Catástrofe e representação na pintura de Frida Kahlo

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Catástrofe e representação na pintura de Frida Kahlo
Pulsional Revista de Psicanálise
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Pulsional Revista de Psicanálise, ano XIII, no 132, 34-44
Catástrofe e representação na pintura
de Frida Kahlo
Gilda Kelner, Suzana Boxwell, Antônio Ricardo Rodrigues da Silva
Tentaremos articular a vida e o trabalho de Frida Kahlo; as muitas catástrofes
acontecidas antes e após seu nascimento e o entrecruzamento de várias culturas
que serão sintetizadas na sua pintura.
A morte, a dor, o sofrimento, a doença, estão sistematicamente representados
nos quadros de Frida, como uma necessidade vital. Sua tarefa como pintora
estava imbricada com a narração de sua catástrofe.
O dualismo universal vida/morte, mito/fato, razão/fantasia, sonho/vigília,
aludindo a opostos inconciliáveis e fusionados, é representado exemplarmente
pela dupla Diego Rivera/Frida Kahlo.
De certa maneira o trabalho artístico está próximo do trabalho do luto, da busca
da suportabilidade do insuportável, como ocorreu com Frida. Ela usa seu
processo de construção da obra de arte para jogar com a presença/ausência no
limite espaço/tempo.
Palavras-chave: Fida Kahlo, catástrofe, representação, necessidade vital
We tried to articulate Frida Kahlo’s life and work; her numerous pre and post
birth catastrophes and the interbreed of the several culturis which are synthesized in her painting.
Death, pain suffering, and illness are systhematically represented in Frida’s painting, as a vital need. Frida’s task as a painter was interweaved into the narration of her catastroph.
More over, the universal dualism – life/death, myth/fact, reality/fantasy, dream/
vigilance – alluding to irreconcilable and fused opposites, were represented by
the Diego Rivera/Frida Kahlo pair.
In a way the artistic work is dose to mourning, to the search for the endurance
of the inberable, as it happined to Frida. She used her process of art construction to play with presence/absence in limits of space/time.
Key words: Frida Kahlo, catastrophe, representation, vital necessity
Catástrofe e representação na pintura de Frida Kahlo
F
rida Kahlo foi marcada pelo desamparo. Filha de Wilhem, depois Guilhermo Kahlo, seu equivalente latino, um
judeu-alemão de origem húngara, emigrado para o México e de Matilda Calderón, fruto de uma mãe espanhola e de
um pai índio. Muitos sangues desamparados circulavam nas suas veias e delas
escaparam, como lágrimas de sofrimento, nas suas múltiplas hemorragias.
Segundo ela, nos derramamentos, as lágrimas eram o negativo fotográfico do
sangue.
Muitas catástrofes antecederam o seu
nascimento. A morte da avó paterna, falecida quando Guilhermo tinha 18 anos,
o impeliu para fora de seu país natal,
mais ainda quando o seu pai lhe arranjou uma madrasta. A primeira mulher de
Guilhermo, já no México, morreu do
parto de sua segunda filha. Logo depois,
os pais de Frida se casaram. Matilda
acabara de perder o noivo amado, também alemão, que se suicidara e cuja lembrança, “proibida”, carregou pela vida
afora pelas das cartas de amor, guardadas para sempre.
Nasce em 1907, Magdalena Carmen Frida Kahlo Calderón. Já porta em seu
nome os encontros, os entrecruzamentos de várias culturas – judeus, alemães,
húngaros, espanhóis e astecas – cuja
síntese se apresentará na sua pintura,
ideais, posições político-ideológicas, na
sua vida pessoal e amorosa.
A morte, a dor, o sofrimento, a doença,
estão representados nos quadros de Frida, sistematicamente, como uma necessidade vital. Ela nunca foi saudável. A
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poliomielite deixou-lhe uma perna atrofiada... as crianças a chamavam de “Frida perna-de-pau”. Antes de morrer, ao
ter sua perna amputada, recordou o vaticínio de suas colegas malvadas: “As
crianças sempre falam a verdade” (Jamis, 1987). Na sua fantasia, a liberdade
seria o vôo do pássaro e a prisão, um
pássaro privado de voar, como se representava. Nunca se conformou. Tentava
sempre, cada vez com mais força, mesmo sabendo dos riscos de espatifar-se
no chão, o que acontecia com freqüência.
Seu primeiro amor foi vivido intensamente, como tudo em sua breve vida, de
47 anos (1907-1954), – Alejandro Gomes Arias. Pretendia uma fusão absoluta, da qual o companheiro não tardou a
querer e precisar desligar-se, mas, para
ela, estariam presos pelo amor e pela
morte. Na tarde de 17 de setembro de
1925, na flor de seus 18 anos, Frida desceu do ônibus com Alejandro porque
lembrou que esquecera o guarda-chuva.
No segundo ônibus, trocando carícias
com o namorado, ocorreu o choque com
um trem, num cruzamento. Alejandro
ficou embaixo do trem e Frida jazia, atravessada por um enorme pedaço de ferro, sobre o que restara da plataforma do
ônibus. Um homem, em uma operação
selvagem e rápida, arrancou do corpo de
Frida o enorme corpo estranho, que a
atravessara de lado a lado. Ela gritou tão
alto que encobriu a sirene da ambulância da Cruz Vermelha. A descrição do
diagnóstico era a seguinte: “Fratura da
terceira e quarta vértebras lombares, três
fraturas da bacia, onze fraturas do pé di-
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reito, luxação do cotovelo esquerdo, ferimento profundo do abdômen, produzido por uma barra de ferro que entrou
no quadril esquerdo e saiu pelo sexo,
rasgando o lábio esquerdo. Cistite precisando de sonda durante muitos dias.”
(Ibid.)
Frida se sentia, diante desta catástrofe,
ao mesmo tempo, touro transpassado
pela espada e toureiro apanhado por um
chifre. O pior de cada lado. Usou vários coletes de gesso, passou por inúmeras cirurgias, a dor física nunca mais
a abandonou. Sua expressão sempre foi
ruidosa, eloqüente... de uma solidão ansiosa e absoluta.
Loewelfeld (apud Laplanche, 1989) lembra o conceito de “traumatofilia”, a
tendência para reexperimentar indefinidamente o traumatismo, mas também
para elaborá-lo, simbolizá-lo. A origem
do talento do artista não seria a questão
fundamental, e sim a origem das forças
que o impelem à sublimação. O traumatismo constituiria a fonte da neogênese
da energia que impele à sublimação.
Alejandro praticamente desapareceu. Ela
o chamou de todas as formas. Sua necessidade de incluir o outro em sua vida
ultrapassava em muito a possibilidade do
outro concordar com esta posse. E sua
sensação era que todos fugiam dela.
Frida sabia de tudo isso, mas não sossegava, não calava, não negava a possibilidade da comunicação, sobretudo
depois de seu recurso à expressão artística, representando suas catástrofes
por meio da pintura. Segundo Nestrovski
(mimeo), “a linguagem estende-se sobre
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uma catástrofe, a separação entre o homem e a natureza”. As pequenas cenas
crescem e invadem, com tal força, a tela
da artista que, às vezes, tem-se a impressão que somos todos agentes coadjuvantes da representação de sua catástrofe.
A tarefa de Frida, como pintora, estava
imbricada com a narração de sua catástrofe. Em alguma época de sua vida, ela
escreveu:
A pintura constrói sobre o que a precede;
alguns pintores, no meio, rompem esta longa elaboração... É preciso agir com precisão ao se construir um quadro. A personalidade – se é que há personalidade – já
está na frente do quadro. Se é uma obra
de introspecção, é visível, penetrante... É
preciso que o quadro olhe para você tanto quanto você olha para ele. (Jamis, 1987)
Seus quadros eram sempre oferecidos a
pessoas queridas, como cartas. Frida
precisava que o quadro realmente olhasse para o espectador e provocasse nele
reações desejadas pela artista. Partilhar
o trauma para atenuar o massacre da
catástrofe, não desistir do resgate da
memória, memória de si e memória ontológica, de um México asteca, procurando compatibilizar as promessas de paz
e de criatividade, simbolizadas pela serpente emplumada, com as belicosas exigências do sangrento deus da guerra. O
medo e a coragem nunca estiveram tão
próximos na personalidade de Frida. Os
bravos inominados, da Revolução Mexicana de 1910, que jamais se viram no
espelho, com seus rostos escuros e mal-
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tratados, se subjetivaram por meio da
arte de Frida, elevados ao merecido heroísmo. As imagens dos deserdados da
terra foram representadas, perpetuadas, reverenciadas pela arte de Frida.
A lenda do “Palácio das Memórias”, citada por Marilena Chauí (1995), traz em
si uma catástrofe, uma “virada para baixo (kata + strofhé)”, um desabamento,
um desastre, um trauma. Segundo nos
lembra Nestrovski (mimeo)
... trauma quer dizer ferimento; deriva de
uma raiz indo-européia com dois sentidos:
friccionar, triturar, perfurar, mas também suplantar, passar através. Por isso mesmo,
não se deixa apanhar por formas simples
de narrativa.
No caso de Frida, a barra de ferro perfurou a jovem de um lado a outro, triturando suas entranhas, tornando sua
trajetória uma representação de dor e de
vida. Quanto mais seus quadros representam sua dor, mais representam a
vida, a força da vida.
A catástrofe é sempre a representação
de um originário inatingível. O indizível
não pode ser dito e aventemos a hipótese de que tentar, sem sucesso, representar o indizível, pode atenuar o desamparo.
Kierkegaard (1979), que morreu um ano
antes de Freud nascer, aludiu ao “desamparo negado em contraponto ao
desamparo assumido”. Ele recorre a
uma lenda que afirma a necessidade de
representar toda peça de trás para frente, senão a feitiçaria não se quebra. Num
só sentido, o desamparado que se ignora
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está realmente mais longe da verdade e
da salvação do que o desamparado consciente, que se obstina em sê-lo.
É outra grande defesa imaginar que o
desamparo é apenas o acidente isolado
de alguns, distinção tão falaciosa quanto
a que fazem entre o amor e o amor a si
próprio, como se, neles, todo o amor não
fosse, na sua própria essência, amor de
si próprios.
Habitualmente “o estado desamparado,
ainda que irisado por muitas tonalidades,
esconde-se sob sua própria penumbra...”
(Ibid.)
Voltemos aos “Palácios da Memória”.
Conta-se que o rei de Céos pediu ao poeta Simônides que fizesse um poema em
sua homenagem. Foi preparado um banquete, onde Simônides leu o seu poema,
dividido em duas partes. A primeira louvava o rei; a segunda, os deuses Castor
e Pólux. Quando o poeta pediu ao rei o
pagamento pelo poema, o rei respondeu
que só pagaria a metade, que Simônides
fosse pedir aos deuses homenageados o
pagamento pela segunda parte.
Nesta hora, um mensageiro se aproximou
do poeta, avisando que dois jovens o
aguardavam do lado de fora do palácio.
Simônides saiu para encontrá-los, mas
não achou ninguém.
Enquanto estava no jardim, o palácio desabou e todos morreram. Castor e Pólux, os dois jovens que fizeram Simônides sair do palácio, salvando o poeta,
pagaram o poema.
As famílias dos demais convidados do
banquete ficaram desesperadas com a
catástrofe, sobretudo com a impossibi-
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lidade de reconhecer os seus mortos.
A lembrança do palácio e dos lugares
dos convidados levou à criação da arte
da memória, como um palácio com lugares nos quais colocamos imagens e
palavras e, passeando por ele, ordenadamente, recordamos as coisas, as pessoas, os fatos e formulamos as idéias
para escrever, pintar, desenhar, esculpir... os palácios da memória.
O mal-estar que resultou da inveja do
rei, por não ser objeto exclusivo das homenagens, o castigo dos deuses, o sentimento do poeta, sobrevivente dentre
tantos mortos; o resgate da memória dos
entes queridos, cuja vida foi interrompida pela história de outros, levados para
a morte para contar uma história que
não era a sua. Tudo isso precisa de uma
representação. Não significa voltar ao
passado, mas trazer o passado para o
presente e (re)-representá-lo, dar novo
sentido a uma virtualidade tão presente
quanto distante. É como se Frida dissesse: não posso com essa dor sozinha, tenho que representá-la para que outros a
sintam também, como queiram ou como
possam.
A história de Frida se confunde com a
história do México, que passou do império indígena ao vice-reinado espanhol
e à república através de um processo
tormentoso, turbulento, com destruição
e exílio de seus símbolos, com movimentos subseqüentes e igualmente tormentosos de resgate das perdas. Suas
lendas sobre a morte e suas formas de
domesticá-la também são retratadas por
Frida de uma maneira tão partilhada que
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não se sabe o que é ela ou o que é seu
país. Ela não só reflete o seu sofrimento como o transcende, transformandoo em produção artística, em agonia poética. Como destaca Fuentes (apud Kahlo,
1996), “... há, na pintura de Kahlo, um
imaginário estético da violência, povoado por imagens de sexo e morte, herdado da tradição arcaica mexicana, que
muitas culturas rechaçam”.
O dualismo universal vida/morte, positivo/negativo, mito/fato, razão/fantasia,
sonho/vigília, aludindo a opostos inconciliáveis e fusionados, estava representado exemplarmente pela dupla Diego
Rivera/Frida Kahlo, elefante/pomba. A
produção artística de Frida é tão profundamente genuína que nos deixa estupefatos, maravilhados... e temerosos. Sua
intimidade com a franqueza é tão rara
quanto promissora. Por meio de sua
arte, Kahlo atingiu a possibilidade de mergulhar nas profundezas do seu eu, pela
representação dos extremos do sofrimento e da dor, a representação da catástrofe como o único caminho da verdade. Segundo Carlos Fuentes
... a arte torna-se bela simplesmente por
identificar nosso verdadeiro ser, nossas
qualidades mais íntimas. Os auto-retratos
de Frida Kahlo são belos porque eles nos
mostram as sucessivas identidades de um
ser humano que ainda não é, mas que já
começa a ser. (Ibid.)
Frida não se deixou apaziguar. Fazia
questão absoluta de sua autenticidade,
pagando um alto preço por esta postura. Para pessoas como ela, este paga-
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mento é efetuado com muito custo, até
como se estivesse dizendo aos mistificadores que pior é o dissabor da
desmistificação que um dia virá, inexoravelmente, e o que foi construído por
eles dará frutos perpetuadores do engodo e da falácia.
Frida é coerente ao tentar enfrentar a
morte. Tem muito medo, mas tenta, por
ela e por todos nós, de tal forma que nos
sentimos mais fortes se nos ligamos a
ela e à sua obra. Ela se oferece como
intermediadora deste enfrentamento com
nossas catástrofes. “O artista é o oráculo do seu desejo, escutando trovejar
em si as potências mágicas e subversivas deste desejo”, como aludiu René
Char (1997) “e subindo, para o ‘assalto
ao céu’, construindo a linha de vôo da
obra de arte; pretende-se que a arte seja
este pássaro improvável que alcança
vôo...”
Ela assim se expressou:
Meu corpo é um marasmo. E eu não posso mais escapar dele. Como um animal que
sente a sua morte, sinto a minha tomar lugar na minha vida e, com tanta força, que
me tira qualquer possibilidade de combater. Não me acreditam, tanto me viram lutar. Não ouso mais acreditar que eu poderia estar enganada, esse tipo de relâmpago está se tornando cada vez mais raro.
Meu corpo vai me soltar, a mim, que sempre fui sua presa. Presa rebelde, mas presa. Sei que vamos nos aniquilar um ao outro, a luta portanto não terá vencedor. Vã
e permanente ilusão acreditar que o meu
pensamento, por ser intacto, pode se destacar dessa matéria feita de carne.
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Ironia da sorte, eu desejaria ainda ter a capacidade de me debater, de dar pontapés,
neste cheiro de éter, no meu cheiro de álcool, em todos esses remédios, inertes partículas que se amontoam em suas caixas –
ah! assepsia até em seus grafismos, e por
que? –, nos meus pensamentos em desordem, na ordem que se esforçam para colocar neste quarto. Nos cinzeiros. Nas estrelas. As noites são longas. Cada minuto me
amedronta e eu sinto dores por toda a parte. Os outros se preocupam e eu gostaria
de poupá-los disso. Mas o que é que alguém pode evitar para os outros quando
a si mesmo em nada conseguiu poupar da
própria sina? A aurora está sempre distante demais. Já não sei se a desejo ou se o
que quero mesmo é penetrar mais fundo
dentro da noite. Sim, talvez seja a melhor
forma de acabar com tudo.
A vida é cruel por ter se enfurecido tanto
contra mim. Ela deveria ter distribuído melhor suas cartas. Recebi um péssimo jogo.
Um tarô preto no corpo. (Jamis, 1987)
Há que chamar a atenção para que a
pressão para a representação também é
marcada pelo tempo certo, havendo
avanços e recuos dialéticos, de acordo
com as emoções do autor da representação.
Leonardo levou muitos anos para terminar a Gioconda, inicialmente um retrato
da amante, encomendado por um rico
florentino. Nem as necessidades econômicas o impeliram a concluir o trabalho.
A inibição de Leonardo, aquela espécie
de freagem progressiva de sua criação
pictórica, era relacionada, segundo
Freud em “Uma lembrança da infância”([1910]1980), à vida psicossexual
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do artista. Leonardo foi um filho bastardo de uma amante de seu pai, Catarina,
tendo sido acolhido pela família do pai
por volta dos cinco anos de idade.
Segundo os historiadores, citados por
Ilse Barande (1977), Leonardo só pôde
concluir a Mona Lisa, deixando este legado inestimável à arte, com o seu sorriso tanto enigmático quanto fascinante
e insuportável, depois da morte dos pais,
supondo que o artista tenha finalmente
sido aliviado do vínculo ao sentimento
de abandono da mãe. É como se, após
a morte, os pais ficassem novamente
juntos e a mãe não mais estivesse abandonada. O sorriso, portanto, é o de um
morto (a mãe), no lugar de outro morto
(o pai). Na morte, a impossível felicidade
de sua mãe se viu finalmente realizada.
Não representar, como ressaltou Nestrovski, perpetuaria a tirania do que passou, do tarô preto. Muitos auto-retratos.
Meu modelo era eu mesma. Não era fácil.
Por mais que sejamos o nosso modelo mais
evidente, também somos, para nós mesmos, o modelo mais difícil... somos nós e
o outro, acreditamos saber-nos na ponta
de nossa língua e, de repente, sentimos
nosso próprio envoltório fugir, ficar completamente estranho ao que ele envolve.
No momento em que não suportamos mais
nos ver, percebemos que a imagem, em
frente, não é mais nós. (Jamis, 1987)
A pintura não nasceu em Frida como
uma vocação. Ela pretendia ser médica.
Para representar-se, Frida não pôde mais
abster-se de se olhar. Cercou-se de espelhos... tanto seus carrascos quanto
sua necessidade. Desenhar, retratar-se,
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era reanimar um coração que parou, dar
vida a um corpo ferido e massacrado,
impedir o fechamento precoce de um
processo inacabado, encaminhar-se para
a representação da vida pulsional. Procurou respostas aos seus enigmas, explorando suas profundezas pessoais e,
muitas vezes, clareou respostas aos outros, expondo-se a si mesma.
Se pássaro ferido, não podia voar, viajar, conhecer terras e povos distantes,
trouxe-os para perto de si por intermédio de sua arte.
Alejandro havia partido em viagem e ela
tentou trazê-lo de volta por meio da
pintura, presenteando-lhe com o seu
primeiro quadro: “Auto-retrato com
vestido de veludo”, 1926.
Nos auto-retratos a dignidade é magnífica.
Ela possuía aquele orgulho inquebrantável; passados os primeiros momentos de
reação violenta, era-lhe devolvida sua expressão de dignidade total. (Ibid.)
Mesmo com todas essas catástrofes,
apresentava-se para Frida uma visão de
futuro. Ela se perguntava, como Kafka:
“Como faria eu para suportá-lo com este
corpo emprestado de um quarto de despejo?” (Ibid.) Mas do seu corpo, de suas
chagas abertas, de suas feridas não cicatrizadas, a pintura transbordava.
Frida se retrata menos bonita do que ela
é, com traços masculinizados. A Mona
Lisa apresenta uma quase ausência de
sobrancelhas; Frida as tem espessas,
volumosas, muito negras, fundidas numa
só, como uma andorinha.
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TRABALHOU POR NECESSIDADE
ABORTOS
O pai amado expressava-se para Frida
por meio do piano, da ternura, dos cuidados, dos conselhos. Passou-lhe uma
edição encadernada de Torquato Tasso,
de Goethe, marcada numa página com
um o mata-borrão, onde ela pôde ler: “E
lá onde o homem, em seu sofrimento,
perde a palavra, um deus me permitiu
dizer que eu sofro”. (apud Jamis, 1987)
Em 1928, Frida passou a freqüentar o
meio artístico, onde conheceu o grande
amor de sua vida, Diego Rivera, artista
já consagrado e engajado nas lutas políticas e sociais. Tudo nele era grande, o que
tinha de bom, de gênio... e de ruim, de
agressivo, de violento. Um Michelângelo
mexicano, com seus enormes afrescos;
embora polêmico, o mais citado artista
do continente hispano-americano no estrangeiro.
Ela dizia que Diego trabalhava numa escala monumental e ela, Frida, na sua escala de proporções reduzidas.
Diego Rivera nasceu em 1886, na cidade de Guanajuato e era de origem espanhola, alemã, portuguesa, italiana, russa
e judia, como ele costumava dizer. Muitas necessidades de representações...
Queria ser compreendido à primeira
vista, exuberantemente.
Frida sempre quis filhos. Diego já tinha
filhos com outras mulheres. E não é que
a paternidade fosse algo desejado por ele.
Frida se imaginava estéril depois que foi
estraçalhada por dentro. Ela se perguntava se seu filho teria morrido para sempre nos trilhos do bonde.
Ela teve três abortos.
O primeiro provocado por Dr. Marin, irmão de Lupe, ex-esposa de Rivera, alegando que uma má-formação pélvica
impediria Frida de levar a gestação a termo.
Na segunda gravidez, morando nos Estados Unidos, onde Rivera estava pintando murais, o Dr. Pratt achava que Frida
poderia agüentar a gestação até o fim,
com o que o Dr. Eloesser, seu médico
da coluna, concordou.
Aos dois meses de gestação, abortou...
Foi portanto esse homem imponente, escandaloso, mítico e mitômano, feio, encantador, bem posto na sociedade mexicana e
no mundo intelectual e artístico, em particular, que entrou na vida de Frida como um
turbilhão carregado de cor, cheio de surpresas. (Jamis, 1987)
... o destino fez de mim uma presa de sua
voracidade. O destino tem dentes de tubarão. Em uma noite perdi tudo. Parece que
o meu pranto, meus gemidos, meus gritos,
podiam ser ouvidos muito além das paredes... Foi um imenso escarro de água, de
ouro e de sangue. Depois nada mais vi, o
chão amolecia sob os meus pés, o medo,
rasgos de relâmpago fragmentando meu
corpo, uma desolação absoluta, minha carne se fluidificava, travava uma batalha antecipadamente perdida, um deslocamento
brutal dos membros, o desbaratamento caótico de uma unidade, um corpo escancarado esvaziando-se de sua vida, dando a
morte, dando-se à morte. Um sofrimento de
enlouquecer... O nojo, o suor, o sangue,
nenhum elemento sólido a que me apoiar
para refazer as minhas forças. Nenhuma
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consistência, tudo imagens embaralhadas.
Punhaladas vibradas no azul do Céu. Fendas negras de fuligem nas cores da vida.
Uma palidez intolerável na linha do horizonte... Não essa perda irreparável do que
me completava, não essa amputação, essa
mutilação da minha própria vida, não essa
degenerescência violenta do meu próprio
eu. A loucura não está longe... está a dois
passos. A loucura toca de leve ou toma
conta deste lugar mais frágil de todos,
onde a dor se faz total, fustiga cada parcela de vida, estrangula a luz, amarra cada
gesto, desbarata qualquer tentativa de salvação, tenta sepultar cada bolha de ar, empenha-se em desmantelar as forças. (Ibid.)
La Rochefoucault (1994) nos diz que “o
sol e a morte não podem ser olhados de
frente” e Nestrovski (mimeo) sugere que
“é preciso criar um olhar oblíquo”. Imediatamente após o início da primeira
grande guerra, perplexo sobre o que havia se concretizado, em pleno seio da civilização, Freud escreveu o artigo “Reflexões para os tempos de guerra e morte” ([1915]1980) e na segunda parte,
denominada “Nossa atitude para com a
morte”, afirma:
De fato, é impossível imaginar nossa própria morte e, sempre que tentamos fazê-lo,
podemos perceber que ainda estamos presentes como espectadores. Por isso, a escola psicanalítica pode aventurar-se a afirmar que no fundo ninguém crê na sua própria morte, ou, dizendo a mesma coisa de
outra maneira, que no inconsciente cada
um de nós está convencido de sua própria
imortalidade.
E prossegue no texto “O estranho”
([1919]1980):
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É verdade que a afirmação: “Todos os homens são mortais”, é mostrada nos manuais de lógica como exemplo de uma proposição geral; mas nenhum ser humano
realmente a compreende, e o nosso inconsciente tem tão pouco uso hoje, como
sempre teve, para a idéia da sua própria
mortalidade.
Se não há representação para a morte no
nosso inconsciente, há, por parte do ego,
um esforço contínuo de criação de representações para ela. Esforço hercúleo,
fadado a não recobri-la nunca, mas
rodeá-la, dando-lhe alguma forma possível, seja ela discursiva, pictórica ou
musical.
Só uma representação muito vigorosa
poderia atenuar essa neocatástrofe do
aborto, organizar tal esfacelamento, tornar possível suportar tamanha culpa,
porque ela se sentia culpada diante do filho morto. Lastima-se porque é como se
sua morte fosse resultado da incapacidade da mãe, Frida, de amá-lo por dois,
já que o pai não o desejava. Ela se considerava incapaz de protegê-lo e de evitar tanto sofrimento. Do mesmo modo
que se sentia com o que de pior poderia
acontecer com o touro e o toureiro, nesta tragédia toda também se sentia a assassina do filho e lhe pedia o perdão: “...
não se permitia mais esperanças. Já não
havia cabeça para pensar, já não havia
corpo, já não havia sexo... Sua perda me
arrancou tudo...” (Jamis, 1987)
Restava a representação.
Queria ver, pegar, sentir o seu bebê morto. Gritava como uma louca no Hospital Henry Ford.
Catástrofe e representação na pintura de Frida Kahlo
Na sua representação da tão desejada
maternidade, interrompida, ela está deitada em uma cama de hospital, onde se
vê o nome do hospital e a data do quadro. Ela está nua, os cabelos em desordem, o sangue ensopando o lençol. Chora sempre. Em uma das mãos, um cordão a conecta com seis elementos: um
feto masculino; um corte de seu corpo,
de perfil, à altura do ventre; uma máquina de aço; uma orquídea; o esqueleto à
altura da bacia; um caracol. Ao fundo,
a frieza de uma cidade industrial, Detroit.
Logo depois, sua mãe morreu de câncer, ela voltou ao México, numa viagem
de ônibus, terrível. Como contraponto
ao aborto e, paradoxalmente, como fazendo parte dela, pintou “Meu nascimento”, uma mulher deitada, com a parte
superior coberta por um lençol, como se
faz com os mortos, no hospital, no necrotério, nas ruas. Das pernas abertas sai
uma criança, como que morta também.
A cama surge num quarto vazio; um retrato de Nossa Senhora apunhalada no
pescoço compõe o quadro. Frida se permitiu representar livremente a sua dor.
E sua violência também.
Ainda dentro do tema da morte, Clare
Booth, do jornal Vanity Fair, encomendou-lhe um quadro da amiga Dorothy
Hale, recém-falecida por suicídio. Imaginava-se um retrato que remetesse a
boas lembranças. O gênio de Frida pintou um quadro da jovem atriz americana, nas várias etapas de seu suicídio. Ela
pintava o trágico da vida da atriz, uma
fantasia que, muitas vezes, ocorrera à
própria Frida. Em face do traumatismo,
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um retorno nos moldes de “Além do
princípio do prazer”, da passividade à atividade, com finalidade de dominar o
traumatismo. Num primeiro impulso, a
encomenda esteve para ser destruída,
logo que foi entregue, tal o impacto causado.
Cito Comte (1997):
Perverso sem perversão, neurótico sem
sintomas, o artista é aquele que soube preservar em si, intacta e nova, essa parte sonhada de sua infância, em vez de repetir
(como o perverso) ou imitar (como o neurótico) os prazeres reais (porém desaparecidos e talvez mais amargos do que se imagina) que, em outro tempo, experimentou.
O perverso e o neurótico se trancam em sua
infância, mas perdem dela o essencial, que
é o sonho e o jogo. Ao passo que o artista não se tranca, ele prolonga a infância;
ele continua... podemos dizer que a sublimação é o extremo (ou o positivo) da perversão, e o artista, um perverso sublime ou
um neurótico bem-sucedido.
De certa maneira o trabalho artístico
está próximo do trabalho do luto, da
busca da suportabilidade do insuportável, como ocorreu com Frida, da re-descoberta da perda, jogando por meio da
construção da obra de arte, com a presença/ausência no limite espaço/tempo.
No processo dialético de fuga de si e
volta a si, a Frida desamparada passa
por uma tentativa de decifração de sua
estranheza, pela representação, como se,
algumas vezes, a representação a antecedesse para ratificar sua existência e
suas atribuições de valor no sentido de
presentificar este sujeito interpretante li-
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gado ao ato criativo. Isso seria o contraponto à transitoriedade do acontecimento psíquico em consonância com o
desamparo e com o vazio impreenchível, momentaneamente aliviados. Ficaria resguardada a memória daquele fugacíssimo instante de alívio. Este “alívio”, a ilusão da autoria, na obra de arte,
do tipo “eu existo, eu sou”, é uma das
três estruturas de sublimação apontadas
por Freud, ao lado da ciência e da religião. „
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