT
(Dirigindo-se a um imaginário parceiro de patrulha noturna.)
Waikiki, o que é que cê vai comer primeiro quando chegar em casa? Eu não sei.
Provavelmente vou começar com aquelas rabanadas do Denny’s pro café da manhã.
Não queira nem me ver, cara, perto do corredor dos “cereais matinais”. Vou perder a
cabeça. Eu ando com desejos de sucrilhos. Se você tivesse que escolher entre Cocoa
Puffs e Count Chocula, o que é que você escolhia? Wheaties ou Life? Fruity Pebbles
ou Cruchberry? Sabe, a minha mãe nunca compra Cap’n Crunch. Ela compra King
Vitamin. É desses que, de tão barato, nem vem dentro duma caixa. Vem num saco
5
plástico, como essas massinha mixuruca de judeu. (p. 20)
ELLIOT
(To imaginary night patrol partner.)
Waikiki man, whatchu gonna eat first thing when you get home? I don’t know. Probably
start me off with some French toast from Denny’s. Don’t even get me near the cereal
aisle. I’ll go crazy. I yearn for some cereal. If you had to choose between Cocoa Puffs
and Count Chocula, what would you choose? Wheaties or Life? Fruity Pebbles or
Crunchberry? You know my mom don’t even buy Cap’n Crunch. She buys King
Vitamin. Cereal so cheap, it don’t even come in a box. It comes in a bag like them
6
cheap Jewish noodles. (p. 19)
Aqui temos um exemplo interessante: o termo cheap (barato, de pouco custo – e,
simultaneamente –, de baixa qualidade, vagabundo) qualificando Jewish noodles logo
após ter qualificado igualmente como cheap uma marca de cereal matinal americano.
Ou seja, Elliot acredita que há marcas boas e ruins de cereal matinal americano, mas,
para ele, todas as massas que seguem receita e apresentação da culinária judia são
cheap. A tradução, optando pelo termo “mixuruca” (de má qualidade e de nenhum
valor7), de certo modo reforça, aumenta, exacerba a adjetivação do original – ou seja,
um acréscimo de traço semântico.
Vale a pena lembrar aqui que a autora do texto é judia e que a tradução e a
leitura dramática da peça foram encomendadas pelo Centro da Cultura Judaica de
São Paulo. O diretor e o elenco de cinco atores (sendo que o único papel feminino da
5
Em minha tradução, texto de 58 páginas (com Anexo) em documento Word.
Do original de 54 páginas, enviado pela autora em documento Word.
7
Conforme o dicionário eletrônico Houaiss da língua portuguesa (Rio de Janeiro, Objetiva: 2001).
6
8
peça foi lido por uma atriz judia) optaram por retirar da leitura dramática a última frase
da fala acima.
Outro exemplo de expressão preconceituosa em Elliot está no movimento
11/Prelúdio, na seguinte fala da personagem-título: “Política externa? Ninguém dá a
mínima. O pessoal bebe que é pra esquecer os sofrimentos. Você anda pelos
corredores e tem gente que está passando por ali, correndo e gritando ‘F isso!’, ‘F
aquilo’, ‘Matar essa turcalhada de toalha na cabeça!’“ (p. 45).
ELLIOT
Politics? Nobody cares about that. People drink their sorrows away. You hear
people running down the hallway like, “F this!” “F that!” “Kill raghead!” (p. 43)
Chamar turbante de “toalha” deve ser algo como chamar o kilt dos escoceses de
“saia”, ou chamar a bomba do chimarrão do gaúcho de “canudinho”. A tradução
procurou algo que fosse chocante para a etnia insultada. O termo raghead pretende
ofender os muçulmanos de modo geral, e não só os iraquianos. Centrando-se no uso
do turbante, o termo inadvertidamente exclui as mulheres muçulmanas e inclui os
indianos sikh. Toalha é menos ofensivo que trapos (rags), mas existe o termo
towelhead como sinônimo de raghead, ambos os termos encontrados tão-somente na
internet, via ferramentas de busca – tanto um como outro, em 2007, ainda não
estavam dicionarizados.8 De qualquer modo, falar de uma pessoa “de toalha na
cabeça”, por ser expressão não-idiomática em língua portuguesa, até pode soar
engraçado, mas não será necessariamente insultante. Procurando por um termo que
fosse ofensivo a muçulmanos de um modo geral no Brasil, passei pela noção de
“turco”, usada para designar qualquer comerciante que vende barato e fiado, e, via
dicionário (Houaiss eletrônico), cheguei ao vocábulo “turcada” e à sua forma de uso
pejorativo, “turcalhada”.9
Quando a tradução de Elliot já estava pronta, ainda faltava resolver esse termo,
raghead – afinal, resolvido com uma paráfrase (sem recorrer à explicação de nota de
rodapé, porque essa era uma tradução para o palco, e não para publicação). Essa
experiência veio mostrar uma semelhança curiosa, em termos de processo tradutório,
para textos muito antigos e textos muito novos (no caso de Elliot, a tradução foi
executada no ano seguinte à produção textual): os muito antigos apresentam
vocábulos que não são mais usados ou então, no caso de estarem em uso, são
8
Conforme consulta ao Merriam-Wbster Unabridged online para assinantes em março de 2007.
Essa busca por uma tradução para raghead teve a ajuda inestimável, que agora volto a agradecer, de
colegas tradutores que fazem parte de três listas de discussão de tradutores na internet: tradutores
gaúchos, tradutores literários e tradutores de/para língua portuguesa.
9
9
empregados com outro(s) significado(s); já os textos contemporâneos podem lançar
mão de vocábulos que ainda não estão registrados em dicionários. Nos dois casos, a
pesquisa do tradutor passa ao largo dos dicionários comuns – para um texto
shakespeariano, contamos com dicionários especializados; para um texto de hoje,
contamos com as ferramentas de busca da internet.
Já no exemplo seguinte, do movimento 4/Prelúdio, quando Ginny (mãe de
Elliot), fala de sua infância, temos: “O meu pai era um baita dum cretino. A primeira
vez que eu lembro dele me tocando, foi pra bater em mim com um sapato. Ele batia na
minha cabeça com uma colher de pau cada vez que eu falava palavrão. Ainda tenho
um galo na cabeça por causa disso” (p.16).
My father was a mean bastard. The first time I remember him touching me, it was to
whack me with a shoe. He used to whack my head with a wooden spoon every time I
cursed. I still have a bump on my head from that. (p. 16)
A menção de um pai “tocando” uma filha traz à mente, por associação, a ideia de
abuso sexual. Mesmo que essa possível associação de ideias esteja presente também
no texto-fonte (dado o verbo touching), a tradução teria como evitar a inferência. Essa
inferência pressupõe uma implicatura conversacional que vem a ser cancelada pela
descrição desse toque físico: uma surra de sapato – aqui, sim, entra uma outra
implicatura conversacional que não será cancelada: uma surra de sapato em vez de
um gesto carinhoso). Uma inversão na ordem das frases resolveria a questão,
desfazendo uma primeira interpretação do verbo “tocar” que no texto não está
significando implicitamente abuso sexual. A solução tradutória poderia ter assumido a
seguinte forma: “O meu pai era um baita dum cretino. Lembro dele batendo em mim
com um sapato; é a lembrança mais antiga que tenho dele me tocando. Batia na
minha cabeça com uma colher de pau...”. Penso ser relevante desfazer no texto
traduzido a inferência inicial porque, no contexto da peça, tudo leva a crer que o pai de
Ginny fosse um porto-riquenho de baixa escolaridade.
Assim como Shakespeare faz a crítica bem-humorada dos ingleses em O
mercador de Veneza, temos Quiara Hudes fazendo a crítica bem-humorada dos
americanos e dos porto-riquenhos. Conforme a visão caricatural que os americanos de
um modo geral teriam da figura estereotipada dos porto-riquenhos (ou “latinos” em
geral), estes são “idiotas”. Já para os porto-riquenhos, os brancos americanos
(“típicos”) são risíveis em sua indumentária de pescadores (como no exemplo abaixo,
do movimento 13/Prelúdio).
10
ELLIOT – [...] Teve aquela vez que eu levei o Sean numa pescaria no rio Allegheny. Ele
peidava bem alto, que se ouvia longe. Daí, ele solta um peido daqueles, bem nojento. E
os brancos todos que estavam lá, de chapeuzinho de pescador e tudo, eles tipo assim
“Porto-riquenhos idiotas. Vocês assustaram os peixes”. (p. 51)
ELLIOT – […] This one time I took Sean fishing down the Allegheny. He farted real
loud. He ripped a nasty one. All the white dudes, in their fisherman hats, they were
like, “Crazy Puerto Ricans. You scared the fish away.” (p. 49)
Mais uma vez, observa-se no exemplo acima a dificuldade de traduzir termos para
peças de vestuário. Fisherman hats são chapéus próprios para pescaria, onde os
aficcionados do esporte costumam pendurar anzóis e iscas, deixando-os coloridos,
“enfeitados”. Fosse o texto traduzido para publicação, talvez o termo merecesse uma
nota de rodapé.
Há uma passagem em Elliot (movimento 5/Prelúdio) que revela, a meu ver, um
tipo inusitado de olhar preconceituoso sobre o outro: é o olhar de um menino
vietnamita sobre um soldado americano. Não é olhar de raiva, nem ressentimento,
nem ódio ao estrangeiro invasor; é um olhar de pena.
PAI
Hoje tinha esse nanico pentelhando a gente, sempre correndo atrás do tanque. Me
olhando com aquele olhar. Dei para ele as minhas bolachas água-e-sal que eu estava
guardando para a janta. Eu fiz umas caretas para ele e ele me chamou de dinky dow.
Deve ser maluco em vietnamês. Eu acho. Dinky dow! Dinky dow! Ele cheirou bem
cheiradas aquelas bolachas, depois abriu um sorriso e abraçou a minha perna. Era tão
pequeno que só chegava na altura do meu joelho.
VÔ
(Interrompe a leitura da carta.)
dow… D.O.W., died of wounds, filho: morto por ferimentos de guerra. Dinky dow… um
morto insignificante. (p. 19)
Observe-se que, no texto-fonte, temos:
POP
Today this one little shrimp kept hanging around, chasing after the tank. Looking at me
with these eyes. I gave him my crackers I was saving for dinner. I made funny faces
and he called me dinky dow. That’s Vietnamese for crazy, I guess. Dinky dow! Dinky
dow! He inhaled those crackers then he smiled and hugged my leg. He was so small
he only came up to my knee. (p. 18)
Ou seja, em língua inglesa a autora pressupõe que seu público sabe o que significa
“dinky dow”. Em minha tradução para a língua portuguesa, a solução foi criar uma fala
para o “interlocutor” da personagem, o que me obrigou a criar uma rubrica – tanto Pai
como Vô estão sozinhos, mesmo que na cena sejam “interlocutores”: o Pai está no
Vietnã, lendo uma carta que escreveu para seu pai (o Vô) nos Estados Unidos, e este
está lendo, em outro tempo, a carta que recebeu do filho. Os dois estão juntos no
palco, nesta cena, e cada um lê, intercaladamente, trechos da carta. Ou seja, quando
11
o Vô “interrompe a leitura da carta”, ele na verdade passa a falar consigo mesmo –
uma fala exclusiva da tradução, inexistente no texto original.
Como a tradução preserva referentes da cultura estadunidense, sem
domesticá-los (adaptá-los) para a cultura brasileira – como foi visto anteriormente, na
passagem que lista marcas de cereais matinais – não vi problemas em preservar em
língua inglesa a sigla militar “D.O.W.” e sua origem, died of wounds. O público, leitor
ou espectador, sabe que o contexto é a guerra do Vietnã. A tradução/explicação para
dinky dow (“morto insignificante”) foi então acrescentada e, consequentemente,
explicitou o pré-conceito do menino vietnamita em relação ao soldado (que, em vez
de morrer na guerra, voltaria aos EUA e viria a ser o pai de Elliot).
Assim como em Shakespeare, nos exemplos acima listados, temos em Quiara
Hudes uma passagem que carrega ambiguidade no que tange a eventuais
interpretações de seu significado no texto como um todo e no entendimento da
personagem que fala (Pai de Elliot, quando no front da guerra do Vietnã):
Bate o sino pequenino
Granada também
Vietcongue tá fodido
Para o nosso bem
Bate o sino pequenino
Morteiros também
Pega as Festas, põe no cu
Para o nosso bem (p. 31)
Jingle bells
Mortar shells
VC in the grass
Take your Merry Christmas
And shove it up your ass (p. 29)
A ambiguidade do texto-fonte é mantida na tradução, pois o uso da segunda pessoa
no modo Imperativo (“take your Merry Christmas and shove it up your ass”) não indica
quem seria esse you, que tanto pode ser o “VC in the grass” (literalmente, um
“vietcongue na grama” soldado inimigo no chão soldado inimigo rendido ou
abatido), como pode ser os americanos de um modo geral, os que não estão servindo
na guerra e que estão com suas famílias festejando o Natal, ou, pode ser ainda a
pessoa do presidente dos EUA, simbolizando o governo do país que, através de suas
Forças Armadas, mantém jovens (só rapazes naquela guerra) lutando no front, mesmo
no mais importante feriado cristão, numa guerra perdida. Não é nem mesmo vetada a
interpretação de que esse you sejam eles próprios, os fuzileiros navais que cantavam
essa versão modificada de “Jingle Bells”.
12
A tradução para língua portuguesa não tem o recurso de manter o número da
segunda pessoa da enunciação (o/s interlocutor/es) igualmente ambíguo. Nesses
casos, minha opção normalmente seria usar “vocês” (verbo na terceira pessoa
gramatical do plural); fui levada a escolher “tu” para dar solução tradutória à canção
em função do número de sílabas disponível no verso e também porque, no português
brasileiro de hoje, o “tu” vem sendo usado muitas vezes (por exemplo, nas novelas de
televisão) como tratamento mais agressivo que o “você” (à exceção das raras
comunidades linguísticas onde o “tu” é o pronome preferencial no tratamento informal
com o interlocutor).
Com as dificuldades inerentes a uma tradução em verso, o processo tradutório
procurou manter as referências do original – morteiros (mortar shells) e vietcongues
(VC) derrotados (in the grass) – mas aqui aproveitou a solução tradutória que se devia
encaixar na métrica e manter rimas para acrescentar o termo “fodido” dentro de uma
técnica de compensação tradutória, pois ao longo do texto de Quiara Hudes há
algumas ocorrências dos termos fuck, fucking (na posição de adjetivo) e mother-fucker
– que no português não recebem tradução literal, e sim soluções que condizem com
os expletivos formuláveis dentro de cada situação de enunciação. Portanto, aproveitei
a chance que me apareceu para colocar no texto esse acréscimo: adjetivo mais
contundente em termos de agressividade verbal.
Por que usei duas estrofes da canção em vez de uma só, como no original?
Simplesmente porque não consegui – as limitações de minha competência tradutória
não me permitiram colocar em uma única estrofe todas as imagens contidas na estrofe
única do texto-fonte.
Elliot, cidadão estadunidense, é uma personagem tão estrangeira em sua
própria terra como Shylock (considerado um judeu e não um cidadão de Veneza). O
fuzileiro naval dos EUA, ferido na guerra do Iraque, cujo pai é veterano da guerra do
Vietnã, ainda é visto como “porto-riquenho” pelas personagens que tudo leva a crer
sejam cidadãos brancos dos EUA.
Elliot, ao fim da peça de Quiara Hudes, está tão sozinho e exilado como
Shylock ao fim da peça de Shakespeare. Depois de recuperar-se de seu ferimento de
guerra, Elliot embarca de volta para o Iraque, para longe da família, da namorada e
dos amigos de infância e adolescência. Shylock, cuja filha (toda a família que tinha) o
abandonara, depois de perder uma causa na justiça é condenado a converter-se ao
cristianismo e não pode mais morar no gueto judeu de Veneza, entre seus amigos e
conterrâneos de uma vida inteira.
13
Elliot era personagem tão ingênuo quanto Shylock. O americano acreditava
que o pai (soldado no front da guerra do Vietnã) e o avô (soldado no front da guerra da
Coreia) gostariam que ele seguisse seus exemplos. Alista-se no serviço militar com o
desejo de emular os modelos parentais e com o sonho de ser algo mais na vida que
um simples balconista de lanchonete de fast-food, sem saber que, se morresse na
guerra do Iraque, seria “um morto insignificante”. Shylock acreditava que justiça seria
feita, que ele poderia cobrar a promissória firmada e selada por Antônio, o mercador
de Veneza. Depois de ser traído por sua filha, que fugiu de casa, roubou dele dinheiro
e joias, e converteu-se ao cristianismo para casar com um cristão, Shylock sonha em
vingar-se do mundo cristão opressor em que vive, simbolizado por Antônio, o cristão
que lhe cospe na cara, sem saber que, contra todas as engrenagens do establishment
cristão veneziano hegemônico, ele era um judeu insignificante.
Haveria ainda outros exemplos interessantes a listar, nas duas peças, que têm
significação (significam preconceito) maior que o significado das expressões
sintaticamente compostas em sua textualidade. Em O mercador de Veneza, um
desses exemplos está em uma fala de Shylock (1, 3, p. 134), quando este se dirige a
Antônio (que lhe cuspira na cara): “and you’ll not hear me”. Em português (p. 41): “mas
o senhor não quer me ouvir”. A significação (implícita, dados o contexto situacional e o
contexto da enunciação) desse detalhe na fala de Shylock carrega em si um não-dito
do tipo implicatura conversacional que poderia se algo como: “[não quer me ouvir]
porque, segundo você, sou um ser (judeu) insignificante”.
Em Elliot, um bom exemplo de situação contextual similar, que pode ser vista
como impregnada de uma significação que vai além do significado das palavras, está
na fala de um produtor de programa de televisão. Preparando Elliot para ser
entrevistado, por duas vezes ele diz “Mr. uh, Ortiz” (p. 25 e 26) – a expressão uh indica
que o produtor não lembra do (sobre)nome de Elliot, precisa ler o nome em algum
lugar, e não considera relevante memorizar o nome “porque, a seu ver, Elliot é um ser
insignificante (americano de origem latina)”. Em português (p. 26 e 27): “sr. hã... Ortiz”.
No entanto, exemplos desse tipo não entram no presente ensaio para fins de análise,
pois não caracterizam exemplos que ilustrem soluções tradutórias muito distanciadas
(de shifts opcionais) em relação à chamada tradução literal (de shifts
obrigatórios).
14
Discussão das soluções tradutórias com base em Pekkanen (2007)
Os exemplos acima comentados, tanto em Shakespeare (1596) como em
Hudes (2006), têm dois denominadores comuns, conforme procurei apresentar: (1)
questões que se centram na temática de diferença entre etnias (e alguns possíveis
preconceitos de lado a lado)10 e, dentro dessa temática, (2) questões tradutórias de
soluções que nem sempre são fáceis. Pelo contrário, conforme examinado nos
exemplos, certas passagens necessitam de acréscimos esclarecedores ou de notas
de rodapé, quando não são parafraseadas. Viu-se que a inversão de ordem das frases
dentro de uma fala pode evitar a inferência de sentidos implícitos indesejados, bem
como se faz necessário por vezes explicitar um sentido implícito quando a expressão
em língua estrangeira, pelo contexto em que está sendo empregada, carrega uma
conotação inexistente (ou que deixou de existir) na cultura-alvo da tradução. Notou-se
também como detalhes de significação do texto traduzido podem ser melhor
trabalhados para benefício do leitor/espectador do texto em língua-alvo. Observaramse, além disso, exemplos da dificuldade inerente à tradução de termos referentes a
peças de vestuário. Também foi pinçado de cada peça um exemplo ilustrativo da
técnica tradutória de compensação.
Dentre vários estudos examinados a fim de dar respaldo teórico às soluções
tradutórias acima ilustradas, descritas e analisadas, escolhi o artigo de Hilkka
Pekkanen (2007), “The Duet of the Author and the Translator: looking at style through
shifts in literary translation”.
Embora o estudo de Pekannen (Universidade de Helsinki) seja um estudo de
corpus e tenha por objetivo identificar e categorizar padrões recorrentes de shifts
tradutórios opcionais de diferentes tradutores para o mesmo texto-fonte, as categorias
criadas pela autora para sua análise interessam ao presente estudo, pois vêm
corroborar e classificar os tipos de solução tradutória por mim encontrados como
opcionais. Pekkanen sugere que essas soluções tradutórias opcionais podem
constituir um “perfil do tradutor”, indicando não só suas estratégias, mas também sua
“voz” e consequente visibilidade dentro do texto traduzido e seu “estilo” pessoal de
traduzir.
O estudo de Pekkanen compara os resultados do trabalho de quatro tradutores
(inglês-finlandês) que traduziram quatro romances, dois de James Joyce (publicados
na década de 1910) e dois de Ernest Hemingway (publicados na década de 1920). As
10
Ou por parte do público-alvo (Brasil atual), com no caso de um possível sentido implícito na tradução e
inexistente no texto-fonte: o subentendido possível de homossexualidade em O mercador de Veneza e o
subentendido possível de pedofilia em Elliot: fuga para um soldado.
15
traduções foram publicadas em 1964 e 1965 (Joyce) e em 1946 e 1954 (Hemingway).
O trabalho de Pekkanen é criterioso em termos de levantamento de dados e
tratamento estatístico. A autora escolheu dois romances de cada autor para descartar
a relevância estatística da influência do estilo do autor do texto-fonte no estilo dos
tradutores para fins de examinar os shifts tradutórios opcionais.
Este meu ensaio pinçou alguns exemplos de soluções tradutórias referentes a
um tema comum (questões étnicas) a duas obras distintas de dramaturgia de séculos
também distintos. As duas traduções são de uma mesma tradutora (esta autora), que
trabalha o par de línguas inglês-português, e os dois textos traduzidos foram
produzidos na mesma época (Shakespeare publicado em 2007, Hudes encenada em
leitura dramática igualmente em 2007).
Do artigo de Pekannen, acredito ser produtivo, para fins de análise dos meus
exemplos, aproveitar a categorização que PEKKANEN propõe: “Shifts podem ser
vistos como [fenômenos linguísticos da tradução] representativos de tendências
universais,
tais
como
concentração,
amplificação,
11
normalização e interferência” (2007, p. 4).
explicitação,
implicitação,
Aqui a autora faz uma ressalva: esses
termos nem sempre são definidos da mesma forma por diferentes autores e podem
ser usados também para classificar, além de tendências universais, também escolhas
linguísticas pontuais. Dentro da revisão que faz do conceito de estilo literário, a
autora opta por usar a definição proposta por Geoffrey LEECH e Michael SHORT
(Style in Fiction. London, Longman, 1981), qual seja, a “relação entre forma linguística
e função literária (i.e., efeito artístico) [...] Estudamos a descrição linguística para
entender melhor o efeito artístico e analisamos o efeito artístico para buscar
evidências linguísticas que o sustentem” (1981, p. 2). PEKANNEN faz a crítica do
modelo de Leech e Short:
Leech e Short (1981) apresentam um modelo de múltiplos níveis do estilo escrito, que
compreende os níveis semântico, sintático e grafológico, em oposição aos níveis da
linguagem falada, onde a fonologia substitui a grafologia. Entretanto, quer me parecer
que, enquanto nos textos literários os meios grafológicos são usados para expressar
traços fonológicos, o aspecto fonológico também está presente na linguagem escrita –
e não apenas porque a fala é por ele representada. Isso quer dizer que a leitura de
textos literários não é mera experiência visual, mas também envolve escutar.
Portanto, a simples representação grafológica não consegue explicar o efeito
fonológico em sua totalidade, isto é, o que o leitor “ouve”. (2007, p. 2)
O parágrafo acima, do estudo de Pekannen, é de suma relevância quando é de
dramaturgia o texto a ser analisado (traduzido ou não) quanto à relação entre forma
linguística e efeito estético. O bom texto teatral é, na verdade, uma construção
11
Esta e todas as demais citações do artigo de Pekannen são de minha tradução.
16
linguística de dificílima produção textual, pois é nada mais nada menos que um texto
escrito para ser falado, que pretende simular aspectos da conversação (por exemplo,
a alternância de turnos – quando não é um monólogo). Um dos aspectos mais
importantes de um bom texto dramatúrgico tem a ver com a construção das
personagens – sendo que cada personagem deve ter o seu idioleto (que não deixa de
ser o seu estilo de falar).
De qualquer modo, como diz PEKANNEN (2007, p. 2):
No caso da literatura traduzida, estilo pode ser entendido em referência a (1) os traços
típicos do texto-fonte, (2) os traços típicos do texto traduzido, ou (3) os traços que
caracterizam o processo tradutório propriamente dito, definidos ou pelos vários
aspectos metodológicos e situacionais típicos do processo tradutório ou pela
comparação entre texto-fonte e texto-alvo para então chegar às estratégias locais e
globais do tradutor (i.e., vários princípios, consciente ou inconscientemente aplicados
ao fazer escolhas recorrentes).
Como procurei mostrar com meus exemplos, extraídos de O mercador de
Veneza e de Elliot: fuga para um soldado, houve escolhas recorrentes (e
aparentemente simétricas) nas estratégias tradutórias que elegi (de modo consciente)
para dar tratamento que fosse não só adequado (orientado pelas circunstâncias de
produção do texto-fonte), mas que fosse também – e principalmente – aceitável
(orientado pelas circunstâncias de potencial recepção do público-alvo).
A estratégia global (levando em conta, nos dois casos, o texto como um todo)
procurou a obtenção de um produto tradutório que não deixasse equívoco quanto ao
entendimento do contexto situacional das personagens no desenvolvimento da ação;
ao mesmo tempo, cuidando ao máximo para manter, por exemplo, as ambiguidades
do texto-fonte e também para não criar inadvertidamente ambiguidades inexistentes
no texto-fonte (de onde temos os exemplos de como as duas traduções ainda têm
espaço para melhorias nesse sentido, os dois exemplo propondo inversão na ordem
das frases dentro de uma fala). Aqui vale lembrar que, para fins do presente ensaio, a
estratégia global a que me refiro reporta-se a todas as passagens das duas peças
onde pude observar relação com o tema das diferenças étnicas. Vale lembrar também
que há mais exemplos nos textos que os aqui listados.
As estratégias locais procuraram, então, a cada vez, prevenir interpretações
errôneas ou incompletas de cada fala que tem relação com crítica ou agressividade
verbal dirigida ao outro (porque é um outro de etnia diversa).
Como explica PEKKANEN (2007, p. 3), o uso de shifts tradutórios resulta em
visíveis diferenças entre o texto-fonte e o texto traduzido. Os shifts obrigatórios
originam-se em diferenças fonológicas, sintático-estruturais e semânticas entre línguafonte e língua-alvo, bem como em diferenças culturais.
17
Nos exemplos por mim elencados, parece-me que todas as ocorrências são de
shifts opcionais, pois a princípio não existe nenhuma necessidade linguística ou
cultural que leve outro tradutor a fazer necessariamente essas mesmas escolhas que
eu fiz ao traduzir os dois textos. Em concordância com essa minha posição,
PEKKANEN, em seu artigo (2007, p. 3-4), ainda alerta para o seguinte: “Se um shift é
obrigatório, mas há duas ou mais traduções alternativas pelas quais o tradutor pode
optar,o shift resultante é considerado opcional para os propósitos deste estudo. Shifts
opcionais, portanto, sempre envolvem a intervenção do tradutor” – o que corrobora em
termos teóricos, por meio de uma definição determinada metodologicamente, o
processo que mencionei acima, referindo às estratégias tradutórias que elegi “de modo
consciente”.
PEKKANEN, discutindo “Voz e visibilidade – os shifts como marcadores do
estilo do tradutor” (2007, p. 5), afirma que “se um tradutor opta pelo mesmo tipo de
shift repetidamente dentre uma série de alternativas, isso pode ser considerado uma
característica daquele tradutor em particular e pode ser visto como um traço de estilo”.
Dados os meus exemplos acima (coletados anteriormente à leitura do artigo de
Pekkanen), parece-me forçoso concordar. Acredito que sim, que meu estilo de traduzir
está intimamente vinculado a esclarecer para o leitor brasileiro questões culturais
(sejam estas da Inglaterra da era elizabetana, sejam dos EUA da guerra do Iraque).
Essas questões culturais tanto podem estar aparentes no léxico (dinky dow) como
podem estar embutidas no uso de uma imagem que ao longo dos séculos modificouse ou mesmo desapareceu (a descrição da feiura do diabo na Inglaterra elizabetana
incluía pele de cor negra). Em geral, as questões culturais que me levam a incluir um
shift opcional na tradução são elementos que precisei pesquisar para entender (dinky
dow, por exemplo), ou que, no decurso de estudar o texto-fonte, vieram a ser
explicações para mim inesperadas (o diabo como figura de pele negra, por exemplo) –
pesquisas que me levaram a uma nova leitura (i.e., interpretação) de uma dada
passagem do texto a traduzir.
Como penso ser necessário incluir de algum modo no texto traduzido
informações que podem guiar o leitor no sentido de uma leitura mais rica (por
apresentar elementos que estariam na gênese da produção do texto-fonte), os shifts
opcionais similares (explicativos) que aparecem no meu trabalho nem sempre são da
mesma ordem. Como mostrado nos meus exemplos, o que em um texto para
publicação pode aparecer como nota de rodapé (N.T.) obrigatoriamente pede outro
recurso, outra solução, no caso de uma tradução para o palco. A estratégia pode ser
construir uma longa paráfrase em português para uma única palavra em inglês
(raghead).
18
Pekkanen classifica e quantifica os achados de sua pesquisa de corpus em
dois tipos de shifts opcionais: expansões (por substituição ou por acréscimo) e
contrações. A autora prossegue na questão terminológica sugerindo que uma outra
classificação
de
estratégias
tradutórias
seja
considerada:
explicitações
e
implicitações. Expansão e contração seriam termos referentes respectivamente à
amplificação linguística e à redução linguística, ou seja, relacionados aos elementos
formais do texto-alvo quando cotejado com o texto-fonte (elementos estes que podem
ser coletados, mensurados quantitativamente e então analisados em dados
percentuais). Já explicitação e implicitação seriam termos referentes a elementos
conteudísticos do texto traduzido quando cotejado com o texto-fonte. Observa a autora
que expansões e contrações podem ser os meios linguísticos pelos quais são
alcançados os efeitos estéticos no nível do conteúdo do texto.
Nos diálogos ficcionais (por simularem de algum modo a conversação e
também porque os textos de dramaturgia tendem a ser sequências encadeadas de
atos ilocutórios), é comum detectar falas de teor implícito.
Passo agora a classificar os meus exemplos, conforme coletados nos textos
traduzidos de Shakespeare e de Quiara Hudes.
As duas traduções ilustram o shift opcional de expansão, simultâneo a uma
explicitação. Em O mercador de Veneza, temos o acréscimo do adjetivo “judaica” ao
substantivo “nação” (isto é, deixando claro ao leitor brasileiro de hoje que a “nossa
nação” não é a cidade-estado de Veneza). Em Elliot, temos a substituição de cheap
(barato) por “mixuruca”, explicitando a má qualidade do produto (e provável baixo
custo) em vez de optar por “barato”, explicitando o baixo custo (e provável má
qualidade).
Em O mercador temos uma expansão paratextual por acréscimo de uma N.T.
(explicando o sentido conotativo “sujo” vinculado à palavra “cão” ou “cachorro”),
quando então a voz da tradutora conversa diretamente com o leitor, emprestando clara
e total visibilidade à figura do agente da tradução. Em Elliot: fuga para um soldado,
temos uma expansão parafrástica por substituição: o vocábulo “raghead” é substituído
por elementos linguísticos que explicitam os traços semânticos que o compõem
(sentido denotativo: “toalha na cabeça”; sentido conotativo explicitado: turcalhada).
Tanto para O mercador (a fim de evitar uma leitura inicial que pudesse por
inferência acrescentar a noção de homossexualidade ao texto) como para Elliot (a fim
de evitar uma leitura inicial que pudesse por inferência acrescentar a noção de
pedofilia ao texto), sugeri uma estratégia tradutória que mexesse na estrutura do
19
texto: inversão na ordem das frases. Aqui temos a possibilidade de um shift tradutório
que não acontece nem por expansão nem por contração. O trabalho de Pekkanen não
prevê essa estratégia tradutória. A autora menciona que, além dos shifts obrigatórios e
opcionais, há também os não-shifts. Não é o caso de uma mudança na estrutura
textual, pois esta mudança é um deslocamento, um shift – e é claramente opcional.
(Em tradução teatral também é muito comum a inversão na ordem de falas, a inversão
na ordem de grandes blocos de texto, e mesmo a inversão na ordem de cenas. Tudo
vai depender do projeto da encenação e se, por exemplo, tradutor e diretor trabalham
a quatro mãos.)
Quanto à dificuldade que menciono na tradução de peças do vestuário, tanto
em O mercador quanto em Elliot, cito exemplos de peças que cobrem a cabeça:
respectivamente, bonnet e fisherman’s hat (“chapéu” e “chapeuzinho de pescador”). A
tradução apresenta o hiperônimo, “chapéu”, como solução. No caso de “chapeuzinho
de pescador”, o diminutivo está reforçando (expansão do significado por acréscimo de
sufixo) o menosprezo, o preconceito. Já a expressão “de pescador” está adjetivando,
qualificando o chapéu (como uma oração adjetiva reduzida em substituição a “que os
pescadores usam”), pois em português não existe a expressão “chapéu de pescador”
cristalizada como termo técnico. O que existe é uma tradução por decalque (mas, pelo
que pude perceber numa pesquisa rápida por ferramenta de busca na internet, está
sendo usado o termo “bucket hat chapéu de pescador” – numa mistura de empréstimo
e decalque para o termo técnico do inglês fisherman bucket hat). Lançar mão de
hiperônimos como estratégia tradutória significa neste caso recorrer a um shift
obrigatório por diferenças culturais. Opcional foi, em Elliot, a expansão por acréscimo
de sufixo para fins de explicitação (do preconceito de um americano latino frente a um
americano WASP quanto ao modo deste se vestir). Já em O mercador, opcional foi
não abrir nota de rodapé para explicar que tipo de chapéu exatamente seria um
bonnet alemão – uma especificação que não iria alterar em nada a significação da fala
dentro do texto como um todo. O conteúdo semântico do item lexical (bonnet) sofre
uma redução no texto traduzido (chapéu), mas a intenção comunicativa da fala de
Pórcia mantém-se intacta (ridicularizar o inglês por seus trajes).
Em Elliot temos um exemplo claro, para não dizer gritante, de expansão por
acréscimo: para solucionar no texto traduzido a expressão dinky dow, a peça recebe
amplificação (PEKANNEN, 2007, p. 4), tanto na forma como no conteúdo, com a
inserção de uma fala e de uma rubrica que não existem no texto-fonte. O shift
tradutório pretendeu explicitar para o espectador brasileiro o conteúdo da sigla D.O.W.
do jargão militar de língua inglesa. Em O mercador, minha sugestão de modificar o
texto traduzido com o acréscimo de um adjetivo pós-posto, “negro”, para qualificar o
20
substantivo “demônio”, no sentido de explicitar um vínculo semântico entre a figura do
diabo e a pele de cor negra na Inglaterra elizabetana, caracterizaria também uma
expansão por acréscimo.
Dois exemplos de expansão textual por acréscimo aparecem, tanto na tradução
de Shakespeare quanto na tradução de Quiara Hudes, quando, em O mercador, há a
repetição proposital de uma frase (“os senhores [cristãos, cidadãos de Veneza]
compraram [seus escravos]”)12 e, em Elliot, há a inserção proposital de uma
adjetivação pesada (“[vietcongue] fodido”) em uma letra de canção. Isso acontece
porque o processo tradutório compensa, com essas ocorrências, outras passagens
dos textos-fontes em que houve repetição (em Shakespeare) e adjetivação pesada
(em Hudes), sem que o texto em língua portuguesa as reproduzisse nas mesmas
passagens em que ocorreram.
CONCLUSÃO
Os exemplos selecionados de The Merchant of Venice / O mercador de
Veneza, de William Shakespeare (1596), e de Elliot, a soldier’s fugue / Elliot: fuga para
um soldado, de Quiara Alegría Hudes (2006), mostram passagens das duas peças em
que
é
importante
para
o
desenvolvimento
da
ação
dramatúrgica
que
o
leitor/espectador entenda a crítica de uma personagem que fala, sempre uma crítica
ao outro ou do outro. Esse outro é personagem de constituição étnica diversa. Essa
personagem outra pode ser real (o Príncipe de Marrocos), virtual (o jovem barão inglês
de quem Pórcia fala) ou simbólica (o inimigo muçulmano que não se vê em cena, nem
mesmo quando Elliot mata um iraquiano pela primeira vez).
A crítica ao outro atualiza-se de diferentes maneiras nos textos originais; tanto
pode ser uma ofensa claramente explícita (ragheads) como pode estar culturalmente
implícita dentro de uma ofensa explícita (“cachorro” como sinônimo de sujeira para os
judeus de fins do século XVI). De qualquer modo, para todos os exemplos listados,
das duas peças, as soluções tradutórias passaram (ou poderiam ter passado) por
algum tipo de estratégia que indicasse ao leitor/espectador brasileiro todos os traços
semânticos explícitos e implícitos envolvidos na expressão original em língua inglesa.
Para tanto, o processo tradutório valeu-se de recursos denominados shifts
opcionais. Para análise e classificação desses shifts opcionais, vali-me do estudo de
Hilkka Pekkanen (2007), que provou ser útil e consistente.
12
Mais uma vez, é interessante observar que o adjetivo purchased (comprados) pode ser visto como
uma oração adjetiva restritiva reduzida, e a estratégia tradutória optou por expandi-la.
21
Além disso, verifiquei que os exemplos de minhas estratégias tradutórias
apontam para um recurso que não está descrito no estudo de Pekannen. Uma
possibilidade de shift opcional apresentada que não se encaixa em nenhuma das
categorias listadas pela autora: a inversão de frases dentro da fala de uma
personagem. Contudo, vale ressaltar uma vez mais que essa estratégia possível seria
mais importante em uma tradução para o palco que em uma tradução para publicação
(como é o caso dos romances analisados no estudo de Pekannen), já que o
espectador deve ter entendimento instantâneo das falas dos atores, enquanto o leitor
tem tempo para “voltar atrás” no texto impresso e fazer uma ou mais releituras de
certas passagens.
Penso que este ensaio encontra sua relevância ao apontar como dois textos
separados entre si por mais de quatro séculos concentram semelhanças no uso de
vocabulário (mais ou menos explícito) e na expressão (muitas vezes implícita) de
contrastes e conflitos interculturais. Em outras palavras, este ensaio também serve
para corroborar uma vez mais a atemporalidade dos temas da obra shakespeariana e
a consequente divulgação de sua dramaturgia ao longo dos séculos, em diferentes
línguas, sempre retraduzido.
Os exemplos analisados mostraram que as estratégias tradutórias (tanto em
Shakespeare como em Quiara Hudes) podem ir desde um shift opcional de expansão
por substituição lexical (cheap mixuruca) até um shift de expansão do texto por
acréscimo (dinky dow [a inserção de nova fala e de nova rubrica ao texto
dramatúrgico]), passando ainda por notas de rodapé – se não for uma tradução para
montagem cênica. No caso de não haver na língua-alvo expressão correspondente à
do texto-fonte, o tradutor literário sempre pode optar por shifts – expansões ou
contrações da forma linguística, e também explicações explícitas ou implícitas do
conteúdo semântico.
O presente ensaio pretendeu mostrar como o trabalho tradutório conta com
recursos variegados para lidar com as questões inerentemente socioculturais de um
texto em língua estrangeira. Usando um texto shakespeariano e um texto
contemporâneo, também procurei mostrar que as dificuldades tradutórias de natureza
sociocultural para questões de etnia não são privilégio da tradução diacrônica.
22
REFERÊNCIAS
SHAKESPEARE, William. O mercador de Veneza. Trad. Beatriz Viégas-Faria. Porto
Alegre: L&PM, 2007.
SHAKESPEARE, William. The Merchant of Venice. Ed. M.M. Mahod. The New
Cambridge Shakespeare. Cambridge: CUP, 2003.
HUDES, Quiara Alegría. Elliot: fuga para um soldado. Trad. Beatriz Viégas-Faria.
Texto apenas para leitura dramática. Direção William Pereira. Evento do Centro
da Cultura Judaica, dentro do ciclo “Leitura Dramática”. Teatro da Casa da
Cultura de Israel, São Paulo, 30 de abril de 2007.
HUDES, Quiara Alegria. Elliot, a soldier’s fugue. Texto da autora, disponível para
venda
(Acting
Edition)
no
website
Dramatists
Play
Service,
Inc.:
<www.quiara.com>
LUPTON, Julia R. Arendt and Shakespeare: emancipation and its equivocalities.
Disponível em:
<http://dramateatro.fundacite.arg.gov.ve/teoria_teatral/arendt_shakespeare.htm
l> Acesso em: mar. 2008.
PEKKANEN, Hilkka. The Duet of the Author and the Translator: looking at style through
shifts in literary translation. In. New Voices in Translation Studies. 3. 2007. p. 118. Disponível, para membros da IATIS, em: <www.iatis.org>. Acesso em: mar.
2008.
23
Beatriz Viégas-Faria
Tradutora (UFRGS, 1986) com doutorado em Letras (PUCRS, 2004); tese
“Implicaturas conversacionais e tradução teatral”, com pesquisa em Estudos da
Tradução (University of Warwick, 2003). Professora da Oficina de Tradução Literária
(ing-port), curso de extensão da Faculdade de Letras da PUCRS, desde 2005.
Coordenadora e professora dos cursos sobre tradução do StudioClio, Instituto de Artes
e Humanismo, desde 2006. Prêmio Açorianos de Literatura em 2001 (autor-revelação
em poesia) e em 2000 e 2007 (tradução do inglês) por Otelo e Trabalhos de amor
perdidos, respectivamente. Suas traduções de Romeu e Julieta e de A megera
domada foram levadas ao palco com direção de William Pereira (São Paulo, 2002) e
de Patrícia Fagundes (Porto Alegre, 2008), respectivamente.
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